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RESENHAS 597

de campo minuciosa, atenta aos inúmeros Alguns gestos dos muriquis – os “abra-
aspectos que lhe são apresentados e sen- ços de mono”, por exemplo, que em um
sível às questões que povoam o universo primeiro momento denotariam sinais
estudado. agressivos em aberta resposta à agressão
Além das linhas argumentativas dos caçadores, convertem-se, no idioma
desdobradas pelo autor, o leitor poderá dos biólogos da estação, em padrão eto-
descobrir neste livro inúmeras descrições lógico. Mais tarde, a narração episódica
que remetem a outras temáticas, como, de um encontro entre primatólogos e
por exemplo, o protagonismo das mu- fazendeiros coloca perspectivas em jogo,
lheres e mães não apenas nas tramas da na medida em que, enquanto os biólogos
vida familiar, mas na lida com os agentes operavam com um fixismo identitário
do Estado e do crime. Neste sentido, as naturalista, um velho fazendeiro cedia à
reflexões proporcionadas pela leitura noção de mundos compartilhados. Este
deste livro despontam como guias para mesmo fixismo se cria em clara oposição
pesquisas ainda por fazer. a modelos primatológicos mais clássicos,
de tal forma que, no final da narrativa do
autor, “os biólogos reaproximam-se da
perspectiva dos habitantes locais de que
SÁ, Guilherme. 2013. No mesmo galho: an- os monos não são macacos”.
tropologia de coletivos humanos e animais. No composicionismo que é caracte-
Rio de Janeiro: 7 Letras. 224 pp. rístico desta descrição, incluir-se-ão a
eleição do muriqui como bandeira em
prol de preservação de espécies amea-
Graciela Froehlich e Rafael Antunes Almeida çadas de extinção e os pronunciamentos
PPGAS/UnB feitos por cientistas em jantares para
os patrocinadores da Estação. O autor,
O livro assinado por Guilherme Sá, pro- contudo, não cede à solução fácil de um
duto de sua tese de doutorado, constitui objeto em relação ao qual se acumulam
uma etnografia de coletivos de primató- diferentes pontos de vista. Contrapondo-
logos e primatas em uma estação de pes- se a uma posição de que aqueles primatas
quisa e preservação no interior do estado sempre estiveram lá, a abordagem do
de Minas Gerais: a Estação Biológica de autor se situa na tentativa de rastrear as
Caratinga (EBC). Seu tema, “as relações diferentes metáforas a eles associadas.
estabelecidas entre primatólogos e prima- Deste modo, fazendeiros, pesquisadores,
tas no contexto de produção científica” ambientalistas, jornalistas e políticos
(:183), contudo, nos leva muito além de aparecem no terceiro capítulo em rela-
uma minuciosa narrativa do encontro ção com estes primatas, e as narrativas
entre pesquisadores e muriquis. se ocupam de descrever de que modo
Na própria descrição dos primatas, diferentes associações também ensejam
por exemplo, já se entrevê que esta só a transformação nos próprios termos.
pode ser feita por meio de associações É no ato de nomeação dos muriquis
observadas entre o animal e os outros que Sá identifica a primeira instância
actantes com os quais se relaciona. Desta intersubjetiva na relação entre primatas
feita, aqueles aparecem menos como uma e primatólogos. Escapando da noção de
espécie natural, e mais como um feixe projeção, o autor recorre, por seu turno,
de engajamentos, a partir dos quais eles à noção de relações intersubjetivas. Estas
emergem enquanto realidade. são construídas como resultantes da ação
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de dois ou mais sujeitos, definindo-se por intersubjetivas? Como resolver o impasse


“um fluxo mútuo de mudanças e trans- de uma antropomorfização quase anímica
formações nos termos que compõem a dentro de uma ontologia naturalista?
relação” (:128). Sá, retomando os modos de objeti-
A tarefa de “observar observadores” vação da natureza esquadrinhados por
permite também estabelecer paralelos Phillippe Descola, percebe a intersubje-
com a prática antropológica, da qual tividade como um curto circuito (:63) no
o autor também não se furta: “tanto cá sistema, caracterizado pela necessária
como lá é preciso que haja primeiro certo objetividade naturalista, mas marcado,
estranhamento, depois alguma identifi- especialmente, por um tipo de relação
cação (ou delimitação) para que, então, que transcende os limites de relação im-
se torne (estranhamente) familiar” (:38). postos por ela: “ao aproximar humanos
Os “nativos” da antropologia ora desen- e não humanos por meio das narrativas
volvida, como o título já sugere, não se intersubjetivas, os primatólogos não fa-
restringem aos animais humanos – pri- zem menção a um denominador natural –
matas – mas englobam também aqueles mas esmeram-se em acentuar a possibili-
outros primatas – os muriquis – com os dade de estabelecer uma relação” (:157).
quais, neste trabalho, tanto primatologia Ao insistir, a partir de narrativas de prima-
quanto antropologia se relacionam. tólogos, que as relações entre humanos
Neste ponto, talvez a noção de aproxi- e animais durante o trabalho de campo
mação – termo nativo que designa o lento não se dão tanto nos termos de um deno-
processo de habituação dos muriquis minador natural, mas antes segundo os
– balizada pelo autor ao longo de todo termos de uma troca experiencial, o autor
o livro, figure como a pedra angular do provoca outra aproximação na análise,
trabalho. A referida noção é que permite qual seja, com o perspectivismo amerín-
a descrição da relação com os muriquis dio, como desenvolvido por Tânia Stolze
não tanto como uma projeção de atributos Lima e Eduardo Viveiros de Castro.
humanos aos primatas, mas antes como Aqui, novamente, não são apenas
uma situação de encontro. De acordo com os pesquisadores humanos que veem e
Sá, ela retira o seu fôlego não daquilo agem sobre e em relação aos muriquis.
que é capaz de explicar, mas do fato de As narrativas dos primatólogos apresen-
ser fruto de uma conceitografia nativa tam os primatas olhando ou percebendo
em reversão. Em certo sentido, a noção singularmente os pesquisadores. Chim-
de aproximação sinaliza para a relação panzés, babuínos, muriquis enredam os
com modelos nativos menos como dados pesquisadores em sua cultura e não os
e mais como material a ser canibalizado deixam passar despercebidos, como mui-
pelo antropólogo. tos originalmente desejavam (:146-153).
Nesta direção, a noção de intersub- A saída é então se relacionarem. Entre-
jetividade, comenta o autor, está para tanto, a incapacidade de se diferenciar
a noção de aproximação assim como a do outro, como o “caso Fossey” (:159-
noção de observação está para aquela de 160) parece ilustrar bem, não deixa de
representação. Este ponto deságua, na engendrar riscos sérios. A relação entre
página 144, em uma das questões-chave pesquisador e pesquisado só é possível
desta obra: se é próprio das cosmologias mediante um acordo tácito entre ambos,
naturalistas a projeção, o que dizer de no seio de um regime de aproximação
uma atividade que parece ser regida (:161): “ora, se por um lado situamos a
menos por este traço e mais por relações percepção de dois mundos, dois corpos,
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duas naturezas, por outro falamos em milho serem “atacadas” pelos macacos,
uma só cultura. Uma cultura da relação estes poderiam muito bem se alimentar
e em relação. Nesta cultura narrativa e de milho, com espécimes introduzidos
intersubjetiva situamos a possibilidade de na mata, para evitar a busca por ele fora
diálogo entre humanos e não humanos e de seus limites. Assim, para os biólogos,
tornamos viável falar em termos de reco- “comida de gente deve ser naturalmente
nhecimento interespecífico” (:150). diferente de comida de bicho” (:96, grifo
Ora, se o perspectivismo tem valência do autor), ao passo que o fazendeiro,
para pensar a relação entre primatas e de certa forma, acaba por culturalizar o
primatólogos, Sá observa que neste caso animal, oferecendo a ele a opção de esco-
também está presente uma relação de lha. A fixidez de nossas – aí englobando
predação. Desta vez predação científica, cientistas e fazendeiros – categorias de
que transforma o sujeito primata em ob- natureza e cultura mostra-se estremecida
jeto primata, por meio de um processo de neste exemplo e revela-se ainda de forma
purificação que delineia a transformação mais contundente e basilar no capítulo
de uma relação de reconhecimento em final da obra.
uma relação de conhecimento (:161). O desafio que o autor percebe, junta-
Seguindo a linha de argumentação do mente com os primatas e os primatólogos
autor, tal processo de predação, a partir que se fazem presentes em seu texto, é
do qual “o primatólogo transforma o seu como escapar das armadilhas da projeção
interlocutor primata de sujeito em objeto” culturalista pensando os símios não como
(:166), não é descrito nos termos de uma equivalentes estruturais das culturas dos
representação, mas sim na forma de uma seres humanos homo sapiens. Seguindo
transubstanciação que visa estabelecer sua intuição, Sá conclui que “os animais
“níveis seguros de alteridade como con- foram sempre seres culturais [...] porque
dição” (:161). Os carinhos, os afetos, as há muito estão inseridos em relações
interafecções do campo devem ficar lá; o sociais” (:190). São as relações que aqui
primata da/na mata não é o mesmo que importam, e não os seus termos humano
aparece nos artigos e nas publicações e não humano.
científicas. Vale observar, contudo, que
a noção de predação científica aportada
pelo autor contém outra dimensão. Ela
se faz necessária para evitar – no caso SPEDDING, Alison. 2011. Sueños, kharisiris
extremo de Dian Fossey – a morte propria- y curanderos: dinámicas sociales de las
mente física, ou social, científica (:159). creencias en los Andes contemporáneos.
As relações entre natureza e cultu- La Paz: Editorial Mama Huaco. 205 pp.
ra também são temas que atravessam
os argumentos contidos no livro. Elas
aparecem, por exemplo, quando o autor Indira Viana Caballero
explora uma controvérsia envolvendo PPGAS/MN/UFRJ
fazendeiros das redondezas e os biólogos
da Estação a respeito da invasão dos mu- Esta coletânea é composta por seis arti-
riquis às plantações de milho. Formam- gos que tratam de diferentes aspectos da
se os seguintes pares: para os biólogos, “religião popular” (:9) nos Andes. Os pro-
lugar de macaco é na mata e comida de cedimentos rituais religiosos apresentam
macaco é vegetação nativa. Já para os traços daquilo que é chamado de “tradi-
fazendeiros, que viam suas plantações de cional andino”, do cristianismo e de uma

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