Você está na página 1de 62

DEMOCRACIA VIVA 38

março 2008

Juventude e
integração
sul-americana
em foco

APOIO a esta edição


e d i t o r i a l
Dulce Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do Cpdoc/FGV

N a luta incessante por um mundo mais justo e igualitário, o Ibase,


por reconhecer a importância dos(as) jovens nas mudanças em curso no nosso planeta, tem reforçado
iniciativas e projetos voltados para esse segmento da população. Em março de 2006, a revista Demo-
cracia Viva, na sua 30ª edição, divulgou os resultados de uma ampla pesquisa sobre a participação da
juventude brasileira na vida política e social do país. Coordenada por Ibase e Instituto Pólis – Estudos
e Assessoria em Políticas Sociais, e apoiada por uma entidade canadense, International Development
Research Centre (IDRC), a pesquisa, desenvolvida em oito cidades, contou para sua realização com
a parceria de várias instituições. Além de dialogar com outras pesquisas, os seus resultados, ampla-
mente divulgados, contribuíram para subsidiar políticas públicas voltadas para melhorar a qualidade
de vida dos(as) jovens brasileiros(as).

Agora, em março de 2008, a revista Democracia Viva, na sua 38ª edição, está divul-
gando os resultados de uma outra pesquisa sobre demandas e formas de organização da juventude,
também coordenada por Ibase e Pólis e apoiada pelo IDRC – Juventude e Integração Sul-americana:
caracterização de situações-tipo e organizações juvenis. 1 Só que, desta vez, além do Brasil, o pro-
jeto se estendeu para cinco países do continente sul-americano: Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai
e Uruguai. Como a experiência anterior de trabalhar em rede havia sido bastante exitosa, Ibase e
Pólis, para desenvolver essa nova iniciativa, articularam uma rede com instituições sul-americanas.

1 Nota da edição: por


se tratar de um número
temático sobre a
pesquisa, algumas
informações se repetem
ao longo da edição.
Optamos por não
cortá-las para não
comprometer a leitura
individual de cada texto.
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
3 ARTIGO 20040-916 Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9402
Jovens da América do Sul: <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
situações,demandas
e sonhos mobilizados Conselho Curador
Eliane Ribeiro e Regina Novaes Sebastião Soares
João Guerra
Pesquisa em rede Carlos Alberto Afonso
Anna Luiza Salles Souto e Pedro Pontual Nádia Rebouças
SoniaCarvalho

10 NACIONAL Direção Executiva


Cândido Grzybowski
Jovens, direitos e superação Dulce Pandolfi
da desigualdade Francisco Menezes
Helena Wendel Abramo João Sucupira

entrevista Coordenadores(as)
Re.Fem
16 ENTREVISTA Athyade Motta
Re.Fem Ciro Torres
Fernanda Carvalho
Itamar Silva
28 INTERNACIONAL João Roberto Lopes Pinto
Retrato da juventude Luzmere Demoner
sul-americana Moema Miranda

30 Argentina DEMO C RA C IA V I V A
ISSN: 1415-1499 – Publicação trimestral
Risco do monólogo surdo?
Dana Borzese e Vanesa Luro Diretora Responsável
Dulce Pandolfi
35 Bolívia
Conselho Editorial
Luta dos jovens aymaras Alcione Araújo
na cidade de El Alto Cândido Grzybowski
Máximo Quisbert Q. Charles Pessanha
Cleonice Dias
40 Chile Jane Souto de Oliveira
artigo O seqüestro da demanda cativa João Roberto Lopes Pinto
Jovens da América do Sul Julieta Vivar Payàs Márcia Florêncio
Moema Miranda
45 Paraguai Regina Novaes
Entre modelos antigos, Rosana Heringer
Sérgio Leite
o mercado e a busca
de cidadania Edição
Luis Caputo AnaCris Bittencourt
Subedição
51 Uruguai
Jamile Chequer
Os cabelos brancos valem
Tradução
mais do que a acne Margaret Cohen e Leslie Sasson Cohen
Lilian Celiberti
Revisão
AnaCris Bittencourt, Jamile Chequer
56 RESENHA e Maurício Santoro
Maurício Santoro Assistente Editorial
Para apoiar os projetos
Flávia Mattar
desenvolvidos pelo
58 INDICADORES Divulgação
Ibase, escreva para
amigos@ibase.br
Juventude sul-americana em Diego Heredia
rede, um desafio metodológico Produção
ou telefone para
da pesquisa Geni Macedo
(21) 2178-9400. Patrícia Lânes e Maurício Santoro
Doações de pessoas Estagiários
Carlos Daniel da Costa
jurídicas podem ser
62 ÚLTIMA PÁGINA David da Silva
abatidas do Imposto
Nani Distribuição
de Renda.
Elaine Amaral de Mello
Projeto Gráfico e Diagramação
Mais Programação Visual
Capa
Mais PV | Montagem com fotos de Samuel Tosta
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estratégia
Impressão
para dar visibilidade à luta pela equidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política
Morada do Livro
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política. Tiragem
7 mil exemplares
Os artigos assinados nesta publicação não traduzem, necessariamente, a posição do Ibase.
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Eliane Ribeiro* e Regina Novaes**

Jovens da América do
Sul:

situações, 
demandas 
e sonhos
A América do Sul vive intensas transformações sociais, culturais, políticas e

econômicas. A despeito das diferenças que caracterizam a formação social

de nossos países, cada vez mais se evidenciam semelhanças marcadas pela

combinação de histórias comuns de governos autoritários, dificuldades

de processar transições democráticas, perversos efeitos de políticas neo-

liberais econômica e socialmente desagregadoras, um persistente quadro

de precariedades e desigualdades sociais.


Ao mesmo tempo, em vários países registram-se esforços significativos em

MARÇO 2008 3
artigo

direção da consolidação da democracia. Dife- Sul-americana: caracterização de situações-tipo


rentes formas de participação, associativismo e e organizações juvenis.1
redes sociais estão presentes no espaço público Como ponto de partida, indagou-se:
e impulsionam iniciativas governamentais em qual o papel da juventude nas mudanças em
direção à ampliação de direitos sociais e à ge- curso em nosso continente? Que demandas,
ração de oportunidades. lutas políticas, formas de organização e de
Nesse contexto, em que se combinam solidariedade esses(as) jovens têm construído
velhas vulnerabilidades e novas possibilidades no início deste novo século? Seria possível falar
de agregação social, observa-se a importância em identidade geracional e uma agenda comum
de um particular segmento populacional: a para ação entre jovens sul-americanos?
juventude. Vivemos o apogeu da quantidade Com essa perspectiva, o estudo foi
de jovens com relação ao total da população centrado na análise de 19 situações-tipo, cada
da região, entre 20% e 25%, quadro que deve uma focalizando um segmento juvenil do qual
permanecer pelo menos até 2015. nos aproximamos com um mesmo conjunto de
Habitantes de um mundo em acelera- questões, enfatizando a aposta na juventude e
do processo de globalização, esses(as) jovens a identificação de suas principais demandas.
vivenciam problemas e incertezas semelhantes.
Costuma-se dizer que as novas gerações são as
Aproximando juventudes
maiores vítimas das excludentes injunções que
1 Pesquisa realizada pelo caracterizam o continente sul-americano. Po- Após nove meses de trabalho, foi possível
Ibase em parceria com
o Instituto Pólis – Estudos,
rém, se já não há como negar as possibilidades conhecer um conjunto de processos em movi-
Formação e Assessoria em construídas pelos próprios jovens, que direta ou mento, identificar demandas e estratégias foca-
Políticas Sociais, com apoio
do International Development indiretamente, funcionam como enfrentamento lizadas pelos(as) jovens no sentido da ampliação
Research Centre (IDRC) e mais
um conjunto de entidades e
e resposta às situações de discriminações e desi- de conquistas políticas e sociais (Tabela 1).
pesquisadores(as) dos países gualdades, trata-se de melhor conhecê-las. Este
envolvidos.
é o objetivo da pesquisa Juventude e Integração
Reinvenções da participação
Independentemente da demanda em questão,
Tabela I
Sistematização das situações-tipo estudadas
País/Instituição Segmento Organização ou Demanda/
parceira juvenil grupo pesquisado Consigna

Argentina / Filhos de desaparecidos H.I.J.O.S./ Buenos Aires Direitos humanos


Fundação SES políticos da ditadura militar (Direito à verdade, justiça
1976-1983 (setores médios) e memória histórica)
Jovens da cidade de Assembléia Juvenil Proteção ao meio-ambiente
Gualeguaychú Ambiental de
(setores médios) Gualeguaychú
Jovens desempregados Jóvenes de Pie, na Trabalho (oportunidade de
(setores populares) província de emprego ou inserção produtiva)
Buenos Aires e educação
Jovens beneficiários Movimento Juvenil Trabalho (capacitação para
de projetos sociais Andresito (Província de inserção produtiva) e educação
(setores populares) Misiones)
Bolívia / PIEB Jovens do movimento Grupos de hip hop Cultura (reconhecimento
hip hop (bairros populares) aymará em El Alto etnocultural e condições para
produção artística), educação
e trabalho
Jovens estudantes Movimentos estudantis em Educação (movimento pela
moradores de bairro popular El Alto (Antonio Paredes criação de uma Escola Normal
(setores populares) Candía, Insea, Insthea) em El Alto)
Jovens empregadas Federação Nacional das Trabalho (direitos trabalhistas/
domésticas Trabalhadoras do Lar eqüidade de gênero) e educação
(setores populares) em La Paz
País/Instituição Segmento Organização ou Demanda/
parceira juvenil grupo pesquisado Consigna
(Continua na página seguinte)

4 Democracia Viva Nº 38
Jovens da América do Sul: situações, demandas e sonhos mobilizados

(Continuação da Tabela 1)

Brasil / Pólis Jovens migrantes que Jovens do Nordeste Trabalho decente (melhores
(a partir de rede de trabalham no corte manual (Maranhão e Piauí) que condições) e educação
pesquisadores/ da cana-de-açúcar (famílias trabalham no interior (calendário escolar adequado)
instituições no Brasil) de agricultores pobres) de São Paulo
Jovens estudantes urbanos Movimento pelo passe livre Circulação (locomoção para
(maioria de classes populares, – Revolta do Buzu – em a escola / transporte / direito à
alguns de classe média) Salvador/Bahia cidade) e educação de qualidade
Jovens trabalhadores do Sindicato dos Trabalhadores Trabalho decente
setor de telemarketing em Empresas de (melhores condições)
(sobretudo, setores Telecomunicações no Estado
populares, minoria de de São Paulo e Sindicato
classe média) dos Trabalhadores em
Telemarketing e Empregados
em Empresas de Telemarketing
na Grande São Paulo
Jovens do movimento Grupo Família MBJ, em Cultura (condições para
hip hop (bairros populares) Caruaru / Pernambuco produção artística e cultural,
luta por reconhecimento
e combate ao racismo)
Jovens de projetos sociais Fórum de Juventudes Políticas públicas de juventude
e organizações voltadas do Rio de Janeiro (participação na agenda,
para jovens (maioria de na elaboração e no
setores populares) acompanhamento)
Segmentos juvenis Acampamento Sustentabilidade, economia
diferenciados (movimentos Intercontinental da solidária, direitos humanos,
culturais, pastorais, Juventude – Fórum Social diversidade e igualdade: por um
estudantis, jovens de ONGs, Mundial (edições realizadas outro mundo possível
de partidos políticos etc) em Porto Alegre) (influenciar na agenda e nas
formas de participação do
Fórum Social Mundial e nas
pautas das juventudes)
Chile / Cidpa Jovens estudantes Movimento de protesto dos Educação (demandas imediatas
secundaristas (maioria secundaristas, Rebelião dos e de projeto educacional)
setores populares, alguma Pingüins, em Valparaíso –
participação setores médios) Coordenadora de Estudantes
Secundaristas de Valparaíso
Segmentos juvenis Organizações juvenis que Políticas públicas para a
juventude
diferenciados que participam no Departamento (participação ativa na definição
participam de projetos de Jovens de Concepción e gestão dessas políticas)
Paraguai / Base–IS Jovens camponeses em Associação de Agricultores Agroecologia (terra,
região de crescimento da do Alto Paraná (Asagrapa) educação, trabalho)
monocultura da soja
Jovens estudantes Movimento do passe livre Educação, circulação /
secundaristas (maioria Federação Nacional de transporte
setores populares e Estudantes Secundaristas
parte setores médios) (Fenaes) – Assunção
Uruguai / Cotidiano Juventudes partidárias Grupos jovens do Partido Participação política (as ênfases
Mujer / Faculdade Colorado, Partido Nacional nas agendas correspondem ao
de Ciências Sociais da e da Frente Ampla perfil dos diferentes partidos)
Universidade República (Montevidéu)
Movimento pela Plantá tu Planta, Prolegal, Legalização da maconha
Legalização da La Placita (direito de escolher, cultura,
Cannabis meio-ambiente)
Fonte: Juventude e Integração Sul-americana: caracterização de situações-tipo e organizações juvenis, 2008.

MARÇO 2008 5
artigo

O que reivindicam?
Observando a Tabela 1, destacamos seis
pontos de intercessão que – sem desco- Cultura: valores e acessos à os demais eixos da agenda pública de
nhecer as especificidades das diferentes fruição e à produção cultura juventude (educação, trabalho e cultura).
situações estudadas – podem favorecer
Com diferentes ênfases e matizes, a
a construção de uma agenda comum. Ecologia: conexões juvenis
dimensão cultural está presente em
com vistas à sustentalibidade
Educação pública de qualidade: todas as situações-tipo estudadas. Con-
socioambiental
uma escola que caiba na vida siderando que em nossas sociedades a
juventude está sempre entre forças an- Pelo caminho da ecologia, jovens da
do(a) jovem
tagônicas que produzem tanto adesões cidade e do campo se conectam com as
A demanda mais presente nos segmen- questões de seu tempo, fazendo dialogar
como críticas à chamada sociedade de
tos juvenis estudados foi a educacional. velhos problemas com novas motivações.
consumo, em cada uma das situações
Destaca-se o reclamo por educação Nas situações-tipo estudadas, registram-
estudadas estão presentes disputas de
pública, gratuita e de qualidade. Nas -se diferenciadas evocações da questão
imagens, valores, motivações de sen-
entrevistas realizadas, está presente o ambiental e ecológica. Daí resultam tipos
tido de vida. Nesses cenários, por um
tom de denúncia que enfatiza as prá- diversos de ações coletivas e inéditas pos-
lado, o acesso à cultura começa a ser
ticas discriminatórias, os processos de sibilidades de articulação intergeracional
visto como um direito dos(as) jovens
exclusão, os mecanismos de reprodução e entre jovens de classes sociais diferen-
os quais, geralmente, não têm recursos
de desigualdades que caracterizam o sis- tes, urbanos e rurais. Considerando que
para escolher como usar o tempo livre,
tema educacional dos diferentes países. a pauta do meio-ambiente está bastante
para desfrutar os momentos de lazer e
Contudo, chamou a atenção o fato de disseminada, recomenda-se a ampliação
para ter acesso ao patrimônio cultural
que não se fala apenas em direito à edu- da noção de educação ambiental formal
material e imaterial de seu país. Por
cação ou ampliação do acesso à escola. e não-formal, favorecendo a circulação
outro lado, nessa geração ampliou-se
Para essa geração, trata-se de buscar: de informações e proporcionando ele-
significativamente o número de jovens
maior qualidade (professores mais bem- mentos para negociação, escolhas e
voltados(as) para produções artísticas
-preparados, currículos mais condizentes pactos societários. Em momento em que
geradoras de pertencimentos e iden-
com a realidade atual); mais flexibilidade se esgotam oportunidades nas carreiras
tidades. Dessa forma, convocam-se os
(necessidade de calendários adaptados tradicionais e há tanta preocupação so-
poderes públicos tanto para garantir
para combinar trabalho e estudo nas bre o futuro do planeta, tal perspectiva
meios para lazer e fruição cultural para
cidades e na área rural); garantia de também acena para o fortalecimento
diferentes segmentos juvenis como para
continuidade educativa (secundária, de novas áreas de profissionalização
o reconhecimento e o apoio às diferentes
técnico-profissional, universitária). ambiental (agentes comunitários am-
manifestações artísticas produzidas e
apreciadas pela juventude. bientais, turismo ecológico etc.) e para
Trabalho decente e outras
espaços de inserção juvenil na América
oportunidades de
Vida segura: valorização da do Sul.
inserção produtiva
diversidade e direitos humanos
A questão do trabalho está presente Circulação: ampliação das
Essa geração de jovens sul-ameri-
de forma contundente, evidenciando possibilidades de ir e vir
-canos(as) é afetada por diferentes
centralidade na vida dos(as) diversos(as) no campo e na cidade
formas de violência física e simbólica.
jovens sul-americanos(as). Diante da pre- Uma das demandas que aparecem de
Uma das dimensões estudadas está re-
carização das condições trabalhistas, do forma incisiva na pesquisa é o direito à
lacionada ao direito à memória negada
desemprego, da concentração fundiária, circulação e à mobilidade, necessário ao
pela violência política do regime militar.
da mecanização, das mudanças tecno- exercício de outros direitos fundamentais
Em outras distintas situações estudadas,
lógicas e das discriminações ditadas – como acesso à educação, ao trabalho,
segmentos juvenis socialmente vulnera-
pelo fato de serem jovens, as pessoas à cultura e ao lazer. O direito à circulação
bilizados dirigem-se ao poder público
entrevistadas buscam oportunidades dos(as) jovens tem sido mote de algu-
para reverter preconceitos e discrimina-
para trabalhar e se emancipar. Como se mas das mais expressivas manifestações
ções (étnicas, de gênero, por local de
pode deduzir pelo que mostra a Tabela públicas na região, com embates entre
moradia). Em parte delas, menciona-se
1, as trajetórias dessas pessoas no mun- jovens, poder público e empresários do
a opressão advinda dos confrontos entre
do do trabalho são diversas. No entanto, transporte. Podemos dizer que o direito
o tráfico de drogas e as polícias que, em
destacam-se duas quimeras recorrentes. mais genérico à circulação e à cidade
geral, tratam os jovens como principais
Em primeiro lugar, não demandam (no caso da juventude urbana) não está
suspeitos. Como ponto comum, amplia-
simplesmente trabalho, mas trabalho incorporado nem respondido. É funda-
-se a referência aos direitos humanos, re-
decente que assegure remuneração mental desenvolver a consciência de que
forçando a necessidade de que políticas
condizente e direitos trabalhistas. Em a mobilidade juvenil deve ser iniciativa e
públicas de juventude que contemplem:
segundo lugar, enfatizam novas ocupa- resultado de política pública.
a) a busca de justiça e dos direitos de ci-
ções na área da cultura, da agroecologia,
dadania; b) o combate aos preconceitos
das ocupações sociais que permitem
e a valorização da diversidade cultural
aliar inserção produtiva (individual ou
juvenil; c) uma concepção de vida segura
em grupo) e valores.
que articule o combate à violência com

6 Democracia Viva Nº 38
Jovens da América do Sul: situações, demandas e sonhos mobilizados

Mais PV | Montagem com foto de Samuel Tosta

afastam os(as) jovens do mundo real. Relativi-


movimentos juvenis necessitam de visibilidade,
zando tal generalização, observamos que as no-
reconhecimento e participação. É preciso que
vas tecnologias de informação e comunicação
a sociedade, e em especial os governos, sejam
(tais como Internet – blogs, fotologs, páginas
capazes de reconhecê-los e de estimular espaços
pessoais, fóruns de discussão, celular, entre
onde possam dialogar e influenciar nas políticas
outras) surgem como importantes instrumentos
que afetam suas vidas. Para tanto, é fundamen-
de organização, de registro de atividades, de
tal aprofundar conhecimento sobre jovens da
disseminação das demandas e mobilização etc.
região, relativizar idéias preconcebidas e ampliar
entre jovens organizados(as).
a capacidade de compreensão sociológica.
Por outro lado, elementos destacados
Os relatórios nacionais da pesquisa nos
pelos(as) jovens pesquisados(as) nos permitem
permitem questionar, por exemplo, observa-
questionar veredictos que afirmam não existir
ções recorrentes sobre a geração juvenil atual.
utopias entre a juventude de hoje. Certamente,
Costuma-se dizer que os expedientes virtuais,
existem vários usos da palavra em questão.
vinculados às novas tecnologias de informação,
Porém, por que não considerar utopias (sonhos

MARÇO 2008 7
artigo

mobilizadores) essas inéditas conjugações entre distintos participantes de movimentos juvenis


demandas imediatas e questões mais gerais, conseguir se articular na esfera regional, pois
expressas por meio das idéias de direitos hu- a tendência é que as mobilizações se dêem,
manos e de ecologia? sobretudo, nos planos locais e nacionais. No
Tratar do tema da juventude na região entanto, os processos em curso têm mostrado
de forma mais qualificada é fortalecer uma que a participação de jovens nos assuntos pú-
nova perspectiva comum dos direitos humanos blicos é fator determinante para a ampliação
dos(as) jovens; é potencializar solidariedades da democracia na região.
sociais e acesso às novas tecnologias; é influen- Nessa perspectiva, o Mercosul se torna,
ciar na construção das agendas de políticas portanto, um novo marco para um diálogo
públicas voltadas para as juventudes regionais em que haja explicitação de conflitos e trocas
que visem sustentabilidade socioambiental. Se entre os atores sociais participantes. Demandas
é verdade que nunca houve uma humanidade e participação juvenis que, à primeira vista,
tão numerosa e tão jovem, certamente caberá não estariam ligadas aos processos formais de
à juventude atentar para urgentes ações no integração regional, ganham relevância hoje:
“aqui e agora” e reinventar utopias, doadoras podem (e devem) ser abordadas sob a ótica
de sentido para a vida. regional.
Atualmente, no âmbito do Mercosul, o
espaço reservado à participação da juventude
ainda é pequeno. Não tem sido fácil para os

Políticas no Mercosul
Iniciadas em momentos diferentes e
com institucionalidades diversas, nos por especialistas, entrevista-dos(as) na gração sul-americana. Sem dúvida, o for-
seis países estudados existem iniciativas pesquisa, como um passo importante talecimento de lideranças juvenis locais
de políticas públicas para a juventude nessa direção. Não por acaso, há uma e regionais; a maior vinculação entre os
(PPJ). E como são avaliadas essas grande expectativa sobre o papel que temas da inclusão e da participação social
políticas? No conjunto, predominam pode ser desempenhado pela Reunião com as políticas públicas de juventude;
observações críticas, tais como: planos Especializada da Juventude (REJ), assim como o maior compromisso dos
educativos que não levam em conta a que se soma a outros organismos do poderes públicos com a agenda dos(as)
inserção produtiva futura dos(as) jo- Mercosul dedicados às políticas públi- jovens contribuirão para a consolidação
vens; pouca atenção à cultura; ausência cas setoriais. A REJ surgiu na Cúpula da democracia regional.
de programas de acesso à moradia para de Córdoba, em 2006, e marcou a Por outro lado, e simultaneamente,
jovens; falta de atenção à saúde da introdução do tema da juventude na a aposta e a consolidação de uma inte-
juventude. Evidenciam-se ainda proble- agenda oficial do bloco. gração solidária entre povos e nações da
mas de desenho e de gestão das PPJs, As preocupações que predominam região contribuirá para que as demandas
a saber: falta de orçamentos próprios entre os gestores governamentais e os da juventude ganhem visibilidade na
ou orçamentos limitados; ausência de movimentos sociais são: levantar infor- América do Sul, pautem agendas públi-
uma abordagem integral dos proble- mações sobre as políticas dos países cas e gerem novas iniciativas e mudanças
mas que atingem os(as) jovens; falta vizinhos; e homogeneizar estatísticas em relação ao futuro das novas gerações.
de coordenação entre ações setoriais e marcos legais – no Brasil, a catego- Os obstáculos são bem conhecidos.
e/ou ações territoriais; ausência de um ria “jovem” vai de 15 a 29 anos. Em Mas nesse inédito e desafiante processo
plano pactuado com a sociedade; falta outros países, em geral, abarca de 15 de integração, surpresas e esperanças
de participação juvenil em seu desenho, a 24 anos. Além disso, há projetos de têm surgido entre os(as) jovens. Cabe
implementação e avaliação. desenvolver campanhas transnacionais aos governos e à sociedade encontrar
Ao identificar tensões e dificulda- contra a exploração sexual de jovens os melhores meios para que a energia
des das PPJs nestes países, acreditamos – problema especialmente grave nas vital da juventude se espalhe por todo
estar contribuindo para que os pro- áreas de fronteira. tecido social.
blemas possam ser equacionados. A Nesse contexto, acredita-se que a
integração das políticas públicas de ju- questão da juventude tanto possa ser
ventude com o Mercosul foi enfatizada impulsionada como impulsionar a inte-

8 Democracia Viva Nº 38
Jovens da América do Sul: situações, demandas e sonhos mobilizados

* Eliane Ribeiro
Pesquisa em rede Cientista social, doutora
em Educação, integrante
Anna Luiza Salles Souto* e Pedro Pontual ** da Equipe Técnica Sul-
americana da pesquisa

** Regina Novaes
Trabalhar em rede é, sem dúvida, um sível graças ao esforço coletivo em vencer Antropóloga, consultora
grande desafio. Com base na experiência as barreiras do idioma, à existência de um temática
bem-sucedida da pesquisa Juventude Bra- diálogo franco e aberto entre nós e ao da pesquisa
sileira e Democracia: participação, esferas compromisso mútuo com os pressupostos
e políticas públicas (2004-2005), que en- técnicos e políticos do projeto. Nesse per-
volveu instituições de diversas regiões do curso, fomos capazes de flexibilizar sem
Brasil, Ibase e Pólis avançaram na produção perder o foco, criar sinergias sem aplacar a
de novos conhecimentos sobre o universo diversidade, somar o acúmulo das distintas
juvenil, agora com o olhar voltado para instituições e, com isso, alimentar novas
o continente sul-americano. Este novo reflexões e indagações que ultrapassam os
estudo, realizado a partir de uma rede limites dessa pesquisa. Concluímos essa
de organizações e de pesqui-sadores(as) trajetória com a certeza de que as relações
de seis países da região, reforça a nossa de confiança construídas no decorrer
convicção sobre o acerto desse desenho desse período são valiosas e respondem
organizacional. pelo sucesso da empreitada.
No Brasil, o Pólis, coordenador dos A parceria entre Ibase e Pólis, inicia-
estudos nacionais, organizou uma rede da no projeto anterior, vai se firmando
integrada por alguns parceiros da pesquisa como exemplo de um feliz encontro entre
anterior – tais como Universidade Federal instituições que comungam ideais, mas
Fluminense, Universidade Federal do Rio possuem trajetórias distintas e alguns
Grande do Sul e Ação Educativa, ONG campos específicos de atuação. A soma
sediada em São Paulo – e por especialistas dos acúmulos institucionais e a concep-
nas temáticas abordadas. Com a supervi- ção e condução compartilhada das duas
são técnica de Helena Abramo, somamos pesquisas sobre juventude reverteram-se
forças na articulação de parceiros localiza- positivamente para os referidos projetos.
dos em vários estados e responsáveis pelos O rico intercâmbio de experiências, o
estudos sobre distintas organizações e exercício de construção coletiva e os laços
movimentos juvenis, afinando os enfoques de amizade que nos unem vêm gerando
analíticos com vistas à elaboração de um aprendizados pessoais e para ambas as
relatório nacional. organizações.
Essa articulação, por si só complexa,
constituiu-se em um dos braços de uma
rede mais ampla, integrada por instituições
desses seis países do continente. O desafio
de executar uma pesquisa em rede no
curto tempo disponível exigiu habilidade
e sintonia da coordenação e forte com- *Anna Luiza Salles Souto
prometimento dos(as) pesqui-sadores(as). Coordenadora executiva do Instituto
A aposta na construção coletiva de Pólis, coordenadora geral da pesquisa
novos saberes, no compartilhamento de no Brasil e coordenadora adjunta da
reflexões que transcendem as dinâmicas pesquisa sul-americana
específicas de cada país e, sobretudo, na
articulação de instituições sul-americanas ** Pedro Pontual
comprometidas com o adensamento da Pesquisador do Instituto Pólis, coordenador
democracia e com a transformação social geral da pesquisa no Brasil
da nossa região gerou resultados positivos e coordenador adjunto da pesquisa
e proporcionou um rico aprendizado entre sul-americana
as partes.
Esse processo, no entanto, só foi pos-

MARÇO 2008 9
nacio
nacional
Helena Wendel Abramo*

Jovens,
direitos
e superação
A pesquisa Juventude e Integração Sul-americana: caracterização de situações-tipo e

organizações juvenis, realizada por Ibase e Pólis em 2007, põe atenção em um foco

diferente do usual quando se busca investigar o sentido político da participação dos(as)

jovens: nas demandas em torno das quais jovens têm se mobilizado, assim como seu

modo de formulação e expressão pública. A perspectiva é a de buscar compreender se, e

de que modo, essa atuação juvenil tem incidido (ou pode incidir) na construção de uma

plataforma de direitos e na luta para a superação da desigualdade social, assim como

perscrutar possibilidades de articulações que aprofundem os sentidos da democracia em

disputa no âmbito dos países que compõem o Mercosul.

No Brasil, essa questão tem um significado específico, uma vez que o tema da

juventude apareceu posteriormente ao momento de debate mais intenso sobre a con-

solidação dos direitos de cidadania, corporificado no processo da Constituinte, no fim

da década de 1980. E, pelo modo como se desenvolveu nos últimos 15 anos, ficou
mais centrado sobre os modos de resgatar os(as) jovens das situações de risco e vulnerabilidade

10 Democracia Viva Nº 38
onal em que se viram crescentemente envolvidos, e
sobre as possibilidades e entraves para a sua
participação, por outro lado, do que sobre as
suas necessidades e direitos.
Que papel pode ter, portanto, a recente
postulação dos(as) jovens como sujeitos de
direitos, a execução de políticas públicas de
Brasil, seis situações (leia na pág. 12) que nos
parecem significativas para aprofundar o olhar
sobre as demandas juvenis e sobre as interro-
gações que elas têm lançado à configuração da
luta por eqüidade e justiça social no nosso país:2
1 Ver Evelina Dagnino, 2004.
Sociedade civil, participação
e cidadania: de que estamos
falando? In Daniel Matos
(coord) Políticas de ciudadania
y sociedad civil em tiempos
de globalizacion. Caracas,
FACES, Universidad Central de
Venezuela.

2 Cada uma dessas situações


Pistas para debate foi estudada por uma equipe
juventude e a configuração de espaços de par- diferente; a coordenação
dos seis estudos ficou a
ticipação na definição e gestão dessas políticas, Evidentemente, não há espaço neste breve cargo do Pólis, consolidada
num relatório nacional, de
em uma conjuntura de disputa entre o projeto artigo para o desenvolvimento dos instigantes minha autoria. Cada estudo
político democratizante e participativo forjado achados que cada um dos estudos dessas situ- gerou um relatório singular,
disponível em arquivo
naqueles anos e o projeto neoliberal, que se ações propiciou nem para as reflexões que eles eletrônico <www.ibase.
br>: A Revolta do Buzu:
processa nas próprias arenas que resultaram do suscitaram. É possível, apenas, esboçar algumas manifestações de estudantes
esforço pela reinvenção democrática?1 linhas de interpretação que podem fornecer secundaristas contra o
aumento da tarifa do ônibus
Neste contexto em que é difícil manter pistas para o debate. (de Júlia Ribeiro de Oliveira
e Ana Paula Carvalho);
a garantia de direitos já conquistados, há uma Uma delas é a de que faz sentido reco- Demandas de jovens no
dificuldade adicional dos grupos juvenis e suas nhecer, para além das medições quantitativas mundo do trabalho urbano:
jovens, sindicato e trabalho
demandas para se legitimarem, uma vez que sobre o grau de participação da população no setor de telemarketing
(de Maria Carla Corrochano
apresentam questões que não fazem inteira- juvenil, a existência de atores juvenis nos es- e Érica Nascimento); Jovens
mente parte do repertório dos movimentos paços públicos e em arenas de luta política, migrantes canavieiros: entre
a enxada e o facão (de José
sociais, com símbolos e referências muitas vezes expressando questões relativas a sua condição Roberto Pereira Novaes);
A Família do Morro do Bom
suspeitas a esse imaginário (uma vez que fazem de jovens singulares desta conjuntura histórica. Jesus (de Rosilene Alvim
referência a dimensões do consumo, da diver- Embora cada um dos atores envolvidos nas si- e Adjair Alves); Fórum
de Juventudes do Rio de
são, a ênfase na imagem), ou que desequilibram tuações estudadas carregue várias identidades, Janeiro (de Ana Karina
Brenner); Acampamento
certas noções estabelecidas a respeito do que acionadas diferentemente de acordo com as Intercontinental da Juventude:
parece essencial à vida juvenil. interlocuções em jogo, é possível dizer que a experiência de uma nova
geração política (de Nilton
Com questões como essas no horizonte identidade juvenil assume significação política Bueno Fischer, Ana Maria
dos Santos Corrêa e Márcio
de nossas preocupações, investigamos, no para a maior parte deles, e é a partir dessa Amaral).
Flávio Condé

MARÇO 2008 11
nacional

identidade que eles têm ocupado certos espaços e desigualdades são vividas.
públicos. Muitas vezes, suas demandas vêm Podemos ver, nas manifestações dos
expressas por meio da exposição pública dessa grupos estudados, que são várias as demandas,
identidade, na luta por romper invisibilidades muitas vezes imbricadas umas nas outras, para
a que parecem condenados ou por reverter a as quais se cobra resolução, confirmando a
negatividade com a qual são vistos. exigência – que faz parte do debate corrente
Suas demandas estão vinculadas a dife- –, de que não se pode reduzir a questão da
rentes dimensões de suas vidas e expectativas e juventude a um ângulo ou necessidade à qual
dizem respeito, em grande medida, a exigências se subordinam as outras, de que não há apenas
de inclusão social e à reversão de formas muito a postulação de um direito que possa condensar
pungentes de discriminação e criminalização. a questão da juventude. Nesse sentido, ganha
Trazem, assim, outros conteúdos, ou inflexões, à relevância, por exemplo, a questão da cultura e
pauta de demandas já constituintes da agenda da diversão, que emergem, para certos grupos,
dos movimentos sociais, uma vez que traduzem como direito essencial, raras vezes assinalado
outros modos pelos quais carências são sentidas

Situações-tipo brasileiras

1. Revolta do Buzu
Mobilização de estudantes de Salvador, São jovens pertencentes a famílias de esse segmento nem, por outro lado, suas
na Bahia, contra o aumento da tarifa do agricultores pobres do Nordeste, onde as demandas têm sido arroladas junto a de
ônibus, em agosto de 2003. Protagoni- oportunidades de trabalho são escassas, e outros segmentos juvenis.
zada, principalmente, por estudantes se- que migram, a cada ano, para o interior de
cundaristas, surpreendeu pela amplitude 3. Família MBJ (do Morro do
São Paulo, região de expansão da indústria
e vigor com que foi sustentada, chegando Bom Jesus)
sucroalcooleira, buscando uma oportunida-
a manter cerca de 20 mil estudantes de concreta de obter renda para si e para Surgiu no início dos anos 2000 como uma
mobilizados, por cerca de 20 dias, em assegurar a sobrevivência da sua família espécie de comissão coordenadora de
assembléias e manifestações públicas na agricultura em seus locais de origem. cerca de uma dúzia de grupos de hip hop
– principalmente em concentrações e O corte manual da cana é um traba- de um bairro pobre da cidade de Caruaru,
passeatas que paralisaram as vias prin- lho duro e extremamente desgastante – o no interior de Pernambuco. Sua demanda
cipais de circulação da cidade. Vários padrão atual de produtividade das usinas principal, assim como a de centenas de
atores estudantis estiveram envolvidos impõe a cada trabalhador o corte de, outros grupos de hip hop no Brasil, é a
na mobilização: grêmios das escolas pelo menos, 10 toneladas de cana por de inclusão e reconhecimento social, bus-
locais, grupos alternativos de inspiração dia. Para cumprir a meta, o corpo precisa cando, fundamentalmente, a superação
anarquista, entidades gerais de caráter de resistência física, daí a necessidade da discriminação e exclusão por serem
regional e nacional (UNE, UBES etc.), de trabalhadores jovens nos canaviais. O jovens pobres, negros(as), moradores(as)
grupos ligados a juventudes partidárias. ritmo de trabalho é muito intenso, os(as) de regiões periféricas. Essa demanda con-
Essa manifestação se insere num trabalha-dores(as) ficam no limite da sua grega várias outras, como uma educação
conjunto de outras semelhantes, ocorri- capacidade física, os problemas da saúde mais inclusiva e de qualidade, acesso a
das antes e depois desse acontecimento, – pelo excesso de trabalho – se agravam, um trabalho digno, condições para a
em diversas cidades brasileiras, revelando e não são raras as ocorrências de acidentes sua expressão cultural, a possibilidade de
uma forte disposição de mobilização fatais. construção de uma perspectiva de vida que
dos(as) jovens em torno da demanda do As demandas principais dizem respeito não seja minada pela violência (criminal e
direito à circulação. Compreendida, em às condições de trabalho e se configuram policial). Entre as atuações desse grupo
primeira instância, como uma demanda também no desejo de um trabalho melhor; encontram-se a reivindicação e conquista
associada ao direito à educação, revela mas também adicionadas por demandas de de equipamentos em seu bairro, como a
também uma série de dimensões de uso educação e de recursos para a agricultura recuperação de uma escola abandonada,
da cidade às quais os jovens reivindicam familiar. Embora a presença dos jovens a destinação de um espaço para suas ativi-
acesso: direito à cultura, ao lazer, ao nessa situação seja crescente, é quase dades culturais e cursos profissionalizantes.
trabalho – em última instância, direito ausente sua visibilidade política. Os atores 4. Setor de telemarketing
à cidade. Em alguns lugares, assumem que representam esses trabalha-dores(as), Este tem representado um nicho de mer-
a configuração de luta pelo passe livre. os Sindicatos de Empregados Rurais e a cado de trabalho para os(as) jovens, prin-
Pastoral dos Migrantes, não desenvolvem cipalmente para aqueles(as) oriundos(as)
2. Migração sazonal de jovens nenhum tipo de trabalho diferenciado com
para o corte manual da cana das famílias de baixa renda e que logram
concluir o ensino médio. Para os empre-

12 Democracia Viva Nº 38
Jovens, direitos e superação da desigualdade

por outros atores. permanência na escola, e à sua qualidade;


mas que, dependendo do segmento, assume
uma formulação específica. Para muitos jovens,
Demanda por circulação
configura uma demanda pela criação de alter-
O exame mais atento da expressão das ques- nativas de conciliação entre trabalho e escola
tões juvenis permite perceber a qualificação (muito fortemente percebida entre jovens do
de certas demandas que, se apresentadas de telemarketing); formulação que, no caso dos
modo genérico, podem dar a impressão de já jovens cortadores de cana, para se concretizar,
atendidas ou de encontrar uma formulação exige uma resposta que combine a alternância
consensualmente estabelecida. É o caso da da safra à alternância da migração sazonal.
educação que, importante para todos os atores Este é um dos temas em que a capacidade de
juvenis, expressa-se com distintas configura- consideração das diferenças e desigualdades
ções, referindo-se principalmente ao aumento para a concretização universal de um direito
da escolaridade, à possibilidade de acesso e essencial parece mais necessária.

gadores, a preferência por esses e essas 5. Fórum de Juventudes do cipação dos(as) jovens, caracterizou-se,
jovens está vinculada à “facilidade de Rio de Janeiro na sua realização e posterior proposição,
adequá-los às condições de trabalho” Estruturou-se no início do ano 2000 com como um território de convergência de
(teriam maior capacidade de assimilar o a perspectiva de congregar ativistas e práticas e experiências dos mais diversos
treinamento básico necessário e de “su- jovens atendidos(as) por organizações da grupos e movimentos juvenis com múlti-
portar as pressões para o cumprimento de sociedade civil (principalmente ONGs, mas plas bandeiras na direção de “um outro
metas de atendimento”). também entidades ligadas a movimentos mundo possível”.
Tal situação evidencia a demanda por sociais) para buscar interferir no debate Surpreendeu pela sua capacidade de
trabalho, muito forte entre extensos seg- sobre juventude e na formulação das convocação (reunindo de 2 mil jovens na
mentos da juventude brasileira. As duras políticas voltadas para jovens. primeira edição, em 2001, a 35 mil na
condições de trabalho (ritmo intensivo, Tem como principal mote a discussão quinta edição, em 2005) e seu vigor utópi-
stress muito alto, assédio moral, baixos sobre as políticas públicas para a juven- co, ensejando o desenvolvimento de uma
salários), porém, engendram lutas sindi- tude (PPJ) e a participação dos(as) jovens série de proposições, experimentadas na
cais específicas e abrem a discussão sobre em espaços de definição e elaboração prática, tais como a democracia direta, a
a qualidade do trabalho e a demanda dessas políticas, e representa um esforço gestão ambiental sustentável, a economia
por um trabalho decente, ainda pouco de buscar maiores convergências entre solidária, a autogestão.
desenvolvida no campo de debate sobre as PPJ e as necessidades e demandas O COA (Comitê Organizador do
a juventude. dos jovens em situação de exclusão. Na Acampamento), formado por cerca de
Há em São Paulo dois sindicatos que formação atual, congrega cerca de 10 uma dezena de jovens, acabou por se
disputam a representação da categoria, entidades com presença mais permanen- constituir como um grupo que buscava
e um deles – o Sintratel – estrutura sua te, além de um número não preciso de aprofundar esses eixos na experiência
atuação em torno da identidade juvenil colaboradores eventuais. Realiza periódica do acampamento. Este acontecimento
da categoria, e tem como principal eixo e itinerantemente pelos bairros Encontros nos revela como, ao contrário de certas
a luta contra a precarização do trabalho de Galeras, para discutir com jovens suas percepções correntes, os atores juvenis,
em telemarketing. Sua pauta pública demandas e certos temas em pauta, por ou pelo menos boa parte deles, formula
inclui a demanda de geração de primeiro exemplo, a situação da educação pública vínculos profundos entre as bandeiras
emprego, a luta pela regulamentação do e a violência policial. concretas, de resolução imediata, e a
estágio, a proteção à saúde e contra o as- busca mais geral de transformação. Por
sédio moral e sexual; a redução da jornada 6. Acampamento Intercontinental outro lado, revela também que esta bus-
e a elevação do piso salarial. Contudo, é da Juventude ca de transformação contém diferenças
necessário registrar que a postulação do Foi um espaço organizado por jovens de sentido, que resultam, às vezes, em
trabalho como um direito dos(as) jovens, durante a realização das edições do fortes disputas a respeito dos modos de
mesmo no meio sindical, ainda está ainda Fórum Social Mundial em Porto Alegre. fazer política.
em um processo de disputa e formatação. Em primeira instância, proposto como
um modo de garantir e ampliar a parti-

MARÇO 2008 13
nacional

Por outro lado, os reclamos e as deman- como canais institucionais para incorporar a
das que os(as) jovens têm apresentado com participação juvenil nesta gestão (conselhos,
relação ao trabalho (e a sua falta) expressam fóruns, conferências).
experiências de exploração e injustiças que po- Essa abertura, porém, contém limites
dem iluminar o alcance profundo das regressões que permitem questionar o alcance e o sen-
desencadeadas pelo avanço do neoliberalismo: tido da participação. Embora seja ainda cedo
nos casos que estudamos, fica evidente que a para fazer avaliações conclusivas, pois todo o
possibilidade de absorção dos(as) jovens pelo processo é muito recente, pode-se dizer que há
mercado se fundamenta na superexploração uma tendência, tanto no plano governamental
do vigor de sua força física e mental, na sua como no da sociedade civil, a incorporar mais
capacitação para suportar as novas normas de a participação colaborativa (na execução das
trabalho, revelando os sentidos que termos políticas governamentais, ou nos projetos das
como produtividade e competitividade podem ONGs) do que a participação na definição das
adquirir nesse contexto. Por isto mesmo, os demandas que devem ser respondidas.
reclamos expressos por esses e essas jovens Na verdade, de modo geral, é possível
podem agregar conteúdos às lutas sociais, pensar que há mais facilidade para incorporar
podem ajudar a dar contorno à definição de a participação dos jovens do que as demandas
direitos e afirmar a justeza de sua afirmação. que eles e elas apresentam. É importante tam-
No entanto, é preciso dizer que nem bém notar que muitos atores juvenis acabam,
todas as demandas apresentadas pelos jovens de certo modo, por se bastar nessa chave da
encontram igual ressonância. Apenas algumas participação, esquecendo, uma vez conquistado
delas são legitimadas enquanto outras perma- o espaço, de “dizer a que veio”, de insistir na
necem inauditas ou desqualificadas, tanto por explicitação e incorporação de sua demanda e
parte de gestores do Estado como por parte na cobrança da formulação de respostas. Uma
de outros atores da sociedade civil. Significa pista nesse sentido é a de que as principais
que não encontram respostas em termos de disputas e clivagens que se observam entre os
políticas públicas e nem mesmo logram ser atores juvenis no interior dos espaços públicos
incorporadas a pautas de fóruns mais amplos. recém-constituídos acontecem muito mais
Assim, por exemplo, se educação é uma ban- em torno dos estilos de participação e modos
deira universalmente reconhecida, aparecendo de fazer política, em torno de como se faz a
mesmo como o direito mais legítimo referido ocupação do poder e a disputa por espaço, do
aos jovens, e ensejando um investimento sig- que em relação ao conteúdo das demandas e
nificativo não só de políticas públicas como propostas de políticas.
de ações as mais variadas na sociedade civil, o
direito ao trabalho, e ao trabalho decente, é o
Possibilidades e entraves
que encontra maiores resistências, silêncios e
divergências. Se as demandas dos jovens fos- Em resumo, para esboçar uma resposta às
sem levadas seriamente em consideração, por perguntas apresentadas no início do artigo,
exemplo, seria maior o peso dado às respostas pode-se dizer que as questões levantadas
relativas às suas condições de trabalho e dos pelos(as) jovens podem, sim, enriquecer a pau-
seus direitos trabalhistas. ta de direitos, visto que têm aparecido como
É curioso perceber que, paradoxalmente, novas alteridades políticas, apresentando novas
uma das demandas que parece ter sido mais problematizações de questões, agregando
legitimada é aquela por participação, que tem conteúdos, revertendo outros, reinterpretando
centralizado a atuação de muitos atores juvenis. o sentido da inclusão social, e lançando novas
Têm sido abertos espaços de participação para formulações sobre as exigências de eqüidade.
jovens em uma série de instâncias gerais (ca- Mas essa potencialidade se anuncia
deiras ou seções em entidades e estruturas da apenas como possibilidade, ainda sob a for-
sociedade civil, como centrais sindicais, ONGs, ma de interrogação, uma vez que pudemos
fóruns de movimentos sociais etc., assim como observar que apenas parte de suas questões
metodologias específicas para impulsionar a acaba sendo, efetivamente, incorporada à pauta
sua participação nestas instâncias). Têm sido política mais geral e que existem ainda grandes
criados órgãos de gestão para dar respostas entraves para o processamento de um diálogo
de políticas públicas específicas para jovens mais consistente em torno delas.
(secretarias, assessorias, coordenadorias, nos Nesse sentido, é possível dizer que a
âmbitos municipal, estadual e federal), assim constituição de um campo de políticas públicas

14 Democracia Viva Nº 38
Jovens, direitos e superação da desigualdade

Samuel Tosta
* Helena Wendel
Abramo
Socióloga, coordenadora
da pesquisa no Brasil

para a juventude (com a instituição de ações, o “reconhecimento dos direitos como medida
programas, organismos gestores e canais de de negociação e deliberação das políticas que
interlocução públicos especificamente cons- afetam a vida de todos”.3 Possibilidade que não
truídos para a formulação e execução destas está assegurada. Depende de que, nos espaços
ações) pode representar um fator positivo neste em que se debatem e definem as políticas,
processo: menos porque se esteja respondendo possa-se configurar a noção dos direitos que
de fato às demandas na forma de políticas que devem ser garantidos por meio de políticas
garantam o cumprimento dos direitos (dimen- públicas universais; que o debate sobre as
são em que ainda há muito por avançar), mas demandas se aprofunde; que os atores juvenis
porque ajudam a criar as possibilidades de que participam desses espaços não esqueçam
nomeação pública das necessidades e a instituir os reclamos das mobilizações que os instituí-
a cobrança dos direitos. ram como sujeitos políticos; que os gestores e
Este debate público, por mais problemas outros atores da sociedade civil se abram para
que enfrente, representa a possibilidade de ul- uma interlocução que não desqualifique suas
trapassar o modo pelo qual o tema se constituiu demandas de antemão.
no Brasil (a perspectiva do atendimento pontual 3 Telles, Vera. 1999.
Sociedade civil e espaços
e emergencial no atendimento das carências públicos: os caminhos
vinculadas ao risco, que caracterizou a ação (incertos) da cidadania
no Brasil atual. In Direitos
das entidades da sociedade civil, na urgência sociais: afinal do que se
trata? Belo Horizonte, Editora
de produzir respostas possíveis) para instalar UFMG, p.163.

MARÇO 2008 15
ENTRE Entrevista

VISTA
Revolta Feminina, essas duas palavras podem traduzir
um pouco do enigma por trás da jovem Janaína Oliveira:
feminista, rapper, cineasta, realizou a proeza de produzir
um documentário com apenas R$ 5 mil para dar
visibilidade à atuação das mulheres rappers. Rap de saia
teve repercussão nacional e internacional. Universitária
pelo ProUni (Programa Universidade para Todos),
é a favor das cotas, critica o ensino privado e
seu próprio curso: “Tenho questionamentos
muito fortes com relação à publicidade, ela está
massacrando o nosso povo”.
Nascida e criada na Baixada Fluminense – região
pobre e violenta do estado do Rio de Janeiro –,
Re.Fem utiliza a língua afiada e o apurado senso
crítico para levar ao seu público, jovens
e mulheres negras de periferias, informações
qualificadas sobre direitos, deveres, política,
família, saúde, sexo, drogas.
Uma das organizadoras do Enjune (Encontro
Nacional da Juventude Negra) e, agora,
do Fórum Nacional da Juventude Negra,
avisa que pretendem lançar este ano uma
campanha contra o genocídio da
população negra. “Se a sociedade não
nos protege, as políticas públicas não
nos protegem, vamos nos proteger uns
aos outros porque estamos morrendo em
massa. A continuar assim, daqui a alguns
anos, quais serão os adultos, homens
negros, que teremos? Essa galera está
sumindo do mapa, isso é grave e é um
problema nosso”, enfatiza.

16 Democracia Viva Nº 38
Democracia Viva (DV) – Quem é casa, nunca me mudei. Os filhos vão casando
Janaína Oliveira, quando e onde e fazendo casa no quintal da minha avó, onde
você nasceu? vivemos todos juntos. Para fazer festa, não
Re.Fem – Não falo a data do meu nasci- precisa convidar ninguém, só a família basta.
mento há muito tempo. Parei de contar aos 15 É um quintal grande, tem de tudo, se quiser
anos de idade. Minha família toda é de Duque brigar, é lá mesmo; se quiser rir, também. Isso
de Caxias, do 3º distrito, Imbariê e Parada An- para mim foi muito importante.
gélica, eu também nasci ali. Sou a mais velha DV – Estudou perto de casa?
de quatro irmãos. Meus pais são separados. Re.Fem – A escola que estudei a vida toda
Meu pai é ex-metalúrgico desempregado, como fica na esquina da minha casa. Sempre fui
a maioria dos metalúrgicos no Rio de Janeiro. inteligente, nunca precisei estudar para fazer
Minha família é muito matriarcal, as mulheres prova, eu pegava a explicação de primeira e,
são a espinha dorsal da família, educam os depois, só ficava fazendo bagunça, atrapalha-
filhos, trabalham, comandam tudo. va toda a turma. Até hoje, as professoras se
Algo comum na Baixada, mas não só lá, e lembram de mim.
também entre as famílias negras, é que os ho- A rua onde moro é a mais movimentada do
mens saem de casa e deixam as mulheres com bairro, tem muita criança brincando de jogos
os filhos. Na minha família, não foi diferente. de rua. Minha vida foi assim, muita pipa, bola
Minha mãe me criou para ser totalmente inde- de gude. Fui acostumada na rua porque minha
pendente. Se um dia casar, tiver um marido e mãe ia trabalhar e, como irmã mais velha, tinha
for feliz, ótimo. Senão, vou conseguir ter meus que cuidar dos meus irmãos. Ela deixava tudo
filhos numa boa. Minha mãe construiu a casa pronto: comida, mamadeira para os mais novos.
onde a gente mora, também participei desse Era só esquentar e sair para a rua. Essa criação
processo de construção, ela ensinou as filhas de rua me ajudou, nunca tive medo de homem.
a fazerem de tudo. Brigava por causa de pipa, de bola. Até hoje,
DV – Ela trabalha fora? meus melhores amigos são homens.
Re.Fem – Minha mãe é faxineira. Desde os DV – Essa vivência foi importante
15 anos de idade, trabalha em casa de família. para seu ingresso no hip hop?
Minhas duas avós e tias também. Da minha Re.Fem – Sim, na cultura hip hop a maioria
família, tanto materna como paterna, sou a é homem e as mulheres têm dificuldade de
primeira pessoa a ir para uma universidade, entrar. As brincadeiras dos meninos são sempre
consegui uma bolsa pelo ProUni1 e estou estu- na rua. E as meninas, dentro de casa, protegi-
dando Publicidade e Propaganda. Depois, pre- das, ajudando a mãe. Quando essa menina se
tendo fazer Jornalismo e, quando estiver mais depara com uma cultura de rua, uma cultura
velha, Filosofia, porque isso não dá dinheiro, marginal, e não é fácil lidar com os caras, muitas
né? Preciso sustentar minha família. desistem, têm dificuldades porque não tiveram
DV – Por que você não gosta essa vivência.
de revelar a idade? DV – Quando começou a ter
Re.Fem – Hip hop é uma cultura muito contato com a cultura hip hop?
juvenil, apesar de já estarmos com uma geração Chegou a freqüentar baile funk?
dos 30. Temos muitas referências nessa faixa. Re.Fem – Meu contato com a cultura hip
Mas tem também uma galera mais velha, dos hop começou em 1998, foi bem tarde, já era
40 ou mais, do Charm, que veio do movimento adolescente. Fui funkeira, sim. Todos os rappers
Black Power nos anos 70. Parei de falar a idade no Rio de Janeiro passaram pelo baile funk. O
porque antes, quando falava, as pessoas diziam: funk dos anos 90 era maravilhoso, era como o
‘Parece que você tem 17 anos’, ‘Ah, você não hip hop hoje, as letras eram conscientizadas.
aparenta a idade que tem’. Aí, resolvi: já que “Eu só quero é ser feliz” é uma letra de protesto,
ninguém acredita, vou ficar nos 15 anos, preto é um hip hop com jeito do Rio de Janeiro, aqui
não aparenta idade, é ótimo, a gente fica velha as pessoas são mais livres e isso se reflete na
e ninguém percebe. música funk.
DV – Mora com sua mãe? Estava com 14 anos quando minha mãe me
Re.Fem – Moro, queria muito morar so- deixou ir ao baile funk pela primeira vez, fui
zinha, ter minha casa, mas a nossa estrutura com um primo. Era funkeira mesmo, de botar 1 Criado pelo governo
atual não me permite. Tenho planos de, no final shortinho curto, puxava o bonde, freqüentava brasileiro em 2005, o ProUni
concede bolsas de estudos
de 2008, ter a minha própria casa, apesar de todos os bailes. Tinha que estar em casa até em universidades, integrais
ou parciais, a estudantes de
adorar minha mãe. Morei a vida toda nessa meia-noite, se chegasse um minuto atrasada, baixa renda.

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 17
entrevista

ficava um mês sem sair. O funk para mim é mecei a freqüentar os bailes. Dizia que sexo
uma cultura muito importante que não deveria é bom, mas que se ficasse grávida ou doente,
se perder. Só lamento que o conteúdo do funk a responsabilidade seria minha, que ela não
hoje esteja perdido. poderia ajudar. Da mesma forma, falou sobre
DV – Perdido em qual sentido? as drogas, os prazeres e as seqüelas que tra-
Re.Fem – Não se trata dessa hipocrisia de zem. Imagina se eu ia querer responsabilidade
dizer que funk só fala sobre sexo. Sexo é bom, àquela altura da vida? Não bebo, não fumo,
a galera tem que fazer sexo mesmo. Só que nunca usei drogas, nunca tive vontade nem
nenhuma música funk fala de prevenção. Ficar de experimentar maconha. Quando fiz sexo já
grávida é uma benção, quem dera que todo tinha terminado o segundo grau, estava numa
sexo que se fizesse sem camisinha resultasse idade em que poderia resolver meus problemas,
só em gravidez. O negócio é o suicídio, e a estava preparada.
galera está se suicidando em massa fazendo DV – Sua mãe falou sobre uso
sexo dessa maneira. Além de agredir o corpo da camisinha?
de muitas meninas novas. Re.Fem – Quando começamos a conversar,
DV – Acha que está havendo sexo lá pelos meus 13 anos, anos 90, ninguém tinha
precoce? muita informação sobre uso da camisinha e de
Re.Fem – Sim, as pessoas são induzidas. como se contraía o vírus da Aids. Até hoje, a
Uma menina de 13 anos falar para as amigas Aids é um tabu na Baixada. Cheguei a transar
que ainda é virgem é um escândalo, não é sem camisinha, isso é muito perigoso. Antes,
socialmente aceito. Para o menino então, é tomava pílula. A pressão dos caras é grande,
pior. Só que isso se torna uma agressão ao a maioria não quer usar camisinha. Por isso,
corpo. Meu primeiro beijo foi aos 15 anos, e resolvi parar de tomar pílula, assim não teria
foi forçado. Todas as minhas amigas já tinham como fazer sem camisinha. Converso muito
beijado e eu falava que beijava muito. Um dia, com as meninas do projeto a esse respeito. A
as meninas falaram: ‘você não diz que pega maioria acha que porque é virgem, não tem
todo mundo? Agora vai ter que ficar’. Tive que como pegar nada, mas esquece que o cara
ficar com o cara, foi uma experiência horrível, não é mais virgem, já teve outras experiências.
não tinha nada a ver com o beijo da TV. Minha DV – Pretende um dia ser mãe?
experiência sexual só aconteceu depois de 20 Re. Fem – Sim, quero ter seis filhos, parir
anos de idade. Mas o prazer sexual mesmo só três e adotar três. Quero chegar no orfanato e
fui sentir mais recentemente. O que acontece adotar os mais velhos, dar oportunidade, dar o
com essas meninas que começam a transar que a minha mãe pôde me dar. Minha mãe não
com 10, 11 anos? Elas não sentem prazer. Já me deu tênis ou roupas de marca, danoninho,
conversei com jovens que tiveram iniciação sucrilhos. Ela me deu oportunidade de estudar.
sexual cedo e elas disseram que não sentiam Sempre dizia: ‘Você só vai trabalhar depois que
prazer sexual de verdade no início. Isso é uma terminar o segundo grau. A gente pode até
agressão ao corpo dessas meninas, como falar passar fome, mas você não vai parar de estudar.
isso para elas? Depois, disso, pode ser o que quiser’. Quero dar
DV – Participa de algum projeto essa mesma oportunidade para meus filhos.
nesse sentido? DV – Quando surgiu seu gosto
Re.Fem – Atualmente, participo do Fórum pela música?
de Jovens Negras do Estado do Rio de Janeiro e Re.Fem – Minha família é muito musical.
falamos muito sobre sexualidade. A idéia não é Minha mãe era passista e meu pai era ritmista
impedir as meninas de fazer sexo, por isso digo de escola de samba. A família inteira é manguei-
a elas: ‘sexo é bom, se seu corpo está pedindo, rense. Lembro que, ainda pequena, já dançava
se for o seu momento, tudo bem, mas ainda gafieira. Jovelina Pérola Negra é algo de que me
não será aquela parada. Você só vai descobrir lembro muito, de ter sempre os vinis tocando,
a parada mesmo depois, quando seu corpo samba, churrasco, aquela coisa de família. Tem
amadurecer’. também o lado das músicas religiosas, de igreja
DV – No seu caso, o que ajudou: e do candomblé. Depois, veio o funk e pensei
orientação familiar, informação? em ser cantora. Tinha uns concursos, mas em
Re.Fem – Demorei para começar a namorar geral eram de funk melody e não gosto de ficar
e para fazer sexo por conta da educação que cantando música de amor, não queria isso.
recebi. Minha mãe sempre conversava comigo Em toda a minha trajetória, sempre fui
depois que fiquei menstruada e quando co- rebelde, crítica, questionadora, brigava. No

18 Democracia Viva Nº 38
Re.Fem

segundo grau, tive aula de Filosofia, foram só


seis meses, mas a partir daí, comecei a organizar
melhor meus pensamentos. Percebi que não
precisava ser revoltada e passei a ver maneiras
de questionar sem agressão. Queria falar sobre
o que estava acontecendo e não achava uma
forma. Aí, resolvi cantar rock. Mas como montar
uma banda com toda aquela infra-estrutura?
Eu não conhecia ninguém.
DV – Mas você ouvia rock?
Re.Fem – Sim, adorava. Ouvia Raimundos,
Planet Hemp, gostava de punk rock, sempre
nacional, não gosto de música internacional.
Comecei a ouvir os Racionais MCs, era uma
música pesada para quem estava acostumada
com o batidão do funk e com o ritmo dançante
do rock. Mas era legal, e pensei: ‘É isso que
eu quero’. Mas onde tem hip hop? Tenho um
primo muito louco, com uma boa situação
financeira, ele foi o primeiro da família a ter
computador com internet em casa. Por isso,
sempre teve bom acesso às informações. Ele
me levou primeiro para o baile charme em
Madureira, depois começou a curtir hip hop, e
eu fui acompanhando.
DV – E você se identificou
de imediato?
Re.Fem – Eu achava chato porque não tinha
mulheres, era um bando de homens com cara
feia, ninguém ria. As raras mulheres se vestiam
igual homem. Era um clima pesado Mas a
música me atraiu e comecei a pensar que dava Feminina. Revolta veio dessa necessidade de
para fazer aquilo de outra forma. precisar falar para as pessoas o que está acon-
DV – Foi a partir daí que começou a tecendo, o que me incomoda, que tinha que
fazer rap? causar revolta no povo. E Feminina porque,
Re.Fem – Conheci os grupos aos poucos. quando entrei, as mulheres pareciam meninos.
Era a única menina que andava no meio dos Por isso, fiz questão de cantar de saia, brinco,
caras. Em fevereiro de 2000, eles fizeram um maquiagem, igual a uma menina, feminina mes-
evento perto de casa e resolvi cantar porque mo. E fazer os caras me respeitarem por isso.
não havia mulher cantando. O único show com A princípio, era para ser um grupo de meni-
mulheres que tinha visto foi o da Anfetaminas. nas, eu, minha irmã, minha prima e uma amiga
Achei legal, mas não era um hip hop como o nossa, estilo charm. Só que, uma semana antes
do Racionais MCs e não atingia as meninas das do show, elas mudaram de idéia, ficaram com
periferias. Depois, conheci o Negativas, gostei vergonha de cantar. Eu subi no palco sozinha,
muito, só que ainda não tinha visto mulher cantei essa música e um amigo me deu outra
cantando na Baixada, e olha que a Baixada é e fiz uma adaptação. Foi muito legal, geral
grande. Foi aí que resolvi. Sempre achei que a gostou. De lá para cá, passei a cantar em
mulher tem que estar presente em tudo, ser muitos lugares.
protagonista. Não admitia que não houvesse DV – Você escreve só as letras ou
mulher na cultura hip hop da Baixada. Assim, faz também os arranjos musicais?
fiz uma música que falava de política, foi a Re.Fem – Eu crio as letras e ajudo a criar a
primeira que fiz. base musical, por enquanto é tudo eletrônico,
DV – Apresentou-se como Re.Fem? com DJ, mas pretendo ainda cantar com per-
Pode falar sobre a escolha cussão, eu adoro. Minha interferência vai no
desse nome? sentido de dizer como eu quero essa base, é
Re.Fem – Sim, Re.Fem significa Revolta tudo muito variado, às vezes utilizo um pouco

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 19
entrevista

Hip Hop 2000 qual for, temos que ter um sagrado. Porque tem
algumas coisas que não têm respostas, e é legal
Este ano é ano de eleição que seja assim, mas aí buscamos conforto na
E vai ter um político apertando a sua mão religião, no que você acredita acima de tudo.
Tenho o maior prazer em estar na igreja. O
Te dizendo que isso tudo vai mudar
Hip Que vai ajudar a Baixada a se levantar
dirigente sabe que canto hip hop, que se tiver
que ir em um terreiro falar com a galera, irei.
Mas não acredite, meu amigo Não pratico religião de matriz afro, mas estou
Isso é conversa com eles, pois há um preconceito, um ódio em
torno das religiões de matriz africana, e eu as
Esse cara tá querendo lhe pregar uma peça defendo. Essas religiões são superimportantes
Pois se ganhar as eleições, ele vai sumir para contar a nossa história. Por isso, se tiver
E tudo o que ele disse não vai cumprir. que acampar em um terreiro para evitar uma
desocupação, farei isso.
DV – Já teve alguma experiência
desse tipo ou participou de
algum movimento contra
remoção de favelas?
de samba, mas o que predomina é techno. Nas Re.Fem – Diretamente não, participei de
próximas produções, quero incluir bases mais movimentos de ocupação de prédios para
brasileiras, regionalizar, não só samba, mas moradia na Central. A idéia de remoção de
outros ritmos. favelas é muito complicada. A galera nasceu e
DV – Tem intenção de lançar um foi criada naquele bairro, muitos na zona sul,
CD? foi acostumada assim, e agora vai ser enviada
Re.Fem – Já gravei várias coletâneas, estão para onde? Para Sepetiba, Seropédica, para
disponíveis na internet, mas não tenho vontade lugares sem a menor estrutura? É desumano
de gravar um CD só meu, solo. O que quero e contra os direitos daquelas pessoas, elas já
com o hip hop é que as pessoas escutem as teriam o direito pelo tempo de uso da terra. Se
minhas músicas, que elas tenham acesso livre, a grande preocupação é que as favelas estão
não quero comercializar essa informação, essa contribuindo para o desmatamento, que o
nunca foi a minha intenção. Quero que as mi- governo construa prédios populares, mas na
nhas músicas cheguem até as pessoas, quem mesma área. É importante discutirmos isso, e
quiser, pode baixar na internet e gravar um mais ainda que as pessoas que moram nas fa-
CD copiando do computador, não quero viver velas falem sobre isso, discutam com o governo.
disso, quero viver de cinema. Hip hop para mim DV – Seu rap a favor do aborto não
é mais ativismo. criou problemas na igreja?
DV – Você comentou que as Re.Fem – Na minha igreja, ninguém vigia
músicas religiosas também foram ninguém, cada um tem seu livre-arbítrio. Não
um estímulo para gostar de adianta julgar ninguém, quem nos julga é Deus.
música. Sua família é religiosa? Se alguém quiser fazer um aborto, ninguém tem
Re.Fem – Atualmente, na minha família, direito de mandar no seu corpo, é o que falo na
todos têm uma religião só, evangélica. Mas música, é preciso ter informação. Graças a Deus,
antes, era misturado. Tinha os sem religião, nunca fiquei grávida, nunca precisei decidir
minha bisa era evangélica e, da família do meu se faria ou não um aborto, mas se precisasse
pai, todos eram de religião de matriz afro. Tive fazer, não teria problema com minha religião,
muito contato com esses meios. Quando estava seria uma decisão minha, com Deus e com meu
com 7 anos, minha avó entrou para a igreja corpo. O legal é respeitarmos nosso corpo, que
evangélica e passou a me levar. Achava muito é um templo, o que fizermos de errado, paga-
legal, cantava no coro e fui ficando. Até hoje, remos. Quando você fuma, bebe, está matando
estou lá. Minha igreja chama-se Remanescentes aquele templo. Mas nada precisa ser proibido,
de Israel, tem poucas no Brasil, é uma mistura basta a reflexão pessoal de cada um.
da religião judaica com a protestante. Toda a DV – Nas suas músicas, não
minha família materna pertence a essa religião, se percebe amargura, violência,
a família paterna pertence à Assembléia de sofrimento, como é freqüente em
Deus. músicas desse gênero. Por quê?
Ter uma religião é muito importante, seja Re.Fem – Qual família, qual lugar não é

20 Democracia Viva Nº 38
Re.Fem

um inferno? Onde moro, até hoje não é um de reconstrução o tempo inteiro.


lugar fácil. Caxias já foi conhecida como ‘terra DV – Vários rappers se apresentam
de matador’. Até há pouco tempo, dizer que como porta-vozes de suas
era morador de Caxias era para não arrumar comunidades. É o seu caso?
emprego em lugar nenhum. Re.Fem – Não, periferia é periferia em
DV – Você e sua família passaram qualquer lugar. Quero falar para todo mundo,
por alguma experiência violenta? não quero me guetizar, se faço isso, uma pessoa
Re.Fem – Tinha mais violência familiar, de outra comunidade, comandada pela milícia
doméstica. Isso é muito forte porque todos ou por uma facção diferente, talvez não possa
os homens eram alcoólatras e agrediam as tocar as minhas músicas. Sabemos que isso
mulheres, não fisicamente, mas muito psi- pode acontecer, prefiro fazer algo universal.
cologicamente. Meu pai não chegou a bater DV – O rap não seria uma forma
na minha mãe. Mas sempre teve a agressão de quebrar essas barreiras?
psicológica, isso foi muito forte. Por ser mais Re.Fem – Com certeza, acredito nisso, tanto
velha, vivenciei situações desse tipo e tinha que que vou a todo lugar. Mas algumas bandeiras eu
fazer a mediação para não ter briga. não quero carregar, não acho que deva carregar
Nossa vida não foi fácil. Também já passei a bandeira de Parada Angélica.
fome. Lembro de, ainda pequena, chegar na DV – E a bandeira dos(as) jovens,
casa de vizinho com bilhete pedindo comida. você quer carregar?
Minha escola era fodida, quase não tinha pro- Re.Fem – Meu foco está muito voltado para
fessor. Enfim, a gente só tinha dinheiro, muito a mulher negra, para a juventude empobrecida
mal, para comer. Não tivemos acesso a muitas e para questões raciais. Muitas vezes, sou con-
coisas e na ida para a escola, muitas vezes, vidada a fazer parte de organizações nacionais
tive que atravessar corpos furados de balas. de hip hop e não aceito. Prefiro estar disponível
Mas minha mãe nos ensinou que todo mundo para qualquer uma das organizações que pre-
passa por coisas ruins, apenas as situações são cisar. Tenho uma relação muito próxima com
diferentes. Ninguém no mundo tem uma vida as ONGs de mulheres negras, mas são vínculos
100%. Mas se tornarmos isso maior que nós, livres. Minha atuação vai mais no sentido da
não andamos. afirmação dessa mulher e de como ela está se
Não tenho porque jogar isso na cara da virando em meio a esta sociedade caótica e
galera que já tem essa vivência. Quero mostrar como podemos conviver melhor com tudo isso,
para as meninas e jovens das comunidades que cobrando ações e políticas.
há como sair, que há alternativa, que tem como DV – E o que deve ser cobrado
fazer sua vida ficar melhor, tem uma maneira e de quem?
de revolucionar o seu meio, então, coloco nas Re.Fem – Na música que canto sobre reli-
músicas. O mundo somos nós que fazemos. gião e informação, cobro o direito ao próprio
DV – Enfocar a questão da violência corpo da mulher, que ela tenha direito de deci-
na música não seria uma forma dir. É possível fazer cobranças pontuais, cobrar
de acabar com a naturalização nossos direitos de forma mais geral, o direito à
da violência nas favelas, pressionar cidade, o direito ao nosso corpo, o direito de
a elite e o governo? ir e vir com segurança, direitos que sabemos
Re.Fem – A elite e o governo não escu- que estão violados. E, geralmente, quem sofre
tam rap. Não quero levar isso para o público, mais com essas violações são a juventude e a
quero levar outro tipo de mensagem, passar população negra que está nas periferias.
uma visão que também não é a da festinha, Quanto a quem cobrar, em alguns casos,
vamos rebolar a bunda e mostrar os peitos. E temos que cobrar de nós mesmos, alguns pro-
também não quero mostrar só sangue, sangue, blemas são conseqüências das nossas próprias
sangue. Quero mostrar que a comunidade ações. Temos que fazer uma reflexão e cobrar
não apenas sofre. Tem sofrimento sim, todo de quem deve ser cobrado, seja do poder local,
mundo sofre, mas não é só isso. A gente não seja da comunidade, seja de quem for. Nas
pode desmerecer a alegria do nosso povo. Não minhas músicas, estimulo o público a olhar
estou dizendo que é para vender aquela idéia para si mesmo, a se repensar, para depois olhar
de pão e circo, como a prefeitura do Rio faz, para fora.
acontece um problema, já bota um show na DV – De onde vem a sua
comunidade, não é isso. Sofrimento é o que a formação política?
gente tem, vamos buscar outra coisa, trata-se Re.Fem – Nunca fui muito incentivada
a ler, estou fazendo isso mais recentemente

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 21
entrevista

para poder clarear mais a família. Agora, brigo


mais com a minha família em relação a isso.
Explico a eles que, independente do tom de
pele, se minha mãe e meu pai são negros, sou
negra também. Se minha avó é negra, sou ne-
gra também. Na família do meu pai, todos são
negros, descendentes diretos de escravizados. E
na família da minha mãe, meu avô é angolano
e minha avó é branca. Sou muito mais negra
do que branca e passei a ter orgulho disso.
DV – Você é uma das organizadoras
do Encontro Nacional da Juventude
Negra, Enjune, certo?
Re.Fem – Sim, o ponto de partida dessa
iniciativa foi a Marcha Zumbi+10, realizada
em Brasília, em novembro de 2005. Os jovens
que saíram dessa marcha resolveram organizar
o Enjune porque, muitas vezes, são realizadas
mobilizações do movimento negro e a juventu-
de participa de forma dispersa, a gente não se
articula. Temos uma Secretaria da Juventude no
para buscar outros conhecimentos. Mas o governo, mas a juventude negra não está sendo
hip hop me abriu uma série de caminhos. O contemplada por essas ações. Ainda estamos
acesso à informação vem também do fato de morrendo, estamos fora das escolas, desem-
que, em minha família, sempre conversamos. pregados, não temos bom acesso à saúde. Por
Por ser faxineira, minha mãe teve vários tipos isso, resolvemos organizar esse encontro, para
diferentes de patrões, juiz, diretor de cinema, conversar com jovens de todo o Brasil.
roteirista. Ela conversava com essas pessoas e DV – E qual foi o resultado
depois com a gente. da iniciativa?
Sempre fui uma pessoa mais de audiovisual, Re.Fem – Primeiro, foram feitos encontros
gostava de assistir a reportagens e a todos os estaduais e regionais, onde tivemos oportuni-
showmícios que aconteciam na comunidade. dade de discutir sobre tudo: saúde, educação,
Justamente na hora do discurso, quando mui- cultura, violência. Em cada estado, foi elabo-
tos saíam fora, eu ficava lá, prestando atenção rado um documento, apresentado em julho de
no que os políticos falavam. A cultura negra 2007, em Salvador, em um encontro nacional
é mais audiovisual, é muito oral. Enquanto com cerca de 700 jovens. Assim, decidimos
trançava meu cabelo, minha avó contava as montar uma campanha,que esperamos lançar
histórias da família, e eu questionava muito. este ano, contra o genocídio da população
Na escola, questionava o que estava nos livros, negra. E, até maio, vamos lançar o Fórum
principalmente os de História, discutia com os Nacional da Juventude Negra, que vai discutir
professores. políticas públicas para essa juventude. Mas
DV – Considera-se uma artista também quer fortalecer as ações de empode-
ou uma ativista? ramento da juventude negra que são realizadas
Re.Fem – Hip hop é o ativismo artístico, as dentro das suas comunidades. Se a sociedade
duas partes não se separam. Procuro sempre não nos protege, as políticas públicas não nos
incluir isso no meu dia-a-dia. O hip hop ajudou protegem, vamos nos proteger uns aos outros
muito na minha identificação como negra e porque estamos morrendo em massa. A con-
como feminista, de buscar conhecimento para tinuar assim, daqui a alguns anos, quais serão
levar às pessoas, trabalhar com outros jovens. os adultos, homens negros, que teremos? Essa
Passei a estudar e a ler mais. O hip hop me deu galera está sumindo do mapa, isso é grave e é
uma profissão, foi por causa disso que consegui um problema nosso.
meu primeiro emprego. DV – O que pensa sobre ação
Ter a pele mais clara numa família de ne- afirmativa?
gros, a gente se torna branca. Até hoje, meu Re.Fem – Muitas pessoas falam que não é
pai me chama de branca. E tinha aquela coisa certo, não acho que deveríamos ter chegado
de “limpar” a família, de casar com um branco a isso, mas não tem jeito. São 120 anos de

22 Democracia Viva Nº 38
Re.Fem

esquecimento. Para os estrangeiros que vinham aluno tem de pesquisa, de fazer uma boa mono-
para cá, o governo dava terra, emprego, e para grafia, não é boa. Percebo uma atitude largada,
a negrada que já estava aqui, com família, cul- um desinteresse dos alunos, eles são alienados,
tura, não dava nada. Minha avó tem memórias não têm muita visão de mercado, não percebem
de tios que trabalhavam em uma fazenda como a importância do que estão aprendendo. Quem
escravos, a mãe dela nasceu oito dias depois paga a própria faculdade, tem compromisso,
da Lei do Ventre Livre. mas quem pode contar com pai, avô, família
As ações afirmativas são um erro porque para pagar, tem outra postura. Os professores
vieram muito tarde, a sociedade já estava es- atendem bem se o aluno buscar, correr atrás,
truturada, o poder já estava nas mãos de uma senão... eu estou aprendendo porque quero
minoria étnica. Mas infelizmente, já que isso muito aprender.
não foi feito na época da Abolição, é preciso DV – E quando o governo paga,
que seja feito em algum momento, e parabéns são mais responsáveis?
para o governo que o fez. Temos que abraçar Re.Fem – É o meu caso. Tenho mais res-
essa iniciativa. Se o poder não foi dividido ponsabilidade porque sempre quis fazer facul-
naquela época, terá que ser dividido agora, se dade, sempre gostei de estudar e essa é uma
não for de boa vontade, terá que ser por lei. oportunidade única. Tiro as melhores notas da
Não estamos pedindo nenhum favor, é uma sala, minha menor nota é 8. Não tenho muito
questão de direito. contato com outros alunos do ProUni da facul-
DV – O sistema de cotas dade onde estudo, mas no geral, percebo que
nas universidades públicas é uma galera muito esforçada.
é uma solução? DV – Como conseguiu seu primeiro
Re.Fem – Sim, temos direito de estudar, emprego?
ainda há um apartheid educacional. Na escola Re.Fem – Foi quando comecei a cantar. Fui
pública, eu não tive aula de Química, Física, convidada por um amigo a participar de um
Biologia e aprendi pouco de História. O que sei seminário sobre hip hop para conhecer a galera
foi por esforço pessoal e da minha mãe, que
trazia livros dos filhos da patroa dela para que
eu estudasse com um material melhor. Até hoje,
meus
Pelos
as escolas públicas funcionam de um jeito para
não irmos a lugar nenhum.
É também muito, muito cruel a universidade
pública ser para quem pagou a vida inteira para
ter informação, e nós, que viemos da escola Pelos meus filhos
pública, não temos acesso a uma parada que,
por direito, é nossa. Pode até não ser as cotas, Pelos meus filhos, faço guerra,
mas que exista uma lei para que todas as pesso- desacato autoridades
as oriundas de escolas públicas tenham acesso
Amor de mãe é a lei de verdade
direto à faculdade. E quem tem dinheiro, pague
para estudar. Sou bolsista do ProUni e tive que Pelos meus filhos, dizimo cidades,
estudar muito para conseguir uma vaga em uma invado prédios, desacato autoridades,
universidade privada. faço passeata no meio da cidade
Deveria haver também cotas nas empresas
Sou capaz de qualquer tipo de maldade
porque tem a galera que conseguiu se formar,
mas e daí ter o diploma na mão se o mercado Ando quilômetros e milhas, subo
de trabalho é tão fechado? Tem que meter o montanhas e trilhas, atravesso continentes
pé na porta, sim; temos que começar a refletir Faço guerra com seus descendentes
e apoiar porque, infelizmente, quem veio antes
Arrancaria todos os meus dentes
não fez isso. Vai doer? Sim, mas temos que
fazer essa divisão de poderes. No meu cabelo, não passaria pente
DV – O que você mudaria no Pelos meus filhos, nado mares e rios,
ProUni? arrebento correntes e trilhos
Re.Fem – O ProUni iria melhorar se fun-
Arrancaria minha pele
cionasse para entrarmos nas universidades
públicas. Porque nas universidade privadas, para que eles não sintam frio
a qualidade de ensino, a oportunidade que o Pelos meus filhos.

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 23
entrevista

do Rio. Até então, só lidava com a galera da -estrutura, ilha de edição, equipamento, uma
Baixada. Eles estavam formando a ONG CEACH2 equipe excelente. Mas queria saber se realmente
(Centro de Estudos e Apoio à Cultura Hip Hop) tinha aprendido e conseguiria criar sem ter toda
e , no final, virei uma das coordenadoras, era essa estrutura. E consegui. Escrevi um projeto,
a única mulher na coordenação. As reuniões fiz o roteiro do filme e enviei para SAAP/Fase,
aconteciam na Lapa, no Empório 100. Esse solicitando uma verba só para produção, con-
mesmo lugar era a sede da ACRAA (Associação segui R$ 5 mil. Convidei a galera que estava
de Comerciantes do Rio Antigo e Amigos), que fazendo o curso comigo para participar. Foi
organizava a Feira do Rio Antigo, na Rua do uma experiência incrível, aprendemos juntos.
Lavradio. Eles estavam precisando de uma se- DV – Qual seu objetivo com
cretária e eu tenho essa formação, ser secretária o documentário?
era um sonho de criança. Trabalhei lá durante 1 Re.Fem – Fiz o filme para dar visibilidade
ano, foi meu primeiro emprego. Depois, entrei às mulheres da cultura hip hop. Entrevistamos
para a Cufa, quando ainda estava no início. todas as rappers do estado do Rio de Janeiro,
DV – Você não mora em favela, mas sei que existem várias em outros estados.
mas em uma periferia. Assimila O mais difícil foi achar essas meninas. Quando
bem o nome Cufa (Central Única de comecei a cantar, não tinha essas referências. A
Favelas)? partir da pesquisa realizada no livro Acorda, hip
Re.Fem – Vejo favela como todas as peri- hop, consegui os primeiros contatos. Algumas
ferias, o nome favela é periférico. A galera da eu só conheci no dia da entrevista mesmo. Entre
Baixada, que está muito longe do centro do grupos e artistas-solo, foram 20 personagens,
Rio, mora muito mais na favela do que quem fora as mães. Fiz questão de incluir as mães no
está nas favelas da zona sul. filme porque elas têm um papel importante na
A experiência com a Cufa no início foi muito nossa vida.
boa, entrei em 2002 e pude ter contato com DV – O que há em comum nas
um pessoal que se assumia como negro mesmo. mães que apóiam as filhas a serem
Tive oportunidade de trabalhar em programa rappers? E o que leva a família a
de rádio. E quando apresentava o programa na não apoiar?
rádio Viva Rio, participei do curso de criação Re.Fem – Entre as mães que apóiam, per-
de documentário para rádio em que os profes- cebi que todas são amigas das filhas, têm um
sores eram figuras como João Moreira Salles e diálogo bom e participam da vida delas, são
Eduardo Coutinho. Foi assim que me apaixonei ativas. As mães que são contra têm medo que
por cinema. Empolgada, fiz um documentário as filhas não tenham como se sustentar com
para rádio que falava sobre o meu quintal. esse trabalho, que parem de estudar, que não
Nem tinha roteiro, peguei um gravador e fui tenham uma profissão certa. No meu caso,
contando histórias que acontecem lá, gravei os consegui provar para minha mãe que hip hop
sons do galinheiro, do cachorro, da minha avó poderia me abrir caminhos, e abriu.
capinando, as crianças, brigas. DV –Imaginava que o filme teria
DV – E depois disso, foi tanta repercussão? Qual o próximo
estudar cinema? passo?
Re.Fem – Sim, logo depois, veio o curso de Re.Fem – O Rap de saia foi uma experiência
audiovisual e cinema, com os professores Mi- muito forte, só recebi crítica positiva e uma
guel Vassi, ex-coordenador do Nós do Cinema, grande demanda de trabalho também. O lan-
e depois com Rodrigo Savastano e Bernardo çamento foi em julho de 2006. Mas em 2004,
Oliveira. Participei da primeira turma, antes da antes de darmos o trabalho por terminado, os
Cufa começar a crescer. Quando a organização copiões do filme começaram a ser exibidos, a
começou a crescer, aconteciam coisas que me pedido das pessoas. Foi exibido no Festival do
levaram a questionar, e quando me deparo Rio, em um evento de aniversário da Fundação
com questionamentos sem respostas, é prefe- Palmares, em festivais na Suíça e na Alemanha,
rível sair. Assim, saí da Cufa em 2003. E com a não daria para negar esses pedidos.
ajuda dos professores, que também saíram, e Depois disso, fiz alguns videoclipes. Tem um
de alguns alunos, comecei a correr atrás para que adoro, Rosas, do grupo Atitude Feminina.
rodar o documentário Rap de saia. Fala sobre violência doméstica e está sendo uma
DV – Como foi essa experiência? referência para palestras e debates sobre o tema
Re.Fem – A idéia inicial era rodar o docu- no Nordeste e no Norte do país e também em
mentário dentro da Cufa. Lá, tinha toda a infra- escolas aqui no Rio.

24 Democracia Viva Nº 38
Re.Fem

Guerra
Tenho planos de fazer um filme sobre o que
as mães são capazes de fazer por seus filhos.
Criminoso de Guerra
A música já está pronta, falo de uma mãe que Criminoso de guerra
matou o estuprador da sua filha e de uma Criminoso de guerra
mãe que era mulher de traficante, ficou viúva
e assumiu seu lugar para sustentar os filhos.
É o otário que maltrata a mulher
É um criminoso de guerra

Criminoso
Não eram coisas que elas quisessem fazer, mas
tiveram que fazer. Um exemplo que tenho em Criminoso de guerra
casa é da minha própria mãe, ela deixou de Criminoso de guerra
fazer várias coisas pela gente, essa música eu
fiz também em homenagem a ela.
Pois no mundo morrem mais mulheres em
DV – Depois que saiu da Cufa, casa do que nas guerras.
envolveu-se em algum outro
movimento?
Re.Fem – Sim, além do envolvimento com
a produção do filme, ajudei a formar um grupo
de mulheres de hip hop chamado Quilombolas.
Discutíamos o que era ser feminista, o que era feitas várias ações. Em novembro de 2007, foi
ser negra e fomos convidadas a participar de realizada a Semana da Juventude e Direitos na
um fórum sobre jovens negras. Nesse evento, Argentina. Participaram jovens de todos esses
conheci a ONG Coisa de Mulher, foi um amor países para discutir sobre direitos humanos e
tão grande que, no mês seguinte, a Neusa, buscar ações em conjunto, trocar informações.
presidenta da ONG, já estava me enviando Foi uma troca importante.
para organizar uma oficina sobre Mulher e DV – Você é rapper e cineasta.
Tabajismo, no Rio Grande do Sul. Nunca tinha Por que escolheu fazer Publicidade
feito uma oficina nem apresentado palestra, foi e Propaganda?
mais um desafio. Re.Fem – Escolhi porque é um curso de
Com o Cemina, outra ONG de mulheres, poder, e esse poder não está nas mãos dos
organizei uma coletânea de CDs sobre direitos pretos. E tenho questionamentos muito fortes

de
sexuais e reprodutivos e não-violência contra com relação à publicidade, ela está massa-
a mulher. Depois, fiz trabalhos também com a crando o nosso povo, a sociedade em geral. É
ONG Criola. Foi um projeto de capacitação de muito complicado chegar na favela um anúncio
mulheres rappers. Aprendemos um pouco de de tênis de R$ 400 ou de uma bermuda de
discotecagem, presença de palco, postura de marca que custa R$ 50, que ou você tem ou
voz, de corpo e lemos o livro da Carolina de você não é ninguém. Os pais não têm essa
Jesus, O quarto de despejo, uma das melhores grana. Quando arrumam trabalho, é para ga-
literaturas negras, tem uma força, uma identifi- nhar salário mínimo, também não vai dar para
cação tanto com a minha vida como a de outras comprar. O trabalho que rende o suficiente
mulheres negras. Depois, organizamos um para o adolescente comprar produtos desse
show, transformando aquele texto em música, tipo está na porta da casa dele, o tráfico; para
poesia, dança, foi uma experiência muito legal. as meninas, é o tráfico ou a prostituição. E aí?
DV – Você também participa Que propaganda é essa?
de uma rede com jovens No curso, tenho aula de Psicologia, que é
sul-americanos? do mal mesmo, a pessoa não tem como se de-
Re.Fem – Sim, essa foi outra iniciativa ba- fender, eles criam necessidade onde não existe e
cana na qual me envolvi, feita em parceria com quem está fora da moda, está fora. Quem pre-
a Fase, com apoio da União Européia e várias cisa de um celular que tira foto, filma e é rádio
outras organizações que trabalham com jovens ao mesmo tempo? O celular serve para falar,
no Mercosul e no Chile. O projeto chama-se só. É um apelo ao consumismo o tempo todo.
Juventude, Direitos e Derechos. Nesse projeto, DV – E quanto à imagem que a
identificamos que um dos direitos mais violados mídia passa das pessoas negras?
tem a ver com o acesso ao lazer. A partir daí, ini- Re.Fem – Nas propagandas, não se vê preto
ciamos diálogos com as prefeituras, associações e, quando se vê, são imagens deturpadas. Os
de moradores e pessoas que poderiam ajudar comerciais de shampoo são horríveis! Teve um
a mudar isso. Entramos em outras áreas tam- comercial para cabelos de mulheres negras,
bém, como o primeiro emprego, mídia, foram em que a mulher aparecia dançando funk, se

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 25
entrevista

Quebra Côco esfregando no cara. Por que aquela coisa sen-


sual para falar de cabelo? Por que não posso
Re.Fem largando o bicho ter meu cabelo duro? Por que os comerciais
e quebrando o côco direcionados para o preto são sexualizados,
vulgarizados ou precisam ter samba? Tem mu-
Porque esse som aqui, amigo, lher negra que não gosta de samba nem sabe
é muito louco sambar. É por isso que estou fazendo Publici-

Quebra
Pertenço à gema, não trema, dade, quero mostrar que dá para fazer uma
sou cria da Baixada nova mídia. Quando terminar, vou fazer mais
um ano e me formar em Jornalismo também.
No rap feminino, eu digo essa parada Quero uma mídia negra, estou fazendo cinema
Sou crioula, descendente de Angola porque quero a imagem da mulher negra no
Guerreira hereditária, não, não largo a bola cinema do jeito que ela é.
Driblando as barreiras, sigo meu caminho DV – A revista Raça cumpre
esse papel?
Com pensamento em Deus, Re.Fem – É uma revista legal, é a única
faço meu destino revista mesmo que mostra preto. Só posso pa-
Atear fogo na bomba, não é comigo rabenizar, a galera passa o maior sufoco para
Nem muito menos ser lambe-lambe manter a publicação. Ela reflete um pouco da
sociedade negra que a gente tem, meio padro-
de bandido nizada, européia, algo que temos que rever.
E prossigo até agora sem inimigos DV – Gostou do filme Antônias?
Não vacilo, tenho noção real do perigo Re.Fem – Tenho algumas críticas, mas se
Não preciso brigar pelo meu espaço formos pensar que não é um documentário,
é ficção, foi importante porque visibilizou as
Sendo livre, meu lugar sou eu quem faço mulheres na cultura hip hop, agora somos
Não me envolvendo com paradas erradas mais aceitas. O que fiquei triste no filme é que
Esse é o motivo pelo qual ainda estou as meninas estão muito inocentes e é muito
na estrada drama e sofrimento para um grupo de rappers
só. Percebe-se que o roteiro traz uma visão
E sigo rindo de quem não acreditou, totalmente de fora, de quem não tem contato
ficaram parados, tomaram gol com a periferia.
Sem distinção, posso estar em todos DV – Como está vendo a política,
os ambientes os partidos, o jogo duro do poder?
Re.Fem – A imagem que tenho da política
Posso estar com indigente e até é a de um cabo de guerra, só que de quatro
com o presidente lados: uns puxam para um lado; outros, para
Sou mulher e quero ser valorizada o outro lado; alguns caem; outros se levantam,
Representante feminina da Baixada mas o tempo inteiro, é uma guerra política, uma
negociação constante e muito difícil. Em algum
Onde a maioria sofre de alienação momento da vida, pensei: ‘Vou me candidatar
Só valoriza o corpo e a mente, não porque vou revolucionar alguma coisa’. Só que
Esse som, muitos ouvem e não entendem não é bem assim, posso me candidatar, ganhar,
Pois são rimas próprias da nossa gente mas se quiser, por exemplo, aprovar a lei que
descriminaliza o aborto, vou precisar dos votos
É som de preto, meu nego, se liga aqui dos outros. Para negociar, talvez tenha que
Chegando, fique esperto ceder naquilo que não considero certo, é faca
que o som é isso aí. no coração. Passei a prestar muito mais atenção
nisso a partir do governo Lula, um cara que
ajudei a colocar lá, em quem acredito. Vejo a
galera só metendo o chicote, o cara faz uma
ótima política, só que muito do que ele não
fez ou não pôde fazer foi por causa desse jogo
Para ouvir ou gravar as músicas da Re.Fem, acesse: político. Aprendi que não depende só dele, não
www.myspace.com/revoltafeminina depende só do vereador, do deputado federal
www.hiphopdsdr.org.br
www.hiphopsemviolencia.org.br ou do senador que ajudei a eleger. Depende de

26 Democracia Viva Nº 38
Re.Fem

toda uma conjuntura política, algo que é muito título de eleitor. Recentemente, na Baixada, par- Participaram
delicado e complicado. ticipei do encontro Juventude e Direitos. Cada desta entrevista
DV – Sobre a questão do aborto, grupo de jovens reunido identificou e apontou Convidadas
não acha que o Congresso está o que estava faltando em sua comunidade. Eliane Ribeiro
Regina Novaes
expressando o que pensa Muitos apontaram a questão do lazer, não há (Integrantes da pesquisa
a sociedade, que é conservadora praças, não há um ponto de encontro para a Juventude e Integração
Sul-americana)
e não quer enfrentar a questão? juventude. Muitos se organizaram e foram até
Santuza Cambraia Naves
Re.Fem – A questão do aborto é política, as prefeituras, até as Regiões Administrativas (PUC–RJ)
sim, porque depende da votação do Congresso, exigir, conheceram seus administradores, co-
Do Ibase
mas é mais ligada à religião. Nosso país é laico meçaram a tomar gosto. AnaCris Bittencourt
só no papel. A Igreja Católica sempre montou Outro bom exemplo na Baixada é o Grupo Cândido Grzybowski
seus quadros políticos e, agora, a Igreja Evan- Enraizados, de Nova Iguaçu. Eles praticamente Carlos Daniel da Costa
gélica também está fazendo isso. Ninguém moram no prédio da prefeitura. Organizaram a Carlos Tautz
David Silva
está vendo o lado das mulheres, se o homem Escola de Formação de Militantes, conseguiram
Dulce Pandolfi
engravidasse, o aborto já teria sido legalizado. câmeras e saem pelas ruas da cidade, filmando, Fátima Moreira
A maioria do Congresso é homem e, agora, com entrevistando as pessoas. Já fizeram documen- Gabriel Gonçalvez
essa influência religiosa lá dentro, ficou pior. A tário sobre primeiro emprego, sobre espaço Jamile Chequer
sociedade está se conscientizando, está enten- público, saneamento. Outro exemplo é a galera Maurício Santoro
Patrícia Lânes
dendo que não se pode ver a questão do aborto do Setor BR, em Mesquita, que vem desenvol-
Sheila Pereira
por aí, só não caminhamos mais nisso porque vendo um bom trabalho com a prefeitura. Em
a Igreja vem e diz: ‘É pecado, não questiona’. São João de Meriti, percebo também que há
DV – Na sua análise, a juventude um diálogo forte da juventude com a prefei- Realização
hoje participa mais da política? tura. Penso que, nestas eleições municipais, a Decupagem e edição
Re.Fem – De uns 10 anos para cá, per- participação da juventude, principalmente na AnaCris Bittencourt

cebo que aumentou muito a participação da Baixada, vai ser muito mais forte. Fotos
juventude na política. A juventude está muito Marcus Vini
organizada, está questionando, querendo saber Produção
o que está acontecendo. Correndo para tirar o Geni Macedo

DEZEMBRO
SETEMBRO
MARÇO 2008
2007 27
intern
internacional

Retrato da
juventude
sul-
O que há em comum entre as juventudes dos países da América do Sul? Qual o seu papel

nas mudanças em curso no nosso continente? Do que mais precisam? O que mais dese-

jam? A pesquisa Juventude e Integração Sul-americana: caracterização de situações-tipo

e organizações juvenis, realizada em seis países ao longo de 2007 – Argentina, Bolívia,

Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – foi buscar algumas respostas para essas perguntas. O

estudo foi realizado pelo Ibase em parceria com o Instituto Pólis – Estudos, Formação e

Assessoria em Políticas Sociais, com apoio do International Development Research Centre

(IDRC), além de um conjunto de entidades e pesquisa-dores(as) dos países envolvidos.

A seguir, cinco artigos de consultores e consultoras da pesquisa analisam os resultados

encontrados (o relatório brasileiro, de Helena Abramo, encontra-se na seção Nacional,

pág. 10).

28 Democracia Viva Nº 38
MARÇO 2008
acional

29
Mais PV | Montagem com fotos de Samuel Tosta
i n t e r n a c i o n a l
argentina
Dana Borzese e Vanesa Luro
Fundação SES

Risco do
monólogo
surdo?
O objetivo deste artigo é nos interrogar sobre as possibilidades de influência das demandas

juvenis nas políticas públicas para a juventude, fortalecendo-as para que sejam capazes de

garantir os direitos de todos e todas as jovens. Por isso, optamos por questionar algumas

práticas, tornando públicas algumas respostas dos e para os movimentos de jovens que

lutam pela transformação das realidades da juventude e de suas comunidades e países.

Também esperamos que sirva para interpelar quem formula essas políticas públicas.

Como ocorre em toda a América Latina, um quarto da população argentina

encontra-se na faixa etária de 15 a 29 anos. Pouco mais de 9 milhões de jovens habitam

hoje o território argentino. Significativo por sua dimensão e relevante para a sociedade

pelas possibilidades que se abrem em torno dele, esse grupo populacional deveria ser

considerado interlocutor válido e necessário na hora de o Estado desenhar políticas pú-

blicas voltadas para ele.


No escopo da pesquisa Juventude e Integração Sul-americana: caracterização de situações-
-tipo e organizações juvenis, abordamos quatro grupos de jovens da Argentina a fim de entender
as suas demandas e analisar a relação destas com as políticas públicas para a juventude, quando

30 Democracia Viva Nº 38
as houver. defende a independência e a autonomia como
A pesquisa nos permitiu certas desco- necessárias à construção política –, os outros
bertas e acreditamos que contribui à necessária três grupos demonstram ter estreitos vínculos
compreensão dos jovens, a partir de um con- com as organizações de adultos que os acom-
ceito de participação, onde sua voz é ouvida panham na defesa de suas demandas. Nestes
e considerada e, ao mesmo tempo, posta em casos, percebemos nos discursos de alguns jo-
tensão e em discussão com as experiências dos vens e adultos que é indispensável acompanhá-
adultos. Considerando nosso interesse em con- -los e ajudá-los na possibilidade de articular a
tribuir para a construção de políticas públicas demanda com outros atores com o objetivo de
para a juventude que sejam verdadeiramente incidir nas agendas públicas.
inclusivas e participativas, enfrentamos uma No entanto, também podemos assinalar
questão principal: o que falta para que as que, uma vez que os jovens se apropriam dessas
demandas dos diversos movimentos juvenis demandas compartilhadas com os adultos, estas
sejam levadas em consideração pelas políticas ganham um novo significado com um código
públicas? de leitura particular e lhes é dado um perfil
Em primeiro lugar, um aspecto que juvenil, são “juvenilizadas”. Por meio deste
caracteriza as demandas impulsionadas pelas processo, a demanda passa a ter, então, um
situações-tipo é o forte condicionamento e caráter distintivo, vislumbrado pelo seguinte:
a estreita vinculação que todas elas guardam • a atualização da demanda original em
com relação à história recente de nosso país. objetivos subsidiários, que contemplam
Em particular: as aspirações dos jovens e para os jovens,
• a demanda por trabalho contém especial como o caso de JDP (Jovens de Pé) no qual
relevância no contexto de dissolução da se incorporaram programas de promoção de
sociedade salarial por que atravessou a direitos para os jovens; capacitação para o
Argentina durante a década de 1990, e do trabalho e formação legal direcionados ao
conseguinte alargamento da desocupação, primeiro emprego;
as precárias modalidades de vinculação em • a incorporação de ações e temáticas rele-
relação ao mercado de trabalho e a perda vantes para eles: para citar um exemplo, os
de direitos sociais; jovens da AJA (Assembléia Juvenil Ambiental
• a demanda por direitos humanos tem de Gualeguaychú) entraram nas escolas e
estreita vinculação com a história da atroz puderam dar conheci-
ditadura argentina e do árduo processo de mento da problemá- Características comuns
recuperação democrática que começa em tica ambiental com
Em nosso estudo, escolhemos movimentos
1983; uma linguagem que
juvenis que compartilham as seguintes
• a demanda ambiental frente à internaciona- lhes é própria, entre características:
lização ou desnacionalização dos recursos seus pares; • mantêm demandas forjadas em formas
naturais, embora ancorada na problemática • a forma diferencial de participação com um alto grau de
local, tem um caráter global que inclui ques- com que a demanda organização e, por conseguinte, com
capacidade de perpetuar-se no tempo;
tões complexas relacionadas a outras nações é apresentada no es-
• são movimentos/agrupamentos que
e a tratados e compromissos internacionais paço público, a partir têm uma imagem pública relevante,
(Finlândia; Haia). de uma linguagem e presença nos meios de comunicação e
estratégias de difu- nas temáticas atuais da agenda pública
são próprias: o caso e, por sua vez, são conhecidos pela co-
Demandas “juvenilizadas” munidade no âmbito local ou nacional,
mais emblemático é
segundo o caso;
Em uma tentativa de caracterizar as demandas o estabelecimento dos • são grupos com capacidade de gestão
ao redor das quais se organizam os grupos escraches como forma e de articulação das demandas com
que configuram as situações-tipo, pudemos de ação política. diversos organismos (públicos e da
concluir que estas não são estritamente juvenis. Aqui en co ntra- sociedade civil) e, como conseqüência,
com voz na hora de construir políticas
Observamos que os jovens sustentam demandas mos, então, a característi-
de Estado e incorporar suas demandas
mais amplas, que já contam com grupos de ca tipicamente juvenil das em projetos e ações governamentais e
adultos organizados em torno das mesmas. Por demandas que analisa- não-governamentais;
conseguinte, as relações entre jovens e adultos mos, já que pelo processo • por último, as demandas envolvidas
adquirem – na dinâmica interna das organiza- mesmo de apropriação e podem ser estendidas a toda a América
Latina.
ções – uma importância especial. de dar novo significado,
Em efeito, à exceção do H.I.J.O.S. – que esses grupos que traba-
desde a sua constituição como agrupamento lham pelos direitos dos

MARÇO 2008 31
internacional – Argentina

jovens conseguem dar visibilidade a certos que a construção de poder se dá a partir da


temas-problema que lhes são significativos, ação coordenada com outros atores, mas de
com uma linguagem que recupera a defesa e fora do Estado, foco de suas demandas. AJA
o exercício de direitos. reclama diretamente pela intermediação do
Todas as demandas conjunturais sus- Estado no conflito que os levou a organizar-
tentadas e explicitadas pelas situações-tipo -se. Andresito (movimento juvenil Andresito),
redundam em outras que se relacionam com por último, aponta sua demanda central para
demandas mais gerais da sociedade: inclusão o Estado (pela inclusão social dos jovens), mas
social dos jovens em situações vulneráveis; estende o pedido de meios para divulgá-la entre
pelos direitos humanos; pelo desenvolvimento organismos da sociedade civil.
sustentável e o respeito ao meio-ambiente. Nessa mesma linha, todas as situações-
Estas demandas subjacentes possibilitam a -tipo reconhecem que as relações que se forjam
sustentação dos grupos envolvidos, já que, com outros atores permitem novas possibilida-
desse modo, suas ações não se esgotam em des: em uma instância constitutiva, a relação
uma reivindicação pontual. que se estabelece com os adultos organizados
O exemplo mais claro da coexistência de em torno da demanda que os preocupa; no
demandas conjunturais e gerais pode ser assina- desenvolvimento da organização, os vínculos
lado no caso particular dos jovens da assembléia que se estabelecem com outros atores sociais,
juvenil de Gualeguaychú: por um lado, existe tanto entes governamentais como organizações
um grupo de jovens cuja única demanda é a da sociedade civil.
transferência das indústrias de celulose e vêem A presença nos meios é diferente de
o esgotamento da mobilização para essa causa; acordo com cada demanda e o potencial do
por outro, existe outro grupo que demanda pela grupo de interessar e envolver os meios em
causa ambiental e pode ampliar a demanda, suas ações e atividades.
mesmo geograficamente, independentemente Junto com a valorização da participação,
do futuro das indústrias de celulose. a busca de consenso e tomada de decisões
Das situações-tipo estudadas, tanto democraticamente (a partir da participação na
H.I.J.O.S. como JDP operam na área metropo- forma de assembléias) é outra característica
litana de Buenos Aires. Entrevistados de ambas comum. Como vimos, alguns dos grupos a
as organizações referiram-se mutuamente. Estas têm como um objetivo a alcançar; H.I.J.O.S.,
duas situações-tipo evidenciaram uma grande por sua vez, a tem como uma prática decidida,
capacidade de construir redes com outros que inclui nuances próprias.
atores sociais implicados na reivindicação por Adicionalmente, as situações-tipo
demandas iguais ou similares. Em particular, compartilham uma visão otimista em relação
os ativistas do H.I.J.O.S. trabalham ativamente ao futuro, que se vincula com a valorização
pela reconstrução dos laços sociais como um da participação e as potencialidades da orga-
de seus pontos básicos. nização para a transformação das situações
No que se refere à relação com o Estado de demanda. Este otimismo contrasta com o
das diferentes situações-tipo, observamos que pessimismo de vastos setores da juventude em
JDP está fortemente comprometido com a po- geral, e daqueles com menos oportunidades
lítica partidária, e o movimento sustenta que é em particular.
por meio da ocupação de postos estratégicos
no governo que as temáticas de juventude têm
Tensa relação em construção
possibilidades de concretizar-se em políticas
públicas reais. Não abandonam, entretanto, As ações empreendidas pelas situações-tipo,
espaços de construção coletiva, como as mesas após o exercício de direitos sociais e cidadãos,
de juventude que tendem a discutir políticas instalam-se na brecha que se abre entre a
públicas para a juventude, com vontade de concretização de suas demandas e as ações
construir instâncias de discussão de jovens sobre e políticas efetivamente impulsionadas para
temáticas juvenis. satisfazê-las.
H.I.J.O.S., por sua vez, promove e De um lado, a situação dos jovens em
sustenta espaços de interação horizontais nosso país está marcada por sua história recen-
com outras organizações de pares, mas como te, caracterizada por profundas transformações
agrupamento, e sem que seus integrantes par- estruturais, que não só tiveram impacto sobre
ticipem da gestão em alguma instância pública. suas condições de vida, mas também sobre as
Assume posição frontal ao governo e acredita suas perspectivas para o futuro. De outro, do

32 Democracia Viva Nº 38
Risco do monólogo surdo?

ponto de vista do Estado, desenvolveram-se, não existe uma articulação estratégica das po-
durante os últimos anos, ações específicas di- líticas destinadas a esse setor em particular e a
rigidas aos jovens, principalmente destinadas a dispersão prima como característica distintiva
favorecer suas condições de inclusão educativa dos programas e políticas destinados aos jovens.
e trabalhista. No cenário que descrevemos, a efetiva
Entretanto, essas ações não conformam resposta às demandas que analisamos se ex-
uma estratégia conjunta e integral que inter- pressa primordialmente no plano da política
pele os jovens a partir – pelo menos – de sua pública. Entretanto, consideramos que esta
identificação etária. Pelo contrário, a maioria é apenas a parte emergente do modo como
dos programas e políticas para a juventude são se articulam o Estado e a sociedade civil e – a
dirigidos a alunos, doentes, desviados ou, no partir disso – abrem-se canais de influência para
melhor dos casos, usuários ou cidadãos e consu- que as demandas das organizações de jovens
midores (políticas culturais), entre outros. Desse encontrem vias de expressão.
modo, pelo fato de não serem concebidos pelo Tudo isto, por sua vez, vincula-se com as
ponto de vista de organismos específicos para a fontes de reconhecimento social e a institucio-
juventude, mas de política transversal, abordam nalidade que os agrupamentos de jovens con-
o sujeito a partir de um conceito parcial. seguem construir a partir de sua participação
Somado a isso, na Argentina, assim no espaço público e da possibilidade de enlaçar
como em outros países da América do Sul, não ações e objetivos com outros atores.
existe ainda uma lei nacional para a juventude Podemos concluir que em nosso país –
que dê forma às ações destinadas à população apesar dos avanços que registramos – a brecha
jovem e possibilite a consolidação de um orga- que separa as demandas que analisamos das
nismo nacional estável, que admita o acordo políticas que lhes outorgam resposta é ainda
político entre diversos atores. Por conseguinte, ampla, tanto pela díspar influência que têm as
Arquivo Fundação SES

MARÇO 2008 33
internacional – Argentina

organizações que expressam essas demandas, ditamos ser fundamental considerar os jovens
como pelo modo com que as respostas estatais como sujeitos de direito em todos os âmbitos
vieram se articulando. onde se trabalhe com juventude.
A partir das observações da pesquisa, a Na atualidade, a maior parte das ações
potencial incidência das ações impulsionadas do Estado dirigidas aos jovens se desenvolvem
pelos agrupamentos que defendem as deman- no âmbito da política transversal, em diferentes
das que analisamos, desdobra-se em distintos ministérios e secretarias (Educação, Cultura,
âmbitos: Trabalho, Desenvolvimento Social, entre outros).
• Incidência no Estado: a partir da incor- Por outro lado, não existe uma conceituação e
poração da demanda em sua agenda, e definição da categoria “jovem”, já que existem
da efetiva resposta à mesma por meio de diferentes construções nos diversos âmbitos.
políticas públicas. Por último, um fator que aparece vin-
• Incidência na sociedade civil: pelo fortale- culado como ideal para apoiar a construção de
cimento de iniciativas existentes e a apro- uma PPJ é a existência de suporte legislativo que
priação e o impulso da demanda por parte a acompanhe e contribua para a construção de
de outros atores “aliados”. uma nova institucionalidade. Pode tratar-se da
• Incidência social: a partir da possibilidade sanção de uma única lei que emoldure todos
de estender (universalizar) a demanda por os aspectos da juventude ou de leis específicas
meio de seu reconhecimento social. que permitam ter organismos públicos versáteis,
Os âmbitos enunciados não são inde- permeáveis perante os temas da juventude.
pendentes: uma demanda que consegue fazer Embora a relação de complementação entre
eco garante aliados na sociedade civil e propicia uma política pública para a juventude e uma
a instalação da demanda na agenda pública e lei seja clara, não parece totalmente evidente
a conseqüente resposta por parte do Estado. qual das duas possibilita a outra. O que certa-
Acreditamos que a obtenção de uma incidência mente fica claro é que um grau maior de insti-
decisiva em todos os âmbitos depende da forma tucionalidade é necessário para resguardar os
com que a demanda é apresentada e enunciada; ganhos, em termos de PPJ, dos entes políticos
e que isto não é independente do sujeito social dos governos da vez.
que a impulsiona. Para finalizar, e recuperando um desejo
Além do mais, o Estado deve ser per- que expressaram nossos entrevistados, poderí-
meável: as políticas públicas para a juventude amos somar aos desafios expostos às políticas
(PPJ), definidas sem a participação dos próprios públicas no plano nacional a necessidade de
jovens não levam a bom termo. É indispensável compartilhar e articular experiências, deman-
que quem trabalha na definição dessas políticas das e políticas ligadas à juventude em âmbito
tenha um ouvido atento e agudo, alerta ao que regional.
acontece com os seus destinatários. Ignorar Pensar nos jovens como sujeitos ativos
o que é demandado do Estado, desconhecer de políticas para a juventude é um desafio que
as reclamações das organizações juvenis e mobiliza muitos governos, e é um tema que,
acreditar que, mesmo assim, se impulsionam por sua urgência e importância, conseguiu
ações em benefício dos jovens, é transitar por instalar-se na agenda pública e posicionar-
um caminho errado que resulta extremamente -se nos diversos âmbitos da vida social. Foi
caro a nossos jovens em particular e prejudicial também o caso da Argentina, embora – como
para a sociedade em seu conjunto. assinalamos – ainda fique um longo caminho
Longe de serem o futuro, os jovens são por percorrer em termos de política pública
e estão agora… no presente. Enquanto estes para a juventude.
jovens sujeitos forem considerados como parte
de uma etapa transitória, como “uma doença
que se cura com o tempo”, dificilmente se
poderá apreender a especificidade destes su-
jeitos de direito. Mais complexo ainda é pensar
que se possa dar alguma resposta relevante e
significativa a um interlocutor ao qual não se
compreende… O primeiro pressuposto para um
diálogo fértil é o reconhecimento mútuo entre
os interlocutores: sem este primeiro passo, não
há PPJ que possa pretender ser fecunda… Acre-

34 Democracia Viva Nº 38
i n t e r n a c i o n a l
Bolívia
Máximo Quisbert Q.
Universidade para a Pesquisa Estratégica na Bolívia (PIEB)

Luta dos jovens


aymaras na
cidade de El
Alto
Na história da Bolívia, os movimentos sociais estiveram vinculados à conquista dos direitos

políticos e sociais. A característica particular desses movimentos sociais foi a capacidade

de construção das linhas de adesão e mobilização com efeitos estatais, produzindo mu-

danças significativas ao longo dos séculos em vários aspectos do campo político estatal,

tanto em matéria de política econômica como nos processos de conquista do sistema

democrático.

Em particular, o movimento mineiro se converteu, na história boliviana, na po-

derosa força social que incidiu na política econômica dos governos e que, em várias

ocasiões, enfrentou os governos militares. Como conseqüência das medidas políticas do

Estado neoliberal, esse movimento perdeu a sua força aglutinadora e surgiram outros

movimentos sociais, como o movimento cocalero, o movimento camponês indígena, o

MARÇO 2008 35
internacional – bolívia

movimento indígena das terras baixas e o nenhum líder sindical ou político.


Neste trabalho, analisam-se métodos de
movimento urbano nas cidades de El Alto luta, a canalização da demanda pela formação
de professores, construção de aliados sociais
e Cochabamba. e políticos. O movimento juvenil de El Alto
Esses movimentos sociais questionaram esteve patrocinado por pessoas adultas que
a estrutura do modelo econômico neoliberal têm experiência no manejo hábil dos métodos
vigente: a abertura do mercado, a privatização de luta, mas este movimento juvenil surgiu
dos recursos naturais, e também explicitaram em torno da demanda da escola de formação
a demanda dos direitos dos povos indígenas, de professores que aglutinou uma multidão
Assembléia Constituinte, inclusão social e res- de jovens de primeira e segunda geração de
peito à diversidade cultural. Do mesmo modo, imigrantes das províncias de La Paz. Este setor
surgiram os movimentos regionais interpelando juvenil se inscreve no ensino Normal com a
o Estado centralizador e com demandas por expectativa de “ser alguém na vida social” e
autonomia departamental. Essas regiões mo- obter um emprego digno, estável e com direito
bilizaram multidões de pessoas sob a bandeira à seguridade social.
do regime político autônomo. Em resumo, a
Bolívia vive momentos de redefinição históri-
Característica do movimento
ca da sociedade colonial e monocultural do
juvenil
Estado. Há setores da elite boliviana que se
empenham para manter o modelo econômico A cidade de El Alto é considerada uma cidade
moderno, enquanto outros setores empobreci- andina e aymara da Bolívia porque está consti-
dos procuram reconstruir modelos alternativos tuída por uma população de imigrantes aymaras
de uma sociedade plurinacional. de províncias “paceñas” (de La Paz). Segundo
Enquanto isso, os movimentos juvenis o Instituto Nacional de Estatísticas, 80% dos
são ignorados por diversos analistas, políticos habitantes da cidade se identificam com a cul-
e jornalistas, apesar de os jovens participarem tura étnica aymara. Também há muitos estudos
ativamente dos movimentos sociais, adotando que indicam a cidade de El Alto como a mais
diferentes métodos de luta e participando de pobre da Bolívia, pois cada uma de suas famílias
modo espontâneo, assumindo atitudes viru- vive com menos de US$ 1 por dia e a maioria
lentas e enfrentando a polícia nacional. No delas está vinculada às atividades artesanais e
entanto, a sua participação não representa ao comércio informal.
nenhuma instituição social, tampouco seguem Não obstante, a demanda educativa

Arquivo PIEB

36 Democracia Viva Nº 38
Luta dos jovens aymaras na cidade de El Alto

(universidade e ensino Normal para a cidade) chamou-se Instituto Normal Superior Antonio
surgiu das associações de moradores na década Paredes Candia (INSAPC) e foi liderado por
de 1980, apesar de, nessa época, a demanda professores que expuseram como demanda a
educativa não ser prioridade para os dirigentes criação da Normal.
vicinais, pois, estes, estavam lutando veemente- O movimento juvenil INSAPC esteve
mente pela autonomia do Governo Municipal apoiado, desde a sua criação, pelo atual prefeito
de El Alto. No entanto, a demanda educativa de La Paz, José Luis Paredes, que proporcionou
tinha forte presença no discurso dos dirigentes. a ajuda necessária, tanto em termos materiais
Desde a década de 1990 surgiram diversas como simbólicos, para que a nova Normal
“Normais-piloto” que funcionaram para formar funcionasse. José Luis Paredes constituiu esse
apenas os professores interinos da cidade, grupo de jovens para servir de contingente em
impulsionados pelo Ministério da Educação. sua candidatura nas eleições nacionais de 2005.
Entretanto, a partir do ano 2002, cria-se uma Durante a campanha eleitoral, ele professou e
Normal que, depois de alguns anos, se conver- realizou promessas gerando ilusões entre os
teu em um movimento juvenil sem precedentes jovens. Não há dúvida de que as promessas
na história alteña (de El Alto). É possível que, do candidato influenciaram a participação
anteriormente, a população alteña tenha sido militante dos jovens na atividade eleitoral,
testemunha do movimento juvenil universitário fazendo-os, até, advogarem para que seus fa-
que pedia a criação de uma universidade. Desta miliares votassem no candidato Jorge Quiroga
vez, o movimento juvenil demandava a criação para presidente e em José Luis Paredes para
de uma escola de formação para professores. prefeito de La Paz. Foram realizadas diversas
É uma juventude de imigrantes ayma- atividades culturais promovendo a candidatura
ras de primeira e segunda geração que têm de José Luis Paredes e diversas manifestações
o desejo de estudar como central. Por essa estiveram impregnadas com a militância polí-
lógica, a educação superior se converte em tica onde se vociferavam as seguintes palavras
uma missão que deve ser alcançada pela nova de ordem: “Tuto1 presidente e queremos uma
geração fazendo sacrifício e esforço pessoais. Normal para El Alto”.
Na estrutura subjetiva da juventude está o
desejo de estudar e, assim, ter acesso a um
Normal paralela
emprego estável e tornar-se um cidadão. Nesse
setor juvenil, a educação superior é endeusada Em meados de 2005, surgiu outra escola de
e espera-se dela uma ascensão vertiginosa em formação de professores chamada Instituto
direção à inclusão social. Significa dizer que a Normal Superior de El Alto (INSEA). Este insti-
formação superior é assumida como estratégia tuto teve forte apoio de dirigentes sociais da
de mobilidade social por meio de um emprego cidade de El Alto. A Normal foi criada com o
estável e, por conseguinte, o exercício pleno dos objetivo de neutralizar a força do movimento
direitos de cidadania. juvenil INSAPC, que foi criticado por sua politi-
Os jovens, a princípio, aceitam um salá- zação. A criação de outra Normal paralela serviu
rio baixo, mas ficam fascinados com o fato de para debilitar esse movimento juvenil.
ter um trabalho estável. Quando se inscreveram A Normal paralela inscreveu mais de 3
na Normal o fizeram com a ilusão de estudar mil jovens até o início de 2007. É possível que,
para serem professores, dispostos a lutar pela em termos numéricos, esse movimento juvenil
criação de uma Normal. É uma juventude que tenha sido menor. Porém, paradoxalmente,
está isenta de responsabilidade familiar, têm mostrou ter mais força social e capacidade de
menos amarras para participar do movimento negociação com diferentes autoridades políti-
juvenil. Ali adquiriram novas experiências e, so- cas. Os dirigentes constituíram uma Comissão
bretudo, começaram a entender a demanda de Interinstitucional para analisar a possibilidade
formação de professores como direito cidadão. de criar a Normal, enquanto o movimento
Desde a sua criação, a Normal passou juvenil liderado por professores não obtinha
desapercebida por quase três anos e, no fim de nenhum avanço substancial em suas reivin-
2005, irrompe no cenário público e explicita a dicações e, apesar das várias manifestações
demanda pela resolução ministerial. Até essa que efetuaram, não obtiveram os resultados
data, o instituto conseguiu inscrever um grande esperados.
número de jovens. Estima-se em mais de 6 mil O movimento juvenil liderado pelos
aqueles que aspiravam receber uma formação professores elaborou o desenho curricular da
1 “Tuto” é o apelido de
para serem professores. Este movimento juvenil nova Normal. A demanda do movimento foi Jorge Quiroga.

MARÇO 2008 37
internacional – bolívia

apresentada ao Ministério da Educação, tanto a opinião pública e as autoridades do governo


no governo de Eduardo Rodríguez como no conheçam suas reivindicações. Este método de
de Evo Morales, mas não obteve nenhuma luta não costuma ter um impacto efetivo para o
resposta favorável. Este movimento juvenil uti- movimento juvenil, pois são pressões de caráter
lizou como método de luta a manifestação de simbólico, apesar de os comícios serem acom-
rua, por meio do qual procurou gerar impacto panhados de fortes vozes de protesto, slogans
social em duas dimensões: por um lado, tenta- beligerantes, discursos radicais (“unidos jamais
-se produzir impacto social pelo bloqueio das seremos vencidos”) e a queima de bonecos re-
principais avenidas da cidade; por outro, ao se presentando o ministro da Educação. O comício
organizar a manifestação, são feitos esforços foi bastante utilizado como método de luta pelo
para que a maioria dos jovens participe, por movimento juvenil liderado pelos professores e
meio de diferentes mecanismos de sanção consistia na tomada física da Praça Murillo. Já
estabelecidos na assembléia. E, finalmente, as o movimento juvenil INSEA só recorreu a esse
manifestações tendem a ser acompanhadas por método em poucas ocasiões.
cartazes e músicas ilustrando as demandas do De maneira excepcional, os movimentos
movimento juvenil. juvenis recorreram a métodos de luta como a
Não há dúvida de que o movimento greve de fome, tendo esta medida drástica sido
juvenil empreendeu inúmeras manifestações adotada, sobretudo pelos jovens reprovados no
com o intuito de que suas reclamações fossem exame de ingresso à Normal. A greve de fome
ouvidas. A manifestação como método de é uma forma de luta que consiste em utilizar a
luta se converteu, então, em algo recorrente autoprivação de alimentos e o risco de morte
e praticado em várias ocasiões para produzir como últimos recursos para gerar sensibilidade
sensibilidade social. No entanto, o movimento nas autoridades políticas e fazer com que suas
juvenil impulsionado por dirigentes sociais, em- demandas sejam ouvidas.
bora recorresse a esse método de luta apenas Esse método de luta foi repudiado,
em algumas oportunidades, o fez em maior chegando-se a pôr em dúvida a seriedade da
escala quando a sua demanda esteve em risco. medida, pelo movimento juvenil liderado pe-
O movimento juvenil liderado pelos los professores, que fez discursos procurando
professores utilizou como método de luta as desacreditar a atitude dos jovens grevistas e
manifestações, mas não obteve sucesso em desenvolvendo uma enorme pressão social
nenhuma de suas demandas. Isto se explica contra eles. Esse movimento recorreu, então,
de maneira simples, pois os professores mobi- à passeata a partir do povoado de Calamarca,
lizaram os jovens, mas não construíram aliados a qual se tornou método de luta a ser incluída
sociais ou políticos. Por outro lado, o movimen- nas demandas pela criação da Normal. A passe-
to juvenil INSEA, patrocinado por dirigentes, ata pela estrada principal entre La Paz e Oruro
adotou outros métodos de luta, construindo buscou mostrar a força do movimento juvenil,
alianças com deputados do Movimento pelo mas, na realidade, significou um retrocesso por
Socialismo (MAS) e formando pequenos grupos uma série de cisões internas que debilitaram
de pressão. Estes grupos eram compostos por seriamente o movimento.
dirigentes sociais e juvenis, que tinham como Esse movimento juvenil com demandas
missão exercer pressão simbólica sobre as rígidas, que mobilizou um contingente de jo-
autoridades do governo. Entre estes, estava o vens, começou a decair a partir do momento
dirigente máximo da Central Operária Regional em que se criou a Normal, pelo abandono
(COR), que, por seu capital político reconhecido maciço dos jovens. Apesar disso, os professores
por diversos setores sociais, estabelecia contato continuaram insistindo com a sua demanda pela
direto com as autoridades do governo. criação da Normal com o nome de Antonio
Ambos os movimentos juvenis também Paredes Candia – o que os levou ao fracasso
utilizaram os comícios como método de luta e posterior expulsão do movimento que, du-
para exercer pressão sobre as autoridades do rante a liderança dos professores, não trouxe
governo. Este método era praticado às portas nenhum resultado favorável para os jovens.
do Ministério ou na Praça Murillo – centro Após a separação dos professores, os jovens
político importante da Bolívia. O comício assumem a liderança do movimento juvenil e
é, geralmente, constituído por uma grande procuram aliados entre os dirigentes sociais da
quantidade de jovens que vociferam suas de- cidade de El Alto.
mandas, acompanhados de cartazes refletindo Finalmente, o movimento juvenil INSEA
suas reclamações, pedidos concretos para que construiu alianças com dirigentes sociais da

38 Democracia Viva Nº 38
Luta dos jovens aymaras na cidade de El Alto

cidade de El Alto. Estes dirigentes haviam tido

Arquivo PIEB
um papel preponderante na criação da Normal
e, até mesmo, impuseram às autoridades do mi-
nistério que lançasse uma convocatória fechada
apenas para os jovens que criaram a Normal
INSEA junto com esses dirigentes sociais. No
entanto, havia muitos jovens do movimento
Antonio Paredes Candia e outros que haviam
se inscrito nos primeiros meses de 2006 que
não puderam entrar na Normal e continuaram
a sua luta por esse acesso. Esses jovens, então,
se aliaram aos dirigentes sociais de El Alto e
participaram de diversas de suas atividades
(conselhos, comícios, manifestações). No en-
tanto, estes jovens não receberam o mesmo
apoio militante dos dirigentes. Por exemplo, o
Ministério da Educação lançou uma segunda
convocatória pública ignorando os acordos
feitos com os jovens. Seus supostos aliados
não defenderam ou exigiram o respeito aos
acordos, que consistiam em uma convocatória
fechada apenas para os jovens que lutaram pela
criação da Normal.
Ante a indiferença dos dirigentes, os
jovens, em várias oportunidades, tomavam
os dirigentes sociais como reféns. O mesmo a esperança de serem professores. Um desses
ocorreu com o prefeito de La Paz, José Luis movimentos foi liderado por professores, que
Paredes, e com o diretor da nova Normal, Ger- empregaram diversos métodos de luta para
man Quisbert. Este método de luta consistia em que suas demandas fossem ouvidas. Em sua
uma ação surpresa de “tomada” dos dirigentes gestação, recebeu apoio significativo do atual
em seus escritórios nas organizações sociais e prefeito de La Paz, José Luis Paredes, mas depois
na realização de cercos que impediam a saída das eleições nacionais de 2005, essa relação se
dos mesmos. Era uma forma de pressão que rompeu. Enquanto isso, os professores continu-
exerciam os jovens para que os dirigentes res- aram apostando e confiando em seus métodos
peitassem os compromissos firmados com as de luta, pela enorme quantidade de jovens que
autoridades do governo. Em algumas ocasiões, mobilizavam, ocupando as principais ruas e
os dirigentes foram “resgatados” pela polícia avenidas de La Paz.
nacional. Em outras, por suas próprias bases O movimento liderado por professores
em meio a enfrentamentos virulentos que ter- realizou um grande número de manifestações,
minavam em graves lesões. comícios e passeatas, mas não alcançou nenhu-
Talvez este método de luta tenha sido ma de suas demandas principais; enquanto o
uma ação singular dos jovens, porque requer movimento juvenil impulsionado por dirigentes
uma série de ações rápidas e a organização de sociais de El Alto – apesar de numericamente
bases adestradas para tal efeito. Nesse sentido, menor – concretizou a criação da Normal,
não é um método de luta habitual entre os negociou as cotas e o exame fechado apenas
movimentos sociais indígenas na Bolívia, mas para os jovens que lutaram com os dirigentes
este método de tomada de reféns foi utilizado sociais pela criação da Normal.
freqüentemente contra dirigentes em diferentes O movimento juvenil empreendeu ações
circunstâncias. coletivas em algumas ocasiões. Sua força po-
lítica estava no fato de ter construído alianças
estratégicas com dirigentes sociais e deputados
Balanço geral
nacionais do partido oficialista, enquanto o
Os movimentos juvenis foram patrocinados por movimento liderado pelos professores não
adultos com demandas parecidas: a criação da angariou aliados sociais nem políticos e foi
Normal, cuja demanda articulou uma enorme estigmatizado por ter participado da campa-
quantidade de jovens que se inscreveram com nha eleitoral a favor de candidatos de direita,

MARÇO 2008 39
i n t e r n a c i o n a l
Chile
Julieta Vivar Payàs
Centro Estudos Sociais CIDPA

O seqüestro
da
demanda
cativa
O Chile é um país com 16,5 milhões de habitantes, dos quais cerca de 25%, 4 milhões, são

jovens de 15 a 29 anos. Sua população, majoritariamente urbana, concentra-se na zona

central do território (60% da população total), que compreende as regiões de Valparaíso,

Bío Bio e Metropolitana. Segundo o censo mais recente, na Região Metropolitana, onde

se localiza a capital, Santiago, vivem mais de 1 milhão e 400 mil jovens.1

A população escolar no país (ensino básico e secundário) chega a 3 milhões 225

mil 808 estudantes, dos quais apenas 8,9% assistem às aulas em estabelecimentos pri-

vados. O restante vai a estabelecimentos com subvenção parcial ou total do Estado. A

cobertura educacional no Chile alcança quase 90% em ensino básico, 94% em ensino

1 Instituto Nacional
de la Juventud: segundo
médio e 31,5% em educação superior.
informativo nacional da
juventude. Santiago:
Injuv, 2006. Uma das grandes desigualdades observadas no país é no acesso à educação. Enquanto os

40 Democracia Viva Nº 38
jovens que pertencem aos 20% mais ricos que “em Valparaíso há pouquíssimos jovens”,
ou ao nos inteirar de que os ingressos para um
têm, ou certamente terão, 12 anos de esco- concerto gratuito e voltado para as massas se
entregavam apenas entre 9h e 13h, de segunda-
laridade, daqueles que pertencem às famí- -feira a sexta-feira.
Desconcerto quando pouco depois da
lias mais pobres, metade nunca terminará “Revolução do Pingüim (Revolución Pinguina,
a educação obrigatória, especialmente nas zo- assim conhecida pelo tradicional uniforme
nas rurais. A situação é crítica também para a utilizado pelos estudantes)”, com mobilização
outra metade, pois em muitos estabelecimentos de cerca de 1 milhão de estudantes em todo
públicos conclui-se que a única alternativa de o país “por uma educação pública, gratuita e
desenvolvimento para o futuro é a educação de qualidade”, os governos locais promoveram
técnico-profissional, que os teria de habilitar oficinas de verão sobre liderança juvenil. Preocu-
para integrar-se rapidamente ao mundo do pação, crescente, ao ler e verificar que a maioria
trabalho. No entanto, esta opção também dos planos e projetos relativos à juventude se
apresenta sérias dificuldades e extingue toda fazem para e não com os jovens.
possibilidade dos jovens vislumbrarem outra O que está acontecendo aqui? Que
alternativa. diagnóstico pode-se fazer? E, de onde nos
A sociedade chilena tendeu a conside- encontramos, quais elementos da investigação
rar a juventude uma subcultura, com pouca sobre agrupamentos juvenis realizada no Chile
integração ao sistema. Marginal e anômica, poderíamos pôr hoje em debate?
prática ou objetivamente transgressora, seria
uma contracultura disfuncional e contestadora, Fronteira entre preocupação
mas com grande capacidade para o consumo. e tranqüilidade
Seria uma etapa transitória que serve de prepa-
ração para o futuro, mas seria, especialmente, Utilizando termos provavelmente reducionistas,
uma população em permanente risco. Risco, parece-nos que a oferta de recursos – em sua
sobretudo, de constituir uma crítica ao sistema maioria de fundos “concursáveis” – e os obje-
hegemônico e um elemento subversivo a uma tivos a que se encerra – muito longos e com
suposta normalidade. pouco conteúdo prático –, parecem determinar,
No Chile, o juvenil está presente, mas persistentemente, a demanda ou, pelo menos,
sob uma ótica e prisma complexos: “desagre- o discurso sobre o que significa ser jovem hoje.
gado, posto em negativo e desarticulado” 2 É na fronteira entre a preocupação
das intenções democráticas com as quais se e a tranqüilidade, tendendo mais para esta
desenham a oferta programática. Não existe, última, que situamos o crescente interesse
mesmmo, uma visualização clara sobre a na- de nosso Instituto Nacional de Juventude em
tureza do respaldo no interior das instituições avançar no aprofundamento de estudos. Pes-
públicas designadas para tais efeitos. quisas representativas, análises interessantes
Para não ficar para trás no “tom” latino- e progressistas, publicações periódicas que,
-americano com que se trata a temática e se entretanto, ainda não parecem se aproximar
aborda a juventude, predomina no Chile um suficientemente da programática, da ação;
discurso sobre o qual é necessário ter muita ficando em uma esfera nebulosa mais próxima
atenção. Não só pela sua correlação com o que a boas e vitais intenções do que a sólidas e reais
acontece em latitudes próximas, mas também práticas institucionais.
porque é um discurso que produz ressonâncias Tranqüilidade pelo transbordamento
equivocadas e linhas programáticas que poucas ao constatar, mais uma vez, que os âmbitos
vezes respondem às necessidades, preocupa- de controle social são limitados. É um alívio
ções, interesses e desejos dos jovens do país. quando constatamos que o espaço interpes-
No que se refere à Política Nacional de soal dos jovens é, além de tudo, um espaço
Juventude, durante a pesquisa, transpomos de resistência.
constantemente os limites entre a tranqüilidade Quando descobrimos que a Política de
e a franca preocupação. Preocupação porque Juventude tinha tantos pontos cegos como
2 Oscar Dávila. La década
ao indagar nos campos de ação das políticas possibilidades de esquivá-los, sentimos uma perdida en política de

do setor que nos convoca, observamos uma estranha sensação de alívio. Quando vimos que juventud en Chile; o la década
del aprendizaje doloroso?.
clara ausência da voz dos jovens. Inquietação a temporalidade e a organicidade dos grupos Última Década Nº14.
Valparaíso: Ediciones cidpa,
ao ouvir da encarregada do Instituto Regional juvenis que estávamos estudando eram quase 2001.

MARÇO 2008 41
internacional – chile

um mistério para o poder público, o que faci- Principais obstáculos


litava o desdobramento de ações diferentes às
No estudo, percebemos três principais dificulda-
tradicionais, convencemo-nos de que estudar
des pelas quais atravessam os jovens. A primeira
os agrupamentos juvenis do Chile valia a pena.
delas é o discurso generalizado segundo o qual
Em plena “Revolução dos Pingüins”,
os jovens são gestores de seu próprio desen-
Martín Zilic, então ministro da Educação,
volvimento. Um discurso que individualiza não
convocou os estudantes para uma mesa de
só suas ações e projetos, isto é, sua trajetória,
diálogo a fim de que devolvessem os colégios
mas também esconde a origem dos obstáculos
tomados e retornassem às aulas normais. Ele
e as condições socioeconômicas que dificultam,
esperava encontrar-se com poucos representan-
para não dizer que impedem, buscar para si
tes secundaristas com capacidade resolutiva,
caminhos alternativos.
com os “cabeças” ou os “líderes”, e calculou
Os jovens sabem que suas demandas
12 lugares na mesa de reuniões. Qual não foi
são legítimas porque receberam o apoio dos
a sua surpresa quando chegaram mais de 300
adultos – da sociedade chilena no caso dos
jovens – mulheres e homens –, da capital e do
estudantes secundaristas. Entretanto, este
resto do país, com a intenção de dialogar. Eram
apoio depois lhes é tirado e isso é algo muito
muitos… e eram, além disso, muitos porta-
desconcertante. Os psicólogos sociais chamam
-vozes, o que significava que nenhum estava
a isto de desamparo aprendido, e é a segunda
apto a tomar decisões sem consultar as bases.
dificuldade que percebemos.
Formalmente não havia representantes; nenhu-
ma informação circulava sobre as reuniões “dos
pingüins”, sempre fechadas ao mundo adulto.
Naquela ocasião, o ministro teve que adiar o
encontro e pensar em uma estratégia diferente.
A organicidade horizontal e não repre-
sentativa do movimento secundarista de 2006
era uma sugestiva crítica ao sistema, que, além
de tudo, dava coesão, sentido e credibilidade
à sua demanda por uma “educação pública,
gratuita e de qualidade”. Mas, ao mesmo
tempo, sua forma de organização converteu-
-se no principal empecilho para dialogar com
o poder político.
Mais ao sul do Chile, Concestyle, orga-
nização juvenil que agrupa os praticantes de
skate, os ciclistas e os patinadores de Concep-
cion, conseguiu, finalmente, com base em uma
forte campanha dirigida por eles mesmos, que
o município construísse o primeiro parque de
skate da região, o primeiro lugar no Chile a
oferecer espaço e estrutura para a prática dos
três esportes.
Muito além da empatia provocada por
saber que terão enfim seu espaço, não devemos
deixar de considerar que sua demanda percor-
reu um caminho bem menos pedregoso que o
de outros jovens por três principais razões: a)
sua demanda era concreta, factível e, portanto,
adequava-se àquilo que a política local está
possibilitada a lhes oferecer; b) sua demanda
era funcional às políticas de gestão urbana, pois
faziam uma ocupação problemática da cidade;
e c) a maioria deles são estudantes universi-
tários e decidiram levantar a sua demanda a
partir do status que outorga a profissão e não
o ser jovem.

42 Democracia Viva Nº 38
O seqüestro da demanda cativa

Jogo de palavras
Concordamos que a Política Chilena de
Juventude não garante uma abordagem mobilizou a sociedade; as demandas de integração funcional; espaços aos
integral dos jovens; que falta coorde- foram seqüestradas, reformatadas e quais é necessário dar muita atenção,
nação governamental nos temas que devolvidas a seu âmbito setorial. mas sobretudo aos quais é necessário
interessam aos 24% da população; que Por outro lado, demandas concre- dedicar políticas concernentes.
estas 4 milhões de pessoas, em especial tas, factíveis, funcionais, são demandas Convence-nos a idéia de que a Po-
as mais jovens, não têm espaço para dos jovens de projetos, demandas que lítica de Juventude tem que constituir
propor suas idéias e menos ainda para estão cativas, capturadas no jogo das um instrumento de mapeamento com
implementar ou avaliar os programas políticas que constroem e organizam as possibilidades de um sextante; isto é,
desenhados para elas. priorizando um espaço para cada ati- um instrumento com a capacidade de
O título de nosso estudo, “o seqües- vidade/grupo. mediar criticamente com a convicção de
tro da demanda que cativa”, é um jogo Com este panorama, gostaríamos que é indispensável incorporar os jovens
de palavras. Demandas intrinsecamente de fazer o convite a pensar em uma no debate, e não apenas incluí-los nas
políticas, com a insistente pergunta do juventude chilena que joga (admitimos, pesquisas sobre as políticas que hoje
que queremos para o país e como o isso sim, muitas vezes sem o conteúdo repercutem em suas vidas.
fazemos melhor; esta é a pergunta dos lúdico da palavra jogo) entre um espa-
estudantes secundaristas que cativou e ço interpessoal, de resistência e outro

MARÇO 2008 43
internacional – chile

Arquivo CIDPA
A terceira dificuldade se configura a tempos depois, a sua demanda lhes tenha sido
partir dos espaços de participação existentes. arrebatada.
Espaços onde geralmente o exercício democráti- Quando os agrupamentos que trabalha-
co consiste em perguntar, administrar, postular, vam em colaboração com o Departamento de
avaliar, comentar, criticar e propor… tudo pela Jovens de Concepcion se opuseram à política
Internet, o que fortalece e reproduz a partici- de orçamentos participativos (que consistia
pação individual e não a coletiva. em votar para financiar os melhores projetos
Os jovens de agrupamentos juvenis no juvenis) a favor de que o dinheiro fosse distri-
Chile têm que juntar-se ou afastar-se da forte buído igualmente e que, além disso, fossem
cultura assistencialista que aqui predomina e geradas atividades que os conectassem; e
sua versão estatal: a promoção do voluntariado, também a vitória do Concestyle, constituem
com matizes que aqui não cabe aprofundar. um segundo marco que outorga conteúdo ao
Se decidem se afastar, têm que fazer vínculo existente entre política de juventude,
o dobro de esforço para pôr em evidência a agrupamentos juvenis, outras políticas setoriais,
condição em que vivem, sobretudo aqueles interesses individuais e a indústria cultural – sob
que cresceram com menos recursos. Neste o guarda-chuva do sistema de mercado que
aspecto, o movimento secundarista constitui “funciona” em nosso país.
um marco, pois conseguiu configurar, com- Mais que um vínculo, o espaço interpes-
partilhar e socializar um diagnóstico crítico da soal, que visualizamos também como de resis-
educação no país, convertendo, por uns meses, tência, tem especial relevância neste intrincado.
o projeto educativo em um problema político, Nele, e além das experiências entre atores, ou
em uma questão de todas as pessoas. Embora com elas, os jovens vivem intensamente sua

44 Democracia Viva Nº 38
i n t e r n a c i o n a l
Pa ra g ua i
Luis Caputo
Analista político, coordenador do programa juventude e membro diretor de Base–IS

Entre modelos
antigos, o
mercado e a busca
de cidadania
Em fevereiro de 2008, a transição paraguaia completou 19 anos sobre as bases do antigo

regime e o mesmo partido desde 1940 no poder. A geração jovem contemporânea está

imersa em uma abertura semidemocrática e socialmente excludente que se caracteriza

por um poder cativo às lealdades tradicionais, com governos condescendentes às pressões

internacionais que marcam a liberalização comercial. Estas notas são um adiantamento

de dois estudos sobre as demandas de organizações juvenis no Paraguai, a Fenaes (Fe-

deração Nacional de Estudantes Secundaristas) e jovens camponeses da Asagrapa (As-

sociação de Agricultores de Alto Paraná)1, os quais permitem discriminar as demandas 1 As pesquisas foram
realizadas no segundo
semestre de 2007 por Base
que mais mobilizam seus jovens integrantes. Nessas organizações, a juventude expressa Investigaciones Sociales
(Regina Kretschmer, Diego
Segovia e Luis Caputo),
uma resistência, faz frente e até representa uma ruptura com a voracidade regressiva das no âmbito do projeto de
pesquisa regional Juventude
e Integração Sul-americana:
caracterização de situações-
antigas políticas e a implantação da atual estratégia econômica. tipo e organizações juvenis,
organizado por Ibase e
Atualmente, a economia está dominada pelos oligopólios dos agronegócios ligados à glo- Instituto Pólis, com apoio
balização que têm suas bases territoriais – e como um amplo laboratório de experimentação – nas financeiro do International
Development Research Centre
zonas mais produtivas e de fronteira do Paraguai. Com um frágil Estado de direito e uma cor- (IDRC).

MARÇO 2008 45
i n t e r n a c i o n a l – pa r a g ua i

rupção institucional recorrente, foram poucas trabalho produtivo. Certamente, na política de


as mudanças no campo das igualdades, com não restrições aos fluxos de capital para fazer
tentativas de golpes de Estado (1992 e 1999) agronegócios, deixa-se a economia nacional
que deixaram feridas abertas na sociedade civil. inexoravelmente dependente das empresas
Tanto o clã de famílias vinculadas ao regime do fornecedoras de sementes e insumos biotec-
Stroessner como os golpistas, historicamente nológicos e do poder de compra do mercado
resistentes à cidadania, com incrível cinismo internacional.
se fazem sentir como grandes democratas (o O país registra também uma extraordi-
general Oviedo, o neto de Alfredo Strossner e nária entrada de recursos oriundos de remessas
uma longa lista de velhos políticos). Cada vez de migrantes, porém meninos e jovens já não
mais, o Paraguai é um país de fortes contras- contam com a presença de seus pais. Deste
tes, cujas ruas estão incompreensivelmente modo, preconfigura-se um tipo de doença
abarrotadas com veículos caros, mas também holandesa na economia, que faz com que se
com meninos e adolescentes sobrevivendo no distorça o sistema de preços de consumo local,
hostil mundo da informalidade. Perante esta reforça-se o já histórico padrão migratório do
lamentável paisagem, é preciso reconhecer país, agora com a expulsão de comunidades
suas causas. camponesas inteiras, aumentam-se os subúr-
As novas gerações se debatem nas bios pobres, em um círculo de desigualdades
conseqüências de um país especializado em onde as pessoas jovens não conseguem sentir-
virtualmente um só setor – a soja2 –, gerador -se plenamente como sujeitos de direito, e
de deslumbrantes dividendos para o grande ca- a sociedade não pode beneficiar-se de seus
pital agrícola, favorecido por nenhum encargo renovadores talentos. A juventude da Asagrapa
impositivo e beneficiado de uma estrondosa aumenta as críticas à reestruturação dramática
concentração de terras. Além disso, este proces- da agricultura: “os jovens vão para a cidade por
so descuidou e prejudicou o modesto universo causa da mecanização, porque os que plantam
de pequenas e médias indústrias geradoras de soja o fazem com tratores e apenas duas pes-

Arquivo Base–IS

2 O patamar de cultivo de
soja transgênica registrado
para a atual safra 2008 é de
2 milhões 600 mil hectares,
o que representa um terço
da superficie apta para a
agricultura no país.

46 Democracia Viva Nº 38
Entre modelos antigos, o mercado e a busca de cidadania

soas manejam quase 100 hectares, então não as pessoas jovens entrevistadas da Asagrapa
há possibilidade do jovem ficar”. demandam ao Estado e às grandes empresas
agropecuárias que os respeitem como agriculto-
res com direitos. Insistem em que “atualmente,
Objetos mutáveis
a terra e o ambiente são duas coisas que se
Este sistema neoliberal de forte espírito an- sustentam juntas.” A mais importante das
ticamponês interrompe a transmissão entre demandas é a terra, concebida como nossa
gerações da condição de pequeno agricultor, o mãe terra (guarani: yvy ñande sy) em termos
qual tem justificativas políticas e de mídia para de uma reforma agrária integral. Assinalam
não sentir culpa alguma pela propriedade das que ao não contar como jovens com terras e
terras camponesas e os recursos naturais do outros recursos produtivos vêem reduzidos seus
país: investimentos, modernização, eficiência, direitos econômicos, considerados vitais para
produtividade, divisas para o país, crescimento emancipar-se como agricultores.
econômico, inserção no mundo. As famílias As propostas de um meio-ambiente
camponesas e seus filhos são considerados natural livre de riscos ecológicos e contami-
“objetos mutáveis” de seu meio, que podem nação genética são parte dos processos que
deslocar-se de suas terras, sob a suposição de entram em jogo com a agricultura mecanizada:3
que estas são trabalhadas a uma baixa produ- pressão por controlar os territórios, negligente
tividade e com produções pouco valorizadas asperção ambiental com organofosforados que
pelo mercado. Sem políticas para a juventude contaminam os solos junto com os cultivos de
rural, a migração é considerada natural, até subsistência e de renda camponesa – com o
recomendada. conseqüente solapamento da soberania alimen-
A migração interna e para o exterior é tar do país – além de danos irreparáveis aos
uma realidade tão crua para os jovens rurais e córregos de água potável e aos arroios, até o
urbanos que um estudante define a migração ponto em que os citados químicos são inalados
como “um enorme mal necessário”. A questão pelas famílias camponesas.
é grave já que quase 33% da população jovem A esse respeito, os jovens da Asagrapa
de 20 a 24 anos é migrante, cifra mais alta para dizem: “Observamos que a maior causa das
as mulheres. Outra característica da juventude doenças é o veneno (agrotóxicos) e por isso
é a prematura união em casamento, sobre- estamos fazendo campanhas contra”. Nas
tudo da juventude camponesa, na qual mais conversações com eles, de maneira quase
da metade das mulheres formam uma família surpreendente, pois boa parte são jovens de
antes dos 24 anos, acedendo à maternidade e pouca escolaridade, fluem inúmeras palavras
paternidade cedo. em torno da luta ecologista: transgênicos,
Mas a migração não elimina os urgen- agrotóxicos, envenenamento, desmatamento,
tes problemas pessoais e sociais. As gerações meio-ambiente, natureza, alimentos saudáveis,
jovens formam parte de uma estrutura social soberania alimentar, saúde, desenvolvimento
definida pelo explosivo incremento da pobreza, rural sustentável, etc. Por sua vez, eles ressaltam
que passou de 33,7% em 1999 para 42% em que, como jovens “promovemos como produzir
2006 (FAO/STP/DGEEyC); cenário que constitui organicamente, sem o uso de venenos, sem
um mau presságio para a coesão social e de produtos químicos e há um lucro, estamos
gerações para a pretendida democracia do utilizando para os cultivos outra vez produtos
Paraguai: a juventude não se sente parte do naturais. Planejamos mais a agricultura orgâ-
Estado nem da economia em curso, pois não nica, não são trabalhos pesados e os jovens
conta com possibilidades de adquirir autono- adoram.”
mia, condição fundamental para um exercício Por outro lado, vários estudantes da
pleno da cidadania. Fenaes consultados se queixam da pouca produ-
Mas a hegemonia dos grandes grupos tividade das atividades teórico/práticas previstas
econômicos transnacionais e seus aliados para aprender conteúdos de ecologia: “Temos 3 As famílias camponesas –
caracterizadas por uma boa
no poder político não domina totalmente a uma matéria chamada Educação Ambiental, na proporção de filhos jovens-
vida das novas gerações. Como movimento qual queremos fazer um projeto de limpeza do que durante o novo século
atravessam esta devastadora
contra-hegemônico de alta importância: as arroio mais próximo, mas nos dizem que não situação, pertencem
sobretodo aos Departamentos
“demandas” com as quais se mobilizam os é possível porque não consta do programa que fazem fronteira com
grupos juvenis, como os estudados no Paraguai, do ministério, então, na verdade, não há aula Brasil e Argentina (Alto
Paraná, Itapúa, Misiones),
constituem a matéria-prima com que saem e prática”. E mais, em relação à problemática assim como Caaguazú, San
Pedro
se mostram no espaço público. Indignadas, ambiental, os estudantes estão convencidos de e Caazapá.

MARÇO 2008 47
i n t e r n a c i o n a l – pa r a g ua i

condidos nos bolsões de renda per capita mais


Arquivo Base–IS

baixos, não conseguem permanecer e concluir


os estudos secundários.
Neste sentido, a obtenção da conquista
do Passe Estudantil desperta outras expectativas
nos estudantes organizados que o sistema edu-
cativo não satisfaz: superação dos problemas de
rendimento e qualidade, revisar os enfoques e
práticas de ensino e a mesma Reforma Educa-
tiva empreendida em 1999, até a melhora do
sistema de avaliação. Ao mesmo tempo, a ju-
ventude camponesa da Asagrapa exige: estabe-
lecimentos secundários relativamente próximos
aos locais de estudo, possibilidades econômicas
para ter acesso aos estabelecimentos urbanos
e propostas de profissionalização do ofício de
agricultor. Uma denúncia específica é que “a
educação deve se adequar à realidade. Agora
temos uma educação que não nos responde,
é uma educação consumista que virtualmente
destrói o jovem criando falsas ilusões. Então,
é necessário que a educação se adapte à rea-
lidade do jovem que projeta sua vida a partir
de sua comunidade. A terra e a comunidade
são elementos muito fundamentais para uma
visão educativa, onde a terra seja um meio de
produção de mantimentos e de convivência em
comunidade, e não um meio de produção do
capital e de acumulação de dinheiro.”
A juventude da Asagrapa denuncia a
coerção a que estão sujeitos quando recla-
mam o direito à terra, por parte das patrulhas
armadas privadas de produtores de soja e
representantes do Estado: “agora o campo se
abre como campo de batalha política, nossos
inimigos são grandes endinheirados que po-
dem matar, comprar e vender a lei facilmente.
Temos a lei contra nós, o Estado contra nós.
Antes, apanhávamos e nos davam uma medida
que: “todo mundo sabe e não faz nada”; “está substitutiva, alternativas, mas agora além da
se deteriorando muito e vai continuar…”; “o repressão, vamos direto para a prisão”, fazendo
Estado deixou a questão totalmente de lado”; alusão à política de criminalização das ações
“faltam leis e informação: queimaram milhares cidadãs diretas. Nos relatos das pessoas jovens,
de hectares de bosque e não ficamos sabendo.” questionam-se fortemente as mediocridades
Para a Fenaes, o acesso e a permanência de seus meios, assim como os dispositivos de
nos ensinos médio e superior estão fortemente controle social por parte da ordem estatal e das
condicionados à facilidade ou não do traslado. instituições adultas. Criticam, particularmente,
Como alternativa às prementes barreiras so- os valores e práticas autoritárias. Nesta linha,
cioeconômicas, a viagem ao estabelecimento observa-se que as corporações adultas não
escolar é uma demanda altamente sentida concebem as pessoas jovens como membros do
pelos jovens dos centros metropolitanos que país, constatando-se quão distante ainda está a
vivem com sérios problemas de ordenamento juventude no Paraguai do benefício do direito
4 Lembre-se que segundo
a CEPAL, o umbral educativo urbano. Paraguai, de maneira mais tardia que à identidade juvenil e do direito à cidadania5
a partir do qual começa a outros países da região, está experimentando vinculado aos DESC, todos estes, elementos
ser possível superar o círculo
vicioso da pobreza é de um processo de massificação da educação centrais da condição jovem.
12 anos de estudo, ou seja,
concluir o ensino médio. secundária.4 Mas, na realidade, os jovens es- Nos pareceres juvenis, há uma forte de-

48 Democracia Viva Nº 38
Entre modelos antigos, o mercado e a busca de cidadania

manda por maiores graus de liberdade e possi- violências simbólicas e que se expressam nas
bilidades de autonomia, mesmo de expressar-se condutas: “Nós os jovens estamos aqui para
na própria unidade familiar, muito especialmen- acatar ordens e não para discutir”, afirma um
te as mulheres que sofrem de maneira mais jovem da Asagrapa. Os dirigentes jovens expli-
intensa as travas para movimentar-se no espaço cam que quando se trabalha com os pais, tanto
ou ir a reuniões de jovens. A partir da luta pelo homens como mulheres não têm, geralmente, a
direito ao Passe Estudantil como epicentro das possibilidade de contar com certa independên-
demandas, a mesma experiência do movimento cia financeira, pois desde as decisões produtivas
estudantil foi construindo novas exigências: livre até a propriedade dos produtos da chácara são
organização e participação juvenil, livre expres- de exclusiva propriedade do pai. Trata-se quase
são perante os estratos docentes e diretores, sempre de direitos imateriais, mas de enorme
respeito às identidades juvenis e facilitação do sensibilidade na condição jovem para possi-
desdobramento da cultura juvenil. Algumas bilitar viver dignamente a juventude – como
demandas já foram reconhecidas (centros de poder se divertir, programar um noivado –,
5 Entendemos que
estudantes) e outras ainda sofrem resistência, que ao combinar-se com o cerceamento de “o conceito de cidadania
pode ser aplicado a qualquer
e às vezes a própria conquista do meio-passe um direito econômico, social ou ambiental – marco econômico, social
é dilatada pela burocracia e os caprichos dos impossibilidade de estudar ou trabalhar, o risco e cultural determinado:
a um Estado, a uma Entidad
empresários do transporte. de contaminação – pode provocar fenômenos supranacional ou, por que
não, ao mundo inteiro.
como a migração. A vocação universalista
A violência se dá também na escola, nas do conceito de cidadania
Violências simbólicas é inquestionável e, portanto,
relações com alguns docentes e diretores que estender ou limitar estes
direitos será uma questão
Outro tipo de demandas arrebatadas na dinâ- desalentam ou ameaçam admoestando o aluno de vontades políticas”.
mica social, levantadas tanto pela juventude que decide participar de manifestações estudan- En: Juventud ciudadana en
la Unión Europea. Consejo de
rural como estudantil, refere-se às múltiplas tis e reivindicar suas demandas. Também, nos la Juventud de España, 2002.

Sinais para uma política de juventude

No próximo dia 20 de abril, o Paraguai Não se pode esperar mais tempo pertinentes ações sócio-pedagógicas de
realizará eleições. Será uma oportuni- para restituir os direitos à educação, é combate ao fracasso escolar; elevando
dade histórica para consolidar a frágil preciso trabalhar nos lugares previstos fortemente a pertinência e a qualidade
democracia, revertendo as corrosivas para que se realizem. Como sugere o educativa. Este último será possível
práticas político-estatais, e o desconhe- Relatório Sul-americano – demandas mediante uma forte reconversão das
cimento dos direitos juvenis. Urge uma para construir uma agenda comum, é equipes de gestão educativa e da alta
mudança da geração e de mentalidade necessário que o Estado garanta tudo profissionalização docente. Além disso,
das eternas cúpulas políticas no poder, o que se comprometeu e muito mais: o para contribuir com o processo demo-
para demonstrar boa vontade com re- pleno acesso de todas as pessoas jovens crático do país e de cidadania juvenil, é
lação às demandas gerais e específicas ao ensino médio, à educação técnico- mister repensar o espaço escolar como
da juventude. -profissional, à universidade, “conforme escola de cidadania.
Resulta absolutamente necessário as especificidades de suas demandas”. Finalmente, é necessário “des-
dotar as pessoas jovens do campo de Por exemplo, para o caso de jovens cam- -cotidianizar”, “des-adultizar” e “des-
terras para deter o arrastão de jovens poneses, uma educação que valorize a -tradicionalizar” as instituições (minis-
camponeses (e urbanos ao exterior) que cultura rural e o ecossistema camponês. térios, escolas, forças de segurança,
provoca a expansão de monoculturas Para isto, um passo básico é passar partidos, organizações empresariais,
transgênicas e o gado extensivo. Mas de escolas reprodutoras de desigual- ONGs, cooperativas, sindicatos, Igrejas),
efetivar as demandas que mais mobili- dades socioeconômicas, com maiores deficitárias de conhecimentos e comuni-
zam a juventude paraguaia supõe uma ou menores graus de aprendizagem cação com os jovens. Para superar todos
provocação política central: converter o segundo a origem familiar, para um estes abismos que excluem a juventude,
atual modelo concentrador de recursos sistema educativo que permita o total necessita-se de uma atmosfera estimu-
produtivos em poucos proprietários e acesso ao ensino pós-básico, mediante lante e mais que um novo governo,
não gerador de emprego, em outro a liberação completa do Passe Estudantil, uma “mudança democrática” que possa
que possibilite criar empregos decentes através da igualdade – e conseguinte abrir um melhor horizonte de país, com
para todos, sustentado no leque mais gratuidade – nas condições de ingresso. autoridades nacionais e uma sociedade
amplo e diversificado possível de setores Mas além disso, para o caso paraguaio, comprometida com as demandas da
econômicos, onde a formação e o pro- é preciso realizar enormes esforços para vigorosa juventude. Somente assim, a
tagonismo da força de trabalho jovem obter a permanência e continuidade dos geração jovem alcançará sua desejada
devem ser cruciais. jovens no sistema educativo mediante emancipação.

MARÇO 2008 49
i n t e r n a c i o n a l – pa r a g ua i

testemunhos da juventude do campo, constata- melhores condições para obter a “inclusão”


-se que, diariamente, registram-se episódios de e fortalecer as redes da comunidade. Há uma
desprezo nas escolas rurais. Alguns docentes série de aspectos, tais como o corpo, a comu-
dizem a seus alunos rurais: “Você quer ser nicação, a sociabilidade, o sentido de justiça e
burro como seu pai? Vai carpir a terra suando o conhecimento das próprias capacidades, que
todos os dias?”, e nós ficamos indignados. Em estão presentes nas culturas juvenis e podem ser
contraposição a este tipo de preconceito, um desenvolvidas mediante atividades recreativas,
rasgo distintivo básico da Asagrapa, é hastear, esportivas e artísticas, abrindo, assim, incomen-
como direito, o fortalecimento dos rasgos suráveis possibilidades à criatividade. A esse res-
próprios da cultura e identidade camponesas peito, ambas as Situações-Tipo priorizam como
em uma perspectiva juvenil compatível com a demandas, lugares de encontro e recreação.
cidadania mais global; a qual mediante orga- Embora sem educação e sem inserção traba-
nização, vão fazendo possível. É notável como lhista, quase não sobre nada para a juventude
em plena globalização liberal, a juventude camponesa, eles mesmos geram condições de
exalta a identidade camponesa, e uma série recreação juvenil com suas próprias propostas
de conceitos como “arraigo”, “propriedade culturais e lúdicas.
cultural” e demandas alternativas à migração:
“O compromisso do Centro Juvenil Regional é
que a juventude quer ser outra vez camponesa,
porque agora recuperamos em grande escala a
identidade de camponeses, de querer voltar a
dizer eu sou um camponês, porque antes, ao
dizer camponês riam.”
Como em nenhum outro momento da
vida, durante a juventude conta-se com as

Arquivo Base–IS

50 Democracia Viva Nº 38
i n t e r n a c i o n a l
Uruguai
Lilian Celiberti
Cotidiano Mujer1

Os cabelos
brancos valem
mais do que a
acne
Se quiséssemos ressaltar uma conclusão do trabalho de pesquisa realizado no Uruguai,

no âmbito da pesquisa Juventude e Integração Sul-americana, seria a percepção dos en-

trevistados de que, ser identificado como jovem significa uma perda, uma classificação

simplista que restringe horizontes e oportunidades. “Os cabelos brancos valem mais do

que a acne”, diz um jovem ou “se sou jovem, perco”, diz outro. A equipe de pesquisa no

Uruguai2 analisou dois espaços de organização juvenil: as juventudes político-partidárias

e o Movimento pela Legalização da Cannabis.

Analisar a militância partidária dos jovens (e as organizações juvenis que existem 1 Este artigo foi editado com
base nos estudos de caso
elaborados pela equipe de
no interior dos três principais partidos políticos do país, Frente Ampla, Partido Nacional pesquisa: Verónica Filardo,
Solana Quesada, Laura
Noboa, Gabriela González,
e Partido Colorado) nos impõe vários questionamentos centrais: qual o lugar que ocu- Cecilia Chuí, Sebastián Aguiar,
Carlos Muñoz.

2 Formada por Cotidiano


pam atualmente na política partidária essas organizações de jovens política e partidaria- Mujer e o Grupo de Estudos
Urbanos e Geracionais
da Faculdade de Ciências
mente organizados? Como estão vinculadas, nos partidos políticos, as diferentes faixas Sociais da Universidade
da República.

MARÇO 2008 51
internacional – uruguai

etárias (jovens, adultos, velhos)? Como se “juventude” em si, a menos que seja na relação
com um “outro”, adulto ou velho (Bourdieu,
configuram as relações entre gerações no 1990), o que nos leva a perguntar a respeito das
formas com que se expressam os conflitos de
âmbito político? Registram-se diferenças gerações. O “adultocentrismo” e o “adultismo”
(Krauskopf, 1999) são expressões do bloqueio
entre partidos de direita e de esquerda? entre gerações que impossibilita o diálogo entre
Como são integradas as novas agendas de di- jovens e adultos e se traduz, muitas vezes, na
reitos: gênero, sexualidade, racismo, ecologia? desafeição por parte dos jovens dos mecanis-
Os partidos seguem pautas comuns de relacio- mos de participação social e política.
namento entre gerações? Estabelece-se algum Da Costa (2003) resume uma série de
tipo de divisão de trabalho no campo político, dados, resultados de uma pesquisa nacional,
em função da idade? Por que é necessário que que podem ser úteis para caracterizar a juventu-
os jovens tenham uma organização própria de uruguaia. Destacando deles só o diretamente
no interior dos partidos? A existência dessas pertinente para esta pesquisa, podemos dizer
organizações de jovens indica que elas têm que corrobora o esquerdismo juvenil, assim
reclamações diferentes específicas da idade? como a tendência internacional que aponta
A segunda situação-tipo selecionada é um menor interesse pela política por parte dos
o Movimento pela Legalização da Cannabis. O jovens do que dos adultos – já que o grau de
movimento é constituído pela articulação de interesse e valorização da política é uma variável
três organizações com perfis diferentes, que se positivamente correlacionada com a idade. Só
juntam para a organização de uma atividade 25% dos jovens de 18 a 29 anos dizem consi-
ou evento muito específico: a celebração, em derar a política como algo muito ou bastante
5 de maio de 2007, do Dia Mundial da Ma- importante e 18,9% consideram a afinidade em
conha, que expressa uma demanda concreta: relação às posturas políticas como algo impor-
a legalização da cannabis. Como expressão tante no casamento. Em relação à valorização
organizacional, que tem como objetivo po- da democracia, vemos que os jovens, embora
litizar uma demanda concreta e inseri-la no mantenham o alto grau de valorização positiva
espaço público, seu estudo permite perguntar: própria dos uruguaios indicada por muitos
a legalização da maconha é uma reclamação autores (Moreira, 2004), tendem a fazê-lo em
estritamente juvenil? O que essa demanda traz menor medida que os adultos. Isto demonstra
para a agenda pública? O que faz com que 6 uma possível ruptura com uma das caracte-
mil ou 7 mil jovens se juntem em um dia frio rísticas da auto-imagem dos uruguaios: a alta
de inverno para participar do Dia Mundial de valorização da política por parte da sociedade
Legalização da Cannabis? (Moreira, 1997; Latinobarómetro, 1995). Os
As duas situações, por razões diferentes, jovens hoje parecem não continuar com esta
levam-nos claramente a um vazio: nossa capa- tradição, pelo menos se considerarmos os dados
cidade de pensar o presente com categorias da pesquisa.3
adequadas às mudanças que, nos últimos anos, No entanto, durante o ano de 2007,
transformaram as formas de sociabilidade e a convocação para eleições juvenis nos dois
a esfera pública. Em nosso país, essa análise partidos tradicionais, hoje na oposição, e a
não foi elaborada, excetuando, possivelmente, alta participação de jovens parecem marcar um
trabalhos a respeito das ocupações nos colégios elemento novo no cenário político. Significaria
(Graña, 2005; Zibechi, 1997) ou estudos sobre uma ruptura da histórica identificação dos
a cultura juvenil (Filardo, 2002). E a palavra jovens com a esquerda no Uruguai? No sema-
trabalho por aqui não sobra. Em que sentido nário Brecha, o historiador Jaime Yaffé afirma
as formas de expressão dos jovens entrevistados que “A retirada das juventudes da esquerda
nos impõe uma mudança de época? Em que abre um espaço para que outros atuem. Neste
sentido interpelam as categorias do mundo caso, possivelmente, os jovens blancos4 estejam
adulto, suas instituições e políticas? ganhando uma parte do terreno que a esquerda
3 No entanto, isto pode ser começa a perder. Além disso o governo não tem
relativizado com relação ao
propriamente políticas de juventude ou não
que se deduz a respeito da
definição “do que é político”.
Juventudes partidárias são visíveis. Isso também gera um espaço para
4 Integrantes do Partido Aproximar-se do juvenil leva rapidamente à que os partidos da oposição possam fazer sua
Blanco, principal partido
da direita uruguaia. interpretação deste mote como uma categoria prédica e colher adesões” (J. Yaffé em Brecha).5
5 Brecha 18 de maio de 2007. relativa, significa dizer que não existe algo como Nos grupos de discussão aparece clara-

52 Democracia Viva Nº 38
Os cabelos brancos valem mais do que a acne

mente a dificuldade dos jovens militantes em

Arquivo Cotidiano Mujer


assumir o governo da Frente Ampla. A discussão
entre realismo e idealismo não é nova para a
esquerda em nosso país. Há algum tempo, vem
se mantendo uma discussão interna na Frente
Ampla a respeito dos esboços programáticos e
as prioridades do partido (Mieres e Argônios,
1989). Embora a discussão não seja nova, é
novo o contexto. Como os próprios militan-
tes expuseram, não é a mesma coisa discutir
essas questões enquanto a Frente Ampla era
oposição e agora que é governo. Entretanto,
muitos jovens recusam-se a se considerar gover-
no, referindo-se aos adultos do partido como
aqueles que governam.6

Ambivalências e conflitos
Em termos gerais, é possível afirmar que a visão
dos jovens militantes sobre os adultos de sua
organização está freqüentemente carregada de
ambivalência e conflito. Neste relacionamento
cheio de conflitos se entrelaçam amor e ódio,
ciúmes e admiração em uma busca por sua
própria identidade. É possível entrever, ao
analisar os discursos dos jovens em questão,
duas formas de vinculação com os dirigentes de
seus respectivos setores: aqueles agrupamentos
nos quais predomina um amor cego ou apoio
sem crítica à diretoria partidária (que se torna
modelo de referência indisputável) e as outras
nas que afloram e se manifestam sentimentos
muito críticos e até de velada hostilidade com
relação aos dirigentes partidários. tação e/ou posicionamento crítico em relação
No primeiro grupo, se sobressaem as ao mundo adulto. Os dois setores juvenis que
juventudes dos partidos tradicionais (Branco e proferiram discursos próximos desta postura
Colorado) e a Juventude Comunista que, ao se foram a Juventude da Vertente Artiguista e a Ju-
referir aos adultos de outras gerações, o faz a ventude do Partido Socialista, que se mostraram
partir de um conjunto de imagens e simbologias extremamente críticos com seu próprio partido
que deixa entrever forte admiração e respeito, político e/ou setor, suas estruturas partidárias,
e que dá a pauta de uma convivência que se e o que muitos dos jovens denominaram “a 6 Eventualmente, outra
hipótese alternativa e/
expressa em termos de harmonia, acordo mú- militância dos velhos”. ou complementar para o
caso da esquerda poderia
tuo e consentimento. Isto não significa que Vários jovens manifestaram dispor de ser levantada. Hoje, são
estes jovens se percebam como um conjunto pouco espaço de influência real dentro do constituídas “organizações
juvenis” no interior dos
homogêneo com relação aos dirigentes ou partido já que, nos termos de um militante, partidos políticos que
reconhecem outros tempos
que não atribuam à juventude do partido um “os cabelos brancos pareceriam ter mais le- e são produto desses. Estas
papel específico. Simplesmente, o estudo revela gitimidade do que a acne…”7 Alguns jovens organizações mantêm uma
relação diferente que, talvez,
uma forma de relacionamento que é necessário vivem a característica da participação como um revele uma predominância
de lutas entre posições
considerar para compreender as identidades elemento que desestimula a militância juvenil (entre as juventudes políticas
construídas pelas juventudes políticas. enquanto outros o vivem como uma contradi- de diferentes setores da
esquerda) pelo fato de
O segundo tipo de relacionamento com ção inerente ao partido. É importante destacar “ser governo”).
os dirigentes estaria integrado por aquelas para o caso dos jovens do agrupamento MPP8 7 Ver González, 2006.
facções que encarnam a vertente mais radical que, com o intuito de reverter o que muitos 8 Movimento de Participação
(“parricida”) com relação às diretorias de seus jovens passaram a chamar de “geriatrocracia” Popular, setor majoritario
dentro da Frente Ampla
partidos e cuja identidade se cria a partir de um partidária, optaram por dissolver a juventude e formado pelos militantes
do Movimento de Liberação
distanciamento e de uma posição de confron- inserir-se ao longo de todos os elos da estrutura Nacional – Tupamaros.

MARÇO 2008 53
internacional – uruguai

Diálogo entre diferentes


Dado que o eixo da análise das duas
situações está posto na relação que os
contrato em forma permanente, mas experiência de mobilização, os efeitos
jovens mantêm com a política, vale refletir
sempre a termo. Existe, desse modo, que sem dúvida gerou e a obrigação de
sobre os seguintes pontos:
uma interessante semelhança com manter os frutos do esforço (a comis-
1. As situações-tipo revelam, em si mes-
as juventudes organizadas de alguns são gerada para a modificação legal no
mas, contextos diferentes e respondem
partidos políticos. Além de ciúmes e âmbito parlamentar e a necessidade de
a processos históricos diferentes. Os
receios, que também se expressam, sustentar no espaço público o tema
partidos políticos têm uma trajetória
capitalizam-se esforços para o alcance da demanda, por exemplo) obrigam
(embora relativamente variável entre
de interesses comuns e os resultados a a renegociação da duração da exis-
si ou nos setores que os integram)
que chegam alcançam-se indubitavel- tência do movimento e a participação
que remonta ao nascimento do Estado
mente em função dessa conjunção. de cada uma das organizações que o
uruguaio como independente. Significa
3. O olhar simultâneo dessas situações- integram.
que as juventudes político-partidárias,
-tipo permite ver mais do que rachas, 5. O fato de que uma das organizações,
são estruturas que os jovens dos anos
movimentos e uma dinâmica na qual Prolegal, transforme-se, em breve,
2000 herdaram. Eles não as criaram,
pode se ordenar a participação política em Prodireitos, estendendo e forma-
pertencem a outras gerações e supõem
juvenil. Produto do diagnóstico do blo- lizando uma série de demandas, não
uma certa continuidade. Sem dúvida,
queio entre gerações que se produz em só revela uma evolução na trajetória
eles significam e reformatam, produ-
alguns setores políticos de esquerda, os em termos organizacionais (a incor-
zem e reproduzem, mas, salvo algumas
jovens militantes (e que, segundo eles poração de demandas, estratégias
estruturas organizacionais particulares
mesmos reconhecem, a militância nos e alianças à forma organizacional),
que foram convenientemente especi-
partidos políticos já deixou de ser uma assim como em termos discursivos
ficadas como “figuras”, nasceram e
característica distintiva dos “jovens”) (é clara a formulação em termos de
pertenceram a outras épocas. Portanto,
expõem alternativas para novas for- “direitos individuais”). As palavras
é pertinente para a análise das juventu-
mas de “fazer política”. Desde novas de ordem centrais de Prodireitos são:
des partidárias perguntar o que mudou
articulações, com outras estruturas, legalização da maconha, descrimina-
nelas no contexto histórico atual, e o
mais flexíveis, menos tradicionais, com lização do aborto e diversidade de
que permaneceu inalterado.
metas estabelecidas para o curto prazo, orientações sexuais. Para cada uma
2. A demanda pela legalização da maco-
em alianças com outros setores da dessas ordens, a organização, basi-
nha é própria deste momento histórico.
sociedade civil que, a partir de lógicas camente de jovens, e muitos deles de
Seus antecedentes (escassos) não são
muito diversas, permitem compartilhar origem em militâncias juvenis (tanto
anteriores ao ano 2000. Portanto,
certas demandas. em juventudes político-partidarias
pertence, como demanda, a esta ge-
4. A potencialidade dessas formas orga- como do movimento estudantil) tem
ração de jovens. As três organizações
nizacionais, que parecem esporádicas “diferentes aliados e com todos é
que integram a Coordenadora são
e estratégicas, mas pontuais, extre- capaz de articular ações e administrar
plenamente conscientes de que esta
mamente pragmáticas e limitadas à efeitos.9 Também Laplacita se integrou
fórmula (“legalizar a maconha”) tem
organização de um evento, revelam, a outros espaços de trabalho em torno
diferentes conteúdos para cada uma
entretanto, uma potencialidade inte- do tema do aborto e em especial ao
delas. Entretanto, conseguem criar um
ressante na capacidade de se conver- movimento de cidadãs e cidadãos de
núcleo único e trabalhar juntas em uma
ter em agentes de mudança social. um blog pela legalização do aborto.
meta que está definida no imediatismo
A participação no Movimento pela
e, no máximo, para o curto prazo,
Legalização da Cannabis permite um
embora pareça que todas carregam
questionamento do status quo social,
a pretensão de ir renegociando o
que transcende a demanda concreta. A

partidária. Entretanto, muito além da questão participam três organizações muito diferentes
de como empreender essa busca por habilitar entre si: Plantá tu Planta, La Placita e Prolegal.
canais de participação, parece existir uma Não estamos perante organizações baseadas
contradição entre a visão da esquerda juvenil em posições de classe nem sequer perante pro-
como agente que deve imprimir uma nova postas que pretendam um discurso integral. A
9 Os aliados ao tema estampa ao partido e à mudança e, os canais questão é que os valores das organizações aqui
da maconha não são, reais de participação previstos e formalizados analisadas estão muito mais estruturados como
por exemplo, os que
se identificam com a para a juventude. uma tribo urbana no sentido de Maffesoli do
descriminalização do aborto.
No entanto, Prodireitos gera que como uma carta de princípios. Maffesoli
redes e opera a partir destes (1988) referiu-se a um processo de neotribali-
vínculos em cada um dos Legalização da cannabis
“direitos” sobre os quais zação nas sociedades de massa, e assinalou que
a organização está
fundamentada. No Movimento pela Legalização da Cannabis estas “tribos” constituem uma resposta ao auge

54 Democracia Viva Nº 38
Os cabelos brancos valem mais do que a acne

da massificação. As tribos são uma resposta ao apropriação e a defesa da territorialidade da


processo de “desindividualização” inerente às cidade como espaço simbólico onde se constrói
sociedades de massa, cuja lógica consiste em a identidade. O caso da La Placita é claro. Ali
fortalecer o papel de cada pessoa no interior igualmente a sociabilidade inicial, o cimento
do agrupamento. que os une é afetivo, apoiado em instâncias
Precisamente, o subtítulo do livro é “O compartilhadas, na geração de um vocabulário
declive do individualismo nas sociedades de e uma visão de mundo a partir de compartilhar
massa”. Este modelo foi basicamente aplicado o momento e conversar. Nisso e a partir disso,
a culturas juvenis. Por exemplo, os anos de avança-se; recordemos a entrevista: “– Ocorre
experiência no cultivo, a experimentação com com as drogas o que acontece com outras coi-
as diferentes variedades da planta, a erudição sas, em que aquele que faz o que está proibido
sobre a história da maconha, a qualidade do quase sempre vai ter que se cuidar para que não
produto obtido, etc. são importantes nos fun- lhe aconteça isto nem o outro nem o outro, e aí
damentos da Plantá tu Planta. Ir à pracinha do começa a ver todas as rachaduras da sociedade
bairro e puxar um fumo conversando, além de e aí você acaba ficando um pouco contra um
representar o compartilhamento de um ideário montão de coisas”.11
niilista é outro exemplo desse desenvolvimento Uma última particularidade a ressaltar é
paralelo entre afetividade e ação urbana. Pro- a ausência de hierarquias preestabelecidas. No
legal pode parecer um pouco diferente, uma entanto, isto não significa que não apareçam
vez que se configura como uma organização lideranças marcadas nas organizações, mas
com personalidade jurídica, mas todos os inte- nenhuma tem uma organização estabelecida,
grantes são amigos entre si, compartilham um normas, autoridades nem maiores formalida-
laço anterior e as reuniões são desculpa para des. Cabe destacar que as três organizações
um jantar ou uma saída posterior. A forma legal vêem como problemático assumir sua reivindi-
foi mais uma decisão estratégica do que uma cação como uma “reivindicação dos jovens”, já
condição preexistente. que isso implicaria, de alguma forma, diminuir
As três organizações representam essas sua demanda.
novas formas de solidariedade. Em cada uma,
os fatores aglutinantes são diferentes. Na Plantá
tu Planta, por exemplo, comentavam: “Somos
um grupo de plantadores individuais de canna-
bis.: – Nada mais? – Isso engloba muitas coisas.
– Somos contra o narcotráfico, pensamos que a
maconha não deve ser uma substância proibi-
Referências
da… e a planta muito menos. Estamos militando
nisto desde 2005, também obtivemos o nosso BAYCE, Rafael (1989): CULTURA POLÍTICA URUGUAIA: DESDE o
Batlle ATÉ 1988, Montevidéu, FUNDO DE CULTURA
auto-abastecimento desde 2005 e tentamos UNIVERSITÁRIA.
ser coerentes com nossos princípios”. 10 Isso BUTLER, J., LACLAU, E. E ZIZEK, S., (2004) “CONTINGÊNCIA
significa muito mais que assegurar seu consumo HEGEMONIA E UNIVERSALIDADE. DIÁLOGOS
CONTEMPORÂNEOS NA ESQUERDA”, FCE, Buenos Aires.
próprio e individual. Significa transmitir seus COSTA, PÉREZ-ORIOL E OUTROS (1997). TRIBOS URBANAS.
conhecimentos, publicar fotos de suas plantas O ANSEIA DE IDENTIDADE JUVENIL: ENTRE O CULTO À
no website, comparar as diferentes variedades IMAGEM E A AUTOAFIRMACIÓN Através DA IMAGEM,
Madrid, EDIT. PAÍDÓS.
obtidas e as técnicas usadas, reuniões para FILARDO, V. ET ÀS TRIBOS (2002): URBANAS EM Montevidéu:
experimentar a colheita…compartilhar o con- NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE JUVENIL. TRILCE,
sumo, sendo este o ritual mais importante. O Montevidéu.
GRAÑA, FRANCOIS (2005): NÓS OS DO GRÊMIO. PARTICIPAÇÃO,
consumo de maconha é, então, transformado DEMOCRACIA E ELITISMO EM UM MOVIMENTO SOCIAL.
em ritual e constitui a base dos valores comuns NORDAN, Montevidéu.
e do discurso dos integrantes. Habermas, J. (1987) TEORIA E PRAXE: ESTUDO DE FILOSOFIA
SOCIAL. EDITORIAL TECNO, México.
As organizações corroboram, no fim, IPARRAGUIRRE, J. (1998): A OFICINA DE COMUNIDADES VIRTUAIS
com os valores específicos que Maffesoli atri- 5/3/1998. HTTP://WWW.GPD.ORG/MAIG98/ES/
buiu a esses grupos: a afirmação da subjetivi- COMVIRTURE.HTM
LACLAU, E. E MOUFFE CH. (1987) HEGEMONIA E ESTRATÉGIA
dade no grupo, o predomínio das experiências SOCIALISTA. PARA UMA RADICALIZAÇÃO DA
estético/sensíveis e a “corporização” (seu DEMOCRACIA SÉCULO XXI, Madrid
discurso está repleto de referências ao sabor, MAFFESOLI, M. (1990) O TEMPO DAS TRIBOS. O DECLINAMIENTO
DO INDIVIDUALISMO NAS SOCIEDADES DE MASSA.
ao buquê, aos tricomas e à qualidade em geral ICARIA, Barcelona. 10 Entrevista.
do produto). Também aparece com clareza a PERELLI, CONSERTA & RIAL, Juan (1986): DE MITOS E MEMÓRIAS 11 Grupo de discussão.

MARÇO 2008 55
r e s e n h a

expressivo aumento do emprego formal.


Contudo, a prosperidade não alcançou
a juventude. Segundo afirma o relatório: “O
que mais distingue os jovens dos adultos é
o tipo de emprego ao qual têm acesso. Dois
de cada três jovens trabalham em atividades
informais, nas quais freqüentemente a remu-
neração é menor do que um salário mínimo e
sem a cobertura da seguridade social” (p.38).
Por isso, a renda da juventude é apenas 56%
da recebida pelas pessoas adultas.
Tal fragilidade diante do mercado
Trabalho decente explica porque jovens aceitam empregos
que pessoas adultas recusam, como vimos
e juventude na na pesquisa no caso dos cortadores de cana
América Latina (exigência de força física) e telemarketing
(estresse emocional, horários pouco usuais).
Organização Internacional
do Trabalho (OIT) As pessoas se adaptam diante das poucas
110 págs. oportunidades e, freqüentemente, se conso-
Disponível em: <www.oitbrasil.org. lam pensando que permanecerão nelas por
br>. pouco tempo, só até completar os estudos ou
encontrar outro emprego.
O retrato da juventude trabalhadora
A pesquisa Juventude e Integração Sul- mostra impacto de fortes discriminações de
-americana constatou que emprego estável é gênero e de etnia. Entre as mulheres, o em-
uma das principais demandas das pessoas de prego mais comum é o de empregada domés-
15 a 29 anos. O relatório Trabalho decente tica ou servente em empresas. Observamos
e juventude na América Latina, produzido na pesquisa a situação das jovens indígenas
pela Organização Internacional do Trabalho na Bolívia, que vêem nessas atividades a
(OIT), fornece dados que ajudam a enten- maneira de sair da zona rural e entrar no
der o contexto no qual essa reivindicação mundo urbano. O racismo é um componente
é formulada, com informações e análises essencial nesse tipo de estratégia: em muitos
fundamentais para discutir políticas públicas casos, as mulheres negras ou índigenas só
para o continente. conseguem trabalho como domésticas.
Há 106 milhões de jovens na América Não há uma ocupação para os homens
Latina. que sofrem com taxa de desemprego que exerça papel semelhante ao de emprega-
de 16% – o triplo da média da população. da. Os rapazes, em geral, encontram trabalho
Ao longo desta década, a economia da região no comércio ou nos serviços, desempe-
cresceu a bom ritmo, mais de 4% ao ano, nhando funções como vendedor, auxiliar
impulsionada pela alta demanda interna- de escritório, balconista. É muito comum a
cional por produtos agrícolas, minerais e realização de pequenos biscates, ganhando
por combustíveis. Em países como Brasil e dinheiro quando é possível – cenário comum,
Peru, o ciclo vem sendo acompanhado por por exemplo, entre a juventude da região me-

56 Democracia Viva Nº 38
tropolitana de Buenos Aires, na Argentina, e da personalidade de cada um(a).
organizados no movimento Jovens de Pé. Alcançar esses objetivos requer
Cerca de 20% das pessoas jovens na mudanças macroeconômicas, diz a OIT no
América Latina não estudam nem traba- relatório, pois o modelo latino-americano
lham. As mulheres constituem espantosos atual, baseado na exportação de commodities
72% desse total, o que a OIT explica pelas de baixo valor agregado, não consegue gerar
discriminações que enfrentam, como maior empregos suficientes para a população, mui-
índice de abandono escolar e “pelas maiores to menos para a juventude. A Organização
dificuldades que têm em ingressar no mer- preconiza o incentivo a setores econômicos
cado de trabalho. Muitas vezes, por padrões intensivos em mão-de-obra, como manu-
culturais, atribuem-se às mulheres tarefas fatura e serviços, e o desenvolvimento de
domésticas e no interior das famílias, que políticas públicas que aproximem jovens e
assumem também ao se casarem e/ou terem empresas, facilitando a contratação de pes-
filhos” (p.40). soal. Avalia medidas tomadas pelos governos
A grande quantidade de pessoas jo- do continente que, em geral, envolvem a
vens em situação de risco social agrava o concessão de benefícios fiscais a empresas
problema da violência e do crime. A América que contratem jovens como aprendizes (ver
Latina não é a região mais perigosa do pla- quadro-resumo às páginas 63, 65 e 67).
neta – a não ser para a juventude. Os dados Segundo o relatório, tais iniciativas
mostram que o continente ocupa o primeiro têm méritos, como inserir parte da juventude
lugar entre mortes violentas de pessoas de no mercado de trabalho, mas apresentam
15 a 24 anos, bem à frente da África. problemas sérios, como a falta de políticas
As dificuldades enfrentadas pela específicas para as mulheres e por muitas
juventude latino-americana levam muitas vezes não significarem a continuidade da
pessoas a emigrar e tentar encontrar em formação profissional da juventude – apenas
outros países melhores possibilidades de sua inserção em emprego de baixo salário,
trabalho, escola ou serviços de saúde. A sem perspectivas de crescimento.
tendência também ocorre porque os meios A OIT critica países que adotaram
de comunicação disponibilizam muitas reduções no salário mínimo de pessoas jo-
informações sobre a vida no exterior, em vens, como o Chile, mostrando que a medida
especial nos Estados Unidos e na Europa, não aumentou o emprego. Recebem elogios
apresentando essas regiões sob perspectiva programas que estimulam o desenvolvimento
favorável. A ONU estima que um terço de juvenil, como o acesso à universidade (ProU-
todas as pessoas migrantes são jovens e o ni, no Brasil) e de criação de pequenas em-
percentual sobe para 50% se for considerada presas por jovens (Colômbia, Chile e Peru).
a faixa etária até 29 anos. Enfim: o caminho pela melhor inserção da
Para a OIT, “o trabalho decente é um juventude passa por mais proteção social e
conceito dinâmico, uma trajetória, antes que direitos trabalhistas.
um estado ou situação” (p.50). Mais do que
um emprego com bom salário e condições
dignas, trata-se da inserção social que privi-
legia oportunidades de educação, convívio
com família, desenvolvimento de amizades Maurício Santoro

MARÇO 2008 57
Indicadores
Patrícia Lânes* e Maurício Santoro**

Juventude
sul-americana
em rede,
um desafio A pesquisa envolveu Argentina, Bolívia,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai e foi realizada
de março a dezembro de 2007. Os seis países

metodológico
participantes estão envolvidos em processos
de integração regional (Mercosul, Comunidade
Andina, União das Nações Sul-americanas) e

da pesquisa
compartilham histórias de lutas contra ditadu-
ras militares e esforços de democratização. A
equipe de pesquisa foi formada por cerca de
50 pessoas, organizadas em rede.
Foram selecionadas 19 situações-tipo
para estudo.1 Por esse termo, entendem-se
processos sociais que explicitam demandas
juvenis a partir das relações sociais das orga-
A juventude é estratégica para se pensar a nizações nas quais atuam jovens de diferentes
democracia, seus impasses e possibilidades de países. Roteiros comuns de pesquisa foram
renovação. A pesquisa Juventude e Integração elaborados coletivamente e utilizados em todas
Sul-americana: caracterização de situações-tipo as situações-tipo pesquisadas – o que permitiu
e organizações juvenis integrou campo de estu- estabelecer diferenças e semelhanças entre os
dos e ações que buscam entender e influenciar estudos. Em geral, tais situações-tipo abor-
processos sociais em curso, como as diferentes dam reivindicações em torno de temas como
formas de organização das juventudes da Amé- educação, trabalho, circulação, vida segura,
rica do Sul, suas demandas, como se expressam meio-ambiente e cultura. Questões como as
no espaço público e a relação desses processos possibilidades de construção da identidade
1 Para lista completa das com a constituição de alianças políticas geradas juvenil e modos de reivindicação e pressão
situações-tipo pesquisadas,
ver artigo de Eliane Ribeiro pelo Mercosul, seja a partir dos governos, seja por mais participação no espaço público estão
e Regina Novaes nesta
publicação, pág. 3. pela sociedade civil. presentes em diversas demandas pesquisadas.

58 Democracia Viva Nº 38
Exemplo nacional Tabela 1

O desenho da rede de investigação teve como Número de pessoas entrevistadas


base a experiência da pesquisa Juventude Bra- País Em entrevistas Em grupos focais Total
sileira e Democracia: participação, esferas e ou de discussão por país
políticas públicas, realizada em 2004 e 2005, Argentina 57 - 57
também coordenada por Ibase e Pólis, que
Bolívia 48 45 93
envolveu nove instituições em oito Regiões
Metropolitanas brasileiras. Profissionais de Brasil 124 - 124
universidades públicas federais e organizações Chile 57 30 87
não-governamentais com distintas trajetórias
Paraguai 30 42 nos grupos, 522
no trabalho com/sobre jovens trabalharam 450 na pesquisa
lado a lado. quantitativa
A rede permitiu a construção de espaços
Uruguai 34 43 77
de diálogo na pesquisa, o que tornou possível a
criação de um processo capaz de considerar não Total de pessoas entrevistadas 960
apenas o tema em sua pluralidade, mas também Fonte: Juventude e Integração Sul-americana: caracterização de situações-tipo e
organizações juvenis, 2008.
uma certa diversidade de olhares e acúmulos
sobre a juventude brasileira. O resultado foi o
fortalecimento de um campo de conhecimento,
debate e intervenção sobre esse assunto.
Tendo como base essa experiência, a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
atual pesquisa impôs-se o desafio de construção da República).
de duas redes: a primeira, de pesquisadores(as)
e instituições no Brasil; e a segunda, desafio
ainda maior, uma rede sul-americana de or- Vez e voz
ganizações com experiência com jovens e em A pesquisa utilizou diversos métodos qualita-
pesquisa. tivos, como entrevistas e grupos focais e de
A primeira foi formada com certa fa- discussão. Também foram usados alguns instru-
cilidade pelo Instituto Pólis, coordenador da mentos quantitativos, nos casos da Argentina
pesquisa no Brasil, a partir de contatos estabe- e do Paraguai. No total, foram ouvidas 960
lecidos durante a pesquisa brasileira, contando pessoas, como mostra a Ferramenta valiosa
com universidades públicas, como Universidade Tabela 1.
Federal do Rio de Janeiro, Universidade Fede- Grupos focais e de discussão foram outros
Foram realizadas
instrumentos utilizados na pesquisa. No
ral Fluminense e Universidade Federal do Rio entrevistas de vários tipos. Uruguai, foram a ferramenta mais im-
Grande do Sul, e também com organizações As mais comuns foram portante, tanto no caso das juventudes
não-governamentais, como a Ação Educativa, conversas individuais en- partidárias como na Coordenadora para
e investigadores que se envolveram individu- tre pesquisado-res(as) e a legalização da maconha. A equipe uru-
almente. guaia aproveitou o formato dos grupos
jovens dos grupos anali-
de discussão para observar os debates
A segunda rede foi formada por orga- sados. As pessoas entre- nos quais se constrói o discurso público
nizações sediadas nos seis países pesquisados, vistadas exerciam funções dessas organizações.
a partir de contatos das instituições coorde- diversas: algumas se des- Nesse tipo de mecanismo, a equipe
nadoras e de mapeamento dos grupos juvenis tacaram como lideranças reúne pequena quantidade de jovens,
e instituições que trabalham com juventude faz perguntas sobre temas-chave e es-
nas grandes mobilizações
timula o debate entre quem participa.
na região. O resultado foi o envolvimento de juvenis recentes, como Em geral, são apresentadas questões
organizações com histórias e perfis distintos a Rebelião dos Pingüins polêmicas e controversas, justamente
e que, de diferentes maneiras, ou haviam (estudantes secundaris- para impulsionar a troca de opiniões.
construído trajetória de trabalho com jovens tas), no Chile, e a Revolta Variante desse instrumento foi utilizada
aliada à produção de conhecimento sobre esses no Paraguai, com a juventude camponesa
do Buzu (de estudantes
da Asagrapa (Asociación de Agricultores
sujeitos (caso da Fundación SES, da Argentina; contra o aumento da ta- de Alto Paraná), a quem foi pedido que
do CIDPA, no Chile; da Base-IS, no Paraguai; rifa de ônibus), em Salva- encenasse esquetes sobre suas vidas. A
e do Instituto Pólis, no Brasil); ou buscavam dor. Outras eram artistas, ocasião foi crucial para que viessem à
ampliar seu campo de ação e conhecimento como aquelas engajadas tona problemas como o autoritarismo
sobre juventude e encontraram na pesquisa a dentro da família e as dificuldades nas
nas bandas de hip hop na
oportunidade para tal (PIEB, na Bolívia; e Coti- relações com pai e mãe.
Bolívia e no Brasil, ou par-
diano Mujer, no Uruguai, que buscou parceria ticiparam de instituições
do Grupo de Estudos Urbanos e Geracionais da

MARÇO 2008 59
* Patrícia Lânes como as juventudes partidárias no Uruguai e tro de rua, que usa o humor para criticar – é
Socióloga, pesquisadora os movimentos de pessoas desempregadas na característica marcante desse grupo. Também
do Ibase Argentina e de camponeses(as) no Paraguai. na Argentina um dos pesquisadores ministrou
Também foram feitas entrevistas com es- oficina sobre teatro aos(às) jovens participantes
** Maurício Santoro
pecialistas em políticas de juventude, que traba- de projetos sociais da província de Misiones,
Cientista político,
lham em órgãos governamentais, organizações que demonstraram entusiasmo quando sou-
pesquisador do Ibase
da sociedade civil ou se dedicam a pesquisas beram que o pesquisador era um especialista
universitárias sobre o assunto. Tais entrevistas, em técnicas teatrais. Assim, o curso foi uma
embora pouco numerosas, tiveram importân- maneira importante de aproximação com esses
cia fundamental para recolher informações e e essas jovens.
análises sobre relevantes esforços dos governos Métodos quantitativos em conjunto com
da região, bem como avaliar as percepções entrevistas e grupos focais foram utilizados pela
que ocupantes de cargos de gestão política equipe paraguaia, que aplicou questionário em
têm dos temas juvenis. Categoria semelhante 450 estudantes do ensino médio em Assunção,
foram as pessoas que lidam cotidianamente sobre dados socioeconômicos e temas políticos.
com a juventude, como motoristas de ônibus Na Argentina, aplicou-se questionário seme-
(fundamentais nos conflitos sobre passe livre) lhante às pessoas entrevistadas. Na Bolívia,
e professores(as). houve um relatório dedicado a examinar as
A perspectiva foi ouvir jovens envolvi- informações estatísticas disponíveis sobre a
-dos(as) nos processos pesquisados, mas tam- juventude do país.
bém outros sujeitos neles implicados. Desse
ponto de vista, a escuta de pessoas adultas
Eles e elas
foi compreendida como estratégica, fossem
representantes de instituições e grupos com os Foram observadas grandes variações no equi-
quais os movimentos e grupos juvenis dialoga- líbrio de gênero das pessoas entrevistadas, em
vam; fossem presentes nos próprios grupos e função do contexto de cada situação-tipo. Por
movimentos em que os(as) jovens participavam. exemplo, as mulheres predominaram em casos
Em diversos casos, houve o recurso a como o das empregadas domésticas bolivianas
formas de pesquisa como a observação partici- sindicalizadas e do movimento de pessoas
pante, utilizada em manifestações promovidas desempregadas na Argentina. Por sua vez, os
por jovens, como ocorreu com um protesto homens foram bem mais numerosos no estudo
da organização argentina H.I.J.O.S. (Hijos por dos cortadores de cana brasileiros ou entre as
la Identidad y la Justicia, contra el Olvido y el situações–tipo que tinham como foco o movi-
Silencio) contra um policial acusado de torturas mento hip hop.
durante a ditadura militar. O escrache – tea- Nesses casos, fica evidente que o contex-
to sociocultural e histórico permite ou interdita
a maior participação de mulheres e homens
Instituições que coordenaram a pesquisa jovens em determinados grupos e movimentos
nos diferentes países sociais. No entanto, uma avaliação definitiva da
questão poderia ser precipitada – em muitas
País Instituição responsável Página eletrônica
pela coordenação situações-tipo não há dados sobre o gênero
nacional das pessoas entrevistadas ou análises sobre o
lugar ocupado por homens e mulheres jovens
Argentina Fundación SES www.fundses.org.ar
nos grupos e movimentos estudados.
Bolívia PIEB – Programa de www.pieb.com.bo
A partir das diferentes metodologias
Investigación Estratégica
utilizadas, o processo de investigação foi ex-
en Bolivia
tremamente rico e gratificante para as equipes
Brasil Pólis – Instituto de www.polis.org.br
em termos de material levantado para análise.
Estudos, Formação
Também contribuiu para a construção de diá-
e Assessoria em
logo entre instituições sul-americanas envolvi-
Políticas Sociais
das com jovens. O alto grau de entrosamento
Chile CIDPA – Centro de www.cidpa.org
e afinidade observado na rede demonstra o
Estudios Sociales
potencial criativo de relações mais profundas
Paraguai Base Investigaciones www.baseis.org.py entre organizações da região, cujo trabalho
Sociales (Base–IS)
aumenta em qualidade diante da constatação
Uruguai Cotidiano Mujer www.cotidianomujer.org.uy de que cada uma delas tem muito em comum

60 Democracia Viva Nº 38
última página
Nani

Você também pode gostar