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Imaginamundos

Interfaces entre
educação ambiental
e imagens
Organizadores
Rafael Nogueira Costa
Celso Sánchez
Robson Loureiro
Sergio Luiz Pereira da Silva
Organizadores
Rafael Nogueira Costa
Celso Sánchez
Robson Loureiro
Sergio Luiz Pereira da Silva

Projeto gráfico
Luan Freitas

Ilustração capa
Priscilla Menezes e Nathalia Ferreira

Apoio
Programa Nacional de Pós Doutorado (PNPD)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Reitora
Denise Pires de Carvalho

Vice-Reitor
Carlos Frederico Leão Rocha

Pró-Reitora de Graduação
Gisele Viana Pires

Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa


Denise Maria Guimarães Freire

Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento


Eduardo Raupp de Vargas

Pró-Reitora de Pessoal
Luzia da Conceição de Araújo Marques

Pró-Reitora de Extensão
Ivana Bentes Oliveira

Pró-Reitor de Gestão e Governança


André Esteves da Silva

Pró-Reitor de Políticas Estudantis


Roberto Vieira
Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade

Diretor
Rodrigo Nunes da Fonseca

Vice-Diretor
Francisco de Assis Esteves

Diretor Adjunto de Apoio a Pós-Graduação


Fábio Di Dario

Diretor Adjunto de Apoio a Pós-Graduação


Pedro Hollanda Carvalho

Diretora Adjunta Administrativa


Adriana Furtado Lima

Diretora Adjunta de Pesquisa


Cíntia Monteiro Barros

Diretora Adjunta de Extensão


Mirella Pupo Santos
2021 dos organizadores
© 2020
Direitos reservados desta edição
NUPEM Editora

A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer


meio, seja total ou parcial, constitui violoação da Lei no 9.610/98

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP

C837i
Costa, Rafael Imaginamundos:
Nogueira Costa. Interfaces entre educação
ambiental e imagens
Imaginamundos / Rafael/ Rafael Nogueira
Nogueira CostaCosta... [et al.]. –
... [et al.].
Macaé:
1. Editora NUPEM,
ed. atualizada – 2021.
Macaé: Editora461 p. NUPEM,
: il. ; 13,7 Kb.
2021.
2020.
ISBN
461 p. : il. ; 23cm.978-65-87507-11-8
1. Educação
Inclui bibliografia ambiental. 2. Audiovisual. 3.
e índice
Cinema. 4. Fotografia. 5. Educomunicação. 6. Ecologia. I.
ISBN no prelo
Costa, Rafael Nogueira. II. Sánchez, Celso. III. Loureiro,
1. Educação Ambiental. 2. Audiovisual I. Título. II. Série.
Robson. IV. Silva, Sergio Luiz Pereira da.
CDD: 333.7
CDD: 333.710981

Letícia Corrêa Dias


IMAGINAMUNDOS volume 1

A presente obra é uma compilação de artigos científicos e en-


saios de autores e autoras de várias universidades que tecem
comentários sobre os múltiplos usos da imagem (cinema, audio-
visual, fotografia) na nossa sociedade. São textos de intelectuais
de 8 universidades no Brasil: UFRJ, UERJ, Ufes, Uneb, Unirio,
UNIFESSPA, FURG, UFMT. Além do Instituto Federal Fluminense
e da Argentina.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CA-
PES) – Código de Financiamento 001.

Esta obra foi produzida no âmbito do Programa Nacional de


Pós Doutorado (PNPD) da CAPES, que possibilitou a realização
da formação continuada do Prof. Dr. Rafael Nogueira Costa (um
dos organizadores da obra) no Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob super-
visão do Prof. Dr. Robson Loureiro.
SOBRE A CAPA

“Desdomesticar a imaginação” é um desenho em nanquim


sobre papel feito em abril de 2020 durante o período de isola-
mento social decorrente da pandemia de Covid-19. Ao constatar
a emergência do potencial imaginativo nesse período em que
temos nossos futuros em suspenso, quis dar forma a esse corpo
que, mesmo isolado, ativa relações com outros seres e paisagens
através da imaginação, desviando da rota uniforme das causa-
lidades e praticando a multiplicidade do possível. A desdomesti-
cação, nesse sentido, diz respeito à rebeldia praticada em rela-
ção aos dispositivos que visam colonizar as nossas capacidades
de pressentir, fabular, intuir e figurar imagens e, através delas,
possibilidades de vir a ser. Contra a uniformização de nossos
imaginários, uma imaginação ao relento, disponível às multipli-
cidades, aberta às alianças e atenta às possibilidades de mundo
que estão por vir.

Por Priscilla Menezes

SOBRE A AUTORA DA CAPA


su-
má-
rio 02 Apresentação
Reinaldo Luiz Bozelli
11

03 01 Imaginamundos: a importância do ato de imaginar como


capítulo 27
apropriação e ressignificação de si e do mundo
Rafael Nogueira Costa, Robson Loureiro,Celso
Sánchez , Sergio Luiz Pereira da Silva

04 02 Produção de vídeos ambientais e educação profissional


capítulo 47
crítica: desafinando o coro dos contentes
Maria Inês Paes Ferreira

05 03 Cinema de Fronteira, Ativismo Político-Pedagógico e a Luta


capítulo 68
Camponesa no Front da Amazônia Oriental
Evandro Medeiros

06 04 Representação Social do Meio Ambiente


capítulo 93
Sergio Luiz Pereira da Silva

07 05 Interface entre Educomunicação e Educação Ambiental nas


capítulo 108
políticas públicas e em teses e dissertações brasileiras
Beatriz Truffi Alves, Claudemir Edson Viana

08 06 Circuito Tela Verde - Entrevistas Narrativas sobre o


capítulo 137
percurso do projeto 2007-2019
Rachel Hidalgo, José Vicente de Freitas
su-
má-
rio 09 07 Imagens de Iemanjá e uma Cosmovisão Afrobrasileira
capítulo
Washington Ferreira, Eliane Renata Steuck, Bea
triz Rodrigues
157

10 08 A imagem, o sujeito e a Educação Ambiental: pensando nos


capítulo 179
processos construtivos e (inter)implicações críticas
Eduardo Silva de Freitas, Sônia Cristina
Vermelho

11 09 Imagem, Imaginário, Imaginação em Sebastião Salgado


capítulo 203
Paulo Maia

12 10 Sertão vivo, em cores: linguagem fotográfica, leitura de


capítulo 221
imagem e percepção visual do meio ambiente da Caatinga
Antenor Rita Gomes, Sergio Luiz Pereira da Silva

13 11 Tecendo uma rede de Educação Ambiental no sertão da


capítulo 240
Bahia: movimentos de fiação
Danilo Pereira da Rocha, Emanuela Oliveira
Carvalho Dourado , Rosiléia Oliveira de Almeida

14 12 A imagem da comida: considerações acerca do consumo de


capítulo 267
alimentos
Julia Horta Nasser, Francisco Romão Ferreira,
Larissa Escarce Bento Wollz , Shirley Donizete
Prado
su-
má-
rio 15 13 Trilhas
capítulo
15
15
15
Trilhas das
Trilhas
de base
Trilhas
de
de base
das águas:
das
das
águas: imagem,
águas:
águas:
imagem, memória
imagem,
comunitária
base comunitária
Daniel comunitária
Renaud
no
no
memória e
memória
Vale
imagem,
no Vale
do
do
e Educação
e
Educação Ambiental
Educação
Jequitinhonha
Ambiental
Ambiental
de base comunitária no Vale do Jequitinhonha Ambiental
memória e Educação
do Jequitinhonha
Vale Samira
Jequitinhonha
285

Daniel Renaud Camargo,


Camargo, Samira Lima
Lima da
da Costa,
Costa,
Daniel
Celso Renaud
Renaud Camargo,
Camargo, Samira
Samira Lima
Lima da
da Costa,
Celso Sánchez
Daniel Sánchez Costa,
Celso Sánchez
Celso Sánchez
16 14 Reflexos
capítulo
16 Reflexos da
da sociedade
sociedade excitada
excitada no
no Ensino
Ensino Superior:
Superior: 305
16 Reflexos
O vício da
em sociedade
imagens e aexcitada no Ensino
supersaturação dosSuperior:
sentidos
16 Reflexos excitada no Ensino sentidos como
O vício em imagens e a supersaturação dosSuperior:
da sociedade como
O vício em
obstáculos
O imagens
no e a supersaturação
ensino-aprendizagem de dos sentidos
Bioquímica como
obstáculos no ensino-aprendizagem de Bioquímica como
vício em imagens e a supersaturação dos sentidos
obstáculos
obstáculos
Juliana no
no ensino-aprendizagem
ensino-aprendizagem de
de Bioquímica
Bioquímica
Juliana Barbosa
Barbosa Coitinho,
Coitinho, Emerson
Emerson Campos
Campos
Juliana Barbosa
Barbosa Coitinho,
Gonçalves
Juliana Coitinho, Emerson
Emerson Campos
Campos
Gonçalves
Gonçalves
Gonçalves
17 15 A
capítulo
17 A rede
rede sociotécnica
sociotécnica da
da relação
relação entre
entre ribeirinhos
ribeirinhos e
e onças
onças no
no 321
17
17 A
A rede
rede sociotécnica
Amazonas costurada
sociotécnica da relação
por
da entre
imagens
relação entre ribeirinhos
ribeirinhos e
e onças
onças no
no
Amazonas costurada por imagens
Amazonas
Amazonas
Joana costurada
costurada
Macedo, por imagens
por imagens
Fátima Branquinho, Helena Bergallo
Joana Macedo, Fátima Branquinho, Helena Bergallo
Joana
Joana Macedo,
Macedo, Fátima
Fátima Branquinho,
Branquinho, Helena
Helena Bergallo
Bergallo
18 16 Ecologias:
capítulo
18 Ecologias: A
A natureza
natureza entendida
entendida aa partir
partir de
de diferentes
diferentes 355
18
18 Ecologias:
cosmovisões
Ecologias: A
A natureza
natureza entendida
entendida a
a partir
partir de
de diferentes
diferentes
cosmovisões
cosmovisões
cosmovisões
Gustavo
Gustavo Arantes
Arantes Camargo,
Camargo, Rafael
Rafael Nogueira
Nogueira Costa
Costa
19 Gustavo
Gustavo Arantes
Educomunicação
Arantese Camargo,
emergência
Camargo, Rafael Nogueira
climática:
Rafael o Costa
imaginário
Nogueira Costa
19 Educomunicação e emergência climática: o imaginário
19 Educomunicação
quilombola e emergência climática: o imaginário 375
capítulo quilombola em
em tempos
19 17 Educomunicação de
de resistência
e emergência
tempos climática: o imaginário
resistência
quilombola
quilombola
Thiago em tempos
emLuiz, de resistência
temposMichèle
de resistência
Thiago Cury
Cury Luiz, Michèle Sato
Sato
Thiago
Thiago Cury
Cury Luiz,
Luiz, Michèle
Michèle Sato
Sato
20
20 Filmes
Filmes ee vídeos
vídeos na
na Educação
Educação Ambiental
Ambiental ee espectador
espectador
20 Filmes e vídeos
(cri)ativo: na Educação
Reflexões sobre Ambiental
uma e
trajetória espectador
na pesquisa 395
capítulo
20 18 Filmes e vídeos na Educação Ambiental e pesquisa e
espectador
(cri)ativo: Reflexões sobre uma trajetória na e
(cri)ativo:
extensão
(cri)ativo: Reflexões
em sobre
educação
Reflexões sobre uma
uma trajetória
trajetória na
na pesquisa
pesquisa e
e
extensão em educação
extensão
extensão em educação
Américo em
Américo de educação
de Araujo
Araujo Pastor
Pastor Junior
Junior
Américo
Américo de
de Araujo
Araujo Pastor
Pastor Junior
Junior
su-
má-
rio 21 19 Las dos caras del dios Jano o cómo conviven las dos
capítulo
imágenes encontradas de una misma ciudad: Santa Fe de la
Vera Cruz
413

Francisco Sempere Ruiz

22 1 Posfácio:
posfácio Cinema, Imaginação e Educação
Gaia no cinema 431
Fabio Rubio Scarano

23 2 Gaia
posfácio no cinema
Visualidade: imagens, imaginação e etnografia 440
Marco Rubio
Fabio Antônio Gonçalves
Scarano

24 3 Visualidades:
posfácio Atirei o pau noimagens, imaginação
gato sim. E dai? e etnografia 456
Você sabem
Marco com Gonçalves
Antônio quem está falando?
Philippe Pomier Layrargues
25 Atirei o pau no gato sim. E daí? Você sabe com quem está
falando?
Créditos finais 469
Philippe Pomier Layrargues

26 Créditos finais

10
a p re -
senta-
ção
Reinaldo Luiz Bozelli
Professor Titular em Ecologia
Universidade Federal do Rio de
minha reação à obra com que me pre-
sentearam. Foi para cada texto que
Janeiro escrevi, com tudo que em mim já trago
de tanto tempo. Perdoem-me, uma
Coube-me uma tarefa difícil, de pontuação esquisita, uma palavra di-
grande responsabilidade, mas ao mes- ferente, um ritmo ofegante, uma poe-
mo tempo de grande privilégio. Na sia ingênua, um lembrar infantil, uma
minha profunda timidez aceitei, pois brincadeira, uma ironia. Foi com muito
os organizadores, compreendendo o respeito que me aproximei de cada
desafio, foram de grande generosi- palavra que escreveram. Para cada um
dade dando-me liberdade na forma tem um presente escondido em algum
de fazê-la. E assim, depois que Imagi- lugar e as palavras em itálico não são
namundos fermentou dentro de mim usos heréticos, são reverências à vossa
por vários dias, fui tirando dos meus capacidade.
poros bolhas e vapores, cheiros e co- E aos leitores, a quem tanto quere-
res, sons e dores, suspiros e amores, mos prender, digo que se soltem, que
essências e prazeres... materiais com soltem sua imaginação e sorvam a
os quais borrei minha timidez e esbocei exuberância de cada um dos capítu-
uma singela e personalizada apresen- los. Que minha breve e talvez estranha
tação de cada um dos 20 capítulos apresentação de cada um deles não
únicos, de obra única. seja a razão decisiva para a vossa
Aos autores quero pedir compreen- leitura, mas apenas a demonstração
são e embora, com raríssimas exce- clara de como fui impressionado e ins-
ções, não os conheça, dediquei-me aos pirado por cada um dos capítulos que
vossos textos e para cada um, como compreendem esta singular e arrojada
numa exposição de artes, materializei obra.

11
.1 Imaginamundos: a importância do ato de imaginar como
apropriação e ressignificação de si e do mundo

Partiu? Diriam uns jovens. Cai dentro! diriam outros jovens.


Simbora, diria eu já bem mais velho, vem comigo, insistiria...
Tem aqui uma porta aberta, uma passagem para uma outra
dimensão. Provocam-nos até o limite, irritam-nos a ponto de
não ser possível resistir. Pois o mundo já o lemos... agora pode-
mos imaginá-lo, urge-nos imaginá-lo. Imagina imaginá-lo. Ousa
imaginá-lo. Imagina-o.
E se não for ligado à concretude da vida, vale menos nosso
imaginarmundos? Diriam ser devaneio, perda de tempo, des-
vario... que seja desvario... para um mundo de tantas bizarrices,
melhor enfrentá-lo a partir do desvario, do onírico, do revolu-
cionário, do não-pensado, do ainda-não-imaginado, capaz de
surpreender o próprio descalabro do mundo, porque é possível
transformar a realidade imaginária em concreta.
Eu fui... estou certo que você não resistirá e também irá! Espe-
ro você entre as ideias que estes irreverentes autores largaram
pelo caminho ou parágrafos que astutamente ergueram. Atrás
de uma palavra única, de um autor inegável, bem antes do pon-
to final.

.2 Produção de vídeos ambientais e educação profissional crítica:


desafinando o coro dos contentes

Um jogo de esconde e mostra, de pequenos e grandes desa-


fios para entender o mundo. Jongando nos cutucam, mas nos
dão a ferramenta pondo na mesma frase o sim e o não, dando a
eles sentidos... nos fazendo entender que podemos estar excluí-
dos mesmo sendo incluídos. Nos enredam, nos fisgam para que-
rer mais, pedras raras que descobrimos escondidas nas suas tra-
mas que segui resfolegando. Ainda bem que o fiz, se não fizesse,
não descobriria que “nós poderia até voltar o rio no curso antigo,
porque se esse rio voltasse no curso antigo, o que ia acontecer?
Os nossos banhados voltariam a se umedecer naturalmente e

12
ali estaria a segurança da nossa casa, dos nossos animais, do
nosso peixe... voltaria tudo ao normal.” Quanto já estragamos,
quanto por consertar. Rio é rio, represa é represa... trabalhador
é gente, não apertador de botão... que lutas ter que formar para
ser cidadão e não apenas ganhador de salários.
Você pensaria uma flor no mangue? Não, quase ninguém pen-
saria. só o pode quem tem os olhos dentro do coração, no ce-
rebelo, na palma do pé, em cada ponta de fio de cabelo... Só se
for Lurdinha... que não muitos conheceram... pois se tivessem, o
mundo seria melhor, seria uma e a grande flor de mangue. Não
haveria rios para voltar ao curso e os banhados estariam úmi-
dos. Joga este jongo, jonga este jogo.

.3 Cinema de Fronteira, Ativismo Político-Pedagógico e a Luta


Camponesa no Front da Amazônia Oriental

É preciso que existam pessoas que se esquecem de si mes-


mas, e aceitam, e entendem, e constroem, e sofrem, e morrem
pela missão de guardar a memória do coletivo, que em sendo de
todos acaba curada por ninguém. E isto importa também para
que a mesma postura egoísta que não cuida do coletivo, egois-
ticamente não se aproprie de forma privatista, como costuma
acontecer a tantos de nós, e muito aos políticos profissionais,
daquilo que foi luta do povo.
Que o verde não nos engane, por baixo pode estar sangrando.
Se não ainda, deveríamos ter perdido a inocência há muito, por
muitas formas, por muitas vezes. Mas aprendi que não existem
forças que possam ocultar a história e não há dor que possa
silenciar a dignidade humana. Aprendi que no escrito cabe o
musicado (essas coisas de família e de dinheiro eu também nun-
ca entendi bem; e porque a força da poesia desse rapaz latino
americano também me consome e me nutre nesses últimos 40
anos), e no escrito e musicado também cabe o filmado, e no es-
crito-musicado-filmado deste autor, cabe uma existência, quase
todo o vivido. Só não cabe tudo ainda porque no front se está a
serviço da re-existência dos excluídos em luta pela terra e por

13
direitos sociais, e nessa luta há muito que imaginar, há mundos
que imaginar.

.4 Representação Social do Meio Ambiente

Sentei-me e comecei a olhar a natureza (ops!)... a humanidade


(ops!)... a sociedade (ops!)... o meio ambiente (ops!)... pachama-
ma (ops!)... sei lá, olhar em volta de mim... olhar e pensar, pensar
e olhar... a cada dia tanta coisa que eu não entendia, mas enten-
dia que existiam, construíam, e mesmo que eu não entendesse,
alguém haveria de entender... Sentado, só a pensar, fui mudando
a minha vida, minha forma de encarar... nunca imaginara tão
concretamente que eu só tinha fragmentos e então decidi que
iria caminhar para ver. Tomei uma estrada longa quase infinita,
meu pescoço girava como o de uma galinha, uma câmera goo-
gle street view. Sempre em câmera lenta eu fui filmando tudo.
Um dia, uma semana, um mês, um ano, vários anos, uma vida,
muitas vidas. As nuvens eram a própria nuvem para guardar es-
tes infinitos dados, todos os fragmentos que capturei no mundo,
desde o big-bang até a borda do universo maximamente ex-
pandido. Quando passar a pandemia vou juntar tudo e superar a
minha visão fragmentada, de tudo.

.5 Interface entre Educomunicação e Educação Ambiental nas


políticas públicas e em teses e dissertações brasileiras

Ali tem uma ponta solta e parece ligada ao sol que não pode
não raiar cada dia. Outra ponta mais à frente vem da terra e
está muito próxima daquela que parece ser a origem de toda

14
água. Várias pequenas pontas são suspiros vitais e outras meno-
res ainda são partículas de energia pois vibram muito, para todo
lado, ainda que soltas. Há muitas pontas-gritos, pontas-sussur-
ros ou pontas-longos-discursos. Há também pontas medo e sus-
to, querer e esquecer. Há pontas e pontas, pontinhas e pontonas,
coloridas e desbotadas, velhas e esgarçadas. Precisamos atá-
-las. Vou começar e depois vocês me ajudam, pois só se formos
todos conseguiremos atar todas e encontrar a ponta de tudo, a
do sentido da vida!

.6 Circuito Tela Verde - Entrevistas Narrativas sobre o percurso do


projeto 2007-2019

Da cabeça ao coração, do coração à cabeça, com coração, ca-


beça e pulsação. Ora Imaginamundos nos pede pouco, ora nos
pede muito, ora quer a cabeça, ora o coração, ora pede tudo...
até aqui vem pedindo que deixe a areia queimar e o espinho fu-
rar seu pé, e siga por experiências e sonhos e imagens coalhadas
e curtidas, assadas e explodidas pela criatividade de por uma
ferramenta de poucos, na mão de muitos.
Porém, não passa rápido demais por estas páginas, não tenta
voar se seus pés estão furados ou queimando, o que certamen-
te incomoda. Pare, se entregue, aceite a tragicidade enunciada
pelo filósofo: de afundar sob um peso que não consegue carre-
gar, nem tão pouco lançar fora.
Imagine mas não voe, nem que seja pela ânsia faminta de en-
tender tudo logo, caminhe guiado pela narrativa envolvente que
vem lá do Sul, da história rica de um ator que nos move e é cen-
tral nesta obra. Não voe, caminhe, pois os autores nos alertam
que há uma narrativa hegemônica para benefício de poucos,
enquanto aos vulneráveis é destinado todo o rastro de perda e
degradação, caminhemos e se necessário retornemos por cima
deste rastro para deixar um outro rastro, aquele que amplie os
espaços de decisão, o diálogo entre saberes e a participação
política.

15
.7 Imagens de Iemanjá e uma Cosmovisão Afrobrasileira

Existem tantas coisas que não fazem parte do meu mundo.


Hoje muito menos do que havia um tempo. Mas ainda existem....
Ah... esse tempo, nem tão distante que já era responsável para
a sociedade que habitava. Queria ser igual à sociedade que ha-
bitava, devia ser igual à sociedade que habitava, era mais fácil
querer ser igual à sociedade que habitava a ir contra ela... sem-
pre foi mais fácil assim. Mas também sempre foi mais mísero as-
sim, menos diverso assim, menos colorido assim, menos humano
assim. Muito, mas muito menos assim. Hoje ainda é um pouco,
pois tem um tanto em mim que entendi precisar mudar e apren-
di a fazê-lo. Porém, atado ainda tenho um pé e isto foi por conta
de algo que não podia controlar, eu sequer existia, veio pronto
para mim... mais que isto, veio em mim, na primeira roupa que
vesti, e me tiraram a possibilidade de vestir tantas outras, no
primeiro brinquedo que ganhei enquanto outros tantos foram
anulados entre minhas possibilidades, na primeira fé que profes-
sei, sem sequer ao menos tê-la. Mas qual? Não me abato porque
sigo vivo, o grilhão eu arrebento ao (re)conhecer e estabelecer o
diálogo com o diverso, e meu mundo pequeno será infinito quan-
do se conectar com o mundo de mundos que já estão por aí... es-
tes não precisa nem imaginar, estão por aí, vindo de um suspiro,
um raio, uma lágrima ou até mesmo de um pensamento.

.8 A imagem, o sujeito e a Educação Ambiental: pensando nos


processos construtivos e (inter)implicações críticas

Sempre tive a certeza que se tivesse que abandonar minha


casa e só pudesse levar uma coisa, levaria minhas fotos. Sem
elas fico sempre pensando que teria que recomeçar tudo, pois
entraria num loop infinito de tentativas de ser o que fui...
Em um sentido, nunca de forma absoluta, adoro a modernida-
de que me permite ter as minhas fotos todas na nuvem...não sei
onde, não importa, na nuvem... para buscá-las quando quiser.
Isto porque me faz sentir mais livre, sabendo que tudo passa,

16
mas meu passado está em parte guardado para ser remexido
sempre que for de novo preciso para me (re)descobrir, (re)come-
çar. Rasgado ou emoldurado, compartilhado, ironizado, ridicula-
rizado, celebrado. Puxando-as, puxo nós de uma rede, pois cada
uma esconde mil passagens atrás dela, sob ela, ao lado dela.
Esta rede sou eu. Sou como me constituí, o que e como vivi. O
presente vivo, o futuro viverei, o passado já está, são minhas fo-
tos, uma de minhas poucas chances de autodeterminação, pois
que tudo é produção e consumo, falsas necessidades criadas
pela Indústria cultural.

.9 Imagem, Imaginário, Imaginação em Sebastião Salgado

Lá no meio do nada, de nada ser, de nada ter.


O que tinham ficou pelo caminho, o que eram queriam tirar da
memória.
Alguém ousou se levantar, e pela força do seu olhar se ofere-
ceu professor.
E igual força de outros olhares, com aquele se cruzaram, e se
quiseram alunos.
E no meio do nada se plantou a esperança pois o fundamental
ali já estava.
E este olhar quem me deu foi outro olhar que agora dou ao
seu olhar.

Era uma multidão de pessoas obedientes ao destino.


Alinhadas, com esperança de algo que viria pela tecnologia.
E que os resgataria daquela não-existência.
Temo que aquele trem não veio, não trouxe, não levou.
Ficaram apenas as imagens de quem sofreu e clicou.
E conosco agora a dor maior por não podermos não-imaginar,
O que com cada um se passou.

Ali havia apenas uma porta, mas quem a pôs podia imaginar
uma casa.

17
Parece ser por aquela porta, o caminho a seguir, mas também
o fim, por ali sair.
Nenhuma porta ou porteira se abrirá sem luta, nem tão pouco
impunemente.
Afinal, o que é o real senão um imaginário que deu certo?

Treva e luz, liberdade e opressão, autocracia e democracia.


Trazemos impressas em nossas memórias essas nossas
escolhas.
Importa agora lembrar que as portas estão sempre fechadas.
Porém, atravessá-las depende de nova imaginação parida
com dor.

.1 0
Sertão vivo, em cores: linguagem fotográfica, leitura de imagem e
percepção visual do meio ambiente da Caatinga

Em busca de entender a angústia encontrei Baudrillard entre


escritos aos pedaços, como fotos tingidas por cores delirantes.
Encontrei objetos, que sempre supus inertes e mudos, dotados
de paixão, de vida própria, explodindo da passividade de seu
uso, adquirindo autonomia e talvez até capacidade de vinga-
rem-se de um sujeito que os quer submissos.
Na infância berlinense de Benjamim, entre desgraças e crimes
e a caixa de costura encontrei que janelas coloridas (e paredes,
e...) são do querer universal e que as cores podem saltar para
meus olhos e se desfazerem em meu coração.
E Barthes me lembra da importância do prazer, o motivo mais
facilmente compreendido e possivelmente o mais sólido para
colocar a cor no centro do palco.
Agora, mais que nunca, quero minha polaroide para explo-
rar o sertão vivo, a cores e expor no varal da cerca, ao lado das
minhas roupas, os instantes que captar, pois já sei que o saber
fotográfico, intenta emancipação, na forma de perceber o retra-
tável, que é definido pelo visível e pelo sensível.

18
.1 1 Tecendo uma rede de Educação Ambiental no sertão da Bahia:
movimentos de fiação

Com linha e agulha ensinou-me minha mãe, ainda que arris-


casse furar os dedos. Não seria grave.
Assim alcancei minha independência costurando pequenos
saquinhos que enchia de arroz para o joga-e-pega.
Brinquedos de um tempo, de um mundo simples e pobre.
Assim conquistei minha independência até hoje, para pregar
meus botões, costurar minhas meias ou minhas roupas para a
festa Junina.
Com outra agulha e outra linha ensinou-me primeiro minha
vó, quando nos punha em rodas a fazer intermináveis correnti-
nhas de crochê.
Depois ensinou-me, uma doce aluna e pessoa,quando então
ousei e fui para o ponto baixo, para o ponto alto.
Não conquistei minha independência crochética com a blusa
que faria para minha amiga, e que chegou a ter a barra e umas
fileiras, mas parou quando perdi a agulha que ganhara de mi-
nha mestra.
Mas muito aliviou minhas tensões das madrugadas macaen-
ses de avaliação.
Agora preciso aprender a tecer a vida, no mundo.
Puxar fios, atar nós, prender e soltar amarras, preciso apren-
der a tecer junto, superar minhas experiências solitárias.
Pois o desafio é tal que só fará sentido se
Enredar o todo, enredar todos, enredar tudo
Assim não vai puir, assim não vai esgarçar, assim não rasga
jamais.

.1 2 A imagem da comida: considerações acerca do consumo de


Alimentos

Fiz meu prato e me sentei do seu lado.


Estava à procura de nutrientes, para o corpo e também para a
alma.

19
No prato tinha um tanto de comida que não precisava, ape-
nas consumi.
Que ali estava quase inocente, mas completamente atraves-
sada de interesses.
Você tinha tudo para minha alma, e sobrava.
Tudo tão propositadamente ali, sempre sem interesse.
Era tão natural que assim fosse, nutria-me todo,
Era tão prazeroso assim ser, felicidade, posse, sucesso.
Ainda assim, perfeito não era.
Você, eu, nossa comida éramos apenas elementos em meio a
regras e sanções.
Meros sujeitos-objetos-mercadorias do consumo.
Ainda que para nós tenha sido sempre um rito.
Nosso desejo pondo tudo a perder, nosso maior risco
Despudoradamente, obsolescentemente embutido.
Quando peguei sua mão, e a puxei sem perguntar
E nos arrastamos para dentro das imagens que construímos,
Queria apenas encontrar um punhado de farinha
Uma pedra vermelha de quente onde assar o pão
Que faria com a água e o sal do nosso suor e
Que mataria nossa fome de tudo para sempre.

.1 3
Trilhas das águas: imagem, memória e Educação Ambiental de
base comunitária no Vale do Jequitinhonha

Imaginei um mundo diferente, um mundo sempre atualizado.


Uma das coisas diferentes era o sistema que tratava do nome
das localidades, uma lei proposta por um político da antiga ci-
dade de Buraco Fundo, agora chamada Paraíso Dourado, que
alegrara imensamente a sua população. Pela lei as localidades
eram obrigadas a atualizar seus nomes diante das mudanças
naturais do mundo em constante e frenética transformação. No
dia da votação da lei o empenhado político foi enfático ao de-
fender que ela era mais que necessária para atrair o capital e
dar segurança aos investidores do mundo global que deveriam
estar esclarecidos sobre onde poriam seus recursos. Afinal, era

20
um mundo pleno de informação, transparente. Rapidamente,
ao lado de Paraíso Dourado, Rio Pequeno virou Rio Grande e
Pedregal virou Campo Florido. Nesse mundo as leis “pegavam”
e tal desenvolvimento não tardou a se propagar. Rio Cristalino
tornou-se Rio Preto, Monte Alto virou Grande Vale, Sossego era
agora Agitópolis, entre outras realísticas mudanças. Grande Flo-
resta foi um caso muito especial, teve que mudar de nome 3 ve-
zes em poucos anos. Primeiro virou Mato Alto, depois Matinha e
finalmente Desertópolis. Sempre atento à correta sinalização ao
capital. Ali os processos eram tão acalorados e dispendiosos que
não sobrou recursos para mais nada, a saúde foi abandonada e
as crianças não foram para a escola. Estava pensando em uma
próxima lei que fora protocolada e dizia que as pessoas perde-
riam seu nome após perder os pais, que eram a origem do nome,
devendo adotar um novo nome, quando fui surpreendido. Perce-
bi a imagem eloquente do ancião de Paraíso Dourado, que com
uma foto antiga de Buraco Fundo clamava pela memória da
população reunida na praça e pedia o retorno ao nome antigo,
pois o Paraíso se tornara escuro pela fumaça do progresso que
os impedia de se verem e que nos tempos de outrora ao menos
lutavam juntos para tapar o buraco.

.1 4
Reflexos da sociedade excitada no Ensino Superior: O vício em
imagens e a supersaturação dos sentidos como obstáculos no
ensino aprendizagem de Bioquímica

Ei! Ei! Ei você leitor dedicado, viajando de forma frenética


ou contida neste infinito de possibilidades desta obra tão real
quanto imaginária, ao mesmo tempo real e imaginária. Ei você
professor, às vezes cansado às vezes insatisfeito com o anda-
mento das suas aulas, e por isto querendo mudar algo, mudar
tudo. Ei você aluno, sedento de saber mais, deslumbrado com
a bioquímica mas ainda tropeçando em compostos, ligações,
proteínas, enzimas, no espaço, no tempo e nas formas. Ei você
bioquímico da bancada, do mundo paralelo, do pedestal das
descobertas cotidianas que circularão nas revistas científicas

21
mais importantes mundo a fora. Ei você, apenas um curioso.
Achegue-se, ouse atravessar este capítulo. Aqui tem um te-
souro, que não será difícil descobrir, que não será difícil possuir.
Pegarão na sua mão e te mostrarão um montão de joias para
a vida e você entenderá tudo. Trarão debates teóricos muito
pertinentes e sem exageros. À sua frente estarão de forma cla-
ra os limites e as contradições quando nos excedemos em usar
soluções educativas aparentemente testadas e aprovadas, sem
perceber que serão lançadas em um mundo que já pode estar
supersaturado, viciado até em determinados signos. E ainda
segurando na sua mão, mas massageando muito seu cérebro e
seu olhos afastarão um pouco e de forma sensata da cena re-
cursos educativos que sempre julgamos infalíveis, para iluminar
alternativas que já carregamos conosco. Não vou contar mais, se
joguem, pois as joias serão suas. Quando atravessei, a excitação
deu lugar ao deleite, eu sabia que utopia seguir e como faria:
filosofar-imaginar-bioquimicar-filosofar-imaginar-bioquimicar...

.1 5
A rede sociotécnica da relação entre ribeirinhos e onças no
Amazonas costurada por imagens

Faz parte de mim desde os tempos de criança as histórias de


onças.
Um tempo em que ainda não éramos tão saturados de
informação.
Era sempre de noite, à meia luz, pela força da narrativa do
meu pai,
Quando um universo mágico e impensado me punha em
excitação.
Com frequência o bicho levava a pior, crianças precisam de
heróis.
Às vezes perdia do macaco na ladinice, e do gavião que sabia
voar.
Mas como ninguém na floresta, mesmo em noite de breu puro,
Sabia sorrateira da vítima se achegar sem nem mesmo um
graveto estalar.

22
E nada me impressionou mais que saber que a onça sabia fa-
lar e escalar.
Nos meus tempos de adulto as histórias de onças continua-
ram lá.
Conheci o mundo de valentias e aperreios de Manoel Mata-
-Onça no Pará.
O mesmo mundo de ficção de minha infância, mas também
do ribeirinho.
Eu as encontrei muito pouco, uma nadando, uma sedada, ou-
tra atropelada.
Desejo encontrá-las sempre de novo a cada nova entrada na
floresta.
Pois o que me impressionara na infância ainda me impressio-
na como adulto.
Lá pros lados de Mamirauá, quando a água chega prá tudo
molhar,
A onça escala o Apuí, para lá em cima por meses morar.
E vem também de lá dos lados do Mamirauá este consistente
relato.
Que me deu certeza de que no mundo comum as onças falam.
Quando em simetria se (des)velam todos os atores e toda sua
rede.
O fio tá aí, é só seguir...

.1 6
Natureza e cosmovisão: do que se fala quando se fala em
natureza?

Você eu meus pais e nossos vizinhos os velhos e os novos os


sábios os letrados pela letra e os letrados pela vida pela pedra
pela dor e pelo tombo estudo recito maravilhosamente o filó-
sofo os filósofos ajunto alguns sociólogos e um cientista político
sempre me robustecem muito. Quão erudito posso ser? Quem
me levou para a mata e me tirou dela foi quem? Quem derreteu
meus ouvidos quando o coração virou uma cabeça de alfinete
e os meus olhos dois buracos negros foi quem? O doce cantar
aprendido do vento na cachoeira na folha seca que estala no

23
ensurdecedor barulho do silêncio do infinito nada que me segue
como um rabo de foguete na desembestada busca em nada
vi ninguém ouvi ou considerei afinal pensei estas outras coisas
penduradas no alto do céu enganchadas numa gota de felicida-
de ou explodindo de todo ser que é todo pleno em todo lugar. Só
então decidi olhar para trás, olhar para cima para baixo e para
frente já estava tudo lá sempre esteve só que usurpado por jei-
to de ser que não é jeito não é nada... eu só não poderia ter dito
que não sabia que não queria que não entendia aí uma bola de
imaginação estourou na minha cara e eu fiquei pensando so-
nhando sentindo vivendo gritando nunca nada foi tão real e tão
imaginário e tão vivo e tão morto tão erudito e tão povo.

.1 7
Educomunicação e emergência climática: o imaginário quilombola
em tempos de resistência

Eu sempre soube que ali não ficaria, não parado, não quieto,
não mudo. Se era dali não quer dizer que só seria dali, ali seria
uma parte de estar em todo o mundo.
Eu não queria ficar ali porque queria um outro conhecimento e
urgia buscá-lo.
Só faria sentido se tivesse todo o conhecimento e precisava do
todo para ter tudo.
Tudo é terra. Tudo é água. Tudo é fogo. Tudo é ar.
E na terra que eu já pisava, mais eu pisei, nela me afirmei,
signifiquei meu existir. A resistência dela deu sentido à minha
resistência, comi a terra e ele me nutriu na jornada. Desejei ter a
terra e descobri que se ela não fosse de todos melhor seria que
fosse de ninguém. Disfarcei-me de terra, pintei-me de terra, en-
fiei me na terra.
A água chegou molhando, dissolvendo, derretendo e mistu-
rando tudo.
Não mais havido o seco, o árido, o morto. Com a água pene-
trei espaços ínfimos, corri planícies intermináveis e evaporei para
cair como lágrimas dos seus olhos.

24
Onde não fui como água, levou-me o fogo, no qual ardi até me
desfazer em ondas de calor. Foi pelo fogo que o mais duro derre-
teu e o mais puro se formou.
Achei então que conhecera o tudo que estivera buscando e me
perguntei: Cheguei?
Mas só pude de fato conhecer quando o ar bafejou: Se chegou
eu não sei, mas estou certo que você saiu... e isto basta.

.1 8
Filmes e vídeos na Educação Ambiental e espectador (cri)ativo:
Reflexões sobre uma trajetória na pesquisa e extensão em
educação

Só as bolhas que eu fiz não bastaram. Nem as de chiclete,


nem tão pouco as de sabão.
As de chiclete me traziam satisfação, sempre maiores e aquele
barulhão.
Na infância me traziam atribulação, pois como nadar e asso-
viar, eu nunca faria não.
Quando aprendi a fazer, parece que cresci, colava a cara e ca-
belos com prazer.
Conquistada esta vitória, parei de mascar, nojento, é parte de
minha trajetória.
Já as de sabão são outra história, desde muito atrás, sempre
parte da memória.
Era com o talo do mamão, e a barra de sabão, assim fazia mi-
nha imaginação.
Uma, duas, dezenas, uma pequena, uma média, uma grande,
centenas.
Forrei o céu e todo o chão, com muitas bolhinhas, era minha
falação.
Mas não bastaram, as bolhas que fiz, todas elas, de mim,
voaram.
Tudo mudou quando minha bolha a tua encontrou.
Era agora um bolhão, que uniu produção e recepção
num diálogo que se fez pura comunicação.

25
.1 9
Las dos caras del dios Jano o cómo conviven las dos imágenes
encontradas de una misma ciudad: Santa Fe de la Vera Cruz

Todos corremos logo para as cidades,


Tornamo-nos uma população predominantemente urbana.
Os sistemas naturais nos sustentam, mas deles só queremos
tirar,
Nos aglomeramos como muitas estratégias de viver.
A verdade é que talvez os prejuízos sejam maiores.
Símbolos máximos de quanto podemos nos desenvolver.
Construir, ligar, levantar, remover, poluir.
Curioso que com frequência é o medo que nos domina.
Nos metemos em cubículos, pois não há espaço para todos.
Horas e horas no transporte, em filas, tudo quase impossível.
Seremos capazes um dia de nos encontramos e descobrir a
verdadeira riqueza das cidades que são seus habitantes?

26
Imaginamundos: a importância do
ato de imaginar como apropriação
e ressignificação de si e do mundo
Rafael Nogueira Costa
Robson Loureiro
Celso Sánchez
Sergio Luiz Pereira da Silva

01.
Introdução:
Introdução disputar o imaginário

Não há mudança sem sonho, como não há sonho sem esperança (FREIRE, P. 2019b,
p. 126).

Não há mudança sem sonho,


como não há sonho sem esperança
(FREIRE, P. 2019b, p. 126).

O nosso imaginário está em disputa. Por diversos caminhos, diariamente, pes-


soas e corporações tentam conquistar nossa forma de imaginar o mundo. As
mensagens que piscam e saltam às inúmeras telas que nos cercam são exemplos
dos artifícios para a captura de nossa atenção e funcionam como flechas que
atravessam nosso imaginário. Máquinas de espalhar imagens, conceitos, ideolo-
gias e visões de mundo. Assim funciona o “vírus da mente”, parasitas que “coloni-
zam” nosso imaginário, como os “memes”, termo cunhado pelo zoólogo Richard
Dawkins, na obra O gene egoísta (TORRES, 2016). Surgindo de inúmeras direções,
todas essas flechas miram o mesmo alvo, o nosso imaginário.
A proposta deste texto parte da urgência de imaginar novos mundos! Para
isso, é necessário produzir e disputar imagens de coisas reais e as consciências, o
que Sartre chamaria de “imagens mentais"1 (SARTRE, 1996).
Neste capítulo, o imaginário é pensado como construção de sonhos possíveis,
desejos, vontades. A disputa do desejo é algo que em algum momento foi esque-
cido no projeto progressista. De Galeano a Paulo Freire, o desejo da utopia está
apontado, seja como horizonte que acompanha os passos do caminhante e o faz
caminhar, como nos ensina o escritor uruguaio, seja para o que o educador brasi-
leiro chamou de inédito-viável2.
Na disputa para conquista do imaginário, o dominador, o agente do poder
hegemônico, precisa de uma estratégia: produzir a cegueira. A perda da capaci-
dade de enxergar com os “olhos da mente”, aphantasia (ZEMAN; DEWAR; SALA,
2015), é fundamental para que as forças dominadoras possam operar com seus

28
tentáculos, como nos mostrou Sara- atuam diretamente no métier cinema-
mago, em 1995, em sua obra Ensaio tográfico, a partir de uma perspectiva
sobre a cegueira. crítico-dialógica, porque em sintonia
Em nossa sociedade, de outras ce- com as múltiplas vozes e corpos silen-
gueiras sem ensaio, esse fenômeno ciados, rejeitados, excluídos, oprimidos,
não é apenas individual, é social. Para tem-se a chance de se produzir uma
uma sociedade anestesiada, robotiza- estética negativa àquela hegemônica
da, distraída pelos múltiplos estímu- no cinema do mainstream.
los, quase sempre enganada por um Apesar das especificidades, das inú-
turbilhão de informações e notícias meras diferenças típicas de cada mé-
falsas, criam-se os “gabinetes do ódio” tier, qual seria a principal característi-
(produtores de cegueira). Para mante- ca que se poderia considerar própria,
rem-se no poder, com seus privilégios tanto do set de filmagem como do
de elite dominante, as forças domina- “set” da sala de aula? De fato, ainda
doras e hegemônicas temporárias pre- que dificilmente se possa romper com
cisam de seus cegos errantes. a racionalidade cognitiva, parece que
No caso do Brasil, recortado racial e ambos os espaços de produção exi-
patriarcalmente por um projeto supre- gem uma relação de trabalho coletivo,
macista de ódio, historicamente emas- guiada muito mais pela imaginação
sado a comportamentos heteronorma- criativa que pela racional-cognitiva.
tivos e violentos, torna-se necessário Mas, será que esse tipo de atividade
produzir estímulos para a imaginação tem sido estimulada, nos processos
de novos mundos. educativos das escolas, na educação
básica e nas universidades? Será que
Os colonizados jamais poderiam ser tanto as relações de produção cinema-
vistos e perfilados pelos coloniza- tográfica do cinema do mainstream,
dores como povos cultos, capazes, como aquelas que acontecem no âm-
inteligentes, imaginativos, dignos de bito da produção e socialização do co-
sua liberdade. [...] Pelo contrário, os nhecimento, nas escolas e universida-
colonizados são bárbaros, incultos, des, têm seguido os antigos métodos
‘a-históricos’, até a chegada dos co- pautados na memorização, na repeti-
lonizadores que lhes trazem a história ção e na competitividade?
(FREIRE, 2019b, p. 211, grifo nosso). Nossa hipótese encontra-se cen-
trada na ideia de que o cinema pode
Portanto em que medida o cinema ser um potente espaço de formação,
crítico e dialógico pode contribuir, para quando produzido de maneira crítico-
ampliar a capacidade imaginativa, -dialógica, ao possibilitar a troca de
tanto de quem produz quanto do pú- experiências e o encontro com outras
blico que tem sido cativo do modelo visões de mundo.
estético afirmativo3 da cinematogra- Consideramos que as narrativas in-
fia hegemônica? Ao nosso ver, tanto dividuais e coletivas são experiências
para quem milita no campo específico que estimulam a imaginação criati-
da educação, como para aqueles que va. Elas são essenciais para todo o

29
processo de compartilhar aprendiza- docente uma reunião, aproveitando
gens. Por sua vez, o ato de imaginar o material da escuta do mundo, da
pode ser considerado mediador, autor- fotografia do mundo? Uma discussão
reflexivo e constitutivo da consciência com a meninada em volta, falando
do sujeito (SODRÉ, 2012, p. 99). Para sobre as fotos, por exemplo, que, no
esse autor, a criatividade está vincula- fundo, são verdadeiras codificações!”
da à imaginação e tem um potencial (FREIRE; GUIMARÃES, 2013, p. 36,
libertador que permite ultrapassar a grifo nosso).
racionalidade mecânica. Longe de ser
um ato irracional, “[...] a criatividade é Nesse livro, Paulo Freire comenta
a gestão de algo novo em um contexto uma prática educativa por ele reali-
inteiramente novo” (SODRÉ, 2012, p. zada, em um curso na Faculdade de
104-105). Educação da Universidade de Genebra
Enquanto as instituições educativas (Suíça), onde foi professor por alguns
limitarem os processos imaginativos anos. Ele montou dois seminários, para
e criativos, os discentes continuarão serem realizados, durante um semes-
na árdua tarefa de serem “[...] consu- tre: um era “A escuta da realidade”,
midores de mensagens pré-fabrica- que seria realizado pelos discentes
das” (FREIRE; GUIMARÃES, 2013, p. com o auxílio de gravadores de som e
25). Dessa forma, em muitos espaços o outro era “fotografia do mundo”. 
educativos, o lado ativo e criador dos
alunos e das alunas não é central o Em grande parte do Brasil era pos-
processo.   sível fazer isso também. Partir para
No diálogo entre Paulo Freire e Sér- uma experiência grande da menina-
gio Guimarães, que se lê em Educar da ouvindo gente, gravando gente,
com a mídia (FREIRE; GUIMARÃES, gravando passarinho, gravando buzi-
2013), os autores acenam caminhos na de carro! A meninada podia fazer
possíveis para uma prática educati- uma excelente gravação da poluição
va mais ativa e que vá em busca da auditiva desta cidade, como poderia
realidade: fazer uma fotografia da poluição vi-
sual deste município. Só não poderia
Imagina agora que a criançada ti- gravar nem fotografar o mau cheiro.
vesse, inclusive, uma disciplina. ‘Você (risos) Mas o resto poderia filmar,
tem quinze dias para fazer a sua es- gravar e trazer, discutir e debater
crita do mundo e trazer pra gente’ (FREIRE; GUIMARÃES, 2013, p. 36).
[...] essa escrita do mundo podia ser
visualmente fixada também, porque Apesar do tom apocalíptico e exa-
podia ser a fotografia do mundo. [...] gerado4, Vilém Flusser nos faz refle-
Essa escola, fazendo isso, já está in- tir sobre as imagens5 e os sons nos
troduzindo a meninada na pesquisa, processos de mediação, segundo o
num certo tipo de pesquisa, numa qual funcionam de “maneira ambiva-
certa metodologia que não é tradi- lente, subjetiva, inconsciente” e serve
cional. [...] E por que não fazer o corpo como um veículo de propagação de

30
mensagens (FLUSSER, 2007, p. 115). construção do imaginário e do discurso
Essa “[...] revolução no mundo da co- sobre a realidade. Desta forma, preci-
municação influencia nossa vida com samos responder à seguinte questão:
mais intensidade do que tendemos como fortalecer o processo de imagi-
habitualmente a aceitar” (FLUSSER, nação pela produção de imagens que
2007, p. 127). Ou seja, chegamos ao “[...] potencializem a maior quantidade
mundo tecnoimaginário” dos modelos, possível de formas de vida?
que entre outras questões, codificam De acordo com Paulo Freire, não é
os conceitos (FLUSSER, 2007, p. 136). pela substituição da escrita e dos livros
Em outras palavras: que se fará a história. Até porque, ele
foi um leitor voraz e apresentava uma
Não há paralelos no passado que nos verdadeira veneração pela palavra
permitam aprender o uso dos códi- e pela escrita. Não obstante, como
gos tecnológicos, como eles se mani- ele nos sugere, começar pelo mundo
festam, por exemplo, numa explosão (ordinário, do senso comum, do mun-
de cores. Mas devemos aprendê-lo, do da vida, do imediato) para propor
senão seremos condenados a prolon- transformações.
gar uma existência sem sentido em Se atualmente vivemos em uma ex-
um mundo que se tornou codificado citada sociedade do espetáculo ima-
pela imaginação tecnológica (FLUS- gético-eletrônico (ZUIN, 2013), cujo
SER, 2007, p. 137). contexto social, a esfera pública, tem
sido dominada pelos aparelhos, apa-
Uma das funções das excitantes ratos, pelas tecnologias da informação
tecnoimagens é codificar e significar e da comunicação, não se trata de eli-
o mundo. Entretanto, “[...] elas podem minar a escrita e a leitura do processo
se tornar opacas para ele, encobri-lo formativo das crianças e adolescentes,
e até mesmo substituí-lo” (FLUSSER, muito pelo contrário.
2007, p. 143). Nesse sentido, o imaginá-
rio entra em disputa pela produção de Da “palavramundo” para o
imagens, aprisionando as pessoas. “imaginamundos”

A imaginação não mais supera a [...] foi pela imbricação de sentimen-


alienação, mas torna-se alucinação, tos, emoções, observação, intuição
alienação dupla. Essas imagens não e razão que ele [Paulo Freire] criou
são mais ferramentas, mas o próprio a sua “leitura de mundo”, uma epis-
homem se torna ferramenta de suas temologia, uma teoria do conheci-
próprias ferramentas, ‘adora’ as ima- mento, uma compreensão crítica da
gens que ele mesmo havia produzido educação na qual disse a sua palavra
(FLUSSER, 2007, p. 143). lendo o contexto do mundo ditado
pelo “texto” que seu corpo consciente
Fica evidente, nessa passagem lhe dizia e ele “escutava” e sobre ele
de Vilém Flusser, a potência da pro- refletia (Ana Maria Araújo FREIRE,
dução de imagens na disputa pela 2015, grifo nosso).

31
Priscilla Menezes (Rio de Janei

Vive e trabalha Rio de Janeiro.


UERJ, professora de Arte e Educa
manas e Sociais da UNIRIO. Tem
 No livro-palestra A importância do indissociabilidade entre ae“leitura
desenho a poesia doe busca reinv
ato de ler, Paulo Freire nos presen- mundo” e a “leitura da palavra”.
fronteiras Ou
entre imagem e palavr
teou com sua “palavramundo”. Para seja, a “[...] linguagem e a realidade se
poética e a invenção da vida. Em
ele, a “leitura” do mundo, que teve prendem dinamicamente” (FREIRE,
to” pela Editora Patuá. Em 2018,
início no pequeno quintal, à sombra 1989, p. 9). Por isso, foi preso, durante
da Editora Ágrafa. Em 2019, lanç
da mangueira no Nordeste brasileiro, 75 dias na ditadura militar
invadir de 1964, aoque cercara
os latifúndios
precisava estar associada à “leitura da experimentar junto com Babel
coleção alunosda e alu-
Editora Nadifú
palavra”. Ou seja, para aprender a ler nas do setor de Extensão Cultural da
sição individual “Partenogênese”
e escrever, é preciso, antes, apropriar- Universidade de(RJ). Recife,
Noamesmo
“alfabetiza-
ano, participou d
se do mundo, do concreto e do real, de ção” vinculada à“conscientização”.
Corpos” no Centro Cultural da Ju
maneira indissociável (FREIRE, 1989). No livro Pedagogia do oprimidofocada nos tem
tém investigação
Imaginar um filme da vida de Paulo (FREIRE, 2013), escrito no exílio,
cantamento do quan-
mundo e o pensa
Freire é imaginar uma criança de corpo do estava no Chile, Freire consolidou
franzino, brincando de ler o mundo em suas observações em prol das trans-
um quintal à sombra de uma manguei- formações do mundo e em favor da
ra. O jardim da casa era a sua escola, vida. Existir, para ele, passou a ser pelo
uma escola contornada por árvores, direito de pronunciar o mundo e modi-
colorida e repleta de vida. Nesse filme ficá-lo (FREIRE, 2013).
imaginário, o chão de terra representa A partir das suas “andarilhagens”,
o quadro negro, a textura do graveto Paulo Freire pôde dialogar com o di-
riscando o chão cria palavras e can- ferente, e ampliar ainda mais a sua
ções, como um lápis de um poeta6. leitura de mundo a qual se deu não só
Aquele menino da geração dos lam- na concretude do real, mas também
piões, os quais davam luz às ruas, am- foi alimentada pela literatura cientí-
plia o seu horizonte, quando sua famí- fica. Sua obra é recheada de diálogos
lia se muda para Jaboatão, no Recife. com autores de áreas distintas: Albert
Aos dez anos de idade, o menino Paulo Memmi, Álvaro Vieira Pinto, Vygotsky,
conhece a miséria, a fome e a pobreza Franz Fanon, Marcuse, Karel Kosik,
no Morro da Saúde. Søren Kierkegaard, Josué de Cas-
Sua “palavramundo” foi se consti- tro, Gramsci, Karl Marx, Kant, Hegel,
tuindo política, pelo contraste social Gaston Bachelard, Hegel, Jean-Paul
a que era exposto, ao transitar entre Sartre, Gyorgy Lukács, Amílcar Cabral,
a periferia e os bancos escolares e Agnes Heller, Simone Weil, Wright Mil-
universitários, primeiramente do Co- ss, Boal, Fals Borda, entre outros. São
légio Osvaldo Cruz e, em seguida, na autores e autoras que ampliaram suas
Faculdade de Direito de Recife, atual leituras no mundo.
Universidade Federal de Pernambuco Mas, sem dúvida, foi em contato
(UFPE). com outras realidades que se fez Ser
Deixou de lado a profissão de ad- mais, enquanto teórico e pensador.
vogado para se tornar professor de Paulo Freire se tornou potente, ao pisar
português. A partir de então, come- em outros solos, os solos frios da Euro-
çou a pôr em prática suas imagi- pa e os solos quentes da África:
nações em favor dos oprimidos, na

32
1988)

outora em Artes Visuais pela


o no Centro de Ciências Hu-
ma profunda relação com o
tar os usos e asEm equipe,
formas debatêramos, em Gene-
das invasões alienígenas. “Imaginar para
bem como entre bra,
a acriação
melhor maneira de, na Guiné- conquistar” tornou-se tão importante
-Bissau,
017, lançou o livro “Errover e ouvir, indagar e discutir,
táci- quanto “dividir para conquistar”. Por
de que“Tertúlia”
egrou a publicação resultaria o programa de isso, disputar o imaginário, pode ser
nossa contribuição.
um livreto intitulado “Eu vou Programa, por- também uma ação contra-hegemô-
tanto, parte
minha carne” como a nascerdalá, em diálogo com os nica. Para nós, o cinema é trincheira,
nacionais,
o. Em 2018, realizou em torno de sua realidade,
a expo- arte de atirar com imagens. 
a Galeria Gustavode suas necessidades e de nossas
Schnoor A guerra da imagem. Assim como
possibilidades,
coletiva “Emergência dos e não em Genebra, age o “dominador antidialógico”, des-
ça Federal. Além feito por nós
disso, man-para eles (FREIRE, 2019, tacado por Paulo Freire, para quem o
p. 23).o reen-
do ecofeminismo, dominador, “[...] nas suas relações com
ento poético. o seu contrário, o que pretende é con-
O conceito imaginamundos, que rei- quistá-lo”. Para isso, utiliza-se de mil
vindicamos neste capítulo e que foi es- artifícios, “[...] das mais duras às mais
tímulo à organização deste livro, está sutis; das mais repressivas às mais
vinculado à realidade concreta, como adocicadas, como o paternalismo”
nos ensinou Paulo Freire. Ou seja, “[...] (FREIRE, 2013, p. 186). Um dos objeti-
a superação da contradição opressor- vos dessa disputa pelo imaginário é
-oprimido”, exige a “[...] inserção crítica apresentar o mundo como algo está-
dos oprimidos na realidade opressora”. tico, a que os homens e mulheres se
Para ele, o reconhecimento verdadeiro devem ajustar, em vez de lutar por sua
é aquele que conduz à inserção crítica transformação:
e à ação transformadora da realidade
objetiva: Daí que os opressores desenvolvam
uma série recursos através dos quais
Este é o caso de um reconhecimento propõem à “ad-miração” das massas
de caráter puramente subjetivista, conquistadas e oprimidas um falso
que é antes o resultado da arbitrarie- mundo. Um mundo de engodos que,
dade do subjetivista, o qual, fugindo alienando-as mais ainda, as mante-
da realidade objetiva, cria uma falsa nha passivas em face dele. Daí que,
realidade “em si mesmo”. E não é na ação da conquista, não seja possí-
possível transformar a realidade con- vel apresentar o mundo como proble-
creta na realidade imaginária (FREI- ma, mas, pelo contrário, como algo
RE, 2013, p. 53, grifo nosso). dado, como algo estático (FREIRE,
2013, p. 187).
A especificidade da imaginação
está relacionada com a necessidade Dessa disputa do imaginário, sur-
da “conquista”. Para a subjugação de gem os mitos, “[...] indispensáveis à
Abya-Yala e de Pindorama, foi preci- manutenção do status quo” (FREIRE,
so imaginar o Novo Mundo e inventar 2013, p. 188), criados por uma enge-
a Europa (Dussel, O encobrimento do nhosa máquina de propagar falsas
outro); para a Guerra Fria, foi preciso notícias, com slogans e comunicados,
inventar e imaginar de super-heróis e comprovarando sua “eficiência” na

33
eleição para a presidência, senado e compreender todo o universo que diz
congresso em 2018. Isto é, “[...] os con- respeito à sua realidade. Na consciên-
teúdos e os métodos da conquista va- cia ingênua, não se tem condições de
riam, historicamente, o que não varia, apreender o fenômeno, a não ser em
enquanto houver elite dominadora, é sua superficialidade, em sua imedia-
esta ânsia necrófila7 de oprimir” (FREI- ticidade; àquilo que se apresenta. A
RE, 2013, p. 190). consciência crítica opera com as me-
Na base de qualquer processo diações, com a apropriação do clássi-
emancipatório está a faculdade da co/erudito, do conflito gerado pelas re-
imaginação, que exige dinâmicas pró- lações dialógicas – leitura/discussão/
prias. Educar para imaginar é pressu- problematização.
por a fortuna crítica acumulada, nos Assim, a educação para a imagina-
debates materializados na literatura ção possibilita a projeção de inéditos
específica. Ou seja, o ponto de partida viáveis, não como futuros distantes
(do ato educativo) é a realidade (ime- ou ficcionais, mas como momentos
diata, ordinária, o mundo cotidiano) presentes possíveis ou um futuro es-
para o processo de ampliação do nível tendido de suas ações a imaginações.
de experiência e consciência. Logo o conceito que defendemos, ima-
Busca-se superar a realidade con- ginamundos, parte de uma situação-li-
creta, aquilo que se apresenta de for- mite, para se nutrir no “inédito viável”,
ma imediata: a miséria, a pobreza, a pois a imaginação é o primeiro passo,
opressão, as condições aviltantes de para a realização dos sonhos possíveis,
produção da existência material (do ou seja, o início da caminhada para al-
corpo) e simbólica (a cultura). No caso cançar a utopia:
da apropriação do saber, trata-se de
se apropriar não daquilo que já se co- Os inéditos viáveis, além de serem
nhece (a menina, o menino inserido no sonhos coletivos, deverão estar sem-
contexto rural já conhece e lida com pre a serviço da coletividade, não
a terra), mas somente com base na- tem um fim em si mesmos. São, por-
quilo que supostamente conhece, no tanto, sonhos fundamentalmente de-
âmbito da superficialidade, de forma mocráticos a serviço do mais humano
ingênua. O conhecimento relativo às que existe em nós seres humanos
ciências agrárias, por exemplo, que (ANA FREIRE In: STRECK; REDIN; ZI-
pode ajudar a melhorar a produção TKOSKI, 2017, p. 226).
da plantação, de leite, ovos entre ou-
tros; o conhecimento da matemática, Imaginamundos é um impulso para
da física que elevam a qualidade do a defesa da vida e da compreensão da
trabalho dos operários da construção interdependência e da impermanên-
civil. Partir da palavra8 tijolo, que é o cia, ou seja, a característica ecossis-
objeto de trabalho do operário, do pe- têmica dos seres vivos. Todos os seres
dreiro da construção civil, para se che- vivos estão conectados ecossistemi-
gar, por meio da palavra-conceito, do camente entre si, trocando matéria
diálogo horizontal, pelas mediações, a e energia constantemente, fazendo

34
a roda da vida girar no seu ciclo de O auxílio do cinema para provocar
nascimento, reprodução e morte. De- imaginações outras
sencantamento pode ser sinônimo de
morte existencial, imaginar correto é A imaginação como potência. A ima-
se encantar. Como nos afirmam Luis ginação nos provoca não só a con-
Antonio Simas e Luis Rufino, em Flecha templação, mas também a ação, não
no tempo, “[...] o contrário da vida não só chorar nossos mortos, mas tam-
é a morte, mas o desencanto” (SIMAS; bém confrontar nossos algozes, não
RUFINO, 2019, p. 5). só a fazer a crítica da realidade, mas
Contudo mais do que a criação de projetar um outro tipo de existên-
um método, no campo da educação, cia, não lamentar o fim de um velho
uma das principais contribuições de mundo, mas elaborar as bases de um
Paulo Freire foi a Pedagogia libertado- mundo novo. O exercício da imagi-
ra, cuja menina dos olhos é o processo nação radical é uma possibilidade
de alfabetização. Nesse processo, a de transfiguração do mundo (Francis
“leitura de mundo” antecede a “leitura Vogner dos Reis, 23a Mostra de Cine-
da palavra”, conforme comentado nes- ma de Tiradentes, 2020).
ta seção.
 Inspirado nessa proposição, pen- Com os filmes, produtos mais ime-
sar uma ética/estética do audiovisual, diatos da indústria cinematográfica, o
em especial, do cinema, que contex- público pode proporcionar uma expe-
tualize e emoldure um sentido para riência, tanto para consumir os inúme-
as imagens, talvez seja um caminho ros aspectos neles contidos, de forma
viável capaz de uma reeducação do fugaz e descomprometida, tal como se
imaginário. exige do entretenimento corriqueiro e
Guiado pela obra de Paulo Frei- usual, como também ter uma experi-
re, esta proposta visa romper com a ência autêntica e negativa, repleta de
heteronomia (consciência ingênua) e descobertas9, que é “acompanhado
produzir a consciência crítica (auto- “[...] por um processo de imaginação
nomia e emancipação), mediadas por que ao mesmo tempo se nutre do ima-
um “cinema” libertador das amarras/ ginário social e o alimenta” (NOVAES,
esquematismos da indústria cultural 2008, p. 465).
hegemônica (LOUREIRO; ZUIN, 2010;  O cinema prevê, ainda, um lugar
LOUREIRO, 2018). Uma estética crí- para a subjetividade dos/das cine-
tica e libertadora para o cinema não astas-pesquisadores/as no processo
descarta o desejo pela leitura do tex- de observar e interpretar a realidade.
to escrito, caso contrário, a fantasia/ Conforme Bleger (1975), “[...] observar,
imaginação e criatividade estarão sob pensar e imaginar coincidem e consti-
o domínio dos operadores da indústria tuem um só processo dialético. Quem
cultural hegemônica que sustenta a não usa a fantasia poderá ser um bom
excitada sociedade do espetáculo (DE- verificador de dados, mas não um
BORD, 1997). pesquisador”.

35
Para isso, é necessário respeito à de uma sociedade livre dos grilhões
pluralidade, criando formas democrá- que produzem, além da danificação
ticas, circulares e que proporcionem o individual e coletiva, também, a des-
diálogo e a comunicação. Esse tipo es- truição da natureza.
pecífico de cinema cria um movimento
intelectual que possibilita a entrada O mundo ao avesso nos ensina a
de vozes ausentes e silenciadas pelo padecer a realidade ao invés de
modelo hegemônico de conhecimento. transformá-la, a esquecer o passado
O cinema que defendemos gera um ao invés de escutá-lo e a aceitar o
processo de reflexão, durante o seu futuro ao invés de imaginá-lo: assim
processo de construção, entre o/a ci- pratica o crime, assim o recomenda.
neasta-pesquisador/a mediatizados Em sua escola, escola do crime, são
pelo outro e pelo ambiente. obrigatórias as aulas de impotência,
Por isso, defendemos um cinema amnésia e resignação. Mas está visto
que caminha no sentido da emancipa- que não há desgraça sem graça, nem
ção humana, conforme descreve Lopes cara que não tenha sua coroa, nem
(2012): desalento que não busque seu alento.
Nem tampouco há escola que não
Podemos dizer que uma obra cine- encontre sua contraescola (Eduardo
matográfica assim construída, trará GALEANO, livro: De pernas pro ar: a
benefícios incomensuráveis são só escola do mundo ao avesso, 2018, p.
para a educação, mas para o pró- 8).
prio cinema e estará, seguramente,
não só sinalizando caminhos, mas A nossa hipótese é que podemos di-
construindo-os numa perspectiva vidir a imaginação em duas vertentes
não colonial. Esse cinema - de que diferentes: a imaginação passiva e a
precisamos e desejamos na qual alie imaginação ativa. A imaginação passi-
beleza formal com conteúdos que va é constantemente disputada pelos
promovam reflexão. Precisamos, em operadores do capital. A publicidade e
suma, de um cinema que rompa com o marketing atuam nesse imaginário.
modelos estereotipados, que possa As propagandas buscam, de maneira
desvincular-se da produção em sé- sutil, transformar os sujeitos em ob-
rie, da ‘linha de montagem’ (LOPES, jetos de desejos, máquinas desejan-
2012, p. 135). tes. A imaginação passiva está sendo
disputada com o uso de metadados e
Imaginar pelo cinema é construir algoritmo das emoções10, que geram
roteiros dialógicos, em contextos esco- propagandas direcionadas, a partir
lares e não escolares, criar narrativas do suposto interesse dos sujeitos, que
imagéticas com base em lógicas hori- navegam nas redes sociais on-line, im-
zontais. O cinema pode ser uma pro- pulsionados pelas possibilidades aber-
posta educativa, na qual a sua produ- tas da internet. No paradigma clássi-
ção, inspirada em conceitos freirianos, co da Modernidade, imaginava-se a
propicia suscitar o sonho de produção natureza como um tapete, em que se

36
poderia não apenas apreender as leis redes neurais pré-existentes, por meio
da natureza, mas explorá-la, retirar de simples associações. Acreditamos
dela toda a potência de vida. que esse tipo de experiência possa li-
berar neurotransmissores ligados ao
As coisas que os brancos extraem prazer, ao desejo e à necessidade de
das profundezas da terra com tanta mudança, como: dopamina, gaba,
avidez, os minérios e o petróleo, não acetilcolina e serotonina. Já na ima-
são alimentos. São coisas maléficas e ginação passiva, muitas vezes ligada
perigosas, impregnadas de tosses e ao consumo, pode desencadear uma
febres, que só Omama conhecia. Ele, “relação entre estressores, estresse e
porém, decidiu, no começo, escondê- ansiedade” (MARGIS et al., 2003).
-las sob o chão da floresta para que Na imaginação ativa, a natureza já
não nos deixassem doentes. Quis que não é produto e recurso e, sim, parte
ninguém pudesse tirá-las da terra, integrante do ser, que, ao estar co-
para nos proteger. Por isso devem ser nectada a ela, passa a reivindicar sua
mantidas onde ele as deixou enter- saúde. Reivindicamos a imaginação
radas desde sempre. A floresta é a ativa e a posse da capacidade criativa
carne e a pele de nossa terra, que é e inventiva pelos sujeitos. De mudança
o dorso do antigo céu Hutukara, ca- de sujeito consumidor desejante para
ído no primeiro tempo. O metal que sujeitos críticos, capazes de identificar
Omama ocultou nela é seu esqueleto, os processos de subjetivação que o
que ela envolve de frescor úmido. São transformam em coisas, mercadorias.
essas as palavras dos nossos espí- Dessa forma, vemos um sujeito que
ritos, que os brancos desconhecem ganha a propriedade do seu tempo e
(Xamã Davi Kopenawa Yanomami). a sua capacidade de ser e existir em
plenitude. O sujeito proprietário de sua
Com relação à imaginação ativa, imaginação se torna protagonista e a
produz mudanças corporais e neurofi- aponta para a transformação do real.
siológicas como forma de apropriação Educar seria, então, potencializar
do mundo, por isso, ela é cri-ativa. Ela imaginações? Em tempos atuais, nota-
produz novas redes neurais. É o que mos uma disputa de narrativas, visu-
acontece quando lemos Júlio Verne, alidades e virtualidades. Em discursos
por exemplo, ou quando temos um recentes, emitidos pelo “alto” escalão
insight, durante um filme, como Ba- do Governo Federal, assistimos à fa-
curau11. Essas experiências produzem lácia de que a educação é o caminho
uma imaginação ativa, que nos obri- para se atingir um certo ideal de socie-
gam a reorganizar as memórias e os dade, formatado a partir de padrões
sentimentos e nos impactam de uma impostos por seus idealizadores. Por
maneira muito diferente. Somos nós isso, Paulo Freire passou a ser alvo de
quem produzimos as imagens no cé- disputas e considerado um dos maio-
rebro por nós mesmos, em função de res riscos para a sociedade. 
toda a experiência vivida. Na imagi- Contudo, compreendemos que,
nação ativa, estimulam-se caminhos e em lugar de apropriar-se do mundo,

37
é fundamental aprendermos a nos “chefe da seção”. Está empregado e
apropriar do ato de imaginar, que é sua esposa feliz. Pai de dois filhos, o
também um ato de produzir mundos. operário acorda cedo para começar
A disputa do imaginário consiste em seu dia de trabalho. Com uma escada
possibilitar que a nossa capacidade de de madeira, um balde de cola e carta-
sonhar e de existir não seja roubada. zes, começa sua rotina de trabalhador.
No alto da escada, ele assiste a um
Ladrões de bicicleta e de imaginações ladrão subir em sua bicicleta e sumir
no meio da multidão. Corre desespe-
O filme Ladrões de bicicleta (1948), rado, em vão, começa aí a busca do
do diretor Vittorio De Sica, é um belo principal objeto que o mantinha na
representante da estética do “neorre- labuta. Dessa forma, “a bicicleta era
alismo italiano”12. Nesse filme, um ope- seu instrumento de trabalho e, se não
rário, Antônio Ricci, percorre as ruas de a encontrar, ele ficará, sem dúvida, de-
Roma, procurando a bicicleta que lhe sempregado” (BAZIN, 2018, p. 344). A
fora roubada. O que há de mais extra- corrida revela muitas camadas de um
ordinário na narrativa é que os atores local marcado por seu tempo:
são todos amadores, sem experiência
no teatro e no cinema e todo o filme é Do mesmo modo, a escolha da bici-
gravado na rua, numa Itália devastada cleta como objeto-chave do drama
pós-segunda guerra mundial. é característica a um só tempo dos
O roubo da bicicleta é o elemento costumes urbanos italianos e de uma
central da história. Mas não era uma época em que os meios de transporte
bicicleta qualquer. Para aquele operá- mecânicos são ainda raros e onero-
rio, a bicicleta era o passaporte para sos. Não vamos insistir: outros cem
um emprego como “colador de carta- detalhes significativos multiplicam as
zes”. Mesmo sem bicicleta, o operário anastomoses do roteiro à atualidade,
aceita o emprego. Em casa, sua espo- situam-no como um evento da histó-
sa, Maria Ricci, encontra uma forma ria política e social, em tal lugar, em
de conseguir de volta a bicicleta, que tal ano (BAZIN, 2018, p. 345).
tinha sido empenhada para comprar
alimentos e que tiraria seu marido do São estes os elementos do filme: a
desemprego. Ela resolve vender os len- cidade em ruínas, o operário, a bicicle-
çóis e deixa a cama nua. A partir da- ta e o roubo, que “[...] não passaria de
quele momento, dormiriam em cama um infortúnio banal sem o espectro do
sem lençol. São seis lençóis, quatro desemprego que o situa na sociedade
usados e dois novos, vendidos por sete italiana de 1948” (BAZIN, 2018, p. 345).
mil e quinhentos. Por sei mil e cem, o Portanto o filme só ganha “sentido em
operário pega de volta a bicicleta que função da conjuntura social (e não psi-
o colocaria no mercado de trabalho. cológica ou estética) da vítima” (BA-
O operário chega ao emprego abra- ZIN, 2018, p. 345).
çado à bicicleta como se ela fosse um Participa desse drama, o filho do
troféu, sobe as escadas e procura o operário, um garoto chamado Bruno

38
Ricci, um ator do povo “descoberto na Nas últimas cenas do filme, os dois
rua entre os curiosos” (BAZIN, 2018, p. andam pelas ruas de mãos dadas. O
345). No filme, o garoto segue o pai em pai sem palavras, desmancha em lá-
busca da bicicleta roubada pelas ruas grimas. O dois somem na multidão e
e vielas, debaixo de chuva, no meio do revelam o lado ordinário da vida: “[...]
povo, sujo e faminto, [...] “[...]ele é a fe- a vergonha social do operário des-
nomenologia do roteiro” (BAZIN, 2018, mascarado e esbofeteado em plena
p. 351), em outras palavras: rua não é nada perto daquela de ter
tido seu filho por testemunha” (BAZIN,
[...] a criança constitui uma espécie de 2018, p. 349).
reserva dramática que, dependendo
do caso, serve de acompanhamento, Ataque ao imaginário: o perigo da
ou passa, ao contrário, para o pri- imaginação única13
meiro plano melódico. Essa função
interior à história é, aliás, perfeita- O filme analisado na seção ante-
mente sensível na orquestração da rior traz elementos para se pensar as
caminhada do garoto e do homem transformações nos territórios14, que
(BAZIN, 2018, p. 350). convertem as paisagens em cenários
monocromáticos. Nesse capítulo, cha-
Após uma longa e frustrada busca, mamos atenção para Macaé (RJ), que
no final do filme, a criança “[...] dá à teve seu território modificado por cau-
aventura do operário sua dimensão sa de uma atividade mineradora de
ética e cria uma perspectiva moral in- extração de petróleo.
dividual nesse drama que poderia ser A “Princesinha do Atlântico” foi “rou-
apenas social” (BAZIN, 2018, p. 348). bada”, para dar lugar à instalação de
O pai resolve roubar uma bicicleta um complexo petrolífero, no final da
e tenta esconder sua decisão do filho. década de 1970, que alterou comple-
Para isso, ele entrega um dinheiro ao tamente o território do município. A
garoto e pede para que o ele pegue o estratégia de ocupação foi suficiente
bonde até o Monte Sacro, para ali se para descaracterizar praias e restin-
encontrarem. A criança perde o bonde gas. Uma analogia com o filme pode
e decide voltar ao encontro do pai. O ser feita a partir da busca por empre-
que ele vê, a partir daí, é o seu herói vi- gos. Em tempos de recessão, os em-
rar um ladrão. Acontece uma inversão pregos são apresentados como moeda
dos papéis, o operário que corria atrás de troca. Tudo pode ser feito, desde
do ladrão, virou o ladrão em fuga. que gere empregos. Sendo assim, as
Uma multidão o cerca e frustra o seu imaginações que circulavam em torno
projeto. A criança corre em direção à da “Princesinha do Atlântico” foram
multidão, e o dono da bicicleta, como- “roubadas” para dar origem à “Capital
vido com a presença do filho naquele do Petróleo”.
momento, resolve não prestar queixa à A estratégia funcionou muito bem
polícia e libera o operário. até a crise do petróleo de 2015, que
revelou aos moradores e transeuntes,

39
o lado mais perverso dessa história. É públicos em áreas próprias para o
como se o ladrão fosse flagrado. Não convívio entre humanos e natureza.
restou outra possibilidade, senão cho- Incentivar o comércio local, a produ-
rar na crise. Com a saída de empresas, ção de alimentos pelos movimentos
para locais mais próximos ao pré-sal, sociais, aplicar e poupar os royalties
que se encontra na Bacia de Santos, o para o período pós-petróleo. Propor-
receio do que será a “Capital do Petró- cionar espaços de encontro e reduzir as
leo” continua presente. Não resta outra desigualdades sociais. Parece muito?
saída, senão imaginar novos mundos, Nossas imaginações fazem o corpo
novos arranjos econômicos, sociais e trabalhar e, para que essas trans-
ambientais para esse território. Alguns formações possam ocorrer, sigamos
intitulam a transição para “Cidade do imaginando novos mundos, se possível
conhecimento”15, outros apostam no sem desigualdades, injustiças sociais,
turismo por abrigar a maior Unidade sem a exploração do homem pelo
de Conservação que protege a restin- homem, tampouco da natureza. Um
ga, no Brasil, um arquipélago de ilhas mundo viável possível. Não apenas na
oceânicas próxima à costa e praias imaginação.
com águas próprias para esportes de
ação, como canoagem, surfe, kitesurf, Considerações finais
entre outros.
Não resta dúvida, é necessário re- Com este texto procuramos pensar
pensar os arranjos socioeconômicos e a imaginação como campo em dispu-
ambientais, investir em políticas públi- ta. Utilizamos o arsenal freiriano, para
cas transparentes, fundamentadas no entender que há muito as forças hege-
diálogo horizontal com a comunida- mônicas já conhecem e dominam as
de e que vise ampliar a qualidade do estratégias sutis, de produzir e operar
transporte público, do saneamento ur- a cegueira, por meio de uma insistente
bano, além de estimular o ecossistema excitação e entorpecimentos dos sen-
de inovação, conectar as universidades tidos. Disputar o imaginário é parte da
públicas com o poder público e com os nossa tarefa, enquanto sujeitos his-
movimentos sociais locais, assim como tóricos oprimidos no caminho para a
as empresas, potencializar múltiplas libertação.
interações. Tornar a cidade referência Imaginamundos é um princípio do
de casos de sucesso. ato de imaginar. É não aceitar o mun-
Quebrar a monocultura do petróleo do da forma como é imposto, prede-
e proporcionar o multiculturalismo. terminado. A imaginação é absolu-
Valorizar a arte, a liberdade de expres- tamente necessária para a formação
são, o cinema, a música, as institui- dos sujeitos críticos. A não aceitação
ções, os ecossistemas e sua biodiver- de predeterminações cria nos indivídu-
sidade. Criar áreas protegidas, como os uma possibilidade de imaginação,
Unidades de Conservação. Proteger que é um elemento essencial do pen-
a bacia hidrográfica, caixa d’água samento libertador. Não se pode ser
da cidade e transformar os espaços crítico sem imaginar outros mundos.

40
A imaginação que defendemos pelas 2019.
trocas de olhares possibilita novas re-
flexões, não só pela denúncia das ma- BAZIN, A. O que é cinema? Tradução:
zelas do mundo, mas, sobretudo, pelo Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ubu
anúncio de outros mundos possíveis. Editora, 2018. 448 pp.
Apropriar-se do ato de imaginar é BUENO, C. Algoritmo das emoções.
também apropriar-se da possibilidade Revista Ciência e Cultura, São
tanto de produzir como de transformar Paulo, v. 69, n. 4, p. 62-64, 2017. Doi:
realidade social injusta que danifica as http://dx.doi.org/10.21800/2317-
subjetividades e destrói a natureza. É 66602017000400019.
assumir o alvo da flecha no tempo. De
mirar as utopias e produzir o encanta- CANDAU, V. Apresentação. In:
mento. Urgente e fundamental, para CANDAU, Vera. (org.). Interculturalizar,
outros mundos possíveis. A imaginação descolonizar, democratizar: uma
ativa é como caminho para o imagi- educação “outra”? Rio de Janeiro, RJ: 7
namundos, como uma grande tela de Letras, 2016.
cinema, onde projetamos inéditos viá-
veis. Essas são as nossas apostas para CARDOSO JUNIOR, W.; CANDAU, V. M.
um cinema engajado, afinado, com F. Interculturalidade e ensino de artes
princípio pedagógico crítico e liberta- visuais do Colégio Pedro II. Educação,
dor e com a possibilidade de supera- Revista Santa Maria online, v. 43, p.
ção das opressões. Se imaginar serve 721-740, 2018.
para conquistar, oprimir e explorar, ela
também pode e deve servir para liber- COUSINS, M. História do cinema: dos
tar. A última e a primeira fronteira da clássicos mudos ao cinema moderno.
liberdade é a imaginação. Tradução Cecília Camargo Bartalotti.
São Paulo: Martins Fontes, 2013.
Agradecimentos
DEBORD, G. A sociedade do
Somos gratos à leitura e comentá- espetáculo. Rio de Janeiro:
rios, na primeira versão deste texto às Contraponto, 1997.
seguintes pessoas: Américo de Araujo
Pastor Júnior e Jeanete Simone Fende- FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta.
ler Höelz. O presente trabalho foi rea- Título do original alemão: Für eine
lizado com apoio da Coordenação de Philosophie der Fotografie. Tradução
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível do autor. Editora de Humanismo,
Superior - Brasil (Capes) - Código de Ciência e Tecnologia (Hucitec), São
Financiamento 001. Paulo, Brasil, 1985. p. 92.

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J. (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. 3a ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J.


J. Dicionário Paulo Freire. 3a Ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

43
NOTAS

Capitulo 1

1 Para Sartre (1996, p. 37), “[...] não se pode estudar à parte a imagem
mental. Não há um mundo das imagens e um mundo dos objetos. Mas todo
objeto, quer se apresente à percepção, quer apareça ao sentido íntimo, é
suscetível de funcionar como realidade presente ou como imagem.

2 Categoria trabalhada na obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE,


2013). A força teórica desta categoria está descrita detalhadamente na obra
Dicionário Paulo Freire (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2017).

3 Diz respeito à estética que reforça o modelo de produção do cinema


clássico, de praticamente toda a história do cinema pós-Hollywood até os
dias atuais.

4 Losso (2013) tece reflexões que relativizam a tese de Vilém Flusser.


Para ele, existe uma “[...] confiança exagerada no estético”, o que “[...] pode
diminuir o valor de verdade da teoria e somente garantir seu valor ficcional”
(LOSSSO, 2013, p. 5). Mesmo sabendo disso, consideramos suas ideias para
refletir sobre o papel da imagem na nossa sociedade.

5 O filósofo Jean-Paul Sartre, ao traçar “uma história da imaginação”


na obra A imaginação, aborda os contrastes inerentes ao conceito de

44
imagem, ao observar como alguns filósofos clássicos pensaram o conceito
da consciência à luz da fenomenologia. Sartre, conclui que “a imagem é um
certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é
consciência de alguma coisa” (SARTRE, 2008, p. 137). Para ele, “o Ser é aquele
que possui consciência da sua existência” (KAWALA; SOLER, 2017, p. 123).

6 Para conhecer profundamente sobre a vida do andarilho da utopia,


sugerimos a amorosa biografia escrita por Ana Maria Araújo Freire (FREIRE,
2017).

7 O filósofo camaronês Achille Mbembe produziu uma obra com


bastante rigor teórico ao interpretar o processo de colonialidade, a partir da
macroestrutura das políticas da morte (MBEMBE, 2018).

8 No processo de alfabetização, Paulo Freire trabalhava muito com


imagens, apesar de considerá-las “um ponto de apoio visual”, mas que
poderiam ser usadas “como um recurso eficaz para ‘domesticar’ como para
servir a propósitos libertadores” (FREIRE, 2019a, p. 126). Dois pintores foram
muito atuantes em seus trabalhos, Francisco Brenand e Vicente de Abreu
(FREIRE, 2018).

9 A relação entre imaginação, etnografia e cinema foi experimentada


em grande parte da obra de Jean Rouch. Na produção fílmica-etnográfica
de Rouch, o imaginado estava presente como percepção do real, pois para
ele a construção da realidade passa necessariamente pela imaginação
(GONÇALVES, 2008).

10 De acordo com Bueno (2017), os algoritmos de análise de emoções


já são utilizados por várias empresas para direcionar os seus produtos,
conforme o interesse e o estado psicológico das pessoas. Suas aplicações
ultrapassam o uso em publicidade e já estão sendo direcionadas para as
áreas da saúde, educação e segurança.

11 Bacurau (2019) um filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano


Dornelles.

12 Com a devastação da segunda guerra mundial, uma nova linguagem


cinematográfica se fez presente. Conscientes dos acontecimentos que
ocorriam em sua volta, os cineastas escreveram na história e levaram o
realismo para o cinema. Na Itália, na década de 1930, “[...] o cinema ainda era
tingido pelos ideais fascistas de Mussolini [...]. Em busca de novos temas e
estilos para refletir a mudança da realidade, desenvolveram o neorrealismo”
(COUSINS, 2013, p.188).

45
13 Em homenagem à Chimamanda Ngozi Adichie e suas reflexões em O
perigo de uma história única (ADICHIE, 2019).

14 A América Latina é um palco para a compreensão deste tipo de


ataque. No Brasil, na história recente, podemos destacar a “lama laranja”,
fruto do rejeito de minério, que invadiu as imaginações em Mariana em 2015
e em Brumadinho em 2019.

5 Por exemplo, no livro “Macaé do caos ao conhecimento: olhares


acadêmicos sobre o cenário da crise econômica” organizado pela prefeitura
de Macaé e publicado em 2019.

46
Produção de vídeos ambientais
e educação profissional crítica:
desafinando o coro dos contentes
Maria Inês Paes Ferreira

02.
Introdução
Introdução

E eis que o Anjo me disse,


Apertando a minha mão,
Com um sorriso entre dentes:
Vai, bicho,
Desafinar o coro dos contentes.
Torquato Neto

E eis que o Anjo me disse,


Apertando a minha mão,
Com um sorriso entre dentes:
Vai, bicho,
Desafina o coro dos contentes.
Torquato Neto

O trabalho de produção de vídeos ambientais associado à formação profissio-


nal de jovens estudantes de nível médio que ora será apresentado iniciou-se na
virada do Século XXI, em pleno burburinho das mudanças trazidas pela desvin-
culação entre ensino médio e ensino técnico profissionalizante, introduzidas pelo
Decreto 2.208/1997. Apesar da resistência oferecida por educadores da Rede Fe-
deral de Educação Profissional e Tecnológica, defensores da formação integral e
critica do trabalhador (CIAVATTA; RAMOS, 2012), a promulgação do Decreto cris-
talizou de forma inequívoca a pedagogia do trabalho no contexto da acumula-
ção flexível, que promove a inclusão subordinada de segmentos sociais vulnerá-
veis – “a exclusão includente de setores precarizados”, e simultaneamente conduz
o trabalhador de setores produtivos mais complexos a um processo de redução
ontológica, pautado em estratégias educativas voltadas à flexibilização do tra-
balho e de suas relações (KUENZER, 2006), com o discurso midiático de estímu-
lo às capacidades de flexibilidade e adaptabilidade a um ambiente laboral de
transformações organizacionais associadas à garantia da competitividade e à
maximização dos lucros corporativos (BATISTA, 2011; KUENZER, 2006). O Decreto
reafirmou a histórica dualidade estrutural da educação de nível médio no Brasil,
separando a formação propedêutica, de conteúdos fundamentalmente teóricos
e bases científicas, destinada às elites e à classe média, da formação eminente-
mente prática, destinada às classes trabalhadoras (MOURA, 2007), reforçando
um “modelo societário neoliberalizante” (RAMOS, 2002), financiado por organis-
mos internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco

48
Mundial (BATISTA, 2011; CIAVATTA; de imagens, filmagens e edição), es-
RAMOS, 2012; RAMOS, 2002). Afinal, a tamos permanentemente debatendo
perspectiva de formação integral, para acerca dos problemas socioambientais
além do “apertar de botões” fordista/ locais, divulgando as ações concretas
taylorista, não possui aderência ao que porventura estejam desenvol-
trabalho alienado, fundante do capi- vidas na região, trocando saberes e
talismo, que reinventa continuamente experiências acerca das causas e das
sua práxis, hoje materializada na acu- consequências da ‘acelerada degra-
mulação flexível do mundo globalizado dação ambiental em curso no Brasil.
e nos Estados-Corporações (MAR- Na perspectiva da ecologia política,
QUES, 2016), dominados por grupos adotamos a etnografia dos conflitos
hegemônicos diversos, que no presente socioambientais (LITTLE, 2006) para
trabalho são metaforicamente deno- iluminar as reflexões que subsidiaram
minados “o coro dos contentes”. a elaboração dos vídeos de educação
Em plena transição capitaneada ambiental produzidos pela equipe da
pelo Decreto 2.208/97, na então Uni- InSitu Produções.
dade de Ensino Descentralizada de Inicialmente desvinculados do pro-
Macaé do Centro Federal de Educação jeto político-pedagógico institucional
Tecnológica de Campos dos Goytaca- da Unidade Macaé, implementada
zes (hoje Campus Macaé do IF Flumi- para prover a indústria do petróleo de
nense), construída pelo Governo Fede- mão-de-obra técnica especializada, os
ral em parceria com o Poder Público vídeos de Educação Ambiental eram
municipal e a PETROBRAS, iniciou-se idealizados e produzidos por equipes
uma experiência inovadora com estu- voluntárias de professores, servidores
dantes de nível médio dos cursos técni- e alunos de nível médio, em atividades
cos integrados à formação propedêu- extra-classemulti e inter disciplina-
tica, que o Decreto e os financiadores res, contando com apoio de parceiros
internacionais pretenderam extinguir. externos. Apesar de desafinar o coro
A opção pela produção de vídeos do dos contentes, a linguagem resultan-
tipo documentário-ficção de temática te do diálogo de saberes envolvidos
ambiental, que apresentam a histó- nesse processo de construção coletiva
ria da ocupação da mesorregião de institucionalizou-se como projeto de
atuação do IF Fluminense, de forma extensão após a premiação nacional
lúdica e ao mesmo tempo popular, foi do vídeo “A Flor do Mangue”, em 2007,
elencada como estratégia para sensi- originando assim a InSitu Produções
bilização da sociedade, independen- (equipe produtora de vídeo associada
temente da faixa etária e do grau de ao Núcleo de Pesquisa em Petróleo,
escolaridade. Além disso, no processo Energia e Recursos Naturais do IF Flu-
de construção coletiva dos vídeos, ao minense (NUPERN) e ao Programa de
buscar envolver os membros da co- Pós-graduação em Engenharia Am-
munidade em todas as etapas de pro- biental do IF Fluminense (PPEA-IFF).
dução (desde a adaptação do roteiro, Em dois “movimentos temáti-
dramatização, pesquisa de locação e cos”, relatam-se a seguir algumas

49
experiências desenvolvidas em cerca “Complexo Hidrelétrico Macabu-Glicé-
de quinze anos de atividades protago- rio. Concluída na década de 50, a obra
nizadas por jovens de classes traba- era na época considerada a maior hi-
lhadoras, que vivenciaram e vivenciam drelétrica da América Latina e graças
as contradições de uma formação que, à represa da Sodrelândia (localizada
se por um lado os prepara para o in- na localidade denominada Tapera, em
gresso num setor complexo, permeado Trajano de Moraes) deixa secos quase
de inovações tecnológicas sedutoras e 5 km do rio Macabu, privando de água
simultaneamente propulsor do aqueci- propriedades ribeirinhas à jusante
mento global, por outro lado, “desafi- (FREITAS et al., 2015).
na” e os incita ao questionamento so- Por outro lado, a então recém-pro-
bre o planeta que herdarão do status mulgada Política Nacional de Recursos
quo que ruma, de crise em crise, para o Hídricos (BRASIL, 1997), ao dizer em
colapso ambiental a níveis local, nacio- seu art. 1º, VI, que “a gestão dos recur-
nal e global(MARQUES, 2016). sos hídricos deve ser descentralizada
e contar com a participação do Poder
Allegro: Conflitos pelos usos de recursos Público, dos usuários e das comunida-
hídricos e transposição de bacias des”, o fez sem eleger distinções entre
hidrográficas: afinados com quem? os segmentos componentes do Sis-
tema Nacional de Gerenciamento de
Os sistemas socioambientais são Recursos Hídricos - SINGREH. O Esta-
caracterizados por relações internas do brasileiro como principal mediador
assimétricas derivadas da assime- dos processos de gestão ambiental,
tria de poder entre “dominadores” e deveria, portanto, promover meca-
dominados” (LAYRARGUES; LIMA, nismos diversos para possibilitar aos
2014), que possuem interesses diver- indivíduos perceberem-se como sujei-
sos quanto ao uso e à a apropriação tos sociais capazes de compreender a
dos recursos naturais, caracterizando complexidade da relação sociedade&-
assim conflitos ambientais, os quais natureza, e atuar de que o processo de
por sua vez resultam em espaços con- gestão de recursos hídricos de forma
correnciais e territórios em disputa qualificada, sendo esta a principal
(IBAMA, 2002; LEFF, 2015; LOUREIRO, motivação da equipe de produção
2003). No caso da gestão de recursos de vídeos do NUPERN, no sentido de
hídricos, os usos múltiplos da água e promover a divulgação de diferentes
o controle desse recurso com vistas à saberes relacionados à história socio-
geração de energia elétrica em detri- ambiental que levou e leva o estado do
mento aos usos agrícolas de pequenos Rio de Janeiro à situação preocupante
e médios proprietários geraram um na qual se encontra.
conflito ambiental na região do alto Desde 1998, na onda da promulga-
curso da bacia hidrográfica do rio Ma- ção da Lei das Águas, a comunidade
cabu, materializado na transposição da então UNED Macaé já estava com-
entre as bacias dos rios Macabu e Ma- prometida com a gestão participati-
caé, do hoje parcialmente desativado va, integrada e descentralizada das

50
águas, abrigando em suas instalações médio, a contradição entre a formação
o Centro de Referência do Movimento profissional e formação geral estava
de Cidadania pelas Águas (MCPA) de explicitada nos documentos oficiais,
Macaé. O MCPA era uma iniciativa do como as à época recém publicadas
Conselho Regional de Engenharia e Ar- “Diretrizes Curriculares Nacionais para
quitetura do estado do Rio de Janeiro a Educação Básica”, apontavam a ne-
(CREA-RJ), que apoiava a divulgação cessidade de democratização do co-
da PNRH e de ações ambientalmente nhecimento e dos bens do progresso,
sustentáveis que colaborassem com bem como de resolução de problemas
a conservação dos recursos hídricos, socioambientais. Apoiada e justificada
viabilizando material de folheteria e pelo discurso hegemônico das exigên-
organização de encontros de sensibi- cias do mercado de trabalho por um
lização, mobilização e troca de expe- trabalhador cujos atributos principais
riências entre estudantes, ambienta- fossem “a criatividade e as capacida-
listas e técnicos da área ambiental. des de transferência, de integração
No Centro de Referência do MCPA de e de adaptação do conhecimento a
Macaé reuniam-se voluntários de di- pronta resolução de problemas”, a
versas formações e estudantes de nível equipe da UNED Macaé lançou-se à
médio que realizavam coleta e análise tarefa de promover “práticas peda-
de águas da região, em parceria com gógicas voltadas à formação integral
o curso técnico em Química da sede da do educando”, entendendo “a ques-
instituição, localizada em Campos dos tão ambiental como especialmente
Goytacazes. Os estudantes consegui- adequada ao desenvolvimento de
ram o apoio da Comissão Pró-agenda metodologias de superação da frag-
21 local de Macaé e se autodenomina- mentação do saber, característica da
ram Grupo PQP (“pra que poluir?”) e formação tecnicista praticada em nos-
entre 1998 e 2000 apresentaram os re- so país nas décadas de 70 e 80” (AZE-
sultados de contaminação das águas VEDO; SHIROMA; COAN, 2012; FER-
do rio Macaé e do Rio Sana por esgoto REIRA; MELLO, 2003; RAMOS, 2002).
doméstico em diversos eventos de ca- Transcendendo o currículo oficial da
ráter local e regional, com a irreverên- formação técnica de cursos ofertados
cia que posteriormente viria a caracte- na época (Eletrônica e Eletromecâ-
rizar os trabalhos da InSitu Produções. nica), formatados para prover com
Adicionalmente, a década de 90 mão-de-obra o mercado de trabalho
trouxe para a educação profissional regional, voltado para a economia do
desafios pedagógicos e tecnológicos petróleo, as ações do MCPA/ Grupo
associados à defesa de uma formação PQP ganharam visibilidade no mo-
profissional abrangente e crítica versus vimento ambiental, em municípios
o reducionismo do “adestramento de vizinhos.Com a bandeira “Queremos
trabalhadores” voltado à inserção em nosso rio de volta”, ambientalistas e
setores produtivos específicos. Especi- professores de uma escola estadual
ficamente no caso dos cursos técnicos situada em Conceição de Macabu pro-
dotados de formação geral de nível curaram o então CEFET Campos (hoje

51
Instituto Federal Fluminense) solicitan- de forma lúdica como brancos, negros
do apoio técnico para a execução de e índios da região serrana relaciona-
um projeto intitulado “Pelas Águas da ram com o ambiente, culminando na
Bacia do Rio Macabu”, com o objetivo situação ambiental daquela bacia hi-
de mobilizar a comunidade local em drográfica. Paralelamente à etapa de
prol da reversão da transposição. Par- pesquisa de campo necessária para
tindo das análises de água para uma a filmagem das cenas idealizadas
contextualização multidisciplinar co- no roteiro, os jovens participavam de
ordenada por professores de Química, reuniões com representações da co-
Biologia, História e Geografia das duas munidade, num processo que resultou
instituições envolvidas, diversas ações na elaboração de um Diagnóstico Am-
de mobilização foram planejadas, con- biental Rápido Participativo (DARP) da
tando com a participação de atores região da Cachoeira da Amorosa.
sociais governamentais e não gover- Essa metodologia foi adotada em
namentais, destacando-se a Comissão diversos vídeos da InSitu: a equipe de
Pró-comitê da Bacia Hidrográfica do produção e direção do vídeo estabele-
rio Macabu e as prefeituras municipais ce coletivamente o eixo-norteador do
de Conceição de Macabu, Trajano e roteiro a ser trabalhado, o qual será
Santa Maria Madalena (FERREIRA; detalhado a nível de adaptação para
MELLO, 2003). Para dar maior visibili- a linguagem cinematográfica, decu-
dade às questões ambientais relativas pagem de cenas e storyboard. Após
ao uso e ocupação das terras da bacia concluído o storyboard, o grupo dá
hidrográfica em questão, entre 2002 início à escolha do elenco e estabelece
e 2003, os participantes do “Projeto o cronograma de filmagens, nos locais
Pelas Águas da Bacia do rio Maca- inicialmente pesquisados, e em loca-
bu” optaram por produzir um vídeo de ções específicas destinadas a simular a
“Educação Ambiental e mobilização história roteirizada. À filmagem segue-
popular”, que resgatasse de forma -se a edição do vídeo, por equipe com
leve e crítica à história ambiental do conhecimentos específicos em infor-
município. mática, escolhida entre os participan-
Como o projeto foi inicialmente con- tes do projeto, sempre acompanhada
cebido por docentes sem qualquer da equipe de direção. O vídeo editado
experiência em produção multimídia, é então renderizado e copiado para
procuramos especialistas no assunto distribuição gratuita ao público-alvo,
para capacitar a equipe de participan- e lançado em eventos específicos, no
tes, conseguindo o apoio da TV Pinel, CEFET e na comunidade, seguido de
associada à Universidade Federal do mesa-redonda e/ou debates sobre
Rio de Janeiro. Após oficinas de rotei- a questão ambiental abordada no
rização, fotografia e direção, num rico trabalho.
processo de construção coletiva, coor- Durante o processo de produção e
denado por uma estudante do curso divulgação regional do “Lendas das
técnico de Eletromecânica, nasceu o Águas”16 , foi decisivo o apoio do Con-
vídeo “Lendas das Águas”, que relata sórcio Intermunicipal da Macrorregião

52
Ambiental N° 5 do estado do Rio de da população. A análise feita permi-
Janeiro (Consórcio MRA-5), que co- tiu verificar que os principais desafios
ordenava juntamente com o CREA/ que a Região Hidrográfica do Atlântico
MCPA a Comissão Pró-comitê da Ba- Sudeste tem a enfrentar quando se
cia Hidrográfica do rio Macabu. Cabe trata de garantir uma perspectiva sa-
destacar que a Política Estadual de tisfatória para o aproveitamento dos
Recursos Hídricos criou por meio da recursos hídricos estão relacionados ao
Lei 3.239/1999 o Sistema Estadual tratamento dos efluentes domésticos e
de Gestão de Recursos Hídricos (SE- industriais, a melhora da eficiência no
GRHI), cujas diretrizes e regulamentos consumo da água, a compatibilidade
estaduais foram implementados pelo entre abastecimento doméstico (ma-
Decreto Estadual 26.058/00 (RIO DE nanciais), as atividades de exploração
JANEIRO, 2000), que dividiu o estado mineral e a recuperação ambiental
do Rio de Janeiro em macrorregiões (nascentes, matas ciliares e áreas de-
para efeitos de gestão ambiental ins- gradadas), tarefas que estavam den-
pirou-se no conceito de gestão territo- tro do escopo de atuação do Consórcio
rial integrada por bacia hidrográfica MRA-5, que congregava representa-
(ODUM, 1971). Para implementar as re- ções de onze municípios, grandes em-
giões macrorregiões ambientais, o go- presas ligadas à produção de energia,
verno estadual estimulou a formação concessionárias de saneamento e ins-
de consórcios intermunicipais, envol- tituições da sociedade civil (organiza-
vendo municípios, usuários de recursos das numa Plenária de ONGs).
naturais e organizações da sociedade Foi o Consórcio MRA-5 que junta-
civil como co-responsáveis pelo plane- mente com a Diretoria de Relações
jamento e gestão ambiental, incluindo Empresariais e Comunitárias do CEFET
entre suas atribuições diversificadas a Campos viabilizaram os cinegrafistas
promoção e implementação de comi- que deram apoio à equipe de estu-
tês de bacia hidrográfica. dantes envolvidos na produção do
É importante ressaltar que a ecor- vídeo, que captou imagens e falas de
região fluminense está situada na assentados e quilombolas da região,
sub-região do Litoral do Estado do Rio descendo a serra de Trajano de Moraes
de Janeiro (Região Hidrográfica do e Conceição de Macabu até a “baixa-
Atlântico Sudeste), classificada como da dos Goytacazes, aonde deságua o
de baixa disponibilidade de água por rio Macabu. A história de dominação
habitante pelo Plano Nacional de homem-natureza e homem-homem é
Recursos Hídricos. Do ponto de vista explicitada de diversas formas nas três
da qualidade dos recursos hídricos, a personagens centrais: o branco (“a es-
análise síntese do documento supraci- tória de Mota Coqueiro”), o negro (Ca-
tado demonstrou o comprometimento rucango Rei) e o índio (“A índia Amo-
da disponibilidade hídrica pelo lança- rosa”). Em Quissamã, o depoimento
mento de efluentes domésticos e in- da quilombola “Dona Cheiro” comove
dustriais sem tratamento, que atinge por sua crueza: o avó de ex-escravos
inclusive mananciais de abastecimento tornou-se o capataz da fazenda, algoz

53
de negros desobedientes e fujões e é à localidade da transposição (Tapera,
entremeada pela dramatização da em Trajano de Moraes), influente e mo-
fala do líder quilombola, Carucango derna na década de 50, mas posterior-
Rei, conclamando seus companheiros mente abandonada pelos trabalha-
a resistir, antes de ser massacrado pe- dores que vieram para a execução da
las tropas portuguesas. A índia Amo- obra, altamente impactantes (FREITAS
rosa, atacada, estuprada e morta pelo et al., 2015; FREITAS; SANTOS, 2015).
conquistadores simboliza a mesma No vídeo, uma viagem no tempo é a
Natureza que Lord Bacon queria tor- estratégia usada pela jovem roteirista
turada para revelar aos homens seus para abordar as questões da barra-
segredos...A proposta surgida durante gem e da transposição do rio Macabu,
a execução do “Projeto Macabu” foi a que configuravam conflitos de uso da
de transformar a área da Cachoeira água e incompatibilidades com os fun-
da Amorosa em uma Área de Prote- damentos da PNRH.
ção Ambiental (APA). Por abranger Segundo a Lei Federal n.º 9.433/97,
três municípios (Conceição de Macabu, que instituiu a PNRH, a gestão de re-
Trajano de Moraes e Santa Maria Ma- cursos hídricos deve proporcionar o uso
dalena), a Unidade de Conservação múltiplo das águas, priorizar o abas-
(UC) de uso sustentável estadual até tecimento humano, considerar a bacia
hoje não foi criada, mas a região da hidrográfica como unidade de gestão
Cachoeira encontra-se perpetuamente e reconhecer a água como bem pú-
protegida por duas UCs de Proteção blico dotado de valor econômico. No
Integral do tipo Reservas Particula- entanto, ao observarmos alguns casos
res do Patrimônio Natural estaduais, específicos relacionados às pressões
resultado inequívoco do projeto: as de demanda existentes, como o caso
RPPNs Águas Claras I e Águas Claras da transposição das águas do Rio Ma-
II, localizadas à montante do principal cabu para a Bacia Hidrográfica do Rio
atrativo turístico de Conceição de Ma- Macaé, muitas questões relativas à
cabu, em área adquirida em 2009 pela PNRH não são inteiramente conside-
autora do presente trabalho. radas, fazendo-se necessário soluções
Entre 2004 e 2005, o segundo vídeo institucionais de integração entre as
produzido pela equipe já contou com bacias hidrográficas, como por exem-
os próprios estudantes como cinegra- plo: o repasse de recursos provenientes
fistas e editores e detalha a temática da cobrança pelo uso da água, a im-
originalmente e motivadora do projeto plementação de projetos de conserva-
“Pelas Águas da Bacia do rio Macabu: ção e preservação dos mananciais e o
os conflito oriundo da transposição estabelecimento de parcerias que vi-
para a bacia do rio Macaé, para fins sem dirimir os conflitos quanto ao uso
de geração de energia elétrica, privile- dos recursos hídricos.
giando esse uso em detrimento de ou- Marcando o estilo da InSitu, o do-
tros usos locais, como relatado na obra cumentário-ficção desvelou de forma
de ficção-científica “Bem vindo à Ta- pioneira a interferência que a bar-
pera. Volte Sempre”17. O título remete ragem e a transposição provocaram

54
na Bacia Hidrográfica do rio Macabu. local (descompassos na sinfonia
Esse debate foi posteriormente incor- hegemônica)
porado pelos atores do CBH Macaé,
beneficiário das águas da transpo- O crescimento da atividade econô-
sição, numa proposta ao Comitê de mica esteve sempre intimamente re-
Bacias do Baixo Paraíba do Sul e Ita- lacionado aos estuários e ambientes
bapoana (Comitê BPSI). Afinados com marinhos pelos seguintes motivos: são
a comunidade local e com as questões locais adequados para a instalação de
apontadas nos dois vídeos citados portos; são férteis e podem produzir
nesta seção, os membros do CBH Ma- grandes quantidades de matéria orgâ-
caé buscam apoiar a construção de um nica; como ecossistemas os estuários
programa de pagamento por serviços constituem o habitat natural de muitas
ambientais (PSA) para agricultores fa- espécies de aves, mamíferos e peixes,
miliares de territórios impactados pela é o ambiente de desova e criação de
transposição, como forma de ajudar muitas comunidades biológicas e tam-
a reverter o quadro de degradação bém desempenham papel importante
da Bacia do rio Macabu, considerada nas rotas migratórias de peixes de alto
inadequadamente contemplada pelos valor comercial. Além disso, as comu-
instrumentos de gestão das águas im- nidades se utilizam de algumas des-
plementaados no estado. A comunida- tas espécies para a sua alimentação
de da região da Tapera busca recom- e sustento. As áreas de manguezais
por a identidade rural do seu território, são, portanto, de extrema importân-
incorporando em seu dia-a-a-dia a cia para as populações, uma vez que
represa, que impacta as comunidades delas provem boa parte das proteínas
a sua jusante e diminui a força das (mariscos e peixes), tão essenciais para
água do rio Macabu, principal afluente subsistência. No entanto o importante
da Lagoa Feia, bacia situada na juris- não é somente conhecer o que os man-
dição do Comitê BPSI, que responde guezais têm a nos oferecer, mas tam-
pela mediação dos conflitos relativos bém entender que deles dependem
à gestão integrada das águas daquele milhares de vidas de animais aquáti-
território e pelo menos um jovem lo- cos e terrestres (NUPEM, 2003).
cal envolvido no projeto m na época Com relação às regiões estuari-
é hoje Mestre pelo Programa de Pós- nas, estas são os receptáculos de
-graduação em Engenharia Ambiental substâncias naturais e de produtos
do Instituto Federal Fluminense, que de atividade antrópica, os quais po-
desenvolveu e desenvolve atividades dem ocasionar a degradação da
de pesquisa e extensão na região, qualidade da água e a contamina-
além de participar dos dois Comitês ção dos organismos que nela vivem,
de Bacia que buscam a mediação do podendo este efeito ser magnifica-
conflito. do, atingindo os níveis superiores da
cadeia trófica, inclusive o homem. A
Andante: Gerenciamento costeiro, usos descarga de água doce na parte in-
múltiplos do território e conhecimento terna, a entrada de água do mar, e os

55
transportes associados de sedimentos ocupação desordenada, impulsionada
em suspensão e nutrientes orgânicos pelo afluxo de migrantes na região,
e inorgânicos são processos que de- atraídos pelas promessas de trabalho
sempenharam e continuam desem- da economia do petróleo. O coro dos
penhando, uma grande importância contentes canta alto! Mas em des-
para o desenvolvimento urbano, social compasso não só com a capacidade
e econômico das regiões estuarinas e de regeneração dos ambientes por ele
costeiras. Uma parte dessas substân- impactados, mas também com os mo-
cias é utilizada como alimento pelos dos de vida das populações residentes
organismos marinhos e os poluentes, nesses ambientes estuários, direta-
que também são transportados jun- mente dependentes do extrativismo
tamente com as substâncias naturais, para sua subsistência. Privados dos
podem afetar uma grande variedade recursos naturais que alimentavam
da biota estuarina e marinha e repre- suas famílias e inseridos numa lógica
sentar uma ameaça para a saúde das produtiva que os impacta negativa-
populações que utilizam estes recursos mente e na qual não conseguem inser-
naturais como alimento. Sendo assim, ção, quer seja por falta de afinidade
é de fundamental importância identi- ou de capacitação técnica, o que resta
ficar os efeitos passados da influência a tais populações locais? Essa é a re-
do homem nos processos que ocorrem flexão trazida pela trilogia sobre os
nestes ambientes e contemplar estu- manguezais fluminenses, que aborda
dos sobre futuras interferências bené- de forma comparativa um manguezal
ficas e predatórias nestes importantes razoavelmente conservado (o de Gar-
corpos d´água. gau, em São Francisco do Itabapoana),
No Norte Fluminense, no estuário um manguezal com estado de conser-
secundário do rio Paraíba do Sul, en- vação intermediário (em barra de São
contra-se o segundo maior fragmento João) e um manguezal altamente e es-
de manguezal conservado do estado tressado (no estuário do rio Macaé).
do Rio de Janeiro. Apesar de impac- O primeiro vídeo da trilogia foi con-
tado por lançamento de esgoto in na- cebido em 2006 após uma visita de
tural e resíduos de processamento de campo de estudantes de cursos técni-
pescado, expansão periurbana desor- cos da ainda UNED Macaé ao man-
denada e cortes de árvores de mangue guezal, propiciada graças a uma par-
para finalidades diversas (ROCHA; ceria informal com a Colônia de Pesca
FERREIRA, 2016; SANTOS; FERREIRA, Z-3 e aoseu representante no Comitê
2016; SOFFIATI, 2007), o manguezal de de Bacia Hidrográfica dos Rios Macaé,
Gargau resiste, e além de abrigar rica das Ostras e Lagoa Imboassica (cujo
biodiversidade, sustenta uma comuni- nome fantasia é CBH Macaé, deno-
dade local de pescadores artesanais e tando a importância estratégica desse
catadores de caranguejo. Em contra- rio como manancial de abastecimento
ponto, ainda no Norte Fluminense, o de mais de 200000 pessoas e prove-
manguezal de Macaé agoniza em de- dor de toda a água utilizada para as
corrência de um processo acelerado de atividades de exploração de petróleo

56
offshore na Bacia de Campos). Impres- pescadores da Colônia Z-1 com o fim
sionados com a visão de enormes ca- dos manguezais fazem o contraponto
nos de esgoto in natura sendo lança- com a situação de Macaé, onde a pes-
dos no rio e com a degradação social ca artesanal teima ainda por desafi-
e a prostituição infantil observada ao nar o coro dos contentes e, apesar dos
percorrer suas margens, num ângulo descompassos, consegue resistir.
só observável com a ajuda da batera Apesar da pouca repercussão ins-
do pescador, brotou a poesia que ro- titucional do produto, exibido em di-
teirizada deu origem ao vídeo “A flor versas ocasiões na Sede e na UNED
do mangue”. Macaé do CEFET, a qualidade das
O título foi plasmado por Maria de produções do NUPERN foi consagrada
Lourdes Coelho, a “Lurdinha” do Es- nacionalmente por meio da premia-
critório Regional do Instituto Brasilei- ção do vídeo “A Flor do Mangue” na 3ª
ro de Recursos Naturais Renováveis Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio
(IBAMA) de Campos dos Goytacazes, Ambiente promovida pela Fundação
uma semana antes do seu falecimento. Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e pelo Minis-
Lurdinha relatou ser delicioso o chei- tério da Ciência e Tecnologia (MCT),
ro que invade os manguezais em flor, em 2007, na qual obteve o primeiro
ressaltando que a floração não ocorre lugar na categoria Arte e Ciência, no
de forma expressiva em ambientes nível de Ensino Médio. A premiação re-
muito impactados, como o mangue- sultou ainda na exibição do vídeo em
zal macaense. Flor do Mangue era um na Praça Veríssimo de Mello, no centro
dos apelidos de Lurdinha, fiscal do de Macaé, em 2007, no convite à equi-
IBAMA de rara sensibilidade para com pe de estudantes para elaboração de
as questões relacionadas às popula- um programa semanal de TV, de uma
ções tradicionais, esposa de pescador hora de duração, o “Código Verde”, em
e defensora dos manguezais. Obra, a parceria com a TV Litoral (que foi ao ar
ela dedicada, A Flor do Mangue repre- em 2008 semanalmente por seis me-
senta todas as “mulheres e meninas ses, em canal fechado de abrangência
do mangue”, sejam elas técnicas, pro- regional), na parceria com a Universi-
fessoras, ambientalistas, catadoras dade Federal do Rio de Janeiro (Gru-
de caranguejo ou prostitutas, por um pos Solidariedade e Técnica – SOLTEC
lado, e por outro lado a neta de pesca- e UFRJ-Mar) e na inclusão da institui-
dor, personagem das fictícia, que pro- ção no projeto PAPESCA (Pesquisa-a-
cura mas não acha a “flor do mangue”, ção na Cadeia Produtiva da Pesca em
também uma metáfora para o am- Macaé), coordenado pelo Programa de
biente estuarino não impactado, mas Pós-graduação em Engenharia Naval
ao mesmo tempo para a pureza das e Oceânica – PENO/UFRJ.
tradições e de alma, que postulamos Em dezembro de 2006, a exibição
perdidas na relação de exploração que do vídeo no II Seminário Gestão e Uso
se estabelece entre populações locais Sustentável dos Recursos Pesqueiros
e o capital. O contraste com o man- do estado do Rio de Janeiro deu visi-
guezal de Gargau e a preocupação dos bilidade às questões levantadas pelas

57
lideranças de pescadores do Norte de 2007 a equipe de estudantes entre-
Fluminense e aproximou a equipe de vistou representantes da ALA, realizou
estudantes da ALA – Associação Li- trabalhos de campo e filmagens na
vre de Aquicultores da Bacia do rio região do estuário do rio São João e
São João. A região de atuação da acompanhou a apresentação de tra-
ALA havia sido contemplada com re- balhos no I Encontro de Manguezais
cursos de compensação ambiental da Costa do Sol, promovido pela ONG,
do empreendimento “Atividade de enquanto era elaborada a animação
Aquisição de Dados Sísmicos Maríti- que retrata uma das lendas locais
mos 3D, do Bloco BM-C-28, da Bacia acerca do porquê do ainda razoável
de Campos”, graças à articulação de estado de conservação do manguezal
diversos parceiros atuantes no Muni- de Barra de São João (distrito de Casi-
cípio de Casimiro de Abreu. A ALA foi a miro de Abreu). A lenda atribui à enti-
proponente do projeto para execução dade “amiga dos pescadores”, a “Vovó
de tais recursos, composto por três do Mangue” a proteção daquele ecos-
subprojetos, a saber: (i) “Ampliação do sistema e a “expulsão” de pessoas que
cultivo de Crassostrea rhizophorae no queiram causar impactos a sua biodi-
estuário do Rio São João”; (ii) “Recifes versidade. Contada musicalmente por
artificiais – projeto de recuperação da um grupo de artistas locais, a “estória”
biota do Rio São João”; e (iii) “Projeto animada para crianças é entremeada
da Reserva Extrativista (RESEX) Mari- por trechos da clássica Carta do Chefe
nha em Casimiro de Abreu: do controle Seatle, numa emocionante narração
social à legitimação de uma proposta de Helianna Barcelos, do Espaço Cul-
de sustentabilidade”. Entre as diver- tural José Carlos Barcelos (em Quis-
sas metas dos subprojetos aprovados samã), ambientalista regionalmente
pelo empreendedor, o PEEA colabo- conhecida por sua atuação na região
rou posteriormente na avaliação da da Restinga de Jurubatiba. Dona Leni-
possibilidade de implementar unida- nha (como é conhecida regionalmente)
des demonstrativas de ostreicutura encarna no vídeo a voz da “Vovó do
que seriam implantadas (VERÍSSIMO; Mangue”, advertindo que “a água é o
FERREIRA, 2014; VERÍSSIMO; FERR- sangue de nossos ancestrais” e não
REIRA, 2014), e o vídeo a ser produzido uma “coisa” “que pode ser saquea-
integraria o material didático de um da” e que “tudo o que , acontece aos
programa municipal de Educação Am- animais acontecerá ao homem” e que
biental, em Casimiro de Abreu. não podemos evitar “nosso destino
Assim, finalizada a etapa de divul- comum”18. Mais uma vez, como em “A
gação do “A Flor do Mangue”, deu-se Flor do Mangue”, recorreu-se a Chico
início à produção desse novo vídeo, Science na trilha sonora, fechando-se
destinado a debater a questão dos im- o vídeo com efeitos de edição psicodé-
pactos nos manguezais regionais com licos inseridos por estudantes de gra-
estudantes do Ensino Fundamental, duação dos cursos de Tecnologia em
que era o público que a ALA vislumbra- Petróleo e Gás e de Engenharia e Con-
va sensibilizar. No segundo semestre trole e Automação (ECA), atraídos pela

58
vertente tecnológica de capacitação olhos verdes que namora um pesca-
em so wares de edição do projeto. dor) é cortejada e cobiçada por um rico
Com a inclusão de graduandos e senhor de engenho (o “moço bonito do
mestrandos à equipe, paralelamente mangue”).
à consolidação do PPEA, a missão da Numa mistura com depoimentos
produção de vídeos do NUPERN ga- de catadoras de caranguejo, mora-
nhou em amplitude e institucionaliza- dores de Gargau (São Francisco do
ção. Os vídeos ambientais passaram Itabapoana) e de São João da Barra e
a ser vistos como estratégia de divul- pesquisadores, a lenda é apresentada
gação científica dos trabalhos do Mes- ao público. Na dramatização, a Moça
trado, ficando a cargo de mestrandos Bonita encarna as populações locais e
e bolsistas de Iniciação Científica e a própria Natureza, cobiçada, estupra-
Tecnológica a transposição de lingua- da e morta pelos setores hegemônicos
gem científica para o processo de ro- da sociedade capitalista (o moço bo-
teirização e produção capitaneado por nito), deixando em desespero o pes-
jovens de nível médio, que editavam cador que tanto a amava e era por ela
os vídeos juntos com graduandos da amado, na cena final e inconclusiva do
ECA. Em 2008 teve início o processo vídeo19 . O moço bonito personificaria
de licenciamento do Complexo Portu- portanto não só a dominação da na-
ário do Açu, cujos impactos negativos tureza pelo homem, mas também a
à pesca artesanal e/oi à biodiversi- que as classes dominantes opressoras
dade dos municípios de Campos dos exercem sobre trabalhadores, formais
Goytacazes, São João da Barra e São e informais (KUENZER, 2006). Na voz
Francisco do Itabapoana vinham se da pesquisadora Marina Susuki, a obra
constituindo objeto de estudo de di- antecipa o problema da salinização da
versas dissertações do PPEA (BARRE- Lagoa de Iquipari, associada à implan-
TO; JÚNIOR, 2013; COUTINHO et al., tação do “Super Porto do Açu”, empre-
2009; SOUZA; OLIVEIRA, 2010; SOU- endimento que encheu de promessas
ZA; TERRA; OLIVEIRA, 2009). Dando de prosperidade a população local,
continuidade às reflexões acerca da mas cujos impactos e ônus em muito
prevalência dos interesses corporativos superam os bônus, principalmente às
de curto-médio prazos sobre os inte- parcelas da comunidade menos favo-
resses ambientais médio-longo prazos, recidas tratada economicamente.
que desconsideram a importância dos Muitos dos impactos socioambien-
manguezais e das lagoas costeiras do tais negativos não estavam ade-
nosso estado, no vídeo “O mangue da quadamente descritos, nem mes-
Moça Bonita e o moço bonito do man- mo previstos, no estudo de impacto
gue” foi resgatada a lenda local que ambiental apresentado na etapa de
também atribui ao sobrenatural o bom obtenção da licença prévia do empre-
estado de conservação do Mangue da endimento. Para além da trilogia so-
Moça Bonita (localizado em Gargau) bre os manguezais aqui apresentada,
importância dos manguezais. No caso, produzido entre 2008 e 2009, o vídeo
a “Moça Bonita” (beldade mulata de “InDefeso” debate especificamente a

59
questão da ocupação desordenada sinfonia regida com a batuta da ace-
associada à degradação dos ecossis- leração da produção, que tem por
temas costeiros no município de Ma- diapasão a propaganda e a obsoles-
caé20. O título remete ao debate sobre cência planejada, ecoando nos ouvidos
a necessidade de alteração dos perío- de uma audiência por vezes surda e
dos de defeso de pesca, que segundo por outras atônita (em nossa metáfora
as representações locais de pescado- a sociedade brasileira) como geração
res deveria ser ajustado de forma re- de resíduos sólidos, líquidos e gasosos,
gional e não nacionalmente. Por outro desflorestamento, escassez hídrica,
lado, também é uma alusão à situação redução da biodiversidade, pobreza e
de vulnerabilidade em que se encon- psicopatologias urbanas variadas. A
tram os pescadores artesanais do mu- contaminação da biosfera e o enve-
nicípio, que já não conseguem viver da nenamento do tecido social – a “falha
pesca, e à alienação dos contingentes metabólica” é inerente à sociedade
de trabalhadores periféricos ou na do antropoceno, plena de territórios
centralidade da economia do petróleo, em disputa. Questionar o capitalismo,
ambos os segmentos “indefesos” ante maestro da sinfonia, por meio da for-
ao avanço das corporações e ontologi- mação crítica e integral do cidadão-
camente alienado. -trabalhador não interessa à educação
Remonta-se aqui ao conceito de profissional, afinada com os interesses
alienação da obra de Marx, revisitado que mantém o coro dos contentes em
por Foster (2005), que debate a estrei- seu tom e que reproduz no sistema
ta relação entre a produção capitalista educacional as vozes (práticas peda-
e a degradação ambiental, também gógicas) necessárias ao moto-contínuo
presente nas reflexões do economista da engrenagem da acumulação. Os
e filosofo alemão. Separado de sua es- ritmos de produção e de consumo re-
sência, a serviço da acumulação capi- queridos à acumulação capitalista são
talista, que nutre-se incessantemente incompatíveis com o modo de vida e a
do consumo de bens manufaturados, o capacidade de produção de atividades
trabalhador desprovido dos meios de artesanais, como a pesca, da forma
produção e separado da sua essência que era historicamente conduzida no
(a Natureza) é alienado, assim como Norte Fluminense.
o é o peixe (cuja a essência é a água Na ocasião da produção do vídeo In-
limpa), intoxicado por águas poluídas Defeso, o município de Macaé possuía
pelas atividades humanas (FOSTER, cerca de um quarto de sua população
2005). envolvida direta ou indiretamente da
No “metabolismo social capitalis- pesca, apesar de até o momento não
ta”, o valor de troca prevalece sobre o realizar ações expressivas de monito-
valor de uso e a Natureza precificada ramento ambiental associado à ava-
torna-se mercadoria, recurso natural, liação dos estoques pesqueiros. Com
a serviço da maximização do lucro e tal quadro, é inequívoca a importân-
da mais valia, que explora trabalhado- cia da mobilização social objetivando
res e ecossistemas, numa incessante o manejo sustentável da pesca e a

60
identificação de possíveis fontes di- é finalizado com a forte afirmação:
fusas ou pontuais de poluição hídrica “quando você desistiu de lutar, eu não
que possa por em risco a atividade pude desistir de correr”, como se, a
pesqueira do ponto de vista biológi- nível planetário, houvesse para onde
co e da saúde pública. No tocante ao correr!
manguezal do rio Macaé, além dos O vídeo descreve ainda “os três
impactos sofridos na década de 60, equívocos do discurso dos royalties”
advindos das obras realizadas pelo que ele explica com bastante clareza:
extinto Departamento Nacional de os royalties não são um ressarcimen-
Obras e Saneamento, que resultaram to ao município por sediar a produção
na formação das ilhas Colônia Leo- de petróleo, uma vez que tal recurso
cádia e da Caieira, o crescimento ur- pertence a toda a sociedade brasilei-
bano desordenado e acelerado pelas ra; não estão relacionados ao dano
atividades econômicas relacionadas à ambiental ocasionado à exploração de
indústria do petróleo transformaram petróleo (pois se assim o fosse, todos
esse precioso ecossistema num dos os empreendimentos impactantes te-
mais estressados do Norte Fluminense riam que pagar royalties) e finalmente
(SOFFIATI, 1998), como evidenciou-se não destinam-se a compensar os mu-
no vídeo “A Flor do Mangue”. Além nicípios pelo crescimento populacional
disso, de forma geral, os royalties do associado à exploração de óleo e gás
petróleo reverteram efetivamente em (pois o município que cresce arrecada
prol da melhoria da qualidade de vida mais impostos, que deveriam ser des-
das populações existentes na área de tinados à provisão de infraestrutura e
influência dos empreendimentos de equipamentos urbanos. O economista
exploração e produção de óleo e gás e pesquisador Rodrigo Serra conclui a
na Bacia de Campos (PESSANHA; explicação afirmando que a verdadei-
NETO, 2004). ra razão para o pagamento de royal-
A narrativa do “InDefeso” transbor- ties seria “preparar o município para
da de angústia dos jovens estudantes, um futuro sem o petróleo”. Após diver-
institucionalmente preparados para se sas exibições da obra em praça pública
transformarem em mão-de-obra cria- em Macaé, a equipe foi procurada por
tiva para o capitalismo globalizado. uma empresa de consultoria, contrata-
Eles não poderão beber “hidrocarbo- da por uma corporação multinacional
netos” - trecho de uma propaganda para executar projetos de Educação
do Jornal Macaense, peça ficcional Ambiental associados às medidas
que interliga depoimentos diversos à compensatórias de licenciamento de
história da personagens jovens “sem um empreendimento de exploração de
nome” em estado de depressão leve óleo e gás offshore na Bacia de Cam-
e submetidos à violência urbana, e da pos. É interessante relatar que, para
sua perplexidade anestesiada pelo uma instituição de Educação Profis-
consumismo, no shopping... Numa sional a inserção desses estudantes
pungente poesia escrita coletivamen- no mercado de trabalho seria um ob-
te pela equipe de produção, o vídeo jetivo a perseguir, afinal eles seriam

61
contratados pela empresa contratada. terminal portuário na Zona Norte do
Porém, receosos de possível cooptação município de Macaé, juntamente com
por parte dos atores hegemônicos que atores do Conselho do Parque Nacio-
eram contrapostos nos vídeos produzi- nal da Restinga de Jurubatiba (PARNA
dos, nenhum dos estudantes aceitou a Jurubatiba). Produzido com a partici-
proposta. Todos contudo concordaram pação de jovens do Curso Técnico de
em participar como voluntários nos Meio Ambiente (integrado ao Ensino
vídeos que seriam produzidos com o Médio) e contando com a parceria do
envolvimento de comunidades locais Curso de Cinema Ambiental da UFRJ
em Macaé, inserindo-se pelo menos Macaé (CUCA) e trilha sonora compos-
um em cada equipe do projeto em ta por egresso do PPEA, o vídeo possui
questão, para trabalhar com grupos andamento delicado e conteúdo ex-
socioambientalmente vulneráveis defi- plicativo, ressaltando a importância
nidos pelos agentes econômicos locais, regional, nacional e internacional dos
evidenciando interesse e vigor para fragmentos de restinga que ainda
participação diferenciados de outros restam na região, situada no entorno
jovens macaenses (COSTA et al., 2017). do PARNA Jurubatiba. O trabalho foi
Atribuímos este comportamento dife- concluído em maio de 2016, e apre-
renciado à autonomia dada aos jovens sentado na Feira de Responsabilida-
para trabalhar temas e questões am- de Social e Empresarial da Bacia de
bientais de seu interesse, assim como Campos. Destacamos que a frustração
à percepção de engajamento no pro- vivenciada pelos estudantes do recém-
cesso real de gestão ambiental, sem- -criado curso, que em 2017 teve sua
pre comprometidos com a Educação oferta de vagas reduzidas à metade,
Ambiental crítica e libertária (COSTA et de forma a privilegiar outros cursos
al., 2017; IBAMA, 2002; LAYRARGUES; que no olhar da gestão institucional
LIMA, 2014; LOUREIRO, 2003, 2006), do Campus possuem maior aderência
de forma à dar voz aos segmentos dele às demandas do mercado regional, foi
tradicionalmente excluídos. contraposta ao contentamento em ver
Esse sentido de estar realmente criada uma Unidade de Conservação
“fazendo alguma coisa” foi retomado Municipal de Proteção Integral na área
em um período de desinstitucionali- focada pelo vídeo: o Parque Natural
zação do projeto “InSitu”, vivenciado Municipal da Restinga do Barreto foi
após expressivo corte nas bolsas de criado em dezembro de 2016.
ensino e extensão destinadas aos jo-
vens de cursos técnicos dos Institutos Considerações finais
Federais, em 2016, com a produção
do curta-metragem de três minutos, Para cumprir plenamente seus ob-
S.O.S. Restinga do Barreto21, de forma jetivos, a Educação Ambiental deve
a responder à demanda do movimen- incentivar a participação dos cidadãos,
to Xô Porto, que desde 2013 vem en- principalmente de forma coletiva, na
frentando a ameaça, cada vez mais formulação das políticas de gestão dos
concreta, de instalação de um grande recursos ambientais e nas decisões que

62
afetam a qualidade do seu ambiente. de Macabu e Macaé, e se estende a
Associada às metodologias participa- outras comunidades da região, desta-
tivas (como a pesquisa-ação e o mo- cando-se a de Gargaú, no município de
nitoramento ambiental participativo), São Francisco do Itabapoana, com um
a produção de vídeos de educação no dos IDHs mais baixos do país, e Barra
processo de gestão ambiental, aliada de São João, no município de Casimiro
a outras ações de extensão, é capaz de de Abreu.
promover a ressignificação de saberes, Na percepção dos participantes do
criando condições para a transforma- processo de produção de vídeos, a
ção da realidade social, com vistas à importância do trabalho para a divul-
promoção da melhoria da qualida- gação de informações de diagnóstico
de de vida local, podendo assim ser e/ou monitoramento produzidas pela
conceituada como crítica, dialógica e academia com adequada transposi-
libertária. Por outro lado, a Educação ção de linguagem é importante para
Profissional está voltada à formação que a questão ambiental possa en-
de mão-de-obra para alimentar e va- contrar maior eco junto à sociedade,
lidar as práticas capitalistas, sendo não apenas na comunidade escolar
complexa sua conceituação como Edu- (uma vez que a escola é o nosso pon-
cação Profissional crítica, pois a crítica to de fomento de uma nova visão das
ao modo de produção vigente não é de relações sociedade & natureza), mas
interesse das corporações. Muitas difi- na comunidade regional em geral. O
culdades de execução foram vivencia- trabalho de educação no processo de
das por inadequada institucionaliza- gestão ambiental tem proporcionado
ção do projeto de produção de vídeos ampliação de parcerias interinstitucio-
ambientais do atual Campus Macaé nais e o debate das questões expostas
do Instituto Federal Fluminense, ao nos vídeos produzidos vem colaboran-
longo de cerca de quinze de existência do para aumentar o envolvimento de
“paralela” às atividades oficiais de for- diferentes segmentos sociais na reali-
mação de mão-de-obra para a econo- zação de ações concretas, com vistas
mia do petróleo. A nível institucional, é a contribuir com a melhoria das con-
reconhecido o mérito das ações edu- dições de vida locaise para a efetiva
cativas desenvolvidas, por envolverem participação no processo de gestão in-
estratégias educacionais interdiscipli- tegrada de recursos hídricos integrada
nares, relacionadas à pedagogia de ao gerenciamento costeiro na região.
projetos. Destaca-se que a implantação do Cur-
O quadro de degradação dos rios, so de Mestrado em Engenharia Am-
das lagoas, dos manguezais e da qua- biental fortalece e alimenta com novas
lidade de vida das populações que questões equipes sempre renovadas
deles dependem para seu sustento mas que vem se revezando num traba-
(pequenos agricultores, pescadores lho que segue sem descontinuidades,
artesanais e catadores de caranguejo, desde 2002, apesar de todos os desa-
por exemplo) infelizmente não é exclu- fios, desafinando o coro dos contentes.
sivo de Trajano de Moraes, Conceição

63
Agradecimentos BRASIL. Lei no 9.433, de 08 de janeiro
de 1997. Institui a Política Nacional
A todos os estudantes e servidores de Recursos Hídricos, cria o Sistema
do Instituto Federal Fluminense; aos Nacional de Gerenciamento de
ex-alunos e professores da Escola Es- Recursos Hídricos, regulamenta o
tadual Maria Lobo Viana; ao CNPq, às inciso XIX do art.21 da Constituição
ONGs e municipalidades das regiões Federal e altera o art. 1o da Lei no
dos Lagos e Norte Fluminense; aos 8.001, de 13 de março de 1990, que
professores Marcelo Abreu Gomes, modificou a Lei no 7.990, de 28 de
Ricardo Pacheco Terra e Dalila Silva dezembro de 1989.
Mello; à Phelipe Perboires, Bárbara
Hilda e Henrique Ludgério (represen- CIAVATTA, M.; RAMOS, M. Ensino
tando todos os ex-alunos que coor- Médio e Educação Profissional no
denaram atividades da InSitu); ao Brasil: dualidade e fragmentação.
“Filé,” da TV Pinel; aos assentados do Retratos da Escola, v. 5, n. 8, p. 27–41, 4
Assentamento Capelinha; às catado- maio 2012.
ras de caranguejo e à comunidade de COSTA, R. N. et al. A vulnerabilidade
Gargau; ao pescador Tio Jorge; a Luiz socioambiental na educação
e Sival, da ALA; à Marcio Vecci, Paulo ambiental praticada no âmbito do
Roberto Marinho, Sandra Wyatt e a licenciamento federal em Macaé
todos os ambientalistas que resistem, (RJ). Ambiente & Sociedade, v.
também desafinando o coro dos con- 20, n. 1, p. 127–146, mar. 2017. Doi:
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30 dez. 2016. jan. 2014.

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I Encontro Científico da Estação de Proteção da Vida Aquática. Boletim
Ecológica Estadual de Guaxindiba. do Observatório Ambiental Alberto
Ribeiro Lamego, v. 7, n. 2, p. 221–239, 8
jan. 2014.
66
NOTAS

Capitulo 2

6 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pJoC98U-_Qs


e https://www.youtube.com/watch?v=395uDy5MKMs>. Canal da InSitu
Produções no YouTube.

7 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=w__TlHGi-b0 e


https://www.youtube.com/watch?v=oC1OMfpzI9s>.

8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W8mwNmd-


9X4>.

9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=wa5FulUk4Zs>.

20 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3gN4_ALCnlA>.

21 Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=NWWzW90jJy8>.

67
Cinema de Fronteira, Ativismo
Político-Pedagógico e a Luta
Camponesa no Front da Amazônia
Oriental
Evandro Medeiros

03.
Introdução:
Introdução Um pedido de licença poética...

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte


Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”
(BELCHIOR “Sujeito de Sorte”, 1976)

“Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte


Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenha sangrada demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”
(BELCHIOR “Sujeito de Sorte”, 1976)

Então aqui estou, aceitando o convite para refletir sobre minhas experiências
como realizador audiovisual e atuação politico-pedagógica na Amazônia, em
especial por conta da experiência que vivenciei no ano de 2016 - ano passado -
quando “me tornaram” réu em um processo na justiça movido pela Mineradora
Vale, uma “Queixa-Crime” que me acusava de liderar uma manifestação em so-
lidariedade as vítimas da tragédia de Mariana – MG em 2015. Segundo a empre-
sa, o ato do qual participavam estudantes, professores e membros de uma co-
munidade pobre – e eu no meio – colocara em risco o trânsito do trem de carga
de minério e de passageiros, assim fui alçado à condição de “querelado” numa
primeira ação movida pela Mineradora Vale na vara cível e “indiciado criminal-
mente”, numa segunda denuncia da empresa, na delegacia da Polícia Civil da
cidade de Marabá – PA, com previsão de pena de até 5 anos de prisão caso fosse
julgado culpado.
Certos encontros inusitados entre fatos e datas simbólicas marcariam o ano de
2016 como num tipo de coincidências fílmicas roteirizadas, que me colocaram a
tensão dos dias e suas silenciosas narrativas mais presentes aos olhos, coração
e mente e, “por força deste destino”, me fizeram repensar mais profundamente o
contexto de minhas experiências políticas, pedagógicas e artísticas vivenciadas
no sul e sudeste do Pará por quase duas décadas, como professor universitário
e, exatamente, no aniversário de 10 anos como realizador audiovisual com pro-
dução de documentários, organização de ações-eventos de cinema e educação

69
junto aos movimentos sociais e popu- momento em que ela própria estava
lação camponesa da região. Minhas sendo denunciada internacionalmente
lembranças e comemorações teriam como responsável pela maior tragédia
que conviver com a apreensão pessoal socioambiental já ocorrida no Brasil?
e profissional desta situação jurídica Este texto, como um canto torto,
inesperada. tenta dialogar com estes questiona-
A notícia sobre o caso com a Mi- mentos num exercício de especulação
neradora Vale logo ganhou as redes sobre como a ação judicial da Minera-
sociais e sites de jornais nacionais e dora Vale se constituiu numa tentativa
internacionais, projeção alavancada de criminalização das lutas sociais, co-
pelo drama da lama que afogara o locada no campo das disputas de po-
Rio Doce em Minas Gerais e colocava der simbólico e da ostentação da he-
a Mineradora Vale sobre os holofotes gemonia de num discurso de progresso
da mídia. A primeira audiência judicial e desenvolvimento que camufla a in-
aconteceria, ironicamente, no dia 5 de tensa violência contra a natureza e a
março, exatos seis meses após a tra- sociedade em curso no sul e sudeste do
gédia provocada pela Samarco-Vale Pará nos últimos 50 anos e que se faz
em Minas Gerais. A consciência sobre sob a ordenação institucional dos po-
o caráter simbólico de tal coincidência deres do Estado, em que o capital en-
aumentariam a indignação, sentimen- contra apoio para legitimar sua ação
to de injustiça e sensação de impotên- predatória na apropriação dos recur-
cia que me acompanhariam por esses sos naturais na Amazônia. É bom que
tempos, um tipo de situação em que, se diga que é preciso perceber dialeti-
na hora do almoço, diante da mesa, camente este contexto como parte de
comida e tristeza, seu coração deserta um projeto oficial alavancado e man-
e isso lhe arrasta moço e te faz pensar tido pelas sucessivas gestões frente
nas coisas da vida (BELCHIOR,1976). ao Governo Federal desde a Ditadura
Por que uma grande empresa inter- Militar, sem esse esforço crítico não há
nacional teria dado tanta importância como entender os fatos - as situações
a um ato político de pouca representa- de violência e impunidade - através
tividade e visibilidade social, que teve dos quais se desenrolam as disputas
a participação de por aproximada- reais na região. Por outro lado, é bom
mente 50 pessoas, visto que não ocor- que todos saibam, ao vivo é muito pior.
rera o bloqueio dos trilhos como regis- Ao longo da história recente o ci-
trado na denúncia junto à justiça? Por nema cumpriu importante papel no
que esta empresa estaria interessada registro in loco e ao vivo de décadas
em processar um professor universitá- de destruição e massacres na Amazô-
rio específico desconsiderando a par- nia, considerada o último eldorado do
ticipação de outros professores e lide- país, a última fronteira a ser explora-
ranças políticas presentes na mesma da e incorporada ao desenvolvimento
manifestação? Por que esta empresa, nacional. O cinema documental, esta
aparentemente, teria ignorado a re- arte de viver de perto a realidade em
percussão de sua ação jurídica num sua tragédias para poder narrá-las de

70
modo acessível a todos olhos, corações da juventude sem-terra, indígenas,
e mentes e, pela experiência sensível, militantes de movimentos sociais e a
fomentar leituras e estranhamento comunidade acadêmica do sudeste do
reflexivo sobre o real entre os mais co- Pará com grandes diretores de cinema
muns dos homens, ainda mais quando que passaram pela região nos anos de
estes como expectadores encontram 1970-1990 (Adrian Cowell, Vicente Rios,
nos enredos e personagens caracte- Jorge Bodanzky e Vincent Carreli),
rísticas históricas, sociais e culturais cujas obras fílmicas que narram parte
que espelham traços de sua própria da memória da ocupação recente da
existência e da realidade social em que Amazônia e as tragédias dela decor-
vivem. rentes. Destacando as ações institucio-
Por isso, é especialmente com o ci- nais e não-institucionais que serviram
nema que tento ler e escrever sobre o de estímulo à cena de produção e cir-
mundo que vejo. É com o cinema que culação de obras fílmicas na e sobre
tento comunicar ideias - em especial a região, pondero sobre os elementos
sobre Amazônia como fronteira do que apontam para o resurgimento no
capital e front das lutas populares - e sudeste do Pará do Cinema de Terceiro
me fazer entender aos demais leitores Mundo na forma de cinema de fron-
do mundo em qualquer escolaridade teira, como cinema do front, realizado
ou ainda sem ela. Não me fiz um pro- pelos sujeitos que aqui vivem (profes-
fessor de “artigos acadêmicos”, eis um sores, estudantes, camponeses, indí-
esforço particular aqui em curso. As- genas, quilombolas, etc) e afirmado
sim, neste texto, elaborado como uma como instrumento de denúncia e en-
tentativa de ensaio auto-biografico, frentamento contra as atividades pre-
pontuo algumas de minhas escolhas, datórias e violações de direitos cometi-
reflexões e ações ao longo de 10 anos dos por empreendimentos capitalistas
tomando a produção em cinema como na região, entre eles, a Mineradora
recurso acadêmico e artístico de lei- Vale S/A. E por fim, tendo situado a re-
tura-intervenção sobre a realidade e alidade em que me fiz “visível e ame-
junto às lutas populares no sul e sudes- açador” ao capital – me entendam a
te do Pará, a Amazônia Oriental, para ironia – retorno a reflexão sobre as re-
situar o contexto em que se dá a ação ais motivações da ação judicial movida
judicial da Mineradora Vale e especu- pela empresa que me fez réu perante o
lar sobre seus reais objetivos com tal Fórum de Justiça de Marabá.
ação. Sobre a escrita que segue, longe de
De início, começo rememorando ser um ensaio acadêmico aos moldes
meu encontro com a produção fílmica tradicionais, desde já peço licença
a serviços da memória das lutas po- para seja apresentada em primeira
pulares no sudeste do Pará, tomando pessoa, em certa medida numa lin-
como referência histórias e narrativas guagem informal, inclusive com in-
relacionadas às obras fílmicas que cursões poéticas e trilha sonora, para
produzi em parceria com os movi- assim deixar tudo soando bem aos ou-
mentos sociais. Recorro (re)encontro vidos (Chico Science e Nação Zumbi).

71
Então, adiante camaradas, um passo sistemático no ano de 2004, era ano
a frente... em que o Grito dos Excluídos22 tinha
como tema “Brasil: na força da indig-
Direitos Humanos, Instinto-Escrita nação, sementes de transformação”
Fílmica e o Cinema pelo Grito dos e no sudeste do Pará, considerando
Excluídos! as peculiaridades que marcam a re-
gião como um contexto de conflitos
“A minha alucinação é supor- agrários históricos e cenário de mi-
tar o dia-a-dia e meu delírio é séria crescente nos centros urbanos,
a experiência com coisas reais, os movimentos sociais resolveram
(...) amar e mudar as coisas, me organizar a mobilização do ato a par-
interessa mais” tir da reflexão sobre os sub-temas
(BELCHIOR, “Alucinação”,1976) “Trabalho, Casa, Pão e Terra”. Sob a
preocupação com o refluxo político que
Nasci e cresci entre cidades do nor- vinha marcando a manifestação nos
deste paraense, me formei pedagogo últimos anos, havia um consenso que
e desde jovem atuo junto a movimen- emergia da avaliação conjuntural feita
tos populares, de educador de meninos pelos seus organizadores: era preciso
de rua a formador de professores sem- investir numa mobilização de caráter
-terra, me tornei professor universitário pedagógico desde os assentamentos
em 2002 e desde então vivo e trabalho rurais, bairros e comunidades pobres.
no sudeste do Pará, sediado em Ma- Foi aproveitando este ensejo que su-
rabá, na região denominada geopoli- geri a produção de um vídeo que ilus-
ticamente como Amazônia Oriental. A trasse as realidades relacionadas aos
“terra sem homens para homens sem sub-temas escolhidos com imagens e
terra”, a região tem sido historicamen- narrativas das próprias pessoas que
te cenário de graves conflitos sociais, os movimentos tentavam mobilizar
desencadeados pelo projeto de desen- a participação na manifestação, um
volvimento iniciado pelos governos na vídeo que pudesse ser apresentado
Ditadura Militar (1964-1985), quando assim como instrumento pedagógico
a Amazônia foi tomada como “última de mobilização política ao Grito dos
fronteira” do território brasileiro a ser Excluídos.
“integrada ao desenvolvimento na- Apesar das expressões de incre-
cional”, gerando tragédias que teriam dulidade num primeiro momento, os
como um dos seus mais tristes episó- dirigentes e representantes dos mo-
dios o Massacre de Eldorado dos Ca- vimentos sociais aceitaram a ideia. E
rajás (1996), além de outros massacres assim, em parceria com o historiador
não revelados ao público nacional e Airton Pereira - que atuou como pro-
internacional. dutor - e com logística e equipamentos
Apesar de pequenos ensaios com disponibilizados pela Comissão Pas-
edição de pequenos vídeos sobre a toral da Terra - CPT, nos colocamos a
luta pela terra, comecei a produzir produção-circulação do vídeo denomi-
filmes documentários de modo mais nado ‘Grito dos Excluídos de Marabá’,

72
apresentando a realidade de traba- sobre suas complexidades, densas e
lhadores ambulantes e desemprega- paradoxais (FRANÇA, 2003).
dos nas ruas da cidade de Marabá, a Sempre gostei de assistir filmes e
situação de famílias de sem-teto sobre ficar pensando sobre eles, sobre os
ameaças de despejos de áreas cha- aspectos densos e paradoxais de suas
madas de “invasões urbanas”, a ação narrativas discursivas e imagéticas,
da polícia militar contra trabalhadores muitas vezes tomados por emoções
rurais sem-terra e a resistência destes e sentimentos por eles provocados,
em seus acampamentos no campo e seus conteúdos fariam parte de minha
na cidade. O vídeo seria apresentado e formação humana, política e profis-
debatido nos bairros, escolas, igrejas, sional. Tarantinamente, diria que não
acampamentos rurais, etc e ajudaria a fiz faculdade de cinema, o cinema me
chamar a atenção da sociedade local ensinou fazer cinema. Assim, mesmo
para tais problemas, mas, mais que sem formação acadêmica na área, se-
isso, em especial entre sem-tetos e guindo algo como um ‘instinto fílmico’
sem-terras, ajudaria as próprias per- dado pela percepção sensível e crítica
sonagens a refletir sobre suas lutas de da realidade e uma ânsia em querer
uma outra forma, animadas pelo cine- narrá-la em seus detalhes e tensões
ma e animando-se para a resistência pra ver se ela se transforma, iniciei mi-
em seus fronts de lutas por direitos, nha carreira como realizador audiovi-
terra, trabalho e pão. sual, no exercício de um cinema dos ex-
Eis um dos potenciais político-peda- cluídos, como um cinema de denúncia
gógico do cinema documental, possi- e combate às contradições do mundo
bilitar aos desamparados do presente capitalista no sudeste paraense.
(FRANÇA, 2003) se perceberem e se O êxito da primeira empreitada
fazerem perceber para além de sua motivaria o interesse da Comissão
condição social imediata, para além Pastoral da Terra – CPT e a Socie-
dos estereótipos, pois ocupam tam- dade Paraense de Direitos Huma-
bém protagonismo na elaboração da nos – SDDH por novas produções,
narrativa fílmica afirmada por meio então associada a dois julgamentos
de seus próprios depoimentos sobre históricos que aconteceriam naque-
o que vivem ou viveram, por meio de le mesmo segundo semestre de 2016:
memórias narradas, sentimentos expli- o julgamento do pistoleiro que havia
citados e cenas de seu cotidiano proje- assassinado em 2002 o sindicalista
tados à tela. O cinema povoado pelos José Dutra da Costa, o Dezinho, e o
desamparados do presente que ofe- julgamento do fazendeiro mandante
rece outras formas de visibilidade aos do assassinato do líder comunitário e
estereotipados e/ou marginalizados, da chacina na Fazenda Ubá, em 1985.
que pode provocar os espectadores a Desta nova produção resultaram duas
perceberem os sujeitos e dinâmicas so- obras fílmicas: “Dezinho, sonho, vida e
ciais existentes num determinado con- luta”23 e “Ubá, um massacre anuncia-
texto tematizado e/ou ajudar a refletir do”24. O primeiro, produzido pela CPT,
novamente tendo Airton Pereira como

73
parceiro, traz relatos de parentes, sin- e testemunhas da violência cometida
dicalistas e camponeses sobre as his- por pistoleiros no assassinato de 11
tórias de luta, os sonhos e as ameaças trabalhadores rurais, entre eles uma
de morte sofridas por Dezinho por sua mulher grávida nunca identificada e
atuação frente ao sindicato de traba- José Pereira da Silva, o Zé Pretinho, lí-
lhadores rurais de Rondon do Pará. der dos posseiros que ocupavam a Fa-
O documentário foi em grande parte zenda Ubá. Essas duas obras têm um
composto por imagens de vídeos do importante valor histórico, pelo regis-
arquivo pessoal do sindicalista, que, tro da memória de luta daqueles que
em certo momento de sua atuação po- morreram em defesa dos direitos dos
lítica, passou a andar constantemente trabalhadores e por ajudarem a mo-
acompanhado de um cinegrafista que bilizar a opinião pública da sociedade
registrava em vídeo reuniões e depoi- paraense para atenção com os casos
mentos e situações vividas pelos cam- de violência no campo num momento
poneses em meio à luta pela terra num em que algozes desses crimes – pisto-
região governada por latifundiários. A leiro e fazendeiro mandante – foram
escolha de Dezinho em andar acom- a julgamento, ambos sendo condena-
panhado de um cinegrafista talvez se dos. Além disso, pelo conteúdo de suas
deu por conta do episódio do Massa- narrativas as obras teriam uma impor-
cre de Eldorado de Carajás em 1996, tância acadêmica, a própria psicóloga
cujas imagens captadas em vídeo por Maria Regina Ceo a tomaria como
uma equipe de reportagem colocaram fonte de dados em sua pesquisa de
em evidência internacional a violência mestrado sobre memória, luto e vio-
dos conflitos agrários no Pará. Talvez lência sofrida por mulheres viúvas de
Dezinho tivesse a expectativa de que a lideranças camponesas assassinadas
presença da câmera inibiria seus inimi- na região sudeste do Pará.
gos. Talvez Dezinho tenha reconhecido Essa experiência inicial com a pro-
o poder da imagem em movimento dução de três obras fílmicas em me-
sobre a sociedade e como uma arma nos de seis meses que me levou a uma
no combate-denúncia contra aqueles aproximação radical às situações de
que se beneficiam da opressão e na violência e injustiça social que marcam
defesa dos excluídos em luta pela terra a realidade de vida de camponeses
e por direitos sociais, coincidentemen- pobres na região sudeste do Pará. Os
te o cinegrafista não o acompanhava dias de contato com sobreviventes e
no momento em que foi assassinado, vítimas dessa violência e suas histórias
infelizmente. de vida me fizeram compreender como
No caso de “Ubá, um massacre a obra fílmica documental, para além
anunciado”, produção da SDDH coor- de um instrumento de denúncia das
denada por psicóloga Maria Regina violações de direitos humanos, pode-
Ceo, a intenção foi narrar a história do ria ajudar também na afirmação dos
massacre ocorrido no município de São sujeitos excluídos e oprimidos como
Domingos do Araguaia em 1985, con- sujeitos históricos, cujas memórias
tada 21 anos depois por sobreviventes precisam ser afirmadas politicamente

74
e empoderadas socialmente como de defesa de direitos humanos em
forma de disputar o lugar na memória âmbito nacional. A primeira destas
coletiva e história social mais ampla, obras foi o filme “Mulheres, Mães e Vi-
neste caso, na história da Amazônia. úvas da Terra” (2009), capturado em
É neste momento que, não adepto formato HDV e finalizado em película
à cultura dos artigos acadêmicos, faço [35 mm] em laboratório no Rio de Ja-
uma escolha profissional pela produ- neiros, algo possível devido ser uma
ção audiovisual como forma privile- obra financiada através de edital da
giada de escrever minhas percepções Secretaria do Audiovisual do Ministé-
acadêmicas sobre a realidade social rio da Cultura (SAv/MinC, 2008-2009),
na fronteira amazônica, como um re- que permitiu também a constituição
curso textual de fácil acesso, de amplo da logística material com aquisição de
alcance e inteligível a todos indepen- equipamentos profissionais para pro-
dente da formação escolar. A imagem dutora. O filme, inspirado no livro “Vi-
cinematográfica como uma forma de úvas da Terra”, de Kléster Cavalcanti,
escrita do pensamento e o pensamen- compôs uma trilogia - juntamente com
to do cinema como grafia, não mera- os dois anteriores – que se iniciou com
mente a imagem como representação, a narrativa da história de assassinato
semelhante, analogia ou reprodução de lideranças camponesas (Dezinho e
(FRANÇA, 2003), mas como ferramen- Zé Pretinho) e a trajetória das mulhe-
ta discursiva e analítica no tratamento res e suas famílias nos anos que se-
acadêmico de temas, realidades e his- guiram após os episódios de violência.
tórias invisibilizadas e silenciadas so- Era uma dívida moral originada de um
cial e politicamente, histórias que não sentimento da necessidade de superar
podem ser sepultadas pela violência o “luto” presente nos dois primeiros
que as querem silenciar. documentários e assim foi, narrando
Tomado por essa perspectiva, as- as histórias do luto à luta vividas por
sumindo a escrita fílmica como minha Maria Joel - viúva de Dezinho que as-
produção acadêmica privilegiada e sumiu o lugar do marido na presidên-
buscando garantir logística profissio- cia do sindicato após seu assassinato
nal para continuar a produção dos do- -, Marina Alves - viúva de Zé Pretinho,
cumentários, trabalhei para constituir que permaneceu na luta pela terra e
formação de novos documentaristas conquistou um lote em assentamento
e ajudei um grupo de jovens a orga- de reforma agrária, por meio do qual
nizar a primeira micro-empresa de sustentou os filhos após o assassinato
produção audiovisual independente do marido - e Geraldina Canuto, uma
do sudeste do Pará, a Produtora La- nova personagem, símbolo da luta por
Bour Filmes, comandada por Waarlen justiça e direitos humanos na região
Lourenço, jovem “jedi” da área da in- pela coragem e esforço empreendido
formática. Esta iniciativa permitiu a na prisão dos assassinos do marido
produção de obras importantes que sindicalista João Canuto e filhos mor-
circulariam em espaços universitários e tos na década de 1980, a mando de
circuitos de cineclubes de organizações

75
fazendeiros no município de Rio Maria, “descoberta” pelo Brasil em meados
sul do Pará. do século XX (HALBWACHS, 2004).
Infelizmente Dona Geraldina, como Em especial desde os anos de 1970, a
era carinhosamente conhecida, faleceu região, como cenário de belezas di-
em outubro de 2009 antes da apre- versas e palco tragédias de todos os
sentação do filme concluído. Emocio- tipos, se tornou um lugar sobre a qual
nada a família agradeceu às cópias do se referem objetos estéticos, e o cine-
filme em DVD, declarando “ela esperou ma olhou a fronteira Amazônica como
vocês para poder dar seu testemunho um novo mundo a se descobrir (OLI-
final e agora temos ele eternizado no VEIRA, 2012). E neste período foram
filme”. Naquele momento a emoção produzidas obras clássicas do cinema
tomou a equipe, assim como a certeza brasileiro sobre a região que se con-
da importância daquilo que estávamos figuram como documentos históricos
fazendo como um cinema a serviço da que ajudam a desvelar essas tragédias
memória coletiva e da celebração da socioambientais com narrativas que
vida de luta daqueles que se fizeram abordaram os impactos causados pela
militantes históricos da luta pela terra abertura da Rodovia Transamazônica
e direitos humanos na Amazônia. sobre a vida das populações da região,
a história da Guerrilha do Araguaia e
Campo Sagrado, Memória e Cinema na das operações do Exercito Brasileiro
Fronteira Amazônica que impactaram na dinâmica social de
comunidades camponesas e indígenas
“Não! Eu não sou do lugar dos e a dinâmica conflituosa do trabalho
esquecidos! e vida no garimpo de Serra Pelada
Não sou da nação dos -motivador de uma onda de intensa
condenados! migração para região durante as dé-
Não sou do sertão dos cadas de 1970 e 1980 - e a cenas de
ofendidos! destruição da floresta e conflitos agrá-
Você sabe bem: Conheço o meu rios envolvendo latifundiários e cam-
lugar!” poneses, estes morrendo e os primeiros
(BELCHIOR, “Conheço o meu matando por terras25.
lugar”,1979) Assim como na educação escolar e
textos escritos, no cinema aquele que
Ao longo dos últimos 40 anos, em decide narrar a história de uma so-
diferentes períodos, as contradições e ciedade tem o poder de decidir sobre
conflitos decorrentes da ocupação da o que deve ser lembrando e também
região amazônica e sua “integração” sobre o que deve ser esquecido integra
aos projetos de desenvolvimento do os mecanismos de controle de um gru-
país, foram sendo tematizadas por po sobre o outro, é a memória sendo
inúmeros filmes de ficção e documen- afirmada como um objeto de luta pelo
tários que ajudam a construir uma poder travada entre classes, grupos
memória coletiva e uma memória e indivíduos, que leva a afirmação do
imagética sobre a Amazônia e sua que será lembrado e celebrado como

76
histórias consideradas importantes produção audiovisual ofertadas atra-
para todos (KESSEL, 2009). As obras vés do Núcleo de Arte-Educação do Sul
cinematográficas com suas imagens/ e Sudeste do Pará – NAESSP/UFPA,
narrativas reinscrevem os aconteci- juntamente com a equipe da LaBour
mentos dispersos de um cotidiano e Filmes, seguiríamos produzindo vários
podem fornecer material para o imagi- documentários, entre eles alguns sobre
nário simbólico de uma sociedade, ao iniciativas em Educação do Campo de-
passo que se alimenta desse mesmo senvolvidas pelas universidades e mo-
imaginário (FRANÇA, 2012), se apro- vimentos sociais e sobre os impactos
priando de elementos das realidades das atividades de mineração da Mine-
que constituem tal sociedade para radora Vale em áreas de assentamen-
sobre ela, como arte, produzir repre- to no sudeste do Pará – filme “Carajás
sentações e propor criativamente re- XXI”26, sobre o qual tratarei posterior-
flexões sobre esta sociedade. mente –, mas duas novas experiências
Tendo esta compreensão, desde que profissionais contribuiriam fortemente
cheguei à região me esforcei profis- para influenciar e alavancar a cena de
sionalmente para articular e fomen- produção fílmica por outros realizado-
tar a relação cinema e educação, em res locais, a produção do filme “Ara-
especial com uso de obras fílmicas na guaia, Campo Sagrado” (2010/2011) e
formação acadêmica e continuada minha atuação junto ao setor cultural
de professores da educação básica, da Pró-Reitoria de Extensão e Assun-
assim como realizando sessões de ci- tos Estudantis – PROEX/Unifesspa
neclube e mostra de filmes em escolas (2014-2016).
públicas e eventos organizados pela A produção do filme “Araguaia,
universidade, em especial com filmes Campo Sagrado” (2010/2011) foi uma
que tematizavam a história do sudes- iniciativa originada dos anseios de
te do Pará. Com o tempo, tendo sido Emersom Mendes e Fábio Oliveira, res-
alçado a condição de realizador de pectivamente, cinegrafista e produtor
obras fílmicas, a partir de minhas ex- da LaBour Filmes que sonhavam em
periências tentei ‘ensinar’ e estimular produzir um filme sobre a Guerrilha do
a produção do cinema como recurso Araguaia contada a partir dos sujeitos
dinâmico na crítica e desvelamento locais. E assim fizemos! Apesar de ser
de versões sobre fatos históricos que sonho antigo, o filme teve seu start no
foram se conformando hegemoni- discurso de Paulo Abrão, na época pre-
camente a memória social coletiva e sidente da Comissão Nacional de Anis-
consagrando como sujeitos de poder tia, que estava em visita a São Domin-
e visibilidade aqueles que, auto-intitu- gos do Araguaia por conta do processo
lados sujeitos-entidades do progresso, de oitivas de depoimentos ligados aos
se beneficiaram das situações de in- ‘pedidos de anistia’ e reparações (in-
justiça, violência e destruição ecológica denizações) de camponeses envolvidos
que continuam em curso no sudeste no caso da Guerrilha do Araguaia. Na
paraense e toda Amazônia. Além de oportunidade, num ato em praça pú-
sessões de cineclubismo e oficinas de blica, ao lado de camponeses idosos,

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Paulo Abrãao dizia que se sentia muito testemunha-personagem central em
emocionado com aquele momento, nosso filme documentário27.
pelo seu valor histórico e por estar pi- Através do circuito universitário o
sando no solo de um “campo sagrado”, filme ganhou o cenário nacional, seria
onde haviam sido enterradas pessoas objeto de debate em seminários sobre
que lutavam por liberdade e democra- cinema e direitos humanos, apresenta-
cia e onde viviam os camponeses. Esta do em diferentes cineclubes de todo o
metáfora nos chamou atenção, sinali- país, entrou para a grade de exibição
zou que era esse o momento da produ- da TV Cultura do Pará, foi exibido em
ção e batizou nosso filme com o campo sessão especial no Cinema Olympia
sagrado. em Belém - considerado o cinema
Como uma crítica sutil aos filmes mais antigo em funcionamento no país
anteriores sobre a temática, partimos -, exibido em sessões da Comissão da
do argumento de que “não existem Verdade de São Paulo, durante o Se-
forças que possam ocultar a história” minário “Verdade e Infância Roubada”,
e que “não há dor que possa silenciar promovido pela comissão na Assem-
a dignidade humana”, o filme traba- bleia Legislativa de São Paulo, em 2013
lhou com as narrativas de camponeses e usado em diversos eventos e debates
sobre o episódio da Guerrilha do Ara- pelas organizações sociais que lutam
guaia, que romperam um silêncio-me- pelos direitos dos sobreviventes da
do de décadas para nos contar sobre Guerrilha do Araguaia. Cumprindo sua
suas relações de amizade e colabora- função político-pedagógica academi-
ção mútua com os “paulistas” e reve- camente, o filme também seria fonte
lando seus testemunhos da violência de dados para elaboração de diversos
praticada pelos militares do exercito artigos acadêmicos e dissertações de
na perseguição, tortura e assassina- mestrado relacionadas as pesquisas
to dos guerrilheiros e camponeses na sobre a Guerrilha do Araguaia, memó-
região. Estão presentes também no ria, violência e a história da luta pela
filme ex-soldados e mateiros, nativos terra no sudeste do Pará28.
da região que foram usados na caça A experiência em produzir e mostrar
aos guerrilheiros. Além de publicizar minhas próprias obras fílmicas opor-
a voz de parte dos personagens his- tunizada pela relação com os movi-
tóricos invisibilizados politicamente, mentos sociais e as lutas populares
o filme traz registros poéticos do Fes- locais, os resultados materiais e polí-
tejo do Divino Espírito Santo, realiza- ticos dessa experiência, iriam coincidir
do no topo da Serra das Andorinhas, com um novo momento de produção
ambiente dos combates do Exército fílmica sobre a região, numa continui-
Brasileiro na caçada aos guerrilheiros dade da história do cinema que narra
e camponeses. O festejo, que ajudou a a história da região, mas, agora, com
fortalecer mais ainda nossa metáfora obras produzidas desde a perspectiva
sobre o sagrado, tinha como um dos autoral dos sujeitos que nela vivem.
seus organizadores Seu Beca, sobre- Isso certamente dá outra qualidade
vivente das torturas dos militares e ao cinema como um instrumento a

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serviço da memória de uma socieda- uma rede colaborativa - a Co.Inspi-
de, quando ele é produzido localmente ração Amazônica - que mobilizava a
pelos sujeitos que desejam relatar as participação de diferentes militantes
memórias suas e de seus pares, como ‘vídeo-ativistas’ que começavam a en-
na perspectiva originada da antiga saiar suas próprias produções, como
ideia do Terceiro Cinema29, um cinema pequenos vídeos que evidenciaram
da fronteira do capitalismo, da perife- conflitos constantes entre as empresas
ria, feito pelos sujeitos dos fronts como mineradoras e garimpeiros de Serra
um instrumento de denúncia das con- Pelada; a violência praticada por pis-
tradições que emergem dos processos toleiros a mando de fazendeiros contra
capitalistas voltados à apropriação trabalhadores rurais sem-terra; a ile-
dos recursos naturais destes territórios, galidade do uso de carvão proveniente
como na Amazônia. de desmatamento e a realidade da
A projeção nacional do filme “Ara- produção nas siderúrgicas; acidentes e
guaia Campo Sagrado” colocaria a alagamentos causados pelas obras de
cena local em evidência, ganharia os estrada de ferro da Mineradora Vale,
noticiários jornalísticos e animaria jo- etc. Através dessa rede colaborativa
vens realizadores iniciantes ao debate seriam produzidos os documentários
sobre a importância e possibilidade de “Dia de Mangal” (2012)30 e “Mulheres
se fazer cinema documental a partir da do Mangue” (2012)31, nos quais atuei
perspectiva de quem vive a fronteira na direção e que visavam colocar em
amazônica, assim se evidencia aquilo debate a realidade de vida e trabalho
que passamos a chamar de cinema do comunidades localizadas reservas ex-
front! trativistas na região bragantina, litoral
paraense, filmes produzidos em parce-
Co.Inspirando Ideias e Tramando Teias ria com pesquisadores da Universida-
por um Cinema do Front na Amazônia de Federal do Pará.
Em 2013 essa intensa cena de vídeo
“Tenho ouvido muitos discos, ativismo levaria parte dos envolvidos
conversado com pessoas ca- a organização de uma nova micro-
minhado meu caminho, papo, empresa de produção audiovisual, a
som, dentro da noite. E não Trama Teia Filmes, que objetivou tam-
tenho um amigo sequer que bém profissionalizar as atividades de
ainda acredite nisso não... Tudo produção fílmica, adquirir e estruturar
muda!” (BELCHIOR, “Apenas nova logística de produção e agregar
Um Rapaz Latino-americano”, uma nova geração de profissionais em
1976) formação, agora na época da produ-
ção digital com câmeras full HD e da
O momento de produção pós-Ara- relativa democratização da produção
guaia Campo Sagrado foi marcado audiovisual provocada pelo avanço
pela realização de diversas oficinas tecnológico e, em certa medida, pelo
de produção audiovisual para novos barateamento do acesso aos meca-
realizadores e pela articulação de nismos-equipamentos de produção. A

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nova produtora seguiria os passos da por cinema crítico (PROEX/UNIFESS-
LaBour Filmes na realização de docu- PA, 2015).
mentários em parceria com universi- Entre as ações que ajudariam a
dades, organizações sociais e financia- fomentar a produção fílmica e a for-
do por editais públicos de fomento a talecer o trabalho com o cinema em
produção audiovisual, o que resultaria sua dimensão político-pedagógica
na produção de obras sobre a educa- em Marabá e região, destacaram-se:
ção em escolas rurais de áreas de qui- o “Prêmio Proex de Arte e Cultura” e
lombo no sul do Tocantins32 e o sobre a o “Festival Internacional Amazônida
realidade de jovens pobres que moram de Cinema de Fronteira – FIA CINE-
em áreas impactadas pela mineração FRONT”. O “Prêmio Proex de Arte e
em Marabá33. Cultura”, criado em 2014, se constituía
Em 2014 o ativismo político-peda- numa ação de fomento a produção ar-
gógico com cinema e a experiência de tísticas de estudantes da universidade,
uma década produzindo e exibindo com concessão de recursos financei-
filmes em mostras e cineclubes me ros por meio de edital público lançado
renderam o convite para assumir a anualmente e voltado ao incentivo e
Coordenadoria de Cultura da Diretoria financiamento de projetos na áreas
de Ação Intercultural da Pró-Reitoria do Teatro, Literatura, Música, Cinema,
de Extensão e Assuntos Estudantis Artes-Visuais, Fotografia e Expressões
da Unifesspa (DAI/PROEX) e, poste- Populares (PROEX/UNIFESSPA, 2015).
riormente, o cargo de Diretor de Ação Entre os anos de 2014 e 2016, o Prêmio
Intercultural, no período 2015-2016. PROEX financiaria a produção de ví-
Junto a uma equipe responsável por deos documentários sobre abordariam
gestar a política cultural-extensionista a realidade de vida e cultura de povos
da universidade, através da DAI/PRO- indígenas moradores de reservas cria-
EX, passamos a ter a oportunidade de das no período da construção da Usina
planejar grandes ações o campo do Hidrelétrica de Tucuruí (1970-1980); a
audiovisual, pautadas pela ideia-eixo realidade em comunidades impacta-
do Cinema de Contestação e Educa- das pela Ferrovia Carajás narradas a
ção Estética, que preconizava a reali- partir da perspectiva das mulheres; e
zação de ações de extensão voltadas as histórias e contradições que carac-
à formação, produção e exibição en- terizam o bairro do Cabelo Seco, “bair-
volvendo obras audiovisuais voltadas ro negro” que deu origem a cidade de
a promoção de reflexões críticas sobre Marabá34.
questões que envolvem a vida em so- Juntamente com outras obras pro-
ciedade e afirmem a arte em seu ca- duzidas localmente, as obras financia-
ráter humanizador, tanto pelo entrete- das pelo Prêmio Proex também passa-
nimento-prazer estético como por sua ram compor a partir de 2015 a mostra
dimensão educativa, estimulando a anual do “Festival Internacional Ama-
realização de obras de diretores locais zônia de Cinema de Fronteira – FIA
e a constituição de público com gosto CINEFRONT”, evento concebido numa
parceria com o jornalista e cineasta

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Felipe Milanez (CEES Universidade de fílmicas históricas – muitas inéditas na
Coimbra e UFRB) e a fotógrafa Alexan- região – e promover a reflexão sobre
dra Duarte (Tramateia Filmes), que ao tal realidade em áreas consideradas
concluir seu curso de Ciências Sociais fronteira do capitalismo, o evento foi
pela Unifesspa, como parte de seu concebido também como forma de
Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, estimular a continuidade ao movimen-
iria conceber e dirigir o documentário to de produção cinematográfica por
“Aquém Margens: juventude e exclusão sujeitos da e na Amazônia Oriental,
social em áreas de mineração” (2016), feito por realizadores do e no front,
financiado pelo Edital Jovem Doc (Uni- com a perspectiva estética e política
fesp/Sav Minc, 2015). elaborada desde dentro da fronteira,
O FIA CINEFRONT foi projetado em especial produzindo obras com
tendo como objetivo principal colocar conteúdos que ajudem a questionar a
em debate a história e realidade so- lógica de desenvolvimento que subor-
cioambiental das áreas de fronteira dina a Amazônia aos interesses dos
do capitalismo mundial, entre elas a chamados centros econômicos nacio-
Amazônia Oriental, buscando, no en- nais e internacionais, obras fílmicas
tanto, promover a percepção da fron- que problematizem entre outras coisas
teira reinventada desde dentro, desde a presença e atividades de empresas
o front, segundo as perspectivas das e empreendimentos que materializam
lutas sociais, como o centro dos emba- tais interesses exploradores.
tes, da resistência, o lugar dos comba- Realizado por meio de uma parce-
tes físicos e epistêmicos, cujas trans- ria entre universidades, movimentos
formações podem ter força de impacto sociais e secretarias municipais de
além-front (Folder do FIA CINEFRONT cultura, a programação do festival foi
2016). concebida para acontecer anualmente
Organizados para ser um espaço de como parte da agenda cultural do ani-
mostra de filmes de diretores-produto- versário da cidade de Marabá e como
res locais, nacionais e internacionais, o parte da agenda cultural e política
FIA CINEFRONT foi pensado como um dos movimentos de luta pela terra na
momento de visibilidade e celebração região, sendo realizado sempre na se-
política do cinema, onde pudessem gunda quinzena do mês de abril como
ser apresentados e homenageados parte do atos e eventos em memória
diretores e filmes comprometidos com dos trabalhadores rurais mortos no
a denúncia social e com o tornar pú- Massacre de Eldorado dos Carajás -
blico as narrativas de personagens de dia 17 de abril de 1996. Assim, o FIA CI-
esferas marginalizadas da sociedade, NEFRONT tem como palcos principais
na maioria das vezes invisibilizados o cinema histórico de Marabá (Cine
e/ou criminalizados social, cultural e Teatro Marrocos) e o Acampamento da
politicamente por se colocarem na Juventude Sem Terra do MST montado
contramão dos interesses do sistema todos os anos às margens da rodovia
capitalista mundial. Buscando opor- PA 150, na chamada “Curva do S”, em
tunizar ao público o acesso a obras Eldorado dos Carajás e desta forma

81
colabora com o fortalecimento da me- filmada na região, o filme “Iracema,
mória de luta pela terra e na formação uma transamazônica”.
de jovens militantes camponeses na Na primeira edição do FIA CINE-
região. Paralelo às exibições no Cine FRONT (2015), a presença de obras de
Teatro Marrocos e no Acampamento realizadores e produtores locais evi-
Sem-Terra, durante aproximadamen- denciaram a emergência do cinema do
te 10 dias acontecem as sessões nos front decorrente daquilo que iniciamos
campi da Unifesspa em diferentes coletivamente em 2006 com uso do
municípios – Marabá, Xinguara, San- cinema como arma político-pedagó-
tana do Araguaia, Rondon do Pará e gica, novamente a CPT mobilizaria a
São Félix do Xingu -, na Aldeia Indíge- produção de obras fílmicas nessa pers-
na Gavião no município Bom Jesus do pectiva, três de uma só vez: “Mineran-
Tocantins, além de sessões especiais do Conflitos” (2014), direção de ¬iago
em Belém realizada em parceria com Martins, cientista social formado pela
a Fundação Cultural do Pará, e nas Unifesspa35; “Terra para Quem?”, pro-
cidades de Lima e Tarapoto, no Peru, duzido em caráter de oficina de au-
numa parceria e intercâmbio de obras diovisual comunitária coordenada por
fílmicas com o Programa de Pós-Gra- Camila Fialho e José Viana36; e “Ame-
duação em Antropologia Visual, da açados”, dirigido por Julia Mariano37.
Pontificia Universidad Católica del Filmes que tratavam, respectivamente,
Perú - PUCP. da realidade vivida em comunidades
Acontecendo concomitantemen- atingidas pelas atividades de mine-
te em oito cidades e em dois países, ração e a passagem da ferrovia da
cada edição do festival apresenta em Mineradora Vale no Pará e Maranhão;
média 20 filmes, realizando aproxima- histórias de bairros pobres gerados
damente 50 sessões de exibição e de- por ocupações urbanas em Marabá e
bates sobre as obras e alcançando um Tucuruí, decorrentes de correntes mi-
público aproximado de 4 mil pessoas gratórias estimuladas pelo discurso
anualmente. A cada sessão um diretor que ilustra o sudeste do Pará como
é homenageado e filmes selecionados um lugar de progresso econômico; e a
entre o conjunto de suas obras são situação de risco de morte enfrentada
apresentados e debatidos, em 2015 o por diversos sindicalistas e defensores
festival homenageou Adrian Cowell e de direitos humanos por conta de suas
Vicente Rios; no ano seguinte, em 2016, denúncias de degradação ambiental
o festival receberia o diretor homena- provocada pelos empreendimentos
geado Vincent Carelli e fortaleceria capitalistas na região e/ou devido na
a participação dos povos indígenas defesa de trabalhadores envolvidos na
e exibições nas aldeias; e em 2017, ao luta por reforma agrária.
ser homenageado, o diretor Jorge Bo- O público do festival teria a cada
danzky se emocionaria ao agradecer ano também o privilégio de assistir fil-
a oportunidade de pela primeira vez, mes que estavam sendo lançados ou
depois de 40 anos, apresenta e dis- que ainda se encontravam em cartaz
cutir com o público sua obra clássica nacionalmente e que seus diretores e

82
produtores gentilmente cederiam gra- produzimos conceitos, ideias e práticas
tuitamente o direito de exibição, como engajadas num movimento de cine-
“O Sal da Terra” (Wim Wenders, 2014), ma do front a serviço da reexistência
“Osvaldão” (2014) dos diretores Van- dos povos indígenas, camponeses e
dré Fernandes, Fábio Bardella, André trabalhadores pobres em luta pela
Michiles e Ana Petta, e “Branco Sai, terra e por direitos sociais na fronteira
Preto Fica” (2014), de Adirley Queirós, amazônica.
além de filmes internacionais sobre
a realidade africana - sempre trazi- Eu, réu da “Queixa Crime” da
dos por Felipe Minlanez, que se tornou Mineradora Vale S/A [?]
curador do festival - e outros sobre a
situação dos povos indígenas na Ama- “Tudo tá como o diabo gosta,
zônia Peruana, estes acessados atra- tá!
vés da parceria com a PUCP. Pela sua Já tenho este peso, que me fere
magnitude, por conta da presença dos as costas
diretores homenageados e pela rede e não vou, eu mesmo, atar mi-
institucional e política que se construiu, nha mão!
o FIA CINEFRONT já na sua primeira (...) Sempre desobedecer!
edição viraria notícia na mídia local e Nunca reverenciar!”
nacional, sendo pauta de reportagens (BELCHIOR, “Como o Diabo
da revista-site Carta Capital38, do Jor- Gosta”, 1976)
nal Brasil de Fato39, da TV Cultura do
Pará e diversos blogueiros nacionais e
internacionais envolvidos com os movi- Em 2016, minha comemorações pe-
mentos sociais e com cinema engaja- los 10 anos como realizador de obras
do40 . fílmicas carregadas com identidade do
O FIA CINEFRONT se tornaria um cinema do front teve que conviver com
evento de consagração daquilo que a tensão de ter sido tornado réu em
vínhamos construindo na região su- um processo movido pela Mineradora
deste do Pará como um movimento de Vale. O processo movido pela empresa
realizadores de audiovisual e, subjeti- tem como fato de acusação um ato
vamente para mim, seria um momento público realizado por um conjunto de
de coroamento da escolha que fiz pelo professores, estudantes e membros da
cinema como arma político-pedagógi- comunidade de um bairro atravessa-
ca voltada à formação crítica e mobi- do pela ferrovia por onde é escoado o
lização política das pessoas na defesa minério de ferro explorado na região.
das causas populares, comprometido Realizado em 20 de novembro de 2015,
com a denúncia das violações de di- era um ato de solidariedade às vítimas
reitos e mazelas socioambientais con- do desastre provocado pelo rompi-
sequentes do avanço dos empreendi- mento de uma barragem de rejeitos
mentos capitalistas sobre a Amazônia. da Samarco/Vale em Mariana, Minas
Minha certeza é que, mais que filmes Gerais. A Mineradora Vale que alegou
e eventos de cinema, nos últimos anos o ato colocara em risco a segurança

83
da ferrovia, paralisando o trânsito do contra a Mineradora Vale, acusando
trem de passageiros e podendo gerar seus prepostos de assédio moral du-
acidente com trem de carga, me acu- rante a remoção de moradores de co-
sou de ser o líder da manifestação e, munidades rurais em áreas requeridas
através de uma investigação privada pela empresa, interdição de vicinais,
(portanto, não realizada pela polícia), destruição de rios e córregos, poluição
baseada em fotografias do ato e em do ar, desmatamento e violação de
comentários nas redes sociais, cons- direitos de moradores de assentamen-
truiu seu argumento de “autoria e ma- tos de reforma agrária no sudeste do
terialidade” que, segundo ela, provava Pará. Produzido pela LaBour Filmes
que eu tentara praticar algo como em parceria com Centro de Educação
“justiça pelas próprias mãos”, portanto Pesquisa e Assessoria Sindical e Popu-
caberia responder criminalmente por lar (CEPASP/Marabá), o documentário
meus atos ilícitos41. teria minha direção e seria exibido em
Assim, fui indiciado pela 1ª Vara do diversas mostras de cinema, comuni-
Juizado Especial Cível e Criminal de dades rurais, eventos de movimentos
Marabá acusado de “fazer justiça pe- sociais, universidades e no Festival de
las próprias mãos, para satisfazer pre- Cinema Curta Carajás, evento patro-
tensão, embora legítima, salvo quando cinado pela empresa e realizado em
a lei o permite”, conforme artigo 345 Parauapebas, município sede da Mine-
do Código Penal, que tem como pena radora Vale no Pará.
detenção de 15 dias a um mês ou mul- A produção do documentário
ta. Sob o mesmo argumento a empre- “Aquém Margens”, de Alexandra Du-
sa fez denúncia na delegacia de Mara- arte, em que colaborei na captura de
bá e desta feita fui indiciado também imagens e edição, ocorria naquele
criminalmente pela Polícia Civil em mesmo bairro e no mesmo período
dois artigos do Código Penal: 260 (im- em que aconteceu o ato que gerou o
pedir ou perturbar serviço de estrada processo na justiça, e este talvez seja
de ferro) e 286 (incitar, publicamente, a segundo fato motivador da ação da
prática de crime), com penas prevista Mineradora Vale, pois se tratava de
de até 5 anos de reclusão. Este segun- uma obra fílmica sobre a realidade de
do processo ainda está em andamento impactos sociais e ambientais causa-
e ainda não fui acionado pela justiça dos pela passagem da ferrovia e do
por conta dele. trem de cargas pelo bairro, destacan-
Como “nada é misterioso, não”, três do como as ações de duplicação do
fatos podem ter contribuído direta- trilho e a construção de um muro em
mente para a escolha da empresa em seu entorno criavam mais dificuldades
me tornar réu de processos criminais, o e riscos ao trânsito da população. Em
primeiro foi a produção do documen- seus depoimentos os personagens do
tário Carajás XXI (2010), que trouxe a documentário haviam sido categóri-
público as denuncias feitas por cam- cos em criticar a omissão da empresa
poneses, pesquisadores e ex-funcio- em relação a obras de infraestrutura e
nários de transportadora de minérios implantação de serviços públicos como

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escola e postos de saúde no bairro, que Reserva Indígena Mãe Maria, naquele
julgam ser obrigação da Mineradora mesmo dia eles haviam organizado
Vale como investimentos em compen- um protesto no entorno dos trilhos
sação aos impactos gerados por sua da ferrovia da Mineradora Vale que
ferrovia e circulação de trens. Nossa atravessa a reserva e uma liminar da
circulação pelo bairro produzindo o justiça federal havia ordenado a polí-
documentário animou mais as críticas cia federal expulsar os índios do local,
certamente. ainda que dentro da terra indígena.
O terceiro fato está relacionado à Os indígenas ganharam o apoio da
realização da primeira edição do FIA organização do FIA CINEFRONT e de
CINEFRONT, em 2015, no mesmo ano seu público, sua denúncia feita naquele
do ato que originou o processo movido instante ganhou a mídia nacional e no
pela empresa, ano em que os home- fervor do momento também devo ter
nageados do festival foram Adrian feito duras críticas a Mineradora Vale,
Cowell e Vicente Rios e uma das obras um discurso inflamado como pediam
apresentadas em diversas sessões do as circunstâncias, muito provavelmen-
festival foi Montanhas de Ouro (1990), te fi-lo. Por fim, creio que ambos os
que narra a dinâmica econômica, so- fatos e todas as circunstâncias devem
cial e ambiental na província mineral ter desagradado os representantes da
Carajás no período de instalação e empresa, que por certo tomaram co-
início do funcionamento da infraestru- nhecimento do ocorrido via imprensa
tura de exploração mineral da, ainda local e nacional42.
não privatizada, Companhia Vale do Eu não seria o primeiro e nem o úl-
Rio Doce - CVRD. A apresentação e timo ativista a ser processado pela
debate sobre o filme em sessões lo- Mineradora Vale na região, existem
tadas colocou em foco toda a história inúmeras ações movidos pela empresa
de conflitos e contradições que mar- na justiça contra lideranças comunitá-
cam a atuação da empresa desde sua rias, militantes de movimentos sociais
inauguração e o rastro de destruição e membros de organizações de asses-
ambiental e violações de direitos que soria técnica e política aos atingidos
se acumulam desde então. No último pela mineração. A intenção da empre-
dia do festival, na sessão de encerra- sa é clara nesses casos: criminalizar,
mento na Praça São Félix de Valoir, um intimidar, desgastar emocionalmente
espaço tradicional de entretenimento e desmobilizar politicamente aqueles
cultural de Marabá, no momento em que fazem críticas e organizam lutas
que o diretor Vincente Rios foi home- contra seus interesses. Nessa perspec-
nageado, intensificando mais ainda tiva, numa espécie de instalação do
o debate após a última projeção do medo como dispositivo de desarticu-
filme Montanhas de Ouro naquela edi- lação social da crítica, talvez processar
ção do evento, como coordenador do um professor universitário daria resul-
FIA CINEFRONT chamei ao microfone tados mais ampliados e com alcance
para manifestação pública as lide- a um número bem maior de pessoas e
ranças indígenas do povo Gavião, da

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conter possíveis criticas e ameaças fu- mundialmente conhecidas, como Boa-
turas de atos contra a empresa. ventura de Sousa Santos, da Universi-
Por conta do primeiro processo eu dade de Coimbra, e o peruano Aníbal
fui convocado para uma audiência de Quijano, da Universidad de San Mar-
conciliação perante a juíza, realizada cos -, o que atrairia mais ainda aten-
no dia 5 de março de 2016, quando ção pública e da imprensa, algo que a
fez seis meses da tragédia de Maria- Mineradora Vale, muito provavelmen-
na – MG, triste coincidência. Durante te, não esperava44.
a audiência o Ministério Público e a Em minha defesa trabalhariam os
Mineradora Vale fizeram a proposta advogados da Comissão Pastoral da
de pagamento de multa no valor de Terra – CPT, os mesmos advogados de
um salário mínimo ou prestação de defesa de tantos trabalhadores rurais
serviços à comunidade como forma e militantes de lutas populares vítimas
de “cumprir minha pena” por conta de da violência e tentativas de criminali-
meu ato ilícito. zação praticadas por latifundiários e
O que é que pode fazer o homem pela própria Mineradora Vale. Em mi-
comum neste presente instante senão nha defesa a mesma CPT com quem
sangrar? Conheço meu lugar (Belchior, iniciei minha carreira como realiza-
1976). Com uma vida dedicada ao dor de cinema do front 10 anos atrás
trabalho com comunidades em luta produzindo o “Grito dos Excluídos de
por direitos, a “pena” seria fácil de ser Marabá”... isto foi um bom sinal, certa-
cumprida, mas seria indigno assumir a mente, uma feliz coincidência fílmica.
culpa de um crime que não cometi, não
aceito o acordo e respondo na justiça Considerações finais: Para não
pelos meus atos se assim for, assim me concluir...
pronunciei perante as interrogações
da juíza do caso. E assim foi, uma nova “Palavra e som são meus cami-
audiência seria marcada para ouvir as nhos pra ser livre, e eu sigo, sim,
partes e “julgar” o caso em sessão úni- faço o destino com o suor de
ca, agendada para o dia 10 de novem- minha mão. Bebi, conversei com
bro de 2016, novamente outra triste os amigos ao redor de minha
coincidência, seria no mesmo mês em mesa e não deixei meu cigarro
que a tragédia de Mariana – MG com- se apagar pela tristeza.
pletaria um ano, cinco dias depois pra Sempre é dia de ironia no meu
ser exato43. coração!”
Isso tudo viraria notícia rapidamen- (BELCHIOR, “Não Leve Flores”,
te, com repercussão em sites de jor- 1976)
nais de renome internacional e geraria
um abaixo-assinado de solidariedade A parada pra pensar em minha tra-
também com milhares de assinaturas jetória ao longo de 10 anos como rea-
de pessoas de todo o Brasil e de ou- lizador de obras fílmicas documentais
tros países – entre elas assinaturas de me fez perceber a construção de um
personalidades políticas e acadêmicas movimento em cinema que ajudei a

86
fomentar e ao mesmo tempo com o de jovens realizadores que, em sua
qual fui crescendo junto. Em uma dé- vida acadêmica e profissional, como
cada (2006-2016) várias obras fílmicas pesquisadores, assessores técnicos e
foram produzidas na região sudeste educadores, tomaram os movimentos
do Pará por realizadores locais - 16 sociais como parceiros privilegiados
são citadas neste texto e duas delas para colaboração político-pedagógi-
foram vencedoras de editais lançados ca. Assim, são obras resultantes dessa
nacionalmente para financiamento da parceria em que o cinema é assumido
produção -, são obras comprometidas como instrumento de combate e pro-
em promover a visibilidade das múlti- dução de front, fundadas na ideia do
plas existências que compões a nação cinema como mecanismo indutor de
dos esquecidos neste país e que, na debates sobre a realidade e tecnologia
mais plena pegada do cinema como educacional a serviço da formação de
“uma ideia na cabeça e uma câmera consciência social e política em esco-
na mão” (Glauber Rocha), resultaram las, universidade e comunidades po-
de um cinema de pouco recursos e bres e periféricas, rurais e urbanas: o
muito potencial crítico-criativo na bus- cinema do front!
ca narrativas de um Brasil profundo, A consolidação do FIA CINEFRONT,
da Amazônia profunda, desde o âma- a aproximação com diretores históri-
go de seus conflitos e reafirmando um cos do cinema de fronteira, a contínua
estética fílmica reveladora da capaci- produção de novas obras financiadas
dade de reexistência dos segmentos anualmente pelo Prêmio Proex-Uni-
populares que ali vivem. Ainda que fesspa e a manutenção e ampliação
superação do debate sobre terceiro das sessões de cineclubismo ajudaram
mundismo tenha levado ao fim a ideia a estimular e fortalecer este movi-
de Terceiro Cinema na década de 1980, mento do cinema do front e isto tudo
o que aconteceu nas duas décadas ini- em algum momento iria reverberar
ciais deste século no sudeste paraense sobre nosso mundo de algum modo. E
reflete como os sujeitos da Amazônia reverberou!
Oriental, para além das lutas sociais, A ação jurídica da Mineradora Vale é
se fazem presentes num cenário mun- a prova disto!
dial de “reinsurgência da periferia” ou Confesso que não foi um ano fácil
“reencenação da subalternidade” no emocionalmente - inclusive foi o ano
campo do cinema (PRYSTHON, 2006). que me descobri hipertenso! rs -, mas,
A produção de um atual cinema en- longe de sucumbir à intimidação, não
gajado no sudeste do Pará emerge me restava outra escolha digna a não
influenciado pelo contexto social da ser enfrentar o processo até suas últi-
fronteira - terra fértil para temas e mas consequências, já que o cinema
proposta de roteiros fílmicos e de pes- do front se faz com boas histórias de
quisa que estejam afim de colocar em luta pra contar, mesmo quando não
debate contradições socioambientais transformadas em obras fílmicas.
de todos os tipos – e, especialmen- Mas se foi por conta do cinema
te, como consequência do trabalho que a empresa me processou, com

87
o cinema reagimos! Durante todo o do ocorrido na sessão de julgamento
ano de 2016, em parceira com o Gru- em novembro de 2016.
po Debate e Ação (PA) e Justiça nos Agora, por enquanto, espero que
Trilhos (MA), seguiríamos realizando finde o prazo de “pedidos de recurso”
uma mostra permanente denomina- para então começar outra batalha:
da “Mostra Nacional de Cinema Vale um processo de danos morais contra
de Crimes”, em escolas, universidades, a empresa... Como diria Belchior não
praças públicas e eventos dos movi- me peça que eu lhe faça, uma canção
mentos sociais, exibindo e debatendo como se deve, correta, branca, suave,
filmes sobre a tragédia de Mariana muito limpa, muito leve, sons, palavras,
– MG e a realidade de impactos de mi- são navalhas e eu não posso cantar
neração no sudeste do Pará. Também como convém, sem querer ferir nin-
ao longo desse ano, em menção ao guém... (BELCHIOR, “Apenas Um Ra-
trabalho de cobertura de manifesta- paz Latino-americano”, 1976).
ções e denúncia de situações de viola-
ção de direitos feito nacionalmente por Esse filme continua... Seguimos no
mídia-ativistas, no sudeste do Pará, front!
lançamos o selo Matinta Mídia, com
produção e postagens de vídeos nas Referências
redes sociais cobrindo os atos contra a
Mineradora Vale e denunciando a re- FRANÇA, A. Terras e fronteiras no
pressão praticada por seus seguranças cinema político contemporâneo. Rio de
e forças policiais a seu serviço, inclusive Janeiro: 7 Letras; Faperj, 2003.
com relatos das lideranças comunitá- ___________. A invenção do Lugar
rias e de movimentos sociais processa- pelo cinema brasileiro contemporâneo.
das pela empresa45. Revista Brasileira de Estudos de
No inicio do mês de julho de 2017 Cinema e Audiovisual, ano 1, numero 1.
saiu a decisão sobre o processo gerado 2012.
pela “Queixa Crime” da Mineradora
Vale. A juíza avaliou que o fato de ir às HALBWACHS, Maurice. A Memória
ruas e manifestar nas linhas férreas, Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro,
em apoio às vítimas do desastre de 2004.
Mariana - MG, não configurou crime, e
que a manifestação não durou muito KESSEL, Zilda. Memória e memória
tempo e que não há provas efetivas coletiva. Disponível em: www.
de que tenha atrasado o transporte museudapessoa.
de cargas e/ou passageiros46. Como net. Acesso em: 10/08/2009.
decisão final do processo, em primeira
instância, a juíza me absolveu e a Mi- OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de.
neradora Vale perdeu, não conseguiu Antropologia e Filosofia: experiência
provar o crime do qual me acusava. e estética no cinema e na literatura
Um dia quem sabe eu conte a história da Amazônia. Belém, Pará: Tese
(Doutorado) -- Universidade Federal
do Pará, Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, 2011.
88
PRYSTHON, Angela. Imagens
periféricas: os Estudos Culturais
e o Terceiro Cinema. Revista da
Associação Nacional dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação.
Belo Horizonte: Compós, 2006.

Discografia

BECHIOR, Antônio Carlos. Álbum


Alucinação. Brasil: Philips/Phonogram,
1976.

BECHIOR, Antônio Carlos. Álbum Era


uma Vez um Homem e Seu Tempo.
Brasil: Warner Bros, 1979.

89
NOTAS

Capitulo 3

22 O Grito dos Excluídos é uma manifestação popular que ocorre no


Brasil anualmente desde 1995, no período da Semana da Pátria e, visando
denunciar a exclusão e injustiça social que marcam a realidade do país, tem
sua culminância no dia 7 de setembro como ato político em meio aos desfiles
em comemoração a “independência nacional”.

23 Link do filme “Dezinho: Vida, Sonho e Luta”: https://www.youtube.


com/watch?v=mapXixgtFGs

24 Link do filme “Ubá, uma massacre anunciado”: https://www.youtube.


com/watch?v=9zitP9MFVz0

25 Entre os exemplos destas obras estão “Iracema, uma transa


amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1975), o conjunto das obras
do projeto “Vídeo nas Aldeias’ do antropólogo, indigenista e documentarista
franco-brasileiro Vicente Carelli e a produção de Adrian Cowell e Vicente
Rios, em especial a série “A década da destruição” (1980-1990), produzida
ao longo de mais de vinte anos em viagens pela Amazônia, desencadeada
pela parceria com irmãos Villas Boas e a amizade com Chico Mendes, a obra
de Cowell e Rios narra a realidade de indígenas, ribeirinhos, camponeses
e garimpeiros em meio a destruição da floresta amazônica no contexto da
ocupação territorial originada na gestão dos militares no governo federal.
Fazem parte da série os filmes “Montanhas de Ouro” (1990), sobre a

90
relação de conflitos entre a mineradora Companhia Vale do Rio Doce e os
garimpeiros de Serra Pelada; “Barrados e condenados” (2001), que evidencia
a construção e impactos da Usina Hidrelétrica de Tucurui; e “Matando por
terras” (2012), com imagens da década de 1980 e narrativas de fazendeiros e
posseiros sobre situações de pistolagem e mortes em meio a luta pela terra
na região sudeste do Pará.

26 Link do filme: “Carajás XXI”: https://www.youtube.com/


watch?v=3ARWexe8mRo&t=486s

27 Link do filme “Araguaia, Campo Sagrado”: https://www.youtube.com/


watch?v=e44hXBBaHrw.

28 Vide “O pensamento radical no movimento camponês: história


e memória da luta camponesa em Conceição do Araguaia-1975/1985”
(Dissertação de Fabio Tadeu de Melo Pessoa, 2013), “Memória Social e
Guerrilha do Araguaia” (Dissertação de Naurinete Fernandes Inácio Reis,
2013) e “Memórias da violência na américa latina: Araguaia - Campo Sagrado,
Kamchatka e Linha de Passe”(Artigo Academico de Deurilene Sousa Silva
eVeridiana Valente Pinheiro, Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo, nº
13).

29 As obras de diretores Jorge Bodansk, Vincent Carelli, Adrian Cowel


e Vincent Rios, tanto pelas características de suas produções como pelo
momento histórico em que foram realizadas, certamente refletem em
muito a perspectiva da proposta do Terceiro Cinema: tematizam a pobreza,
violência e situações de exclusão, realizam produções com baixos custos
e equipes reduzidas, utilizam técnicas abertas e simples anti-estúdios
hollywoodianos, fazem opção por uma estética que apresenta a realidade
em linguagem direta, crua, contraditória e conflituosa. Estas obras e diretores
influenciaram diretamente a concepção e proposta do Cinema do Front na
Amazônia Oriental.

30 Link do filme "Dia de Mangal": https://www.youtube.com/


watch?v=hq51GGBxKto.

31 Link do filme "Mulheres do Mangue"https://www.youtube.com


watch?v=PhmugY8CL4Q&t=154s.

32 Link do filme "Escola Quilombo":


https://www.youtube.com/watch?v=ZUqbAPy5bzw&t=785s.
Link do filme "Escola Quilombo, Educação Cultivada":
https://www.youtube.com/watch?v=9WDS p0RA5zQ&t=688s

91
33 Link do filme “Aquém Margens: Juventude e Exclusão Social em
Áreas de Mineração”: https://youtu.be/BFAd_ddR1l0.

34 Produção de documentários financiados pelo Prêmio Proex/


Unifesspa: “Línguas em Narrativas: território, práticas culturais e cosmologia
Akrãtikatêjê”, (2014-2015), de Rita de Cássia; “A valorização da língua dos
Akrãtikatêjê: um enfoque na relação cantos e práticas rituais” (2015-2016),
Ruticléa Oliveira; “Mulheres e mineração: vidas cruzadas por uma ferrovia na
Amazônia” (2015-2016), de Kezia Vieira; e “Imagens e memórias do Cabelo
Seco” (2015-2016), de Vranlei Júnior e §iago Torres.

35 Link do filme “Minerando Conflitos”: https://www.youtube.com/


watch?v=nvSrlQbHLdc

36 Link do filme “Terra pra quem?”: https://www.youtube.com/


watch?v=8jfJuhq_Ch0

37 Link do filme “Ameaçados?”: https://www.youtube.com/


watch?v=rGyid2IIKL0

38 https://www.cartacapital.com.br/revista/847/o-cinema-mostra-o-
rosto-da-amazonia-6473.html

39 https://www.brasildefato.com.br/2017/04/13/para-festival-
internacional-de-cinema-mostra-a-resistencia-dos-povos-da-amazonia/

40 Blog Peruano: http://www.inforegion.pe/220504/cinefront-se-


realizara-por-primera-vez-en-lima/
Site Português: https://entitleblog.org/2015/05/05/a-strange-mirror-
in-the-amazon-frontier/

41 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-gigante-vale-contra-o-
professor-no-para

42 https://www.cartacapital.com.br/revista/847/o-cinema-mostra-o-
rosto-da-amazonia-6473.html

43 https://www.brasildefato.com.br/2016/11/10/vale-processa-
professor-da-universidade-federal-sul-e-sudeste-do-para/

44 https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/08
politica/1468007821_923226.html

45 https://www.youtube.com/watch?v=7nXWRB0HOg8&t=189s

46 https://www.correiodecarajas.com.br/post/professor-vence- 92
primeira-batalha-contra-a-vale
Representação Social do Meio
Ambiente
Sergio Luiz Pereira da Silva

04.
Introdução

A discussão sobre o meio ambiente suscita uma investigação entre duas áreas
de análise com base em duas perspectivas, que são: 1. HEP (Human Environmen-
tal Perspective) e 2. NEP (Natural Environmental Perspective). As compreensões
sociológicas isoladas a partir dessas duas premissas, inibem a formulação de
uma análise interdisciplinar sobre o meio ambiente. Além do mais, o meio am-
biente, em sua complexidade, necessita de uma análise interativa entre o HEP e
o NEP dentro de um esquema metateórico como visto na perspectiva de Tindall
(1995) e Buttel (1997) que envolva a relação entre vários elementos de análise: mi-
cro e macro, subjetividade e objetividade, instituições, ação e risco social, sujeito/
objeto e mudança ambiental, dentre outros aspectos não menos importantes
como o “constructo” entre o natural e suas alterações.
Tal perspectiva é sugerida em trabalhos de autores como: Buttel (1997); Catton
(1978); Giddens (1996); Beck (1994) dentre outros. Trabalhos que tratam sociologi-
camente o meio ambiente dentro de um contexto integral e interrelacional e que,
de maneira geral, identificam a necessidade emergente de uma sociologia do
meio ambiente conectada com questões humanas e naturais.
Compreendemos com isso que tal perspectiva metateórica possa ser pensa-
da também através de uma discussão sobre modelo reflexivo de representação
da realidade ambiental. Ou seja, no aspecto da construção de uma visão tanto
subjetiva como objetiva sobre a realidade concreta do meio ambiente em seu
contexto geral, natural e humano reflexiva e compreensivamente composto. Gi-
ddens (1996), por exemplo, abre uma discussão com essa perspectiva enfocando

94
a questão relacional entre ecológica bases de análises na tentativa de for-
e política ambiental. Vejamos o que é mular uma reflexão sobre homem–na-
dito: tureza e natureza–homem no sentido
de uma sociologia compreensiva de
Seria possível ver na extraordiná- um suposto “homoecologicus”, com
ria explosão das idéias verdes, nas base no que chamamos de habitus só-
últimas décadas, as origens de um cio-ambiental promovido pela experi-
radicalismo político renovado? Com ência ecológica e política da sociedade
certeza os defensores das teorias contemporânea. E assim enfocar esses
ecológicas acreditam que sim. Ca- elementos como dado referencial de
rolyn Merchant, por exemplo, diz preocupação da vida social nos dias
que a ecologia radical propõe uma atuais. Dentro desse contexto, vejamos
nova consciência de nossas respon- como a Sociologia do Meio Ambiente
sabilidades em relação ao resto da estrutura uma base para tal reflexão.
natureza e aos outros humanos. Ela
busca uma nova ética da natureza e A constituição do conceito de habitus e
da formação de pessoas. Ela dá às pensamento político-ambiental
pessoas o poder de fazer mudanças
no mundo que sejam coerentes com Para definir a noção conceitual
uma nova visão social e uma nova de “habitus” com maior propriedade,
ética.” (Giddens, 1996, p.223). recorremos a alguns autores que tra-
balham com tal noção: Pierre Bourdieu
(1989) e Nobert Elias (1989/1994/1998).
Como é possível perceber a pers- Enfatizamos que o conceito de Habitus
pectiva natural e humana se encontra nos dois autores tem noções teóricas
no centro da questão. Nesse sentido, distintas, mas nos servem como base
propomos uma discussão sobre o as- estrutural de conceituação. Utilizare-
pecto do pensamento político e o pen- mos também outros autores que tra-
samento ecológico como elementos balham a categoria de habitus como
de compreensão do meio ambiente. E, elemento de análise em seus trabalhos
sendo assim, estes devem estar anco- que são: Jean-Hugues Déchaux (1993)
rados numa análise sobre represen- e Jurandir Malerba (1996) e nos aju-
tação para que possa referenciar, de dam a compor uma definição sintética
forma relacional, a perspectiva natural do conceito de habitus.
e humana como pontos relevantes de Podemos definir o habitus, se-
investigação. gundo a noção de Bourdieu, como um
A preocupação deste ensaio não contexto simbólico que se contextua-
é o de definir limites claros entre o HEP liza como “estrutura estruturada e es-
e NEP, ou de situar limites entre outros truturante”. Segundo essa base, Jean-
elementos de investigação sobre o -Hugues Déchaux afirma que o habitus
meio ambiente. Em vez disso a preocu-
pação deste texto é o de refletir sobre (...) consiste em esquemas de per-
o entrelaçamento e a interação dessas cepção, de apreciação e de ação

95
inculcados pelo contexto social e se contribuição de elementos do meio
analisam em uma incorporação das ambiente biofísico sobre essas formas
estruturas sociais. Mas simultanea- de organizações sociais e constituiu a
mente, este sistema de disposições formação do processo de represen-
adquiridas é produtor de práticas. Ele tação simbólica da realidade dessas
é matriz de percepções, de aprecia- sociedades.
ções e de ações, o princípio gerador Em seu trabalho “Sobre o Tempo”, o
dos comportamentos. Como escre- autor mostra a relevância do ponto de
ve P. Ansart, o habitus ‘é ao mesmo intercessão na relação homem-natu-
tempo o produto da interiorização reza e com isso desenvolve, de forma
das condições objetivas e a condição fundamentada, uma compreensão
das práticas’ (Jean-Hugues Déchaux sociológica sobre processos culturais
1993, p.4). antigos que se formaram ancorados
no contexto de percepção do meio
ambiente (sol, lua, vento, chuva, clima,
Na perspectiva de Elias, a noção de natureza etc.) e como essa questão
habitus refere-se a psicogênese das influenciou a constituição de habitus
formações sociais na relação Nós-Eu que incidiram em práticas de condu-
mediante os processos de relações tas sociais. Dentro desse contexto,
sociais e os processos de formações determinadas formações sociais anti-
culturais, nesse sentido o habitus esta- gas, segundo o autor, desenvolveram
ria definido próximo a um conceito de compreensões e elaborações sobre o
caráter nacional, fruto do processo de “Tempo” com base em hábitos institu-
figuração social das sociedades. cionalizados de suas práticas sociais
Análises sobre sociedades antigas sob o aspecto fisico-natural e cultu-
a partir dessa questão são referen- ral no processo de formação de suas
ciadas dentro da sociologia histórica sociedades.
demonstrando a relação do caráter de Embora estejam ancoradas em
formação simbólica da relação entre o noções conceituais diferentes, a idéia
gênero humano de vida e o meio am- de habitus em Bourdieu e Elias delimi-
biente físico dentro da relação Nós-Eu. tam o aspecto operacional do habitus
Nobert Elias (1998) toca nessa questão como categoria de análise sociológica
discutindo as relações entre o ambien- envolvendo dimensões mais estrutu-
te físico e formas de organizações so- rais simbólicas, como no caso de Bour-
ciais de culturas antigas numa análise dieu, e dimensões mais individuais que
sobre a questão de constituição do ha- envolvem o Nós-Eu (percepção e re-
bitus na percepção do “Tempo”. Esse presentação), como no caso de Elias.
autor demonstra como o raciocínio das Nesse sentido, a noção hipo-
formações sociais antigas, a partir da tética de “habitus sócio-ambiental”
relação homem-natureza, constituíram contemporâneo, que procuramos de-
seu habitus a partir de percepções ob- senvolver, tenta refletir os aspectos
jetivas sobre o meio ambiente. Essas dos dois autores. Além desse contex-
percepções referenciavam a relevante to, procuramos também enfatizar a

96
dimensão política para discutir nossa constituição desse “habitus sócio-am-
questão. E para tanto recorremos às biental”, ou seja, dessa disponibilidade
análises atuais que discutem a política de percepção, compreensão e repre-
e o meio ambiente na sociedade glo- sentação estruturadora e estruturante
bal. de ações e práticas sociais.
A idéia de “habitus sócio-ambien- É fato que a ideia de consciência
tal” que argumentamos nesse texto ambiental e ecológica e a noção de
refere-se a um aspecto de realidade destradicionalização, discutida por
emergente que está presente em nos- Giddens (1996), como assunto de uma
sos dias a partir de questões da cha- agenda sóciopolítica dos nossos dias é
mada “sociedade de risco” analisada também reflexo da constituição desse
por Alan Irwin (1997), Ulrich Beck (1992), habitus sócio-ambiental contemporâ-
Giddens (1996), Elizabeth Shove (1997) neo. Isso indica que a forma de orga-
e a partir das questões e das análises nização e desenvolvimento social de
sobre “mudança ambiental” feita por nossos dias obriga-nos a um posicio-
autores como: F. Buttel (1997); Catton e namento político em relação ao meio
Dunlap (1978); Dunlap (1997); C. Rootes ambiente47. Como exemplo simples
(1997); M. Redclif e G. Woodgate (1997) podemos dizer que a prática voluntária
e J.A. Padua (1997). da seleção doméstica do lixo, ou uma
Estes autores discutem com pro- determinação governamental instituí-
priedade a emergência dos problemas da sobre a obrigatoriedade da seleção
ambientais na sociedade contempo- de todo o lixo produzido na socieda-
rânea enfatizando de maneira geral de, ou a conscientização voluntária de
a complexidade da questão. Dentro poupar energia nos horários críticos
desse contexto as noções de mudan- (horários de maior consumo); ou a pe-
ças ambientais e riscos sociais são en- nalização instituída pelo governo sobre
fatizados por esses autores a partir de gasto excessivo de energia; ou o uso
análises sobre como o crescimento e inadvertido de um spray que contenha
desenvolvimento sócio-econômico vem propriedades destrutivas à camada de
se desenvolvendo como um modelo ozônio; ou sua proibição; ou mesmo a
hegemônico. Particularmente a socie- discussão institucional (ciência/gover-
dade de risco e a mudança no meio no) ou popular (agricultores e consu-
ambiente constitui a base da forma- midores) sobre alimentos transgênicos
ção de um modelo crítico de percepção nos dias atuais, dentre inúmeros outros
da realidade social contemporânea. exemplos que poderíamos elencar, são
Estamos nos referindo à percepção aspectos que se constituem dentro ou
social sobre o meio ambiente por parte a partir do que chamamos hipotetica-
dos atores sociais e a percepção sobre mente de “habitus sócio-ambiental”
o meio ambiente nas dimensões insti- do mundo contemporâneo.
tucionais de políticas públicas a partir Nesse contexto, definiremos
de um enfoque político-econômico. o “habitus sócio-ambiental” da se-
Nesse sentido, o movimento ambiental guinte forma: uma disposição de pa-
é apenas um reflexo mais objetivo de drões comportamentais, perceptivos,

97
representacionais e simbólicos que (...) existe uma série de situações
estão ancorados numa dimensão em que nas quais a humanidade de-
prática e interativa das relações e veria se afastar das intervenções que
ações sociais, com uma perspectiva afetam o meio ambiente, ou tentar
natural (ambiental) e humana (só- eliminar os efeitos colaterais. Entre-
cio-individual) dentro do sistema de tanto, a maioria dos modos de vida
desenvolvimento global do mundo com os quais temos que lidar são
contemporâneo. sistemas ecossociais: eles dizem res-
Sob esse aspecto real, faz senti- peito ao meio ambiente socialmente
do uma discussão sobre elementos de organizado.(...).Na maioria das áreas
formação da sociedade global. Vive- ambientais, não poderíamos começar
mos numa sociedade global antes de a desenredar o que é natural e o que é
mais nada pelo fato do meio ambiente social – mais importante ainda, procu-
social e natural se constituir num sis- rar fazer isso é geralmente irrelevan-
tema global. Diante desse argumento, te para os esforços a fim de elaborar
afirmamos que todas as formações programas de ação. Isso nos livra da
sociais historicamente constituídas, tarefa impossível de ter de afirmar que
no mais remoto passado, sempre es- Los Angeles é, de alguma forma me-
tiveram dentro de um sistema global. nos natural que um vilarejo inglês; e
E sendo assim se constituíram por um nos incumbe de fazer julgamento sobre
habitus ambiental mutanti que rela- todas as paisagens ou arenas ecoló-
ciona meio ambiente natural e meio gicas. ‘O meio ambiente’ não deveria
ambiente social, ou como os analistas ser usado como uma forma sub-reptí-
contemporâneos como Catton e Dun- cia de contrabandear a ‘natureza’. Los
lap (1978) conceituam como limites e Angeles é uma parte do meio ambien-
relação entre HEP-NEP. te tanto quanto uma campina (1996;
Como esquema de percepção p.239).
da realidade, essa noção hipotética
que desenvolvemos de “habitus sócio- Dessa forma, todas as formações
-ambiental” se estrutura dentro de um sociais envolvendo cultura, política,
contexto emergencial da sociedade economia e os vários atores envol-
contemporânea. Contexto esse que vidos em todos esses campos, estão
envolve as várias regiões e as várias inseridos na relação intrínseca do
formações culturais, políticas e econô- HEP-NEP contextualizando um lugar
micas num processo de compreensão e social de formação desse “habitus
representação entre o “social” e o “na- sócio-ambiental” na constituição da
tural”. Isto talvez incida na forma de sociedade contemporânea”.
percepção do meio ambiente como um
sistema ecossocial que funcione interli- Ecologia e natureza em representação:
gado entre as várias áreas e regiões. Pressupostos da Sociologia do Meio
Como afirmou Giddens: Ambiente

98
O conceito de “natural” é uma cons- substrato material que em última ins-
trução social ao mesmo tempo que o tância é natural.
“social” encontra no natural e no sim- Não apenas Buttel, mas outros au-
bólico os próprios elementos de sua tores dentro do campo da SMA como
efetivação conceitual, talvez isso reflita Catton e Dulanp (1978) enfatizam a
uma posição dialética, ou talvez não relação entre o contexto biofísico e o
haja uma síntese mas um processo de contexto cultural como um modelo de
ruptura entre os dois pontos, o natural análise necessário à sociologia, es-
e o social. pecificamente à Sociologia do Meio
Vejamos então as bases da So- Ambiente. No que toca às análises so-
ciologia do Meio Ambiente no que se bre capitalismo avançado e mudança
refere a essa questão. O que determi- ambiental, por exemplo, Buttel (1997)
na o que? As construções sociais e cul- refere-se à questão ambiental, do
turais são hegemônicas sobre a natu- ponto de vista sociológico, com uma
reza (meio ambiente) ou a natureza à preocupação institucional no que se
sua maneira determina os constructos refere a legitimação da forma como a
socioculturais? Essa é uma questão de sociedade implementa um modelo de
fundo não só da Sociologia do Meio desenvolvimento político-econômico
Ambiente (SMA), mas do pensamento cada vez mais acelerado. Um modelo
sociológico de base materialista. que incide no processo de exploração
O materialismo histórico, dentro de e mudança ambiental dentro de um
um contexto bem mais amplo, tam- contexto de degradação. A análise de
bém ancora uma discussão a partir da Buttel segue a lógica de um neo-ma-
relação homem/natureza e de toda terialismo, tanto no que concerne à
relação material que daí decorre. É questão concreta da natureza (meio
fato que a própria Sociologia do Meio ambiente biofísico) como no que toca
Ambiente sofreu e sofre ainda hoje in- ao contexto de conscientização crítica
fluências desse paradigma de análise sobre o meio ambiente por parte dos
social. Frederick Buttel (1997) propria- atores sociais no contexto individual e
mente afirma que a SMA tem uma tra- institucional.
dição materialista desde seu início. Dentro desse aspecto, ele busca
Com isso, essa disciplina científica examinar o aspecto institucional da
tende a perceber a relação de influ- mudança ambiental com ênfase no
ência do ambiente biofísico na vida papel da política econômica e na aná-
social de forma complexa e interrela- lise das instituições sócio- culturais no
cional. Buttel (1997) compreende que que toca a degradação ambiental.
de forma efetiva os processos sociais, A idéia de uma consciência ecológi-
os sistemas culturais e as relações de ca define de forma simbólica o back-
poder estabelecidos nas sociedades ground da questão ambiental, pois de
complexas (mediante sua forma de forma global os impactos da mudança
organização, funcionamento e de- ambiental dizem respeito à vida social
senvolvimento) estão ancorados num como um todo. Dentro desse contexto,
a consciência coletiva de um suposto

99
homoecologicus estaria aquém da re- ampla que setorial, a implicação da
alidade social. análise sociológica sobre esse aspecto
Além desse aspecto fundamen- reflete a necessidade de aproximação
tal e estrutural é válido ressaltar que dessas duas esferas da sociedade, pois
as bases da própria estruturação da as categorias de análises do problema
SMA estão também ancoradas num caracterizam-se num modelo conjun-
outro substrato, este por sua vez é a tural de investigação. Nesse sentido,
consciência política ambiental. Inclu- o movimento social atua com um ca-
sive a Sociologia do Meio Ambiente talisador das questões ambientais e
surgiu das práticas de mobilização do visivelmente implementa ações sociais
movimento ecológico moderno. Nesse como ato simbólico-discursivo, ou seja,
caso a ligação dessa sociologia com a atua como ator de uma representação
idéia de consciência ecológica é muito emergente no qual o significado efeti-
forte (Buttel, 1997). vo refere-se a uma questão concreta.
Nesse sentido, essa sociologia No contexto normativo, as políticas
sofreu uma influência fundamental dos de controle e preservação ambiental
movimentos ambientalistas e ecoló- implementadas pela esfera executiva,
gicos que atuam na sociedade global no nível Estadual e Federal, refletem
acerca de vinte e cinco anos, o que faz a demanda de preocupações sociais
com que a prática política ambien- de caráter emergencial que também
tal seja a marca emblemática dessa referem-se a questões concretas. Do
disciplina. ponto de vista material e simbólico o
A relevância dessa ultima questão habitus do ambientalismo, como prá-
incide no fato de que o ambientalismo tica ou como conhecimento disponível
se transformou num dos movimentos em forma de cultura concretizada, liga
sociais mais atuante da sociedade a perspectiva natural e humana de
contemporânea, dessa forma os cha- forma fundamental e nesse ponto se
mados “Novos Movimentos Sociais” forma o ethos do que convencionamos
têm se transformado em veículos de chamar “homoecologicus”.
expressão de um ativismo político atu- Alan Irwin (1997), em seu trabalho
ante e visível. “Risk, the environment and environ-
A noção de representação do meio mental knowledges” toca de forma
ambiente, dentro desse contexto, es- peculiar na questão entre cultura e
trutura uma discussão entre duas esfe- natureza discutindo sobre o natural, o
ras de ações sociais: o mundo da vida social e o científico como categorias
(ambiente da vida cotidiana) o qual é o interligadas na análise da SMA. Refle-
universo de visibilidade dos movimen- tindo de forma crítica sobre o conheci-
tos sociais e o mundo do sistema nor- mento ambiental, o autor enfoca uma
mativo (este referido ao sistema políti- compreensão desses três elementos
co-econômico e jurídico), duas esferas de forma aproximada uns dos outros
separadas no contexto do processo e assim nos indica um caminho para
social. Visto que o problema ambien- a compreensão da racionalidade am-
tal refere-se a uma questão bem mais biental que pretensamente nos levaria

100
as bases de formação desse “homo- vida social, o que faz com que a reali-
ecologicus” contemporâneo. Vejamos dade se materialize nas ações dos su-
como discutir essa questão a partir de jeitos tanto de forma social quanto de
categorias sociológicas como: repre- forma política.
sentação social, racionalidade e ação Importa-nos aqui a dinâmica so-
sócio-política. cial e política da representação no que
toca ao meio ambiente que é uma rea-
Representação ambiental como habitus lidade material processada socialmen-
político te. Em outras palavras, importa-nos
a dinâmica social e política do pen-
No início desse ensaio elencamos samento ambiental ancorados numa
algumas categorias de análise que nos análise de representação social.
servem como instrumento de reflexão, Então vejamos a definição con-
tais como “ambiente biofísico”, “ação ceitual de pensamento político refe-
social” e “pensamento ambiental e po- rente a essa questão. O pensamen-
lítico”. Esses elementos trabalhados no to político é uma forma reflexiva de
campo da SMA se complementam com atingir objetivos dentro do que Pierre
outro elemento não menos sociológico Bordieu (1989) chamou de “mercados
a “representação social”. de bens de poder” dentro dos campos
Dentro desse contexto, a catego- simbólicos, especificamente dentro
ria de representação social será utiliza- do chamado campo político. A política
da aqui como instrumento operacional nesse sentido se fundamenta como
de discussão nesse ensaio. Para tanto uma posição estratégica no contexto
devemos defini-la conceitualmente. das relações dos sistemas institucio-
Basicamente podemos dizer que nais, culturais e econômicos. A questão
a representação social é uma forma ambiental ou mais especificamente o
de produção e propagação do conhe- pensamento político ambientalista en-
cimento que se constitui no mundo da contra nesse pressuposto de relações
vida do cotidiano. Autores especialistas instituintes um lugar social para sua
nesse campo de estudo como: Serge ação.
Moscovici (1976), Denise Jodelet (1988), Retomando as reflexões de But-
Jorge Valla (1992), Celso Sá (1993), tel (op. cit.) compreendemos como o
dentre vários outros, definem as repre- complexo institucional da sociedade
sentações sociais como um modelo de está ligado de forma geral à questão
conhecimento específico embasado político-ambiental, especificamente no
no senso prático do saber comum que que toca as mudanças e transforma-
tem como função estruturar comunica- ções do meio ambiente como um dado
ção, conhecimento, comportamento e de realidade urgente. E por isso, para
práticas sociais. ele, a tradição materialista de análise
Nesse contexto, as represen- do meio ambiente tende sempre a per-
tações sociais, dentro do cotidiano, ceber a relação de influência do meio
traduzem em conhecimento prático e ambiente biofísico na vida social e de
popular as informações veiculadas na

101
como isso se traduz numa linguagem situacional desse momento de crise na
política. qual a sociedade global se encontra. E
Dentro desse contexto, os proces- como atores políticos, esses movimen-
sos sociais, os sistemas culturais e as tos ambientais representam social e
relações de poder (econômico e polí- ativamente uma forma de relação po-
tico) estão ostensivamente ancorados lítica do meio ambiente.
nesse substrato ambiental. Vemos por Sobre esse aspecto Marco Rei-
exemplo, as discussões sobre política gota (1997) afirma que a represen-
de usos dos recursos naturais, sus- tação social sobre o meio ambiente
tentabilidade, organização espacial, reflete uma forma diferencial de per-
dentre outros assuntos, como questões cepção do mesmo. Porém, mesmo com
que são tratadas dentro de um aspec- essa diferenciação há um consenso so-
to da racionalidade ambiental mes- bre a base de definição do significado
mo quando se refiram ao processo de conceitual e prático do meio ambiente.
degradação do meio ambiente, o que Ele propõe que o meio ambiente
quase sempre acontece. mesmo como uma representação so-
O importante para nossa refle- cial se contextua na seguinte definição:
xão é justamente o aspecto que an-
cora o pensamento político e a repre- O lugar determinado ou perdido,
sentação ambiental. Para Buttel essa onde os elementos naturais e sociais
questão de fundo encontra-se na base estão em relação dinâmica e em
de formulação de um paradigma so- interação. Essas relações implicam
ciológico ambiental, que é um proble- processos de criação cultural e tecno-
ma central em suas análises. lógica e processos históricos e sociais
No mesmo sentido, para autores de transformação do meio natural e
como Giddens (1996) a relação entre construído (Reigota; 1997; p. 14).
política e meio ambiente e pensamen-
to político-ambiental reflete o proble-
ma que tratamos aqui. Para Giddens, A questão relevante no que toca a
ancorado em Bookchin, “o pensamen- relação entre o meio ambiente e sua
to ecológico pode recuperar ideias forma de representação, por parte dos
de uma crítica radical da vida social” vários atores sociais, é que o meio am-
(p.225). Isso é afirmado num contexto biente é percebido de forma plural e
em que o chamado pensamento ra- diferenciada. E isso se dá pelo fato dos
dical, dentro do aspecto de crise dos indivíduos compreendê-lo a partir de
paradigmas, perdeu sua identidade e, uma perspectiva subjetiva ancorada
consequentemente, seu espaço político numa realidade concreta.
e vê surgir um pensamento da “política Dentro desse contexto, é fato
verde” que procura expressar questões que o meio ambiente é enfatizado
políticas e sociais num contexto de cri- como uma determinação natural (por
se social, ambiental e econômica. mais subjetiva que seja sua compre-
A racionalidade política do mo- ensão). E sobre essa compreensão
vimento ambiental, é fruto do processo se fundamenta uma prática social,

102
cultural e política por parte dos ato- contexto de degradação ou de conser-
res sociais. Podemos inclusive afirmar vação. E de forma subliminar enfatiza-
que nas representações sociais sobre o -se as questões políticas e sociais, pois
meio ambiente encontramos elemen- essas últimas revelam objetivamente a
tos que pertencem ao H.E.P e ao N.E.P. importância do meio ambiente para as
ao mesmo tempo e isso se dá pelo fato formas de vida e organizações sociais.
dos indivíduos compreenderem de for- Porém é importante salientar
ma simples a relação intrínseca entre que cada vez mais nos dias atuais o
o natural e o humano percebendo que conteúdo político está sendo enfatiza-
um só tem sentido em relação ao ou- do com maior força. Nesse sentido, a
tro. Pelo menos é o que demonstra a percepção representativa do meio am-
análise da pesquisa feita por Reigota48 biente tende a enfatizar cada vez mais
(1997). um conteúdo político-instrumental.
Podemos abstrair essa discus- Podemos partir desse tipo de
são para tentar refletir como o meio afirmação com base em análises feitas
ambiente é percebido no contexto da por Giddens (1996), Beck (1992) e Buttel
sociedade global, na medida em que (1997), autores que enfatizam o conte-
os problemas ecológicos e ambientais údo político na percepção e mudança
são difundidos amplamente na socie- do meio ambiente. Isso significa que
dade global. Com base numa divul- a idéia de compreensão sobre o meio
gação mass media o meio ambiente ambiente ganha uma dinâmica só-
passa a ocupar um lugar privilegiado cio-cultural e simbólica cada vez mais
nos lares e vida cotidiana da socieda- forte e essa força se revela no contexto
de globalizada. Mas isso não significa político no qual está ancorada e que
objetivamente afirmar que a comu- contribui para a formação de um ethos
nicação mass media sobre questões ambiental.
ambientais produza uma consciência
ecológica e ambiental em nível global, Considerações Finais
como é possível perceber nas argu-
mentações de Hanningan49. Porém, Este texto, buscou dissertar sobre
podemos afirmar que isso de maneira idéias e categorias de análise, per-
indireta e simbólica ajuda a constituir tinentes à compreensão contem-
o que chamamos hipoteticamente de porânea sobre o meio ambiente no
“Habitus sócio-Ambiental” contempo- contexto de relação entre o social e
râneo que discutiremos mais adiante. o natural. Transcorrendo no aspecto
É fato que a definição de meio da interdisciplinaridade o desenvol-
ambiente, no contexto das represen- vimento dessa investigação percorre
tações sociais, é enfatizado com uma um caminho de pretensa formação de
determinação de base natural. Nesse novas categorias e conceitos, como é o
sentido, a sociedade de maneira ge- caso do “habitus sócio-ambiental con-
ral tem uma relação de compreensão temporâneo”, nos fazendo tomar em-
sobre o meio ambiente no que toca a prestado, arquétipos consolidados da
visualização da natureza física, no seu sociologia e relacioná-los com outras

103
áreas de conhecimento e investigação tentativa de operacionalizar melhor o
social. Porém, o mais importante dessa que argumentamos.
questão não é o aspecto de formações
de novos conceitos, mas o de saber se Referências
os mesmos se sustentam enquanto
elemento de análise ou se há pelo me- ALLMARK, T. Environment and
nos um contexto de aplicação para os Scciety in Latin America”, in še
mesmos. International Handbook of Environetal
A perspectiva interdisciplinar nos Sociology. Michael Redcliž and
proporcionou condições de, através de Graham Woodgate, eds. p. 390-402
uma investigação mais livre, interrela- Northampton, MA: Edwaed Elgar, 1997.
cionarmos uma variada gama de au-
tores e conceitos no propósito de cons- BECK, Ulrich. “A Reinvenção da
truirmos um argumento objetivo. Esse Política”. In: GIDDENS, A. et alli.
argumento objetivo foi mediado por Modernização Reflexiva. São Paulo.
um argumento maior e mais estrutu- Unesp, 1995.p. 89-114.
rado, no campo da Sociologia do Meio
Ambiente, que é a relação do processo BOURDIEU, Pierre. Economia das
social e natural na formação dos siste- Trocas Simbólicas. São Paulo.
mas ecossociais, aqui mencionado por Perspectiva, 1989.
Giddens (1996), Buttel (1997) e Irwin
(1997). BUTTEL, F. H. “Social Instituitions
A pertinência dessa análise re- and Environmental Change”, in še
fere-se a uma possível contribuição da International Handbook of Environetal
racionalidade contemporânea no que Sociology. Michael Redcliž and
toca à investigação do meio ambiente Graham Woodgate, eds. P. 40-55
físico e social visto que a partir dos ar- Northampton, MA: Edwaed Elgar,1997.
gumentos discursivos dos autores que
tratamos. CATTON, W. R. DUNLAP, R.E.
Como foi possível perceber, a noção “Paradigms, šeories and the
de habitus sócio-ambiental além de se Prinmacy of the HEP-NEP
ancorar em conceitos já antes discuti- Dinstinction” še American Sociologist
dos na sociologia, busca ainda dimen- 13, 1978.
sões no campo da política e com isso
dinamiza-se na noção de seu próprio DÉCHAUX, Jean Hugues. Nobert
conceito. Elias et Pierre Bourdieu: analyse
Os resultados desse ensaio conceptualle comparée. Arquives
talvez não se apresentem nessas úl- Européenes de Sociology. Cambridge,
timas palavras mas no desenvolvi- 34, 365-85,2. 1993.
mento de análises futuras no campo
de nossas investigações interdiscipli- DUNLAP, R. E. še evolution of
nares a partir da sociologia, com a Environmental Sociology: A Brief
History And Assessment of the

104
American Experience”, in e MALERBA, J. (1996) “Sobre Nobert
International Handbook of Environetal Elias” in A Velha História: Teoria,
Sociology. Michael Redcli and Método e Historiografia. Malerba, J.
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Northampton, MA: Edwaed Elgar. 1997
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JODELET, Denise. (1988). La Northampton, MA: Edwaed Elgar.
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Social Bases of Environmental Invisible: Sociology, Energiy and the
Concern: Have ey Changed Over Environment” in e International
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Michael Redcli and Graham

105
Woodgate, eds. P. 261-237.
Northampton, MA: Edwaed Elgar.

TINDALL, D. “What is Environmental


Sociology? An Inquiry into the
Paradigmatic Status of Environmental
Sociolgy” in Environmental Sociology:
‡eory and Practice, Michael Mehta
and Eric Ouellett (eds) London: Captus
Press, 1995.

VALLA, Jorge. MONTEIRO, Maria


Benedita Psicologia Social. Lisboa.
Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

106
NOTAS

Capitulo 4

47 Ao nos referirmos a posicionamento político e consciência ambiental,


não estamos nos referindo às políticas partidárias simplesmente, mas a uma
consciência política coletivizada incorporada pelos vários atores na sociedade
global que envolve governos, cidadãos, instituições públicas e privadas.

48 Nesse livro, que tem como título Meio ambiente e Representação


social, Marcos Reigota faz uma análise sobre o conceito de meio ambiente
a partir da forma como educadores compreendem e definem o meio
ambiente, e como esse contexto de definição está ancorado na prática
cotidiana de relação prática e conceitual do mesmo.

49 Sobre esse aspecto ver J. A. Hanningan (s/d ) New Media and


Enviromenmtal Comunications”.

107
Interface entre Educomunicação e
Educação Ambiental nas políticas
públicas e em teses e dissertações
brasileiras
Beatriz Truffi Alves
Claudemir Edson Viana

05.
Introdução
Introdução: aproximações entre Educomunicação e Educação Ambiental

O artigo apresenta resultados de pesquisa50 realizada como conclusão do cur-


so de Licenciatura em Educomunicação da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. O desafio do trabalho foi compreender as aproxima-
ções, as contribuições e, efetivamente, as interfaces entre duas áreas de atuação
emergentes: Educomunicação e Educação Ambiental.
De um lado, a Educomunicação nos aponta para a necessidade de reconhecer
as relações entre os campos da Comunicação e da Educação a fim de buscar res-
postas aos processos formativos formais, não formais e informais no quadro de
profundas mudanças culturais vivenciadas a partir da intensificação das relações
com as mídias, destacando-se, ainda, a importância da democratização dos pro-
cessos comunicacionais, em suas diferentes perspectivas, nas atividades huma-
nas e na sociedade (SOARES, 2011; MARTÍN-BARBERO, 2014; KAPLÚN, 1998).
De outro lado, a Educação Ambiental nos evidencia a intersecção entre o
campo Ambiental e a Educação, para a reflexão e problematização das rela-
ções que envolvem a sociedade, a educação e o meio ambiente, com vistas ao
enfrentamento de desafios para a transformação do modo de vida e do modelo
de produção econômica hegemônicos (LOUREIRO, 2004a; LIMA, 2005), visan-
do o atendimento de preceitos da Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) para a
construção, sob a responsabilidade de toda a sociedade, de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado que garanta a qualidade de vida das presentes e fu-
turas gerações.

109
Nesse contexto, reconhecemos que, Os diferentes modelos de comunica-
tanto a Educomunicação como a Edu- ção adotados, bem como as diferentes
cação Ambiental se relacionam dire- concepções de educação determinam,
tamente com o campo da Educação, nesse sentido, a identidade e os resul-
bem como propõem por meio e a partir tados do processo educativo, influindo
do processo educativo, uma perspecti- em sua capacidade de manutenção ou
va de mudança de relações, seja sob o transformação da realidade.
aspecto das relações entre os sujeitos A comunicação e a educação, por-
ou instituições, seja de suas relações tanto, precisam ser reconhecidas em
com o meio ambiente e a sociedade sua essência como dialógicas, ou como
nos quais se inserem. define Freire (2011b, p. 91), “a educação
A concepção de educação atrelada é comunicação, é diálogo, na medida
a ambas as perspectivas, portanto, em que não é a transferência de saber,
reconhece o processo educativo como mas um encontro de sujeitos inter-
uma prática social e histórica concreta, locutores que buscam a significação
ou ainda, como mediação da socia- dos significados”. Para que de fato
bilidade humana (SEVERINO, 1994) e possamos ter uma verdadeira educa-
como instrumento importante e deci- ção, Freire (2011a, p. 115) ainda reforça
sivo no processo de transformação da que “somente o diálogo, que implica
sociedade (SAVIANI, 2009). um pensar crítico é capaz, também
A legitimidade desse processo, que de gerá-lo. Sem ele, não há comuni-
caracteriza a formação humana, está cação e sem esta não há verdadeira
diretamente ligada à comunicação educação”.
(SAVIANI; DUARTE, 2010), a qual per- Se estamos em busca de uma edu-
mite a troca dos elementos culturais, cação que almeje mediar a transfor-
sejam percepções, valores, símbolos, mação das relações humanas e sociais
atitudes ou habilidades. temos que considerar, intencionalmen-
Embora a educação e a comunica- te, as formas mais adequadas para
ção sejam entendidas como fenôme- que isso aconteça.
nos distintos, “a interconexão entre Na esfera da relação entre a Edu-
elas é requerida pelas próprias exigên- cação e a Comunicação, Kaplún (1998)
cias da vida em sociedade” (SOARES, aponta que os diferentes tipos de edu-
2011, p. 17). cação correspondem também a deter-
De acordo com Soares (2011, p.17, gri- minadas concepções e práticas de co-
fos do autor), “a educação só é possível municação, as quais orientam o fazer
enquanto ‘ação comunicativa’, uma vez educativo e os resultados do processo
que a comunicação configura-se, por si educacional.
mesma, como um fenômeno presente No campo da Educação Ambiental,
em todos os modos de formação do reconhece-se que essa se inscreve e
ser humano” e, ainda, que “toda comu- dinamiza na própria educação (LOU-
nicação – enquanto produção simbóli- REIRO, 2004b), a qual é tomada como
ca e intercâmbio/ transmissão de sen- um processo social e político interme-
tidos – é, em si, uma ‘ação educativa’”. diado pela relação com o outro, que

110
perpassa a convivência com o indiví- partir do início dos anos 2000, que as
duo, com o(s) grupo(s) e a sociedade relações entre a Educomunicação e a
(SANTANA, 2005). Educação Ambiental estão presentes
Para Sorrentino et al (2005), a bus- em discussões acadêmicas brasileiras,
ca individual e coletiva por mudanças refletindo-se em publicações científi-
culturais e sociais estão dialeticamente cas em diversas áreas e, ainda, inte-
indissociadas nos processos deflagra- grando os textos de normas legais e
dos pela educação ambiental de cará- de programas e diretrizes específicos
ter crítico e emancipatório. de políticas públicas de educação am-
Ao reivindicar que a problemática biental no Brasil.
ambiental está relacionada, essencial- Podemos reconhecer, nesse senti-
mente, ao questionamento da racio- do, que já no início das discussões que
nalidade econômica e tecnológica do- preconizam a definição da Educomu-
minantes, Leff (2010) defende que há nicação como campo de intervenção
uma crise de conhecimento do mundo social, foram identificadas ações que
ou, como ressalta o autor, uma “crise abordavam sua relação com a temá-
civilizatória”, na qual ele identifica a tica ambiental (SOARES, 1999), assim
necessidade de problematização dos como, posteriormente, evidenciaram-
paradigmas de conhecimento esta- -se perspectivas de sua integração em
belecidos, que permita criar uma nova práticas sociais, como é o caso do livro
demanda de metodologias capazes de de Soares (2011) que dedica um capítu-
orientar a reconstrução do saber, bus- lo exclusivo a abordar o “Tratamento
cando uma análise integrada da rea- educomunicativo para o tema do meio
lidade; e propõe, assim, uma reflexão ambiente”.
sobre a integração de campos diversos No âmbito da Universidade de São
do saber a fim de criar uma racionali- Paulo, instituição na qual considera-se
dade ambiental ou um saber ambien- que o conceito da Educomunicação
tal que sejam capazes de construir ou- tenha sido sistematizado no período
tra realidade social. entre 1997 e 1999, a criação, em 2014,
Assim, nos parece fazer sentido a de uma disciplina de Educomunicação
aproximação e o alinhamento de dife- Socioambiental na grade curricular do
rentes estratégias voltadas à consoli- curso de Licenciatura em Educomuni-
dação de relações que promovam um cação oferecido desde 2011 pela Escola
“saber ambiental” e contribuam dessa de Comunicações e Artes (ECA), é tam-
forma à construção de uma sociedade bém um indicativo de que a relação
justa, economicamente viável e am- entre as áreas de atuação parece se
bientalmente equilibrada; o que nos consolidar no meio acadêmico.
impulsiona à busca por compreender No setor das políticas públicas de
as possibilidades de inter-relação en- educação ambiental observamos que
tre a Educomunicação e a Educação é a partir de 2005 que a Educomunica-
Ambiental para essa finalidade. ção começa a ser apontada como uma
Nesse contexto, observamos, ao perspectiva a ser articulada às linhas
longo dos últimos anos, em especial a de ação e políticas comunicacionais

111
relacionadas ao processo educativo nacional de educação ambiental e dos
ambiental. A publicação de normas programas e diretrizes de educação
legais, bem como de programas e di- ambiental, em âmbito nacional, que
retrizes que associam a Educomunica- abordam a educomunicação como es-
ção à Educação Ambiental vêm, assim, tratégia; 2) Levantamento dos textos
se enraizando na implementação das das políticas estaduais de educação
políticas públicas brasileiras que abor- ambiental; 3) Pesquisa no Banco de
dam a educação ambiental. Teses e Dissertações da Capes para o
Reconhecendo esse cenário e con- levantamento das teses e dissertações
siderando nossa própria trajetória que abordam a relação entre Educo-
e relação com as áreas de atuação, municação e Educação Ambiental.
o artigo apresenta os resultados de Cabe ressaltar que em todos os le-
pesquisa voltada a estudar as inter- vantamentos realizados priorizou-se a
-relações que vêm se configurando seleção de materiais que apontassem
entre a Educomunicação e a Educa- especificamente o termo “educomuni-
ção Ambiental a partir da observação cação”, ou termos associados, não se
e análise de documentos produzidos integrando à coleta de dados mate-
no contexto das políticas de educação riais que pudessem abordar a relação
ambiental no Brasil e de produções Comunicação e Educação utilizando-
científicas publicadas em Programas -se de outros termos ou expressões.
de Pós-Graduação brasileiros; com o Embora reconheça-se que a relação
objetivo de construir um panorama entre Comunicação e Educação não
que nos permita desvendar, em ambas está restrita ao termo “educomunica-
as perspectivas, as possíveis interfaces ção” e que esteja presente na produ-
entre as áreas que constituem o objeto ção científica e acadêmica, conforme
de estudo. apontado por Soares (1999) e Pinheiro
(2013); a definição do critério utilizado,
Metodologia e procedimentos de assim, faz parte da opção metodológi-
pesquisa ca adotada e visa potencializar as dis-
cussões específicas ao paradigma da
A pesquisa teve como orientação Educomunicação.
metodológica a abordagem documen- A análise dos dados foi inspirada no
tal de natureza qualitativa (LÜDKE; referencial teórico da análise de con-
ANDRÉ, 1986; DEMO, 1989), utilizando teúdo (LÜDKE; ANDRÉ, 1986; BARDIN,
como estratégia a definição de um 2011) e organizada em três momentos:
corpus documental composto por tex- a) pré-análise; b) exploração do ma-
tos de leis e de programas e diretrizes terial; e c) tratamento dos resultados,
atrelados à educação ambiental, bem inferência e interpretação.
como por textos, em especial resumos, Faz-se importante esclarecer que a
de teses e dissertações brasileiras. escolha pela análise documental foi
A coleta de dados foi realizada em priorizada a fim de possibilitar a cria-
diferentes fontes e em três etapas: 1) ção de um panorama geral sobre a
Levantamento dos textos da política forma como a educomunicação vem

112
sendo apresentada e está sendo apre- nacionais que orientam a implementa-
endida nos documentos selecionados, ção da educação ambiental no país.
não havendo a intenção, tendo em Dentre os programas e diretrizes
vista as limitações do trabalho, de dis- selecionados para compor o corpus
cutir ou detalhar a forma de sua imple- documental da pesquisa, identifica-
mentação em ações desenvolvidas na -se que as publicações se concentram
prática social. principalmente a partir do ano de 2005
e podem ser caracterizadas por linhas
Educomunicação nas políticas públicas e diretrizes gerais para a implantação
de Educação Ambiental no Brasil do Programa Nacional de Educação
Ambiental (ProNEA) e por programas
O caminho para a análise de como voltados a públicos ou setores específi-
a educomunicação é apresentada e se cos (Figura 1), como o Programa Vamos
insere nas políticas de educação am- Cuidar do Brasil com as Escolas, o Pro-
biental brasileiras foi organizado em grama de Educação Ambiental e Agri-
dois percursos: a) Análise do texto da cultura Familiar (PEAAF) e a Estratégia
Política Nacional de Educação Am- Nacional de Comunicação e Educação
biental (PNEA) e de textos de progra- Ambiental em Unidades de Conserva-
mas e diretrizes de educação ambien- ção (ENCEA).
tal, em âmbito nacional, que apontam Destaca-se a instituição de um pro-
a educomunicação como estratégia; grama específico de Educomunicação
b) Análise dos textos dos documentos Socioambiental, criado a partir do ano
legais que instituem as políticas esta- de 2005, que aborda a integração das
duais de educação ambiental. perspectivas da educomunicação às
estratégias de comunicação vincula-
Política Nacional de Educação das às políticas de educação ambien-
Ambiental: documento legal, tal a serem implementadas no país.
programas e diretrizes

A Política Nacional de Educação


Ambiental (PNEA) foi publicada em
1999, pela Lei Federal nº 9.795, e re-
gulamentada, em 2012, pelo Decreto
Federal nº 4.281. Em ambos os do-
cumentos observa-se a ausência do
termo “educomunicação”, o que pode
ser compreendido pelo fato de o cam-
po ainda estar em consolidação neste
período51.
Embora os documento legais da
PNEA não apontem ou citem a edu-
comunicação, observa-se sua inserção
nos textos de programas e diretrizes

113
Em sua maioria, os documentos têm
o envolvimento dos ministérios que
compõem o Órgão Gestor da PNEA:
Ministério da Educação e Ministério
do Meio Ambiente e; no programa que
envolve as unidades de conservação
(ENCEA) há o envolvimento do Insti-
tuto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio), respon-
sável pela gestão desses territórios; e
no Programa Vamos Cuidar do Brasil
com as Escolas, o envolvimento da
UNESCO.
A fim de sistematizar a análise dos
programas e diretrizes selecionados,
apresentamos no Quadro 1, os docu-
mentos, o termo utilizado e a forma
de apresentação das perspectivas da
Educomunicação.

Figura 1 – Programas e Diretrizes Nacionais para


a Educação Ambiental

Fonte: Alves, 2017, p. 48.

114
Quadro 1. Educomunicação nos programas e
diretrizes nacionais de educação ambiental

Fonte: Alves, 2017, p. 61.

115
Dois termos aparecem nos docu- • a democratização e defesa do
mentos analisados: “educomunicação” direito à comunicação;
ou “educomunicação socioambiental”; • a possibilidade de promoção de
o que pode nos indicar que ainda não ecossistemas comunicativos abertos e
há uma preponderância acentuada ou democráticos;
convenção sobre a utilização específi- • a construção de processos for-
ca do termo “educomunicação socio- mativos para o desenvolvimento de
ambiental” como possibilidade exclu- habilidades comunicativas;
siva para representar a inter-relação • a construção de relações entre
entre a Educomunicação e a Educação as pessoas e o espaço em que habi-
Ambiental. tam, possibilitando que possam cons-
A partir do início dos anos 2000, a truir interpretações e intervir em sua
inserção da perspectiva da educomu- realidade.
nicação às estratégias tanto do Pro-
grama Vamos Cuidar do Brasil com Políticas estaduais de educação
as Escolas, como e especialmente das ambiental no Brasil
políticas de comunicação no âmbito do
ProNEA por meio da criação do Pro- Dentre os 27 entes federativos bra-
grama de Educomunicação Socioam- sileiros, foram encontrados os textos
biental, nos conduzem a afirmar que das políticas de educação ambiental
há o reconhecimento explícito da inter- de 21 estados (Quadro 2), identifican-
-relação entre Educação Ambiental e do-se que seis já apontam explicita-
Educomunicação. mente o termo “educomunicação” em
Nesse cenário, nos parece que o de- seu texto, os quais foram selecionados
senho da política nacional de educa- para compor o corpus documental da
ção ambiental, sob a forma de progra- pesquisa.
mas ou diretrizes, está marcado pela
apresentação da educomunicação
como estratégia ímpar e indissociável
à implantação da educação ambiental
no país.
As características das relações es-
tabelecidas entre os campos nesses
documentos indicam e apontam para
a necessidade, no espaço da educação
ambiental, de fortalecerem-se ações e
estratégias voltadas à valorização de
processos pedagógicos sobretudo ba-
seados no dialogismo, na participação
e na autonomia; que possam contri-
buir, dentre outros aspectos, para:

116
Quadro 2 – Políticas estaduais de educação
ambiental no Brasil

* Estados nos quais não foram identificadas


políticas de educação ambiental publicadas pelo
poder executivo.

Fonte: Alves, 2017, p. 42.

117
De maneira geral, identifica-se o
início da promulgação das políticas a
partir de 2002, ano em que há tam-
bém a regulamentação da PNEA. Ob-
serva-se, ainda, entre os anos de 2002
e 2005, um maior número de publica-
ções, fato que pode estar atrelado à
impulsão dada pela política nacional;
e crescimento das publicações entre os
anos de 2009 e 2011 (Gráficos 1 e 2).

Gráfico 1 – Políticas por ano

Fonte: Alves, 2017, p. 63.

Gráfico 2 – Número de políticas por período

Fonte: Alves, 2017, p. 63.

O registro das primeiras menções


à “educomunicação” é identificado a
partir de 2007 com a publicação da
Política de Educação Ambiental do Es-
tado de São Paulo; seguido, em 2009,
pelo Espírito Santo; em 2010, por Ser-
gipe; em 2011, pela Bahia; em 2013,
pelo Paraná e; em 2016, por Alagoas.
O aparecimento da educomunicação

118
atrelada às políticas de educação am-
biental estaduais pode ser associado
ao impulso iniciado em âmbito na-
cional, em especial, a partir de 2005,
com a criação do Programa de Edu-
comunicação Socioambiental, e com
seu fortalecimento em demais progra-
mas e diretrizes publicados a partir do
período.
Considerando as regiões brasileiras
(Mapa 1), observa-se que os estados
que ainda não possuem política de
educação ambiental (EA) estão lo-
calizados no Norte (3), Nordeste (2) e
Centro-Oeste (1) do país, já os estados
que trazem o termo “educomunicação”
no texto de suas políticas de educação
ambiental estão localizados nas regi-
ões Nordeste (3), Sudeste (2) e Sul (1).

Mapa 1 – Estados com política de educação


ambiental

Fonte: Alves, 2017, p. 64.


119
Dentre os seis estados brasileiros
que trazem a palavra “educomunica-
ção” explicitamente no texto de sua
política de educação ambiental, os
quais representam quase 30% dos es-
tados com políticas publicadas, busca-
mos analisar quais os artigos e incisos
do documento legal que abordam o
tema, o termo utilizado, bem como a
forma de sua apresentação, conforme
exposto no Quadro 3.

Quadro 3 – Educomunicação nas políticas


estaduais de educação ambiental

Fonte: Alves, 2017, p. 64.

120
Percebe-se que há uma leve varia- conteúdo. Estas tomam como base
ção entre os termos utilizados, porém princípios e conceitos voltados à: uti-
sem uma tendência aparente. Nesse lização de práticas comprometidas
sentido, a distinção registrada parece com a ética da sustentabilidade; par-
indicar não haver, ainda, uma homo- ticipação; articulação entre setores e
geneidade sobre a utilização de uma saberes; democratização dos meios de
terminologia única para descrever a comunicação.
relação entre a educomunicação e a Em relação aos objetivos elencados
educação ambiental; fato, porém, que para a educomunicação, identifica-se
embora tenha sido aqui destacado grande aproximação, sendo a maioria
carece de uma melhor análise, visto dos incisos comuns a todos os textos,
que não pode ser sugerido como uma com pequenas variações ou particula-
inconsistência. ridades. Estes envolvem desde o apoio
Observando as perspectivas apre- à redes de educação e comunicação
sentadas para a educomunicação ambiental ou à criação de núcleos de
também encontramos distinção. De educomunicação até a formação de
um lado, alguns apontando para dire- educomunicadores socioambientais,
trizes ou instrumentos específicos vol- destacando-se ainda objetivos volta-
tados exclusivamente ao ensino formal dos à democratização das informações
ou não formal ou aos meios de comu- socioambientais e à promoção e pro-
nicação e, de outro lado, a educomu- dução de campanhas educativas, bem
nicação apontada como linha ou área como apoio e incentivo às experiências
temática dos Programas ou Planos Es- locais e regionais de educomunicação
taduais de Educação Ambiental. Essa e à contribuição para a elaboração de
última perspectiva parece se destacar, planos de comunicação em projetos e
visto que quatro das seis políticas ana- programas socioambientais.
lisadas apontam essa característica, o Os aspectos destacados nos permi-
que nos permite registrar que a ideia tem identificar preocupação dos esta-
de criação de uma política de comuni- dos na criação de ações estratégicas
cação sob a perspectiva da educomu- que apoiem, incentivem e viabilizem a
nicação e integrada aos Programas de integração da perspectiva educomuni-
Educação Ambiental vem sendo con- cativa aos seus programas de educa-
solidada nos estados brasileiros. ção ambiental e, consequentemente,
Pondera-se ainda que três estados à implementação de suas políticas de
dedicam no texto de sua política um educação ambiental. Nessa direção,
capítulo exclusivo que aborda a edu- podemos perceber, em certa medida, o
comunicação, apresentando sua de- fortalecimento da inter-relação educo-
finição e objetivos, são estes: Espírito municação e educação ambiental nos
Santo, Bahia e Alagoas. estados brasileiros.
Nas definições de educomunica-
ção apresentadas nas três leis verifi-
ca-se certa aproximação, com pou-
ca ou quase nenhuma alteração de

121
Relações entre educomunicação As análises contemplam os dois mo-
e educação ambiental nas teses e mentos apontados por Ferreira (2002),
dissertações brasileiras trazendo: 1) um panorama geral sobre
a educomunicação nas teses e disser-
O desafio de mapear e discutir a tações brasileiras e, posteriormente,
produção acadêmica em diferentes uma perspectiva sobre a relação en-
campos do conhecimento é caracte- tre a educomunicação e a educação
rística de pesquisas conhecidas como ambiental nos trabalhos selecionados
“estado da arte” ou “estado do co- e; 2) identificação de possíveis aproxi-
nhecimento” (FERREIRA, 2002). A uti- mações ou distanciamentos entre as
lização de resumos de trabalhos para pesquisas que compõem o corpus do-
organização da produção de uma cumental, as tendências e ênfases que
certa área do conhecimento nesse nos orientem a observar as relações
tipo de pesquisa, de acordo com Fer- entre a educomunicação e a educação
reira (2002), envolve dois momentos: ambiental na produção acadêmica
1) quantificação e identificação de brasileira.
dados que auxiliem ao mapeamento É mister esclarecer que a análise
da produção em um determinado pe- realizada não tem a intenção de des-
ríodo, local e área; 2) a possibilidade crever ou explicitar as metodologias
de identificar aproximações ou dis- ou mesmo os objetos específicos das
tanciamentos entre os trabalhos, bem pesquisas selecionadas, mas buscam
como tendências e ênfases que orien- mapear a forma de apresentação e
tem a descrição de uma possível histó- apreensão dos conceitos da educo-
ria sobre uma área do conhecimento. municação na tentativa de elucidar
Embora a autora reconheça posições possíveis contribuições da Educomu-
diversas sobre a utilização de resumos nicação na interface com a Educação
e suas limitações, busca apontar para Ambiental.
a necessidade de reconhecê-los como
um gênero discursivo e, nesse sentido, Educomunicação nas teses e
considera que esses devem ser lidos dissertações brasileiras: panorama
pelos elementos que os constituem e geral
à finalidade específica a que se pro-
põem, não devendo ser confundidos Para a identificação das teses e
com o todo do que é enunciado nos dissertações que compõem o corpus
trabalhos (FERREIRA, 2002). documental da pesquisa elegemos o
Na proposta dessa pesquisa, boa Banco de Teses e Dissertações da Ca-
parte das análises foram realizadas pes, o qual é reconhecido por ser uma
com base na leitura dos resumos dos fonte representativa de acesso e dis-
trabalhos selecionados para compor o ponibilização da produção acadêmica
corpus documental, tendo em algum dos cursos de Pós-Graduação no Bra-
aspecto ou outro buscado analisar sil. A busca foi realizada utilizando-se
parcialmente os trabalhos completos. o termo “educomunica*”, com o obje-
tivo de incorporar aos resultados além

122
do termo “educomunicação”, outros
correlacionados à este como “educo-
municacional”, “educomunicativo” ou
“educomunicador”.
Obteve-se como resultado inicial um
total de 292 trabalhos publicados até
o ano de 2016 (Gráfico 3), sendo: 47 te-
ses de doutorado, 217 dissertações de
mestrado e 28 dissertações de mestra-
do profissional.

Embora o total de trabalhos não


represente um número expressivo se
comparado a outras áreas do conheci-
mento, nos impressiona o crescimento
da produção acadêmica relaciona-
da à temática nos últimos 5 anos ao
compararmos ao total de 97 teses e
dissertações encontradas por Pinheiro
(2013), no estudo realizado em sua tese
de doutorado, que levantou trabalhos
publicados até o ano de 2011.
De acordo com Pinheiro (2013), há
Gráfico 3 – Número de trabalhos publicados por
expressivo crescimento de publicações ano.
a partir dos anos 2000, o que parece Fonte: Alves, 2017, p.70.

123
se consolidar como uma tendência ao
observarmos que esse crescimento
vem se acentuando no período dos úl-
timos cinco anos, apresentando cresci-
mento de mais de 200%, confirmando
as afirmações da autora sobre o forta-
lecimento do campo e das discussões
sobre a Educomunicação no âmbito
dos Programas de Pós-Graduação
brasileiros.
Ainda no universo de estudo apre-
sentado por Pinheiro (2013), as disser-
tações de mestrado representam o
maior percentual da produção acadê-
mica, o que também se confirma no
período aqui analisado, no qual identi-
ficamos 74% dissertações de mestrado
publicadas.
Contudo, é interessante observar-
mos que há, nos últimos anos, o surgi-
mento de trabalhos de programas de
mestrado profissional, que já represen-
tam 10% do total, e um salto significa-
tivo no número de teses de doutorado
publicadas a partir do ano de 2014,
embora essas ainda representem 16%
do total.
A maioria da produção acadêmica,
assim como já identificado por Pinhei-
ro (2013) está concentrada em Progra-
mas de Pós-Graduação das áreas de
Comunicação ou Educação. Atualmen-
te, ambas identificadas com o mesmo
percentual de trabalhos, cerca de 43%
do total (Gráfico 4).
A terceira área que aparece como
destaque está associada às Ciências
Ambientais, com 5% dos trabalhos.
Apesar do percentual não ser tão re-
presentativo, ao compararmos o total
de trabalhos relacionados a essa área
com as demais identificadas, tende- Gráfico 4 – Número de trabalhos por área

mos a afirmar sua importância ao Fonte: Alves, 2017, p. 71.

124
destacar que a inter-relação entre a
Educomunicação e o campo Ambiental
parece se acentuar e configurar como
uma possível tendência na produção
acadêmica brasileira, o que nos per--
mite fortalecer as justificativas em que
baseiam o objeto de estudo de nossa
pesquisa.
Em relação à distribuição geográfi-
ca, identificamos que a produção aca--
dêmica sobre educomunicação está
presente em Programas de Pós-Gra-
duação de Instituições de Ensino loca-
lizadas em todas as regiões brasileiras,
porém ainda com acentuada concenconcen-
tração na região Sudeste (53%), bem
como com baixo índice na região Nor-
te, com apenas 2% do total (Gráfico 5).

Teses e dissertações que abordam


a inter-relação Educomunicação e
Educação Ambiental

Do material resultante da pesquisa,


fez-se um refinamento para identificar
as teses e dissertações relacionadas
ao objeto de estudo, restringindo-se a
seleção aos trabalhos que continham
palavras ou expressões relacionadas
ao campo da Educação Ambiental, ob-
tendo-se como resultado um total de
50 teses e dissertações. Destas, foram
encontrados 39 trabalhos completos,
resumos e palavras-chave por meio
de buscas no Banco de Teses e Disser-
tações da Capes e em repositórios de
Instituições de Ensino Superior.
Por fim, para a definição do corpus
documental da pesquisa, foi realiza-
da busca textual simples nos traba-
lhos completos para identificação da
presença do termo “educomunica- Gráfico 5 – Distribuição dos trabalhos por
região
ção”, tendo como resultado final 30
Fonte: Alves, 2017, p. 72.

125
trabalhos52 selecionados, os quais re-
presentam 10% do total, sendo: 4 teses
de doutorado, 22 dissertações de mes-
trado e 4 dissertações de mestrado
profissional.
Observa-se que esses trabalhos fo-
ram publicados entre os anos de 2006
e 2016, em 20 Instituições de Ensino
Superior e em 21 programas distintos,
tendo crescimento entre os anos de
2011 e 2013 e, posteriormente, entre os
anos de 2015 e 2016 (Gráfico 6).

Os trabalhos estão concentrados,


em sua maioria, em áreas relaciona-
das às Ciências Ambientais (40%),
Educação (33%) e Comunicação (20%),
conforme Gráfico 7; o que nos parece
indicar, como já apontado no pano-
rama geral, que há um movimento de
forte aproximação do campo Ambien-
tal à Educomunicação, o qual entende-
mos que precisa ser melhor explorado
na tentativa de se compreender as re-
lações que se estabelecem entre esses,
assim como, as formas e característi-
cas presentes nesse contexto.
Gráfico 6 – Número de teses e dissertações por
ano.

Fonte: Alves, 2017, p. 73.

126
Em relação à distribuição geográfi-
ca, as teses e dissertações seleciona-
das foram desenvolvidas em Progra-
mas de Pós-graduação de Instituições
localizadas no Sudeste, Sul, Nordeste
e Centro-Oeste (Gráfico 8). Os percen-
tuais indicados, com exceção à região
Norte (não representada no recorte),
indicam semelhança de concentração
ao panorama geral, novamente com
destaque para o elevado percentual de
trabalhos na região Sudeste, com 44%
do total das produções.

Gráfico 7 – Número de teses e dissertações por


área.

Fonte: Alves, 2017, p. 73.

Gráfico 8 – Distribuição das teses e


dissertações por regiões brasileiras

Fonte: Alves, 2017, p. 74.

127
Aprofundando um pouco mais a
análise e visando caracterizar a pro-
dução acadêmica com o intuito de
especificar o foco temático ambiental
abordado como objeto de investiga-
ção e estudo, buscamos, em análise
aos resumos, apontar algumas cate-
gorias, identificando que: 12 trabalhos
(40%) estão relacionados à Educação
Ambiental (EA) no ensino formal, seja
em escolas de nível fundamental, mé-
dio ou profissionalizante, ou no ensino
superior; 6 (20%) abordam a Comuni-
cação Ambiental e 5 trabalhos (17%)
se relacionam à Gestão Ambiental,
tratando da gestão de recursos hídri-
cos ou da gestão de unidades de con-
servação e; apenas um trabalho (3%)
foca-se na abordagem de Políticas Pú-
blicas de Educação Ambiental (Gráfico
9).

Gráfico 9 – Foco temático ambiental das teses e


dissertações

Fonte: Alves, 2017, p. 74.

128
Ao abordar as temáticas ambien- princípios, conceitos e fundamentos
tais, buscamos, em análise parcial dos da Educomunicação, o que parece nos
trabalhos completos, identificar as indicar preocupação com seu fortaleci-
políticas públicas de educação am- mento teórico e epistemológico.
biental citadas pelos pesquisadores, Dentre os termos utilizados pelos
em especial ao tratar de sua relação autores nos trabalhos, observamos a
com a educomunicação. Como resulta- presença de três: “educomunicação”,
do desse levantamento, constatamos “educomunicação socioambiental” e
que o Programa de Educomunicação “educomunicação ambiental”; sen-
Socioambiental é o documento mais do que 12 trabalhos citam os termos
citado, tendo sido apontado em 20 dos “educomunicação” e “educomunicação
trabalhos analisados. Além desse do- socioambiental”; 9 trabalhos utilizam
cumento, verificamos grande número apenas o termo “educomunicação”; 7
de referências ao ProNEA, que apare- trabalhos citam os três termos e 2 tra-
ce em 13 trabalhos; e à PNEA, citada balhos citam os termos “educomunica-
em 10 trabalhos. Identificamos, ainda, ção” e “educomunicação ambiental”.
que o Programa Vamos Cuidar do Bra- Resgatando, ainda, as áreas de in-
sil com as Escolas é apontado em 5 tervenção da educomunicação, mape-
trabalhos, a ENCEA, em 3; e o PEEAF, adas como potenciais para materiali-
a Resolução CNE nº 2 e a Resolução zação da inter-relação Comunicação
CONAMA nº 422 aparecem citados em e Educação (SOARES, 2014; ALMEIDA,
apenas um trabalho cada. Outras po- 2006), e sistematizadas de maneira
líticas de educação ambiental, como didática a partir de uma possível inter-
Coletivos Educadores (1) e Projeto Sa- pretação de seu foco principal (Quadro
las Verdes (1) também aparecem nas 4), buscamos, por meio da leitura dos
teses e dissertações, porém identifica- resumos das teses e dissertações que
mos ausência de qualquer referência compõem nosso corpus documental,
às políticas de educação ambiental identificar o foco principal de interven-
em um número significativo de 8 dos ção apresentado (Gráfico 10).
trabalhos analisados, que representam
27% do total.
Em relação à abordagem específi-
ca da educomunicação, identificamos
que 57% dos trabalhos que compõem
o corpus documental apresentam o
termo “educomunicação” ou termos
associados em seu título e 70% nas
palavras-chave.
Observando, ainda, parcialmente os
trabalhos completos, constatamos que
a maior parte das teses e dissertações
selecionadas, 93%, apresenta seções
que buscam abordar teoricamente os

129
Quadro 4 – Foco principal das áreas de
intervenção educomunicativas

Fonte: Alves, 2017, p. 27.

Gráfico 10 – Número de teses e dissertações por


áreas de intervenção da educomunicação

Fonte: Alves, 2017, p. 76.

130
É importante ressaltar, no entanto,
que nossa intenção não foi delimitar
apenas uma área de intervenção às
estratégias educomunicativas expos-
tas em cada um dos trabalhos, porém
reconhecer, em nossa interpretação
ao texto dos resumos, àquela que se
sobressai às demais áreas ou a qual
é dada maior ênfase, considerando,
ainda, ser pouco provável o desenvol-
vimento de apenas uma única área
de intervenção nas práticas ligadas à
educomunicação (SOARES, 1999; PI-
NHEIRO, 2013; ALMEIDA, 2016).
Como síntese da análise, apresenta-
mos no Quadro 5, uma possível inter-
pretação sobre as relações das áreas
de intervenção com o foco temático
ambiental das pesquisas analisa- Quadro 5 – Áreas de intervenção da
educomunicação, tema ambiental e contribuições
das e das perspectivas e contribui- da educomunicação à educação ambiental
ções da educomunicação à educação Fonte: Alves, 2017, p. 88.
ambiental.

* Entre parênteses, identifica-se o número de


trabalhos analisados e correspondente a cada
131
uma das áreas de intervenção.
A partir dos cenários desenhados superação dos desafios colocados no
até aqui, podemos reconhecer que há meio social.
um caminho fecundo na inter-relação Na história que se constrói pelos do-
da Educomunicação e da Educação cumentos analisados, podemos confir-
Ambiental, o qual entendemos que mar que a interface entre as áreas de
precisa ser melhor explorado em pes- atuação vem se consolidando ao longo
quisas acadêmicas, bem como em sua dos últimos anos, em especial a partir
aplicação prática. do início dos anos 2000, com a criação
De antemão, no entanto, mesmo de políticas de educação ambiental
reconhecendo os limites de nossa pes- que reforçam essa ótica e pelo esforço,
quisa, o que podemos apontar é que na produção científica, de mapear as
a interface entre a Educomunicação trilhas que orientam esse fazer edu-
e a Educação Ambiental parece estar cativo: educomunicativo e ambiental.
se constituindo, tanto nas políticas pú- Apontando para contribuições rele-
blicas como na produção acadêmica, vantes na interseção dessas áreas de
alicerçada na valorização dos prin- atuação na solidificação de estraté-
cípios e conceitos do paradigma da gias pedagógicas e metodológicas que
Educomunicação e em suas contribui- valorizem o diálogo e a participação
ções ao desenvolvimento da Educação e contribuam para a compreensão da
Ambiental de caráter crítico, emanci- realidade e, nesse sentido, para a pos-
pador e transformador, possibilitando sibilidade de sua transformação.
o fortalecimento tanto das práticas Embora os caminhos que vimos de-
educomunicativas como das práticas senhando ao longo do trabalho nos
de educação ambiental, em diferentes apresentem perspectivas positivas
cenários, espaços e setores sociais. na interface entre as áreas, é mister
apontar a necessidade de aprofunda-
Considerações finais mento de estudos sobre a temática,
tendo em vista que tanto a educomu-
O percurso realizado nesta pesquisa nicação como a educação ambiental,
nos leva à aproximação com as con- sob a ótica da construção de um pro-
cepções atreladas às áreas da Educo- cesso educativo democrático e de ca-
municação e da Educação Ambiental ráter crítico, requerem atenção em sua
e de sua indissociável relação com o práxis. Nesse sentido, a observação
campo da Educação. e análise das formas como se mani-
Nesse ideário, nos debruçamos a festa essa inter-relação no fazer e na
observar pontos que interligam a edu- prática social devem ser exploradas,
comunicação e a educação ambiental, a fim de criar possibilidades para sua
buscando identificar, a partir da aná- aplicação à uma educação que busque
lise de políticas públicas de educação transformar as relações que orientam
ambiental e de teses e dissertações a construção das diversas realidades
que abordam ambas áreas, perspec- brasileiras.
tivas que nos auxiliem a orientar um Nos limites a que está restrita essa
fazer educativo que contribua para a pesquisa, as contribuições deste

132
trabalho têm como intenção abrir a do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
possibilidade de diálogo com as dis- BRASIL. MMA. MEC. Programa
cussões que permeiam as áreas de Nacional de Educação Ambiental. 3a
atuação colocadas como objeto de ed. Brasília, 2005.
investigação, na intenção de fortalecer
e consolidar uma perspectiva possível BRASIL. MMA. MEC. Programa
para o enfrentamento dos desafios Nacional de Educação Ambiental. 4a
sociais e, sobretudo, dos desafios im- ed. Brasília, 2014.
postos à própria educação. Idealizan-
do o desenvolvimento de uma forma- BRASIL. MMA. MEC. Programa de
ção humana capaz de criar condições Educomunicação Socioambiental.
para problematizar as relações que Brasília, 2005.
envolvem a sociedade, a comunica-
ção, a educação, e o meio ambiente BRASIL. MMA. Educomunicação
em busca da transformação de nossas socioambiental: comunicação popular
concepções, compreensões, de nossas e educação. COSTA, Francisco de Assis
práticas e interações, a fim de possi- Morais da (Org.). Brasília: MMA, 2008.
bilitar a construção de uma sociedade
socialmente justa, economicamente BRASIL. MMA. ICMBio. Diretrizes para
viável e ambientalmente equilibrada! a Estratégia Nacional de Comunicação
e Educação Ambiental em Unidades
Referências de Conservação. Brasília: MMA-
ICMBio, 2011.
ALMEIDA, L. B. C. Projetos de
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2005.

135
NOTAS

Capitulo 5

50 Trabalho de Conclusão de Curso concluído em 2017, com o título


“Interfaces entre Educomunicação e Educação Ambiental: caminhos
desenhados a partir de políticas públicas e de teses e dissertações
brasileiras”, sob orientação do professor Dr. Claudemir Edson Viana.

51 Ao final de 1999, publica-se os resultados dos primeiros estudos do


Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da Universidade de São Paulo
(USP) que abordam a constituição do campo da Educomunicação (SOARES,
1999).

52 Alguns trabalhos apresentavam o termo “educomunicação” dentre os


temas abordados no título das linhas de pesquisa, porém durante a consulta
aos trabalhos completos pode-se identificar que esses não tratavam
especificamente do objeto de estudo da pesquisa e, assim, foram excluídos
do corpus documental.

136
Circuito Tela Verde - Entrevistas
Narrativas sobre o percurso do
projeto 2007-2019
Rachel Hidalgo
José Vicente de Freitas

06.
Introdução

“Questões sobre sociedade, política, poluição, conservação da natureza, entre


outras, são misturadas e montadas coletivamente em forma de artesanato digi-
tal”53. Assim descreveu o Circuito Tela Verde - Mostra Nacional de Produção Au-
diovisual, o Prof. Dr. Rafael Nogueira Costa.
Costa tem envolvimento com o Circuito Tela Verde desde sua época como pro-
fessor de biologia da rede pública, em uma escola experimental de pescadores/
as em Macaé54, enquanto residia na cidade vizinha, Rio das Ostras, no Estado
do Rio de Janeiro. Na época, ele não imaginava que estava participando daqui-
lo que viria ser a primeira edição de uma mostra de vídeos socioambientais do
Ministério do Meio Ambiente com alcance de 9 mil espaços exibidores em todo o
Brasil até o ano de 2018 (GUIA DE MOSTRAS, 2018).
Para conhecermos o projeto de outra perspectiva, vamos explorar um pouco
da experiência que o originou a partir da rememoração do professor. Em segui-
da, serão apresentadas informações sobre a sua execução, além de alguns resul-
tados disponíveis por meio de uma pesquisa finalizada em fevereiro de 201955.
A cidade de Rio das Ostras faz parte das Baixadas Litorâneas do Rio de Janei-
ro, ao norte do Estado, com uma distância de, aproximadamente, duas horas da
capital. Esse local, como outros dez municípios cariocas, seria afetado pelas ati-
vidades da empresa exploradora de petróleo Devon Energy do Brasil que, como
medida compensatória pela interferência na região, patrocinou um Projeto de
Educação Ambiental- PEA exigido pelo Ibama56. Tal medida está, desde o final
dos anos 90, em consonância com a Política Nacional de Educação Ambiental

138
- PNEA (1999), que aponta os PEAs A gente que mora nessas cidades
como maneiras de controlar a atua- com esse tipo de movimentação
ção da exploração junto às populações econômica fica muito preocupado,
afetadas pelos impactos ambientais o que é isso que chega no município
produzidos (WALTER; ANELLO, 2012). fazendo a maior divulgação? O que
A responsável pela condução do está por trás? Então, no primeiro
projeto foi a empresa de consultoria momento, eu fui mais para tentar en-
Abaeté Estudos Socioambientais que tender. Eles estavam oferecendo uma
desenvolveu a Oficina de Cinema Am- proposta de cinema ambiental e eu
biental HumanoMar57 com a participa- me interessei porque já desenvolvia
ção de antropólogos/as, cineclubistas esse tipo de trabalho, mas era um
e outros/as especialistas de imagem e grupo com uma lógica de empresa
som. O objetivo era a criação de filmes de petróleo.
documentários realizados com, e não
somente sobre, as populações afeta- O projeto contava com 40 vagas na
das que abordassem as questões so- cidade por meio da Secretaria de Cul-
cioambientais causadas pela indústria tura e muitas pessoas que esperavam
petrolífera. Ainda que benéfico em al- se tornar ator/atriz de televisão e/ou
guma instância, ações como essa são produtor/a de cinema se inscreveram,
vistas também como controversas, já ao lado de educadores/as e outros/as
que são feitas sob a égide da própria interessados/as no processo de apren-
empresa exploradora - algo que pode dizagem junto às comunidades locais;
inibir as críticas relacionadas às temá- agentes vinculados/as à pesca; turis-
ticas dos filmes. mo; atuação em atividades culturais
Os elementos que contribuem para e sociais; e defesa do meio ambiente.
a contradição relacionada ao inves- “Era realmente uma coisa nova, no
timento nas cidades que abrigam interior a gente não tem muita opção
empresas petrolíferas, por meio de cultural, não é como no Rio de Janeiro,
royalties, e os impactos ambientais cidade grande, então quando tem al-
produzidos com a atividade econômi- guma coisa, vai todo mundo”. E a mes-
ca, estão relacionados com a concep- ma dinâmica ocorreria, mais adiante,
ção de “riqueza” e “progresso” fixadas com outras nove cidades litorâneas58
na narrativa hegemônica, com vistas completando cerca de 400 participan-
a beneficiar somente uma pequena tes do PEA ao todo.
parcela da população, enquanto aos A dinâmica de Rio das Ostras foi
grupos sociais mais vulneráveis são replicada, salvo pelas especificidades
destinados todo o rastro (de riscos de cada local, nos outros municípios.
ambientais, degradação, poluição e Primeiramente, foram cinco encontros
outros) deixado por elas no caminho em que as pessoas divididas em gru-
(ACSELRAD, 2013). pos sugestionaram temas e desenvol-
Essa foi, justamente, a primeira veram argumentos para os filmes. A
questão que chamou a atenção de próxima fase eram as saídas de cam-
Costa: po para as gravações, por mais cinco

139
dias, munidos/as de câmera e equipa- A Petrobras eu detesto, porque ela se
mentos de áudio, os/as participantes diz brasileira e só traz danos pra gen-
captaram imagens e realizaram en- te, só machuca a gente, só maltrata
trevistas. A última etapa era para as o meio ambiente, apesar do botinho
montagens, que aconteciam em salas cor-de-rosa, tartaruguinha e tudo.
sediadas pela prefeitura, instituições Mas na verdade é uma tremenda de
escolares e outros. uma sacana, a gente já tem ação ga-
Costa chama a atenção para a he- nha na justiça [...] quando procuram a
terogeneidade como característica gente é para dar um queijo envene-
principal dos agentes sociais que par- nado achando que a gente é um rato
ticiparam do processo de produção (PESCADOR ENTREVISTADO NO
do qual fez parte. De acordo com ele, CURTA “VAI VENDO”, 2007).
como consequência, o mesmo aconte-
ceu na escolha dos/as entrevistados/ O depoimento acima revela o teor
as que protagonizaram os filmes: “Nos do conteúdo produzido pelos grupos
agradecimentos, pode-se comprovar de Rio das Ostras, sendo que as ou-
as diferentes relações que foram esta- tras produções realizadas na cidade
belecidas por esta prática”. captaram histórias sobre a diminuição
E, assim, entre os outros grupos, o do pescado, lançamento de esgoto e
seu escolheu gravar a história de um também as alterações que percebiam
pescador que trabalhava em parceria no manguezal a partir de depoimentos
com uma pescadora, algo que causava de moradores/as das áreas periféricas
certo transtorno na família da mulher e outros/as. Na posição de produto-
e também entre o/as colegas de pro- res/as audiovisuais, os/as partici-
fissão, majoritariamente, homens. O pantes seguiam os direcionamentos
assunto é abordado na introdução do teóricos e metodológicos da apostila
filme e depois vemos os conflitos entre oferecida na oficina, que apresentava
o poder público e os/as pescadores/as breves conteúdos sobre a teoria cine-
em geral, que é a tese principal do cur- matográfica, histórico, cinema digital,
ta metragem. modos de documentário, dicas para
O tema foi estimulado pelo professor abordagem e entrevistas, sugestões
de biologia que já estava habituado de filmes como referência e um texto
a trabalhar com o assunto de territó- introdutório sobre meio ambiente. Na
rio de pesca “excluído”, por conta dos apresentação do material impresso,
investimentos públicos direcionados um estímulo para o grupo: “Durante a
para outros setores, que não os de Oficina serão produzidos documentá-
produção, como agricultura e a pes- rios sobre a realidade socioambiental
ca. E ele prosseguiu, participando de de sua cidade totalmente idealizados,
todo o processo de escolha de lugares filmados e dirigidos por vocês” (APOS-
a serem filmados, gravação, edição e TILA, DEVON, 2007).
outros, até concluir um documentário Apesar do trabalho desenvolvido
de aproximadamente 15 minutos inti- a partir de uma câmera não ser, ne-
tulado “Vai Vendo”. cessariamente, uma novidade para o

140
professor de biologia, com a experi- Somente a última etapa, de mon-
ência em seu próprio território, visu- tagem, era reservada à equipe execu-
alizou uma possibilidade diferente de tora do projeto, por necessitar de um
pesquisar como os grupos sociais es- conhecimento técnico que, pelo tempo
tavam, realmente, compreendendo o de que dispunham na oficina, ficava
processo de “desenvolvimento” diante a cargo dos/as especialistas. A edição
da exploração de petróleo na cidade: é uma parte de suma importância no
“Quando vi o trabalho que estávamos processo audiovisual, que define, por
fazendo, eu acreditei no projeto. Como fim, a mensagem representada no
era um processo novo, muita gente filme. Dessa forma, ainda que com
do público-alvo acreditou. E, por isso, o acompanhamento de todos/as do
todos queriam se empenhar o melhor grupo, os últimos acertos eram realiza-
possível”. dos pelos/as membros/as da firma de
Costa relembra que, para ele, tra- consultoria.
tou-se de uma forma legítima da auto Com a finalização do material
representação: “De afirmações dos audiovisual, vinha a próxima etapa da
modos de se pensar, de expressões de oficina, a exibição dos documentários.
mundo”, em que o grupo estava livre Este era o momento em que os/as pro-
para tomar as decisões sobre o quê fil- dutores/as, entrevistados/as e público
mar, o quê falar, de quê forma abordar em geral assistiam as produções em
os/as entrevistados/as selecionados/ um mesmo local. Costa comenta que
as por eles/as. Em outras palavras, a o microfone estava aberto ao público
dinâmica das oficinas de produção au- presente, que participou e questionou
diovisual fizeram com que as pessoas a situação das desigualdades, fruto da
contassem suas histórias, narrassem exploração de petróleo:
as histórias dos/as outros/as e pudes-
sem, em meio ao diálogo comparti- Era um projeto bem pioneiro. As
lhado, mostrar um tipo de vivência e exibições eram em praças públicas,
percepção que lhes eram próprias. E todas as pessoas que participaram
complementa: da construção do filme iam pra lá, as
pessoas do município, o secretário de
Os olhares e as perspectivas de quem meio ambiente, do poder local, todos
viu e emprestou valor ao ponto de iam para a praça. E alguns filmes
decidir por registrar no vídeo são batiam mesmo, eram críticos mesmo,
eternizados pelas construções das botavam o dedo na ferida, então ti-
narrativas. São cortes, recortes, es- nha um potencial enorme, tinha algo
colhas, enquadramentos, posiciona- de diferente que estava acontecendo.
mentos de câmera, cores, texturas,
diversas nuances representadas e Após a conclusão da oficina em Rio
produzidas pelos “observadores” do das Ostras, ele passou a se aproximar
ambiente. cada vez mais da equipe executora
HumanoMar: assessorou as próxi-
mas atividades realizadas na cidade

141
vizinha, Macaé; organizou reuniões cidadãos, bem como do equilíbrio am-
com outros/as participantes; elaborou biental”; o Decreto no 99.274 de 1990,
estratégias de divulgação; e outras ne- que regulamenta a Lei no 6.902, de 27
cessidades do grupo: de abril de 1981, e a Lei no 6.938, de 31
de agosto de 1981, que dispõem, res-
Eu queria ajudá-los em Macaé por- pectivamente, sobre a criação de Es-
que conhecia uns caminhos interes- tações Ecológicas e Áreas de Proteção
santes, consegui uma sala para as Ambiental e sobre a Política Nacional
atividades do curso, mostrei a Escola do Meio Ambiente; o Decreto no 5.300
de Pescadores, foi uma experiência de 2004, que regulamenta a Lei no
de ajudar eles também. E depois eles 7.661, de 16 de maio de 1988, que “insti-
foram indo para outros municípios, tui o Plano Nacional de Gerenciamento
subindo cada vez mais ao norte e aí Costeiro (PNGC), dispõe sobre regras
eu não pude mais ajudar, mas acre- de uso e ocupação da zona costeira e
dito que teria feito, se pudesse. estabelece critérios de gestão da orla
marítima, e dá outras providências”;
A fala de Costa transparece um bom ademais Resoluções CONAMA no 009
trabalho realizado pela equipe execu- de 1987 e no 237 de 1997, que, respec-
tora da Oficina de Cinema Ambiental tivamente, regulamentam o papel
HumanoMar e um envolvimento dia- das Audiências Públicas e o papel do
lógico e transformador entre equipe, licenciamento ambiental (COSTA et al,
público e espaço. A visualização dos 2016).
filmes59 deixa o/a espectador/a com a No entanto, por mais que o universo
mesma sensação positiva de um proje- do licenciamento ambiental do petró-
to de educação ambiental com o “ob- leo no Brasil, e a Educação Ambiental
jetivo alcançado”. habilitada para tal, seja extenso, as
O PEA HumanoMar cabe em um atividades elaboradas para efetiva-
arcabouço institucional legal que con- ção deste carece de reflexões mais
templa leis, decretos e notas técnicas. aprofundadas para que haja coerência
O instrumento jurídico que ampara o entre os/as que planejam, os/as que
projeto em questão, na Bacia de Cam- executam e os/as que se beneficiam
pos, foi baseado na Nota Técnica no 01 da referida ação, além da necessida-
de 2010 do Ibama (Brasil, 2010) que es- de de se chegar à clareza do caráter
tabelece parâmetros a serem atendi- obrigatório dos PEAs “[...] que não
dos na execução da educação ambien- são entendidos como um direito legal
tal, como a Lei n° 7.661 de 1988, que e, portanto, como uma obrigação da
institui o Plano Nacional de Gerencia- empresa junto à sociedade” (SERRÃO,
mento Costeiro; a Lei n° 10.257 de 2001 2012, p.230).
(Estatuto da Cidade), estabelecendo No caso específico do PEA Humano-
“normas de ordem pública e interesse Mar, ainda que precursor no uso do au-
social que regulam o uso da proprie- diovisual para discussão de questões
dade urbana em prol do bem coleti- socioambientais, Serrão (2012, p.268)
vo, da segurança e do bem-estar dos avalia que os princípios permaneceram

142
pautados no mesmo projeto político na mesma direção em que a autora:
neoliberal que é característica comum “eu entrei no projeto com uma pers-
entre as empresas representantes de pectiva de questionar o que era tudo
um setor econômico que é o mais po- aquilo. Durante a prática, todos acre-
deroso do mundo. Assim, ainda que ditaram muito no projeto, mas foi tudo
a sua execução tenha sido realizada muito intenso e rápido. Foi só uma
de acordo com uma proposta crítica, passagem”.
baseada em valores democrático-par- Uma passagem que teria deixado
ticipativos, a empresa patrocinadora, fortes marcas no professor. No ano
Devon Energy do Brasil, mais tarde, seguinte, ele entrou para o mestrado
conseguiu deslocar o projeto de seu em Engenharia Ambiental no Institu-
sentido público, transformando-o em to Federal Fluminense - IFF, no qual
ações sociais “voluntárias em prol da desenvolveu trabalho de análise da
cidadania”. Neste sentido, comparti- qualidade ambiental do estuário do rio
lhando o “produto” das oficinas com Macaé, mas não deixou de acompa-
seus/suas clientes, parceiros/as e insti- nhar o desenvolvimento das produções
tuições governamentais, sem contudo audiovisuais que eram realizadas nas
informar que foi implementado como outras cidades, mesmo a distância.
uma exigência para o licenciamento Dois anos depois, recebeu duas notí-
ambiental. cias: o fim do projeto HumanoMar e a
Neste percurso, por mais que na de que os filmes produzidos no âmbito
ocasião da execução do projeto, o pú- da primeira versão das oficinas, das
blico-alvo tenha se envolvido em uma quais ele havia participado, compo-
perspectiva positiva e de real transfor- riam a primeira edição de uma mostra
mação, anos depois, nenhum proble- organizada pelo Ministério do Meio
ma levantado por eles/as nos filmes se Ambiente como linha de ação estraté-
tornou agenda para busca de soluções, gica da comunicação para a Educação
além de manter a lógica empresarial Ambiental.
na utilização de PEAs, incorporados O Departamento de Educação Am-
em uma ação de marketing para me- biental, por meio da Secretaria de
lhorar a imagem da empresa. Articulação Institucional e Cidadania
Nos estudos de Serrão (2012), os Ambiental e do Ministério do Meio
PEAs implementados por empresas de Ambiente, já vinha trabalhando em
petróleo e gás no Brasil foram anali- possíveis estratégias para políticas pú-
sados de forma cuidadosa, incluindo blicas que atuassem em consonância
os realizados no âmbito da Bacia de com os princípios e objetivos da Lei no
Campos, no Rio de Janeiro, em 2007. 9.795/99, que institui a PNEA, e com
Em sua tese é possível acompanhar o Programa Nacional de Educação
com mais profundidade questões que Ambiental (ProNEA). Depois do lança-
envolvem o licenciamento ambiental. mento de um programa de Educomu-
Costa, que passou a pesquisar o as- nicação Socioambiental em 2005, com
sunto após findada a sua participação atualização em 2008, a Educomunica-
nas oficinas, aponta para reflexões ção tornou-se efetivamente uma linha

143
de ação do governo, com “o objetivo E no dia 17 de abril de 2009, no Es-
de proporcionar meios interativos e paço Tom Jobim do Jardim Botâni-
democráticos para que a sociedade co do Rio de Janeiro, às 10 horas da
possa produzir conteúdos e disseminar manhã, os ministros da Cultura, Juca
conhecimentos, através da comunica- Ferreira, e do Meio Ambiente, Carlos
ção ambiental voltada para a susten- Minc, realizaram uma cerimônia de
tabilidade” (BRASIL, MMA, 2018). lançamento:
Os projetos utilizaram como tex-
to-base o Programa de Educomuni- Hoje foram lançados dois progra-
cação Socioambiental: Comunicação mas: o Circuito Tela Verde, de exibi-
Popular e Educação (BRASIL, MMA, ção de curtas metragens realizados
2008). E, em 2009, uma outra estraté- por comunidades que têm sofrido os
gia estava sendo planejada utilizando impactos da indústria do petróleo, e o
a Educomunicação Socioambiental Edital Curtas de Animação, de apoio
como conceito norteador. A proposta a projetos de animação de um minu-
inicial era criar uma mostra em que os to. Com esses projetos, comunidades
filmes apresentados “teriam conteú- passam a ter mais uma oportunidade
do ecológico produzidos por cineastas de discutir e desenvolver um olhar
profissionais, muitos deles premiados crítico sobre seus processos e de re-
em festivais de cinema” (SERRÃO et gistrá-los em filmes a serem exibidos
al, 2009) com o intuito de atender nas tevês e nos espaços públicos de
à demanda de material multimídia exibição, como os cineclubes, os Cines
apresentada por educadores/as am- Mais Cultura e as Salas Verdes (BLOG
bientais. Porém, por conta de entraves CIRCUITO TELA VERDE, 2009).
com relação à liberação dos direitos
autorais dos vídeos profissionais sele- Assim, a primeira edição do Circuito
cionados, o projeto ficou parado por Tela Verde - Mostra Nacional de Pro-
dois anos. dução Audiovisual era divulgada - ao
Após tomar conhecimento de um lado de um edital para produção de
PEA exigido pela Ibama em 2007, que curtas de animação sobre o tema de
tinha como resultado 30 vídeos que mudanças climáticas. Dessa forma,
abordavam questões socioambientais os 30 vídeos produzidos no âmbito
nas cidades litorâneas do Rio de Ja- do processo das Oficinas de Cinema
neiro e cujos direitos autorais já esta- Ambiental HumanoMar, em que o pro-
vam liberados, o DEA, então, substituiu fessor Costa havia participado, seriam
o conteúdo da mostra e passou a criar compilados em cinco DVDs e distribuí-
novas orientações para o programa. dos para 250 espaços exibidores, entre
“Um projeto, aprovado pelo Ibama, Salas Verdes, Coletivos Educadores,
com objetivo de retratar a realidade Pontos de Cultura, cineclubes, prefei-
socioambiental de grupos sociais afe- turas, escolas públicas e associações
tados pela indústria do petróleo, serviu comunitárias.
como ponto de partida” (SERRÃO et Junto aos filmes, a 1ª edição do CTV
al, 2009). oferecia um cartaz para divulgação e

144
identificação do espaço exibidor, além de Educomunicação: “[...] uma mostra
de um Manual Orientador: de vídeos que traz experiências de pro-
jetos de EA, utilizando a Educomuni-
O Circuito Tela Verde inaugura uma cação como referência para as produ-
parceria inédita entre a Secretaria de ções” (MANUAL ORIENTADOR, 2009,
Articulação Institucional e Cidadania p.1).
ambiental, por meio do Departamen-
to de Educação Ambiental do Minis- Os curtas produzidos na oficina de
tério do Meio Ambiente (MMA), e a cinema HumanoMar substituíram
Secretaria do Audiovisual do Minis- aqueles previstos anteriormente.
tério da Cultura (MinC). O objetivo é Porém, ao serem distribuídos os kits,
facilitar o trabalho de educação am- pouco se falou sobre o contexto no
biental por meio da linguagem au- qual esses filmes foram produzidos e
diovisual, com uma mostra de vídeos várias perguntas ficaram no ar para
que traz experiências de projetos de aqueles que participaram do projeto
EA, utilizando a Educomunicação (BLOG CIRCUITO TELA VERDE, 2009)
como referência para as produções.
Uma iniciativa que visa contribuir Escreveu Monica Serrão, na época,
com o processo de construção de va- uma das analistas ambientais que
lores culturais comprometidos com participavam do projeto, no blog que
a qualidade ambiental (MMA, MA- era o canal de comunicação entre os/
NUAL ORIENTADOR, 2009, p.1, grifo as organizadores/as de mostras e o
nosso). DEA. A mesma autora que, mais tar-
de, concluiria aprofundamento sobre o
O Manual Orientador apresenta in- mesmo material em sua tese de dou-
formações com a intenção de que a torado. E continua:
sociedade civil possa ser protagonista
da ação de educação ambiental; su- Nos filmes, os cineastas ‘amadores’
blinha a relevância da organização de buscam desvelar e revelar as causas
um debate após a exibição, “visando dos impactos socioambientais viven-
promover a reflexão e o aprofunda- ciados em seu cotidiano. Eles com-
mento dos conteúdos apresentados” preenderam o seu papel e se torna-
(MANUAL ORIENTADOR, 2009, p.3); ram os olhos e a voz de seus vizinhos,
e traz também o endereço de um da sua comunidade. O que se de-
blog, pelo qual organizadores/as das senrolou ali foi de fato um processo
mostras poderiam se comunicar com educativo que tomou uma dimensão
o DEA, além de acompanhar a reali- inimaginável (BLOG CIRCUITO TELA
zação do circuito em outras localida- VERDE, 2009).
des. Atualmente, a página eletrônica
está desativada, apesar de continuar Vale atentar para o fato de que,
online. tanto a história compartilhada pelo
E logo na primeira página do mate- professor Costa sobre a sua experiên-
rial, é afirmada a adesão ao conceito cia na gravação dos documentários,

145
quanto o depoimento da analista am- no momento da montagem das ofici-
biental Mônica Serrão no blog do CTV nas, as discussões feitas com o públi-
pouco tempo depois, sobre a produção co participante, a gente que escolhia
audiovisual realizada nas oficinas, de- as temáticas, onde ia ser filmado,
monstram a quebra no fluxo do PEA todo processo era bem dialógico.
mencionado anteriormente.
Anos depois, já trabalhando na pes- Tanto a compreensão pelo campo
quisa para a sua tese de doutorado em de intervenção social da Educomuni-
Meio Ambiente, na Universidade do cação, como a pesquisa mais aprofun-
Estado do Rio de Janeiro - UERJ, com dada sobre licenciamentos ambientais
o tema “Contribuições do audiovisual foram momentos que ocorreram após
para o campo da educação ambiental: as oficinas para o professor Costa. No
hibridismo e democracia na Capital entanto, hoje, mais de dez anos depois,
do Petróleo” (2016) em que faz uma ele faz uma boa avaliação do projeto
discussão das múltiplas narrativas da HumanoMar na época, considerando
produção audiovisual no campo da fortuito o encontro com o Circuito Tela
Educação Ambiental, Costa acom- Verde:
panhou o percurso do Circuito Tela
Verde, na mesma medida em que ia Eu acho que uma coisa interessan-
se apropriando sobre a relação entre te é que uma aluna de Macaé, que
educação e comunicação: “Quando eu participou de um dos filmes, fazia
estava estudando essas questões, eu faculdade de biologia e depois foi
consegui ler bastante sobre Educomu- fazer mestrado. E a pesquisa dela
nicação, fui em eventos e me aproximei era em cima de uma experiência que
do campo. É um campo interessante, ela teve com o filme, participando do
está crescendo, tem uma diversidade HumanoMar. Ela foi estudar o Parque
interessante”. de Jurubatiba e a remoção de grupos
E ainda que a apostila da oficina que moravam na unidade de conser-
HumanoMar não fizesse menção ao vação, defendeu o mestrado dela em
campo da “Educomunicação”, relativa- Ciências Ambientais e fez a discus-
mente novo naquele momento, apon- são da dissertação por meio dessa
tava para o desenvolvimento da cida- produção, procurando entender essa
dania, da preservação do ambiente e relação através do filme. Foi a expe-
da valorização cultural, tornando-se, riência de produção que inspirou ela,
assim, um material que cabe a ações então esse é o resultado de um proje-
educomunicativas (SOARES, 2002). to. É muito bom que ele tenha chega-
do ao CTV.
Os filmes do HumanoMar foram fei-
tos com as ferramentas da Educomu- A experiência das oficinas de
nicação, mas tem gente que faz Edu- produção de documentários em Rio
comunicação e não fala, não sabe, das Ostras e as atividades de asses-
né?! Mas tinham vários elementos, soria em Macaé, como acompanha-
você via claramente essa discussão mos até aqui, foram marcantes para o

146
pesquisador. Tanto que as duas expe- Para ele, o CTV é uma ação com gran-
riências o levaram a Brasília para co- de relevância para o campo de Educo-
laborar com o projeto e trabalhar dire- municação: “Você estimular a produ-
tamente com a equipe do Ministério do ção de filmes independentes, criar um
Meio Ambiente. Dessa forma, de 2015 espaço de exibição e depois de distri-
a 2018, contribuiu em determinadas buição desses filmes, é algo poderoso”.
ações, além de dedicar uma parte de
sua tese ao Circuito Tela Verde. Em seu O Circuito Tela Verde em 2018
texto, defendido um ano depois, Costa
(2016, p. 51) descreve a dinâmica no es- Com nove anos de percurso, o proje-
critório do MMA: to continuava a promover a Educomu-
nicação como um de seus referenciais,
Todo ano é o mesmo movimento, o além de incitar o campo como um de
protocolo do prédio do Ministério de seus critérios para a seleção dos vídeos
Meio Ambiente é “invadido” por fil- que são selecionados para a compo-
mes, um servidor leva o material di- sição das mostras, ainda que não seja
reto para as salas 926/936, no nono um critério definitivo. E a engrenagem
andar, as salas do Departamento de pela qual funcionava segue as seguin-
Educação Ambiental. Nas salas, os tes etapas:
analistas ambientais preparam uma
caixa de papelão, identificam com 1 - Chamada Pública: é divulgado
uma caneta marcadora o número e um edital na página eletrônica60 do
ano do Circuito Tela Verde. A partir Ministério do Meio Ambiente, em que
daí começam a armazenar as produ- se solicita o envio de filmes produzi-
ções nesta caixa. Quando a data de dos em todo o território brasileiro, nas
envio dos filmes termina, começa o diversas linguagens audiovisuais, rea-
processo de organização do material. lizados por diversos/as atores/atrizes
Os filmes chegam por diferentes mí- sociais.
dias, CDs, DVDs, pen drives, acompa- 2- Seleção dos filmes: as produções
nhados das fichas de inscrição, que inscritas passam por uma curadoria
trazem informações sobre a obra, os realizada pela equipe do CTV, seguin-
nomes dos produtores, o local onde do critérios eliminatórios e classificató-
foram produzidos, uma sinopse e as rios, como:
principais questões que o filme se
propõe a estimular nos espectadores, Critérios eliminatórios para seleção dos
no ponto de vista dos produtores. vídeos:

Hoje em dia, Costa é professor na • não preenchimento do formulá-


Universidade Federal do Rio de Janeiro rio de cadastramento;
(UFRJ) e coordena um coletivo de pes- • não preenchimento do formulá-
quisa em cinema ambiental (CUCA/ rio online de dados do vídeo;
UFRJ), entre outras atividades rela- • possuir conteúdo inadequado
cionadas à temática socioambiental. para qualquer faixa etária;

147
• possuir conteúdo ofensi- cadastramento de instituições in-
vo, agressivo ou que atente contra teressadas em exibir os filmes, seja
terceiros; qualquer agrupamento social, como
• o tema central do vídeo não tra- associações comunitárias, escolas,
tar de questões socioambientais; universidades, espaços de cultura e
• vídeos com tempo superior a 60 outros.
minutos; 4- Elaboração dos kits: DVDs dos
• vídeos com baixa qualidade de filmes selecionados, guia de mostras
áudio e imagens, que impossibilite a com orientações de como organizar
análise; uma exibição e um debate, além de
• vídeos fora do formato referenciais teóricos sobre a Políti-
solicitado; ca Nacional de Educação Ambiental,
• vídeos montados exclusivamente com princípios e fundamentos da EA;
com sequência de fotos; sinopses dos filmes e perguntas norte-
• vídeos com imagens não auto- adoras para a promoção de debates
rais, sem os devidos créditos; pós-exibição.
5- Envio dos filmes: os filmes selecio-
Critérios classificatórios: nados são encaminhados para os es-
paços exibidores através dos Correios.
• impacto do vídeo (efeito de 6- Realização: fase em que ocorre as
impressão); mostras locais pelos espaços exibido-
• abordagem crítica; res e debates que são estimulados por
• qualidade de áudio e vídeo; meio do guia de mostras, geralmente,
• potencial do vídeo para ser na Semana do Meio Ambiente61.
aproveitado em processo de Educação 7- Avaliação: as mostras são ava-
Ambiental não formal, apresentando liadas a partir do preenchimento de
diálogo com a Política Nacional de formulário eletrônico por parte dos/as
Educação Ambiental - PNEA; organizadores/as.
• o vídeo foi feito em um processo
educomunicativo; A sistematização acima foi ela-
• o vídeo possui duração de até 30 borada com o acúmulo de experiência
minutos; da mostra ao longo das edições e tam-
• vídeo produzido nos últimos dois bém por meio de elementos que surgi-
anos; ram com o aprofundamento teórico do
• o vídeo foi feito com algum re- campo da Educação Ambiental, além
curso que contribua para a inclusão de da abordagem crítica estimulada pela
público com deficiência auditiva; PNEA (1999), conforme explicou em
• o vídeo possui legenda em ou- entrevista62 a analista ambiental Pa-
tros idiomas (GUIA ORIENTADOR DE trícia Fernandes Barbosa, hoje, a coor-
MOSTRAS, 2018, grifo nosso). denadora e mais antiga integrante do
projeto em atividade.
3- Chamada pública para es- Pode-se reparar que somente
paço exibidores: formulário de a primeira edição da mostra contou

148
com um “pacote” de filmes, realizados
em uma mesma lógica de produção,
em apenas um estado brasileiro. As
edições subsequentes foram compos-
tas a partir da abertura do edital de
seleção, em que produtores/as de vá-
rias localidades do país inscreveram
produções audiovisuais realizadas em
diferentes contextos, como em esco-
las, organizações sem fins lucrativos,
espaços educativos não formais, uni-
dades de conservação e outros, salas
verdes, universidades, agrupamentos
comunitários, prefeituras, além de pro-
duções autorais e de agentes promo-
tores/as de iniciativas com a temática
socioambiental.

O gráfico acima foi elaborado para


visualização das regiões do Brasil de
onde provém os filmes selecionados
pelo Circuito Tela Verde, da 2ª a 9 ª
mostra (2010-2018), a partir da indica-
ção contida nas próprias produções e/
ou nos guias orientadores fornecidos
pelo CTV. Foram excluídos do diagra-
Gráfico - Regiões dos filmes selecionados do 2º
ma as animações da “Mostra Curtas ao 9º CTV.
de Animação” - apoiados pelo edital Fonte: elaboração própria.
Cine Ambiente, em parceria com os

149
ministérios de Meio Ambiente e Cultura sobre o perfil do “Educomunicador”63,
e fazem parte da produção cinema- que apontou a predominância do sexo
tográfica especializada; e mantidos feminino, à razão de 59% de mulhe-
os trabalhos da “Mostra de Vídeos res para 41% de homens, que atuam
Curta Ambiental”, realizado no âmbito na inter-relação entre comunicação e
do contexto escolar. As duas mostras educação. Além disso, a presença de
paralelas, bem como a “Parceria Vila profissionais de outras áreas que en-
Sésamo”, são exposições de vídeos que contram confluências com o campo de
também acabam por compor algumas intervenção social.
edições do Circuito Tela Verde, am- Quando chegou ao MMA por meio
pliando o espectro de filmes. de um concurso público para analista
Por fim, o que se pode perceber a ambiental, após dez anos de trabalho
partir do gráfico é, ainda, a intensa como técnica de enfermagem e uma
participação de produções oriundas licenciatura em Ciências Biológicas,
da região sudeste do Brasil, no eixo sua primeira experiência com a edu-
Rio-São Paulo-Minas Gerais, locais em cação ambiental estava relacionada
que a tradição de produção audiovisu- com a agenda de resíduos sólidos.
al é alimentada pela forte distribuição Somente depois de uns meses pas-
de filmes e onde forças complexas in- sou a participar de outros processos
teragem, como a cultural, econômica dentro do departamento, até chegar
e política (MASSAROLO et al, 2015). à coordenação do CTV e, assim, ouvir
Vale ressaltar também que algumas falar, pela primeira vez, no conceito de
edições comportam filmes inscritos da Educomunicação:
Índia e do Peru, alguns deles em coo-
peração com o Distrito Federal -DF. Quando eu entrei no DEA, já existia
Barbosa ingressou no projeto a par- essa questão das agendas que eles
tir da IV edição e, em 2018, além dela, chamavam de educomunicativas,
faziam parte da equipe mais três ser- que era o CTV e as Salas Verdes, que
vidoras, uma engenheira ambiental, é outro projeto do departamento. Ali,
uma agrônoma e uma geógrafa. De a gente já começou a ter um pouco
todas, somente ela tem certo vínculo de contato com esse conteúdo e co-
com a comunicação, já que está cur- locou isso como um critério. Um dos
sando, neste momento, uma licencia- critérios de seleção do Circuito é se o
tura em Educomunicação. Consideran- vídeo foi feito em um processo edu-
do que a equipe do CTV desenvolvia comunicativo, então, no material a
uma primeira etapa de trabalho, gente coloca um pouco sobre o con-
aquela que fornece subsídios para ati- ceito de Educomunicação para tentar
vidades educomunicativas - recolhen- também orientar as pessoas que vão
do materiais, selecionando conteúdos, produzir a terem esse olhar64.
direcionando produções audiovisuais
à agentes da sociedade civil e produ- Neste sentido, é possível encontrar
zindo material teórico digital - tais da- textos que abordam o conceito no
dos remetem à pesquisa do NCE/USP, site do MMA, no qual, inclusive, está

150
também disponível para download educomunicativo, o produtor pontua
o Programa de Educomunicação So- ou não pontua. Em alguns vídeos é
cioambiental (BRASIL, MMA, 2008), mais fácil identificar isso, em outros
apontado como texto-base das inicia- não é tão claro assim. Nós reconhe-
tivas. Por outro lado, no material difun- cemos que existem algumas inicia-
dido a partir dos kits do CTV, são en- tivas que podem ter sido feitas em
contrados somente informações sobre processos que não são educomuni-
a Educação Ambiental, relacionadas cativos mas que trazem resultados
aos seus princípios e fundamentos. efetivos para a realidade de algumas
Independente dos esforços empe- pessoas. A gente tenta ver potencial
nhados pelo DEA, por meio da linha de em vários materiais e também para
ação de comunicação para a educação recebermos outros gêneros e conhe-
ambiental, logo na segunda edição do cer outras realidades.
Circuito Tela Verde é possível visualizar
a seleção de filmes que não possuem Contudo, consideramos que a
caráter educomunicativo. E a maneira direção educomunicativa do projeto
pela qual se nota a ausência desta ca- não se concentra em um material mul-
racterística é a atenta visualização de timídia educomunicativo, mas sim no
alguns vídeos que foram realizados em estímulo de ações que podem se tor-
um contexto de divulgação de iniciati- nar educomunicativas a partir dos sub-
vas e outros. Certamente, tal conside- sídios oferecidos pela mostra, no mo-
ração ainda está em desenvolvimento, mento da realização de debates sobre
afinal, trata-se de uma limitação de as questões socioambientais presentes
pesquisa explorar o caráter educomu- nos vídeos. Elemento de suma impor-
nicativo de produções audiovisuais a tância presente em uma linha de ação
partir do resultado final, isto é, do filme do governo.
pronto, uma vez que este campo de in- Costa, que no começo deste
tervenção se efetiva no processo. texto narra a sua trajetória de envol-
Neste intento, reconhecemos que, vimento com o projeto, acredita que
ainda que o projeto tenha sido criado a o Circuito Tela Verde - a partir dos fil-
partir da linha de ação de Educomuni- mes que são incorporados ao projeto
cação no Ministério do Meio Ambiente, - age como um difusor de informações
há uma variação de filmes submetidos importantes para toda a sociedade,
à mostra procedentes, expressamente, além de estimular que agentes sociais
de processos educomunicativos. Sobre em diversos grupos passem a geren-
este dado, Barbosa explica que: ciar, de forma autônoma, mostras e
debates.
Os vídeos são avaliados por vários “Com ações desse tipo, você faz com
critérios e pontuados. Não é obri- que o olhar sobre as coisas fique o
gatório que ele tenha sido feito mais heterogêneo possível”. Rememo-
em um processo educomunicativo, rando, anuncia que os filmes produzi-
pois este não é um critério elimina- dos no contexto do PEA HumanoMar
tório. Se ele foi feito em processo apresentam abordagens variadas e

151
certamente relevantes, ainda que, em processo, deve, fundamentalmente, ser
sua opinião, não se direcionem aos im- democrático, assegurar o direito à ex-
pactos gerados pela atividade de ex- pressão e aprofundar o uso dos recur-
ploração de petróleo diretamente. Ele sos comunicacionais na legitimação do
conta que no ano seguinte das grava- modelo de aprendizagem.
ções “o uso do audiovisual no diagnós- Por isso, a extrema importância
tico participativo do PEA da empresa de que trabalhos que atuam nessa
Devon Energy Brasil” foi premiado na égide sejam realizados nas três esfe-
categoria de Educação Ambiental pelo ras da gestão ambiental, ampliando
Prêmio Brasil Ambiental 200865. Isso, os espaços de decisão, diálogo entre
é claro, além de irem parar nas mãos saberes e participação política. En-
dos ministros da Cultura e do Meio tretanto, com a chegada de um novo
Ambiente, abrindo a primeira edição governo em 2019, e a extinção de
de uma mostra promovida pelo gover- agrupamentos importantes da ma-
no federal. Para além disso, ele reco- cropolítica brasileira, como o Departa-
nhece que: mento de Educação Ambiental - órgão
gestor de projetos como o Circuito Tela
A produção dos filmes agitou alguns Verde - até o momento, não contamos
coletivos e mudou muitas coisas para mais com a mostra para a sociedade
as pessoas que estavam ali, na épo- civil. No início de 2019, todos/as os/as
ca, alguns ficaram estimulados a en- interessados/as que se inscreveram
tender as conexões que percebiam. É naquela que viria a ser a décima edi-
o tipo de trabalho que não tem como ção receberam um e-mail do Ministério
quantificar. do Meio Ambiente explicando que os
“critérios de participação dos filmes
Como o professor, acreditamos seriam revistos66”.
que trabalhos que atuam nessa mes- Ao abrir a página eletrônica67
ma perspectiva ainda estão em um destinada às ações do Circuito Tela
longo processo de desenvolvimento, Verde no MMA, até o dia 3 de fevereiro
realizado como ponto-chave de inú- de 2020, não há novas informações.
meros projetos de mitigação do licen- Consta apenas um infográfico com as
ciamento ambiental brasileiro, mas atividades passadas, sem qualquer
também em escolas, universidades e menção a uma nova edição. E o per-
outros espaços pedagógicos. Como um curso de nove anos de um projeto, que
paradigma identificado nos movimen- ainda tinha muito a evoluir nas mãos
tos sociais anti-ditadura nas Américas de educadores/as e outros/as envolvi-
Latinas (HIDALGO, 2019), o interessan- dos/as de diversas localidades do país,
te é que este conceito, a Educomunica- se adensa no entrave político atual -
ção, seja desenvolvido, segundo Soares assim como outros espaços de fomen-
(2011, p. 44): “[...] levando em conta as to à cultura brasileira a exemplo da
potencialidades dos meios de comuni- própria Agência Nacional do Cinema -
cação e suas tecnologias”, permitindo ANCINE, a Lei Rouanet e outros canais
diálogo entre diversos discursos. Tal

152
que já tinham sido conquistados no ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL E
percurso político do país. CIDADANIA AMBIENTAL. Programa
Nacional de Educação Ambiental.
Referências Brasília, 4ª ed., 2014. Disponível em:
http://www.mma.gov.br/images/
ACSELRAD, Henri. Desigualdade arquivo/80221/pronea_4edicao_web-
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APOSTILA “Oficina de Cinema CONAMA, Resolução Nº. 004 de 18 DE


Ambiental – Programa de Educação SETEMBRO DE 1985. O CONSELHO
Ambiental, Humano Mar”, Devon, 2007. NACIONAL DO MEIO AMBIENTE
tendo em vista o que estabelece a Lei,
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- Departamento de Educação
BRASIL, MINISTÉRIO DO MEIO Ambiental, Secretaria de Articulação
AMBIENTE. SECRETARIA DE Institucional e Cidadania Ambiental,

153
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br/images/arquivo/80219/Guia_ de óleo e gás no Brasil frente à nova
CTV_9_final_20.08.18.pdf. Acesso em sociabilidade da terceira via, 2012. 402
20 de novembro de 2018. f. Tese (Doutorado em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social)
HIDALGO, Rachel. Mar à vista da - Instituto de Psicologia do Centro
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Disponível no link: https://www.argo. SOARES, Ismar de Oliveira.
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dezembro de 2019. construção de um campo a partir da
prática social. 2002. Disponível em:
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Circuito Tela Verde - Mostra Nacional textos/6.pdf Acesso em 20 de agosto
de Produção Audiovisual Independente de 2017.
- Departamento de Educação
Ambiental, Secretaria de Articulação VAI VENDO. Produção: Oficina de
Institucional e Cidadania Ambiental, Cinema Ambiental HumanoMar,
Ministério do Meio Ambiente. Abaeté Estudos Socioambientais. Rio
de Janeiro: DEVON, 2007. (15’30’’).
MASSAROLO, João; MESQUITA, Dario;
MARLET, Ramon. Centros de Mídia e WALTER, Tatiana; ANELLO, Lúcia F.
inovação: um estudo sobre o mercado S. A educação ambiental enquanto
audiovisual brasileiro contemporâneo medida mitigadora e compensatória:
In: XIV Congresso Internacional uma reflexão sobre os conceitos
Ibercom, 2015. Disponível em: https:// intrínsecos na relação com o
bit.ly/2ElJd7o. Acesso em 8 de Licenciamento Ambiental de petróleo
dezembro de 2018. e gás tendo a pesca artesanal como
contexto In: Ambiente e Educação, v.17,
SERRÃO, Mônica; ANELLO, Lucia. n.1, 2012. Disponível em:
BLOG CIRCUITO TELA VERDE. 2009. https://periodicos.furg.br/ambeduc/
Disponível em: http://circuitotelaverde. article/view/2657/1669 Acesso em 30
blogspot.com. Acesso em 10 de julho de novembro de 2018.
de 2017.

SERRÃO, Mônica. Remando contra


a maré: o desafio da educação

154
NOTAS

Capitulo 6

53 Entrevista concedida no dia 12 de novembro de 2018, especialmente,


para a dissertação “Mar à vista da Educomunicação Socioambiental:
Apropriações socioambientais da zona costeira no Circuito Tela Verde (Edição
de estreia) - (HIDALGO, 2019).

54 O Colégio Municipal de Pescadores de Macaé foi encerrado. Ver:


COSTA, R. N; OLIVEIRA, V. A. N; LIANZA, S; PEREIRA, C. S. Quando a
universidade vai à escola: a experiência em educação ambiental do Colégio
Municipal de Pescadores de Macaé/RJ, 2007-2010 In: Revista Eletrônica do
Mestrado em Educação Ambiental – REMEA. v.31, n. 2, p.261-279, 2014.

55 Hidalgo, Rachel. “Mar à vista da Educomunicação Socioambiental:


Apropriações socioambientais da zona costeira no Circuito Tela Verde
(Edição de estreia) (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande - PPGEA/FURG - 2019.

56 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais


Renováveis, criado pela Lei nº 7.735 de 22 de fevereiro de 1989 e vinculado
ao Ministério do Meio Ambiente, desenvolve atividades para a preservação
e conservação do patrimônio natural, exercendo o controle e a fiscalização
sobre o uso da natureza como recurso.

155
57 O PEA HumanoMar foi o primeiro projeto que utilizou o audiovisual
como prática da educação ambiental no licenciamento de petróleo do Brasil
(COSTA, 2016, p.218).

58 As cidades participantes do PEA HumanoMar foram: Arraial do Cabo,


Araruama, Rio das Ostras, São Pedro da Aldeia, Armação dos Búzios, Cabo
Frio, São Francisco de Itabapoana, Macaé, Niterói e São João da Barra.

59 Atualmente, o PEA HumanoMar é conhecido como ObservAção e


os filmes realizados em 2007, bem como os que se seguiram, podem ser
visto no Canal do PEA no YouTube: https://www.youtube.com/channel/
UCpuNY9D-63d3GIPU0mnbDlA/videos .

60 Página do Ministério do Meio Ambiente: http://www.mma.gov.br/


educacao-ambiental/educomunicacao/circuito-tela-verde.

61 O Dia Mundial do Meio Ambiente é comemorado em 5 de junho.


A data foi recomendada pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente, realizada em 1972, em Estocolmo, na Suécia. Através do Decreto
Federal 86.028, de 27 de maio de 1981, o governo brasileiro também
estabeleceu que neste período em todo território nacional se promovesse
a Semana Nacional do Meio Ambiente que tem por finalidade apoiar a
participação da comunidade nacional na preservação do patrimônio natural
do País (MMA, 2018).

62 Entrevista concedida no dia 10 de dezembro de 2018, especialmente,


para a dissertação “Mar à vista da Educomunicação Socioambiental:
Apropriações socioambientais da zona costeira no Circuito Tela Verde (Edição
de estreia) - (HIDALGO, 2019).

63 A pesquisa realizada pelo Núcleo de Comunicação e Educação


da Universidade de São Paulo, coordenada pelo professor Dr. Ismar de
Oliveira Soares foi realizada entre os anos de 1997-1998, sobre a qual
apresentamos detalhes qualitativos no primeiro capítulo desta dissertação.
Mais informações sobre os dados da pesquisa, ao que se refere aos números,
podem ser acessados em: http://www.usp.br/nce/wcp/arq/textos/140.pdf.
Acesso em 8 de dezembro de 2018.

64 Entrevista concedida no dia 27 de novembro de 2018, especialmente,


para esta dissertação.

65 O prêmio Brasil Ambiental foi criado por “uma das mais tradicionais
entidades empresariais do País, em funcionamento desde 1916” (COSTA,
2016, p.223), chamada Câmara de Comércio Americana do Rio de Janeiro, e
tem como objetivo promover as relações bilaterais do Brasil com os Estados
Unidos. 156
Imagens de Iemanjá e uma
Cosmovisão Afrobrasileira
Washington Ferreira
Eliane Renata Steuck
Beatriz Rodrigues

0 7.
Introdução

A pluralidade de processos do multiverso cultural afro-latino-americano é re-


conhecida pela aderência à identidade cultural e ecossistêmica dos respectivos
grupos sociais, etnias e territórios. Dentre estes, se destacam – pelo vasto contin-
gente social, e por seu impacto simbólico —, os cultos religiosos. Esta nova per-
cepção converge para a sua compreensão como parte integrante e indissociável
do patrimônio cultural universal:

A partir da década de 1990, os apontamentos feitos por Huizinga, Burckhardt, Marc


Bloch e Pettazzoni na primeira metade do século XX, ganharam força sob uma
nova roupagem, denominada pelos especialistas de História Cultural das Religiões
(...). A proposta era aplicar ao estudo histórico das religiões as práticas de pesquisa
que vinham sendo incorporadas aos estudos da chamada História Cultural. Con-
ceitos como o de representação; poder simbólico e apropriação passaram a ser
incorporados aos estudos de cunho histórico da religião (PETERS, 2015: 95; grifos
nossos).

Partindo da perspectiva etnográfica, vimos há alguns anos, efetuando o regis-


tro fotográfico dos eventos religiosos68 da Festa de Iemanjá (na praia do Cassino)
e da Procissão de Nossa Senhora os Navegantes (entre as cidades de São José
do Norte e Rio Grande), junto ao Estuário da Lagoa dos Patos e região costeira
adjacente, no litoral sul do Rio Grande do Sul. Conduzimos estes procedimen-
tos de acordo com a Observação-participante (MALINOWSKI,1922), pela qual

158
os pesquisadores se envolvem com o Outras fontes às quais recorremos se
cotidiano de atividades e processos referem a imagens literárias, ou narra-
de pesquisa, na intenção de garantir tivas visuais, nas quais identificamos
a maior fidedignidade dos registros, alguns dos atributos constituídos so-
efetuados com a máxima deferência bre este orixá, através da releitura da
e respeito aos interlocutores e sujeitos Deusa do Mar, em outras personagens
de pesquisa (sacerdotisas e fiéis destas mitológicas e/ou historiográficas, em
expressões religiosas). diferentes contextos étnico culturais.
Neste ensaio, apresentamos e dis- O texto se encontra organizado em
corremos sobre imagens (de nossa diversas seções independentes, porém
autoria) do orixá Iemanjá e/ou rela- interconectadas, que vão inserido, de-
tivas às cerimônias e rituais em sua talhando e contextualizando o Arquéti-
homenagem no sul do Brasil, e (de po da Senhora das Águas; a identida-
outros autores e contextos culturais), de de Iemanjá, Rainha Negra do Mar;
disponíveis em coleções virtuais. Con- as interações entre narrativas visuais
duzimos os procedimentos de acordo da literatura e a Deusa do Mar; as re-
com a Observação-participante (MA- presentações da Deusa do Mar em
LINOWSKI,1922), com a máxima de- outros contextos étnico culturais; as
ferência e respeito aos interlocutores grandes convergências entre a Deusa
e sujeitos de pesquisa (sacerdotisas do Mar e o mito da Grande Mãe; e, nas
e fiéis destas expressões religiosas). Considerações Finais, nossas reflexões
Na interpretação deste material, uti- sobre a Resiliência Cultural e a Cosmo-
lizamos a análise documentária de visão Afro-Brasileira.
fotografias, procurando identificar os
atores sociais e os respectivos papéis O Arquétipo da Senhora das Águas
no contexto cultural e sociopolítico
regional: No Estuário da Lagoa dos Patos
(RS), as cidades de São José do Nor-
A Semiótica propõe pensar a imagem te, Rio Grande e Pelotas concentram
como Ícone (como espelho da reali- grande contingente populacional
dade: representação em que há uma associado às atividades pesqueiras,
relação de analogia entre a imagem navegantes e portuárias. Nestas co-
e seu referente), Índice (imagem munidades, persistem muitos mitos
como vestígio, indício, registro da re- pretéritos; as relações familiares e so-
alidade: representação por conexão/ ciais que as permeiam magnificam o
contiguidade física entre a imagem e alcance e a importância da devoção
o referente) e Símbolo (imagem sobre coletiva:
a qual recaem elementos tais como
ideologia, cultura, sociedade, esté- [...] Seja qual for o contexto histórico
tica e até mesmo técnica: trata-se em que se encontra, o Homo religio-
de uma representação por conven- sus acredita sempre que existe uma
ção) (MANINI, 2002, p. 152-153; grifos realidade absoluta, o sagrado, que
nossos). transcende este mundo, que aqui

159
se manifesta, santificando-o e tor- convergência, lhes assegura a identi-
nando-o real. Crê, além disso, que a dade própria:
vida tem uma origem sagrada e que
a existência humana atualiza todas O encontro de epistemologias segue
as suas potencialidades, na medida através de uma multiplicidade cres-
em que é religiosa, ou seja, participa cente, nunca se fundindo em um uno.
da realidade […]. Reatualizando a O compartilhar de conceitos utiliza-
história sagrada, imitando o compor- dos para delinear fenômenos da na-
tamento divino, o homem instala-se tureza, como o Oceano e a Lagoa dos
e mantém-se junto dos deuses, quer Patos, através da orixá Iemanjá e da
dizer, no real e no significativo (ELIA- santa Nossa Senhora dos Navegan-
DE, 1992, p. 97). tes, não se dá de forma a encontrar
hipóteses comum, de maneira a ho-
Entre tais elementos, destaca- mogeneizar pontos de vista distintos,
-se o respeito e devoção ao arquéti- mas procura preservar a diversidade
po regional da Senhora das Águas, através de mediações nas intensida-
representada/cultuada simultanea- des do ato. Neste sentido, o encontro
mente através das religiões de matriz cosmológico entre o catolicismo-
africana, como Iemanjá, e pelos fiéis popular e as religiões afrobasileiras
católicos, como Nossa Senhora dos pressupõe um território permeável
Navegantes: e impreciso, que toma a forma da
própria natureza, através de sua mul-
Como festas religiosas consolidadas, tiplicidade (BITTENCOURT, ROSA,
tornaram-se referências culturais MOURA, 2017, p. 115).
importantes nas referidas cidades,
pois mobilizam não apenas grupos Para além do mundo do trabalho, no
religiosos de matriz africana, mas qual estão imersas e entrelaçadas as
também devotos leigos, curiosos e referidas categorias sociais, os mundos
indivíduos que, independentes do das relações familiares e sociais que
direcionamento religioso, carregam as permeiam magnificam o alcance e
e expressam fé neste orixá, Iemanjá, a importância do respeito mútuo e a
conhecida popularmente como Rai- devoção à Senhora das Águas, resga-
nha do Mar (TAVARES, SCHIAVON, tando o senso de comunidade, coope-
2015, p. 159). ração e participação ativa entre o(a)
s sacerdote(isa)s, fiéis e simpatizantes
A complementaridade destas mani- de ambas religiões.
festações, embora marcadas pelo pro-
cesso do sincretismo religioso (como Iemanjá, Rainha Negra do Mar
estratégia de sobrevivência cultural em
meio a um contexto histórico pregresso Para compreendermos alguns
de intolerância), e as suas respectivas dos muitos atributos de Iemanjá,
particularidades, denotam uma pro- é necessário navegarmos, mesmo
funda complexidade que, apesar da que superficialmente, na fértil e bela

160
diversidade étnica e cultural do conti- BA, Clifford Geertz, Victor Turner,
nente ao qual denominamos África, e Evans Pritchard, ¢eóplile Obenga,
percebermos como muito de sua histó- dentre outros (SANTANA, 2012, p. 07).
ria foi (e vem sendo) subestimada pela
visão colonialista eurocêntrica, que nos Revisitando autores enraizados e
foi também imposta: representativos da história e cultura do
continente-mãe, podemos nos aproxi-
Para compreendermos um pouco mar das contradições que permeiam a
mais as complexidades que o Conti- percepção das cosmogonias africana e
nente Africano apresenta, é elemen- afrobrasileira:
tar reconhecer suas especificidades,
diversidades, pluralidades de povos, Outro nome que não se pode olvidar,
generalidades, geografias, culturas em prol de uma melhor compreensão
línguas, religiosidades e seus siste- do mundo africano, é o de Honorat
mas de valores é preciso buscar os Aguessy. Em Visões e percepções tra-
referenciais africanos, e ou, outros dicionais (“Introdução à Cultura Afri-
reconstruídos a partir de referenciais cana”, 1977), Aguessy oferece o que
positivos do continente. Nesse con- se pode considerar uma verdadeira
texto, para afirmarmos valores que síntese acerca da cultura africana.
fazem parte do processo civilizatório Segundo ele, a Europa construíra al-
africano brasileiro é basilar alicerçar gumas “visões e percepções” sobre
nossa base histórica, cultural, psicoló- o continente africano, que se consti-
gica e lingüística dentre outras (SAN- tuíram em edifício de característicos
TANA, 2012, p. 06-07). preconceitos: pensar que as socie-
dades não europeias nunca tivessem
Para ser coerente com a cultura ideias similares às dos europeus;
destes povos originários, tal percepção pensar que as similaridades advi-
deve ser orientada pelos mestres das nham sempre de influência europeia
respectivas culturas e tradições locais: (CANTARELA, 2013, p. 96).

Estudiosos, pesquisadores e líderes A potência simbólica das imagens


fundados na tradição africana antiga arquetípicas que associam o domínio
aos que se construíram com os pres- do Oceano, como aquele orixá que
supostos do colonialismo europeu, gera, nutre, protege e ensina seus fi-
assim como os dois lados do Panafri- lhos (e, por vezes também os suprime,
canismo e os contemporâneos cola- assim como o grande Mar), se aloja no
boram para desmontar as distorções inconsciente coletivo da humanidade
da história eurocêntrica. Exemplos, e transcende os limites ilusórios entre
como Cheikh Anta Diop4 , Aimé Cé- culturas e etnias. Segundo a complexi-
saire, Joseph ZiZerbo, Van Sertina, dade da cosmogonia Iorubá,
Basil Davidson, Franz Fanon, Leon
Gontran Damas, Leopold Sedar Sen- Olodumare, o Ser Supremo e um
ghor, Kabengele Munanga, Hampatê grande número de divindades, entre

161
as quais Orixalá (também chamado antepassados, pelos elementos co-
Obatalá ou Oxalá), Orunmila (tam- muns compartilhados”:
bém chamado Ifá) e Exu habitavam
o orun. Abaixo, havia uma infinita […] Por força do nascimento e das
extensão de água e desertos panta- iniciações ritualísticas, os vários ele-
nosos, sobre os quais reinava Olokun, mentos que a compõem vão sendo
o Deus do Mar. Olodumare ponderou: adquiridos um a um: ara (corpo), emi
poderia essa grande e monótona (força vital), ori (cabeça), bara (prin-
extensão de água ser habitada por cípio dinâmico, também chamado de
divindades e outros seres vivos? (RI- exu-bara), axé (força divina imate-
BEIRO, 1996, p. 37). rial), odu (signo) e, finalmente, o orixá
(último elemento a ser integrado à
Nas religiões afrobrasileiras, tal ar- pessoa) (LEME, 2006: , p. 60-61).
quétipo das águas salgadas é repre-
sentado por Iemanjá, a Deusa do Mar. Os orixás se apresentam como ar-
Sobre a identidade étnica negra de quétipos, compondo a psique, de ma-
Iemanjá, e seu papel central na cultu- neira a orientar e/ou explicar condutas
ra e religiosidade afrobrasileira, vale humanas:
recordar os ensinamentos daqueles
que viveram/vivem plenamente este O papel, ou melhor, a introdução da
universo: mulher como uma das principais fi-
guras de manutenção e resistência
[…] Como bem definiu Pierre Verger, de diversos cultos e segredos desig-
os orixás são ancestrais divinizados nados do “Axé” foi de suma impor-
que outrora, devido à força de sua tância para os processos de manu-
existência, estabeleceram relações tenção constitutivos das africanias no
com elementos da natureza e com Brasil (...). Essas mulheres, designadas
diversas funções sociais. A função de Macotas nos candomblés de pro-
social da maternidade, por exemplo, cedência Banto (...), ou Ekedes nos
coube a Oxum e a Iemanjá, sendo candomblés de nação Keto, desem-
a primeira mãe das crianças e a se- penham importantes posições entre
gunda, dos adultos (...). A essa mãe suas obrigações dentro e fora dos
negra, de seios fartos e ventre aben- perímetros do terreiro, estabelecendo
çoado, recorrem todos os brasileiros o controle das trocas comercias nas
a cada 02 de fevereiro, a cada 31 de feiras livres e outros mercados (VI-
dezembro (PAI RODNEY, 2018; grifos DAL, 2011, p. 04).
nossos).
A cosmogonia Iorubá, de mile-
Concentramos nossa leitura na nar tradição, também se detém a ex-
perspectiva ontológica, que com- plicar a criação dos homens e mulhe-
preende o indivíduo como perten- res, o seu relacionamento com o divino,
cente “ao cosmos e ao universo, e as causas que teriam determinado a
mantendo-se ligado a estes e a seus ruptura com o mesmo:

162
… incumbido, a seguir, de moldar os doçura. Dentre os mais diversos no-
corpos dos homens com o pó da ter- mes dados a divindade estão: Caiala,
ra, Orixalá os moldava perfeitos ou Dandalunda, Dona Maria, Janaína,
defeituosos, desde que a forma re- Deusa Janaína, Inaê, Princesa do
sultante pudesse receber a essência Mar, Oxumalê, Olôxum, Rainha das
da Vida, que aí seria insuflada por águas, Sereia Mucunã, Malemba e
Olodumare (...). No início havia har- mais tanto outros nomes, a depender
monia, comunhão e confraternização da nação que a cultua (MIRANDA et
entre os homens e o mundo espiritu- al., 2014, p. 04).
al. Por vezes os homens viajavam ao
Orun para pedir o que necessitavam. Segundo variantes regionais
Entretanto, um fato separou o céu da cosmogonia Iorubá, a primazia de
da terra e uma barreira interpôs-se Iemanjá sobre as águas do mar teria
entre ambos. Que fato foi esse? Se- duas origens: uma, por ela ser filha de
gundo algumas tradições, uma mu- Olokum; outra, pelo presente com má-
lher teria tocado o céu com a mão gicos poderes, recebido de sua mãe:
suja. Segundo outras, um homem
teria se comportado mal, servindo-se Iemanjá era a filha de Olokum, a
em excesso do alimento comum. Eis Deusa do Mar (...). Certa vez, antes
a cosmogonia iorubá apresentada do seu primeiro casamento, Iemanjá
por Idowu (1977:18) [RIBEIRO, 1996, p. recebera de sua mãe, Olokum, uma
37-38]. garrafa contendo uma poção mági-
ca pois, dissera-lhe esta: “Nunca se
Esta concepção tem muito a nos sabe o que pode acontecer amanhã.
dizer sobre a origem dos mitos com- Em caso de necessidade, quebre a
partilhados pela humanidade, espe- garrafa, jogando-a no chão”. Em sua
cialmente aqueles tão prezados pela fuga, Iemanjá tropeçou e caiu. A gar-
cultura judaico-cristã (e sua arrogante rafa quebrou-se e dela nasceu um
pretensão de servir de modelo aos rio; as águas tumultuadas deste rio
demais povos). Derivado do contexto levaram Iemanjá em direção ao oce-
cultural Iorubá, o culto à Iemanjá no ano, residência de sua mãe Olokum
Brasil assume características ainda (VERGER, 1997, p. 53-55).
mais complexas, pela integração dos
seus atributos específicos, associados O nome e os atributos de Ieman-
às águas, à fartura e à fertilidade, com já, como a Grande Mãe, também de-
outros derivados de sua relação com a mandam interpretações múltiplas:
visão de mundo e potência feminina:
…seu nome deriva da expressão Iyê
No panteão africano, Iemanjá figura Oman Ejá (“a mãe cujos filhos são
como a senhora das grandes águas, peixes”), talvez por isso tenha se
mãe e protetora dos deuses, homens tornado também protetora dos pes-
e peixes, cuja feminilidade a carac- cadores e associada à figura das
terizam enquanto orixá da beleza e sereias (...), festejada nos litorais de

163
Norte a Sul, com suas longas madei- sentia-se como Orungã: “… por isso,
xas, sua túnica azul, suas ancas lar- talvez, Iemanjá o amasse, protegesse
gas, seu diadema de estrelas e seus as suas viagens nos saveiros (…); para
braços acolhedores sempre abertos que ele não ficasse igual a Orungã,
(PAI RODNEY, 2018; grifos nossos). ela devia dar-lhe uma mulher bonita,
quase tão bonita como dona Janaína
As narrativas visuais da literatura e a mesmo” (PRANDI, 2004, p. 71; grifos
Deusa do Mar nossos).
O romance apresenta o arquétipo
Imagens outras sobre a Deusa da mulher que não se permite definir
do Mar, além daquelas materialmente e controlar, mas que toma em suas
constituídas (esculturas, relicários, fo- mãos a própria história; a mulher que
tografias), mas diretamente associa- está além do que se pode enquadrar,
das a Iemanjá, provém da literatura, a Deusa-Mulher, “impossível de ser
cujas fontes estão impregnadas da abarcada por teorias discriminatórias”
vida e das crenças. Na literatura bra- (BRIGLIA, SACRAMENTO, 2016, p. 19).
sileira, “Mar Morto” (de Jorge Amado)
apresenta um romance que se entrela- A Deusa do Mar em outros contextos
ça com a crença dos personagens em étnico culturais
Iemanjá – a única capaz de ser mãe e
esposa simultaneamente – cujos atos Outras cosmogonias cultuam dei-
explicam porque pode ser doce a mor- dades distintas, porém equivalentes e
te no mar: com tal intimidade e prevalência sobre
os processos e criaturas marinhas, as-
Ela é a mãe d’água, é a dona do mar, sim como a Deusa do Mar. No contexto
e por isso, todos os homens que vi- biogeográfico e cultural, distinto da
vem em cima das ondas a temem e religiosidade afrobrasileira, das Ilhas
a amam. Ela castiga. Ela nunca se Maurício e seus entornos (entre a costa
mostra aos homens, a não ser quan- leste da África, a imensa Madagascar
do eles morrem no mar. E aqueles e o Oceano Índico), encontra-se uma
que morrem salvando outros homens, variante hindu dos atributos, conhe-
esses vão com ela pelos mares afora cimentos e habilidades da Deusa do
[…]. Destes ninguém encontra os cor- Mar:
pos, que eles vão com Iemanjá […].
Será que ela dorme com todos eles …ao voltar para o Diamante, no fim
no fundo das águas? (AMADO, 2004, da tarde, vi pela primeira vez aquela
p. 15; grifos nossos). que em seguida chamei de Suryvati,
força do sol (…); quando a maré baixa,
Filha de Obatalá (o Céu) e Odudua Surya pesca ao longo do recife. É a
(a Terra), Iemanjá deu à luz Orungã, hora em que a luz declina, e o vento
o qual nutriu pela mãe um amor in- enfraquece. Ela está (com as aves
cestuoso, de maneira que esta foi sua marinhas); eles vêm do Diamante,
mãe e amante. Em “Mar Morto”, Guma ela caminha no meio deles, sobre o

164
recife, cercada por seus gritos. É uma na praia. Entoando cantos ancestrais,
Deusa do Mar. É como a vi a primeira comunica-se com antepassados que
vez, fina e longa, deslizando a su- se comunicam com a baleia. Assim,
perfície da água. Ergue seu arpão, Kahu quebra a ideia hegemônica de
golpeia e tira da água o polvo, cujos que apenas os homens poderiam fazer
braços se enrolam em volta da haste este trabalho, e monta a baleia, sal-
(LE CLÉZIO, 1997, p. 62; 282; grifos vando sua vida:
nossos).
Ela era Kahutia Te Rangi. Ela era
Também a obra “Encantadora de Paikea. Ela era o cavaleiro da baleia.
Baleias”, do neozelandês Witi Ihimae- Hui e, hauimi e, taiki e. Que seja feito.
ra (1987), apresenta a história de uma A tribo inteiro chorava na beira da
menina Maori (Kahu) contra o patriar- praia. A tempestade ia embora le-
calismo exercido por seu avô (Koro Api- vando Kahu. O coração de Vó Flowers
rana), o qual insiste no não reconheci- queria sair pela boca e as lágrimas
mento da dádiva ancestral e heroica jorravam num rio caudaloso que es-
presente em sua neta: corria pela face. Enfiou as mãos nos
bolsos em busca de um lenço, e seus
Em sua narrativa poética, Ihimae- dedos se fecharam em torno da pe-
ra consegue combinar, através de dra esculpida (IHIMAERA, 2012, p.
surpreendentes imagens sublimes, 146).
a aproximação entre a cultura con-
temporânea e os ritos remotos do Convergências entre a Deusa do Mar e
povo Maori. O autor busca, através o mito da Grande Mãe
da obra, revelar o dom antigo dos
“cavaleiros da baleia”, um mito co- Iemanjá, a Deusa do Mar, fonte de
nhecido e glorificado na Polinésia, vida e felicidade para os seus fiéis,
necessariamente atribuído aos filhos apresenta grande convergência com
primogênitos e do sexo masculino, na reminiscências mitológicas, compar-
personagem feminina Kahu, utilizan- tilhadas por diversas culturas do pas-
do-se, para tanto, da narrativa épica sado da humanidade, que evocam a
de Hawaiki (grupo de ilhas apinhadas deidade da Grande Mãe, ícone da fer-
em torno de Bora Bora, na Polinésia tilidade e potência de vida.
Francesa), com o intuito de questio-
nar os ideais patriarcais gravados Frente as evidências arqueológicas,
na sociedade Maori contemporânea pode-se afirmar que o tempo em que
(RICCI, 2016, p. 231-231). a humanidade se relacionou com um
princípio feminino genetriz, cuja sa-
O romance expõe a rejeição e segre- cralidade era imanente a natureza,
gação da mulher, culminando na ação foi muito mais longo que o tempo em
heroica de Kahu que, mesmo contra- que foi relegada a essa invisibilida-
riando o avô, se lança nas águas para de (…), percebemos com nitidez esta
libertar o grande cachalote encalhado continuidade religiosa em deidades

165
tão conhecidas quanto Ísis, Nute e amuletos relacionados com o culto à
Maat, no Egito; Ishtar, Astarte e Lilith, fertilidade, fator decisivo para a sobre-
no Crescente Fértil; Deméter, Core e vivência do grupo (AGUIAR, sd; grifos
Hera, na Grécia; e Atárgatis, Ceres nossos). Destaca-se, deste contexto, a
e Cibele, em Roma. Mesmo depois, imagem da Vênus de Willendorf (Fig.
em nossa própria herança judaico- 02).
-cristã, ainda podemos identificá-la
na Rainha dos Céus, cujos arvoredos A religião da Deusa existiu e ocupou,
são queimados na Bíblia, na Sheklina durante milênios, um espaço significa-
da tradição cabalística hebraica, e tivo no Oriente Próximo e Médio, antes
na Virgem Maria católica, a Sagrada da chegada do patriarcado, iniciado
Mãe de Deus (EISLER, 1997: 21; in IN- por Abraão, primeiro profeta da divin-
GRASIOTANO, 2018, p. 161-162; grifos dade masculina:
nossos.
As teorias sobre as origens da Deusa
Estes referenciais estão impreg- neste período são fundadas na justa-
nados de atributos à vida, à gestação posição de costumes da mãe-mãe ao
e cuidado para com todas as formas culto dos ancestrais (…), das numero-
de vida, inerentes à condição feminina: sas esculturas de mulheres encontra-
das nas culturas do Paleolítico Supe-
De fato, ofuscou-se da memória co- rior (algumas datam de 25.000 aC).
letiva a Mãe potente, a Grande Mãe, Estas pequenas figuras femininas,
aquela com seios proeminentes e feitas de pedra e osso e argila, são
ventre volumoso, com sensualidade muitas vezes referidas como figuras
e sexualidade, capaz de gerar a vida, de Vênus; estas estátuas de mulhe-
assegurá-la, acolhê-la e nutri-la den- res, algumas aparentemente grá-
tro de si, para em seguida, devolvê- vidas, foram encontradas em todos
-la ao mundo, em um movimento de os locais do Gravettian-Aurignacian,
criação e retorno, no qual a morte, espalhados em áreas tão distantes
também, era considerada como par- como Espanha, França, Alemanha,
te do processo de encantamento de Áustria, Tchecoslováquia e Rússia
viver (...). Dessacralizou-se a Terra e (SHAKTI, 2018, p. 03; grifos nossos).
suas criaturas, e, assim, o passo que
se segue nos deixa assujeitados(as) Outro artefato arqueológico, a es-
ao paradigma dominante (INGRA- cultura da Mulher Sentada de Çata-
SIOTANO, 2018, p. 162-163; grifos lhöyük (Fig. 03), pode ser a representa-
nossos). ção da mulher protetora da colheita e
dos grãos, indicando diversas faces da
Dentre os achados arqueológi- Deusa (SHAKTI, 2018); segundo Norma
cos do período Paleolítico, acredita-se Telles (historiadora e antropóloga da
que a representação feminina se dá PUC de São Paulo), a mesma é equi-
em razão da crença de que as pe- vocadamente relacionada somente à
quenas estatuetas femininas seriam fertilidade, pois “na realidade, a Deusa

166
não é aquela que só gera; ela é tam-
bém guerreira, doadora das artes da
civilização, criadora do céu, do tecido e
da cerâmica, entre muitas outras coi-
sas” (ZANCHETTA, 2016, p. 01).

Figura 02 - Escultura da Vênus de Willendorf

Fonte: AGUIAR, sd: 01.

Figura 03 - Escultura da Mulher Sentada de


Çatalhöyük

Fonte: SHAKTI, 2018, p. 07.

167
Também em alguns dos escritos sa- de humanidade, pelos quais, infe-
grados judaico-cristãos, incorporados rioriza, subalterniza e desumaniza o
na Bíblia, estão representadas a pre- ser diferente do parâmetro branco
sença da simbologia da Grande Mãe: europeu. Tornando-o invisível suas
racionalidades e a dignidade de sua
As reformas de Ezequias (2Rs 18,3- humanidade. Nisso, encontramos a
4) e Josias (2Rs 23,4-14), bem como essencialização da diferença e, con-
diversos relatos de Reis que inseri- sequentemente, anulação da alte-
ram a Deusa no templo, por exem- ridade (RODRIGUES, CAVALCANTI,
plo Manassés (2Rs 21,3-7), indicam a SOUSA, 2016, p. 06; grifos nossos).
presença de Asherah no templo de
Jerusalém, e também a presença de Tal colonialidade ultrapassa os sa-
outros Deuses. Conforme Anthonioz beres acadêmicos e avança no sentido
(2014: 139), havia uma representação de limitar a relação com o sagrado,
oficial da Deusa que ficava no templo desqualificando saberes ancestrais, na
principal, o que de fato corresponde tentativa de homogeneizar os modos
com os relatos bíblicos em alguns de ser, desconsiderando as múltiplas
momentos da história israelita e ju- cosmovisões, o que significa desconsi-
daíta, mas também havia muitos derar “a forma de pensar-agir, de con-
santuários no alto das montanhas viver no mundo que tem cada cultura”
e colinas, onde havia a liberdade e (Pérez Morales, 2008: 22).
acessibilidade para qualquer pessoa
adorar a Deusa (MATOS, 2019, p. 354; Com isso, percebemos que a colonia-
grifos nossos). lidade da Mãe Natureza, vista de for-
ma imbricada às demais, origina-se
Contudo, os processos de coloniza- com a consolidação do antropocen-
ção eurocêntrica, que dominaram (e trismo reinante nas sociabilidades,
continuam atuantes, com sua inten- na ciência e nos modos de produção
cionalidade dominadora) sobre corpos industrial. Parte da separação entre
e mentes de uma imensa pluralidade razão e mundo, natureza e cultura, a
de etnias e culturas originárias da Áfri- colonialidade volta-se para a própria
ca, Américas, Ásia e Oceania, foram existência e as cosmovisões reflexos
determinantes para a reificação da das múltiplas experiências de vida e
exploração, pela colonização dos pen- do viver. Diante disso, empenha-se
sares e sentires coletivos: em universalizar uma experiência
particular (europeia moderna) com o
Passamos agora a outro eixo da questionamento de outros modos de
colonialidade, a do ser, com cone- sacralização dos povos, a inserção da
xões com as demais (...). Ela remete dualidade sagrado/profano, ociden-
à ontologia decorrente do eurocen- tal europeu e a exaltação da mitifi-
trismo moderno, eminentemente cação da ciência moderna (RODRI-
antropocêntrico, produtora de es- GUES, CAVALCANTI, SOUSA, 2016, p.
tereótipos e definidora de critérios 06-07).

168
Na descrição de Iemanjá, Rainha
Negra do Mar, destacamos as expres-
sões: suas ancas largas, seus braços
acolhedores sempre abertos; essa
mãe negra, de seios fartos e ventre
abençoado. Tais atributos fenotípicos
e comportamentais remetem às ca-
racterísticas femininas de fertilidade e
amorosidade, tão estimadas nas cul-
turas de diferentes etnias africanas, e
incorporadas à religiosidade afrobrasi-
Figura 04 - Antiga representação afrobrasileira
leira (Fig. 04). de Iemanjá
Neste sentido, constatamos o pro- Fonte: SELJAN, 1967: capa.
gressivo abandono das imagens com
características identitárias africanas e/
ou afrobrasileiras, perpetuadas ainda
nos espaços de resistência e afirmação
da identidade étnico cultural religiosa,
das Casas de Santo e nos espaços vir-
tuais associados às mesmas(Fig. 05).
Paralelamente, constata-se o cres-
cente predomínio de representações
caucasoides eurocêntricas:

Souza (2011), defende que a associa-


ção do orixá às sereias, ao longo da
história recebeu elementos que lhe
afastam da representação africana o
que, em certa medida infere até mes-
mo na caracterização física do orixá.
Ou seja, a incorporação de valores
sociais possui a capacidade de des-
caracterizar as imagens do sagrado,
atribuindo às mesmas atributos que
se distanciam do real. A imagem de
Figura 05 - Representações afrobrasileiras de
uma Iemanjá de tez branca, jovem, Iemanjá
longos cabelos lisos em nada se as- Fontes: A (www.identidademandacaru.blogspot.com.
semelha a imagem da orixá africa- br); B (www.epilogo.art.br); C (www.astrocentro.
com.br); D (www.jornalqqn.com.br); E (https://
na negra, de fartos seios e aspecto candombledabahia.wordpress.com/2012/08/13/
guerreiro (MIRANDA et al, 2014, p. 05; yemanja-iemanja/) ; F (www.vs.com.br) ; G

grifos nossos). (www.pinterest.com); H (www.urbanarts.com.


br); I (www.portaldasmissoes.com.br); J (www.
hipercultura.com); K (www.coisasdeterreiro.jex.
com.br).

169
Tais mudanças na forma de re- cultuam os orixás, mas promovem/
presentação do sagrado africano no compactuam com uma estratégia de
Brasil podem ser atribuídas (em parte) “embranquecimento” das imagens re-
ao intenso processo de sincretismo presentativas dos mesmos.
intercultural, ao longo do qual foram No caso de Iemanjá, isto é mui-
sendo mesclados os mitos e respecti- to facilmente perceptível: da repre-
vos padrões de referência, de distintas sentação de Deusa do Mar, por seus
etnias e comunidades originárias do atributos originais (bacia volumosa
continente africano, raptadas e opri- e grandes seios), muito próxima da-
midas na condição de escravos, para quelas relativas ao mito da Grande
sustentação do modelo colonial aqui Mãe (como fonte da vida e fertilidade),
imposto pelos portugueses. muitos dos “novos” modelos adotam
linhas e traços de uma mulher branca,
Bastide (1971) alerta para o fato da alta e magra, com cabelos lisos, pele
justaposição dos cultos de matriz clara e nariz aquilino. A indumentária
africana e o culto católico, o que e os adereços destas “novas” repre-
substanciaria na relação entre Ie- sentações são predominantemente
manjá e a Virgem Maria. Destarte, tal europeizados e “madonizados”: os an-
associação sincrética não acontece tigos trajes abertos (mais condizentes
sem recodificar aspectos tidos como com o clima e cultura tropical original
impróprios para o imaginário. Ou africana), de fartos decotes e pernas
seja, trata-se do jogo, das adapta- expostas (exibindo a sensualidade ca-
ções as quais as religiões de matrizes racterística da personalidade atribuída
africanas se submeterem para que a orixá) são substituídos por invólucros
seus cultos pudessem permanecer pudicos; os longos e coloridos mantos
vivos (MIRANDA et al, 2014, p. 05). (como referência as peles sagradas e
aos elementos de seu domínio) obli-
A Grande Mãe foi, assim, gradativa- terados por capas que, a pretexto de
mente apagada da memória; entre- enobrecer, escondem e encapsulam o
tanto, pela impossibilidade de negar corpo feminino (quase como uma ver-
sua existência, a energia feminina foi são judaico-cristã da burca islâmica)
compreendida apenas pela força cria- da Deusa do Mar (Fig. 06).
dora, a geradora de vida: o arquétipo Outra interpretação (complemen-
da mãe intercessora (Nossa Senhora) tar) para tais variações nestas repre-
junto ao pai criador e ao filho salvador. sentações pode ser associada com os
Neste processo, um dos seus pérfi- “novos” padrões de beleza, impostos
dos desdobramentos, que se perpetua pela mídia sobre o corpo feminino, de
e incrementa, implica na negação e modo a torná-lo mais “vendável”, am-
desvalorização dos referenciais, valo- pliando a tendência de “coisificação”
res e símbolos da identidade pan-afri- do mesmo. Assim, a substituição do
cana; tal situação é recorrente, mesmo biotipo africano nos modelos de re-
em algumas comunidades afrodes- presentação de Iemanjá, por aquela
cendentes e “casas de religião” que construção publicitária de modelo de

170
mulher “moderna”, alta, magra e de
pele clara, visaria instituir no coletivo
uma nova percepção e ideal de consu-
mo, demandando toda uma série de
produtos e serviços estéticos afinados
com tal modelo. Em tais circunstân-
cias, não faltam também registros de
ocorrências de flagrante incitação ao
preconceito e intolerância étnico reli-
giosa, como a tentativa de destruição
de uma imagem (excepcionalmente,
Negra) de Iemanjá, no bairro de Ribei-
rão da Ilha, Florianópolis, SC (Fig. 07).
Historicamente, assim como toda a Figura 06 - Representação eurocêntrica e

Ilha de Santa Catarina (Florianópolis, “madonizada” de Iemanjá

SC), nesta comunidade de ascendência Fonte: Wa Ching (Praia do Cassino, RS: 16/
Julho/2019).
tipicamente açoriana, de identidade
cultural pesqueira e agrícola, e religio-
sidade católica (atualmente, com forte
incidência evangélica), também estão
presentes e atuantes muitos núcleos
afro-brasileiros (remanescentes do pe-
ríodo escravocrata da economia local).

Considerações finais: A Resiliência


Cultural e a Cosmovisão Afro-Brasileira

Nos cenários e contextos intercultu-


rais onde (ainda) predominam a tole-
rância e o respeito, as diferenças entre
as crenças são muito menos impor-
tantes para suas populações do que o
reconhecimento de que cada uma das
múltiplas formas de devoção é, em si,
reveladora do caráter sagrado da vida,
e os ritos são entendidos e assumidos
como a expressão diversificada do di-
vino no humano. Este reconhecimento
é essencial, tanto na convivência na/
pela diversidade étnico cultural e reli-
giosa, como nos muitos e contínuos (re)
arranjos sincréticos entre as mesmas.

171
Desmontar essa matriz colonial, em cientificidade, merecendo um cuida-
decorrência, requer superar a matriz do epistêmico maior (RODRIGUES,
eurocêntrica e a hegemonia do pen- CAVALCANTI, SOUSA, 2016, p. 09).
samento moderno ocidental, através
de alternativas que sejam baseadas Superar as raízes colonialistas, reco-
em outras lógicas, racionalidades, nhecer e aceitar outros modos de ser
modos de ser e de con-viver no mun- e habitar o mundo, destituir o pensa-
do. Exige, portanto, pautar-se em mento moderno ocidental da supre-
diálogos com outros pensamentos e macia que tem ocupado, exige (re)co-
cosmovisões que re-façam a re-liga- nhecer e (re)estabelecer “diálogos com
ção humano-natureza e do mundo outros pensamentos e cosmovisões,
bio-físico e espiritual. Envolve expe- que re-façam a re-ligação humano-
rienciar ensinagens e visibilizar sabe- -natureza e do mundo bio-físico e espi-
res que reconheçam a mãe natureza ritual. Envolve experienciar ensinagens
como condição de todas expressões e visibilizar saberes que reconheçam a
do viver. É urgente, dessa maneira, mãe natureza como condição de todas
outras formas de convivência em que expressões do viver” (RODRIGUES, CA-
o maior legado seja a pluralidade de VALCANTI, SOUSA, 2016: 08).
saberes e o desejo maior de re-inte- Tendo em mente tais devires, fecha-
gração com a natureza. Dentre ou- mos este ensaio com uma imagem
tras possibilidades, optamos por en- representativa da sacralidade, beleza
focar a potência descolonial da mãe e vitalidade do culto a Iemanjá, como
natureza existente na cosmovisão possibilidade criativa de festejo da
africana (RODRIGUES, CAVALCAN- existência, baseada na cosmovisão
TE, SOUZA, 2016, p. 08). afrobrasileira (Fig. 08).

Frente ao panorama de subjugação,


faz-se necessário repensar, compar-
tilhar e difundir outras percepções de
mundo, referidas nas culturas e cos-
mogonias originárias, enquanto estra-
tégia de (re)existência decolonial.

Tais conexões implicam em descolo-


nialidades expressas em disposições
éticas e políticas decorrentes, sobre-
tudo, da menor dissociação entre
os ambientes físicos e humanos (...).
O que reflete, portanto, a premissa
descolonial de que o mundo é diverso
de epistemologias, cuja pluralidade
de formas de conhecimento vão mui-
to além da hegemonia moderna de

172
Figura 08 - manifestação religiosa em homenagem
a Iemanjá (Cassino, RS).

Fonte: Beatriz Rodrigues (Praia do Cassino, RS:


2014).

173
Seguem tal imagem as reflexões nossas emoções, nos conduzam pelo
(espelhos d’alma), que com a mesma oceano compartilhado dos sonhos,
dialogam, de uma fotorreportagem formas pensamento natantes do in-
sobre um espetáculo cênico, concebido consciente coletivo, para adentrarmos
e executado com a consciência do po- outros níveis de percepção e intera-
tencial catalisador das imagens – ima- ção, que nos conectam com seres e
gi(n)ação – para (re)tratar temas tão dimensões outras, para muito além do
densos, profundos e humanos, como a racional, mas sobre o qual retornamos
cosmogonia afrobrasileira e o mito da – fortalecidos, pela diversidade étnico
Grande Mãe: cultural e religiosa que nos sustenta e
enobrece.
Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã dan- Navegando pelas imagens de Ie-
çaram para mim. Ao som de tambo- manjá, percorremos uma (dentre mui-
res, dançaram para mim. Rodaram tas) corrente fluídica, que resgata nos-
suas saias, contaram sua história. sa identidade e dívida cultural com a
Me fizeram chorar e dançaram para Mãe África, e reforça a ligação ances-
mim. Tendo como pano de fundo as tral de cada indivíduo com a Grande
narrativas das orixás femininas – as Mãe, a Deusa. Entendemos que este
Yabás Oxum, Iansã, Iemanjá e Nanã eu coletivo, esta anima afrobrasileira,
– as bailarinas e bailarinos conta- tão repleta de contradições, constitui
ram através da dança as diversas uma cosmovisão afrobrasileira, como
faces da resistência da mulher. In- contribuição ao mundo, enquanto pos-
felizmente uma abordagem pouco sibilidade de reconstrução efetiva e
explorada e discutida, pelo menos afetiva de outros modos de vida, mais
artisticamente: o arquétipo feminino justos e solidários, mais resilientes e
da mitologia africana (...). Próxima a felizes.
mim, uma mulher chora na plateia.
Iemanjá, ao encontrar o bebê, pega- Referências
-o em seus braços e o cria como seu.
Na passagem do tempo, com Oba- AGUESSY, Honorat. Visões e
luaê já adulto, Iemanjá chama Nanã percepções tradicionais (pp: 95-135).
e o apresenta ao seu filho: “Nanã, In: AGUESSY, Honorat et al. Introdução
este é nosso filho”. A cena construída à Cultura Africana. Lisboa: Edições 70,
através de uma coreografia tocante 1977.
e muito expressiva foi de uma delica-
deza profunda. No escuro, meu rosto AGUIAR, Lilian. A arte da pré-história
está lavado em lágrimas. Oxum, Ie- nos períodos Paleolítico e Neolítico.
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Carmem Gessilda Burgert. “Vou levar
flores no mar”: referências religiosas,
culturais e patrimoniais nas festas
de Iemanjá das praias do Cassino

177
NOTAS

Capitulo 7

68 As festas demarcam um fazer coletivo, que representa um momento


oposto à rotina dos sujeitos, uma vez que nela é possível celebrar as
identidades. Para Duvignaud (1983), a festa, assim como o transe, permite
às pessoas e às coletividades sobrepujarem a “normalidade” e chegarem ao
estado onde tudo se torna possível, porque o indivíduo, então, não se inscreve
apenas em sua essência humana, porém em uma natureza, que ele completa
pela sua experiência, formulada ou não (SILVA et al., 2014, p. 03-04).

178
A imagem, o sujeito e a Educação
Ambiental: pensando nos processos
construtivos e (inter)implicações
críticas
Eduardo Silva de Freitas
Sônia Cristina Vermelho

08.
Introdução imagem como suporte de conteúdo
Introdução:

A retórica da imagem significa questionar as formas e os sentidos das men-


sagens visuais em diferentes níveis. Certamente, podemos afirmar que o proce-
dimento de confundir o quadro (ou os limites) da imagem e a borda do suporte,
tem consequências particulares sobre o imaginário do espectador. Quando olha-
mos uma imagem, o corte realizado para sua produção, atribuído mais à dimen-
são do suporte do que a uma escolha de enquadramento, pode ou não levar o
espectador a construir imaginariamente o que não se vê no campo visual da re-
presentação, mas que se completa. Sabemos que na construção da linguagem
visual, o ângulo de tomada e a escolha da objetiva (lente) são determinantes,
pois é o que reforça ou contradiz a impressão de realidade vinculada ao suporte
fotográfico. As objetivas com grande profundidade de campo, conferem uma ilu-
são de profundidade à fotografia e parecem aproximar-se, assim, quase perfei-
tamente da visão natural. A noção de profundidade é devida à utilização de ob-
jetivas de distância focal curtas. Outras objetivas, com distância focal mais longa
(inclusive as teleobjetivas), jogarão com o flou e o nítido, esmagarão a perspecti-
va e farão representações mais expressivas.
Joly (2007), no clássico sobre a leitura de imagens, nos indica que o sentido da
leitura é determinante, da esquerda para a direita para os ocidentais, e o mo-
delo mais convencional é a construção sequencial, que consiste em fazer com
que o leitor percorra o conteúdo, publicitário, por exemplo, para que o olhar re-
caia, no final do percurso, sobre o produto. O trajeto é em Z, que começa no alto
à esquerda, descendo o olhar até chegar ao final da direita. Mesmo sem ter a

180
consciência, somos influenciados pela possibilitam uma experiência cultural
forma como os objetos estão dispo- em que parte da imagem veiculada
nibilizados, em um supermercado, ou pela mídia não remeta a nenhum real,
como os textos são apresentados nas mas a ela própria, o que constitui um
revistas, jornais, blogs e livros diversos. universo autorreferente. Atualmente,
Esses recursos provavelmente são essa prática cultural é ampliada pelas
largamente utilizados em livros didáti- imagens digitais veiculadas pela web,
cos, pois se tratam de técnicas básicas nas plataformas de relacionamen-
de diagramação de material impres- to, conhecidas como “Redes Sociais”,
so. Para esse tipo de uso da imagem, criando uma instância de práticas
Barthes (1984) nos indica que a rela- culturais na qual não se tem controle
ção da imagem com o texto pode ser algum sobre a vinculação da imagem
de dois tipos: com relação à imagem, com o real.
o texto pode cumprir uma função de Sobre essa prática cultural de criar
“ancoragem” ou uma função de “reve- imagens, cabem algumas questões
zamento”. No caso da educação, em para compor nossas reflexões. Roland
geral, a imagem não exclui a lingua- Barthes (1984) distingue três formas
gem verbal/escrita, porque a segunda distintas de práticas relacionadas a
quase sempre acompanha a primeira, fotografia: “o fazer” que se refere ao
na forma de comentários, legendas, operator; “o olhar” que se refere ao
artigos de imprensa, slogans, conver- espectator, “o sofrer” que se refere ao
sas, textos etc. A função de ancoragem spectrum. Segundo Barthes, a fotogra-
consiste em compor texto e imagem fia de uma pessoa numa cabine foto-
de forma a criar uma “cadeia flutuante gráfica ou em uma foto de família, de
do sentido”, para fugir da polissemia moda, de reportagem ou “de arte”, não
necessária que a imagem geraria caso significará a mesma coisa.
ficasse à solta no suporte físico. Isso Dubois (2001) ressalta que uma foto
aparece muito comumente no uso da pode ser considerada uma “prova
legenda da imagem. Já a função de de existência”, porém nem por isso é
revezamento se manifesta quando a considerada uma prova de sentido.
mensagem linguística vem suprir as Barthes se debruça sobre as fotogra-
carências expressivas da imagem, ten- fias e discute fascinado a dupla con-
do que substituí-la. junção entre a realidade e o passado
Para além dos muros escolares, vi- que carrega a imagem. Uma imagem
vemos num contexto social em que nos lembra que, se esse real existiu, é
as imagens alimentam as imagens: porque não existe mais, e a fotografia
encontramos filmes que contam his- torna-se então o próprio signo de que
tórias de quadros ou de fotografias. somos mortais. E com isso, um novo
A própria publicidade está cheia de elemento de fascínio aparece, o da
citações de outras imagens, de outras ligação entre a fotografia e a morte.
publicidades, de obras de arte, de ima- Por isso, Barthes fala-nos de spectrum
gens de televisão, de imagens cientí- quando aborda o sentimento do “so-
ficas etc. Esses desvios permanentes frer” que a fotografia suscita: a partir

181
do momento em que sou fotografa- pontualmente, de acordo com mil
do, torno-me um espectro, uma som- procedimentos, que são como tantos
bra. O mesmo vale para as imagens filtros (...) (DUBOIS, 2001, p. 321).
produzidas sobre o mundo externo, a
natureza. A leitura de uma imagem fotográfi-
Considerando a imagem fotográfica, ca é sempre seletiva. Uma fotografia
ela tem sido associada aos processos sempre esconde mil imagens, atrás
que ocorrem no nosso aparelho psíqui- dela, sob ela ou à sua volta (DUBOIS,
co. Dubois (2001), apoiado em alguns 2001). É um recorte idealizado e rea-
textos de Freud, encontra elementos lizado pelo enquadramento dado e
que relacionam os processos psíquicos que imprime e esconde imagens do
aos processos de produção da foto- real. No entanto, a relação amorosa
grafia. Nessa produção, ocorre uma que temos com a fotografia emerge,
cisão, como afirma esse autor, no ato em grande medida, e isso desde sua
de tomada de um instante do real pro- origem, à vontade, ao desejo humano
cede-se um corte definitivo do cordão de conservar traços de uma presença
umbilical que vinculava aquela ima- que irá desaparecer com o tempo, é o
gem ao mundo. Essa lacuna de tempo “(...) trabalho sobre a temporalidade
– entre o click e sua visualização – e e o jogo complexo entre duração e o
que ainda não está concretizada no instante, a presença marcada, numa
suporte de revelação, é uma imagem das versões, do autorretrato, com suas
latente, que nos proporciona a revela- impossibilidades e seus paradoxos
ção de um tempo e lugar longínquos, enunciativos” (DUBOIS, 2001, p. 139),
por mais próximo que estejam (DU- que vai estar presente no ato de olhar
BOIS, 2001). A materialização da ima- para uma foto e que marca profunda-
gem num suporte é a concretização do mente nossa relação com esse tipo de
passado e do presente, é a memória imagem.
que se concretiza num suporte mate- Por outro lado, Roland Barthes
rial. Essa relação indefinível entre tem- (1984) justifica que a imagem fotográ-
poralidades, o presente e o passado, fica não pode ser aprofundada “[...] por
nas imagens registradas do passado causa de sua força de evidência”. Isso
que são trazidas ao presente, ilustram em função de que “[...] na imagem, o
de maneira complementar o funciona- objeto se entrega em bloco e a vista
mento do aparelho psíquico (DUBOIS, está certa disso – ao contrário do texto
2001). ou de outras percepções que me dão o
objeto de uma maneira vaga, discutí-
Os traços mnésicos escondidos em vel, e assim me incitam a desconfiar do
nosso inconsciente estão ao mesmo que julgo ver” (BARTHES, 1984, p. 157).
tempo sempre todos ali, e sempre A imagem nos apresenta como uma
inteiros. Só sua ascensão à superfície totalidade em si, que não abarca a to-
é seletiva. Todas as virtualidades são talidade do real, mas que no processo
registradas, mas as atualizações na de sua leitura a apreendemos na sua
consciência, as revelações são feitas totalidade, ao contrário da mensagem

182
escrita que difere daquela pela se- vertigens e traz-nos à lembrança o
quencialidade com que apreendemos deus Proteu; parece que a imagem
seu conteúdo. Entretanto, ainda as- pode ser tudo e também o seu con-
sim, com essa diferença, pode-se dizer trário – visual e imaterial, fabrica-
que textos e imagens podem conviver, da e natural, real e virtual, móvel e
“mas a expulsão da letra pela imagem imóvel, sagrada e profana, antiga
asfixia o processo de reflexão. E sem e contemporânea, ligada à vida e à
reflexão nada se conquista” (RAMOS- morte, analógica, comparativa, con-
-DE-OLIVEIRA, 1988, p. 29). vencional, expressiva, construtora e
Nos seus primórdios, recoberta pelas desconstrutora, benéfica e ameaça-
noções de similaridade e realidade, a dora... (JOLY, 2007, p. 29).
fotografia ligava-se à verdade, garan-
tindo autenticidade ao objeto. Conce- Também é importante recordar de
bida como espelho do mundo, ganha- nossos ancestrais que um dos senti-
va estatuto da imitação mais perfeita dos do termo “imagem” é para desig-
da realidade. Ainda que esse discurso nar a máscara mortuária usada nos
sobre a fotografia em parte esteja funerais na antiguidade romana. Há
vencido, a ação de uma imagem foto- que exemplificar que no campo da
gráfica sobre a subjetividade humana religiosidade: “Deus criou o homem à
permanece carregada do indício de sua imagem”, cujo uso deixa de evocar
veracidade, pois, como coloca Dubois uma representação visual para evocar
(2001, p. 26), ao nos depararmos com uma semelhança. Nossa relação com
uma foto, subsiste, apesar de tudo, “[...] a imagem, portanto, remonta os pro-
um sentimento de realidade incontor- cessos de significação e constituição
nável do qual não conseguimos nos da própria linguagem. Instrumento de
livrar apesar da consciência de todos comunicação, divindade, a imagem
os códigos que estão em jogo nela e assemelha-se ou confunde-se com o
que se combinaram para a sua elabo- que representa. Visualmente imitado-
ração”. Ou, como dizia Barthes (1984, ra, pode enganar ou educar. Ainda se
p. 132), “[...] na fotografia, de um ponto emprega o termo “imagem” para falar
de vista fenomenológico, o poder de de certas atividades psíquicas, como
autenticação sobrepõe-se ao poder de as representações mentais, o sonho, a
representação”. linguagem por imagem etc. A imagem
A imagem seria portadora de um mental é elaborada de maneira quase
sentido cativo da significação ima- alucinatória, e parece tomar empres-
ginária, um sentido figurado, consti- tadas suas características da visão.
tuindo um signo intrinsecamente mo- Vê-se.
tivado, ou seja: um símbolo. Para Joly Apesar da diversidade de significa-
(2007), ções da palavra “imagem”, que nem
sempre remete ao visível, apresenta
Uma visão panorâmica das diferen- alguns traços emprestados do visual
tes utilizações da palavra imagem, e depende da produção de um sujei-
ainda que não exaustiva, provoca to: imaginária ou concreta, a imagem

183
passa por alguém que a produz ou formatos, suportes e funções das mais
reconhece. Esse sujeito – podemos diversas.
expandir para as sociedades em ge-
ral – é bombardeado por uma imensa Sociedade urbano-industrial
quantidade de imagens que acabam
por abalar o pleno exercício da mente Para uma reflexão sobre os proces-
humana. Isto se dá por múltiplos flan- sos sociais e o indivíduo, duas questões
cos na realidade brasileira: 1) poucos nos parecem centrais: o modo como a
hábitos de leitura de textos escritos, sociedade (re)produz a vida humana e
que fortalece o poderio da imagem em as instâncias formativas. Sobre a pri-
detrimento dos textos e diminui a au- meira, nossas reflexões se ancoram no
tonomia para a reflexão; 2) o controle marxismo e a segunda sobre a Teoria
implacável dos meios de comunicação Crítica da Escola de Frankfurt. Impor-
pela mídia também dificulta o pleno tante ressaltar essa delimitação, pois,
exercício crítico dos indivíduos (e socie- em se tratando da sociedade ociden-
dade); 3) com a diminuição do exercício tal urbano-industrial, ela nos obriga a
da crítica, “a imagem entra em nossa trazer certas questões para o debate,
mente como entravam os monstros da e nos desobriga de outras. Por exem-
infância: sem restrição, sem limites, no plo, não cabe nesse marco falar de
escuro”; e 4) não conhecemos muito subjetividades ou identidades, de viés
sobre a forma de ação das imagens pós-moderno.
(RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1988, p. 29). Compreendemos que o processo de
Para Joly (2007), a imagem é uma socialização ao qual somos submeti-
ferramenta de expressão e de comu- dos, bem como a formação (formal ou
nicação. Expressiva ou comunicativa, informal) da qual compartilhamos, es-
podemos admitir que ela seja uma tão estruturadas sobre as mesmas ba-
mensagem para o outro – mesmo ses, portanto, considerar que as possi-
quando esse outro somos nós mesmos. bilidades dadas pela sociedade atual
De fato, nem sempre é inútil lembrar de que seria possível emergir subjetivi-
que as imagens não são as coisas que dades ou identidades distintas, permi-
representam, elas se servem das coi- te-nos inferir que tais distinções só são
sas para falar de outras coisas. Essa possibilitadas, se coadunadas com as
reflexão é importante dentro de nosso expectativas de consumo de produtos
texto, como pretenderemos demons- distintos, indicando antes uma espe-
trar ao longo de nossa exposição. cialização e diversificação do mercado
Em face dessas questões, voltamos para responder à necessidades econô-
nossa atenção para pensar sobre o micas, do que possibilitar efetivamente
processo formativo na sociedade atu- que essas subjetividades e identidades
al, considerando sua importância e a distintas, na verdade, se constituam
relação que esse processo tem com a em experiências sociais e subjetivas
vida urbana que pressupõe uma in- diferentes.
tensa convivência com as imagens em Com isso, pretendemos aqui esta-
belecer a relação entre uma reflexão

184
mais ampla sobre o modo como a so- mediada pelas percepções daquele
ciedade ocidental urbana e industrial que se torna um indivíduo (CROCHIK,
possibilita a reprodução da vida e a 1999, p. 261).
discussão sobre a imagem por meio do
conceito de Indústria Cultural, expres- Os processos de mediação pelo qual
são cunhada pelos pensadores eo- transcorre a formação humana estão
dor Adorno e Max Horkheimer. circunscritos num aparato tecnológi-
Inicialmente, portanto, considera- co, o qual submete a cada um certas
mos que a maneira como a sociedade experiências durante sua vida. Em
do Século XX construiu sua narrativa, síntese: somos inseridos num círculo
nos permite inferir que a formação da relacional afetivo ao nascer (a família),
subjetividade atual pode ser compre- depois o círculo relacional da formação
endida quase como a forma “natural” social (a escola), depois a um círculo de
de inserção social. Isso acaba sendo formação de subsistência (o trabalho).
um obstáculo para necessárias trans- Essas experiências, salvo as exceções
formações sociais. Nesse processo, (que existem), fazem parte da experi-
naturaliza também a dominação e o ência humana na sociedade ocidental
sofrimento por meio de mecanismos urbano-industrial. Compreender o indi-
que atuam na subjetividade, desde a víduo hoje somente é possível se bus-
mais tenra idade. Explicado por diver- carmos compreendê-lo na sua relação
sas formas, desde muito cedo somos com a sociedade e com a cultura da
acostumados com a violência, com o qual faz parte, cuja marca, em todos
sofrimento e com a falta de perspec- esses círculos de relacionamento, im-
tiva de que um dia a sociedade possa plica o fenômeno da Indústria Cultural,
ser mais do que isso que vivemos, mais ideologizada pela racionalidade tec-
e além do que nos é dado. De forma nológica. É necessário registrar que do
muito precoce, nosso aparelho psíquico ponto de vista da produtividade, não
vai sendo ajustado aos interesses rela- é irracional destruir pessoas e o meio
cionados à manutenção dessa socie- ambiente para garanti-la.
dade. Ou seja, somos “educados” para Esse traço da formação humana
reproduzir a sociedade, muito mais do que, apesar de todo sofrimento visível
que transformá-la. Concordamos com e iminente, sustenta e defende essa
afirmação de Crochik (1999): sociedade (ocidental urbano-industrial,
alicerçada no consumo) é explicado,
Se a formação individual só é possível em boa parte, porque essas condições,
através da interiorização da cultura, desumanas e destrutivas, encontram
a incorporação (...) [da ideologia da nos indivíduos as condições psíquicas
racionalidade tecnológica] pressu- para a sua permanência: a frieza é
põe necessidades psíquicas que a uma dessas condições, representando
sustentem, uma vez que toda ideo- a capacidade de anular sentimentos
logia também é representada pelos em relação ao outro, condição rela-
membros da cultura, sendo que tal cionada com um determinado tipo de
representação não é imediata e sim

185
personalidade. Nesse sentido, Crochik é capaz de realizá-la. Dentro dessa
(1999) argumenta que, lógica, a sociedade tem se constitu-
ído historicamente por meio de um
Para suportar o sofrimento mundano aparato tecnológico e por uma cultu-
e se adaptar, é necessário desenvol- ra que mantém uma condição na sua
ver a frieza. A sua justificativa se dá base constitutiva: a necessidade de
pela escolha do mal menor ou pela dominação, de exploração do outro e
plena resignação. Mas se o sofrimen- da natureza. A sua forma mais atual
to deve ser evitado, não podendo ser – sociedade capitalista – inseriu mais
enfrentado, o prazer obtido na rela- um elemento que é a dita “liberdade
ção com os outros também é negado. individual”, o que acabou por colocar a
Os interesses individuais devem bus- todos como inimigos diante do quadro
car conforto e abrigo no ‘eu’ (CRO- de concorrência no mercado de traba-
CHIK, p. 266). lho. Por isso,

Com isso, a adaptação – ou socia- se os conflitos sociais forem atenu-


lização como queiram – pressupõe a ados, eles voltam a se manifestar
incorporação da frieza, em medidas entre os indivíduos que mutuamente
distintas para cada um é certo, mas se reconhecem como inimigos. A do-
também ao tentar evitar o sofrimento minação presente na relação com
que ainda subsiste, apesar da frieza, a natureza, que supostamente foi
se nega também a possibilidade do necessária para a sobrevivência da
prazer. Nesse sentido, Freud indaga: espécie, reproduz-se no nível indivi-
“Como foi que tantas pessoas vieram dual. A abdicação da consciência do
a assumir essa estranha atitude de que seria possível pela ação coletiva
hostilidade para com a civilização?” racional nos impele à sobrevivência
(FREUD, 1997, p. 38). É certo que para individual (CROCHIK, 1999, p. 266).
vivermos em coletividade temos de
renunciar à satisfação de muitos dos Na sociedade, isso vem se expres-
nossos desejos individuais; o recalca- sando por um contexto social que nos
mento é o que garante a formação do coage, levando-nos a uma relação
eu e as simbolizações sucessivas à qual com o outro calcado na competiti-
submetemos nossas pulsões. Mas o vidade, marcada por uma crescente
que vemos, conforme Freud (1997) nos racionalização de todas as esferas da
esclarece, é que nossos desejos indivi- vida. Crochik (1999) defende que essa
duais, sublimados ou reprimidos, não organização social fornece as condi-
estão sendo compensados com o alívio ções para que, sob a égide da tecnifi-
da angústia e do sofrimento para (re) cação, se escamoteie a ação destruti-
produção da vida. va dos indivíduos em relação ao meio
Continuamos reprimindo nossos ambiente e aos outros. Do ponto de
desejos individuais em nome de uma vista estritamente psíquico, de alguma
vida melhor e, sistematicamente, ela forma a energia psíquica reprimida
nos é negada porque a sociedade não para se inserir socialmente tem que

186
ser sublimada, e nos marcos da socie- Nesse sentido, ao tratar do proces-
dade capitalista, a sublimação cana- so formativo, tendemos a considerar
liza a energia tendencialmente para a que essa sociedade atua muito mais
violência, e para a frieza, o que acaba no sentido da manutenção do estado
por gerar grupos sociais com compor- de menoridade dos indivíduos, difi-
tamentos e características pautados cultando a todos a plena consciência
pelo preconceito, pela violência. da irracionalidade desse modo de or-
Nos tempos modernos poderíamos ganização social e utiliza, para tanto,
citar inúmeras situações noticiadas mecanismos que atuam no aparelho
pelas mídias sobre extermínios/vulne- psíquico. Alguns desses mecanismos
rabilidades de índios, negros, islami- foram tratados pelos estudos da Esco-
tas etc. Tudo que foge do padrão de la de Frankfurt, condensados sobre os
comportamento do ocidental europeu conceitos de glamourização, estandar-
branco, é considerado diferente. Al- tização e pseudo-individuação69, cujo
guns “diferentes” já são tolerados em resultado é a regressão do indivíduo a
função dos séculos de luta contra a estágios da infância de seu desenvolvi-
discriminação, caso dos negros, mas mento psíquico.
outros ainda estão na mira das balas A formação do indivíduo no pro-
dos fuzis capitalistas. Destacamos que cesso civilizatório, desde os tempos
essa “tolerância” é bem relativa, ao mais remotos, caminha em parceria
passo que não podemos simplesmente com a contradição, que expressa me-
pensar em uma “noção socialmente canismos cada vez mais sofisticados
indiferenciada das populações afeta- de dominação, seja da natureza, seja
das” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, dos próprios homens, desenvolve, por
2009, p. 12). Os processos capitalistas outro lado, a possibilidade de liberta-
vulnerabilizatórios que tensionam es- ção, uma vez que acirra o sofrimento.
ses grupos são fortemente presentes Essa última face formativa se dá pela
em nossas sociedades, trazendo riscos necessidade de buscar a sobrevivên-
iminentes. cia material por meio de um trabalho
Também é essa frieza que marca alienante e degradante, e pela com-
nossa formação subjetiva que per- preensão desses mecanismos, já que
mite a cada um suportar os números as possibilidades de libertação vêm
de morte publicizados pelos dados sendo negadas.
estatísticos, proclamados como me- A prometida libertação no mundo
ras cifras; só com pouca ou nenhuma material objetivo é adiada porque no
sensibilidade com a morte e com o plano subjetivo ocorre uma real su-
sofrimento alheio é que é possível su- bordinação e dominação. Nessa tra-
portar tamanha violência, vislumbrada jetória, aquilo que nos permitiu sair da
todos os dias na rua e nas imagens animalidade, nosso pensamento refle-
veiculadas pela mídia. A frieza apare- xivo na relação com o real, vem sendo
ce como uma máscara para esconder aniquilado. Como disseram Adorno e
o sofrimento gerado pela luta para a Horkheimer, “no trajeto da mitologia
autoconservação. à logística, o pensamento perdeu o

187
elemento de reflexão sobre si mesmo, pelo indivíduo mediante a formação
e hoje a maquinaria mutila os homens de um ego bem estruturado, capaz de
mesmo quando os alimenta” (1985, p. lidar com as limitações que o coletivo
48). Isto tem feito com que os indivídu- coloca sem cair necessariamente nas
os busquem outras formas de compen- malhas da integração total. É um in-
sação pelo aumento da repressão das divíduo que tem real liberdade de es-
pulsões, por uma repressão da satis- colha, não liberdade de escolha entre
fação dos desejos que é maior do que aquelas que melhor sirvam ao merca-
a necessária para manter a vida em do e a acumulação de capital, fenô-
coletividade, o que Marcuse (1975) vai meno cada vez mais naturalizado em
chamar de mais-repressão. O resul- nosso tempo.
tado é que tem gerado cada vez mais A sociedade atua sobre os indivídu-
personalidades com características os limitando ou cerceando escolhas e
narcisistas, o que foi observado indire- eliminando sua capacidade de decidir
tamente nas investigações de Adorno autonomamente. O movimento da
et al. (1965) e de Crochik (1999). Ilustração tem relação com isso, pois
O narcisismo está vinculado a uma prometeu uma dada formação que de-
personalidade com traços fortemente veria ter permitido a vida em socieda-
individualistas, daí a frieza. Os me- de longe dos medos, sofrimentos e ris-
canismos sociais para fazer frente ao cos que a natureza nos impunha, bem
individualismo estão sendo pratica- como da necessidade de labuta para
mente eliminados da experiência hu- garantir a sobrevivência. Essa forma-
mana. Na sociedade convivemos com ção estava intimamente ligada a uma
regras, normas, costumes os quais atu- ideia de sociedade “sem status e sem
am exaltando o individualismo, somos exploração” (ADORNO, 2005, p. 5). En-
submetidos ao longo da vida a situa- tretanto, aquilo que era pressuposto
ções em que o que se valoriza é o su- para a realização dessa formação, a
cesso individual: vale mais aquele que autonomia, “No entanto, o a-priori do
se esforça individualmente; só vence conceito de formação propriamente
na vida quem aposta em si mesmo e burguês, a autonomia, não teve tempo
na sua valorização; meritocracia, em- algum de constituir-se e a consciência
preendedorismo individual e assim por passou diretamente de uma heterono-
diante. E por outro lado, por cinismo ou mia a outra” (ADORNO, 2005, p. 7).
ignorância, lemos e escutamos discur- Se em tempos remotos éramos guia-
sos em prol da fraternidade, da coope- dos pelos dogmas e pelas leis divinas,
ração, da solidariedade, da preserva- atualmente as leis que nos comandam
ção; e é o que menos vemos na prática. são engendradas pelo mercado, pela
A formação em nossa sociedade, economia e também pela Indústria
considerando o individualismo vivido Cultural. A base da exploração conti-
e as ilusões que nos apresentam na nua a ser as relações de produção, e
prática, não vem formando-nos, de isso ainda não foi modificado. O que
fato, como indivíduos. Formação tem se configura de novo no sistema ca-
relação com a conquista da autonomia pitalista é que, se anteriormente essa

188
condição de menoridade estava dada Para além do mundo do trabalho,
basicamente aos trabalhadores, aos isso concretamente coloca a questão
despossuídos das condições de aces- de que atualmente vivemos “(...) em
sar aos bens culturais, a partir da as- face da inimaginável pressão exercida
censão da burguesia e da concretiza- sobre as pessoas, seja simplesmente
ção da sociedade baseada nas trocas pela própria organização do mundo,
mercantis, a heteronomia se estende seja num sentido mais amplo, pelo
a todos mediante a pseudoformação controle planificado até mesmo de
cultural. A pseudoformação entendi- toda realidade interior pela Indústria
da como “(...) o espírito conquistado Cultural” (ADORNO, 1995, p. 181), fa-
pelo caráter de fetiche da mercadoria” zendo com que os meios para a su-
(2005, p. 15-16), tende a levar todos à peração da pseudoformação estejam
não diferenciação e à não elevação do sendo cada vez mais danificados. En-
eu à condição de autodeterminação. tretanto é somente a partir de uma crí-
A sociedade atual, administrando tica à pseudoformação que consegui-
a vida das pessoas até as instâncias remos construir alternativas concretas
mais íntimas, como afirma Adorno para a superação desse estado.
(2005, p. 10), “modelada até as últimas Então, qual direção seguir? As saí-
ramificações pelo princípio da equi- das pela virtualidade, nos refúgios das
valência”, consegue reproduzir-se a si Redes Sociais, estão muito em voga
mesma e, consequentemente, repro- atualmente como alternativa ao caos
duz esse estado de pseudoformação social no qual vivemos, contudo, qual-
nos sujeitos, e este, por seu turno, “não quer alternativa que deixe ao largo a
se confina meramente ao espírito, transformação das bases reais, ma-
adultera também a vida sensorial. E teriais e subjetivas, dessa sociedade é
coloca a questão psicodinâmica de ilusão, é mito; portanto, contribui muito
como pode o sujeito resistir a uma ra- mais para a sua manutenção tal como
cionalidade que, na verdade, é em si está do que para sua transformação.
mesma irracional” (ADORNO, 2005, p. A sociedade vem perpetuando a con-
15). Como expõe Crochik (1999): tradição social, contrapondo os indi-
víduos na busca pela sobrevivência e
A realização efetiva do homem, a dificultando suas realizações conforme
possibilidade de viver a vida com um suas próprias determinações e, “en-
fim em si mesmo, depende de sua quanto isto ocorre, a sociedade forma
retirada do mundo do trabalho alie- as pessoas mediante inúmeros canais
nado. Esse, contudo, tem sido a base e instâncias mediadoras, de um modo
da constituição do indivíduo desde tal que tudo absorvem e aceitam nos
a antiguidade, aparentado que foi termos desta configuração heterôno-
à ideia de sacrifício em nome da co- ma que se desviou de si mesma em
letividade. Isso significa que o que sua consciência” (ADORNO, 1995, p.
conhecemos como indivíduo, nos dias 181). Essas instâncias mediadoras são
de hoje, é a sua negação (CROCHIK, também os meios de comunicação
1999, p. 14). de massa, as mídias, as produções

189
culturais que apresentam um simula- possibilidades de autodeterminação
cro de sociedade que, em muitas situa- são poucas, pois a vida se torna um
ções, constrói imagens a partir de ima- tempo de produção e de consumo de
gens, vendendo um mundo imaginário produtos que não são fruto de necessi-
como sendo o real. dades reais, mas criadas pela indústria
A Indústria Cultural subordinou a da produção e forjadas como necessi-
produção de bens culturais fazen- dade pela Indústria Cultural.
do com que sua dimensão crítica se A possibilidade de relações calcadas
tornasse um conjunto de fórmulas na solidariedade e na fraternidade
prontas e inofensivas ao sistema. Ela está se tornando cada vez mais difícil,
atua de forma dinâmica e cria um pois ao invés de nos aproximarmos
amálgama para as contradições da porque entendemos que formamos
sociedade, alicerçando em boa parte uma coletividade, que é mais que a
as condições para sua manutenção soma de cada um individualmente,
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Com lançamo-nos uns contra os outros
isso, a realização da pseudoformação, para garantir a própria sobrevivência.
da coisificação da consciência, da neu- O resultado disso é que as pessoas se
tralização das forças de resistência é sentem cada vez mais sozinhas, ame-
o que a sociedade tem proporcionado açadas, carentes de afeto e de amor,
como experiência social. As consequ- ainda que os mecanismos de socializa-
ências são visíveis na formação de ção e os meios de comunicação este-
personalidades cuja frieza lhes per- jam se ampliando e ficando cada vez
mitem projetar armas de guerra mais mais sofisticados. Apesar de vivermos
eficazes; criar tecnologia para liminar num tempo em que as possibilidades
postos de trabalho, sabendo que só se de comunicação humanas nunca fo-
garante a vida material com trabalho; ram tão desenvolvidas, contraditoria-
de criar sementes transgênicas sem se mente nos distanciamos cada vez mais
preocupar com os resultados para as das pessoas, nos comunicamos cada
próximas gerações; em distribuir agro- vez menos, pois nossa capacidade de
tóxicos para garantir a produtividade ouvir, sentir, de reagir a tudo e a todos
etc. que nos cerca vem sendo diminuída.
Em decorrência, o narcisismo indi- Essas são tendências que marcam
vidual e coletivo ao voltar-se para si nosso tempo.
mesmo ou para interesses coletivos do Diante disso é que propomos que
endogrupo, faz com que as pessoas seja trazida para pensar essa socie-
tenham cada vez mais dificuldades em dade urbano-industrial, bastante
se identificarem com o outro. Como marcada pelo consumismo, ainda
seus instintos estão sendo reprimidos cindida em classes, e formadora de
em níveis cada vez maiores, acabam desigualdades, a Educação Ambien-
buscando vários outros canais para tal Crítica e sua relação com o uso das
liberarem suas insatisfações: po- imagens. Sem pretensões de esgotar
dendo ser o espaço em que convive, o assunto, delimitamos um fragmento
a natureza ou o próprio homem. As do campo da Educação Ambiental – o

190
espaço – para realizar esse exercício No caminho do mal menor, a popu-
de reflexão. lação imbuída da frieza que constitui
tendencialmente a psique, trata desse
Espaço urbano capitalista problema como “anomalia” e, na im-
possibilidade de resolvê-lo, ignora e
A escolha da categoria espaço para nada faz para transformar esse con-
essa discussão tem motivações polí- texto. Em relação ao espaço urbano,
ticas. É no espaço e na forma como é para compor nossas reflexões, cabem
organizado que se vê materializado algumas considerações.
de maneira mais evidente o processo De acordo com Santos (1988), o
de destruição e aniquilamento da so- espaço é um objeto privilegiado da
ciedade em nome da produtividade Geografia, no entanto, vários outros
e lucratividade do capital, que utiliza campos do conhecimento vêm se
e despreza a natureza e as pessoas aventurando a discuti-lo. Segundo o
em nome de sua manutenção. Um autor: “O espaço não é nem uma coisa,
exemplo cruel são as favelas no Bra- nem um sistema de coisas, senão uma
sil em expansão nos grandes centros, realidade relacional: coisas e relações
resultadas em grande parte pela eli- juntas” (SANTOS, 1988, s/p.). Tal ideia
minação de parcela da população é ratificada por Gil Filho (2005), no
do mercado de trabalho. A formação que diz respeito à forte característica
dos bairros dos excluídos faz parte de de interdependência presente nessa
uma trajetória de exclusão de parte da categoria.
população, que ora é reserva de mer- Também Lefebvre (2006) aproxi-
cado, ora é expurgo mesmo. Para ma- ma-se desse entendimento: “Desse
nutenção do sistema produtivo e eco- espaço, deve-se dizer que ele implica,
nômico, os capitalistas não precisam contém e dissimula relações sociais.
mais desse contingente das favelas. A Se bem que não seja uma coisa, mas
solução: isolamento da área; delimita- um conjunto de relações entre as coi-
ção para criar barreiras para que essa sas (objetos e produtos)” (LEFEVBRE,
população não saia de lá; eliminação 2006, p. 125). Assim, podemos falar em
de políticas que faz com que fiquem ao um espaço que se caracteriza por uma
seu próprio destino; e eventualmente o realidade relacional que se dá a partir
Estado lhes dá alguma sobrevivência da articulação social entre pessoas e
para manter as aparências. objetos, sendo a percepção subjetiva
Desse exemplo, invariavelmente do sujeito, o modo pelo qual edifica-se
duas situações acontecem na forma o conhecimento do espaço. O espaço
como a Indústria Cultural trata a fave- não seria um fenômeno cristalizado,
la: ora a mídia trata de vitimizar, ora mas um ambiente de possibilidades
de criminalizar; a população, com a relacionais e nesse processo constitu-
imagem construída sobre esse espaço, tivo se estabelece talvez a mais im-
ora o ignora (apagando-o da memória portante forma de se relacionar com a
social), ora o teme (excluindo-os sub- natureza, que é o trabalho.
jetivamente por meio do preconceito).

191
Os campos científicos não são material própria, mas sua existência
unívocos a respeito da conceitua- social somente lhe é dada pelo fato
ção do termo ‘espaço’, o que conduz das relações sociais estarem presentes
Pino (1996) ao entendimento de que e atuantes (SANTOS, 2006).
o conceito de espaço demanda uma A produção do espaço, no caso, ur-
noção multidisciplinar, e não apenas bano capitalista, é fruto de acúmulos
um agregado de pontos de vista di- de ações criadas por aqueles que pro-
ferentes. O argumento desse autor é duzem e consomem espaço, os agen-
que o espaço é representado por nós, tes sociais concretos. Estes agentes
não apenas como algo em si, mas as- são, de acordo com Corrêa (1993), os
sociado a uma experiência sensível. proprietários dos meios de produção;
Por isso, o espaço pode ser entendido os proprietários fundiários; os promo-
como relacional e que abarca tanto a tores imobiliários; o Estado; e os traba-
‘coisa em si’ como a ‘coisa percebida’70, lhadores e os grupos sociais excluídos.
sendo esta a única forma de acesso à Carlos (2007, p. 11) argumenta que o
realidade, expressa por uma conversão espaço, que foi apropriado e transfor-
de sinais. mado pela ação humana, é o elemento
Na condição de sujeito-objeto de central que constitui a existência hu-
observação, o homem não só percebe mana, e o espaço urbano, de forma
o movimento dos seres vivos em inte- específica, se revela “condição, meio e
ração e as mudanças de posição dos produto da ação humana – pelo uso –
objetos em relação a outros objetos, ao longo do tempo”, caracterizando-se
mas percebe também seus próprios em um lugar de amplitudes, abarcan-
movimentos em interação com os dos do as possibilidades de projetos que
outros, sujeitos ou objetos, que consti- podem garantir ou não nosso futuro.
tuem seu meio. Importante salientar que a decisão so-
A afirmação de que o espaço tam- bre o uso do espaço fica sempre para
bém é uma representação feita por aqueles que se apropriaram do espa-
indivíduos implica a posição de que o ço físico: os proprietários fundiários e
espaço real é relativo, e não apenas imobiliários. Aos demais grupos huma-
material, pois depende de uma série nos cabe ajustar-se aos seus interesses
de fatores associados às produções ou ficar fora dos espaços delimitados
sociais. Para Santos (2006), além dos pelos proprietários.
objetos geográficos, dos objetos na- Exemplo disso são as “zonas de sa-
turais e dos objetos sociais, a vida crifícios”, conceito discutido pelo movi-
participa também da constituição do mento de justiça ambiental, “onde as
espaço, dito de outra forma, o espaço vidas são mais baratas e os perigos e
constitui-se também pela sociedade riscos de acidentes invisibilizados ou
em movimento, que preenche e anima- subestimados” (RAMIARINA, 2016, p.
-o. Dessa forma, espaço reúne a mate- 66); e a correlação que faz essa autora,
rialidade e a vida que o anima. A con- com a expressão “populações de sacri-
figuração territorial, ou configuração fícios”. Para ela,
geográfica, tem, pois, uma existência

192
(...) estas pessoas mesmo ao saírem O espaço urbano é tratado por Cor-
da localidade onde moram sofrem rêa (1993) como um complexo conjunto
outros tipos de violação de direitos de usos da terra. Fragmentado e arti-
nos precários deslocamentos pro- culado, é expressão da sociedade ca-
porcionados pelo sistema público de pitalista, tanto das ações do presente
transporte (sobretudo entre regiões como daquelas realizadas no passado,
populares), no tratamento a elas que deixaram suas marcas dos perío-
destinado em sistemas de saúde pú- dos e das fases econômicas e tecnoló-
blicos, nas baixas expectativas a elas gicas do sistema econômico.
atribuídas em suas trajetórias esco- Sennet (2014), no estudo que faz
lares, no preconceito que sofrem por do espaço público, explicita como as
sua cor, por seus trajes, por sua fala. grandes cidades europeias dos sécu-
Tal termo destaca então a articula- los XVIII e XIX – Paris e Londres – mu-
ção de violações de determinados di- daram a configuração da cidade em
reitos individuais e coletivos em duas função da passagem do modo de pro-
dimensões: enquanto destinadas a dução feudal para o modo de produ-
moradores de zonas de sacrifício e ção capitalista. A industrialização e a
quando estes moradores saem de produção em escala de produtos trou-
seu local de moradia e transitam pela xeram como resultado uma profunda
cidade. Compondo, enfim, a grande transformação nos processos de uso
parte da população a qual se destina do espaço, e Londres e Paris reforma-
o ônus da manutenção de um modelo ram o espaço urbano para se adequar
de desenvolvimento pautado numa às exigências que esse modelo econô-
estrutura societária desigual na dis- mico trazia. Paris abriu grandes bule-
tribuição dos bens e na qualidade vares para permitir um deslocamento
de vida e que tem sua humanidade melhor entre os consumidores e os
reduzida à esfera discursiva (RAMIA- centros de venda de produtos; Londres
RINA, 2016, p. 66-67). organizou os bairros em função dos
níveis socioeconômicos, estratificando
A cidade, como espaço urbano, per- também o comércio.
mite uma abordagem particular a par- Aqui no Brasil, esse movimento ur-
tir da percepção que seus habitantes, banístico ficou evidente a partir da
ou algum de seus segmentos, têm dela década de 1920, com o surgimento do
e de suas partes. O estudo das cidades urbanismo, uma nova disciplina, que
nos possibilita tratar e reconhecer os trazia uma concepção mais sistêmica
conflitos sociais onde se manifestam da cidade (no cenário da capital – Rio
e se aprofundam as contradições do de Janeiro), visando seu embeleza-
mundo moderno (CARLOS, 2007). No- mento. Essa disciplina, de certa forma,
ta-se que a complexificação da vida complementava a visão médico-cien-
contemporânea vem reclamando, e tífica e foi durante este período que as
mesmo impondo, um redirecionamen- campanhas contra as favelas no país
to de nossas ações para esses aspec- foram intensificadas. Diante disso,
tos, contraditórios por natureza. a remodelação do Rio foi pensada e

193
várias fotos, tiradas das favelas ca- evidenciar, ainda de forma mais enfá-
riocas por simpatizantes à causa da tica, a questão de poder que perpas-
remoção desses espaços, foram usa- sa a organização do espaço urbano e
das como justificativas nesse processo. suas contradições, que se apresentam
Mas, foi através de um filme de cerca em diferentes grupos de interesse.
de dez minutos, realizado por Mattos O espaço urbano evidencia uma
Pimenta , “As favellas”, patrocinado contínua guerra espacial, revelando-se
pelo Rotary Club do Rio de Janeiro, como um campo de batalha (BAU-
que se ampliou o sucesso dessa em- MAN, 1999), onde uma elite, pequena,
preitada em desqualificação do espa- pode se defender através de grades
ço das favelas, afinal, “um filme, bem e outros instrumentos de segurança,
divulgado, deveria causar, com suas condição não compartilhada pelo ‘res-
imagens, impacto muito maior junto à tante’ da população, pelos trabalha-
opinião pública, sobretudo em respal- dores. Como excluídos, respondem de
do a uma grande campanha” (VALLA- alguma forma a esse processo. Como
DARES, 2000, p.16). Podemos perceber explicita Bauman (1999):
que a questão da imagem é recorrente
nos processos socioeconômicos. Aqueles incapazes de fazer de sua
Nota-se, entretanto, que a despeito vida separada uma questão de se-
das metas urbanísticas e das visões gurança estão na ponta receptora
médico-científicas que defendiam do equivalente contemporâneo dos
essa interferência no espaço físico da guetos do início dos tempos moder-
Capital Federal, havia também uma nos (...). Os habitantes desprezados e
preocupação de base econômico-de- despojados de poder das áreas pres-
senvolvimentista que sustentava essas sionadas e implacavelmente usurpa-
justificativas de remoção que então das respondem com ações agressivas
ocorreram. É possível afirmar que o es- próprias; tentam instalar nas frontei-
paço urbano é mutável e condicionan- ras de seus guetos seus próprios avi-
te da sociedade, sendo marcadamente sos de “não ultrapasse” (BAUMAN,
um espaço de intensas desigualdades, 1999, p. 29).
guardando similitude com o próprio
sistema que o organiza, o que nos Nesse sentido, podemos dizer que
permite nomeá-lo de espaço urbano as imagens construídas pelos veículos
capitalista. de comunicação – não exclusivamente,
Oliveira (2002) argumenta que o es- mas especialmente – sobre os locais
paço urbano é demarcado como um destinados aos pobres nas cidades
campo “complexo onde se posicionam alimentam uma narrativa sobre esses
interesses e paixões, apresenta desa- lugares, cuja representação ancora em
fios concretos para os responsáveis larga medida os processos de sociali-
pela política urbana nos grandes cen- zação: são locais perigosos, portanto
tros e tem consequências palpáveis devem ser evitados; os moradores não
no cotidiano das cidades” (OLIVEIRA, são confiáveis ou não são pessoas
2002, p. 11). Tal entendimento parece que se esforçam na vida, por isso essa

194
condição. Na lógica do individualis- sido algo de difícil mobilidade. Reco-
mo e da meritocracia, a imagem que nhecem que:
se cria das favelas e, por corolário, de
seus moradores, é de que o mundo é (...) a presença das favelas é algo já
ruim por culpa deles. São imagens re- consolidado – muito embora o desejo
presentativas que escondem por trás a remocionista ainda permaneça – os
verdadeira face do sistema econômico setores dominantes da sociedade ca-
capitalista: a exclusão e a miséria que rioca tiveram que criar mecanismos
é gerada pela forma como esse siste- que possibilitassem a manutenção de
ma organiza a vida em sociedade. A seu modo de vida, sem que para isso
favela, como um tipo de uso do espaço fosse necessário explodir as favelas,
urbano, não é uma excepcionalidade, como muitos desejariam (FERNAN-
é a regra no capitalismo. Pode-se en- DES, 2005, p.10).
contrar favelas mais ou menos estru-
turadas, mas que não deixam de ser Um desses mecanismos implantados
favelas. pelos setores dominantes é o de trans-
Como observou Fernandes (2005), o formação do espaço de favelas como
que se pensa sobre as favelas revela destino turístico71, portanto uma (re)
que ela seja produção do espaço urbano. O termo
favela é, inclusive, utilizado como im-
(...) o lugar por excelência da violên- portante marca, como nos demonstra
cia, onde nascem e vivem os bandi- Freire-Medeiros (2007). A favela que é
dos da cidade. Cabe considerar, que resultado do expurgo de parte da po-
esta visão não é recente; aparece nos pulação, é transformada de objeto de
noticiários da época que relataram o observação turística, retornando em
surgimento das primeiras favelas da capital aos já possuidores de capital:
cidade (FERNANDES, 2005, p. 3). a favela ao mesmo tempo que é “lixo”
pois é improdutiva para o sistema
Certamente, para a sociedade, há produtivo, torna-se um “lixo” lucrativo
que se criar uma narrativa sobre a fa- para o sistema de serviços, pela via do
vela para que não mostre o que real- turismo. Freire-Medeiros (2007) afirma
mente ela é: resultado direto do modo que os moradores das favelas prati-
de produção capitalista. Para Prete- camente não usufruíam das benesses
ceille e Valladares (2000, p. 460), “Tudo do mercado turístico, pois não havia
faz crer, assim, que a representação distribuição de lucros e o reinvestimen-
tradicional e a imagem consagrada da to do capital era mínimo, configuran-
favela devam ser revistas e atualiza- do-se em geral através de caridade.
das”. No sentido de um dado encobri- Isto demonstra que o desenvolvimento
mento da realidade, uma das revisões social na favela praticamente inexiste,
que são feitas pelos próprios setores reproduzindo assim as desigualdades
dominantes é o de transformação do lá encontradas pelos turistas. Os fave-
espaço das favelas, justificando que a lados permanecem na condição de as-
convivência nas grandes cidades tem sistidos, quando muito. Esse contexto

195
mostra uma das facetas mais obscuras complexo biodiverso tão significante,
do capitalismo: de transformar tudo os sujeitos entrevistados pudessem
em produto a ser comercializado, inclu- desconsiderar as potencialidades de
sive a miséria que engendra. É a explo- um meio ambiente equilibrado para
ração da miséria. Como compreender suas vidas, direcionando o referido
essa irracionalidade, senão por me- espaço ao apetite do mercado imobi-
canismos psíquicos já assimilados por liário. Chama a atenção o fato de que
grande parte da população? os diversos grupos sociais que utilizam
Também é interessante nessas re- o local, predominantemente trabalha-
flexões incluir as questões ambientais, dores, não reconhecem as tensões so-
em especial as representações que a ciais presentes naquele espaço, sequer
sociedade faz do meio ambiente. Isto compreendem, que os mais afetados
porque tais abordagens, bem como com a destruição daquele bioma serão
àquelas do espaço, são muito impor- eles mesmos, pois os donos dos recur-
tantes para pensarmos as possibili- sos moram em outros lugares.
dades para uma Educação Ambiental Isso é recorrente na sociedade urba-
Crítica. na capitalista, e é por isso que, recu-
perando o pensamento de Sato (1997)
Meio Ambiente, aparência e essência de que devemos nos concentrar nas
representações, discordamos parcial-
A educadora Michèle Sato (1997, p. 3) mente dele, entendendo que conhecer
defende que as representações sobre o as representações torna-se importan-
meio ambiente “(...) bem como as suas te, mas para além disso, devemos pen-
modificações ao longo do tempo que sar e atuar sobre as causas (essência)
importam: é nelas que se busca intervir dessas representações (aparências),
quando se trabalha o tema ambiente”. pois elas são impulsionadas pela mí-
Assim, sobre o entendimento que se dia articulada ao sistema econômico
tem sobre meio ambiente, suas repre- vigente que vem alimentando, de for-
sentações ou imagens, é que deve atu- ma contínua, a voracidade do sistema
ar a educação ambiental. capitalista e sustentando lógicas so-
De acordo com Freitas (2006), a par- ciais que afastam o reconhecimento
tir de uma investigação a respeito das da importância de um meio ambiente
representações sociais de um espaço equilibrado. Nesse sentido, nos parece
florestal, essas questões apareceram. adequada a conceituação de espaço
A pesquisa tratou de uma área de de Henri Lefebvre (2006), quando afir-
proteção ambiental, remanescente de ma que esse se apresenta como um
mata atlântica, de inegável riqueza so- instrumento de controle, que auxilia
cioambiental que teve sua importância o capitalismo a manter o status quo,
para o bioma obscurecidos pela ima- mas também, nos dizeres de Baltazar
gem que se construiu do lugar ligada (2010), um instrumento para a resiliên-
ao entretenimento, ao lazer, de forma cia72, tanto para a adaptação quanto
marcadamente utilitária. Surpreen- para a transformação social.
deu o pesquisador, que diante de um

196
O problema é que o uso do espaço, ser e de viver. As imagens alimentam
predominantemente, tem servido à a “alma” e surgem ou desaparecem
economia capitalista como um meca- de nossa memória a partir de “filtros”
nismo de resiliência adaptativa, alicer- criados pelas experiências que o en-
çando o controle de modos alternati- frentamento com o real nos coloca. Por
vos de produção. Foi isso que vinculou outro lado, elas, por sua velocidade
a produção capitalista com um dado instantânea, incorporam-se às nossas
crescimento econômico, o qual gera experiências, de forma que não temos
um mal-estar insustentável nos dias tempo para metabolizá-las de forma
atuais, na busca por uma vida melhor, adequada muitas vezes. É no exercício
grosso modo, que não nos é permitida crítico que podemos mitigar esse pro-
pela irracionalidade e pelas contra- cesso, tendo em vista certa autonomia
dições inerentes ao capital, conforme do pensamento.
discutido anteriormente. Para além das necessidades estri-
tamente biológicas, essenciais para
Em direção a uma síntese manutenção da vida física, as ditas
necessidades subjetivas são alimen-
Tentaremos agora articular as ques- tadas fortemente pelas imagens com
tões discutidas acerca das imagens, as quais lidamos no cotidiano que ora
da formação dos sujeitos na socieda- nos induzem para um lado, ora para
de capitalista e a questão ambiental, outro. Basta pensar sobre o que é a
extremamente importantes na con- moda. Moda é uma invenção humana
temporaneidade. Retomemos alguns que opera no nível do desejo subjetivo,
aspectos relacionados à imagem. em geral, absolutamente desneces-
Primeiramente, gostaríamos de sário, mas que por meio das imagens
retomar a noção de spectrum de e ideias veiculadas em torno dos ob-
Barthes, do sentimento associado à jetos, criam nas pessoas a condição
imagem, operador pela cisão que a subjetiva para seu consumo, o que está
imagem provoca no mundo, desasso- no cerne do que Karl Marx denomina
ciando o real de uma representação de “Fetiche da Mercadoria” e Herbert
sobre ele. Dessa cisão, emerge uma re- Marcuse atualizando o conceito passa
lação indefinível entre temporalidades, a chamar essas necessidades de “Fal-
reconstruindo nosso aparelho psíquico sas Necessidades”.
em termos de suporte à noção de tem- Pensamos que nossa relação, por
pos passado, presente e futuro. A cria- exemplo, com a fotografia, advém de
ção de imagens alicerça a noção de nossa incapacidade em nos manter
tempo linear, o que sustenta subjetiva- vivos, a certeza da morte na cultura
mente – e em seguida objetivamente ocidental ainda não é aceito; o desejo
– a sensação de que a vida e o mundo humano de conservar traços de uma
estão presos à dimensão temporal li- presença que irá desaparecer com o
near. Os sentimentos de nostalgia e tempo, revigora e potencializa a pro-
de esperança que alimentam nosso dução de imagens e a incorporação
cotidiano conformam um modo de das mesmas nos processos sociais.

197
É como se fosse natural hoje termos um início e não pudesse ter um fim.
imagens circulando em todos os lu- Devemos estar atentos para isso. À
gares e momentos, imagens de ou- sedução e à força provocada pela ima-
tros lugares – reais ou fictícios – nos gem, precisamos contrapor, construin-
transportam rompendo com os limites do e reconstruindo a crítica cultural.
do espaço e da nossa capacidade de O uso que é dado às imagens opera
locomoção. muito mais no sentido de reforçar essa
Complexificando a questão, a ima- ideia – de perpetuação do capitalismo
gem, em especial a fotográfica, nos enquanto forma de organização social
toma por sua força de evidência e em – do que de mostrar suas mazelas e a
bloco. Diferentemente do texto, a lei- necessidade de sua superação. A clas-
tura da imagem se dá num todo, o se trabalhadora está sendo prejudica-
olhar é tomado como as experiências da e parte dela dizimada pelo sistema.
com o real, pela totalidade que o com- As distopias cinematográficas não são
põe. Porém a imagem não é o todo, é suficientes para apontar a superação
um recorte dele, portanto, passível de do capitalismo, em sua maioria se limi-
mostrar partes do real. Novamente a tam a desconstruir a sociedade, mas
imagem vem superar uma limitação não expõe e propõe a superação da
humana: além do tempo, a imagem dominação enquanto elementos cons-
atua na percepção do espaço. A força titutivos da relação que temos com a
que a imagem possui, quase a coloca natureza e entre os sujeitos. Vide, como
como uma evidência clara do real. A exemplo, os indivíduos que possuem
fotografia teria sido um dia, compre- dificuldades para ter uma moradia
endida como documento de verdade. digna e são cotidianamente estereoti-
Nossa relação com a imagem re- pados e afetados pela abrangência do
monta os processos de significação e sistema, como os habitantes das fave-
constituição da subjetividade humana. las. A natureza/meio ambiente sofre
Porém, a subjetividade se constitui a bastante com isso também, pois são
partir das relações que estabelecemos transformadas apenas em recursos.
ao longo da vida, e a sociedade oci- A Indústria Cultural opera muito for-
dental urbano-industrial tem um modo temente para mascarar as relações
de operar que traz consequências de- de dominação e de exploração que
terminantes – mas não deterministas sustentam esse sistema econômico e
– para o sujeito. A vida em sociedade social. Nos espaços e momentos de
tem hoje o objetivo de reproduzir de lazer a sociedade é submetida a uma
forma ampliada o capital, não tenha- superexposição visual em que o cen-
mos muitas ilusões quanto esse fato, tral é a manutenção dos princípios,
de forma que as decisões são tomadas falsamente alimentados pelo sistema
do ponto de vista político e econômico, de que todos têm liberdade, igualda-
com objetivo de manutenção do status de e que devemos promover a frater-
quo. O capitalismo é tomado, nesse nidade. Do ponto de vista crítico que
sentido, como um sistema econômico defendemos, a liberdade é uma men-
transhistórico, como se não tivesse tido tira, assim como a igualdade, e falar

198
em fraternidade é quase sinônimo de das imagens, mostram que algo não
cinismo nos dias atuais. Há um esfor- está certo.
ço da indústria cultural em direcionar Sobre essa contradição evidente –
sensibilidades, valorizando o consumo do sofrimento e da morte escondida
e desvalorizando práticas de leitura nos arrabaldes das cidades, presas em
crítica. uma espécie de submundo, mascara-
Tem um fio condutor que relaciona a da pelas imagens distorcidas que são
formação na sociedade atual, a edu- feitas sobre elas – é que pensamos
cação ambiental e as imagens: o false- que reside a força e a potencialidade
amento do real. Entendemos que uma de uma Educação Ambiental Crítica de
Educação Ambiental Crítica não pode qualidade. Aproximando-nos do fim de
prescindir de buscar, na Economia Po- nossas reflexões, pensamos que toda
lítica, na Sociologia e na Filosofia os educação, especialmente a educação
subsídios para compreender os fun- ambiental crítica, deve pensar disputar
damentos dessa sociedade, e na Arte e explorar os novos meios de comuni-
como uma das formas de representar cação na intenção de evitar a hetero-
o mundo. Contudo, não é qualquer nomização das novas gerações pela
Economia, Sociologia, Filosofia ou Arte grande mídia.
que podem auxiliar-nos nessa tarefa;
mas somente aqueles pensadores e Referências
teorias que tiveram e tem o compro-
misso de desvelar o funcionamento do ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.;
sistema social que vivemos em sua es- BEZERRA, G. N. O que é justiça
sência, não em sua aparência apenas. ambiental. Rio de Janeiro: Garamond,
Que consegue trazer à tona a forma 2009.
distorcida com a qual o sistema usa o ADORNO, T. W. et al. La personalidad
meio ambiente explora suas riquezas, autoritária. Buenos Aires: Editorial
ocupa e desocupa os espaços, cria flu- Proyección, 1965.
xos migratórios para um lado ou para
outro. Esse sistema social tem donos ADORNO, T. W.; HORKHEIMER,
e não somos nós, classe trabalhado- Max. Dialética do Esclarecimento:
ra. Nós estamos à serviço. Por mais fragmentos filosóficos. 2ª ed. Tradução:
que a Educação tenha no discurso a Guido Antonio de Almeida. Rio de
premissa da necessidade da educa- Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
ção para libertar o sujeito, se encontra
delimitada pela lógica burguesa, e nos ADORNO, T. W. Teoria da seudocultura.
marcos do sistema atual, a educação Primeira Versão. Ano IV, n. 191, Volume
tem funcionado para adaptar as novas XIII mai-ago., Porto Velho, 2005.
gerações à essa sociedade; o que cer-
tamente nunca consegue na totalida- ADORNO, «eodor W. Educação e
de. A força das evidências reais – a po- Emancipação. Tradução: Wolfgang Leo
breza, a fome, a miséria humana – por Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
mais estetizadas que sejam por meio

199
BALTAZAR, A. P. Sobre a resiliência FREIRE-MEDEIROS, B. A construção
dos sistemas urbanos: devem eles da favela carioca como destino
ser resilientes e são eles realmente turístico. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
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Habitado. Fundamentos Teóricos e
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Paulo: Hucitec, 1988.

201
NOTAS

Capitulo 8

69 Esses conceitos são bastante complexos para serem tratados no


escopo desse artigo. Para um aprofundamento sugerimos a leitura dos
textos: ADORNO, eodor W e SIMPSON, G. 1986. Sobre a música popular.
In: COHN, Gabriel. eodor W. Adorno: sociologia. São Paulo: Ática. ADORNO,
eodor W. 1971. Teoria da seudocultura. In: HORKHEIMER, M e ADORNO, T.
W. Sociológica. Madrid: Taurus.

70 Podemos dizer que, de modo analógico, a ‘coisa percebida’ seria


constituída de representações, sendo a esfera da ‘coisa para si’, onde se dão
as propriedades do objeto, o mundo semântico e o reino do simbólico (Gil
Filho, 2005).

71 O marco fundador da favela como destino turístico foi a Eco-92


(FREIRE-MEDEIROS, 2006). Não é objeto de nosso trabalho aprofundar
esta problemática, mas vale ressaltar que há favelas em que a exploração
do turismo é feita por agentes externos privados [Rocinha], por lideranças
locais [Morro da Babilônia], por ONGs [Morro dos Prazeres] e pelo Governo
– Prefeitura do Rio de Janeiro [Morro da Providência] (FREIRE-MEDEIROS,
2006; 2007).

72 A palavra resiliência tem relação com elasticidade, capacidade de


resistir à forças externas. De modo figurativo representa a capacidade de se
recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças cotidianas.

202
Imagem, Imaginário, Imaginação
em Sebastião Salgado
Paulo Maia

0 9.
Introdução

Este capítulo73 busca compreender a transformação do olhar, da memória e


do imaginário na fotografia de Sebastião Salgado. Sua fotografia documental a
partir dos anos 60 demonstra uma perspectiva comprometida com as camadas
populares da periferia do capital. Seu procedimento fotográfico, que o afasta do
fotojornalismo, o conduz a um gênero narrativo conhecido como documental hu-
manista, que depende de um longo tempo de produção. Fenômeno fotográfico é
como Sebastião chama a convivência que estabelece com as comunidades que
fotografa desde que partiu para um autoexílio durante a ditadura militar no Bra-
sil. Ao longo de suas viagens por mais de 40 países, ele registrou transformações
geopolíticas e geoculturais operadas pela “nova morfologia do trabalho” (ANTU-
NES) e por suas consequências: empobrecimento, guerras e migrações forçadas
gerando uma enorme quantidade de refugiados em diferentes territórios no pla-
neta. Êxodos (2000) é um ensaio que engloba os três anteriores, numa pesquisa
que durou 23 anos (1977 a 2000): Outras Américas (1986), Trabalhadores: uma
arqueologia da era industrial (1996) e Terra (1997).
Neste processo, sua perspectiva política se intensificou, suas memórias foram
atravessadas com as urgências daqueles que fotografou, seu olhar trocou um
tom de observação passiva dos problemas evocados por outro tom cuja forma
propõe resistência e luta. Há um sentimento de travessia em cada imagem de
Salgado na sua trajetória. Suas fotos demonstram a curiosidade do estudante, a
atenção do antropólogo e o esforço de todos os trabalhadores com quem convi-
veu. Sentimento de travessia é o acúmulo das experiências de Salgado. Não há

204
álibi nem conserto para a história que
ficou sendo sua. Uma consciência da
história, um inventário de imagens que
evocam a transformação no planeta e
na subjetividade do próprio fotógrafo,
um imaginário sem palavras nem voz.

Olhar

Que tipo de imaginação desperta


uma imagem como esta? Sob árvo-
res, há um quadro de anotações e um
homem em pé com um apagador na
mão. Seu olhar estabelece uma linha
que se liga aos olhares de jovens sen-
tados à sua frente. Ele parece falar
coisas muito importantes para esses
ouvintes atentos. É uma aula. No pri-
meiro plano da imagem, uma árvore
enraíza-se num barranco e divide a
cena em duas partes, como uma ba-
lança. Unidade, equilíbrio e harmonia.
Professor e alunos em uma composi-
Fig. 1 - Êxodos, 2000. Campo de refugiados no
ção cuja harmonia se dá no contraste Quênia. Guerra Civil no Sudão 1994.

205
entre as posições ocupadas na cena. chama seu procedimento de investiga-
Assim, há uma única e enraizada dire- ção, negociação e produção fotográfi-
ção sintonizada para a transmissão do ca. É um momento único, um instantâ-
conhecimento. Além disso, a tranquili- neo construído com muita delicadeza e
dade conotada pela imagem dos ges- atenção pelo seu olhar.
tos do professor e a atenção concen- A informação sobre a utilização do
trada dos alunos conferem uma tensão currículo do Quênia e a formatação
que sustenta o conjunto. que analisamos acima, no entanto,
Os símbolos são tão fortes que mes- sugerem uma cultura desativada, pois
mo sem legenda é fácil chegar a este tornada refém, tornada passiva. A le-
sentido. Entretanto, se poderia olhar genda de Salgado ainda nos informa
para a imagem e também imaginar que muitas comunidades do Sudão
um miliciano dando instruções a jo- eram seminômades até alguns anos
vens forçados a lutar na guerra civil antes da produção do ensaio fotográ-
no Sudão no início dos anos 90. Tanto fico. Sendo assim, deviam também
estado quanto milícias recrutavam su- ter outras formas de organização do
mariamente jovens em diferentes regi- trabalho e da educação, outras cul-
ões do país para forçá-los ao combate. turas desautorizadas pela guerra. Ao
Isso obrigava muitos a fugirem para fugirem do autoritarismo do estado
os países vizinhos, para campos de e das milícias, estes jovens são salvos
refugiados da ONU como este retrata- em abrigos no país vizinho, o Quênia.
do acima, onde jovens sudaneses tem É importante que tenham sido recebi-
aula de acordo com o currículo do Qu- dos e que tenham tido acesso a algum
ênia. Tal como nos informa a legenda tipo de educação formal. Do contrário,
preparada por Sebastião Salgado em estariam ainda mais perdidos em suas
seu livro Êxodos (2000). culturas de origem, completamente
A fotografia isola os indivíduos, este- devastadas. É necessário, contudo, ob-
tiza o objeto, naturaliza a experiência. servar a ideologia que parece atraves-
Sebastião Salgado convive intensa- sar a experiência registrada no olhar
mente com seus fotografados e suas do fotógrafo e como isso passa a tam-
fotografias resultam do acordo esta- bém atravessar o nosso imaginário. A
belecido. O fotógrafo produz imagens imagem documenta uma aula e isso
do nosso tempo, seus princípios políti- não é difícil identificarmos.
cos e todos os outros que dão forma às Haverá outras interpretações da
suas composições remontam estraté- imagem; porém, a legenda deve ocu-
gias clássicas. Suas obras são alego- par um papel modalizador (SONTAG,
rias épicas que remetem a transforma- Sobre a fotografia, 1977). O eixo dos
ções radicais de nossa natureza no fim olhares em diagonal, a posição de des-
do século XX. O tema é fundamental, taque do professor e do quadro com
o livro denuncia mobilizações forçadas informações na composição da foto
em massa, identificando grupos de re- e a legenda estabelecem um padrão
fugiados em todos os continentes. “Fe- de comunicação em canal fechado.
nômeno fotográfico” é como Salgado O problema não está no conteúdo da

206
imagem, mas na forma da experiên- migrantes, refugiadas ou exiladas
cia representada. A forma, discreta constrangidas por forças que não
ou ostensivamente, será ela mesma o têm como controlar, fugindo da po-
verdadeiro conteúdo da relação esta- breza, da repressão ou das guerras.
belecida entre os sujeitos retratados. Partem com os pertences que con-
Verdadeiro não é irrefutável. Por isso, seguem carregar, avançam como
há formas variadas de trabalho e co- podem a bordo de frágeis embarca-
municação, assim como há todo tipo ções, espremidas em trens e cami-
de autonomia e liberdade. Os jovens nhões, a pé... Viajam sozinhas, com as
sudaneses, nesse caso, fugiram de um famílias ou em grupos. Algumas sa-
território perigoso, de um espaço hostil bem pra onde estão indo, confiantes
e opressor, para conquistar autonomia. de que as espera uma vida melhor.
Isso se analisarmos a questão sob uma Outras estão simplesmente em fuga,
perspectiva idealista e teleológica, aliviadas por estarem vivas. Muitas
desconsiderando que caça e caçador não conseguirão chegar a lugar ne-
tem esperanças simultâneas. Sob ou- nhum. (SALGADO, Êxodos, p. 9)
tro prisma, entretanto, podemos ques-
tionar: estes jovens estariam apren- A fotografia de Salgado é fruto de
dendo mais do que ouvir e observar? um sentimento, na medida em que ele
Parece que não, parece que aprendem afirma a vivência que recria em seus
obedecer e reproduzir. E nós com eles, retratos. Sentimento de travessia po-
pois é tal imaginação que uma ima- deria ser o modo como reconhecemos
gem como esta desperta em nosso o seu procedimento. Há um percurso
imaginário, desperta ou encontra uma realizado, um tempo vivido e, sobre-
identificação. tudo, memórias atravessadas no pro-
cesso de construção de suas narrativas
Imagem fotográficas. Memórias de um narra-
dor viajante e, de certa forma, tam-
Êxodos (2000) conta a história das bém migrante, já que ele mesmo se
migrações forçadas, dos refugiados e autoexilara do Brasil depois do golpe
exilados por razões bélicas, sanitárias militar em 1964.
e econômicas no final do século XX em Nos anos 1990, uma guerra civil pa-
diferentes regiões da periferia do ca- ralisou o Sudão, tirou o país do trilho
pital. O fotógrafo percorreu diferentes da história, ou destinou a ele um lugar
lugares, atravessou diversas culturas e especialíssimo fora da locomotiva do
foi atravessado pelo impasse comum progresso. Por fim, milhares de su-
que as aproximava. daneses foram obrigados a fugir para
países vizinhos, como a República De-
Este livro conta a história da huma- mocrática do Congo. Sebastião Salga-
nidade em trânsito. É uma história do estava na África para fotografar a
perturbadora, pois poucas pessoas experiência dos médicos sem fronteira
abandonam a terra natal por vonta- no combate à poliomielite e foi envol-
de própria. Em geral, elas se tornam vido por diferentes conflitos civis.

207
Figuras 2 e 3 - Êxodos, 2000. República
Democrática do Congo, 1997.

208
A perspectiva e o autocontraste não existam mais objetivamente, seus
nas imagens deste ensaio despertam traços permanecem em alguns narra-
memórias insólitas. A silhueta funcio- dores. Sebastião Salgado é um narra-
na como uma evidência da partida. dor que narra com seu olhar, com suas
As linhas do trilho dão profundidade memórias, com seu imaginário, com
e volume ao conjunto, equilibrando a sua imaginação.
composição e alargando a dimensão Salgado pode ser associado com um
da tragédia. Salgado viaja ao contexto narrador marinheiro, aquele que ouve
dos conflitos para documentar as mo- muitas histórias e registra muitos ges-
vimentações populacionais forçadas tos no decurso de suas viagens. São,
no continente. O fotógrafo reelabora no entanto, histórias e gestos de terror
suas memórias da experiência vivida que ele registra em seu livro Êxodo. O
com imagens de um colecionador de termo bíblico se refere à expulsão de
fragmentos de mundos estilhaçados. um povo de suas terras, daquelas que
Sob este aspecto, podemos aprovei- lhes teriam sido “prometidas”. Outras
tar a perspectiva sobre memória que Américas também tratava da expulsão
Walter Benjamin desenvolve em O de um povo de seu lugar. Em Êxodos,
narrador. entretanto, o fotógrafo aprofunda o
O filósofo divide em duas catego- debate sobre o trânsito do “homem
rias o que chama de narrador clássico, em desespero” revelando a impotência
aquele que tiraria da memória a sua de um povo ante qualquer resistência
legitimidade. O narrador agricultor ou emancipação.
sedentário seria um artesão local que Ao mostrar os marginalizados na
nunca saiu de sua comunidade e, por América Latina, na África e em outros
isso, tem uma visão detalhada daquele lugares do planeta as suas travessias,
grupo, cujas experiências repassa às as migrações forçadas, o êxodo, o fo-
novas gerações. O narrador marinhei- tógrafo relaciona esses movimentos
ro, ou viajante, por outro lado, seria com as contradições no mundo do tra-
aquele que deve passar por muitos balho. No final do século XX, a trans-
lugares diferentes e trazer ao seu gru- formação das forças produtivas e a
po de origem uma visão fragmentária mundialização do capital impõem uma
de diferentes culturas visitadas. Um dura realidade para os trabalhadores,
contribuiria para a manutenção da cada vez mais explorados, desagrega-
tradição necessária à reprodução da dos e despojados de sua tradição, de
vida daquela comunidade; o outro tra- sua cultura e autonomia. Os homens
ria de diferentes povos as novidades e mulheres fotografados por Salgado
técnicas e culturais para a renovação. ou estão encurralados ou em fuga sem
O primeiro seria responsável pela con- destino certo. Os ensaios fotográficos
servação de sua comunidade, o se- de Salgado revelam a ele próprio que a
gundo pela sua modernização. Os dois principal desagregação causada pela
seriam necessários ao enriquecimento expansão do capital atingiu principal-
das experiências comunicadas pelos mente o mundo do trabalho. Progres-
narradores clássicos. Mesmo que eles sivamente, suas narrativas organizam

209
as memórias da desagregação, as campo, assume em sua forma o senti-
observadas e as do observador, e ale- do dos limites políticos do processo so-
gorizam o mundo, tornando-o símbolo cial em curso. Salgado documenta as
da derrota. Ricardo Antunes chama transformações no mundo do trabalho
este processo histórico de uma nova e na distribuição da terra, principal ins-
morfologia do trabalho, marcada pelo trumento de poder e meio de produção
fim da era industrial e reorganização em todo o continente. Seu olhar con-
da produção de forma automatizada. templa a derrota sem luta, suas me-
O capital busca outros modos para se mórias estetizam a distopia, conciliam
multiplicar, suas cifras agora são digi- com o abismo. As imagens são belas,
tais, o seu lastro é a especulação. Ao terrivelmente belas. E nisso assenta
capital não interessam as memórias uma questão ética complicada, como
do trabalho e da técnica, está tudo au- aponta radicalmente Susan Sontag, no
tomatizado, ou naturalizado. livro Diante da dor dos outros (2004).
A porta aberta, na imagem acima,
Imaginário vista por uma ótica desiludida, acu-
sa a melancolia da derrota e sugere
O primeiro livro de Sebastião Salga- uma saída desprovida de sentido, uma
do intitula-se Outras Américas (1986). sugestão vazia. Não há paredes ao
Produzidas nos anos 70, as imagens redor dessa porta, tudo parece igual
deste ensaio retratam o processo ace- tanto de um lado como de outro. Vista
lerado de diluição das comunidades por outra ótica, esta passagem, feita
rurais de pequenos agricultores orga- com um gradeado firme de madeira
nizados com base na agricultura fami- cujos encaixes desenham uma esqua-
liar. O momento histórico marcado no dria desencaixada do contexto, se fixa
campo pelo êxodo rural transformou sobre uma estrutura rústica e frágil
profundamente a geografia e a socie- e se abre a um céu acinzentado, me-
dade latino-americanas. Os pequenos lancólico. As expressões asfixiantes e
produtores, perdendo suas terras para a ausência de saída atribuem ao de-
a monoprodução automatizada, aden- clínio um desconforto e uma perigosa
savam a demografia de regiões mar- beleza.
ginalizadas e sem infraestrutura nas O primeiro livro de Sebastião Salga-
grandes cidades de todos os países da do é estetizado, apesar do tema. É um
América Latina, atraídos pelo mercado livro muito bonito, e distópico. O olhar
de serviços domésticos e no comér- do fotógrafo é ainda apressadamente
cio nos grandes centros. Esta década, curioso, suas memórias estão macula-
fundo histórico de Outras Américas, é das pela revolta de um indivíduo exila-
ainda marcada pelas ditaduras milita- do. A forma de Outras Américas é uma
res em alguns países latino-america- fórmula que apenas observa o proble-
nos, em especial pelo recrudescimento ma. Não há revolta ou rebelião no seu
da ditadura no Brasil. O ensaio todo, imaginário. Em Memórias do futuro,
apesar de não tocar nos pontos ne- André Bueno fala num dilema do pro-
vrálgicos da política e da resistência no cesso social e histórico em curso.

210
Como dar forma à violência e à bar-
bárie sem estetizar a miséria huma-
na, sem fazer da dor dos outros um
espetáculo, para lembrar aqui Susan
Sontag? Como dar a dimensão dos
problemas mais fundos sem folclori-
zar, reduzir, estetizar, tornar apenas
espetáculo e fruição passiva os limi-
tes mais difíceis da experiência so-
cial? Sem esquecer, desde logo, que
a recepção de toda forma estética
é inseparável do seu momento de
fruição, de prazer associado à forma
elaborada do material, mesmo quan-
do se trata da violência e da barbá-
rie. Mas também é verdade que a
dimensão estética, ao tratar desses
extremos difíceis, pode vir acompa-
nhada de uma dimensão ética, que
dê à configuração dignidade e se po-
nha à altura de seu assunto. (BUENO,
2009, p. 24)

Salgado balança, neste livro, en-


tre a tensão indiciada pela imagem
e a sua beleza. No ensaio de estreia,
Salgado reproduz uma ordem visual
passiva que naturaliza o desconforto
alheio. Porém, ao longo dos projetos, o
fotógrafo reelaborará seu imaginário,
como ele mesmo afirma no prefácio do
livro Êxodos, uma década e meia mais
tarde.

A experiência operou profunda mu-


dança em mim. Ao dar início a este
projeto, eu estava habituado a tra-
balhar em condições difíceis. Pensa-
va que minhas convicções políticas
ofereciam respostas para um grande
número de problemas. Acreditava
sinceramente que a humanidade
avançava num rumo positivo. Estava
despreparado para o que veio a se-
guir. (SALGADO, Êxodos, p. 10)
211
Figura 5 - Êxodos, 2000. Abrigo no Sudão do Sul.
Guerra Civil no Sudão 1994.

212
Esta imagem apresenta uma outra paralisados. O ponto de fuga indica a
porta menos estetizada. Trata-se de porta iluminada do abrigo à qual os
um abrigo no território sudanês duran- personagens da composição viram as
te a guerra civil nos anos 90. Estes jo- costas. Tragicamente impedidos de
vens, ao contrário daqueles de que se sair, seus terríveis olhares, através da
falou no início deste texto, não haviam lente do fotógrafo, cruzam suas me-
ainda conseguido fugir para campos mórias, interferem em seu imaginário e
de refugiados nos países vizinhos, se dirigem a nós, cobrando uma saída
como o Quênia, onde eles frequenta- verdadeira para o terror que vivem.
riam escolas improvisadas nos abrigos Salgado experimentou nestes olha-
da ONU, como mostra a primeira fo- res o surgimento de uma dúvida: se o
tografia comentada. Entretanto, estes processo de transformação do traba-
jovens não conseguiram se refugiar e lho e da exploração do capital impõe
escondem-se do estado e das milícias uma mobilização populacional ao
que os capturariam e os forçariam mesmo tempo no planeta, não há mo-
a lutar contra seus irmãos caso os vimentos de resistência? Daí surgirá o
encontrassem. projeto de construção de um livro de-
Durante mais de 20 anos, Sebastião dicado à luta dos trabalhadores sem
Salgado viajou por mais de 40 paí- terra no Brasil.
ses registrando as transformações no Muito distante da idealização do pri-
mundo do trabalho, representando o meiro ensaio, o livro Êxodos é uma sín-
chamado fim da era industrial e a sua tese das transformações operadas no
nova morfologia ideológica, chama- planeta a partir da nova morfologia do
da globalização. O resultado disso foi trabalho na era pós-industrial. A ima-
mostrado em três ensaios fotográficos. gem estetizada da violência imposta
Nestes livros, no entanto, o fotógrafo à periferia do capital pelo arranjo dos
revela a falácia desta ideologia. Escon- interesses hegemônicos se transforma
dida por trás da face técnica e política numa imaginação afirmativa da resis-
do novo arranjo no modo de produção tência e pela emancipação. A sugestão
capitalista, a permanência das con- se dá na fotografia da ocupação de
tradições entre centro e periferia, entre uma área rural improdutiva no sul do
setor industrial e setor de produção de Brasil pelo Movimento dos Trabalha-
commodities, revela-se no olhar, nas dores sem Terra – MST.
memórias e no imaginário do fotó-
grafo. As transformações geopolíticas
e geoprodutivas mantém a dialética
da colonização e recolonização da pe-
riferia. O autocontraste da imagem
acima permite que se formem feixes
de luz que cortam a fotografia em dia-
gonal. Como facas, representando a
guerra doméstica, tais feixes atraves-
sam simbolicamente estes meninos

213
Fig. 6 - Êxodos, 2000. MST ocupa fazenda
improdutiva no Paraná, 1996.

214
A cerca que se estende para além do individual, mas a concentração de
portão e o forte alicerce em que toda a energia para uma luta coletiva contra
estrutura se equilibra contrastam radi- o processo intenso de desagregação
calmente com a fotografia analisada no campo. A fotografia, além de evi-
de Outras Américas. As imagens do denciar, tornar pública e reafirmar a
MST neste ensaio foram realizadas no luta do MST, reverbera a voz dos mi-
final dos anos 90. Homens com ferra- lhares de trabalhadores reunidos para
mentas para lavrar a terra, bandeiras resistir. A resistência ganha o apelo
e mãos erguidas abrem a porteira e épico na legenda da fotografia dos
ocupam a Fazenda Giacometti, lati- trabalhadores rurais rompendo a por-
fúndio improdutivo de exploradores teira da fazenda.
madeireiros do Sul. A fazenda, desa-
propriada pelo Ministério da Reforma Era impressionante a coluna dos
Agrária, no início da década de 80, sem-terra formada por mais de 12 mil
ainda estava em posse dos madeirei- pessoas, ou seja, 3 mil famílias, em
ros graças ao arquivamento do pro- marcha na noite fria daquele início
cesso, motivado pela proximidade do de inverno no Paraná. O exército de
grupo com o governo do estado do camponeses avançava em silêncio
Paraná. quase completo. Escutava-se apenas
A imagem sugere e incita a resis- o arfar regular de peitos acostuma-
tência e a luta no campo. O ângulo em dos a grandes esforços e o ruído sur-
que ela foi tomada deixa entrever a do dos pés que tocavam o asfalto.
coluna de pessoas que se perde na sua [...]
profundidade, ressaltando a força e a Anda rápido um camponês: 22 quilô-
coerência do movimento, legitimado metros foram cobertos em menos de
em suas diversas bandeiras. Aqueles cinco horas. Quando chegaram lá, o
que estão fora da propriedade priva- dia começava a nascer. A madrugada
da, irrompem na direção do espaço estava envolta em espessa serração
daqueles que os veem como intrusos. que, pouco a pouco, foi se deslocando
Eles abrem a porteira da propriedade da terra, sob o efeito da umidade do
de fora para dentro, na direção confor- rio Iguaçu, que corre ali bem próximo.
tável, aliás, em que nós, espectadores, Pois o rio de camponeses que correu
os vemos entrar. À frente, um homem pelo asfalto noite adentro, ao desem-
com sua foice erguida simboliza a van- bocar defronte da porteira da fazen-
guarda e a liderança. Símbolo clássico da, para e se espalha como as águas
na representação das lutas dos traba- de uma barragem. As crianças e as
lhadores rurais pela apropriação da mulheres são logo afastadas para o
sua força de trabalho, a foice funciona fundo da represa humana, enquan-
como uma espécie de guia à coluna to os homens tomam posição bem
que a segue. na frente da linha imaginária para o
Todo o ensaio parece convergir eventual confronto com os jagunços
em direção a uma saída para aquele da fazenda.
emaranhado. Essa saída não é a fuga

215
Ante a insistência de reação por par- imagens do fotógrafo de maneira ati-
te do pequeno exército do latifúndio, va, buscando desconstruir suas tensões
os homens da vanguarda arreben- tecnicamente forjadas por argumentos
tam o cadeado e a porteira se escan- históricos e dialéticos, também trans-
cara; atrás, o rio de camponeses se formamos nosso olhar, nossa memória
põe novamente em movimento; foi- e nosso imaginário para os problemas
ces, enxadas e bandeiras se erguem de ontem e de hoje. Retomando Bra-
na avalanche incontida das esperan- cher, na epígrafe, “a nossa imagem
ças nesse reencontro com a vida – e no mundo é a soma dos rumores, dos
o grito reprimido do povo sem-terra passos que demos e dos que não an-
ecoa uníssono na claridade do novo damos, passaram por nós. Não há álibi
dia: “REFORMA AGRÁRIA, UMA LUTA nem conserto para a história que fica
DE TODOS!” (ÊXODOS, p. 143) sendo nossa.”

As fotografias que sugerem traves- Imaginação


sia, não têm aqui a mesma poética
contemplativa do primeiro livro. Se em Quando escrevi a tese de doutora-
Outras Américas a travessia é concilia- do Sentimento de Travessia: imagem,
dora, em Êxodos a travessia é a força imaginário e imaginação em Sebas-
que move a possibilidade de trans- tião Salgado, havia uma crença coleti-
formação numa realidade marcada va, uma esperança e um otimismo de
pela combinação de concentração de que seria possível enfrentar as trans-
riquezas e inanição da classe trabalha- formações violentas sobre a morfolo-
dora. A travessia em Outras Américas gia do trabalho pós-industrial. O Brasil
sugere a impotência, o embotamento, vivia um momento de crescimento com
o conformismo; a mesma síntese for- expansão de direitos civis e humanos
mal no ensaio de 2000, por outro lado, e ampliação do acesso à formação
provoca e promove o enfrentamento. profissional, técnica e intelectual, com
Entre os dois ensaios, o olhar, as me- investimento em saúde, educação e
mórias e o imaginário de Sebastião elementos básicos de cidadania. 2011
Salgado são transformados pelo seu foi um ano com muitas apostas no
trabalho como pesquisador e fotógra- futuro, a manutenção de um governo
fo, pela sua experiência dialetizada, com projetos progressistas, a primeira
relacionando pontos de vista distintos mulher a assumir o poder depois que
do mesmo processo: a renovação da o primeiro operário havia governado o
hegemonia capitalista, ou a nova mor- país durante oito anos. O sentimento
fologia do capital, como é definido o de que atravessávamos a fronteira e
contexto pelo economista Ricardo An- nos afastávamos, mesmo que lenta-
tunes. A transformação das imagens mente, do abismo das contradições
de Sebastião Salgado remete a uma sociais cavadas em nossa formação
transformação pessoal que ele próprio colonial era uma imagem forte. Todos
reconhece e que chamamos de senti- sabíamos que o buraco em que sem-
mento de travessia. Ao mergulhar nas pre nos afundamos estava longe de

216
ser superado, mas talvez a imagina- Sander, seria abandonado com o exílio
ção nos levasse a um mundo que não do fotógrafo pouco depois, após per-
correspondia à realidade, um mundo der o filho, o estúdio e muitos originais
possível à frente. De lá para cá, a ube- pelas mãos persecutórias, violentas e
rização deu nova forma ao trabalho, os arianistas, desejosos de uma imagem
trabalhadores se transformaram em única e pura para a nova Alemanha.
sujeitos empreendedores, inovadores e Depois da guerra, o mundo imaginado
destituídos de todos os seus direitos, os pelos nazistas ruiu junto com o mundo
grupos ultraconservadores atingiram imaginado por Sander. Provavelmente
a hegemonia política com cartilhas não havia mais entregadores de car-
neoliberais e projetos de desmonte vão, pelo menos não com a mesma se-
do estado e de desmantelamento de gurança com que o modelo de Sander
políticas públicas de proteção social, atravessou aquela porta numa manhã
ambiental, cultural, previdenciária, sa- gelada no limiar entre dois mundos
nitária, educacional, a lista segue. O muito distintos. As portas de Salgado
mundo imaginado virou apenas uma se abriam para ideias de esperança e
fotografia na parede, uma recordação de resistência em um contexto no qual
difusa na confusão do tempo presente. era possível identificar tais imagens. O
E afinal, qual será o retrato do tempo olhar de Sander torna possível perce-
presente? que mundo começar a ima- ber as fragilidades de qualquer imagi-
ginar a partir de agora? nário. Os dois projetos fotográficos, à
Não é possível saber, mas talvez seja luz da época de descrença generaliza-
interessante olhar para imagens do da em que nos encontramos, podem
passado e sentir seu movimento, sua sugerir que as portas estão sempre
mensagem, a imaginação que as agi- abertas. Porém, eles também ensi-
tava quando foram sacadas. Buscar nam que toda porta depende de nova
nessas imagens inspiração nos levará imaginação sobre como atravessá-la.
a selecionar a iconografia que inte- Imagem, Imaginário e imaginação
ressa servir como modelo para a nova analisa em algumas fotografias sobre
imaginação do mundo novo. August o trabalho a forma e as transforma-
Sander, fotógrafo alemão do entre ções ambientais, sociais e subjetivas
guerras, fez um projeto nos anos 1930 operadas.
para captar a fisionomia e a pluralida-
de dos alemães sobretudo em ambien-
tes de trabalhadores populares na ci-
dade e no campo. Na imagem abaixo,
um entregador de carvão sai para rea-
lizar seu trabalho pelas ruas de Berlin.
Sua postura é retida, seu olhar é duro,
a porta por onde passa é incerta. Mas
suas mãos são seguras e seu passo é
objetivo. O Homem do século XX, título
do projeto que organizaria o ensaio de

217
Fig. 7 - Berliner Kohlenträger. "Face of Our
Time: Sechzig Aufnahmen deutscher Menschen des
20º Jahrhunderts.

218
Referências
SONTAG, Susan. Sobre fotografia.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do Trad. Rubens Figueiredo. SP: Cia. das
trabalho: ensaios sobre a afirmação Letras, 1973.
e a negação do trabalho. 10. ed. rev. e
aum. São Paulo: Boitempo, 2009. ______. Diante da dor dos outros. Trad.
Rubens Figueiredo. SP: Cia. das Letras,
______. Adeus ao trabalho? 2003.
Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 13. SANDER, August. Face of Our Time:
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2008. Sechzig Aufnahmen deutscher
Menschen des 20º Jahrhunderts.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte Munique: Schirmer/Mosel Verlag, 2010.
e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense,
1985.

BUENO, André. Memórias do futuro.


Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 24

MAIA, Paulo. Olhar, memória e


imaginário. Revista Scriptorium, Porto
Alegre: PUC/RS, v.
3, nº 2, 2017.

SALGADO, Sebastião. Êxodos. Projeto


Gráfico: Lélia Wanick Salgado. São
Paulo: Cia. das Letras, 2000.

______. Outras Américas. Prefácio de


Alan Riding. Projeto Gráfico de Lélia
Wanick Salgado. São Paulo: Cia das
Letras, 1999.

______. Terra. Introdução de José


Saramago. Versos e canções de Chico
Buarque. São Paulo: Cia. das Letras,
1997.

______. Trabalhadores: uma


arqueologia da era industrial.
Introdução de Sebastião Salgado e
Eric Nepomuceno. São Paulo: Cia. das
Letras, 1996.

219
NOTAS

Capitulo 9

73 Este texto teve uma primeira versão na Revista Scriptorium (v. 3, nº 2)


em 2017. Esta é uma versão revista e ampliada.

220
Sertão vivo, em cores:
linguagem fotográfica, leitura de
imagem e percepção visual do meio
ambiente da Caatinga
Antenor Rita Gomes
Sergio Luiz Pereira da Silva

1 0.
Introdução

A expressão da realidade através do realismo estético, presente nas imagens


fotográficas, vídeo, cinema e nos meios de comunicação, constitui-se como um
senso comum que permeia a percepção do cotidiano na modernidade (JAGUA-
RIBE, 2007, p.15). Realismo e ficção, disputam status de representação objetiva
da realidade nessa sociedade da informação visual de valores efêmeros.
O processo de reprodução da imagem e as referências simbólicas nela in-
corporados, são estruturados procurando atingir setores diferenciados por se-
guimentos de classes, grupos, respeitando valores ideológicos relativos a co-
municação visual. Há nesse processo, uma lógica instrumental e tecnicamente
elaborada de se produzir uma comunicação visual, com base na qual os elemen-
tos ideológicos da cultura ocidental são publicizados. É importante lembrar que
a imagem tem sido objeto de estudo de vários ramos da ciência que a tomam
como problemas decorrentes da própria realidade, portanto, pode ser estudada
pela Psicologia, pela História, pela Arte, pela Literatura, pela Neurologia etc., fa-
zendo com que cada vez mais a imagem seja entendida como objeto de leitura
transversal e multidisciplinar.
Essa lógica interdisciplinar, em certa medida, tem na centralidade do olhar e
da imagem, uma relação de afinidade entre imagem, simulacro e realidade. Sen-
do assim a disputa pela representação do real, constituído imageticamente, en-
tra em choque com a própria realidade.

222
O paradoxo do realismo consiste e das alterações provocadas no cená-
em invenções e ficções que pareçam rio. É por causa disto que se diz que o
realidades. observador altera a cena observada e
é modificado por ela. Ademais o alcan-
[...] A realidade é socialmente fabri- ce da observação depende da capaci-
cada, e uma das postulações da mo- dade do olhar da pessoa. Assim, ler é
dernidade tardia é a percepção de olhar e interpretar o que se ver.
que os imaginários culturais são par- O olhar de cada pessoa vai até onde
tes da realidade e que o nosso aces- a sua capacidade de produzir sentido
so ao real e à realidade somente se é capaz de chegar. É comum que duas
processa por meio da representação, pessoas observem a mesma cena e
narrativas e imagens. (JAGUARIBE, tenham entendimentos distintos, por
2007, p. 16). que são distintas as formações e as
informações que cada um detém sobre
A cultura visual presente nesse pro- o mundo e sobre os fatos. De qualquer
cesso de construção social da realida- forma, a experiência do olhar esta-
de pelo olhar ancora uma ação social belece uma relação privilegiada com
na forma de ver e um diálogo sobre o a memória, com a pessoa e com as
que vemos. Consumidores de imagens, aprendizagens. As imagens possuem
que somos todos nós, lidamos com for- uma materialidade que possibilitam a
mas de representações dentro de uma observação. Diferentemente das pala-
lógica da ação social, ou seja dotamos vras que se ancoram em representa-
um sentido ao que vemos e é a partir ções mentais, as imagens já são elas
dele que se instaura o nosso proces- mesmas formas de representações
so de sociabilidade na sociedade da que carecem, não de intermediação,
informação. A ação social do nosso mas de atenção e sensibilidade para
olhar, nos permite uma compreensão ler e reproduzir aquelas ou novas re-
do mundo imediato dentro da nossa presentações. São, portanto, materiais
cultura. decisivos na construção de significados
A ação social do olhar no ator do ver e de aprendizagens significativas. São
se constitui em um canal privilegia- matérias para serem lidas.
do de aprendizagem, pois o gesto de Dentro desse sentido do olhar, são
olhar e observar se traduz em um tipo construídas as representações dos
de experiência e estabelece relações diversos espaços. As representações
diretas com a pessoa e com os senti- visuais socializadas, sobretudo pelos
dos. Lemos com os olhos ou com ou- meios e processos de comunicação se
tras formas táteis de percepção. O ato incorporam à nossa memória dando
de observar é uma experiência forma- origem ou manutenção às percepções
tiva. Em alguns tipos de pesquisa a ob- que temos dos lugares, pessoas, fatos
servação é a principal forma de conhe- e coisas. Assim passamos a distinguir e
cer. Observar é um gesto de produção valorar o campo e a cidade, o novo e o
de sentido desde o momento da esco- velho, o sertão e o litoral etc.
lha do objeto, do anglo da observação

223
No caso do sertão brasileiro, asso-
ciado, à pobreza, à seca, à miséria e
ignorância, as percepções visuais que
nos chegam comumente retratam-no
com poucas cores e prioritariamente
em tons acinzentados. Esta percepção
socialmente partilhada ao longo de
anos torna difícil a compreensão do
colorido da vida que pulsa em um ser-
tão em movimento intenso e profundo.
Para que isto ocorra é necessário que
se crie e se partilhe novas percepções.
Pensando, pois nisso e no fato de
compreender que o gesto de olhar uma
realidade, percebê-la e retratá-la é um
gesto de leitura e interpretação que
envolve uma epistemologia e o domí-
nio de uma linguagem é que nos dedi-
camos, neste artigo, a pensar nas con-
tribuições da linguagem fotográfica
para a construção da memória visual.
Tomamos aqui, como referência e pon-
to de partida as fotografias do projeto
“Cores do Sertão”, desenvolvido pelo
Núcleo de Cultura Visual, Educação e
Linguagem – Cult-Vi do Departamento
de Ciências Humanas, UNEB – Cam-
pus IV, Jacobina – BA, para ilustrar um
sertão vivo e dinâmico.

224
Sertão ao Vivo e em Cores

O impressionismo fez com que a


pintura, se emancipasse em relação a
retratação da realidade, como queria
o renascimento, esse salto emancipa-
tório influenciou a todas as áreas das
artes visuais e como não poderia dei-
xar de ser, influenciou também a foto-
grafia. Pessoas de lugares distintos e
em momentos distintos, disseram que
as duas fotografias acima, produzidas
para o projeto “Cores do sertão”, mais
pareciam uma pintura impressionista.
Ficamos lisonjeados e felizes, mas lon-
ge de querer parecer impressionistas
na fotografia, ou coisa do gênero, fize-
mos essa fotografia sob a inspiração
de um processo estético. O que inten-
távamos, era recontextualizar o sertão
em sua ampla magnitude cromática
e em sua forma de expressão viva em
Imagem 01 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
cores. Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

225
Nada contra os tons de cinzas que O simulacro criado pela linguagem
brilhantemente expressam a alma do visual pode possibilitar um rápido
sertão através de fotógrafos renoma- acesso a certas compreensões que, de
dos como Evandro Teixeira. Queríamos outro modo, seriam necessários muitos
dar um olhar, mais cromático e mais argumentos. A representação visual,
saturado ao sertão, por esse motivo, diferentemente da representação ver-
tentamos transbordar em cores. As bal forja e traz consigo a cena, o fato, o
formas, o cotidiano e a cultura aqui cenário, o foco da observação e o pon-
representadas por uma linguagem fo- to de vista a um só tempo. Este modo
tográfica na qual a cor é o elemento de relativamente “pronto” de dizer, esta
fundamentação da nossa fotografia. forma condensada de falar para seu
A fotografia como linguagem de ex- leitor/expectador cria uma espécie de
pressão e representação visa capturar impacto visual que desperta a atenção
a expressão cromática de uma reali- e se liga diretamente com o sentido e a
dade sertaneja. Não sei se podemos cognição.
chamar a isso de realismo cromático, Embora a representação visual an-
expressionismo cromático, mas em tecipe e imponha elementos que a re-
sendo possível, acreditamos que essa presentação verbal deixa a cargo da
saturação cromática nos revela outro imaginação do leitor/ouvinte, a ima-
sertão, que por motivos outros não o gem, ao traduzir um ponto de vista,
vemos quando estamos imersos em é densa e subjetiva o que abre novas
seu cotidiano. possibilidades de sentido e oportuniza
Essa capacidade que as imagens a organização de situações significati-
têm de representar a realidade é uma vas de leitura e aprendizagem.
das características que faz da lingua-
gem visual, em particular a fotográfi- O olhar estrangeiro e o simulacro
ca, uma das mais potentes formas de imagético
linguagem e persuasão. O cérebro ten-
de a acreditar no que vê. A visão é um Uma das questões mais importan-
dos nossos sentidos mais confiáveis. tes a ser considerada na leitura das
Através dele o mundo em nossa volta imagens é a questão do simulacro.
ganha forma e se materializa, portan- Segundo Baudrillard (1981) nesta nos-
to, até mesmo as mais toscas repre- sa era as imagens e os símbolos têm
sentações visuais fixam um fato num mais força do que a própria realida-
plano mental. Isto lhe dá um enorme de. Os simulacros são as simulações
poder argumentativo e possibilita ou- do real, que contrariamente, são mais
tras formas de aprendizagem, posto atraentes ao espectador do que a pró-
que ler imagem é como viajar, convi- pria realidade representada. Portanto,
ver, aventurar-se, etc., uma vez que entender que a imagem não é a reali-
ao aceitar a representação e interagir dade, mas a representação dela, uma
mentalmente com ela, o leitor expec- simulação, um simulacro já é em si
tador está de certa forma, vivendo e uma grande tarefa da atividade de lei-
dialogando com ela. tura. Esta percepção é condição básica

226
também para se ler a imagem COM A fotografia se expressa como in-
e COMO reflexão crítica da realidade. terpretação da realidade, a partir de
Entender que as imagens são repre- um jogo de representação. Ao vermos
sentações é uma grande oportunidade registramos sentidos e não a realida-
de aprendizado sobre a gramática das de. A fotografia é um exemplo disso.
imagens, sobre as ideologias dos dis- Expressa um sentido composto pelo
cursos e, sobretudo, sobre a própria re- assunto, a técnica, o cromatismo, o
alidade e as representações existentes contraste e a composição na produção
dentro dela. Além do mais, as imagens de um sentido representado.
que criam o simulacro, também colo-
cam a realidade em questão e desa-
fiam o espectador a sua reflexão.
Ao representar por meio do simu-
lacro, a imagem pressupõe histórias,
experiências e sentidos que se aproxi-
mam da experiência cotidiana dos lei-
tores/espectadores, possibilitam ações
e projeções mentais através das quais
os sujeitos vivem os dramas e aven-
turas que levam a diversas descargas
emocionais que possibilitam a purifi-
cação dos seus sentimentos.
Viver a aventura projetada na ima-
gem é uma forma de viver determina-
das realidades sem sair do seu tempo
e espaço, por esta razão é um excelen-
te meio para viver as aprendizagens
de modo significativo. É, em síntese, a
forma mais profunda de viver e se re-
presentar dentro das representações.
Quando a leitura da imagem chega a
este ponto é o mesmo que chegar ao
clímax, ao êxtase e ao gozo, pois con-
funde expectador com a cena observa-
da e os limites entre ficção e realidade
tornam se tênues.
Levar os sentidos a este ponto du-
rante o processo de leitura de uma
fotografia é tornar a experiência signi-
ficativa, não só do ponto de vista inte-
lectual, mas também do ponto de vista
espiritual e isto se faz de modo encar-
nado à vida do sujeito.

227
Imagem 03 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

228
Esse cromatismo fotográfico, no experiência não é mais privada, mas
caso em questão, nos revela apenas de toda a humanidade. Surge assim
uma diferente forma de ver cores e uma nova barbárie (1996, p. 168).
imagens, com base num conjunto
de representação de uma realidade, A forma de visão estruturada no
nesse caso uma realidade “severina”, aparato tecnológico constitui-se no
“árida” e “dura”, dos grandes sertões olhar que se realiza pela verossimi-
brasileiros. Esta percepção nos leva a lhança e retira o seu conteúdo históri-
discutir o processo de construção de co. É uma forma de olhar instrumental,
uma cultura visual, no qual a interven- que atende a critérios de uma preten-
ção cromática, com técnica de satura- sa realidade objetiva, o olhar do outro
ção e contraste, com captura e mani- fetichizado que me compele a olhar
pulação digital, é parte da ação social como ele, roubando de mim a liberda-
do nosso olhar, na forma subjacente de de e a unidade existente entre o olha-
produção fotográfica. dor e o que é escolhido para ser olhado
Não podemos nos furtar de dizer que e usufruído (BRASIL, 1982).
os olhares gerados pela cultura visual É neste contexto que as imagens do
resultam de técnicas criadas na mo- Projeto “Cores do Sertão” aqui traba-
dernidade e acabam por influenciar a lhadas ganham relevância e status de
nossa forma de perceber as condições percepção de sertão vivo pois, impele
sociais presentes nas cores. à construção do belo sertanejo além
Benjamin (1996) já havia assinalado de construir um conhecimento que vai
o caráter técnico dessa cultura visual e da regulação para a emancipação.
seu processo de descontextualização
histórica, ou seja, o deslocamento da O caráter transversal da linguagem
consciência do homem mediante a re- visual
presentação da imagem em sua forma
de reprodução técnica. Outro fator importante para o a
Benjamin referiu-se à forma de apa- compreensão da fotografia é a natu-
rência presente na objetivação técnica reza da linguagem visual que é trans-
do olhar na modernidade nos seguin- versal e híbrida. É muito freqüente
tes termos: que os textos visuais, em particular as
fotografias se apresentem ao obser-
uma nova forma de miséria surgiu vador de forma híbrida, articulando-
com esse monstruoso desenvolvi- -se, em sua constituição, com outras
mento da técnica, sobrepondo-se ao formações de linguagem. Além disso,
homem. (...) Porque não é uma reno- o texto visual é eminentemente trans-
vação autêntica que está em jogo, versal e extrapola a todas as áreas do
e sim uma galvanização. (...) Qual conhecimento.
o valor de todo o nosso patrimônio A linguagem imagética é aberta,
cultural, se a experiência não mais imprecisa e plural. Os sentidos produzi-
o vincula a nós? (...) Sim, é preferí- dos a partir dela são incomensuráveis
vel confessar que essa pobreza de e renitentes, por isto é uma linguagem

229
de difícil substituição pelo aparato alunos, a cultura estruturante da es-
verbal. Representa uma dificuldade cola, pautada no texto verbal, fica em
para as práticas escolares afeitas às suspenso ou em risco (GOMES, 2012, p
nominalizações, previsões, disjunções e 13-14).
reduções.
Como signo linguístico a imagem é A narrativa visual fotográfica e o
uma representação socialmente par- Sertão Vivo em Cores
tilhada que se presta a diversos fins
e intenções; transmite mensagens e O saber fotográfico, aqui presente
informações, de modo pouco explícito intenta emancipação, na forma de
e não literal, criando uma rede de sig- perceber o retratável, que é definido
nificados sub-reptícios que contraria pelo visível e pelo sensível. As campo-
a lógica da objetividade estruturante. nesas (foto abaixo) seguindo a trilha de
Os sentidos do imagético escapam à chão batido, são parte de uma dinâ-
mera tradução verbal. Cria um espaço mica ontológica dessa realidade feita
próprio do dizer; faz transgressões e pelo saber diário e nômade, em busca
transmutações; forja sentidos insus- da vida.
peitados relacionados ao inconsciente A retração estética tenta ser mais
e ao enigmático. Uma cadeia flutuan- que um registro documental, e sim
te de significados que atravessa e vai uma forma alegoricamente cromática
além do sentido conotativo e denotati- de representar a realidade.
vo, simplesmente. Não podemos negar a inspiração
O processo de produção de senti- dessa imagem no Exodus, do fotografo
do das imagens é complexo, híbrido e mundialmente conhecido, Sebastião
transversal. A cognição que dá sentido Salgado. Essas duas senhoras em seu
à imagem não é aquela da fragmen- deslocamento migratório nos compe-
tação ou mapeamento dos territórios liram a conhecê-las e pedir permissão
do conhecimento, ao contrário, é um para capturar suas imagens. Segura-
pensar sem fronteiras e de aparente mente, havíamos feitos alguns clicks
falta de nexo. O texto verbal é apenas iniciais, antes de suas aproximações,
aproximativo do texto imagético, a lin- mas nos mostramos inteiros no sentido
guagem de um não pode ser traduzida de nos conceder permissão e manter a
pela do outro, apesar da coexistência captura daquela imagem e outras no-
“pacífica” e da relação de complemen- vas que desejávamos.
taridade que elas podem estabelecer
entre si. Não existem parâmetros ou
estruturas que regulem o sentido, so-
bretudo, não há como regular o senti-
do das imagens. Não se pode prever
com segurança o sentido que uma
imagem vai tomar frente a seu intér-
prete, por isso, quando um texto de
linguagem imagética é exposto aos

230
Imagem 04 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

231
Imagem 05 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

232
Reproduzimos essas imagens des-
tacando a forma de olhar sobre o todo
e as partes, o punctun e studium, para
citarmos Barthes (1984) em sua expli-
cação sobre epistemologia fotográfica,
o chão quente e amarelado pelo barro,
as marcas de pneus impressas no chão
pela passagens de veículos, a aridez
do lugar e seu clima seco e quente, a
saturação do terreno pela baixa pre-
sença de chuva, a distância das casas,
o calor cáustico sobre as nossas cabe-
ças, duas mulheres se deslocando num
ato de migração na busca de uma me-
lhor forma de vida, dentro desse sertão
diverso.
Chama-nos atenção no primeiro
momento as cores das vestes das duas
senhoras. Cores vivas, tons cromáticos
fortes: o amarelo da blusa, o vermelho
nas listas das saias e do chapéu, den-
tre outros detalhes que adereçavam
as duas senhoras, é uma forma de
afirmar a presença no lugar. O uso das
cores vivas nas vestimentas, os espa-
ços das casas são formas de alegrar a
vida de todos. As cores são formas de
afirmação identitária e são pautadas
em duas questões: a percepção da
beleza e da alegria. Nesse sentido, os
tons quentes das cores formam uma
pertença cromática frente a aridez do
ambiente.
Seguindo viagem nos deparamos
com novas pertenças cromáticas no
interno das residências e das pessoas;
é o caso da cerca de arame farpado,
que funciona como um colorido varal
de secagem ao sol.
As roupas (calças, toalhas, camisas,
blusas dentre outras peças) pendu-
ram cores sob o sol, flamulam ao sa-
bor do vento do sertão, em Paraíso,
Jacobina/BA.

233
Imagem 06 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

234
O céu compõe com seu tom celeste [...] as representações sociais da ima-
e branco a moldura superior. O chão gem têm uma relação dialética entre
cinza e marrom com a vegetação seca realidade e sistema de interpretação
e morta, compõe a moldura inferior que terá como síntese sua identifi-
da tela multicor. Esta imagem é a cação, ou seja, a identidade da ima-
representação de um sensorium, da gem. Por exemplo, na produção do-
realidade. Segundo Benjamin (1996) cumental videográfica e fotográfica
o processo de reprodutibilidade da de uma determinada cultura, é possí-
imagem na sociedade moderna, em vel enxergarmos os ícones simbólicos
particular a imagem fotográfica, se de significação de poder, reconheci-
insere numa formação tecnificante de mento, representações sociais e ideo-
desenvolvimento, com base no qual se logias que demarcam o conjunto sim-
instaura um novo sensorium, o qual é bólico das identidades em questão,
hiperdesenvolvido no âmbito da cultu- em um determinado espaço social. A
ra ocidental. A técnica da visualidade é auto-referência da imagem é reche-
parte constitutiva do efeito que a mo- ada de significantes identitários que
dernidade impôs à cultura visual, hoje equilibram realidade e representação
presente nas mais variadas formas de que são, ao mesmo tempo, estética e
sociabilidade. Imagens e formas, es- documentalmente relevantes (SILVA,
teticamente definidas, dão referências 2006, p. 40).
que guiam as ações sociais dos sujeitos
nos espaços públicos e privados. Nesse caso muito particular, vemos
A imagem desse varal é uma re- as bases de consolidação do olhar
presentação técnica da exposição do como uma ação social, que dentre ou-
olhar no espaço público. A fotografia tras coisas possibilita uma forma de
das vestimentas, exposta no espa- inclusão visual. Ou seja, o sujeito ver a
ço público da rua nos leva a perceber si próprio dando assim ao auto-retrato
uma relação entre público e privado certo poder de produzir uma mensa-
na composição das formas de repre- gem estética de si mesmo. Nesse sen-
sentação do sujeito. Expor as vesti- tido, o varal de roupas, exposto publi-
mentas é uma forma de se expor e se camente é uma prática comum desta
relacionar livremente com o espaço. cultura, uma marca identitária das co-
Não se trata apenas na possibilidade munidades do sertão.
de secá-las ao sol. Há neste gesto uma No exterior e interior das residências
relação de pertencimento e domínio as formas e as cores não são diferen-
do espaço que é ao mesmo tempo, pú- tes, a força cromática dos tons vivos,
blico e privado. verde, róseo, vermelho, azul, etc. man-
A auto-referência do sujeito e sua re- têm a mesma forma de representa-
presentação estética retratada na sua ção cromática da alegria e da beleza.
imagem e na imagem de seu ambiente Abaixo vemos o exterior da casa do Sr.
social, dá ao sujeito a possibilidade de Paulo em Paraíso (Jacobina). O tom
se auto-construir visualmente perante verde piscina é uma opção cromática
o mundo social.

235
que contrasta com a cor areia de todo
o entorno da residência.
Na parte interna dessa mesma casa,
se vê, curiosamente, um ambiente va-
zio de mobília, mas cheio de cor. Nesse
caso, a presença da cor verde claro
forte, representa um valor estético,
certamente, vinculado a esperança. O
detalhe de uma manta de chita colo-
rido (tecido muito encontrado na re-
gião) compõe a imagem como objeto
complementar.
Situação semelhante, temos no in-
terior da casa abaixo. O detalhe de
adereços e objetos instalados na pare-
de vermelha e branca, a manta que se
fixa na parede de cor igualmente forte
como um background do sofá, coberto
por outra manta feita de lindos reta-
lhos coloridos, é uma representação da
alegria presente naquele lar.

Imagem 07 - Fotos Sergio Luiz Silva - Fonte:


Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

236
Imagem 08 - Foto Sergio Luiz Silva - Fonte:
Projeto Cores do Sertão, 2012 – Cult-Vi, UNEB –
DCH4

237
Os elementos estéticos nos tor- complementares. Desse modo, o cará-
nam visíveis e identificáveis aos olhos ter narrativo da imagem possibilita um
alheios. Nossa pertença visual é assim: trabalho de manipulação que se apro-
nosso emblema, cartão de visita, rótu- xima do trabalho de edição, o que pos-
lo; Este fato ocorre quando se valoriza sibilita ao estudante o conhecimento
mais a fotografia do que a imagem da gramática e da arquitetura dos
concreta da pessoa vista a olho nu. grandes textos e peças visuais.
Valoriza-se mais a cor captada ou
saturada do que o ato representado. Referências
Nesses casos há a superação do valor
da coisa representada pelo valor da BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e
representação. Simulação. Lisboa: Relógio D´Agua.
1981
Considerações finais
BARTHES, Roland. A Câmera Clara. Rio
Percepções visuais se pautam numa de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
epistemologia que favorece a descons-
trução de olhares estereotipados posto BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas:
que contém especificidades ligadas ao magia e técnica, arte e política. São
tipo de texto e de linguagem que exige Paulo, Brasiliense, 1996.
atenção para algumas questões .
A leitura da imagem mantém uma BRASIL, Sérgio de Souza. Sobre o olhar
relação muito próxima da estrutura nas imagens. Revista Contracampo, n.
narrativa, não só porque se presta ao 2. UFRJ. 1982. Disponível em:< http://
serviço de narrar, mas, sobretudo, por- www.uff.br/mestcii/sbrasil1.htm >
que traz em si uma narrativa interna: Acesso em 20/07/2012.
um antes e um depois. As narrativas
visuais contam histórias e organizam CULT-VI. Cores do Sertão: Visualidade
percepções sobre temas e situações. e Educação para além da seca.
São muito comuns as historietas visu- Núcleo de Cultura Visual, Educação
ais que dispensam as palavras. Além e Linguagem, Departamento de
disso, um quadro visual ao retratar Ciências Humanas, Campus IV -
uma cena se revela como parte de Universidade do Estado da Bahia/
uma narrativa e representa um deter- UNEB. 2012.
minado momento, pressupondo uma
sequência de fatos. GOMES, Antenor. Lectura de imagen
Nas práticas pedagógicas a estru- y aprendizaje significativo. Revista
tura narrativa subjacente às imagens Hachetetepe número 04. Grupo de
possibilita a organização de atividades Investigación para la Educación
criativas de montagem e desmonta- en Medios de Comunicación,
gem de organização e reorganização Departamento de Didáctica de la
de sequência, criação e recriação de Universidad de Cádiz, Espanha. 2012.
narrativas sejam elas paralelas ou p. 137-146

238
JAGUARIBE, Beatriz. O Choque do
Real: estética, mídia e cultura. Rio de
janeiro, ROCCO, 2007.

SILVA, Sérgio Luiz P. Identidade e


novas mídias: a cultura visual
no processo de investigação das
ciências sociais. Rio de Janeiro.
In, Interseções: revista de estudos
interdisciplinares. 2006.

239
Tecendo uma rede de Educação
Ambiental no sertão da Bahia:
movimentos de fiação
Danilo Pereira da Rocha
Emanuela Oliveira Carvalho Dourado
Rosiléia Oliveira de Almeida

11.
Introdução

Este capítulo apresenta um trabalho investigativo para uma intervenção em


Educação Ambiental em rede, como resultado de estudo do Mestrado Profissio-
nal em Educação: Currículo, Linguagens e Inovações Pedagógicas, da Universi-
dade Federal da Bahia (MPED-UFBA). Ele procura demarcar que a crise ambien-
tal não é uma crise ecológica, mas uma crise da razão, do conhecimento (LEFF,
2010, p. 10). A busca por uma racionalidade que se distanciasse dos métodos
positivistas que corroboraram para a construção/agravamento da atual crise
ambiental planetária marcou todo o processo de produção deste trabalho. Por
esse motivo, as soluções para a crise ambiental não podem ser construídas com
base nessa racionalidade que busca a dominação e o aprisionamento da nature-
za. Logo, a solução para ela perpassa por uma outra racionalidade, que engloba
uma racionalidade ambiental e, neste caso, tecida em rede.
A racionalidade ambiental abre caminho para uma reerotização do mundo,
transgredindo a ordem estabelecida que foi pervertida pelo poder do saber. Ela
mobiliza a relação com o outro, elaborando categorias para apreender o real
desde o limite da existência e do entendimento. A racionalidade ambiental abre
um mundo pleno de muitos mundos por meio de um diálogo de seres e saberes,
da sinergia da diversidade e da fecundidade da outredade, de uma política da
diferença (LEFF, 2009, p. 18-22).
Deste modo, uma racionalidade outra é uma racionalidade para além da ra-
zão que aprisiona, domina e destrói a natureza e seus seres. Ela compreende que
as (in)certezas e o caos fazem parte da dinâmica da vida. Uma racionalidade

241
outra se constrói no diálogo eu-outro- Nesta perspectiva e buscando uma
-mundo, e propicia a compreensão de racionalidade outra, propôs-se uma
que a ciência e o conhecimento sur- pesquisa qualitativa de natureza fe-
gem a partir da percepção do ser no nomenológica. Para Bicudo (2011), a
mundo-vida. Uma racionalidade outra pesquisa qualitativa se preocupa com
fomenta o entendimento de que a lin- a qualidade do fenômeno percebido.
guagem acadêmica abarca outras for- Dessa forma, a qualidade do fenôme-
mas de linguagem e, assim, a poética no é percebida e mostra-se na percep-
do mundo assume seu lugar nas linhas ção do sujeito que percebe. Assim, a
deste trabalho. pesquisa qualitativa se configura como
É nesse contexto e a partir dessas “[...] um modo de proceder que permite
compreensões que mais uma vez se in- colocar em relevo o sujeito do proces-
terroga a Educação Ambiental. Assim, so, não olhado de modo isolado, mas
como afirma Bicudo (2011, p. 23-24), contextualizado social e culturalmen-
uma te” (BICUDO, 2012, p. 17). Esse aspecto
da pesquisa qualitativa caracteriza
[...] interrogação persiste, muitas a natureza fenomenológica que este
vezes, ao longo da vida de um pes- trabalho assume em sua constituição.
quisador, ou mantém-se durante Para Masini (1989, p. 61), a pesquisa
muito tempo com força que, como a de natureza fenomenológica “[...] ca-
physis, faz brotar e manter-se sendo. racteriza-se pela ênfase no ‘mundo
[Persiste mesmo que a pergunta] es- cotidiano’, pelo retorno àquilo que ficou
pecífica de um determinado projeto esquecido, encoberto pela familiari-
seja abordada, dando-se conta do dade (pelos usos, hábitos e linguagem
indagado. do senso comum)”. Merleau-Ponty
(2004) afirma que sempre somos ten-
De tal modo, a interrogação que di- tados a esquecer parte do mundo em
recionou este trabalho se move nesse que vivemos, ignorando-o na postura
processo de ser sendo, numa itinerân- prática do dia a dia. Essa familiarida-
cia pelo mundo, mas aportada numa de citada por Masini, e revelada por
determinada localização, que pode ser Merleau-Ponty, faz-nos ignorar ou es-
expressa da seguinte forma: como a quecer o mundo vivido. Deste modo,
Educação Ambiental é tecida no mun- é então tarefa de uma pesquisa qua-
do-vida de docentes das redes de edu- litativa de natureza fenomenológica
cação dos municípios de Irecê, Ibititá e procurar compreender a experiência
Lapão (BA)? Desse modo, a pesquisa do mundo-vida dos sujeitos coautores
intencionou fornecer elementos sobre da pesquisa. Esse sentido se faz valer
a realidade em que se pretende intervir à medida que olhamos atentamente
via proposta de criação de uma Rede para o mundo e buscamos compreen-
de Educação Ambiental que envolva, dê-lo com sua força, implicando o que
inicialmente, os três munícipios que aí está e, ao mesmo tempo, sendo im-
compuseram o MPED da UFBA entre plicado. Portanto, mutante, tempora-
2013 e 2015 (ROCHA, 2015). lizado, espacializado. Assim o sentido

242
que faz para nós é o de um mundo que o percebido [...]. Estamos presos ao
é vida, onde estamos umbilicalmente mundo e não chegamos a nos desta-
ligados, nutrindo-o e sendo por ele nu- car dele para passar à consciência do
trido (BICUDO, 2011, p. 35). Para Mer- mundo” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.
leau-Ponty (2014, p. 3), todo o universo 26).
da ciência emerge a partir da experi- Como ser-no-mundo e pela com-
ência no mundo-vida: preensão da tessitura da Educação
Ambiental no mundo-vida dos docen-
Tudo aquilo que sei do mundo, mes- tes das redes públicas de educação
mo por ciência, eu sei a partir de uma dos três municípios circunvizinhos, foi
visão minha ou de uma experiência elaborado um projeto de interven-
do mundo sem a qual os símbolos ção, “produto” do Mestrado Profis-
da ciência não poderiam dizer nada. sional, como resultado de um estudo
Todo o universo da ciência é constru- investigativo.
ído sobre o mundo vivido, e se que-
remos pensar a própria ciência com Investigar para intervir na educação
rigor, apreciar exatamente seu senti- ambiental
do e seu alcance, precisamos primei-
ramente despertar essa experiência Considerando as ideias fundantes
do mundo da qual ela é expressão apresentadas, a primeira ação no
segunda. campo da pesquisa foi a realização de
uma Desconferência: intervenções do/
A percepção tem um papel impor- no cotidiano, um evento coletivo que
tante nesse processo de retorno às teve como objetivo levantar discussões
coisas mesmas, pois é através dela sobre as temáticas das pesquisas que
que compreendemos o mundo, é atra- eram realizadas pelos mestrandos do
vés dela que “[...] a verdade do exis- programa e, através de diálogos co-
tente, enquanto tal, mostra-se a nós laborativos com os membros (profes-
como presença” (BICUDO, 2011, p. 32). sores, gestores, coordenadores) das
É preciso, então, compreender que o três redes que compõem o Mestrado
ser-está-no-mundo, “[...] e é no mun- Profissional em Educação da UFBA,
do que ele se conhece. Quando volto a discutir possibilidades para a cons-
mim a partir do dogmatismo do senso trução dos projetos de intervenções.
comum ou do dogmatismo da ciên- O uso da desconferência como uma
cia, encontro não um foco de verdade metodologia de pesquisa colaborativa
intrínseca, mas um sujeito consagra- corrobora com o posicionamento de
do ao mundo” (MERLEAU-PONTY, distanciamento da racionalidade posi-
2014, p. 6). Desta forma, o sujeito não tivista, e se sustenta na busca por uma
pode ser separado do mundo e sua racionalidade outra. Desta forma, ela
significação do mundo só se dá pela possibilitou que os professores das Re-
percepção, que implica que o ser es- des Municipais de Educação se mani-
teja inserido incondicionalmente no festassem sobre a problemática estu-
mundo. “Construímos a percepção com dada, para uma possível intervenção,

243
tornando-os realmente coautores dos de 1970 e 1980, quando o governo
trabalhos. Ainda na busca por essa federal intensificou o financiamento
racionalidade outra, foram realizadas do plantio e colheita nesses municí-
entrevistas narrativas com docentes pios. A agricultura era centrada ba-
das três redes. Elas foram precedi- sicamente na produção do chamado
das de um contato com obras de arte, tri-consórcio feijão – milho – mamo-
fomentando assim uma experiência na, e o sistema de produção utilizado
estética, aguçando suas percepções/ configurou-se como um “[...] elemento
interpretações via narrativas, para de forte pressão sobre o ambiente e
compreender como a Educação Am- de fragilização dos mecanismos de
biental é constituída no mundo-vida convivência da população com os re-
dos docentes entrevistados. cursos naturais” (LOPES, 2010, p. 88).
É evidente o alto nível de desmata-
Portanto, foi considerando a com- mento e degradação ambiental, que
plexidade da tessitura das narrativas foi acelerado nessas décadas, mas
dos docentes dos três municípios – que tem seu ápice atualmente, com
Irecê, Ibititá e Lapão – localizados no sinais visíveis de desertificação, com
sertão baiano e parceiros do MPED- alto nível de poluição, salinização das
-UFBA, que foi iniciada a deriva in- áreas de produção, pela devastação
vestigativa. São localidades próximas da vegetação e o comprometimen-
e que têm suas histórias tecidas pela to dos lençóis freáticos, associado
relação ser humano-natureza, quer à contaminação pelo uso de agro-
seja pela forte estiagem que deu iní- tóxicos e o uso intenso dos recursos
cio a tudo, a qual deixou o chão seco hídricos para irrigação, pela abertura
para que os pés e patas o transmu- de grande número de poços tubula-
tassem em poeira a ser levantada res de “[...] forma descontrolada, sem
pelos passos que seguiam por cami- a existência de fiscalização e de um
nhos incertos, quer pelo abrigo da monitoramento do uso da água” (LO-
primeira morada feita embaixo de PES, 2010, p. 92).
uma quixabeira, como no surgimento
do povoamento do município-sede e Com essa realidade que atinge o co-
que deu nome ao Território de Identi- tidiano e ameaça o futuro do TII e com
dade de Irecê (TII). Neste sentido, as o intuito de conhecer as preocupações
suas histórias e as dos demais mu- educacionais dos três municípios com
nicípios que compõem o TII têm uma a Educação Ambiental, foram realiza-
forte ligação com o ambiente; pelo das, inicialmente, visitas às suas Secre-
grau de derivação antrópica e pelas tarias Municipais de Educação, para
imagens de satélite, pode-se consta- conversar com os coordenadores res-
tar que a situação ambiental dos três ponsáveis pela Educação Ambiental,
municípios, bem como de todo o TII, e/ou com os coordenadores técnicos,
é cada vez mais crítica. Ela foi grave- coletando informações e documen-
mente afetada pela agricultura de- tos para, de antemão, compreender
senvolvida, especialmente, nos anos como a Educação Ambiental é tratada

244
institucionalmente pelos municípios vivem e habilitar educadores para de-
pesquisados. Em conversa com os senvolver ações estratégicas sobre os
coordenadores, foi possível perceber temas transversais, com atividades
que em nenhuma das redes há uma pedagógicas significativas, a partir
regulamentação para a Educação de projetos interdisciplinares. Embo-
Ambiental. A temática nem mesmo é ra os municípios de Ibititá e Irecê não
tratada nos textos curriculares. Entre- possuam programas ou propostas es-
tanto, no município de Lapão já existe pecíficas para a Educação Ambiental,
uma tentativa de institucionalizar a as escolas e principalmente os profes-
Educação Ambiental como política pú- sores afirmam realizar ações e ativi-
blica na rede de educação. Para isso, o dades em Educação Ambiental no seu
município criou em 2011 a Proposta de cotidiano, contudo em nenhuma das
Educação Ambiental, que traz orien- visitas realizadas foi possível observar
tações didáticas visando dar suporte atividades em Educação Ambiental
aos educadores. Elas são baseadas no acontecendo. Foram realizadas duas
Programa de Educação Ambiental do visitas a duas escolas dos municípios
Sistema Educacional da Bahia (Pro- de Ibititá e de Irecê. Essas etapas de
EASE – BA) e no Programa Nacional visitas foram imprescindíveis para a
de Educação Ambiental (ProNEA). Em produção dos dispositivos de coletas
relação ao município de Ibititá, a única de informações: desconferência e en-
menção em documento oficial sobre a trevistas narrativas.
Educação Ambiental é no Plano Mu- A desconferência foi realizada em
nicipal de Educação, Lei n.º 650, de 2014, no Parque da Cidade, localizado
14 de março de 2011. No documento, é no município de Lapão. O objetivo do
afirmado como um dos objetivos do evento era a construção de diálogos
Plano a oferta de cursos de formação com os membros (professores, gesto-
continuada em Educação Ambiental res, coordenadores) das três redes que
para professores e gestores que atuam compõem o MPED-UFBA. O evento
no Ensino Fundamental. As formações, foi organizado pelos 20 mestrandos
segundo o texto, deveriam ter come- do programa, como uma saída para
çado no primeiro semestre de 2011. romper com um ou mais aspectos de
Porém, nenhuma formação nesse sen- uma conferência convencional. Assim,
tido foi iniciada. No município de Irecê, os participantes foram convidados a
há uma iniciativa em parceria com o se movimentarem pelos espaços, a in-
Serviço Nacional de Aprendizagem teragirem, a conversarem, fugindo da
Rural (SENAR-AR/BA), o Programa perspectiva de figurantes ou ouvintes
Despertar, mas que não foi iniciado de uma preleção. Seu uso de cunho
até o momento da investigação. Ela acadêmico e voltado para a pesquisa
visa atender somente escolas das co- corrobora com a ideia inicial de escu-
munidades rurais do município. Entre ta dos profissionais da educação dos
os objetivos do programa está o de municípios como coautores. Neste
formar cidadãos capazes de valorizar sentido, o evento foi organizado em
e preservar o meio ambiente em que três espaços/momentos que, no seu

245
acontecer, deu vida ao que chamamos do programa. A mesa de Educação
desconferência. Ambiental foi uma delas e recebeu
O primeiro dos espaços/momen- importantes contribuições. Foram re-
tos era a alameda, que se constituiu alizadas quatro rodadas de conversas
como o espaço de entrada dos par- com dez participantes a cada rodada.
ticipantes, espaço de acolhimento e Cada rodada de conversa teve vinte
provocação, no qual ficaram expostos minutos de duração, o final do tempo
os banners com as informações e in- era sinalizado com música tocada ao
dagações sobre as temáticas das pes- vivo. E por mais que o fim da conversa
quisas realizadas pelos mestrandos. acontecesse de forma um tanto abrup-
Nos banners não havia informações ta, ainda no calor das discussões, as
sobre os mestrandos; o objetivo com músicas deram melodia e vida à dinâ-
isso era que os participantes escolhes- mica da metodologia. Cabia aos mes-
sem as mesas por afinidades com as trandos, durante a desconferência, o
temáticas, e não por afinidade com papel de coadjuvantes, de instigadores
os mestrandos ou por serem de suas das conversas, ouvintes das prosas que
redes. Já a instalação tinha como ob- eles tomavam para si.
jetivo a sensibilização e a provocação Na dinâmica do evento, algumas
dos participantes, e foi construída pessoas, no calor da conversa, não se
com objetos que remetessem às te- apresentaram, impossibilitando sua
máticas da pesquisa. A instalação era identificação nas gravações. Desta
composta por uma cama de gato que forma, os participantes foram identifi-
fazia com que os participantes se de- cados apenas como professoras. Para
sequilibrassem ao andar pelos espa- desencadear os primeiros diálogos foi
ços, provocando a busca constante de lançada a indagação: como a Educa-
equilíbrio. A cama de gato foi utilizada ção Ambiental acontece nas escolas?
como metáfora para os problemas A conversa é iniciada por uma fala
que acontecem no cotidiano escolar e de uma professora que propõe que a
na tentativa de busca de solução para Educação Ambiental seja inserida nos
esses problemas. A dinâmica de World currículos municipais como disciplina
Café foi utilizada para efetivação dos específica, expondo um debate históri-
diálogos colaborativos entre os parti- co da Educação Ambiental, que pare-
cipantes do evento, em várias rodas de cia ter sido superado, mas que sempre
conversas que acontecem simultane- ressurge como uma maneira de tornar
amente em diversas mesas. As rodas as ações em Educação Ambiental nas
tinham um tempo determinado para escolas mais frequentes. Contudo, no
o seu acontecer. Ao final desse tempo, tecer da conversa, as falas de outras
os participantes deviam se levantar e professoras demonstram outras for-
escolher outra mesa, para que pudes- mas de pensar e compreender essa
sem tecer um novo diálogo/conversa. questão, sendo que a própria legisla-
O WC foi composto por quatorze me- ção vigente que dispõe sobre a Edu-
sas divididas de acordo com as temá- cação Ambiental, a Lei n.º 9.795, de 27
ticas das pesquisas dos mestrandos de abril de 1999, institui como um dos

246
princípios da Educação Ambiental a para produzir menos lixo, e distribui
perspectiva inter, pluri, multi e trans- panfleto de papel!”. Professora B: “-
disciplinar, e os Parâmetros Curricu- E outras coisas, diversas coisas que
lares Nacionais, desde 1997, tratam o acontecem. No Dia da Criança, mui-
Meio Ambiente como tema transversal. tas escolas fazendo banho de man-
No entanto, um aspecto bastante im- gueira, e nós estamos passando por
portante revelado nos fios da conversa racionamento de água, a gente não
é a não contextualização dessas prá- sai do racionamento já há uns três
ticas com os problemas ambientais da anos. Mas toda escola fez o banho
região, que, naquele momento, devi- de mangueira. Eu estou incentivando
do a uma forte seca e aos problemas meu aluno a chegar em casa e a fa-
de gestão hídrica, passava por um zer o banho de mangueira qualquer
racionamento de água. O trecho da dia que ele quiser. Aí em minha aula
conversa mostra como esse aspecto é eu falo: usar o balde para limpar a
exposto: casa ou carro, usar o balde, não usar
a mangueira, aí eu vou e faço banho
Professora A: “- É uma questão cur- de mangueira na escola. Então são
ricular, ela como disciplina. Cobrado pequenas coisas que a gente faz na
realmente para ser realizado”. Pro- escola que reflete muito na vida das
fessora B: “- Eu vou mais além da co- crianças” (DESCONFERÊNCIA, 2014).
brança disciplinar, eu vou mais para
o olhar do próprio professor”. Pro- Essa e outras questões suscitaram
fessora C: “- Se o professor não tiver boas reflexões acerca das políticas
esse olhar ambiental...”. Professora municipais relacionadas à Educação
B: “- Porque já tem tanta coisa que é Ambiental, como o não aparecimen-
cobrada no currículo, mas não acon- to nos currículos de orientações para
tece”. Professora D: “- Porque é uma o trabalho nas escolas ou a produção
questão transversal, a própria lei diz de materiais que deem suporte para
que é transversal”. Professora B: “- as ações dos professores, que estão
Os PCN já trazem isso. Mas falta esse diretamente relacionadas à falta, tam-
olhar ambiental. Quando a gente bém, de formação continuada para
faz um evento na escola, ou que vai os professores. Contudo, emergem na
trabalhar mesmo o Dia do Meio Am- conversa falas que mostram que, ape-
biente, aí a gente vê muitos professo- sar da ausência de políticas públicas
res cortando galhos verdes para de- específicas, projetos são enviados pe-
corar o espaço. Eu posso decorar com las Secretarias de Educação para as
galhos secos, com folhas secas. Eu escolas trabalharem, embora os pro-
tenho outras opções, mas eu só tenho fessores deixem transparecer em suas
isso se eu parar para refletir que se falas que as temáticas dos projetos
eu tiver quebrando o galho, eu estou muitas vezes não estão contextuali-
no dia do meio ambiente agredindo o zadas com as realidades das escolas
meio ambiente”. Professora D: “- Ou e das comunidades nas quais estão
faz a passeata pela conscientização inseridas.

247
Deste modo, para interpretar-com- entrevistas narrativas com os docen-
preender melhor esse processo nas tes dos referidos municípios, que fo-
escolas, foram realizadas entrevistas ram interpretadas, compreendidas e
narrativas. Elas nos possibilitaram categorizadas.
conhecer as experiências dos entrevis- Foi um processo de análise que iden-
tados, visto que, como nos diz Dutra tificou fios imbricados que constituem
(2002, p. 377), “[...] o ato do sujeito de o acontecer da Educação Ambiental.
contar a sua experiência não se res- Eles foram produzidos ao agregar as-
tringe somente a dar a conhecer os pectos semelhantes do fenômeno, e
fatos e acontecimentos da sua vida. foram nomeados a partir de inspiração
Mas significa, além de tudo, uma for- da história do surgimento dos municí-
ma de existir-com-o-outro [...]”, existir pios nos quais o estudo foi realizado.
como um ser a dois enquanto nossas Assim, os “Fios Aqua” receberam esse
experiências se fundem naquele mo- nome com base na história de Lapão,
mento, no ato de narrar e ouvir. Nesta de sua fonte de água limpa. Inspirados
perspectiva, as entrevistas narrativas nos rochedos imponentes de Ibititá, te-
foram realizadas com base nas reco- mos os “Fios Rupes”, e na quixabeira-
mendações de Jovchelovitch e Bauer -mãe de Irecê temos os “Fios Arbor”. As
(2014, p. 97). Primeiramente, nas visitas nomenclaturas dos fios vêm do Latim:
às escolas, foi feita a identificação de Aqua, água, cuja análise nos fala de
professores que desenvolviam ativi- fluidez (motivação e conscientização);
dades que envolviam a Educação Am- Rupes, rocha, rochedo, traz-nos a ideia
biental, para depois propor e realizar do que é consistente no trabalho para
as entrevistas narrativas, que acon- os docentes (conteúdos, temáticas e
teceram da seguinte forma: foram contextualização); Arbor, árvore, re-
apresentadas aos docentes reprodu- mete-nos ao fazer pedagógico, que se
ções de quadros de Antônio Karneiro apresenta numa lógica arbórea, não
(artista local que retrata a região), com transversal, ou inter-transdisciplinar.
objetivo de provocar e acionar suas Elas denotam, pois, a interpretação-
memórias, embora não seja possível -compreensão dos participantes da
afirmar que o contato com as obras de pesquisa, de modo que nos permitiu
arte tenha provocado uma experiência essa categorização. No entanto, é pre-
estética (GADAMER, 2014, p. 116). Mas ciso explicitar que, apesar desses fios
acreditamos que o uso das obras de estarem apresentados na ordem que
arte possibilitou uma maior interação segue, nós os percebemos numa lógi-
com os professores, para que as narra- ca de horizontalidade, portanto, não
tivas fluíssem com maior naturalidade. hierarquizados. Desse modo, com base
Assim, logo após esse momento foi nos conhecimentos e percepções do
apresentado aos docentes o tópico ini- seu mundo-vida, o leitor tem a liber-
cial para narração: “Conte sobre suas dade de suscitar uma outra forma de
experiências com a Educação Ambien- organização, questionando, inclusive, a
tal”. Após a provocação, eles iniciaram nomenclatura de cada caracterização/
suas narrativas. Foram realizadas seis invenção.

248
Fios Aqua: motivação e conscientização ações e práticas em Educação Am-
biental mais conscientes e contextua-
A partir das leituras e análise das lizadas com a realidade local. Em um
entrevistas foi possível perceber que fragmento da narrativa da Professora
das narrativas emergiam aspectos 2 podemos perceber a importância da
que mostram um caráter motivacional valorização do meio ambiente local
dos professores entrevistados para o para a motivação em relação a esse
trabalho com Educação Ambiental. trabalho. Segundo ela, “O que me mo-
Embora esses aspectos não apare- tiva é que somos daqui, moramos na
çam em todas as narrativas, é possível Caatinga, e isso faz com que a gente
perceber diferentes motivações para esteja valorizando o que é nosso” (EN-
o trabalho, como a história pessoal, TREVISTA NARRATIVA, PROFESSO-
a formação acadêmica, a busca pela RA 2, 2015). A busca pela construção
valorização do meio ambiente local e de uma sustentabilidade é outro fio
a perspectiva de mudança na organi- condutor que move os professores no
zação social. O fragmento da narrativa processo de realização da Educação
da Professora 1, apresentado abaixo, Ambiental. Essa busca está atrelada
mostra como a sua história pessoal e à perspectiva de uma mudança mais
concepções movem seu trabalho com profunda na estrutura da organização
a Educação Ambiental: social e do abandono do modo de de-
senvolvimento capitalista. A narrativa
Desde sempre eu luto muito pela da Professora 3 traz essa busca por
questão ambiental, pelos vínculos uma transformação social:
de amizades, e fui buscando essa
formação, fui até a Paraíba fazer Eu como professora de Filosofia tra-
um curso de produção de agricultura go a abordagem filosófica da ques-
familiar, que é o Sistema Mandala tão ambiental, a discussão social,
de Produção, depois fiz uma pós-gra- sempre trouxe nas minhas aulas de
duação na UNEB em Sustentabilida- Filosofia quando era professora do
de Ambiental, tenho buscado essa Ensino Fundamental II, e trago agora
formação. Estou sempre puxando, para o 4º ano. Como isso acontece,
seja em qual disciplina for, a sardinha eu discuto muito a questão do modo
para meu lado, porque eu adoro, é o de produção capitalista, e a forma
que eu acredito, essa questão da sus- como esse modo de produção impac-
tentabilidade, da permacultura, do ta na questão ambiental. E aquela
cuidado com o meio é uma coisa que ideia de sustentabilidade, que a meu
me move, me faz... (PROFESSORA 1, ver não cabe dentro dessa organiza-
ENTREVISTA NARRATIVA, 2015). ção social (PROFESSORA 3, ENTRE-
VISTA NARRATIVA, 2015).
A luta em defesa do meio ambien-
te move a busca por uma formação Nesse sentido, a motivação para
acadêmica/profissional que possibi- o trabalho com Educação Ambiental
lite meios para o desenvolvimento de está na idealização de construção de

249
uma sociedade que abandone e supe- gente enfrentar, enfrentar isso, mas
re o modelo de produção capitalista. mudança radical mesmo a gente não
Nesse sentido, é preciso compreender vai ter, isso não impede a gente de
os impactos causados por esse mo- fazer, e incentivo sim desde a sala, a
delo de desenvolvimento. Para a pro- questão do lixo na sala, um ambiente
fessora, uma mudança dessa lógica limpo na sala de aula. (PROFESSORA
desenvolvimentista englobaria e seria 3, ENTREVISTA NARRATIVA, 2015).
alicerçada no ideal de sustentabilida-
de. A formação inicial também tem um Eu tenho buscado essa ligação com
papel importante na motivação e no Educação Ambiental sempre que pode
aspecto que as ações em Educação aqui na escola. Com os meus pequenos
Ambiental terão, se em uma perspec- do 3º ano é plantar mudas, é tentar
tiva voltada para uma discussão mais mostrar para eles a importância da
teórica ou em uma perspectiva vol- água, a importância de não desper-
tada para ações mais práticas. E isso diçar água, e fazendo esse sistema de
influencia diretamente como o papel conscientização no caminho, de cons-
da conscientização é visto dentro da cientização e ação. Para evitar proble-
Educação Ambiental. A partir dos mas futuros. (PROFESSORA 1, ENTRE-
fragmentos a seguir podemos compre- VISTA NARRATIVA, 2015).
ender que o papel da conscientização Assim, a gente já contempla o con-
é visto de forma completamente dife- teúdo Biomas, mas eu procuro focar
rente por alguns professores: mais no nosso a Caatinga, isso não
quer dizer que eu não trabalho os ou-
Eu não acredito que consciência tros, mas eu acabo dando uma impor-
muda alguma coisa, se consciência tância maior para o nosso, para que
mudasse, já teríamos mudado mui- eles conheçam, para que eles tenham
ta coisa. São ações mesmo, embora aquela visão, sabe, uma sensibilização,
determinadas ações não vão mudar cuidando do meio ambiente, das plan-
o problema, que é bem mais profun- tas, dos animais, da vegetação. (PRO-
do, bem mais concreto. Eu acredito FESSORA 2, ENTREVISTA NARRATIVA,
na mudança, numa mudança mais 2015).
radical em relação ao modo como a
gente vive, para a gente realmente Através das narrativas compreende-
ter uma solução. Mas isso não impe- mos as diversidades de formas como
de, eu passo para meus alunos isso, os professores percebem o papel da
não impede da gente, ah! porque conscientização dentro da Educação
uma simples ação minha não vai Ambiental. A conscientização, muitas
mudar, eu não vou fazer isso, não, eu vezes, é vista como uma forma de sen-
supervalorizo essas ações individu- sibilização para o cuidado com o meio
ais, mas não deixo de dizer para eles ambiente, para fomentar uma preser-
que eles precisam ter consciência vação e conservação ambiental, ou até
de que isso não vai mudar o mundo, mesmo vista como algo dissociado de
isso são alternativas, paliativos para uma força capaz de realizar mudanças

250
sociais profundas. A conscientização estudantes. Os fragmentos das narra-
nessa perspectiva é vista como ge- tivas a seguir mostram esses aspectos:
radora apenas de ações simples, de
medidas paliativas para os problemas No 4º ano, um elemento que eu gos-
ambientais, mas não chegando a so- to de trabalhar, e tento transpor da
lucioná-los. Contudo, como podemos melhor forma possível, para que eles
perceber na narrativa da Professora 3, possam compreender a sociedade,
a conscientização é algo mais comple- mas trazendo essas concepções filo-
xo que a simples visão romântica que sóficas, é a etapa da produção, ex-
a rodeia. tração e o impacto na natureza [...] A
questão do consumo dentro de casa,
Fios Rupes: conteúdos, temáticas e e todo o processo: fábrica, venda [...]
contextualização e o lixo [...] que é outra etapa desse
processo de produção, isso eu tento
As narrativas dos professores trazem abordar com imagens, com vídeos,
em suas palavras e sentidos os conte- dentro do 4º ano [...]. Tem muita coi-
údos e temáticas que são trabalhados sa para discutir, cada etapa dessa,
dentro da perspectiva da Educação tanto no aspecto ambiental quanto
Ambiental. As experiências narradas no aspecto social, como isso influen-
mostram que os conteúdos e temáti- cia na vida da gente e essa relação
cas estão ligados principalmente ao com o modo de produção capitalista
componente curricular de Ciências Na- é bem complexa. Em Ciências, outra
turais, mesclados, também, a algumas disciplina que também leciono no 4º
discussões filosóficas que englobam ano, em relação a questão do meio
outras áreas. Mas existe uma tendên- ambiente, eu trabalho os conteúdos
cia em compreender a Ciência (como que são programáticos para o ano,
eles nominam, especialmente, a Bio- terceiro bimestre estamos traba-
logia) como o componente em que se lhando ecossistema, nisso tem toda
aborda a Educação Ambiental, deixan- a questão ambiental: a relação entre
do de lado o seu caráter inter/transdis- seres vivos, a respiração, alimen-
ciplinar. Assim, os principais conteúdos tação; isso faz parte dos assuntos
e temáticas trabalhados que apare- que está relacionado com o meio
cem nas narrativas dos docentes são ambiente, e uma vez por outra a
sobre ecossistemas, vegetação, lixo, gente também traz em ciências essa
consumismo, reciclagem e reutilização questão da consciência mesmo, essa
de materiais, e biomas – este com en- conscientização em relação ao tema.
foque na Caatinga em uma tentativa (PROFESSORA 3, ENTREVISTA NAR-
de contextualização do conteúdo com RATIVA, 2015).
a realidade local. São práticas que de- E a gente foi falando mais dessas
monstram, especialmente, que alguns plantas que sobrevivem na seca, até
docentes, aonde quer que estejam, mesmo no lajedo. Aí programamos
conduzem sua ação educativa mobi- com eles para ir em Laranjeira, na
lizados, também, pelos contextos dos Serra, depois de todas as atividades

251
feitas em sala de aula a gente foi Contudo, há uma ênfase no conte-
para lá, passamos uma manhã com údo escolar. Assim, entre as temáticas
eles, nós subimos a Serra, aí mostra- abordadas na Educação Ambiental
mos cactos, o mandacaru, e fotogra- que emergiram nas narrativas, mes-
famos. E assim, lá foi mais para eles cladas com a contextualização que
verem as plantas, e na sala de aula apareceu como importante, podemos
trabalhamos todo o conteúdo, como destacar o sistema de produção capi-
o mandacaru fica durante a seca, talista, como por exemplo a vegetação
que ele não resseca ou morre, é uma nativa, a extração de produtos natu-
planta sempre verde, que ele tem rais e o impacto na natureza, o consu-
sempre aquela umidade, tem a água. mismo, a produção de lixo e sua impli-
(PROFESSORA 4, ENTREVISTA NAR- cação socioambiental. No conteúdo do
RATIVA, 2015). componente curricular Ciências Natu-
Eu sempre trabalho com a questão rais – e para os últimos anos do EF, a
da reafirmação da identidade, sem- Biologia – as atividades são voltadas
pre que eu trabalho com caatinga, eu para fomentar uma conscientização da
trabalho nesse sentido de reafirmar, necessidade de reafirmação e constru-
de meios, de técnicas, de possibili- ção de uma identidade local e para a
dades de conviver com o semiárido, necessidade de criar mecanismos para
se tem uma coisa que me incomoda convivência com a seca e preservação
extremamente é uma pessoa dizer da Caatinga. Embora seja forte essa
que quer combater a seca, ninguém visão da ligação da Educação Ambien-
combate seca, a gente convive com tal com o ensino de Ciências Naturais,
a seca. Sempre que eu trabalho os existem algumas práticas, quase iso-
biomas, eu acabo entrando mais na ladas nas redes, que tentam romper
caatinga, passo pelos outros, mas com essa perspectiva. Neste sentido,
entro na caatinga, e aí vou visitar algumas narrativas mostram a expe-
uma barriguda, vou visitar um pé riência de trabalhos envolvendo pro-
de mandacaru que tem um aqui no fessores ligados aos componentes de
nosso bairro que é lindíssimo, trago Língua Portuguesa, Arte e, dentro do
poemas que falam sobre a caatinga, Programa Mais Educação, contraturno
a gente já saiu para fazer fotogra- das aulas, na Oficina de Música. A bus-
fias, produzimos poemas em cima ca por esse rompimento está atrelada,
das fotografias. Então, sempre com principalmente, à motivação e à for-
reafirmação, dando motivo de orgu- mação dos professores para o traba-
lho, e tentando mostrar a beleza da lho com Educação Ambiental, de modo
caatinga, a força que a caatinga tem, transversal, especialmente quando se
sempre nesse sentido de reafirmar, trabalha com Ciências Naturais e ou-
tanto com os alunos grandes, quanto tras áreas de conhecimento, o que nos
com os pequenos. (PROFESSORA 1, dá pistas de que a formação de pro-
ENTREVISTA NARRATIVA, 2015). fessores para a Educação Ambiental é
realmente imprescindível. Vejamos:

252
Tenho trazido para sala de aula alternativos de produção, baseados
quando é possível, já que uma hora no princípio da sustentabilidade e da
eu estou com Língua Portuguesa, ou- produção de alimentos orgânicos, ob-
tra hora estou com disciplina de Ciên- jetivando que os alunos possam utilizar
cias, agora mesmo estou com Artes, o conhecimento sobre essas técnicas
mas sempre que dá eu estou encai- com suas famílias em suas proprieda-
xando. No início da minha formação des e produções. A contextualização
eu comecei com o 6º com Língua Por- também ocorre com outras questões
tuguesa no Colégio com o Sistema ambientais, como a problemática dos
de Produção em Mandala [...] peque- lixões urbanos e o trabalho de alguns
ninha em forma de horta. E traba- alunos com a coleta de lixo. Podemos
lhando todos os conceitos de cuidado perceber esse aspecto na narrativa a
com o solo, do manejo do solo, ma- seguir:
nejo de cultura, e sempre trazendo
esses conceitos para eles. Depois Eu cheguei o ano passado nessa [es-
vim para Escola, tem seis anos que cola] para trabalhar no Mais Educa-
estou aqui na escola e estou sempre ção, depois de uns três meses, quatro
inserindo dentro do que é possível [...]. meses, percebemos a necessidade
Fizemos por último um trabalho com dos meninos trabalharem melhor
arte sobre Vik Muniz, que é um artista a Oficina de Música, só que aí per-
plástico que trabalhou com lixo, com cebendo que alguns dos meninos
resíduo sólido, e em cima de produ- tocavam bem tambor, timbau, instru-
ção de artistas nós trabalhamos com mentos de percussão. Eu tive a ideia
resíduos sólidos. Tem a produção fi- de confeccionar os nossos próprios
nal, mas aí tem todo um trabalho de instrumentos, e aí dentro da meto-
conceitos antes, o que é resíduo só- dologia da escola, que não temos
lido, o que é resíduo orgânico, o que condições de comprar os instrumen-
eu posso fazer com esse lixo orgânico tos musicais que outras escolas têm,
para que ele não seja jogado fora, e como banda marcial, a gente fez uso
não se tornar o lixão que está Irecê. da sucata, tambores, latas, garra-
Nós fomos no lixão, nós tiramos fotos fa pet, latas, pedaços de pau, cano
do lixão, e então discutimos quais são de pvc, sucata mesmo [...]. A gente
os danos que trazem à população o começou a ensaiar, e hoje, graças a
lixo ser colocado daquela forma, o Deus, os meninos já tocam; como diz
assoreamento da terra, a poluição o nome do projeto Sucatocando, es-
dos lençóis freáticos. (PROFESSORA tão tocando sucata. [...]. Atualmente
1, ENTREVISTA NARRATIVA, 2015). nós estamos fazendo uma parceria
com o Ponto de Cultura, levando
As atividades em Educação Am- essas oficinas para outras escolas,
biental que acontecem a partir dessa porque a ideia justamente atender o
abordagem trazem, de forma contex- máximo de escolas da Rede. E o bom
tualizada, a realidade dos alunos, vis- do projeto é que ele trabalha com
to que existe um estudo sobre modos aquilo que ninguém quer, que é o

253
lixo [...]. Quando os meninos aqui de- Fios Arbor: o fazer pedagógico
monstraram habilidade, eu não pen-
sei duas vezes, e a música dá para Das narrativas dos professores so-
trabalhar todas as disciplinas. E a bre suas experiências em Educação
ideia do meio ambiente, da questão Ambiental emergem os fios que per-
ambiental, a gente enfoca nas letras mitem compreender como acontece
das músicas [...]. E o fechamento do o fazer pedagógico de suas práticas
projeto foi muito bom, aqui no pátio e ações. Deste modo, após analisar
com as músicas abordando assuntos as narrativas foi possível identificar
que foram antes trabalhados na sala aspectos do fazer pedagógico e com-
de aula sobre a questão ambiental preender que as escolhas das meto-
[...]. Além dos muros da escola, aqui dologias utilizadas e o enfoque dado
os meninos trabalham catando lixo, e à Educação Ambiental pelos docentes
é até uma forma de sobrevivência, de estão intrinsecamente relacionados
renda, eles trabalham catando lixo e com suas crenças filosóficas, sua com-
sucata para vender. E na música nos- preensão de mundo e sua motivação
sa, de instrumento diferente só tem o para o trabalho com a Educação Am-
violão, que dá o ritmo na música, mas biental. Nesse sentido, foi possível
as latas, os tambores, os chocalhos, compreender que o fazer pedagógico
tudo com materiais reciclados. (PRO- envolve diferentes metodologias e or-
FESSOR 5, ENTREVISTA NARRATIVA, ganizações, desde projetos, sequências
2015). de atividades e sequências didáticas,
englobando dentro dessas organiza-
Os fios que trazem em sua consti- ções metodologias como aulas expo-
tuição os conteúdos e temáticas abor- sitivas, discussões teóricas, debates,
dados dentro das atividades voltadas produções artísticas – principalmente
para a Educação Ambiental mostram, com a reutilização de materiais, visitas
na sua maioria, a redução da Educa- a espaços fora da escola, realização
ção Ambiental em uma única discipli- de conferência e exibição de filmes e
na, especialmente quando trabalhada documentários. Nesse sentido, alguns
na perspectiva do ensino de Ciências fragmentos das narrativas emergem
Naturais, ou só da Biologia. Entretan- esse fazer pedagógico:
to, percebemos que outras perspec-
tivas de ações que envolvem a Edu- Eu começo com aulas expositivas,
cação Ambiental estão acontecendo eles trazem amostras de plantas
no cotidiano escolar, e para além dos para a sala, a gente constrói o Can-
muros das escolas, contextualizando a tinho da Caatinga. Os alunos fazem
vida dos alunos com o processo edu- pesquisa sobre o tema, de plantas
cativo, como a prática narrada pelo que já não existem mais, o porquê
Professor 5. de essas plantas estarem extintas. A
gente discute o que leva o ser huma-
no a estar assim, invadindo sem equi-
líbrio o meio ambiente, a Caatinga.

254
(PROFESSORA 2, ENTREVISTA NAR- eles abordarem a forma como eles
RATIVA, 2015). compreendem [...] depois eu inserir o
Eu trabalho com reaproveitamento conteúdo. Com os meninos maiores
de material, assim com garrafa pet, eu gosto de debate, eu trago o tema,
com tampinhas. Para a horta a gen- pergunto muito para saber a com-
te recolhe os vasilhames, cortamos, preensão deles sobre o tema, e aí vou
colocamos pedras, o material de entrando no assunto, vou trazendo
adubo, depois de adubados, planta- filósofos, diferentes ideias, principal-
mos. Fazemos todo aquele processo mente em debates [...]. Procuro inserir
que tem que fazer primeiro para de- documentários, que abordam esse
pois começar. Os brinquedos, como aspecto, tem um mesmo “A história
carrinho, vaivém, boliche, que faço das coisas”, é um curta metragem
com garrafa pet, fizemos o boneco que eu uso nas minhas aulas de filo-
com tampinhas e vasos reciclados. sofia, por que os meninos são maio-
Comecei a desenvolver esse trabalho res e eu tenho um retorno melhor nas
no ano de 2012, eu vi que a carência discussões [...]. No 4º ano a seleção
é muito grande para isso, que tínha- do documentário tem que ser bem
mos muitos vasilhames jogados fora criteriosa, se não eles não vão com-
[...]. Agora estamos fazendo a horta preender, por exemplo, documentário
suspensa; a única coisa que a gente legendado é bem difícil para eles en-
comprou foi o arame, mas as outras tenderem [...]. (PROFESSORA 3, EN-
coisas é tudo reciclado. Primeiro eu TREVISTA NARRATIVA, 2015).
explico aos alunos como recortar, a As atividades às vezes são perma-
partir daí cada um vai cuidar da sua, nentes em sala de aula, outras vezes
vai molhar, vai cuidar da sua planta. através de projetos. Nós tivemos
Discuto com eles quanto tempo gas- já uma Conferência de Educação
ta cada material para se decompor. Ambiental aqui na escola com o 4º
(PROFESSOR 6, ENTREVISTA NAR- ano. Mas geralmente a gente monta
RATIVA, 2015). uma sequência didática em cima do
Eu trabalho desenvolvendo sequ- conteúdo, quando se constrói uma
ências didáticas. Dentro da matéria sequência didática tem-se um pro-
de filosofia fica mesmo atividades duto final, que pode ser a produção
na sala, esse sair, trabalhar com de cartazes, produção de painéis
materiais recicláveis, toda essa con- com lixos, ou a própria conferência
cepção eu não ando muito por aí, que foi uma produção final. Dentro
por uma questão mesmo de como dessa conferência nós construímos
eu acredito nessa sustentabilidade, um documento para escola, falando
porque de certa forma aquilo a gen- quais são as nossas metas, as nossas
te defende influencia um pouco na intuições com o meio ambiente, como
forma como trabalhamos [...]. Daí eu escola atuando no meio ambiente.
deixo meio que para eles pensarem, Através das sequências didáticas tem
gosto de começar minhas aulas sem- produções textuais, tem visualização
pre com perguntas, deixar mesmo de vídeos como “O veneno está na

255
mesa”, como “A história das coisas”, legitima a ação em rede. E, neste caso,
“A ilha das Flores”, que eu sempre conectar as Redes Públicas de Educa-
trabalho com esses vídeos, tem outro ção em rede de Educação Ambiental.
agora que é “O veneno está na mesa
2”, que eu já estou pensando em uti- Movimento ambiental e organização
lizar. (PROFESSORA 1, ENTREVISTA em rede
NARRATIVA, 2015).
O entrelaçamento da Educação Am-
As metodologias utilizadas no fazer biental com os ideais de organização
pedagógico em Educação Ambiental em rede tem propiciado o seu fortale-
narradas pelos professores mostram cimento e o desenvolvimento de prá-
que, apesar da diversidade de estraté- ticas e ações. A Educação Ambiental
gias desenvolvidas, há, na sua maioria, tem se espalhado pelos nós das redes,
uma tentativa de “domar” a condição mas tem um marco inicial ocorrido há
não linear e complexa do conhecimen- mais de duas décadas. Durante a Rio-
to ambiental e sua abordagem inter/ 92, várias organizações, ambientalis-
transdisciplinar, tentando encaixá-la tas e educadores do mundo inteiro se
em metodologias tradicionais da edu- reuniram no Rio de Janeiro para discu-
cação, como as aulas expositivas, ou tir sobre as questões ambientais e vias
tentando reduzi-la a uma única disci- de ação. O clima de discussão, mobili-
plina, ligada principalmente ao ensino zação e envolvimento foi propício para
das Ciências Naturais. Sem a preten- gestação de várias ações em defesa
são de tecer qualquer julgamento so- do meio ambiente, entre elas a criação
bre o fazer pedagógico dos professo- de Rede de Educação Ambiental. De
res, mas a fim de compreender melhor acordo com Jacobi (2000, p. 146), foi
seu acontecer, e entrelaçando com as a partir do ano de 1992 que algumas
narrativas dos outros fios, é possível “[...] redes e coalizões passaram a se
dizer que a ausência de formação con- estruturar com o objetivo de enfrentar
tinuada contribui para essas tentativas nacional e regionalmente [...] temas
de redução da Educação Ambiental críticos que demandam organização,
em temáticas ligadas ao ensino dessas articulação e mobilização”. Foi nesse
Ciências, prioritariamente. cenário que a Rede de Educação Am-
Deste modo, o objetivo foi compre- biental da Bahia (Reaba) foi gestada
ender como acontecem as práticas por um grupo de ambientalistas e edu-
em Educação Ambiental dentro dos cadores ambientais baianos que parti-
municípios, a fim de obter elementos cipavam da Conferência, com o objeti-
para a construção de uma proposta de vo inicial de divulgação do Tratado de
intervenção. Ela precisa estar em con- Educação Ambiental para Sociedades
sonância com os princípios para uma Sustentáveis e Responsabilidade Glo-
Educação Ambiental na escola, que bal, documento produzido durante a
perpassa por considerar a dinâmica Conferência no Rio de Janeiro. A Re-
já instituída pelo movimento do meio aba foi reativada em 2004 durante
ambiente, contemporaneamente, que o Seminário de Educação Ambiental

256
promovido pela Comissão de Meio Por meio dos recursos virtuais das
Ambiente da Assembleia Legislativa tecnologias e de encontros presen-
do Estado da Bahia, desta vez com o ciais regionais e nacionais, aproxi-
objetivo de articulação dos educadores mam pessoas comprometidas com
ambientais, visando fortalecer a im- os mesmos interesses e as tornam
plementação do Programa Nacional capazes de se unirem em torno de um
de Educação Ambiental (ProNEA) e objetivo comum. Assim, as redes tor-
fomentar o relato de experiências e a nam-se meios abrangentes de mobi-
formação de educadores para o forta- lização, sensibilização e informação
lecimento da Educação Ambiental no para a participação individual e cole-
estado da Bahia. tiva, visando atingir as finalidades de
Para Martinho (2003), as organiza- uma EA emancipadora e transforma-
ções em redes apresentam-se como dora. (GUERRA et al., 2008, p. 81).
um desafio interessante para a promo-
ção das transformações necessárias Assim entendidas, as redes de Edu-
para uma nova forma de organização cação Ambiental se configuram como
social, econômica e cultural entre pes- uma “[...] real possibilidade de cons-
soas e grupos, que se caracterize pela trução de espaço educativo, público e
cooperação, interdependência, auto- ampliado, constituído por aqueles que
nomia, solidariedade, respeito recípro- acreditam na importância do exercício
co e convivência entre as diferenças. da democracia participativa” (GUIMA-
RÃES et al., 2009, p. 60). Como espaço
Operando com padrões de dinâmi- para romper com o isolamento físico
ca conectiva e morfológica, que se e das práticas educativas, as redes
assemelham aos ecossistemas na- são um meio para a construção cola-
turais, seus atores encontram neste borativa e participativa da Educação
ambiente/estrutura possibilidades Ambiental. Através da dinâmica de
de vivenciarem a perspectiva de mu- relações dentro das redes, cria-se a
danças de valores, hábitos e atitudes possibilidade de comunicação e arti-
individuais e coletivas, tornando pro- culação de pontos distantes, poden-
penso o ambiente de rede para refle- do ser no mesmo município ou entre
xões e práticas que podem contribuir municípios diferentes ou entre outras
na gestação de uma nova cultura em unidades territoriais. Deste modo, as
ebulição. (GUIMARÃES et al., 2009, p. práticas tecidas de forma solitária
59). em Educação Ambiental dentro do
cotidiano escolar ganham força e po-
De acordo com Guerra et al. (2008), tencialidade para mudanças significa-
as redes constituem uma alternativa tivas das realidades por meio da co-
de comunicação, informação e trans- nexão dos nós das redes de Educação
formação cultural. Para esses autores, Ambiental.
as redes são comunidades de relações As redes de Educação Ambiental
que, podem ser articuladas basicamente de
duas formas: a primeira são as redes

257
românticas ou espontâneas, como as rede. Nesse sentido, as redes tuteladas
redes que surgiram em 1992 a partir pelo poder público “[...] têm sido apre-
das discussões e parcerias firmadas sentadas como um padrão de coor-
entre participantes da Rio-92 e even- denação característico de uma socie-
tos paralelos. As redes organizadas dade sem centro em que a função do
nessa perspectiva surgem com objeti- governo seria a de permitir e incentivar
vos bem específicos, que se articulam as interações entre múltiplos atores”
em torno dos ideais em comum do gru- (LIMA, 2007, p. 176). Nesse sentido, as
po que compõe a rede. O segundo tipo redes de Educação Ambiental tutela-
de articulação é conhecido como redes das pelo poder público apresentam-se
induzidas ou tuteladas. As redes, nesse como possibilidade para o gerencia-
caso, surgem a partir de editais ou de mento e a construção participativa de
projetos vinculados a instituições, em- políticas públicas e projetos educacio-
presas ou a órgãos governamentais, nais e configuram-se como uma aber-
que têm função de regulação legal e tura no processo de democratização
de financiamento da rede. “A criação da gestão pública. Contudo, é preciso
induzida traz o diferencial da dotação incluir, dentro dos projetos de criação
de recursos financeiros e um conjunto de redes tuteladas, mecanismos que
de atividades, produtos, a exigência de garantam a descentralização e a ges-
resultados e alguma institucionaliza- tão participativa e colaborativa. A não
ção” (AMARAL, 2008, p. 23). No Brasil, garantia desses aspectos pode acarre-
o Fundo Nacional do Meio Ambiente tar o risco de que as decisões e ações
lançou em 2001 um edital para seleção da rede fiquem restritas às escolhas do
de projetos que visavam à estrutura- agente financiador, descaracterizando
ção e à criação de redes de Educação assim o sentido da rede.
Ambiental. Foram no total cinco redes Embora as redes, como afirma Ca-
beneficiadas pelo edital, sendo que pra (2006), estejam presentes na dinâ-
três delas surgiram a partir dessa ini- mica da vida, o entendimento de seus
ciativa. Todavia, Amaral (2008, p. 23) processos de auto-organização e ho-
afirma que as capacitações para o rizontalização apresenta-se como um
trabalho em rede possibilitadas atra- desafio para a criação, consolidação e
vés do edital foram importantes para continuidade das ações de uma rede.
superar a visão romântica inicial e Para que o princípio de auto-organiza-
reconhecer “[...] a necessidade de in- ção possa acontecer é necessário que
formação e formação específica para mecanismos e processos dinâmicos
sustentação dos processos de horizon- sejam acionados. Nesse sentido, faz-se
talização”. Para Lima (2007, p. 173), as necessário que as redes possuam uma
redes induzidas ou tuteladas corres- coordenação que possa desencadear e
pondem a uma solução organizacional mediar os processos de auto-organiza-
concebida para funcionar enquanto ção. Nesse sentido, como afirma Ama-
mecanismo de coordenação, em resul- ral (2008, p. 27), “[...] se a coordenação
tado de uma ação direta e consciente estiver focada nas dimensões da ho-
no sentido de criar e financiar uma rizontalidade e da auto-organização,

258
deverá trabalhar com a implementa- pelo poder público, é a gestão partici-
ção e nutrir dinâmicas de cooperação”. pativa e colaborativa no processo de
As regras devem ser claras e a trans- criação e desenvolvimento de políti-
parência no processo de coordenação cas públicas. Os governos, através de
deve ser estabelecida, evitando assim abertura democrática ou em parceria
que a mediação e a intervenção sejam com as redes de Educação Ambiental,
vistas como impositivas. Outro ponto podem dialogar, possibilitar e concreti-
que pode limitar o processo e as ações zar o desenvolvimento de ações, proje-
de uma rede é o esfriamento das re- tos e outros mecanismos no sentido de
lações. Isso ocorre principalmente se criar e desenvolver políticas públicas
a comunicação e as relações ficarem voltadas para a Educação Ambiental
restritas aos meios digitais, o que é e para o meio ambiente. O fluxo de re-
muito comum em ambientes virtuais lações e informação não-linear dentro
de aprendizagem, listas de discussões das redes possibilita a democratização
através de e-mail e sites de fóruns. O da informação. Desta forma, a infor-
esfriamento pode ser superado nos mação não fica centralizada e restrita
meios digitais através de facilitadores a apenas um setor ou elemento, po-
e animadores que têm como função dendo fluir através de todos os pontos
promover e instigar as discussões, bem e nós da rede.
como pela realização de reuniões pre- A coautoria e o diálogo também são
senciais periódicas para planejamento possibilitados por meio das redes de
e avaliação das ações da rede. Educação Ambiental. A dinâmica de
A formação continuada é uma pos- relações não lineares das redes possi-
sibilidade que surge através das redes bilita que os membros sejam parceiros
de Educação Ambiental. A falta de e coautores no desenvolvimento e rea-
formação continuada em Educação lização de projetos, rompendo com as
Ambiental é uma queixa comum en- práticas solitárias e isoladas. O diálogo
tre professores, sendo que a rede de também é fomentado pelas redes, não
Educação Ambiental pode propiciar, somente entre os membros e os elos,
através de elos, a oferta de cursos de mas também entre instituições e orga-
formação em Educação Ambiental or- nizações que não fazem parte da ma-
ganizados a partir das necessidades e lha da rede, o que se apresenta como
desejos apontados por seus membros, uma possibilidade para ampliação e
além de cursos específicos em Educa- fortalecimento das ações e práticas
ção Ambiental. A rede pode organizar em Educação Ambiental e do próprio
e oferecer cursos sobre as redes e seus processo de abertura da rede. Assim, o
princípios, possibilitando um maior processo de empoderamento é propi-
entendimento sobre os processos de ciado/fomentado através de formação
auto-organização e de horizontali- permanente em Educação Ambiental.
zação do seu funcionamento. Outra A participação nas redes possibilita co-
possibilidade que surge com as redes nhecimentos para que os participantes
de Educação Ambiental, nesse caso possam empoderar-se, fomentando
principalmente com as redes tuteladas assim a realização e o fortalecimento

259
de ações, a reflexividade e a participa- concretização que, embora se apre-
ção ativa nos processos democráticos sentem numerados, se movimentarão
da rede e na sociedade como um todo. de forma concomitante, e estão expli-
citados a seguir.
Tecer uma rede: movimentos de fiação O Movimento de Fiação 1 (MF1) –
Da criação, gestão e consolidação da
Tecer em conjunto talvez seja a Rede de Educação Ambiental (REA):
principal ideia da proposta aqui apre- apresenta os primeiros passos para
sentada. Os diálogos construídos no criação da REA e visa a articulação
decorrer da pesquisa para elaboração entre os municípios para definição das
desse trabalho mostraram que as prá- responsabilidades legais e financeiras
ticas em Educação Ambiental têm sido no processo de criação e manutenção
realizadas de forma bastante solitária, da rede. São previstos nesse movimen-
por sujeitos que acreditam numa mu- to a implementação de mecanismo
dança de postura dos seres humanos que visa garantir a participação e ges-
em relação ao meio ambiente e bus- tão democrática e colaborativa entre
cam a construção de uma sociedade os participantes da rede, além de me-
sustentável, ética e justa. Enredar canismo para a consolidação da REA.
essas práticas através de uma Rede São objetivos mais específicos: implan-
de Educação Ambiental articulada e tar a Comissão de Desenvolvimento do
tutelada em parceria pelas Secretarias Projeto (CDP) para articulação entre os
de Educação dos Municípios de Irecê, municípios; implementar mecanismos
Ibititá e Lapão possibilitará que esses de gestão para a criação e consolida-
sujeitos e suas iniciativas deixem de ção da REA; definir direitos, deveres e
ser solitários, tecendo a Educação Am- acordo de convivência dos membros
biental conectados em redes virtuais da REA; definir o processo para esco-
e não virtuais. A proposta é a abertura lha do nome efetivo da REA; desen-
e a vinculação a outras Redes Munici- volver o Planejamento Estratégico da
pais de Educação do Território de Iden- REA (missão, visão, objetivos, princí-
tidade de Irecê, bem como a outros pios, linhas de ação e demais aspectos
agentes de Educação Ambiental. estratégicos) com a participação de
Nesse sentido, o objetivo da propos- todos os membros; elaborar e divulgar
ta interventiva é articular ações com a identidade visual da REA.
vistas à criação e consolidação de uma Movimento de Fiação 2 (MF2) – Do
Rede de Educação Ambiental, inicial- fortalecimento dos elos e expansão da
mente, entre os municípios de Irecê, REA: nesse movimento são explicita-
Ibititá e Lapão (BA), como forma de dos mecanismos para o fortalecimento
integrar, ampliar e fortalecer as ações dos elos que preveem o mapeamento
e práticas em Educação Ambiental das ações em Educação Ambiental nos
desenvolvidas nesses municípios. Para municípios, a criação de grupos de tra-
o alcance desse objetivo foram pro- balhos temáticos dentro da REA. Além
postos cinco Movimentos de Fiação desses mecanismos, são previstas
que orientaram a dinâmica para a sua ações que objetivam o fortalecimento

260
das relações entre os membros e elos, Movimento de Fiação 4 (MF4) – Do
além da expansão da malha da REA fomento à uma Educação Ambiental
por outros municípios do Território do/no Sertão: busca uma Educação
de Identidade de Irecê. Desse modo, Ambiental contextualizada com as
deve, a partir da CDP: criar grupos de questões socioambientais dos mu-
trabalhos em diferentes temáticas; nicípios de atuação da REA. Visa à
mapear ações em Educação Am- realização de ações que fomentem
biental nos municípios vinculadas a a construção de uma Educação Am-
programas dos governos (Federal, Es- biental do/no Sertão, possibilitando a
tadual e Municipal), de empresas, de reafirmação da(s) identidade(s) e va-
universidades e demais organizações; lorização da(s) cultura(s) municipal(is).
realizar anualmente o Encontro da Desse modo, será necessário, aos Po-
REA; desenvolver parcerias com outras deres Públicos, em articulação com a
redes de Educação Ambiental. Rede de Educação Ambiental: incenti-
Movimento de Fiação 3 (MF3) – Do var, apoiar e desenvolver práticas em
desenvolvimento de Políticas Públi- Educação Ambiental contextualizadas
cas Educacionais e Socioambientais: com a realidade socioambiental; de-
apresenta ações que visam garantir a senvolver estudos sobre as questões
efetiva participação dos membros e ambientais nos municípios de atuação
elos da Rede de Educação Ambiental da REA; articular parcerias com órgãos
no desenvolvimento de políticas públi- de pesquisa e proteção ambiental em
cas educacionais e socioambientais. nível municipal, estadual e federal; ar-
São previstas nesse movimento ações ticular parcerias com famílias e asso-
que objetivam a articulação da REA ciações de agricultores, de mulheres, e
com órgãos municipais e estaduais de comunidades quilombolas e remanes-
educação e meio ambiente, e a criação centes quilombolas; articular parcerias
de Pontos de Educação Ambiental nos com Universidades.
municípios integrantes da rede. Para Movimento de Fiação 5 (MF5) – Dos
tanto, será imprescindível: estruturar mecanismos de divulgação de infor-
Pontos de Educação Ambiental nos mações sobre atividades e projetos da
municípios vinculados à REA; elaborar REA: compreende que a divulgação
Documento Referencial para a Educa- das ações da REA é uma estratégia
ção Ambiental em cada município vin- para o seu fortalecimento e consoli-
culado à malha da REA; desenvolver dação e objetiva propor mecanismos
parcerias com as Secretarias Munici- de divulgação de informações sobre
pais de Meio Ambiente e com os Con- as atividades e projetos da rede. Para
selhos Municipais de Meio Ambiente tanto, é necessário: criar site oficial da
dos municípios membros da REA; arti- REA; desenvolver aplicativo para ta-
cular ações com a Comissão Interinsti- blets e smartphones para divulgação
tucional de Educação Ambiental (CIEA) das ações da REA; desenvolver peri-
do estado da Bahia; realizar anual- ódico para divulgação dos resultados
mente a Conferência Intermunicipal de das pesquisas, cursos, projetos e ativi-
Meio Ambiente. dades em Educação.

261
Esta proposta interventiva é re- de consolidar parcerias; adesão de
sultado da ação conveniada entre a pessoas físicas e jurídicas que tenham
Faculdade de Educação da UFBA e interesse em ser membros da REA;
a Rede Municipal de Educação dos adesão e cadastro das instituições
municípios de Lapão, Ibititá e Irecê, de ensino e demais organizações que
no Sertão da Bahia, como explicitado. firmarem parceria, visando à implan-
Contudo, e apesar do financiamento tação da CDP e da sua Comissão de
desses processos formativos pelos mu- Gestão Participativa e Secretaria Exe-
nicípios, até o momento não há uma cutiva. Quanto ao MF2: mapeamento
política para que as ações planejadas das ações em Educação Ambiental nos
se efetivem, a exemplo da criação e municípios (programas, projetos, práti-
desenvolvimento da REA. cas educativas e materiais) vinculadas
Todos os projetos de intervenção, a programas dos governos (Federal,
após aprovação pela Banca de Defesa Estadual e Municipal), de empresas, de
na Universidade, foram apresenta- universidades e demais organizações;
dos em eventos oficiais promovidos planejamento de Encontro da REA,
pela Faced/UFBA e municípios que, com a participação de organizações
de certa forma, desde a assinatura do não governamentais e governamen-
convênio, comprometeram-se com o tais, bem como professores e profis-
objetivo macro da formação que é a sionais envolvidos com a Educação
intervenção nas Redes Municipais de Ambiental de outros municípios do Ter-
Educação, via seus agentes legítimos, ritório de Identidade de Irecê; contatos
pois todos os participantes são seus para parcerias com a Rede de Educa-
professores efetivos. ção Ambiental da Bahia e com outras
No entanto, alternativas estão sen- redes de Educação Ambiental visando
do articuladas e gestadas para que conhecer suas experiências, com o in-
este projeto se efetive. Assim, embora tuito de fortalecer as ações da REA.
se continue tentando que as redes de Nesse sentido, deverá se buscar tam-
educação assumam essa causa, tam- bém a integração da REA na malha
bém estamos buscando outras parce- da Rede Brasileira de Educação Am-
rias para ampliar e fortalecer a nossa biental (REBEA). Nesse sentido, o MF3
luta por uma Educação Ambiental nas também prevê: a criação de Pontos
escolas, antecipando, inclusive, algu- de Educação Ambiental nos municí-
mas ações pensadas para a criação pios para o desenvolvimento inicial de
posterior da CDP entre as três redes campanhas, produção e divulgação de
de educação. Como exemplo, algumas materiais educativos, além da orga-
ações que já estão sendo catalisadas nização e implantação de formações
concernentes ao MF1: entrega do Pro- para membros e demais profissionais
jeto de Intervenção às novas gestões que tenham interesse em realizar ati-
das Secretarias de Educação dos três vidades em Educação Ambiental, em
municípios; reuniões com organiza- consonância com a legislação e os pro-
ções da sociedade civil, universidades gramas vigentes no âmbito nacional
e outras instituições de ensino, a fim e estadual, articulando parcerias com

262
as Secretarias Municipais de Educação trabalho se mostra aberto a novas
e com os Conselhos Municipais do TII, compreensões, a novos olhares. As-
incluindo os de Meio Ambiente aonde sim, a pesquisa não tem a intenção
houver, buscando articulação e desen- de ser um fechamento ou de abarcar
volvimento de ações com a Comissão a totalidade do mundo. Deste modo,
Interinstitucional de Educação Am- este projeto de intervenção não é um
biental (CIEA) do Estado da Bahia que fim em si mesmo, ele é uma abertura
tem, dentre as suas finalidades e com- para o diálogo democrático entre go-
petências, a de “Fomentar e apoiar a vernos municipais, entre os governos e
criação de redes de educação ambien- a sociedade, entre professores, entre
tal no estado, assim como a produção escolas, entre comunidades, visando
de instrumentos socioeducativos para ao fortalecimento e ampliação das
a sua maior divulgação” (BAHIA, 2009, ações de Educação Ambiental dentro
p. 2). O MF4 busca articular ações em dos municípios de atuação da Rede
parceria com associações e famílias de de Educação Ambiental. Todos estão
agricultores, associações de mulheres, convidados!
de comunidades quilombolas e re- Como visto, desde o surgimento no
manescentes quilombolas e órgão de Brasil, as redes de Educação Ambien-
pesquisa e proteção ambiental, incen- tal têm se apresentado como uma
tivando pesquisas e/ou outras ações alternativa para articulação de educa-
que visem mitigar problemas ambien- dores ambientais, propiciando a rup-
tais dos municípios. O MF5 prepara tura do isolamento das práticas, prin-
divulgação do projeto e das ações em cipalmente no cotidiano escolar. Além
desenvolvimento via participação nos desses aspectos, as redes têm forta-
eventos e atividades dos coletivos da lecido os educadores ambientais que,
sociedade afim, da articulação com a partir de sua articulação, ganham
essas iniciativas de outras localidades, força para participação na construção
criação de coletivos online via redes de políticas públicas educacionais e
sociais. Nesse sentido, podemos afir- socioambientais. Nessa perspectiva,
mar que este artigo já faz parte desse a implementação de uma Rede de
esforço de construção de parcerias e Educação Ambiental envolvendo os
socialização. municípios supracitados possibilitaria
uma abertura para o desenvolvimen-
Pela/na tessitura da rede... to e fortalecimento não somente das
práticas em Educação Ambiental, fo-
A pesquisa realizada para elabo- mentando a ruptura do isolamento
ração deste projeto de intervenção dos educadores ambientais em suas
propiciou compreensões acerca do escolas, mas também o fortalecimento
fenômeno estudado, da tessitura e do processo democratizado, visto que
do acontecer da Educação Ambiental este projeto prevê a participação ativa
nos municípios nos quais o estudo foi e colaborativa de educadores e outros
realizado. Contudo, enquanto estu- membros/elos da REA no desenvolvi-
do de enfoque fenomenológico, este mento de projetos e políticas públicas

263
municipais voltados para a educação e mesmo tempo que moverá diversos
desenvolvimento socioambiental. atores no processo de construção de
Assim, acreditamos que a imple- uma sociedade democrática, solidária
mentação da proposta aqui exposta, e sustentável.
que objetiva a criação e consolidação
da Rede de Educação Ambiental, e Referências
garantidos os princípios de horizonta-
lidade e da gestão democrática, par- AMARAL, Viviane. REBEA: processos e
ticipativa e colaborativa, possibilita desafios de horizontalização. Revista
a construção de um espaço público Brasileira de Educação Ambiental,
educativo e democrático ampliado e Brasília, n. 3, p. 15-33, jun. 2008.
amplificador da “cidadania terrestre”
(MORIN, 2002, p. 113). BAHIA. Comissão Interinstitucional
Como visto, há muitas dificuldades de Educação Ambiental do Estado
para a implementação desta propos- da Bahia – CIEA-BA. Diário Oficial do
ta, que são de ordem política, econô- Estado da Bahia, Salvador, BA, ano
mica, de acesso, formativa... Contudo, XCIII, nº 19.982, 12 de maio de 2009.
acreditando que os empecilhos sem-
pre surgirão e superado esse primeiro BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. A
momento de espera de que o poder pesquisa em educação matemática: a
público, via Secretarias Municipais de prevalência da abordagem qualitativa.
Educação, assumisse a empreitada Revista Brasileira de Ensino de Ciência
como política pública a ser desenvolvi- e Tecnologia, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 15-
da e ampliada, o trabalho será de ar- 26, 2012.
ticulação para a criação de uma rede
entre as pessoas físicas e jurídicas que ______. Pesquisa qualitativa: segundo
se mobilizam cotidianamente, mesmo a visão fenomenológica. São Paulo:
que de forma solitária, por uma Edu- Cortez, 2011.
cação Ambiental. A crença é que essa
rede contribua para uma mudança CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma
de postura e o abandono da raciona- nova compreensão científica dos
lidade destrutiva em busca de uma sistemas vivos. Tradução de Newton
racionalidade outra, possibilitando a Roberval Eichemberg. São Paulo:
abertura para o diálogo, a gestão co- Cultrix, 2006.
laborativa, horizontalizada e responsá-
vel. No mais, como ser-no-mundo que DUTRA, Elza. A narrativa como uma
se move pela luta em defesa do meio técnica de pesquisa fenomenológica.
ambiente e da Educação Ambiental, Estudos de Psicologia, Natal, v. 7,
acreditamos que a implementação n. 2, p. 371-378, jul. 2002. Disponível
deste projeto de intervenção possi- em: <http://www.scielo.br/scielo.
bilitará uma mudança significativa php?script=sci_arttext&pid=S1413-
no acontecer da Educação Ambien- 294X2002000200018&lng=pt&nrm=i
tal dentro dos municípios do TII, ao so>. Acesso em: 18 fev. 2015.

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265
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seco e do sol forte às flores da
barriguda: tecendo fios de uma rede
de Educação Ambiental nos municípios
de Irecê, Ibititá e Lapão – BA.
Projeto de Intervenção do Mestrado
Profissional em Educação Currículo,
Linguagens e Inovações Pedagógicas.
UFBA, 2015.

266
A imagem da comida: considerações
acerca do consumo de alimentos
Julia Horta Nasser
Francisco Romão Ferreira
Larissa Escarce Bento Wollz
Shirley Donizete Prado

12.
Introdução

A partir da nossa inserção no campo da Alimentação e na Nutrição, podemos


observar que os trabalhos científicos publicados na área da Nutrição, geralmen-
te, analisam o “consumo alimentar” privilegiando diferentes aspectos do consu-
mo de micro e macro nutrientes, os fatores de risco e a insegurança alimentar,
a ingestão de elementos específicos entre escolares, crianças, adolescentes,
idosos ou atletas, frequência de refeições, sempre com o foco nos resultados da
ingestão ou no processo de absorção de um determinado nutriente. Nesta pers-
pectiva, o hábito e o consumo alimentar são reduzidos à dimensão biológica e
não incorporam os dados da cultura (KLOTZ-SILVA, 2016, 2017). Mas o consumo
de alimentos vai além desta dimensão biológica (ou biomédica) e os aspectos
subjetivos do consumo de alimentos nem sempre são abordados pelos trabalhos
acadêmicos do campo, quando, na verdade, eles são de extrema importância
para entendermos as escolhas que os sujeitos e as famílias fazem nas suas vidas
cotidianas.
Ao almoçarmos com amigos, familiares ou colegas de trabalho não consumi-
mos apenas macro e micro nutrientes, não ingerimos apenas uma massa bioquí-
mica que irá saciar a fome biológica, somos seres inscritos na ordem da cultura
e nos organizamos socialmente a partir dos códigos simbólicos da nossa socie-
dade. Portanto, ao comermos uma pizza com amigos nós ingerimos nutrientes
e calorias, mas também consumimos um alimento simbolizado, ingerimos sig-
nos, comemos imagens que definem uma identidade, reforçam papéis sociais,
produzem status, nos aproximam ou afastam de grupos sociais e produzem

268
hierarquias, ou seja, o simples fato de uma refeição rápida na praça de ali-
comer uma pizza, um sashimi, uma fei- mentação de um shopping nós, ao
joada ou uma picanha na brasa pode mesmo tempo, alimentamos o nosso
produzir efeitos na nossa imagem que corpo biológico, nossa imagem social,
sequer imaginamos. A comensalidade alimentamos o mercado alimentício,
cotidiana nos insere em sistemas de reproduzimos códigos de distinção so-
códigos sociais com papéis bem defini- cial, somos seduzidos por imagens do
dos (WOLLZ e PRADO, 2016). universo do consumo, construímos uma
Os diferentes modos de comer à imagem e uma identidade quando
mesa, a escolha dos pratos, as opções postamos nosso prato nas redes so-
disponíveis, o ambiente, a percepção ciais e entramos em contato com uma
(ou não) da higiene do local, o barulho profusão de imagens e discursos que
ou o silêncio das pessoas em volta, o cercam o fenômeno da alimentação.
preço da comida, os códigos de dis-
tinção social presente nas escolhas Imagem e discurso
alimentares, as memórias gustativas
e afetivas de cada um, os padrões de O fenômeno da alimentação hoje é
cada cultura com suas preferências ou atravessado por saberes e discursos
interdições, são exemplos cotidianos oriundos de diversas áreas e campos
de uma comensalidade que é tão na- de atuação profissional. O assunto
tural que passa despercebida e nem comporta muitas visões, perspectivas
notamos as convenção às quais esta- e posicionamentos variados e nem
mos sujeitos. Comer, portanto, é uma sempre convergentes. São profissio-
escolha subjetiva, afetiva, altamente nais ligados à Ciência dos Alimentos
discutível e totalmente inscrita na “or- (que estudam a composição, proces-
dem da cultura”, construída na história samento, conservação, qualidade e
de cada povo ou grupo social, fazendo comercialização dos alimentos para
com que uma simples escolha revele o consumidor), os profissionais da In-
uma cadeia de gostos, filiações, inter- dústria Alimentícia (que produzem
dições, memórias e sentimentos an- em segmentos que vão dos alimentos
cestrais (MONTANARI, 2008). in natura até os ultra-processados),
Temos então duas dimensões opos- pessoas envolvidas na produção e dis-
tas e complementares na hora de co- tribuição (indo do pequeno produtor
mer, “natureza e cultura”, e cada uma local até as empresas transnacionais),
dessas dimensões possibilita uma profissionais oriundos das Ciências da
forma de compreensão do fenômeno. Saúde em suas diferentes especiali-
Mas estas duas ordens não são ex- dades (nutrólogos, nutricionistas e en-
cludentes entre si, pelo contrário, são docrinologistas), os responsáveis pela
indissociáveis, pois os nutrientes, as Vigilância Sanitária e pela regulação
calorias, a indústria de alimentos, os dos mercados, sem contar com setores
interesses do mercado e os símbolos da publicidade em diferentes mídias e
culturais e códigos de distinção social atendendo uma clientela diversifica-
estão no mesmo prato. Ao comermos da. Cada um desses agentes produz

269
discursos, sentidos e imagens sobre o “manipular” ou seduzir, afogando-nos
alimento e o ato de comer. São dife- com imagens em códigos secretos
rentes visões do mesmo fenômeno. que zombam da nossa ingenuidade.
Além desses atores sociais tradicio- As imagens de comidas fastfood, ve-
nais temos também uma polissemia ganas, orgânicas ou da gastronomia
de discursos e produção de imagens são pontos extremos que representam
sobre o fastfood ou a alimentação essa babel imagética que nos seduzem
saudável, vegetariana, orgânica ou através de imagens bem elaboradas.
vegana proferidos pelas redes sociais Como resistir a um hambúrguer apa-
e seus influencers com milhares (ou mi- rentemente delicioso e suculento? Mes-
lhões) de seguidores. No Instagran, por mo sem saber se ele é feito de carne
exemplo, as nutricionistas da moda vermelha ou de soja com a aparência
possuem milhões de seguidores e as de carne moída, afinal, apenas pela
estratégias discursivas passam, neces- imagem é impossível definir e adivi-
sariamente, pela construção imagé- nhar o que será encontrado após a
tica, pois sabemos que a maioria das mordida. Entre a imagem do hambúr-
imagens que vemos não querem dizer guer e o sabor do hambúrguer há um
alguma coisa, elas querem apenas abismo.
nos vender alguma coisa. E nas redes Vivemos cercados de imagens que
sociais a imagem possui um estatuto são ícones do consumo, signos que
próprio, peculiar, que compõe com a representam o objeto do desejo que
construção identitária do sujeito que trará a nossa felicidade. Como um
está no perfil. O campo da gastrono- Narciso refletido no lago, buscamos
mia, da mesma forma, produz práti- nos objetos do consumo os reflexos
cas, saberes, discursos e imagens cada da nossa imagem, construímos nossa
vez mais valorizadas no meio social. identidade a partir das imagens dos
E os alimentos estão no meio dessa produtos que desejamos. E as ima-
guerra semiótica, dessa profusão de gens do universo do consumo, do carro
imagens que sempre querem nos dizer ao perfume, do filme às séries da TV
ou nos vender algo. a cabo, da roupa ao jantar românti-
Somos consumidores visuais, mas co, são os códigos que dão sentido à
como compreender essas imagens de existência. De tal forma que não con-
alimentos que comunicam e transmi- seguimos pensar em um mundo sem
tem mensagens, valores, ideias, dese- tais imagens e o que elas representam.
jos e visões de mundo? São discursos, imagens e sentidos que
Por um lado, lemos as imagens de organizam a vida social, de forma na-
uma maneira que nos parece total- turalizada, como se as imagens fossem
mente “natural”, que, aparentemente, espontâneas, neutras ou inocentes.
não exige qualquer aprendizado e, Para entendermos o contexto da
por outro, temos a impressão de es- comensalidade contemporânea temos
tar sofrendo de maneira mais incons- que levar em consideração que a nossa
ciente do que consciente a ciência de sociedade é estruturada pelo consu-
certos iniciados que conseguem nos mo. Segundo Zigmunt Bauman (2008),

270
vivemos na Sociedade de Consumo, forma quase inocente, sem perceber
ou seja, o nosso modelo de sociedade os interesses que atravessam as ima-
se organiza no que ele chamou de cul- gens, seus processos de construção
tura consumista. Os membros desta discursiva ou suas estratégias de per-
sociedade são encorajados, levados suasão ou dissimulação, pois sabemos
ou reforçados a escolherem um estilo que imagem é discurso (e discurso é
de vida e uma estratégia consumista ideologia). As imagens são natura-
e os próprios sujeitos constroem iden- lizadas no cotidiano e, geralmente,
tidades como se fossem produtos a não percebemos que, por exemplo, os
serem consumidos. O consumo está no chocolates que estão na banca do ca-
coração desse duplo processo de coo- melô no ponto de ônibus são a ponta
peração e de competição material, de da distribuição de grandes empresas
inclusão e de exclusão social, de cons- alimentícias, aparecem como produtos
trução e de diferenciação indenitária familiares, um simples bombom que
e simbólica. Dentro desta perspectiva, remete a uma memória afetiva está
o consumo de comida participa desse ligada a uma empresa transnacional.
jogo simbólico que valoriza ou desvalo- O público leigo não imagina que por
riza os sujeitos, hierarquiza a socieda- trás daquele produto aparentemente
de e normatiza os hábitos alimentares. banal há uma guerra comercial global
Uma imagem de um prato, um jantar que passa pela construção da imagem
ou um restaurante no Facebook, Tinder da marca em cada mercado.
ou no Instagran vale mais do que mi- Partindo dessas ideias citadas aci-
lhões de palavras. ma propomos neste texto fazer uma
Partimos do pressuposto de que os problematização da produção e o
discursos imagéticos não são neutros, consumo de imagens ligadas à in-
eles traduzem e representam atores dústria alimentícia. Acreditamos que
sociais, agentes, instituições, empresas as imagens circulam livremente pelo
ou grandes conglomerados financei- senso comum sem a percepção pelo
ros que atuam no nosso mercado. Seja grande público das implicações e filia-
a partir do pequeno produtor rural ções de tais imagens às suas origens
ou das grandes redes atacadistas, a e interesses econômicos, políticos e
produção, distribuição e consumo de institucionais. E se mesmo alguns pro-
produtos que acontecem numa escala fissionais da área da saúde (como os
global, por meio de empresas trans- nutricionistas, dietistas e nutrólogos)
nacionais, com produtos, marcas, ró- não necessariamente compreendem
tulos, imagens e sabores comuns em o processo de construção de tais ima-
diferentes pontos do planeta, todos gens, quanto mais o senso comum e
produzem imagens e discursos. Mas a clientela em geral. O que parece ser
o que chama a nossa atenção é que apenas uma questão estética ou semi-
o consumo das imagens pelo público ótica (as imagens dos alimentos) pode
leigo sobre os alimentos (independen- ser visto também como um conflito éti-
te da sua origem industrial, orgânica, co e político.
vegana ou ultraprocessada) é feita de

271
Existe uma complementaridade en- não mostrar, de dissimular, disfarçar a
tre imagem e linguagem, compondo realidade.
uma falsa oposição, uma vez que a Uma questão importante nos cam-
linguagem não apenas participa da pos da Saúde e da Alimentação hoje é
construção da imagem visual, como a a pandemia de obesidade e boa parta
substitui e até a completa em uma cir- da formação profissional em Saúde
cularidade ao mesmo tempo reflexiva está voltada para o consumo de ali-
e criadora. Temos então uma polifo- mentos na perspectiva clínica, voltada
nia presente entre os atores sociais de para o controle do consumo de alimen-
cada um desses campos e subcampos, tos (sendo o consumo muitas vezes en-
assim como uma polissemia de senti- tendido apenas como ingestão), sem
dos e significados que circulam nesses perceber que o consumo (não apenas
diferentes contextos. Os rótulos dos de alimentos) envolve outros aspectos
produtos, as imagens nas campanhas da cultura, do narcisismo, do hedo-
publicitárias ou o layout das lojas das nismo e da espetacularização da vida
grandes redes de fast food sempre in- cotidiana.
formam muito mais do que um mero O consumo de alimentos é um tema
alimento para saciar a fome biológica, complexo, que pode ser abordado de
eles atualizam códigos, signos e estra- inúmeras formas e sua redução à sim-
tégias variadas para estabelecer um ples ingestão e contagem de calorias
canal de diálogo com o consumidor. aponta para um empobrecimento da
Através das imagens da comida pode- discussão. O protagonismo do alimen-
mos ver a construção da linguagem da to na cultura atravessa diferentes áre-
sociedade do consumo. as e linguagens e reduzir o elemento
São muitos interesses nesse jogo so- da cultura ao caráter bioquímico do
cial e, para compreendermos a profu- alimento é, da mesma forma, uma
são de discursos que circulam em cada limitação da percepção dos seus sig-
um desses campos, temos que, primei- nificados e atributos simbólicos. É
ramente, saber quem é o autor do dis- preciso então perceber a importância
curso, qual é a sua posição no campo, do alimento como um signo, como
seus interesses no jogo e suas estraté- um artefato da cultura que organiza
gias ideológicas ou discursivas. Cada a vida social, propõe valores e produz
imagem produzida em um desses significados, percebendo que por trás
campos corresponde a uma estratégia de uma imagem de uma comida orgâ-
discursiva própria e o mesmo alimen- nica produzida em pequena escala, de
to pode ser representado de diversas uma grande rede de fastfood ou de um
formas, tons, cores e estilos, havendo suplemento alimentar (que é quase um
uma correspondência entre a constru- medicamento), existem imagens que
ção da imagem, a lógica discursiva e traduzem discursos, códigos, símbo-
os interesses políticos e econômicos. los e perspectivas políticas distintas e
A imagem não mostra tudo e não es- conflitantes.
clarece nada, pelo contrário, muitas É preciso então olhar a imagem do
vezes ela é construída com o intuito de alimento como quem vê a publicidade

272
de um partido político, de um banco uma dimensão física e emocional, re-
de investimentos ou de uma monta- lacionada a consumição do indivíduo.
dora de veículos. Porque essa imagem Barbosa e Campbell (2006) observam
geralmente é minuciosamente cons- que com o interesse das ciências hu-
truída, ela não é neutra, ela diz muito manos e sociais pelo tema só fez am-
mais do que aparece em termos de co- pliar essa ambiguidade. Os autores
res, tons, texturas e diagramação, ela chamam a atenção para os problemas
nunca é banal, mas é preciso ter olhos teóricos e as dificuldades conceituais
para ver. Da mesma forma, as ima- que esta ambiguidade produz.
gens dos corpos magros, definidos e Uma outra observação impor-
valorizados contrastam na vida social tante que Barbosa e Campbell (2006)
com as imagens de corpos gordos, ge- apresentam é de que o consumo é um
ralmente desvalorizados, fazendo da processo social além de ambíguo, elu-
lipofobia uma sombra que acompanha sivo. Para explicar essa afirmativa, eles
as imagens bem elaboradas e delicio- trazem a ideia de que toda e qualquer
sas das comidas. Como resistir à gula e sociedade, para se reproduzir física e
às imagens de comidas aparentemen- socialmente, faz uso do universo a sua
te deliciosas em um mundo marcado volta. Mas, mesmo que o consumo seja
pela dieta e pelo controle? São as ima- imprescindível para satisfação da ne-
gens conflitantes que encontramos no cessidade física e dos desejos psíqui-
cotidiano. cos do indivíduo, os indivíduos, de uma
forma geral, só tomam contato com
Consumindo alimentos e imagens a sua existência, quando o mesmo é
classificado como supérfluo, ostenta-
Um dos primeiros aspectos que nos tório, espetacularizado, etc.
chama a atenção ao tentar conceituar Seguindo esta linha de raciocí-
o termo “consumo”, é a ambiguidade nio, Douglas e Isherwood(2006) em
de ideias que permeiam esta definição. O mundo dos Bens: para uma antro-
Essa ambiguidade se inicia já na de- pologia do consumo, apresentam o
finição etiológica do termo. Consumo termo consumo a partir de três en-
deriva do latim consumere que signi- quadramentos preferencias, são eles:
fica usar tudo, esgotar e destruir e do Hedonista, Moralista e Naturalista. Na
termo em inglês, consummation, que perspectiva hedonista, o consumo é
significa somar e adicionar. O senso visto como essencial para a felicidade
comum, tradicionalmente, entende e realização pessoal. Segundo os auto-
consumo a partir do sentido negativo res a visão hedonista é a mais popular
do termo, relacionando-o a exaustão e famosa do fenômeno, onde o su-
e/ ou a aquisição de bens, objetos e cesso do indivíduo e sua consequente
serviços. É importante ressaltar que a felicidade se traduz na posse de bens.
dimensão negativa do termo, relacio- Na visão moralista, o consumo é res-
nada a esgotamento, ultrapassa \a ponsabilizado pelas diferentes maze-
questão que diz respeito à exaustão de las da sociedade contemporânea, tais
bens materiais. Ela abrange também como violência urbana, individualismo,

273
desequilíbrio (mental, familiar, ecoló- regulam as relações sociais e definem
gico), isto é, a toda ordem dos chama- mapas culturais.
dos problemas sociais. Ainda segundo Em relação aos bens, Douglas e
Douglas e Isherwood (2006), dentro da Isherwood (2006) trabalham com a
perspectiva moralista, existe um poder ideia de que os mesmos são necessá-
classificatório das categorias produção rios não só para a subsistência huma-
e consumo. A produção representa o na ou para a manutenção do mercado
mundo verdadeiro, algo nobre e va- e sim com a noção de que os bens são
loroso. O consumo, em contrapartida, necessários para “dar visibilidade e
está relacionada a algo fútil e superfi- estabilidade às categorias culturais”
cial, representando um mundo falso e (p. 105). Ou seja, além das posses ma-
inconsequente. teriais que os bens proporcionam, eles
Por fim, na perspectiva naturalista, estabelecem e mantêm as relações so-
o consumo ora atende as necessida- ciais. Os bens então possuem um duplo
des físicas, ora os desejos psíquicos. papel dentro de uma dada sociedade,
O consumo existe então, em razão da eles provem a subsistência e marcam
natureza, da biologia, ou da univer- as linhas das relações sociais.
salidade humana. Nesta perspectiva Uma outra definição posta por Dou-
os autores discorrem que o consumo glas e Isherwood (2006) é de que o
é colocado num plano que ela chama consumo é uma atividade ritual. Os
de infra-social, ou seja, é apartada autores discorrem que um dos grandes
da ideia de consumo a sua dimensão problemas da vida social numa dada
cultural e simbólica, tornando assim o sociedade é de fixar significados, de
consumo, biologicamente necessário, modo que os mesmos fiquem estáveis.
naturalmente inscrito e universalmente Os rituais são convecções de um de-
experimentado. terminado grupo, que tem como foco
Como forma de dar conta desta conter as flutuações de significados.
complexidade posta, utilizaremos a Dentro desta perspectiva, o consu-
definição de consumo apresentada por mo é um processo ritual que possui a
Douglas e Isherwood (2006). Os auto- função primária de dar sentido aos
res discorrem sobre uma teoria cultural acontecimentos. Os bens aqui são par-
sobre o consumo, definindo o mesmo te visível da cultura, acessórios deste
como o uso de posses materiais que ritual. Daniel Miller (2001), afirma que
está além das relações comerciais ao utilizarmos bens e serviços, o obje-
(numa tentativa de sair a acepção to ou a atividade torna-se ao mesmo
econômica do termo) e é livre den- tempo uma prática sobre o mundo e
tro da lei. O consumo é uma área do uma forma pela qual nós construímos
comportamento humano, cercado de nossa compreensão de nós mesmos
regras e limitado por sansões sociais. no mundo. De acordo com o autor, os
Para os autores, consumo desempe- indivíduos se constroem como sujeitos
nha um papel central estruturante dos sociais pelo consumo. O consumo dá
valores que constroem as identidades, um “lugar social” ao indivíduo, ou seja,
esse é reconhecido e enquadrado em

274
um lugar na hierarquia social a partir Dentro desta lógica, o consumismo as-
do que consome. Por fim se para Dou- socia a felicidade a um volume sempre
glas e Isherwood (2006), o consumo é crescentes de desejos e no uso imedia-
parte estruturante de uma dada socie- to de objetos para satisfazê-los. Bau-
dade, um fenômeno da ordem da cul- man (2008) sugere que o surgimento
tura, o bem se torna o que os autores do consumismo inaugura a era da
chamam de marcadores dos processos “obsolência embutida” dos bens ofe-
sociais que regem a vida do indivíduo. recidos a população, visto que a cada
Os bens de consumo então, se cons- nova necessidade, o indivíduo precisa
tituem o sistema que organizam uma de uma nova mercadoria que, por sua
determinada sociedade. vez, produz novas necessidades (BAU-
Bauman (2008) no livro “Vidas para MAN, 2008, p. 45).
o Consumo: transformação de pesso- A sociedade de consumo é estru-
as em mercadorias”, afirma que umas turada então na insaciabilidade e na
das características mais importantes constante insatisfação. Na verdade,
da pós-modernidade ou modernidade ela prospera “na perpétua insatisfação
liquida é que nos transformamos numa de seus membros” (BAUMAN, 2008, P.
Sociedade de Consumidores. Mas nes- 64). Sobre isso Bauman nos diz:
te modelo societário a lógica é outra,
ele se caracteriza por um tipo de so- A sociedade de consumo tem como
ciedade onde seus membros seguem o base de suas alegações a promessa
que ele chama de cultura consumista, de satisfazer os desejos humanos em
ou seja, como dito anteriormente, seus um grau que nenhuma outra socie-
membros são encorajados, levados dade do passado pode alcançar, ou
ou reforçados a escolherem um estilo mesmo sonhar, mas a promessa de
de vida e uma estratégia consumista. satisfação só permanece sedutora
O autor define consumismo como um enquanto o desejo continua insatis-
tipo de arranjo social, atributo da so- feito; mais importante ainda, quan-
ciedade resultante da reciclagem de do o cliente não está “plenamente
vontades, desejos e anseios humanos, satisfeito” – ou seja, enquanto não
onde o consumo assume o papel-cha- se acredita que os desejos que mo-
ve para a reprodução, integração e tivaram e colocaram em movimento
estratificação social. Na sociedade de a busca da satisfação e estimularam
produtores o trabalho assumia esse experimentos consumistas tenham
papel. Uma sociedade que possui sua sido verdadeira e totalmente realiza-
base no consumismo, organiza suas re- dos (2008, p. 63).
des de relações a partir dos objetos de
consumo. Ainda sobre a felicidade, Bauman
Na Sociedade de Consumo, segundo (2008) diz que o valor supremo na
Bauman (2008), o desejo humano de sociedade de consumo é se ter “uma
estabilidade se transforma do princi- vida feliz” (2008, p. 60) e esta vida
pal ativo do sistema de organização feliz, na sociedade de consumo é atre-
moderno, para o seu principal risco. lada à busca de mercadoria. A ideia

275
aqui trabalhada por Bauman (2008), uma estiagem prolongada num país
se aproxima muito da perspectiva produtor altera imediatamente os pre-
hedonista do consumo trazida por ços no mercado global. A hibridização
Douglas e Isherwood (2006). Fragoso dos gostos nas cadeias global e local,
(2011) observa que atrelar a busca da a massificação na produção e distri-
felicidade ao consumo de mercadoria buição dos produtos e o papel que o
é tornar essa busca interminável e a consumo exerce hoje na construção
felicidade inalcançável. O autor coloca da identidade dos sujeitos e grupos
que a grande sacada do mercado foi colocam a necessidade de olhar para
“transformar o sonho da felicidade de a comida como algo que extrapola os
uma vida plena e satisfatória em uma métodos convencionais de análise.
busca incessante de “meios” para se O pão, que é um alimento ancestral
chegar a isso” (FRAGOSO, 2011, P.112). da cultura, possui um significado para
Nessa perspectiva, qualquer pro- o produtor, que pode ser ressignifica-
duto ou mercadoria pode se transfor- do pelo consumidor, ou reapropriado
mar no objeto do desejo, pode ter sua de formas distintas pelo nutricionista
aura modificada, transformado em ou pelo profissional da gastronomia,
objeto sagrado ou mercadoria fetiche. ou ainda apropriado de outra forma
Um simples pãozinho francês pode pela religião (o pão da vida), pela es-
ser transformado em sonho de con- cola (o pãozinho da merenda), pelo
sumo, desde que ele seja preparado hospital (o pão da dieta) ou pelo mer-
por um Chef famoso, seja vendido em cado (o pão multigrãos). Uma fatia de
uma Panetteria de um bairro chique pão, dependendo do modo como é
ou seja o pãozinho preferido de uma adquirido e consumido, pode remeter
celebridade. a um prazer ou um sacrifício, pode re-
velar um lugar de distinção social ou
O pão nosso de cada dia de carência e abandono, pode ser um
produto inovador ou da tradição cultu-
O olhar acerca do alimento permite ral. O pão, que já foi o corpo de Cristo,
então a produção de diferentes discur- pode ser, ao mesmo tempo, o vilão da
sos que se articulam e se sobrepõem, dieta ou o signo de status e distinção
aumentando sua complexidade e re- social nos cafés da moda. O pãozinho
velando o dinamismo dos significados que se come na escola, no hospital,
daquilo que chamamos de alimento, na igreja ou numa livraria sofisticada,
pois hoje o que é chamado de alimento decididamente, não é o mesmo pão.
sequer existia poucas décadas atrás. Em uma sociedade que convive com
Alguns snacks e shakes oferecidos no a fome ou com a obesidade, o mesmo
mercado hoje sequer seriam reconhe- alimento pode significar um problema
cidos como alimento décadas atrás. O ou uma solução. A mesma fatia de pão
consumo, cada vez mais, é influencia- pode ser a salvação da pátria na hora
do pelas grandes cadeias produtivas da fome ou o vilão de carboidrato a
e os mercados estão interligados de ser combatido. O pão nosso de cada
tal modo que uma chuva repentina ou dia, que já foi um alimento sagrado,

276
atualmente é um dos produtos trans- Para cada tipo de consumidor há um
formados pela indústria do consumo tipo de pão e a simbologia religiosa
e carrega inúmeros signos que são ficou perdida no passado remoto. Em
“alimentados” pelos campos da bio- uma gôndola de pães de um super-
medicina, da indústria, dos diferentes mercado voltado para a classe média
nichos de mercado ou dos direitos e é possível encontrar pão francês, de
desejos do consumidor. forma, italiano, indiano, árabe, ale-
Para compreender melhor as ima- mão, suíço, australiano, integral, mul-
gens, tanto na sua especificidade tigrãos, baguetes, croissants, pães re-
quanto nas mensagens que veiculam cheados, pão de milho, de centeio, etc.
na publicidade, é necessário um es- A construção da imagem de um pão
forço mínimo de análise. Porém, não é integral, feito de fibras naturais, sem
possível analisar essas imagens se não glúten, com vários grãos e enriquecido
se souber do que se está falando nem com inúmeras vitaminas precisa de um
porque se quer fazê-lo. As imagens aparato visual que decodifique todas
possuem categorias de signos diferen- essas mensagens e formas icônicas,
tes, especificidades, leis próprias de or- muitas vezes imperceptíveis para os
ganização e processos de significação consumidores em geral. São signos
particulares. O pão francês, italiano, que remetem ao sonho ou à fantasia,
árabe, australiano ou alemão carre- criando uma imagem mental que dá
ga uma história, um passado, uma a ideia de um pão totalmente natu-
memória e um discurso próprio, assim ral e sem impurezas. Ou então signos
como possuem imagens e embalagens plásticos através de cores, formas e
específicas para compor a imagem do composição das embalagens, onde
produto. A confiabilidade ou a “quali- cada detalhe é importante. Os pães
dade” é minuciosamente construída a voltados para o público infantil, por
partir da dimensão visual, nada está exemplo, são mais ou menos valoriza-
ali por acaso. dos de acordo com os super heróis que
O trigo é uma commoditie importan- aparecem nas embalagens. Além disso
te no mercado global, seu preço varia temos também os signos linguísticos,
em função de fatores que estão além que utilizam a linguagem verbal para
do controle local e os diferentes tipos remeter a algo artesanal, puro, mais
de pães oferecidos no mercado hoje próximo da natureza, como se fosse
apontam também para uma medica- feito em casa.
lização do que antes era um elemento Se tomarmos a construção das ima-
básico do café da manhã. Os pães gens dos pães supostamente arte-
atualmente possuem diferentes grãos sanais, integrais ou multigrãos como
agregados, são vitaminados, possuem exemplos, podemos perceber como
mais fibras, podem conter glúten ou cada detalhe representa a ideia do
não (de acordo com a exigência do conceito do produto, cada cor ou to-
mercado), e ainda podem ser compra- nalidade, corpo de letra, composição
dos com diferentes estilos, formatos, gráfica ou detalhe visual pode ser
sabores, texturas, origens e preços. percebido como representação, como

277
discurso. Sua eficácia está em perceber na padaria, um pão de mel na livraria,
que o produto é percebido como um um pão integral com 12 grãos em uma
signo – ele evoca, parece com o que é panetteria ou um pão de centeio numa
idealizado, se assemelha. Se essas re- casa de produtos naturais, o sujeito re-
presentações são compreendidas por vela a constituição da sua identidade,
outras pessoas além das que as fa- o seu gosto “pessoal”, seu poder aqui-
bricam, é porque existe entre elas um sitivo e o seu lugar na hierarquia social.
mínimo de convenção sociocultural, em Uma pessoa que tivesse ficado em
outras palavras, elas devem boa par- coma e fora do circuito dos mercados
cela de sua significação a seu aspecto nos últimos dez anos, chegasse hoje
de símbolo. ao Rio de Janeiro e fosse ao mercado
O pão deixa de ser um produto bio- comprar um pãozinho iria encontrar
lógico com uma função nutricional e uma variedade imensa de opções,
passa a ocupar um lugar sociológico, estilos, sabores, texturas e, principal-
pois está inserido na lógica dos signos mente, preços. Um verdadeiro “mi-
da cultura. Sua embalagem incorpora lagres dos pães”, dada a variedade
um significante linguístico por meio da de produtos. Os pães diversificaram,
sonoridade italiana e a ideia de arte- foram medicalizados, se sofisticaram
sanato, com um significante plástico e acompanharam o jogo simbólico da
ao incorporar um tom entre o bege e o cultura e do mercado. Suas embala-
marrom que remete aos grãos do trigo, gens comportam diversas estratégias
além dos significantes icônicos com a visuais sofisticadas de composição da
embalagem plástica que lembra papel marca e construção do produto. Para
manteiga e dá um tom de delicadeza. cada produto, estilo ou nacionalidade
Juntos constroem uma significação há uma identidade visual específica.
que remete a um produto artesanal, Os gostos, os diferentes paladares e
embora seja um produto industrial referências gustativas, as técnicas de
ultraprocessado. construção do corpo, a imitação presti-
Ao comer um pequeno pedaço de giosa ao comer ou as “boas maneiras”
pão, portanto, o sujeito não se inscreve não podem ser reduzidos aos manuais
apenas numa ordem objetiva e univer- que contam apenas as calorias e con-
sal que contabiliza suas calorias, pelo denam o pão, principalmente o com
contrário, ele entra em um território glúten, ao lugar de inimigo público
de códigos sociais, sentidos e apro- número um. Em tempos de obesida-
priações culturais, valores morais, sím- de o paladar não obedece apenas às
bolos estéticos, religiosos ou políticos. regras racionais da saúde perfeita e
O pão se transforma em um artefato da alimentação saudável, ele traduz
simbólico que vai muito além do seu também o estigma, as compulsões, os
valor nutricional, inscreve o sujeito em transtornos alimentares, o “habitus de
uma hierarquia social e participa na classe”, os contextos sociais, familiares,
construção da sua identidade. Ao co- os estados emocionais e os códigos do
mer um pão de forma vendido por um universo do consumo (local ou global).
camelô na rua, um pão francês em pé Gostar de comer algo, ou sentir nojo

278
de uma determinada comida, signifi- não nos inclui imediatamente nessas
ca compartilhar os códigos de alguma culturas, eles já foram devidamen-
cultura que valoriza ou desvaloriza te aculturados e ressignificados, e o
os alimentos de acordo com as suas que eles nos revelam hoje são como
crenças e tradições. Sentir fome, comer os sujeitos se constituem na relação
e gostar de carne de cachorro, vaca, com a comida, com os valores e com
porco, rato ou escorpião não traduz as relações sociais à mesa. A questão
apenas uma necessidade biológica, não é de nacionalidade, é de discurso,
pois o apetite do corpo é influenciado de formação, sabor e adequação ao
pela cultura. Comer o tradicional pão momento.
francês, de farinha branca, da mesma Da mesma forma, o queijo, apesar
forma, está fora de moda e pode ser da sua presença em diferentes con-
visto como algo a ser menosprezado, textos e culturas, não possui o mesmo
a não ser que seja de uma padaria es- significado na mesa do francês, no
pecial, feito por um grande chef ou de cheeseburger norte americano, no tofu
forma artesanal, aí então o jogo sim- (queijo de soja) oriental, no ambiente
bólico muda. do produtor da Serra da Canastra, em
A partir deste exemplo do pãozinho Minas Gerais, ou no consumo de quei-
tradicional podemos perceber o quan- jo coalho no nordeste. A identidade
to as práticas alimentares constituem cultural que o queijo possui em cada
uma das principais formas pelas quais um desses contextos revela processos
os sujeitos constituem suas identida- identitários e históricos diferenciados,
des, interagem no meio social e criam dando margem a diferentes narrati-
uma compreensão da sua própria sub- vas, representações e apropriações
jetividade e da sociedade na qual ele culturais acerca do produto. Em cada
está imerso. Desde a sua infância ele contexto há um elemento sócio histó-
reproduz ou nega o seu pertencimento rico que não apenas molda a culinária
familiar nuclear, valoriza ou desvaloriza regional, mas também se constitui
o padrão gustativo da sua família am- como uma referência simbólica de
pliada, assimila ou rejeita os códigos cada coletividade, fundamentando a
da cultura, incorpora ou reconfigura os construção identitária do sujeito e do
gostos tradicionais do seu grupo que grupo. As práticas alimentares, por-
revelam sua posição social, mas em tanto, traduzem os modos como cada
todos os casos, é pela comida e pelo cultura se organiza e se reproduz. E o
paladar que o sujeito de afirma como universo simbólico ou a carga afeti-
sujeito, cidadão ou pertencendo a um va de uma simples iguaria não poder
grupo étnico específico. O pão do rabi- ser transmitida e assimilada de forma
no judeu, do padre cristão, do monge rápida e imediata. Ao pedir um queijo
budista ou do muçulmano pode ter as quente na padaria de manhã o co-
mesmas calorias, mas não possui o mensal não imagina a complexidade
mesmo significado nem os formatos e a variedade de sentidos presentes
do “pão francês”, do “pão italiano” ou naquele simples, tradicional e inocente
do “pão árabe”. Cada um desses pães lanchinho.

279
O significado do pão de queijo para olhar limitado para o mundo. Cada um
o mineiro ou do queijo coalho com me- desses produtos faz parte de uma rede
lado para o nordestino dificilmente imensa de produtos que são comercia-
será totalmente compreendido pelo lizados em diferentes escalas e contex-
produtor de vinhos gaúcho, pelo agri- tos, incorporando diversos significados,
cultor goiano, pelo empresário paulista permitindo a criação de diferentes dis-
ou pela nutricionista fitness, porque a cursos e se metamorfoseando a cada
comida é um dialeto que traduz valo- vez que um novo significado lhe é atri-
res daquele local e desconhecer tais buído. O fenômeno da alimentação,
valores significa ignorar toda uma assim como a cultura, é dinâmico e se
tradição culinária, afetiva e cultural. E transforma de forma incessante, fa-
apesar de toda a globalização os sa- zendo com que os alimentos transitem
bores e sentidos produzidos no local entre os valores sociais com a mesma
nem sempre encontram ressonância desenvoltura e oscilação presente nas
no mercado global. O caso do Biscoito bolsas de valores.
Globo nas Olimpíadas realizadas no Nessa perspectiva, não podemos
Rio de Janeiro traduz esta impossibi- olhar a comida sem levar em conside-
lidade ou dificuldade de traduzir sen- ração os gostos individuais e coletivos,
tidos, valores e os significados simbó- o papel do mercado global, as tradi-
licos de cada cultura. Ao falar mal do ções culturais locais à mesa, os fatores
biscoito o jornalista atacou e ofendeu de construção de identidade de cada
um bem cultural muito querido entre pessoa, local ou região, as constitui-
os cariocas, e a reação foi imediata74. ções identitárias dos diferentes grupos
A comida então se torna uma lingua- étnicos e sociais, os aspectos simbóli-
gem, um meio de expressão que tra- cos e religiosos da comida, as formas
duz uma sociedade, uma forma de como cada sociedade se organiza em
comunicação, valoração e circulação termos de produção, distribuição e
de ideias. A comida medeia as relações consumo de alimentos, além dos gos-
e a comunicação pode acontecer em tos pessoais, compulsões e transtornos
qualquer lugar, em casa, na padaria, alimentares contemporâneos. A comi-
no restaurante, na praia, no shopping da incorpora todas essas questões e
ou no cinema. vai além, ao trazer à tona os conflitos
Reduzir o pão, o queijo ou o pão de e as disputas simbólicas de cada cul-
queijo às suas propriedades calóricas e tura. Pensar a comida fora da cultura é
nutricionais estabelecidas pelos sabe- um equívoco e uma limitação do olhar.
res biomédicos e nutricionais sem levar Mas não podemos esquecer que es-
em consideração o significado desses tamos imersos em uma cultura global
produtos nos diferentes contextos, é que é essencialmente visual e a ima-
mais do que uma limitação, é uma gem da comida, portanto, vai incorpo-
forma equivocada e reducionista de rar signos, memórias, conflitos e senti-
pensar que empobrece a compreensão dos que circulam em cada contexto.
da realidade e produz (principalmente
nos alunos dos cursos de Nutrição) um

280
Considerações finais contrário, se apresenta como o lugar
do prazer visual e gustativo, sem a li-
O mercado produz valores, senti- mitação imposta pela racionalidade
dos, modos de pensar e sentir que se biomédica. Mas ambas são capazes de
disseminam por trás das máquinas transformar a comida em apenas um
tecnológicas de informação e comu- carreador de calorias, ou então, mera
nicação que atuam na memória, na mercadoria, apagando ou deturpando
inteligência, na sensibilidade, nos gos- sua história, sua memória e sua impor-
tos, nos comportamentos, nos afetos, tância histórica.
e também se manifestam através da A produção subjetiva acerca do con-
família, da educação, do meio ambien- sumo é, ao mesmo tempo, individual
te, da religião, da arte, da indústria e coletiva, pois ela se desenvolve para
cultural e da publicidade, produzindo além do indivíduo, das relações entre
uma dimensão subjetiva da realidade os indivíduos ou de suas famílias. Ela
que tanto pode trabalhar para o me- produz valores, afetos, formas de com-
lhor como para o pior. Sendo o melhor, preensão do mundo e códigos sociais
quando essa subjetividade potenciali- de conduta. Sendo assim, o capitalis-
za a capacidade de criação dos sujei- mo é visto como um sistema que não
tos e a invenção de novas possibilida- produz apenas mercadorias, mas um
des de ação e compreensão do mundo, sistema que produz sentidos e cria pa-
e o pior, quando produz uma subjeti- péis, desejos, pontos de vista, compor-
vidade que embrutece e empobrece a tamentos e padrões estéticos variados,
vida, transformando, por exemplo, um utilizando-se de comportamentos que
cidadão em um mero consumidor de tanto se prestam à submissão como à
produtos. libertação. Tal ordem é projetada na
Desta forma, o problema não está realidade do mundo e na realidade
em consumir os objetos de que preci- psíquica e produz os modos de rela-
samos, mas no modo como o consu- ções humanas até em suas represen-
mo se transforma no principal fator tações inconscientes. Ela se manifesta
na construção da identidade. Este nas relações pessoais, nos códigos de
consumo sem crítica pode ser citado conduta, nas formas de comer, traba-
como um exemplo desta apropriação lhar, amar, paquerar, falar, vestir, nos
negativa e empobrecedora, apontan- cuidados com o corpo, com a forma do
do para um aprisionamento restrito a corpo, com a produção de sentidos, de
uma lógica capitalista que pode redu- afetos, nos esquemas de conduta, de
zir a capacidade de criação e expan- ação, de gestos, de pensamento, de
são dos sujeitos. Ignorar todo o sentido sentido, de sentimento, etc.
simbólico da comida e transformar a Essa subjetividade não só atua indi-
dieta em uma simples fórmula, shake vidualmente emitindo estímulos dire-
ou barra funcional é um exemplo des- tamente ao inconsciente, produzindo
te empobrecimento. A Nutrição se indivíduos normalizados, submetidos
transforma no lugar da contenção a um sistema hierárquico de valores e
e do sacrifício, a gastronomia, pelo expostos à submissão, como também

281
atua na produção de uma subjetivida- monopolizando a participação nas
de social, que se manifesta na produ- vendas em boa parte deles, fica difícil
ção e no consumo, produzindo inclusive também falar da liberdade de escolha
nossos sonhos, paixões, desejos, refe- individual. Se em todos os mercados,
rências de mundo e projetos de vida. em vários países, estamos diante da
As formas de construção da identidade oferta dos mesmos produtos, não há
são fabricadas e modeladas na vida verdadeiramente uma liberdade de
social, embora sejam vistas, compre- escolha, pelo contrário, há um direcio-
endidas e reproduzidas como se fos- namento da escolha para os produtos
sem individuais. E simples possibilida- das grandes empresas do mercado e
de de comer carne vermelha, fastfood um monopólio disfarçado na medida
ou comida natural e orgânica revela o em que o produtor local ou nacional
modo de pensamento permite supor não tem condições de competir em
alguns padrões de comportamento. condições de igualdade. O consumo
Escolher o que comer, longe de é uma forma de manter a estrutura
ser uma escolha individual, fruto da li- social em sua face perversa de desi-
berdade de escolha de cada um, passa gualdade e omissão da arbitrariedade,
a ser visto como uma espécie de filia- impondo uma visão de liberdade de
ção, de compromisso com os códigos escolha, quando na verdade a escolha
de cada grupo, sujeitos a sanções, va- já está definida previamente e o con-
lorizações e desvalorizações. Do mes- sumidor sofre uma violência simbólica
mo modo, comer acima do permitido, ao achar que ele é quem faz a escolha.
pode significar uma perda de capital Ao ignorar o jogo simbólico pre-
simbólico, o sujeito pode sofrer algum sente no fenômeno da alimentação
estigma ou então preconceito de or- e não perceber o quanto a comida é
dem moral. Ao colocar o problema da atravessada por saberes de diversas
obesidade no âmbito da escolha e áreas e campos de atuação profissio-
do tratamento individual, coloca-se o nal, dos interesses de comerciantes
obeso (ou com sobrepeso) na categoria e produtores em diferentes escalas e
de “pessoa não confiável”, “aquele que setores da publicidade nas diferentes
não consegue se controlar” ou aquele mídias, assim como não conhecer a
que não tem força de vontade para produção, distribuição e consumo de
emagrecer. A comida então se trans- produtos em escala global, reduzindo
forma no veículo da culpabilização do o conhecimento do consumo de ali-
sujeito, independente das questões mentos à simples ingestão e contagem
emocionais, biológicas, sociais ou ge- de calorias, pode vir a ser uma falha
néticas. Na nossa cultura a condena- grave na formação dos(as) futuros(as)
ção do obeso é imediata e ele mesmo, profissionais de saúde, nutricionistas,
muitas vezes, se sente culpado por não nutrólogos e educadores em geral.
corresponder às expectativas sociais. Existe uma polifonia presente entre
Em um mercado globaliza- os atores sociais e uma polissemia de
do, com empresas transnacionais sentidos que colocam em evidência
atuando em centenas de países e o elemento simbólico produzido pela

282
cultura como fator essencial para FRAGOSO, T. DE O. Modernidade
compreensão do fenômeno da alimen- e líquida e liberdade consumidora:
tação, que é complexo e dinâmico. A o pensamento crítico de
produção de imagens do setor alimen- ZygmuntBauman. Revista Perspectivas
tício faz parte dessa engrenagem das Sociais. Pelotas, Ano 1, volume 1, pp.
grandes cadeias globais de produção 109-124, 2011.
e distribuição que levam à massifica-
ção dos produtos e o enfraquecimento KLOTZ-SILVA, Juliana; PRADO,
da capacidade de escolha do cidadão. Shirley Donizete; SEIXAS, Cristiane
Mas as imagens do cotidiano também Marques. A força do 'hábito alimentar':
traduzem modos de ver e sentir, o pão referências conceituais para o campo
artesanal, integral ou orgânico tam- da Alimentação e Nutrição. Physis.
bém possuem uma imagem própria, Revista de Saúde Coletiva, v. 27, p.
atualizando e reforçando seus códigos 1065-1085, 2017.
simbólicos e identitários. Do macro ao
micro, a imagem é fundamental. _____ Comportamento alimentar no
A imagem da comida se transfor- campo da Alimentação e Nutrição: do
mou em um código simbólico que or- que estamos falando?.Physis (UERJ.
ganiza a vida em sociedade, um modo Impresso), v. 26, p. 1103-1123, 2016.
de subjetivação que define as identi-
dades individuais, hierarquiza os gru- MILLER, D. (Ed.). Consumption.
pos sociais, inclui ou exclui, agrega ou London: Routledge, 2001.
separa. Uma simples imagem de um
jantar comporta muitos códigos, dis- MONTANARI, M. Comida como cultura.
cursos e interesses. Mas é preciso olhar São Paulo: Senac, 2008.
e ver.
WOLLZ,L.E.B.; PRADO,S.D. Cinema e
Referências Comensalidade: aspectos simbólicos
da comida a partir da linguagem
BARBOSA, L; CAMPBELL, C. Cultura, cinematográfica. In FERREIRA,F.R.;
Consumo e Identidade. Rio de Janeiro: PRADO,S.D.; VARGAS,E.P.; SEIXAS,C.M.
Editora FGV, 2006. Cinema e comensalidade – Volume 6.
Curitiba: CRV, 2016.
BAUMAN, Z. Vidas para consumo:
a transformação de pessoas em
mercadoria.Rio de Janeiro: Zahar,
2008.

DOUGLAS, M; ISHERWOOD, B.
O mundo dos bens: para uma
antropologia do consumo. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2006.

283
NOTAS

Capitulo 12

73 Este texto teve uma primeira versão na Revista Scriptorium (v. 3, nº 2)


em 2017. Esta é uma versão revista e ampliada.

284
Trilhas das águas: imagem,
memória e Educação Ambiental
de base comunitária no Vale do
Jequitinhonha
Daniel Renaud Camargo
Samira Lima da Costa
Celso Sánchez

13.
Introdução75

No coração do Vale do Jequitinhonha, em meio ao sertão de Minas Ge-


rais, se encontra o município de Chapada do Norte, um território cuja história de
ocupação remonta ao período da exploração de ouro e pedras preciosas nesta
região do país. Trata-se de um contexto marcado por um clima de extremos, com
secas prolongadas e inundações no período chuvoso; e cuja população local tem
uma cultura marcada por um forte sincretismo, manifestado nas figuras de ben-
zedeiras, tropeiros, raizeiros e contadores de histórias, que resistem em meio à
modernização, numa tentativa de preservar suas tradições.
O Vale do Jequitinhonha, por muito tempo reconhecido pelo estigma de
“Vale da Miséria” e Bolsão de Pobreza, ao mesmo tempo em que amarga os re-
sultados de séculos de abandono do poder público, também sofre os reflexos de
um modelo predatório de exploração da natureza76, que gerou marcas nas pai-
sagens e nas memórias das populações locais (CAMARGO, 2017). Assim, os habi-
tantes deste território se constituem em testemunhas vivas da história ambiental
desta região, e abrigam, em suas memórias, as trilhas para a compreensão de
como tais comunidades transformaram o meio ambiente ao longo do tempo...

Imagem, memória e Educação Ambiental de base comunitária

Partindo da compreensão de que os moradores deste território são guar-


diões de memórias sobre as relações estabelecidas entre as culturas locais e a
natureza, encontramos as bases para pensar a elaboração de uma proposta

286
educativa atenta às especificidades freireanos devem perseguir para ade-
das comunidades do Vale do Jequiti- quar suas propostas pedagógicas aos
nhonha: uma proposta que parta dos universos vividos das comunidades
universos comunitários; das leituras de educativas em que se inserem. Quanto
mundo dos sujeitos; dos saberes locais; a isto, Freire (2015) ressalta que:
das memórias bioculturais; e da histó-
ria ambiental da região. Assim, apon- [O] educador que respeita a leitura de
tamos para uma perspectiva de Edu- mundo do educando reconhece a his-
cação Ambiental de Base Comunitária, toricidade do saber, o caráter histó-
pensando a Educação Ambiental a rico da curiosidade, por isso mesmo,
partir de uma articulação com a Edu- recusando a arrogância cientificista,
cação Popular Latinoamericana e, em assume a humildade crítica, própria
especial, com o pensamento de Paulo de uma posição verdadeiramente
Freire. científica (p. 120).
Deste modo, lembramos que o
presente texto reflete, especificamen- Sobre o processo de Escuta Sen-
te, os resultados da dissertação de sível, na tentativa de reconhecer as lei-
mestrado “Lendas, Rezas e Garrafa- turas de mundo dos educandos, Freire
das: Educação Ambiental de Base Co- destaca que “[e]scutar é obviamente
munitária e os Saberes Locais no Vale algo que vai mais além da possibili-
do Jequitinhonha” (CAMARGO, 2017), dade auditiva de cada um. Escutar [...]
que elaborou uma proposta de Educa- significa a disponibilidade permanente
ção Ambiental Comunitária a partir da por parte do sujeito que escuta para a
Abordagem Temática Freireana (FREI- abertura à fala do outro, ao gesto do
RE, 2014), propondo encharcar-se com outro, às diferenças do outro.” (FREIRE,
a realidade vivida pelas comunidades 2015, p. 117)
para, a partir daí, seguir numa busca O processo de codificação se revela
- entre cotidianos e memórias - pelos como uma das fases da Abordagem
temas geradores que se revelam como Temática de Paulo Freire (2014) na
significativos para a compreensão da busca pelos temas geradores. Neste
realidade local, através das leituras momento da investigação-educati-
de mundo dos sujeitos (FREIRE, 2014). va as situações-limite identificadas
Mas para além disso, o trabalho avan- são apresentadas aos moradores da
ça a partir das reflexões teóricas propi- comunidade por meio de diferentes
ciadas pela pesquisa de doutorado. estratégias de codificação, ou seja, as
Freire e Nogueira (1989) chamam a situações são apresentadas a partir
atenção para o fato de que “há mo- de inúmeras formas, adotando uma
dos de conhecer o mundo e as classes diversidade de linguagens-técnicas-
populares têm um modo peculiar de -perspectivas para representar as
conhecimento...” (p. 20), assim, essa questões problemáticas, destacando-
forma de conhecer e interpretar a rea- -se neste processo o uso de imagens
lidade ou “leitura de mundo” represen- como possibilidade de codificação.
ta aquilo que educadores populares

287
Assim, no caso deste estudo, foram vividas a partir de uma vivência do
consideradas fotografias, imagens de presente: ela é inerentemente coleti-
satélite e registros audiovisuais, como va, uma vez que trata da construção
estratégias de codificação, buscando, permanente de um espaço e de um
a partir desta aposta, ativar os elos tempo coletivo, a partir de um olhar
entre as memórias dos sujeitos e a tra- próprio de determinada cultura (p. 61)
jetória socioambiental da região.
Partimos do pressuposto de que as Ainda sobre a noção de memória,
imagens são capazes de reavivar a ressaltamos uma outra conceituação
memória e, com isso, servir como uma relevante para nossa abordagem. A
ponte para o passado, ajudando a for- ideia de uma Memória Biocultural,
talecer e organizar as lembranças so- defendida por Victor Toledo e Narciso
bre determinada cena. Ou, como diria Barrera-Bassols (2015), que destaca
Loizos (2002) “as imagens fazem res- a importância de estudos específicos
soar memórias submersas” (p. 143), e sobre a memória formada a partir dos
neste sentido a fotografia (entre outras processos interativos entre culturas lo-
linguagens e ferramentas que se utili- cais e o meio ambiente e, em especial,
zam de imagens) pode ser entendida com a Biodiversidade.
como um “desencadeador para evocar Também pautamos aqui a necessi-
memórias” (p. 143). Assim, é interes- dade de recuperar a história ambiental
sante ressaltar o papel das imagens, e (LEFF, 2003) deste território do sertão
em especial das fotografias, enquanto mineiro que, como nos diria Guimarães
documentos históricos capazes de re- Rosa, “é marcado por silêncios e au-
gistrar um cenário, paisagem ou acon- sências”. Esta linha nos leva a refletir
tecimento em específico do cotidiano sobre como as relações estabelecidas
da comunidade. entre a comunidade e o meio ambiente
Além disso, tomando por base a influenciaram, ao longo do tempo, tan-
ideia de que a memória é viva e en- to a comunidade, como o ambiente.
volve uma partilha cultural dentro Portanto, neste trabalho refletimos
do seio de determinado grupo social, sobre a aposta na imagem enquanto
sendo, portanto, entendida aqui em recurso para ativação de memórias
termos de uma memória que, embora que, por sua vez, serviriam de base
tenha em si uma dimensão pessoal e para a elaboração de uma proposta
individual, será considerada enquanto de Educação Ambiental de Base Co-
elemento da coletividade e, portanto, munitária ciente das especificidades
como memória social (GONDAR, 2005; psicossocioambientais presentes na
PERALTA, 2007; COSTA; MACIEL, realidade local. Assim, conectando co-
2009). Quanto a esta concepção de nhecimento científico a saberes locais,
memória, Costa e Maciel (2009) assu- a história ambiental da região e as
mem que: memórias bioculturais de seus habi-
tantes, surge uma educação pautada
[...] [A] memória social é mais que na leitura de mundo e nos conheci-
uma ressignificação das histórias já mentos prévios da comunidade, uma

288
Educação comunitária que propõe re- a Escola Estadual Olídia Lemos de
fletir sobre os problemas atuais, a par- Oliveira, onde nos apresentaram um
tir de um olhar crítico sobre a trajetória documento - produzido pelos próprios
da relação comunidade-natureza. professores e funcionários da institui-
ção -, que compreende os resultados
As trilhas das águas de uma investigação realizada pela
equipe pedagógica sobre a memória
Seguindo pela margem esquerda do oral dos mais antigos moradores da
Rio Araçuaí, após subir e descer alguns região, com fins de documentar a his-
morros, é possível avistar ao longe o tória local.
distrito de Cachoeira do Norte. Com E foi justamente neste documento
cerca de um século de existência, a pa- que encontramos uma imagem sig-
cata comunidade de Cachoeira possui nificativa, e a partir desta fotografia
por volta de mil habitantes. Trata-se teve início uma busca sobre as memó-
de uma comunidade pequena, mas rias comunitárias da história ambien-
muito organizada, com praças arbori- tal deste território. Logo na capa do
zadas, ruas limpas, casas bem estrutu- material se encontrava a imagem em
radas e um povo acolhedor e festeiro. questão: a cachoeira de Cachoeira do
Uma comunidade típica do Vale do Norte. Um filete de água escorrendo
Jequitinhonha, construída em torno de em meio às pedras e rodeado por uma
uma pequena igrejinha, mas que logo mata.
à primeira vista já nos leva a repensar
a ideia de um vale repleto de pobreza
e miséria...
Porém nem tudo são flores, e
alguns problemas se revelam logo de
cara, quando nos questionamos, por
exemplo, sobre o nome da comunida-
de: Cachoeira do Norte, mas afinal,
que cachoeira é essa?
Ao indagar os moradores da
comunidade sobre o nome do distrito
nos explicam que a cachoeira que deu
nome à comunidade deixou de existir
após um acontecimento, e hoje esta
apenas reaparece ocasionalmente
diante de chuvas mais intensas – po-
dendo ser admirada por alguns instan-
tes, enquanto o fluxo de água da chu-
va escorre com força pelos caminhos
do córrego77.
Aprofundando esta busca somos
conduzidos à escola da comunidade,

289
Fotografia da cachoeira que deu nome à
comunidade – imagem retirada do relatório
Cachoeira do Norte: Numa Perspectiva Histórico
Cultural (2002), material produzido por
professores da Escola Estadual Olídia Lemos de
Oliveira.

Fonte: CAMARGO, 2017, p. 50.

290
Para além da foto da cachoeira, o Com cuidado descemos pelas lapas
documento nos forneceu informações e ao chegarmos no local exato nos
sobre os resultados da pesquisa reali- deparamos com uma imagem bem
zada pela escola estadual, permitindo diferente da foto da cachoeira. Não
compreender um pouco melhor a his- havia fluxo de água, apenas poças de
tória da origem da comunidade. água parada, sendo que tais poças se
Segundo o texto, o povoamento encontravam escurecidas e, em alguns
desta região teria se originado por casos, repletas de larvas de insetos.
volta da década de 193078 a partir do Além disso, avistamos alguns canos
estabelecimento uma propriedade despejando esgoto diretamente sobre
chamada Fazenda Cachoeira, que re- o córrego, o que tanto provocava mal
cebia tal nome em função da queda cheiro, como gerava espuma na água
d’água que havia nas proximidades. A (provavelmente por conta de água
fazenda teria passado por diferentes cinza).
donos até que no final da década de
1940 foi adquirida por Vicente Jorge e
sua esposa Dejanira, que com ajuda
da professora Olídia Lemos, criaram as
condições para a formação da comu-
nidade – surgida em torno: do culto à
Santa Cruz; da escola de Olídia; e da
oferta de serviços na Fazenda Cacho-
eira. Um detalhe interessante é que o
documento afirma que na época de
Vicente Jorge a força do córrego era
tão forte que havia uma roda d’água,
que era utilizada sobretudo para moer
milho para fazer farinha e fubá, e era
movida exclusivamente pela força das
águas.
Agora retornando para a fotografia
da cachoeira na capa do documento,
com essa imagem em mãos indaga-
mos os moradores sobre a localização
exata deste lugar e então seguimos
rumo ao local retratado na fotografia -
afim de comparar a imagem do docu-
mento com a realidade atual. Saindo
da escola descemos a rua e seguimos
até uma parte mais afastada, numa
das ruas de trás, onde pedimos autori-
zação para uma moradora para descer
o barranco pelos fundos de sua casa.

291
Fotografia do local em que se encontra a
cachoeira de Cachoeira do Norte – a imagem atual
– proliferação de mosquitos, despejo de esgoto,
água cinza etc.

Fonte: CAMARGO, 2017, p. 108.

292
Após encontrar um ambiente muito
diferente do observado na fotografia,
subimos o córrego tentando identifi-
car elementos que contribuíram para
a transformação. Realizamos alguns
registros do local, incluindo fotografias
e filmagens, e então seguimos na dire-
ção contrária a trilha da água.
O primeiro fator de transformação
antrópica evidenciado neste caminho,
para além do esgoto que estava sendo
despejado na água próximo ao local
da cachoeira, foi a canalização do cór-
rego em determinado trecho em que
o mesmo atravessa a rua principal da
comunidade. Neste caso, ao invés de
uma ponte ou passarela sobre a água,
foi construída uma rua diretamente so-
bre o córrego, calçando a área e colo-
cando um pequeno cano para a água
fluir por baixo da passagem. Não é de
se admirar que nos tempos das chuvas
tal trecho fique inundado, a memória
do córrego recupera seu espaço e re-
clama o terreno que lhe foi retirado.

293
Fotografias do local em que o córrego foi
canalizado sob a rua principal do distrito:
detalhe do cano sob a rua (esquerda) e imagem do
mesmo local durante inundação (direita)

Fonte: CAMARGO, 2018, p. 106.

294
Saindo da rua e subindo um pouco se derivou o nome deixar de existir, ou
mais a trilha das águas encontramos de ocupar um papel central dentro da
o que os moradores chamaram de vida da comunidade em que se encon-
“poço”. O local, em meio as lapas que tra, como é o caso da cachoeira do dis-
se projetavam de ambos os lados, con- trito de Cachoeira do Norte.
sistia em um pequeno reservatório for-
mado a partir do represamento de um
trecho do rio, uma obra simples, em
que construíram uma pequena mureta
de concreto durante o período de seca.
Subindo o declive por cima do “poço”
atravessamos uma cancela e logo a
frente nos deparamos com uma cria-
ção de cerca de 15 cabeças de gado vi-
vendo em meio ao terreno do córrego,
passando por cima sem nenhum tipo
de restrição de acesso.
Mais acima, encontramos uma gran-
de represa, que segundo os moradores
foi construída há cerca uma década
atrás e representou o início do fim da
cachoeira de Cachoeira do Norte. Com
o represamento do fluxo do córrego o
filete que consegue escorrer da represa
acaba sendo muito pequeno para que
a cachoeira possa voltar a tomar cor-
po. Sobre esta questão, de um elemen-
to da paisagem - e especificamente da
hidrografia local – dar nome à comuni-
dade, é interessante observar a refle-
xão de Seabra (2010) que destaca que
“é fato aceito que a toponímia – ciên-
cia que estuda os nomes dos lugares
– evidencia marcas da história social e
das características do ambiente físico
de uma determinada região” (p. 83,
grifos nossos), e ainda refere-se à Lin-
guística histórica – representada por
Bynon (1995 apud SEABRA, 2010, p. 83)
-, que destaca o potencial arqueológi-
co da linguística histórica, assumindo
que muitas vezes os nomes permane-
cem mesmo após o elemento de onde

295
A Represa

Fonte: CAMARGO, 2018, p. 50.

296
Ao longo deste trecho é evidente do córrego; e o mais grave, a aparente
que certas partes da mata ciliar fora morte da nascente.
devastada, bem como boa parte das
matas circundantes, incluindo morros e No fluxo do círculo de cultura: a
grandes áreas convertidas em pasta- Educação Ambiental que emerge das
gens. Além disso, nas áreas mais altas, trilhas das águas
já próximo da nascente é possível avis-
tar um eucaliptal. Seguindo na direção A Educação Ambiental de Base Co-
da nascente é possível encontrar ainda munitária reconhece a comunidade
outra represa, menor que a primeira, enquanto palco de sua ação e, justa-
mais próxima a entrada da mata den- mente por isso, nesta aproximação
sa que abriga a nascente. entre Educação Popular e Educação
Com a ajuda de um morador que co- Ambiental, deixa de fazer sentido limi-
nhecia muito bem esta mata consegui- tar o ato educativo ao ambiente es-
mos acesso até o ponto em que a água colar (CAMARGO, 2018). Sendo assim,
deveria estar brotando do solo, porém a abordagem comunitária extrapola
encontramos a terra seca, sem sinal da fronteiras e se revela como uma edu-
nascente – ao que o mateiro que nos cação que ocorre nos diversos espaços
acompanhava prontamente afirmou (e relações) existentes dentro do terri-
“nunca vi isso secar desse jeito. É a pri- tório no qual a comunidade evidencia-
meira vez em minha vida que vejo essa da está contida: a comunidade - em
situação assim”. sua totalidade - é o cenário da educa-
Deste modo, seguindo as trilhas ção de base comunitária.
da água do córrego da cachoeira Desta forma, embora também pos-
conseguimos perceber uma série de sa estar presente na escola, a proposta
questões que afetam diretamente a em questão se desenrolou para além
condição socioambiental da comuni- deste ambiente, optando por realizar
dade e que, portanto, se manifestam encontros abertos no centro social da
como parte de um tema gerador. É comunidade do distrito de Cachoeira
importante destacar que tais trilhas do Norte, sendo que tais encontros fo-
foram realizadas sempre com a aju- ram concebidos no formato de oficinas
da de guias locais que nos auxiliaram, oferecidas aos moradores das comu-
inclusive, com a produção de registros nidades. Nestas oficinas, cujo público
(fotográficos e audiovisuais). Entre as predominante envolvia moradores
questões evidenciadas nesta trilha, mais velhos – o que nos conecta à ob-
elencamos: o desmatamento, com servação de Bosi (1994) quanto a re-
destaque à perda da cobertura ve- presentatividade da memória dos ido-
getal e derrubada da mata ciliar em sos para a compreensão da realidade
diversos trechos do córrego; criação comunitária -, os temas geradores
de gado, com livre acesso dos animais evidenciados ao longo das imersões
aos recursos hídricos; substituição da realizadas com as comunidades foram
vegetação nativa por monoculturas de debatidos com os moradores em cír-
eucalipto; e o represamento da água culos de cultura (FREIRE, 2014). Costa

297
e Maciel (2009) destacam ainda o po- relacionados à presença de água pa-
tencial de articulações intergeracionais rada, e a ausência de determinados
na construção de relatos mais fami- predadores naturais como aranhas,
liares – deste modo, os testemunhos anfíbios, pássaros e répteis.
das gerações mais antigas tenderiam Refletindo sobre tais doenças ficou
a conduzir a uma maior identificação evidente que os moradores considera-
das novas gerações com tais memó- vam que estas eram “doenças de tu-
rias e histórias. ristas” (CAMARGO, 2018), pois normal-
Em um destes momentos, ao apre- mente são trazidas para a região pelos
sentarmos a fotografia da cachoeira visitantes, sobretudo nos períodos fes-
para os participantes do círculo, des- tivos – incluindo a Folia de Reis, festa
pontaram lembranças de um pas- de Santa Cruz, casamentos etc.
sado utópico em que a natureza se Passando para outra imagem, dian-
encontrava preservada e, portanto, te da fotografia do trecho da rua prin-
havia água de sobra e o córrego corria cipal que passa por cima do córrego
durante a maior parte do ano. Os re- (canalizado) durante uma inundação,
latos descortinaram um cenário bem os moradores logo associaram a ima-
distinto do observado atualmente, re- gem a um momento em que a água
velando que antigamente a cachoeira subiu muito rápido e chegou a atingir a
era um local de lazer, sobretudo para casa de uma moradora que fica rente
crianças e jovens, que brincavam de ao córrego tal construção atualmente
escorregar nas pedras e, com isso, ti- encontra-se protegida por uma estru-
nham uma relação de intimidade com tura de concreto) e assim refletiram
os recursos hídricos locais desde cedo. sobre essa situação e apontaram que
Em seguida, foram apresentados de fato a obra teria sido mal planejada
dois vídeos focando nas larvas de e que uma ponte ou passarela neste
mosquitos presentes nas poças de local poderia inclusive evitar eventu-
água parada da “cachoeira morta”; e ais acidentes, além de não prejudicar
um vídeo da espuma e do esgoto que o percurso natural do córrego – mas
estava sendo despejado no córrego. ainda assim os participantes concor-
Tais cenas geraram grande comoção, e daram que seria muito difícil mudar
levaram muitos a indignação de saber tal situação, pois dependeriam da boa
que a cachoeira de que se lembravam vontade do poder público local.
com tanto carinho se encontrava em A partir de uma fotografia do “poço”
tal situação79. - que basicamente mostrava uma pe-
Deste modo, a partir desta filmagem dra onde hoje se encontre uma barrei-
das larvas de mosquitos nas poças da ra, que produz uma mini represa num
cachoeira o círculo se converteu em trecho de declive do córrego - surgiram
um debate sobre a importância de relatos de um momento do passado
conscientizar a população com relação em que o lugar era conhecido como
aos riscos da proliferação de mosqui- a lapa das lavadeiras, e a partir daí
tos vetores de doenças como Dengue, emergiram memórias das cantigas,
Zika e Chikungunya – diretamente do cheiro do sabão de mamona, da

298
espuma produzida a partir do esma- tinham ido conferir com os próprios
gamento da frutinha de uma árvore olhos, e não imaginavam a extensão
que chamavam de “saboneteira” e da mesma.
até mesmo das simpatias dedicadas à Ficou evidente que o tema da repre-
Santa Clara para “deixar o tempo bom sa era um pouco controverso dentro
para secar roupas”. Além disso, diante da comunidade, pois, embora repre-
desta imagem, uma participante se sentasse uma situação de conflito
lembrou que possuía uma fotografia ambiental (ACSELRAD, 2015) a partir
que mostrava um quiosque que che- da apropriação privada de recursos
gou a existir na beira deste trecho do naturais – no caso pela construção de
córrego, e que também servia como uma represa particular – ainda assim,
ponto de lazer - com venda de bebidas o fato de a represa ser propriedade de
e lanches para os banhistas – e deste um membro da comunidade, parente
comentário brotaram novas lembran- de muitos dos participantes presentes,
ças de um tempo em que o córrego acabou fazendo com que evitassem
era motivo de orgulho e alegria para a personalizar o assunto, mesmo reco-
comunidade. nhecendo os prejuízos que uma grande
Seguindo na direção da nascente, represa pode gerar. Porém, apesar da
mostramos para o grupo a imagem dificuldade em abordar o tema, de um
do local onde se encontra a criação de modo geral concordaram que um nú-
gado. Diante desta foto os participan- mero maior de pequenas represas po-
tes recordaram que antigamente tal deria, na opinião dos participantes, ser
região era um brejo - uma área ala- melhor para a situação local. Assim,
gada e que para atravessar a pessoa embora a água tenha dono, e esteja
molhava as calças de tanta água -, atrás de uma cerca, falar sobre o as-
mas que hoje secou tudo. Destacaram sunto parece uma espécie de tabu.
ainda como antigamente a mata era Esse detalhe é interessante para
fechada e dava para ouvir o barulho pensarmos como o próprio debate em
do córrego da estrada; e associaram torno dos conflitos ambientais precisa
a perda de vegetação como uma das ser problematizado em casos como
principais responsáveis pela piora da este, em que o conflito surge dentro
quantidade e qualidade de água no da própria comunidade, por parte de
córrego. alguém de dentro do próprio grupo.
Quando apresentados as imagens Neste caso, não se trata de uma sim-
da represa, incluindo fotografias ti- ples oposição entre um grupo opressor
radas durante as caminhadas pelas e um grupo de oprimidos, mas sim,
margens do córrego, além de uma de uma situação de injustiça produ-
imagem aérea obtida com auxílio do zida localmente por um agente local,
programa Google Earth, muitos mora- inclusive ligado por laços familiares a
dores esboçaram grande surpresa. Um outros membros da comunidade, ou
grande número de participantes do seja, uma situação em que por motivos
círculo afirmou que embora soubessem afetivos torna-se dificultada a identifi-
da existência de tal represa jamais cação da situação enquanto conflito.

299
Continuando o jogo de codificação- consistiria em uma reflexão crítica so-
-decodificação proporcionado pelo cír- bre a realidade dos sujeitos. Dentre
culo de cultura, apresentamos aos par- tais caminhos possíveis, ou inéditos
ticipantes imagens da nascente seca. viáveis, apontados pelos participantes
Foi neste momento que os moradores do círculo destacamos: considerar que
mais demonstraram preocupação, muitas represas pequenas podem ser
muitos exclamando que desconheciam mais interessantes e democráticas do
a situação, e não imaginavam que tal que poucas represas grandes; o Reflo-
nascente poderia vir a secar. Neste restamento e a recuperação ambiental
momento a discussão foi se tornan- se colocam como questões urgentes,
do mais acalorada e os participantes com destaque a proteção e regenera-
acabaram concordando que a comuni- ção de nascentes; conscientização com
dade teve culpa neste processo, que a relação às queimadas; cercamento de
comunidade foi conivente com a des- córregos e nascentes; projetos contí-
truição ambiental e que, por isso, teria nuos de educação ambiental; campa-
a responsabilidade de agir para fazer nhas contra a proliferação de mosqui-
algo a respeito. Foi interessante per- tos transmissores de doenças etc.
ceber como os moradores tinham uma
visão bem definida sobre os principais Considerações finais
fatores que poderiam ter contribuído
para tal situação, apontando em es- Em meio às trilhas das águas fo-
pecial o desmatamento, as queimadas ram reveladas pistas sobre as relações
e a substituição da vegetação nati- estabelecidas entre as comunidades
va por pastagens e monoculturas de locais e o meio ambiente, consideran-
eucalipto. do as memórias dos moradores como
Assim, os participantes demons- base para a reconstituição da história
traram consciência sobre as transfor- ambiental da região. Neste sentido, o
mações socioambientais vivenciadas presente capítulo reforça o potencial
localmente e puderam contribuir, a das imagens enquanto ativadores de
partir de suas memórias, com a re- memórias e, consequentemente, re-
constituição de momentos da histó- conhece a importância das imagens
ria ambiental da região, e para uma como ferramentas para a história am-
melhor compreensão das dinâmicas biental, através de relatos de memória
psicossocioambientais presentes neste oral – sendo especialmente relevante
território. no caso de comunidades que apresen-
Além disso, os participantes apro- tam um histórico de isolamento e ca-
veitaram a oportunidade para pen- rência de registros documentais sobre
sar sobre possíveis soluções para os a história local.
problemas locais. Este processo, de Os círculos de cultura se revelam
identificar situações limites e refletir como espaços privilegiados para a
sobre caminhos possíveis para sua su- produção de reflexões críticas e coleti-
peração se refere ao que Paulo Freire vas acerca da complexa realidade psi-
chamava de Inéditos viáveis, o que cossocioambiental das comunidades

300
participantes, destacando-se como deste território – que puderam ser con-
uma importante metodologia para trastadas com as memórias de mora-
criação de discussões elaboradas a dores, reavivadas pelo estímulo visual.
partir dos saberes prévios das comuni-
dades, das memórias bioculturais dos Referências
moradores locais e das experiências
de vida dos participantes. Deste modo, ACSELRAD, Henri. Vulnerabilidade
o círculo de cultura fornece subsídios social, conflitos ambientais e regulação
para a construção de Educação Am- urbana. O Social em Questão, Ano
biental de Base Comunitária, influen- XVIII, n. 33, p. 57-68, 2015.
ciada pelo legado de Paulo Freire, da
Educação Popular Latinoamericana e
da perspectiva de Educação Ambien- Prehistorical Linguistics? In: Cambridge
tal Crítica e Transformadora. Archaeological Journal, Londres, p.
Com relação a influência de Freire 261-265, 1995.
destacamos que o trabalho reforça a
importância das palavras do universo BOSI, Eclea. Memória e Sociedade:
vivido das comunidades (incluindo aí Lembranças de Velhos. São Paulo:
as toponímias – tal como o nome do Companhia das Letras, 1994.
distrito), para a compreensão da his-
tória ambiental de um território, cujo CAMARGO, Daniel Renaud. Contos,
próprio nome é derivado de um ele- Bênçãos e Mezinhas: Educação
mento da paisagem. Neste sentido, o Ambiental Popular como Ferramenta
presente capítulo aponta que há uma de Proteção dos Saberes Locais.
relação entre a imagem, a paisagem e (Trabalho de Conclusão de Curso)
a palavra, assumindo ainda que a me- Graduação de Bacharelado em
mória pode se constituir como um elo Ciências Ambientais da Universidade
entre tais elementos. Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Assim, uma pesquisa de Educação Janeiro, RJ, 2015.
Ambiental de base Comunitária se
propõe a desenvolver seu olhar calca- _______. Lendas, Rezas e
do em uma estreita parceria com as Garrafadas: Educação Ambiental
comunidades as quais se destina, re- de Base Comunitária e os Saberes
conhecendo suas memórias e histórias Locais no Vale do Jequitinhonha
e seguindo as trilhas existentes em seu (dissertação de mestrado). Programa
território. No caso do Vale do Jequiti- de Pós-Graduação em Educação da
nhonha, e em especial no caso da co- Universidade Federal do Estado do Rio
munidade de Cachoeira do Norte, as de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2018.
trilhas das águas se revelaram como
um importante percurso para a apre- COSTA, Samira Lima da; MACIEL,
ensão de informações sobre as condi- Tânia Maria de Freitas Barros.
ções socioambientais da região, bem Os Sentidos da Comunidade: a
como pistas sobre a história ambiental memória de bairro e suas construções

301
intergeracionais em estudos de
comunidades. Arquivos brasileiros de LOIZOS, Peter. Vídeo, Filme e
psicologia, v. 61, n. 1, p. 60-72, 2009. Fotografias como documentos de
pesquisa. In: BAUER, Martin; GASKELL,
FREIRE, Paulo. Pedagogia do George. Pesquisa Qualitativa com
Oprimido 57ª ed rev. e atual., Paz e texto, imagem e som: um manual
Terra, Rio de Janeiro, RJ, 2014. prático (tradução de Pedrinho A.
Guareschi). Editora Vozes, 4ª ed,
______. Pedagogia da Autonomia: Petrópolis, RJ, 2002.
Saberes Necessários para a Prática
Educativa. 51ª ed, Paz e Terra, Rio de PERALTA, Elsa. Abordagens teóricas
Janeiro, RJ, 2015. ao estudo da memória social: uma
resenha crítica. Arquivos da Memória.
FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Adriano. Antropologia, Escala e Memória. N.
Que Fazer: Teoria e Prática em 3, (nova série), Centro de estudos de
Educação Popular. Editora Vozes, Etnologia Portuguesa, 2007.
Petrópolis, RJ, 1989.
SEABRA, Maria Cândida. Toponímia do
GONDAR, Jô. Quatro proposições Vale: Passado e Presente. In: SOUZA,
sobre memória social. In: GONDAR, Jô; João Valdir; HENRIQUES, Márcio
DODEBEI, Vera (orgs). O que é Simeone (orgs) Vale do Jequitinhonha:
memória social?. Programa de Pós- Formação histórica, populações e
Graduação em Memória Social da movimentos. PROEX, UFMG, Belo
Universidade Federal do Estado do Rio Horizonte, MG, 83-96p, 2010.
de Janeiro, Rio de Janeiro, 1ª ed, v. 1,
2005, 162p. TOLEDO, Victor & BARRERA-
BASSOLS, Narciso. A Memória
LASCHEFSKI, Klemens; ZHOURI, Biocultural: A Importancia Ecológica
Andréa. Desenvolvimento, Água e das Sabedorias Tradicionais (Tradução
Mudança social: Experiências no de Rosa Peralta). Expressão Popular, 1ª
Vale do Jequitinhonha. In: SOUZA, ed, São Paulo, SP, 2015.
João Valdir; NOGUEIRA, Maria das
Dores (orgs). Vale do Jequitinhonha:
Desenvolvimento e Sustentabilidade,
Belo Horizonte, MG, UFMG/PROEX,
2011.

LEFF, Enrique. Construindo a História


Ambiental da América Latina.
Revista Esboços nº 13. 51° Congresso
Internacional de Americanistas,
Simpósio de História Ambiental
Americana, Santiago, Chile, 2003.

302
NOTAS

Capitulo 13

75 As discussões apresentadas aqui são fruto de um prolongado contato


com a comunidade do Distrito de Cachoeira do Norte, iniciado em 2012, a
partir de minha participação em um projeto social, e que posteriormente
se aprofundou a partir de meus projetos de trabalho de conclusão de curso
da graduação (CAMARGO, 2015) e dissertação de mestrado (CAMARGO,
2018), e que atualmente prossegue através da investigação do doutorado. Os
dados de pesquisa apresentados neste capítulo são decorrentes do trabalho
de mestrado (CAMARGO, 2018) abarcando também reflexões teórico-
metodológicas propiciadas pela trajetória no doutorado.

76 Sobre tal modelo me refiro à discussão levantada por Laschefski


e Zhouri (2011) sobre os diferentes ciclos de desenvolvimento econômico
impostos ao Jequitinhonha – incluindo a mineração, a agropecuária e
monoculturas (com destaque para a eucaliptocultura).

77 É importante destacar que a cachoeira de cachoeira do Norte,


mesmo em seu período de esplendor, era uma cachoeira intermitente,
ou seja, dependia de um córrego que naturalmente costumava secar
temporariamente nos períodos de secas mais intensas - comuns nesta região
do sertão mineiro.

303
78 Posteriormente, ao longo da investigação da dissertação de mestrado
(CAMARGO, 2017) tal informação veio a ser questionada por moradores que
garantiram que a ocupação deste território teria se iniciado nas décadas
anteriores (em algum momento entre 1900 e a década de 1930, visto que,
segundo tais relatos na década de 1930 os primeiros moradores da região já
estavam estabelecidos há algum tempo.

79 Atualmente o terreno se encontra com o mato alto e não é


frequentado pelos moradores, até por medo de acidentes com quedas e
animais peçonhentos.

304
Reflexos da sociedade excitada
no Ensino Superior: O vício em
imagens e a supersaturação
dos sentidos como obstáculos
no ensino-aprendizagem de
Bioquímica
Juliana Barbosa Coitinho
Emerson Campos Gonçalves

14.
Introdução

Os seres vivos, mesmo sendo muito diferentes macroscopicamente (como os


nossos olhos ousam antecipar), apresentam inúmeras semelhanças ao nível mo-
lecular, de forma que a Bioquímica constitui um tema de estudo unificante de
todos os seres e da vida em si, abrangendo conhecimentos importantes para
diferentes campos e contribuindo para avanços na biotecnologia, medicina,
agricultura, ciências do meio ambiente, ciências forenses, entre outras. Contudo,
apesar dessa significativa importância, a disciplina é comumente taxada – por
docentes e discentes – como uma “matéria de árdua apreensão”. Sobremanei-
ra, isso ocorre por causa da complexidade dos conteúdos abordados em seu
currículo básico, já que trata de fenômenos a nível molecular difíceis de serem
abstraídos, visualizados e compreendidos, que muitas vezes são preditos apenas
por modelos e fórmulas e que, num contexto de sala de aula (ou mesmo de labo-
ratório), não podem ser visualizados pelo olho humano, ainda que com a ajuda
de sofisticados equipamentos e lentes. Essa particularidade faz com que, além
da dedicação aos estudos individuais e leitura, a imaginação – ou a capacidade
imaginativa – seja uma faculdade fundamental para que os educandos experi-
mentem uma aprendizagem significativa e/ou efetiva do conteúdo estudado.
Considerando a característica supramencionada, parecia ser consenso entre
docentes e pesquisadores até então (e talvez ainda pareça), que a adoção de
diferentes modelos imagéticos, simples ou tridimensionais, era uma ação facili-
tadora necessária (e quase obrigatória) para a compreensão dos conteúdos mi-
nistrados na Bioquímica. Em outras palavras, uma via de acesso mais rápida e

306
potente para garantir que os estudan- Bioquímica, como Konrad Schönborn
tes “imaginassem” o processo de for- e Trevor Anderson (2006), algumas hi-
ma adequada (ou para que “não pen- póteses e possíveis caminhos para a
sassem os pensamentos errados”, nos disciplina nesse contexto. Ao tomar a
termos da crítica adorniana aos sujei- Teoria Crítica da Sociedade (da qual
tos anti-intraceptivos), uma mediação Türcke é signatário) como prisma para
através da imagem entre o fenômeno observar as contradições em processos
molecular que não pode ser visualizado de ensino-aprendizagem quase sem-
e o aluno, que – na condição de sujeito pre guiados pela crença na razão ins-
“educando” – passa a ter na represen- trumental, nosso objetivo principal não
tação sígnica sua via direta de acesso é apresentar uma “receita de bolo”,
a esse conhecimento. mas discutir a postura pedagógica de
Todavia, na esteira da atual socieda- docentes e pensadores da área peran-
de excitada, cuja principal marca é a te a constatação do vício em conteú-
multiplicação exponencial de imagens dos imagéticos e da supersaturação
técnicas e o entorpecimento/vício dos dos sentidos que surgem como condi-
indivíduos a partir dessas (TÜRCKE, ção imperativa de toda a sociedade
2010), a experiência do cotidiano da hodierna.
sala de aula nos sugere o predomínio Para elaborar a questão exposta,
de certa dependência dos estudantes toma-se, nas próximas páginas, uma
do uso dessa representação imagética trilha teórica que parte da apresen-
que, de potencializador didático-pe- tação e do debate dos conceitos de
dagógico, tem se convertido numa vício e supersaturação dos sentidos
espécie de material totalizante, cuja presentes na obra de Christoph Türcke
“imprescindibilidade” acaba figuran- (2010) (Vício em imagens na sociedade
do como danosa para o processo de excitada), perpassa um levantamento/
ensino-aprendizagem. Na Bioquímica, revisão sobre as principais discussões
essa tendência tem sido observada e pesquisas sobre o uso de imagens
de duas formas principais, a saber: a e modelos de representação externa
partir da dificuldade dos alunos em no ensino da Bioquímica (Imagens no
compreender e explicar os processos ensino de Bioquímica) e, ao fim, apon-
bioquímicos sem o auxílio das imagens ta para diferentes problematizações
e modelos, sobretudo nos testes de co- e caminhos possíveis a partir da apro-
nhecimento; e da opção recorrente em ximação apresentada, retomando um
realizar os estudos sobre a disciplina a debate sobre a importância da imagi-
partir de vídeos – disponíveis em ca- nação para o estudante do ensino su-
nais no Youtube, por exemplo – e não perior (Últimas – ou primeiras – notas
pelo livro. sobre imaginação e Bioquímica).
Tomando a realidade apresentada,
este ensaio busca problematizar à luz
da filosofia da sensação, do alemão
Christoph Türcke (2010), e, também, de
pesquisadores da área de ensino em

307
Vício em imagens na sociedade Em outros termos, neste curto pe-
excitada ríodo de tempo, a narração da vida
cotidiana através dos signos (verbais
Para compreender e visualizar as e não verbais), de artificio próprio do
fronteiras cognitivas de aprendiza- homem enquanto ser histórico que
gem80 (im)postas aos estudantes do produz marcas do seu tempo com o
ensino superior na atualidade (na ver- uso da linguagem, metamorfoseou-
dade não somente a eles, mas a todos -se numa espécie de compulsão pela
nós), faz-se fundamental refletir sobre repetição de imagens na qual somos
a transformação nas formas de repre- os maiores produtores e, também, as
sentação simbólica do nosso cotidiano principais vítimas, segundo denuncia o
experimentada pelas sociedades ca- filósofo Christoph Türcke:
pitalistas nas duas primeiras décadas
deste milênio. Isso é, sobre a consoli- O choque da imagem exerce poder
dação de um novo fluxo comunicativo fisiológico; o olho é magneticamente
e formativo que se caracteriza, princi- atraído pela abrupta alteração lumi-
palmente, pela produção, pelo com- nosa, e dela só consegue se afastar
partilhamento e pelo consumo ininter- através de um grande esforço da
rupto de um sem fim de imagens nas vontade. O choque da imagem exer-
antigas mídias de massa e, principal- ce fascinação estética; constante-
mente, nas redes sociais online, onde mente ele promove novas imagens,
de meros “receptores” passamos a ser ainda não vistas. Ele se exercita na
agentes ativos dessa indústria, forne- onipresença do mercado; seu “olhe
cendo “mão-de-obra” gratuita dentro para cá” exalta a cena seguinte como
de uma linha de produção de conteú- um vendedor com sua mercadoria.
dos imagéticos que é ilimitada81. Sendo parte tanto do computador
Não que outras condições históricas como do aparelho de televisão, a
objetivas e subjetivas – como a falta tela, longe de preencher apenas o
de estrutura básica na rede pública tempo livre, invade a totalidade da
de ensino82, a própria desigualdade vida profissional, de modo a se con-
que pauta a essência do nosso siste- fundirem o choque da imagem e a
ma econômico e/ou o mal-estar que ocupação no trabalho. Os dados aos
o mundo administrado produz nos quais eu subitamente ganho aces-
indivíduos, impelindo-os numa busca so, também eles subitamente me
claustrofóbica por qualquer válvula de acessam para que eu os elabore – ou
escape – sejam incapazes de explicar passe a contar com uma rescisão de
os limites que cerceiam a possibilidade contrato. Com tudo isso, o choque
plena de aprendizagem dos estudan- da imagem se tornou o foco de um
tes universitários. Elas são. Contudo, regime global de atenção, que insen-
a essas, nestes últimos vinte anos, sibiliza a atenção humana por meio
somou-se de modo significativo esse da sobrecarga ininterrupta (TÜRCKE,
cenário marcado pela multiplicação 2016, p. 33).
exponencial de conteúdos imagéticos.

308
O melhor diagnóstico sobre essa antecede, representa uma forma de
“sobrecarga ininterrupta”, capaz de reação desamparada, silenciosa, e
“insensibilizar” nossa atenção e/ou continuamente moderna, não é tão
supersaturar nossos sentidos (estabe- evidente (TÜRCKE, 2010, p. 239).
lecendo a “fronteira cognitiva” supra-
mencionada), está na obra Sociedade A grande questão que se coloca com
excitada: filosofia da sensação, tam- o estabelecimento dessa compulsão
bém de Türcke (2010), onde o autor por uma satisfação falsa através das
apresenta uma espécie de arqueo- imagens na nossa sociedade (lembre-
logia do termo “sensação” que, em mos: satisfação traduzida em produ-
nossa sociedade, significa “aquilo que, ção, consumo e compartilhamento)
magneticamente, atrai a percepção: é que, de uma só vez, ela perpetua a
o espetacular, o chamativo” (TÜRCKE, lógica da dependência, isso é, de que
2010, p. 9). Assim, nos termos do filóso- “o vício sempre deseja mais do que o
fo, essa busca pela “sensação” através material viciante pode dar-lhe” (TÜR-
das imagens compõe uma das prin- CKE, 2010, p. 12), e a desfigura numa
cipais formas de vício da contempo- espécie de perversão, já que, no atual
raneidade (tal qual o álcool ou outras modelo de distribuição comunicati-
substâncias psicotrópicas). va, com a liberação do polo emissor a
Nesse sentido, é importante obser- partir das redes sociais online, somos
var que a ideia de vício é incorporada os viciados e, também, os produtores
por Türcke (2010) no sentido mais usu- do nosso narcótico. Assim, produzimos
al emprestado ao termo: a busca de sempre mais e mais em busca de aten-
apoio em um objeto falso (nesse caso, der a um desejo que jamais será satis-
as imagens). feito. É essa sociedade de “viciados” e
imagens voláteis, onde as “sensações
O vício é a busca de um apoio vital estão a ponto de se tornar os pulsos e
num objeto falso, sendo que aque- a batida da vida social como um todo”
les que o procuram não devem ser (TÜRCKE, 2010, p. 14) que Türcke define
informados de que se trata de algo como da sensação ou excitada:
falso. Eles sentem, eles sabem que a
substância na qual se aferram não Há uma torrente de estímulos dos
fornece nenhum apoio, mas eles não meios de comunicação de massa que
têm outra e, por isso, cada vez mais competem para fazer parte dessas
se jogam a ela, a mesma substância sensações. Ninguém consegue do-
que os priva daquilo que lhes deve- miná-los. Nem o mais distinto inte-
ria proporcionar. Quando se fala em lectual que torce o nariz consegue
sintomas de abstinência, os quais se- fechar-se diante dos estímulos, de tal
guem o vício do mesmo modo como modo que o sentido de sua atenção,
a sombra segue a luz, esquece-se a escolha dos temas e das palavras,
facilmente de que o próprio vício já o tempo e o ritmo de seus pensa-
é um sintoma de abstinência. En- mentos não conseguem permane-
tretanto, a sua abstinência, que lhe cer sem ser por eles molestados de

309
alguma forma. Em curtas palavras, é apresentado, o direcionamento de to-
chegado o momento de falar de uma das as estratégias pedagógicas ao uso
sociedade da sensação (TÜRCKE, das imagens pode representar a con-
2010, p. 10). solidação dessa fronteira cognitiva de
aprendizagem, isso é, da impossibili-
É claro que o objetivo aqui não é dade da abstração dos processos pelo
retomar os debates do autor sobre a próprio estudante? O que fazer então
incorporação dessa compulsão pela quando o signo toma o espaço da teo-
repetição de imagens em nossa socie- ria enquanto simulacro? Qual caminho
dade como um retorno ao fundamen- seguir diante dessa realidade que se
to, àquilo que, num momento primevo, contrapõe a uma lógica aparentemen-
significou o mesmo movimento de ten- te inquestionável?
dência à repetição de um pavor que, Assim, considerando a importância
na perspectiva do autor, teria origina- que as imagens sempre tiveram como
do a cultura. Tampouco nosso objetivo recurso didático na Bioquímica (e nos
ao apresentar o diagnóstico de Türcke processos educativos de forma geral) e
é “demonizar” as imagens ou imputá- o diagnóstico de Türcke (2010), busca-
-las qualquer “culpa” pelos infortúnios mos, no tópico seguinte, refletir sobre
atuais da educação superior. A ideia os principais debates teóricos empre-
aqui, conforme apresentado na intro- endidos sobre o uso dessas na disci-
dução deste trabalho, é, antes, tomar plina, tomando sempre como norte a
a reflexão proposta por Christoph Tür- busca pelos limites e contradições que
cke como um caminho potente para surgem no emprego das representa-
problematizar algumas questões que ções imagéticas como solução educa-
tem passado a largo. Como, por exem- tiva nesta sociedade, já supersaturada
plo, até que ponto, o uso da “imagem e viciada em signos não verbais.
pela imagem”, sem uma reflexão mais
detida ou crítica sobre os objetivos Imagens no ensino de Bioquímica
pedagógicos e seu real alcance, tem
sido efetivo no processo de ensino- Conforme supracitado, a visualiza-
-aprendizagem (no nosso caso, dentro ção e a interpretação de representa-
da Bioquímica)? Isso é, trata-se efeti- ções imagéticas têm sido tomadas
vamente de uma ferramenta didática como passos essenciais em diferentes
ou apenas da repetição da mesma processos de ensino-aprendizagem (e
lógica de reprodução de imagens que isso não é, de forma alguma, negado
predomina de forma mais ampla na neste trabalho). Seja para caracteri-
sociedade? Para além disso: é possível zar o relevo de uma área geográfica
afirmar que o vício de imagens apon- que não podemos visitar, seja para
tado pelo autor pode contribuir para demonstrar a planta de uma casa se-
limitar nossa capacidade imaginativa quer construída, seja para expor os
(de fantasia, por exemplo), tornando- processos e componentes celulares, é
-nos dependentes dessas? No caso da mister reconhecer que as imagens fun-
Bioquímica, considerando o cenário cionam – sim! – como um instrumento

310
de mediação capaz de aproximar estu-
dantes de realidades que não podem
ser visualizadas in totum no espaço
da sala de aula, dadas as limitações
objetivas do lócus escolar ou a natu-
reza dos fenômenos estudados. Logo,
ser capaz de interpretar tais imagens,
compreender sua escala de repre-
sentação, situá-las em um contexto e
refletir sobre suas limitações é passo
fundamental para que a pessoa que
está observando use essa represen-
tação em seu benefício, transpondo,
de certa forma, os limites do próprio
signo – sempre incompleto – frente os
objetos.
É o que ocorre no caso específico dos
fenômenos abordados na Bioquímica.
Em síntese, com a disciplina, estuda-
-se os componentes moleculares, suas
interações e um sem fim de processos
que permitem a existência da vida,
uma vez que, todas as células com-
partilham, em maior ou menor grau,
de propriedades fundamentais que a
matéria busca explicar (Figura 1). Logo,
considerando a complexidade de tais
componentes e processos, bem como
sua interrelação e manifestação em
variadas situações, o estudante de
Bioquímica precisa ser capaz de trans-
por esse conhecimento – não disponí-
vel a “olho nu” – para diferentes con-
textos, seja o de uma molécula, seja o
de uma célula, seja o de um organismo
inteiro.

311
Figura 1 - Representação da estrutura
tridimensional de uma proteína. A –
Representação em “animação” (cartoon) que
destaca as estruturas secundárias. B –
Representação em “varetas” (sticks) que destaca
os resíduos de aminoácidos. A partir dessas
imagens, os estudantes precisam usar seus
conhecimentos teóricos e entender que essas
estruturas representam uma proteína formada por
uma sequência de moléculas (aminoácidos) unidas
por ligações químicas (ligações peptídicas). A
partir dessa representação é preciso deduzir que
esta estrutura tridimensional é mantida através
de interações químicas fracas (não representadas
nas imagens) entre os átomos constituintes
dos aminoácidos. Além disso, é preciso também
entender que apesar dessa representação ser
estática, as proteínas apresentam flexibilidade
estrutural e esta característica é essencial
para a função.

Fonte: Figura elaborada pelos autores,


utilizando o programa Pymol (https://pymol.
org/), a partir da estrutura da proteína
salicilaldeído desidrogenase depositada no banco
de dados “Protein Data Bank” (www.rcsb.org) sob
o código 4JZ6.

312
É justamente por isso que a repre- bioquímicos, já que esses, nas palavras
sentação imagética desses processos de Schönborn e Anderson (2006), tran-
submicroscópicos tem sido importante sitam entre as dimensões macroscópi-
para o ensino, a pesquisa e a aprendi- ca, microscópica e submicroscópica.
zagem dentro da Bioquímica, uma vez
que essas auxiliam na transposição do A Bioquímica é uma ciência que é in-
conhecimento do campo teórico e ima- vestigada nos níveis de organização
ginativo para o campo visual, onde, de macroscópica, microscópica e, em
alguma maneira, os temas se mate- particular, os níveis de organização
rializam através de símbolos mais ou submicroscópica (molecular). Assim,
menos reconhecíveis pelos estudantes para uma compreensão holística da
nas representações externas83, com Bioquímica, os alunos são obrigados
círculos e retas, bolas de isopor e fios a traduzir prontamente entre esses
de arame galvanizado, emprestando três níveis de organização, algo que
forma e aparência aos átomos e suas pode ser bastante difícil e confuso
ligações. para eles. Como não podemos ver
fisicamente o ambiente submicros-
Todos os bioquímicos concordariam cópico, os bioquímicos usam teorias
prontamente que as ferramentas físicas e químicas de construção de
de visualização são essenciais para conceitos, hipóteses e modelos na
entender e pesquisar as biociências tentativa de explicar esses fenôme-
moleculares e celulares. Isso se reflete nos abstratos. Essas construções, por
no crescimento exponencial ao longo sua vez, se aceitas pela comunidade
dos anos no número e variedade de de bioquímicos, regem como inter-
ferramentas de visualização que es- pretamos e visualizamos posterior-
tão disponíveis para o fortalecimento mente o ambiente submicroscópico e,
do aprendizado e da pesquisa em portanto, o que incluímos em recursos
Bioquímica (SCHÖNBORN; ANDER- educacionais (por exemplo, livros de
SON, 2006, p. 94, tradução livre).
computador e Internet) e o que ensi-
Tal importância fica evidente ao namos os alunos (SCHÖNBORN; AN-
analisarmos diferentes livros-texto DERSON, 2006, p. 94, tradução livre).
de Bioquímica, os quais são repletos
dessas representações externas, como Contudo, Schönborn e Anderson
modelos físicos e moleculares, fotogra- (2006) reconhecem que o abuso nas
fias, micrografias, fotos, diagramas, representações imagéticas pode sig-
ilustrações, desenhos, imagens, mapas nificar um entrave ao ensino de Bio-
metabólicos e gráficos (SCHÖNBORN; química. Os autores lembram que esse
ANDERSON, 2006). Tais represen- “abuso” pode partir da própria acade-
tações auxiliariam na construção de mia, que ao invés de padronizar, cria
modelos mentais significativos que formas múltiplas de representar um
permitiriam a visualização, integra- mesmo fenômeno84, abusando de co-
ção, e compreensão de conceitos res, símbolos e formas, mas, de modo

313
especial, se mostram preocupados os alunos apresentam dificuldades de
com a ausência de uma alfabetização interpretação de diagramas esque-
visual85 dentro do currículo de estu- máticos (representações externas) es-
dantes de Bioquímica, uma vez que pecialmente devido à ausência de co-
entendem que nhecimentos prévios sobre os assuntos
representados. De acordo com a auto-
[...] assim como a alfabetização ver- ra, a conclusão dessas pesquisas é que
bal significa ser capaz de ler e escre- as imagens nem sempre facilitam o
ver em determinada língua e a alfa- desenvolvimento de modelos mentais
betização numérica envolve a leitura apropriados nos estudantes, haja vista
e a escrita de números, a alfabetiza- que o modelo geralmente permanece
ção visual abrange a capacidade de no nível perceptivo, não resultando em
leitura (compreender ou entender) e aprendizagem do conteúdo específico
escrita (desenhar) de representações em si.
externas, incluindo a capacidade de Tal ideia é ratificada pelo estudo
pensar, aprender e se expressar em conduzido por Costa et al. (2009), que,
termos de imagens (SCHÖNBORN; ao analisarem a organização do tema
ANDERSON, 2006, p. 97, tradução “Glicólise” dentro de quatro livros di-
livre). dáticos de Bioquímica86 verificaram
um planejamento instrucional inade-
Nesse sentido, os autores reconhe- quado, sobretudo a partir da incorpo-
cem que os alunos têm sido expostos ração excessiva e desorganizada das
a um número cada vez maior de repre- imagens, “que sobrecarrega os recur-
sentações externas dentro da própria sos cognitivos do aluno comprome-
disciplina, o que, somado com a uma tendo a aprendizagem” (COSTA et al.,
baixa alfabetização visual, justificaria 2009, n.p.).
a dificuldade de se apropriar das ima- Buscando “respostas” ao diagnós-
gens como instrumentos de mediação tico apresentado sobre os livros didá-
ao conhecimento. Assim, dadas as ticos de Bioquímica, pesquisas como
diferenças de habilidades cognitivas a de Dias et al. (2013) têm buscado
visuais entre os universitários, haveria desenvolver um variado material mul-
a necessidade de desenvolvimento timidiático (composto por vídeos com-
de técnicas de visualização para além binando filmes, animações e dinâmica
daquelas que eles adquiririam “infor- molecular) com o objetivo de auxiliar
malmente” em sua formação singu- no processo de ensino-aprendiza-
lar, caso contrário, para os autores, o gem na disciplina. A premissa da qual
impacto na aprendizagem pode ser partem essas empreitadas é de que
enorme (SCHONBORN; ANDERSON, a estrutura plana e estática presente
2006). nos livros dificultaria a visualização e o
De fato, conforme relata Milner estudo de estrutura e função das pro-
(2014), alguns estudos com imagens teínas, por exemplo (o que, aliás, con-
na disciplina de Bioquímica referen- cordamos na íntegra).
dam essa noção, demonstrando que

314
Contudo, a despeito dessas ações recursos imagéticos não for a solução,
louváveis e do constante incremento mas o problema?
dos materiais didáticos a partir das Ora, conforme pontua Parslow
facilidades de acesso a diferentes pro- (2002), a tecnologia (e aqui expandi-
gramas de edição e representação tri- mos a análise para o uso de imagens)
dimensional, bem como da constante não substitui a relação de importância
circulação de informações e imagens dos assuntos para os alunos, ou seja,
condicionada pelas redes sociais onli- não exclui dos professores o árduo tra-
ne, as dificuldades de aproveitamento balho de se conectar com os estudan-
na disciplina persistem em diferentes tes. Assim, parece pouco provável que
universidades, sendo altos os níveis de o desenvolvimento tecnológico (da ra-
reprovação e abandono (PINHEIRO et zão instrumental) seja capaz de – por
al., 2009; ANDRADE et al., 2015; SIL- ação espontânea – colocar no prumo
VEIRA; ROCHA, 2016). um processo que deveria, em sua es-
Assim, considerando tal cená- sência, ser gerido por e para pessoas.
rio, propõe-se neste estudo a hipótese Partindo dessa visão e das questões
de que, apesar da validade e da sig- apresentadas, buscamos no próximo
nificativa contribuição das pesquisas tópico (o último deste trabalho), propor
aqui apresentados, a pergunta correta algumas considerações e problema-
pode ainda não ter sido feita. Isso é, tizações para o desenvolvimento de
até o momento as análises estiveram pesquisas e experiências dentro do en-
voltadas para dentro da própria Bio- sino de Bioquímica que permitam, se
química, seja questionando os mode- não superar os limites da contradição
los estáticos dos livros didáticos, seja apresentada, ao menos considerá-
questionando o excesso de representa- -los a fim de pensar novas estratégias
ções externas que neles constam. Mas educativas.
e se a questão for mais ampla? E se
as particularidades apresentadas da Últimas – ou primeiras – notas sobre
Bioquímica, enquanto disciplina que imaginação e Bioquímica
abarca temas de difícil visualização,
apenas a tornarem um campo mais Conforme discutido de forma insis-
sensível, que demonstra e/ou antecipa tente neste ensaio, o objetivo aqui não
uma tendência que atinge o processo é de maneira alguma desqualificar
de ensino-aprendizagem também em as múltiplas iniciativas que buscam –
outras áreas? E se a multiplicação ex- seja a partir do incremento dos livros
ponencial de conteúdos imagéticos e o didáticos tradicionais, seja a partir da
vício nesses, conforme denuncia Türcke elaboração de novos modelos e repre-
(2010), forem a principal explicação sentações externas com o auxílio das
para que cada vez mais os estudantes tecnologias da informação – contribuir
dependam exclusivamente das ima- para práticas mais significativas nos
gens para mediar sua interação com o processos de ensino-aprendizagem
conhecimento? E se a multiplicação de dentro da Bioquímica. Como mencio-
nado, à luz da Teoria Crítica, nossa

315
proposta é buscar a contradição. Ou, ao mesmo tempo em que vislumbra o
trocando em miúdos: tensionar diale- futuro, e cria um presente alternativo”
ticamente a realidade a fim de elencar (PAIXÃO; BORGES, 2019, p. 2). Contu-
alguns “supostos-porquês” para a de- do, apesar de amplamente debatidos
pendência em imagens constada entre na filosofia, os processos imaginativos
os estudantes. quase sempre acabam rotulados como
Tomando a filosofia da sensa- algo menor – ou menos significante –
ção como farol, não nos parece razo- frente a razão.
ável acreditar que a Bioquímica está Tomando a defesa do conceito, Pai-
à deriva de forma solitária num mar xão e Borges (2019) lembram que vi-
de imagens. Na verdade, mesmo as vemos em um mundo semioticamente
disciplinas que, em tese, seriam mais mediado e argumentam sobre a rele-
beneficiadas pelas novas tecnologias vância da imaginação nos processos
de informação (como aquelas que de ensino-aprendizagem:
compõem o currículo da Comunicação
Social) enfrentam dificuldades com Por entendermos a importância dos
alunos que têm cada vez mais acesso processos imaginativos no desen-
às novas tecnologias e, paradoxalmen- volvimento da cognição, sua relação
te, são cada vez menos letrados ou, com as emoções e, por conseguinte,
nos termos de Schönborn e Anderson com o desenvolvimento humano,
(2006), alfabetizados para a imagem. defendemos que não se pode deixar
Em nossa visão, isso ocorre porque de fora do currículo educacional a
não se trata de uma questão de mera discussão e o fomento dos processos
vontade dos indivíduos “professor” e imaginativos. Ademais, a imaginação
“aluno”, tampouco da universidade não deve ser ignorada pelas práticas
como instituição, mas porque essa docentes e deve ser valorizada e nu-
última, enquanto espaço educativo, trida pelos professores que, por sua
orienta-se pela maré social. Logo, se a vez, devem atuar como mediadores
tendência mais ampla é de uma tem- e subsidiadores de recursos simbóli-
pestade geral de imagens que dificulta cos à imaginação (PAIXÃO; BORGES,
e deixa turva nossa visão, no espaço 2019, p. 3).
próprio da disciplina isso também vai
se manifestar, queiramos ou não. Acontece que, na esteira da atual
Mas o que fazer? sociedade excitada, as imagens (ou
Num cenário de supersaturação dos “recursos simbólicos”), que sempre
sentidos, uma faculdade importante significaram uma possibilidade de
a ser valorizada é a da imaginação. objetivação ampliada da imaginação
Paixão e Borges (2019) lembram que a (ou de mediação entre a realidade e a
imaginação é um processo psicológico fantasia, como no caso das obras de
imprescindível para o desenvolvimento arte), hoje atuam contra os processos
humano, uma vez que expande nossa imaginativos, contribuindo para a sua
experiência “para além da sua realida- atrofia (TÜRCKE, 2010).
de imediata; reporta-se ao passado,

316
Isso ocorre no exato momento em aproximações inesperadas como esta,
que as imagens deixam de ser uma entre Bioquímica e filosofia (por que
ponte para o objeto e – sob a forma não?) já são um primeiro passo.
de simulacros – se colocam como a Obviamente tudo isso carece de um
própria realidade representada. Em melhor alinhamento. Obviamente pa-
outras palavras, quando limitam a rece (e é) utópico (sobretudo dentro
imaginação àquilo que circunscrevem dos limites de carga horária do currí-
em sua estética, seja o limite de uma culo que predomina na disciplina). Mas
fantasia, seja o conhecimento teóri- o que seria de uma sociedade exci-
co que se pretende em uma aula de tada como a nossa sem a esperança
Bioquímica. Ou seja, quando entrega da utopia? Afinal, é disso que tratam
de antemão toda a abstração que estas últimas notas sobre imaginação
deseja, fechando para os diferentes e Bioquímica. É disso que trata essa
sujeitos envolvidos no processo educa- mistura improvável de debates sobre a
tivo qualquer possibilidade de debate Teoria Crítica e o ensino-aprendizagem
que supere a representação externa de Bioquímica. Sobre um início de uto-
pré-estabelecida, qualquer ponte de pia. Sobre um espaço onde a educação
imaginação. estética e a compreensão dos fenô-
Destarte, ainda que nosso objetivo menos submicroscópicos farão parte
não seja propor um modo de atuação de um mesmo programa de disciplina.
ou um fazer docente, uma alternativa Onde a imagem técnica servirá de
que pode significar, se não uma solu- meio e não como um fim em si mesma.
ção, ao menos um ponto de inflexão, E onde a educação e o conhecimento,
é a tentativa de trabalhar aspectos em sentido contrário, já serão um de-
ligados à imaginação na classe de Bio- leite e não um percurso a ser feito de
química, seja elaborando os modelos maneira célere até alguma estrada
de representação externa de forma mais interessante.
conjunta com os estudantes, seja per-
mitindo que eles próprios busquem se Referências
apropriar das imagens a partir de um
esforço que parta da compreensão ANDRADE, R. S. B.; SILVA, A. F.
teórica e não sempre das imagens. R.; ZIERER, M. S. Avaliação das
Ou seja, já que brecar a disseminação dificuldades de aprendizado
imagética não é possível, que se in- em Bioquímica dos discentes da
verta, em algum momento, a ideia de Universidade Federal do Piauí. Revista
representação, utilizando os conceitos de Ensino de Bioquímica. São Paulo/
como pontes para que os alunos con- SP, v. 15, n. 1, p. 24-39, 2015.
sigam “escrever” suas imagens, sendo
incentivados a criar seus próprios mo- COITINHO, J. B.; GONÇALVES, E. C.
delos. Ao fim, uma educação estética O paradoxo acesso versus evasão e o
dentro dos limites da própria disciplina papel da universidade no acolhimento
a partir da apropriação da imagina- dos estudantes: uma experiência
ção como percurso didático. Para isso, inclusiva na disciplina de Bioquímica

317
na Ufes. Anais do VIII Congresso e Pesquisa. Brasília/DF, v. 34, 2018.
Internacional Interdisciplinar em PARSLOW, G. R. Commentary:
Sociais e Humanidades. Maceió/AL, Molecular Visualization Tools Are
2019. Good Teaching Aids When Used
Appropriately. Biochemistry and
COSTA, F. J.; et al.. Estudos Molecular Biology Education. Estados
preliminares sobre restrições Unidos, v.30, n.2, p.128-129, 2002.
cognitivas na abordagem da glicólise
em livros de Bioquímica. Anais do VII PINHEIRO, T. D.; et al.. Ensino de
Encontro Nacional de Pesquisa em Bioquímica para acadêmicos de
Educação em Ciência. Florianópolis/ Fisioterapia: visão e avaliação do
SC, 2009. discente. Revista Brasileira de Ensino
de Bioquímica e Biologia Molecular.
DE VRIES, E.; DEMETRIADIS, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 25-35, 2009.
S.; AINSWORTH, S. External
Representations for Learning. SCHÖNBORN K. J.; ANDERSON T.
In: BALACHEFF, N.; et al. (orgs.).
Technology-Enhanced Learning. Suíça: in the Education of Biochemists.
Springer Nature, 2009. Biochemistry and Molecular Biology
Education. Estados Unidos. v.34, n.2,
DIAS, G.; et al. Desenvolvimento de p.94-102, 2006.
ferramentas multimidiáticas para o
ensino de Bioquímica. Revista Práxis. SILVEIRA J. T, ROCHA, J. B. T. Produção
Volta Redonda/RJ, n.9, 2013. científica sobre estratégias didáticas
utilizadas no ensino de Bioquímica:
GRIMALDI, S. S. L.; et al. O patrimônio uma revisão sistemática. Revista de
digital e as memórias líquidas no Ensino de Bioquímica. São Paulo, v. 14,
espetáculo do Instagram. Perspectivas n. 1, p. 7-21, 2016.
em Ciência da Informação. Belo
Horizonte/MG, v.24, n.4, p.51-77, out./ TÜRCKE, C. Sociedade excitada:
dez. 2019. filosofia da sensação. Campinas:
Editora da Unicamp, 2010.
MILNER, R.; Learner differences and
learning outcomes in an introductory TÜRCKE, C. Hiperativos! Abaixo a
biochemistry class: attitude toward cultura do déficit de atenção. Rio de
images, visual cognitive skills, and Janeiro: Paz e Terra, 2016.
learning approach. Biochemistry and
Molecular Biology Education. Estados
Unidos. v.42, n.4, p.285-298, 2014.

PAIXÃO, G. C.; BORGES, F. T.


Imaginação e currículo escolar: uma
revisão de literatura. Psicologia: Teoria

318
NOTAS

Capitulo 14

80 Tomamos como “fronteira cognitiva” a dificuldade diagnosticada entre


os estudantes em realizar a assimilação dos conteúdos sem a utilização de
imagens, isso é, a impossibilidade de abstração e discussão de determinados
temas sem o suporte obrigatório de um signo imagético, que passa a ocupar
o espaço da própria teoria como simulacro.

81 Para se ter uma ideia da “mão-de-obra” gratuita – ou dos novos


agentes – disponíveis nessas novas plataformas de mídia, basta olhar para
os números do aplicativo Instagram que, enquanto espaço projetado para
o compartilhamento de imagens, conta com mais de um bilhão de usuários
ativos em todo o globo (GRIMALDI et al., 2019) produzindo fotos e vídeos
(que, em sua maioria, se “autodestroem” em 24 horas) numa rotina 24/7.

82 Dentro dessa perspectiva (de debate das condições objetivas que


marcam a dificuldade de aproveitamento na disciplina), desenvolvemos o
trabalho O paradoxo acesso versus evasão e o papel da universidade no
acolhimento dos estudantes: uma experiência inclusiva na disciplina de
Bioquímica na Ufes (COITINHO; GONÇALVES, 2019).

83 O conceito de representações externas é utilizado como paralelo


oposto às representações internas ou mentais, sendo essas últimas
arquétipos da mente. Essas representações externas designam estruturas no

319
ambiente que permitem ao aluno interagir com algum domínio de conteúdo.
Na maioria das vezes, consistem em configurações de inscrições usando um
plano bidimensional (papel, tela). Contudo, objetos físicos tridimensionais
também se enquadram na designação (DE VRIES; DEMETRIADIS;
AINSWORTH, 2009; SCHÖNBORN; ANDERSON, 2006).

84 Para compreender essa perspectiva, pode-se olhar para a ilustração


de uma ponte dissulfeto em uma proteína, que aparece em livros didáticos
de Bioquímica representada tanto na forma –S–S–, como através de uma
linha preta reta e/ou uma barra amarela (SCHÖNBORN; ANDERSON, 2006).

85 Aqui, tomando o escopo da Teoria Crítica da Sociedade,


compreendemos essa alfabetização visual como uma educação estética
para a apropriação e elaboração crítica das diferentes linguagens e símbolos,
verbais e não-verbais.

86 Os livros analisados pelos autores foram Bioquímica Ilustrada


(PAMELA CHAMPE et al., 2000), Bioquímica (LUBERT STRYER, 1996),
Bioquímica (MARY K. CAMPBELL, 2000) e Fundamentos de Bioquímica
(VOET, 2000).

320
A rede sociotécnica da relação
entre ribeirinhos e onças no
Amazonas costurada por imagens
Joana Macedo
Fátima Branquinho
Helena Bergallo

15.
Introdução

“Poder de onça é que não tem pressa: aquilo deita no chão, aproveita o fundo
bom de qualquer buraco, aproveita o capim, percura o escondido de detrás
de toda árvore, escorrega no chão, mundéu-mundéu, vai entrando e saindo,
maciinho, pô-pu, até pertinho da caça que quer pegar. Chega, olha, olha, não
tem licença de cansar de olhar, eh, tá medindo o pulo. Hã, hã... Dá um bote, às
vez dá dois. Se errar, passa fome, o pior é que ela quage morre de vergonha...
Aí vai pular: olha demais de forte, olha pra fazer medo, tem pena de nin-
Poder de onça é que não tem pressa: aquilo deita no chão, aproveita o
guém... Estremece de diante pra trás, arruma as pernas, toma o açôite, e pula
fundo bom de qualquer buraco, aproveita o capim, percura o escondido
pulão! – é bonito...”
de detrás de toda árvore, escorrega no chão, mundéu-mundéu, vai
entrando e saindo, maciinho, pô-pu, até pertinho da caça que quer pegar.
Trecho de “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa
Chega, olha, olha, não tem licença de cansar de olhar, eh, tá medindo o
pulo. Hã, hã... Dá um bote, às vez dá dois. Se errar, passa fome, o pior é
que ela quage morre de vergonha... Aí vai pular: olha demais de forte,
olha pra fazer medo, tem pena de ninguém... Estremece de diante pra
trás, arruma as pernas, toma o açôite, e pula pulão! – é bonito...”
Trecho de “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa

A Teoria Ator-Rede, desenvolvida por Bruno Latour e Michel Callon, tem como
base a noção de rede, que remete a relações e ações entre atores humanos e
não-humanos. Relações essas que não são fixas e não podem ser previstas, que
tem forma de alianças fluidas e mediações. Não havendo modelo teórico para
descrever à priori ou prever o comportamento da rede, é preciso seguir os atores,
investigar suas agências e conexões. Essa ideia de rede, de natureza heterogê-
nea e dinâmica, é aplicada como método para analisar como se dá a construção
do conhecimento, no ramo de estudos denominado antropologia das ciências e
das técnicas. Grosso modo, é como aplicar o método etnográfico, voltando sua
lente não para descrever “os outros”88 , e sim aos próprios cientistas, suas técni-
cas, instrumentos, produtos e tudo o mais que envolve a construção do conheci-
mento, no que Latour chamou de rede sociotécnica.
O foco central desses estudos são as interações, mediações entre atores ca-
pazes de produzir mudanças, uma vez que afetam e influenciam mutuamente
os elementos que compõem a rede. Ou seja, os componentes da rede, sejam
humanos ou não-humanos, não determinam uns aos outros via interações, mas
exercem influência uns sobre os outros. Isso pressupõe abandonar a ideia de su-
jeito e objeto, assim como a separação entre natureza e cultura e entre política e
ciência.
Outro ponto importante, ao assumir a Teoria Ator Rede como referencial teóri-
co-metodológico, é incorporar o princípio da simetria generalizada, que propõe
explicar nos mesmos termos a verdade e o erro, o conhecimento científico e a “re-
presentação” social. Procura corrigir a assimetria epistemológica entre o discurso

322
moderno ocidental, que pretende mo- Consolidar a visão de que as ques-
bilizar a natureza, única, através da tões ambientais são em última instân-
Ciência, e as demais culturas com suas cia problemas que envolvem humanos,
formas de conhecimento e ontologias, e, portanto, precisam ampliar suas
vistas como meras representações da ferramentas para além do escopo das
realidade pelos modernos. A simetria ciências naturais, é a contribuição mais
propõe, no lugar de uma natureza e ampla almejada pela adoção desse
várias culturas, a coexistência de múl- referencial teórico-metodológico. Isso
tiplas naturezas-culturas (LATOUR, porque a noção de rede facilita a visu-
1994; SILVEIRA, 2011). Postula que, uma alização e destaca a importância das
vez que os atores possuem iguais pos- conexões. E, mais especificamente,
sibilidades de produzir interferência e ajudar a diminuir o atrito na relação
mediação, seus discursos e agências entre moradores da floresta, onças e
não podem ser hierarquizados a prio- cientistas/conservacionistas, contem-
ri. Ao adotar o princípio da simetria, plando os anseios dos ribeirinhos e
os discursos são acolhidos com igual a conservação dos felinos. Compor a
peso, e as controvérsias são assumidas rede da relação ribeirinho-onça inclui
de forma a permitir a existência de on- identificar os atores, coletar suas vozes
tologias múltiplas. e expor essas vozes a uma consulta
Estudos conduzidos no Brasil por que considere a pertinência e adequa-
cientistas naturais sobre a relação en- ção ao mundo comum89 das proposi-
tre fauna silvestre e populações tradi- ções que emergem dessa relação (LA-
cionais em geral não apontam a assi- TOUR, 2004).
metria e as controvérsias inerentes ao O presente capítulo tem como ob-
tema. Considero que a relevância da jetivo abordar a relação entre onças e
adoção da Teoria Ator-Rede para tra- populações ribeirinhas, e seus desdo-
tar do conflito existente nessa relação bramentos, através da rede sociotéc-
resida principalmente no fato de que nica dessa relação, descrevendo seus
esse tema tem sido tratado de forma atores e agências. Essa rede, compos-
acentuadamente assimétrica. Sá (2013) ta de atores humanos e não-humanos,
e Süssekind (2014) tendo como foco os conecta além de ribeirinhos e onças,
muriquis de Caratinga e as onças-pin- os animais domésticos, os modos de
tadas pantaneiras, respectivamente, produção, a floresta e seu mosaico
usaram essa ferramenta metodológica de áreas de uso, a caça, os represen-
para análise das relações entre ani- tantes de órgãos ambientais, os ges-
mais silvestres, cientistas, moradores tores das Reservas, pesquisadores,
locais, ambientalistas e suas agências. ambientalistas, turistas, a legislação,
Em ambos os estudos é notória a im- a opinião pública, entre outros grupos
portância de ressaltar as controvérsias em formação no espaço de tempo da
e descrever as relações envolvendo pesquisa. Podem-se identificar atores
o animal não-humano de forma não locais, como os ribeirinhos e as onças, e
hierárquica. contextos globais, como a opinião pú-
blica e as listas vermelhas de animais

323
ameaçados. Para construir a rede, no A produção econômica é tipicamen-
entanto, é preciso seguir continua- te camponesa, caracterizada pela
mente a conexão entre atores locais combinação de uma produção domés-
e contextos gerais, de modo que se tica para consumo e uma produção
possa visualizá-los num mesmo plano para venda (PERALTA et al., 2008).
sem distinções entre local e global (LA- Benefícios sociais respondem por mais
TOUR, 2012). de 50% da fonte de renda doméstica
No intuito de facilitar a visualização (STREMEL et al., 2012). A agricultura,
contínua das conexões, pondo em um com destaque para o cultivo da man-
mesmo plano os elementos que com- dioca para a produção de farinha, e a
põem a rede sociotécnica, esta será pesca são as principais atividades pro-
apresentada em texto e imagens. Es- dutivas e a base da alimentação (figu-
pera-se assim estabelecer trilhos que ra 1). Bovinos, bubalinos, suínos, ovinos
liguem atores, lugares e épocas. A rede e galináceos são criados em geral de
sociotécnica da relação entre onças e forma extensiva para subsistência (ex-
populações tradicionais nas Reservas ceto bovinos e bubalinos) e venda. Os
de Desenvolvimento Sustentável (RDS) rebanhos são familiares e, em geral,
Mamirauá e Amanã, foi feita com base compostos por poucas cabeças.
em entrevistas, reuniões e conversas
informais com os ribeirinhos das duas A rede da relação ribeirinho-onça:
Reservas entre 2010 e 2013, em ima- um panorama de atores, agências e
gens feitas entre 2007 e 2013 sobre o conexões
tema, na experiência de trabalhar com
ecologia de onças entre 2007 e 2011, Queixas e relatos sobre a convivên-
nas interações com pesquisadores, cia com as onças eram constante-
gestores e ambientalistas e em pesqui- mente feitos por ribeirinhos aos pes-
sas bibliográficas (de texto e imagens) quisadores que estudavam ecologia
sobre outros atores que compõem essa de populações de onças-pintadas na
rede. RDS Mamirauá. As queixas em geral
foram relacionadas à segurança dos
Mamirauá, Amanã e seus moradores moradores e das criações domésticas.
Na figura 2 o morador da Reserva Ma-
As RDS Mamirauá e Amanã es- mirauá que foi pedir auxílio aos pes-
tão localizadas na região do Médio quisadores em 2009 para proteger seu
Solimões, no estado do Amazonas, gado das onças e com isso motivou em
são contíguas e têm juntas 3.474.000 larga medida o início dessa pesquisa,
hectares. No censo realizado em 2011, exibe um couro de uma onça-pintada,
a população residente e usuária da abatida anos antes na sua comunida-
RDS Mamirauá era de 9.733 pessoas de por matar dois bezerros. Ao pedir
distribuídas em 181 assentamentos, auxílio para proteger seus animais das
enquanto na RDS Amanã havia 3.653 onças, o morador disse que não queria
pessoas em 84 assentamentos (MOU- prejudicar a pesquisa, mas não podia
RA et al., 2015).

324
arcar com o prejuízo e a insegurança
trazidos pelos felinos.
Era comum que os relatos dos mo-
radores revelassem um desejo de que
eles, enquanto habitantes de uma
Unidade de Conservação e cientes das
implicações disto, também fossem le-
vados em consideração no que tange
a pesquisa e gestão da fauna. Ao ouvir
diversas vezes a pergunta “Pode uma
onça valer mais que um cristão?” e al-
gumas variações da mesma, foi possí-
vel visualizar não só os problemas pro-
venientes da convivência direta com
esses animais, mas principalmente o
ressentimento em relação à atenção
dada por pesquisadores/gestores/
opinião pública à conservação em de-
trimento de suas necessidades. Essa
frase, bem como suas variações, foi
usada para externar a perplexidade
com o fato que o abate de onças, no
entendimento deles, é proibido por lei
mesmo quando eles percebem uma
ameaça, real ou potencial, às suas pró-
prias vidas90.
Os riscos da convivência com as on-
ças, mesmo que sejam por vezes su-
perdimensionados pelos ribeirinhos,
devem ser levados em consideração
pelos técnicos. Isso porque, mesmo
raros, os ataques contra pessoas ocor-
rem e sua notícia espalha rapidamente
na região, aumentando o temor dos
moradores. Na figura 3 Seu Vanderlei,
morador da RDS Mamirauá mostra a
cicatriz no rosto, resultado de um ata-
que de onça-pintada. Seu Vanderlei
hoje trabalha como cozinheiro no Pro-
Figura 1. Imagens das principais atividades
grama de Turismo de Base Comunitá- econômicas dos moradores das Reservas de
ria do IDSM e já prestou serviço para Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã:
a) produção de farinha no Sítio Cacau (RDSA);
pesquisadores nas campanhas de cap- b) pesca próxima à Comunidade Aiucá (RDSM).
tura de onça-pintada, ocasião em que Fotografias: Joana Macedo.

325
teve novamente contato direto com o
animal, dessa vez sedado.
Os ribeirinhos moradores das RDS
Mamirauá e Amanã criam animais do-
mésticos para subsistência e comple-
mentação de renda. Além do prejuízo
econômico ocasionado pela predação
da criação doméstica, quando as on-
ças rondam as residências em busca
desses animais, eles temem pela se-
gurança da família, especialmente das
crianças.
A figura 4 mostra imagens de uma
comunidade na Reserva Amanã onde
em 2010 uma onça matou duas porcas
em baixo da escola91, causando gran-
de desconforto entre os moradores. A
primeira fotografia (figura 4a) mostra
porcos criados de forma extensiva na
comunidade. A segunda (figura 4b)
mostra o menino Robison, frequenta-
dor da escola, e seus quatro irmãos.
Robison é filho do Agente Ambiental
Voluntário92 Fábio, um dos colaborado-
res do monitoramento de conflito com
felinos. Exímio contador de histórias,
relatou93 o caso da onça na escola com
entusiasmo, disse que estava atento
para que a onça não se aproximasse
de seus irmãos e que queria ser pes-
quisador de onças quando crescer.
Os moradores da comunidade, preo-
cupados com as crianças que natural-
mente circulam no local, “encomenda-
ram” o abate da onça a um vizinho que
tinha cachorros treinados para seguir o
rastro do animal.
Figura 2. Morador da Reserva de Desenvolvimento
Aderbaldo, nome do cão branco na Sustentável Mamirauá exibe o couro de uma onça-
figura 5a, junto com uma pequena ma- pintada morta em retaliação ao abate de dois
bezerros em 2009. Fotografia: Joana Macedo.
tilha, rastreava onças que matavam
animais domésticos em uma região da
Reserva Amanã. Com faro apurado, Figura 3. Morador da Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá que sofreu um ataque não
sua fama se espalhou e criadores que provocado de uma onça-pintada enquanto pescava
no igapó em 2004. Fotografia: Joana Macedo.

326
perdiam animais predados por onça,
levavam Aderbaldo até o local do ata-
que e o cão encontrava a carcaça e a
onça, que era então abatida com tiro
de espingarda em retaliação. A figura
5b mostra quatro crânios de onças-
-pintadas encontradas pelo cão. A car-
reira do caçador Aderbaldo foi curta,
ele e os outros cães que o acompanha-
vam nas caçadas morreram no ano se-
guinte a essas fotografias, ao que tudo
indica vítimas de alguma doença viral
canina. A princípio seu proprietário
desconfiou que os cães morreram por-
que foram alimentados com a carne
de uma das onças abatidas, segundo
ele carne de onça “seca” o cachorro.
Mas passou a creditar as mortes dos
cães à alguma doença porque em se-
guida ele conseguiu outros cães que
morreram com os mesmos sintomas,
sem ter comido carne de onça.
Nas RDS Mamirauá e Amanã, ribei-
rinhos agem e reagem às onças. Movi-
dos por vingança, medo, raiva, preven-
ção ou mesmo para subjugar a “fera”,
abatem onças com frequência. A maior
parte dos abates relatados em entre-
vistas teve como motivo declarado a
retaliação pela predação (realizada ou
potencial) de animais domésticos (MA-
CEDO, 2015).
Animais domésticos nas RDS Ma-
mirauá e Amanã incluem porcos, car-
neiros, bois, búfalos, galinhas, patos,
cães, gatos e eventualmente animais
silvestres domesticados como maca-
cos e papagaios. A criação de animais
de corte complementa a renda, garan-
Figura 4. a) Criação extensiva de porcos
te proteína em períodos de escassez na comunidade onde uma onça-pintada matou
na pesca e na caça (com exceção de duas porcas em baixo da escola na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Amanã em 2010. b)
bois e búfalos) e tem usos tradicionais, Crianças da comunidade, cujos membros ficaram
como por exemplo, os porcos criados apreensivos com a onça que “frequentou a
escola”. Fotografias: Joana Macedo.

327
para serem consumidos nos festejos
de santos, as galinhas criadas para o
resguardo das mulheres grávidas ou os
bezerros criados para serem prêmio de
torneio de futebol.
Bois e búfalos raramente são aba-
tidos para consumo e são mantidos
como reserva monetária, ou, como
falam os ribeirinhos: “o boi é a nossa
poupança” (para uma discussão sobre
o papel do boi em comunidades rurais
amazônidas ver NARAHARA, 2012).
Existe, no entanto, um limite para essa
“poupança”, que é a área de campos
de natureza disponível para a engorda
e a capacidade de alimentar os ani-
mais durante a cheia (RODRIGUES et
al., 2013). Em áreas de várzea os ani-
mais passam o período da cheia em
marombas, que são currais flutuantes
(figura 6a). Impossibilitados de forra-
gear por conta própria, são alimenta-
dos por seus proprietários com capim
flutuante (plantas aquáticas como
canarana e mureru), à custa de muito
trabalho e gasto de combustível para
transportar o alimento (figura 6b).
Apesar do confinamento no período
da cheia nas áreas alagáveis, a maior
parte dos animais domésticos é cria-
da de forma extensiva, andam livres e
ocasionalmente adentram a floresta.
Há um trade-off na questão de man-
ter os animais soltos: se por um lado
o criador tem mais chance de perder
os animais por predação, fuga, atola-
mento, roubo, etc., por outro a preo-
cupação com a alimentação e gastos
com instalações são mínimos. A maior Figura 5. a) Cachorro treinado para seguir
rastro de onças, era usado quando ocorriam
parte dos criadores escolhe manter ataques a animais domésticos em uma região na
os animais soltos. Como relatou um Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã. b)

morador e criador de patos e gali- Crânios de onça-pintada abatidas em retaliação


à predação de animais domésticos com auxílio do
nhas: “Quem disser aqui que é criador cão da figura 5.a. Fotografias: Joana Macedo.

328
tá mentindo, aqui ninguém cria bicho
não, os bichos que se criam sozinhos.
O pessoal quer garantir o rancho, quer
ter lucro, mas não quer ter trabalho”
(comunicação pessoal, 2011). Ou seja,
é comum, embora não seja regra, dis-
pensar poucos cuidados aos animais.
Os porcos, bois e búfalos costumam
se afastar mais das residências em
busca de alimento, e com frequência
entram na floresta. Carneiros, gali-
nhas, patos e gatos têm o hábito de
se manter nas imediações das casas.
Cães costumam acompanhar as pes-
soas nas suas atividades cotidianas (fi-
gura 7a), são considerados importan-
tes para a caça de animais silvestres
e para a proteção em incursões pela
floresta, inclusive para alertar sobre a
aproximação de onças.
Os ribeirinhos afirmam que animais
domésticos, em especial os porcos
(figura 7b), atraem onças. Isso não é,
claro, uma ação voluntária. A ação dos
animais domésticos está ligada ao
manejo que seus proprietários ado-
tam. Como é comum que esse manejo
seja mínimo e que os animais tenham
acesso a áreas afastadas das comuni-
dades e florestadas, isso acaba desen-
cadeando a ação das onças contra os
animais domésticos e dos ribeirinhos
contra as onças. Da mesma forma
que as onças costumam seguir varas
de queixadas, para atacar indivíduos
que se distanciem do bando, é possível
que os porcos ao andar pela floresta
de dia e retornar para a comunidade
à noite, levem onças no seu encalço.
Figura 6. a) Porco, cães e gato dividem uma
São comuns casos de animais domés- maromba no período da cheia na Reserva de
ticos atacados por onça na área das Desenvolvimento Sustentável Amanã. b) Bois
na maromba sendo alimentados em uma canoa de
comunidades. capim flutuante na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. Fotografias: Joana Macedo.

329
Apesar da maioria dos ataques de
onças terem sido a animais criados
soltos, animais confinados também fo-
ram alvo. O porco na figura 8a foi ata-
cado por uma onça-pintada dentro do
chiqueiro (figura 8b), a cerca de cinco
metros de uma casa na Reserva Ma-
mirauá. Ao escutar os gritos do porco,
os moradores correram e, com a ajuda
de vizinhos, mataram a onça com tiro
de espingarda. A fotografia foi tirada
duas semanas após o ataque, e o por-
co já estava com os ferimentos na ca-
beça cicatrizados. Era um porco gran-
de, de 60 quilos, que lutou com a onça
e, após o tiro, mordeu ela toda. Se-
gundo os criadores locais, animais que
sobrevivem a um ataque de onça nor-
malmente morrem em decorrência de
infecções causadas pelos ferimentos.
A explicação dada pelos moradores
da comunidade para a pronta recu-
peração do porco atacado é que eles
estavam engordando o porco para
ser consumido no festejo do Divino, e,
portanto, era um animal de santo. O
couro da onça abatida foi usado como
ornamento na procissão do Divino na
comunidade, mesmo tendo ficado da-
nificado pelas mordidas do porco. Um
pequeno fragmento desse couro foi
coletado para compor o acervo de ma-
terial biológico do IDSM.
É comum o uso de couros e/ou
crânios de onças abatidas como or-
namento. Na figura 9a um couro é
exibido na parede de uma casa. Essa
onça foi morta com tiro de espingarda
ao predar um carneiro, a poucos me-
Figura 7. a) Cães acompanhando seus
tros da casa de um senhor que mora proprietários nas suas atividades diárias no
isolado com sua esposa na Reserva Lago Amanã. b) Porcos criados soltos na Reserva
Amanã, com livre e circulação entre a floresta
Mamirauá. Essa casa não tem todas e a área das comunidades. Fotografias: Joana
as quatro paredes externas, como é Macedo.

330
relativamente comum na região, o que
aumenta a sensação de insegurança
com a aproximação de onças.
Na figura 9b um menino mostra um
couro de maracajá-açu, cuja metade
posterior foi comida por cachorros.
Esse animal tinha sido abatido dois
dias antes, ao entrar em um galinhei-
ro. Ao fundo, comunitários trabalham
fazendo farinha. A gordura retirada
do maracajá-açu estava armazenada
em um pote de vidro, e estava sendo
usada no forno para torrar a farinha.
A julgar pela quantidade de gordura, o
animal estava bem nutrido. Esse couro
foi doado para o acervo de material
biológico do IDSM.
Couros, crânios e até onças inteiras
abatidas (figura 10) são muitas vezes
doados por ribeirinhos para o acervo
de material biológico do IDSM. Como
vários moradores das Reservas traba-
lham como assistentes de pesquisa,
eles são informados da importância
desse material. De fato, as coleções
zoológicas são pobres em carnívoros,
já que, diferente de outras ordens,
as coletas para estudo desses ani-
mais são quase inexistentes (DE VIVO,
2007).
Os felinos tombados na coleção
zoológica do IDSM têm grande po-
tencial para pesquisas taxonômicas e
genéticas. Amostras de pelos retira-
dos dos couros do acervo estão sendo
usadas em um estudo do Laboratório
de Radioisótopos da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro para avaliar a
situação ecotoxicológica dos felinos,
quantificando mercúrio e poluentes Figura 8. a) Porco atacado por onça-pintada em

orgânicos persistentes. Pela posição uma comunidade na Reserva de Desenvolvimento


Sustentável Mamirauá. b) A proprietária do porco
de topo de cadeia trófica, tamanho mostrando o chiqueiro onde ocorreu o ataque.
corporal e longo período médio de Fotografias: Joana Macedo.

331
vida, as onças são consideradas boas
espécies sentinelas na avaliação da
saúde ambiental, pois biomagnificam
poluentes (DORNELES et al., 2014). Os
resultados futuros desse estudo têm,
portanto, aplicação direta na saúde
dos ribeirinhos.
A doação desse material para pes-
quisa demonstra que há entre parte
dos moradores das Reservas e os pes-
quisadores uma relação de colabora-
ção e, principalmente, de confiança, já
que os moradores sabem da ilegalida-
de desses abates. A onça-pintada da
fotografia 10a foi abatida na Reserva
Mamirauá enquanto atravessava um
rio, com um golpe de remo na nuca.
No seu estômago foram encontra-
dos vestígios de jacaré-tinga (Caiman
caiman), casca de ovos de quelônios,
cutiara (Myoprocta acouchy) e mucura
(Didelphis marsupialis). Na figura 10b
um crânio de onça preta foi enviado
para o laboratório do Grupo de Pes-
quisa em Ecologia de Vertebrados Ter-
restres do IDSM.
Onças são frequentemente “acusa-
das” de traiçoeiras pelos ribeirinhos, e
são comparadas a fantasmas porque
surgem sem que se perceba a aproxi-
mação. Isso faz parte do repertório de
ações das onças, que têm por estraté-
gia estar “invisível” para suas presas
até o momento do ataque. Os ribeiri-
nhos nas reservas costumam dizer que
“as onças estão sempre vendo a gente,
mas a gente não enxerga elas”.
São animais difíceis de estudar,
muitas vezes as pesquisas com onças
Figura 9. a) Couro de onça-pintada morta ao
são baseadas em vestígios como fe- predar um carneiro na Reserva de Desenvolvimento
zes, pegadas, esturros, carcaças, pelos Sustentável Mamirauá. b) Couro de maracajá-açu
morto ao entrar em um galinheiro na Reserva de
e arranhados em árvores. O avanço Desenvolvimento Sustentável Amanã. Fotografias:
das técnicas de pesquisa lançou luz a Joana Macedo.

332
aspectos pouco conhecidos da ecolo-
gia das onças. A captura para equipar
os animais com GPS e radiotransmis-
sor é uma das técnicas que possibili-
tam tornar visíveis os “fantasmas” da
floresta.
Na RDS Mamirauá as capturas de
onça-pintada tiveram início em 2008,
usando como armadilha o foot sna-
re, ou armadilha de laço, que consis-
te em um cabo de aço ancorado ao
chão que prende o animal pela pata
(FRANK et al., 2003). As armadilhas
usadas foram desenvolvidas pelo téc-
nico Dairen Simpson, norte americano
especialista em captura de grandes
carnívoros. Simpson trabalha em di-
versas partes do mundo, principalmen-
te no continente Africano, com captura
para pesquisa e controle letal de ani-
mais-problema, e veio por duas vezes
dar suporte técnico às capturas em
Mamirauá.
Após a captura foi feita a conten-
ção química das onças com um dardo
anestésico à base de tiletamina e zola-
zepam (Zoletil®), droga de última gera-
ção para aumentar a segurança da se-
dação. O dardo pode ser lançado com
um moderno rifle próprio para esse
fim ou com uma zarabatana, tal como
fazem indígenas em suas caçadas. As
duas técnicas foram usadas para lan-
çar os dardos durante as capturas. Na
figura 11 a onça-pintada Anjo aparece
sedada, ainda com o dardo preso ao
corpo.
Os animais ficaram em média 40
minutos inertes, quando foram realiza-
Figura 9. a) Couro de onça-pintada morta ao
dos todos os procedimentos: colocação predar um carneiro na Reserva de Desenvolvimento
do colar, coleta de sangue (figura 13a), Sustentável Mamirauá. b) Couro de maracajá-açu
morto ao entrar em um galinheiro na Reserva de
ectoparasitas e fezes, biometria e pe- Desenvolvimento Sustentável Amanã. Fotografias:
sagem. As funções vitais (batimentos Joana Macedo.

333
cardíacos, frequência respiratória e
temperatura) foram monitoradas du-
rante esse tempo.
Das amostras de sangue coletadas
foram retiradas alíquotas para dife-
rentes objetivos. A saúde dos animais
era avaliada com hemograma feito em
campo, com auxílio de uma centrífuga
e um microscópio (figura 13b), e com
testes rápidos de doenças virais felinas
(FIV/FELV). Todas as onças estavam
em bom estado de saúde.
Amostras de sangue também foram
enviadas para um grupo de pesquisa
da Pontífica Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, para um estudo
sobre a variabilidade genética das
onças-pintadas no bioma amazônico,
publicado recentemente (LORENZANA
et al., 2020).
As capturas foram acompanhadas
por ribeirinhos moradores da Reserva
Mamirauá, contratados como assis-
tentes de campo. Todos ficavam muito
animados com a possibilidade de se
aproximar de uma onça viva. A figura
13 mostra em primeiro plano Ansel-
mo, nascido e criado nos arredores do
Lago Mamirauá e grande conhecedor
das suas matas, posando com a on-
ça-pintada Anjo. Ao fundo, Alex, no-
rueguês, morador da Cidade do Cabo,
filmava um programa de TV feito por
uma produtora sul-africana para o ca-
nal Animal Planet norte americano. O
Figura 10. a) Corpo de onça-pintada abatida na
programa foi filmado durante a cam- Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,
panha de captura de 2009 e se chama enviado para o acervo de material biológico
do Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá. Fotografia: Joana Macedo. b) Crânio
Na figura 14a, um turista norte de onça preta enviado para o acervo de material
americano, hospedado na Pousada biológico do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. Fotografia: Eduardo
Uacari (figura 14b), localizada na RDS Coelho.
Mamirauá, ganha de surpresa a opor- Figura 11. Onça-pintada sedada após a captura na
tunidade de posar com a onça-pintada Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Fotografia: Joana Macedo

334
sedada. Atualmente a pousada tem
um pacote turístico específico para
turistas acompanharem o trabalho de
campo da pesquisa com onças-pinta-
das (NASSAR, 2013). O turismo cientí-
fico e fotográfico com onças tem sido
apontado como estratégia de conser-
vação. Ao distribuir parte da receita
gerada pelo turismo entre a população
local, além de empregar mão de obra
local para a operação, pretende-se
compensar os danos causados pelas
onças, aumentando a tolerância ao
animal ou, em outras palavras, atri-
buindo valor econômico às onças vi-
vas. É uma estratégia que parte do
pressuposto que a questão econômica
é determinante para aumentar a tole-
rância. Esse tipo de turismo já é feito
com onças no pantanal e é bem de-
senvolvido em vários países africanos
(ARCHABALD & NAUGHTON-TREVES,
2001). No entanto, o alcance do bene-
fício econômico gerado pelo turismo
científico ou fotográfico é limitado
(HEMSON et al., 2009). Na pousada
Uacari, por exemplo, a renda do tu-
rismo científico da onça-pintada está
sendo revertida em apoio ao projeto
de pesquisa e na criação da Escola da
Onça-Pintada, que segundo informa o
sítio eletrônico que vende o pacote tu-
rístico94, tem o objetivo de ensinar ci-
ência e conservação envolvendo onças
às crianças das comunidades da RDS
Mamirauá para reduzir a caça e os
Figura 12. a) Coleta de sangue de onça-pintada
conflitos com as comunidades locais. capturada na Reserva de Desenvolvimento
A segurança dos moradores pode Sustentável Mamirauá em 2009. b) Preparação das
lâminas para o hemograma da amostra de sangue
ser afetada negativamente pela ha- de onça-pintada na base de campo Flutuante
bituação das onças à presença hu- Mamirauá. Fotografias: Joana Macedo.

mana, prática comum nesse tipo de Figura 13. Anselmo, morador da comunidade Vila

turismo. Se os ribeirinhos percebem um Alencar e assistente de campo, posa com uma


onça-pintada sedada após a captura na Reserva
problema de segurança em relação à de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Fotografia: Joana Macedo.

335
proximidade das onças, e esse proble-
ma pode ser agravado pela habitua-
ção de alguns indivíduos, os incentivos
para os moradores advindos da opera-
ção turística tendem a não ser efetivos.
Na figura 15, a onça-pintada Jandiá,
a floresta, os satélites, as ondas de
rádio e os pesquisadores estão conec-
tados. No entanto, como não é raro
na prática científica (nem raro, nem
alardeado), as seis onças-pintadas que
receberam colares em 2008 e 2009
não forneceram dados após as captu-
ras. A robustez dos colares utilizados e
a tecnologia de coleta de informações
se mostraram inadequados para o tipo
de animal e ambiente. A partir de 2011,
usando equipamento apropriado, os
dados de localização das onças come-
çaram a ser coletados com êxito. Uma
empresa francesa de localização por
satélite (Argos) fornece as localizações
das onças em Mamirauá.
Na figura 16a João Jacaré, morador
da Reserva Mamirauá e assistente de
campo com vasta experiência em ra-
diotelemetria de jacarés, procura do
alto de um apuí o sinal UHF dos colares
das onças na floresta. Os sinais nunca
foram encontrados com as buscas pe-
las trilhas na floresta, pelos lagos e rios
e pelos sobrevoos (figura 17b) feitos em
pequenos aviões.
Outro equipamento muito usado
em pesquisas com onças, as armadi-
lhas fotográficas registram quando os
animais passam por elas. Acionadas
por sensor de calor ou movimento, per- Figura 14. a) Turista norte americano posando
mitem identificar as onças-pintadas com uma onça-pintada sedada na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá durante a
pelo seu padrão de pintas e com isso campanha de captura de 2009. Fotografia: Joana
estimar abundâncias populacionais. A Macedo. b) Pousada Uacari, que atualmente vende

figura 18 mostra um par de armadilhas pacotes turísticos para acompanhar as atividades


de pesquisa com onças-pintadas. Fotografia:
fotográficas, com uma isca de cheiro95 Eduardo Coelho.

336
entre elas, e ao fundo os Apuís, árvore
que os ribeirinhos chamam de casa
da onça, onde elas gostam de dormir,
principalmente no período da cheia.
Além da possibilidade de calcular pa-
râmetros populacionais, essas armadi-
lhas flagram as onças em ação, como
mostram as próximas fotografias.
A figura 18a amostra a onça-pintada
Jandiá carregando um jacaré abatido
e já parcialmente consumido. Na figu-
ra 19b a onça-pintada Kisser investi-
ga de perto a armadilha fotográfica.
Nas outras quatro fotografias (figuras
19c, 19d, 19e e 19f), as onças-pintadas
Caracol e Mamãe, demonstrando a
curiosidade natural dos gatos, exa-
minam as armadilhas fotográficas,
agindo como pesquisadores frente
a um fenômeno desconhecido. Não
raro as armadilhas fotográficas em
campo foram esfregadas, mordidas,
viradas e postas ao chão por onças
investigadoras.
As armadilhas fotográficas reve-
lam a identidade das onças-pintadas
pelo seu padrão de rosetas ou pintas.
A figura 19 mostra um close da pinta
que identifica a onça Caracol. A par-
tir dessas identificações, programas
de computador fazem estimativas de
abundância populacional com base
na história de captura e recaptura dos
indivíduos. Essas análises elaboradas e
os ribeirinhos chegaram a mesma con-
clusão: tem muita onça em Mamirauá.
Figura 15. Onça-pintada com colar equipado com
No entorno do Lago Mamirauá, a GPS e radiotransmissor se recuperando da sedação
alta densidade de onças parece rela- após a captura na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. Fotografia: Joana Macedo
cionada à alta densidade de jacarés,
Figura 16. a) João Jacaré, morador da Reserva
sua principal presa de acordo com as de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e
análises de fezes de onças no local assistente de campo, procura as onças com colar.

(RAMALHO, 2012). b) Sobrevoo para busca dos sinais das onças


capturadas na Reserva Mamirauá. Fotografias:
Joana Macedo.

337
A fotografia 20 mostra jacaré-açu
(Melanosuchus niger) no Lago Ma-
mirauá. Essa espécie de jacaré pode
atingir cinco metros de comprimento, é
superabundante na RDS Mamirauá e
também causa danos aos moradores,
destruindo petrechos de pesca, pre-
dando animais domésticos e, em raras
ocasiões, atacando pessoas. Existem
muitas semelhanças entre a relação
dos moradores com onças e jacarés.
Mas os últimos, por não serem animais
carismáticos, não provocam a mesma
reação por parte de conservacionistas
e da opinião pública. Isso fica claro
pelo fato do manejo experimental do
jacaré-açu ser realizado na RDS Ma-
mirauá desde 2004, com aval do IBA-
MA, incentivo do governo do Estado do
Amazonas e apoio técnico-científico
do IDSM.
Dentro do mosaico fluido de am-
bientes aquáticos e terrestres nas
Reservas, a intensidade de uso da pai-
sagem por onças e ribeirinhos não é
homogênea e depende do alagamento
sazonal. Na paisagem alguns locais
se destacam, de acordo com os ribei-
rinhos, como áreas de interseção de
uso por onças e pessoas. Pescadores
afirmam ser comum encontrar onças
andando nas margens dos lagos no
período da seca, à procura de jacarés e
seus ninhos, e em galhos de árvores na
mata alagada no período da cheia. As
trilhas que ligam as comunidades aos
roçados são também frequentemente
usadas por onças, e ribeirinhos relatam
que elas têm o hábito de “rastejá-los”
nessas trilhas. Eles chamam de ras-
Figura 17. Par de armadilhas fotográficas
tejar quando onças seguem seus ras- instaladas para capturar imagens de onças na
tros: eles passam pela trilha e quando Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Fotografia: Joana Macedo
retornam encontram as pegadas da

338
Figura 18. a) Onça-pintada Jandiá carregando um
jacaré abatido na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. b) Onça-pintada Kisser
investigando de perto a armadilha fotográfica.
c) e d) Onça-pintada Mamãe interagindo
com a armadilha fotográfica na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. e) e f)
Onça-pintada Caracol interagindo com a armadilha
fotográfica na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. Fotografias: armadilhas
fotográficas.

339
onça marcando todo o caminho (figura
22). É um hábito comum entre os feli-
nos usar trilhas para se locomover (SIL-
VER et al., 2004).
Outra área de interseção são as
próprias comunidades, onde por vezes
as onças adentram a procura da cria-
ção doméstica. Mesmo tendo como
comportamento padrão se afastar
de humanos, algumas onças fogem a
esse padrão e, talvez pela habituação
à predação de animais domésticos, se
aproximam deliberadamente das ha-
bitações humanas. Muitas vezes essa
aproximação é percebida pelos rastros
ou pegadas na área das comunidades.
Seguindo os rastros das onças é pos-
sível verificar que elas, na sua esfera
“política”, têm representantes que as
protegem, ao menos por lei, de qual-
quer tipo de ameaça. Seus direitos
são defendidos por legisladores, am-
bientalistas, ONGs e grande parte da
opinião pública. Já as onças enquanto
animais de vida livre reivindicam para
si apenas ocupar uma área que pro-
venha suas necessidades, o que inclui,
entre outras atividades, matar animais
para se alimentar.
A opinião pública forma um grupo
grande, heterogêneo e de difícil defi-
nição. Onças são animais que geram
um forte apelo para a causa ambien-
talista. Estão estampando uma parte
significativa de campanhas em prol
da conservação. Documentários tam-
Figura 19. Roseta que identifica a onça-pintada
bém retratam com frequência onças e Caracol. Fotografia: Joana Macedo
pesquisadores empenhados em prote- Figura 20. Jacaré-açu (Melanosuchus niger) na
gê-las, como o que foi filmado em Ma- cabeceira do Lago Mamirauá. Fotografia: Joana
Macedo
mirauá. Todo esse marketing faz com
Figura 21. Pegadas de onça-pintada na trilha que
que a opinião pública se posicione em leva à comunidade Vila Alencar, na Reserva de
favor desses animais e condene abates Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, com um GPS

com veemência. A posição da opinião como referência de tamanho. Fotografia: Joana


Macedo

340
pública tem grande importância para
a conservação, já que influencia com-
portamentos em favor da causa via
apelo à norma social (FERNANDES-
-FERREIRA & ALVEZ, 2014).
Os ribeirinhos têm ciência da posi-
ção da opinião pública, e se sentem
injustiçados, já que acreditam que
qualquer pessoa reagiria a um animal
que ameaçasse a segurança da sua
família. E dizem que morar na cidade
grande e defender as onças é fácil, di-
fícil é conviver com elas.
Apesar do simbolismo das onças
hoje estar fortemente associado com
a causa ambientalista, ele precede o
ambientalismo. É bem documentado
em sociedades pré-colombianas, en-
tre os povos indígenas das Américas
Figura 22. a) Arte pré-colombiana exposta
e comunidades rurais (figura 22). Na no American Museum of Natural History, em
RDS Amanã, artesãs tecem grafismos Nova York. Fonte: http://anthro.amnh.org/
anthropology/databases/common/image_dup.
de inspiração indígena com talo de cfm?catno=30%2E3%2F%202300; b) Criança Yanomami
cauaçu96 tingido, entre eles o grafis- com adornos e pintura representando a onça-

mo da onça-pintada (figura 23) e do pintada na capa do livro de fotografias “Faces


da Floresta” Fonte: http://editora.cosacnaify.
gato-maracajá. com.br/ObraSinopse/10773/Faces-da-floresta--
Apesar dos atritos entre onças e -Os-Yanomami.aspx; c) Moradora da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá vestindo
moradores serem frequentes nas RDS camiseta com a onça-pintada estampada.
Mamirauá e Amanã, as demandas por Fotografia: Joana Macedo.

341
soluções não chegam aos represen-
tantes de órgãos ambientais, embora
cheguem para os pesquisadores do
IDSM, como no caso apontado na figu-
ra 3.
Mesmo considerando o Estado do
Amazonas, poucas queixas sobre pre-
dação de animais domésticos por
onças foram registradas em órgão
ambientais, o que é reflexo das longas
distâncias e dificuldades de comunica-
ção e, principalmente, da associação
que os ribeirinhos fazem entre órgãos
ambientais e fiscalização e multas.
Mendes (2010) aponta como uma limi-
tação à Teoria Ator-Rede o fato de al-
guns grupos ou atores ficarem à mar-
gem ou no interstício da rede, não por
não agirem, mas por não enunciarem
a ação, o que faz com que uma análise
superficial não os perceba.

[...] propõe-se uma reflexão sobre o


trabalho político que coloca fora das
redes, como irrecuperáveis e descar-
táveis, todos os que não criam ou não
possuem valor na perspectiva hege-
mônica e que, por conseguinte, não
são construídos como portadores de
direitos sociais e políticos, tornando-
-se invisíveis e ausentes das análises
convencionais propostas pela teoria
do actor-rede (MENDES, 2010).

O que Latour (2012) propõe, no en-


Figura 23. Grafismo da onça-pintada tecido
tanto, é seguir os atores, abandonar em tala de cauaçu por artesã da Reserva de
uma distância crítica e analítica em fa- Desenvolvimento Sustentável Amanã. Fotografia:
Joana Macedo
vor da proximidade, de forma que to-
dos os rastros sejam seguidos e todas
Figura 24. a) Reuniões realizadas na Reserva
de Desenvolvimento Sustentável Amanã sobre a
as vozes consideradas, por mais super- segurança de pessoas e animais domésticos em

ficiais que sejam os rastros, por mais relação à onças. Fotografia: Rinéias Farias.
b) Apresentação dos resultados da pesquisa
abafadas que sejam as vozes. Uma vez no 10º Simpósio sobre Conservação e Manejo
Participativo na Amazônia em 2013. Fotografia:
Francisco Rocha.

342
identificadas, é importante que as vo-
zes sejam propaladas.
Em reuniões com moradores das
reservas em 2013, foi incentivado que
problemas com onças, como a preda-
ção de animais domésticos e em es-
pecial riscos à segurança das pessoas,
fossem reportados aos gestores das
UCs (figura 24a). Isso porque enquanto
não houver demanda, os problemas
de convivência com onças não serão
discutidos em esferas que ponham em
movimento mudanças em políticas
públicas. Essas reuniões ocorreram na
segunda quinzena de junho de 2013, e
quando eu falava da importância de
relatar os problemas para promover
mudanças, os ribeirinhos logo concor-
davam mencionando a efervescência
popular das Jornadas de Junho e seus
desdobramentos, que muitos deles es-
tavam acompanhando pela TV.
Levantar a questão da segurança
dos que convivem com onças em even-
tos e publicações científicas também
é um meio de promover e difundir a
discussão sobre o tema. Na figura 24b,
o tema da segurança dos ribeirinhos e
o controle letal de onças estava sendo
apresentado no 10º Simpósio sobre
Conservação e Manejo Participativo
na Amazônia, e rendeu profícua dis-
cussão entre pesquisadores e gestores.
A predação de animais domésticos
e o medo provocado pela proximi-
dade de onças, enquanto não forem
reportados à órgãos ambientais, ten-
dem a ter curto alcance na rede. Um
problema não muito comum, mas que
Figura 25. a) Resgate da onça-pintada Janaína na
mobiliza muitos atores, é a captura de Reserva Mamirauá. Fotografia: Joana Macedo. b)
filhotes de felinos para serem criados Jornal de Uberlândia, Minas Gerais, noticiando
a chegada da onça ao zoológico da cidade.
como animais de estimação. Esses ani- Fotografia: Marcia Mossmann c) Onça Janaína no
mais, quando não morrem ou fogem, zoológico de Uberlândia. Fotografia: Márcia
Mossmann.

343
se tornam um problema de difícil
resolução.
O caso da onça-pintada Janaí-
na, criada desde filhote em uma co-
munidade na RDS Mamirauá, é um
exemplo. A onça era mantida em uma
pequena jaula de madeira. Seu “pro-
prietário”, que era a única pessoa que
a onça permitia aproximação, faleceu
em 2008 quando o animal já tinha
quatro anos. Seu pai “herdou” a onça e
logo entrou em contato com o Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Ma-
mirauá, gestor da reserva, para saber
como tirar a onça da comunidade e
dar a ela a destinação correta. A par-
tir daí uma rede foi mobilizada para
encontrar quem recebesse essa onça
e providenciar a sua remoção. Essa
rede envolveu as instituições IDSM,
CEUC/SDS, IBAMA-Tefé, IBAMA-Ma-
naus, IBAMA-Brasília, 16° Batalhão de
Infantaria de Selva, e as ONGs NEX e
Instituto Onça-Pintada, com um total
de 25 pessoas diretamente envolvidas
nos trâmites da remoção. No entanto,
a destinação de onças é difícil, os zo-
ológicos e criatórios autorizados a re-
cebê-las raramente têm recinto vago.
Além disso, a onça estava em uma
localidade distante, o que tornava a
logística da sua remoção complica-
da. Do pedido do ribeirinho para que
a onça fosse retirada da comunidade
até a sua efetiva remoção transcor-
Figura 26. a) Onça-vermelha Euzébia, que foi
reram seis meses. A cheia histórica de capturada com poucos dias de vida na Reserva de
2009 acelerou o processo, pois a água Desenvolvimento Sustentável Amanã. Fotografia:
Joana Macedo. b) Onça-vermelha que era mantida
do rio invadiu a jaula da onça, fazen- em uma comunidade na Reserva Amanã. Fotografia:
do com que a situação ficasse crítica Danielle Lima.

(figura 25a). Depois de muito esforço Figura 27. Seu Joaquim era morador da Reserva

da rede formada para a destinação do de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e foi


um importante articulador local para a criação
animal, foi feito o transporte de voa- dessa Unidade de Conservação. Fotografia: Joana
deira97 por três horas da comunidade Macedo.

344
até a cidade de Tefé, onde a onça per-
maneceu nas dependências do Exérci-
to e sob os cuidados do IDSM por uma
semana. Depois foi transportada de
barco para Manaus, num total de dois
dias de viagem. De Manaus embar-
cou em um avião para Brasília, onde
passou a noite no zoológico do Distrito
Federal e no dia seguinte foi transpor-
tada de caminhão até o zoológico de
Uberlândia em Minas Gerais, seu des-
tino final (figura 25b). Sua chegada foi
destaque de primeira página no jornal
local (figura 25c). Por conta da situação
em que se encontrava a onça, alguns
dos envolvidos no resgate queriam au-
tuar o ribeirinho que solicitou a remo-
ção pela posse do animal e por maus
tratos, mesmo sabendo que ele não foi
o responsável pelo cativeiro da onça
e que a entrega voluntária de animais
silvestres anula as sanções cabíveis da
sua posse ilegal.
Histórias como a da onça Janaína
se repetem e são um dos pontos de
tensão entre ribeirinhos, onças e ges-
tores ambientais. Criar filhotes de ani-
mais silvestres é relativamente comum
na região, mas no caso de onças as
implicações dessa prática, tanto em
relação à segurança dos moradores
quanto à dificuldade de dar destina-
ção a onças cativas, fazem com que
estratégias para dissuadir essa prá-
tica sejam pensadas por gestores e
analistas ambientais. Como exemplo,
a onça-vermelha Euzébia (figura 26a)
foi capturada com poucos dias de vida
Figura 28. Representação gráfica contendo
na RDS Amanã e entregue aos pes- os atores que compõem a rede sociotécnica da
quisadores, que mantiveram o animal relação entre ribeirinhos e onças nas Reservas
Mamirauá e Amanã.
em casa, com licença do IBAMA, en-
Figura 29. Nuvem de palavras feita a partir do
quanto procuravam destinação. Com texto deste capítulo, com o uso do programa
dois meses e meio de idade Euzébia foi Tagul, disponível em HTTPS://tagul.

345
enviada para o CETAS-Manaus e de- fotografia, tirada em 2013, conversava
pois destinada ao zoológico de Forta- sobre onças após folhear com interes-
leza. A onça-vermelha da figura 26b foi se cartilhas de mitigação de conflito,
mantida em uma comunidade na RDS mesmo sem saber ler (figura 27). Co-
Amanã e acabou sendo envenenada nhecido contador de histórias, faleceu
por moradores da própria comunidade em dezembro de 2014 aos 81 anos.
que não concordavam com a presença Histórias de onça, como as que con-
do animal por temer pela segurança tava Seu Joaquim, são uma importan-
das crianças. te trilha a ser seguida. Incluem aciden-
Para tratar de conexões entre ato- tes, sustos e caçadas, umas são frutos
res em Mamirauá é preciso mencio- de experiência própria, outros relatos
nar um importante articulador local, antigos e por vezes fantásticos do
que costumava contar com orgulho “tempo do couro”, quando matar on-
aos visitantes a história da criação da ça-pintada rendia dinheiro. Outras são
Reserva98 e do seu esforço, junto ao piadas e brincadeiras, como contam os
biólogo Márcio Ayres, de convencer “valentes” que ao encontrar uma onça,
os moradores da área, a princípio re- amarram ela, dão uma surra de cinto
ticentes e desconfiados da proposta e depois aconselham, para que não se
de criação da UC, da importância da aproxime mais. O fato é que histórias
conservação de Mamirauá. Seu Joa- sobre onças são recorrentes em rodas
quim foi um grande conservacionista, de conversas. Narram coragem épica,
dos que entendem a real acepção do covardia extrema, caçadas com za-
termo. Patriarca da Comunidade Boca gaia, ataques frustrados, sustos e ou-
do Mamirauá, sua casa flutuante era tros causos.
parada obrigatória para os que en- Esses relatos ora guiam pelas flo-
travam na Reserva. Recebia rotineira- restas os caminhos e encontros com as
mente para um café e uma conversa onças, com fascinantes detalhes sobre
pesquisadores das mais diversas áre- seu comportamento, ora vão até a opi-
as, políticos, autoridades, celebridades, nião pública que aparece via intera-
turistas, extensionistas, educadores, ções com pesquisadores, extensionis-
membros da imprensa e vizinhos de tas, turistas e programas de televisão.
outras comunidades. Ou seja, conecta- Os relatos também levam ao IBAMA,
va atores diversos ao povo, à floresta às leis de proteção à fauna e aos ges-
e às águas de Mamirauá. Seu Joaquim tores das Unidades de Conservação e
com frequência se preocupava com todos os desdobramentos que a legis-
onças cercando seus bois, chegou a lação, o plano de gestão da UC e seus
abater três onças-pintadas ao longo atores representam em relação à con-
da vida e fazia queixa aos pesquisado- vivência com as onças. Ou seja, os re-
res, como na ocasião em que passou latos são a principal trilha a ser segui-
um rádio99 para a base de pesquisa da para o esboço da rede sociotécnica.
avisando: “vem aqui prender sua onça A representação gráfica da rede
que tá rondando meu boi, se não vou sociotécnica da relação entre ribeiri-
comer ela no almoço!”. Não comeu. Na nhos e onças (figura 28) foi feita sem

346
representar as conexões entre atores, têm a mesma presença local, não se
partindo do princípio que estas são originam na mesma época, não são
fluidas, circulam entre os atores fa- imediatamente visíveis e não as pres-
zendo e desfazendo relações, alianças, sionam com o mesmo peso”.
antagonismos. Ou, como pontuou La- As onças não existem apenas ao
tour (2012) ao discorrer sobre a primei- encontrar humanos e seus animais do-
ra fonte de incerteza sobre o social, mésticos, têm uma existência biológi-
não existem grupos e sim formações ca, ecológica, simbólica e política que
de grupos que estabilizam provisoria- ultrapassa em muito a relação com os
mente o social. povos da floresta. As controvérsias nos
Latour (2012) definiu um bom rela- discursos sobre o animal deixam claro
to como aquele que tece uma rede, que o termo “onça” faz referência a di-
e também pontuou que, assim como ferentes construções que vão além dos
os experimentos científicos, os rela- limites do animal em si.
tos textuais podem falhar. Falham por As interações entre ribeirinhos, onças
várias razões, sendo a principal delas e animais domésticos têm uma natu-
a falta de ação. Ou seja, deve haver reza concreta nos encontros, abates,
movimento, os atores devem efetiva- predações, fugas e ataques. São mo-
mente fazer algo e isso deve ser claro mentos onde a ação está em primeiro
no texto. O relato de risco feito nessa plano e decisões imediatas precisam
descrição da relação entre ribeirinhos ser tomadas.
e onças procurou, com o artifício de Por mais imediatas e até instinti-
imagens estáticas de situações pontu- vas que sejam as ações durante as
ais, descrever um pouco da dinâmica interações diretas, elas têm também
dessa relação. Com o objetivo de trazer uma natureza política. No momento
para análise o próprio relato, este foi da ação fatores como a aprovação ou
também transformado em imagem reprovação dos vizinhos e familiares,
(figura 29), com o uso de uma nuvem as regras do plano de gestão da UC, a
de palavras desse capítulo. Essa aná- legislação ambiental e até as reporta-
lise gráfica mostra quantitativamente gens da TV estão exercendo uma influ-
o uso de palavras relacionadas à rede. ência política.
Revela que as onças são protagonistas Além da natureza concreta e políti-
no relato da relação. ca, também está presente na ação o
imaginário. Na ação, histórias de ante-
Discussão passados e a cosmologia que envolve
as onças vêm à tona. Pessoas que se
Qual é a natureza das ações? transformam em onças, onças encan-
As ações são fomentadas pelos ele- tadas, poderes sobrenaturais, espécies
mentos mais diversos, não necessaria- de onças nunca descritas, tudo isso faz
mente presentes, racionais ou óbvios. parte do imaginário que envolve as
Segundo Latour (2012), “na maioria onças, e exercem influência nas ações.
das situações, as ações são afetadas Já as ações para conservação
por entidades heterogêneas que não das onças têm por base um repertório

347
técnico-científico que envolve tec- torna-se insuportável quando, como
nologias sofisticadas e uma rede de na categoria pós-moderna, a própria
cientistas que se dedicam ao tema. No ciência é submetida à mesma dúvida.
contexto majoritário da conservação Uma coisa é atacar as crenças quan-
os abates de onças devem ser evita- do estamos fortificados pelas cer-
dos a todo custo, e para isso pesquisas tezas da ciência. Mas que devemos
são desenvolvidas no intuito de pro- fazer quando a própria ciência se
teger as onças de produtores rurais e transforma numa crença? (LATOUR,
proteger as criações domésticas do 2001).
ataque de onças. A política é posta em
movimento, mas não de forma demo- Como tratar de forma democrática
crática, uma vez que em geral apenas a rede da relação gente-onça?
o conhecimento técnico é apresentado Primeiro é preciso identificar as prin-
como solução para os problemas de cipais controvérsias da rede e expô-las
convivência. de forma simétrica. Isso porque a de-
Para além da ciência, há uma dose ficiência no diálogo entre ribeirinhos
de subjetividade envolvendo a conser- e profissionais que trabalham com
vação de onças, que perpassa desde a conservação, sintoma da assimetria,
construção do conhecimento científico tem como efeito colateral aprofundar
até o ativismo ambientalista. O sim- o conflito. Populações afetadas por
bolismo desses animais não deve ser conflitos com a fauna apoiam estra-
ignorado, esteve presente nas socie- tégias de conservação na medida em
dades pré-colombianas, está presente que seus problemas são considerados
nas sociedades indígenas e “moder- e suas reivindicações atendidas. Do
nas”. Ora como encantados (KOHN, contrário, exercem o efeito oposto ao
2013), ora como estrelas de campa- esperado, e qualquer tema relaciona-
nhas publicitárias em prol da conser- do à conservação passa a ser malvisto
vação, estão sem dúvida exercendo (ROSEMBERG, 2005; LINNELL, 2015).
influência. E o conhecimento científico Portanto, é importante que pesquisa-
gerado em torno do tema onça não é dores e gestores exercitem a política
imune a esse simbolismo. Questões de nas suas práticas. Sem estabelecer um
fato e questões de valor se embara- diálogo simétrico e um entendimento
lham também em um fazer científico honesto das circunstâncias locais, difi-
que curiosamente pretende oferecer cilmente se alcançam os objetivos pro-
o fato para livrar da crença. Latour postos para a conservação.
(2001) discorre sobre como a Ciência100 A principal controvérsia no caso em
tomada como verdade estabilizada questão trata do conflito de interes-
acaba apresentando características de ses entre os atores humanos. Há um
crença, como na passagem abaixo: embate que envolve principalmen-
te os abates de onças, que na visão
Os fatos foram longe demais, tentan- dos ribeirinhos são, na maior parte
do transformar tudo o mais em cren- das vezes, a resolução de um pro-
ças. O fardo de todas essas crenças blema de segurança e na visão de

348
ambientalistas uma crueldade injusti- um mundo comum as partes devem
ficada. A relação entre onças e povos assumir as controvérsias e entrar em
da floresta, que pode ser resumida negociações e acordos de forma de-
como uma competição (na acepção mocrática. De modo que eventualmen-
ecológica da palavra) por espaço e te fatos científicos podem ser postos
recursos, passou nas últimas décadas em cheque e o imaginário sobre onças
a ser mediada por novos atores. Leis, pode ser considerado.
estratégias de conservação e uma opi- Portanto, para pôr em movimento
nião pública preservacionista intervêm essas práticas é preciso que os ribei-
nessa relação e condenam com vee- rinhos estabeleçam um canal de co-
mência abates de onças sem entender municação com os demais actantes
seu contexto, o plano de fundo que en- humanos e que os profissionais da
volve a convivência com esses animais. conservação tomem ciência da impor-
A despeito das leis, essa competição tância do diálogo simétrico e procurem
continua resultando em abates de on- estar qualificados para incorporar a
ças em retaliação aos danos causados política nas suas ações. Não uma po-
pela convivência com esse animal, mas lítica impregnada da concepção mo-
agora o ribeirinho está sujeito às pena- derna ocidental, subsidiada por verda-
lidades da lei e ao estigma que a opi- des científicas estabelecidas a priori,
nião pública urbana ocidental delega a mas antes uma política democrática,
quem comete tal ato. que consulte os envolvidos a despeito
Para se estabelecer um cenário de- de seu aparato de leitura do mun-
mocrático, a construção do conheci- do. Como pontuou Viveiros de Castro
mento sobre o tema deve se dar em (2007), “uma boa política é aquela que
conjunto entre as partes divergentes, multiplica os possíveis, que aumenta o
deixando as representações de fora número de possibilidades”.
da mesa de negociações. Ao buscar O protagonismo das populações
soluções para o conflito, os “fatos” afetadas e o enfoque interdisciplinar
científicos e os medos e angústias dos dos cientistas aproximam as inicia-
ribeirinhos devem estar em um mes- tivas do tratamento democrático do
mo plano. Afinal, conhecer a probabi- conflito com a fauna. Um importante
lidade estatística de ser atacado por passo a ser dado para a construção
uma onça não faz com que o medo de do mundo comum é a incorporação
um ataque desapareça. Hurn (2009) pelos pesquisadores brasileiros das
apresentou alguns exemplos de estu- práticas de mitigação e manejo de
dos que demonstraram que o medo de conflitos já adotadas em outros países,
grandes felinos é desproporcional aos e que podem facilmente ser acessadas
casos de ataques, mas ressaltou que pelas publicações de diversos gru-
“meros fatos não podem competir com pos de pesquisa envolvidos com esse
a percepção”. Partindo do princípio de tema (como por exemplo: TREVES et
que “o real não é indiscutível, o fato al., 2003; MADDEN, 2004; TREVES et
é controvertido e fabricado coletiva- al., 2006; DICKMAN, 2010; LINNELL,
mente” (LATOUR, 2012), para admitir 2013). Para tanto é preciso substituir a

349
Ciência pelas ciências. Considero essa
mudança na abordagem do tema por HEMSON, G. et al. Community, lions,
pesquisadores e gestores medida ne- livestock and money: A spatial and
cessária para estabelecer um cenário social analysis of attitudes to wildlife
democrático na gestão do conflito com and the conservation value of tourism
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352
NOTAS

Capitulo 15

87 Esse texto é uma versão modificada do artigo "A rede sociotécnica


na relação entre ribeirinhos e onças (Panthera onca e Puma concolor) nas
Reservas de Desenvolvimento Sustentável Amanã e Mamirauá no Amazonas",
publicado no periódico Desenvolvimento e Meio Ambiente v.35, p. 287-303,
2015.

88 Tradicionalmente o foco dos etnógrafos são povos “primitivos”


ou minorias excluídas que eles não reconhecem como “iguais”, sendo em
contrapartida denominados como “outros”. Como pontuou Viveiros de
Castro (2010), “Antropologia é o estudo do homem, mas, ao mesmo tempo,
do homem mais diferente possível daquele que enuncia o discurso da
Antropologia: o selvagem, o primitivo.”.

89 De acordo com Latour (2004), a expressão designa “o resultado


provisório da unificação progressiva das realidades exteriores”. Compor o
mundo comum é caminhar na direção de admitir que o mundo é mais do
que plural ou diverso, é comum a todos seus habitantes, sejam eles humanos
ou não-humanos, cientistas ou “leigos”.

90 Muitos ribeirinhos e mesmo analistas ambientais desconhecem que


não é crime abater um animal silvestre em caso de ataque (MACEDO, 2013).

353
91 As construções são feitas sobre palafitas, por isso sempre há um
espaço em baixo das casas, onde é comum que animais se abriguem.

92 Agente Ambiental Voluntário é uma categoria criada pelo IBAMA,


voltada para a fiscalização e educação ambiental de base comunitária, feita
voluntariamente por moradores habilitados.

93 Embora tenha conversado com muitas crianças moradoras das


Reservas, seus relatos não foram incorporados ao banco de dados de
monitoramento de conflito, a não ser que fossem recontados por um adulto.

94 Disponível no endereço eletrônico http://uakarilodge.com.br/pt-br/


jaguar/, acessado em 01/04/2015.

95 A isca era composta de uma mistura de ovo cru com sardinha em


conserva.

96 Cauaçu (Calathea lutea) é a planta da onde se retira a fibra para


produção de diversos objetos, como cestarias, peneiras e tupés (LEONI &
COSTA, 2013).

97 Bote de alumínio com motor de popa.

98 Mamirauá foi inicialmente Estação Ecológica, passando depois à


categoria de Reserva de Desenvolvimento Sustentável.

99 A comunicação entre as 10 bases de campo e a sede do IDSM era


feita exclusivamente via rádio, hoje as bases de campo já contam com
internet.

100 Latour faz uma distinção entre Ciência com C maiúsculo e ciências,
onde a primeira representa, entre outras coisas, a Ciência como uma verdade
pronta e aceita por seus seguidores, enquanto a segunda representa o
conhecimento em construção, com todas as suas controvérsias.

354
Ecologias: A natureza entendida a
partir de diferentes cosmovisões
Gustavo Arantes Camargo
Rafael Nogueira Costa

16.
Introdução

[...] e assim nos tornamos como que senhores e possessores da natureza. O


discurso do método (Descartes, 1996).

O completo domínio da natureza não é provavelmente possível, e seria de


qualquer forma muito precário, ou instável, uma vez que o homem é um he-
terótrofo muito “dependente” que vive “alto” na cadeia alimentar. Funda-
mentos da ecologia (Odum, 2001).
[...] e assim nos tornamos como que senhores e possessores da natureza.
O discurso do método (Descartes, 1996).
De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da natu-
reza. A queda do céu (Davi Kopenawa e Bruce Albert, 2015).
O completo domínio da natureza não é provavelmente possível, e seria de
qualquer forma muito precário, ou instável, uma vez que o homem é um
heterótrofo muito “dependente” que vive “alto” na cadeia alimentar.
Fundamentos da ecologia (Odum, 2001).

De modo que, para nós, os espíritos xapiri são os verdadeiros donos da


natureza. A queda do céu (Davi Kopenawa e Bruce Albert, 2015).

Os trechos citados na epígrafe deste texto nos auxiliam a observar diferentes


maneiras de pensar e viver a natureza. Quando falamos aqui em cosmovisão,
não estamos nos referindo apenas a crenças e costumes, mas, sobretudo, a ma-
neiras de se relacionar com os outros e com o mundo, a partir da construção de
diferentes culturas.
Para Austin (1995, p. 215), pesquisador da cosmovisão mesoamericana e de po-
vos indígenas, a cosmovisão produz pensamentos e crenças que condicionam a
própria percepção da realidade e orientam a ação sobre ela.
O objetivo deste capítulo é pensar as diferentes concepções de natureza for-
madas, a partir de duas cosmovisões distintas, a saber, a cosmovisão ocidental,
representada, nesse contexto, pelos pensamentos de René Descartes e Eugene
Odum, e a cosmovisão Yanomami, pensada a partir de Davi Kopenawa e Bruce
Albert. Em seguida, problematizamos seus desdobramentos para a conservação
ambiental. Ao final, analisamos brevemente três filmes que acreditamos exem-
plificar diferenças importantes entre as duas cosmovisões apresentadas: Ser Tão
Velho Cerrado (André D’Elia, 2018), O Amigo do Rei101 (André D’Elia, 2019) e Como
fotografei os Yanomami (Otavio Cury, 2018).
A primeira cosmovisão é a que se apresenta no Discurso do método de René
Descartes (1596 - 1650) e pode ser denominada como cosmovisão ocidental. Des-
cartes é considerado por muitos como “o fundador da filosofia moderna” (REALI;
ANTISSERI, 2004). Sem entrar em debates minuciosos, entenderemos por filoso-
fia moderna a filosofia que se desenvolve na Europa, a partir do século XVII, em

356
consonância com a revolução científica que foi feito para nada omitir (DES-
desenvolvida na mesma região e no CARTES, 1996, p. 23).
mesmo período. É importante lembrar que o objetivo
Interessa-nos, para efeito deste tra- de Descartes é fundamentar filosofica-
balho, apenas a concepção de natu- mente o conhecimento científico nas-
reza presente no Discurso do método. cente que se mostra muito mais certo
Nessa obra, o autor francês apresenta e verdadeiro do que as especulações
alguns princípios filosóficos do que filosóficas vigentes como verdade à
viria a ser o método científico que, época na Europa.
naquele momento, encontrava-se Não sem propósito, Descartes inicia
em desenvolvimento inicial. Longe de seu pensamento duvidando de tudo.
detalhar o método científico pronto e Nada é verdadeiro, nem nossas cren-
acabado, como comumente a ingenui- ças, nem valores, nem as impressões
dade imagina, a referida obra aponta dos sentidos. Nossos sentidos podem
princípios fundamentais de filosofia nos enganar e não são, pois, confiá-
os quais retratam a mudança no pa- veis. Assim também os sonhos, nos
radigma do conhecimento então em quais, muitas vezes, estamos sonhan-
curso. Se, antes, a autoridade da Igreja do, mas acreditamos que aquilo seja
e da filosofia Escolástica se encontra- real. O oposto seria, então, possível,
vam no centro da determinação sobre posso estar sonhando agora e achar
a verdade, no mínimo, a partir de Co- que vivo uma realidade. Que me pro-
pérnico, essas certezas são abaladas. varia o contrário?
Será justamente, a partir da dúvida Sendo assim, Descartes duvida de
hiperbólica e, motivado pela busca da tudo. Descobre que só não pode duvi-
certeza, que Descartes entenderá a dar de que duvida e, para que duvide,
necessidade de um método para guiar é preciso que exista, pois somente de
o pensamento rumo ao conhecimento. algo que exista se pode duvidar e pen-
O filósofo não formula o método cien- sar. Assim, chega à primeira certeza de
tífico, muito menos de forma integral. sua filosofia: “Se penso, logo existo”.
Negando a experiência sensível, por Esse é o primeiro princípio da filosofia
exemplo, sua filosofia aponta mais que buscava a primeira certeza, a par-
para a dedução e análise que para um tir da qual poderá pensar a segunda e,
método experimental. assim, sucessivamente.
O cientista que ler o Discurso do mé- Uma vez constatada sua existência,
todo poderá ficar desapontado, ao ver a partir do pensamento, Descartes
o método científico ser resumido em procura a essência daquilo que ele é.
quatro princípios gerais, quais sejam: Observando que poderia pensar que
i) a evidência, não aceitar nada como nada no mundo existisse, mas que,
verdade que não seja evidentemente mesmo neste caso, não poderia pa-
reconhecida como tal; ii) dividir o todo rar de pensar, dirá que o pensamento
em partes; iii) conduzir o pensamento possui uma natureza distinta e mais
do simples ao composto e, por fim; iv) real que as coisas materiais. Concluirá
enumerar e fazer revisões de tudo o que este “eu” que pensa é uma pura

357
substância pensante, independente os corpos e as culturas que engendram
do corpo. Separa-se assim a mente do diferentes cosmovisões.
corpo. Descartes busca, para a filosofia,
A partir disso, tenta formular uma a mesma legitimidade da ciência de
regra geral para saber se uma propo- Galileu. Assim, uma noção geométrica
sição é verdadeira. Na proposição que e matemática da natureza torna-se a
encontrou (penso, logo existo), o que sua única compreensão aceita. A natu-
lhe dá certeza da veracidade da pro- reza será vista como puro mecanismo
posição é que vê claramente que, para e será assemelhada a uma máquina.
pensar, é preciso existir. (primeiro prin-
cípio do método). Dessa forma, toma A exigência (implícita) de um isomor-
como regra geral que as coisas que fismo entre um sistema relacional
concebemos clara e distintamente são numérico, com a propriedade de adi-
verdadeiras. tividade (velocidade e comprimento),
Por trás de toda essa metafísica, e um sistema empírico relacional de
existe a tentativa de fundamentar o noções físicas (movimento físico e
conhecimento nascente, leia-se cientí- distância) oferece o princípio básico
fico, na razão e não na materialidade para o desenvolvimento da concep-
dos corpos ou nos costumes. A propos- ção cartesiana ontológica da natu-
ta de Descartes é inequívoca; somente reza. A exigência de se empregar, na
a pura racionalidade, cujo modelo é teoria física, conceitos mensuráveis e
a geometria e a matemática, é capaz expressáveis em linguagem algébrica
de dar a certeza necessária ao conhe- acaba por levá-lo a construir, e a es-
cimento. Para tanto, é preciso que o tabelecer como legitima, uma natu-
sujeito do conhecimento exista e seja reza mecânica do mundo (CHIAPPIN,
puramente racional. Por mais que 2013, p. 275).
aceite que os sujeitos de carne e osso
existam, entende que a racionalidade O desdobramento da concepção
pura é o que deve comandar o proces- mecanicista da natureza em um objeto
so de conhecimento. a ser manipulável pelo ser humano não
Essa concepção metafísica do sujei- precisou da Revolução Industrial para
to do conhecimento, por mais estranha se materializar. Está presente no pró-
que possa parecer, tem desdobra- prio Discurso do método:
mentos evidentes que até hoje estão
presente no cotidiano. Por exemplo, [...] é possível chegar a conhecimen-
pensamos na separação que mante- tos muito úteis à vida, e que, ao invés
mos entre o pensamento e o corpo, dessa filosofia especulativa ensinada
tanto em nosso método de ensino, em nas escolas, pode-se encontrar uma
que o corpo parado é a forma ideal de filosofia prática, mediante a qual,
aprendizagem, ou quando desejamos conhecendo a força e as ações do
uma universalidade ao conhecimento fogo, da água, do ar, dos astros, dos
que só pode ser aceita se ignorarmos céus e de todos os outros corpos que
nos rodeiam, tão distintamente como

358
conhecemos os diversos ofícios de vista da maior importância para os
nossos artesãos, poderíamos empre- assuntos humanos em geral (ODUM,
gá-las do mesmo modo em todos os 2001, p. 54).
usos a que são adequadas e assim
nos tornamos como que senhores e Boa parte do desenvolvimento so-
possessores da natureza102 (DESCAR- cial, econômico, mas também científico
TES, 1996, p. 69). da sociedade ocidental, está calcado
na ideia filosófica equivocada de que o
Por mais que se possa alegar inge- ser humano não faz parte da natureza
nuidade ao filósofo francês, não vemos e dela pode se assenhorear. A atuação
como negar que a imagem mecani- desta ideia, em nossas vidas, ocorre da
cista da natureza presente na filosofia mesma maneira que as demais ideias
cartesiana que serve de base, para a filosóficas, em geral, em nossa socie-
ciência moderna, desdobra-se neces- dade, de uma maneira inconsciente e
sariamente, na ideia de que o ser hu- imaginária. Todas as pessoas, mesmo
mano seria capaz de se assenhoreá-la que não pensem a respeito, são edu-
e coordená-la. cadas e constituídas dentro de culturas
Essa é, por fim, a principal dicoto- que expressam cosmovisões distintas,
mia para a qual queremos chamar a isso significa que suas ações são con-
atenção, neste cenário, a separação dicionadas a partir de ideias, mesmo
ontológica entre o ser humano e a na- que não percebam quais são essas
tureza, entre sociedade e natureza ou ideias. A separação entre humanidade
entre cultura e natureza. É da ideia de e natureza é facilmente perceptível, em
que essa separação é possível que de- qualquer nível da sociedade ocidental,
corre a compreensão de que podemos desde o tratamento dado aos animais
dominá-la e que somos capazes de até o entendimento da natureza como
modificá-la indefinidamente sem que recurso natural.
isso tenha um efeito retroativo sobre a Entretanto o ecólogo Odum nos faz
humanidade. a pergunta: “Hoje em dia a questão
Se a dicotomia humano/nature- poderá ser colocada como se segue:
za está na base filosófica da ciência, Até que ponto a constante dificuldade
a própria ciência da natureza hoje, sentida pelo homem com a deterio-
aqui representada pela “ecologia ração dos ambientes não resulta do
de Odum”, luta para modificar essa fato de sua cultura ter realmente ten-
compreensão. dido a ser independente do ambiente
natural”? (ODUM, 2001, p. 813). Essa
A ideia do ecossistema e o entendi- independência, vimos, está na base fi-
mento de que a humanidade é uma losófica do pensamento moderno que,
parte de, e não está desligada de ci- por sua vez, sustenta nosso conceito de
clos ‘biogeoquímicos’ complexos, com ciência.
um poder crescente de modificar os Integrar a ideia de humanidade à
ciclos, são conceitos básicos da eco- ideia de natureza não é tarefa fácil.
logia moderna e também pontos de Colocar o ser humano como mais um

359
elemento dessa ecologia não é su- até mesmo as dos grandes caracóis
ficiente, pois os seres humanos são warama aka. A imagem do valor de
diferentes e múltiplos. Assim como a fertilidade në roperi da floresta tam-
ideia de natureza, a de humanidade bém é o que os brancos chamam de
também depende de cosmovisões es- natureza. Foi criada com ela e lhe dá
pecíficas. O respeito à totalidade de sua riqueza. De modo que, para nós,
expressões da vida humana, chama- os espíritos xapiri são os verdadeiros
das aqui de cultura, é algo que precisa donos da natureza, e não os huma-
ser considerado. nos (KOPENAWA e ALBERT, 2016, p.
Em contraponto à cosmovisão oci- 475).
dental, adentraremos brevemente, na
cosmovisão Yanomami, apresentada Kopenawa declara que, no passado,
por Davi Kopenawa e Bruce Albert, no não havia diferença entre animais e
livro A queda do céu e problematiza- humanos. Na verdade, ainda não há
remos a ideia ocidental de natureza essa diferença. Os animais que vemos
a partir desta cosmovisão103. Para os hoje foram humanos no passado e se
Yanomami, não há uma divisão entre transformaram, mas sua essência per-
natureza e sociedade, ou entre hu- manece em forma de imagem e é um
manidade e natureza. Os Yanomami ancestral humano. Há uma duplicação
são, assim como os animais, plantas ontológica em que há o animal físico
e montanhas, parte da natureza. Na (pele de animal) e sua imagem ances-
verdade, sendo rigoroso com o pensa- tral (como uma essência), essa última é
mento, a própria ideia de natureza não humana tanto quanto os Yanomami.
está presente inicialmente na cosmo-
visão Yanomami, pois, se não há sepa- Todos os seres da floresta possuem
ração ontológica entre os seres, o que uma imagem utupë. (...) São elas [es-
viria a ser natureza? Essa palavra apa- sas imagens] o verdadeiro centro,
rece no discurso de Kopenawa apenas o verdadeiro interior dos animais
a partir de seu contato com o branco. que caçamos. São essas imagens
os animais de caça de verdade, não
O que eles chamam natureza é, na aqueles que comemos! (...) O guariba
nossa língua antiga, Urihi a, a ter- iro que flechamos nas árvores, por
ra-floresta, e também sua imagem, exemplo, é outro que sua imagem
visível apenas para os xamãs, que Irori, o espírito do guariba, que os xa-
nomeamos Urihinari, o espírito da mãs podem chamar para si (KOPE-
floresta. É graças a ela que as árvo- NAWA e ALBERT, 2016, p. 116).
res estão vivas. Assim, o que chama-
mos de espírito da floresta são as Assim, os animais são ancestrais
inumeráveis imagens das árvores, as humanos em essência, mas modifica-
das folhas que são seus cabelos e as dos em um tempo passado, tendo se
dos cipós. São também as dos ani- tornado os animais (pele de animais)
mais e dos peixes, das abelhas, dos como os conhecemos. Os animais
jabutis, dos lagartos, das minhocas e da floresta (pele de animais) apenas

360
imitam as imagens de seus espíritos, iguais a eles, “aos olhos deles, continu-
mas não são o espírito do animal. Há, amos sendo dos deles” (Ibid., p. 473).
“na verdade”, uma triangulação onto- A conclusão é precisa, ecológica e tem
lógica, cuja animal que os humanos muito a ensinar aos brancos e à sua
veem e caçam é apenas um “represen- economia: “É por isso que não mata-
tante”104 de sua imagem. Essas ima- mos caça sem medida” (Ibid., p. 475).
gens são seu centro verdadeiro e não Já os xapiri “são as imagens dos
são caçáveis. Existe uma triangulação, ancestrais animais yaori que se trans-
que, além da pele do animal e das formaram no primeiro tempo” (Ibid.,
imagens ancestrais, essas tornam-se p. 111). Eles não estão acessíveis a um
xapiri105 e se comunicam com os Ya- primeiro momento e nem para todos,
nomami por meio dos rituais xamâni- “só os xamãs conseguem vê-los” (Ibid.,
cos. São essas imagens que, tornadas p. 111) e, para tanto, “é preciso beber o
xapiri, os xamãs fazem descer em seus pó de yãkoana durante muito tempo
rituais. Um animal é, portanto uma e que os nossos xamãs mais velhos
pele de animal que vemos e podemos abram os caminhos deles até nós”
caçar, uma imagem espiritual ances- (Ibid., p. 111).
tral que reúne todos os animais físicos Esse processo é o equivalente ao es-
em uma essência e também são xapiri tudo para os brancos. “Isso leva muito
e se comunicam com os Yanomami nos tempo. Tanto quanto os filhos de vocês
rituais xamânicos. levam para aprender os desenhos de
suas palavras. É muito difícil. Contudo,
Há muito e muito tempo, quando a quando faço dançar meus xapiri, às
floresta ainda era jovem, nossos an- vezes, os brancos me dizem: ‘Não se vê
tepassados, que eram humanos com nada! Só se vê você cantando sozinho!
nomes de animais se metamorfose- Onde é que estão seus espíritos? São
aram em caça. Humanos-queixada palavras de ignorantes” (Ibid., p. 112).
viraram queixadas; humanos-veados Se, para os brancos, o estudo das ciên-
viraram veados; humanos-cutia vi- cias da natureza é uma forma de aces-
raram cutias. Foram suas peles que sá-la, para os Yanomami, o caminho
se tornaram as dos queixadas, vea- para se tornar xamã é o caminho para
dos e cutias que moram na floresta. o acesso à essência da floresta.
De modo que são esses ancestrais Cabe a pergunta: Que é o real? Ou
tornados outros que caçamos e co- melhor, politizando a questão: quem
memos hoje em dia (KOPENAWA e tem o poder de definir o que é e o que
ALBERT, 2016, p. 117). não é o real?
É interessante notar como a abor-
Assim, não faz sentido a separação dagem, a partir de diferentes cosmovi-
entre humanos e animais. Tanto os ani- sões, põe a compreensão ocidental em
mais são gente: “Os coatás, que cha- curto circuito. Em nosso entendimento,
mamos paxo, são gente, como nós”, esse curto circuito é fruto do cará-
(Ibid., p. 473), assim como do ponto ter abissal do pensamento ocidental.
de vista dos animais, os humanos são Boaventura de Souza Santos traz o

361
conceito de pensamento abissal para floresta. O fato de que as suas princi-
caracterizar o pensamento moderno pais ameaças a ela decorram da ação
ocidental (SANTOS, 2009). O pensa- do homem branco e o fato de que os
mento abissal se caracteriza por ser Yanomami, que ali habitam há muito
um sistema epistemológico, ontológico tempo, provam essa tese. Assim, Kope-
e político que se entende no poder de nawa pode observar que “Omama107
julgar e determinar o que é real e o que tem sido, desde o primeiro tempo, o
não é. Essas divisões invisíveis dividem centro das palavras que os brancos
a “realidade” em dois campos, em chamam de ecologia” (KOPENAWA e
que um dos lados é considerado como ALBERT, 2016, p 479).
inexistente, ou seja, não real. “Esta
divisão invisível é a distinção entre as Na floresta, a ecologia somos nós,
sociedades metropolitanas e os terri- os humanos. Mas são também, tan-
tórios coloniais” (SANTOS, 2009. p. 24). to quanto nós, os xapiri, os animais,
Ao serem produzidas como irreais pelo as árvores, os rios, os peixes, o céu, a
pensamento abissal, tudo o que não chuva, o vento e o sol! É tudo o que
é ocidental é excluído da própria con- veio à existência na floresta, longe
cepção do real, dessa forma, temos um dos brancos; tudo o que ainda não
epistemicídio106. “São abissais no sen- tem cerca. As palavras da ecologia
tido de que eliminam quaisquer reali- são nossas antigas palavras, as que
dades que se encontrem do outro lado Omama deu a nossos ancestrais. Os
da linha” (SANTOS, 2009. p. 26). Sendo xapiri defendem a floresta desde que
assim, é apenas por ter a filosofia oci- ela existe. Sempre estiveram do lado
dental como único critério de veraci- de nossos antepassados, que por isso
dade e realidade que se pode julgar a nunca a devastaram. Ela continua
cosmovisão Yanomami como irreal. O bem viva, não é? Os brancos, que an-
melhor ao branco seria dizer que ela tigamente ignoravam essas coisas,
lhe é inacessível. Ou assumir que a rea- agora estão começando a entender.
lidade é plural. É por isso que alguns deles inventa-
Mesmo assim, podemos afirmar ram novas palavras para proteger a
que a cosmovisão Yanomami se pauta floresta. Agora dizem que são a gen-
por uma lógica não dicotômica daquilo te da ecologia porque estão preocu-
que o ocidente chama de natureza. Ao pados, porque sua terra está ficando
lermos sua cosmovisão, podemos per- cada vez mais quente (KOPENAWA e
ceber que a ciência cartesiana nunca ALBERT, 2016, p. 48).
poderá acessá-la. Tratam-se de cos-
movisões incomensuráveis. O fim da natureza nos filmes Ser Tão
Entretanto é interessante notar Velho Cerrado e O Amigo do Rei
também que a cosmovisão Yanomami,
ao nunca separar a humanidade da Nesta seção, refletimos sobre os
natureza, desde sempre foi uma ver- filmes Ser Tão Velho Cerrado (André
dadeira ecologia. Kopenawa assinala D’Elia, 2019) e O Amigo do Rei (André
que os Yanomami sempre cuidaram da D’Elia, 2019). O filme Ser Tão Velho

362
Cerrado é um documentário que ana- Esse ser tão novo é o homem e a pre-
lisa os impactos socioambientais no sença do homem ... (Fernando Tata-
cerrado brasileiro, um Bioma funda- giba, Chefe do Parque Nacional da
mental para a saúde dos brasileiros Chapada dos Veadeiros, 5’).
e brasileiras e para a manutenção de
inúmeras formas de vida. Barulho! Árvore tolhida em sua
Após uma sequência de imagens aé- base. Monocultura e queimada. Cin-
reas e da natureza exuberante do Cer- quenta por cento já foram eliminados,
rado108, somos apresentados ao Altair salienta a pesquisadora da Univer-
Sales Barbosa (antropólogo e geólogo, sidade de Brasília (UnB), o que resta
especialista no Cerrado), que discursa está distribuído em “pequenas man-
sobre o tema: chas que são as unidades de conserva-
ção”, complementa outro pesquisador.
O Cerrado é a mais antiga das for- “O ser tão velho” é um híbrido de
mações ambientais da história mo- natureza e cultura, palco para o maior
derna do planeta Terra. O Cerrado se quilombo do Brasil, Quilombo Kalunga.
concretizou totalmente, na sua for- Os kalungas discursam sobre os seus
mação atual, com todos os ambien- conhecimentos ancestrais e apresen-
tes a 45 milhoes de anos (Altair Sales tam com orgulho os frutos da terra e o
Barbosa, antropólogo e geólogo, Ser poder das sementes crioulas. Atores no
Tão Velho Cerrado, 2’). estúdio narram, após uma sequência
de imagens, a situação desse povo:
Nos primeiros minutos do filme,
somos conduzidos a compreender a São trezentos e cinquenta anos fu-
importância do Bioma Cerrado, que é gindo pelo sertão, foram cassados
apresentada pela fala de especialistas. impiedosamente, inclusive pelo mer-
Em seguida, o pesquisador insere o as- cenário Lampião. Depois de tanta
sunto “potencial farmacológico”, que injustiça questionar o direito territo-
é seguido de uma narrativa que con- rial quilombola é racismo. Comendo
fere a utilização de sua flora para fins raíz de pau, resistiram e resistem, até
medicinais. “Sabão pra cura de fruta, hoje. É a África, no coração do Brasil
remédios medicinais, vermífugo casei- (Depoimento de atores no filme Ser
ro, expectorante ... tudo com erva”, ex- Tão Velho Cerrado, 19’).
plica uma conhecedora das plantas do
Cerrado. Imagens da biodiversidade e Frutas do Cerrado e os conhecimen-
a fala de pesquisadores e de gestões tos dos kalungas, o conhecimento que
ambientais do ICMBio apresentam emerge da terra, das plantas. Resgate
“esse ser tão velho”: alimentar e ancestralidade em choque
com o garimpo. Atividades minerado-
Esse ser tão velho, recebeu muito ras, garimpos de ouro e de cristal fa-
recentemente, a pouco milhares de zem parte de uma corrida e exploração
anos, a visita, que não foi uma visita, muito presentes no local. Os morado-
que esse ser tão novo veio para ficar. res se dividem entre os exploradores

363
(“colonizadores”) e os “condenados”, está concentrado nas mãos dos “colo-
nos termos de Franz Fanon. nizadores do cerrado” (concentradores
O efeito esponja das raízes que se fundiários” e empresas multinacionais)
infliltram no solo, fazem brotar as vi- que atuam na “guerra das sementes”
das da água a qual é mais um ponto (transgênicas versus crioulas). Em Ma-
de interesse do filme. Didaticamente, é topiba, menos de 0,5% da população
apresentado a importância da vegeta- concentra 60% da riqueza, enquan-
ção para o ciclo hídrico. Correntão: dois to 80% da população é considerada
tratores arrastam uma corrente, que muito pobre (famílias com uma renda
derruba as árvores do cerrado, denun- mensal inferior a setecentos reais), ad-
cia o filme. verte o filme.
André D’Elia, cineasta e diretor do O palco de um dos principais atritos
filme, em um determinado momento, no filme é o conselho da APA de Pouso
posiciona-se à frente da câmera, in- Alto. Os cowboys estão em ação, alte-
vertendo o eixo de filmagem. Diante rando a composição do conselho em
da sua câmera, faz uma acusação e favor do agronegócio. Estratégia uti-
revela uma suposta relação entre po- lizada também pelo Ministro do Meio
der público e dominação da natureza: Ambiente, Ricardo Salles, para facilitar
“Existem denúncias muito evidentes sua atuação contrária à conservação
que pertencem ao pai do governador da natureza e abrir a porteira para a
do Estado de Goiás”, afirma o diretor. “boiada passar”109. Sem luta, ninguém
É acionado um modo de apresentação vai comer fruta.
de diálogos, muito comum no meio O filme O Amigo do Rei é uma mis-
jornalístico, áudios seguidos de trans- tura entre ficção e documentário e
crição sustentam a declaração do ci- retrata um dos maiores crimes socio-
neasta. Na sequência, o governador do ambientais da história do Brasil. Ele
Estado de Goiás faz uma declaração à revela os bastidores da exploração de
mídia local e declara não saber. minério em Minas Gerais, ao escavar
Soja. Mais uma ameaça constante os detalhes do rompimento da bar-
nesse cenário de exuberância. No “ca- ragem que despejou, no ano de 2015,
minho do cerrado”, duas mulheres se mais de 30 milhões de metros cúbicos
colocam nuas, numa intervenção com de rejeitos no rio Doce até a sua foz,
o objetivo de denunciar o avanço do em Regência, litoral do Espírito Santo.
agronegócio. No filme, a natureza está posta num
A partir daí, observamos um con- balcão de negócio.
flito de narrativas e os seus jogos de A obra foi construída, como parte
interesses, evidencia-se a “ganância”. do projeto de informação ambien-
A técnica no lugar da natureza: explo- tal, intitulado “mar de lama nunca
ração e passivo ambiental. A coloniza- mais”110. O fio condutor da história é o
ção continua. O filme põe em choque deputado federal Rey Naldo (Luciano
distintas cosmovisões. As estratégias Chirolli). É ele quem conduz a natureza
de sustentação dessas cosmovisões para dentro do Congresso Nacional
são desproporcionais, o jogo de poder e a coloca no centro da política. Uma

364
natureza à venda, disputada, escava- Na parte documental, O Amigo
da e explodida. do rei apresenta relatos das pesso-
Um filme com distintas cosmovisões. as atingidas pela lama tóxica. São
Identificamos, em trechos do filme, o depoimentos que caracterizam com
discurso de Descartes, quando a natu- detalhes o episódio que transformou
reza – lida como rio, minérios, água e completamente a vida das pessoas. As
florestas – é expropriada até a exaus- casas foram tomadas pelo rejeito de
tão. Também é possível identificar a minério. Em cima da lama, os persona-
ecologia de Odum – quando é apre- gens se emocionam ao revisitar o local
sentada a perspectiva sistêmicas das das suas casas e as suas memórias. “A
bacias de drenagem, por meio de nar- gente vai viver com esses pensamen-
rativas de cientistas e das pessoas que tos pelo resto da vida, só quando a
foram atingidas pelos rejeitos de mi- gente morrer que vai ficar livre desses
nério, ao longo do trajeto do rio Doce. pensamentos. É muito difícil de lem-
Além dessas cosmovisões, O Amigo brar dessa história”, comenta um mo-
do rei apresenta cosmovisões outras, rador atingido pela lama.
como a “leitura de mundo” – nos ter- Além dos depoimentos dos atingi-
mos de Paulo Freire – dos pescadores dos, o filme apresenta o ponto de vista
e das famílias que passaram por uma de cientistas e acadêmicos de várias
experiência traumática. As diferentes áreas, que descrevem com minúcias
narrativas revelam como o mesmo o rompimento da barragem de rejei-
rio é significado de maneira distinta, tos, o ritual administrativo do licen-
como a cosmovisão do povo Krenak, ciamento ambiental e os impactos da
que considera esse ecossistema como atividade mineradora. Completam a
um ser vivo, ou seja, para esse grupo, o narrativa polissêmica servidores da
rio é seu avô. promotoria de justiça do Ministério
Na parte ficcional, o filme constrói a Público de Minas Gerais, biólogos de
imagem do deputado Rey Naldo, um uma empresa de consultoria, ex-fun-
articulador político em favor das mi- cionários da mineradora, integrantes
neradoras. O deputado é um fanfarão, da Pastoral da Terra, prefeitos de al-
machista e debochado que trabalha guns municípios atingidos e aqueles
na venda da natureza e ironiza as víti- que tiveram suas vidas modificadas de
mas do crime-desastre em passagens maneira negativa, os “condenados da
surreais. Em sua rotina de trabalho, os terra”, para Franz Fanon ou “oprimi-
elementos que constroem a figura do dos” para Paulo Freire.
representante da sociedade patriarcal O filme traz também imagens de
estão presentes: restaurantes luxuosos, reuniões e audiências públicas, protes-
terno, gravata e colarinho branco, uma tos e o percurso da lama tóxica. A lama
secretária (que faz o papel de sedutora que soterrou vidas humanas, sonhos,
e submissa) e festas, onde são deci- imaginações e reduziu drasticamente a
didos os caminhos da dominação da capacidade de manutenção da biodi-
natureza. versidade, ao longo do seu trajeto, ao

365
transformar uma paisagem colorida em seguida, por uma mãe que carrega
num tapete laranja. sua filha no colo e mostra as bolhas
Em uma palestra, uma pesquisadora na perna da criança, que, segundo ela,
de um grupo independente explica que surgiram após o consumo da água
alguns compostos inorgânicos, como contaminada. O discurso do promotor
ferro, manganês, arsênio e chumbo, de justiça do município de Governador
estão presentes, ao longo da bacia de Valadares, realizado em uma audiên-
drenagem atingida pela lama, com cia pública, também reforça a ideia de
elevados níveis de concentração, mui- contaminação da água, por alumínio
to além do permitido pela legislação. principalmente e cita a portaria do
Por exemplo, o Manganês, segundo Ministério da Saúde no 2.914 de 2011,
a pesquisadora, foi encontrado, ao que dispõe sobre os “procedimentos
longo da bacia de drenagem, a 1.000 de controle e de vigilância da qualida-
vezes acima da concentração limite de da água para o consumo humano e
preconizada pela resolução CONAMA seu padrão de potabilidade” (BRASIL,
no 357 (BRASIL, 2005). A pesquisado- 2011).
ra continua sua apresentação, para
um auditório lotado, ao declarar que [...] e ainda há um grande risco de que
“todos esses metais tóxicos causam chuvas, quaisquer tipo de alteração
algum impacto à saúde humana e aos na dinâmica do curso hídrico, possa
animais, também, que consomem essa de novo acarretar a piora da qualida-
água”. de, turbidez, inclusive novos episódios
Na sequência, duas pesquisadoras de mortandade de peixes (Promotor
destrincham os problemas da presen- de Justiça do Ministério Público de
ça desses metais pesados no corpo Minas Gerais e Coordenador - O Ami-
das pessoas. Dessa forma, podemos go do Rei, 2019, 49’).
compreender a ecologia sistêmica de
Odum. A interconexão entre uma série Logo após a fala do promotor, cho-
de organismos e elementos não vi- calhos são balançados, penas e pe-
vos ele chamava de fatores bióticos e nachos apontam para uma transição
abióticos. na paisagem e na cosmovisão. A tinta
A ideia de integração é reforçada preta na pele e a cor vermelha pare-
pela imagem da prefeita do município cem sinalizar o estado de guerra. É o
de Governador Valadares, que bebe povo Krenak, que apresenta a sua cos-
a água da torneira, para mostrar que movisão na voz de uma das lideranças:
os serviços ecológicos, como o forne-
cimento de água, estão normalizados, Como é que você vai imaginar um
passados alguns meses do evento. A futuro, com um rio morto, num lugar
teatralidade da prefeita é captada que não tem água, suprido por cami-
pela mídia tradicional, que, ao pro- nhão pipa, enchendo a caixa d’água
duzir a “peça publicitária”, exercerá a de plástico de água. Ninguém vive
função de acalmar os ânimos dos mo- desse jeito! O nosso território está
radores. Porém a farsa é desmentida, parecendo um campo de refugiados.

366
Eu costumo dizer que nós estamos Heringer Lisboa - médico e ambien-
refugiados dentro de casa. Agora va- talista, 1h37’).
mos ficar recebendo suprimento, ra- Essa fragmentação científica, em
ção. Enquanto a empresa quiser, né? disciplinas, ela é uma ferramenta ar-
Porque eu não estou vendo nenhum tificial, a natureza não é separada (ri-
investimento sendo feito para criar sos). A natureza é uma coisa só. Mas,
novas condições de sobrevivência na como que a gente na nossa insigni-
beira do rio (Ailton Krenak - O Amigo ficância intelectual vai abordar uma
do rei, 2019, 50’, grifo nosso). coisa tão complexa, entendeu? Aí a
gente tenta simplificar para poder
Para o povo Krenak, o rio é sagra- começar a entender. Essas fronteiras
do. É uma outra cosmovisão que se que a gente cria, a gente tem que ter
apresenta, nem Descartes, nem Odum, consciência, a gente criou ela. Para
uma cosmovisão ameríndia. Para eles, um determinado momento se decidir
a água do rio é “viva e é vida” (Deja- e romper essas fronteiras, né? (Dante
nira Krenak, Aldeia de Resplendor - O Pavan - Biólogo, 1h39’).
Amigo do rei, 2019, 51’). Porque a questão ambiental é trans-
A ecologia apresentada por Odum versal [...] a gente não pode tratar ela
pode ser vista no filme em várias pas- isoladamente (Ricardo Ribeiro Rodri-
sagens. Seja no discurso dos pescado- gues, USP, 1h40’).
res, que descrevem a diminuição dos
peixes tanto, ao longo do amargo rio Fora dessa cosmovisão apenas fica o
Doce, quanto na passagem para o li- choro, a raiva, as lutas, as músicas, as
toral, que teve como ponto de diluição tradições, a praça, a Emanuele - agora
a Vila de Regência, no Espírito Santo. estampada na camisa da avó, a iden-
Nesse momento, o debate ecossistê- tidade cultural, o álbum de casamento
mico levantado por Odum fica claro e que ficou debaixo da lama, o sepulta-
evidente. Peixes, ostras, siris, pescado- mento da história e o desespero das
res, todos interligados. pessoas atingidas pela lama. Esse fato
Alguns cientistas tecem comentário, demonstra a limitação da cosmovisão
ao longo do filme, sobre as limitações ocidental, pois, mesmo quando tenta
do método científico preconizado por integrar-se à natureza, como é o caso
Descartes e ressignificado a partir de de Odum em relação a Descartes, dei-
abordagens neopositivistas: xa de fora muito do que é necessário
à vida. Como forma representacional,
O nosso método de conhecimento destacamos a fala de uma moradora,
não dá conta de interpretar o mun- gravada em uma Audiência Pública,
do como ele é, transdisciplinar. É um que conclama por justiça:
mundo complexo, em que todas as
coisas estão interligadas. [...] Pela Como trabalhadores e como mo-
água eu posso fazer uma leitura do radores dessa cidade, a gente não
grau de desenvolvimento, espiritual pode aceitar, qualquer coisa. A gen-
e cultural daquela sociedade (Apolo te não pode passar um cheque em

367
branco para a empresa, porque a e cuidados médicos. Márcio relata que
empresa quer se salvar. Ainda que os técnicos, os agentes e os xamãs tra-
isso represente o fim da natureza, do balham juntos (24’38”). Segundo ele,
meio ambiente, de um rio inteiro, de se os Yanomami não traduzirem sua
uma fauna, flora, de pessoas, casas, língua, os brancos não entendem o que
de uma cidade inteira, de vilas intei- devem fazer. Essas visitas são neces-
ras (Moradora de Mariana (MG) em sárias, uma vez que o contato entre in-
uma Audiência Pública - O Amigo do dígenas e brancos sempre trouxe inú-
rei, 2019, 1h17’, grifo nosso). meras doenças para os primeiros. “O
que chamamos de xawara são o sa-
As duas cosmovisões no filme Como rampo, a gripe, a malária, a tuberculo-
fotografei os Yanomami se e todas as doenças de brancos que
nos matam para devorar nossa carne”
Nesta seção, pensaremos como as (KOPENAWA; ALBERT, 2016. p. 366).
duas cosmovisões em que estamos São doenças que as curas tradicio-
trabalhando aparecem no filme Como nais não podem curar, uma vez que
fotografei os Yanomami (Otavio Cury, lhes são exteriores. “A xawara é muito
2018). difícil de combater, porque é rastro de
O filme nos apresenta a questão da outras gentes. Ela não vem da nossa
saúde indígena, numa aldeia Yano- floresta” (Ibid. p 369). Se não tivesse
mami, observada de pontos de vista havido encontro, não haveria essas
distintos: dos agentes de saúde, en- doenças e a necessidade dos enfer-
fermeiros e técnicos de enfermagem, meiros. É importante marcar que os
assim como a entrevista de um Yano- indígenas necessitam dos enfermeiros,
mami, Márcio, que é agende de saúde porque foram submetidos ao contato
de sua etnia desde 2004. Além disso, com os brancos. Segundo Kopenawa,
podemos observar, a partir de um re- são as fumaças de epidemia xawa-
gistro documental, a inauguração do ra, vinda dos brancos, que causam as
primeiro posto de saúde indígena em doenças.
terras Yanomami.
Márcio declara que: “Assim eu que- É acompanhando os objetos dos
ro falar: lá na minha floresta é fria, lá brancos que acabam vindo se insta-
não tem epidemia. Aqui na cidade tem lar em nossas casas, como convida-
gripes, diarreia e epidemias, é assim. dos invisíveis. De modo que, para nós,
Eu não tenho vontade de ficar na cida- as mercadorias têm valor de epide-
de, eu venho rapidamente para fazer mia xawara. É por isso que as doen-
umas compras e volto logo” (19’02”). ças sempre as seguem (Ibid. p. 368).
“Eu gosto mesmo é da minha floresta
saudável, eu moro perto das raízes das Mesmo centrado na questão da saú-
árvores, lá eu me sinto bem” (19’38”). de, o nome do filme é o que aponta
Verificamos que muitas etnias in- para o assunto de nosso debate. Em
dígenas têm que receber a visita de Como fotografei os Yanomami, as ima-
enfermeiros, para obter medicamentos gens dos Yanomami são, para nós, o

368
tema central, porque, para os grupos uma conversa e acordo sobre a apro-
Yanomami, em sua grande maioria, priação daquelas imagens, pois isso
as imagens das pessoas não devem o filme não nos apresenta elementos
ser registradas em fotos ou câmeras para chegar a conclusões. A impressão
que as gravem para a eternidade. Esse que o espectador tem é a de uma fil-
tema é apresentado várias vezes ao magem sem autorização, que ignora
longo do filme. e, de certa forma, fere o entendimento
Uma técnica de enfermagem en- que os Yanomami têm sobre sua pró-
trevistada nos relata que, quando pria imagem.
um Yanomami morre, por exemplo, A partir do minuto 46, Márcio ex-
não se usa e nem se fala mais o seu plica com detalhes o entendimento Ya-
nome (37’57”). Outro técnico explica nomami sobre a captura de imagens. E
que aquela pessoa não deve ser mais inclusive diz ao entrevistador:
lembrada, pois isso traz muitos so-
frimentos ao grupo (39’05”). Assim, É assim que nós Yanomami pensa-
as imagens eternizadas, em fotos ou mos, quando um não indígena pega
filmagens, mantêm viva na aldeia a nossa imagem, a imagem de uma
memória da pessoa morta, e isso não criança ou de uma pessoa idosa.
é visto de maneira positiva. A pergun- Assim como vocês estão fazendo,
ta sobre como um cineasta filmou um pegando a nossa imagem. Quando
grupo Yanomami é uma pergunta in- morrermos nossa imagem continua-
teressante, mas que infelizmente não rá, quando morrermos a nossa ima-
aparece respondida no filme, o que gem não acabará (46’05’’).
nos causou certo desconforto. Nós Yanomami não somos iguais
Embora o filme se sustente em a vocês, não indígenas. Quando
uma narrativa de denúncia das condi- uma pessoa morre, nós não ficamos
ções de saúde dos Yanomami, a análi- olhando a sua imagem. Não gos-
se que propomos aqui destaca o visível tamos de ver a imagem dos mortos
confronto entre cosmovisões, no qual o (46’41”).
pensamento ocidental, não indígena, As imagens que vocês pegam não
materializado, sobretudo, nas mãos de acabam, elas permanecem e isso é
quem segura a câmera, sobrepõe-se. ruim, isso nos faz sofrer. Por isso não
Pensamos que, ao fotografar os Yano- queremos que vocês peguem nossas
mami, sem nos explicar como o fez, o imagens (47’14”).
diretor incorre no erro de colocar sua
cosmovisão como dominante. Após esse relato, a câmera dá um
No momento 41’43”, a câmera filma close demorado em Márcio, que apa-
uma criança e uma mulher adulta na renta estar constrangido (48’30”). Qual
aldeia. Ao perceberem que estão sen- é o significado desse close? Que o dire-
do filmados à revelia, apontam para a tor quer nos mostrar capturando aque-
câmera, mas, mesmo assim, a câmera la imagem daquela forma? Diante da
continua filmando-os. Que isso nos dá problemática que o próprio filme nos
a entender? Não sabemos se houve apresenta, qual é o sentido da captura

369
das imagens dessa maneira? Essa abissal, que ignora, apaga e extermina
cena termina com um indígena filman- não apenas o conhecimento de outras
do a câmera que o filma em resposta, culturas, mas as próprias pessoas de
como quem diz que também tem a outras culturas, em um processo de
imagem daqueles que os filmaram. genocídio e epistemicídio (GROSFO-
Para nós, o filme apresenta-nos o GEL, 2016), faz-se, a partir do momen-
olhar da pessoa que não foi capaz de to em que o ocidente, a ciência e a
respeitar outras cosmovisões. Será que universidade apresentam, para outras
isso se deu pela dificuldade que temos cosmovisões e não mais se consideram
em aceitar outras compreensões da como a única detentora do princípio de
realidade para além da nossa? Se, por realidade.
um lado, o diretor do documentário Para concluir, deixamos alguns
explicita nas falas dos agentes de saú- questionamentos: Que seria um mé-
de suas dificuldades de relação com a todo racional de conhecimento da
cultura Yanomami, por outro, o próprio natureza?
diretor faz o mesmo, ao deixar suas Perguntando de outra maneira,
escolhas e planos de câmera explica- quando os xamãs Yanomami tomam
rem a maneira pela qual fotografou os yãcoana para alimentarem os xapiri
Yanomami. Será que ele não acredita e assim conhecer os seres da floresta,
no que os Yanomami lhe dizem sobre não é um método racional?
as imagens? Esse tipo de postura está Cabe perguntar: que é a razão?
presente nos métodos tradicionais de Somente são dotados de raciona-
se fazer ciência? lidade aqueles que o ocidente definiu
como tal?
Considerações finais Se chegarmos à conclusão de que as
formas de conhecimento, aqui apre-
A filosofia que está na base da ci- sentadas, são incomensuráveis, a que
ência moderna separa ser humano e conclusão podemos chegar?
natureza e entende que aquele deve Em nossa visão, essas questões tra-
dominar esta. Odum entende que essa zem um falso problema, ou apenas um
compreensão é um dos obstáculos a problema para a epistemologia oci-
serem superados pela ecologia. Ao dental. Afinal, por que deve haver uma
mesmo tempo, vemos que uma cos- só e única forma de compreender a re-
movisão indígena e mais antiga que alidade? Esse desejo de unidade é um
a cartesiana já postulava essa união desejo ocidental que, ao se autodecla-
e pensava a natureza de forma inte- rar dono da verdade, gerou enormes
grada. Cabe a nós, “sujeitos embran- prejuízos a todas as demais culturas
quecidos historicamente”, então, em do mundo. Vimos também que seus
vez de achar que a universidade e o princípios filosóficos estão refutados
conhecimento ocidental têm tudo a até mesmo pela própria ciência produ-
explicar ao mundo, entendermos que zida pelo ocidente que, agora, busca
outras cosmovisões têm muito a nos de todas as maneiras uma forma de
ensinar. A superação do pensamento reparar todo o estrago socioambiental

370
que essa civilização já fez. Entendemos
a cosmovisão Yanomami, mas muitas BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria
outras não ocidentais, como formas no 2.914 de 12 de dezembro de 2011.
de o ocidente oferecer sua perspectiva
epistemológica e sair do autocentra- BRASIL, A. Ver por meio do invisível:
mento em que se encontra. Vemos a O cinema como tradução xamânica.
saída desse autocentramento como a Revista Novos Estudos. CEBRAP, São
única forma ética, científica e filosófica Paulo, v. 35, n. 3, p. 125-146, 2016
possível, para uma resolução aceitável, DOI: https://doi.org/10.25091/
não só das questões ambientais, mas s0101-3300201600030007
também éticas e políticas do mun-
do contemporâneo. Note que não se CHIAPPIN, J. R. N. A concepção
trata de negar a ciência. É claro que metafísica de Descartes da ciência
não! Trata-se de ampliar o conceito de e da representação mecanicista da
universal para o pluriversal111, em que natureza. Revista Discurso, n. 43, 2013.
outras versões da vida e da natureza DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2318-
possam conviver. O desejo por unidade 8863.discurso.2013.84729
é sempre totalitário. É preciso repensar
o conceito de verdade, e o estudo da COSTA, R. N.; LOUREIRO, R. Estética
ideia de natureza, em outras cosmo- freiriana no filme “O amigo do rei”, de
visões não ocidentais, pode ajudar os André D`Elia: notas para se pensar
ocidentais a serem mais tolerantes, um cinema crítico e libertador. Avanca
éticos e menos arrogantes. Afinal, em Cinema International Conference.
assuntos de natureza, os Yanomami Edições Cine-Clube de Avanca, 2020.
estão certos em relação a Descartes e
são anteriores a Odum. DESCARTES, R. Discurso do método.
São Paulo. Martins Fontes, 1996.
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Autónoma de México, México, vol. 32, 2520-5927.
n. 1, 1995, p. 209-240.
DOI: http://dx.doi.org/10.22201/ GROSFOGUEL, R. A estrutura do
iia.24486221e.1995.1.349 conhecimento nas universidades
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BRASIL. Conselho Nacional do Meio epistêmico e os quatro genocídios/
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371
2016. Disponível em: https://periodicos.
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view/6078>. Acesso em: 22 abr. 2020.

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Ensaio sobre a análise fílmica. 7a ed.
Campinas, São Paulo: Papirus Editora,
2012.

Filmografia

SER Tão Velho Cerrado. Direção de


André D’Elia. Rio de Janeiro: 2018 (96
min.).

O AMIGO do Rei. Direção de André


D’Elia. Rio de Janeiro: 2019 (142 min.).

COMO fotografei os Yanomami.


Direção de Otavio Cury. São Paulo:
2018 (72 min.).

372
NOTAS

Capitulo 16

101 Uma análise mais profunda sobre o filme O Amigo do Rei (André
D’Elia, 2019) foi publicada no Avanca Cinema International Conference
(COSTA e LOUREIRO, 202o). Neste capítulo, resgatamos trechos desta
publicação.

102 Grifo nosso.

103 Brasil (2016), analisa obras de diferentes coletivos indígenas no


Brasil, em especial, o projeto Vídeo nas Aldeias e busca responder à seguinte
questão: como o cinema pode assumir aspectos de um modo xamânico de
conhecimento e tradução?

104 Palavra usada por Kopenawa para traduzir em linguagem de brancos


sua cosmovisão.

105 Entidades xamânicas.

106 Sobre o conceito de epistemicídio, assim como a relação das


universidades com esse e com os genocídios de povos não ocidentais, ver
Grosfoguel (2016).

107 Omama é o deus criador do mundo na cosmovisão Yanomami.

373
08 Para saber mais sobre o ecossistema, consulte SILVA (1997).

109 Sobre a estratégia de “passar a boiada”, ler FERREIRA, COSTA,


LOUREIRO (2020).

110 Resultado do termo de compromisso celebrado nos autos do


Inquérito Civil no 0024.11.006422-7.

374
Educomunicação e emergência
climática: o imaginário quilombola
em tempos de resistência
Thiago Cury Luiz
Michèle Sato

1 7.
Introdução

O funcionamento climático do planeta sempre apresentou, de tempos em


tempos, oscilações entre períodos históricos de temperaturas mais baixas e in-
tervalos mais quentes. Esta lógica natural do clima vigorou até a revolução in-
dustrial, implementada em meados do século XVIII, quando a interferência do ser
humano no ambiente adquiriu requintes mais agressivos, aprofundando os da-
nos socioambientais já em curso.
Dessa maneira, o elemento antrópico passou a ditar o ritmo das mudanças
climáticas, atualmente mais imprevisíveis e de amplitude global. As alternâncias,
além da causa humana, não respeitam mais qualquer lógica espaço-temporal.
“Até 1850, 97% do tempo aferido tinham pelo menos 10% do mundo experimen-
tando temperaturas acima da média e 10% do mundo experimentando tempe-
raturas abaixo da média”. (NEUKON et al, 2019, p. 1, tradução nossa).

É certo que a média global da temperatura do ar na superfície terrestre (TAST) au-


mentou mais rapidamente do que a temperatura média global da superfície (isto
é, TAST + temperatura da superfície do mar) do pré-industrial (1850 a 1900) até os
dias atuais (1999 a 2018). De acordo com o conjunto de dados mais longo e mais
extenso, o aumento do TAST entre o período pré-industrial e os dias atuais foi de
1,52°C (o intervalo muito provável de 1,39°C a 1,66°C). No período de 1880 a 2018,
quando existem quatro conjuntos de dados produzidos independentemente, o au-
mento do TAST foi de 1,41°C (1,31°C a 1,51°C), onde o intervalo representa o spread

376
nas estimativas medianas dos con- Ao falarmos de injustiça, podemos
juntos de dados. (IPCC, 2019, p. 3, tra- entender a crise climática não como
dução nossa). um fenômeno natural, uma fatali-
dade que atingirá indiferente e ine-
É importante ponderar que a xoravelmente na mesma proporção
humanidade é heterogênea e, sendo a todos. Na crise climática mundial
desigual, contribui em diferentes me- operam mecanismos sociopolíticos
didas para o aprofundamento da crise que destinam a maior carga dos da-
climática. Em meio a esta lógica de nos produzidos pelas mudanças do
desigualdades, destacamos que co- clima a populações de baixa renda,
munidades tradicionais, como quilom- segmentos raciais discriminados,
bolas e povos indígenas, não se con- parcelas marginalizadas e mais vul-
figuram como agrupamentos ligados neráveis da cidadania. (LEROY, 2009,
aos modos de exploração capitalista p. 1).
da natureza.
O cenário que se apresenta afeta em Nesta conjuntura, a alternativa
movimento único toda a humanidade. encontrada para debater a realidade
Não há, portanto, isenção no pedágio de uma comunidade em situação de
da emergência climática. No entanto, vulnerabilidade, como Mata Cavalo, e
a crise em andamento impactará mais propor táticas de resistência foi pelo
fortemente os grupos sociais em situ- itinerário da educação popular. Para
ação de vulnerabilidade, quais sejam: além do currículo obrigatório e dos re-
pantaneiros, ribeirinhos, favelados, po- quisitos formais estabelecidos pela bu-
pulação de rua, indígenas, migrantes rocracia política, compreendemos que
e quilombolas. Por isso, é sobre essas a troca de saberes pode catapultar
comunidades que os cuidados devem propostas que integrem as reflexões
se redobrar, e este capítulo se reserva teóricas e as necessidades mais pre-
a expor o cenário de colapso do clima mentes de uma comunidade quilom-
no quilombo Mata Cavalo. bola cravada no centro do continente
A tendência inevitável de es- sul-americano.
garçamento na relação entre vida e Mediados por Paulo Freire (2014;
clima é mais acirrada quanto menor 2018), pesquisadores e participantes
for a capacidade econômica do grupo sufragaram um modo de produzir co-
em questão. Isso significa, em termos nhecimento à revelia dos materiais
mais diretos, que a população mais didáticos e da lógica da sala de aula.
rica mitigará de forma eficaz e longeva Compreendendo que toda forma de
os efeitos da crise climática, que não educação tem algo a ensinar, debru-
deixa de ser também civilizatória. Ao çamo-nos sobre outros espaços da es-
fenômeno de desigualdade no enfren- cola e do próprio quilombo, mais aco-
tamento desse colapso dá-se o nome lhedores e identificados com a história
de “justiça climática”. e a causa de um povo tradicional. Sem
assento reservado para quem ensina
e quem aprende, todos aprendem e

377
ensinam em comunhão. “A autono- estruturais e conjunturais dos proble-
mia, enquanto amadurecimento do ser mas ambientais. (SORRENTINO et al,
para si, é processo, é vir a ser”. (FREI- 2005, p. 4-5).
RE, 2018, p. 105).
Se para Soares (2014, p. 81) “é im-
Se, na verdade, o sonho que nos ani- portante saber inserir valores demo-
ma é democrático e solidário, não é cráticos de gestão e associar essa
falando aos outros, de cima para bai- educomunicação ao campo da Edu-
xo, sobretudo, como se fôssemos os cação Ambiental”, o nosso trabalho foi
portadores da verdade a ser transmi- antecedido pela escolha metodológica
tida aos demais, que aprendemos a e dos recursos de coleta de informa-
escutar, mas é escutando que apren- ções que potencializassem a inter-
demos a falar com eles. (FREIRE, secção entre Educação Ambiental e
2018, p. 111 – grifo do autor). Educomunicação.
Desse modo, este texto tem como
Por fim, lançando mão da interface objetivo apresentar uma fração de
Educação e Comunicação, envereda- uma pesquisa no escopo de inves-
mo-nos pelo vasto campo da Educo- tigações da Rede Internacional de
municação Socioambiental (SOARES, Pesquisadores em Justiça Climática e
2014). Partindo do princípio de que o Educação Ambiental (Reaja), proposta
ecossistema comunicacional preconi- financiada pela Fundação de Amparo
zado na ambiência escolar pressupõe à Pesquisa do Estado de Mato Grosso
atuação em conjunto, fundamento da (Fapemat), coordenada pelo Grupo
pedagogia freireana, a Educação Am- Pesquisador em Educação Ambiental,
biental encontra refúgio na Educomu- Comunicação e Arte (GPEA), envolven-
nicação para ampliar as suas táticas do 17 entidades de 5 países, a maioria
de alavancar políticas públicas que universidades.
tratem com zelo os mais necessitados. Estamos propondo a desnudar, por
meio da produção fotojornalística de
A educação ambiental nasce como estudantes da educação básica da
um processo educativo que conduz Escola Estadual Professora Tereza
a um saber ambiental materializado Conceição de Arruda, o imaginário qui-
nos valores éticos e nas regras políti- lombola acerca dos quatro elementos
cas de convívio social e de mercado, da natureza (água, terra, fogo e ar), em
que implica a questão distributiva manifestações de resistência à crise
entre benefícios e prejuízos da apro- climática que assola uma população
priação e do uso da natureza. Ela em situação de vulnerabilidade. A ins-
deve, portanto, ser direcionada para tituição de ensino, cravada na comuni-
a cidadania ativa considerando seu dade quilombola Mata Cavalo, quase
sentido de pertencimento e corres- não faz fronteira com os habitantes da
ponsabilidade que, por meio da ação comunidade. Há uma integração forte
coletiva e organizada, busca a com- e presença dos moradores na escola
preensão e a superação das causas que está localizada na zona rural de

378
Nossa Senhora do Livramento, municí- sem ambivalência, não há ambivalên-
pio situado a 50 quilômetros da capital cia sem devaneio”. (BACHELARD, 1997,
de Mato Grosso, Cuiabá. p. 109).
O vetor empírico da pesquisa arti- Com isso, entende-se que o conhe-
culado aos marcos epistemológicos, à cimento não é algo dado e tampouco
apresentação dos resultados e as in- portador de via única. Condiciona-
terpretações que ousamos em nossas do ao repertório de quem observa o
inferências tem a fenomenologia de elemento que se busca conhecer, a
Gaston Bachelard e a Cartografia do interpretação a ser dada oscila entre
Imaginário (Sato, 2011), como fios con- um arcabouço maior ou menor. Nesse
dutores metodológicos. O corpus da sentido, explica-se o termo fenomeno-
pesquisa dispõe de um arcabouço de logia: na impossibilidade de se definir,
mais de mil imagens registradas pelos de forma única e estanque, o que é
estudantes, só sendo possível neste buscado na investigação, prevalece
texto disponibilizar uma pequena par- o fenômeno, a compreensão em um
te do seu legado. dado instante e lugar.
Qualquer um dos elementos naturais
Imaginação e imaginário: cartografias pode ser entendido sob a complexida-
e onirismo poético no percurso de de antagonismos que remontam
quilombola às suas características. A água, por
exemplo, contém o sentido de vida e
A metodologia escolhida para con- morte, uma vez que vive a caminhar na
duzir o estudo apropria-se da filosofia direção dos oceanos, aos quais todos
onírica de Gaston Bachelard (1997; os desfechos rumam (BACHELARD,
2001; 2008; 2013). O pensador francês 1997). O ar, invisível, pode ser sentido
propõe uma fenomenologia dos quatro pela brisa que movimenta corpos em
elementos da natureza. Por meio deles vaivém e, ao mesmo tempo, contrace-
e em articulação com uma vertente na suas nuvens com a dureza da terra
artística, desnuda em metáforas o ca- ornamentada em montanhas (BACHE-
minho percorrido pela nossa existência LARD, 2001). A terra, resistente em pe-
para se chegar ao conhecimento. dra, com o auxílio da água pode mol-
Se no âmbito da Educação Ambien- dar novas formas, fazendo renascer
tal definimos água, terra, fogo e ar em (BACHELARD, 2013). Por fim, a trans-
suas aparições e sensações a priori, formação pode ser situada também no
Bachelard recorre à linguagem figu- fogo, que cessa uma existência para
rativa para ilustrar as idas e vindas da originar outra em seu lugar. “Quando
inteligência no processo de desvela- se quer que tudo mude, chama-se o
mento do objeto cognoscível. Com isso, fogo”. (BACHELARD, 2008, p. 86).
é possível notar que a consolidação do A fenomenologia bachelardiana foi
conhecimento se estabelece sob a tu- catalisada pela Cartografia do Imagi-
tela de ambivalências, grandezas que nário (SATO, 2011), em uma tentativa
se alternam entre contradições e com- bem-sucedida de fazer da metodolo-
plementariedades. “Não há devaneio gia o ponto alto da pesquisa. Assim,

379
mais relevante do que o resultado pro- fotojornalismo trouxe a evolução histó-
movido pela investigação, o caminhar rica da fotografia, as principais técni-
em conceitos e afetos, sabendo que cas de enquadramento (ângulos e pla-
todos os participantes aprendem e en- nos), o manuseio do dispositivo móvel
sinam, permite experimentar vivências para registro, tudo isso vinculado às
que vão além dos pragmatismos da questões históricas, culturais e climáti-
ciência cartesiana. cas do quilombo.
Assim, visando a um entendimento Posteriormente às cartografias e já
a respeito da rede de agentes e inte- com a produção midiática em curso,
rações que formatam o todo, “é pre- realizamos as entrevistas com dez es-
ciso considerar também a cartografia tudantes dos ensinos fundamental e
simbólica que nos instiga a pensar médio da Escola Estadual Professora
em sujeitos sociais, construindo suas Tereza Conceição de Arruda, grupo
identidades em reciprocidade com as com idade entre 13 e 17 anos. Respei-
outras coisas que compõem o cosmo”. tando o sigilo imposto pelo Comitê de
(PALMA, 2011, p. 17). Ética em Pesquisa, os entrevistados fo-
As “Cartografias”, nome atribu- ram identificados pelo nome de redes
ído às formações que o Gpea realizou sociais e aplicativos de mensagens:
junto à comunidade de Mata Cavalo, Face, Insta, Whats, Telegram, Twitter,
remetem a uma caminhada de idas e Spotify, Blogger, Youtube, Messenger e
vindas, como preconiza a fenomeno- Snapchat.
logia de Bachelard, confirmando que
o sentido não é único, nem o significa- Na mira do obturador: Mata Cavalo
do, invariável: ele se dá em um dado resiste em imagens e imaginários
tempo e espaço. Daí o termo “imagi-
nário”, que invoca as impressões que Tendo como anseio registrar os
temos sobre aquilo que interpretamos, efeitos da emergência climática em
chanceladas pelas ambivalências que Mata Cavalo, em articulação com a
são próprias do onirismo. “[...] na car- abordagem bachelardiana dos quatro
tografia do imaginário, entretanto, o elementos (água, terra, fogo e ar), as
que talvez importe não seja o destino fotografias apresentaram apuro técni-
final, mas a rota e a viagem realizada co, além de caráter jornalístico: a ima-
nos percalços de uma longa viagem. gem não tem intuito decorativo, ela
(SATO, 2011, p. 4-5). informa. Não é o ato de tirar uma foto
Quanto aos procedimentos para despretensiosa, mas pressupõe uma
a obtenção de informações, foram perspectiva crítica antes de acionar a
duas as escolhas: cartografia e entre- câmera.
vistas. A cartografia não é compreen- Imagens que retratam a terra112 e
dida como oficina, pois a abordagem as belezas do quilombo foram muito
artística veio acompanhada de co- recorrentes e até superaram os regis-
nhecimento teórico e reflexão sobre tros que apresentaram os problemas
as produções que surgiram durante de Mata Cavalo. As flores e, especi-
os encontros. Assim, a cartografia de ficamente, o chão onde se pisa são

380
elementos do cotidiano quilombola
valorizados e, por isso, contidos no
imaginário dos estudantes da Escola
Estadual Professora Tereza Conceição
de Arruda nos momentos em que re-
portaram a realidade em que vivem.

A imagem só existe para ser vista,


por um espectador historicamente
definido (isto é, que dispõe de certos
dispositivos de imagens), e até as
imagens mais automáticas, as das
câmeras de vigilância, por exemplo,
são produzidas de maneira delibe-
rada, calculada, para certos efeitos
sociais. Pode-se pois perguntar a
priori se, em tudo isso, a imagem tem
alguma parte que lhe seja própria:
será tudo, na imagem, produzido,
pensado e recebido como momento
em um ato – social, comunicacional,
expressivo, artístico etc.? (AUMONT,
2012, p. 205 – grifo do autor).

Compreendemos que a terra, como


apontou Bachelard (2013), é um ele-
mento cujo atributo destacável é a
resistência. De igual modo, o povo
quilombola tem na terra propriamen-
te o seu refúgio, uma vez que não são
proprietários dela, e sim a ela perten-
cem. O trabalho, a renda e o sustento
dependem do que plantam, cultivam
e colhem ali, comportando-se em uma
quase imanência com o solo.
Outro fator que inferimos dos vín-
culos entre quilombolas e matéria é a
relação com a questão fundiária. Des-
de que herdaram o território de Ana
da Silva Tavares, em fins do século XIX,
no período em que ainda vigorava a
escravidão, os membros da comuni-
Figura 1 – regra dos terços
dade não conseguem garantir a posse
Imagem registrada por Whats

381
da terra, sofrendo com a burocracia, a
morosidade dos trâmites e a violência
dos fazendeiros.
Uma dessas ocorrências, em outubro
de 2017, foi acompanhada por nós em
uma ordem de despejo que beneficia-
va um dos fazendeiros da região. As
nove casas de palha e uma de alvena-
ria foram postas abaixo pelos funcio-
nários da propriedade, que contaram
com a escolta de um oficial de justiça e
da polícia federal. No dia seguinte, em
liminar vencida, os quilombolas recu-
peraram o seu território, mas morar lá,
agora, dependia da reconstrução de
casas e sonhos.
A mesma terra que enseja for-
ça e pertencimento é vítima também,
amalgamada com outro elemento, a
água, da emergência climática. Mato
Grosso é caracterizado por um inverno
seco, com pouca chuva nos meses de
abril a setembro, enquanto de outu-
bro a março a quantidade de água é
grande. Fora isso, há a desregulação
nos índices de calor e de chuva, ge-
rando transtornos e dificuldades para
pessoas que vivem no campo, sem as-
faltamento das suas principais vias de
acesso dentro do quilombo e à rodovia.

O aquecimento do planeta pode in-


tensificar eventos climáticos, como
secas, furacões, enchentes e tempes-
tades, elevar os níveis dos oceanos,
alterar o regime de chuvas e, assim,
impactar a agricultura, as ocupações
urbanas, o uso dos recursos hídricos,
a matriz energética, causando inco-
mensuráveis prejuízos econômicos e
sociais. (KLINK, 2013, p. 6).
Figura 2 – ângulo normal

Figura 3 – ângulo normal

Imagem registrada por Face

382
Houve concordância entre os entre- as fotos, os vídeos que a gente ela-
vistados quanto à validade dos regis- borou, texto, também vão trazer mais
tros em informar as pessoas de fora dentro da realidade do que a mídia
sobre as condições enfrentadas pelo apresenta.
quilombo em tempos de colapso cli- (depoimento concedido por Whats)
mático. Embora, como se vê nos dois
depoimentos a seguir, há quem opine As falas anteriores confirmam a
na direção de que as mídias podem Educomunicação como caminho viável
dar uma noção do que acontece no à Educação Ambiental. Se a tecnolo-
quilombo, mas a certeza dos parâme- gia, irredutível, é fruto de uma dada
tros que circundam a comunidade só cultura, acaba também por redundar
tem quem está lá. em novas formas de relação social.
Neste enredo de convergência mi-
Podemos criar um site com as fotos diática (JENKINS, 2009), a cultura
mostrando o que tem de melhor na participativa (JENKINS, 2009) e a in-
comunidade. Muitos não conhecem. teligência coletiva (LÉVY, 2015) ditam
Mesmo vivendo dentro de Mato os protocolos interpessoais. Conforme
Grosso, várias pessoas não conhe- Soares (2014, p. 17), em definição que
cem uma comunidade quilombola. dialoga com a proposta empreendida
Imagina criar uma história aqui, en- nesta pesquisa, educomunicação é:
volvendo a comunidade, a passagem
dos cavalos... Ou mesmo a fugida dos [...] uma comunicação essencialmente
escravos que os patrões prendiam. dialógica e participativa, no espaço
Aquele rio [Mata Cavalo] retratou e do ecossistema comunicativo escolar,
retrata muita coisa para mim. mediada pela gestão compartilha-
(depoimento concedido por Telegram) da (professor/aluno/comunidade
escolar) dos recursos e processos da
Quando se trata de quilombo nas informação, contribui essencialmente
redes sociais, na mídia, na televisão, para a prática educativa, cuja espe-
todo mundo tem uma visão total- cificidade é o aumento imediato do
mente diferente. Eu acho que o que grau de motivação por parte dos es-
a gente capturou está mais dentro tudantes, e para o adequado relacio-
da realidade do que eles transmitem namento do convívio professor/aluno,
hoje em dia nas televisões. Então, eu maximizando as possibilidades de
acho que eles teriam uma boa no- aprendizagem, de tomada de consci-
ção, mas para a pessoa realmente ência e de mobilização para ação.
saber... Meus avós são daqui, eles
falavam muito daqui, mas eu nunca É neste contexto que se dá a educo-
tinha visto. Eu vi foto, mas eu não ti- municação e foi com essa concepção
nha noção. Quando eu cheguei aqui, que interagimos a nossa subjetividade
a realidade era totalmente outra. Eu com as subjetividades do quilombo,
acho que para a pessoa realmente sempre no anseio de respeitar o que
conhecer, ela teria que vir aqui. Mas com elas aprendemos. O ser-mais

383
freireano (FREIRE, 2014) esteve em vulnerabilidade, razão pela qual essa
voga em Mata Cavalo nas formações questão foi evidente no imaginário
que lá fizemos e recebemos, pois se a quilombola durante a cartografia da
educomunicação socioambiental bus- água.
ca o favorecimento e a otimização da
organização social (SOARES, 2014), é [...] não se pode perder de vista que o
papel dela respeitar e favorecer “a au- padrão atual de cidades dos países
tonomia das identidades individuais e ricos é a soma histórica dos proces-
coletivas, no contexto das comunida- sos de colonização, espoliação e di-
des tradicionais e indígenas”. (SOARES, lapidação daquilo que era a riqueza
2014, p. 79). e modo de vida das populações ori-
Em face das alterações do clima, o ginárias e de seus territórios. Assim,
olhar crítico sobre a própria realidade as alternativas desejadas para o
também se materializou em registros, enfrentamento das mudanças climá-
como as duas fotos anteriores (Figuras ticas é igualmente a oportunidade
2 e 3). Entendemos que expor a situ- para se fazer justiça climática com
ação em que vivem é uma forma de senso e metas de equidade entre pa-
situar as pessoas que não conhecem drões desiguais de vida. Os ricos não
o contexto de Mata Cavalo e ainda podem continuar consumindo com
agendar junto ao poder público as me- tamanha voracidade, assim como os
didas que devem ser tomadas para so- pobres não podem ser preteridos do
lucionar as deficiências presentes onde acesso a bens e serviços urbanos que
vivem. os levem a um patamar de cidadania
No mundo calcado no capitalismo e equidade. (SILVA, 2011, p. 17).
como força-motriz econômica, esse
tipo de ocorrência será comum e, por Outro problema vinculado à ter-
consequência, limitadora das comu- ra, mas não causado por ela, são as
nidades em cenário de risco, configu- queimadas (Figuras 4 e 5, a seguir).
rando o que se denomina de injustiça Foi recorrente nos depoimentos dos
climática, e aprofundando-a. A lógica estudantes, pelas experiências que ti-
vigente subverte a natureza em bene- veram e pela vivência em Mata Cava-
fício próprio e esboça um cenário in- lo, a menção ao fogo como elemento
sustentável ao funcionamento da vida nocivo no quilombo. Por estar situado
no planeta, tamanhas são as agres- em uma zona rural, os incêndios fazem
sões desferidas ao arcabouço natural parte do cotidiano quilombola, sendo
de que o mundo dispõe. muitos deles criminosos e potenciali-
Um atoleiro não faz parte do dia zados pela seca entre abril e setembro.
a dia de quem vive nas cidades, mas Segundo Bachelard (2008, p. 21), “o
ele é um obstáculo bastante presente incendiário é o mais dissimulado dos
nas comunidades rurais e tende a ser criminosos”.
mais constante no contexto do co-
lapso climático, pois atinge mais for- Vendo por foto, vídeo, a pessoa pode
temente populações em situação de ter uma base do que a gente passa.

384
Quando tem a seca, vem o fogo,
pega fogo em casa também. Muitos
moradores aqui têm casa feita de
tábua, de palha. Mas muitas pessoas
são unidas aqui dentro da comunida-
de. Pode nunca ter visto na vida, mas
acaba doando alguma coisa.
(depoimento concedido por Insta)

Interpretamos que o fogo113 é rela-


cionado a problema, especialmente na
visão de jovens, pois ele protagoniza
poluição do ar e gera doenças respi-
ratórias. Sendo assim, mais uma difi-
culdade está colocada à comunidade
quilombola: o acesso ao atendimento
de saúde. Todos os participantes da
pesquisa mencionaram o fogo como
um dos problemas de Mata Cavalo e,
para a maioria, o maior desafio a ser
enfrentado. Contraditoriamente, foram
poucos os registros sobre o evento,
podendo denotar já uma certa rotina,
a ponto de não valer a pena veicular
algo ordinário.
As queimadas, que saltaram expo-
nencialmente no país durante a estia-
gem de 2019, tiveram como elemento
propulsor não apenas a falta de chuva,
mas também o discurso presidencial
encorajando os maus tratos ao meio
ambiente, especialmente no campo.
O desmantelamento do Ibama e do
ICMBio114, a liberação de um número
recorde de agrotóxicos e a retórica
agressiva a indígenas e quilombolas
legitimam as regressões ambientais do
Brasil atual.
Por outro lado, o fogo também pa-
rece ter um lado positivo, naquilo que
Bachelard define como “sublimação
Figura 4 – ângulo normal
dialética” (2008, p. 149) ou “viagem
Figura 5 – ângulo normal
extrema” (2001, p. 196). É habitual
Imagens registradas por Face

385
em comunidades rurais a utilização percepção desproporcional dos efeitos
do fogo não só para limpar o terre- negativos das mudanças climáticas
no visando ao plantio, mas também pelas populações mais vulneráveis e à
porque as cinzas, em contato com a atribuição de responsabilidade àque-
água das chuvas, tornam o terreno les que contribuíram mais para as cau-
mais fértil. Esses relatos surgiram nas sas do aquecimento global” (RAMOS,
cartografias da terra e do fogo e em 2015, p. 55).
processo formativo na comunidade de Mas é no ar que identificamos
Água Fria, zona rural de Chapada dos outro foco de resistência, luta perti-
Guimarães-MT, em fins de 2018. Atre- nente aos quilombos desde os tempos
lado à transformação, o fogo integra de escravidão. Foram inúmeros regis-
o universo ambivalente de Bachelard tros de cenários que atrelamos ao ar
(2008), que funciona com vigor em por remeterem à calmaria e não apre-
Mata Cavalo. sentarem quaisquer dos outros três
elementos. Assim, são as imagens em
Dentre todos os fenômenos, é real- final de tarde, como o pôr-do-sol, e de
mente o único capaz de receber tão aves e insetos, registrando ou pressu-
nitidamente as duas valorizações pondo seus voos.
contrárias: o bem e o mal. Ele brilha Dessa forma, ponderamos que fotos
no Paraíso, abrasa no Inferno. É do- como a anterior, embora não retra-
çura e tortura. Cozinha e apocalip- tem exatamente as oscilações socio-
se. É prazer para a criança sentada ambientais presentes no quilombo,
ajuizadamente junto à lareira; casti- como os conflitos internos e por terra,
ga, no entanto, toda desobediência são uma forma de demonstrar a eles
quando se quer brincar demasiado próprios e aos que vivem longe que
de perto com suas chamas. O fogo Mata Cavalo vai além das pendên-
é bem-estar e respeito. É um deus cias e embates. É como se algo muito
tutelar e terrível, bom e mau. Pode maior redimisse o lado negativo da
contradizer-se, por isso é um dos comunidade, e isso, de certa forma, é
princípios de explicação universal. um estímulo para enfrentar o que está
(BACHELARD, 2008, p. 11-12). por vir. Assim, invocamos Bachelard
(2001, p. 168-169 – grifos do autor),
Se o fogo só pode ser viabilizado para quem “o céu descolorido, ainda
pelo ar115, uma vez que na inexistência mais azul, espelho sem aço de infinita
de oxigênio não se queima nada, este transparência, é doravante o objeto
também se encontra prejudicado pelo suficiente do sujeito sonhante. Totaliza
fogo, situação que demanda ao povo as impressões contrárias de presença e
quilombola um acesso aos serviços de afastamento”.
saúde, que é dificultoso. Assim, agra- Local muito fotografado pelos jo-
va-se ainda mais o contexto de injusti- vens e mencionado por eles nas entre-
ça climática que é próprio de agrupa- vistas foi o rio (Figura 7, a seguir), que
mentos como Mata Cavalo. Portanto, a dá nome ao quilombo. Muitas men-
referida conjuntura “está relacionada à ções também foram feitas durante a

386
cartografia da água116, no que tange a
dois aspectos: a sua importância para
a comunidade, como fonte de vida do
quilombo, e o seu atual estado de bai-
xa quantidade de água – problema
muito recorrente no quilombo com má
distribuição e abastecimento. Em fun-
ção da seca rigorosa entre abril e se-
tembro, os desmatamentos nas proxi-
midades da área e o assoreamento do
rio, por causa da atividade de garim-
po, contribuem para piorar o cenário.
Como resultado também, a carto-
grafia não identificou qualquer ima-
gem relacionada à pesca, atividade
comum em populações tradicionais,
ainda mais em uma comunidade cor-
tada por diversos rios. Mesmo com
conjuntura adversa ligada à água,
ela ainda parece viver no imaginário
quilombola.

Aqui tinham muitos rios que foram


destruídos por causa do garimpo.
O rio que estava ali vale mais que o
ouro que está dentro dele. O rio po-
dia matar a sede dos animais, das
pessoas. Muitos ainda não têm en-
canamento. Vivem de poço, de rio.
Essa é uma pauta que devemos pa-
rar para pensar. Não é a comunidade
que se transforma, somos nós que a
transformamos.
(depoimento concedido por Telegram)

A narrativa de Telegram guarda


um dos argumentos deste estudo: o
componente antrópico é decisivo no
contexto das emergências climáticas.
Da mesma forma que, em perspectiva
Figura 6 – ângulo contrapicado
macro, é possível atribuir ao ser huma-
Figura 7 – plano médio
no o aumento da emissão de CO2 des-
Imagem registrada por Insta
de a industrialização, aprofundando o

387
aquecimento global, em uma escala
local um quilombola denuncia que
a mudança do rio é causada pelas
pessoas.
Os jovens, imbuídos da luta que seus
ancestrais travaram, continuam a en-
tender o sentido de resistência, mas
fazem isso externando o imaginário
quilombola sobre a terra e permea-
dos pelas novas tecnologias, sobre as
quais apresentam domínio elogiável.
Para os jovens, os embates para de-
fender o que lhes é sagrado se dão em
outra arena, com menor enfrentamen-
to direto, porém com mais chances de
repercussão.

Eu não reparava como o pôr-do-sol


é bonito. Agora, por causa do curso,
eu passei a reparar mais porque tira
foto, então tem que reparar tudo. A
flora e a fauna têm muitas plantas
medicinais. Depois, por ter que tirar
foto, você começa a reparar no que é
belo.
(depoimento concedido por Youtube)

A flora mencionada por Youtube,


motivo de orgulho para ela, foi tam-
bém captada em foto por Blogger
(Figura 8) e tantos outros estudantes.
Para nós, os jovens da escola calcam
na natureza do quilombo uma impor-
tante manifestação de resistência.
Anunciar a eles próprios e ao mundo
aquilo que têm de bom na comunida-
de é uma maneira, mesmo que implíci-
ta, de dizer que valorizam onde moram
e que, por isso, o sentido de pertenci-
mento à terra os imbui de muita luta
Figura 8 – plano médio
para garantir o direito básico de ter
Imagem registrada por Blogger
onde morar.

388
Outra forma de resistência é pela
cultura. As manifestações artísticas,
religiosas e gastronômicas caracte-
rizam o quilombo e fazem com que a
sua história não morra. A identidade
de Mata Cavalo, a despeito das no-
vas gerações buscarem cada vez mais
refúgio nas cidades, está bem defi-
nida dentro das fronteiras da comu-
nidade. As narrativas de moradores
mais antigos que ouvimos nas nossas
passagens pelo local e em pesquisas
que realizamos para a produção deste
trabalho não rechaçam o passado de
lutas e resistência.
A arte é uma forma milenar usada
para manifestar a cultura de uma de-
terminada tribo e ainda fonte de renda
de trabalhadores autônomos, mais
ainda os que permanecem em comuni-
dades tradicionais como Mata Cavalo.
No exemplo das imagens anteriores
(Figuras 9 e 10), a argila, extraída das
terras do quilombo, é o material uti-
lizado para moldar duas figuras bas-
tante presentes não só no imaginário,
mas também na realidade quilombola:
mulher carregando a moringa de barro
(Figura 9) e homem tocando viola de
cocho (Figura 10).
Dessa forma, temos novamente a
comunhão entre água e terra, mas
agora em um sentido positivo e bené-
fico aos quilombolas. Não apenas a
água é inserida em um recipiente feito
à base de terra, como para o manuseio
da argila é necessário o acréscimo de
água, pois é ela que amolece o mate-
rial a ser modelado por mãos e ferra-
mentas. “Todos os grandes sonhadores
terrestres amam a terra assim, vene-
Figura 9 – plano detalhe
ram a argila como a matéria do ser”.
Figura 10 – plano médio
(BACHELARD, 2013, p. 105).
Imagens registradas por Face

389
para igual, ciente de que tem o co-
[...] a imagem que se crê singular é nhecimento acadêmico a oferecer em
amiúde um velhíssimo mito. Assim, retribuição à sabedoria tradicional, re-
uma estátua é tanto o ser humano conhecendo a complementariedade de
imobilizado pela morte como a pedra ambos. Como enfatiza Senra (2009, p.
que quer nascer numa forma huma- 69), atuar em conjunto faz “com que a
na. O devaneio que contempla uma pesquisa se torne também uma forma
estátua fica então animado num rit- de construção de conhecimentos, de
mo de imobilização e de colocação luta e de resistência para que socieda-
em movimento. Fica naturalmente des sustentáveis sejam possíveis”.
entregue a uma ambivalência da
morte e da vida. (BACHELARD, 2013, Enquanto na teoria antidialógica a
p. 182-183). conquista, como sua primeira carac-
terística, implica um sujeito que, con-
Como ainda o saneamento básico é quistando o outro, o transforma em
deficitário, muitas famílias dependem quase “coisa”, na teoria dialógica da
dos rios como fonte de água. Tradi- ação, os sujeitos se encontram para a
cionalmente, os homens executam o transformação do mundo em co-la-
trabalho no campo, na lida diária com boração. (FREIRE, 2014, p. 226-227).
a terra, enquanto as mulheres são re-
legadas às tarefas domésticas. A ida Um dos assuntos de grande rele-
até o rio pressupõe dois desses afa- vância nos dias atuais, ainda mais em
zeres: lavar roupa e buscar água para uma comunidade rural, é a crise cli-
cozinhar o alimento. Por isso, a arte de mática e como esses agrupamentos
uma mulher negra com uma moringa enfrentam as alterações do clima. Um
nas mãos, objeto utilizado na comuni- dos motivos que nos levaram a Mata
dade para armazenar e transportar o Cavalo e que foi mote de várias pes-
líquido do rio até em casa. quisas do Gpea nos últimos anos foi
O trabalho desenvolvido no identificar os impactos em populações
âmbito da educação popular, graças como a do quilombo, que se encon-
aos processos formativos entre Mata tram em situação de vulnerabilidade.
Cavalo e Gpea, permitiu a quem an-
tes não compreendia ou enxergava No desfecho, um regato de esperança
as emergências climáticas entender
do que se trata o contexto em que Em termos práticos, este estudo en-
estamos inseridos. A educomunica- seja algumas descobertas e muitas
ção socioambiental (SOARES, 2014) inquietações. Identificamos que em
tem o mérito de reverberar essas Mata Cavalo há uma espinha dorsal
descobertas. que permeia todo o quilombo: a luta.
O nosso estudo, portanto, guarda Submetidos à morosidade da buro-
sintonia com as prerrogativas da Edu- cracia, ao amparo limitado do Estado
cação Ambiental crítica e engajada e e ao agronegócio que enxerga o ter-
encara o território quilombola de igual ritório quilombola como possibilidade

390
de lucro, a questão fundiária é nuclear
na comunidade. Resistir, então, é uma
necessidade.
No que é tangível à questão climá-
tica, imagens de atoleiro e queimadas
ganharam registros fotográficos, bem
como estiveram presentes em relatos
nas cartografias e em entrevistas. O
colapso do clima, cujos efeitos mais
agravados recaem sobre os agrupa-
mentos em situação de vulnerabilida-
de, demarcou aparição no conteúdo
imagético, em que pese o fato de ser
menos sensível à captação fotográfica
do que as virtudes da comunidade.
Publicar as belezas do quilombo
foi o protocolo encontrado, ainda que
imperceptivelmente, para mostrar à
própria comunidade e às pessoas de
fora que Mata Cavalo tem do que se
orgulhar. Expor as virtudes quilombo-
las é um caminho de resistência diante
das iniciativas que atentam à integri-
dade física e moral de que são vítimas.
Em termos gerais, a crise vivida
pela civilização atual atinge propor-
ções elevadas, e a questão ambien-
tal, mais especificamente voltada ao
clima, está no centro desse debate.
Considerando o papel político que a
Educação Ambiental reivindica e os
atributos comunicacionais, é preciso
conceber e colocar em prática políticas
públicas que amparem aqueles que
mais sofrem com os efeitos do colapso
climático, traços característicos da co-
munidade quilombola de Mata Cavalo,
território onde se deu este estudo.
Assim, o objetivo do trabalho con-
sistiu em comunicar a emergên-
cia climática em Mata Cavalo e as
manifestações de resistência, com Figura 11 – plano médio/ângulo normal

base na produção fotojornalística de Imagem registrada por Twitter

391
estudantes dos ensinos fundamental e
médio da Escola Estadual Professora BACHELARD, Gaston. A psicanálise do
Tereza Conceição de Arruda. No seio fogo. Tradução: Paulo Neves. 3.ed. São
da educomunicação, foi possível comu- Paulo: Martins Fontes, 2008.
nicar o colapso climático, o arcabouço
virtuoso e as reações de resistência em BACHELARD, Gaston. A terra e os
Mata Cavalo. devaneios da vontade: ensaio sobre
Finalmente, ficou perceptível que a a imaginação das forças. Tradução:
mentalidade dos jovens acompanha a Maria Ermantina de Almeida Prado
história do quilombo, e as belezas fo- Galvão. 4.ed. São Paulo: WMF Editora
tografadas demonstram a disposição Martins Fontes, 2013.
em continuar no território, pois per-
tencem a ele. Capturar imagens sobre BACHELARD, Gaston. O ar e os
as virtudes da comunidade é imprimir sonhos: ensaio sobre a imaginação
valor ao local onde estudam e vivem, do movimento. Tradução: Antonio de
terra cujos valores foram construídos Pádua Danesi. 2.ed. São Paulo: Martins
pelos seus antepassados. Fontes, 2001.
Portanto, valorizar é dizer “enterrem
meu coração na curva do rio”, e resistir FREIRE, Paulo. Pedagogia da
às injustiças. A Figura 11, que encerra autonomia. 48.ed. Rio de Janeiro: Paz
este texto, traz consigo este sentido de e Terra, 2018.
resistência e remete ao poema de Car-
los Drummond de Andrade (1978, p. 16), FREIRE, Paulo. Pedagogia do
“A Flor e a Náusea”: “É feia, mas é uma oprimido. 58.ed. Rio de Janeiro: Paz e
flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o Terra, 2014.
ódio”.
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Tradução: Estela dos Santos Abreu, JENKINS, Henry. Cultura da
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Campinas-SP: Papirus, 2012. Alexandria. 2.ed. São Paulo: Aleph,
2009.
BACHELARD, Gaston. A água e os
sonhos: ensaio sobre a imaginação da
matéria. Tradução: Antonio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes,
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imaginário: a dimensão poética e em Ciências). Programa de Pós-Gra-
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biental. Dissertação de Mestrado. rais, UFSCar.
Cuiabá-MT: UFMT, 2011. Disponí-
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unidade/userfiles/publicacoes/cf- ção: o conceito, o profissional, a aplica-
7705199723410cb747759bd45d8855. ção. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2014.
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SORRENTINO, Marcos et al. Educa-
ção ambiental como política pública.
In Educação e Pesquisa. São Paulo,
v.31, n.2, mai/ago 2005. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n2/
a10v31n2.pdf>. Acesso: 09.fev.2019.
393
NOTAS

Capitulo 17

112 A narrativa transmídia está disponível em https://www.instagram.


com/thiago_c_luiz/?hl=pt-br, mais especificamente a galeria de imagens
sobre a TERRA.

113 A narrativa transmídia está disponível em https://www.instagram.


com/thiago_c_luiz/?hl=pt-br, mais especificamente a galeria de imagens
sobre o FOGO.

14 O orçamento do Ministério do Meio Ambiente previsto para 2019


era, inicialmente, de R$ 807,4 milhões. Porém, o executado ficou em R$
633,5 milhões. Para 2020, a previsão é de R$ 561,6 milhões. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/brasil/para-reduzir-gastos-ministerio-do-meio-
ambiente-cortara-ate-faxina/>. Acesso em 03.dez.2019.

15 A narrativa transmídia está disponível em https://www.instagram.


com/thiago_c_luiz/?hl=pt-br, mais especificamente a galeria de imagens
sobre a AR.

16 A narrativa transmídia está disponível em https://www.instagram.


com/thiago_c_luiz/?hl=pt-br, mais especificamente a galeria de imagens
sobre a ÁGUA.

394
Filmes e vídeos na Educação
Ambiental e espectador (cri)ativo:
Reflexões sobre uma trajetória na
pesquisa e extensão em educação
Américo de Araujo Pastor Junior

18.
Introdução

No presente texto busco defender a importância de se pensar o audiovisual


(vídeos, filmes e animações) também desde seus espectadores. Para isso, faço
uso de um relato acerca de minha trajetória de formação em pesquisa e exten-
são, identificando como surgiram algumas questões e que respostas encontrei.
Faço isso tomado pelo entendimento de que, para imaginar novos mundos,
precisamos primeiros imaginar novos “eus”, “tus”, elas, e eles, novos nós. Ocorre
que, apesar de engajados em promover a libertação, conscientização ou sensibi-
lização política do povo, boa parte da produção audiovisual desenvolvida e suas
dinâmicas de uso em escolas são orientados por pressupostos objetificadores,
assujeitadores de seu público. Na educação ambiental (EA) crítica, apesar de se
esperar uma ação política dos sujeitos envolvidos, as práticas formativas, por ve-
zes, fazem uso de imagem sob pressupostos que podem reforçar desigualdades.
Nos parágrafos a seguir irei apresentar um pouco de minha trajetória ao passo
que irei desenvolvendo essas questões.
Apesar de completamente imerso nesse "admirável mundo novo" da Internet,
venho de outra época. Minha infância e boa parte de minha juventude se passa-
ram sobre o pano de fundo das projeções RGB da televisão. Passei a maior parte
de minha infância enclausurado em apartamentos, salas de aulas e pátios de
escola, e a TV, a imagem audiovisual, se constituía de certa forma como um dos
principais instrumentos de exploração de uma "realidade" que se estendia para
além dos poucos metros quadrados que eu poderia considerar meu território.

396
Não assisti apenas TV, há que se fa- que TV e cinema haviam me apresen-
zer justiça. Pude correr por playgrounds tado. Diante disso me restou aprender
e por algumas matas, mas nada com com a vida. No entanto, este apren-
tanta frequência e intensidade como dizado começou a ser acompanhado
aquelas com que fui um espectador e complementado pelo consumo de
audiovisual. Eu rezava inevitavelmente filmes (nesse momento já eram DVDs),
o ritual cotidiano da massa infantil da filmes estes que tratavam dessa rea-
década de 80 e 90 de assistir anima- lidade complexa que eu buscava des-
ções pela manhã, telenovelas e tele- velar. Neste meu drama real, o refúgio
jornais pela noite e eventuais filmes ao era o drama ficcional da tela em salas
chegar da madrugada. O audiovisual escuras. Foram algumas tantas leituras
foi o principal território cotidiano de de Bauman, Jamenson e Baudrillard.
experiências, e consequentemente Somado a isso, me debrucei sobre
aprendizado, talvez maior que o ocorri- as reflexões estético-psicológicas de
do por meio da escola. Gaston Bachelard, (estudei devaneios,
Assim, entre os infortúnios do ingê- onirismos e outros tantos temas) e as
nuo Chaves, os superpoderes e boa conceituações sobre a comunicação
moral do He-man na luta contra a de Rolland Barthes. A partir dessas
morte, as travessuras do Pica-pau, leituras também compreendi que as
a perspicácia do cearense Didi, toda imagens poderiam contribuir para re-
força estereotipante de vidas e amo- construir esse mundo.
res dos melodramas, se constituíram
como estâncias educadoras em minha Imagens, sensibilização,
vida. Durante a adolescência, certa- conscientização e Educação Ambiental
mente tive mais amores nos filmes que
nos pátios e portões da escola. Tenho No fim da graduação em desenho
quase certeza que eu (e todos os meus industrial (comunicação visual) encon-
colegas de rua) demos o primeiro beijo trei a EA. Em 2007, eu comecei a fazer
naquela linda loirinha do filme O meu parte da equipe executora de um pro-
primeiro amor. E a cada novo VHS, jeto de educação ambiental, o Projeto
uma nova vida. Pólen. Nesse projeto eu fui desafiado
A vida foi seguindo. Durante a gra- a produzir imagens que recorrente-
duação na universidade a vida fora da mente me eram solicitadas acompa-
tela passou a ter maior predomínio. nhadas de palavras como sensibilizar e
Morar fora de casa, em outra cidade, conscientizar entre os objetivos. Nesse
um mundo novo. Talvez fosse a hora projeto tive a oportunidade de conhe-
de colocar em uso não só todo o co- cer os textos de Paulo Freire e tantos
nhecimento aprendido no espaço for- outros referenciais de educação que
mal da escola, mas também (e talvez me fizeram abrir os olhos para a pro-
principalmente) colocar à prova todo o blemática da educação. Minha inten-
aprendizado das experiências vividas ção de pensar aspectos psicossociais
por meio do audiovisual. A vida era envolvendo audiovisuais e uma pau-
muito mais complexa e imprevisível do ta progressista agora tinha “nome”:

397
sensibilizar e conscientizar para a to- decisões e transformações da realida-
mada de decisão. Eram estes alguns de na qual estão inseridos.
dos principais objetivos da Educação O objetivo de sensibilizar também
Ambiental Crítica e Emancipatória, pode ser encontrado em textos e dis-
praticada no projeto. Mais que ensinar cursos sobre educação, mas sob ou-
hábitos que implicassem em menores tras denominações. A ideia de tornar
danos ao Meio Ambiente, era preciso algo sensível, geralmente também
sensibilizar e provocar a tomada de passa pela ideia apelar para algo que
consciência para a problemática maior vai além do racional, além da razão,
envolvida no uso dos recursos naturais, é preciso tocar em outras dimensões
compreender as determinantes da da existência humana. Isso, em parte,
problemática ambiental na realidade pode ser atribuído ao pessimismo do
objetiva, e assim promover uma me- pós-guerra (segunda guerra mundial),
lhora qualitativa nas tomadas de deci- e os questionamentos sobre a insufici-
são. Não mais buscar a mera mudança ência da razão em evitar a destruição
de comportamentos, mas sensibilizar e empreendia por regimes fascistas. A
conscientizar com imagens. Esses pas- racionalidade apenas não seria o sufi-
saram a ser os meus interesses. ciente para a construção de um cami-
Vale neste ponto, uma pequena nho de positividade.
pausa para melhor abordar o conceito Essa preocupação sobre como o
de sensibilização. Segundo Duarte Jr homem racional, dito senhor de si, foi
(2002), a sensibilização (ou conscienti- capaz de empreender destruições em
zação) é um processo de formação do massa, mobilizou cientistas sociais e
humano pelo qual se auxilia o homem da mente na busca por respostas. A
a desenvolver sentidos e significados psicologia ofereceu algumas tentati-
que orientem sua ação no mundo. vas de respostas, algumas explicações
Para Freire (1987), conscientizar é de- e influenciou fortemente a educação
senvolver um pensar crítico através do no desenvolvimento de práticas volta-
qual os homens se descobrem em situ- das a dificultar que aqueles horrores
ação, na medida em que a realidade pudessem acontecer novamente. Po-
que os envolve deixa de lhes parecer demos destacar contribuições como as
espessa, capacitando-se para se inse- de Freud e explicação da psiquê huma-
rirem na realidade que se vai desve- na como algo dividido em uma dimen-
lando. Assim, é uma atividade inten- são consciente e uma inconsciente. De
cional e educativa que busca promover modo muito simples, é possível enten-
uma aprendizagem significativa, que der que a segunda, repleta de con-
permita o despertar da consciência crí- teúdos recalcados (propositalmente
tica que atue nas tomadas de decisão escondidos da razão, da consciência) e
diárias, estas na e para a realidade carregados de conteúdos emocionais,
em que estes sujeitos estão inseridos. poderia levar o homem a não seguir
Ou seja, educar para propiciar que os condutas racionais. Comportamentos
sujeitos do processo educativo se tor- histéricos, atos-falhos, significados so-
nassem conscientes e atuantes nas nhos, lapsos, a sexualidade humana, e

398
outros tópicos, começam mostrar um concreta que o envolve? Como as ima-
lado sombrio, ou ainda não iluminado, gens poderiam contribuir para isso?
da mente humana. É nessa zona de Aqui vou me conceder a licença po-
sombra que poderia se encontrada a ética de fazer um salto não discutir
explicação para a barbárie empreen- produção de Eisnstein, Gobels e outros
dia pelo humano a outros humanos e a “Tio Sam” que fizeram uso das ima-
outras formas humanas. gens para uma sensibilização política
No contexto desses problemas e de populações, frequentemente con-
das explicações que foram sendo cria- vocando e convencendo o povo a lu-
das não só pela psicologia, a ideia tar por ideias bastante questionáveis.
de sensibilizar e conscientizar, nesse Acredito já haver farta produção sobre
caldeirão de ideias, também passa o assunto e nesse momento não traz
a subentender a busca por oferecer grande contribuição para a reflexão
caminhos além daqueles permitidos que busco aqui tecer.
pela racionalidade. Caminho além da- Durante o Projeto Pólen, pude atu-
queles dispostos pela racionalidade. ar e observar atividades envolvendo o
Portanto, emocionar, afetar, gestos, a uso de audiovisuais. Foi produzido um
ludicidade, começam a figurar entre as documentário sobre a realidade socio-
estratégias empregadas na busca de ambiental da região em que o projeto
produção de uma versão melhor desse era desenvolvido. Algumas entrevistas,
humano, via educação. Essas questões documentações de atividades tam-
ainda figuram nas últimas três déca- bém foram frequentes. Além disso, os
das e perpassa os esforços da EA. Isso vídeos também foram utilizados como
pois, as informações sobre o impacto materiais educativos nas dinâmicas
da ação humana no meio ambiente já de ensino aprendizagem do projeto.
estão globalmente divulgadas, mas- Em uma dessas atividades, seguindo a
sivamente presente nas mídias, mas proposta freireana, dois filmes foram
ainda assim as pessoas não mudaram exibidos para a posterior discussão. Os
duas atitudes, muito menos os seus filmes Narradores de Javé (2003) e No
comportamentos. Rancho Fundo (1993) foram exibidos
Isso me leva de volta a 2008, às para mobilizar uma discussão sobre
minhas ações no contexto do Projeto a formação do educador ambiental,
Pólen, na busca produzir imagens que suas características, papéis e compro-
pudessem oportunizar esse aprendi- misso. Essa atividade e as reflexões
zado e superassem as barreiras da ra- produzidas a partir desta, foram apre-
cionalidade, com o objetivo de final de sentadas na forma de resumo expan-
oferecer um entendimento mais com- dido ao VI Congreso Iberoamericano
plexo e justo da relação humana com de Educación Ambiental. No entanto,
o meio ambiente. Como poderia o ho- as reflexões centraram-se, em maior
mem tomar consciência de si, de suas parte, em uma análise da eficiência
emoções, de suas atitudes, de seus da atividade, deixando de lado várias
pensamentos e da realidade social e peculiaridades que foram mobilizadas
pelos espectadores na produção de

399
seus aprendizados. Ou seja, olhamos em saúde. Deste acervo, os vídeos que
mais para o sucesso (esperado) da ati- haviam sido produzidos sob o objeti-
vidade e pouco para experiência de vo de sensibilizar, inevitavelmente me
aprendizagem desses sujeitos com o chamaram mais atenção, como era de
audiovisual no contexto do curso de se esperar. Esses vídeos em maior par-
formação de educadores ambientais. te foram produzidos para a disciplina
Como no contexto das ações da EA Psicologia Médica que compõe o cur-
o homem tomar consciência de si, de rículo médico. Dei-me conta que esses
suas emoções, de suas atitudes, de vídeos oportunamente ofereceriam
seus pensamentos e da realidade so- meios de estudar e melhor compreen-
cial e concreta que o envolve? Como der a sensibilização por meio de au-
as imagens poderiam contribuir para diovisuais. Isso porque apresentavam
isso? Eu não consegui respostas con- uma linguagem menos complexa que
clusivas ao longo de três anos produ- aquelas dos filmes de EA e contavam
zindo imagens para o Projeto Pólen. com uma vasta coleção de documen-
Então, eu percebi o óbvio, que as res- tos sobre sua produção. Assim seria
postas a essas ideias passariam ne- possível conhecer as intenções dos
cessariamente pelo estudo humano, produtores. Seria também mais viável
da mente humana, da aprendizagem analisar vídeos mais curtos. A isso me
humana. Diante disso, busquei meios dediquei inicialmente durante o mes-
de desenvolver estudos que conside- trado no LVE.
rassem a experiência de espectadores Logo nos primeiros meses de mes-
em contextos de ensino-aprendizagem trados me dei conta de que, para es-
que fizessem uso de imagens, sobretu- tudar essa sensibilização, seria preciso
do audiovisuais. não só estudar o audiovisual, mas
também conhecer os processos pe-
O vídeo educativo e a pesquisa em los quais passam os espectadores ao
educação significarem as obras audiovisuais a
eles apresentadas. Tomado por esse
Vizinho à sala em que eu trabalhava, interesse, que encontravam os inte-
estava o Laboratório de Vídeo Edu- resses de meu orientador (Professor
cativo do Núcleo de Tecnologia Edu- Luiz Rezende), iniciamos o esforço de
cacional para a Saúde (LVE - NUTES). desenvolver um referencial teórico-
Em conversa com a professora Isabel -metodológico que desse conta de
Martins, sobre meus objetivos e inte- estudar conjuntamente os sentidos
resses (já destacados nos parágrafos pretendidos pelos produtores do au-
acima), me foi sugerido conhecer o LVE diovisual e aqueles que os espectado-
e conversar com o recém-concursado res produzem no contato com a obra
professor Luiz Rezende. Após algumas audiovisual.
conversas escolhi meu próximo passo, Além dos diversos pontos de contato
cursar como ouvinte disciplinas do LVE. entre meus interesses e as atividades
Assim, foi possível conhecer o acervo do LVE, estudar lá me trouxe também
de vídeos educativos para a educação algumas novas questões. A primeira

400
delas foi: Vídeos educam? Filmes edu- comunicativas e empatia no âmbito
cam? TV educa ou "deseduca"? Que da relação médico paciente. Esses são
papel educativo o cinema pode de- apenas alguns de inúmeros argumen-
sempenhar? O senso comum parece tos presentes em pesquisas sobre ví-
já possuir todo um repertório pronto deos e educação que transparecem as
de respostas para estas questões, que mesmas concepções.
não irei reproduzir aqui. Bem antes desses estudos acima lis-
tados, o antropólogo norte-americano
Filmes e Vídeos educam? Sol Worth (1974) já questionava estu-
Voltando à questão: vídeos edu- dos como esses apresentados acima,
cam? Diversos estudos apresentam, sobre os supostos papéis e vantagens
defendem e ressaltam os possíveis e do audiovisual em contextos educati-
potenciais papéis educativos desem- vos. Worth afirmou que estes papéis
penhados pelos vídeos. Hodge e Kress desempenhados por filmes são colori-
(1988) acreditam que uma narrativa dos pelos entendimentos destes como
fílmica pode permitir a percepção crí- arte, propaganda, comunicação e so-
tica da sociedade. Para Ferrés (1996) bre seus supostos efeitos à sociedade.
os vídeos podem despertar a atenção Estas influências contribuíram para
e a curiosidade, reforçar o interesse e construir crenças que se configuraram
a motivação de alunos. Segundo Ar- como pressupostos de muitos estudos
roio e Giordan (2004, 2005 e 2006), feitos até a data de publicação de seus
vídeos possibilitam transporte de fatos últimos trabalhos. Como já dito, estes
cotidianos para o momento do pro- pressupostos circulam até hoje, fre-
cesso educativo, podem servir para quentemente em estudos sobre usos e
introduzir um novo assunto, despertar possíveis relações entre o audiovisual e
a curiosidade e motivação para no- a educação, sem serem devidamente
vos temas, promovem a aquisição de problematizados.
experiências de diversos tipos: conhe- Um desses pressupostos é caracteri-
cimentos, emoções, atitudes, sensa- zado pela primazia psicológica e social
ções etc. Alguns autores destacam o dos vídeos, de acordo com a qual, sob
recurso audiovisual como um “canal a ideia de "pensamento visual", supõe-
privilegiado para garantir o acesso aos -se que filmes e TV são, de alguma for-
níveis cognitivo, afetivo e da ação e ma, superiores às palavras. É possível
aos códigos de comunicação de modo perceber esta noção circulando pela
geral” (BOOG et al., 2003). Blasco et sociedade, sob a forma do já notório
al. (2005) ressaltam que a educação enunciado "uma imagem vale mais
através do cinema suscita a reflexão que mil palavras". Um desdobramento
sobre valores e atitudes como forma desta crença é o entendimento de que
de sensibilização para ensinamentos os vídeos são uma linguagem das no-
posteriores. Wong et al. (2009) e Ketis vas gerações, que se tornará primária
e Kersnik (2011) relatam experiências social e culturalmente, evidentemen-
de uso de vídeos (trechos de filmes e te motivada pela suposta primazia
séries de TV) para ensinar habilidade psicológica.

401
Outro desses pressupostos é a ideia experiências sustentadas por pesqui-
de universalidade e potencial inexplo- sas empíricas. Longe de esvaziar o in-
rado dos vídeos como recurso educa- teresse no melhor desenvolvimento do
tivo. Os vídeos, como “linguagem uni- conhecimento sobre as relações entre
versal”, possuiriam um potencial ainda os recursos audiovisuais e a educação,
inexplorado para fazer aquilo que as a crítica de Sol Worth na verdade nos
palavras falharam em fazer, comuni- permite dar novos contornos às pes-
cando forma multimodal, multissenso- quisas, reorientá-las, e mais importan-
rial, e para todas as idades e através te, reforçar a importância de também
de diferentes culturas. Acreditar que se voltarem as pesquisas para estas
pessoas de todas as idades e culturas questões destacadas por ele.
gostam e entendem os vídeos, é uma Certamente, filme e comunicação
das faces dessa pressuposição rodea- visual devem receber maior atenção
da de inconsistências. das escolas e dos educadores. O que
Note que essas críticas feitas por discordo são as suposições subjacen-
Sol Worth, em 1974 ainda, parecem tes aos argumentos dos educadores. A
bastante atuais. Não é preciso grande suposição da primazia visual, com sua
esforço para perceber que, em diversos subordinada e acrítica ideologia fílmi-
argumentos que defendem/justificam/ ca, dá um viés despropositado para os
propõem os usos de vídeo na educa- problemas de investigação, métodos
ção, subjazem estes "pressupostos" de ensino, e ao currículo, bem como
criticados por Sol Worth. Segundo esse as teorias da educação e políticas pú-
autor, a maior parte dos estudos sobre blicas. A verdade não é que o visual
os usos educacionais dos vídeos não é psicologicamente, culturalmente,
se voltaram para a verificação desses e sensorialmente a principal via de
pressupostos, não tiveram estes pres- experimentação e conhecimento do
supostos como objeto de estudo. E, por mundo, mas sim que o modo visual de
isso mesmo, sem a devida validação, comunicação, juntamente com outros
esses pressupostos são frágeis em sus- modos, permite-nos entender, contro-
tentar estudos subsequentes. lar, ordenar e, assim, articular o mundo
Obviamente, não discordamos, nem e nossas experiências (WORTH, 1974).
concordamos, com trabalhos específi- Partindo desse problema, reorientei
cos ou com alguns desses pressupos- meu percurso de estudos e pude en-
tos. Na verdade, concordamos com Sol contrar com textos como o de Valério
Worth sobre o fato de ser preciso ter Fuenzalida (2005), a partir do qual foi
estas pressuposições como objeto de possível tornar um pouco mais com-
estudo, para então aceitá-las ou refu- plexa essa relação entre audiovisual e
tá-las como norteadoras de qualquer educação. Referindo-se mais direta-
estudo sobre os usos educacionais de mente à TV, e extrapolando o contexto
vídeos. educativo exclusivamente da institui-
O meu caminho até esse momento ção escolar, o autor afirma que a TV é
indicava que os vídeos educavam, mas uma agência de socialização diferen-
de fato havia poucos argumentos e ciada da escola, com uma linguagem

402
diferente, acerca de temas diferentes, intencional de sujeitos, a partir da qual
e de maneira diferente à socialização são construídos sentidos, ou como Sol
analítica ordenadora da linguagem Worth destaca, a partir da qual as rea-
que ocorre na escola. Abordando mais lidades são reorganizadas/reconstruí-
especificamente a audiência televisiva das pelos sujeitos espectadores.
de programas mais variados, Fuenza- De modo mais amplo, Stuart Hall
lida, em suas considerações, confere (2003) também destaca o papel ativo
maior poder aos espectadores que a de espectadores na recepção. A partir
partir de seu universo sociocultural e da crítica ao modelo da comunicação
de suas expectativas existenciais cons- tradicional, unilinear/unidirecional e
tituem ou não um propósito educativo com foco na transmissão perfeita dos
para o ato de assistir um programa de conteúdos e intenções dos emissores,
TV. O autor trabalha com a ideia de Hall propõe pensar a comunicação
expectativa educativa como um modo como uma circulação de sentidos/sig-
intencional de espectadores recebe- nificados em que não há a necessária
rem conteúdos audiovisuais na espera identidade entre os sentidos produzi-
de aprender algo com aquilo que se dos/emitidos e os recebidos. Ou seja,
assiste. Deste modo, a partir de sua produtores/emissores e receptores/es-
situação cultural os espectadores ree- pectadores, imersos nessa circularida-
laboram suas expectativas acerca da de, estão em constante negociação de
educação para orientá-las a questões sentidos atribuídos aos conteúdos em
mais alusivas às necessidades existen- circulação. Para o autor, os produtores
ciais de sua vida cotidiana. frequentemente se preocupam com a
Nessa mesma direção, Jaques Ran- possibilidade da audiência "falhar" em
cière (2007) destaca a emancipação captar o sentido por eles pretendido.
intelectual dos espectadores. O próprio Hall chama de leitura preferencial essa
termo “espectador” é criticado pelo tentativa de controle que os produ-
autor por fazer subentender uma pas- tores tentam exercer na significação,
sividade dos receptores. Para o autor uma espécie de orientação "leia-me
este entendimento de espectador pas- desta forma". Entretanto, para Hall a
sivo estaria fundado numa concepção leitura preferencial nunca é bem suce-
platônica em que o ato de olhar ape- dida: é apenas uma tentativa de hege-
nas acessaria a aparência das coisas, e monizar a leitura da audiência.
não a essência/realidade. Deste modo, Juntamente aos graus de clausura
olhar não seria uma atividade cognos- (tentativas) impostos pelos produtores
cível, seria o oposto de conhecer, e por dos textos audiovisuais, também há
assim dizer, de agir. O autor reforça uma forma de direcionamento do tex-
que na verdade espectadores são in- to para quem deve ler ou de que ponto
terpretadores ativos, que se apropriam de vista deve receber o texto. Morley
da história para si mesmos, fazendo (1996) nomeia este esforço de Desti-
a partir dessa, sua própria história. nação, e o define como uma maneira
Tanto para Rancière, como para Fuen- de buscar abordar o público de uma
zalida, a espectorialidade é uma ação determinada maneira, como forma

403
de estabelecer uma relação específica o modo de endereçamento é uma es-
com a audiência. truturação das relações entre o filme e
De acordo com Morley (1996) essa seus espectadores, e não algo que re-
produção de sentidos é feita sob os re- side inteiramente na obra. Por ser uma
ferenciais de conhecimentos dos sujei- relação, o modo de endereçamento é
tos envolvidos nessa dinâmica comu- invisível, não localizável.
nicativa, quer sejam produtores, quer As negociações relativas ao seu
sejam receptores. Este autor destaca a modo de endereçamento ocorrem no
importância de também se considerar espaço social em que a obra circula e
os diferentes contextos culturais com- é utilizada. Nesse sentido, propomos
ponentes do evento comunicativo. pensar que no espaço social de utili-
De forma similar, Ellsworth (2001) zação e apropriação de um vídeo ou
trabalha com o conceito de Modo de filme, como uma sala de aula, pode
endereçamento para pensar as re- haver uma modificação ou adaptação
lações, suposições e meios de abor- dos sentidos e modos de endereça-
dar de um produtor a um espectador mento originalmente pretendidos. Com
imaginado. Ellsworth (2001) afirma base nisso, também propomos pensar
que os filmes imaginam potenciais a ideia de reendereçamento como a
espectadores, oferecem-lhes papeis ação mediadora dos professores que
forjados no interior de relações sociais se estende desde a apropriação de
presentes nos filmes na forma de uma um vídeo em uma aula até seu efeti-
posição a partir da qual os potenciais vo uso, como elemento determinante
espectadores produzem os sentidos nessa relação dos espectadores com
esperados pelos produtores. A autora o audiovisual na sala de aula. Nesse
aponta que o modo de endereçamento sentido, pensamos que apropriação de
pode ser estudado com base em três vídeos produzidos no contexto social
perguntas principais: Quem esse filme mais amplo ao da escola implica em
pensa que é seu espectador? Quem uma série de recortes dos significa-
esse filme quer que seu espectador dos originais por meio da valorização
seja? Quem o espectador pensa que de determinados significados, bem
ele é? A adesão a esses papéis e posi- como pela mediação empreendida por
ções também se dá por meio da nego- aqueles que fazem uso dessa mídia na
ciação, mediada pela obra audiovisual, sala de aula.
entre produtores e receptores (espec- Kim Schrøder (2000; 2007) de-
tadores). Para a autora, os modos de senvolve um modelo que torna mais
endereçamento são formas de tentar complexo o modelo proposto por Hall,
fixar leituras, tentativas dos produtores trabalhando com diferentes dimensões
em antecipar as reações e as formas subjetivas e "objetivas" de leitura e
de produção de sentido dos especta- implicação das leituras. Assim, Schrø-
dores, buscando fixá-los em um ponto der (2000) propõe um Modelo Multi-
de vista do qual devem assistir ao fil- dimensional de análise da recepção,
me e que resulte em um determinado constituído de acordo com um quadro
modo de interpretá-lo. Desta forma, teórico que considera os processos

404
complexos por meio dos quais as au- imersão à imersão total e do não dis-
diências se engajam, compreendem, tanciamento ao distanciamento total).
criticam e respondem a uma determi- A dimensão posição refere-se ao nível
nada mensagem de mídia. Este mode- ideológico do espectador e está rela-
lo é constituído por seis dimensões de cionada à atitude ideológica de acei-
recepção, das quais quatro são de lei- tação, negociação ou rejeição do texto
tura e duas de implicação. O grupo das por parte do espectador. A dimensão
dimensões de leitura (motivação, com- avaliação diz respeito à relação feita
preensão, discriminação, posição) diz pelo pesquisador/analista entre as
respeito às experiências subjetivas em leituras e um determinado contexto
que o significado é produzido em um político-ideológico mais amplo e “ob-
contexto mais específico, situacional. jetivamente” identificado nas práticas
As dimensões de implicação (avaliação sociais coletivas, ocorrendo em um
e implementação) dizem respeito a continuum que vai de hegemônica até
como estes sentidos produzidos a par- contra-hegemônica. Por fim, a dimen-
tir da leitura são usados como recursos são implementação trata sobre como
para uma ação política em um contex- as leituras produzidas a partir de um
to sócio, político e ideológico de signifi- determinado texto são levadas para
cação social. a ação social e se vertem em recurso
A dimensão motivação trata da re- para uma ação política no cotidiano
lação de relevância estabelecida pelo Assim, ao considerarmos a recep-
universo pessoal do leitor e o universo ção como elemento fundamental
apresentado pelo texto, e compreende do processo comunicativo, não só os
um continuum de posições de leitura pressupostos que sustentam e orien-
que vão da recusa total até a forte tam a produção e uso de vídeos para
motivação para ler determinado texto fins educativos são postos em dúvida,
audiovisual. A dimensão compreensão como o entendimento do papel ativo
diz respeito à forma como os especta- dos espectadores nos permite olhar
dores entendem o material audiovisual de modo mais complexo para as re-
sob influência dos contextos micro e lações entre educação e audiovisuais.
macrossociais, e suas posições de lei- Assim, para se aproximar de um me-
tura vão da divergência à convergên- lhor entendimento das possibilidades
cia. Já a dimensão de discriminação educativas do uso dos vídeos, é preciso
refere-se a como os espectadores po- partir de uma crítica e busca por uma
dem adotar uma posição mais ou me- empiria dos argumentos que susten-
nos esteticamente crítica frente ao tex- tam seus usos, considerar que, além
to fílmico (imersão), e como e o quanto dos produtores, os espectadores são
uma leitura está caracterizada pelo ní- agências constituidoras de sentidos,
vel de consciência do espectador sobre finalidades e usos para as obras au-
o caráter de construção e de artifício diovisuais, que estes sujeitos são do-
do produto audiovisual (distanciamen- tados de complexidade subjetiva, e
to). Esta dimensão compreende dois influenciados por diferentes contextos
eixos paralelos em continuum (da não

405
culturais, nesse processo comunicativo Pesquisando o produtor e o espectador
que é essencialmente circular.
Neste ponto, voltamos às perguntas: O esforço de aplicação desse cons-
Vídeos educam? Vídeos sensibilizam? truto teórico para estudar situações
Vídeos conscientizam? A estas pergun- concretas de usos de audiovisuais em
tas, ainda podemos somar outras: Que dinâmicas de ensino e aprendizagem
papeis ocupam os espectadores neste vem, ao longo dos últimos 10 anos, se
processo? Quais são as expectativas consolidando no contexto do Grupo de
destes espectadores? De que maneiras Estudos sobre Recepção Audiovisu-
as intenções dos produtores podem al na Educação em Ciências e Saúde
conformar/influenciar os sentidos pro- (GERAES), do LVE-NUTES. As pesqui-
duzidos pelos receptores? De que ma- sas têm contribuído fortemente para
neiras são mobilizadas as dimensões o aprimoramento teórico, refinamento
subjetivas dos espectadores na produ- das questões e desenhos metodoló-
ção de sentidos na recepção de vídeos gicos das pesquisas. Na página117 do
com finalidades educativas? grupo é possível ter acesso à produção
Sol Worth (1974) indica um possível do grupo.
caminho que nos permite aproximar Como participante do grupo, eu
dessas respostas. pude integrar equipes de pesquisas
sobre usos de filmes e vídeos no ensino
Apesar de podermos ensinar por de física e biologia, além de conduzir
meio de filmes, temos que começar a estudos sobre usos de audiovisuais
entender como a estrutura do filme na formação em áreas de saúde, so-
em si e os modos visuais em geral, bretudo Medicina, Enfermagem e Psi-
estruturam nossos modos de orga- cologia. Nos parágrafos a seguir vou
nizar nossas experiências (WORTH, buscar apresentar brevemente alguns
1974). resultados dessas pesquisas para a
discussão central do presente capítulo.
Uma forma de estudar estas "ma- Os desenhos destas pesquisas, em
neiras de organizar experiências" é maior parte, foram bastante seme-
estudar as formas da circularidade en- lhantes, em geral constituído por um
tre a produção e a recepção de vídeos momento de análise das obras utili-
educativos. Caracterizar as intenções zadas, entrevistas com os produtores
e influências de produtores e de recep- e estudo das experiências dos espec-
tores na produção de sentidos/signi- tadores. Para estudar a produção,
ficados atribuídos a vídeos educativos utilizamos a Análise Fílmica Francesa
se configura como um primeiro impor- (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994) e Se-
tante passo a ser dado. Tal propósito miótica Social (HODGE e KRESS, 1988).
pode ser realizado com qualquer obra Para estudar o contexto, entrevista-
audiovisual. mos os produtores e analisamos do-
cumentos relacionados à produção da
obra, todos estes analisados segundo

406
a análise de conteúdo temática (BAR- ideias imprecisas presentes no vídeo,
DIN, 2008). conseguiram fazer proveito de alguns
Para Vanoye e Goliot-Lété (1994), conteúdos da obra, discutir e rejeitar
uma análise fílmica não pode centrar- os problemáticos. Essa dinâmica, entre
-se apenas no texto audiovisual. Ela outros pontos, evidenciou que estes
deverá também ser feita a serviço de professores tendiam supor seus alunos
um projeto, levar em conta o contex- como passivos e pouco críticos, aspec-
to de produção e buscar caracterizar to que não se confirmou.
as influências destes na composição Em outra situação, também na
do texto. Para os autores, analisar um formação em medicina, em uma dis-
filme é desconstruí-lo em suas partes, cussão pós-exibição de um filme, um
em seguida reconstruí-lo e buscar a professor tentou conduzir seus alunos
compreensão do todo da obra a partir a entendimentos que se aproximavam
da síntese das partes. mais de suas leituras pessoais e os
Com essas análises, buscamos iden- distanciando dos conteúdos presentes
tificar o significado preferencial e ca- no filme. Argumentos de poder, toma-
racterizar os modos de endereçamen- das de turnos, foram utilizados como
to. Em seguida, buscamos relacionar recursos de tentativa de controle das
esses elementos com os sentidos pro- produções de sentido. Entretanto, os
duzidos pelos espectadores, ou melhor, alunos fizeram leituras que se aproxi-
com a verbalização das experiências mavam mais dos conteúdos apresen-
desses espectadores com a obra em tados no vídeo, sempre articulados
estudo. A recepção, por sua vez, foi com suas experiências pregressas
estudada a partir da realização de em estágios curriculares e disciplinas
exibições experimentais seguidas de teóricas. Mais uma vez, apesar das
discussão em grupo ou aplicação de descrenças de alguns professores, es-
questionários. ses estudantes foram ativos e fizeram
Em uma situação de pesquisa na uso de seu percurso formativo até ali
formação em medicina, um vídeo edu- para produzir sentidos mais afinados
cativo foi exibido e discutido em dois às suas necessidades formativas e
momentos com dois grupos distintos, mais coerentes ao discurso da própria
o primeiro grupo formado por profes- disciplina em que foi utilizado. Outros
sores de uma disciplina, o segundo professores dessa mesma disciplina
formado por estudantes dessa mesma não empreenderam uma mediação
disciplina. O vídeo exibido foi bastante tão controladora, e os alunos pude-
criticado pelos professores, que afir- ram aproveitar das cenas e situações
maram que os conteúdos e formas do do filme para enunciar questões sobre
filme poderiam levar os estudantes a dúvidas que estas carregavam sobre a
produzir entendimentos errados sobre prática médica.
os tópicos da disciplina em questão. Um resultado que reforça essa per-
Contudo, os estudantes, quando fo- cepção do espectador ativo aconteceu
ram os espectadores pesquisados, de- em estudo na enfermagem. Nessa
monstraram estar conscientes dessas oportunidade foi pesquisa um vídeo

407
educativo voltado a apresentar pro- estruturado didaticamente, claramen-
blemas e modos de realizar a consulta te ofereceu um “caminho” confiável
em enfermagem em um contexto de de leitura aos espectadores. Essa es-
saúde pública em uma área carente. trutura retórica apresentou uma tese
Ocorreu que a discussão desenvolvida que foi reforçada por comentários de
pelos espectadores destacou em gran- especialistas sobre o assunto, além
de parte o papel social e político dos de diversas encenações de ilustração.
enfermeiros nesses contextos e a ne- Apesar de peculiaridades em suas lei-
cessidade por valorização da profissão. turas, todos os espectadores aderiram
A partir do vídeo, os espectadores revi- ao discurso defendido pelo filme. Todos
sitam suas experiências, questionaram os pontos que constituem o Significa-
suas práticas, repensaram sua atu- do Preferencial foram discutidos. Esse
ação macro e micro, fazendo críticas significado preferencial, de forte viés
importantes ao funcionamento do sis- político, contou com um duplo ende-
tema de saúde. Assim, foram as refle- reçamento. Espectadores de ambos
xões sobre as vivências bem como uma grupos foram, pouco a pouco, aderin-
formação atenta às lutas políticas da do ao argumento central da narrativa
classe que ofereceram recursos para e começaram a repensar algumas de
que os espectadores pudessem produ- suas práticas cotidianas. Nesse caso,
zir sentidos mais próximos às expecta- o filme contribuiu para a tomada de
tivas dos produtores e, principalmente, consciência de alguns espectadores e
às demandas sociais do serviço de para a ressignificação de suas relações
saúde. Apesar do distanciamento his- sociais.
tórico entre o momento da audiência e Nos três cenários os estudantes
o momento de produção do vídeo, foi transcenderam o significado esperado
identificada a permanência das pau- para as obras utilizadas e ativamente
tas de lutas políticas na enfermagem produziram sentidos que conectaram
(e na saúde), além dos desafios pesso- o discurso dos audiovisuais às suas
ais experimentados em suas trajetó- demandas por aprendizados e aos
rias profissionais. Em todas as dimen- contextos disciplinares em que as ati-
sões do Modelo Multidimensional as vidades foram realizadas, aos quais
leituras tenderam a ser muito próximas também extrapolaram. Por exem-
àquelas pretendidas pelos produtores, plo, na educação médica houve uma
contudo, na dimensão implementação, tendência do uso do vídeo como um
os participantes conectaram suas lei- universo vivencial no qual os estudan-
turas a demandas sociais emergentes tes puderam experimentar situações
em suas práticas profissionais. ainda distantes de suas práticas. As-
Na psicologia, o estudo foi reali- sim, refletiram sobre as demandas
zado no contexto de uma atividade de saúde mental aos profissionais no
extracurricular, um cineclube, em que cuidado aos pacientes. Os estudantes
professores e alunos se reúnem para de enfermagem foram além do uso
discutir temas transversais à formação como universo vivencial e utilizaram da
de graduação em psicologia. O filme, obra para criticar aspectos do modelo

408
atual de assistência em saúde. Já os complexa, envolve muitos atores e não
estudantes de psicologia, em sua ex- pode ser simplesmente compreendi-
periência com o audiovisual, repensa- da em termos de emissão, mensagem
ram suas identidades e práticas, com e recepção. Também ressaltamos a
atenção especial àquelas assujeitado- complexidade dos espectadores e das
ras dos usuários de serviços de saúde relações cotidianas influentes e im-
mental. plicadas nessa produção de sentidos.
Para isso, citamos alguns exemplos de
Mas a sensibilização e conscientização? resultados de pesquisas por nós reali-
Algumas palavras finais... zadas, em que os alunos negociam a
seus entendimentos dos audiovisuais
A minha opção por estruturar esse e negociam com professores o que
texto passando por minha trajetória querem e precisam compreender. Eles
de pesquisa foi para mostrar o quanto resistiram aos controles empreendidos
foi difícil encontrar na educação am- e criaram modos de habitar ou expe-
biental trabalhos que se voltassem à rimentar às narrativas audiovisuais
problemática do receptor, do espec- que fossem mais coerentes com seus
tador. Para desenvolver esses estudos universos.
precisei me aproximar das pesqui- Obviamente, essa discussão não
sas em formação de profissionais de passa apenas por referenciais teóricos
saúde. É importante ressaltar que na de comunicação. Essa precisa também
saúde também não havia tanta oferta estar sustentada por teorias advindas
assim de trabalhos, mas certamente da educação, sobretudo aquelas mais
superior aos trabalhos em Educação progressistas e pautadas pelo diálogo,
Ambiental. Sem dúvidas há muitos em que os alunos não sejam apenas
bons trabalhos, na Educação Ambien- depósitos de informações, mas criado-
tal, que relacionam a importância da res ativos de conhecimento. Por essa
produção em colocar em circulação razão, ao longo da escrita deste texto
discursos e/ou realidades e vozes nem eu fui constantemente provocado pelo
sempre valorizadas ou socialmente título deste livro. Aliás, devo confessar
“escutadas”. Essas produções em geral que esse título muito bem escolhido
partem de práticas e estudos, muitas me fez colocar esse texto como priori-
vezes são estudadas em seu potencial dade frente a outros em minha fila de
de “ensinagem”, mas poucas vezes são produções. Imagina-mundos? Imagi-
pesquisados em suas possibilidades de nar mundos? Com base nas ideias que
aprendizagens. discuti até aqui, eu só posso pensar
O referencial teórico desenvolvido que imaginar mundos passa por pos-
por nós e aqui apresentado, ressaltou sibilitar e favorecer que outros mundos
a importância de se considerar a ati- sejam imaginados, que essas imagi-
vidade dos espectadores na produ- nações sejam escutadas e, portanto,
ção dos sentidos a partir de um dado imaginar mundos passa pelo exercício
audiovisual. Destacamos que essa democrático do diálogo de permitir e
interação mediada por imagens é possibilitar que outros mundos sejam

409
enunciados e imaginados. Assim, tra- e conscientizar, como objetivos educa-
ta-se conceber imagens para que o cionais, subentendem um desequilíbrio
mundo seja imaginado. Ou seja, de- nas relações de produção de signifi-
manda se abrir para as “imagens ima- cados e sentidos, conferindo aos pro-
ginadas” a partir das experiências dos dutores poderes bem maiores que os
outros com as imagens que produzi- poderes dos espectadores.
mos. Essa circularidade de produção e
recepção, ou produção e (re)produção Referências
é base para o exercício da dialogici-
dade nas interações mediadas por ARROIO, A.; GIORDAN, M. O vídeo
imagens. educativo: aspectos da organização do
Portanto, voltando à sensibilização ensino. Química Nova na Escola, n. 24,
ou conscientização, não se trata de dar p. 8-11, nov. 2006.
consciência ou tornar mais sensível,
mas de favorecer diálogos, ouvir e ser ARROIO, A; DINIZ, ML; GIORDAN,
ouvido, proporcionar experiências de M. A utilização do vídeo educativo
encontros e saberes diversos. Para isso como possibilidade de domínio da
é preciso olhar para toda a dinâmica linguagem audiovisual pelo professor
de produção de significados e senti- de ciências. V Encontro Nacional de
dos por produtores e espectadores. Pesquisa em Educação em Ciências.
Dar voz, ou não silenciar as vozes dos Atas do V ENPEC, 2005.
estudantes/espectadores é uma con-
tribuição à imaginação desses mundos ARROIO, A.; GIORDAN, M. O vídeo
possíveis, talvez uma das poucas vias educativo: aspectos da organização do
possíveis e frutíferas para imaginar ensino. Química Nova na Escola, v. 24,
esses mundos. Com isso, eu posso re- 2004. 8-11 p.
pensar aquela minha primeira experi- BARDIN, Laurence. Análise de
ência no Projeto Pólen e entender que conteúdo. 19ª Ed. Lisboa/Portugal:
exatamente quando os estudantes Edições 70, 2008.
não seguiam o roteiro planejado de
discussão, eles estavam exatamente BLASCO, P.; GALLIAN, D.;
ampliando aquele momento educativo RONCOLETTA, A.; MORETO, G. Cinema
para além de minhas possibilidades de para o estudante de medicina: um
compreensão. Nesses desvios eles es- recurso afetivo/efetivo na educação
tavam realmente criando, imaginando, humanística. Rev. bras. educ. med. Rio
um mundo para além dos limites de de Janeiro, v. 29(2), 2005.
minhas capacidades cognitivas.
Eu termino reforçando que uma edu- BOOG, M.; VIEIRA, C.; OLIVEIRA, N.;
cação ambiental crítica não pode ser FONSECA, O.; L´ABBATE, S. Utilização
realmente crítica se ainda seguir, mes- de vídeo como estratégia de educação
mo que tenuemente paradigmas auto- nutricional para adolescentes:
cráticos em suas pesquisas e práticas “Comer...o fruto ou o produto?” Rev.
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411
NOTAS

Capitulo 18

177 http://www.nutes.ufrj.br/geraes/

412
Las dos caras del dios Jano o
cómo conviven las dos imágenes
encontradas de una misma ciudad:
Santa Fe de la Vera Cruz
Francisco Sempere Ruiz

1 9.
Introducción

Los primeros años del recién estrenado siglo XXI en Argentina y, más con-
cretamente, en Santa Fe no pudieron comenzar de una forma más abrupta. Des-
pués de diez años de reformas de corte neoliberal, durante los años 90 y bajo
los dos gobiernos del presidente Carlos Menem, fueron larvando una crisis sin
precedentes que tuvo su explosión en el mes de diciembre del 2001, cuando todo
el sistema colapsó. Argentina comenzó así la que sería la peor de sus (reiteradas)
crisis en todos los órdenes: político, económico y social. Dos años más tarde, en
el 2003, Santa Fe se inundó en una tercera parte de su territorio, no por efecto
de un evento climático violento o inesperado, sino por una serie de dejaciones
por parte de sus líderes políticos, quienes todavía, quince años más tarde, no han
afrontado ningún tipo de responsabilidad penal por sus lamentables decisiones.
El resultado fue la peor inundación que la ciudad sufrió en varias décadas con
múltiples daños personales, decenas de muertos y desaparecidos, y cuantiosos
daños materiales que provocaron el desplazamiento de numerosas familias.
Este terremoto político, económico y social provocó un cambio de ciclo que
a nivel nacional significó la llegada del “Kirchnerismo”, una interpretación muy
personal del peronismo con el presidente Néstor Kirchner primero y que después
fue asumido por su mujer, Cristina Fernández de Kirchner, durante dos legisla-
turas completas. Estos cambios políticos tuvieron su correlato regional con los
gobiernos del Frente Amplio de Pepe Mujica en Uruguay, de Ignacio “Lula” da
Silva en Brasil, de Fernando Lugo en Paraguay, de Evo Morales en Bolivia, de
Rafael Correa en Ecuador y de Hugo Chávez en Venezuela. Todos ellos tuvieron

414
dos cosas en común. En primer lugar, Sin embargo, los nuevos regidores en
fueron tildados de “populistas” por sus la ciudad y en el gobierno provincial no
detractores y, en segundo lugar, tuvie- tuvieron la suficiente voluntad política
ron a favor una fuerte demanda y su para cambiar de paradigma cultural.
consecuente subida de precios de las Según la clasificación de Néstor García
materias primas de las que sus países Canclini, se distinguen diferentes pa-
son proveedores de las principales eco- radigmas culturales. En el mejor de los
nomías mundiales. Esto provocó que casos en Santa Fe nos encontramos en
las arcas estatales recibieran un fuerte el de la democracia cultural sin darse
estímulo durante muchos años. Años los pasos necesarios para alcanzar el
que, en opinión del politólogo argen- paradigma cultural de la democracia
tino Atilio Borón, sirvieron como meta participativa.
para que los países del Cono Sur die- Por tanto, en el presente trabajo,
ran “a luz un inverosímil e improbable vamos a analizar los resultados de la
capitalismo serio y racional” (Borón, p. política cultural llevada a cabo duran-
21, 2014). Efectivamente, los líderes de te el primer período de gobierno local
la región no se atrevieron a dar los pa- y provincial. Para el análisis de estos
sos necesarios para cambiar el modelo datos, nos servimos del Observatorio
de desarrollo y de dependencia de los Social de la Universidad Nacional del
países centrales, por lo que los niveles Litoral, agente que durante más de 15
de desigualdad no disminuyeron, aun- años viene realizando diferentes en-
que sí lo hicieran las cifras de desem- cuestas entre la sociedad santafesina
pleo, de subempleo y de marginación, en lo que concierne a los consumos de
en base a la transferencia de una serie los bienes culturales públicos, a otras
de recursos económicos de corte asis- actividades recreativas culturales o a
tencial y, en última instancia, paliativo. los usos del tiempo libre. Son datos,
En el foco local, hubo una serie de conviene aclarar, que proceden del
transformaciones políticas a nivel mu- Panel de Hogares que realiza el men-
nicipal y provincial que confirieron a la cionado Observatorio Social de la Uni-
ciudad de Santa Fe nuevos aires. En lo versidad Nacional del Litoral. El Panel
que concierne a nuestro trabajo, cabe de Hogares posee una periodicidad
mencionar que se ampliaron la infraes- anual y tiene como finalidad relevar
tructura y la oferta cultural de la mano información significativa de los hoga-
de los recientemente creados Ministe- res santafesinos. Dicha información
rio de Innovación y Cultura provincial y constituye lo que, en el Observatorio
de la Secretaría de Cultura municipal, Social, se conoce como la Onda de
ambos del año 2007. Es importante Panel, es decir, que los hogares que,
destacar este dato, puesto que la Ar- año a año, acceden a responder dicha
gentina solo cuenta con el Ministerio encuesta son los que pasan a formar
de Cultura de la Nación desde el año parte del Panel Detallista, o sea, que
2014, cuando antes tan sólo poseía son los mismos hogares que responden
rango de Secretaría. la encuesta cada año. Esto permite
analizar la comparación de resultados

415
y la rotación de sus respuestas en base la universidad pública y gratuita como
a los mismos actores sociales, realizan- principal factor de movilidad social (o
do un seguimiento de sus necesidades quizás aumentaron las dificultades que
y de las acciones a partir de las cuales tienen muchos ciudadanos en poder
satisfacen las mismas. terminar unos estudios de educación
superior, a pesar de su gratuidad). Por
Contextualización socio-demográfi- último, en el año 2010, la Universidad
ca y económica. Una radiografía actual Nacional del Litoral concentró 42.862
de la ciudad de Santa Fe alumnos en sus 14 unidades académi-
cas entre facultades, escuelas e institu-
De acuerdo al último censo del año tos. Datos que nos llevan a pensar que
2010, la población de la provincia de muchos de los alumnos que, actual-
Santa Fe es de 3.194.537 habitantes, mente, se inscriben en alguna carrera
lo que significa el 7,96% del total de la universitaria no llega a terminar nunca
población, ubicándose a nivel nacional sus estudios.
en el tercer lugar, tras las provincias En cuanto al mercado laboral de
de Buenos Aires y Córdoba. Respecto la ciudad y de acuerdo a la Encuesta
al anterior censo de 2001, la pobla- Permanente de Hogares, el número
ción creció un 6,5%, inferior a la media de personas económicamente acti-
del país que resultó del 10,6%, en una vas en el cuarto trimestre del 2011 es
superficie total de 133.007 kilómetros de 217.000 en el aglomerado de Gran
cuadrados, que representa un 4,76% Santa Fe de un total de 513.000 y el
del total de la superficie del país. número de desocupados representaba
Del total de la población santafesi- el 5,7%, por lo que se observa una im-
na, alrededor de un 30% o, lo que es portante reducción de desempleados
lo mismo, 913.538 personas mayores respecto del último censo del 2001, el
de 3 años asistieron a una institución mismo año que estalla la peor crisis
educativa. La mayor parte de esta socio-económica y política de la histo-
cantidad lo hicieron en un nivel prima- ria reciente argentina. Por otra parte,
rio, 391.955 personas, seguido del nivel el principal grupo etario afectado por
secundario con un total de 222.338. En la desocupación, en términos absolu-
el año 2010, según el Censo Nacional tos, es el de 20 a 29 años. Este dato
de Población Hogares y Viviendas, los es compartido con el aglomerado del
habitantes de la provincia de Santa Gran Rosario. En ambos aglomerados
Fe, mayores de 20 años, que comple- se registra un importante descenso del
taron el nivel universitario alcanzaron número de desocupados en este grupo
las 127.497 personas, de las cuales un etario durante el año 2011, aunque en
54,6% son mujeres y un 45,4% varones. el del Gran Santa Fe se aprecia en me-
La mayor parte de graduados univer- nor medida.
sitarios (21,1%) se concentra en el grupo En el Gran Santa Fe, los trabajado-
etario que va entre los 40 y 49 años, res se concentran mayormente en el
por lo que parece que se produce un comercio, y en menor medida, en la
retroceso en cuanto a la confianza en administración pública, la construcción

416
y la enseñanza, concentrando cerca del En cualquier caso, según los datos
56% de la población ocupada, lo cual difundidos en el 2005 por el Indec -
demuestra ser un modelo productivo, Instituto Nacional de Estadísticas y
el de un capitalismo comercial, que Censos - el conglomerado Santa Fe su-
cuenta con un sector industrial y pro- peraba la media nacional y también lo
ductivo insignificante. El porcentaje de hacía en los niveles de indigencia; que
asalariados sin aportes jubilatorios, el marca cuántas de las personas que es-
cual se toma como medida del trabajo tán en situación de pobreza, ni siquiera
no registrado, en el último trimestre de cuentan con ingresos suficientes para
2011, se ubica en 24% en el Gran Ro- cubrir las necesidades alimentarias. En
sario y, en el 28%, en el Gran Santa Fe. este caso, con el 17,1 %, Santa Fe esta-
Sin embargo, en términos del total de ría dos puntos por debajo del primer
asalariados, el trabajo informal ascen- semestre de 2004, cuando se situaba
dería a cerca del 32% en el Gran Rosa- en 19,2. Sin embargo, este dato está
rio, siendo del 35% en el aglomerado sujeto a una variación del 10 %, por lo
Gran Santa Fe. Estas cifras implican que registra un importante grado de
una reducción de dos puntos porcen- incertidumbre.
tuales respecto a un año atrás, ubicán- Mientras tanto, aún con valores al-
dose cerca del promedio nacional del tos, la tendencia es diferente en el caso
34%. De ahí también el modelo dual del Gran Rosario, donde el nivel de
dentro de la sociedad santafesina en pobreza viene declinando: 54,6 % en
el que un tercio de su población queda el primer semestre de 2003; 47,9 en el
al margen de los beneficios sociales y segundo; 42 en el primero de 2004 y,
económicos de un trabajo de calidad y 36,5, en el segundo.
de los aportes jubilatorios. Según los datos del Indec para el
En siguiente lugar vamos a com- resto de la Argentina, cerca de 15 millo-
probar que estos datos resultan op- nes de argentinos vivían en la pobre-
timistas si los comparamos con la in- za, de los cuales unos 5 millones eran
formación recabada durante los años indigentes. El organismo precisó que,
anteriores, los de la primera década al cierre de 2004, el 40,2 por ciento de
del nuevo siglo resultantes del cata- los habitantes de los 28 principales
clismo de la crisis del 2001 ya mencio- aglomerados del país era pobre, lo que
nada. Según la Fundación Proteger, representa una reducción de 4,1 puntos
el 46,6% de los santafesinos vivía en porcentuales frente al 44,3 por ciento
una situación de pobreza, en una pro- que se registró en el primer semestre
porción que aumentó en el segundo del año. A su vez, el número de indigen-
semestre de 2004, con respecto al pri- tes se redujo de 17 por ciento al 30 de
mero (cuando registraba el 46,1%). El junio de 2004 a 15 por ciento al finali-
salto es mucho mayor si se compara el zar el año. Por lo que resulta una evi-
segundo semestre de 2004 con el mis- dencia decir que, a partir de diciembre
mo período de 2003, cuando indicaba del 2001, momento en el que estalla la
un nivel del 36 %7. crisis argentina, y a lo largo del 2002
y de los años sucesivos, el país toca

417
fondo. A partir de este momento, se 2001, donde se sitúa por debajo del to-
producirán ciertos cambios políticos, la tal, cercano al 20%.
llegada del nuevo Presidente de la Na- Para las mismas fechas, la provincia
ción Néstor Kirchner, respaldado por el de Santa Fe era la cuarta en el ranking
vigor que confirieron el nuevo ciclo de nacional de conexiones residenciales
las commodities y sus excepcionales a Internet. Momento en el que se dis-
precios de venta, para, a partir de una ponía de 348.714 accesos residenciales
política asistencial gubernamental, ir totales, lo que equivale a una partici-
reduciendo, a lo largo de la primera pación del 7,3% sobre el total país. En
década del nuevo siglo, los niveles de la provincia de Santa Fe, de acuerdo
indigencia y pobreza nacionales. con el Censo de Población, Hogares y
Uno de los indicadores que pueden Viviendas del año 2010, el 47,6% de los
dar una medida del proceso que se hogares cuenta con ordenador perso-
está describiendo sería el del equipa- nal, lo cual no es un número muy alen-
miento de los hogares, una forma de tador si tenemos en cuenta que éste
evaluar las necesidades básicas insa- se ha convertido en una herramienta
tisfechas de las familias santafesinas indispensable en la nueva era de la
o el acceso a la era de la información información, tanto para el desempe-
en cuanto al número de personas que ño profesional como para el ocio y el
tienen acceso a un ordenador personal entretenimiento.
o a una conexión a internet. Según el
Censo Nacional del 2010, el 95,9% de La localización de los principales
los hogares disponía de una nevera, puntos de la oferta de los Bienes Cultu-
cifra que aumentó levemente respecto rales Públicos de la ciudad de Santa Fe
al Censo de 2001 (93,5%). En segundo y algunas propuestas de la sociedad
lugar, se encuentran los teléfonos mó- civil
viles, ya que el 86,0% de los hogares
disponían de ellos, valor fuertemente A partir de la descripción de la con-
superior al del Censo anterior (27,0%). figuración de la oferta de los bienes
En tercer lugar, se ubica el teléfono culturales públicos de la ciudad, pro-
de línea, con el 60,0% de los hogares, cedemos a realizar un mapeo para fa-
valor levemente superior al del censo cilitar la localización y comprensión de
anterior (58,8%). Otro aumento impor- estos puntos que - como comprobará
tante respecto al censo de 2001 es la el lector líneas más abajo - su principal
disponibilidad de un ordenador perso- característica es el aglutinamiento y la
nal en los hogares ya que, en el 2010, concentración de los mismos alrededor
el 47,6% de ellos disponen de uno, del micro-centro de la ciudad, en torno
mientras que en el 2001 sólo lo hacía a un contado número de calles, a ex-
el 18,5%, lo cual la ubica siete puntos cepción de algunos puntos de interés
por encima del porcentaje del total del que fueron creados de forma relativa-
país, implicando una mejora relativa mente reciente, a partir del año 2007,
con respecto al censo anterior del año y con el objetivo de ampliar el espacio
en donde el ciudadano pueda disfrutar

418
del “hecho cultural”, descongestionan- provinciales de signo peronista como
do, al mismo tiempo, ese solapamiento empleada de planta y, una vez con-
que venimos enunciando. sumado el cambio de gobierno, esta
Esta oferta de bienes culturales pú- vez socialista, en el año 2007, pasa a
blicos que la ciudad ofrece debe ser ser asistente técnico en el Ministerio
considerada como posibles “recursos” de Innovación y Cultura, en el área de
en un sistema urbano. En este sentido, programación que, conviene recor-
queremos recordar el concepto que dar, no solo tiene que ver con aquellas
David Harvey tiene de estos “recursos” actividades que se realizan en la ciu-
que, a pesar de la tendencia general, dad sino también en lo que se hace en
en modo alguno deben ser considera- todo el territorio provincial, además
dos como “naturales”. Por tanto, Har- de asumir la función de directora del
vey estima que “es más satisfactorio Centro Cultural Provincial durante unos
considerar la ciudad como un sistema años. “La concentración de los lugares
gigantesco de recursos, la mayoría donde consumir cultura es total”, nos
de los cuales han sido construidos por dice Cristina, quien apostilla, “salvo en
el hombre. Es también un sistema de aquellos lugares recuperados, como el
recursos localizado territorialmente “Tríptico de la Imaginación”.
en el sentido de que la mayoría de los Efectivamente, se amplió la posi-
recursos que podemos utilizar en un bilidad de poder acudir a un evento
sistema urbano no se encuentran en cultural en la parte norte de la ciudad,
todas partes y, por consiguiente, su al menos más al norte del “eje tradi-
disponibilidad depende de la accesibi- cional” (micro-centro de la ciudad) y la
lidad y proximidad. Así, pues, el siste- nueva centralidad de la ciudad a partir
ma urbano contiene una distribución del bulevar Pellegrini con la recupera-
geográfica de recursos creados de una ción de ciertos espacios y su posterior
gran importancia económica, social, reconversión para la cultura. En un pri-
psicológica y simbólica” (Harvey, p. 66 mer lugar, tenemos “La Redonda: arte
y 67, 1977). y vida cotidiana” que supone la trans-
Al respecto, entrevistamos a dos formación de un antiguo taller de loco-
personas que viven muy de cerca esta motoras en un proyecto cultural, social
problemática. Desde su vida personal y pedagógico que busca propiciar el
y desde su dedicación profesional son cruce y los vínculos intergeneracionales
dos agentes sociales que han dedicado a través del juego. En segundo lugar,
muchos esfuerzos, desde lugares muy contamos con “La Esquina Encendida”,
distantes, a la ciudad de Santa Fe. situado en el predio donde anterior-
En primer lugar, tenemos a mente funcionaba el Campo Universi-
Cristina Copes, de 69 años, quien ha tario y en donde los estudiantes de la
dedicado toda su vida a la cultura; Universidad Nacional del Litoral prac-
primero, como bailarina profesional, ticaban deportes como el fútbol, vóley
para más tarde dedicarse a la gestión o hockey y en el que hoy se desarrollan
cultural. En sus principios de gestión actividades lúdicas, culturales y depor-
lo hizo para los diferentes gobiernos tivas para todas las edades y de forma

419
gratuita. Ambos son proyectos del nue- En el cuadro n°1, podemos apre-
vo gobierno provincial de la ciudad, de ciar los diferentes lugares en donde se
corte socialista, que resultó ganador puede acceder a un evento cultural de
de las elecciones del 2007. En tercer carácter público y de una forma mucho
lugar, la ciudad cuenta en el barrio de más nítida su concentración en el cen-
Guadalupe, al noreste de la ciudad, el, tro histórico de la ciudad. Esta parte
un tanto abandonado, museo muni- urbana es la que, desde la fundación
cipal “César López Claro”. Por último, de la ciudad, concentró los sectores
cabe señalar que a lo largo del bulevar sociales más influyentes, las familias
Pellegrini, eje de esa nueva centralidad patricias, para posteriormente, y con-
de la ciudad, se encuentran “El Moli- forme crecía la ciudad, aglutinar a los
no: Fábrica cultural”, un antiguo mo- inmigrantes, de origen italiano y espa-
lino harinero transformado hoy en un ñol, mayoritariamente, que se dedica-
espacio de creación común con otros ron en gran proporción al comercio.
para contribuir al fomento de los vín- Es conveniente no olvidar que la dis-
culos sociales y de la articulación de la tribución de los recursos, y los bienes
cultura para las nuevas generaciones, culturales lo son, nunca es igual ni geo-
también proyecto del nuevo gobierno gráfica ni socialmente, sino que son el
socialista, y el “Museo de Arte Contem- resultado de unos procesos políticos
poráneo” de la Universidad Nacional que David Harvey califica de “predeci-
del Litoral. bles”. “En otras palabras” - dice Harvey
“Y es que - continúa diciendo Cris- - “podemos esperar que se establezca
tina Copes - “la cultura adquirió para un “orden jerárquico” entre varios gru-
la administración provincial una prio- pos de la población para explotar los
ridad única, entendida como un arma diversos recursos que ofrece la ciudad.
de transformación social”. Estas po- Aquellos que estén al final de este or-
líticas culturales, aunque se pusieron den jerárquico serán los perdedores”
en marcha a partir del 2007, llegaron (Harvey, p. 77, 1977).
en un momento muy delicado para la
ciudad. Recordemos una vez más que
Santa Fe sufrió en el año 2003 la terri-
ble inundación que anegó un tercio de
su superficie y que, en el 2007, volvió
a sufrir otra inundación, aunque ésta,
afortunadamente, de menores dimen-
siones. “Santa Fe estaba hecha pelo-
ta, una ciudad espantosa”, recuerda
Cristina, “pienso que el primer impacto
debía ser la recuperación de estos es-
pacios para la ciudad, por lo que me
parece que la ciudad se transformó
desde el momento en que se recupera-
ron esos espacios”.

420
Cuadro n°1: La configuración de la oferta de los
Bienes Culturales Públicos en Santa Fe.

Fuente: elaboración propia.

421
Debemos añadir, no obstante, que a de la misma (ADUL) desde hace cinco
pesar de los esfuerzos institucionales años. Además, trabaja como activista
por mejorar, descongestionar e incre- en diferentes grupos ambientalistas
mentar la oferta de los bienes cultura- en lo que él llama activismo epistémi-
les, la ciudad cuenta con una sociedad co que es un tipo de activismo social
civil atenta y comprometida que en- que no solamente trata de incidir en
tiende que, gracias al esfuerzo común el ámbito político, sino también en el
de sus ciudadanos, se pueden opti- de la formación de conceptos para el
mizar de una forma más democrática debate público. Labor que realiza con
e inclusiva los recursos con los que se sus alumnos y con algunas asociacio-
cuentan para resolver las problemáti- nes de base y con organizaciones no
cas inherentes a la ciudad y crear, pro- gubernamentales.
poner y fortalecer futuras intervencio- Fruto de esta labor, comienzan a sur-
nes o actividades sociales y culturales. gir lo que se conoce como las cartogra-
Fruto de este empeño surge, en el fías activistas. Óscar Vallejos considera
año 2016, “el (pequeño) Atlas colectivo que la Universidad produce una serie
de Santa Fe”, como resultado de un de dispositivos teóricos para pensar
proceso de co-investigación desarro- el territorio que plantea una idea de
llado durante cinco jornadas con más neutralidad valorativa, “cosa que no es
de doscientos cincuenta participantes así, pero que los estudiantes se quedan
provenientes de diversas prácticas so- con esa fantasía de que los productos
ciales, políticas, educativas, culturales cartográficos son neutros con respecto
y artísticas, articulados en diferentes a las condiciones sociales”.
talleres que se desplegaron bajo la A partir de estos presupuestos y en
temática global del “derecho a la ciu- participación con el grupo Iconoclasis-
dad”. Según se desprende de su pu- tas, formado por Julia Risler y Pablo
blicación, funcionó como un paraguas Ares, quienes elaboran proyectos com-
que contuvo diversas reflexiones sobre binando el arte gráfico, los mapeos
las problemáticas sociales y urbanas creativos y la investigación colectiva,
las prácticas, recursos y herramien- tratan de que mediante la activación
tas culturales existentes en distintos de dispositivos gráficos y el diseño de
puntos de la ciudad y los deseos y un arsenal de herramientas se estimule
proyectos imaginados sobre áreas la reflexión crítica para impulsar prác-
específicas. ticas de resistencia y transformación.
Una de las personas que participó Pues bien, de esta conjunción de es-
en la confección de “el (pequeño) At- fuerzos surge la idea de producir car-
las colectivo de Santa Fe” fue Óscar tografías sobre el territorio de Santa
Vallejos, de 50 años de edad, docente Fe a partir de las experiencias y de las
de la Universidad Nacional del Li- percepciones de quienes habitan este
toral, en la Facultad de Ingeniería y espacio y no tanto desde la mirada de
Ciencias Hídricas y de la Facultad de los funcionarios o de los expertos.
Humanidades y Ciencias y Secretario Al tomar esto como punto de par-
Adjunto de la Asociación de Docentes tida se organiza un taller de mapeos

422
colectivos sobre las problemáticas de se desplace por la ciudad, que los que
la ciudad, que asume como eje dos se desplacen sean las clases medias o
cuestiones: la primera, tiene como fi- los sectores acomodados, que sí tienen
nalidad la de armar narrativas sobre el derecho a moverse por la ciudad, sin
mapa oficial de la ciudad y, la segun- embargo, los sectores populares están
da, construir narrativas alternativas encapsulados”.
en función de las asociaciones civiles Es posible que una de las conse-
y de todos aquellos participantes que cuencias, deseada o no, de esta polí-
se encontraron en el Museo Provincial tica por parte del gobierno provincial
de Bellas Artes Rosa Galisteo de Rodrí- de recuperación y ampliación de espa-
guez de la ciudad durante cinco jorna- cios culturales hacia el norte, sea esta
das en el mes de noviembre de 2016. segmentación o territorialización de la
En “el (pequeño) Atlas de Santa Fe” ciudad.
se desprenden - véase el cuadro nú- En opinión de Óscar Vallejos, muy
mero 2 - las problemáticas, los daños, crítico siempre en sus diagnósticos con
las falencias y las amenazas que, a su la gestión política municipal y provin-
juicio, sufre la ciudad. En líneas gene- cial, “es para asegurarse que no haya
rales, los resultados del trabajo conclu- desplazamiento de los pobres o sec-
yen con que Santa Fe es “una ciudad tores populares hacia el centro y, al
desigual, que le da la espalda al oeste, mismo tiempo, valorizar esos lugares
que invisibiliza zonas del noroeste y de los sectores acomodados y los al-
del norte y que concentra las mejoras rededores de la estación Belgrano, al
y el acceso a los servicios básicos en tiempo que se conforma una idea de
el centro”, entre aquellos que brindan que esos lugares son para todos”.
los consumos culturales de bienes Este diagnóstico es congruente con
públicos. el que hace David Harvey, cuando re-
En opinión de Óscar Vallejos, los salta que los conflictos entre individuos
gobiernos de la municipalidad y de la y grupos de individuos no serán fácil-
provincia tienen “un proyecto neocon- mente resueltos en cualquier sistema
servador que se expresa en un proyec- urbano mientras la heterogeneidad
to de territorialización de la ciudad que de los valores sociales y culturales de
se concentra alrededor de la Estación la población esté muy difundida. En
Belgrano y de la costanera, que es el este sentido, concluye Harvey al decir
epicentro del radicalismo en la ciudad, que: “parece que la forma “natural”
para hacer prácticas culturales y que de minimizar este tipo de dificultad es
yo veo como muy crítico porque lo que buscar un modelo de organización te-
tiene es un proyecto de segmentación rritorial que minimice tanto el contacto
de la ciudad”. “Si uno mapea la cabeza social entre individuos con diferentes
de los funcionarios radicales (en refe- valores sociales y culturales […] Por
rencia a los funcionarios pertenecien- tanto, la organización territorial y “ve-
tes al partido político de la “Unión Cívi- cinal” por etnia, clase, estatus social,
ca y Radical”)” - continua Vallejos - “el religión, etc.; desempeña un impor-
gran proyecto oficial es que la gente no tante papel en la minimización de los

423
conflictos en el sistema urbano” (Har- negro, marginalidad en obras, servi-
vey, p. 80, 1977). cios, educación efectiva, alimentación,
Consecuentemente, deberíamos recreación) va a continuar incremen-
preguntarnos si la ciudad de Santa Fe tándose” (Cervera, p. 31, 2013).
reúne esa heterogeneidad de valores
sociales y culturales entre sus ciuda-
danos. La respuesta es absolutamente
sí. Para fundamentar dicha respuesta
haremos referencia a la denominación,
por parte de Felipe Cervera, de “socie-
dad dual” para hablar de la sociedad
santafesina: “Aparece separada en
dos sectores opuestos en cuanto a los
beneficios que gozan sus habitantes:
económicos, sociales, culturales. Es una
sociedad donde un grupo posee todos
los beneficios; el otro, todas las dene-
gaciones” (Cervera, p. 30, 2013). Efec-
tivamente, un sector mayoritario com-
puesto por dos tercios de la población
goza de los beneficios de un trabajo
en “blanco”, de obra social y de jubila-
ción, más la posibilidad de acceso de
sus hijos a la Escuela Media, mientras
que el resto, los sectores populares,
están absolutamente marginados con
escaso trabajo y en negro, sin obra
social o sin posibilidad de jubilación y
sin los servicios básicos como el agua,
el alcantarillado o el transporte pú-
blico. Cervera califica esta situación
como de “latinoamericanización” de
la sociedad, es decir, que constituye un
proceso asincrónico que produce “una
brecha insuperable en la medida en
que se mantenga la actual economía,
sus valores, y los valores de la élite diri-
gente”. Al respecto concluye Cervera, al
decir que “mientras no se modifique la
base económica (el capitalismo comer-
cial) de este centro urbano, el proceso
de dualidad, y su consecuencia, la en-
tropía social (desocupación, trabajo en

424
Cuadro n° 2. Las problemáticas, los daños, las
falencias y las amenazas en la ciudad de Santa
Fe.

Fuente: Pequeño atlas colectivo de la ciudad de


Santa Fe. Iconoclastas. 2016.

425
En referencia a este diagnóstico, el para profundizar en el territorio. Se re-
anterior cuadro número 2 de “el (pe- saltó, por ejemplo, el deseo de que las
queño) Atlas de Santa Fe”, apunta, experiencias sean abiertas y que los
además, a denunciar serios problemas espacios de encuentro donde se pro-
estructurales de la ciudad como son ducen las diferentes actividades cultu-
la ausencia o la poca frecuencia de rales puedan ser accesible para todos,
transporte público, la insuficiencia de es decir, que se atraviesen las fronteras
servicios como el acceso a la red de simbólicas entre los barrios, y entre
alcantarillado, la privación de servicios éstos y el centro. Mientras se visibiliza
educativos, la falta de viviendas dig- la red cultural y artística que se des-
nas, los basurales y la concentración pliega por toda la ciudad y se incentiva
de residuos o la violencia, represión y el desplazamiento de los interesados
abuso por parte de la policía, todo ello a los diferentes eventos culturales,
concentrado en los ya citados barrios mediante, por ejemplo, el diseño de
del oeste, norte, noroeste y Alto Verde. carriles-bici (o de travesías a píe) que
Por último y como se desprende del conecte los barrios y que propongan
siguiente cuadro número 3, esta inter- paradas en espacios culturales, en fe-
vención facilitó la elaboración de una rias sociales o en parques. No está de
serie de enunciados críticos sobre la más resaltar que estas propuestas no
ciudad y brindó las coordenadas para sólo abordan cuestiones relacionadas
proyectar futuras intervenciones, ade- con la cultura y el acceso a ella, sino
más de que se localizaron geográfica- que hacen referencia también al co-
mente las tramas barriales existentes, mercio justo y a la producción compar-
formadas por espacios culturales auto- tida, a las pedagogías y a los saberes
gestionados, educaciones alternativas, liberadores o a las viviendas dignas y a
propuestas de economía social y soli- un ambiente sano.
daria, organizaciones sociales, cultura-
les y educativas, medios comunitarios y
proyectos de gestión social del espacio
público y recreativo, y que bien mere-
cen todo el apoyo institucional por el
trabajo que llevan realizando durante
tanto tiempo en pensar otra ciudad
más solidaria.
Se expresaron, en definitiva, una
serie de deseos e ideas para activar
el derecho a una ciudad inclusiva, al
preguntarse los 250 participantes del
evento qué tipo de espacios, proyectos
y prácticas serían necesarios en diver-
sos puntos de la ciudad. Se resumieron
en cinco puntos los principales anhelos,
que recogen un buen número de ideas

426
Cuadro n°3. Las propuestas, los espacios y las
prácticas culturales, sociales y comunitarias en
la ciudad de Santa Fe.

Fuente: (Pequeño) Atlas colectivo de la ciudad


de Santa Fe. Iconoclastas. 2016.

427
El intento de visibilizar esta red cul- colectivas y de florecimiento de luchas
tural y artística, de la que hablamos sociales.
anteriormente, y que también late por
las venas de Santa Fe, pone de mani- Consideraciones finales
fiesto la irrupción de las clases popu-
lares, una irrupción que no es nueva La sociedad santafesina tiene un
ni reciente en el espacio público y que buen número de actividades culturales
Maristella Svampa denomina como a su disposición. En términos genera-
la dimensión plebeya y las formas de les, uno encuentra una oferta cultural
participación de lo popular como un rica en la ciudad y, si se organiza bien,
proceso de autoafirmación que impli- puede disfrutar de dos o tres even-
ca dos cosas; por un lado, una reivin- tos semanales de gran calidad y a un
dicación de lo popular, en cuanto ser módico costo, siendo algunas de sus
negado y excluido; por el otro lado, una actividades gratuitas. Llegados a este
impugnación, de carácter iconoclasta punto, y aun reconociendo la amplitud
y antielitista en relación con la cultura y la variedad de la oferta de los consu-
dominante. En términos generales, ha- mos de bienes culturales públicos, ca-
blar de lo plebeyo en América Latina bría preguntarse si la misma expresa
hace referencia a ciertos rasgos cultu- la mayoría de las sensibilidades cultu-
rales del mundo de los excluidos. Y en rales y artísticas de los pobladores de
Argentina, aduce Svampa, lo plebeyo la ciudad.
como voluntad de autoafirmación de Pensamos, por tanto, que la oferta
lo popular, emergió como resultado de de bienes de consumo cultural público
un conflicto con otros sectores sociales, que las autoridades estatales, pre-
clases medias y altas, que buscan rea- sentes en la ciudad, ofrecen, deberían
firmar la superioridad de sus modelos recoger y, sin embargo, no lo hacen,
culturales y sus estilos de vida (Svam- todas las sensibilidades culturales re-
pa, p. 44 y 45, 2004). El epicentro, por presentadas por sus diferentes ciuda-
tanto, de esta red plebeya cultural y danos. Es más, la diversidad cultural
artística en la ciudad de Santa Fe es- presente en la ciudad, manifestada
taría localizado en el centro cultural en algunas expresiones artísticas, an-
y social “El Birri”, nombre tomado del teriormente citadas, no encuentra el
director cinematográfico santafesino suficiente espacio para su represen-
Fernando Birri, conocido por sus pelí- tación. Es más, esta oferta representa
culas de marcado carácter social. Con- los gustos de unos públicos que, siendo
cretamente, sobre la antigua estación dominantes, hacen valer su posición
de ferrocarril Mitre, se levanta esta ex- para ofrecer y ofrecerse propuestas
periencia de cultura auto-gestionada más afines a su grupo social.
que aprovecha para producir espacios Como es bien sabido por gran canti-
de educación, de creación y de experi- dad de estudios sociológicos al respec-
mentación artística y cultural, una ver- to, el consumo de ciertos bienes cultu-
dadera “manufactura” de identidades rales ha servido históricamente como
símbolo de estatus social y económico

428
a sus usuarios (Bourdieu, 2012; Herre- dos caras, una que mira hacia el fren-
ra-Usagre, 2011). Este estatus sirve te y el futuro y, la otra, que mira hacia
para marcar las fronteras existentes atrás y el pasado. Esta metáfora nos
entre los diferentes estamentos en un sirve para criticar un modelo de ciu-
determinado espacio físico y social. dad, segmentado y excluyente de una
De forma que a pesar de las buenas gran parte de sus habitantes, que fruto
intenciones en la gestión de las políti- de su estructura económica provoca
cas públicas en la ciudad de Santa Fe el abandono de un tercio de su socie-
se terminan sobre representando y, de dad no solo en su vertiente económica
esta forma legitimando, sólo algunas sino que también en sus dimensiones
variantes de los gustos legítimos de la sociales, culturales y de participación
cultura dominante. ciudadana.
En lo que respecta al espacio físico,
queremos hacer énfasis con el diag- Referencias
nóstico que mostramos a lo largo del
presente trabajo en el sentido antes Adamovsky, E. (2015) Historia de la
citado, una clara concentración de la clase media argentina. Apogeo y
oferta de bienes culturales públicos en decadencia de una ilusión, 1919-2003.
la zona centro de la ciudad y, de mane- Buenos Aires: Booket.
ra consecuente, la escasa accesibilidad
a éstos para muchos de sus ciudada- Borón, Atilio (2014) Socialismo siglo XXI.
nos de los barrios periféricos, en con- ¿Hay vida después del neoliberalismo?.
creto del oeste, norte y noroeste. Ciudad autónoma de Buenos Aires:
En resumidas cuentas, terminaremos Luxemburg.
con las convenientes palabras de Bea-
triz Sarlo, que hacen referencia a las Bourdieu, Pierre (1990) Sociología y
desigualdades de los consumidores de cultura. México: Grijalbo.
los bienes culturales públicos en razón
a su carácter contextual, de condición y Bourdieu, Pierre (1998) La distinción.
totalmente azaroso: “en el proceso cul- Madrid: Taurus.
tural los sujetos no son efectivamente
iguales ni en sus oportunidades de ac- Bourdieu, Pierre (2012) Las estrategias
ceso a los bienes simbólicos ni en sus de la reproducción social. Buenos Aires:
posibilidades de elegir, incluso dentro s. XXI.
del conjunto de bienes que están efec-
tivamente a su alcance” (Sarlo, p. 3-4, Cepal (2011) Economía y mercado de
1988). trabajo en Santa Fe (Argentina). Un
En efecto, y tal y cómo señala- aporte a la
mos al principio de este artículo, en la cuantificación de los Objetivos
ciudad de Santa Fe existe una socie- de Desarrollo del Milenio y a la
dad dual que nosotros hemos querido elaboración del año base
representar mediante la figura del 2004. Naciones Unidas, Santiago de
dios clásico Jano, deidad que tiene Chile.

429
Cervera, Felipe Justo (2013) Identidad Páginas web consultadas:
Nacional en el siglo XXI. Colección
Santa Fe siglo XXI: nº4. Fundación Integral Proteger. Consulta
realizada el 26-02-2020. Véase:
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Convenio Andrés Bello. Censos: Censo Nacional de Población,
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García Canclini, Néstor (2013) Cultural realizada el 15-02-2020. Véase: https://
híbridas. Estrategias para entrar y
salir de la modernidad. Buenos Aires: poblacion/censo2010_tomo1.pdf
Paidós.
Observatorio Social de la Universidad
García Canclini, Néstor (ed.) (1987) Nacional del Litoral. Consulta realizada
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México D.F. : Ed. Grijalbo. edu.ar/observatoriosocial/

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desigualdad social. Madrid. Ed. siglo
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Herrera-Usagre, M. (2011) El consumo


y la participación cultural en España y
Andalucía. Una aproximación desde la
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Risler, Julia y Ares, Pablo (2016)


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http://www.iconoclasistas.net/tag/
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periférica: Buenos Aires, 1920 y 1930.
Buenos Aires: Ed. Nueva Vision.

Svampa, M. (2004) La brecha urbana.


Countries y barrios cerrados. Buenos
Aires. Capital Intelectual.

430
posfácio
posfácio
G a i a n o c i n e m a

Gaia no cinema
1
Fabio Rubio Scarano
Professor Associado em Ecologia lembrarmos que Platão dizia que é
Universidade Federal do Rio de preciso pensar no futuro para definir-
Janeiro mos nossas ações no presente. “An-
tropoceno” é um dos nomes com que
Fabio Rubio Scarano se batiza hoje o presente. Uma era na
Sublimação Associado em Ecologia
Professor qual o impacto
lembrarmos quedo ser humano
Platão dizia que sobre
é
Universidade Federal do Rio de o planeta afoga a sociedade
preciso pensar no futuro para definir- em uma
No mundo em transformação, a
Janeiro crise nossas
mos humanitária,
ações nosanitária,
presente.econômi-
“An-
arte tem um papel central que é o de ca e de valores, ao passo
tropoceno” é um dos nomes com que que expõe
funcionar como veículo da sublima- a natureza
se batiza hoje à sexta onda de
o presente. extinção
Uma era na
ção. Essa palavra vem da química e se
Sublimação de espécies e às mudanças
qual o impacto do ser humano sobre climáti-
refere ao processo no qual algo sólido cas.
o Váriosafoga
planeta aspectos levaram em
a sociedade a esseuma
vira
Nogás. É justamente
mundo em meio aaesse
em transformação, cenário e todos remontam
crise humanitária, sanitária, econômi-a uma raiz
“gás”tem
arte – queumemerge da experiência
papel central que é o dede comum:
ca a separação
e de valores, ao passo ser humano-
que expõe
relação, apreciação
funcionar ou criação
como veículo da arte
da sublima- -natureza. O projeto iluminista
a natureza à sexta onda de extinção e da
– queEssa
ção. novos mundos
palavra vem são
daimaginados
química e se modernidade
de espécies e às – que reduziu climáti-
mudanças esses dois
ou contemplados. Nesse instante,
refere ao processo no qual algo sólido se entes
cas. a unidades
Vários separadas
aspectos levarameadistin-esse
iniciagás.
vira a transformação
É justamente em individual, o
meio a esse tas – fracassou.
cenário Na pós-modernidade,
e todos remontam a uma raiz
primeiro
“gás” passo
– que em direção
emerge à transfor-
da experiência de por vezesasomos
comum: maisser
separação críticos e cínicos
humano-
mação planetária.
relação, apreciação ou criação da arte em relaçãoOaos
-natureza. hábitos
projeto modernos
iluminista e dado
Masnovos
– que transformar
mundosem direção
são ao
imaginados que propriamente
modernidade – quepropositivos
reduziu esses e ativos
dois
quê?
ou Quais futurosNesse
contemplados. são desejáveis?
instante, seAté quanto
entes à transformação
a unidades separadas do presente
e distin-
que ponto
inicia devemos buscar
a transformação acordooou
individual, para
tas –a construção
fracassou. Nade um novo futuro.
pós-modernidade,
entendimento
primeiro passoacerca desses
em direção futuros?
à transfor- Nãovezes
por surpreendem,
somos mais portanto,
críticosas refle-
e cínicos
Procurar
mação respostas a estas pergun-
planetária. xõesrelação
em acercaaosdo “fim
hábitos do futuro”
modernos
118
oudo
da
tasMas
se faz essencial,em
transformar especialmente
direção ao se “morte
que propriamente
119
.
da utopia” propositivos e ativos
quê? Quais futuros são desejáveis? Até quanto à transformação do presente
que ponto devemos buscar acordo ou para a construção de um novo futuro.
entendimento acerca desses futuros? Não surpreendem, portanto, as refle- 431
Procurar respostas a estas pergun- xões acerca do “fim do futuro” ou da 118

tas se faz essencial, especialmente se “morte da utopia”119.

431
Dentre as formas de arte existentes, A natureza é máquina e organismo,
o cinema – por sua multidimensiona- matéria passiva e agente vital. É re-
lidade – é talvez a que mais se presta presentada como selvagem e nobre,
ao propósito de inspirar transformação poluída e íntegra, sensual e inocente,
a partir do estímulo à imaginação de carnal e pura, caótica e ordenada.
novos mundos. Assim como vários pen- Concebida como um princípio femini-
sadores do nosso tempo, aqui parto do no, a natureza é igualmente amante
princípio de que, para sair da crise na e mãe; uma fonte de prazeres sensu-
qual se meteu, o ser humano precisará ais, de nutrição e de violações traiço-
se reintegrar à natureza. Sentir e agir eiras. Sublime e pastoral, indiferente
como parte do supraorganismo plane- aos propósitos humanos e servente
tário, Gaia, que é a manifestação viva voluntária desses mesmos propó-
da integração e da interdependência sitos, a natureza assusta e consola,
de seres humanos e não humanos, aterroriza e pacifica, e se apresenta
do vivo e do não vivo120. Meu objetivo como a melhor das amigas e a pior
neste texto é apresentar alguns filmes inimiga122.
que me inspiram a pensar e a agir na
busca de um futuro Gaia, no qual o ser Quando li esse trecho pela primeira
humano regressa integralmente ao seu vez, pensei que se substituíssemos a
lar, a natureza. Discutirei em que medi- palavra ‘natureza’ na primeira linha
da cada uma dessas obras obteve esse por ‘ser humano’, o texto faria igual
efeito em mim. sentido. Afinal, conforme afirma a
própria autora, Kate Soper, ao assim
O “Outro” percebermos a natureza, projetamos
nela características humanas. Logo,
A natureza costuma ser representa- ao mesmo tempo em que a natureza
da no cinema como pastoral (um belo é o “outro”, em relação ao qual temos
local para onde se pode escapar), sel- reservas, há dificuldade em traçar a
vagem (lugar indomável e incivilizado), linha que nos separa desse outro, tão
apocalíptica (espaço catastrófico) ou parecidos que somos. Quais filmes,
relacional (onde o social e o ecológico para mim, desfazem a tensão ser
se equilibram)121. Em cada uma dessas humano-natureza, integrando-os, e
representações, inclusive na relacio- demonstram simultaneamente haver
nal, a natureza é o “outro”. Ainda que limites e fronteiras? Evitei o cinema de
culturalmente cada um desses trata- gênero – ativista, ou mesmo documen-
mentos venha repleto de significado tal – rotulado como “cinema ambien-
e, com frequência, alcance sucesso em tal” ou “ecocrítico”. Optei, de propósito,
emocionar o espectador, a natureza por filmes de ficção, nos quais a na-
é a soma de todas essas representa- tureza é tratada como um “persona-
ções. Mais que isso, não somos meros gem”, assim como os humanos. Como
observadores, mas sim elementos in- já dito, a seleção exposta a seguir
terconectados. Veja, por exemplo, essa priorizou obras cinematográficas que
definição: de alguma maneira me sinalizaram

432
– individualmente e em conjunto – a Justamente o rio é o maior obstáculo
possibilidade de um futuro a que cha- para Fitzcarraldo alcançar seu sonho:
mo de Gaia. Digo ‘em conjunto’ porque construir uma ópera na floresta peru-
esses quatro filmes, não por acaso, me ana e inaugurá-la com o próprio Caru-
remetem aos quatro elementos: água, so. Para isso, ele investe num seringal
terra, fogo e ar. nativo para a produção de borracha.
Com a ajuda de Molly, compra um
Água (Fitzcarraldo, Werner Herzog, grande barco a vapor para chegar até
1981) a área. Contudo, o acesso é difícil. Para
evitar fortes corredeiras – chirimagua,
Os índios chamam a estas terras de ou espíritos raivosos, segundo os indí-
Cayahuari Yacu, o lugar onde Deus genas – Fitzcarraldo decide içar com
não acabou a Criação. Somente uma grande roldana seu barco para
quando o homem desaparecer, Deus cruzar a montanha através da floresta.
voltará para terminar sua obra. A montanha separava dois tributários
do rio Amazonas e transpô-la parecia
Esse texto abre Fitzcarraldo123, de essencial ao empreendimento. Com o
Werner Herzog124, tendo ao fundo ima- auxílio de centenas de indígenas, final-
gens de uma misteriosa floresta ama- mente consegue. Porém, os nativos re-
zônica imersa em névoa. Trovoadas e o solvem acalmar os espíritos malignos e
canto de um pássaro são a trilha sono- soltam as amarras do barco, que é ar-
ra que logo dá lugar à música hipnó- rastado para as corredeiras. Tudo per-
tica de Popol Vuh125. O mito indígena, dido; o empreendimento se prova invi-
associado à cinematografia de Her- ável. Ele vende o barco avariado, mas,
zog, nos faz projetar se a obra divina para despedir-se, compra charutos,
concluída estaria por trás das nuvens um fraque e traz de Manaus cantores,
que em parte ocultam o cenário. As- coro e orquestra para encenar a ópera
sim, no primeiro minuto do filme somos “I Puritani”, de Bellini, sobre o barco,
levados a imaginar um mundo sem navegando soberano no pacífico rio
humanos, ou pós-humano. A cena cor- Amazonas. A água faz as pazes com
ta para uma vista noturna da fachada Fitzcarraldo, que agora entende que
do imponente Teatro Amazonas, em a natureza impõe limites. Fitzcarraldo
Manaus. Em seguida, vemos o desem- faz as pazes com a água ao adaptar
barque atrapalhado de Fitzcarraldo seu sonho, seu mundo imaginado, ao
(Klaus Kinski) e sua companheira Molly que a natureza permite. Música, Fit-
(Claudia Cardinale), de uma pequena zcarraldo, floresta, espectadores na
embarcação. A pressa é para assistir margem do rio: indivisíveis, se tornam
Caruso126, a estrela da noite. Conhe- um, com as águas do rio. Conforme
cemos então os três protagonistas: acreditavam os indígenas no filme,
Fitzcarraldo, Molly e o rio. Logo sabe- “nossa vida não é mais que uma ilu-
ríamos que o casal teria viajado 2.000 são, por trás da qual está a realidade
km de Iquitos, no Peru, a Manaus para dos sonhos”.
assistir ao cantor e a sua ópera.

433
Terra (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Doloridas, porém belas. Resignadas,
Glauber Rocha, 1964) mas desejosas. Tudo um no espaço-
-tempo. O preto-e-branco da fotogra-
O outro lado de lá, deste Monte San- fia realça essa unicidade e definitiva-
to, existe uma terra onde tudo é ver- mente funde os humanos e a natureza.
de, os cavalo comendo as flores e os Note que o mundo que o profeta an-
menino bebendo leite nas água do tevê não é o mundo do dinheiro ou do
rio. Os homem come o pão feito de luxo. É o mundo da justiça social e am-
pedra e poeira da terra vira farinha. biental, das pessoas com direito à ter-
Tem água e comida, tem a fartura do ra e integradas a ela. Essa passagem
céu. do filme, portanto, reflete sua mensa-
gem política, de necessidade de mu-
O profeta de Deus e o Diabo na Terra dança e transformação. Precisamente,
do Sol127 imagina e projeta esse mun- qualquer leitura política da arte enxer-
do alternativo à secura da Caatinga. ga qualidade nos trabalhos que desta-
No sertão em que vivem, os elementos cam a busca humana por dignidade e
água e ar (o céu) estão sempre em fal- justiça129. Em Deus e o Diabo na Terra
ta e só resta a terra, que é pobre. Nes- do Sol, para alcançar o mundo imagi-
se cenário, “fogo sai das pedras” - des- nado, é necessária ação política130.
creve o profeta – como se tratasse do
próprio inferno. A terra aqui é o espaço Fogo (Nostalgia, Andrei Tarkovski,
que descreve a condição humana. A 1979)
transformação que o profeta enseja
agrupa todos: o ser humano, a natu- A sociedade precisa se unir novamen-
reza e os santos (“Jesus Cristo, Virgem te, ao invés de se fragmentar. Basta
Maria, São Jorge e São Sebastião”) olhar para a natureza para constatar
são um na paisagem. Ele enxerga a que a vida é simples. Precisamos vol-
mistura, como as crianças que “bebem tar para onde estávamos, ao ponto
o leite nas água do rio”. onde tomamos o caminho errado.
Com os recursos que o cinema pro- Precisamos voltar aos principais pila-
porciona, Glauber Rocha128 poderia res da vida.
ter usado como fundo para a fala do
profeta uma outra locação, que nos Esse é o mundo imaginado por Do-
apresentasse algo mais parecido com menico (Erland Josephson) em Nostal-
o “paraíso”. A escolha dele, entretanto, gia131, de Andrei Tarkovski132. Foi justa-
foi a de nos deixar fantasiar esse lugar, mente a obra de Tarkovski no cinema,
esse futuro, tal qual os seguidores e as assim como a de J.G. Ballard133 na
seguidoras do profeta deveriam estar literatura, que primeiro me chamaram
imaginando ao ouvi-lo. Durante a pro- a atenção para a força real e simbóli-
fecia, o que vemos são os rostos dos ca dos quatro elementos na arte. Seus
fiéis, cujas marcas da vida sugerem filmes são abundantes em todos os
almas tão secas quanto a natureza quatro elementos. O fogo, entretanto,
que as cerca. Secas, mas grandiosas. tem um papel de destaque, não por

434
atribuir significado a palavras, estórias mesma da fé, que se acende mediante
ou ao imaginário, mas especialmen- sacrifícios136.
te por indicar possibilidades, mundos
possíveis134. Ar (A Chegada, Denis Villeneuve, 2016)
Nostalgia tem, além de Domeni-
co, outros dois protagonistas: Andrei Você me conhece... eu sou sempre a
(Oleg Yankosky) e o fogo. Andrei é um mesma.
escritor russo exilado na Itália e, ao
longo do filme, acompanhamos seu Essa fala de Louise (Amy Adams),
sentimento de nostalgia por sua terra professora de linguística, bem como
natal. O mundo idealizado por Andrei seu comportamento durante a pri-
existe na memória do passado, na in- meira parte de A Chegada137 de Denis
fância, no ambiente rural e no amor. Villeneuve138, sugere uma personagem
Domenico é percebido como louco, en- não afeita a imaginar mundos futu-
tre outras coisas por ter mantido sua ros, talvez por estar acomodada em
família trancada por sete anos, para sua rotina solitária. Entretanto, com a
protegê-la do fim do mundo. Para chegada de extraterrestres chamados
caminharem em direção aos cenários de Heptápodes, sua vida ganha outra
que imaginaram, Domenico e Andrei dinâmica. Por sua habilidade com lín-
usam o fogo. Domenico ateia fogo guas, inclusive desconhecidas, Louise
em si mesmo após proferir discurso é convocada para tentar estabelecer
sobre as chagas da humanidade do diálogo com os visitantes interplane-
alto de uma estátua em praça públi- tários e entender quais seriam seus
ca, para uma audiência indiferente. propósitos.
Andrei acata um pedido de Domenico O filme me remete ao elemento ar
e cruza uma piscina de águas termais – menos pelo fato de os Heptápodes
com uma vela acesa sem que ela se terem vindo do espaço, nem tampouco
apague. Segundo Domenico, se An- devido à uma linda cena de uma das
drei lograsse êxito, o mundo estaria a naves espaciais estacionada sobre
salvo. Andrei consegue, após inúmeras uma planície coberta por nuvens –, so-
tentativas fracassadas, mas falece ao bretudo pela forma como, ao longo do
chegar ao outro lado da piscina. Perce- convívio de Louise com os visitantes,
bo, nos dois atos, o fogo como símbolo seu relacionamento com o ar se trans-
do sacrifício necessário para se alcan- forma. Na minha leitura, essa mudan-
çar o mundo imaginado. O sacrifício ça representa uma ruptura de Louise
desses dois personagens, assim como com sua vida fechada e sem horizonte
o de Fitzcarraldo e o do povo sofrido (ou sem ar) para um mergulho no futu-
do sertão de Glauber Rocha, é condi- ro (que, veremos, é também passado
ção essencial para ascender ao mundo e presente). No seu primeiro contato
desejado. Noto também que o fogo com os extraterrestres, se mantém
custa a pegar135, tanto nestas cenas apartada deles atrás de uma grande
destacadas, quanto em outros trechos tela de vidro, como se estivesse num
do filme. Talvez a chama do fogo seja a aquário, e usa roupas de astronautas,

435
dentro das quais notamos respirar com que a linguagem é anterior a nós. Só
dificuldade. À medida que, por meio precisamos conseguir ouvir e entender
do diálogo estabelecido, avançam no – como, por exemplo, o fez Louise em
conhecimento mútuo, Louise se abre “A Chegada” com os extraterrestres.
para compartilhar o mesmo ar dos O diálogo – com seres vivos e não vi-
visitantes. Ela, então, recebe um pre- vos, humanos e não humanos, com nós
sente dos Heptápodes: a possibilidade mesmos e com o próximo – será sem-
de enxergar o futuro. A principal con- pre essencial para imaginarmos novos
sequência, a meu ver, é que quando mundos e também para construí-los.
isso ocorre Louise abraça seu destino. O cinema, como linguagem e instru-
Ela não imagina um mundo, ela o vê mento de diálogo, tem o poder de nos
e, ao vê-lo, o aceita: com as grandes iluminar. Nele, colhi muito do mundo
e pequenas tristezas, tanto quanto as Gaia que imagino, com filmes como
grandes e pequenas felicidades que esses que apresentei. A sétima arte me
estão a caminho. inspira, ainda, a trabalhar na constru-
Assim como nos filmes anteriormen- ção desse mundo que vislumbro. Esse
te discutidos eu imaginei o “mundo processo começa por não temer para,
biosfera”, com o ser humano integrado em seguida, engajar e, finalmente, re-
à natureza, em “A Chegada” considerei alizar com o “outro”.
o “mundo espaço-tempo” de Einstein,
no qual passado, presente e futuro co-
existem. Imaginei um mundo no qual
a linguagem seria um instrumento de
elo entre humanos e entre o humano e
o “outro”, quer seja o outro a natureza
ou um extraterrestre. No meu ponto de
vista, diferentes dimensões de Gaia.

Conclusão: linguagem e imaginação

Wittgenstein139, o filósofo da lin-


guagem, afirmava que “se um leão
pudesse falar, jamais conseguiríamos
entender”140. Adorno141, um pouco mais
otimista quanto às nossas capacida-
des humanas, dizia que “se a lingua-
gem da natureza é muda, a arte busca
tornar essa mudez eloquente”142. Os
filmes aqui tratados, para mim, são
como “tradutores” da natureza. Não
que a natureza não fale, pelo contrário.
Merleau-Ponty143 apontava que “a na-
tureza fala através de nós”144, ou seja,

436
NOTAS

Posfácio

18 Ver http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-
baumanb-vivemos-o-fim-do-futuro.html

19
Utopia. Penguin Books, London.

120 Tratei extensamente desse tema no livro Scarano (2019) Regenerantes


de Gaia. Dantes Editora, Rio de Janeiro.

121 O’Brien A (2018) Film and the Natural Environment - Elements and
Atmospheres. Wallflower, London.

122 Tradução livre de Soper K (1995) What is Nature? Culture, Politics and
the Non-Human. Blackwell, Oxford (p.71).

123 Além de várias edições disponíveis em DVD, o filme pode ser


encontrado na íntegra, em alemão com legenda em espanhol, ou dublado
em inglês, no youtube.

124 Werner Herzog (1942-) é um cineasta alemão que frequentemente


trata de fenômenos da natureza e sua interação com humanos, em sua vasta
obra composta por filmes de ficção, documentários, literatura e até ópera.

437
125 Popol Vuh é uma banda de música eletrônica alemã fundada em
1969 e que permaneceu ativa até 2001. O nome da banda é inspirado num
livro de mitologia Maia.

126 Enrico Caruso (1873-1921) foi um tenor italiano que para muitos foi um
dos maiores cantores de todos os tempos.

127 Além de edições disponíveis em DVD, o filme pode ser encontrado na


íntegra, em português, no youtube.

128 Glauber Rocha (1939-1981) foi um cineasta baiano, nascido na


cidade de Vitória da Conquista, e que se tornou um ícone do Cinema Novo
brasileiro.

129

130 Para uma leitura sobre o Cinema Novo, o movimento ao qual esse
filme fazia parte, recomendo texto do próprio Glauber Rocha: Rocha G (1980)
History of Cinema Novo. Framework 12, p. 19-27.

131 Além de edições disponíveis em DVD, o filme pode ser encontrado na


íntegra, em italiano, e com legendas em português, no youtube.

132 Andrei Tarkovski (1932-1986), cineasta russo, tratou dos temas do


sacrifício e da redenção em seus sete filmes de longa-metragem.

133 J.G. Ballard (1930-2009), escritor nascido na China e criado em


Londres, é visto, por muitos, como um dos pioneiros na literatura de ficção
científica pós-moderna. Para alguns críticos, os quatro primeiros livros de

(2010) Everyday apocalypse: J. G. Ballard and the ethics and aesthetics of the
end of time. Partial Answers: Journal of Literature and the History of Ideas.
v.8, 1., p. 185-208.

134 Um interessante tratamento dado a como Tarkovski aborda os quatro


elementos em seus filmes pode ser encontrado em Bird R (2008) Andrei
Tarkovsky: Elements of Cinema. Reaktion Books Ltd., London.

135 Ver interessante reflexão, um pouco diferente da minha, acerca do


uso simbólico do fogo nesse filme em Turovskaya M (1989) Tarkovsky: Cinema
as Poetry. Faber and Faber, London.

438
136 Scarano (2019) Regenerantes de Gaia. Dantes Editora, Rio de Janeiro.

137 O filme está disponível em DVD e também no Netflix.

138 Denis Villeneuve (1967-), cineaste canadense, com mais de uma


dezena de filmes, sendo que nos últimos anos dirigiu outras ficções
científicas como Blade Runner 2049 (2017) e Duna (2020) deverá ser lançado
ainda em 2020.

139 Ludwig Wittgenstein (1889-1951), filósofo austríaco naturalizado


britânico.

140 Wittgenstein L (1953/1973) Philosophical Investigations. 3rd ed.


Pearson, New York.

141

142 Adorno T (1970/1998) Aesthetic theory. University of Minnesota Press,


Minneapolis.

143 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo francês.

144 Merleau-Ponty M (1968/2014) O Visível e o Invisível. Editora


Perspectiva, São Paulo.

439
posfácio
Visualidades:
imagens, imagina-2
ç ã o e e t n o g r a fi a 145

Marco Antônio Gonçalves


Professor Titular em partir daí se situar num campo imagi-
Antropologia Visual nativo em que as imagens e sons pro-
Universidade Federal piciam aceder a mundos outros.
do Rio de Janeiro Este projeto dos viajantes, explora-
dores, pesquisadores, do final do sécu-
lo XIX e começo do século XX encontra,
Falar de visualidades é de algum de fato, nas imagens e no som um
modo comentar a própria história da novo modo de narrativa que deve ser
imagem e do som no âmbito da an- transmitida que ultrapasse o domínio
tropologia, desde os primeiros tempos das letras e dos livros podendo atingir
até os dias de hoje. Desde a invenção plateias mais amplas, agora de forma
da fotografia e do cinema, estes meios sensorial com sons e imagens pro-
sempre fizeram parte do encontro en- venientes de outras terras, de outros
tre os etnógrafos com as chamadas mundos, que passam a agir como íco-
comunidades tradicionais. Da parte nes daquele encontro, daquelas pesso-
dos viajantes, exploradores, etnólogos as, daquele momento.
reconhecia-se uma vontade determi- A febre por imagens e por sons to-
nante em produzir imagens e sons das mou conta das expedições científicas,
populações encontradas como modo desde as duas famosas expedições ao
de reproduzir uma experiência para Estreito de Torres no final do século
um público maior. Neste sentido, a XIX, que produziram os primeiros re-
imagem e o som cumpriam o papel de gistros fílmicos sobre os povos encon-
ampliar esta dimensão do encontro, trados, passando pelas expedições de
transformá-lo numa experiência sen- Franz Boas, de Bronislaw Malinowski
sorial para aqueles que passam a es- e tantos outros antropólogos que
cutar e a ver estas imagens, podendo a sempre, de algum modo, buscaram

440
imortalizar seus encontros, com outras por uma nostalgia de poder viver esta
culturas, em imagens e sons. dimensão da experiência não moder-
O cientista Roquette-Pinto (1917), no na, de viver e reviver a experiência do
Brasil, acompanhou Rondon a uma “tradicional”. O que era considerado
expedição a Mato Grosso em 1910 gra- “puro”, “intocável”, a tradição por ex-
vando as primeiras canções dos índios celência, o que apontava para estados
Paresi em um aparato técnico da épo- de permanência, do imperecível em
ca que podia ser reproduzido em ou- contraste com o mundo capitalista que
tros ambientes. Sons que provenientes representava a exacerbação do efê-
do sertão iam influenciar e criar novos mero, da transformação. Fenômeno
mundos de sonoridade como foi o que que Lévi-Strauss (1958,1973,1978), no-
ocorreu com o compositor Villa Lobos, meou, partilhando a mesma ideologia
que a partir destas gravações de Ro- moderna, de “sociedade quentes” ver-
quete Pinto, pode reproduzi-las ao vivo sus “sociedades frias”, isto é, as “comu-
para audiências populares, difundindo, nidades tradicionais” seriam avessas à
assim, as canções de ninar dos Paresi, história, às transformações. Problemas
descritas como Mocosse Maka, criança que são, hoje, enfrentados e criticados
na rede, para multidões. quando se pretende construir uma au-
É desta amplificação da experi- diovisualidade das chamadas comu-
ência sensorial de ouvir e ver que se nidades tradicionais que, em primeiro
constroem imaginários sobre estas lugar, questiona-se a própria concep-
audiovisualidades, o que era à época, ção de “tradição”.
enquadrado pelo projeto e ideologia Portanto, no final do século XIX e co-
modernista. Esta condição do mo- meço do século XX, surgem, por toda
dernismo e da modernidade ajudou parte, projetos que visam construir
a produzir esta experiência auditiva inventários imagéticos e auditivos des-
e visual tornando-as numa verdadei- tas “tradições” que ganharam corpo-
ra sensibilidade estética que visava ralidade nos Museus de etnografia no
a expansão do chamado mundo oci- ocidente que passaram a ser os reposi-
dental em múltiplas e indeterminadas tórios destas imagens e sons. No Bra-
direções. O sentido de presença deste sil, temos por exemplo, o notável Pro-
outro se realizava através de suas ima- jeto Missão de Pesquisas Folclóricas de
gens e de seus sons o que replicava Mario de Andrade realizada na década
‘eles próprios’, momento em que não de 30, bastante conhecido e estudado,
eram suficientes apenas representa- que instituiu viagens etnográficas que
ções textuais por meio das palavras, objetivavam o registro de imagens fo-
dos relatos de viagens, dos relatórios tográficas, fílmicas e sonoras das po-
coloniais. O projeto modernista sentia pulações tradicionais que se encontra-
esta urgência em classificar, codificar, vam no Norte e Nordeste do Brasil.
capturar, registrar as culturas chama- Não podemos deixar de mencionar
das tradicionais seja pelo receio de os trabalhos realizados pela Comis-
seu desaparecimento na relação com são Rondon, produtora de uma co-
o agigantado mundo capitalista, seja piosa documentação fílmica, sonora e

441
fotográfica do encontro da Comissão, imagem levistraussiana que Caetano
no interior do Brasil, com as popula- Veloso viria imortalizar em sua musica
ções indígenas. Rondon, por mais de Estrangeiro. Porém, mais adiante Le-
20 anos, percorreu o Brasil Central e a vi-Strauss esclarece porque odeia as
Amazônia registrando a cultura destas narrativas de viagem contadas pelos
populações. Nesta comissão surge a viajantes e exploradores em sessões
146
, cine- de exibição de imagens acompanha-
grafista e fotógrafo da comissão, que das por anedotas, casos típicos, sacri-
operava uma câmera Lumière nos pri- fícios realizados, sofrimentos, relatos
mórdios do que seria designado mais que exaltavam mais a própria per-
tarde por cinema, deixando inúmeros cepção ocidental do encontro sem se
trabalhos memoráveis. Foi recente- saber nada ou quase nada sobre os
mente elevado, com justiça, à posição personagens das imagens e dos sons
de realizador do que seria o primeiro apresentados. Estava aqui estabele-
documentário antes mesmo de Robert cida uma primeira cisão entre a pro-
Flaherty e Edward Curtis147 que haviam dução das imagens enquadradas por
ganhado o título de pais do documen- uma visão eurocêntrica e um modo ou-
tário moderno. tro de enquadrar estas imagens e sons
Lévi-Strauss (1996) inicia seu livro a favor não mais de um estereótipo
Tristes Trópicos com uma frase intri- ocidental, mas que pudessem ser nar-
gante em que diz: “Odeio as viagens rados em seus próprios termos. O des-
e os exploradores”, em um livro que se conforto de Lévi-Strauss diante des-
pretendia justamente narrar viagens e tas sessões de imagens evocava uma
explorações, em que desejava descre- profunda reflexão sobre a condição da
ver seu percurso no Brasil Central, seu representação do outro, representação
encontro com os Bororo, Nambikwara, essa que está no centro da discussão
Kawahib e suas impressões sobre as sobre a audiovisualidades, etnografia
cidades de São Paulo e Rio de Janei- e processos imaginativos. Como apre-
ro. Esta frase inicial é proposital pois sentar, representar estas imagens?
Lévi-Strauss quer evitar o encanta- Imagens para quem? De quem? O que
mento das narrativas, em especial as significam? Qual o contexto de sua
fantasias tropicais, querendo nos dar produção? Questionamentos cruciais
a ver os trópicos não em cores fortes tanto para se produzir quanto para
desenhadas por percepções estereo- consumir estas imagens e sons que
tipadas sobretudo produzidas pelos podem nos dará chave para se pensar
europeus, mas sim mobilizar outras numa passagem das imagem do outro
imagens que nos permitam imaginar para imagens produzidas pelo o outro,
um trópico apresentando sua vora- com o outro, para o outro.
cidade, seus problemas, sua tristeza; Não podemos deixar de mencionar
um trópico narrado sem glorificação aqui um verdadeiro advento imagé-
e exaltação. Daí advém sua descrição tico, no seu pleno sentido, surgido por
melancólica da Baía de Guanabara duas iniciativas bastante diferentes
que pareceu-lhe uma boca banguela, que, coincidentemente, tem o mesmo

442
ano de aparecimento, 1922. Iniciativas em seu livro com legendas explicati-
importantes para se pensar visualida- vas. Ao acompanharmos seu texto,
des, etnografias e universos imaginati- sua narrativa, somos recorrentemente
vos. Refiro-me ao livro de Malinowski, remetidos para as pranchas fotográfi-
Os Argonautas do Pacífico Ocidental e cas. É possível realizar uma leitura dos
ao filme de Robert Flaherty, Nanook, o Argonautas na chave, literalmente, de
esquimó. Comecemos por Malinowski. uma etnografia visual bastando que
Malinoswski é considerado o pai da o leitor deixe-se levar pelas referên-
antropologia moderna não porque foi cias às fotografias quando estas são
o primeiro a fazer trabalho de cam- invocadas na narrativa. As imagens
po intensivo mas por ter criado uma fotográficas apresentam, com riqueza
linguagem expressiva e um modo es- de detalhes, os fatos sociais narrados
pecial de construir uma narrativa que convertendo-se em universo imagi-
passaria a ser o modelo ou a própria nativo acionado por fotografias-fatos
encarnação da etnografia moderna. sociais ou fatos sociais fotográficos.
Sua narrativa se apoiava sobremanei- Deste modo, Malinowski não registrou
ra em imagens, mais especificamente apenas momentos ou acontecimentos,
em imaginação. Replicava as influên- suas fotografias não são instantâne-
cias do romance moderno, como ates- os, são produzidas e dirigidas em sua
ta James Clifford (1998) ao nos revelar narrativa de modo que possam apre-
que a inspiração de Malinowski foram sentar sensorialmente o os fenômenos
as obras do escritor Joseph Conrad, sociais e culturais que descreve em
em especial seu romance Coração das sua etnografia. Retornemos, agora,
Trevas (1899). É o próprio Malinowski à ideia de imaginação/imagem que
que nos diz em seu Diário no estrito é capital na construção da etnogra-
senso do termo (1998), que ele tinha
a intenção de se tornar o Conrad da (1985), profundo conhecedor da obra
antropologia. Buscava uma lingua- de Malinowski, realizador da tradução
gem nova para exprimir uma experi- do polonês para o inglês de sua tese
ência e assim se apoiava, sobretudo, defendida em Cracóvia e de seus pri-
em uma narrativa que coloca em pri- meiros escritos ainda antes de partir
meiro plano o imagético, no sentido para Inglaterra, quando era estudante
de construção textual como algo que de ciências físicas e matemáticas na
impulsione a imaginação do leitor, Polônia. Malinowski fez sua tese sobre
que o permita se situar naquele lugar, o físico Ernest Mach cuja preocupação
naquela perspectiva: ao tomar em- principal era sobre o tema da ima-
prestado os olhos de Malinowski pode gem e da imaginação como aspectos
aceder a um imaginário. Malinowski constitutivos e essenciais da cognição
contava, em sua expedição à Nova humana. Ernest Mach sustentava a
Guiné, com um aparato técnico óptico, tese de que a cognição só era pos-
uma câmera, o que permitiu produzir sível por meio da formação de uma
uma quantidade significativa de fo- imagem e, por esta razão, o aspecto
tografias, posteriormente publicadas imaginativo era algo fundamental

443
para a compreensão humana. Antes condição essencial de sua emergência
mesmo de compreendermos palavras enquanto um gênero narrativo.
ou textos necessitamos imaginar es- Passemos, agora, a Robert Flaherty,
ses textos e palavras que se formam cineasta, considerado o pai do docu-
como imagens na mente. Este seria, mentário moderno, quem produziu
para Mach, o único modo de apreen- em 1922, o hoje clássico, Nanook, o es-
dê-los e de torná-los inteligíveis. Mali- quimó. Flaherty foi, de fato, o primeiro
nowski em sua tese sobre Ernest Mach cineasta a produzir imagens sobre o
elucida justamente esta condição da outro agigantando um imaginário so-
imaginação e o seu papel na cognição bre outras culturas e sociedades: os
humana. Deste modo, compreende- Esquimós (Inuit), os nativos de Samoa,
mos o porquê Malinowski usa centenas da Índia, os pescadores da Irlanda,
de vezes em sua narrativa a fórmula: a cultura tradicional de Louisiana.
imagine-se o leitor rodeado por selva- Flaherty é um dos ícones da expressivi-
gens... imagine a canoa entrando no dade visual moderna, de uma imagem
mar, imagine o chefe proferindo certa produzida a partir de uma ideologia
fala, imagine... imagine... imagine. Sua que procurava dar a ver mundos into-
narrativa parece mesmo ser depen- cados pela civilização. Não é por acaso
dente destas imaginações do leitor, que os direitos de sua obra fílmica per-
desta visualidade para que se torne tençam hoje ao MOMA, Museu de Arte
compreensível, apreensível enquanto Moderna de Nova Iorque.
uma experiência sensorial que, afinal, Flaherty constituiu o documentário
passa a ser a estrutura da narrativa como filme espetáculo, em que a fic-
etnográfica moderna. Deste modo, a ção era intencional de modo a recons-
etnografia de Malinowski se afasta dos truir a cena social. A ideia de veros-
relatos de viagens, dos relatórios colo- similhança (a aparência de verdade)
niais ao assumir, em toda a sua potên- parece ser a questão fundamental no
cia, uma visualidade, seja por meio da tratamento do documentário de ins-
imaginação provocativa, seja por meio piração flahertiana. Verossimilhança,
das próprias imagens fotográficas que neste contexto, parece ser a constru-
saturam e permeiam toda sua narra- ção de uma autenticidade produzida
tiva. É neste sentido que este gênero conscientemente.
etnográfico criado por Malinowski é Nanook of the North torna-se, pa-
sensorial, por dar ‘asas’ à nossa imagi- radoxalmente, o exemplo do docu-
nação na visualização de outros mun- mentário moderno por ser o filme que
dos. Poder-se-ia dizer que Malinowski constrói, deliberadamente, a cena so-
seria, pois, o pai da antropologia visual cial. Flaherty compra peles novas para
ao ter criado um gênero narrativo, isto fazer as roupas dos protagonistas Inuit
é, uma etnografia sustentada por uma que iriam atuar no filme, constrói um
consistente visualidade. Poderíamos iglu cenográfico, escala sua própria
afirmar, apoiado nos preceitos mali- namorada Inuit para ser a esposa de
nowskianos, que, portanto, toda etno- Nanook no filme. Flaherty, desde sem-
grafia é visual, e que a visualidade é a pre, assumiu o ponto de vista de que

444
não havia problemas em reconstruir a Nanook é sempre evocado como o
cena social. Entretanto, Flaherty, num mito de origem da etnografia visual e
primeiro momento, tentou filmar a seu transbordamento no cinema etno-
vida como era realmente vivida pelos gráfico. O fato marcante que corrobo-
esquimós, o que se mostrou impossí- ra a construção deste mito é seu pró-
vel e frustrante para o diretor. Foi aí prio paradoxo: Nanook é, ao mesmo
que Flaherty passou a filmar os fatos tempo, verdadeiro e encenado.
sociais, desejava filmar uma abstrata A questão do verdadeiro e do ence-
e bem sucedida caça à morsa e não nado está, por assim dizer, na razão
uma caça à morsa realmente aconte- do que pode ser definido como cinema
cida implicando nos riscos de não dar e como etnografia visual. Robert Gré-
certo. Para construir o fato social, o lier (2009), pesquisador e historiador
único modo era recorrer à encenação, do cinema, em seu artigo intitulado
mostrando assim, na sua perspectiva a O Mentir Verdadeiro, apresenta este
sociedade ou a representação de como problema da encenação e da verdade,
eram realmente os esquimós (Flaherty, da revelação e do engano, como es-
1922, 1926). Flaherty defendendo-se sência da expressão do cinema retor-
das acusações de ter encenado a vida nando ao denominado primeiro filme,
dos Inuit, dizia que às vezes você pre- intitulado A Saída da Fábrica, datado
cisa mentir, frequentemente você tem de 1895, realizado por Lumière. Des-
que distorcer uma coisa para captar cobre e nos apresenta que o chamado
seu espírito verdadeiro (Barsam, 1992, primeiro filme do mundo tem três ver-
p. 52 apud Da-Rin, 2004, p. 53; Jordan, sões encontradas, hoje, nos arquivos
1995, p. 22). do cinema francês o que atesta que
Muitos autores questionam a vali- A Saída da Fábrica foi, literalmente e
dade etnográfica ou antropológica de propositalmente, encenada e que se
Nanook, uma vez que Flaherty cons- tratou de uma saída da fábrica em um
truía personagens por demais ideali- dia de domingo em que as operárias
zados e esquematizados, fabricando, exibiam suas roupas e chapéus que
assim, uma imagem do ocidente sobre usavam para ir à missa dominical. A
o filmado, buscando o homem no seu hipótese é que após à missa se dirigem
estado intocável e em sua luta contra à fábrica para encenar uma saída tí-
a natureza. Mas por outro lado, muitos pica do trabalho como se fosse um dia
autores reconhecem que foi a relação de semana. A análise do filme revela
íntima e duradoura que Flaherty man- que pela luminosidade a saída da fá-
teve com os Inuit que deu ao filme sua brica também não se realizava no fim
força cinematográfica, retirando-o da jornada de trabalho, mas no final
de uma simples visão etnocêntrica. O da manhã. Assim, as trabalhadoras e
mesmo se passou com O homem de os trabalhadores já sabem que estão
Aran que fora rodado quando a Irlan- sendo filmados o que desmonta o mito
da estava sendo invadida pelo exér- de que este filme seria o momento
cito Inglês e Aran foi mostrada como inaugural do não reconhecimento da
um oásis de tranquilidade e tradição. câmera e de um agir natural diante do

445
aparato de filmagem. No filme A Sa- vêm as escolhas técnicas: enquadra-
ída da Fábrica não há olhares diretos mento, tempo, luz, deslocamento dos
para a câmera, exceto algumas visa- personagens. E não podemos esquecer
das furtivas. Não se trabalha impune- que a fábrica filmada era do pai de
mente em uma fábrica produtora de Lumière.
placas fotográficas sem que se saiba O que é interessante observar é que
que a manivela girada pelo senhor Lu- desde a invenção do kinetoscópio, por
mière, ao lado da caixa de madeira é, -
nem mais nem menos, uma máquina mes produzido em 1894 foi o Indian
fotográfica aperfeiçoada, capaz de War Council ou Sioux Ghost Dance:
transformar a pose em movimentos. esse primeiros documentos são, assim,
Visivelmente, esses primeiros figuran- uma verdadeira reconstituição, com
tes criam uma ilusão: representam índios verdadeiros, das falsas-verda-
com naturalidade uma saída de uma deiras danças Sioux (Jordan, 1995, p.
fábrica. A Saída da Fábrica não foi um 12-13; Piault, 2000, p. 13). As danças fo-
acontecimento, filmado de improviso. ram filmadas em um estúdio em West
A câmera não estava escondida, e sim Orange. Enquanto filmavam a perfor-
postada na calçada em frente à fá- mance de Buffalo Bill aproveitaram a
brica. Portanto, é uma reconstituição, presença de um grupo de Sioux para
a primeira mise en scène cinemato- encenar a dança. Este fato já demons-
gráfica. Durante mais de um século tra o problema da representação da
fomos enganados, enquanto que “os cena social como constitutivo de uma
atores” e o diretor sabiam da verdade. forma de apreender a sociedade ou a
É inegável, que todas as versões de A cultura do outro, questão que parece
Saída da Fábrica têm por objetivo con- fundamental para se compreender a
tar uma história com começo, meio e dimensão da ficção da realidade ou da
fim, construir uma narração. Uma vez verossimilhança na produção de ima-
descoberto a verdade encenada do ci- gens que compõe o assim chamado
nema, os outros 1500 “filmes Lumière”, filme etnográfico. Koch-Grünberg em
igualmente interessantes, foram do 1911, com ajuda de H. Schimdt produzia
mesmo modo encenação. Como deno- o filme Aus den leben der taulipang in
minar estes milhares de filmes? Docu- Guiana. Trata-se de uma encenação ou
mentários? Reconstituições? Ficções? uma montagem da cena social como
Grélier afirma que sempre houve uma o próprio Koch-Grünberg escreve: “O
escolha, da parte de Lumière ou de chefe Pita ...organizou em agosto e
seus operadores. Jamais se poderá di- setembro duas festas em nossa home-
zer que há ausência de subjetividade, nagem... chamou convidados de muito
começando pelos temas que já reve- longe, mais de mil pessoas... duzentas
lam uma maneira de pensar. O opera- pessoas participaram da dança” (Zer-
dor sempre toma posição, e os filmes ries, O. 1964, p. 11 apud Jordan, 1995, p.
refletem a imagem de uma burguesia 18). A encenação revela a própria arti-
satisfeita consigo mesma, que coloni- ficialidade e intervenção da câmera no
za e se enriquece. Depois, então, é que ato de filmar assim como aponta que o

446
que é filmado depende, sobretudo, da se ancora na invenção, encenação,
relação entre quem filma e os que são construção, colocando, portanto em
filmados sendo o filme, verdadeira- cheque uma percepção de oposição
mente, o produto desta relação. entre imagem e real que se desdobra
Em 1914, o célebre fotógrafo Edward na falsa oposição de conhecimento
Curtis fez um filme que se intitula em sobre si mesmo e sobre o outro. Mit-
inglês In the land of the head hunters chell (1986, p. 12), ao analisar imagens
e em português A saga romantizada enquanto discursos, demonstra que,
da vida dos índios Kwakiult da costa ao contrário do que a crença comum
noroeste dos EUA. Trata-se de uma en- costuma estabelecer, as imagens não
cenação realizada pelos Kawkiutl, que são estáveis, estáticas ou permanen-
representam a epopeia mítica de sua tes, portanto, não são percebidas do
sociedade. Com a ajuda do mesmo co- mesmo modo pelos que as veem, e
laborador de Franz Boas, Gorge Hunt, que também não são exclusivamente
Curtis passou cinco estações compar- visuais, isto é, envolvem uma apreen-
tilhando a vida com os Kawkiutl reali- são multisensorial e interpretacional.
zando um filme que alia precisão etno- Ao recuperar a ideia de Wittgenstein,
gráfica a uma estética exuberante da ao equacionar as imagens mentais às
vida material Kawkiult (Jordan, 1995, p. imagens reais como da mesma natu-
18). Estes filmes chamados de etnográ- reza, põe em cena a problemática re-
ficos procuram realizar uma organiza- lação entre a construção das imagens
ção ficcional da realidade. visuais e os objetos reais. A partir desta
O recurso da ficção em filmes do- nova percepção da dimensão imagé-
cumentários clássicos já vinha sendo tica pode-se formular uma crítica à
utilizado pelo menos desde 1938, como metafísica ocidental que se constrói
demonstra o filme North Sea (Harry sobre a divisão clássica entre mente/
Watt, 1938) em que ao invés de adotar matéria, sujeito/objeto que são formas
a voz em off de um narrador, partiu de metafóricas de lidar com a não menos
um roteiro escrito por Watt e Caval- imaginária, separação entre imagens
canti para que atores, escolhidos entre mentais e reais. Prova disso é a en-
os trabalhadores, encenassem os diá- quete realizada por Andre Bazin (1985)
logos escritos que dramatizavam uma realizada após a projeção do filme O
crise entre os tripulantes de um barco Bebê de Rosemary (Roman Polanski,
de pesca durante uma tempestade. 1968) em que muitos espectadores de-
Este filme, que se propunha ser um clararam que viram na cena final uma
documentário sobre a pesca utilizan- criança recém-nascida, descrevendo
do pescadores reais e cenário real, ao as feições monstruosas da filha do de-
adotar recursos da ficção tornou-se mônio, seu chifre, seu rosto deformado,
um dos filmes mais bem sucedidos suas patas. No filme, aparece o berço
produzidos pela EMB/GPO (Da-Rin, e o rosto das pessoas que olhavam o
2004, p. 89). Assim, o fundamento berço, jamais a imagem de um bebê.
do cinema e aqui não estaria de fora O que se passou com os espectadores
as narrativas etnográficas visuais não foi propriamente ver algo que não

447
existia, mas sim imaginar a imagem, justamente por função assumir: como
somente uma percepção artificial e rí- mostrar e capturar a diferença sem
gida do que seria o real e o imaginário torná-la irredutível e sem reduzi-la ao
poderia por em dúvida esta possibili- idêntico. O filme Os mestres loucos
dade de tomar o imaginário como real, para Rouch evocava um novo método
ou como constitutivo da experiência. de pesquisa que consistia em compar-
E aqui retornamos às questões pos- tilhar com as pessoas que, de outro
tas por Malinowski sobre imaginação/ modo, não passariam de objetos da
imagem e os processos cognitivos. pesquisa. “Nós fazemos delas sujei-
Mas devemos agora aportar a con- tos!”, este era o lema e ideal rouchiano
tribuição de Jean Rouch para enten- (Rouch,1980, p. 57 apud Da-rin, 2004,
dermos os modos possíveis de cons- p. 158). Esse fazer do objeto sujeito é o
truir visualidades e imaginários. Rouch que abria caminho para o que veio a
é de fato um continuador consciente ser designado a antropologia compar-
da tradição de Flaherty ao usar a fic- tilhada, inaugurada em seu filme an-
ção, no sentido de abraçar as técnicas terior Bataille sur le grand fleuve (1954)
da ficção para contar o que denomina sobre a caça ao hipopótamo. Rouch
verdades etnográficas (Jackson, 2004, projetou o filme realizado para os fil-
p. 36), o que desembocou, conscien- mados e, após algumas sessões, os ca-
temente, em sua conceituação de et- çadores criticaram a música de fundo
noficção. Etnoficção para Rouch seria, posta por Rouch. Os personagens do
antes de tudo, uma forma de colidir e filme dizem a Rouch que a música pre-
não necessariamente apenas misturar judicaria a caçada, para se caçar um
ou pôr em relação - o que definia como hipopótamo deve-se estar em profun-
percepções derivadas diretamente da do silêncio. Rouch levou a sério a crítica
experiência descritas em termos de e retira o som do filme . Deve-se fazer,
realidade, documentário e etnografia, aqui, uma observação para que este
com as narrativas que atribuem sen- ideal de antropologia compartilhada
tidos as estas experiências descritas não seja interpretado como romantis-
como ficção, mitos, narrativas e o ci- mo simplista, significando que, quan-
nema lhe dava as condições, de fazer do Rouch engajava-se em um projeto
corresponder estas duas percepções coletivo, este não produzia tensões e
simultaneamente. diferentes percepções sobre o que era
Desta perspectiva, etnoficção en- realizado.
volve a pesquisa etnográfica, circuns- Este compartilhar imagens produ-
tâncias verdadeiras, história, improvi- zia uma narrativa expressiva inteira-
sação e reação participante. Rouch foi mente nova e este frescor narrativo
quem propôs o conceito de antropolo- foi logo percebido por Lévi-Strauss
gia compartilhada que dá conta desta quando assistiu ao filme de Rouch so-
virada imagética-sonora da etnogra- bre a caça aos hipopótamos no Mu-
fia a partir dos anos 50. A antropolo- seu do Homem em Paris (aliás o tema
gia compartilhada trata do paradoxo da caça aos hipopótamos já era um
da alteridade que a Antropologia tem tema bastante explorado pelo cinema

448
colonial, sobretudo o belga e agora A ficção para Rouch, ao invés de pros-
recebia um tratamento inteiramente tituir a realidade, expressão que revela
diferente dado por Rouch). Lévi-S- a incompreensão e o preconceito de
trauss, reconhecendo esta diferença, e Lévi-Strauss quando pensa o que seja
entusiasmado pelas imagens, afirma realidade ou verdade, ganha justa-
que o filme etnográfico seria a nova mente para Rouch o sentido de faz de
avenida aberta para a Antropologia. conta. Rouch cria um impasse entre
Porém, alguns anos mais tarde Lévi- ficção e realidade. Por este motivo, a
-Strauss em uma entrevista ao Cahier imaginação, a ficção faz parte desde o
du cinema revela as tensões de se pro- princípio da condição de produção da
duzir etnografias visuais baseadas em etnografia e do filme etnográfico, uma
etnoficção derivando uma determina- vez que não se pode proclamar um real
da percepção e recepção do cinema e sem levar em conta este fazer de conta
das formas expressivas pelas ciências engendrado tanto pela relação com
sociais como fonte de conhecimento. o cineasta quanto com o etnógrafo
Especificamente sobre Eu, um negro, (Rouch, 2003a, p. 31). Esta percepção
jaguar, pirâmide humana e crônica de de Rouch aponta para uma sensibili-
um verão, os clássicos filmes de Rou- dade imaginativa por onde se constrói
ch, Lévi-Strauss diz que estes filmes uma narrativa visual etnográfica. Rou-
revelam um pseudo cinema-verdade, ch dizia: “Eu me considero ao mesmo
e muito pouco do filme etnográfico: tempo cineasta e etnólogo. Eu acho
“Eu entendo o filme etnográfico no que a etnologia é poesia. Não acredi-
sentido estrito da palavra: o documen- to muito nas ciências humanas, como
tário. Tanto Eu, um negro quanto La já disse várias vezes. Afinal de contas,
Pyramide Humaine provém de uma as ciências humanas são algo de ter-
acomodação da verdade, muito menos rivelmente subjetivo” (Rouch, 1972, p. 7
tolerável, que se apresenta sob a apa- apud (Da-Rin, 2004, p. 149).
rência da verdade. Mas um filme que Neste sentido é pela via do cine-
pretende ser verdadeiro, um átomo de ma que Rouch quer construir uma
ficção, tiraria, a meu ver, seu crédito. Antropologia criativa e alternativa:
Se o filme se trata de uma ficção, ela sem fronteiras, misturando gêneros,
seria realizada de uma melhor maneira provocando a participação, rompen-
com profissionais, um cenário e uma do expectativas, criando surpresas,
mise-en-scene... A fórmula me parece explorando cada ponto de conjunção
inaceitável, continua Lévi-Strauss e o entre etnografia e ficção, entre uma
resultado sem algum interesse. Eu te- meticulosa observação e a capacidade
nho muito respeito pela verdade para de sonhar. E o fingir, o fazer de conta
aceitar que ela seja prostituída pela é o que provoca o outro a mudar sua
ficção, mesmo que seja por momentos percepção e poder ver o mundo de um
(Lévi-Strauss, 1997, p. 36). outro ponto de vista. Partindo desta
Lévi-Strauss estava longe de en- mesma motivação, Rouch sempre le-
tender a ontologia do cinema e seus vou a sério a parceria com seus cola-
possíveis rebatimentos na etnografia. boradores africanos e, muitos destes,

449
tornaram-se cineastas como Oumarou Se para Rouch a essência do fazer
Ganda, Safi Faye, Moustapha Allas- etnografia e do fazer cinema é a rela-
sane, Inoussa Ousseni (Ukadike, 1995 ção - enquanto gênese, possibilidade e
apud Feld, 2003, p. 20). Sobre este de- resultado de uma narração - esta rela-
vir-cineasta, Rouch nos diz o seguinte ção é entre sujeitos e o conhecimento
sobre Eu, um negro: “o melhor resulta- na Antropologia e no cinema surgem
do deste filme foi a descoberta feita como possibilidade da subjetividade. A
por Oumarou Ganda: descobrindo o partir desta qualificação da diferença
poder do filme, ele decidiu alguns anos é que Rouch (1996a, p. 45) profetiza,
mais tarde a fazer o seu próprio filme” ainda nos anos 60, quanto à populari-
(Rouch, 2003c, p. 165). zação do filme etnográfico em forma-
Do mesmo modo que pensava seu to de vídeo, uma vez que previa que
cinema e sua etnografia como formas chegaria o tempo sonhado por seus
de criação, atribuía ao conceitual na- ancestrais Vertov e Flaherty simultane-
tivo esta mesma capacidade criativa, amente, o tempo do cine-ouvido-me-
seja pela possessão dando ensejo ao cânico. Uma câmera participante que
cine-transe, cinema transformativo, passaria de forma quase automática
seja pela formula do como se, o faz de para as mãos daqueles que estavam
contas, exemplificando que esta fór- habitualmente na frente da câmera: o
mula do faz de contas estava na base antropólogo não teria mais o monopó-
mesma da cosmologia Dogon, de sua lio da observação, será ele mesmo ob-
mitologia. servado, gravado, ele e sua cultura. E
O que Rouch consegue, de fato, com assim, o filme etnográfico nos ajudará
o seu cinema e sua etnografia não é a compartilhar a Antropologia.
simplesmente dar voz aos nativos ou É aqui que nos encontramos hoje em
aos africanos oprimidos pelo colo- relação à produção das etnografias
nialismo e tão pouco pretende falar audiovisuais que passam a ser produ-
da colonização em África, mas tomar zidas em redes colaborativas, com a
seus amigos e interlocutores à sério, formação de cineastas locais. Os pro-
no sentido de que sua etnografia fosse jetos se multiplicam por toda parte, Vi-
realmente compartilhada entre au- deos nas Aldeias, Observatório das Fa-
tores: Rouch e seus colaboradores. A velas, Imagens do Povo, Ateliê Varan,
questão da autoria parece ser funda- TV Isuma dos Inuit, TV dos Aborígenes
mental para a compreensão do que da Austrália, em Bangladesh, na Índia,
estaria em jogo na construção de um na África.
filme e de uma etnografia. Desafiando, Esta nova produção de imagens
por assim dizer, o discurso nativo ou a reconfigura um novo imaginário in-
paráfrase nativa, propunha uma nova surgente do cruzamento de questões
conceituação de autoria que engloba- antropológicas, dos chamados nativos,
va todos os envolvidos e, por isso, no de múltiplas tradições cinematográfi-
cinema e na etnografia de Rouch en- cas e documentais. Neste contexto, é
contram-se múltiplas verdades, múlti- gestada, então, uma crítica ao modo
plos autores e diferentes percepções. ‘expositivo’ predominante no gênero

450
de filmes documentários que tende a representações são produzidas através
tratar dos sujeitos representados como de um ‘jogo de espelhos’ em que as
se fossem ‘objetos’ (Nichols, 1994, p. ‘imagens sobre si’ se produzem através
35-38; Piault, 2000, p. 153). dos outros em um processo, eminen-
Se existem, evidentemente, dife- temente, relacional, fazendo com que
renças fundamentais na produção as imagens de si afetem e sejam afe-
imagética de si e do outro, sejam nas tadas pelas imagens dos outros sobre
dimensões – éticas, estéticas, políticas si. Assim, autoimagem é por definição
e epistemológicas - o ponto princi- uma imagem em transformação, o que
pal a ser salientado é que, a partir do acentua o que designamos conceitual-
momento em que se reconhece uma mente como ‘devir-imagético’ (Gonçal-
simetria entre estas representações e ves & Head, 2009).
apresentações imagéticas enquanto Se a sensibilidade moderna permitia
modos de produção de conhecimento aos intelectuais ‘descobrirem’ os nati-
é justamente o momento em que evi- vos traduzindo suas culturas e vozes,
denciamos uma ‘passagem à imagem’ fazendo-os, assim, participar da cul-
na antropologia que se torna tão efe- tura ocidental através de uma repre-
tiva que contamina o texto escrito, a sentação de imagem, de sua arte, de
etnografia clássica, propriamente dita, sua cultura, de seus costumes, a sen-
em que insurgem imagens de si em sibilidade pós-moderna induz à proli-
profundo diálogo com as imagens so- feração das auto-representações em
bre o outro (Piault, 1995, 2000). que as culturas e seus personagens se
Neste novo contexto percebe-se apresentam diretamente formulando
uma reconfiguração do conceito de seu ponto de vista e sua percepção so-
representação – escrita, imagética ou bre o modo que desejam ser represen-
audiovisual – agora, transformada tados e apresentados. Os chamados
em auto-representação, modo legíti- ‘favelados’, ‘índios’, ‘negros’, ‘pobres’
mo de apresentar uma autoimagem passam a falar sobre si próprios, se fo-
sobre si mesmo e sobre o mundo que tografam, se filmam, se representam
evidencia um ponto de vista particular, e se apresentam em profundo diálogo
o do ‘objeto’ clássico da Antropologia com as múltiplas representações já
que agora se vê na condição de su- constituídas sobre eles, o que engen-
jeito produtor de um discurso sobre si dra, por sua vez, curtos-circuitos políti-
próprio. Assim, o conceito de auto-re- cos e estéticos que movimentam novas
presentação se torna particularmente formas de apresentação e representa-
pertinente quando estas formas mais ção. Este novo contexto desestabiliza
ou menos implícitas de se represen- as ‘verdades’ da representação etno-
tar tornam-se, elas mesmas, alvos de gráfica, fazendo emergir as fabulações
encenação, interpretação, reinvenção, dos personagens que se constituem
criação de identidades políticas e cul- através dos processos de auto-repre-
turais ou outros modos de represen- sentação. Um aspecto intrigante da
tação mais explícitos, agenciadas por auto-representação consiste, quase
estas mesmas pessoas. Neste caso, as por definição, na ausência de uma

451
divisão ‘clara e distinta’ entre a própria Neste novo contexto e configuração
representação e o que ela representa, do que se designa etnografia audio-
estabelecendo, assim, uma confusão visual ‘a voz do dono’ (da percepção
de horizontes que se manifesta tanto ‘expositiva’, da realidade expressa pela
mais fortemente nos casos em que as representação do outro), a autoridade
imagens – fotográficas, fílmicas, pin- do filme nas mãos do diretor (Bernar-
tadas, desenhadas, ou até ‘vestidas’ – det, 1985) é desestabilizada pelo ad-
passam a ser matérias centrais destas vento de uma nova possibilidade ética
auto-representações. O que Deleuze e estética de apresentar ou de repre-
(2005, p. 183-288) estabelece para a sentar o outro que está implicada em
criação dos personagens no cinema concepções de alteridade formuladas
poderia ser transposto para a percep- a partir das transformações das iden-
ção desta nova percepção imagética a tidades de ‘eu’ e ‘outro’, produzidas em
partir desta reconfiguração da repre- contextos pós-coloniais que influen-
sentação. Assim, deixando de lado ‘as ciam a forma de conceber esta relação
verdades’ sobre si próprios, aquilo que em que o ‘outro’ passa a ter pregnân-
era sempre criado pelos “dominan- cia, não no sentido de apresentar a
tes ou... colonizadores”, os chamados verdade ou a autenticidade de sua ‘vi-
pobres produzem através da “função são de mundo’ ou de sua ‘cultura’, mas
fabuladora”, que aposta na evocação no sentido de apontar para uma ética
de uma potente falsidade sobre si, em das relações entre aquele que filma e
oposição às ‘verdades’ constituídas, e aquele que é filmado que tem impli-
que tem a capacidade de criar “uma cações diretas na produção de uma
memória, um lenda, um monstro”. Nes- estética de apresentar e representar o
te novo contexto, o personagem criado ‘outro’.
não é real ou fictício, objetivo ou sub- Finalizando, o que importa no con-
jetivo. A auto-representação estaria texto de realização de etnografias
aderida a uma formulação “do devir audiovisuais, seja fazendo um filme
da personagem real quando ela pró- etnográfico, um documentário, é o pro-
pria se põe a ‘ficcionar’, quando entra cesso de constituição de uma relação
‘em flagrante delito de criar lendas’ que permita a emergência e insurgên-
e, assim, contribui para a invenção de cia destas novas formas representa-
seu povo”. Neste sentido, é necessário cionais e apresentacionais em que se
que a personagem seja primeiro real exerça a constante e saudável refle-
para que afirme a ficção como uma xividade capaz de, a cada momento,
potência e não como um modelo: é ne- questionar a ‘voz do dono’, os modos
cessário que se ponha a fabular para expositivos e autoritários de exposição
se afirmar tanto mais como real, e não visual procurando formas mais simé-
como fictícia. A personagem não cessa tricas, auto-representativas, diálogos
de tornar-se outra, e não é separável colaborativos, partilhas, coautorias,
deste devir que se confunde com um que permitam a partir deste jogo
povo (Deleuze, 2005, p. 194-198). complexo das imagens de si e dos ou-
tros permitir a emergência de modos

452
criativos e sempre novos de partici- do documentário. Rio de Janeiro,
pação na produção do que se designa Azougue.
audiovisualidades.
Estes questionamentos, longe de DELEUZE, Gilles. 2005. A ima-
ser uma ameaça para a produção gem-tempo. Cinema 2. São Paulo,
de conhecimento é antes de tudo um Brasiliense.
modo de complexificarmos o modo
como conhecemos, porque conhece- FELD, Steven. 2003. Cine-Ethnogra-
mos jogando nova luz sobre os sujeitos phy - Jean Rouch. (Visible Evidence, 13).
envolvidos neste processo de conheci- Minneapolis, University of Minneapolis
mento que dotados de novas agências Press.
são os protagonistas no processo de
se tornarem, literalmente, imagens, e GONÇALVES, Marco Antonio; Head,
enquanto imagens ganham potência, Scott. 2009. Devires Imagéticos. A et-
se autoproduzem, auto-representam, nografia, o outro e suas imagens. Rio
invertendo, assim, o caminho e dire- de Janeiro, 7Letras.
ção da etnografia clássica, produzindo
através e por meio de suas imagens, GRÉLIER, Robert. 2009. O mentir
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454
NOTAS

Posfácio

145 A primeira versão deste texto foi elaborada para a conferência no IX


Visualidades 2017, Universidade do Vale do Acaraú, Sobral, CE. Agradeço ao
professor Nilson Almino de Freitas. Nesta mesma ocasião dei uma entrevista
sobre antropologia e imagens que se encontra no link: https://youtu.be/
XH305u9oYNc.

146
um dos pioneiros da antropologia visual brasileira, que procedeu a uma fina
análise do acervo da comissão Rondon, especificamente o produzido por

147 In the land of the headhunters (1914) de Edward Curtis e Nanook of

455
posfácio
At i re i o p a u n o
gato sim. E daí? 3
Você sabe com
q u e m e s t á f a l a n d o?

Philippe Pomier Layrargues


Professor Adjunto do curso de exibição do famoso programa humo-
Gestão Ambiental rístico dominical na televisão brasileira,
Universidade de Brasília “Os Trapalhões”. Em pleno regime mi-
litar, representava fielmente o espírito
do seu tempo. E representava também
o sutil controle social da autêntica ‘ser-
Houve uma época que vivíamos com vidão voluntária’, no reconhecimento
um sentimento constante de constran- tácito do seu devido lugar, humilhan-
gimento no ar. O constrangimento vi- temente subalterno na sociedade de
nha pelo sentimento de embaraço, do classe, quando os humoristas eles pró-
incômodo de presenciar uma situação prios encarnavam como personagens,
delicada que representava a violência um negro alcoólatra, um malandro
moral do preconceito contra o Outro, estúpido, um nordestino e um ‘afemi-
ridicularizado, humilhado, ‘denegrido’, nado’: eles próprios se colocavam na
por ter sido alvo de um deboche para o condição de oprimidos, felizes sim, mas
deleite com a dor alheia. Eram os tem- passivos e conformados.
pos da cultura do “politicamente incor- Líder de audiência, o programa es-
reto”, sem receios ou remorsos, quando treou em meados dos anos 70 e foi exi-
rir da cara do outro na frente de uma bido por quase vinte anos ‘pregando
plateia sádica não era um ‘programa peças’ nos personagens. Zombar com
de índio’. a cara do outro era o normal naque-
O desconforto desse mal-estar les tempos, e os incomodados que se
social vigorou na mesma época da mudem. Fracotes que largassem de

456
‘viadagem’, porque menino não chora, inferiorização no imaginário dos gru-
diziam os ‘valentões’. Ao melhor estilo pos sociais alvo constante de zomba-
do politicamente incorreto, cenas ex- rias e deboches desqualificadores, por
plícitas de desqualificação e inferiori- ser negro, pobre, trabalhador, migran-
zação, como manifestações constantes te, nordestino, gordo, magro, vegeta-
de racismo, homofobia, machismo, in- riano, gay, zarolho, manco, ‘deficiente
tolerância religiosa, preconceito contra físico’ ou qualquer outro ‘desvio’ do pa-
nordestinos e pessoas obesas, aborda- drão dominante patriarcal, machista,
dos sob o manto humorístico e com o elitista, autoritário, racista, homofóbi-
‘direito’ inclusive de insinuar agressões co, tradicionalista, meritocrático.
físicas contra ‘gays’ porque esse ‘des- É nestes tempos que ‘empregadas’
vio’ não era ‘natural’, portanto não po- domésticas eram convencionalmente
deria ser tolerado. obrigadas a ingressar nas dependên-
Sabe-se hoje, com os avanços na ci- cias privadas pela porta dos fundos e
ência da psicologia, que as agressões pelo elevador de serviço. Privadas do
vexatórias politicamente incorretas acesso privilegiado, eles são sistemati-
não deixam suas vítimas mais ‘cas- camente inferiorizadas pelo fato de se-
cudas’; ao contrário, deixam traumas rem obrigadas a acessar seu ambien-
e afetam grave e profundamente a te de trabalho profissional por uma
autoestima daquele que foi zombado. forma diferente da que seu patrão se
Esse programa humorístico provavel- permite, uma distinção/exclusão que
mente encontraria dificuldades para também se faz com outras categorias
ser exibido atualmente na televisão, profissionais não consideradas nobres
porque os tempos mudaram e a ofen- e com acesso negado à porta da frente
sa contra a honra finalmente passou e pelo elevador social. O acesso, ou a
a ser tipificada como crime contra a sua privação, corresponde a um esta-
dignidade da pessoa humana: os di- tuto diferencial de distinção de classe
reitos humanos se firmaram e se ex- social, que precisa ser imposto reitera-
pandiram, representando a superação damente como controle ideológico de
do devastador universo politicamente uma ordem social opressora.
incorreto, condenado a permanecer no É nestes tempos que o ‘nordestino’
passado. era um ‘paraíba’ ou ‘cabeça-chata’,
Sim, aceitava-se o politicamente in- uma generalização ofensiva que de-
correto jocoso, ou seja, revestido pela notava o preconceito regional, inferio-
camada de humor pastelão e ingênuo, rizando o universo do povo nordestino
ao mesmo tempo que se convivia com sob o olhar hierárquico do sudeste
essa mesma prática cruel do politica- que se julgava superior. Uma crença
mente incorreto no cotidiano das rela- reforçada pela migração regional do
ções sociais no mundo vivido. A prática semiárido nordestino em busca de me-
da opressão e exploração que se ex- lhores condições de vida, na ausência
pressava no mundo vivido também era de políticas públicas coerentes com a
representada, de modo equivalente, severidade da estiagem na Caatinga;
pela agressão verbal que significava que também vigorava com o mesmo

457
propósito ideológico de manter uma Ali naquele ácido e estéril terreno
classe social subjugada e subserviente, politicamente incorreto, não vigavam
para ser apenas força de trabalho de as sementes da justiça e dos direitos
baixo custo e pouco exigente na capi- humanos. ‘Bandido bom é bandido
tal paulista, que não ousasse imaginar morto’, célebre afirmativa que insinua
exercer algum trabalho que deman- dispensar o direito de defesa e a jus-
dasse refinamento intelectual. Até que, tiça formal para todos, porque o que
no meio de todo aquele exército de vale mesmo é fazer justiça com as pró-
mão-de-obra barata e obediente, um prias mãos. Armadas. Porque eram os
dia surgiu no horizonte a brilhante es- tempos que precederam a criação do
trela vermelha justamente de um nor- Estatuto do Desarmamento, quando
destino, migrante, de Caetés para São todo ‘cidadão de bem’ tinha uma arma
Bernardo do Campo; um metalúrgico em casa para se defender da ‘bandi-
que começou a questionar os motivos dagem’, uma forma sutil de se antever
dessa injusta ordem social. E que mais os aparelhos repressores de Estado,
tarde, mudou o curso da história. alinhados com os aparelhos ideoló-
Eram os tempos de demonização gicos de Estado, mantendo-se vivo o
do ‘macumbeiro’, grave preconceito mantra do fetiche punitivista, que pas-
religioso que se somava ao racismo sa muitas mensagens imaginárias.
estrutural, amaldiçoando as práticas Eram os tempos da meritocracia,
religiosas dos povos de santo. Mas que onde um pobre ‘vagabundo’ não mere-
hoje sabemos, por evidências cientí- cia uma chance na vida e tinha que ser
ficas do campo da antropologia eco- discriminado e desprezado, desconsi-
lógica, que o Candomblé representa derando-se a nefasta influência dos
uma força religiosa de matriz africana fatores sociais no destino de vida das
de base essencialmente ecológica, classes sociais em condições de vulne-
hoje reconhecida e valorizada como rabilidade econômica e ausência do
eco espiritual; bem ao contrário das re- Estado de Bem Estar Social capaz de
ligiões monoteístas, responsáveis pela corrigir as distorções da desigualdade.
instauração das bases do antropocen- A ideia de igualdade de oportunidades
trismo que estão no epicentro da atual e de equidade de acesso aos bens de
crise socioambiental planetária. uma sociedade, ainda não havia lugar,
Eram os tempos também do assédio os privilégios e toda distinção social
moral, quando algum trabalhador se eram mantidos sem reservas.
via em situação humilhante ou cons- Era quando chamar alguém proposi-
trangedora provocada pelo seu chefe talmente de ‘energúmeno’ ou ‘analfa-
‘superior’ durante a jornada de traba- beto’, carregava uma conotação moral
lho; tempos que os estudantes na es- depreciativa, inferiorizando o Outro a
cola desconheciam o termo “Bullying”, partir de um olhar arrogante e elitista
e os mais fracos que ‘se danassem’ se de superioridade exatamente dentro
não gostassem da ‘judiação’ de seus da estrutura de classe social capitalis-
apelidos vexatórios, entre outros tipos ta, que divide hierarquicamente aquele
de perseguição perversa. que desempenha a nobre atividade

458
intelectual daquele que é um ‘bosta vaquejada, da farra do boi, e de tantas
ignorante’. Atitude sempre acompa- outras práticas de crueldade animal
nhada da certeza da impunidade pelo que confundiam cultura com tortura.
crime de ofensa à honra e dignidade Foi no espírito da cultura do politi-
humana, uma afronta contra a cláu- camente incorreto inclusive, que sem
sula pétrea da Constituição Federal. nos darmos conta, nos apropriamos
Eram os tempos do pedantismo da do nome de animais e seus atributos
cidadania relacional, invocando-se o simbólicos como rótulos pejorativos
clássico “Você sabe com quem está para insultar a natureza incivilizada
falando?” para mostrar um poder eco- dos humanos, (des) qualificando-nos
nômico ou prestígio político, como um como porco, burro, anta, toupeira, ele-
privilegiado ‘amigo do rei’148, os intocá- fante, jaburu, raposa, víbora, jararaca,
veis pela justiça exibiam publicamente piranha, galinha, veado, macaco, rato,
suas vantagens distintivas no status verme, lesma, tartaruga... toda uma
social. diversidade faunística depreciada a
Eram os tempos que se jogava des- um conjunto desqualificado e disfun-
caradamente o lixo no chão, sem ne- cional aplicado a uma agressão moral
nhum peso na consciência, sob a cer- inferiorizando esse Outro humano à
teza do argumento que assim fazendo condição de ‘bicho’.
se ajudava a dar trabalho aos garis. No dia 10 de dezembro de 1948 as
Eram os tempos em que ecologia era Nações Unidas instituíram a Declara-
‘coisa de viadinho’, esses ecologistas ção dos Direitos Humanos, como um
e seu ‘mi-mi-mi’ infantil e românti- ideal civilizatório comum a orientar o
co de abraçar as árvores e a frescura destino de todos os povos. Desde en-
de querer proteger a natureza; eram tão, com este marco institucional inau-
tempos que cantigas infantis como o gural, logrou-se com muita dificuldade,
folclórico “Atirei o Pau no Gato” não uma ampliação lenta e progressiva
despertavam nenhum remorso ou re- da esfera dos direitos. Assegurou-se
flexão quanto ao precoce estímulo pe- universalmente a todos os cidadãos o
dagógico à violência. Era normal essa direito à vida, à saúde, à educação, à
apologia à crueldade animal, eram os liberdade, à dignidade, ao meio am-
tempos que as crianças ‘brincavam’ biente ecologicamente equilibrado, ao
de matar passarinhos com estilingues, alimento saudável, ao saneamento;
prática cultural infelizmente ainda pa- entre tantos outros direitos, especial-
rece estar presente nos dias de hoje. mente os humanos, sociais, civis e po-
Eram os tempos que o espetáculo cir- líticos, pilares da cidadania; indepen-
cense era um espetáculo dos horrores, dentemente de sua condição de classe,
tamanha a crueldade animal a que se étnica, racial, sexual, etária, religiosa,
submetia os animais para uma boa linguística ou política. Não menos im-
performance no picadeiro, acorren- portante aqui a ressaltar, é a própria
tados e mal tratados, longe de uma Constituição Federal de 1988, conheci-
vida de glamour de grandes artistas. da como a “constituição cidadã”, jus-
Eram os tempos da rinha de galo, da tamente por assegurar um vasto leque

459
de direitos básicos e fundamentais humanos com os mesmos direitos e
para um Estado Democrático de Direi- sujeitos aos mesmos deveres. Afinal,
to. Para que haja de fato dignidade, li- nesta transição cultural dos anos 80 e
berdade e igualdade entre as pessoas. 90, falava-se muito de ‘inclusão social’
Neste caminhar dos direitos, que das pessoas historicamente excluídas
inclusive se estendeu aos direitos ani- e marginalizadas...
mais, com a criação da Lei dos Crimes Só que não. Os fantasmas desse
Ambientais; buscamos acertar as con- passado retornaram. E com sede de
tas até com a linguagem politicamen- poder, para acabar com essa ‘frescura’
te incorreta, contribuindo com a cons- de direitos humanos. Chegou a hora de
trução de uma linguagem não sexista, botar as coisas de novo no seu devido
não bélica e com o combate ao racis- lugar. ‘Morra quem tenha que morrer’,
mo estrutural que está tão entranhado não é assim que se diz agora?
na forma de se exprimir, quando se De alguma forma, a ampliação do
vale de tantos atributos da negritude campo dos direitos não se fez como
qualificados como pejorativos e de- um processo pedagógico, mas surpre-
preciativos. A coisa ‘ficou preta’ para o endentemente, como uma imposição
mundo politicamente incorreto, e esse opressora que contou com o poder
‘passado negro’ ficou na memória da de criação de instrumentos legais e
história. mecanismos jurídicos que passaram
Esse foi o novo estatuto moral uni- a condenar e punir o mundo politica-
versal que passou a orientar o caminho mente incorreto. E aqueles que antes
civilizatório na direção da construção se sentiam confortáveis desfrutando
do mundo politicamente sensato da impunemente desse mundo politica-
dignidade plena da pessoa humana. mente incorreto e sem receios ou deve-
Paulatinamente, passamos a ficar res a cumprir, se viram da noite para o
estarrecidos e passamos a abominar dia como marginais com seus ‘direitos’
e condenar as atitudes e práticas po- de expressão e de exploração repri-
liticamente incorretas. A esfera dos midos. A raiva foi tão grande que a
direitos ampliou-se de modo a abri- expressão ‘direitos humanos’ virou pa-
gar todos aqueles que foram vitima- lavrão. Sem poder mais rir da cara do
dos por toda ordem de preconceitos e outro, o mundo deve ter ficado ‘chato’
ações discriminatórias, opressoras e para eles. Talvez esteja aí a origem do
exploradoras; muitas delas criminali- terraplanismo.
zadas inclusive. Acabou a impunidade Jair Bolsonaro é O Mito não porque
do politicamente incorreto. Acabou a foi um azarão que venceu as eleições
supressão dos direitos humanos. Espe- de 2018 com gesto de arminha na mão.
rava-se afinal, a compreensão escla- E sim porque representa a ressurreição
recida da necessidade do acolhimento, do mundo politicamente incorreto, por
da fraternidade, e sobretudo, da em- ter resgatado das tumbas do passado
patia, onde aqueles algozes do pas- a cultura e a prática do politicamen-
sado tivessem se civilizado, aprendido te incorreto. Afirmou com todas as
com a dor do Outro, que todos somos letras, em seu discurso de posse, que

460
como presidente, libertaria o povo do as versões da realidade proposital-
socialismo e do politicamente correto. mente distorcidas, interpretadas aos
Libertaria do jugo da opressão a que moldes do padrão politicamente in-
se sentiam vítimas todos aqueles que correto. Vale ressaltar que a dicotomia
um dia ostentaram orgulhosamente o entre a ‘ala ideológica’ e a ‘ala militar’
título de valentão maioral que fala o é um ardil fazendo crer que esta últi-
que pensa, sem mi-mi-mi, que é ‘au- ma estaria atuando como contrapeso
têntico’ e não tolera ser incomodado isento e ponderado, como um media-
para prestar satisfações à justiça, que dor confiável que limitaria o excessivo
hoje se identificam como essa base fiel extremismo ideológico bolsonarista.
de 30% da população brasileira que As Forças Armadas compreenderam
manifesta apoio incondicional ao seu que desde o nascimento das redes so-
Mito salvador. ciais digitais inaugurando essas bolhas
Em êxtase por abrir a porteira para ideológicas que vivem em realidades
o gado do seu patrão passar, é exata- virtuais paralelas, surgiu um novo front
mente neste espírito politicamente in- de guerra, a Guerra Híbrida, semean-
correto que o sinistro do meio ambien- do a discórdia na clássica fórmula do
te condenado por fraude ambiental, ‘dividir para governar’, colonizando e
Ricardo Salles, em dezembro de 2019, manipulando imaginários, escrevendo
postou em seu Twitter uma foto de o mundo no nosso lugar. Isso significa
churrasco, para ironizar a Conferência que é o próprio Aparelho Repressor
do Clima debochando do vegetaria- de Estado que detém a prerrogativa
nismo, afirmando que para compensar do manejo do Aparelho Ideológico de
as emissões na sua participação na Estado.
25ª COP, estava fazendo um “almoço Jair é essa estarrecedora liderança
veggie”. Um ministro do meio ambien- exemplar, porque encarna com ma-
te - negacionista climático - ridicula- estria esse perfil recalcado de quem
rizando a emissão de gases de efeito ansiava pelo retorno do politicamente
estufa causados pela pecuária, é a re- incorreto sem ser molestado ou puni-
presentação máxima do escárnio com do pela justiça por causa da sua ‘au-
o desvio da função pública em relação tenticidade’ na sua forma desprezível
ao cargo que ocupa na administração de pensar publicamente: mostrou-se
pública federal. homofóbico, quando em 2011, em en-
E assim, Jair não apenas resgatou, trevista à revista masculina Playboy,
mas elevou à condição de política ful- afirmou que seria incapaz amar um
cral de seu governo, valendo-se dos filho homossexual, preferindo ter um
Aparelhos Ideológico e Repressivo de filho morto em acidente a um filho ho-
Estado, para impor a nova norma mo- mossexual, e que um casal homosse-
ral da Pátria Armada Brasil. É essa es- xual vizinho seu desvalorizaria o imóvel
trutura que movimenta toda a engre- onde habita. Mostrou-se misógino,
nagem da ‘ala ideológica’ do governo quando em 2014, fez apologia ao estu-
e seus gabinetes de ódio e lavagem pro, afirmando que a deputada fede-
cerebral, formulando e distribuindo ral Maria do Rosário não merecia ser

461
estuprada porque a considerava muito superioridade, como um grande filho
feia (o que lhe rendeu uma condena- da pauta do politicamente incorreto
ção no Superior Tribunal de Justiça que é, tratou de suprimir as conquis-
por dano moral e ofensa à dignidade). tas históricas do campo dos direitos,
Mostrou-se racista, quando em 2017, restabelecendo a cultura da barbá-
durante palestra em uma comunidade rie. De fato, o deputado federal sul-
hebraica, afirmou que quilombola não -mato-grossense Loester Trutis (PSL),
serve nem para procriar; insinuando defende a opinião que Bolsonaro é
ainda seu preconceito contra pessoas amado pelos seus seguidores e foi
obesas, tratando os quilombolas como eleito exatamente por falar verdades
animais, ao se referir à ‘arroba’ como politicamente incorretas em seus dis-
unidade de medida do gado, quando cursos. “Bolsonaro não foi eleito por
disse que ali o afrodescendente não se comportar como um lorde, ele foi
pesava menos que sete arrobas. Ain- eleito para meter o pé na porta mesmo
da nesta mesma ocasião, mostrou-se e acabar com essa bagunça”. Alguém
novamente misógino, afirmando que como Jair, que considera o Dia Inter-
tem cinco filhos, sendo quatro homens, nacional dos Direitos Humanos como o
porém na quinta, deu uma ‘fraque- Dia da Vagabundagem, porque os di-
jada’ e veio uma mulher. Mostrou-se reitos humanos só protegeriam bandi-
racista também contra os povos indí- dos, marginais, estupradores, seques-
genas, quando em 2018, antes de uma tradores e corruptos, só poderia vir
reunião com proprietários rurais em com a missão de recuperar das trevas
Mato Grosso, afirmou que se eleito, os tempos do politicamente incorreto.
não demarcaria nem um centímetro E assim principia a derrocada siste-
de terra a mais. Mostrou-se machista mática dos direitos humanos. No alto
tóxico, quando em 2019, durante uma da sua virilidade por exemplo, depois
escala no aeroporto de Manaus para de pegar uma ‘gripezinha’ curada
sua viagem aos EUA, ‘tirou um sarro’ misticamente por um remédio mila-
debochando do passageiro de origem groso; aquele que é ‘messias’ mas não
asiática “tudo pequenininho aí”, ridi- faz milagre, vetou integralmente o PL
cularizando o folclórico tamanho do 2508/2020. Era a garantia de priorida-
pênis do oriental. Mostrou-se precon- de às mulheres chefes de família para
ceituoso com relação ao nordestino, receber a cota dupla do auxílio emer-
quando em 2019, enquanto conversava gencial durante o estado de emergên-
com o ministro da Casa Civil Onyx Lo- cia sanitária com a pandemia do novo
renzoni aguardando o início de uma Coronavírus, quando o pai declarasse
coletiva de imprensa, sem saber que no cadastro, ser o responsável pela
estava sendo gravado, foi flagrado guarda dos dependentes. Era o antí-
ofendendo governadores do nordeste doto contra o artifício mal intenciona-
chamando-os agressiva e pejorativa- do do argumento conflitante, usado
mente de ‘paraíba’. como uma forma fraudulenta de se
Jair, eleito presidente pelos 30%, apropriar do benefício que pertenceria
com seu arrogante complexo de

462
à mãe. Uma decisão eminentemente todos os direitos até então assegura-
machista e patrimonial. dos no campo dos direitos: os direitos
Passamos também no campo re- trabalhistas, previdenciários, civis, so-
ligioso, para outras referências mo- ciais, ambientais...
rais: da Teologia da Libertação, que A eleição de Jair, enfim, significou a
se funda da busca por justiça a favor perda dos Direitos Humanos em fa-
dos oprimidos, passou-se à Teologia vor do mundo politicamente incorreto,
da Prosperidade, exatamente aquela esse latifúndio onde rumina o capita-
que substitui o combate à desigual- lismo selvagem, que como o touro de
dade social pelo conservadorismo Wall Street – animal símbolo do capi-
meritocrático e patriarcal. Com o lema tal especulativo da bolsa de valores,
teocrático “Deus acima de Todos” que precisa se sentir livre, leve e solto; sem
inspirou o bizarro plano de governo rédeas ou chicote para domesticá-
“Caminho da Prosperidade”, o campo -lo. Se o leão é o rei da selva, o rei do
moral abraça o falso moralismo da capitalismo selvagem só poderia ser
sagrada família tradicional, cheia de um quadrúpede truculento cagando
tabus e onde não existe espaço nem e andando por onde passa atrás do
tolerância para com ‘as minorias’ étni- prometido capim dourado; que encon-
cas ou ‘desviantes’ que ferem e detur- tra lá no canto da extrema-direita, o
pam o conceito tradicional de família. melhor tratador que poderia imaginar:
O politicamente correto representou aquele que deixa a porteira aberta, e
um insulto que escandalizou a conceito não é por descuido. É por um grotesco
de ‘família’ dentro do tradicionalismo projeto de apropriação, onde o rastro
cristão, que nunca aceitou a amplia- de sujeira representa o gesto mais pri-
ção do significado de família baseada mitivo e irracional de delimitação de
na união homoafetiva, por exemplo. uma propriedade particular, segundo o
Que combina com o Obscurantismo filósofo francês Michel Serres. As quei-
agora tão em voga com o escancara- madas na Amazônia não passam de
do discurso anticientífico que passou sinais de fumaça enviados aos ‘globa-
a predominar com a emergência da listas’, como um grito sufocado dizendo
Pós-Verdade neste mesmo tempo que a ‘Amazônia é nossa’. E convenha-
histórico. mos: isso está muito longe de ser cha-
O Caminho da Prosperidade do regi- mado de nacionalismo ou de amor à
me Bolsonaro indiscutivelmente passa pátria.
pelo território do medo, pela violência Enfim, acabar com o mi-mi-mi,
e pelo ressurgimento do mundo po- com o politicamente correto, e com
liticamente incorreto para a boiada a esquerda, foi a forma rudimentar e
poder passar livre da indústria das cifrada que Bolsonaro se expressou
multas. E isso combina com extrema- no seu discurso da posse que tomou
-direita, conservadorismo, Fake News, o Brasil de assalto, sobre o que o Mito
armas até os dentes, escravidão, fe- faria com os direitos humanos no seu
minicídio, genocídio, ecocídio... E junto governo.
a ele, o retrocesso e o desmonte de

463
‘Atirei o pau no gato’ é uma metáfo- do politicamente incorreto e a equi-
ra do folclore brasileiro politicamente valente regressão dos direitos, é a es-
incorreto, que transfere a representa- tratégia ideológica bolsonarista para
ção infantil da crueldade animal para manter a pressão da polaridade po-
a extrema violência do extrativismo lítica incessante, para excitar os 30%
de commodities e a derradeira supres- e convocar permanentemente seu fiel
são dos direitos a que povos indígenas exército a defender seu capitão nas
especialmente, estão radicalmente redes sociais digitais, imaginando-o
submetidos no novo regime político como um herói desafiado e em risco.
brasileiro. Direitos sistematicamente As polêmicas são o capim verdejan-
violados exatamente por aqueles que te que alimenta o bolsonarismo. E con-
perguntam se você sabe com quem ceitos como Democracia, Liberdade de
está falando; porque arrogantemente, Expressão, Direitos, Globalização, Es-
acham que detém o legítimo poder de querda, foram deturpados a ponto de
impor o seu ‘direito’ de oprimir e explo- fundarem uma nova realidade inter-
rar, direito esse que estaria assegurado pretativa que se imagina no discurso
pela condição de mover a economia bolsonarista. Se processou uma adul-
brasileira com seus tratores semean- teração conceitual de conceitos estru-
do grãos de soja sujos de sangue e de turais capazes de forjar valores e uma
agrotóxicos, mata adentro. visão de mundo suficientemente de-
Não é por acaso que o bolsonarismo turpada para se imaginar e viver numa
combate com tanta virulência e coti- realidade paralela, tão esquizofrênica
dianidade, o sorrateiro socialismo, a quanto a Terra possa ser plana. Se pro-
balbúrdia da universidade pública, o cessou uma campanha difamatória
‘energúmeno’ do Paulo Freire, o ‘falso tão intensa, que o círculo bolsonarista
herói comunista’ Chico Mendes, a ‘pir- afirma que o Brasil só poderá se de-
ralha’ da Greta, o presidente francês senvolver verdadeiramente quando se
Macron e sua ‘feia’ esposa, o perigoso libertar da ‘esquerdopatia’ enraizada
Partido Comunista Chinês com seu ‘co- há tanto tempo na escola, na univer-
munavírus’ e o ‘climatismo’. São todos sidade, no partido político, na mídia e
imaginários inimigos ameaçadores até nos órgãos ambientais federais.
que precisam ser demonizados e elimi- E deste modo, com realidades pa-
nados de seu radar. Aqui se vê inclusive ralelas segundo as ‘bolhas’ ideológi-
a ameaça aos direitos políticos, quan- cas que se vive, uma mesma notícia
do se tenta intimidar e criminalizar a publicada na mídia sobre algum fato
legítima oposição. Também não é por que envolva a política bolsonarista,
acaso que Jair foi denunciado no Tri- enquanto para os 70% ela representa
bunal Penal Internacional de Haia por uma repugnante afronta à civilidade;
genocídio e crime contra humanidade, já para os 30%, representa mais uma
por ter sido negligente com relação ao vitória conquistada a comemorar, nes-
controle da pandemia no Brasil. ta nova configuração terraplanista de
Esse contínuo estado beligerante ver o mundo.
que gira em torno do recrudescimento

464
Para uns, orgulho; para outros, ver- da economia brasileira, libertada do
gonha e perplexidade de ser brasileiro. protecionismo comercial não tarifário
É assim que percebemos, por exemplo, disfarçado de proteção ambiental.
a leitura do papel desempenhado pelo Para uns, a denúncia de Bolsona-
então ministro da educação Wein- ro no Tribunal Penal Internacional de
traub, condenado por danos morais Haia é a prova de que Jair violou ra-
por ofensa coletiva contra estudantes dicalmente os direitos humanos. Para
universitários: o que para uns repre- outros, ter seu presidente denunciado
sentou um ataque gravemente des- no Tribunal Penal Internacional é a evi-
qualificador da universidade pública; dência de que o Mito está sendo vio-
para outros, representou a vitória na lentamente atacado pelas forças co-
luta contra o ‘marxismo cultural’ en- munistas globalistas, e precisa contar
trincheirado nos corredores universi- com o apoio da militância bolsonarista
tários, libertando a direita estudantil para prosseguir comandando o país.
acuada pelos militantes ‘comunistas’. O assessor especial do Gabinete de
Importante frisar que na batalha Segurança Institucional da Presidên-
ideológica ora em curso, toda vez que cia, general Villas Boas afirmou, em
os 70% se manifestam contrariados entrevista em dezembro de 2016, que
com o abuso de poder do Estado em o pensamento politicamente correto
afrontar os direitos constitucionais; teria se ideologizado e hoje vivemos
para os 30%, essa atitude representa uma ‘ditadura’ do politicamente cor-
nada menos que a ‘prova’ material de reto, porque estamos impregnados
que os ‘esquerdopatas’ e toda a ‘co- por esse pensamento. Depois, em
munalha’ incessantemente atacam o agosto de 2017, no seu Twitter, repetiu
governo e conspiram para derrubar a mesma crítica, dizendo que o pen-
o Mito. Eis a justificativa que se cla- samento politicamente correto estaria
ma por uma intervenção militar com ‘entranhado’ na sociedade brasileira;
Bolsonaro no governo, para dar um afirmando erroneamente que se trata
basta a esta situação. A crítica política da supremacia do direito individual
é como um tiro que saiu pela culatra. sobre o coletivo, quando na verdade é
Não é nada mais do que a retroali- a expansão dos direitos humanos que
mentação na convicção do discurso se afirma. Para o general, o marxismo
de ódio combatendo o ‘marxismo cultural em geral e a defesa ambien-
cultural’. tal em particular, teriam se ‘infiltrado’
Para os 70%, em função da (des) no campo do politicamente correto. O
política ambiental com todo desmon- general é também adepto da impres-
te dos estatutos de defesa ambiental sionante neurose antiecologista, que
pública, o Brasil abandonou de forma propaga o terrorismo ideológico que
vexaminosa sua posição de liderança acusa o movimento ambiental de ser
global no campo da sustentabilidade, uma conspiração da esquerda glo-
e se tornou um pária internacional. bal contra o desenvolvimento do país,
Mas, para os 30%, o desmonte am- afrontando a soberania nacional, sem-
biental representou o destravamento pre associando a ideia da proteção da

465
Amazônia como uma forma de impedir avaliar o impacto do desmatamento
o florescimento do agronegócio e da em larga escala. Segundo, porque afi-
mineração, deixando o ‘tesouro’ ama- nal de contas, a floresta Amazônia, ao
zônico de 23 trilhões de dólares into- contrário das florestas temperadas
cado. Este é o pretexto da veemente e na Europa, presta um Serviço Ecossis-
recusa desta ‘ingerência’ estrangeira têmico global, de regulação climática
sobre a soberania brasileira, particu- planetária. É justo e legítimo o interes-
larmente sobre a economia brasileira, se da humanidade pelo preocupante
defendendo a mirabolante ideia que destino da floresta amazônica.
o país estaria sendo vítima de uma Mas ao fazer essa fala milimetrica-
barreira comercial não tarifária. Quan- mente alinhada com seu colega mili-
do é justamente o contrário o que se tar Villas Boas, o general Mourão está
processa: é o apagão da política am- também dialogando, implicitamente,
biental brasileira e a consequente in- com a teoria conspiratória que afirma
capacidade de proteger a qualidade que existem interesses geopolíticos
ambiental, que trava os acordos co- ocultos de países imperialistas ca-
merciais entre o Brasil e os países com- muflados pela ‘comunidade interna-
pradores de commodities nacionais. cional’, que visam anular a soberania
Quando o general Hamilton Mou- brasileira e sabotar o desenvolvimento
rão, presidente do militarizado Conse- econômico. Além do conspiracionismo
lho da Amazônia, vêm a público dizer, chinês e seu ‘climatismo’ que também
em agosto de 2020, que o Brasil sofre possuiria os mesmos propósitos, mas
pressão de países que não preserva- embalados pela ideologia comunista,
ram suas florestas no passado, sem são totalmente refratários à ideia do
dizer que está criticando os países globalismo, em favor do nacionalismo.
europeus, ele está difundindo nas en- Nesse sentido, quando Mourão vêm
trelinhas um discurso ideológico feito a público dizer que o Brasil sofre pres-
para enganar, na campanha militar de são de países que não preservaram
sistemática desinformação intencional, suas florestas no passado, os 30% fiéis
que objetiva confundir e desviar o foco do bolsonarismo veem que o Mito está
de atenção do necessário debate so- governando sim e mostrando resulta-
bre o (des)controle da devastação da dos concretos na resistência ao complô
floresta Amazônica. da sabotagem contra o Brasil. Jair está
Ora, simplesmente não interessa, defendendo o país do ataque à sua so-
não vem ao caso que os países euro- berania, impedindo que os interesses
peus tenham desmatado praticamen- globalistas sabotem a pátria armada
te todas as florestas em seus territó- Brasil. Já para os 70%, essa notícia é
rios, e por causa disso, não tenham interpretada como mais um terrível
legitimidade alguma para cobrar de golpe na reputação do país lá fora,
terceiros aquilo que eles não fizeram. cada vez mais um pária internacional,
Primeiro porque eram tempos onde isolado do mundo civilizado.
não havia conhecimentos científi-
cos ecológicos como hoje temos para

466
Mas tudo bem, o general é o boi de O imaginário colonizado é a dimen-
piranha sacrificado para deixar a boia- são mais profunda e sutil de todas as
da passar. possibilidades de se exercer o controle
Quanto mais os 70% criticam e re- social pautado por uma ordem socioe-
pudiam a política bolsonarista, mais o conômica injusta. Aqui, os mecanismos
bolsonarismo reage discursivamente, ideológicos de falseamento da reali-
levando nas entrelinhas, a mensagem dade foram incrivelmente refinados,
de ouro que soa como música para colocados em outro patamar de influ-
a claque bolsonarista: o discurso im- ência desta propaganda ideológica
plícito quer dizer que ‘estamos sendo na estruturação da visão de mundo no
constantemente atacados pelos comu- senso comum.
nistas, mas vejam, estamos reagindo Pois é neste turbulento e desconcer-
e ganhando a batalha nacionalista tante cenário que Imaginamundos foi
contra os interesses imperialistas co- concebido; é neste ‘novo normal’ de-
munistas com a ideologia globalista’. safiador que esta obra foi concebida.
Como se o mundo hoje não estivesse Consciente da conformação ideológi-
visceralmente globalizado. ca do imaginário coletivo representar
E assim nos encontramos, com o um campo de disputa por hegemonia.
ressurgimento do imaginário do poli- Consciente da importância do ato de
ticamente incorreto, mas repaginado, imaginar, se constituir como apropria-
portando agora a atmosfera do cons- ção e ressignificação freireana de si e
piracionismo, acrescido aos propósitos do mundo, recuperando a capacida-
de regressão dos direitos. Nos depa- de de escutar a realidade e escrever o
ramos com o regime Bolsonaro aden- mundo. Disputar os imaginários é par-
trando o século XXI com a imaginário te da nossa tarefa, enquanto sujeitos
dos anos 60 do século passado; revi- históricos oprimidos no caminho da
vendo os tempos do slogan ‘integrar libertação, atestam os organizadores
para não entregar’, quando se rasgou de Imaginamundos.
a maior floresta tropical do planeta
por uma rodovia, a Transamazônica,
que foi inaugurada ao velho estilo poli-
ticamente incorreto, com a derrubada
de uma castanheira como símbolo do
triunfo humano sobre a ‘selva’. Como
num roteiro de um filme distópico de
ficção científica, zumbis atordoados
pelo sono dos mortos-vivos ressusci-
tados, apressam-se agora em limpar
a rodovia, para a boiada do patrão
poder passar. O que talvez distinga o
passado do presente, seja o fato que
antes, ecologia era coisa de ‘viadinho’.
Agora, ecologia é coisa de ‘comunista’.

467
NOTAS

Posfácio

148 Ler o Capítulo 16, com destaque para a análise do filme “O Amigo do
rei”, de André D’Elia (2019).

468
c ré d i t o s
fi n a i s
s o b re
os
a u t o re s
Américo de Araujo Pastor Junior

Professor Adjunto do Instituto de Biodiversidade e Sustentabi-


lidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui
doutorado e mestrado em Educação em Ciências e Saúde pelo
Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES-UFRJ),
bacharelado em Psicologia pela Universidade Católica de Pe-
trópolis e bacharelado em Desenho Industrial (Design - Progra-
mação Visual) pela UFRJ. Desenvolve pesquisas sobre aprendi-
zagens mediadas por tecnologias, linguagens e audiovisuais nos
espaços formais e não formais de educação em ciências e saúde.
Contato: americoapj@gmail.com
americopastor@nupem.ufrj.br

Antenor Rita Gomes

Possui Graduação em Letras Vernáculas pela Universidade


do Estado da Bahia (1996), Especilalização em Leitura e Pro-
dução Textual pela Universidade Estadual de Santa Cruz (1998)
Mestrado de Educação e Pesquisa pela Université du Quebec a
Chicoutimi (2002), Doutorado em Educação pela Universidade
Federal da Bahia (2004) e Pós-Doutorado em Educação pela
Universidade de Cádiz - Espanha (2014). Atualmente é membro
do Conselho Editorial da Revista científica de Educação e Cmu-
nicação Hachetetepe (UCA- Cádiz, Espanha) e da revista temas
em educação da UFPB;e Professor Titular da Universidade do
Estado da Bahia. Tem experiência na área de Educação no en-
sino superior de graduação e pós-graduação além de cursos de
atualização docente para professores em serviço. Atua principal-
mente nos seguintes temas: Cultura Visual, Leitura, Pesquisa em
educação e formação de professores; Integra o quadro docente
do do Mestrado Profissional em Educação e Diversidade - MPED
- UNEB Jacobina desde 2014.
Contato: antenorritagomes@gmail.com

Beatriz Rodrigues
Artista visual, docente de fotografia e produtora cultural, atu-
ando atualmente no Projeto Inventário - Procultura Rio Grande.
Especialista em Fotografia, práxis e discurso (UEL/PR), Bacha-
rel em História (FURG/RS) e Licenciada em Filosofia (UFPEL/
RS). Desenvolve pesquisas em poéticas visuais, cartografando
ruínas através da fotografia - em suas diversas possibilidades
técnicas como meio de expressão. Sua pesquisa também se dá
nas interfaces com outras linguagens, como a pintura, através
de colorizações manuais, e nas relações entre imagem e pala-
vra, em obras-instalações e na criação do livro-obra "Modos de
habitar - diário de percurso" (Editora Caseira, 2019). Em paralelo
ao projeto de cartografar ruínas, desde 2010 dedica-se também
a fotografar as festividades de Iemanjá na Praia do Cassino, em
um work in progress que ao longo dos anos veio à público de di-
versas maneiras: como exposição individual, em exposições cole-
tivas e publicações de arte e cultura.
Contato: bigatrice@gmail.com

Beatriz Truffi Alves


Educomunicadora, licenciada em Educomunicação pela Esco-
la de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com
mestrado em Educação na linha temática de Educação Ambien-
tal pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho - Campus
Rio Claro, especialização em Educação Ambiental pelo SENAC
e graduada como Bacharel em Imagem e Som pela Universida-
de Federal de São Carlos. Atua como Especialista Ambiental na
Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, órgão do Governo
do Estado de São Paulo.
Contato: bellatrix.alves@gmail.com

Celso Sánchez
Biólogo, licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1995), mestrado em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social, Cátedra UNESCO de Desen-
volvimento Durável pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2001) e doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (2008). É professor da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro(UNIRIO), atuando na Gra-
duação e no Programa de Pós-Graduação em Educação. Coor-
dena o Grupo de Estudos em Educação Ambiental desde el Sur,
GEASur/UNIRIO. Conselheiro do Conselho Estadual de Educação
Escolar Indígena do Estado do Rio de Janeiro, diretor da ADUNI-
RIO, seção sindical Andes.
Contato: celso.sanchez@hotmail.com

Claudemir Edson Viana


Sou coordenador e professor doutor da Licenciatura em Edu-
comunicação na Escola de Comunicações e Artes, da Universi-
dade de São Paulo. Graduação em História pela Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (1991), mestrado em Ciências da Comunicação (2000) e
doutorado em Ciências da Comunicação (2005) pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Atua como
pesquisador da Universidade de São Paulo no LAPIC (Labora-
tório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação)
de 1996 a 2010, e desde 2001 sou pesquisador colaborador do
Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP. Fui Diretor
Acadêmico da Faculdade de Educação e Cultura Montessori (FA-
MEC) de 12/1997 a 111/ 2008, e presidente do Conselho Editorial
da Revista Científica da FAMEC de 2002 a 2008. Tenho experi-
ência em docência na área de História, com ênfase em História
Moderna e Contemporânea (Ensino Básico e Superior); em Teoria
da Comunicação e em Educomunicação no Ensino Superior, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: aprendizagem, comu-
nicação e educação, infância, comunicação social e cibercultura.
Sou avaliador do INEP/MEC para Reconhecimento de Cursos de
graduação em Comunicação Social a partir de 2007. Integro o
Comitê Científico da Track Game & Culture (SBGames - Socieda-
de Brasileira de Games), na área de Games e Educação, desde
08/2009. Fui o criador e coordenador da Rede Social Educativa
Minha Terra, projeto do Portal Educarede, de 2007 a 2011. Atuei
por 7 anos como líder de projetos educativos na Internet e for-
mador de educadores pelo CENPEC - Centro de Estudos e Pes-
quisas em Educação. Fui orientador de monografias no curso de
Especialização do Proinfo-MEC/ECA-USP "Mídias na Educação"
(2011-2013). Sou Secretario Executivo da Associação Brasileira de
Pesquisadores e Profissionais da Educomunicação (ABPEducom)
e integrante do grupo de especialistas em Internet & crianças/
adolescentes do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Atual coor-
denador do NCE-USP - Núcleo de Comunicação e Educação da
USP.
Contato: profclaudemirviana@usp.br

Daniel Renaud Camargo


Doutorando do programa de pós-graduação em Psicosso-
ciologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bacharel em Ciências
Ambientais e Mestre em Educação pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atua com Audiovisual,
Cultura Popular, Educação Ambiental e Educação Popular junto
a comunidades do Vale do Jequitinhonha; coordena o projeto
“Lendas, Rezas e Garrafadas”; membro do Grupo de Estudos em
Educação Ambiental Desde El Sur (GEASUR-UNIRIO) e do Labo-
ratório de Memórias, Territórios e Ocupações: Rastros Sensíveis
(LABMEMS-UFRJ); além de desenvolver trabalhos como artista
plástico.
Contato: danielrenaud_22@hotmail.com

Danilo Pereira da Rocha


Professor da Educação Básica no interior Bahia, é licenciado
em Pedagogia (UNEB), pós graduado em Alfabetização e Le-
tramentro, e mestre em Educação pela Universidade Federal
da Bahia. Possui trabalhos e pesquisas na Educação Básica,
mas especificamente no Ensino Fundamental, com Educação
Ambiental.
Contato: dannrocha@yahoo.com.br

Eduardo Silva de Freitas


Doutorando em Educação em Ciências e Saúde (NUTES/
UFRJ). Professor da Educação Básica no Município de Duque de
Caxias/RJ. Desenvolve pesquisas relacionadas a contextos de
educação e vulnerabilidades socioambientais.
Contato: efreitasbio@gmail.com
Eliane Renata Steuck
Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Educação
Ambiental - PPGEA na FURG/RS e participa do Grupo de Estu-
dos em "Fundamentos e Educação Ambiental Popular" - GEFE-
AP. Mestra em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí -
Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE - Itajaí - SC,
Grupo de Pesquisa "Educação, Estudos Ambientais e Sociedade"
- GEEAS. Possui graduação em Ciências Biológicas - Licenciatu-
ra - pela Instituição UNIASSELVI - Indaial (2007) e especialização
em Gestão e Educação Ambiental pela Associação Catarinense
de Ensino Faculdade Guilherme Guimbala (2008) e em Ensino de
Ciências pelo Instituto Federal de Santa Catarina/Universidade
Aberta do Brasil. Atualmente é Professora de Ciências da Secre-
taria Municipal de Educação de Itajaí e Balneário Camboriú (SC).
Tem experiência em EJA e em ensino de Ciências e na área de
Educação Ambiental, com ênfase em processos e diagnósticos
participativos, formação de coletivos e elaboração de projetos.
Trabalha com formação de Professores nas áreas de Currículo e
Estratégias de Ensino - Planejamento e Avaliação
Contato: liasteuck@gmail.com

Emanuela Oliveira Carvalho Dourado


É doutora e mestra em Educação pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA); licenciada em Pedagogia pela Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), da qual é Professora Adjunta. Tem
experiência com docência, gestão administrativo-pedagógica,
coordenação, supervisão, assessoria e consultoria da educa-
ção básica e universitária. Atuando em programas e projetos
da educação escolar e não escolar, com educação e linguagens,
educação e diversidade, pesquisa e prática pedagógica, políti-
cas públicas e planejamento educacional, com ênfase em cur-
rículo escolar e formação de professores, áreas nas quais tem
desenvolvido pesquisas.
Contato: emanueladourado2003@yahoo.com.br

Emerson Campos Gonçalves


Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (PUC Minas) e
licenciado em Letras/Português (Ifes/UAB), com mestrado em
Estudos de Linguagens (Posling/Cefet-MG) e doutorado em
Educação (PPGE/Ufes). Atua como pesquisador no Núcleo de
Estudos e Pesquisa em Educação, Filosofia e Linguagens (Ne-
pefil) e professor substituto no Departamento de Linguagens,
Cultura e Educação (DLCE) da Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes).
Contato: professoremersoncampos@gmail.com

Evandro Medeiros
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC) e graduado em Pedagogia pela Universidade Fe-
deral do Pará (UFPA). Professor adjunto da Faculdade de Educa-
ção do Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(UNIFESSPA). Realizador de vídeo documentários e organizador
do Festival Internacional Amazônida de Cinema de Fronteiras
- FIA CINEFRONT. Membro do Grupo de Pesquisa Educação Po-
pular e Movimentos Sociais do Campo – GPEPMS (PPGE/UFPB).
Desenvolve pesquisas sobre Educação do Campo e Movimentos
Sociais.
Contato: evandrom@unifesspa.edu.br

Fabio Rubio Scarano


Graduado em Engenharia Florestal pela Universidade de
Brasília (1986) e Ph.D. em Ecologia pela Universidade de St. An-
drews, Escócia (1992). Realizou estágio pós-doutoral no Jardim
Botânico do Rio de Janeiro (1992) É Professor Associado da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (desde 1993) e membro da
Linnean Society of London (desde 1995). Foi Professor Visitante
na Universidade Tecnológica de Darmstadt, Alemanha (2002) e
na Universidade de Minnesota, EUA (2003).Foi Coordenador da
Área de Ecologia e Meio Ambiente na CAPES/MEC (2005-2011)
e Diretor de Pesquisas Científicas do Jardim Botânico do Rio de
Janeiro (2007-2009). Foi autor principal para o primeiro relatório
do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC; 2011-2014),
para o quinto relatório de avaliação do Painel Intergovernamen-
tal de Mudanças Climáticas (IPCC; 2011-2014) e autor principal
coordenador para o Painel Intergovernamental de Biodiver-
sidade e Serviços Ambientais (IPBES; 2015-2018). Foi também
coordenador geral da Plataforma Brasileira de Biodiversidade
e Serviços Ecossistêmicos (BPBES; 2015-2019). Pertenceu ao qua-
dro de líderes da ONG Conservation International, onde foi Dire-
tor Executivo para o Brasil (2009-2011) e Vice-Presidente Senior
para as Américas (2011-2015). De maio de 2015 a setembro de
2018 foi Diretor Executivo da Fundação Brasileira para o Desen-
volvimento Sustentável.
Contato: fscarano@gmail.com
Fátima Branquinho
Licenciada em Biologia pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, tem mestrado em Educação pela Fundação Getúlio Var-
gas, doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
de Campinas, pós-doutorado no Centre de Sociologie de l'Inno-
vation/École Nationale Supérieur des Mines de Paris e no Núcleo
Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário/CFICH/UFPE.
Professora do Departamento de Ciências Sociais e Educação da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e credenciada no Programa de Pós-graduação em Meio
Ambiente – PPGMA/Uerj. Coordena o Grupo de Pesquisa Contri-
buição da Antropologia das Ciências e das Técnicas para a Edu-
cação na linha de pesquisa Construção Social do Meio Ambiente
do PPGMA.
Contato: fatima.branquinho@uol.com.br

Francisco Romão Ferreira


Sociólogo, com mestrado em Artes Visuais pela Escola de Be-
las Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorado
em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública. Na Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro é Professor Adjunto do Insti-
tuto de Nutrição e professor do quadro permanente dos Progra-
mas de Pós Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde e Pós
Graduação em Comunicação.
Contato: chico.romao@yahoo.com.br

Francisco Sempere Ruiz


Universidad de Granada. Dr. en Sociología, Licenciado en
Ciencias Políticas y Máster en Cooperación al desarrollo. He de-
sarrollado gran parte de mi carrera profesional y académica en
América Latina.
Contato: tusitalapaco@hotmail.com

Gustavo Arantes Camargo


Graduado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio de Janeiro em 2001. Mestre em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004) e
doutor em Filosofia pela mesma universidade (2008). Professor
e pesquisador em Filosofia, com ênfase em Ética, Filosofia polí-
tica e Filosofia da Educação. Atuou como professor substituto na
UERJ, nos núcleos FFP e FEBF. Atualmente é Professor Adjunto
IV em regime de dedicação exclusiva da Universidade Federal do
Rio de Janeiro em Macaé.
Contato: gustavonhani@gmail.com
Helena de Godoy Bergallo
Doutora e Mestre em Ecologia pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP) na área de Ecologia de Mamíferos,
Bacharel e Licenciada pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Professora Associada do Instituto de Biologia
da UERJ e credenciada nos Programas de Pós-Graduação em
Ecologia e Evolução na UERJ (PPGEE/UERJ) e Pós-Graduação
em Meio Ambiente (PGMA/UERJ). Coordena o Laboratório de
Ecologia de Mamíferos (LEMA), é a atual coordenadora da Rede
de Pesquisa em Biodiversidade da Mata Atlântica (PPBio MA) e
Coordenadora Científica do Centro de Estudos Ambientais e De-
senvolvimento Sustentável (CEADS/UERJ).
Contato: nena.bergallo@gmail.com

Joana Macedo
Bióloga e mestre em Ecologia pela UFRJ e doutora em Meio
Ambiente pela UERJ. Atuou como pesquisadora no Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Atualmente é pós-dou-
toranda da CAPES vinculada ao Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Ciências, Ambiente e Sociedade da UERJ, pesqui-
sadora do REFAUNA e desenvolve pesquisa sobre os conflitos
entre populações humanas e a fauna silvestre.
Contato: joanasm@terra.com.br

José Vicente de Freitas


Doutor em História e Sociedade pela UNESP, Faculdade de Ci-
ências e Letras de Assis/SP. Durante a realização do doutorado,
desenvolveu estudos especializados na Universidade Nova de
Lisboa (1994) e na Katholieke Universiteit Leuven (1994). Profes-
sor Associado IV na Universidade Federal de Rio Grande (FURG),
vinculado ao Instituto de Ciências Humanas e Informação (ICHI).
Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambien-
tal (PPGEA) desta universidade desde 1998, vinculado a Linha
de Pesquisa Fundamentos da Educação Ambiental. Desenvolve
pesquisa e orienta no Mestrado e Doutorado sobre os seguintes
temas: - ecotopias, sustentabilidade e governança socioam-
biental na América Latina; - políticas públicas em Meio Ambien-
te e Educação Ambiental; - experiências não governamentais
em Educação Ambiental; - fundamentos teórico-conceituais
da Educação Ambiental; espaços educadores sustentáveis no
âmbito do ensino formal. Coordenador do Programa de Pós-
-Graduação em Educação Ambiental (2001-2004). Coordenador
do Programa de Educação Ambiental do Porto de Rio Grande
(2005-2018). Integra o Conselho Consultivo da Revista Ambiente
e Educação (PPGEA/FURG) e da Revista Eletrônica do Mestrado
em Educação Ambiental (PPGEA/FURG).
Contato: jvfreitas45@gmail.com

Julia Horta Nasser


Psicóloga, com Especialização em Neuropsicoterapia Afetivo-
-Relacional pela Santa Casa de Misericórdia (2009). Mestre em
Alimentação, Nutrição e Saúde pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (2018). Doutoranda do Programa de Pós-Gradu-
ação em Alimentação, Nutrição e Saúde do Instituto de Nutrição
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Contato: juliahortanasser@gmail.com

Juliana Barbosa Coitinho


Bacharel em Bioquímica (UFV) e licenciada em Ciência Bio-
lógicas (Ifes/UAB), com mestrado e doutorado em Bioquímica
pelo Programa de Pós-Graduação em Bioquímica e Imunologia
da Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta no
Departamento de Ciências Fisiológicas e Professora Permanente
do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica e Farmacologia
(PPGBF) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Contato: juliana.b.goncalves@ufes.br

Larissa Escarce Bento Wollz


Psicóloga, mestre em Psicanálise e Doutora em Ciências da
Saúde. Professora Adjunta dos cursos de Nutrição e Enferma-
gem da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ - Campus
Macaé, Professora Colaboradora do Programa de Pós-Gradu-
ação em Ciência, Arte e Cultura na Saúde do Instituto Oswaldo
Cruz - FIOCRUZ, Psicanalista e Membro Associado da Escola de
Psicanálise Corpo Freudiano.
Contato: lwollz@yahoo.com.br

Marco Antônio Gonçalves


Professor Titular de Antropologia do Departamento de Antro-
pologia Cultural do IFCS-UFRJ e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Sociologia e Antropologia da UFRJ (1984 até o presente).
Pesquisador do CNPq, Produtividade em Pesquisa desde 1998.
Mestre e Doutor em Antropologia Social pelo Programa Pós-
-Gradução de Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ,
orientado por Eduardo Viveiros de Castro (1984-1995). Atua nas
áreas de pesquisa sobre Antropologia Visual, Antropologia e
Cinema, Cosmologia, Criação de Mundos Culturais, Etnologia
Indígena, Narrativas e Subjetividades. Realizou Pós-Doutorado
na Universidade de St Andrews (Escócia) (1996-1997), com super-
visão de Joanna Overing. Foi Visiting Scholar Senior, Bolsa Ca-
pes, na New York University (2015-2016), com supervisão de Faye
Ginsburg. Fez Estágio Senior - Bolsa CNPq, New York University
(2018-2019), com supervisão de Faye Ginsburg. Foi professor vi-
sitante: Katholieke Universiteit Leuven (Belgica) (1998, 2005),
Universidade Complutense de Madrid (2000), Pesquisador Con-
vidado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris
(2006, 2010,2011) colaborando com Carlo Severi, Phillipe Descola
e Anne-Christine Taylor. Fez parte do GT de imagem da Associa-
ção Brasileira de Antropologia 2006-2008, 2008-2010. Integrou
a Comissão de Imagem da da ANPOCS, 2006-2008; 2010-2012.
Foi Editor da Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS
2012-2014. Atualmente é Editor da Revista Sociologia & Antropo-
logia, PPGSA-UFRJ.
Contato: marcoatg1960@gmail.com

Maria Inês Paes Ferreira


Possui graduação em Engenharia Química pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (1985), doutorado em Ciência e Tecno-
logia de Polímeros pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1994) e Pós-doutorado em Gestão Integrada dos Recursos Na-
turais pelo Instituto de Pesquisa da Reserva da Biosfera Mount
Arrowsmith da Vancouver Island University (como bolsista da
CAPES). É professora titular do IF Fluminense e foi Diretora de
Inovação, Pesquisa e Extensão do Campus Macaé do IF Flu-
minense, atuando atualmente como docente do Programa de
Pós-Graduação em Engenharia Ambiental, como Coordenadora
do Programa de Pós-graduação em Engenharia Ambiental do
IFFluminense, aonde também atuou como professora dos cursos
de Tecnologia na área de Petróleo e de Engenharia de Controle
e Automação, exercendo também a função de coordenação do
Núcleo de Pesquisa em Petróleo, Energia e Recursos Naturais.
Coordenou o Programa de Pós-graduação em Engenharia Am-
biental do IFFluminense. Tem experiência na área de Engenharia
Química, com ênfase em Polímeros, e foco nos seguintes temas:
impactos ambientais da produção de petróleo, gestão ambien-
tal e de recursos hídricos, educação ambiental, licenciamento
ambiental e impactos ambientais associados, sendo também
voluntária da Associação dos Amigos do PARNA Jurubatiba,
ex-Presidente da Mesa Diretora da Plenária de Entidades da
Macrorregião Ambiental 5 do Estado do Rio de Janeiro e ex-
-Subsecretária de Ambiente do Município de Macaé. É represen-
tante titular do IFFluminense na Plenária do Comitê de Bacia
dos Rios Macaé e das Ostras, ocupando atualmente a função
de vice-presidente do supracitado Comitê. Foi representante do
IFFluminense no Conselho Consultivo do PARNA Jurubatiba e na
Agenda 21 de Macaé.
Contato: ines_paes@yahoo.com.br

Michèle Sato
Professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e
coordenadora do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental,
Comunicação e Arte (GPEA). Tem vivenciado vários contextos
relacionados à emergência climática e os grupos sociais em situ-
ação de vulnerabilidade. Pessoalmente, desenvolve pesquisa em
arte-educação-ambiental.
michelesato@gmail.com

Paulo Maia
Pesquisador Pós-doutorando do Dpto. de Ciência da Literatu-
ra da UFRJ com pesquisa sobre o realismo na representação dos
pobres no cinema urbano brasileiro hoje. Doutor em Literatura
Comparada (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2011), com a tese: "Sentimento de Travessia: Me-
mória, Monumento e Ruína na Fotografia de Sebastião Salgado".
Mestre em Estudos Literários, com a dissertação: "Castelos de
Vento: Miragens Literárias em Dario Vellozo e Emiliano Perneta".
Atua, desde 2006, como professor, pesquisador e orientador no
programa de pós-graduação UFRJ-Mar do Núcleo Interdisci-
plinar para o Desenvolvimento Social (NIDES/UFRJ), na linha
Politecnia em Educação e Trabalho. Coordenou, de 2013 a 2016,
o Curso de Formação Técnica em Áudio e Vídeo do Instituto
Politécnico da UFRJ em Cabo Frio-RJ, do qual foi professor no
período 2010-2016. Desde 2009, também é pesquisador e pro-
fessor no Grupo de Educação Multimídia (GEM/Letras/UFRJ),
de cuja coordenação passou a fazer parte em 2016. Lecionou
Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Letras
da UFRJ de 2016 a 2018. É professor colaborador do Mestrado
Interdisciplinar Profissional do NIDES/UFRJ desde 2016. Atual-
mente, também participa do Projeto de "Elaboração do Curso
Introductory Portuguese Language I" em parceria com a Massey
University, que tem por objetivo prestar consultoria Pedagógi-
ca nas áreas de Linguística e Literatura do Português do Brasil
para o desenvolvimento do Programa de Português na Massey
University.
Contato: paulomacae@gmail.com

Philippe Pomier Layrargues


Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade
Santa Úrsula (1989), especialização em Planejamento e Edu-
cação Ambiental pela Universidade Federal Fluminense (1990),
mestrado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia So-
cial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996) e douto-
rado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Cam-
pinas (2003). Trabalhou de agosto de 2003 a julho de 2008 no
Departamento de Educação Ambiental do Ministério do Meio
Ambiente. É Professor Adjunto do curso de Gestão Ambiental da
Universidade de Brasília e pesquisador do Laboratório de Inves-
tigações em Educação, Ambiente e Sociedade da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Educação
Ambiental, Ecologia Política e Filosofia da Natureza.
Contato: philippe.layrargues@gmail.com

Rachel Hidalgo
Tem graduação em Comunicação Social - Jornalismo, pela
Universidade Católica de Santos (2010), segunda graduação, em
andamento, de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade
Paulista (2021), mestrado em Educação Ambiental pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande - FURG (2019) e, atualmente, é
doutoranda por meio de bolsa CNPq no mesmo programa, com
pesquisa direcionada para Educomunicação Socioambiental
(2022). Colabora como produtora audiovisual no Laboratório
MARéSS: Mapeamento em Ambientes, Resistencia, Sociedade e
Solidariedade e integra o Ribombo - Grupo de Pesquisa e Estu-
dos em Educação e Gestão Ambiental, Mudanças Climáticas e
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável em áreas litorâneas,
desenvolvendo pesquisa sobre zona costeira por meio do supor-
te audiovisual e fotográfico.
Contato: rachelhidalgomz@gmail.com

Rafael Nogueira Costa


Possui Graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005), Mestrado
em Engenharia Ambiental pelo Instituto Federal Fluminense
(2010) e Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação Multi-
disciplinar em Meio Ambiente pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (2016). Professor Adjunto na Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro, vinculado ao Instituto de Biodiversidade
e Sustentabilidade (NUPEM). Orienta pesquisas nos seguintes
programas: Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambien-
tais e Conservação (PPGCiAC) e Programa de Pós-Graduação
Profissional em Ambiente, Sociedade e Desenvolvimento (PP-
G-ProASD), ambos na Universidade Federal do Rio de Janeiro
em Macaé (RJ). Pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos em
Educação Ambiental Desde el Sur (GEASur/UNIRIO). Tem expe-
riência na área de Educação e Cinema, atuando principalmente
nos seguintes temas: educação ambiental, processos dialógicos
de ensino, formação de professores, Educomunicação e divulga-
ção científica.
Contato: rafaelnogueiracosta@gmail.com

Reinaldo Luiz Bozelli


Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal de São Carlos, mestrado em Ecologia e Recursos Natu-
rais também pela Universidade Federal de São Carlos e douto-
rado em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal
de São Carlos e Instituto Max-Planck de Limnologia, em Ploen,
Alemanha. Realizou estágio Pós-Doutoral no Instituto de Estudo
dos Ecossistemas, em Pallanza, Itália. Foi secretário da Asso-
ciação Brasileira de Limnologia e coordenador do Programa de
Pós-Graduação em Ecologia da UFRJ. Professor Titular do De-
partamento de Ecologia da UFRJ desde 2012, do qual foi chefe
no período de 2014-15. Membro do CA Ecologia-Limnologia do
CNPq no período 2015-2019 e coordenador no período 2017-2018.
Tem experiência na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia
de Ecossistemas, atuando principalmente nos seguintes temas:
limnologia geral, plâncton, áreas úmidas e recuperação de am-
bientes aquáticos. Coordena projetos de pesquisa, monitora-
mento e recuperação de ambientes aquáticos na Amazônia.
Também atua junto ao NUPEM/UFRJ em Macaé desenvolvendo
pesquisas em ambientes aquáticos da restinga do Norte-Flumi-
nense e projetos de extensão junto a várias escolas da cidade do
Rio de Janeiro, estabelecendo efetiva comunicação destas com
a universidade através do tema água.
Contato: rbozelli@gmail.com

Robson Loureiro
Professor Associado da Universidade Federal do Espírito
Santo. Pós-doutorado em Filosofia - School of Philosophy da
University College Dublin (Irlanda), sob a supervisão do profes-
sor Brian OConnor (2013-2014) - bolsa Capes. Pós-doutorado
em Filosofia, sob supervisão do professor Dr. Christoph Türcke
(HGB, Leipzig, Alemanha - 2018). Doutor em Educação (História
e Política) pelo PPGE / UFSC - Brasil (Bolsa Capes). Doutorado
Sandwiche (2003-2004) na School of Education e do Depart-
ment of German da University of Nottingham (Inglaterra, Reino
Unido - Bolsa Capes). Mestre em Filosofia da Educação (PPGE
/ Unimep / SP - Bolsa Capes); Graduado em Filosofia (CCHN /
Ufes). Professor em tempo integral (DE) no Centro de Educação
(Departamento de Educação, Política e Sociedade - Deos/ Ufes).
Integra o corpo docente da Linha de Pesquisa Educação e Lin-
guagens do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE /
CE / Ufes) e da Linha de Pesquisa Literatura: Alteridade e Socie-
dade, do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL/Ufes).
Áreas de interesse: Humanidades - literatura, cinema, música,
teatro, artes plásticas articuladas à Filosofia (ética, estética, filo-
sofia da ciência), Tecnologia, Psicanálise e Educação em diálogo
com a Teoria Crítica da Sociedade. Livros organizados: "A Teoria
Crítica volta ao cinema" (Edufes, 2018), "A teoria crítica vai ao ci-
nema" (Edufes, 2010). Co-autor de: "Indústria cultural e educação
nos tempos pós-modernos (Papirus, 2003)". Coordena o Núcleo
de Estudos e Pesquisa em Educação, Filosofia e Linguagens do
Centro de Educação da Ufes (Nepefil / CE / Ufes).
Contato: robbsonn@uol.com.br

Rosiléia Oliveira de Almeida


Possui Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora - UFJF (1988), mestrado em
Educação pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
(1998) e doutorado em Educação pela Universidade Estadu-
al de Campinas - UNICAMP (2008). É professora associada do
Departamento de Educação II da Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde atua no Curso de
Licenciatura em Ciências Naturais e nos cursos de Pós-Gradua-
ção em Educação (FACED-UFBA) em Ensino, Filosofia e História
das Ciências (UFBA-UEFS) e no Mestrado Profissional em Edu-
cação (FACED-UFBA. É membro dos grupos de pesquisa Ensino
de Ciências e Matemática (EnCiMa-UFBA) e Ensino, História e
Filosofia das Ciências Biológicas (LEFHBio-UFBA). Exerceu o
cargo de coordenadora do Curso de Licenciatura em Ciências
Naturais da Faculdade de Educação da UFBA entre 2013 e 2016.
Atuou entre 2014-2018 como vice-coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências
(UFBA/UEFS). Foi membro da Câmara Técnica de Ciências Hu-
manas e Educação da FAPESB (Biênio 2015-2018). Coordenadora
da linha Currículo e (In)Formação do Programa de Pós-Gradu-
ação em Educação FACED-UFBA desde julho de 2018. Membro
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Inter-
disciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (INCT
IN-TREE). Atua nas áreas de Educação em Ciência e Ensino
de Biologia, sendo seus principais temas de interesse: apren-
dizagem escolar, educação intercultural, educação ambiental,
formação de professores e pesquisa colaborativa de inovações
educacionais
Contato: roalmeida@ufba.br

Samira Lima da Costa


Foi Professora na Universidade Federal de São Paulo entre
2008 e 2014. Desde 2014 é professora da UFRJ do Departamen-
to de Terapia Ocupacional (FM/CCS) e do Programa de Pós-Gra-
duação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social
(IP). Atualmente é Docente Associada II. É também professora
colaboradora do Programa de Pós Graduação em Educação em
Saúde da UNIFESP-BS e do Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social da UnB. Tem atuado, lecionado, orientado e
pesquisado sobre as relações entre memória, território, cultura,
comunidades e ocupação, com foco nas áreas: Psicossociologia;
Ocupações Tradicionais; comunidades em vulnerabilidade so-
cial; Terapia Ocupacional Social; Políticas Públicas Sociais; papel
social da universidade; Universidade Pluriepistêmica. É autora
do livro “Redes Sociais Territoriais”, junto com Rosilda Mendes
(UNIFESP), pela FAP-Unifesp (2014). É Terapeuta Ocupacional
(G); Sanitarista especialista em Saúde Pública (Esp); Mestre em
Metodologia de Ensino; Doutora em Psicossociologia de Comu-
nidades e Ecologia Social e Pós Doutora em Antropologia. É líder
do Grupo de Pesquisa Laboratório de Memórias, Territórios e
Ocupações: Rastros Sensíveis, DGP/CNPq/UFRJ.
Contato: biasam2000@gmail.com

Sergio Luiz Pereira da Silva


Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC. Mestre e bacharel em Sociologia pela
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Sociólogo e Fo-
tógrafo, atualmente é professor Associado III da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro - UNIRIO e do Programa de Pós-graduação em Me-
mória Social - PPGMS/UNIRIO. Tem experiência de pesquisa nas
áreas: Teoria Sociológica, Memória Social, Cultura Visual e Foto-
grafia Documental. É autor dos livros: Sociedade da Diferença:
formações identitárias e esfera pública na sociedade global,
publicado pela Editora Mauad; Impressões Sociológicas Inter-
disciplinares: saberes partilhados e fronteiras do conhecimen-
to, publicado pela Editorial Acadêmica Espanhola; O Lugar do
Outro: ação comunicativa, representações sociais e identidade,
publicado pela Editora NUPEN/UFRJ e; Gozo Estético na Cultu-
ra Visual: fotografia, memória e alienação social, publicado pela
Editora APPRIS.
Contato: slps2@uol.com.br

Shirley Donizete Prado


Nutricionista, com mestrado em Saúde Pública pela Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, Dou-
torado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pós-Doutorado em
Ciências Humanas na Universidade Federal do Ceará. Ocupa o
cargo de Professor Titular no Departamento de Nutrição Social
do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Contato: shirley.donizete.prado@gmail.com

Sônia Cristina Vermelho


Possui graduação em Processamento de Dados pela Universi-
dade Positivo (1993), mestrado em Educação: História, Política,
Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(1998) e doutorado em Educação e Ciências Sociais pela Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo (2003). Fez Pós-Douto-
rado no INESC/Universidade do Porto, Portugal no Laboratório
de Sistemas de Informação e Computação Gráfica (2014). Atu-
almente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, no Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e Saúde do Instituto NUTES. As áreas de interesse de
pesquisa são: Mídia-Educação, formação para emancipação e
autonomia na contemporaneidade, todas elas com base na Teo-
ria crítica social.
Contato: cristina.vermelho@gmail.com
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
atual coordenador do curso de Jornalismo. É doutor em educa-
ção e pesquisador do Grupo Pesquisador em Educação Ambien-
tal, Comunicação e Arte (GPEA). Tem vivências em comunidades
quilombolas, juventudes e transmídia, além das pesquisas rela-
cionadas com a emergência climática.
Contato: thcluiz@gmail.com

Washington Luiz dos Santos Ferreira


Graduação em Oceanologia (1995), Mestrado em Oceanogra-
fia Biológica (2004) e Doutorado em Educação Ambiental (2014)
pela FURG - Universidade Federal do Rio Grande. Entre Setem-
bro de 2014 e Março de 2017, Pós-Doutorado junto ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Geografia (Interfaces entre História
Ambiental e Gerenciamento Costeiro) da UFSC - Universidade
Federal de Santa Catarina. Entre Abril de 2017 e Abril de 2018,
Pós-Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação Científica e Tecnológica da UFSC. Entre Setembro de 2018
e Fevereiro de 2019, Estágio (voluntário) de Pós-Doutorado junto
ao Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento Costeiro,
da FURG. Entre Março de 2019 e Fevereiro de 2020, Pós-Dou-
torado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental da FURG. Atua principalmente nos seguintes temas:
Diagnósticos Socioambientais (macro invertebrados bentônicos,
avifauna costeira e marinha, pesca artesanal, ecologia da pai-
sagem); Análise de Impactos e Conflitos Socioambientais; Análi-
se Documental; Divulgação Científica; Interfaces entre a História
Ambiental, Justiça Ambiental, Educação Ambiental e Gestão
Ambiental; Educação à Distância; Produção de Material Didá-
tico e Produção Cultural (livros, histórias em quadrinhos, vídeo
documentários e exposições fotográficas).
Contato: chingksw@gmail.com
Av. São José Barreto, 764 - São José do Barreto
CEP: 27.965-045 - Macaé / RJ
Brasil
www.macae.ufrj.br/nupem

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