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ARTIGOS

Acolhimento e inclusão: da clínica


ao acompanhamento escolar de um
*
sujeito com Síndrome de Down

Marisa T. Serapompa**
Suzana M. Maia***

Resumo

Neste artigo, visa-se discutir a transformação no manejo clínico e escolar ocorrido no trabalho
multidisciplinar realizado com uma criança com Síndrome de Down. Trata-se de um estudo de caso de
um paciente acompanhado desde os 11 meses de idade em clínica fonoaudiológica particular. As
referências teóricas utilizadas foram a teoria da constituição da pessoa de D. Winnicott e as concepções
de linguagem de M. Bakhtin, que, juntas, permitiram que os pesquisadores assumissem uma posição na
coleta e análise dos dados, que provieram fundamentalmente dos registros de reuniões de equipe realizadas
durante os anos de 2003 e 2004. O paciente em questão desenvolveu efetivamente a comunicação por
meio da escrita, quando se integrou ao grupo de crianças de sua série escolar. A escrita adquiriu uma
função em seu cotidiano, o que permitiu ao paciente sentir-se respeitado em suas particularidades e
participar da construção de seu conhecimento. O diálogo estabelecido entre os profissionais, a família e
a criança favoreceu a criação de situações de comunicação em um ambiente acolhedor da diversidade,
fundamental em um processo de inclusão.

Palavras-chave: diversidade; inclusão; Síndrome de Down; escrita.

Abstract

This article discusses transformations in clinical and school follow up in a multidisciplinary approach
in the developmental process of a child with Down syndrome. It is a case study of a patient from 11
months of age, registered for two years, regarding speech and language therapy in a private clinic. The
theoretical framework for analysis involved both Winnicott´s theory of the constitution of a person as
well as language concepts proposed by Bakhtin. The interaction of both approaches allowed for an
interesting analysis and discussion of the data. The patient developed effective writing communication
capabilities when integrated in an age appropriate group. Writing became an important skill in his daily
life, allowing for more room for the patient’s particular needs and for a more effective process in the
construction of knowledge. The dialogue established among professionals, family and child favored the
creation of diversified situations of communication critical in a process of inclusion.

Key-words: diversified; inclusion; Down syndrome; writing.

*
Trabalho vinculado à Linha de Pesquisa Linguagem Corpo e Psiquismo do Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudio-
logia da PUC-SP. ** Fonoaudióloga clínica, doutoranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e
Estudos da Linguagem (Lael) da PUC-SP. *** Psicanalista, professora titular da PUC-SP e membro do LET (Laboratório de
Estudos sobre Transicionalidade).

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 313-322, dezembro, 2006 313


Marisa T. Serapompa, Suzana M. Maia
ARTIGOS

Resumen

Este artículo tiene como objetivo, discutir la transformación en el manejo clínico y escolar ocurrido
en el trabajo multidisciplinar realizado con un niño con Síndrome de Down. Tratase de un estudio de
caso de un paciente acompañado desde los 11 meses de edad en clínica fonoaudiológica particular. Las
referencias teóricas utilizadas fueron la teoría de la constitución de la persona de D.Winnicott y las
concepciones de lenguaje de M. Bakhtin, que juntas permitieron que los investigadores asumiesen una
posición en la colecta y análisis de los datos. Estos, provinieron fundamentalmente de los registros de
reuniones de equipo realizadas durante los años de 2003 y 2004. El paciente en cuestión desarrolló
efectivamente la comunicación por medio de la escrita, cuando se integró al grupo de niños de su serie
escolar. La escrita adquirió una función en su cotidiano, lo que permitió al paciente sentirse respectado
en sus particularidades y pasó hacer parte de la construcción de su conocimiento. El diálogo establecido
entre los profesionales, la familia y el niño, favoreció la creación de situaciones de comunicación en un
ambiente acogedor de la diversidad, fundamental en un proceso de inclusión.

Palabras claves: diversidad; inclusión; Síndrome de Down; escritura.

A Educação e a Fonoaudiologia da situação de enunciação. Se a atividade mental e


parceiras na reflexão a enunciação adquirem maior complexidade a par-
de teorias que determinam tir da exigência do contexto social, aqui está o pa-
a atividade prática pel mediador do profissional.
A linguagem neste trabalho é realizada em
O trabalho do fonoaudiólogo junto à Educa- enunciação, que é o produto da interação de dois
ção caminha na direção de construir, em parceria, indivíduos organizados socialmente. As enuncia-
práticas mais significativas de ensino e aprendiza- ções envolvem a linguagem verbal e não verbal. A
gem. Entre as reflexões sobre o tema, ganha desta- enunciação é determinada tanto pela situação de
que o questionamento de abordagens mais tradi- comunicação, quanto pelo interlocutor, porque a
cionais no que se refere à linguagem, as quais são palavra se dirige a alguém, fato que também in-
ainda adotadas tanto no contexto clínico quanto no fluencia nas escolhas da forma de expressão.
escolar. A presente pesquisa está pautada na teoria O segundo referencial teórico deste trabalho
de desenvolvimento humano à luz de Winnicott e apóia-se nas idéias de D. Winnicott, principalmen-
sua visão de pessoa humana e na concepção de lin- te no que se refere às tarefas que o ambiente hu-
guagem em Bakhtin para traçar uma proposta de mano deve realizar para favorecer que a pessoa
trabalho fonoaudiológico. possa seguir o seu processo de amadurecimento e
A função central da linguagem em Bakhtin é a constituir-se como uma unidade, capaz de reali-
comunicação e não a expressão. A comunicação zar um gesto criativo em relação ao outro, que
verbal é indissociável da situação concreta e entre- marque a maneira singular como está no mundo.
laça-se com a comunicação não verbal. Assim é É a percepção das necessidades da pessoa e o
necessário que os profissionais valorizem qualquer manejo do ambiente para criar as condições para
forma de expressão da pessoa e criem condições que ela se expresse.
favoráveis à sua possibilidade de expressão. Ativi- No que diz respeito à linguagem na visão mais
dade mental é social: é o conteúdo a exprimir, seu tradicional, impera a idéia de que aquele que não
objetivo é exteriorizar-se, a atividade mental exte- consegue se expressar também tem dificuldades para
riorizada organiza a vida interior. A atividade men- pensar. Nesse modelo, a linguagem é vista como
tal se adapta às possibilidades de expressão tanto canal para a representação do pensamento, ou seja,
do sujeito, quanto da situação de comunicação ofe- a língua é um código utilizado por um emissor que
recida. transmite uma mensagem a um receptor. Desta for-
A expressão exterior insere-se ao contexto do ma, garantir que a percepção se mantenha íntegra
cotidiano não verbalizado, nele se amplia pela ação, para receber as mensagens é fundamental para a
pelo gesto, pela resposta verbal dos participantes ocorrência da comunicação eficiente.

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O desdobramento clínico dessa visão assinala A história de um jovem mediando
uma perspectiva de trabalho terapêutico, em que a o diálogo entre Educação
transmissão e a recepção de conhecimento são e Fonoaudiologia
muito valorizadas. As atividades que visam alcan-
çar a ambas são planejadas e devem ser cumpridas Autorizados pela família, descreveremos um
em um tempo previamente determinado. A avalia- recorte da história de um menino com Síndrome
ção também é pautada pela quantidade padrão de de Down, a quem nomeamos Neto, que iniciou
conteúdos que devem ser assimilados em cada pro- atendimento fonoaudiológico aos 11 meses de
cedimento. idade, freqüentando paralelamente a Apae de São
A memorização, portanto, é considerada uma Paulo.
aptidão fundamental. Para exercitá-la, os profis- Neto foi trazido por sua família num momento
sionais propõem o treino de habilidades, reprodu- em que ela ainda se organizava diante de tantas
zindo o modelo disponibilizado de acordo com o informações técnicas sobre Síndrome de Down.
que é esperado para cada idade e/ou escolaridade e Seus pais e irmã ao longo dessa convivência não
também para cada deficiência. se pautaram por parâmetros sobre a Síndrome de
Assim, as atividades educacionais e clínicas são Down, mas construíram junto com seu menino uma
orientadas e organizadas de modo a apresentar as história rica em suas particularidades. Muito en-
informações em uma seqüência lógica, de acordo volvidos com as necessidades de Neto, não me lem-
com um grau de complexidade crescente e com o bro de algum momento em que estivessem se refe-
objetivo de instalar novos comportamentos e /ou rindo a Neto que não fosse pelo seu nome. Naque-
mudar outros já estabelecidos. le momento de tantas incertezas e ansiedade, os pais
Nessa perspectiva de trabalho, a pessoa é consi- tinham a clareza de que a jornada estava apenas
derada passiva e desprovida de saberes diante de em seu princípio. Motivados pelas expectativas em
profissionais que dominam e são os provedores do relação ao desempenho de Neto, sempre se mos-
saber correto. A avaliação evidencia o que falta, e o traram muito atentos e críticos com os procedimen-
erro deve ser eliminado. A aprendizagem ocorre des- tos adotados para os cuidados com seu bebê.
de que a metodologia da transmissão seja bem exe- Quando iniciou atendimento fonoaudiológico,
cutada e que a recepção da pessoa para o estímulo Neto apresentava grande atraso neuro-psicomotor.
não falhe. Há um limite máximo a ser atingido e, Neto tinha sérios problemas nas vias aéreas
sendo assim, os profissionais procuram planejar e superiores, as intervenções médicas eram pouco efi-
prever a possibilidade de desenvolvimento da pes- cientes, as medicações, inalações eram muito fre-
soa. Desta forma, os mais diversos conteúdos são qüentes; além disso, o ducto lacrimal vivia
apresentados sem conexão com as necessidades da congestionado. A alimentação era pastosa e a sia-
realidade e sem criar condições de reflexão. lorréia, constante em todos os períodos do dia. Desta
Ainda nessa concepção de trabalho, receber forma, o enfoque principal do tratamento foi a
informações não basta, é necessário ter cognição motricidade oral e a estimulação de linguagem, em
bem treinada para processá-las e, assim, elaborar especial a oral que se apresentava nas primeiras
uma resposta certa que assegure a adaptação do vocalizações.
indivíduo no ambiente. Cabe aos profissionais, Nessa ocasião, Neto freqüentava estimulação
então, elaborar estratégias em torno de tarefas mo- em grupo na Apae nas áreas de fonoaudiologia, te-
toras, perceptuais e cognitivas, para estimular o rapia ocupacional e fisioterapia.
processamento da informação, e a repetição leva- Com o andamento do trabalho, a partir de 1
ria ao automatismo de uma resposta considerada ano e 7 meses Neto passou a acompanhar os hábi-
correta. tos alimentares da família; aos 2 anos de idade co-
Em síntese, a apresentação do estímulo em or- meçou a andar, embora com base alargada, come-
dem crescente no grau de complexidade constitui çava a falar as primeiras sílabas e já se destacava
a metodologia para a aprendizagem de um padrão positivamente nas atividades entre os membros de
de comportamento ou de um conteúdo. seu grupo de atendimento na Apae.
E foi justamente essa a concepção teórica que Aos 5 anos de idade, Neto foi encaminhado para
inicialmente embasou os atendimentos voltados à escola, o que ocorreu com bastante cuidado, pois
criança em foco neste artigo. sua saúde era muito delicada. A família, juntamente

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com a fonoaudióloga-pesquisadora, encontrou en- tê-lo no grupo de crianças menores, com tão pou-
tão uma escola particular que atendia filhos de fun- cas estimulações; ou seja, o benefício para seu de-
cionários de um Hospital da Zona Norte da cidade senvolvimento nesse espaço se tornou pequeno.
de São Paulo e destinava algumas vagas para outras Então, aos 7 anos de idade os pais decidiram mu-
crianças cujos pais não tinham vínculo empregatí- dar Neto de escola.
cio com a instituição. Essa escola foi projetada para A fonoaudióloga-pesquisadora indicou um
também receber crianças com necessidades espe- colégio particular da Zona Norte da cidade de São
ciais, mas, na época, isso ainda não havia ocorrido. Paulo, com experiência em trabalhar com crianças
O projeto contava com sala de lactação e ber- portadoras de Síndrome de Down, citado como re-
çário no estilo hospitalar, onde o auxiliar, ao dar ferência pela Apae de São Paulo. Foi iniciado novo
banho em uma das crianças, observava as demais e longo processo de adaptação ao espaço escolar,
dormindo. O refeitório era organizado por uma pois a facilidade de sociabilização não era uma ca-
nutricionista, e os medicamentos eram ministrados racterística espontânea de Neto. Aos poucos, ele
por uma enfermeira. O projeto pedagógico conta- foi saindo de debaixo da mesa, local onde se es-
va com oficinas de artes plásticas, e a sala de Edu- condia nessa nova escola, e foi se apropriando de
cação Física havia sido preparada como espaço de seu lugar na relação com as pessoas. Ao entrar em
terapia ocupacional. relação com o outro, melhorou seu desenvolvimen-
A inserção de Neto nesse espaço se deu de for- to na área pedagógica, que nessa fase veiculava ati-
ma muito acolhedora. Os profissionais dominavam vidades mais formais e tradicionais de prontidão
técnicas que atendiam as necessidades básicas de para alfabetização1.
saúde e as condições para o desenvolvimento mo- Essa escola alfabetizava já na Educação Infan-
tor global, além de estarem aptos para estimular o til. Ao mesmo tempo, as atividades voltadas ao
processo de aquisição de linguagem e de sociabili- ensino da escrita na Apae estavam sendo suprimi-
zação de Neto. das, pois, na época, a proposta era justamente ins-
Nessa fase, ele emitia frases simples para co- trumentalizar as escolas que optavam pela inclu-
municar-se; trocava de turno nas brincadeiras; não são de crianças com necessidades especiais, com
era capaz de fazer escolhas entre alternativas; rea- vistas à multiplicação de pontos de atendimento
lizava garatujas no papel e as nomeava. A proposta dessa população.
pedagógica era para que participasse de atividades A proposta pedagógica do colégio era realizar
condizentes com a Educação Infantil no nível de cada nível correspondente a um ano no ensino re-
maternal. gular em dois anos para crianças com necessida-
Paralelamente, na Apae, Neto não necessitava des especiais. Os níveis que Neto desenvolveria na
mais de fisioterapia, e o número de sessões para Educação Infantil eram pré-escolas I e II.
acompanhamento psicopedagógico e fonoaudioló- Entre os objetivos escolares principais estavam:
gico havia diminuído. Nessa instituição, como o sociabilizar, incentivar independência na realiza-
seu desempenho era bem melhor que o das demais ção de tarefas diárias, desenvolver a coordenação
crianças de seu grupo, as atividades desenvolvidas motora fina, estimular para seguir ordens e para
lhe eram pouco desafiadoras. A família, então, ques- manter atenção e concentração.
tionava a participação de Neto e lutava por mais Nessa ocasião, o atendimento clínico fonoau-
sessões terapêuticas, condizentes com sua capaci- diológico particular estava ainda voltado para ex-
dade, e por sua inserção em atividades mais esti- pansão de vocabulário e de enunciados mais inteli-
mulantes das habilidades cognitivas. Porém, as gíveis, bem como para as possibilidades de cate-
negociações pouco avançavam. gorização e ordenação, além de oferecer ativida-
Neto permaneceu na mesma escola regular des que exigissem atenção e concentração. A famí-
durante o período em que seu aproveitamento nas lia era estimulada a deixar que Neto executasse
atividades grupais foi satisfatório. Em certo mo- sozinho atividades de vida diária e a sair mais de
mento, ele passou a transitar livremente pela esco- casa com ele, para que vivesse outras situações além
la e começou a ser difícil para os profissionais con- das terapêuticas e escolares.

1
Aqui nos referimos à alfabetização como habilidade de decifrar o código gráfico.

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Com o tempo, a sociabilização na escola foi se profissionais envolvidos que a inclusão constituía-
tornando cada vez melhor e, assim, aumentavam se na sociabilização. O convívio com crianças nor-
as possibilidades de Neto usar a comunicação oral mais poderia favorecer o desenvolvimento de lin-
efetivamente. Porém, ele crescia e seu tamanho guagem e, portanto, a expressão do pensamento
destoava em relação ao grupo de crianças da Edu- seria mais eficiente, desde que fosse garantida a
cação Infantil. Por isso, a família questionava as participação em atividades que atendessem ao de-
oportunidades de relação com os outros, pois, além sempenho cognitivo de Neto. O treino e a repeti-
das marcas físicas da Síndrome de Down, Neto ti- ção talvez pudessem promover alguma melhora no
nha mais chance de machucar os menores e, desta nível de respostas esperadas nos testes, mas o su-
forma, poderia ocorrer a sua exclusão do grupo. cesso dependia da inteligência da criança em ques-
A família foi ficando visivelmente incomoda- tão. Assim, quando ela não se ajustasse mais à roti-
da com a proposta de trabalho destinada a Neto. na da escola normal, seria encaminhada para a es-
Ele ia ficando cada vez mais aquém das crianças cola especial.
de sua idade, porque o ambiente escolar reforçava Dessa forma, a que se refere esse tipo de in-
sua defasagem com estímulos infantis. A equipe clusão?
de educadores parecia oferecer pouca oportunida- Na verdade, os profissionais que trabalhavam
de para que Neto entrasse em contato com desafios com Neto promoviam, até então, a integração que
a serem compartilhados com seus colegas; assim, foi implantada no país desde 1960. A equipe sus-
ele estava fadado a simplesmente eliminar os erros tentava sua posição na medida em que integrava o
indicados em suas avaliações. aluno portador de necessidade especial na classe
A equipe escolar e o grupo de especialistas regular.
particulares que atendiam Neto, que no momento A Lei nº 9394/96, que estabelece as diretrizes
eram compostos por fonoaudiólogo, psicólogo e e bases da educação nacional, prevê que o sujeito
psicopedagogo, acreditavam que a prioridade era com necessidades especiais freqüentaria a escola
mantê-lo em contato com atividades às quais pu- regular, mediante a presença de serviço de apoio
desse responder do ponto de vista cognitivo. especializado; se o aluno não se integrasse seria
Estabeleceu-se, pois, um impasse entre a atua- encaminhado para a escola especial. Ficou estabe-
ção desses profissionais e a necessidade de Neto e lecido por lei que deveriam ser realizadas adapta-
de sua família. ções no currículo e na avaliação, por professores
E foi justamente o diálogo entre as diversas capacitados para integrar alunos com necessidades
áreas envolvidas que possibilitou então a revisão especiais nas classes comuns.
de nossas concepções sobre inclusão de uma Nossa criança estava bem-assistida, pois con-
criança com necessidades especiais, alterando com- tava com equipe multidisciplinar, freqüentava uma
pletamente o curso do processo de aprendizagem escola regular, estava integrada à sua classe, e a
de Neto, especialmente no que se refere à comuni- própria escola mantinha, em seu quadro de profis-
cação escrita. sionais, especialistas para adaptar seu currículo e
suas avaliações. Por que, embora atendesse às exi-
A mudança de paradigma gências legais, nosso modelo não atendia às neces-
e suas implicações na atividade sidades de Neto?
clínica e escolar O primeiro sinal de alerta deveria ter sido o
fato de o aluno especial nessa instituição de ensino
Com o andamento do trabalho, algumas refle- não ser promovido como os demais; nesse status
xões sobre os resultados escolares e terapêuticos ele deveria cursar no mínimo duas vezes cada está-
de Neto foram levando os profissionais envolvi- gio do currículo. Ora, uma das primeiras mudan-
dos a questionarem as práticas adotadas, o que aca- ças trazidas pela LDB, após a Constituição de 1988,
bou motivando a mudança de vertente teórica, com foi a “progressão continuada”.
a aproximação e apropriação de outras concepções Os profissionais envolvidos com a criança aqui
de sujeito e de aprendizagem. em foco pensavam que, baseando-se nesse princí-
O primeiro questionamento dizia respeito à pio, reduziriam a desigualdade, o preconceito e a
forma de incluir o sujeito portador de deficiência discriminação, porque Neto poderia responder
no ensino regular. Até então, era consenso entre os melhor às atividades propostas ao grupo. Contudo,

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embora preocupados com a capacitação e a educa- é na relação com o outro que a pessoa constrói
ção de Neto, não se atinham o suficiente ao com- sua identidade. Na interação, a pessoa encontra
promisso com a qualificação para o trabalho e para outras pessoas com suas idéias e sentimentos, ava-
a independência dessa criança. lia e se localiza.
Aos poucos, apropriando-se da idéia de um A enunciação é construída em um contexto.
novo projeto educacional, os profissionais foram Ao observar o contexto com mais atenção, seria
sentindo necessidade de um ajuste no plano de aten- mais fácil que Neto se expressasse novamente,
dimento de Neto, do ponto de vista tanto clínico porque os profissionais poderiam recriar as condi-
quanto escolar. Todos se mobilizaram e se empe- ções em que Neto se sentia mais à vontade para se
nharam num trabalho cada vez menos comparti- expressar. Afinal a tendência do ser humano é co-
mentado, elaborando um programa educacional que municar-se, para trocar experiências.
envolvia os diversos contextos de atendimento. Mas Desta forma, o currículo escolar passou a ser
isso só foi possível porque os profissionais passa- repensado a partir da relação de Neto com os con-
ram a se reunir mensalmente para questionar os re- teúdos mediados por sua professora. E, nos espa-
sultados das estratégias propostas. ços terapêuticos, ele podia expressar mais livremen-
Porém, até chegarmos ao trabalho em parce- te os seus pensamentos. Assim, o sentido dos con-
ria, pautado pelo diálogo entre os profissionais da teúdos oferecidos para Neto estava garantido, por-
equipe, que ocorria nas reuniões mensais, um lon- que os profissionais se preocuparam em oferecer
go caminho foi percorrido. atividades inseridas a um contexto de comunica-
ção com o outro.
Neto ganha voz na interação Toda a equipe trabalhava integrada manejan-
com seu grupo, enquanto constrói do as situações em que Neto poderia encontrar cam-
a linguagem escrita po para viver as experiências fundamentais para
que sua vivacidade pudesse se manter. Esse movi-
Até certo momento, havia um consenso entre mento exemplifica o conceito de holding proposto
a equipe: a falha estava no sujeito, dependia de por Winnicott. O ambiente sustentava o holding
sua capacidade intelectual e de sua condição emo- para que Neto gradativamente encontrasse o que
cional. Porém, essa justificativa deixou de con- necessitava para prosseguir em seu processo de
tentar os profissionais, na medida em que Neto desenvolvimento.
respondia de forma assistemática aos estímulos O processo de construção do pensamento é
oferecidos. iniciado na vida em grupo, de modo que a pessoa
Se as respostas eram assistemáticas, passamos assume um papel em sua práxis diária. A atividade
a analisar o contexto em que ocorriam respostas busca a relação entre conhecimento cotidiano e
positivas, que tipo de situação de comunicação fa- científico e a relação entre pensamento e expe-
vorecia a relação de Neto com o outro ou com um riência. Logo, a atividade propicia a interação da
objeto. Fomos deslocando o olhar da falta para a pessoa consigo e com as outras. É necessário ter
presença de habilidades, sobre as quais foram sen- em mente que a ação do indivíduo em um grupo o
do estruturados os novos conhecimentos. Encon- transforma internamente, tanto quanto modifica o
tramos, então, uma teoria que sustentava o sujeito ambiente. Desta forma, a interação com o outro
ativo na construção do seu conhecimento, a partir passa a ser o centro de interesse.
da interação com o outro. Quando a Educação se propõe a acolher a di-
A perspectiva bakhtiniana reforça a idéia de ferença, percebe, na prática, que a singularidade
que a construção de linguagem só é possível na não é prerrogativa de pessoas com necessidades
interação com o outro. Nesse sentido, Winnicott especiais. Acolher a diferença é reconhecer a natu-
aponta que apenas em um ambiente acolhedor as reza do desenvolvimento humano, que é, por exce-
pessoas podem interagir. Por meio da interação, lência, singular. A partir dessa concepção, o educa-
cria-se a possibilidade de fazer um gesto em dire- dor cria situações de comunicação contextualiza-
ção ao outro, ao conhecimento; é na presença de das em um ambiente favorável para que ocorram
um outro que o indivíduo pode constituir-se em relações entre pessoas.
uma pessoa. Pela comunicação a pessoa se des- Ao compreender que incluir é mais do que inte-
cobre humana, Aguiar (2004) ressalta também que grar, o trabalho escolar e clínico ampliou seus parâ-

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metros para decidir a adaptação do conteúdo peda- serido. Pôde ouvir a queixa de Neto sobre o seu
gógico trabalhado. Em seguida, apresentamos o efei- isolamento, a necessidade de relação com os ou-
to dessa mudança de manejo para vida de Neto. tros, e compreendeu então ser esta uma condição
Para apreender o processo de inclusão de Neto fundamental para favorecer o seu desenvolvimen-
ao cotidiano de sua classe, utilizamos aqui os re- to. A família percebeu isto, embora não conseguis-
gistros das reuniões mensais da equipe multidisci- se se desprender ainda dos desafios pedagógicos.
plinar, realizadas na escola a partir de 2004. Delas Inicialmente, o comportamento da família foi
participaram o psicólogo, o psicopedagogo, o fo- analisado como fruto da ansiedade em ver Neto
noaudiólogo, o diretor da escola, o coordenador alfabetizado. O que a equipe oferecia era uma es-
pedagógico e o professor de sala. Ao final de cada cuta para a ansiedade, mas, aos poucos, pudemos
bimestre, a mãe de Neto também participava das de fato acolher a demanda, preocuparmo-nos mais
reuniões, e, a partir de 2005, foram incluídos, em com o desenvolvimento daquele ser humano que
todas as reuniões, o psicólogo e o fonoaudiólogo se apresentava diante de todos nós com sua parti-
escolares. cularidade. A construção do conhecimento ocorre-
As reuniões com a equipe que acompanhava ria a partir da sua interação com o outro. Aqui se
Neto eram mensais e registradas; os relatos eram manifestavam os sinais de mudança que ocorreu
entregues aos profissionais presentes na reunião na condução do caso, pois caminhávamos no sen-
seguinte. Esses relatos do comportamento e apro- tido de valorizar a interação em um ambiente favo-
veitamento de Neto na escola serão aqui utilizados rável à comunicação de Neto como uma priorida-
para a análise do processo de mudança de atendi- de para o seu desenvolvimento.
mento clínico e dos resultados obtidos. Por que Neto não respondia às propostas esco-
Um dos aspectos interessantes de observar é lares se na sessão de terapia demonstrava condi-
que, embora Neto tenha ingressado na escola em ções para isso? Começava a ser pensada a hipótese
2000, os registros sistemáticos sobre seu desempe- de nova mudança de escola, no ano seguinte. Quan-
nho na escola começaram apenas em 2004 (segun- to mais discutíamos, mais parecia urgente a mu-
da série), quando a conduta educacional passou a dança de abordagem educacional. Ao final da pri-
ser outra. Até então, a concepção teórica da equipe meira série, após muitos debates entre a equipe,
foi pautada pelo cognitivismo e pelo behavioris- chegamos a um consenso sobre algumas das mu-
mo. Neto suportou essa estimulação até 2001 (pré danças que deveriam começar em 2004.
II), mas, em 2002 (pré II novamente), já dava si- A primeira alteração foi quanto à promoção de
nais de que não executaria atividades sem sentido, Neto. A questão mais gritante era a quebra de vín-
sem relação com sua história, com seu contexto. culo que ele construía com seu grupo ao longo de
Em 2003 (primeira série), a equipe clínica já cada ano letivo, porque constava em seu planeja-
procurava alternativas do ponto de vista educacio- mento sua permanência na mesma série para ob-
nal, porque a escola orientava o professor sobre as tenção de respostas adequadas com relação ao
atividades que era o objetivo da primeira série, mas aprendizado da escrita. Os assuntos discutidos em
Neto nada produzia. Neto foi encaminhado para o sala de aula, as escolhas de lazer, as amizades cons-
Instituto de Psicologia da USP para reavaliação do truídas, enfim fatores que promoviam a relação de
processo de desenvolvimento, quando foi questio- Neto com o outro se perdiam a cada ano, porque
nada a linha de atendimento. fazia o currículo de modo mais lento.
Embora o ambiente fosse acolhedor e favore- Ao retê-lo simplesmente na mesma série, con-
cesse a relação com o outro, as concepções de lin- siderávamos exclusivamente o que Neto havia
guagem e de aprendizagem pareciam não corres- construído do ponto de vista pedagógico; e des-
ponder a esses princípios. Neto sempre precisava considerávamos suas participações em debates, as
cumprir etapas, era visto de acordo com o resulta- relações intelectuais e afetivas com seus colegas.
do que obtinha em cada uma dessas etapas, e a sua Priorizávamos respostas estabelecidas por um sis-
maneira própria e singular de se apropriar da escri- tema de ensino que passou a estar em cheque nessa
ta não era considerada. instituição, em particular nessa equipe de profis-
A família começou a questionar todo o traba- sionais.
lho e a compreender que o desempenho do garoto Outra alteração pedagógica foi em relação aos
estava relacionado ao contexto em que estava in- objetivos de permanência na instituição: os está-

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Regina Zanella Penteado, Francileine Giacomeli Honorato, Joseli Silva Nascimento
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gios não poderiam mais ser conduzidos, de tal do formal, e Neto sentia-se cada vez mais à vonta-
forma que a escola se responsabilizasse apenas de na relação com o outro. Marcava mudanças em
pela escolaridade até a quarta série, cumprindo seu comportamento ao distrair-se conversando com
dois anos cada série, pois isso aniquilava qual- colegas de classe.
quer possibilidade de considerar o rendimento O processo de transformação só foi possível
específico de Neto. porque houve disponibilidade entre os interlocuto-
Ao refletir sobre as questões de singularidade res para uma transformação na relação com o ou-
de Neto, abrimos caminho para a percepção de que tro. O outro aqui visto não apenas na pessoa de
os demais alunos também tinham singularidades, Neto, mas nas pessoas que interagiam com ele –
que poderiam e deveriam ser aproveitadas em sala professora, colegas, equipe pedagógica da escola e
de aula, por enriquecer com conteúdos significati- equipe clínica. Dessa forma, foi criado um ambi-
vos a aprendizagem dos conteúdos formais. Essa ente favorável para comunicação, em que se per-
escola já não era a mesma, a singularidade não era ceberam as pequenas diferenças de comportamen-
só de Neto, mas de todos e de cada um. to de Neto para adaptar o conteúdo formal a ser
O segundo ponto modificado foi a forma como abordado. Na prática, foram oferecidas situações
seria conduzido o processo de apropriação da lin- que deram contexto para a atividade com lingua-
guagem escrita na escola e no atendimento clínico. gem escrita, considerando a história de Neto e seu
O professor de sala passou a ser assistido direta- grupo de colegas no processo de construção da es-
mente pela equipe toda, a clínica e a escolar; a pro- crita de toda a classe.
fessora não estava mais só e, em contrapartida, pas- Um novo fenômeno se apresentava à ativida-
sou a registrar diariamente a evolução de Neto, fa- de clínica: a lapidação da linguagem. Neto preci-
cilitando a análise do processo de desenvolvimen- sava expressar-se com maior clareza, pois apresen-
to em suas várias faces. tava uma variação no ritmo de sua fala, que pode-
Diante desses relatos, observamos que, no pri- ria lembrar uma gagueira. É importante destacar
meiro bimestre da segunda série, Neto negava-se que o fonoaudiólogo vai trabalhar de acordo com
bem menos a realizar as atividades propostas. O aco- as necessidades do menino, uma vez situado em
lhimento do próprio professor pela equipe de espe- um fluxo contínuo de desenvolvimento. Apro-
cialistas pareceu surtir efeito na relação entre este priando-se mais e mais do objeto-escrita, abre um
profissional e Neto, já que o professor e as ativida- espaço para outras necessidades. As necessidades
des até então eram os mesmos do ano anterior. são definidas pela pessoa e não pela Síndrome de
Ao trazer o professor, que era a pessoa que in- Down da qual Neto era portador, caso contrário o
teragia com Neto diariamente e que mediava as si- destino já estaria previamente traçado se família,
tuações de comunicação com o grupo, para decidir equipe e escolas tomassem como verdade a descri-
com a equipe multidisciplinar sobre a estimulação ção de uma síndrome.
de Neto, as condições do atendimento escolar e clí- O fonoaudiólogo que trabalha com crianças
nico melhoravam. Além de ser um momento de ca- com necessidades especiais enriquece a sua abor-
pacitação do professor, ao trocar informações com dagem se situá-la eticamente alinhada a um favo-
os profissionais de outras áreas, isso enriquecia o recimento de melhores condições de vida, em que
processo de reflexão desses clínicos. a autonomia e a liberdade, direitos inerentes à con-
Os resultados surgiram assim que o professor dição humana, possam ser perseguidas.
dirigiu seu olhar para Neto e observou que as ativi- Nos momentos iniciais do processo de terapia,
dades repetitivas e fora de um contexto propicia- a família era encorajada pelo fonoaudiólogo – pes-
vam poucas respostas. Assim que mudou de estra- quisador a realizar passeios que apresentassem Neto
tégias, Neto interagiu mais com seu o grupo, aliás, ao mundo e que criassem situações de comunica-
foi solicitado pelo grupo a participar de atividades. ção contextualizadas. Por outro lado, o encontro
Dava retorno nas atividades formais, além de estar com as teorias de Bakhtin e Winnicott, que valori-
mais independente na execução das tarefas, ofere- zam cada qual à sua maneira a dialogia e a necessi-
cendo indícios do que veio à tona em 2005 – a ela- dade da presença de um outro para que a pessoa
boração escrita era-lhe mais interessante do que possa se constituir como tal, reafirmaram a impor-
codificação e decodificação de sinais gráficos. As tância desse movimento e ofereceram subsídios que
conquistas manifestavam-se para além do conteú- colocaram em marcha a inclusão de Neto em esfe-

320 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 345-353, dezembro, 2006


Acolhimento e inclusão: da clínica ao acompanhamento escolar de um sujeito com Síndrome de Down

ARTIGOS
ras sociais diferentes. A vida em sociedade pressu- estrutura sintática; a fonoaudióloga-pesquisadora
põe a interação entre as pessoas, para seu desen- se colocou na posição de escriba de seus textos
volvimento como ser humano. Neto necessitava orais, geralmente narrativos. O processo de elabo-
acessar o conhecimento da humanidade por meio ração requer questionamentos para garantir coerên-
da interação verbal. cia e coesão de seu discurso, para expandir seus
O fonoaudiólogo-pesquisador centrado na in- enunciados, mas sua criação havia sido respeitada.
teração, inserida em um ambiente acolhedor, pôde Enquanto Neto produzia textos orais em terapia,
criar, na atividade clínica, situações que favorece- na sala de aula produzia textos escritos.
ram a comunicação de Neto para além da esfera Tem sido visível o quanto a criação de textos
clínica. Nas reuniões com a equipe educacional de orais tornou-se instrumento de elaboração de seu
Neto, compartilhamos nossas experiências e, a par- cotidiano, indicando que a linguagem floresce
tir dos debates, íamos construindo em grupo nos- quando colocada à serviço do sujeito, é usada de
sas condutas. A criação de espaço ia além de ela- forma criativa, e este se sente reconhecido pelo
borar estratégia para atingir um conteúdo; exigia a outro da maneira que é, com suas particularidades.
sensibilidade de perceber a voz de Neto, para que
este se apropriasse da linguagem e a utilizasse de Considerações finais
forma criativa2 , atendendo a suas necessidades co-
tidianas na relação com o outro. O trabalho fonoaudiológico na Educação pode
A comunicação é ferramenta essencial para que colaborar na construção da inclusão de pessoas com
a pessoa se aproprie dos significados veiculados necessidades especiais ao Ensino Regular. O diá-
pela linguagem; assim, Neto foi apreendendo o logo entre a equipe é fundamental para criar situa-
conhecimento disponível em sua cultura e foi cada ções em que a comunicação seja eficiente. Muitas
vez mais se desenvolvendo, ao mesmo tempo em vezes enquanto os profissionais priorizam as habi-
que, por meio da comunicação, a equipe também lidades para execução de tarefas preestabelecidas,
se enriquecia. sem ter em vista a pessoa que se apresenta com as
Oferecer espaço para manifestação da diversi- suas características reais, perde-se um tempo
dade cultural é permitir que se manifeste a criativi- precioso no desenvolvimento dessas pessoas
dade do sujeito, Winnicott (1988) ensina que tudo especiais.
que ocorre a alguém é criativo, exceto quando é A disponibilidade de uma pessoa para intera-
arruinado. A clínica e a escola estavam mais aten- gir com a outra é fundamental, para que se crie um
tas e por isso perceberam respostas bem singulares ambiente favorável ao desenvolvimento humano.
de Neto. Lembrando aqui que o desenvolvimento abrange
Para exemplificar: Neto mostrava-se entusias- todos envolvidos com a atividade dialógica: alu-
mado com a idéia de crescer, fazia planos sobre a nos especiais ou não, pacientes, profissionais clí-
futura profissão. Desenvolveu habilidades que per- nicos ou da educação.
mitiram que passasse a perceber sutilezas da língua, Neste caso em particular, os pais acreditaram
divertia-se com piadas, ele mesmo mostrando-se nas possibilidades de desenvolvimento desse me-
mais espirituoso, engraçado. Um outro exemplo vem nino. Ao acreditar em Neto, lutaram pela criação
da escola: quando participou do projeto de expres- de ambientes acolhedores para a ocorrência de seu
são corporal, foi o mais criativo e participativo de desenvolvimento. Isso não significou abrir cami-
seu grupo. O aproveitamento de conteúdos discuti- nhos para que Neto fosse bem recebido pelo mun-
dos em sala de aula transcendeu as paredes da esco- do, mas sim oferecer ferramentas para que conquis-
la e páginas de livros, chegando a outros ambientes tasse seu espaço no mundo.
que freqüentava. Os passeios foram muito aprovei- A contribuição do fonoaudiólogo no processo
tados, discutidos, Neto pôde brincar tanto sozinho de inclusão de pessoas portadoras de necessidades
quanto com seus colegas e com os professores. especiais ou não inclui a atuação sobre suas difi-
As dramatizações no espaço de terapia se apre- culdades específicas, como o manejo junto à famí-
sentavam cada vez mais ricas em vocabulário, em lia e à escola, para a criação de situações que favo-

2
“... uma generalização que enfeixe atos sem respeitar o que há de singular pressuporia agentes absolutamente iguais entre si, bem
como uma única situação de ação no âmbito de uma dada atividade o que em nada corresponde à condição humana” (Sobral, 2005).

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 313-322, dezembro, 2006 321


Marisa T. Serapompa, Suzana M. Maia
ARTIGOS

reçam seu processo de inclusão na vida, com o res-


peito que todos os seres humanos merecem. A cons-
tituição de um ambiente acolhedor das diversida-
des humanas é tarefa para muitos, e o fonoaudiólo-
go tem uma contribuição relevante nesse processo.

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Recebido em janeiro/06; aprovado em novembro/06.

Endereço para correspondência


Marisa Troitiño Serapompa
Rua Voluntários da Pátria, 4370, conj. 15, Santana,
São Paulo, CEP 02402 600

E-mail: mtsalex@terra.com.br

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