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Pista No Tempo E No Espaço
Clark Darlton

Tradução
Lilian Pessoa Ribeiro Dantas

Digitalização
Vitório

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

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O incógnito guardião do segredo dos
imortais parecia ter preparado uma série
completa de testes a que deveriam se subme-
ter todos os que tencionassem desvendá-lo.
Perry Rhodan, o chefe da Terceira Potên-
cia, já se adiantara a tal ponto em sua busca
que não mais podia nem queria retroceder.
Após uma aventura que exigira o máximo
dos nervos de todos os participantes, tinha
agora em seu poder mais uma mensagem do
desconhecido. Ela se tornou o prelúdio da
mais incrível aventura de Perry Rhodan: PIS-
TA NO TEMPO E NO ESPAÇO...

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Personagens Principais:

Reginald Bell — Ministro da segurança da


Terceira Potência.
Thora e Crest — Únicos sobreviventes da
expedição espacial dos arcônidas.
Kerlon — Comandante arcônida. Procura o
segredo da imortalidade.
Ras Tshubai, John Marshall, Anne Sloane e
Ralf Marten — Membros do Exército de Mutan-
tes de Rhodan, que o acompanham em sua via-
gem ao passado.
Lesur — Seu castelo fica no mesmo lugar
onde dez mil anos mais tarde existiria o Palácio
Vermelho do Thort.
Robby — Uma criação da supertécnica dos
arcônidas.

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1

A grande expedição espacial da Terra já se


encontrava a algum tempo no sistema Vega, a
vinte e sete anos-luz de distância da Terra. Ti-
nham estabelecido relações cordiais com os ha-
bitantes do oitavo planeta, os ferrônios, e ulti-
mado um acordo comercial. Do ponto de vista
técnico, não havia nenhum motivo plausível
para protelar mais a volta à Terra.
Mas sobreexistem outros motivos além da
pura técnica.
O planeta Ferrol girava em volta de seu sol
Vega a tal distância, que de modo geral o seu
clima se assemelhava ao tropical quente da Ter-
ra. Os ferrônios, uma raça humanóide, se dife-
renciavam dos homens pela abundante cabelei-
ra e pela testa que muito saliente, protegia os
olhos — uma defesa de que os dotara a nature-
za contra a forte radiação ultravioleta de Vega.
Além disso, menores e de pele azulada, não
chegavam a ser cômicos. Principalmente para
quem levasse em conta a grandeza e a multipli-
cidade do Universo.
Como era o caso, por exemplo, de Reginald
Bell.
De cabelo ruivo eriçado e mãos possantes,
ele andava, agitado, de um lado para o outro na
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central da gigantesca esfera espacial. De uma
cor próxima ao gelo, seus olhos faiscavam ago-
ra de um modo fora do comum.
— Diga-me o que quiser — vociferava, furio-
so, com um gesto expansivo da mão — este cé-
rebro positrônico tem é dor de cabeça, nem se-
quer pensa em dar uma resposta à sua pergun-
ta. Está nos esnobando!
Na enorme central do cérebro positrônico,
em forma de meia-lua, estava ainda presente
um segundo homem: Perry Rhodan, o chefe da
expedição. Sua figura magra sugeria tenacidade
e coragem, e nos seus olhos cinzentos não so-
mente brilhavam determinação e cinismo, mas
também humor.
— Acha? — Rhodan contemplou, pensativo,
o rosto do seu colaborador mais próximo, sem
perceber ali sinal algum de revolta verdadeira.
— Não está querendo desistir, hein?
— Como desistir, Rhodan? Há semanas que
nos sentamos aqui, à espera de que este mons-
tro de cérebro eletrônico se decida. Alega que a
mensagem é particularmente difícil de ser deci-
frada. Boa desculpa para um fracasso total!
Que peça nos hão de ter pregado esses preten-
sos imortais!
Enquanto isso, quase despercebido, um ou-
tro homem havia entrado e ouvido as últimas
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palavras de Bell. Um ser humano, sem dúvida,
mas com qualquer coisa de quase sobre-huma-
no. Porte alto, idade indefinida, cabelo claro,
quase branco, e espesso, testa alta, olhos de um
vermelho albino, em especial o olhar que estes
lançavam... tudo o fazia diferente e estranho.
No entanto, certamente ninguém haveria de
perceber que se tratava de um arcônida, vindo
de um sistema solar a trinta e quatro mil anos-
luz da Terra. Há milênios sua raça dominava to-
dos os segredos das viagens espaciais. O que
não evitara, porém, que a sua nave tivesse feito
um pouso forçado na Lua, obrigando Perry
Rhodan a tomar providências para o seu salva-
mento.
— Nada de conclusões apressadas — virou-
se o arcônida para Bell, um leve tom de censu-
ra na voz. — Os imortais, atrás de quem esta-
mos indo, não hão de ter facilitado as coisas
para nós.
— É, eu sei, meu caro Crest — tornou Bell,
impaciente. — Sua raça infalível já descobriu há
uns milhares de anos que neste sistema há um
planeta onde vivem os imortais. Agora este pla-
neta desapareceu. Para seguir sua pista, preci-
saremos de inteligência excepcional, pois os
emigrantes tramaram uma charada. Só os seres
capazes de pensar de maneira pentadimensio-
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nal poderão encontrar o planeta da vida eterna.
Bem pensado. Eis-nos agora, quebrando a ca-
beça. Mas quando se quer viver para sempre, o
que é que não se faz?
Perry Rhodan sorriu para Crest, meneando
a cabeça.
— Nosso bom Reginald Bell está triste por-
que o cérebro positrônico ainda não conseguiu
decifrar a mensagem dos imortais.
— Triste como? — rosnou Bell. — Estou é
farto desta espera.
Rhodan já não sorria mais. Tinha o rosto sé-
rio, enquanto observava o quadro de comutado-
res do cérebro positrônico, oculto atrás de pare-
des de arconita. Sabia que por detrás daquelas
paredes havia mecanismos intricados e posi-
trônicos, quase se poderia dizer inteligentes,
ocupados em traduzir em linguagem clara as in-
formações cifradas de uma língua estranha.
Ninguém poderia esperar que a solução fosse
fácil, muito menos depois das dificuldades que
tiveram para ir buscar estas informações na
arca sob o palácio real do Thort, equipada com
um fecho de tempo. Ali, os segredos da desapa-
recida raça dos imortais haviam repousado du-
rante milhares de anos. Os ferrônios não ti-
nham podido abrir a arca; Perry Rhodan foi o
primeiro a consegui-lo.
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Agora Bell exigia que a mensagem em códi-
go fosse decifrada num abrir e fechar de olhos.
— Quem pretende alcançar a imortalidade,
deve pelo menos se armar de paciência, Bell —
advertiu ele. — O que temos a perder? Na Ter-
ra está tudo em ordem. Caso contrário, o coro-
nel Freyt já teria enviado algum comunicado
através do hipertransmissor. Só faria isso em
caso de emergência, para não denunciar a ou-
tros seres inteligentes do universo a posição ga-
láctica da Terra. Então, acaso tem proposta
melhor do que aguardar a tradução da mensa-
gem que obtivemos com tanta dificuldade?
Era uma pergunta bastante concreta. Com
algum mal-estar, Bell percebeu que sua resposta
também deveria sê-lo.
— Infelizmente não, Rhodan — retorquiu,
com um riso amarelo. — Continuemos a espe-
rar, portanto.
Crest meneou a cabeça.
— Como os homens são estranhos — ob-
servou. — Aí estão discutindo sobre coisas a
respeito das quais no fundo têm a mesma opini-
ão, apenas para matar o tempo. Bell, esperava
que ao menos tivesse uma boa contra-proposta,
já que se mostra tão insatisfeito com a situação
atual.
— Você é claro que tem uma — presumiu
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Bell, sempre sorrindo. — Voltar para Árcon,
seu sistema nativo, se não me engano. Thora o
deve estar pressionando novamente.
Thora era a antiga comandante da nave ar-
cônida que tivera de realizar um pouso de emer-
gência na Lua. Desde que Rhodan salvara-os,
seu orgulho sofrerá terrível golpe. A seus olhos,
o homem estava apenas no limiar do conheci-
mento, na melhor das hipóteses. E eis que ago-
ra se tornava dependente desses seres huma-
nos.
— É natural que Thora queira voltar a Ár-
con, entretanto ela respeita nosso pacto: pri-
meiro vamos achar o planeta da vida eterna, e
só então voltaremos para Árcon. Vou desa-
pontá-lo, Bell, mas não estou do seu lado. Rho-
dan tem toda razão. Temos de decifrar a men-
sagem dos imortais. Só então poderemos saber
o que fazer para penetrar no segredo da vida
eterna. É um objetivo que vale a pena, ou não
acha?
Antes que Bell pudesse responder, uma lâm-
pada acendeu ao lado da tela de imagem. O vi-
dro fosco iluminou-se.
Rhodan girou um botão.
Na tela surgiu o rosto de um homem ainda
jovem, cujo cabelo cor de palha formava um
contraste marcante com o bronzeado da pele.
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A boca apertada parecia sorrir, mas quem co-
nhecia o major Deringhouse sabia que raramen-
te sorria. Esta era apenas sua expressão habitu-
al.
— Comunicado para o comandante! — dis-
se o homem na tela. — A última patrulha dos
caças espaciais está de volta do vôo de reco-
nhecimento. Nada de especial no sistema Vega.
Os vôos devem continuar na mesma intensida-
de de antes?
Rhodan olhou com simpatia o comandante
do Grupo de Caças Espaciais da Terceira Po-
tência:
— Afinal você e Nyssen nada têm mesmo
para fazer, não é? Mantenha seus pilotos em al-
guma atividade. Além disso, é bom conservar
os olhos bem abertos. Este sistema tem quaren-
ta e dois planetas. Viajantes espaciais desco-
nhecidos poderiam pousar aqui sem que perce-
bêssemos. Sabemos por experiência própria
que suas intenções nem sempre são amistosas.
Portanto, não reduza a ação de patrulhamento,
Deringhouse. Entendido?
— Muito bem, chefe — respondeu o major.
Piscou para Bell com o canto do olho, antes
da tela escurecer.
Minutos mais tarde, os pequenos veículos
espaciais que viajavam com a velocidade da luz
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decolavam novamente para seus vôos de patru-
lha. E em Ferrol se poderia ter certeza de que
ninguém chegaria ou deixaria o sistema Vega
despercebido.
Rhodan olhou para Bell.
— Como vê, nenhum perigo nos ameaça
aqui. Podemos esperar com toda a calma, até
conseguirmos a próxima indicação que seja im-
portante para a solução da charada galáctica,
organizada há dez mil anos pelos imortais. Pre-
cisa se acostumar com a idéia de que o tempo
não representa problema para os seres da vida
eterna.
Perry Rhodan ainda não fazia idéia de que
suas palavras se tornariam verdade, nem pode-
ria adivinhar que exatamente o tempo muito
em breve o colocaria em grande perigo. Igual-
mente era uma sorte que Bell não o adivinhas-
se.
O zumbido monótono do cérebro positrôni-
co sofreu uma interrupção que não passou des-
percebida ao ouvido treinado de Rhodan. Fez
um gesto de silêncio para Bell, que queria dizer
alguma coisa. Crest também se pôs à escuta.
Atrás das paredes maciças, ouviam-se os estali-
dos de contatos. No quadro de comutadores,
pequenas lâmpadas se acendiam. Pelo alto-
falante do transmissor também vinham estali-
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dos.
Pela primeira vez em semanas, o cérebro
positrônico estava pronto para uma declaração.
Seria afinal a solução da mensagem misteri-
osa, escrita há milhares de anos para aqueles
cuja inteligência fosse capaz de desvendar a
charada galáctica? Seria a mensagem do imor-
tal desconhecido, cuja pista Rhodan seguia? Se-
ria a resposta à indagação sobre o paradeiro
atual do planeta da vida eterna, o local onde
procurá-lo?
A mão de Rhodan tremeu de modo imper-
ceptível ao abaixar a alavanca que havia debai-
xo da lâmpada vermelha. A luz apagou-se. Ao
mesmo tempo, ouviu-se no alto-falante outro
estalido. Uma voz mecânica e inexpressiva fa-
lou com timbre metálico:
— É uma solução parcial. Só a primeira par-
te da mensagem pôde ser decifrada. Darei o
texto por escrito. Por favor, queiram fazer a li-
gação correspondente. A solução definitiva con-
tinuará a ser estudada. Fim da transmissão.
— Uma solução parcial! — Bell gemeu alto.
— Isto não nos leva a nada!
— Silêncio! — ordenou Rhodan, procuran-
do esconder a própria decepção. — Devería-
mos nos dar por satisfeitos de que alguma coisa
tenha surgido daí.
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Deixou a mão direita deslizar sobre os con-
troles do cérebro positrônico e apertou vários
botões. Algumas lâmpadas se acenderam, ou-
tras se apagaram. Em algum lugar surgiu um
outro ruído. Uma fenda larga se abriu. Os três
homens fixaram nela o olhar, na expectativa do
texto decifrado que deveria sair agora.
Antes que isso acontecesse, porém, decorre-
ram ainda quase dois minutos.
Uma tira de papel caiu sobre a mesinha
frente ao painel de comutadores, exatamente
diante de Rhodan. A escrita era graúda e bem
legível:

Quando o planeta onde agora te encontras


houver girado 21,3562 vezes sobre o próprio
eixo, a escrita se apagará. Se quiseres achar a
luz, deveras te apressar.

E isto era tudo.


Perry Rhodan tentou esconder novamente a
decepção e a preocupação. Tinha idéia de que
viria mais, porém, ainda assim, não seria o caso
de ficar satisfeito? Não conseguira, pelo menos,
saltar a primeira barreira?
Bem, era o texto já decifrado sem dúvida,
mas o que significava?
Ferrol girava em torno de seu eixo em exa-
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tamente 28,23 horas. O relógio de bordo mar-
cava sempre os mesmos dias de vinte e quatro
horas da Terra. 21,3562 dias de Ferrol corres-
pondiam, portanto, a mais ou menos
24,700423 dias terrestres.
— Encontramos a mensagem há exatamen-
te três semanas na arca sob o Palácio Verme-
lho, em Thorta, a capital de Ferrol — disse
Rhodan, acentuando os pormenores. — Isto
nos deixa exatamente três dias e cerca de quin-
ze horas de prazo. Para ser mais exato: o cére-
bro positrônico tem este prazo para conseguir
decifrar o resto da mensagem. Caso contrário,
a escrita se apagará.
Era assombroso. Antes fora Bell que se fize-
ra de pessimista. Agora, de um momento para
o outro, transformava-se em otimista. Todo o
seu rosto irradiava alegria.
— E daí? Deixe que se apague! Por mim,
esta escrita engraçada pode desaparecer quan-
do quiser. Já a registramos em fotografias e fil-
mes! Se o original sumir, as cópias continuarão
à nossa disposição.
Rhodan levantou os olhos. Seu olhar interro-
gativo voltou-se para Crest, que o retribuiu em
silêncio. Por alguns instantes pareceu que o ar-
gumento de Bell houvesse feito desaparecer to-
das as preocupações. O arcônida, entretanto,
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meneando lentamente a cabeça, proferiu:
— Meu caro Bell, está cometendo um grave
erro ao pensar de maneira tridimensional. É o
que não se deve fazer, quando se pretende re-
solver um enigma proposto por seres que racio-
cinam em cinco dimensões. Se nos foi dito que
a escrita da mensagem desaparecerá, isto signi-
fica sem dúvida que as cópias fotográficas tam-
bém deixarão de existir, esgotado o prazo.
O rosto de Bell mostrava incredulidade.
— Mas Crest, está falando de coisas impos-
síveis. Que influências poderiam ter sobre nos-
sas fotos esses imortais separados de nós por
milhares de anos? Que bases científicas fornece
para a sua afirmação?
— Muito simples — Rhodan interveio nova-
mente. — Sei o que Crest quer dizer. Esses
imortais, em sua visão do mundo, referem-se de
duas maneiras ao tempo. Em primeiro lugar, ao
passado permanente, a quarta dimensão. De-
pois, à forma mutável, a que chamamos quinta
dimensão. Todas as frases da charada galáctica
se seguem automaticamente. Portanto, deve ter
sido inserido, na escrita, uma espécie de blo-
queio automático. Quando o prazo estiver esgo-
tado, as palavras da mensagem que o nosso cé-
rebro positrônico tem de decifrar simplesmente
serão anuladas. No mesmo momento, como a
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mensagem jamais teria sido escrita, também
não existiria no presente, e nós nunca podería-
mos tê-la copiado. Passaria a nunca ter existi-
do. Compreendeu agora?
Os cabelos de Bell eriçaram-se, sinal seguro
da agitação em que se encontrava. Os olhos se
arregalaram. Podia-se ver muito bem a luta que
travava consigo mesmo, da razão contra algo
inconcebível.
— Mas então isso é... — balbuciou.
— Terrível, admito — Rhodan aquiesceu fri-
amente. — Mas é de uma lógica perfeita. Pode
ter certeza de que a escrita se apagará dentro
de três dias e quinze horas, e que nada no mun-
do poderá trazê-la de volta.
— Assim é — confirmou Crest.
A agitação de Bell extinguira-se, mediante a
pronta receptividade de seu cérebro. Recebera,
além do mais, o hipnotreinamento por parte do
arcônida, que lhe transmitira o conhecimento
milenar da raça antiqüíssima. Não havia o im-
possível, tudo tinha sua explicação. Portanto,
aquilo também.
— Bem, então dispomos de pouco tempo.
Esperemos que o cérebro positrônico da Star-
dust-III consiga resolver tudo.
A Stardust-III era o gigantesco cruzador es-
pacial esférico, da classe império, tomada dos
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arcônidas por uma raça guerreira, e que Rho-
dan conseguira reconquistar. Com isso, se asse-
gurara o direito de ser igualmente o comandan-
te da imensa nave de oitocentos metros de diâ-
metro. Era ela o produto de uma civilização
perto da qual a Terra pareceria um mundo de
homens da idade da pedra. A propulsão da
Stardust-III permitia-lhe saltar milhares de anos-
luz através do espaço, quase sem perda de tem-
po. Seu hipertransmissor tornava possível a
transmissão e recepção de som e imagem den-
tro de uma parte considerável da galáxia, com
eliminação total do tempo como fator de impe-
dimento. As ondas de rádio atravessavam o hi-
perespaço, tornando todas as distâncias supér-
fluas.
A Stardust-III era a mais perfeita nave que
um ser humano poderia imaginar, e o cérebro
positrônico era apenas uma parte dela.
— Estamos na inteira dependência dele —
reconheceu Rhodan. — Caso não tenha êxito,
nossa caçada estará terminada e nos caberá
apenas cumprir a promessa de levar Thora e
Crest de volta a Árcon.
— Disso é que tenho medo! — asseverou
Bell, categórico.
— Medo? — Crest teve um sorriso um tanto
desamparado. — Por quê?
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— Ora, escute bem. Se somente a Stardust-
III já nos arrasa, o que acontecerá quando co-
nhecermos Árcon, o planeta líder do Grande
Império? Sejamos honestos: o que é a Terra
perto de Árcon?
Crest já não sorria ao responder:
— Tem razão... é um grão de poeira, só
isso.
Percebia-se claramente certa compaixão em
sua voz.
Compaixão por Bell... ou pela Terra? Nin-
guém poderia responder.
Três dias se passaram, sem que o cérebro
positrônico tivesse decifrado a mensagem. Nem
fora dado a conhecer qualquer outro resultado
parcial. O gigantesco e aparentemente onisci-
ente cérebro calava-se.
Em Ferrol, oitavo planeta do sistema Vega,
tudo corria segundo o plano traçado. Dering-
house fiscalizava os vôos de patrulhamento de
seus caças espaciais e diariamente transmitia a
Rhodan um resumo dos acontecimentos. Fora
deles e dos ferrônios, nativos do planeta, não
havia nesse sistema ser algum inteligente ou se-
quer semi-inteligente. Nada indicava que criatu-
ras estranhas de outros sistemas tivessem per-
cebido sua presença. Os caças espaciais patru-
lhavam através de mundos vazios e desabitados.
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Enquanto isso, a indústria dos ferrônios in-
tensificava sua produção de mercadorias reque-
ridas no comércio com a Terra. Rhodan tencio-
nava levá-las em sua próxima viagem à Terra, a
fim de trocá-las por artigos terrestres. Conquan-
to as boas relações comerciais sempre tivessem
sido uma condição essencial de relacionamento
amistoso entre povos e raças, isso ainda mais
se acentuava no caso de raças pertencentes a
mundos separados um do outro por vinte e sete
anos-luz.
Entretanto, no íntimo, Rhodan se preocupa-
va com a Terra. Os ferrônios possuíam uma
forma de governo unitário e eram governados
por um soberano, o Thort. Por outro lado, a
Terra...
Suspirou. Claro, o medo da superioridade
técnica dos arcônidas e, portanto, do próprio
poder de Rhodan, tinham unido os governos do
mundo e evitado uma guerra atômica. Essa uni-
ão ainda não significava, no entanto, que o pla-
nejado governo mundial se tivesse tornado reali-
dade. Por baixo da superfície pacífica da vida
política, continuavam a fervilhar a desconfiança
e as rivalidades nacionais.
Contudo, talvez o exemplo dos ferrônios
acelerasse o desenvolvimento natural.
“Caso ele não se processe”, pensou Rho-
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dan, irritado, “terei naturalmente que dar uma
ajuda. De qualquer forma, a Terra já deverá es-
tar forte e unida quando for descoberta pelos
arcônidas. De modo algum quero que os arcôni-
das decadentes venham a encarar a Terra e
seus habitantes como uma nova colônia de seu
império estelar. Nesse caso”, Rhodan sorriu in-
teriormente, “que aconteça exatamente o con-
trário.”
Estava sozinho na central do cérebro posi-
trônico. Mais treze horas e o prazo estaria esgo-
tado. Tempo demais para quem tinha de ficar
esperando. Ridiculamente pouco, entretanto,
levando-se em conta os vinte e quatro dias de-
corridos sem que o cérebro positrônico conse-
guisse dar a solução.
Rhodan ouvia o zumbido incessante através
das poderosas paredes de arconita. O cérebro
trabalhava a toda força, para decifrar um texto
escrito há dez mil anos.
Por volta do meio-dia, Bell entrou para ver
como andavam as coisas. Fez algumas observa-
ções totalmente supérfluas e desapareceu de
novo. Crest e Thora também vieram procurar
Rhodan. Fizeram-no prometer que os informa-
ria assim que surgisse o primeiro resultado.
Rhodan assentiu de bom grado.
Mais oito horas apenas.
21
A tarde já estava no fim. Rhodan havia co-
mido, mas não quisera se mexer do lugar, desis-
tindo da vigilância. Dois membros do Exército
de Mutantes lhe faziam companhia, o teleporta-
dor Ras Tshubai, um africano, e Ralf Marten, fi-
lho de um alemão e de uma japonesa. Os dois
homens pertenciam ao grupo de pessoas nasci-
das depois das primeiras explosões atômicas da
Terra. Os cromossomos de seus pais haviam
sido alterados pelas radiações nucleares. Em
muitos casos isso viera a constituir uma vanta-
gem, pois algumas funções cerebrais, até então
adormecidas, foram ativadas. Dispunham de
aptidões que deviam parecer mágicas para o
comum dos mortais.
Ralf Marten possuía o dom da exopersonifi-
cação. Conseguia separar o espírito do corpo e
ver com os olhos e os ouvidos dos outros, po-
dendo até falar através de suas bocas. Enquanto
isso, seu próprio corpo caía numa espécie de ri-
gidez, da qual só despertava quando deixava o
espírito voltar.
Ras Tshubai, pela força de vontade, podia
transportar-se através de grandes distâncias,
mediante o controle da materialização. Era o
que se poderia chamar de teleportação.
Muitos outros mutantes faziam parte do
exército: telepatas, telecinetas, supercérebros,
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espias e videntes de freqüência. O Exército de
Mutantes era a tropa em que Rhodan mais con-
fiava, sendo os seus melhores auxiliares quando
se tratava de representar a raça humana junto
aos extraterrenos, que também possuíam apti-
dões assombrosas.
Ralf Marten e Ras Tshubai se esforçavam
para que o tempo passasse mais rapidamente
para seu chefe.
— Se o cérebro positrônico realmente falhar
— declarou o africano, com um gesto de des-
dém — nem tudo estará perdido. Há outras pis-
tas. Lembre-se da pirâmide que existe na lua
exterior do décimo terceiro planeta. O sábio
ferrônio Lossos descobriu-a. Eles mesmos reve-
lam que ela constitui outro caminho para a nos-
sa meta. Se o caminho mais curto se tornar di-
fícil, iremos pelo mais longo.
Rhodan discordou.
— O caminho direto é mais perto e não dis-
pomos de muito tempo. Os arcônidas estão im-
pacientes. Querem voltar para Árcon, o que
acho compreensível. Já estão conosco há mui-
tos anos. Somente o seu desejo de encontrar o
planeta da vida eterna os impediu até agora de
impor energicamente suas exigências.
— Talvez o cérebro ainda o consiga — disse
Ralf Marten, lançando um olhar esperançoso
23
sobre o complicado painel de comutadores. —
Vinte e quatro dias é um bocado de tempo.
— Exatamente! — exclamou Rhodan, suspi-
rando. — Se vinte e quatro dias não foram sufi-
cientes, então as oito horas que ainda restam
também não o serão.
Ras Tshubai quis dizer alguma coisa, mas ca-
lou-se repentinamente. O zumbido atrás das pa-
redes modificou-se. Tornou-se mais forte e irre-
gular. Algumas lâmpadas de controle acende-
ram-se. Uma fila inteira delas começou a acen-
der e apagar a intervalos regulares, como se
quisessem transmitir um sinal.
E assim era.
No alto-falante do aparelho de transmissão
começou a se ouvir distintamente um estalido.
E então surgiu a voz inexpressiva do cérebro
positrônico, sem expressão alguma de triunfo.
— Solução encontrada. Darei novamente o
texto por escrito. Fim da transmissão.
Com auxílio das instalações de bordo, Rho-
dan avisou Crest e Thora. Do mesmo modo,
ordenara a Bell que viesse imediatamente à
central.
Enquanto os arcônidas e Bell se apressavam
em direção à central, a comprida tira de papel
contendo o texto traduzido era impelida para
fora da fenda. O lado escrito estava virado para
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cima. Rhodan ia lendo as palavras à medida
que brotavam do cérebro positrônico.

Se você sabe alguma coisa sobre a nossa luz,


verifique então de quem obteve esta informa-
ção. Apenas um maravilhou-se ante as máqui-
nas do saber. Veio nos últimos tempos, apenas
segundos para mim. Encontre-o e interrogue-o!
Se quiser ir até ele, desça à arca de tempo, mas
não venha sem o conhecimento sobre a sua
pessoa. Perguntarão a você o seu nome.

Rhodan pegou a tira de papel e olhou de-


moradamente as letras claras e definidas, que
formavam palavras compreensíveis, mas seu
sentido permanecia obscuro e misterioso. Leu o
texto mais três vezes, antes de entregar a men-
sagem a Crest, que a leu rapidamente. Uma
sombra de decepção percorreu-lhe as feições,
ao passar a tira de papel para Thora, ao mes-
mo tempo que dirigia um olhar interrogativo a
Rhodan.
A arcônida também não parecia ser capaz
de saber o que fazer com a mensagem. Bell,
tampouco, lhe deu tempo para isso. Sem pedir
permissão, arrancou-lhe o papel da mão e de-
vorou as poucas linhas como se disso depen-
desse a vida. Sua decepção ainda foi maior.
25
Com um olhar de estranheza, devolveu-o a
Rhodan.
— Que significado tem isto? Quem é que
você tem de achar?
— Não sabe ler? — retrucou Rhodan, um
tanto irritado. — Neste momento sei tanto
quanto você. Julgo, no entanto, que logo sabe-
remos o que os imortais querem dizer. Para
compreender o sentido, basta raciocinar com
um pouco de lógica. Talvez aqui o cérebro posi-
trônico pudesse ajudar, acho, porém, que nós
mesmos é que teremos de nos esforçar. É preci-
so descobrir o nome de alguém que se maravi-
lhou ante as máquinas do saber nos últimos
tempos. Pergunta: o que são as máquinas do
saber? E mais: o que os imortais entendem por
“Veio nos últimos tempos, apenas segundos
para mim?” Temos de esclarecer estas duas
perguntas, se quisermos descobrir qual o nome
que eles querem ouvir.
— As máquinas do saber — adiantou Crest
tranqüilamente — podem muito bem ser os hi-
pertransmissores de matéria dos ferrônios.
Rhodan atinou, de um momento para o ou-
tro, que Crest havia respondido à primeira par-
te da pergunta. Eram, sem dúvida, os hiper-
transmissores de matéria, trazidos por uma raça
desconhecida de astronautas para os ferrônios,
26
que então se encontravam num estágio primiti-
vo de civilização; os surpreendentes aparelhos
foram deixados ali como recompensa por al-
gum serviço que os ferrônios haviam prestado
aos náufragos. Os hipertransmissores ainda fun-
cionavam, apesar de ninguém entender como.
Sua construção baseava-se na matemática pen-
tadimensional e transportavam matéria através
do hiperespaço. Eram presente de uma inteli-
gência superior.
Mas quem se maravilhara ante estes apare-
lhos? Ou melhor: quem se maravilhara, e quan-
do?
— Devemos organizar de maneira lógica
nossas idéias — disse Rhodan, lançando a Bell
um olhar de advertência, para que não pertur-
basse tais idéias com apartes muito pouco inteli-
gentes. — Temos uma indicação. Devo verificar
de quem obtive a informação sobre a luz. Aqui,
a luz significa, como sempre, a imortalidade. E
foi de você, meu caro Crest, que a obtive. Sua
expedição procurava o planeta da vida eterna.
Portanto, você é a primeira pessoa-chave do
enigma. Agora, devemos procurar descobrir de
quem você a obteve.
Crest assentiu lentamente. As outras pessoas
presentes calaram-se, observando, emudecidas,
o duelo dos dois homens que procuravam des-
27
cobrir uma pista na escuridão.
— A pergunta é fácil de responder. Foi atra-
vés do arquivo central dos arcônidas, que nosso
Conselho Científico nos deu a missão de desco-
brir o planeta da vida eterna. Portanto, deve ha-
ver anotações sobre isso. Só podem ter vindo
da época em que nossas expedições espaciais
ainda exploravam o Universo e depararam nes-
sas viagens com a raça dos imortais. Mas no ar-
quivo estão registrados os nomes de milhares
de expedições. Como acharemos qual delas foi?
Rhodan suspirou audivelmente.
— Não será tão difícil como você imagina,
Crest. Somente os arcônidas que exploraram as
proximidades da Terra há dez mil anos é que
poderão ter encontrado a pista dos imortais.
Provavelmente os mesmos que instalaram a
base de Vênus, na qual se encontra o maior de
todos os cérebros positrônicos existentes.
Como sabemos, os arcônidas se estabeleceram
na Terra, mas desapareceram então na corren-
te sangüínea da Humanidade. Catástrofes pode-
rão tê-los dizimado... a Atlântida talvez. Agora,
no entanto, cabe-nos supor que pelo menos um
relatório dessa expedição alcançou Árcon, se-
não não poderia haver indicação alguma a res-
peito no arquivo central e você, Crest, jamais
teria sido enviado à Terra.
28
Thora concordou com entusiasmo.
— Claro, é isto mesmo! Temos agora de
descobrir o nome do comandante que transmi-
tiu esse relatório. Só nos resta voar para Árcon
e dar uma espiada no arquivo central.
Ela não conseguia esconder uma nota de
triunfo na voz. Bell contemplou a bela arcônida
com desconfiança. Ele mesmo não sabia direito
se simpatizava com ela ou se a detestava. Sim,
Thora era bonita. Seus cabelos brancos faziam
um contraste maravilhoso com a pele levemen-
te bronzeada. Os olhos avermelhados tinham
expressão inteligente e um pouco desdenhosa.
Percebia-se que aquela mulher não conhecia
sentimento humano algum. Mas talvez fosse um
engano, quem sabe?
Rhodan sorriu.
— Está enganada, Thora, sinto muitíssimo
por você. Não precisamos voar até Árcon para
verificar o nome desse homem que enviou há
dez mil anos o relatório para o arquivo central.
Não há dúvida de que a expedição esteve na-
quela época aqui no sistema Vega, mas se não
voltou e se mesmo assim Árcon tomou conheci-
mento disso, é porque a transmissão de notícias
só pode ter sido feita através da base em Vê-
nus. E tudo o que aconteceu foi registrado pelo
cérebro positrônico. Thora, como está vendo,
29
não temos outra coisa a fazer senão nos dirigir-
mos a Vênus e interrogar o cérebro positrôni-
co. Viu como é simples?
— Muito simples, sim — admitiu Thora, a
contragosto. — E o que acontecerá quando
você souber o nome?
Rhodan apontou a tira de papel sobre a me-
sinha à sua frente.
— Tomarei nota do nome e voltarei à arca
de tempo. Tudo o mais decorrerá automatica-
mente.
Bell estouraria se continuassem impedindo
que falasse.
— Voaremos então para perto de casa! —
concluiu alegremente. — Aproveitaremos a
oportunidade para descobrir o que é que a ve-
lha mãe Terra anda fazendo. Terei a alegria de
rever o coronel Freyt. Puxa, vou poder lhe con-
tar umas histórias bem interessantes...
— ...das quais garanto como ele não acredi-
tará em palavra alguma! — atalhou Rhodan. —
Tive de esclarecê-lo em alguns pontos, depois
que você lhe contou as mais loucas histórias de
terror. O pobre Freyt ficou inteiramente confu-
so. Não, meu caro, já tomei providências! Avi-
sei todo o pessoal da cidade de Galáxia para
não acreditar em palavra alguma do que você
disser. Já não dá mais para você bancar o gran-
30
de herói de inacreditáveis aventuras, Bell.
Os olhos de Bell pareceram abatidos. Mas
todos os que se achavam ali o conheciam bem,
de modo que ao tentar se defender, só conse-
guiu ser envolvido pelas brincadeiras gerais.
Com um olhar ressentido para Rhodan, desistiu
prontamente de continuar. Consolou-se com a
idéia de que certamente encontraria na Terra
ouvintes ainda desprevenidos, que manifestari-
am interesse em ouvir o relato de suas aventu-
ras.
— Portanto — resumiu Crest — a primeira
parte da tarefa consistirá em descobrir o ho-
mem ou o nome do homem, uma vez que ele já
está morto há dez mil anos, que se maravilhou
ante os hipertransmissores existentes nesse sis-
tema. Por conseguinte, eles sem dúvida se origi-
nam dos imortais. Em seguida, Rhodan, você
deverá voltar à arca que fica sob o Palácio Ver-
melho. E depois, só nos resta esperar pelo que
acontecer.
— Voltar de novo à horrível sala das máqui-
nas? — estremeceu Bell.
— Não necessariamente — tranqüilizou-o
Rhodan. — Acho que desta vez nos espera uma
tarefa diferente.
Ele mesmo não podia imaginar como o futu-
ro lhe daria razão.
31
2

As mercadorias dos ferrônios já tinham sido


embarcadas. Em Ferrol ficaria uma esquadrilha
de cinqüenta e quatro caças espaciais sob o co-
mando do major Nyssen. Com isso Rhodan
pretendia atingir um duplo objetivo. Garantia a
segurança da primeira base da Terceira Potên-
cia — nome que dava à união entre homens e
arcônidas — e, além disso, o gigantesco hangar
da nave teria bastante lugar para a carga dos
ferrônios. Na Terra, esses artigos originais e es-
tranhos, concebidos por uma raça de outro sis-
tema solar, seriam muito disputados. Rhodan
esperava realizar um ótimo negócio, pois a am-
pliação da Terceira Potência exigia muito di-
nheiro.
A Stardust-III deu a partida. Depois de dar a
volta ao planeta, deslizou para a imensidão do
sistema Vega. A nave dos arcônidas ultrapassou
as órbitas dos outros planetas na velocidade da
luz e depois de muitas horas foi lançada no es-
paço exterior. Só ali seria possível dar o salto
interestelar, que de outro modo abalaria a estru-
tura tempo-espaço das órbitas dos planetas.
As coordenadas estavam corretas.
Como sempre, todos os tripulantes foram
32
tomados pela excitação já rotineira diante do hi-
persalto. Não havia perigo algum, mas era sem-
pre difícil pensar no assunto sem perder a tran-
qüilidade. A nave e os homens deixavam de
existir, pelo menos na terceira dimensão. O
tempo influía duplamente nos acontecimentos.
Em poucas horas, considerando-se a aceleração
e o retardamento, percorria-se um espaço de
vinte e sete anos-luz. E para os que estavam na
nave, era como se não tivesse acontecido nada.
Contudo, através do salto interestelar, todo
o hiperespaço sofria um abalo que se propaga-
va imediatamente. Seres inteligentes que habita-
vam as profundezas do Universo haviam cons-
truído instrumentos com os quais podiam regis-
trar e localizar essas deformações da estrutura
espacial. Os sensores estruturais significavam
perigo para os que desejavam manter-se ocul-
tos. E o que Rhodan mais queria era que nin-
guém descobrisse a existência da Humanidade.
Assim, cada hipersalto significava um risco
que tinham de correr.
Tudo parecia ter saído bem. Naturalmente,
Perry Rhodan não podia saber se alguém a cem
ou dez mil anos-luz de distância registrara algo.
Podia apenas ter esperança de que isso não ti-
vesse acontecido.
A Stardust-III materializou-se ainda longe de
33
seu sistema solar de origem. O próprio Sol ain-
da parecia uma estrela muito clara e amarelada,
situada bem na direção em que seguiam. Rho-
dan, erguendo-se da poltrona inclinada, pôde
reconhecê-lo na tela.
Bell entrou na central alguns segundos mais
tarde. Preferiu permanecer em sua própria ca-
bina durante a desmaterialização.
— É o Sol? — perguntou, apontando a ima-
gem na tela.
Rhodan assentiu com a cabeça, enquanto
batia um pedido de informações sobre os dados
de navegação no teclado do computador. Qua-
se de imediato as respostas brotaram da fenda
na forma de uma tira perfurada. Rhodan enfiou
o início da tira em outro computador, que utili-
zava os resultados para manter a Stardust-III au-
tomaticamente na direção correta.
Vênus estava do outro lado do Sol.
Depois de três horas de viagem passaram
por Plutão. Usando o sistema normal de trans-
missão foi realizada a conexão com a base de
observação que ali se localizava. Sua tarefa era
comunicar à central da cidade de Galáxia a che-
gada de objetos voadores não-identificados.
Nesse caso, o coronel Freyt teria a permissão
de informar Rhodan através do hipertransmis-
sor.
34
Dez horas mais tarde, Vênus já era uma bri-
lhante lua crescente diante da Stardust-III. A
cada segundo se tornava maior e mais clara. O
segundo planeta do sistema solar se revelara
habitável. Ali viviam répteis gigantescos e um
tipo de foca quase inteligente, que habitava os
numerosos mares. O clima era úmido e tropi-
cal. Havia oxigênio suficiente nas partes baixas,
enquanto o hidrogênio, mais leve, tornava as
camadas superiores da atmosfera irrespiráveis
para os seres humanos. A superfície estava qua-
se sempre oculta por um manto espesso de nu-
vens e não se podia vê-la. Chovia mais em Vê-
nus do que em qualquer ponto da Terra.
Outra dificuldade era a presença de bióxido
de carbono, em quantidades maiores, mas ain-
da não prejudiciais. Um dia de Vênus durava
duzentas e quarenta horas da Terra. No equa-
dor, a gravidade era de cerca de 0,85 g, menor
que a da Terra. A velocidade de vôo, atualmen-
te um fator inexpressivo nas viagens espaciais,
era de mais ou menos 10,1 km/s.
Os arcônidas que aterrizaram nesse planeta
há dez mil anos haviam instalado ali sua base
mais importante. Escavaram uma montanha e a
reconstruíram de acordo com suas necessida-
des. Os arcônidas foram embora, mas suas ins-
talações técnicas e seus robôs ficaram. Pertenci-
35
am agora a Rhodan e seus aliados.
As armas de defesa antiaérea entravam au-
tomaticamente em atividade, quando se aproxi-
mava da montanha-fortaleza uma nave sem to-
das as características arcônidas. Só uma frota
gigantesca de seres altamente inteligentes e
com uma experiência militar de milhares de
anos teria a possibilidade de dominar a defesa
mecânica dos antigos arcônidas.
Uma das entradas do labirinto subterrâneo
ficava no planalto que havia no alto da monta-
nha. A Stardust-III mergulhou lentamente em
direção a essa superfície quase lisa. Raios invisí-
veis apalparam a nave, examinaram suas carac-
terísticas e permitiram que continuasse se apro-
ximando.
O cérebro positrônico situado no interior da
montanha já sabia que uma nave de seus cons-
trutores se aproximava.

***

Só aterrizaram meia-hora mais tarde.


Crest e Rhodan foram os únicos a ficar em
Vênus, onde teriam um diálogo com o robô
onisciente. Na ausência de Rhodan, Bell assu-
miu o comando da Stardust-III. No entanto,
aceitou de bom grado a assessoria de Thora em
36
seu vôo para a Terra.
Não se podia dizer que a missão de trans-
portar carga lhe fosse desagradável. Muito pelo
contrário. Era agora o comandante e o repre-
sentante de Rhodan. Ninguém lhe faria críticas,
nem mesmo Thora.
A Terra ainda estava bem longe quando se
estabeleceram os primeiros contatos de rádio.
Depois de poucos minutos, Bell ouviu a voz do
coronel Freyt, que durante a ausência de Rho-
dan respondia pelos interesses políticos e eco-
nômicos da Terceira Potência na Terra.
— Aqui é Freyt falando! Na cidade de Galá-
xia tudo segue o rumo previsto. É uma alegria
ter a Stardust-III novamente conosco. Quais as
novidades?
A velocidade da nave foi diminuindo. A Lua
já ficara para trás. A Terra ia crescendo diante
deles, uma bola azul-acinzentada, cercada por
uma auréola clara de atmosfera.
“Uma visão maravilhosa”, pensou Bell. “É o
planeta mais lindo do Universo. Ainda bem que
os homens não conseguiram destruí-lo.”
E o estranho é que, se tivessem conseguido,
provavelmente nem se lamentariam. Só o medo
de serem as próprias vítimas da destruição atô-
mica os impedira.
— Obrigado, Freyt. Aqui fala Reginald Bell,
37
comandante da Stardust-III. Rhodan ficou em
Vênus com Crest. Têm uma conferência impor-
tante com o cérebro positrônico local. Por isso
trate de se contentar comigo.
— Quanto sacrifício pela paz — suspirou
Freyt, acrescentando: — Mas vou tentar me ale-
grar. E o que há de tão importante para discutir
com o cérebro positrônico?
— É uma história comprida — confidenciou
Bell. — Terei muito prazer em contá-la quando
estivermos os dois ao lado de uma bela garrafa
de vinho.
— Pelo amor de Deus, não! — retrucou
Freyt assustado. — Ainda estou com sua última
visita entalada na garganta. Aqueles coelhos
aquáticos com aparelhos de mergulho embuti-
dos...
A conversa continuou por algum tempo até
começarem as manobras de pouso. Enquanto
isso a Stardust-III dava uma volta em torno da
Terra a pouca altura, para mostrar a todos os
povos que Perry Rhodan estava de volta. Em
seguida, o continente asiático começou a cres-
cer sob a nave, até que, do meio do deserto de
Gobi, emergiu Galáxia.
A cidade de Galáxia! A mais moderna me-
trópole do mundo!
Há algum tempo, Perry Rhodan, ao voltar
38
da Lua com a nave dos arcônidas, construíra ali
sua primeira base, sob o protesto dos governos
terrestres. Com o tempo foi surgindo uma enor-
me cidade, construída por robôs e máquinas au-
tomáticas. A cidade ficava fora da Central de
Defesa propriamente dita, cujas valiosas instala-
ções eram protegidas por uma cúpula energéti-
ca. Um exército de robôs defendia o território
da Terceira Potência — exatamente quarenta
mil quilômetros quadrados — contra o mundo
exterior.
O tráfego se movimentava pelas ruas princi-
pais; esteiras transportadoras deslizavam entre
os arranha-céus, estabelecendo a ligação com
as fábricas situadas na periferia, que trabalha-
vam a todo o vapor. Mais de duzentos e trinta
mil pessoas viviam em Galáxia, a mais moderna
e poderosa cidade da Terra.
As forças armadas eram compostas de qui-
nhentos homens, que tinham tido o melhor pre-
paro possível e estavam equipados com armas
arcônidas. Além disso, havia cinco mil soldados-
robôs do tipo arcônida, que só obedeciam a
Rhodan e seus representantes.
Também possuíam quatro naves auxiliares
esféricas, fortemente armadas, rápidos caças
espaciais e o respectivo armamento.
No entanto, todo esse enorme poder militar
39
só servia à paz.
O coronel Freyt, que exteriormente se pare-
cia tanto com Perry Rhodan que poderia passar
por seu irmão, esperou a Stardust-III no espeta-
cular espaçoporto. Quando a esfera gigantesca
finalmente parou, parecia um edifício incrivel-
mente alto. A curva de seu revestimento cônca-
vo, feito de metal faiscante, chegava até o azul
do céu. Pairava quase que horizontalmente so-
bre Freyt, que chegara bem perto da escotilha
para passageiros, que começava a se abrir. A
escada rolante foi descendo silenciosamente.
Em sua extremidade superior surgiu a figura de
Bell. Foi deslizando para o chão como uma
bola, quase aos tropeções, até cair nos braços
de Freyt.
— A Terra o recebe novamente! — declarou
o coronel, saudando-o em tom indiferente. —
Dou-lhe as boas-vindas em nome da Terceira
Potência, senhor ministro da segurança. Tudo
em ordem!
— É o que espero! — gritou Bell entusias-
mado, batendo nas costas magras de Freyt. —
Rhodan e Crest mandam muitas lembranças.
Thora o cumprimentará pessoalmente. Lá vem
ela.
É claro que Freyt não era o único homem
que via com prazer a bela arcônida.
40
Era fria, distante, orgulhosa e arrogante,
mas era uma mulher, uma mulher de extraordi-
nária beleza.
— Por que me olha desse jeito, coronel
Freyt? — perguntou, estendendo a mão para
ele. — Mudei tanto assim?
— Você está bronzeada — murmurou Freyt
embaraçado. O risinho de Bell o irritava. —
Você vai bem, espero.
— Bem, obrigada — agradeceu Thora com
indiferença. — Estou sempre bem quando surge
uma oportunidade como essa, de passar alguns
dias sem ter de estar continuamente olhando
para esse tal de Reginald Bell.
Bell não parou de sorrir. Inclinou-se para
Freyt:
— Vê como ela está? Espero que se divirta
com ela. Poderão dar uma volta pela cidade en-
quanto fiscalizo o carregamento das mercadori-
as para os ferrônios.
— Está tudo pronto — assegurou Freyt, feliz
em mudar de assunto. — Por mim você já pode
começar.
— Ainda tenho tempo até amanhã, meu
caro. Onde fica o bar mais próximo?
Riram. Enquanto isso, alguns dos mutantes,
os dois médicos, Dr. Haggard e Dr. Manoli, e o
major Deringhouse desciam pela escada rolan-
41
te. Todos cumprimentaram Freyt com grande
efusão. Houve muitas perguntas e respostas de
lado a lado, até a chegada dos primeiros plana-
dores de carga. Sem muitas palavras teve início
o descarregamento da nave.
Freyt agarrou Bell pelo braço e puxou-o de
lado por um momento:
— Tenho boas notícias para Rhodan —
confidenciou. — Em pouco tempo teremos um
governo mundial. Há negociações sérias nesse
sentido.
— Formidável! — elogiou Bell. — Mas eu
desvendei uma parte da charada galáctica.
O rosto de Freyt parecia um ponto de inter-
rogação.
— Do quê? Bell sorriu.
— Já lhe conto, é uma história comprida.
Diga-me primeiro qual o endereço do bar mais
próximo. Você sabe que Rhodan só permite o
uso de álcool para fins médicos. E há muito
tempo não fico doente...

***

As esteiras transportadoras feitas de metal


rolavam através dos corredores subterrâneos da
fortaleza de pedra. Era uma visão fantasmagóri-
ca. As paredes irradiavam um brilho mortiço.
42
Ouvia-se em algum lugar o zumbido de gerado-
res possantes. De vez em quando, Crest e Rho-
dan passavam pela entrada de passagens late-
rais, que levavam a pontos mais profundos da
montanha. Robôs silenciosos moviam-se com
passos pesados ao lado da esteira. Não reagiam
quando Rhodan e Crest passavam per eles des-
lizando. Seus raios táteis apreendiam os pa-
drões das ondas cerebrais dos dois homens e
depois os examinavam e registravam. Aqueles
seres mecânicos, aparentemente inofensivos,
teriam se transformado em monstros assassinos
se os padrões não conferissem.
Já se passara quase um dia inteiro, em tem-
po terrestre.
Crest deu um risinho fraco.
— Será que a resposta ainda sai hoje?
— Talvez — respondeu Rhodan pensativo.
— Inserimos no cérebro positrônico todas as
perguntas e dados indispensáveis. Vinte e qua-
tro horas é tempo suficiente. Devemos conse-
guir pelo menos uma resposta parcial.
Passaram por outro corredor lateral. Sabiam
que conduzia ao comando central automático
das instalações de defesa. Essas instalações po-
deriam defender Vênus da invasão de uma frota
inteira de naves de combate. Poderiam defen-
der eventualmente todo o sistema solar.
43
A esteira transportadora foi diminuindo a ve-
locidade. Aproximavam-se de seu destino, a
central do cérebro. Seus controles não diferiam
muito do cérebro positrônico da Stardust-III,
mas era maior, abrangia maior número de co-
nhecimentos. E sua memória armazenava fatos
de um passado longínquo, de milhares de anos
atrás.
Além disso, esse cérebro positrônico ainda
possuía outra vantagem inestimável: era capaz
de projetar seu raciocínio em forma de imagens
sobre uma tela. Deste modo, podia-se ver pela
descrição dos acontecimentos como o cérebro
pensava.
Quem quisesse poderia ver um verdadeiro
relato filmado do passado mais remoto. Talvez,
pensava Perry um pouco chocado, até mesmo
uma visão do futuro, se fossem fornecidos ao
cérebro as informações indispensáveis.
Todos esses pensamentos passaram pela ca-
beça de Rhodan enquanto a esteira diminuía a
velocidade e finalmente parava. Tinham chega-
do.
Estavam no fim do corredor. Viram-se dian-
te de uma porta grande e metálica. Crest e
Rhodan encaminharam-se para essa porta e se
detiveram a um metro de distância. Sabiam que
nesse segundo estavam sendo observados e
44
apalpados. Em seguida, a porta deslizou silenci-
osamente para dentro da parede.
A entrada para a central de comando do cé-
rebro estava livre diante deles.
A luz acendeu-se, iluminando o local. O gi-
gantesco painel de comutadores acordou para a
vida. Pequenas lâmpadas acendiam e apagavam
continuamente. Alavancas moviam-se, parecen-
do manejadas por mãos invisíveis. O zumbido
atrás das paredes tornou-se mais forte. O cére-
bro positrônico devia estar esperando pelos
dois homens, pois, assim que tomaram seus lu-
gares nas poltronas em frente à tela, o alto-
falante deu um estalido e falou com voz mecâni-
ca e impessoal:
— Seus dados foram verificados. Os arqui-
vos da memória forneceram as informações de-
sejadas. O resultado será comunicado em forma
de filme. Também receberão um resumo por
escrito. Se desejarem uma gravação, utilizem o
gravador. A transmissão começará dentro de
um minuto.
O alto-falante emudeceu. Crest olhou inter-
rogativamente para Rhodan.
— Ver o filme já será suficiente. O que pre-
cisamos é o nome do homem que aterrizou em
Ferrol naquela época e se surpreendeu com o
hipertransmissor. Os ferrônios não têm ne-
45
nhum registro a respeito disso, nunca nos disse-
ram que algum outro estranho tivesse descido
em seu planeta depois dos imortais. Além disso,
precisamos saber a data aproximada do pouso.
As duas informações certamente vão constar do
resumo escrito. Portanto, silêncio! Já vai come-
çar.
A tampa do visor deslizou para trás. O vidro
fosco da tela começou a tremeluzir, aparecendo
em seguida um desenho abstrato. Permaneceu
ali alguns segundos e em seguida desapareceu,
surgindo em seu lugar uma imagem natural.
O filme começou. Um autêntico filme, ape-
sar de se passar há milhares de anos. A voz me-
cânica do cérebro positrônico fazia o comentá-
rio.
Três poderosas naves esféricas flutuavam no
espaço infinito. Aproximavam-se na velocidade
da luz de um sistema solar desconhecido, onde
desceram no único planeta habitado. Foram re-
cebidos pelos habitantes primitivos com um
misto de respeito e medo.
O comentário dizia o seguinte:
“Há nove mil novecentos e oitenta e cinco
anos, de acordo com o tempo terrestre, o co-
mandante Kerlon chegou com suas três astro-
naves ao sistema Vega, composto de quarenta
e três planetas. Uma exploração superficial
46
constatou que só o oitavo planeta tinha vida in-
teligente. Kerlon realizou o pouso e foi recebido
pelos nativos com amizade e temor. Os arcôni-
das logo perceberam que não eram os primei-
ros “deuses” vindos do espaço a chegar e des-
cer em Ferrol, nome que os habitantes davam a
seu mundo. Outros já tinham estado ali antes
deles; estavam em dificuldades e conseguiram
ajuda. Como agradecimento, deixaram lá al-
guns hipertransmissores de matéria, que os ar-
cônidas jamais haviam fabricado e que só co-
nheciam na teoria.
O filme mostrava agora como esses hiper-
transmissores foram mostrados aos arcônidas.
“Kerlon admirou-se da existência das máqui-
nas e procurou saber os pormenores. Os ferrô-
nios lhe contaram que provinham de seres que
viviam mais que o sol. Isso era um indício da
raça dos imortais. Kerlon ficou muito espantado
e só muito mais tarde enviou ao Arquivo Cen-
tral as primeiras informações a respeito. Po-
rém, isso só aconteceu quando se encontrava
no segundo planeta de um outro sistema.
“As três naves deram a partida e, ao saírem
do sistema Vega, iniciaram a transição. Perto
do sistema solar saíram do hiperespaço. Desce-
ram no segundo planeta, Vênus. Aqui foi cons-
truída a grande base e o relato da expedição foi
47
comunicado a Árcon, onde foi recebido e regis-
trado. Nessa época começou a colonização da
Terra. Kerlon morreu lutando conta os selva-
gens de um continente banhado pelo mar e que
mais tarde desapareceu do universo durante um
ataque.
“Kerlon já morreu há muito tempo — finali-
zou o cérebro positrônico — mas foi o primeiro
arcônida a encontrar e depois perder a pista
dos imortais. Também foi o primeiro a se admi-
rar da existência dos hipertransmissores de ma-
téria e a mandar um relatório a respeito. No en-
tanto, os outros fatos relacionados se perde-
ram, porque a base no sistema solar desapare-
ceu, mas as informações e os robôs ficaram.”
A imagem apagou-se. A voz emudeceu.
Rhodan continuou sentado durante muito
tempo, calado e pensativo. O cérebro positrôni-
co emudecera. Atrás das paredes espessas já
não se ouvia nenhum ruído. Rhodan percebeu
pela primeira vez que havia uma muralha in-
transponível entre ele e a solução da charada
galáctica. Sabia o nome do homem que se sur-
preendera com o hipertransmissor, mas esse
homem já estava morto há dez mil anos. Entre
ele e Rhodan se entrepunha a muralha intrans-
ponível do tempo.
O filme deixava claro que não poderia obter
48
nenhuma informação com os ferrônios. Na
época do pouso dos arcônidas, ainda viviam em
um estágio muito primitivo de sistema feudal.
Usavam armas de fogo antiquadas, de carregar
pelo cano, mas principalmente espadas e lan-
ças. Vestiam cota de malha e armadura, como
os homens na Idade Média da Terra. As recor-
dações sobre esse segundo encontro desapare-
ceram, porque nessa época conflitos e guerras
devastavam o planeta.
Crest suspirou.
— Já temos o nome: Kerlon. E é só. Que fa-
remos agora?
Rhodan ergueu-se de um salto.
— Vamos ver. Não nos exigiram mais do
que isso. Deveríamos descobrir o nome, e isso
já fizemos. A arca deve nos dar a próxima res-
posta. Voaremos para a Terra e depois voltare-
mos a Ferrol. Lá vamos constatar se perdemos
ou não a pista do planeta da vida eterna.
Crest também se levantou.
— Lá fora nos espera a nave que nos levará
à Terra. Fico feliz em revê-la.
Rhodan lançou um olhar interrogativo para
o arcônida, mas na voz de Crest não se perce-
bia nenhuma ironia.

***
49
Bell estava em seu elemento.
Selecionava duzentas pessoas, entre os sol-
dados e trabalhadores especializados da Tercei-
ra Potência, que passavam a fazer parte da tri-
pulação da Stardust-III. Essa tripulação crescia
com isso para quinhentas pessoas, além do es-
tado-maior dirigente e o Exército de Mutantes.
Como sempre acontecia, estava diante da
difícil tarefa de testar os voluntários e decidir se
poderiam ou não ser aproveitados. Uma das
condições que Rhodan exigia era a ausência de
qualquer laço pessoal mais forte prendendo o
candidato à Terra. Com isso, os casados fica-
vam de fora.
Mas, nem todos os convocados para servir
na Stardust-III eram homens. Também havia
moças formadas em radiotelegrafia, eletrônica e
química. De agora em diante haveria médicas e
técnicas trabalhando na Stardust-III, ajudando a
representar a raça humana. Bell ficou intima-
mente satisfeito com o interesse que essa nova
regra despertou entre os membros da antiga tri-
pulação masculina.
Bell foi surpreendido em seu trabalho cansa-
tivo pela chegada de Rhodan. Como nesse
meio tempo já se tinha efetuado a troca de
mercadorias, nada impedia a partida da Star-
50
dust-III. Bell recebeu ordem de apressar-se.
No terceiro dia a Stardust-III estava pronta
para partir.
Antes da partida, Rhodan e o coronel Freyt
conversaram a sós. Os dois homens, represen-
tantes do maior poder da Terra, não só se pare-
ciam exteriormente, mas também concordavam
em todas as questões políticas e ideológicas.
— Você conhece sua missão, Freyt — disse
Rhodan. — Ela já foi claramente planejada e
deve ser seguida à risca. O esquema de segu-
rança da Terra está estabelecido, não há neces-
sidade de novas regras. Nossos postos avança-
dos em Plutão informarão a tempo sobre a
aproximação de qualquer nave vinda do espaço
exterior. Assim a Terra terá condições de se
preparar para a defesa, se alguma raça de via-
jantes espaciais descobrir nosso planeta e pen-
sar em presenteá-lo com sua cultura. Sua prin-
cipal tarefa vai ser cuidar para que nosso mun-
do se transforme em um planeta unido: Terra!
A existência da Humanidade vai depender de
sua capacidade de agir com decisão e hunani-
midade. Não estamos sozinhos no universo!
Outra tarefa sua é promover a formação de um
governo mundial.
— Pode contar comigo, Rhodan.
— Estou sabendo, Freyt. Foi por isso que fiz
51
de você meu representante. Minha missão é no
espaço e quero ter certeza de que tudo corre
bem por aqui. Preciso do apoio moral da Terra
para os meus atos. E só uma Terra unida e po-
derosa poderá algum dia receber a herança dos
arcônidas.
O coronel Freyt não pôde disfarçar o tremor
das mãos.
— A herança dos arcônidas?
Rhodan confirmou:
— Ouviu certo, Freyt. Algum dia voaremos
para Árcon e ajudaremos os arcônidas a reer-
guer seu império decadente. Pagarão um alto
preço por isso: o seu próprio poder. Crest sabe
disso. Vê aí sua única possibilidade de impedir
que seu império estelar de milhares de anos
caia nas mãos de uma raça não-humanóide. De
um certo modo, somos o mal menor.
— Antes nós que aranhas ou amebas —
concordou Freyt muito sério. — Compreendo.
E o que Thora diz disso?
— Antes de mais nada, ela não sabe. E é
melhor assim. Crest é homem e raciocina com
lógica, mas Thora é mulher e como tal julga de
acordo com seus sentimentos. Algum dia vai ter
de se conformar.
— E é desse dia que eu tenho medo — mur-
murou Freyt.
52
Rhodan ergueu-se sorrindo.
— E como pensa que eu me sinto, coronel?

***

A Stardust-III disparou pelo céu azul, que en-


volvia a Terra como uma cortina diante do infi-
nito, escondendo dos olhos humanos a terrível
solidão e a grandiosidade do Universo. Ao dei-
xarem para trás Plutão, que não se deslocara
muito em sua órbita, a nave passou com a velo-
cidade da luz para o ponto de transição. A cú-
pula gigantesca começou de repente a brilhar,
como se estivesse cercada por uma camada de
ar muito quente. Em seguida desapareceu.
O abalo da estrutura espacial, no entanto, se
propagava numa velocidade inconcebível e che-
gava no mesmo segundo aos confins do univer-
so.
Por outro lado, havia muitas raças espalha-
das por inúmeros planetas. Era bem possível
que algumas delas possuíssem sensores capazes
de detectarem esse abalo.
E nelas despertassem idéias…

O Thort, governante dos ferrônios, parecia


53
impressionado com as mercadorias vindas da
Terra. Suas organizações comerciais começa-
vam a trabalhar. Com isso, além de Rhodan, o
Thort também fazia o melhor negócio de sua
vida. Estava estabelecido o primeiro contato co-
mercial interestelar entre as duas raças.
Rhodan passou para o major Deringhouse a
tarefa de proceder ao descarregamento das
mercadorias. Sentia-se inquieto por dentro e sa-
bia que a incerteza era a única responsável por
isso. Mal Deringhouse saiu de sua cabina, Rho-
dan mandou chamar Bell, Crest, Thora, Hag-
gard e John Marshall, o telepata. Nada o impe-
diria de descer ainda naquele dia até a arca sob
o Palácio Vermelho.
Mas ainda queria discutir alguns pontos com
seus auxiliares mais próximos.
— Todos nós nos recordamos da mensagem
decifrada pelo cérebro — começou, erguendo a
tira de papel com o texto traduzido. — Há ali
três pontos que precisamos observar. Os imor-
tais falam dos segundos que se passaram. Já
podemos presumir que esses segundos duraram
exatamente nove mil novecentos e oitenta e
cinco anos. Portanto, isso já está claro. A men-
sagem também ordenou: “Encontre o homem
que se maravilhou com as máquinas do saber e
interrogue-o.” Aqui surge um problema: Como
54
eles querem que eu faça isso? Já encontramos
o homem, ou pelo menos seu nome. Mas como
poderei interrogar alguém que já morreu há
quase dez mil anos? Confesso que não pude de-
cifrar esta parte do problema. Disseram ainda
que devo descer à arca, nos subterrâneos do
Palácio Vermelho, para interrogá-lo. Isto signifi-
ca que com a ajuda da quinta dimensão há a
possibilidade de interrogar um morto. Não me
perguntem como isso é possível; eu mesmo
não sei. De qualquer modo logo descobriremos,
pois não vou entrar na arca sem o nome do ho-
mem, Kerlon. Também há outra coisa na men-
sagem que me chamou a atenção...
Fez uma pequena pausa e examinou seus
amigos. Thora ouvia com interesse e Rhodan
teve a impressão de captar em seus olhos um
olhar de admiração. Crest, Haggard e Marshall
esperavam com calma. Somente Bell se reme-
xia inquieto de um lado para o outro na cadei-
ra, como se já não pudesse conter sua impa-
ciência. Seu olhar implorava a Rhodan para
que fosse breve e fosse direto ao assunto.
Rhodan fez-lhe a vontade.
— A mensagem diz textualmente: “...apenas
segundos para mim”. Acentuo: para mim se-
gundos. Daí se pode concluir que só há um
imortal!
55
Por algum tempo reinou na cabina um com-
pleto silêncio.
Crest parecia alguém que acabou de ouvir
sua sentença de morte. Thora permaneceu de
lábios entreabertos, Bell de olhos arregalados.
Haggard e Marshall falaram ao mesmo tempo:
— Só um imortal?! Isso seria um paradoxo!
Impossível!
— Possível — discordou Rhodan. — Absolu-
tamente possível. E vou lhes explicar por quê.
Na época em que os imortais chegaram a Fer-
rol ainda existiam como raça.
Então resolveram emigrar do sistema. As ra-
zões são desconhecidas. Ao mesmo tempo, fo-
ram atingidos por uma catástrofe que os exter-
minou, apesar de sua imortalidade. Só um so-
breviveu. Não quis guardar seu segredo apenas
para si e resolveu encontrar um seguidor. Con-
cebeu a charada galáctica. Quem a resolvesse
obteria a imortalidade. Deixou as pistas prova-
velmente mais tarde do que pensamos a princí-
pio. Encontramos a pista e desde então a segui-
mos. Não, não vejo paradoxo nenhum em falar
de agora em diante do imortal ao invés de falar-
mos de sua raça, que viveria mais que o sol.
Para eles o sol se pôs afinal muito depressa.
— Só um imortal — murmurou Crest absor-
to. — É mais que uma suposição fantástica. É
56
monstruoso!
— Como deve ser essa criatura? — pergun-
tou Thora baixinho. — Um ser que nos dá um
enigma, que para ser solucionado são necessá-
rios uma inteligência fora do comum e o saber
de um cérebro positrônico gigantesco. Um ser
que domina o tempo...
— É isso mesmo — concordou Rhodan em
tom sério. — Domina o tempo. E como domi-
na o tempo é imortal. Vamos descer à arca
para obter a resposta. Quero pedir a vocês que
me acompanhem. Ainda hoje.
— Sem os mutantes?
Crest fez um ar pensativo.
— Levaremos John Marshall, o telepata. E
talvez também a telecineta Anne Sloane.
— E nosso robô? — intrometeu-se Bell. To-
dos sabiam de quem falava. Tinham transfor-
mado um dos robôs em um ser metálico de ra-
ciocínio pentadimensional. O incrível banco de
dados, o encadeamento lógico das idéias, tudo
isso o transformava em uma superinteligência,
cuja presença constante parecia imprescindível.
Nunca se poderia saber que problemas surgiri-
am.
— Pois bem — concordou Rhodan final-
mente. — Desta vez me acompanham Crest,
Bell, Marshall, Anne, o Dr. Haggard e o robô.
57
Thora, você tem vontade de tomar parte na
operação, não é?
Seus olhares se cruzaram. Rhodan percebeu
que, por teimosia, gostaria de ir junto, mas a
prudência feminina acabou vencendo.
— Se Crest vai com você, talvez seja melhor
que eu fique. Como medida de segurança, é cla-
ro.
Bell ponderou:
— Por que não levamos mais alguns mutan-
tes conosco? Pelo menos o teleportador, Ras
Tshubai. E talvez também o Ralf Marten, que já
se queixou comigo de que nós o deixamos sem-
pre para trás.
— Pois bem — concordou Rhodan, depois
de pensar um pouco. — Então comunique isso
aos dois e a Anne. Há lugar suficiente para
nove pessoas no hipertransmissor de matéria
que vamos utilizar. Vamos sair dentro de meia
hora.

***

Em um passado remoto, o imortal cuja pista


seguiam havia construído uma arca pentadi-
mensional sob o palácio do governante dos fer-
rônios. Seu conteúdo era invisível, pois achava-
se protegido por uma cúpula de raios enfeixa-
58
dos. Só o gerador dos arcônidas conseguira
neutralizar essas ondas. Com isso, seu conteúdo
voltava ao presente, tornando-se concreto e tri-
dimensional.
Rhodan apertou um botão, fazendo funcio-
nar o gerador. O quadro diante de seus olhos
modificou-se imediatamente. Onde antes havia
a abóbada vazia e escura, surgia agora um cone
cintilante. Parecia ter saído do nada e foi aos
poucos se dissolvendo. Mas permitiu que se tor-
nassem visíveis objetos que anteriormente não
estavam na enorme abóbada. Contudo, o hiper-
transmissor de matéria havia desaparecido.
Lá, onde antes estivera, só havia uma pol-
trona.
Estava sobre uma pequena elevação, como
que convidando alguém a se sentar. E isso era
tudo o que ainda havia na arca.
Rhodan pensou durante alguns segundos e a
lógica o levou a concluir que, se sentasse na
poltrona, tudo o mais se seguiria automatica-
mente. A poltrona lhes daria a primeira respos-
ta.
Crest também tinha chegado à mesma con-
clusão.
— A poltrona representa a ligação com o
imortal. Qualquer um de nós pode sentar-se
nela, Rhodan, pois todos sabemos o nome do
59
homem que se surpreendeu com o hipertrans-
missor.
— Eu faço isso — afirmou Rhodan. — Se al-
guém aqui tem de correr um risco, que seja eu.
Crest, espere aqui com os outros. Observe exa-
tamente tudo o que se passar e corra em meu
socorro se for necessário.
Bell quis dizer alguma coisa, mas calou-se,
dominando-se com esforço. Cerrou os lábios
com tanta força que pareciam um traço fino.
Pequenas gotas de suor se formaram em sua
testa.
— E se você desaparecer? — quis saber Ras
Tshubai.
Rhodan lançou um rápido olhar para o afri-
cano.
— Aí você me segue. Afinal, você é ou não
é um teleportador?
Ras arreganhou o rosto num sorriso.
— Posso atravessar o espaço, mas não o
tempo.
Rhodan não respondeu. Encaminhou-se
para a poltrona. Nos segundos que precisou
para vencer os poucos metros, gravou todos os
pormenores. Em vez do estofo, via-se uma su-
perfície lisa. O espaldar era feito de metal, que
parecia piscar traiçoeiramente. Os pés um pou-
co deselegantes faziam um ângulo reto com o
60
chão, parecendo se enveredar para dentro dele.
O assento era maciço e de espessura fora do
comum.
Rhodan chegou junto à poltrona.
Hesitou.
O que aconteceria se sentasse? A mensagem
o avisara para só vir a esse lugar quando sou-
besse o nome da pessoa que se surpreendera
com o hipertransmissor. Esse nome ele já sabia.
Com isso preenchia as condições impostas.
Com uma última passada subiu no estrado e
sentou-se na poltrona pronta para recebê-lo.
Parecia quente, como se alguém tivesse aca-
bado de se sentar nela. Era a única coisa que se
sentia. Contudo, enquanto Rhodan esperava
que acontecesse alguma coisa, ela aconteceu.
Veio de repente e de modo surpreendente.
Um zumbido de máquina começando a tra-
balhar se fez ouvir debaixo dele. Toda a sala vi-
brava. Ao mesmo tempo Rhodan, a poltrona e
o estrado foram envolvidos por uma cúpula
energética. Crest, Bell e os outros apareciam
para Rhodan como que vistos através de um
véu longínquo, mas abruptamente todos os ruí-
dos emudeceram. Estava sozinho debaixo da
cúpula, separado do mundo exterior, apesar de
poder vê-lo.
Mas, então, isso também acabou.
61
Ficou tudo escuro em sua volta. Apenas a
cúpula emitia alguma luz, mas essa luz era fra-
ca. Não se distinguia nada. Rhodan sentiu algu-
ma coisa estranha começar a se impor em seus
pensamentos. Lutou instintivamente contra ela,
mas logo desistiu. Que sentido haveria em evi-
tar a pergunta que seria feita ao seu subconsci-
ente? Nem sabia se poderia respondê-la. Sua
resistência desapareceu completamente quando
percebeu que só estava prejudicando a si mes-
mo. Sentiu uma sensação quase agradável
quando o estranho se apoderou de sua mente
de um só golpe.
Durou apenas alguns segundos e logo tudo
ficou novamente claro, ao mesmo tempo em
que desaparecia a cúpula energética. A vibração
sob a placa metálica do assento emudeceu.
Rhodan viu os rostos ansiosos de seus compa-
nheiros.
— Onde foi que você esteve? — perguntou
Bell. — Você desapareceu.
— Vocês também — respondeu Rhodan le-
vantando-se. Continuou em pé perto da poltro-
na, sem que ele mesmo soubesse bem por quê.
O que esperava ainda?
A resposta!
Onde estava a resposta do imortal?
Enquanto isso, os outros se aproximaram.
62
Bell e Crest perguntaram ao mesmo tempo:
— Como foi?
— Nem eu mesmo sei o que aconteceu, mas
imagino que minha memória tenha sido investi-
gada pormenorizadamente. O imortal, ou o que
quer que seja que tenha criado, agora já deve
saber que conheço o nome do homem que se
admirou ao encontrar em um Ferrol ainda pri-
mitivo o hipertransmissor que funciona em cin-
co dimensões. Era essa a condição. Eu a preen-
chi. Agora compete ao imortal nos mostrar os
próximos passos a seguir.
Os mutantes, o Dr. Haggard e o robô se
aproximaram. Rhodan foi cercado por eles. O
mecanismo invisível e silencioso parecia só es-
tar esperando por isso. O chão de pedra, que
parecia maciço, começou a afundar lentamente,
sem fazer barulho algum. Os sete homens,
Anne Sloane e o robô se achavam sobre a pla-
taforma de um elevador, que descia inexoravel-
mente para as profundezas.
— Espero que tudo corra bem — murmurou
Bell com ceticismo. — Poderíamos ter saltado
fora. Deram-nos tempo suficiente para fazer
isso.
— De propósito! — acentuou Rhodan, em
leve tom de censura. — Haggard já nos disse
uma vez que o imortal não quer medir apenas o
63
nosso grau de inteligência. Quer conhecer tam-
bém nossas qualidades. Os covardes não mere-
cem a vida eterna. É assim que ele nos põe à
prova.
Bell não respondeu. Reconheceu, por certo,
que Rhodan tinha razão.
Nesse meio tempo, a plataforma tinha para-
do. As paredes do aposento recuaram, aumen-
tando o recinto. Súbito, como se tivesse saído
do nada por um passe de mágica, um bloco sur-
giu no meio do salão vazio.
Um bloco de metal.
Uma luz incandescente, avermelhada, ilumi-
nou lentamente todo o ambiente. Estava em
tudo, nas paredes e no teto. O salão era grande
e quadrado, com cerca de dez metros de lado.
Acima deles a clarabóia se fechara. Completa-
mente isolados do mundo, as oito pessoas e o
robô se encontravam em uma verdadeira pri-
são, na armadilha mais perfeita que já existiu.
O cubo metálico?
Atraía imediatamente a atenção, um dado
puramente psicológico, já que era a única coisa
que havia nesse subterrâneo.
Aos olhos de Rhodan não escapou a presen-
ça, na superfície do cubo, das conhecidas irre-
gularidades que já tinham encontrado diversas
vezes. A escritura ideográfica e simbólica dos
64
imortais!
O lado do bloco voltado para ele mostrava
algumas linhas na escrita desconhecida. Seria a
próxima indicação?
— Como decifraremos isso? — quis saber
Crest. — Já fixei bem os sinais em minha me-
mória fotográfica, mas poderia sair daqui para
chegar até o cérebro positrônico? E como volta-
ria para cá?
Rhodan não respondeu. Virou-se e indicou o
robô. A maravilhosa obra da técnica dos arcôni-
das reagiu instantaneamente. Robby, este o seu
nome, se aproximou. Esperou em silêncio as
suas ordens.
— Está vendo a escrita? — perguntou Rho-
dan.
— Sim, senhor.
— Decifre-a e forneça-nos o texto em carac-
teres comuns.
— Sim, senhor.
As lentes dos olhos do robô dirigiram-se
para o bloco. Ficou completamente imóvel. No
interior do corpo os relays estalavam. Contatos
se fechavam e novas correntes percorriam regi-
ões do pequeno cérebro positrônico não utiliza-
das até então. A escrita foi fotografada e passa-
da adiante. O processo de decifração começou.
Bell ficou impaciente.
65
— Será que vai conseguir? E se não conse-
guir?
— Agourento! — resmungou John Marshall
em voz alta.
— Como?
— Agora, silêncio! — ordenou Rhodan. —
Não atrapalhe Robby!
No segundo plano, Ras Tshubai e Ralf Mar-
ten cochichavam. O teleportador dizia que gos-
taria de experimentar se poderia sair desse lu-
gar através da simples desmaterialização, mas
não ousava realizar experiências sem a ordem
expressa de Rhodan. Talvez a prisão não esti-
vesse separada do mundo exterior apenas por
muralhas, mas também por uma barreira de
tempo ou um campo pentadimensional. Nesse
caso, não poderia atravessá-las.
O robô mexeu-se. Virou-se de modo a que
seus olhos lenticulares se fixassem diretamente
nos olhos de Rhodan.
— A solução foi fácil. O texto decifrado diz:

Encontra agora aquele cujo nome já conhe-


ce. Só ele possui o que precisas para encontrar
o caminho para a luz. Sabes o que é o tempo?

O robô calou-se. Rhodan esperou alguns se-


gundos e perguntou:
66
— É só isso?
— O texto está completo, senhor. Não há
mais nada no conversor do tempo.
Para Rhodan, foi como se um raio o atingis-
se. Percebeu que seu coração saltou uma ou
duas batidas e, em seguida, o sangue afluiu com
força nova. Estremeceu.
— O que foi que você disse, Robby? O que é
aquilo?
Mostrou o bloco de metal imóvel no meio do
salão.
O robô respondeu serenamente. Em sua voz
não se notava nenhuma emoção.
— Um conversor de tempo, senhor. Um
aparelho que domina a quarta e a quinta dimen-
são e manipula com elas. Na matemática penta-
dimensional seria o que na tridimensional se
poderia chamar de máquina de calcular.
— E o que se pode fazer com um conversor
de tempo?
A Bell, que dera um passo a frente, pareceu
como se houvesse pela primeira vez uma certa
ironia na voz habitualmente impassível do robô.
— Converter o tempo, senhor. O que mais
poderia ser?
— Esse cara está sempre rindo da gente! —
insurgiu-se Bell, furioso. — Como se o conver-
sor de tempo fosse uma máquina de calcular es-
67
férica, onde as crianças aprendessem o “um ve-
zes um”.
— Agora veja se cala de uma vez essa boca!
— ordenou Rhodan com uma aspereza que não
lhe era comum. — E quando falar diga, por fa-
vor, alguma coisa que possa nos ajudar. Senão
é melhor ficar calado — e voltando-se para o
robô: — Você disse converter o tempo? Isso
quer dizer que esse bloco é uma máquina do
tempo?
— O senhor também poderia chamá-la as-
sim. Mas o conversor é diferente da máquina
do tempo porque não se pode subir dentro dele
e viajar para o passado ou para o futuro. Já
está ajustado e leva o viajante apenas em uma
direção e depois novamente de volta. Conheço
teoricamente o princípio empregado.
— Em que direção? — perguntou Rhodan
ansioso.
— Passado, senhor.
Crest se aproximou de Rhodan.
— Começo a perceber. Lá em cima, na pol-
trona, o imortal se certificou de que você sabia
o nome do comandante arcônida. Tendo feito
isso, permitiu seu acesso ao conversor de tem-
po. Não fez objeção ao fato de você trazer al-
guns amigos. E agora, esta máquina vai nos le-
var ao passado, para termos a oportunidade de
68
encontrar Kerlon. Pois ele possui, isso é a men-
sagem que diz, o que precisamos para chegar
até a luz. Ninguém pode imaginar o que seja.
Mas temos de encontrá-lo e nos apossarmos
dele.
Bell e os mutantes encararam atônitos e mu-
dos o bloco de metal. A idéia de que este objeto
insignificante os poderia transportar até dez mil
anos atrás lhes era inquietante. Só o robô, inca-
paz de sentir emoções, continuou impassível.
Esperou serenamente pelo desenrolar dos acon-
tecimentos.
— Como vamos fazer funcionar o conver-
sor? — perguntou Rhodan, olhando para Crest.
— Não vejo nenhum controle.
O robô reagiu imediatamente e respondeu
no lugar de Crest:
— O conversor tem conexão com o sistema
automático da arca. A seqüência predetermina-
da dos acontecimentos independe de nossa par-
ticipação. Acho mesmo que já nos encontramos
a caminho do passado.
Rhodan olhou maquinalmente em redor. Os
outros tiveram reação semelhante. Nada tinha
mudado, tudo parecia igual. Ainda deviam estar
sob a abóbada do Palácio Vermelho.
Ou não?
Não puderam continuar fazendo conjecturas,
69
pois algo de extraordinário aconteceu. Rhodan,
Crest, Bell e alguns dos mutantes já a conheci-
am da sala da máquina desde o primeiro enig-
ma. Mas continuavam a sentir uma certa inquie-
tação cada vez que a voz do imortal, gravada há
milhares de anos, saía do nada para lhes falar.
Era uma voz sem entonação, sem palavras
articuladas, penetrante, que ia direto ao cérebro
das pessoas. Deste modo, era capaz de falar
qualquer língua.
Esta era a nova mensagem:

“Falo a você, que seguiu minha pista até


aqui. Quando chegar, não deixe que o matem.
Ninguém o ajudará se não ajudar a si mesmo.
Só então, quando achar Kerlon e com ele o ob-
jeto que lhe mostrará o caminho da luz, poderá
voltar à sua própria época. Não espere mais de
três dias, mas antes disso a máquina não o leva-
rá de volta. Desejo-lhe sorte. Já espero há tanto
tempo...”

Subitamente, começaram a ouvir ao longe


uma série de ruídos indefinidos. Rhodan pensou
distinguir gritos e apelos, em meio ao clangor
das armas. Parecia o barulho de pessoas lutan-
do com espadas. Em algum lugar ecoou uma
explosão abafada.
70
As paredes do calabouço começaram a mo-
dificar-se. O material liso que as cobria desapa-
receu e surgiu um aposento toscamente talhado
na pedra. Onde antes havia a entrada para a
arca, surgiu uma porta de madeira grosseira,
trancada por dentro por uma pesada trava de
madeira. O teto ainda era o mesmo. O chão
também.
O conversor de tempo continuava imutável
em seu lugar.
O barulho lá fora tornou-se mais intenso.
Gritos estridentes misturavam-se a novas deto-
nações. Bem perto, ressoaram ordens de co-
mando. Ouvia-se o ruído de metal contra metal.
— Estou achando — disse Crest — que vie-
mos parar no meio de alguma guerra. De acor-
do com os registros históricos, naquela época,
quero dizer, agora, grassavam muitas guerras.
Se realmente vamos ficar por aqui algum tem-
po, devemos contar com a possibilidade de ser-
mos envolvidos nelas.
— O imortal nos avisou: não deixe que o
matem — lembrou Rhodan. — Ainda bem que
trouxemos armas.
— Devíamos ter trazido mais — lamentou-se
Bell, batendo impaciente na coronha de sua
pistola de radiação. — Os trajes de combate, o
psicoirradiador e talvez ainda o neutralizador de
71
gravidade.
— Até mesmo um antiquado revólver de
tambor serviria agora para ameaçar um exército
inteiro — disse Rhodan confiante. — Nessa
época, mal conheciam ainda as armas de fogo,
e, se as conheciam, eram somente as que são
carregadas pela boca. Nossas pistolas de radia-
ção vão servir de sobra para fazer qualquer ini-
migo que apareça desistir de nos matar. Não
devemos ter nenhuma consideração quando se
tratar de salvar nossas vidas. Não devemos ter
escrúpulos morais, pois afinal estaremos lutan-
do contra ferrônios mortos há dez mil anos. De
qualquer maneira, essa idéia me parece um bo-
cado maluca.
— Mais do que maluca! — concordou Bell
com veemência.
O barulho da luta lá fora enfraqueceu e afas-
tou-se.
— Temos três dias — Rhodan tornava-se
objetivo. — Não sei se a hora em nossos reló-
gios ainda vale, mas são cinco horas da tarde,
de acordo com o tempo da Terra. Temos três
dias. Não sei em que dia chegamos aqui, mas o
imortal deve ter nos dado tempo suficiente para
procurarmos e encontrarmos Kerlon. Ainda
não sei o que devo dizer ao comandante arcôni-
da. Crest, você pode me dar alguma idéia?
72
O arcônida abanou lentamente a cabeça.
— Em nossa História não há referência a
uma viagem realizada através do tempo. Kerlon
enviou seu relatório de Vênus depois de ter es-
tado em Ferrol, e não mencionou o encontro
com homens e arcônidas vindos do futuro. Por-
tanto, não lhe contamos nada a respeito, quer
dizer, não lhe contaremos.
— Vamos ver. Bell, abra a porta!
A trava de madeira pôde ser empurrada com
facilidade. A porta abria-se para fora. A fraca
luz do dia entrava através das fendas das jane-
las. Largos degraus de pedra conduziam ao an-
dar superior e terminavam em um corredor lar-
go e bem iluminado. Aparentemente pelos rai-
os do sol.
Três homens em armaduras reluzentes esta-
vam estendidos no átrio. Rhodan viu logo que
estavam mortos. De certo ocorrera ali uma luta
terrível.
— Que época desagradável — resmungou
Bell estremecendo e tirando precavidamente a
pistola de radiação do cinturão. Regulou-a com
o polegar para uma intensidade baixa. Quem
recebesse um tiro direto da arma sentiria os
efeitos de uma descarga elétrica, mas não mor-
reria.
Marshall também tinha trazido seu revólver
73
de tambor, do qual nunca se separava. Rhodan
voltou-se para Ras Tshubai.
— Ras, quero que você faça uma sondagem
no terreno. Tenha cuidado e desapareça imedi-
atamente se encontrar alguém. Verifique quem
está ocupando o Palácio Vermelho, mas, antes
de mais nada, procure saber se a frota dos três
arcônidas já pousou. Ficamos esperando aqui
até você voltar.
O teleportador africano fez que sim com a
cabeça. Prendeu sua arma no cinturão e con-
centrou-se. Os outros observavam fascinados
sua figura tornar-se difusa e desaparecer. No
mesmo segundo estaria novamente se materiali-
zando em algum nutro lugar, lá em cima, no
palácio.
A espera converteu-se em uma prova de
nervos.

***

Ras Tshubai recompôs-se depois de um pe-


queno salto.
Nunca podia ver onde ia se materializar.
Muitas vezes isso já o tinha colocado em situa-
ções perigosas, mas um segundo salto era sem-
pre a salvação para o caso.
Dirigira seu salto para a sala do trono do
74
Thort. Quando abriu os olhos, no entanto, co-
meçou imediatamente a cair. Muito abaixo de
onde estava viu as torres e as ameias de um
castelo baixo, sem semelhança alguma com o
Palácio Vermelho que conhecia. Homens com
armaduras postavam-se nas seteiras e atiravam
com armas volumosas sobre atacantes igual-
mente blindados, que procuravam tomar o cas-
telo utilizando escadas. No pátio já havia com-
bates corpo a corpo. Os agressores provavel-
mente já haviam penetrado no castelo e esta-
vam a ponto de apossar-se dele.
Não restava muito tempo a Ras, se não qui-
sesse se espatifar no solo. Desmaterializou-se
de novo e desceu no mesmo segundo, são e
salvo, em pleno campo, um pouco além do cas-
telo.
Estava numa colina e dali tinha uma boa vi-
são, sem correr perigo de ser surpreendido pe-
los bárbaros.
O castelo ficava agora a quase dois quilôme-
tros de distância. Ras viu imediatamente que es-
tava sitiado por uma força militar poderosa. O
acampamento dos sitiantes ficava em uma des-
cida, na direção oblíqua ao lugar onde se en-
contrava. As fogueiras de acampamento esta-
vam acesas e grandes animais eram assados no
espeto. Tendas altas tinham sido armadas à bei-
75
ra de um regato, escondidas por arbustos dos
olhares inimigos. Soldados com armaduras pa-
trulhavam, andando de um lado para o outro.
Ras ouviu barulho atrás de si. Virou-se rapi-
damente. A encosta suavemente ondulada era
coberta por arbustos isolados, que ofereciam
excelente esconderijo para adversários que se
aproximassem furtivamente. Não prestara aten-
ção a isso.
Eram quatro homens, que se esforçavam em
chegar ao topo o mais silenciosamente possí-
vel. Não vestiam armadura e diferençavam-se
por suas vestimentas dos dois partidos que
combatiam.
“Ah!”, pensou Ras divertido. Naquele tempo
já existiam os neutros, que sempre acabavam
ajudando o vencedor.
Os quatro homens vestiam jaquetas de couro
e calças apertadas do mesmo material. Tinham
a cabeça descoberta, mas o cabelo longo e es-
curo oferecia proteção suficiente contra o sol e
o frio. Estavam armados com lanças compridas
e espadas curtas e largas Os escudos achatados
eram presos às costas por uma cinta.
Ras olhou-os calmamente. Conservava na
mão a pistola de radiação, pois estava firme-
mente resolvido a só desaparecer em caso de
extrema necessidade. Não queria voltar para
76
Rhodan sem obter alguns resultados. Talvez
bastassem algumas frases no idioma da unifica-
ção para um entendimento.
Os quatro homens ergueram-se afinal, pois
certamente perceberam que seu jogo de es-
conde-esconde havia sido descoberto. Desconfi-
ados, conservaram as lanças prontas para ati-
rar, mas tiraram logo a mão das espadas. Em
seus olhos havia espanto pela presença do des-
conhecido estranhamente vestido, que os obser-
vava sem temor.
Ao chegarem a uma distância de uns dez
metros, Ras ergueu as duas mãos.
— Alto! — disse de modo a que o pudessem
ouvir. — Quero falar com vocês.
Os quatro ferrônios ficaram parados onde
estavam. Na certa, tinham entendido. Segura-
vam indecisos as suas lanças. Em seus olhos ha-
via uma pergunta. Não sabiam como proceder
com o desconhecido. Não pertencia nem aos
defensores nem aos atacantes do castelo. Quem
era, então?
— Quem é você? — perguntou o mais bar-
budo deles.
Ras admirou-se de entendê-lo tão bem. O di-
aleto pouco se diferençava do falado pelo
Thort. Assemelhava-se principalmente à língua
falada pelos sichas, o povo meio selvagens das
77
montanhas de Ferrol.
Estaria diante dos antepassados dos sichas?
— Sicha? — perguntou sem hesitar.
O barbudo confirmou estupefato. Abaixou
sua lança até a ponta tocar o solo. Em seu
olhar surgiu uma luz amigável.
— Você amigo? — perguntou.
Ras concordou com entusiasmo. Natural-
mente, por que não seria amigo dos sichas?
Guardou no cinturão sua pistola de radiação e
dirigiu-se aos quatro homens com as mãos es-
tendidas. Não esqueceu de se preparar para um
salto imediato, no caso dos sichas mudarem de
idéia.
Ainda hesitante, o barbudo estendeu sua
mão e retribuiu o aperto. Os três homens res-
tantes também aproveitaram a oportunidade
para demonstrar sua amizade. Não podiam dis-
farçar o interesse com que admiravam a arma
maciça no cinturão do estranho. Ras não se
ofendeu com isso.
— Moramos lá em cima nas montanhas —
disse o chefe, mostrando ao longe uma cadeia
de montanhas na linha do horizonte, esfumaça-
da pela bruma. O sol poente se aproximava de
seu topo. — Muita guerra agora. Nós mante-
mos paz.
— Quem está em guerra?
78
Não foi fácil extrair o essencial da descrição
meio confusa que obteve. Os quatro homens às
vezes misturavam os fatos, às vezes passavam a
falar um dialeto totalmente incompreensível
para Ras. Mas finalmente, acreditou ter com-
preendido a situação.
O dono do castelo era uma espécie de con-
de, que reinava sobre essa região. Seu vizinho,
também conde, disputava esse domínio. Esta já
era a terceira tentativa para tomar o castelo e
parecia estar sendo bem sucedida. Os sichas
não se interessavam muito pela luta, mas pro-
curavam obter vantagens dela. Roubavam os
mortos e atacavam os guerreiros dos dois parti-
dos que encontrassem vagando sozinhos e de-
sorientados pela região.
O barbudo confessou tudo isso abertamente
e, quando Ras lhe perguntou a causa de não o
terem atacado para roubar, sorriu matreiramen-
te e explicou:
— Você é um estranho e usa roupas estra-
nhas. Tem uma arma admirável, que não co-
nhecemos. Mas sabemos que pode disparar rai-
os. Temos medo de você e por isso você é nos-
so amigo.
“Terrivelmente simples e de bom senso”,
pensou Ras atônito. Mas então, estremeceu
como se um raio o tivesse atingido. De onde os
79
primitivos sichas conheceriam uma pistola de
radiação e sabiam que era capaz de “disparar
raios”?
A primeira vinda dos imortais, muito antes
dos arcônidas!
A lembrança desse fato ainda devia estar
bem viva. Decidiu interrogar os sichas.
— Quando foi que os últimos estranhos esti-
veram em seu mundo?
— São amigos seus? Vocês voltaram, deuses
do sol? — perguntou o barbudo, inclinando a
cabeça.
Ras pensava. Havia uma coisa que não en-
caixava de jeito nenhum. “Não se admiraram
de minha cor de pele. Bem, talvez isso já não
tenha mais significado para eles. Afinal sua pele
também não é branca e sim preto-azulada.”
— É, eles são meus amigos. Talvez voltem.
O barbudo quis dizer alguma coisa, mas foi
subitamente impedido de fazê-lo.
Nos arbustos próximos ressoou um grito es-
tridente e pelo menos uma dúzia de soldados
saiu de dentro deles. Obedeceram a uma ordem
e se lançaram sobre os cinco homens, comple-
tamente surpreendidos pelo ataque. A conversa
tinha feito com que relaxassem a vigilância.
Os soldados nada fizeram para coagir aque-
les homens aparentemente desprotegidos a se
80
renderem. Parecia que não tinham interesse em
aprisioná-los. Por alguns segundos, Ras esteve
quase resolvido a dar um salto rápido para um
lugar seguro, mas percebeu que isso seria desle-
al para com seus novos amigos. Afinal era por
culpa sua que eles se achavam naquela situa-
ção.
Arrancou a pistola de radiação do cinturão,
enquanto os sichas jogavam suas lanças contra
os inimigos. Quase ao mesmo tempo tiraram as
espadas.
Ras apertou o botão que acionava a pistola
e a apontou para o adversário mais próximo. O
soldado tinha se aproximado até cerca de uns
vinte metros e já ia arremessar sua lança contra
Ras, quando a descarga o atingiu. Seu rosto
crispou-se e ele começou a berrar, como se es-
tivesse sendo atacado por uma companhia in-
teira. Seus dedos se abriram e ele deixou cair a
arma. Atirou-se em seguida ao chão, pedindo
misericórdia.
Seus companheiros hesitaram em continuar
o ataque, mas logo chegaram à conclusão que
seu companheiro tinha sido acometido por uma
cãibra e não se perturbaram mais com aquilo.
Balançaram novamente as lanças para arre-
messá-las contra suas vítimas.
Mas, nesse meio tempo, as armas dos sichas
81
alcançaram seu alvo. Quatro dos atacantes caí-
ram ao solo, atingidos, mas os outros também
já tinham atirado. O sicha perto do chefe sol-
tou, de súbito, um grito e caiu ao chão, trespas-
sado por uma lança.
Aí Ras Tshubai perdeu finalmente a calma.
Mudou rapidamente a intensidade de sua
pistola e apontou-a com fogo permanente para
os seis ou sete soldados, que atravessavam com
as espadas desembainhadas os poucos metros
que os separavam, para lançar-se contra os ad-
versários indefesos.
O ataque parou imediatamente.
Era como se os soldados tivessem ido de en-
contro a um muro invisível e fossem rechaçados
com toda a força. Seus gritos desesperados cor-
taram o ar. Suas espadas caíram. Seus mem-
bros se crisparam e eles caíram inconscientes
ao solo.
Não estavam mortos, mas Ras tinha a certe-
za de que ficariam inconscientes no mínimo por
uma meia hora. Só o primeiro, que tinha leva-
do uma carga leve, recobrou logo o ânimo e
desceu correndo a montanha, lançando gritos
desarticulados.
Ras pôs a mão sobre o braço do sicha bar-
budo para acalmá-lo. Já estava pronto a jogar a
lança sobre o fugitivo.
82
— Deixe que se vá, meu amigo. É melhor
que se salve.
— Por quê? Ele vai buscar os outros.
— Não creio. Vai contar a seus amigos o
que lhe aconteceu e aí ninguém mais terá cora-
gem de subir nessa colina. Aqui é mais seguro
do que lá no castelo, que logo será tomado.
— Já é tempo de sumirmos daqui — disse o
barbudo — porque depois não conseguiremos
voltar às montanhas. Logo o olho do deus sub-
mergirá na terra e tudo ficará escuro.
— O olho do deus? — perguntou Ras Tshu-
bai admirado, para logo compreender que se
tratava do sol. — É, logo será noite. Descre-
vam-me o lugar onde moram, para que eu pos-
sa ir visitá-los.
— Não vem conosco?
Na voz do barbudo havia uma ponta de de-
cepção.
— Não posso ir. Meus amigos esperam por
mim. Vou voltar agora para junto deles. Mas
prometo ir visitar vocês lá nas montanhas. Des-
creva-me o caminho.
O chefe olhou para o horizonte e apontou
com o braço estendido para um pico muito
alto.
— Nossa raça vive lá, atrás da montanha tri-
angular. É um planalto. Ao lado, há um vale lar-
83
go com um riacho. Não pode errar.
“Não”, pensou Ras, “não posso mesmo.” O
sicha tinha descrito exatamente o lugar onde
mais tarde se ergueria sua capital, Sic-Horum.
— Eu vou encontrar. Espero que cheguem
bem em casa.
O sicha abriu um sorriso largo.
— Conhecemos o atalho melhor que os sol-
dados, que vêem de outras terras. Adeus, estra-
nho. E, obrigado.
Ras apertou a mão dos três guerreiros res-
tantes e guardou a pistola no cinturão. Sabia
que os selvagens ainda teriam outra surpresa e
lamentou-se por não poder ver seus rostos es-
pantados, quando ele desaparecesse no ar de
repente, diante de seus olhos.
Acenou-lhes, concentrou-se no porão do
castelo e saltou. Quando abriu os olhos, deu de
cara com o rosto assustado de Bell.

O Vice-Thort do castelo e da terra de Thorta


reconheceu que sua resistência era inútil. Os
bárbaros tinham penetrado na fortaleza e esta-
vam na iminência de dominar seus guerreiros
que ainda viviam.
Chamou o comandante dos soldados à sua
84
presença.
— Regor, reúna seus homens. Vamos nos
retirar para a abóbada que existe sob o castelo.
Lá poderemos resistir alguns dias.
— Os inimigos já conseguiram chegar ao
porão, Lesur — respondeu o soldado. — Pode-
remos matá-los. Talvez a câmara secreta nos
ofereça proteção.
O Vice-Thort fez um gesto de negativa.
— A câmara secreta é um lugar sagrado e
nenhum mortal deve jamais ver seu interior,
sem morrer imediatamente. Os outros lugares
do porão serão suficientes. Mandei armazenar
víveres lá. As mulheres já estão lá também. Or-
dene a seus soldados que iniciem imediatamen-
te a retirada. Aqui em cima estaremos perdidos.
Regor saudou-o e dirigiu-se apressadamente
para onde estava a sua gente.
Lesur, no entanto, um dos muitos thorts de
Ferrol, correu no mesmo instante em direção às
largas escadas de pedra talhadas na rocha, que
levavam ao porão. No pátio do castelo, suas
tropas lutavam contra o inimigo invasor. Não, a
guerra estava perdida, os bárbaros venciam. Era
o fim da civilização. De agora em diante só ha-
veria ação de bárbaros e escravidão.
A porta para a cavidade do porão fora des-
troçada. Ali deveriam ter ocorrido lutas encarni-
85
çadas, pois a madeira fora destruída por pode-
rosos golpes de espada e de maça.
Lesur estremeceu por um momento. O baru-
lho da luta lá em cima nas ameias do castelo
tornou-se mais forte. Provavelmente os bárba-
ros haviam conseguido escalar a muralha. Difi-
cilmente Regor conseguiria colocar seus solda-
dos e ele mesmo em segurança a tempo...
Desceu rapidamente os degraus, atravessou
longos corredores e passou pelo primeiro posto
de guarda. Até ali os inimigos ainda não haviam
penetrado. E ele também quase não o conse-
guia. As estreitas fendas das janelas bem junto
ao teto eram muito apertadas para deixar pas-
sar um guerreiro com armadura.
As mulheres e os velhos viram quando Lesur
entrou no vasto salão pela pesada porta de ma-
deira. À esquerda e à direita ao lado da entrada
havia soldados. As crianças pararam de brincar.
O barulho da luta chegava abafado até eles.
Ninguém ali sabia como andavam as coisas. O
Vice-Thort resolveu não lhes esconder a verda-
de.
Queria esperar, no entanto, a chegada de
Regor e de seus soldados, para então fecharem
a porta. Enquanto durassem as provisões, esta-
riam em segurança naquele lugar.
Um soldado atirou-se em direção à porta,
86
viu Lesur e quase tropeçou nele. O Vice-Thort
verificou que todo o corpo do homem tremia.
— O que aconteceu? — indagou, irritado. —
Não tenha medo de me dizer a verdade. Não
pode haver notícias piores do que as já conheci-
das.
O homem ergueu a cabeça. As lágrimas sal-
taram-lhe dos olhos e escorreram pelas faces.
— Oh, senhor! Os deuses...
— Sim, se ao menos eles nos ajudassem! —
zombou Lesur, afastando-se. Não tinha agora
tempo de se preocupar com as esperanças reli-
giosas de seus soldados. Os deuses o tinham
abandonado, portanto deveriam agora ficar lá
no lugar a que pertenciam.
— Eles vão nos ajudar! — exclamou o solda-
do, erguendo-se. — Ouviram nossas preces e
vão nos ajudar. Senão, por que teriam vindo?
Lesur enrijeceu o corpo.
— Vieram? — berrou. — Quem veio?
— Os deuses! Eles já estão no castelo. Aca-
bei de encontrar um deles, quando eu rezava di-
ante da câmara secreta. A porta estava aberta...
— O que está dizendo? — gritou Lesur, hor-
rorizado. — A porta está aberta? Você viu isso
com os próprios olhos?
— Sim, senhor. Sei que esta porta está fe-
chada desde tempos imemoriais e que não de-
87
veria ser aberta. Dizem que os deuses vivem
por detrás delas e só aparecem nos momentos
de grande perigo. Agora que foi aberta, os deu-
ses vieram nos ajudar.
Lesur ficou como que paralisado alguns se-
gundos, mas logo agarrou o soldado pelo braço
e ordenou-lhe:
— Venha comigo! Vamos até a porta dos
deuses.

***

Bell quase morreu de susto ao ver Ras Tshu-


bai materializar-se bem diante de seus olhos.
Soltou uma praga e recuou.
O africano reprimiu um sorriso.
Em seguida, relatou aos espectadores impa-
cientes tudo o que conseguira perceber da situa-
ção. Rhodan assumiu um ar pensativo.
— Não viemos ao passado para nos meter
nos acontecimentos da política interna dos an-
cestrais dos ferrônios. Mas tenho de admitir que
o thort desse castelo me é mais simpático que
os bárbaros invasores. Estamos diante da per-
gunta: o que faremos? Pelo que Ras descobriu,
os arcônidas ainda não chegaram.
Desta vez foi Anne Sloane quem fez uma
proposta, provando com isso que as mulheres
88
também sabem pensar de maneira lógica.
— Se os bárbaros tomarem este castelo, es-
taremos correndo um grande perigo. Não acre-
dito que esse povo selvagem nos poupe, já que
destroem tudo em seu caminho. Talvez seja me-
lhor assegurar a gratidão dos donos do castelo.
Assim poderíamos esperar com calma a chega-
da dos arcônidas.
Ras concordou ansiosamente.
— É um pensamento sensato. Ainda há ou-
tra possibilidade. Esperarmos junto aos sichas.
— O caminho até eles é muito difícil, sem
meios de transporte — contraveio Rhodan. —
Acho que Anne Sloane tem razão.
O semblante de Bell iluminou-se.
— Quer dizer então que defenderemos o
castelo? Ótimo! Misturamo-nos por entre os
combatentes, sem chamar a atenção!
Rhodan riu.
— Sem chamarmos a atenção? Vai ser qua-
se impossível. Creio que causaremos alguma
sensação.
Crest quis dizer alguma coisa, mas de repen-
te calou-se e pôs-se à escuta.
Do lado de fora chegavam ruídos. A porta
continuava aberta e podiam ouvir nitidamente
passos se aproximando cautelosos. Dois ho-
mens conversavam.
89
Rhodan fez um sinal para os mutantes. Com
as armas prontas para atirar, os três homens e
Anne Sloane se esgueiraram para o fundo do
salão. Crest, o robô e Rhodan permaneceram
parados diante da porta. O momento emocio-
nante do primeiro contato aguardava-os.
Quando Lesur viu a porta aberta, verificou
que o seu soldado lhe dissera a verdade. Uma
veneração inexplicável tomou conta dele, e ar-
rependeu-se do comentário desdenhoso que
acabara de fazer sobre os deuses. Será que o
perdoariam? Resolveu mostrar-se especialmen-
te humilde.
Avistou três homens parados diante de um
bloco cúbico, no meio de um aposento vazio.
Sua aparição imponente fez Lesur cair de joe-
lhos. Seu guerreiro já se atirara sobre o chão de
pedra.
Rhodan não compreendeu imediatamente.
Da parede veio a voz de John Marshall, que po-
dia ler os pensamentos dos ferrônios.
— Ele pensa que somos deuses, que viemos
para ajudá-los contra os bárbaros. No momento
arquiteta de que modo deverá se dirigir a nós.
Fala um idioma compreensível, segundo me pa-
rece. É Lesur, o Thort.
Rhodan compreendeu imediatamente a situ-
ação.
90
Deu um passo à frente e parou no limiar da
porta. Antes que Lesur pudesse dizer qualquer
coisa, ergueu os dois braços na direção dos fer-
rônios e falou-lhes no idioma da unificação:
— Sim, adivinhaste. Viemos para ajudar-te.
Não deixaremos que os adversários tomem o
castelo.
Lesur compreendeu as palavras, apesar de
parecerem mudadas e declinadas de modo dife-
rente. O que não era de espantar. Acaso não
falariam os deuses de modo diferente dos mor-
tais? O principal é que se podia compreendê-
los.
Ergueu-se, conservando, porém, uma postu-
ra inclinada.
— Recebei meus agradecimentos, ó deuses!
Mas o inimigo já penetrou no castelo. Muitos
de meus guerreiros foram mortos e agora são
as mulheres e as crianças que estão em perigo.
A menção de mulheres e crianças talvez
houvesse apressado as ações de Rhodan, além
do que pretendera. Voltou-se para os seus.
— Bell, você se encarrega da limpeza da
parte de dentro do castelo, juntamente com
Crest, Haggard e o robô. Eu me ocuparei da
defesa contra os inimigos que estão lá fora.
Marten, Ras, Marshall e Anne virão comigo. A
estratégia é clara. Bell, você combaterá com o
91
seu grupo da maneira costumeira: pistola de
raios em intensidade baixa. Eu e os mutantes
procederemos com relação aos bárbaros de
modo a intensificar um pouco mais a sua fé nos
deuses. Mal é que não fará.
Lesur e seu guerreiro levaram Bell e seus
três acompanhantes na direção do grande sa-
lão, diante do qual já se combatia. Rhodan, no
entanto, subiu com os seus mutantes pela esca-
da de pedra, a fim de ter da plataforma de ob-
servação uma visão geral da situação. No pátio
encontraram os primeiros bárbaros. O resto dos
defensores tinha fugido pelos corredores que le-
vavam ao porão. Os conquistadores já se senti-
am como vencedores.
E agora, de repente, surgiam estes estranhos
diante deles.
Gagat, conde dos bárbaros, de espada na
mão e cercado por seus principais auxiliares,
encarou os novos adversários.
Não raciocinou nem por um segundo e nem
podia compreender o que aqueles estranhos
queriam dele. Com a rapidez de um raio, imagi-
nou que Lesur teria arranjado aliados em terras
distantes, e deu ordem a seus soldados de matá-
los.
Rhodan segurou a pistola na mão.
O telepata sussurrou rapidamente:
92
— Eles nos vêem como inimigos. O sujeito
com a capa vermelha é o chefe, um tal de Ga-
gat. Acabou de dar a ordem para nos matarem.
— Ótimo — assentiu Rhodan. — Ao menos
assim sabemos em que pé estamos. Portanto,
mãos à obra! Cada um utilize o seu dom. Eu me
contentarei com a minha pistola de raios.
Anne, talvez você pudesse mandar esse tal de
Gagat um pouquinho para o ar!
Nos primeiros minutos, entretanto, Anne
não viu possibilidade alguma de fazer o que ele
queria, pois tinha de concentrar toda a sua
atenção em desviar com seus poderes telecinéti-
cos as lanças arremessadas sobre eles. Conse-
guia fazer isso com espantosa habilidade e incrí-
vel presença de espírito. O resultado de seus es-
forços foi um êxito completo.
O subchefe dos bárbaros, ao lado de Gagat,
ergueu sua lança e arremessou-a contra Rho-
dan, a quem reconhecia como a pessoa mais
importante. O arremesso foi bem calculado e
teria sem dúvida atingido Rhodan, se não tives-
se de repente se chocado no ar contra um obs-
táculo invisível. Por um segundo a lança ficou lá
imóvel e, em seguida, descrevendo um arco,
voltou para o seu dono, aliás, com bastante ve-
locidade. O bárbaro arregalou os olhos diante
de tal prodígio e não teve nem forças para des-
93
viar-se de sua própria lança, a qual, depois de
um vôo sem rumo, descrevendo arabescos no
ar, desceu quase na vertical e cravou seu pé di-
reito no duro chão de argila do pátio do castelo.
Soltou um grito terrível, que igualmente ex-
pressava o seu terror. Gagat, a seu lado, não se
mexeu. Estava inteiramente ocupado em obser-
var as outras lanças de seus soldados descreven-
do as mesmas rotas. Algumas subiam tão alto
que desapareciam da vista. Outras, por seu tur-
no, mudavam simplesmente de direção e rico-
cheteavam de encontro à parede de pedra com
tanta força que se partiam ao meio. Nenhuma,
porém, alcançou seu alvo.
Enquanto isso, Rhodan dirigia sua pistola de
raios para os bárbaros estupefatos. Regulou-a
para uma descarga eletrônica fraca. Quando
Gagat, furioso, agarrou sua espada, a fim de
dar um bom exemplo a seus soldados, surgiu
repentinamente a figura negra do africano ao
seu lado, tomando-lhe calmamente a espada da
mão e desaparecendo sem deixar vestígio.
O bárbaro quedou-se, estarrecido, como que
atingido por um raio. Foi então que a corrente
elétrica atravessou-o. Aquela forma de energia
era-lhe inteiramente desconhecida. Os rostos
pálidos de terror de seus guerreiros demonstra-
vam-lhe que não era o único a sofrer ação da-
94
quele fenômeno.
Quem seriam aqueles estranhos?
Antes que pudesse chegar a alguma conclu-
são, um deles falou. Podia até compreender o
que ele dizia.
— Gagat, volte para a sua terra, senão os
deuses o matarão, juntamente com os seus ho-
mens. Como evidência de que falamos sério,
lhes daremos um último aviso.
Anne Sloane fez um aceno afirmativo quan-
do Rhodan olhou para ela. Concentrou-se em
Gagat e então aconteceu uma coisa terrível.
O chefe dos bárbaros sentiu de repente o
formigamento em seus membros desaparecer,
mas ao mesmo tempo, o chão sumiu debaixo
de seus pés. Ficou suspenso no ar, cada vez
mais alto, até alcançar as mais altas ameias do
castelo. De olhos arregalados e pernas mole-
mente penduradas, continuou a subir como um
balão de gás. Por algum tempo, ficou pairando
sobre os guerreiros de ambos os lados, a trava-
rem uma batalha de vida ou de morte pela pos-
se da plataforma do castelo. No início ninguém
deu por ele, mas depois alguém soltou um gri-
to.
Todos os olhares dirigiram-se para cima, e
os braços já erguidos, de armas prontas para o
ataque, abaixaram-se sem forças. Gagat, o bár-
95
baro temido e sem misericórdia, era capaz de
voar.
Foi um rude golpe para os soldados de Le-
sur, mas durou apenas alguns segundos. Em se-
guida, a reação dos bárbaros mostrou-lhes que
não era absolutamente normal que Gagat voas-
se.
O próprio Gagat se denunciou. Ao flutuar
tão desordenadamente por perto das cabeças
de seus soldados, começou a berrar:
— Os deuses estão do lado de Lesur! Ergue-
ram-me até aqui e vão me deixar cair lá embai-
xo. Desistam da luta, nós perdemos! Nada po-
deremos fazer contra os deuses.
Lá embaixo no pátio do castelo, Marshall
não ouviu bem as palavras de Gagat. Voltou-se
para Ralf Marten, que possuía o dom da exo-
personificação.
— Ralf, entre em contato com Gagat. O que
está acontecendo com ele?
O mestiço de japonês, alto e de cabelos es-
curos, concordou. Afastou-se um pouco e en-
costou-se à murada do castelo. Ali poderia arris-
car-se a deixar seu corpo por alguns momentos.
Rhodan se incumbiria de não permitir que al-
guém se aproximasse, enquanto estivesse inde-
feso.
Um segundo mais tarde estava vendo atra-
96
vés dos olhos de Gagat. Divisou os rostos ater-
rorizados dos bárbaros e as feições novamente
esperançosas dos homens de Lesur. E ouviu
também o conde bárbaro gritar outra vez:
— Fujam enquanto é tempo. Talvez a ira
dos deuses me poupe se obedecermos. Saiam
do castelo de Lesur o mais depressa possível!
Ralf Marten voltou a seu corpo, pois tinha
ouvido o suficiente. Rhodan olhou-o na expec-
tativa.
— Eu acho que já chega — disse Marten,
sorrindo.
Os bárbaros começaram a fugir precipitada-
mente.
Não prestavam atenção à descarga dos posi-
trons. Arrancaram suas espadas da bainha e
precipitaram-se sobre a muralha do castelo,
onde ainda estavam as escadas com as quais
haviam escalado o obstáculo. Uns atrapalhavam
os outros e mais de uma escada foi ao chão,
cheia de gente.
Mais difícil foi a fuga lá em cima na platafor-
ma. Os enraivecidos ferrônios de Lesur queriam
evidentemente se vingar dos bárbaros subita-
mente enfraquecidos. Procuravam impedir sua
fuga. Gagat, que continuava suspenso sobre as
cabeças dos combatentes, agitava desesperada-
mente os braços. Ao mesmo tempo, aproxi-
97
mava-se cada vez mais da beirada das ameias.
Alcançou-a e ficou suspenso sobre o vazio.
O chão estava muito abaixo dele. Se des-
pencasse agora, estaria perdido.
Mas Anne não tinha a intenção de matá-lo.
Deu a ele a impressão de um vôo picado e co-
locou-o mansamente a pouca distância do cas-
telo. Ali ficou ele, sozinho e abandonado, ob-
servando a fuga desenfreada de seus guerreiros,
ainda meio entorpecido da terrível experiência.
Pouco a pouco, os sobreviventes foram se
agrupando em volta de seu chefe. Ainda não
compreendiam como subitamente Gagat fora
capaz de voar, mas o fato era que se os deuses,
sobretudo inimigos, se tinham metido no jogo,
só lhes restava contar com acontecimentos ain-
da mais incríveis.
Ainda faltavam alguns soldados, que se en-
contravam no interior do castelo. Teriam sido
vítimas do ódio dos homens de Lesur ou estari-
am apenas perdidos?
O castelo não lhes dava uma resposta.
Rhodan deixou que todos os bárbaros fugis-
sem e esperou que os primeiros ferrônios de
Lesur aparecessem. Como era de se esperar,
não tinha havido dificuldades. As palavras de
Gagat não tinha deixado de fazer efeito. Os
deuses haviam intervindo e lhes dado a vitória.
98
Deviam agradecer-lhes por isso.
Portanto, não era de espantar que Rhodan e
os quatro mutantes logo se vissem cercados por
uma multidão de guerreiros ajoelhados, de ca-
beças encostadas na poeira do chão, a demons-
trarem sua veneração.
“Que pena”, pensou Rhodan, “que Bell não
possa ver isto.”

***

Enquanto isso, Bell estava ocupado em repe-


lir os atacantes bárbaros com os raios positrôni-
cos. No entanto, essa tarefa não era tão sim-
ples quanto Rhodan talvez houvesse imaginado.
Lesur e seu guerreiro se precipitaram para a
frente, mas detiveram-se repentinamente ao
chegarem ao corredor, em cuja extremidade fi-
cava a entrada para o último refúgio. Há cinco
minutos atrás, o local estava tranqüilo! Agora,
porém, o inferno estava solto por ali.
Regor, o comandante dos ferrônios, tinha
enviado uma parte de seus soldados para o po-
rão, a fim de preparar uma retirada organizada.
Ainda na sala do trono, deram de encontro
com as tropas bárbaras invasoras que já tinha
começado o saque. Seguiu-se uma intensa luta,
na qual os moradores do castelo foram sendo
99
forçados a recuar cada vez mais.
Desesperados, só procuravam impedir que o
último refúgio, o salão para onde tinham sido
levadas as mulheres e as crianças, fosse tomado
pelos bárbaros.
Bell compreendeu a situação.
— Fogo intenso! — ordenou a Crest e a
Haggard. Ele mesmo ergueu sua arma em dire-
ção aos guerreiros e apertou o botão. Era im-
possível distinguir amigos ou inimigos, de modo
que tanto os bárbaros quanto os ferrônios fo-
ram atingidos pela descarga elétrica. Bell havia
regulado propositadamente na intensidade mais
alta. Desse modo, alguns dos soldados vestidos
com armadura não demoraram a levar choques
elétricos bastante fortes.
Gritos desesperados ressoaram pelos muros
do porão.
Lesur gritou algumas palavras de esclareci-
mento. Na verdade, seus homens não podiam
compreender que a ira dos deuses também os
atingisse, mas obedientemente se afastaram do
inimigo e recuaram para o refúgio. Alguns, ali-
ás, só o conseguiram quando passaram a andar
de gatinhas. Bell não pensou em regular o
fogo.
Os bárbaros voltaram a si de seu espanto.
Estranhos haviam surgido. Nas mãos tinham
100
objetos de formas esquisitas. E haviam experi-
mentado as descargas elétricas desconhecidas,
desagradáveis, mas que não causavam dor insu-
portável.
O próprio Bogar deu a ordem de ataque aos
estranhos. Com a espada erguida, lançou-se so-
bre Bell.
Os homens podem construir robôs, estes,
porém, continuarão sempre como obras huma-
nas. Agem como lhes é ordenado, não conhe-
cem pensamento independente, pois não são
inteligentes.
Os robôs dos arcônidas são diferentes.
Dispõem de um cérebro capaz de pensamento
autônomo. Não precisam de instruções para re-
conhecer o perigo. Agem com independência,
porque são capazes de ter pensamento inde-
pendente.
Robby estava ao lado de Bell. Viu que estava
sendo efetuado um visível ataque contra ele e
agiu de acordo com as circunstâncias.
Bogar teve um momento de hesitação, ao
ver o estranho ser caminhando em sua direção.
No fundo, aquele estranho era o único que não
parecia tão estranho assim, pois também usava
uma armadura de metal. Como os bárbaros po-
deriam saber que Robby era um ser metálico?
“Um verdadeiro adversário”, pensou Bogar.
101
Só estranhava que não usasse arma alguma.
Teria intenção de lutar de mãos nuas contra
uma espada?
Bogar não se preocupou mais com Bell.
Concentrou toda sua atenção no robô, que se
encaminhava lentamente para ele, com os bra-
ços estendidos. Bell observava a cena com o
canto dos olhos. Tinha de continuar prestando
atenção para que os raios permanecessem diri-
gidos sobre os bárbaros.
Bogar, inteiramente coberto pela armadura,
ergueu a espada com as duas mãos e desceu-a
sobre a cabeça de Robby. A força do embate
teria rachado qualquer elmo. Mesmo um escudo
não teria sido de grande utilidade.
Bell não sabia como poderia absorver tantas
impressões ao mesmo tempo. Primeiro a espa-
da do bárbaro se transformou num pedaço de
ferro retorcido. Em seguida, foram os dois pul-
sos de Bogar que se quebraram. Com um grito,
deixou cair as armas, agora inúteis, e caiu de jo-
elhos. Lágrimas de dor corriam-lhe pelas faces.
Não perdia, porém, de vista o maravilhoso
guerreiro que se mostrara tão invulnerável.
Robby não prestou mais atenção em Bogar.
Nem parecia ter sentido o golpe. Com passos
quase mecânicos foi em frente, passando pelo
meio do feixe de raios das pistolas positrônicas,
102
contra os quais tinha uma proteção automática.
Com um movimento súbito, pegou a espada le-
vantada do bárbaro mais próximo e bateu-lhe
nas costas com o lado chato. O soldado camba-
leou, conseguiu reerguer-se e saiu correndo,
soltando um urro assustador.
Dois bárbaros se decidiram. Do seu ponto
de vista, a escolha não era difícil. Ou morreriam
sem poder reagir, ou tentariam chegar guerre-
ando a algum lugar seguro. Lançaram-se com
toda a sua força contra o robô. Bell teve que
admitir, surpreso, que o robô era um extraordi-
nário esgrimista, e para isso a blindagem de ar-
conita revelava-se uma proteção eficiente. Os
golpes de espada ricocheteavam, sem fazer
efeito algum. Por outro lado, dois golpes de
Robby arrebentaram as armaduras dos bárba-
ros. Saíram faíscas quando as finas paredes de
metal se despedaçaram. Os dois bárbaros pro-
curaram salvar-se pela fuga.
Isso foi suficiente para os demais.
— Os deuses estão do nosso lado! — gritou-
lhes Lesur, que assim também esclarecia a situ-
ação para os seus próprios homens, prontos a
sair em disparada.
Bell suspendeu o fogo. Bogar foi aprisiona-
do. Por precaução, Robby pôs a espada danifi-
cada numa saliência do muro e disse para Bell:
103
— Um modo muito interessante de comba-
ter. É preciso uma certa habilidade para isso.
Crest se meteu na conversa.
— Você também tem suas partes vulnerá-
veis, Robby! Se algum golpe de espada tivesse
por acaso atingido alguma delas, estaria liquida-
do.
— Ele tinha de correr o risco — defendeu-o
Bell, que cada vez simpatizava mais com o
robô.
Enquanto isso, Lesur chegava à entrada do
salão. Seu aviso de que os deuses haviam expul-
sado os inimigos e libertado os ferrônios provo-
cou um júbilo indescritível. As mulheres e os jo-
vens, ainda quase meninos, apinharam-se no
corredor e caíram de joelhos diante de Bell e do
robô. Crest e Haggar se mantiveram na reta-
guarda. Observavam o quadro tão fora do co-
mum com um misto de emoções. No centro de
uma multidão em adoração, estavam Bell e
Robby, um homem e um ser de metal e posi-
trons. Em algum lugar, Bogar estava gemendo.
No andar de cima ainda se ouvia o tinir das ar-
mas. Os ferrônios expulsavam os inimigos em
fuga.
Lesur saiu do salão. Ao chegar diante de
Bell, também se jogou ao solo. Ergueu os bra-
ços, numa súplica.
104
— Obrigado, ó deuses! Sabemos que sem-
pre aparecem nos momentos de grande perigo.
O inimigo foi derrotado. E agora, digam qual o
seu preço. Estamos prontos a pagá-lo.
Bell raciocinou febrilmente. O que Rhodan
teria respondido em seu lugar? Por que razão
estavam ali?
Havia sido pela nave espacial da expedição
arcônida de dez mil anos atrás.
— Nobre Lesur — começou com precaução
— não desejamos agradecimentos. Mas é nossa
intenção passarmos alguns dias entre vocês.
Dê-nos um aposento, onde possamos ficar. Ire-
mos de novo embora, assim que saudarmos
nossos amigos que em breve descerão do céu.
— Amigos do céu! — balbuciou Lesur, com
veneração. — De volta à câmara fechada?
— É — assentiu Bell, olhando por sobre as
cabeças abaixadas a seus pés.
E soltou um suspiro profundo. “Que pena”,
pensou, “que Rhodan não possa ver isto.”

Passaram-se dois dias.


Hóspedes do Vice-Thort dos ferrônios, os
membros da expedição através do tempo conti-
nuavam a vagar pelo castelo reconquistado.
105
Servidores diligentes lhes traziam tudo de que
precisavam. Enquanto isso, Ras Tshubai fecha-
ra por dentro a câmara onde estava o conver-
sor de tempo, de modo a que ninguém pudesse
ali penetrar. Não queriam perder, por obra de
leviandade, sua única possibilidade de voltar ao
presente.
Através de uma conversa com Lesur, havia
sido confirmado que os arcônidas não teriam
sido os primeiros astronautas a pousarem em
Ferrol.
— Há muitos sóis — informou o Vice-Thort,
todo mistério — vieram dos céus os primeiros
deuses. Nossos antepassados os ajudaram. Em
troca, receberam maravilhosos presentes que
ainda hoje podem ser vistos por toda a região.
Lá embaixo, no porão do castelo, há uma des-
sas gaiolas. Ninguém deve se aproximar delas,
pois seu significado se perdeu. Já houve muitos
valentes que entraram nela e desapareceram di-
ante de nossos olhos, sem nunca mais volta-
rem.
— Nunca mais? — redargüiu Rhodan, er-
guendo as sobrancelhas. Podia entender bem o
antecessor do futuro Thort, mas ainda não
tudo. Era evidente que, nessa época, os ferrô-
nios ainda não tinham conhecimento dos hiper-
transmissores da matéria. Passariam milhares
106
de anos antes que obtivessem os conhecimen-
tos necessários para isso.
— Houve um que voltou — retorquiu Lesur.
— Uma história estranha. Era um sábio. Entrou
na gaiola, lá embaixo no porão, moveu a ala-
vanca e desapareceu. Dois anos depois é que
ressurgiu no castelo, com as roupas rasgadas e
meio morto de fome. Afirmou ter vagado por
boa parte do planeta, não quis revelar, no en-
tanto, como fora parar tão longe.
Rhodan teve um aceno afirmativo.
Ainda levaria muito tempo até que esses sel-
vagens primitivos pudessem compreender o
mecanismo da teleportação. Era cedo demais
para isso. E sem dúvida não competia a ele es-
clarecer os ferrônios. Entretanto, o hipertrans-
missor o interessava.
— Posso ver o aparelho?
— A gaiola? — Lesur estremeceu. Parecia
ter medo de que os deuses, portadores da felici-
dade, pudessem desaparecer dali sem deixar
vestígios. — Se assim ordena, senhor...
— Conhecemos esses aparelhos — sosse-
gou-o Rhodan. — Caso desapareça, voltarei de-
pois.
Rhodan aventurou-se a dar o salto ao meio-
dia do segundo dia. Ao materializar-se era noite
escura. O hipertransmissor realmente o levara
107
através de meio planeta. Pelo que pôde perce-
ber, o receptor-transmissor ficava em uma es-
pécie de templo, sobre o pico de uma monta-
nha, solitário e esquecido. Um falso santuário
de gerações passadas.
Não, não fora esquecido!
Mal Rhodan acabara de se materializar,
sombras fugidias moveram-se por entre as pe-
dras do templo em ruínas. Alguns dos vultos
lançaram-se, silenciosos, sobre ele. Em suas
mãos pôde ver o brilho das espadas. Sob a luz
das estrelas, Rhodan reconheceu hábitos esvoa-
çantes.
Sacerdotes!
Não hesitou um segundo. Com uma pressão
na alavanca, acionou o mecanismo de transmis-
são e apareceu novamente diante do espantado
Lesur, no porão do palácio.
Voltou em silêncio para o aposento que ser-
via ao mesmo tempo de sala de estar e de dor-
mitório para os membros da expedição através
do tempo. Suas suposições se tinham confirma-
do. Ao naufragarem em Ferrol, os imortais ha-
viam deixado para seus habitantes um espetacu-
lar sistema de transporte, mas era um presente
de significado ainda obscuro. Ali no castelo o
hiper-transmissor não tinha sentido algum, en-
quanto do outro lado do planeta era vigiado
108
com veneração por sacerdotes desconfiados.
Não havia dúvida, todos os que se tinham
aventurado a ousar o salto para o desconhecido
haviam sido mortos por eles, com exceção do
sábio.
Na manhã do terceiro dia pousaram as três
naves dos arcônidas.

***

A semelhança do comandante Kerlon com


Crest era apenas exterior.
A raça dos arcônidas ainda não mostrava si-
nais de degenerescência, pois ainda se encon-
trava no auge de seu desenvolvimento. O Gran-
de Império florescia e aumentava a cada expe-
dição bem sucedida.
E Kerlon sabia estar perseguindo um segre-
do aparentemente impossível: a imortalidade, a
vida eterna!
Em algum lugar, nessa parte da galáxia,
existia um planeta habitado por uma raça que
descobrira o segredo da renovação celular. Os
indícios haviam sido obtidos nas diversas esca-
las feitas. Todas as pistas conduziam a esse sis-
tema. E igualmente, a distância de vinte e sete
anos-luz, a um outro, de uma estrela amarela e
nove planetas, um dos quais se distinguia por
109
seus três anéis.
Kerlon pousou inicialmente num continente
desabitado do oitavo planeta desse primeiro sis-
tema, que possuía quarenta e três planetas.
Essa escolha fora involuntária e inteiramente
casual. O planalto rochoso não apresentava si-
nal algum de vida. Apenas a alta pirâmide de
base quadrangular de metal desconhecido, de-
nunciava a presença anterior de seres inteligen-
tes.
Há mil anos? Há dez mil anos?
A pirâmide era oca e a entrada podia ser
aberta com facilidade. Sem hesitar, corajoso e
audaz. Kerlon entrou com alguns cientistas.
Não sabia o que o esperava, nem qual era o seu
destino. Agia por obra do instinto.
Muito abaixo da superfície, encontrou um
pequeno aposento pentagonal. No centro havia
uma mesa, tendo em cima um objeto.
As paredes emitiam com regularidade uma
luz incandescente, refletida pelo objeto, levando
a supor que possuísse luz própria.
Um tubo de metal, talvez um cilindro oco.
Os companheiros de Kerlon observaram o
comandante adiantar-se, de mão estendida para
o objeto. Pareceu-lhes que a paciência dos des-
conhecidos se esgotaria agora. Não teriam sido
vítimas de uma cilada bem preparada?
110
Nada aconteceu, entretanto, quando Kerlon
ergueu o tubo de metal e levou-o consigo. Era
leve e fácil de carregar. Talvez tivesse uns trinta
centímetros de comprimento e no máximo uns
dez centímetros de diâmetro. Uma cápsula ve-
dava uma das extremidades, desafiando todos
os esforços para retirá-la.
Kerlon voltou impaciente para sua nave. A
contragosto, entregou o tubo a seus cientistas,
verificando com alguma satisfação que também
eles nada conseguiram.
Voltou mais uma vez à pirâmide, sem en-
contrar, todavia, mais nada de importante. A
não ser uma estranha gaiola que seus cientistas
descobriram num aposento lateral.
Mais uma vez, Kerlon não hesitou em arris-
car sua vida pelo bem de seu povo. Conhecia a
função daquela alavanca no interior da gaiola.
Entrou e puxou-a para baixo.
Seus companheiros tiveram então a certeza
de que os desconhecidos agora atacariam, e
desta vez Kerlon não escaparia de sua ira. De-
saparecendo o comandante diante de seus
olhos, dissiparam-se as últimas dúvidas. Tinham
perdido seu chefe.
Kerlon, no entanto, não ficou muito tempo
desaparecido. Dez segundos mais tarde já esta-
va de volta, um pouco pálido e assustado, mas,
111
para surpresa e alegria dos arcônidas, sem um
arranhão sequer. Atacado de perguntas, Kerlon
apenas balançou distraidamente a cabeça,
olhou para o sol quase a pino lá fora e deixou-
se cair sentado sobre uma pedra perto da entra-
da da pirâmide. Percebeu não mais ser possível
deixar de falar.
— Meio-dia agora — disse lentamente. —
Por alguns segundos, do outro lado do planeta,
em algum lugar, estive sob a noite mais escura.
Aquilo lá dentro da pirâmide é um hipertrans-
missor de matéria. Conhecê-mo-lo teoricamen-
te, mas nunca conseguimos construir um.
Como é possível existir um aparelho assim num
planeta habitado apenas por selvagens primiti-
vos?
Ninguém lhe pôde responder.
Claro que naquele mundo não havia alguém
de inteligência capaz de compreender o que re-
presentava esse hipertransmissor. Mesmo os ar-
cônidas. Estava em perigo o nascente império
galático. Subitamente surgira um adversário a
ser levado a sério. Só que inteiramente desco-
nhecido.
Urgia descobrir, não fosse mediante o tubo,
talvez através do hipertransmissor: um dos dois
os levaria a seus construtores. Cumpria, portan-
to, experimentar todos os hipertransmissores
112
daquele planeta.
Tarefa difícil, pois se uma parte de seus ha-
bitantes era assustadiça e respeitosa, a outra
agia com manifesta hostilidade. Ainda mais que
os arcônidas consideravam indigno deles lutar
contra raças inferiores, havendo mesmo uma
proibição a respeito. Assim, não restava mar-
gem à organização eficaz de um sistema defen-
sivo.
Era uma questão de sorte. Para uns eram
deuses os viajantes espaciais que ali desciam,
para outros, inimigos encarniçados que deveri-
am ser combatidos. Portanto, restava era pro-
curar os que ainda davam valor às tradições reli-
giosas.
Kerlon partiu com sua frota e, depois de
muita procura, pousou exatamente ao lado de
um castelo construído no topo de uma pequena
colina. Os vastos campos até as montanhas dis-
tantes indicavam a presença de uma administra-
ção planificada.
Apesar de certa esta conclusão de Kerlon,
não deixava, no entanto, de ser falsa.
Não poderia adivinhar que nos bosques
próximos se escondiam bárbaros, à espera ape-
nas de uma oportunidade de se vingarem da
derrota. Kerlon ignorava também que nesse
meio tempo Gagat já se recuperara do choque
113
de ter lutado contra deuses. Aliás, nesse meio
tempo chegara à conclusão de que isso eles não
eram. O mundo era grande e nele viviam mági-
cos poderosos. Não bastava a força para vencê-
los num ataque de surpresa. Também eram ne-
cessárias a astúcia e a inteligência.
Sendo assim, reuniu ao seu redor os sobrevi-
ventes do ataque malogrado e juntos puseram-
se à espreita. Chegaria um momento que esses
forasteiros teriam de deixar o castelo e então
seriam liquidados.
Mas qual não foi a surpresa dos bárbaros
quando, no terceiro dia, de madrugada, três gi-
gantescas esferas prateadas surgiram no céu
matutino! Muito maiores que o sol, o olho do
deus. E se aproximavam cada vez mais. Pousa-
ram bem longe do bosque.
Gagat teve de usar toda a sua força de per-
suasão e autoridade para impedir a fuga imedia-
ta de seus guerreiros, que não primavam pela
coragem. Contudo, não podiam ser mesmo le-
vados a mal os soldados derrotados. No castelo
havia deuses e agora outros mais chegavam do
céu como reforço. Pareciam impossíveis de
combater.
Mas Gagat era de outra opinião. E os acon-
tecimentos que se seguiram lhe dariam razão,
ou ao menos assim se afigurava no princípio.
114
Quando Rhodan e sua gente foram avisados
da chegada das três naves, logo atinaram que a
pista dos imortais era infalível.
Os acontecimentos haviam sido fixados em
todos os seus pormenores há dez mil anos. Só
não atingiria a meta quem perdesse a pista.
Uma coisa estava, pois, subordinada à outra.
E Rhodan queria alcançar essa meta.
O próprio Lesur foi quem trouxe as novida-
des. Estava muito agitado.
— Senhor, eles chegaram, conforme disse.
Somente por fora Rhodan manteve sua cal-
ma. Por dentro, desencadeava-se uma tormen-
ta. Haviam chegado os arcônidas, os mesmos
que há quase dez mil anos pousaram no sistema
solar e construíram sua base em Vênus.
O tempo girara ao contrário. Só agora Rho-
dan compreendia isso em todo o seu alcance e
significado.
— Onde desceram, Lesur?
— Lá fora na planície. Deseja cumprimentá-
los?
Rhodan lançou um olhar interrogativo a
Crest. O arcônida balançou a cabeça de modo
quase imperceptível. Rhodan admirou-se mas
não fez perguntas.
— Nós lhe mandaremos um representante.
Espere lá fora perto do portão.
115
Quando o ferrônio saiu, Rhodan olhou inter-
rogativamente para Crest. O arcônida sorriu le-
vemente.
— Não queremos despertar sem necessidade
a desconfiança de Kerlon. Além disso, não
consta no Arquivo Central que a expedição te-
nha descoberto seres humanos no sistema
Vega. Portanto, eu mesmo irei.
— E será menos suspeito?
— Claro que sim — asseverou Crest. — Há
dez mil anos, havia muitas naves arcônidas que
exploravam o universo conhecido e o desco-
nhecido. Nem sempre mantinham comunicação
entre si. Portanto, Kerlon não me conhece. Di-
rei a ele que chegamos há meses e pesquisamos
bem todo o planeta. Talvez o convença a pros-
seguir até a Terra.
— Isso seria... — ia dizendo Rhodan, mas
faltou-lhe o fôlego.
Olhou admirado para Crest. O arcônida
continuava a sorrir.
— Isso explicaria o fato de Kerlon ter se diri-
gido tão depressa para o sistema solar de vocês
e levado tanto tempo lá, à procura do planeta
da imortalidade, até ser surpreendido pela mor-
te. Posteriormente, devia ter suspeitado de al-
guma coisa, mas era tarde. A verdade é que
nunca confessou ter sido ludibriado.
116
— Você está tentando influir no futuro.
— De modo algum — contraveio Crest.
— Só estou tentando arranjar as coisas para
que daqui a dez mil anos encontremos em Vê-
nus as respostas às nossas perguntas. Como se
poderia denominar isso? Realmente não sei.
Rhodan calou-se. Aliás, o que poderia res-
ponder?
Crest foi tomado de uma atividade fora do
comum. Reacendia-se nele a antiga energia que
tinha tornado possível para a sua raça a con-
quista de um reino estelar. Fora ultrapassado o
período de inatividade e o subseqüente apareci-
mento da degenerescência. Era novamente um
daqueles arcônidas que com um simples aceno
anexavam ao Grande Império sistemas solares
inteiros.
Talvez isto se devesse ao fato de ter voltado
ao tempo do apogeu de sua raça. Como saber
das influências psicológicas de uma tal viagem?
— Levarei o robô comigo — disse Crest, ve-
rificando a carga da sua pistola de radiação. —
Naquela época havia robôs desse mesmo mode-
lo.
— A pistola de radiação também vai? — in-
dagou Rhodan, na esperança de ter surpreendi-
do uma negligência de Crest. O arcônida, po-
rém, sorriu com indulgência e bateu de leve na
117
coronha da arma.
— É o mesmo modelo usado há dez mil
anos. A arma é perfeita, o que haveriam de mu-
dar nela? Portanto, quem vai mesmo sou eu.
Marshall, pode permanecer em contato comi-
go?
O telepata hesitou, assentindo em seguida.
— Acho que poderia dar certo se me con-
centrasse em você. Espero que a distância não
seja muito grande.
— Há de conseguir, sim — assegurou Crest,
dirigindo-se depois ao robô. — Acompanhe-
me.
Rhodan, pensativo, seguiu-os com o olhar.
Detestava ter de ficar para trás, inútil. Pela pri-
meira vez a iniciativa lhe fugia das mãos pela
força da lógica.

***

Kerlon estava organizando uma expedição,


quando avistou três vultos se aproximando da
nave pousada.
Eram três homens vestidos de maneira diver-
sa.
Caminhavam pela extensa planície, proveni-
entes do castelo. Na frente vinha um monstro
prateado que pareceu familiar a Kerlon, tanto
118
por sua forma, quanto pelos movimentos. Pri-
meiro julgou tratar-se de um homem com arma-
dura, mas logo reconheceu um robô.
Robô? Num mundo primitivo?
Voltou-se para os oficiais.
— Gradue o visor para uma ampliação da
imagem. Tenho a leve impressão de que chega-
mos tarde demais.
De início, ninguém entendeu o que ele que-
ria dizer com aquilo, mas quando o visor oval
mostrou os três vultos, o oficial finalmente com-
preendeu.
O ser de metal que se encaminhava para
eles era um robô arcônida.
Ao mesmo tempo divisaram Crest, que vi-
nha empertigado, com todo o orgulho inato de
sua raça. Trazia roupas estranhas, ao invés dos
trajes espaciais usados pelos arcônidas, mas sua
origem era inconfundível. Ao seu lado caminha-
va um homem miúdo, de vistosa capa colorida,
certamente um habitante do planeta.
— Que pena — murmurou Kerlon, visivel-
mente decepcionado. — E eu que nos julgava
os primeiros a descobrir este sistema. Estou cu-
rioso de saber quem terá chegado na nossa
frente.
— Vamos ao seu encontro? — propôs o ofi-
cial.
119
— Seria um gesto de amizade — acedeu
Kerlon, erguendo-se. — Desligue o visor e me
acompanhe.
Kerlon não mais tinha dúvidas. Uma das
muitas expedições que exploravam o universo
atrás de sistemas solares habitados chegara
àquele planeta, estabelecendo contato com os
nativos. Inteiramente normal. Assim, mais cedo
ou mais tarde, mais este sistema gigantesco se-
ria incorporado ao Grande Império. Desta vez,
porém, não seria por mérito de Kerlon. Pena,
mas nada a fazer.
— Dou o alarma? — o oficial perguntou já
sabendo a resposta.
Kerlon meneou a cabeça.
— Para quê? Evidentemente são amistosos
os habitantes deste planeta. Não fosse assim, o
arcônida e o robô não poderiam se movimentar
tão livremente. Não há perigo algum, é certo.
Kerlon e seu oficial deixaram, pois, a nave,
e foram ao encontro de Crest.

***

Gagat e seus guerreiros mais corajosos con-


seguiram se esgueirar até junto das três naves,
utilizando habilmente os arbustos e as falhas do
terreno. Os onze homens agrupavam-se, bem
120
escondidos pela grama alta, à espera dos acon-
tecimentos.
Viram três vultos saírem do castelo e vir ca-
minhando, enquanto da esquerda dois homens
iam ao seu encontro. A menos de vinte metros
de seu esconderijo, os dois grupos se encontra-
ram. Conversaram, sem que Gagat e seus ho-
mens conseguissem compreender nenhuma pa-
lavra. Apertaram-se as mãos.
— Eles se conhecem — sussurrou Gagat,
decepcionado. — Vieram se apoderar de nosso
mundo. E Lesur é seu aliado. Precisamos matá-
los.
Radgar, o seu novo comandante, pousou a
mão direita no braço do seu chefe. Com voz
rouca, segredou:
— Talvez fosse melhor levá-los como prisio-
neiros, ao invés de matá-los. Enquanto estive-
rem em nosso poder, os outros deuses não irão
arriscar um ataque contra nós.
Gagat assentiu lentamente.
— Muito sagaz que você é — reconheceu.
— Mortos, não nos serviriam de nada, mas
como reféns, sim. Cuide que nenhum deles seja
ferido. Espere até que eu dê o sinal para nos
lançarmos sobre eles, num ataque de surpresa.
Tomaram posição novamente no fundo da
depressão do terreno, na expectativa de que os
121
forasteiros se aproximassem mais.

***

Crest não se admirou muito de ver os dois


arcônidas se encaminharem para ele, sem con-
seguir reprimir, entretanto, uma estranha emo-
ção.
Há dez mil anos aqueles dois estavam mor-
tos. Apesar desse abismo, logo estariam frente
a frente. A morte fora vencida e se tornava pos-
sível influir no futuro.
Mas, seria isso verdadeiro? O que ia fazer
agora acaso não constituiria algo de inelutável
que possibilitaria o que já acontecera dez mil
anos depois?
“Contudo, como seria, se eu não estivesse
agora aqui e se Kerlon nunca me houvesse en-
contrado?”, perguntava-se Crest, maravilhado.
Descobriu imediatamente a resposta. Outra
pessoa estaria em seu lugar e aconselharia Ker-
lon a seguir para o sistema solar.
Já se encontravam frente a frente.
— Vejo — Kerlon sorriu levemente — que
chegamos tarde demais. Você nos passou a
frente.
Crest compreendeu imediatamente, assu-
mindo o papel.
122
— Encontramos este sistema por puro aca-
so, Kerlon, e nos pareceu possível anexá-lo ao
Grande Império. Seus habitantes se acham
prontos a se tornarem súditos.
No mesmo instante percebeu que cometera
um erro decisivo. De onde saberia o nome de
Kerlon?
O outro ergueu as sobrancelhas.
— Conhece-me? Não me lembro de já nos
termos encontrado antes.
Crest logo se recobrou.
— Crest é o meu nome. Minha nave explora
os outros planetas e fiquei para trás com alguns
homens. A Central de Árcon comunicou-nos
que você estava a caminho.
Kerlon meneou a cabeça.
— Seria difícil — retorquiu. — Ninguém sa-
bia da minha intenção de explorar esse sistema.
Só se for pura suposição. Encontramo-nos por
acaso.
— Desde quando fazemos explorações sem
ordens? — Crest simulava uma leve censura, a
fim de esconder seu embaraço. Sabia que Ker-
lon evitaria perguntar à Central. Estar ali sem
ordens seria um procedimento ilegal. — Deixe-
mos isso de lado — tornou Crest, sorrindo sig-
nificativamente. — Para ser sincero, não comu-
niquei à Central onde estou. Julgam que apenas
123
passei pela orla do sistema; Portanto, reivindi-
que para si o mérito da descoberta. Espero que
assim sua simpatia por mim aumente.
Kerlon trocou um olhar de surpresa com o
seu oficial e em seguida estendeu a mão para
Crest.
— Você é muito amável, Crest. Será melhor
então não comunicarmos coisa alguma à Cen-
tral sobre nosso encontro. E para ser sincero,
dou grande valor ao fato de poder constar
como descobridor oficial desse sistema. Tenho
minhas razões. Saiba que estou na pista de um
grande segredo, cuja posse dará aos arcônidas
o domínio de todo o Universo.
Crest assentiu com a cabeça, pensativo.
— Se quer se referir à imortalidade, posso
lhe dar um bom conselho.
Os olhos de Kerlon arregalaram-se de es-
panto e abalo. O que considerava como segre-
do seu era mencionado por aquele comandante
desconhecido como algo de secundário. Crest
viu que talvez tivesse ido um pouco longe de-
mais. Como poderia amenizar o choque?
— Encontrei indícios — disse — de que
deve haver no Universo uma raça que descobriu
o segredo da renovação das células, o que con-
sidero uma loucura. Vejo, porém, que levou a
história mais a sério do que eu. Está bem, que
124
cuide disso. Como não pretendo continuar a se-
guir a pista, passo a lhe transmitir minhas sus-
peitas. A vinte e sete anos-luz daqui, há um sis-
tema solar...
— Eu sei — retorquiu Kerlon, para espanto
de Crest. — A pista leva até lá. Agradeço sua
gentileza, Crest. Assim que tiver registrado este
sistema, o que será feito imediatamente através
do cérebro positrônico, procurarei o outro, que
fica a vinte e sete anos-luz daqui. E você, o que
fará?
Crest sorriu.
— Minha missão consiste em explorar o se-
tor AM53Y. Uma de nossas naves parece ter
caído lá.
Era uma coordenada que Crest escolhera ao
acaso.
— Ótimo — assentiu Kerlon, satisfeito. —
Então podemos nos unir. Vai deixar este mun-
do assim que sua nave voltar?
— Pretendo.
— Como conseguiu fazer boas relações com
os nativos?
— Existem várias raças. Os habitantes da-
quele castelo lá em cima pensam que somos
deuses e nos são dedicados. Ajudamo-los contra
um ataque de seus inimigos, os chamados bár-
baros.
125
— Está se intrometendo nos assuntos de um
povo inferior? — admirou-se Kerlon.
— Tivemos de nos defender.
— É proibido lutar contra raças primitivas —
ponderou Kerlon.
— Não nos casos de legítima defesa — con-
traveio Crest.
Kerlon quis dizer alguma coisa, mas as pala-
vras ficaram presas na garganta, pois exata-
mente naquele momento Gagat resolveu aprisi-
onar os valiosos reféns.
À frente de seus guerreiros, lançou-se sobre
o pequeno grupo, cercando-o em poucos se-
gundos. As espadas erguidas não deram tempo
a Crest de puxar a pistola de radiação que ba-
lançava em seu cinturão. O assalto fora tão per-
feito a ponto de não poder oferecer a menor
resistência, sem pôr em risco a própria vida.
Até mesmo Robby percebeu aquilo imediata-
mente. Sabia que se quisesse lutar, provocaria
uma situação perigosa. Alguém certamente en-
contraria oportunidade para matar um dos ar-
cônidas ou mesmo Lesur.
Por isso manteve-se na expectativa. Para ele
pessoalmente não havia perigo, porém, a vida
de seus criadores estaria acima da sua própria.
Mas, ainda que assim não fosse, não poderia
ter agido de outra forma.
126
Gagat encostou a ponta de sua espada no
peito de Lesur.
— Será que os deuses poderiam ajudá-lo
agora? — perguntou, zombeteiro. — Não tenha
medo, nada irá acontecer com você ou com
seus amigos. Logo que entreguem as três esfe-
ras que vieram do céu, deixo-os livres.
Ao contrário de Kerlon, naturalmente, Crest
compreendeu aquelas palavras. Desconfiava das
intenções dos bárbaros, sem fazer a mínima
idéia, contudo, do que fariam com as naves.
— Estou lhe avisando, Gagat — disse Lesur
corajosamente, pois jamais estivera tão perto
da morte em sua vida. — Nossos deuses podem
acabar com vocês se quiserem. Se não o fazem,
é porque desejam dar a você uma oportunida-
de. Liberte-nos ou se arrependerá.
Kerlon não via possibilidade de salvação.
Certamente o pessoal das naves observara o in-
cidente, impossibilitados, entretanto, de ajudá-
los, a menos que se colocassem em perigo.
Além do mais, havia a proibição do uso de ar-
mas mortais contra povos primitivos.
Com uma gargalhada sardônica, Gagat guar-
dou de volta a espada, num aceno à sua gente.
— Cada prisioneiro segue no meio de dois
homens. Prestem atenção, estejam prontos a
matá-los a qualquer momento, não se deixem
127
surpreender.
Kerlon olhou para Crest.
— Certamente ainda não está a par dos cos-
tumes dos nativos — proferiu, numa leve censu-
ra — para que isso possa ter acontecido. O que
tem a dizer?
— Não se preocupe, Kerlon. Sem demora
estaremos livres. Meus amigos já sabem o que
aconteceu e podem intervir a qualquer momen-
to. Talvez aguardem apenas uma ocasião mais
propícia. Caso isso aconteça, Kerlon, é favor
não se espantar, nem fazer indagações.
— Como assim?
— Silêncio, agora! Os bárbaros podem des-
confiar. Mais uma coisa apenas: meus amigos
mantêm contato permanente comigo, ouvem
cada palavra que dizemos. Devem atacar imedi-
atamente, só espero que enquanto isso os seus
homens fiquem quietos nas naves.
— Se desobedecerem à ordem e tentarem
me libertar, não posso censurá-los.
— Claro que não, mas observe apenas! Nos-
sa prisão está prestes a findar. Mais uma vez
lhe peço para não fazer perguntas.
O conselho era necessário, pois os aconteci-
mentos subseqüentes deviam parecer inverossí-
meis aos olhos de Kerlon.
A espada de Gagat como que adquiriu vida
128
própria. Escapou de sua mão e subiu lentamen-
te, a poucos centímetros acima da grama, flutu-
ando no ar. Os bárbaros mostraram-se tão estu-
pefatos a ponto de esquecerem inteiramente de
suas intenções, desapercebidos de que o mes-
mo poderia ocorrer com eles. Portanto, não foi
de espantar quando nove outras espadas acom-
panharam a primeira. Aparentemente sem
peso, formavam no alto uma figura bem deline-
ada contra o céu claro. Suspensas, as pontas
encostando umas nas outras, num círculo. Uma
lacuna indicava a falta da décima primeira espa-
da.
Apesar de toda a mágica, seu dono não pa-
recia disposto a desistir facilmente. Aferrava-se
convulsivamente à arma em sua mão.
Os dons telecinéticos de Anne Sloane eram,
porém, mais fortes.
A espada subiu, arrebatando o bárbaro,
agarrado a ela com desespero. O valente solda-
do esperneava, tentando alcançar o chão com
os pés. Tudo inútil! Já a dois ou três metros do
solo, continuava sendo puxado inexoravelmente
pelo ar. Finalmente, deve ter compreendido
que não adiantava contrariar a vontade dos deu-
ses.
Soltou-se, caindo para o chão. Anne não se
esforçou para suavizar-lhe a queda. Já era tra-
129
balho demais manter paradas em ornamento as
onze espadas.
Os bárbaros estavam desarmados.
Crest puxou tranqüilamente a pistola de ra-
diação e apontou-a para Gagat.
— Vejam como é inútil insurgirem-se contra
nós. E agora o melhor é desaparecerem o mais
depressa que puderem. No próximo encontro,
posso perder a paciência.
Gagat lançou um último olhar para a espada
fora de seu alcance, recordou-se do efeito da
fantástica arma na mão do super-homem de ca-
belos brancos e seguiu o conselho. À frente de
seus guerreiros, iniciou a retirada para a orla do
bosque.
Kerlon pouco tempo tinha para se ocupar
dos bárbaros em retirada. Perplexo de todo,
continuava a fitar as onze espadas suspensas.
Via-se que seu cérebro trabalhava febrilmente
para compreender.
Crest viu-se forçado a dar uma explicação.
— Já disse, Kerlon, para não se surpreen-
der. Deve ter notado como os bárbaros não fi-
caram muito admirados com o que aconteceu.
Apesar do primitivismo, há neste mundo coisas
que mal conhecemos. O que está vendo é o tra-
balho de um telecineta.
— Foi o que pensei — assentiu Kerlon placi-
130
damente. — Você o conhece?
— É um ferrônio, cujo cérebro está adiante
de seu tempo, só isso. Como sabemos, há raças
inteiras de telecinetas. Nossos sábios...
— Eu sei — atalhou Kerlon, resignado. —
Nunca compreenderemos de todo, o que é
pena. Agora, esse a quem se refere nos salvou
de uma situação perigosa. Devemos agradecer-
lhe.
— Faremos isso esquecendo o incidente —
advertiu Crest. — Os ferrônios acreditam que
fomos nós que lhes conferimos esse dom. Se fi-
zermos muito estardalhaço a respeito, poderão
suspeitar.
Kerlon acedeu, olhando mais uma vez para
as espadas lá no alto. Em seguida, apontou
para as naves à espera.
— Pode me dar a honra de uma visita?
Crest aceitou.
Ainda não sabia o que precisava obter de
Kerlon, para encontrar o caminho para a luz.

Enquanto isso, Rhodan se via diante de uma


difícil decisão.
— A última indicação nos induzia a não es-
perarmos mais de três dias para voltar ao con-
131
versor de tempo. Hoje é o terceiro dia, mas de
Ferrol. Os três dias terrestres já se escoaram.
Bell empalideceu.
— E se queriam dizer dias da Terra, e inter-
pretamos a informação de maneira errada?
— Nesse caso não poderemos sair daqui —
respondeu Rhodan calmamente. — Acho, en-
tretanto, que o imortal deve ter se guiado pelo
tempo do planeta onde estávamos. Com isso,
nosso prazo termina hoje à tarde. Marshall, o
que está acontecendo agora?
O telepata estava sentado num sofá, a um
canto do aposento a eles reservado. Guardava
silêncio, numa grande concentração.
— Crest e Lesur acompanham Kerlon na
nave capitania da expedição. Robby ficou espe-
rando do lado de fora. Kerlon diz que quer mos-
trar uma coisa a Crest.
— Olhe! — fez Bell. — É isso aí!
— Isso o quê? — Rhodan ergueu as sobran-
celhas.
— O que procuramos, é claro. O caminho
para a luz. Ralf Marten não poderia atacar? De
qualquer modo, não está fazendo mesmo nada,
só se aborrecendo por aí.
O mutante de olhos amendoados sorriu.
— Aborrecendo? Um pouco de exagero.
Contudo, talvez fosse realmente uma boa idéia
132
se eu pudesse me apossar por algum tempo dos
sentidos de Kerlon. Marshall poderia ler meus
pensamentos e comunicar-lhes o que vejo e es-
cuto. Para isso, deixarei no meu corpo uma pe-
quena parte de minha consciência. A outra par-
te deverá ser suficiente para controlar Kerlon.
Ele nada perceberá, e assim teremos uma boa
visão do que acontece lá na nave capitania dos
arcônidas.
Rhodan concordou, satisfeito.
— Também prefiro que Crest e Kerlon não
fiquem tão sozinhos. Afinal são arcônidas.
— Não confia inteiramente em Crest? —
surpreendeu-se Bell. — Ele evitará qualquer bo-
bagem.
— Não creio que seja de propósito, Bell,
mas os arcônidas também não são infalíveis,
como já vimos. Devemos estar prontos a inter-
vir nos acontecimentos. O que teria acontecido
se Anne não afugentasse os bárbaros?
— Ela pôde fazer isso aqui da torre do caste-
lo, mas não do interior da nave, onde não vê
nada. Portanto, mantenhamo-nos duplamente
vigilantes, pelos menos é o que penso. Bem,
Marten, trate de enviar seu espírito.
Marten estirou-se no sofá, depois que
Marshall lhe deu lugar. Entrou logo em transe.
Não foi difícil para Marshall captar as impres-
133
sões que o outro mutante, agora dentro de Ker-
lon, recebia e enviava.
— Crest e Lesur estão sentados com Kerlon
e seu oficial em volta de uma mesa — relatou o
telepata, a voz calma. — Kerlon fala alguma
coisa sobre certa pirâmide que descobriu em al-
gum lugar de Ferrol. É nas montanhas. E nesta
pirâmide havia um hipertransmissor de matéria
que lhe causou admiração. Achou também ou-
tra coisa, um cilindro de metal. Vai mostrá-lo a
Crest.
Rhodan olhou para Bell.
— É, acho que deve ser o que procuramos!
— proferiu devagar.
Bell assentiu.
John Marshall continuou falando.
— Prosseguiu tentando abrir a cápsula de
metal, mas até agora nada conseguiu. Crest
quer pegá-la, mas Kerlon impediu-o. Alegou
que pertence a ele e que talvez venha a pôr em
perigo o seu hóspede. Ninguém está apto a sa-
ber dos perigos deste mundo desconhecido.
Acabou de passar por um deles. Crest age
como se o cilindro não o interessasse. Boa táti-
ca, pois agora Kerlon se sente logrado na sen-
sação que pretendia causar. Afirma que o cilin-
dro guarda relação com a raça dos imortais,
existente em algum lugar deste universo. Crest,
134
no entanto, acha improvável. Representa bem
o seu papel.
Marshall calou-se. Marten permanecia imó-
vel. O silêncio era absoluto no aposento, sendo
interrompido finalmente pela entrada de Anne
Sloane, de regresso da torre.
— Deixei que as espadas caíssem bem lá do
alto, para se arrebentarem sobre as pedras.
Não poderão usá-las por enquanto.
Rhodan aprovou com a cabeça, pedindo-lhe
que se calasse, com um aceno de mão. Anne
compreendeu imediatamente. Sentou-se ao
lado de Ras Tshubai, impaciente por entrar em
ação.
Marshall recomeçou a falar e relatou o que
Marten via através dos olhos de Kerlon.
— Um oficial entra na cabina onde os qua-
tro homens se encontram sentados. Revela que
um grupo de nativos se esgueiram em direção à
nave, como que para tomá-la de assalto. Pela
descrição, só podem ser bárbaros. Kerlon está
preso às suas instruções. Não pode iniciar luta
alguma. Crest decide deixar imediatamente a
nave. Lesur parece desesperado. Sem a prote-
ção da nave, julga-se perdido, apesar de toda a
mágica dos deuses. Crest ergue-se, mas hesita.
A cápsula de metal, como levá-la com ele? Ker-
lon parece notar seu interesse. Sorri, enfiando
135
o cilindo no cinturão, onde crê que esteja em
segurança. Em seguida, se oferece para acom-
panhar seus hóspedes até a escotilha.
Rhodan voltou-se, rápido, para Anne.
— Pode-se ver bem a nave lá da torre? A te-
lecineta assentiu, solícita.
— Muito bem, até. Como também a Robby.
Está debaixo da escotilha da nave central.
— Esplêndido! Ras, venha conosco. Anne,
também. Marshall, fique aqui e escute o que
Marten tern a contar. Vamos! Você também,
Bell!
Passaram correndo por alguns ferrônios es-
pantados, e subiram os muitos degraus ascen-
dendo à plataforma, e de lá à torre.
Ali de cima tinha-se uma visão magnífica até
as montanhas distantes. Na planície havia três
naves gigantescas elevando-se até o céu, tam-
pando a vista daquele lado. Saindo do bosque,
cerca de cem bárbaros se lançavam sobre as na-
ves. A distância era ainda de meio quilômetro.
Naquela última tentativa desesperada, Gagat
não procurava mais disfarçar suas intenções.
Atacava abertamente as naves espaciais com
lanças e espadas. A indulgência até agora de-
monstrada pelos deuses certamente o encoraja-
va. Confundia benevolência com fraqueza.
Crest abandonou a nave em companhia de
136
Lesur. Na escotilha se achava Kerlon. Via-se
distintamente o cilindro em seu cinturão. Fez
um aceno, aparentemente sem se preocupar
em averiguar como Crest se poria em seguran-
ça. Talvez, no fundo, aguardasse que a testemu-
nha do seu suposto fracasso viesse a desapare-
cer.
O que seria uma loucura. Afinal Crest lhe
garantira que desistiria do direito da descoberta.
Qualquer que fosse a razão, no entanto, Kerlon
seria curioso o suficiente para esperar um pou-
co antes de partir, à espera de ver como o ou-
tro se sairia da situação.
O robô esperava por seu senhor. Sem se
preocupar com os bárbaros que avançavam, co-
meçou a andar em direção ao castelo.
Gagat já se atinara o bastante para não se
preocupar com os três homens que tentara
agarrar inutilmente. As naves eram a sua meta,
apenas isso.
Crest sabia que falhara em sua missão. Avis-
tara o cilindro de metal e adivinhara instintiva-
mente ser aquilo que deveriam buscar no passa-
do. Mas como tirá-lo à força de Kerlon? Que
aconteceria se Kerlon começasse a desconfiar?
Seguiria em direção ao sistema solar?
Rhodan precisava intervir agora.
Kerlon acompanhou Crest com o olhar.
137
Começava aos poucos a sentir como era es-
tranho aquele encontro. Quem seria aquele ho-
mem, que sabia tanto, mas fazia tantas pergun-
tas? Por que desistiria espontaneamente da gló-
ria de ser considerado o descobridor de um sis-
tema habitado? O que saberia daquela raça, a
respeito da qual tudo se ignorava?
Perguntas e mais perguntas, sem resposta
alguma.
Kerlon verificou que os bárbaros não se pre-
ocupavam com Crest, nem com o robô, nem
com o nativo. Os três se encaminhavam, desin-
teressados, em direção ao castelo próximo. Os
bárbaros, no entanto, estavam mais próximos,
balançando as espadas primitivas, sedentos de
luta.
Kerlon virou-se de súbito, querendo subir
para a comporta de ar. Tropeçou e perdeu o
equilíbrio por alguns segundos. Agarrou-se na
borda da escotilha., mas com esse movimento
inesperado, o cinturão afrouxou-se. O cilindro
liso escorregou, caindo verticalmente lá embai-
xo, sobre a grama alta, sob a escada.
Kerlon viu-o cair numa pequena depressão
do terreno, rolar para um lado e lá ficar.
Hesitou. O tubo era uma parte componente
da pista a ser seguida. Precisava reavê-lo. Além
do mais, os bárbaros já se aproximavam e co-
138
meçavam a jogar suas lanças sobre ele. Não po-
dia se defender, nem usar força. Lei é lei, e
Kerlon não haveria de saber que essas leis seri-
am mudadas dentro de algumas centenas de
anos.
Gritou uma ordem. Um oficial ouviu-a e pas-
sou adiante. Alguns segundos depois, as duas
outras naves decolaram, ganhando lentamente
altura. Apenas a capitania permanecia em seu
lugar. Alguns segundos depois, entraram em
ação alguns canhões caloríferos.
Os bárbaros apavoraram-se ao virem surgir
a seus pés um círculo de fogo aproximando-se
inexoravelmente. A grama começava a se quei-
mar. A fumaça subia aos céus. Hesitaram no
ataque, que parecia ter começado tão bem.
Kerlon soltou a escada rolante e desceu no
meio da proteção do círculo de fogo que os ca-
nhões haviam formado em volta da nave. Nin-
guém poderia penetrar ali. Precisava pegar o ci-
lindro de metal.
Saltou na grama ressequida, à cata da de-
pressão no chão. Havia de ser por ali. Olhou
em volta, indeciso, sem se preocupar com as
poucas lanças atiradas a esmo atravessando a
cortina de fumaça.
E então, ao ver o tubo no chão, próximo a
seus pés, uma coisa terrível aconteceu.
139
No meio da fumaça, um vulto negro materi-
alizou-se.
A aparição usava uniforme, mas era de rosto
escuro, assim como as mãos e os braços nus.
Kerlon quase morreu de susto, mesmo nada
tendo de supersticioso. Antes que pudesse se
mover, a aparição negra curvou-se para o cilin-
dro de metal e apanhou-o. Enquanto Kerlon
ainda olhava, perplexo, alguém lhe tomar a di-
anteira, Ras Tshubai dissipou-se novamente no
ar e desapareceu.
E com ele, conforme Kerlon constatou na
sua fúria impotente, o tubo de metal a que dava
tanta importância.
Uma lança passou sibilando junto à sua ca-
beça, recordando-lhe o fato de se achar em pe-
rigo imediato. Pulou depressa na escada rolante
que agora se movia em sentido contrário, al-
çando-se em direção à escotilha. Tinha um ódio
gelado, a esse Crest, à aparição negra e a tudo
o que havia nesse planeta habitado.
Mas lei continuava sendo lei.
Deu partida à nave, à procura das duas ou-
tras esferas espaciais que já o esperavam na ca-
mada superior da atmosfera.
Aterrizaram em outra região de Ferrol, onde
permaneceram três dias. Só então deixaram de-
finitivamente o planeta.
140
Cruzaram o sistema sem parar, passando
por planetas mortos e desabitados, até alcança-
rem o espaço exterior, além do quadragésimo
terceiro planeta, quando Kerlon ordenou a tran-
sição. A meta era um sistema a mais de vinte e
sete anos-luz de distância, onde o terceiro pla-
neta mostrava os primeiros sinais de uma civili-
zação emergente, que procurava se livrar dos
traços de primitivismo.
Ali estavam nascendo os antepassados dos
que iriam construir a Torre de Babel.

Rhodan fitava, indeciso, o tubo de metal.


Bell fazia suas observações costumeiras.
— Parece uma caixa de colecionar ervas —
resmungou. — O que pode ter dentro?
— Uma das muitas respostas de que precisa-
mos para chegar à solução da charada galácti-
ca, um pequeno passo adiante na pista sem fim
para a eternidade. Não nos resta muito tempo
para especulações a respeito. Nosso prazo está
quase terminado.
Já se tinham despedido de Lesur e dos cons-
ternados ferrônios e se achavam de volta à câ-
mara vazia embaixo do castelo. O bloco metáli-
co continuava imóvel, inalterado no centro do
141
aposento. Mediante seu aspecto, não se podia
saber se ainda se encontravam num passado re-
moto ou se já estavam de volta ao presente. A
única indicação era o tamanho da abóbada. Ao
chegarem, ela havia se alargado. Deveria, por-
tanto, estreitar-se quando começasse a viagem
para o futuro.
Rhodan consultou o relógio.
— Os três dias terminaram. Somente uma
questão de minutos e então...
Calou-se de repente e pôs-se à escuta. Em
algum lugar dos extensos corredores lá fora, di-
ante da porta, alguém gritara. Um grito prolon-
gado. Em seguida, ouviu-se o tinir das espadas
umas contra as outras. Segundos mais tarde, o
barulho do início de um ataque contra as tábuas
da pesada porta de madeira.
Ras Tshubai ergueu-se. Olhou Rhodan inter-
rogativamente. Bell lançou um olhar rápido
para o tubo de metal e disse apressadamente:
— São os bárbaros. Tomaram novamente o
castelo. Nossa ajuda aos ferrônios foi inútil.
— O destino tem cartas marcadas — retru-
cou Rhodan, pensativo. — A vitória do pessoal
de Lesur não tinha mesmo de acontecer. Agora
é tarde demais para ajudá-los.
Bell quis dar uma resposta, mas já não con-
seguia. Violentos golpes vibravam contra a por-
142
ta que os separava da abóbada subterrânea do
castelo. Vozes nervosas vociferavam. Deram-se
ordens e em seguida fez-se um silêncio repenti-
no. Uma voz profunda disse algumas palavras e
uma gritaria de triunfo irrompeu. Passos se
afastaram e retornaram segundos depois. Colo-
caram-se objetos diante da porta. Homens riam
na expectativa.
Rhodan olhou para Ras Tshubai.
— Vá ver o que pretendem. Mas tenha cui-
dado e volte imediatamente.
Ras assentiu e o lugar onde estava ficou va-
zio.
Apenas cinco segundos, porém, e logo Ras
estava de volta. Materializou-se e Rhodan imedi-
atamente notou uma ferida que sangrava em
seu pescoço.
— Querem fazer voar a porta! — arquejou o
africano, apertando o ferimento com a mão. —
Devem ter achado pólvora no castelo. Um dos
bárbaros tinha tanta presença de espírito que
atirou sua espada em minha direção. Não foi
nada grave, mas temos de desaparecer imedia-
tamente, ou estaremos perdidos.
— Desaparecer é uma boa — gemeu Bell,
furioso. — Se esse conversor de tempo não
funcionar, voaremos pelos ares. Com todo esse
cilindro de metal!
143
Rhodan viu de novo a hora.
— Já é tempo. Agora ou nunca.
Voltou-se para Crest:
— Como é que o imortal pode saber que
cumprimos a missão? Ele se encontra no pre-
sente ou veio conosco para o passado?
Antes que Crest pudesse responder, o robô
falou:
— Ele não veio conosco, mas seu espírito
está entre nós, no conversor do tempo. Ponha
o cilindro de metal sobre o conversor, senhor,
que o sistema eletrônico verificará então se é
isso o que devemos buscar.
Rhodan obedeceu em silêncio.
Enquanto isso, lá fora diante da porta, paira-
va um silêncio absoluto. Os bárbaros deviam ter
se retirado. Talvez a mecha já estivesse acesa.
— Tente apagá-la, Ras.
Enquanto isso, Anne colocara uma atadura
ligeira no ferimento do africano. Sem raciocinar
muito, Ras obedeceu ao comando de Rhodan,
apesar de com isso arriscar-se a ter de ficar
para trás, no caso de uma súbita transição do
aposento para o futuro.
Três segundos depois, já estava de volta.
— Impossível! — gritou, de olhos arregala-
dos. — Inteiramente impossível! Não dispõem
de uma mecha, mas simplesmente de pólvora
144
espalhada por todo o porão. Acho que vão
fazê-la explodir com uma flecha incendiaria.
Contra isso não posso fazer nada.
— Então temos imediatamente de impedir
— principiou Crest, mas logo foi interrompido
pelo zumbido que começava a vir do conversor
do tempo. O chão sob seus pés começou a vi-
brar. Lentamente, o aposento começou a enco-
lher. As paredes se tornaram novamente lisas.
A viagem para o futuro começara.
Quase que tarde demais.
Enquanto a porta de madeira desaparecia e
se transformava numa parede lisa de metal, as
ondas de pressão causadas por uma explosão
jogavam ao chão os viajantes do tempo. Um in-
tenso brilho luminoso fez com que fechassem
os olhos, mas o calor que de repente sentiram
desapareceu imediatamente. Ao mesmo tempo,
voltou a escurecer.
— Estamos a caminho — disse Rhodan, ali-
viado, mas com tamanha naturalidade como se
as viagens temporais fossem rotina em sua vida.
— Acho que conseguimos.
Ao retornarem à base de Ferrol, avistaram
Thora.
A arcônida olhou-os, espantada, não se me-
xendo ao ver Rhodan, Crest e os demais. Po-
dia-se ver a decepção estampada em seu rosto.
145
Mas então, ao descobrir nos rostos dos homens
a barba de três dias, a decepção transformou-se
em perplexidade.
Caminhou, vacilante, até o grupo e obser-
vou o rolo de metal nas mãos de Rhodan. Só
com muito esforço conseguiu que as palavras
lhe viessem aos lábios.
— O que significa isso? — indagou. — De
onde foi que o trouxeram?
— De Kerlon — respondeu Rhodan. — Por
que acha tão estranho? Nosso empreendimento
não visava isso?
Thora fez que sim.
— Como poderia esquecer... em tão pouco
tempo!
Acentuou particularmente as quatro últimas
palavras, pousando o olhar interrogativamente
nos rostos dos homens. Crest compreendeu
logo. O imortal gostava de pregar peças nos
mortais. Já acontecera uma vez. Para ele a mo-
dificação do conceito de tempo era apenas um
brinquedo e portanto um meio de enganar e
desconcertar os perseguidores voluntariamente
atraídos pelas pistas.
— Quanto tempo estivemos fora? — per-
guntou Crest.
— Exatamente meia hora — respondeu
Thora, em voz baixa.
146
Rhodan assentiu lentamente com a cabeça.
— Acho — observou com segurança — que
devemos nos acostumar com esse tipo de coi-
sas, enquanto tivermos de lidar com esse ser
que domina o tempo e as dimensões. Muitas
vezes procuro imaginar qual seria sua aparên-
cia, mas não chego a conclusão alguma.
E, para espanto de todos, o robô meteu-se
de novo na conversa, sem ter sido convidado a
falar.
— O imortal não tem absolutamente apa-
rência...

***

Rhodan estava sentado na central do cére-


bro positrônico.
Fora fácil abrir a cápsula de metal. O fecho
automático da tampa abrira-se ao chegarem ao
presente. Um fecho temporal, nada mais.
No tubo havia uma folha fina de metal, co-
berta com uma escrita luminosa. Rhodan tirou
apenas uma fotocópia antes de inserir a folha
original no cérebro positrônico. Em seguida, o
alto-falante anunciou:
— Não está em código. O texto será traduzi-
do imediatamente e fornecido por escrito. Esta-
rá pronto dentro de meia hora.
147
Isso acontecera há vinte minutos.
Crest, Bell, Haggard e Thora esperavam,
em companhia de Rhodan.
O chefe da Terceira Potência voltou-se para
Crest e disse:
— Devemos ter em mente que as tarefas es-
tão se tornando cada vez mais difíceis. O imor-
tal tem cada vez menos consideração conosco.
Se nos metermos em algum perigo mortal, tere-
mos de nos livrar sozinhos. Se morrermos... —
encolheu os ombros.
Crest assentiu, em tom grave:
— A pista se torna mais confusa e mais di-
fícil de seguir. Disposta de tal forma, porém,
que seres de inteligência excepcional e com
dons especiais não a pudessem perder. Quem
não possuir essas qualidades no grau exigido,
estará perdido. E se morrer durante a busca,
será porque não merece a imortalidade. Nosso
amigo desconhecido calculou tudo.
— Tenho certeza de que nossa próxima ta-
refa será um pouco mais difícil, Crest.
— Pode ter certeza disso. Mas em compen-
sação, estaremos mais próximos de nossa
meta. Isso nos deve servir de consolo.
— E da próxima vez — atalhou Thora, em
tom indiferente — irei junto. Também tenho di-
reito a isso.
148
Antes que Rhodan pudesse responder, in-
tensificou-se o zumbido do cérebro positrônico.
O cartão com o texto traduzido, expelido atra-
vés da fenda de emissão, caiu em cima da
mesa, com a parte escrita para cima. Bell agiu
com rapidez e foi o primeiro a apanhá-lo. Er-
gueu-o bem perto dos olhos e viu o que estava
escrito:

Aquele que quer encontrar o caminho ainda


tem permissão de desistir. Mas, se quiser pros-
seguir, saiba que não receberá mais auxílio. Em
breve, o espaço sofrerá um abalo. Esteja atento
e procure, mas lembre-se de que este mundo é
gigantesco e desconhecido.

Bell baixou a folha de papel depois de lê-la


em voz alta, e olhou, perplexo, para Rhodan.
— Afinal o que quer dizer dessa vez? Será
que se trata mesmo de um texto compreensí-
vel?
Rhodan não respondeu. Permaneceu senta-
do, imóvel, de olhos semicerrados. Crest tirou o
papel da mão de Bell e leu a misteriosa mensa-
gem várias vezes, com toda a atenção, antes de
passá-la para Thora. A arcônida também procu-
rou encontrar um sentido nas palavras.
Bell mais uma vez revelou sua natureza im-
149
paciente.
— O espaço vai sofrer um abalo — berrou,
batendo na mesa com o punho cerrado. — E
temos de esperar por isso? Talvez uma explo-
são atômica?
— Absurdo! — exclamou Crest. — A sim-
ples transição de uma nave grande pode abalar
o espaço. Talvez surja alguma nave. Mas o que
significa a menção de um mundo gigantesco e
desconhecido? Não pode ser Ferrol.
— Minha intuição me avisa, Crest! — profe-
riu Thora. — O que nos espera não é nada
bom. Estamos sendo postos à prova. Até agora
temos tido sorte, muita sorte mesmo. Mas, e se
ela nos abandonar?
— Sem a esperança de ter sorte, a vida dei-
xa de ter sentido! — filosofou Haggard. — Que-
ro dizer é que não devemos desistir. O que
acha, Rhodan?
Perry Rhodan fez lentamente que sim. To-
dos notaram o brilho duro em seus olhos e per-
ceberam que a busca do planeta da vida eterna
continuaria. O caminho estava diante deles, e
não iriam se desviar. No fim dele, estaria a eter-
nidade.
— Não quebremos a cabeça quanto ao que
significa esse abalo — declarou Rhodan, com
voz firme. — No tempo certo, saberemos. Sa-
150
beremos também a que mundo se refere. Há
outra coisa, porém, que me causa preocupa-
ção, outra coisa muito diferente. E vocês todos
vão saber a que me refiro. Não será preciso que
cada um descubra sozinho.
Bell curvou-se para a frente.
— Como assim, Rhodan?
— Na mensagem está escrito que muito bre-
ve o espaço sofrerá um abalo. Quando foi escri-
to isso? Há dez mil anos? Antes ainda? Pergun-
to simplesmente o que um imortal compreende-
rá por “em breve”?
Ninguém foi capaz de lhe dar uma resposta.
“Em breve” podia significar daqui a mil
anos.
Mas também podia ser amanhã!

***

151
Apesar de todos os perigos trazidos pela
permanência no passado longínquo do plane-
ta Ferrol, Perry Rhodan e seus companheiros
voltaram à sua própria época.
Mas sua procura não terminou aí. Estão
novamente de posse de uma mensagem do
desconhecido, que indica novos e maiores pe-
rigos: “...em breve o espaço sofrerá um aba-
lo. Esteja atento e procure, mas lembre-se de
que este mundo é gigantesco e desconheci-
do!”
O que espera Perry Rhodan em sua etapa
seguinte, vocês vão ler no próximo volume
da coleção Perry Rhodan: OS ESPÍRITOS DE
GOL.

*
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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
https://doom-scans.blogspot.com.br

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