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Aquando da sua estadia no Brasil, Agostinho da Silva, conheceu Paulo Freire. Sobre o
seu trabalho viria a considerá-lo de grande importância para a autonomia do Brasil e dos
brasileiros. Na sua chegada à América Latina, já Agostinho da Silva tinha contactado
com as ideias da escola nova que despontaram na Europa entre os finais do século XIX
e o início do século XX. Seria também por essa altura que Paulo Freire iniciaria as suas
primeiras experiências com a educação de adultos e o que mais tarde viria a ser a sua
perspectiva crítica.
Entre Agostinho da Silva e Paulo Freire medem-se distâncias geográficas, temporais,
contextuais que são facilmente ultrapassáveis pela conceção e vivência da liberdade que
encontramos nas suas biografias. Pese embora as diferenças de temperamento e de
ações, em ambos subsiste a ideia de que é através do ensino que os indivíduos podem
tomar consciência da sua excepcionalidade e papel no mundo. É também caraterística
de ambos um engajamento social na qual a liberdade se junta ao sentido de justiça e de
pertença ao mundo. Para ambos, subsiste a ideia primordial de que a existência
individual só faz sentido quando em harmonia com toda a existência.
Enquanto contemporâneos, Agostinho da Silva (1906-1994) e Paulo Freire (1921-
1997) inscrevem-se num grupo de intelectuais e pensadores que se dedicam a pensar e
praticar um ensino que contradiz a ideia de evolução linear do positivismo, que acabou
por ter consequências na formatação das escolas e nas técnicas de ensino. Em ambos
reflete-se uma crítica à pedagogia competitiva e uma renúncia às estruturas de poder
como forma de libertação individual, mas também a busca por uma soberania coletiva
para Portugal e para o Brasil.
1
Doutorando em ciência política pela Universidade de Lisboa e mestre em ciência política pela
Universidade de Estocolmo. Investigador associado do Observatório Político e membro da Brazilian
Studies Association da Universidade de Illinois e da Associoación Latinoamericana de Ciencia Política.
Pedagogia e ensino no século XX
Desde os finais do século XIX que se intensificaram as críticas à escola tradicional que
se fundira com a Revolução Industrial e que impunha nas escolas um ensino baseado no
treino da memória e das competências técnico-profissionais. Esta primeira crítica
assenta numa conceção do indivíduo enquanto potenciador de mudança e transformação
e não como simples reprodutor de cultura (Kincheloe, 2008; Kincheloe, Hayes,
Steinberg & Tobin, 2011; Leeach e Moon, 2008; Loreman, 2011). É aliás esta
perspetiva que defende John Dewey em Democracy and Education (1916) e que Maria
Montessori põe em prática com o seu método escolar. Ambos consideram que a
educação serve para o treino crítico da criança, despoletando nesta a sua criatividade, a
capacidade de raciocínio e o treino de competências sociais. Estas perspetivas vão beber
do grande debate iluminista sobre a educação e a construção da sociedade do futuro,
tendo como pano de fundo os escritos de Rousseau, Pestalozzi ou Fröbel.
Nesta perspetiva progressista, o professor deve apoiar o florescimento das
potencialidades dos alunos, exercendo uma autoridade que não está baseada nos seus
conhecimentos intelectuais, mas na forma como aceita os seus alunos (Leeach & Moon,
2008; Loreman, 2011). Com a alteração do conceito de liberdade na década de 1960,
passou-se a discutir o lugar da autoridade no ensino, incluindo, entre outros, os ensaios
sobre autoridade e educação de Hannah Arendt reunidos em Between Past and Future.
Nestes, Arendt considera que a autoridade desvaneceu-se em nome da confusão com os
regimes autoritários, e que é necessário resgatá-la para que não esmoreça a barreira
entre o público e o privado, para que se mantenha o difícil equilíbrio entre a
continuidade e a renovação do mundo pela renovação das gerações. Tal como conclui:
Education is the point at which we decide whether we love the world enough to assume
responsibility for it (…) And education, too, is where we decide whether we love our
children enough not to expel them from our world and leave them to their own devices
(…) but to prepare them in advance for the task of renewing a common world. (Arendt,
2006)
Na busca por esse objetivo, o filósofo - aqui entendido como ser pensante – não deve
ficar reduzido à cartilha intelectual, ao amontoado de conhecimento e à doutrina. Pelo
contrário, deverá ter em conta o amor como força motriz do conhecimento e do
entendimento do mundo. Sem reconhecer esta força, o intelectual é despido do que mais
importante e premente existe para se conhecer. Assim, o português afirma que,
"O essencial na vida não é convencer ninguém, nem talvez isso seja possível; o que é
preciso é que eles sejam nossos amigos; para tal, seremos nós amigos deles; que forças
hão-de trabalhar o mundo se pusermos de parte a amizade?" (Silva, 1945)
"Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca;
seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o
amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança
no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto
que lhe perturbe a vida." (Silva, 1945)
Esta é uma crítica à teoria aristotélica, tal como é apresentada nas Cartas a
Nicómaco. Nesta obra, o filósofo grego defende a ideia de que a intelectualização é a
atividade humana que mais se aproxima do divino e que por isso o intelectual é o
homem mais feliz de todos. Contrariando esta perspetiva, Agostinho da Silva parte de
uma interpretação original dos Lusíadas e da maneira como o puro empirismo dos
navegadores portugueses destronou todas as teorias e hipóteses científicas de
Aristóteles, completando-se como os verdadeiros príncipes do renascimento, pois nunca
deixaram de “viver como pensavam”. Desta forma, Agostinho apresenta um intelectual
que utiliza o pensar e o conhecer como meios de se atingir o pleno da vida que é o de
simplesmente viver, cumprindo-se, tal como o gato que contempla a cidade no parapeito
de uma janela. Um ser engajado no amor franciscano, fraternal e universalista, estando
intimamente ligado com o objeto que ensina e com os sujeitos com quem interage.
Nestes termos, Agostinho apresenta o pensar como a capacidade de aceitar o paradoxo.
Tal como em Lao-Tsé, a contradição é para Agostinho a regra essencial do pensamento
visto que “a perfeição suprema parece imperfeita”.
Na senda desta crítica ao mundo moderno, Freire considera que o Homem não tem
vivido sob a batuta do seu verdadeiro potencial. Postula o sujeito como protagonista da
sua própria história, desenvolvendo a liberdade capaz de desenvolver a sua vocação
(Pereyra, 2008). Neste sentido, considera que cabe ao indivíduo “ser mais”, tanto na
relação consigo próprio como na relação com a comunidade, estando disponível para
ouvir e respeitar os outros, reconhecendo-se como agente de mudança. Tal como
Agostinho, Paulo Freire reconhece que o papel do intelectual ou do professor é não
desligar-se do mundo e dos sujeitos que o rodeiam, tendo um papel ativo na
comunidade e no aprofundamento democrático do acesso ao conhecimento (Romão,
2010). No entanto, o brasileiro também considera que por forma a atingir-se este
potencial, é necessário que os indivíduos tenham a sensibilidade bastante sobre a dura
realidade e a injustiça (Pereyra, 2008). Freire apela para que intervenhamos no mundo
por forma a alterá-lo.
Na sua obra seminal Pedagogia do Oprimido (1970) Freire reflete primeiramente
sobre o papel da sua educação familiar como dinâmica de aprendizagem democrática:
Minha experiência pessoal em casa, na relação com os meus pais, os meus irmãos (…)
marcou-me profundamente com o seu caráter democrático. No ambiente em que
vivíamos, a nossa liberdade, tratada com respeito pela autoridade de meus pais, era
desafiada a assumir-se responsavelmente. (Feire, 1996: 105)
Esta proposta de Freire considera que não basta libertar o oprimido, pois isso daria
azo ao uso da violência contra a injustiça em que este tem vivido. Para que o oprimido
se liberte é necessário que se consciencialize para as estruturas que o oprimem, mas
também que tome conta da sua vida por forma a tomar conta das suas dinâmicas
internas, da sua rebeldia e sentimento de opressão, ou seja, que seja autoridade em si
mesmo. Desta forma, em Freire e Agostinho permanece a ideia de que o
intelectual/professor deve ser agente atuante e engajado. Vejamos de que forma
discutem esse papel nas suas conceções pedagógicas.
“Uma filosofia ao que eu entendo, tem de ser uma explicação total do universo. Porque
não inclui então aquele que nos aparece como adversário? (…) Dirá você que uma
concepção dessas, em que todos o contrários se harmonizam, só é possível em Deus?
Vamos, então, nós, desistir de chegar a Deus? Essa, para mim, é que é a grande tarefa da
arte, da ciência, da sociologia, ou melhor, da política.” (Silva, 1945)
Neste sentido, o ensino nasce em Agostinho da Silva como uma necessidade não
meramente pedagógica mas como prática, no presente, do “mundo a haver” (Epifânio,
2007; Sarmento e Ribeiro, 2010), um mundo profundamente heterodoxo e múltiplo
unicamente possível pelo ensino da diferença, adaptado às necessidades e aptidões de
cada um. O seu percurso atesta estes princípios através de um confronto com os
preceitos autoritários do Estado Novo. Tal como escreve o seu filho Pedro Agostinho da
Silva:
"(…) campanha educativa que felizmente não ficou no que respeita a um sector
especializado, o da pedagogia, mas se estendeu a todo o domínio da vida humana (...)
não deu suficiente atenção, em politica interna, a sectores verdadeiramente populares,
julgando que o era a juventude das escolas, que da classe média vinha e da classe média
iria” (Op. cit. Manso, 2000: 362).
Durante este período, Agostinho consolida a ideia de que cada “um de nós tem
de ser sujeito do processo educativo”, pois “educar não é se encher isoladamente de
conhecimento” (Sá, 2009). É aliás a partir desta visão que tenta ultrapassar a ideia de
pedagogia, através do que considera ser a anagogia, ou seja, o processo pelo qual se
extraem as potencialidades de qualquer indivíduo.
Paralelamente, e tendo em conta a forma como atua entre as décadas de 1930 e
1940, Agostinho da Silva desenvolve a ideia de que todo o ensino deve ter a intenção de
transformar os indivíduos por forma a transformar as instituições e a sociedade, tal
como irá defender em Educação de Portugal de 1970. Desde cedo que o pensador
português entrara em contacto com outras perspetivas pedagógicas emergentes no início
do século XX como é o caso do proposto por Maria Montessori. Publica em 1939 O
Método Montessori demonstrando conhecer outros métodos pedagógicos que não
aqueles desenvolvidos durante a segunda revolução industrial. A leitura da sua obra
leva-o a concluir que:
“O que é impossível, depois do conhecimento dos seus trabalhos, é negar a utilidade das
escolas infantis ou empregarem-se, no seu funcionamento, os processos da escola velha
(…) por outro lado, encerrá-las numa sala, com o ambiente das carteiras, dos exames e
dos castigos, matando-lhes, logo no início, tudo quanto é delicadeza e gosto da vida, não
é nem menos absurdo nem menos criminoso.” (Silva, 1939: 79)
Tomando contacto com a perspetiva montessoriana e outras alternativas
pedagógicas como as de Winnetka ou Sanderson, Agostinho passou a considerar o
“pensar autêntico e original nos indivíduos porque acreditava que em todos nós há uma
força criativa e criadora (…) que nos torna, em simultâneo, poetas e poemas de nossos
afazeres cotidianos e fazeres espirituais” (Sá, 2009: 62).
Em 1944 abandona o país, instalando-se definitivamente no Brasil em 1947,
chegando a lecionar em colégios e universidades livres no Uruguai e na Argentina, bem
como na Escola de Estudos Superiores de Buenos Aires (Epifânio, 2007; Manso, 2000;
Sarmento e Ribeiro, 2010). Nesta última instituição chegou a organizar cursos de
pedagogia moderna, demonstrando que já na segunda metade da década de 1940 teria
consolidado a sua visão pedagógica, sendo a sua passagem pelo Brasil o meio pelo qual
iria confrontar-se com o legado português no mundo. Até esta data, não contactou
apenas com os novos movimentos pedagógicos e com a escola nova, mas esteve
também interessado em entender por que razão o poder político exercia tamanho
controlo sobre a escola, por que razão o adulto exercia tamanho poder coercivo sobre a
criatividade da criança e por que razão vivem os homens revoltados contra o mundo,
enredados no egoísmo e no primado do económico e da eficiência.
Neste sentido, a educação tem limitado a humanidade e a própria pedagogia
dominante não tem tido mais do que o papel de “empurrar”, ou seja, “Empurra-se o
menino, empurra-se o adolescente, empurra-se o adulto: somos todos uns excelentes
pedagogos: empurramos” (Silva, 1989: 60). Como chega a considerar em Namorando o
Amanhã, “o que fazemos é criar cabeças cúbicas. E nós não perdemos essa memória do
cúbico, o que dizemos é que a maior parte das vezes, a pessoa sai da escola sendo uma
besta-quadrada” (op. cit. Manso, 2000: 364). No fundo, Agostinho preocupava-se não
apenas com a educação das massas populares mas com a transformação da sociedade
como um todo partindo de uma educação que não estivesse baseada na memorização de
conteúdos e na conservação das estruturas opressoras da liberdade individual.
Logo em 1948 está envolvido na fundação da faculdade de filosofia da Universidade
Federal Fluminense, seguindo-se-lhes a Universidade Federal da Paraíba (1951), a
Federal de Santa Catarina (1955) e na década de 1960 tanto a Universidade de Brasília
como o Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás (Epifânio,
2007; Magalhães, 2010; Sarmento e Ribeiro, 2010; Silva, 2006). Ainda em 1959 funda
o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador da Bahia, centrado nas relações entre o
Brasil, a África e a Ásia coloniais e pós-coloniais tanto do ponto de vista antropológico
– no qual terá um papel relevante no estudo das origens do candomblé e da cultura
negra na Bahia – como nas relações de poder e da condição pós-colonial do Brasil e das
culturas sulistas.
É também durante este período que Agostinho põe em prática o seu modo de pensar
o mundo, comunicando com as diversas comunidades pobres brasileiras. Tal como mais
tarde irá considerar, sempre deu mais importância ao que “escreveu na vida” do que ao
que “escreveu nos livros”, sendo um homem de ação e de procura do outro. Na serra de
Itatiaia e ainda na década de 1940 esteve próximo das comunidades locais, na
alfabetização ou ainda no apoio às populações que sofriam com a seca no sertão
brasileiro (Epifânio, 2007).
No entanto, o seu grande projeto seria a Universidade de Brasília pensada
enquanto escola normal de universidades. Fundada em 1962, a universidade surgiu
idealizada no planalto como uma instituição integrada no plano da nova capital. Em
1968 Agostinho é convidado por uma comissão parlamentar de inquérito para discorrer
sobre as condições do ensino superior brasileiro (Magalhães, 2010). Enquanto professor
universitário nas universidades federais de Santa Catarina e da Paraíba, o português
tinha já contactado com a realidade universitária brasileira e especialmente com as
condições de formação e recrutamento de professores e com o acesso universal da
população brasileira à cultura e aos centros de criação cultural (Magalhães, 2010). É
aliás focado na criação que inicia a sua análise da universidade do futuro (Manso,
2000). Por criação Agostinho considera a reinvenção do mundo num duplo combate ao
“sebentarismo” e à disciplina, e é por isso que a universidade se deve concentrar na
formação de indivíduos alicerçados no seu tempo e no seu contexto. Tal como reflete:
(…) o Brasil só pode ter uma Universidade que corresponda à sua estrutura económica,
sua estrutura psicológica, temos que ter a paciência de ir avançando com honestidade,
como devemos ter a paciência de ir avançando com o país até atingir um
desenvolvimento que não creio, seja apenas, e que seja sobretudo, um desenvolvimento
de carácter económico, a economia apenas deve aparelhar como estrutura de base e nada
mais; o Brasil não tem que se preocupar com o desenvolvimento em si mesmo, tem de
se preocupar com o desenvolvimento na medida em que ele permite uma livre acção do
homem e portanto a missão essencial do Brasil é pensar qual a missão desse homem no
mundo. (Silva, 2000b: 39)
Paralelamente, o português reflete sobre a necessidade estrutural de uma “escola
normal de universidades” por forma a fazer um esforço de formação do pessoal
educativo para todo o Brasil e de “fazer frequentar na Universidade de Brasília alunos
que viessem de todos os Estados do Brasil por concursos locais” (Magalhães, 2010;
Silva, 2000b: 40-41).
O regresso a Portugal acontece em 1969 depois do agravamento da situação
política brasileira e do desanuviamento trazido pelo marcelismo em Portugal. Agostinho
ingressa na Universidade Técnica de Lisboa com o Centro de Estudos Latino-
Americanos (Silva, 2006). A sua estadia em Portugal até 1994, ano da sua morte,
serviria para confirmar e disseminar as suas ideias sobre o ensino e, especialmente,
sobre o papel de Portugal no mundo. Enquanto nas décadas de 1930 e 1940 Agostinho
apreende os ensinamentos de Montessori e Sanderson concluindo que “educar é a arte
de conduzir uma criança a auto-descobrir-se” (Real, 2009: 71), em 1970 e com a
publicação de Educação de Portugal, confirma a ideia de que educar pressupõe
mudanças sociais. Tal como considera:
“Creio, primeiro, que o mundo em nada nos melhora, que nascemos estrelas de ímpar
brilho, o que quer dizer, por um lado, que nada na vida vale o homem que somos, por
outro lado, que o homem algum pode substituir a outro homem. Penso, portanto, que a
natureza é bela na medida em que reflecte a nossa beleza, que o amor que temos pelos
outros é o amor que temos pelo que neles de nós se reflecte, como o ódio que lhes
sintamos é o desagrado por nossas próprias deficiências, e que afinal Deus é grande na
medida em que somos grandes nós mesmos: o tempo que vivemos, se for mesquinho,
amesquinha o esterno.” (op. cit. Real, 2009, 72)
Nas duas últimas décadas da sua vida, Agostinho tem uma vida frugal e
harmoniosa, por vezes interrompida por entrevistas em jornais e na televisão pública. O
contacto constante com jovens e amigos granjeiam-lhe uma atividade pedagógica não
institucionalizada que reflete o seu pensamento anagógico, imprimindo em cada um a
necessidade de serem eles próprios, “por muito incómodo que tal seja, e tem sido, para
mim mesmo e para os outros [pois] não tens essencialmente de amar nos outros senão a
liberdade” (op. cit. Real, 2009, 72).
Uma dupla mirada ou o encontro entre os mestres
Refletindo sobre a condição cultural do Brasil, Darcy Ribeiro considerava que o
brasileiro resulta de uma “cultura mestiça”, construída sob um “povo síntese e mestiço
[pois] para nós brasileiros, a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado” (op. cit.
Romão, 2010: 19). Resulta desta análise que os povos mestiços, esquecidos e
marginalizados na ordem internacional, possuem a vantagem da “dupla mirada” cultural
sobre o mundo e que por isso, serão eles a preparar o futuro.
Tal como tivemos hipótese de analisar anteriormente, existem diferenças e
encontros na forma como Freire e Agostinho entendem o ensino, tanto na sua
componente de prática escolar como nos seus efeitos sociais.
Em ambos encontramos um ensino ontologicamente político (Sá, 2009: 61), ou
seja, possuindo uma componente de transformação social. No entanto, para Agostinho
essa mudança só acontece através de um processo anagógico, que traga a criança “para
cima” por forma a libertar-lhe as potencialidades, através de “um conjunto de preceitos
auxiliadores que criem condições para que a personalidade da criança desabroche”
(Real, 2009: 72). Estando na polis, os indivíduos têm a capacidade de mudar o mundo
através da confrontação. Em Paulo Freire, esta confrontação acontece por meio da
consciencialização de si mesmo e dos outros, processo aliás que Agostinho também
propõe quando defende que a produção do conhecimento deve estar ao serviço do futuro
(Manso, 2000). Para que isso aconteça é necessário preparar a humanidade para sonhar
livremente, ou seja, para produzir conhecimento pois este “implica a aquisição, a
manutenção e a reinvenção do poder” (Sá, 2009: 62).
Neste sentido, ambos refletem sobre a condição social da humanidade, imersa
numa luta pela harmonização do diferente, pela competição desenfreada e pela
desigualdade. Como nos escrevia Agostinho, “nenhum Homem verdadeiramente o é
enquanto submetido à miséria, à ignorância e ao medo” (op. cit. Sá, 2009: 63). Para o
português, torna-se essencial humanizar o poder e o conhecimento, análise que aliás faz
da festa do divino espírito santo em Educação de Portugal, enquanto escola de civismo
e de paz (Carvalho, 2009: 69). Na mesma senda, Freire defende a aprendizagem da
diversidade entendendo, tal como Gramsci, que as classes populares são múltiplas e
diversas. Esta aprendizagem pela diversidade ajudaria essas mesmas classes se tornem
criadoras e progressistas por forma a quebrar a “fossilização” dos estratos sociais e dos
hábitos (Rodríguez, 2007: 16).
Para a transformação política e social Agostinho da Silva sugeriu a divulgação
cultural e um ensino que vá ao encontro das necessidades do aluno, propondo “o
primado da criança sobre o adulto; o primado da aprendizagem sobre o ensino; o
primado do natural sobre o convencional” (Real, 2009: 70-71). Em última instância, “é
a criança quem deve mandar em todos nós” tal como defende em 1972 no ensaio O
Espírito Santo nas Ilhas Atlânticas. Desta forma, encontra um paralelismo entre o
ideário do quinto império e o futuro da escola, na busca pelo tempo da espera, da
descoberta e da transformação das estruturas do poder, da condição do mundo (Manso,
2000; Real, 2009). Por forma a contrariar o ensino pretensamente infalível de onde “só
escap[am] os cábulas” e “gente de tipo Gauss”, Agostinho argumenta que se deve
contrariar o espírito do trabalho, da eficácia e do mercantilismo, substituindo-os pelo
ócio e pela liberdade de ser (Real, 2009).
Em Freire, esta transformação só acontece quando se alterar a visão dominante
constantemente passada pela figura do professor na sala de aula. Desta forma, o campo
da cultura torna-se o campo primordial para a luta política, enquanto a cultura popular
surge como cultura de conflito. Tal como Agostinho da Silva em Portugal e no Brasil
que agiu para a promoção da cultura popular, Paulo Freire pretende estabelecer uma
cultura de diálogo e de consciencialização para a diversidade. A busca pela diversidade
só poderá dar frutos quando o novo sistema educativo estiver articulado com a política e
com a história (Rodríguez, 2007). Enquanto tal não acontecer, continuarão a persistir as
“epistemologias silenciadas” produzindo conhecimento marginal, subalternizado e do
contra (Romão, 2010). Freire defende, assim, uma pedagogia do oprimido e não uma
pedagogia para o oprimido, ou seja, uma pedagogia preparada para as especificidades
dos interlocutores, pois ao libertar-se o oprimido, libertamos o opressor.
Assim sendo, Agostinho da Silva e Paulo Freire inscrevem-se numa “dupla
mirada”, tentando estabelecer uma mestiçagem que ultrapasse as visões únicas e
dominantes, em busca de uma definitiva liberdade do ser.
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