Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O que provoca
realmente a mudança
nos fumadores?
Algumas reflexões
MIGUEL TRIGO*
RESUMO
Com base num percurso pessoal, o texto apresenta dez reflexões sobre a prática clínica em desabi-
tuação tabágica: 1. Começa por se referir a complexidade e a importância desta problemática. 2.
Depois, é realçada a força da dependência nicotínica, a qual é mantida, quer por um processo de vários profissionais.
auto-medicação, quer por determinantes sócio-demográficos. 3. Discute-se como poderá o fumador À medida que se contacta com fuma-
manter o seu sentido de coerência interna, ao envolver-se numa conduta auto-destrutiva. 4. dores, descobre-se que todos os desa-
Criticam-se as abordagens persuasivas e enfatizam-se os processos baseados na empatia e na pes- fios intrínsecos aos processos de mu-
soa. 5. Realça-se o papel da auto-eficácia e da auto-transcendência na consolidação da mudança. dança se encontram presentes nestas
6. Caracteriza-se a tomada de decisão como um processo marcado pela ambivalência e liberdade pessoas. Na verdade, surgem dificul-
de escolha. 7. Define-se a motivação como um fenómeno dependente de competências pessoais e dades acrescidas no manejo da desa-
de um sentido existencial. 8. Sublinha-se a importância das interacções verbais no movimento de bituação tabágica. Muitos fumadores
mudança pessoal. 9. Apresentam-se os principais componentes dos programas para deixar de fumar não reconhecem ter um problema de
e as principais dificuldades no seu manuseamento. 10. Finalmente, sublinha-se a pertinência de saúde, minimizando a importância da
recorrer a várias técnicas e abordagens complementares no tratamento de fumadores. sua dependência, recusando a sua
própria vulnerabilidade ou evocando
Palavras Chave: Cessação de Hábitos Tabágicos, Dependência Nicotínica, Entrevista de Motivação, exemplos de pessoas conhecidas que
Aconselhamento, Estádios de Mudança, Processos de Mudança. adoeceram sem nunca terem fumado,
isto é, apresentando vários tipos de en-
viesamentos cognitivos (racionalização,
O DESAFIO DA MUDANÇA negação, atenção e abstracção selecti-
NA DESABITUAÇÃO TABÁGICA va)3. Outros fumadores, apesar de pre-
tenderem deixar de fumar, optam por
área da desabituação tabági- não recorrer a qualquer ajuda espe-
selhamento dos fumadores que, apesar tir o desconforto físico da privação. As-
de mostrarem abertura para alcançar sim, contrariamente à crença mais co-
maior controlo sobre o seu hábito, não mum nos fumadores, fumar pode
efectuam mudanças reais. Nestes ca- provocar stresse, desconforto e afec-
sos, é comum confrontarmo-nos com tividade negativa8,9. Poderíamos tam-
manifestações de intenção que esbar- bém recordar as reacções dos fumado-
ram em racionalizações e situações de res quando lhes perguntamos – o que
vida que, embora compreensíveis, per- sente se de repente ficar sem cigarros?
petuam comportamentos e impedem a O mais habitual é termos uma respos-
pessoa de iniciar mudanças. Aquilo que ta do género – nunca deixo os cigarros
se torna necessário nestas situações acabar! É como se um estado de com-
são acções concretas, isto é, opções por pleta desorientação, regressão e deses-
fazer, em vez de escolhas pela impossi- pero se abatesse sobre o fumador na
bilidade de agir. Curiosamente, mais de eventualidade de não poder contar com
90% dos fumadores debate-se com o apoio dos cigarros, ainda que só por
problemas desta natureza, situando-se algum tempo. A gravidade dos compor-
em estádios de pré-contemplação tamentos de dependência é tal que um
(59,1%) ou contemplação crónica jogador patológico, que também fuma-
(33,2%)6. va, me dizia – gosto mais do jogo e do
Casino que da minha família ou da mi-
nha casa. Isto é uma aberração, não é?
O BRAÇO FÉRREO DA
Na realidade, a gestão da síndroma
DEPENDÊNCIA NICOTÍNICA de abstinência é intuitiva e pouco cons-
ciente ou reconhecida pelos fumadores,
A decisão de parar de fumar não cons- ao passo que é frequente ouvir argu-
titui uma escolha dicotómica. Resulta mentos hedonistas como – «fumar é
de um processo contínuo e complexo, agradável», «relaxante» ou «ajuda a con-
marcado por recuos e avanços, am- centrar». Quando confrontados com o
bivalência e decisões, receios e actos de potencial efeito ansiogénico da nicotina,
coragem. Parte significativa desta toma- muitos fumadores, um pouco admira-
da de decisão não depende sequer de ar- dos, acabam por reformular a sua con-
gumentos racionais, mas de circuitos vicção benigna de que fumar promove
cognitivos irracionais e de desejos/an- estados emocionais positivos ou que
gústias inconscientes. Por outro lado, os ajuda a lidar com o stresse. Na realida-
fumadores utilizam os cigarros como de, parte desse stresse é induzido pre-
fonte de prazer e/ou mecanismo para cisamente pelo facto de a pessoa fumar,
auto-regulação dos estados emocionais, criando-se assim um duplo circuito de
sendo bem conhecido o efeito bifásico manutenção da conduta (efeito bifási-
da nicotina (activação – estimulação vs. co e gestão da abstinência) que culmi-
desactivação – sedação)7. na num ritual de auto-medicação (ver
No caso dos fumadores mais pesa- Figura 1).
dos, a resposta do organismo à privação Nem tudo, porém, está dentro do fu-
da nicotina constitui mais um obstáculo mador, existindo outros condicionalis-
difícil de superar e, de facto, são muitos mos importantes, como os factores so-
os que fumam um cigarro imediata- ciais, étnicos ou económicos10. Sabe-
mente após o acordar. Nestes casos, -se, por exemplo, que a prevalência do
não se trata apenas da necessidade de tabagismo é maior entre as pessoas de
repor os níveis de nicotina no organis- classes sócio-económicas desfavoreci-
mo, mas também de procurar o efeito das, comparativamente às mais favore-
sedativo que protege o fumador de sen- cidas (40% vs. 12%), uma vez que o de-
Procura de
Situação Fumar Alívio
Sensações
Gestão hedónica
Fonte de prazer Efeito bifásico
activação – estimulação
desactivação – relaxação Gratificação e
manutenção Auto-medicação
da conduta
Gestão da abstinência
Fonte de stresse Efeito sedativo
e desconforto evitar privação
repor níveis de nicotina
clínio de fumadores tem ocorrido essen- mais de 4.000 substâncias nocivas para
cialmente nas classes mais diferencia- o organismo13,14. Embora algumas des-
das11. Variáveis sócio-demográficas sas substâncias sejam desconhecidas
também surgem associadas ao hábito do grande público, os fumadores sabem
de fumar, nomeadamente a idade e o que os cigarros contêm alcatrão, nicoti-
género. Dados da versão portuguesa do na, monóxido de carbono ou cianeto. Ao
CINDI que acompanham a literatura in- atentar contra o «código existencial», o
ternacional, encontram diferenças na acto de fumar desafia as clássicas con-
prevalência do tabagismo entre homens cepções acerca do «instinto de sobre-
e mulheres, nas faixas etárias dos 15- vivência», da «luta pela existência» ou da
-24 anos de idade (36,5% vs. 31,1%) e «selecção dos caracteres mais aptos»15.
dos 55-64 anos (33,9% vs. 0,0%), em- Por outro lado, não deixará também de
bora o número de homens que deixa- causar perplexidade que a mesma en-
ram de fumar tenha aumentado, tal tidade que exige a colocação de avisos
como o número de mulheres que co- como «Fumar mata» ou «Fumar pode
meçou a fumar12. provocar morte lenta e dolorosa»16, per-
mita simultaneamente a venda desse
veneno em máquinas automáticas de
COMO PODEM OS FUMADORES
livre acesso, 24 horas por dia, arreca-
ATENTAR CONTRA SI? dando 80% de impostos sobre a venda
do produto17. Que parcela deste mon-
Apesar de reconhecermos a força que a tante será reinvestida em prevenção ou
dependência nicotínica exerce, através no tratamento de fumadores?
da longa e distorcida aprendizagem a Apesar de tudo, cada fumador tem a
que os fumadores se submetem, pelo possibilidade de optar pela saúde, não
sistema de auto-gratificações que se fumando ou pela doença, fumando.
instituiu ou pela necessidade de man- Viktor Frankl, na arrebatadora descri-
ter os níveis de nicotina no organismo, ção da sua estadia num campo de con-
não deixa de ser surpreendente como centração nazi, coloca o problema da es-
as pessoas se envolvem e mantêm num colha entre a condenação à morte e a
processo auto-destrutivo, inalando sobrevivência de forma pragmática: (…)
doze cigarros valiam doze sopas e doze as suas dores, os doentes colocam-se
sopas realmente significavam muitas instintivamente numa posição intermé-
vezes a salvação da morte por inanição, dia entre a flexão e a extensão que faz
durante pelo menos duas semanas. (…) com que os músculos exerçam menos
Quando um colega começava a fumar os pressão sobre as superfícies articulares
seus poucos cigarros, já sabíamos que (p. 146)21. Num sentido figurado, as
havia perdido a esperança de poder con- «posições psicológicas intermédias» fun-
tinuar (p. 18)18. Nesta situação limite, na cionam como antídotos que ajudam a
qual se encontram muitos doentes acalmar a dolência e o sofrimento que
crónicos com hábitos tabágicos (cardía- a existência provoca. Muitos destes es-
cos, oncológicos e respiratórios), o que tilos de vida e comportamentos com-
está em causa é simplesmente a alter- pensatórios não têm uma natureza emi-
nativa entre a vida e a morte. Como nentemente patológica. Qualquer adul-
pode então o Homem deixar voluntaria- to terá já tomado bebidas alcoólicas em
mente em risco a sua integridade, negli- ocasiões festivas, fumado um charuto
genciando os sinais de perigo e alarme? em dias especiais ou comido em exces-
Talvez seja prudente encarar esta ques- so um prato da sua predilecção. Então,
tão acrescentando duas reflexões com- isto quer dizer que condutas deste tipo
plementares: oscilam num contínuo entre a saúde e
• O mistério da saúde. O curso da a doença. O seu aspecto nefasto surge
existência não é linear, consistindo um associado à duração, intensidade e na-
jogo de trocas, cedências e soluções de tureza inevitável ou insubstituível da
compromisso que nem sempre ocorrem conduta em causa.
em função do que é ou não saudável. • O duplo nó psicológico. Precisa-
Por seu turno, a própria saúde resulta mente entre os fumadores regulares
de um equilíbrio precário que depende ocorre uma combinação comum às de-
de múltiplas medidas de contrapeso, pendências, ou seja, a procura de grati-
ainda que algumas delas ameacem o ficação imediata e o adiamento das con-
seu próprio equilíbrio19. Deste ponto de sequências negativas22. Entretanto,
vista torna-se particularmente miste- para se protegerem do confronto com o
rioso como é que as pessoas conservam paradoxo de fumar – escolha por um
a sua saúde, resistindo às agressões do prazer que provoca dependência mortal,
meio e à fatalidade da doença20. De fac- muitos fumadores fazem como que um
to, as medidas de compensação que «duplo nó psicológico». No primeiro nó,
adoptamos são variadas e a sua natu- a pessoa nega que fumar seja auto-des-
reza pode ser benigna (praticar despor- trutivo (não pensa sobre isso, acha-se
to, ter um passatempo, ler, sair de fim- diferente dos outros, invoca a sua saúde
-de-semana, fazer jardinagem, estar ou o facto de ser jovem). Este movimen-
com amigos) ou potencialmente perni- to que visa manter intacto o sentido de
ciosa quando utilizadas sem flexibili- coerência interna, começa por anular a
dade e equilíbrio (comer em excesso, ansiedade e a culpa que resultaria da
beber álcool, usar drogas, fumar, jogar dissonância entre a sua conduta auto-
compulsivamente, trabalhar em exces- -destrutiva e o medo de morrer. O se-
so, viver em stresse constante). Georges gundo nó, ao negar a dependência, con-
Canguilhem, citando Nélaton, ilustra solida a opção de fumar (valorização do
de forma curiosa o sentido hedónico e prazer e da liberdade de escolha, refe-
normativo que o comportamento pato- rência à capacidade de controlar a de-
lógico pode assumir: (…) É raro que o pendência), promovendo a percepção
membro se conserve normalmente em de controlo sobre a conduta. Deste mo-
posição recta. Com efeito, para acalmar do, o fumador dissipa as inquietações
irritação
Negação do paradoxo com
avisos
Negação da dependência
anulação da
ansiedade e culpa percepção de
controlo mantida
Defesa
Defesa pressão
pressão Abertura
Abertura
Cooperação
Cooperação
Resistência
Resistência
(fight-or-flight
(fight-or-flight response)
response)
meio
meio natural
natural
meio
meio hostil
hostil
A
A Ameaça
Ameaça BB Segurança
Segurança
11 22
Combater
Combaterooobstáculo
obstáculo Controlar
Controlarooobstáculo
obstáculo
parte de um doente para quem seria vi- simples e eficazes que vençam a depen-
tal parar de fumar. Em qualquer dos ca- dência (ver Figura 4). À medida que o
sos será útil uma boa dose de confian- fumador reaprende a distanciar-se da
ça em si, tolerância à frustração e, mais dependência, a confiança, a auto-esti-
uma vez, capacidade de se manter en- ma e a auto-eficácia aumentam e, con-
volvido com distanciamento. sequentemente, a probabilidade de se
A proximidade certa do terapeuta libertar da nicotina29. Assim, o senti-
relativamente ao fumador levanta uma mento de poder desperta, através da
outra questão que é o auto-distancia- superação das resistências e da mu-
mento do fumador em relação à sua tação dos velhos valores acerca do que
própria conduta. Sabemos que existem a pessoa é, ou não, capaz de fazer23.
diversas cognições, estados emocionais Importa, pois, criar sistemas de auto-
e situações a desencadear o desejo e a -monitorização capazes, não só de iden-
urgência de fumar, ou seja, a necessi- tificar antecipadamente estados emo-
dade de gratificação imediata. Enquan- cionais (positivos ou negativos) e con-
to o desejo se reporta ao querer experi- textos sociais que desencadeiem dese-
mentar determinada situação de forma jo (auto-observação), mas também
intensa e obsessiva, a urgência liga-se promover um diálogo interno que
ao acto ou à compulsão que visa aliviar sustenha a reactividade emocional, a
a tensão sentida. O desejo e a urgência expectativa de gratificação e o impulso
tendem a desencadear-se de forma para a acção (auto-controlo). Inspirados
automática e inevitável face a variadas no trabalho de Powell30 sobre o contro-
situações («tenho» de fumar…). Porém, lo da reactividade emocional, introduzi-
quanto maior for o intervalo entre o mos duas metáforas – o anzol e a lâmpa-
aparecimento do desejo e a urgência de da. O objectivo desta técnica é substi-
agir, maior o auto-controlo, a capaci- tuir uma atitude de reactividade, por
dade para adiar a gratificação e a pos- outra de resistência ao stresse. Assim,
sibilidade de escolher comportamentos a imagem do anzol serve para represen-
alternativos, diminuindo também o tar as situações de risco, sugerindo-se
comportamento impulsivo3. Lembre- à pessoa que passe a pensar nelas como
mos que ao fumador não interessa com- se de um anzol se tratasse, desvalori-
bater directamente estes obstáculos, zando o acontecimento em si. Desta for-
mas antes compensar a mecanização ma substitui-se o carácter provocador
mão-boca através de soluções criativas ou tentador da situação real, por uma
não se cingem ao período inicial da de- tade. (…) Bem, eu fui às compras. Sabia
sabituação tabágica (acção), mas pro- exactamente o que queria e onde ir para
longam-se pela fase de manutenção (en- as arranjar mas, veja só, tinha-se esgo-
tre os seis meses e cinco anos após pa- tado aquilo que precisava. Para me ani-
rar) e terminação (tentação zero e 100% mar pensei que podia tomar um café. Sei
de auto-eficácia)37. As escolhas feitas que tenho um fraco por bolos, então re-
nesta altura podem reforçar a decisão solvi tomar só o café. Mas quando vi
de parar ou aproximar a pessoa do aquele bolo com creme,… bem, eu sei
retrocesso. São bem conhecidos os es- que isto vai parecer cómico, mas o creme
quemas cognitivos envolvidos na recaí- fez-me comê-lo (tradução livre, p. 1)38.
da, em particular a «visão em túnel» (an- Embora racionalizadas e denegadas,
tecipação da gratificação, imperativos podem-se aqui reconhecer várias «mini-
orientados para o alívio, crenças per- -decisões» ou decisões aparentemente
missivas)3, mas também o efeito de vio- irrelevantes22 que acabam por sabotar
lação da abstinência (EVA)22. o compromisso de não comer doces,
Nos casos da «visão em túnel» e do bem como falhas na identificação dos
EVA, estão em causa processos de de- alertas e consequente inoperância das
cisão geralmente marcados quer pelo manobras de evitamento ou bypass à
carácter de imposição decorrente de situação de risco.
aprendizagens muito profundas («visão Sem dúvida que o ser humano é fini-
em túnel» – tenho de fumar, é mais forte to e a sua liberdade restrita. Porém, não
que eu, não consigo resistir mais), quer se trata de estar livre de factores condi-
pela culpabilização e raciocínio di- cionantes, mas sim da liberdade de to-
cotómico (EVA – não valho nada, voltei mar uma posição frente aos condicio-
a fumar). Em ambos os fenómenos es- nalismos, ou ceder ou resistir. Uma vez
tamos perante uma postura passiva e que estamos constantemente colocados
indefesa, dominada por expectativas perante «bifurcações existenciais» (pon-
negativas em relação ao sucesso da re- tos Y) nas quais se jogam caminhos
cuperação que camuflam o facto de a diferentes, será mais correcto encarar
pessoa ser verdadeiramente livre e res- o hábito de fumar como uma coisa que
ponsável pelas suas escolhas. Ao invo- se faz e não como algo que se é. Assim,
car a força de vontade, o fumador tor- apesar das situações nascerem do meio
na mais fácil desvincular-se, quer do ambiente, é o indivíduo quem aprovei-
compromisso que livremente aceitou de ta ou perde essas oportunidades,
não fumar, quer de assumir que a sua através das quais ele se decide39. Sem-
decisão oscilou ao ter fumado. Todavia, pre e em toda a parte, a pessoa está co-
a decisão de fumar, ou não fumar, não locada diante da decisão de transformar
depende da força de vontade, como se a sua situação numa realização interior
de uma entidade externa se tratasse, de valores e cada um é insubstituível
mas da pessoa que a cada momento nesse papel18. Para o fumador, cada de-
pode voltar a fazer outras escolhas e cisão depende das competências adqui-
mudar (curva em U), inclusivamente ridas, do nível de compromisso com a
tornar-se fumador outra vez. mudança, das expectativas em relação
Um exemplo hilariante dos estrata- ao resultado e daquilo que é autentica-
gemas mentais envolvidos na recaída é mente significativo para ele. Até que
descrito por Dryden, ao citar o caso da ponto deixar de fumar é importante? A
Senhora Jones, uma mulher diabética pessoa deixa de fumar porque está na
que não resistira a comer um cremoso moda? Porque o seu médico aconse-
bolo: Racionalmente sei que não devo lhou? Por ser um objectivo pessoal? Por
comer bolos, mas não tenho força de von- todas estas razões? Colocamo-nos aqui
Meta-necessidades
Saúde
Liberdade
Qualidade
de vida Para quê deixar de fumar?
[«arco intencional»]
Longevidade
curso existencial
QUADRO I
CO = Monóxido de carbono; cpd = cigarros por dia; ppm = partes por milhão (uma parte de monóxido de carbono/um milhão de partes de ar expirado).
Consulta de nutrição
Ênfase no Reforço da
Consulta de comportamento mudança
Actividade física
desabituação tabágica vs.
Ênfase no prevenção
Psicoterapia insight da recaída
deixar de fumar constituem uma porta conseguir estar presente no interior das
de entrada atrás da qual se escondem pessoas e relacionarmo-nos com elas,
outras necessidades subjectivas. Tal num espírito de entrega e escuta, sem
como se abordam as questões relacio- violência e sem nos desviarmos da rea-
nadas com o ganho ponderal ou a activi- lidade ou do objectivo39.
dade física, é igualmente necessário Um problema mais transversal é o
despistar e encaminhar os fumadores «espartilho científico» ou a necessidade
para abordagens psicoterapêuticas de apertar a complexidade, reduzindo-
mais profundas e dirigidas ao insight. -a a uma realidade mais simples (redu-
Certamente que a diferenciação e com- cionismo). É uma questão diversas
binação de cuidados contribui para o vezes discutida pela fenomenologia, pe-
reforço das mudanças a efectuar e para la teoria da gestalt e pela epistemologia
a prevenção da recaída (ver Figura 6). em geral. Ao estudar a realidade, sepa-
ramos os fenómenos (biológicos, psi-
cológicos, sociais, antropológicos), os
O MOINHO TERAPÊUTICO seus conteúdos (motivações, cognições,
emoções, acções) e as relações que en-
Um dos aspectos que me suscitou tre si mantêm (compreensão estática),
várias dúvidas e reflexões teve a ver com para mais tarde voltarmos a atribuir-
o tipo de abordagem ou modelo de trata- -lhes o significado que deles recolhe-
mento a usar na desabituação tabági- mos (compreensão genética). Este
ca. Na literatura, são comuns as re- vaivém científico tem dois resultados:
ferências à eficácia da terapia cogniti- por um lado, a perda de sentidos, a divi-
vo-comportamental 53. Contudo, os são artificial e a simplificação excessi-
modelos cognitivistas clássicos e espe- va, por outro lado, faz emergir a inter-
cialmente os comportamentalistas res- pretação, a teorização e a re-nomeação
tringiram o papel desempenhado pelas da realidade. Esta tensão entre des-
dimensões da afectividade e da vivên- construção e reconstrução leva a que o
cia humana, remetendo-as para um discurso científico se funda num equi-
plano secundário. Esta perspectiva deu líbrio precário entre simplicidade vs.
origem a modelos «frios» do processa- complexidade, consenso vs. dissensão,
mento da informação47. Depois de verdadeiro vs. falso, científico vs. não
terem sido proscritas destas aborda- científico (intuição, curiosidade, criativi-
gens, quer o «calor» emocional, quer as dade), obrigando a ciência a caminhar
vivências do ser, acabaram por ser rea- sobre as suas patas independentes e in-
bilitadas pelas recentes concepções do terdependentes da racionalidade, do
processamento da informação a «quen- empirismo, da imaginação e da verifi-
te»38,47,61, isto é, as que incluem os con- cação62.
textos emocionais, vivenciais e rela- Outra implicação é que a ciência re-
cionais. É, na verdade, fundamental sulta de construções pessoais ou de
Comportamento
(ex. tabagismo)
Emoções Cognições
Projecto de vida
curso existencial
História de vida
Motivação
9. Parrott A. Cigarette smoking does cause stress. rogeneity: Project MATCH post-treatment drinking
Am Psychol 2000 Oct; 55 (10): 1159-60. outcomes. J Stud Alcohol 1997 Jan; 58 (1): 7-29.
10. Bishop F. Managing addictions. Cognitive, 34. Trigo M, Rocha E. Cessação de hábitos tabági-
emotive, and behavioral techniques. Northvale: Jason cos em doentes coronários. Acta Med Port 2002; II
Aronson Inc.; 2001. Série(15): 337-44.
11. Department of Health. Smoking kills: a white 35. Watzlawick P, Beavin J, Jackson D. Pragmática
paper on tobacco. London: Stationery Office; 1998. da comunicação humana. Um estudo dos padrões,
12. Pádua F, Machado I, Clara J, Lisboa P, Queiroz patologias e paradoxos da interacção. São Paulo:
M, Mendes A, et al. Promoção da saúde e prevenção Editora Cultrix; 1993.
das doenças não transmissíveis. CINDI–Portugal. 3º 36. Ricoeur P. Teoria da interpretação. O discur-
Quinquénio (1998-2002). Lisboa: Instituto Nacional so e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70;
de Cardiologia Preventiva; 1999. 1987.
13. National Respiratory Training Centre – NRTC. 37. Prochaska J, Johnson S, Lee P. The transtheo-
Smoking cessation module. London: NRTC; 2004. retical model of behavior change. In: Shumaker S,
14. Action on Smoking and Health – ASH. Fact Schron E, Ockene J, McBee W., eds. The handbook
sheet 12. What’s in a cigarette. August 2001. of health behavior change. 2nd ed. New York: Springer
http://www.ash.org.uk Publishing Company; 1998, pp. 59-84.
15. Darwin C. Origem das espécies. Porto: Lello & 38. Dryden W. Editor. Rational emotive behaviour
Irmão Editores; 1860. therapy. Theoretical developments. Hove: Brunner-
16. Diário da República – I Série A. Ministério da -Routledge; 2003.
Saúde. Decreto-Lei n.º 25/2003, 4 de Fevereiro. 39. Jaspers K. Psicopatologia geral. Psicologia
17. The World Bank Group. Economics of tobac- compreensiva, explicativa e fenomenológica (Vol. I). Rio
co for the Europe (EU) region, 2001. http://www. de Janeiro: Livraria Atheneu; 1987.
worldbank.org/ 40. Fisher E, Goldfarb T. American Lung Associa-
18. Frankl V. Em busca de sentido: um psicólogo tion 7 steps to a smoke-free life. New York: John Wi-
no campo de concentração. 15ª ed. São Leopoldo: ley & Sons; 1998.
Editora Sinodal, Editora Vozes; 2002. 41. Dryden W. Beyond LFT and disconfort distur-
19. Gadamer H. El estado oculto de la salud. bance: The case for the term «non-ego disturbance».
Barcelona: Gedisa Editorial; 1996. J Ration-Emot Cogn-Behav Ther 1999 Sept; 17 (3):
20. Antonovsky A. Unraveling the mystery of 165-200.
health: how people manage stress and stay well. San 42. Miller W, Rollnick S. Motivational interviewing.
Francisco: Jossey-Bass; 1987. Preparing people for change. 2nd ed. New York: Guil-
21. Canguilhem G. O normal e o patológico. 5ª ed. ford Press; 2002.
Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2002. 43. Lopes G. Clínica psicopedagógica. Perspecti-
22. Marlatt G, Gordon J. Relapse prevention. vas da antropologia fenomenológica e existencial. Por-
Maintenance in the treatment of addictive behaviors. to: Hospital do Conde de Ferreira; 1993.
New York: Guilford Press; 1985. 44. Maslow A. El hombre autorrealizado. Hacia
23. Nietzsche F. O anticristo. Ensaio de uma críti- una psicología del ser. Barcelona: Editorial Kairós;
ca do cristianismo. Lisboa: Guimarães Editores, 2000. 1998.
24. Abbagnano N. História da filosofia (Vol. VI). 4ª 45. Thines G, Lempereur A. Dicionário Geral das
ed. Lisboa: Editorial Presença, 1992. Ciências Humanas. Lisboa: Edições 70; 1984.
25. Hyland M, Birrell J. Government health war- 46. Yalom I. O executor do amor e outras histórias
nings and the «boomerang» effect. Psychol Rep 1979 sobre psicoterapia. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996.
Apr; 44 (2): 643-7. 47. Safran J. Ampliando os limites da terapia cog-
26. Sartre J. Being and nothingness. London: nitiva. O relacionamento terapêutico, a emoção e o
Routledge; 1958. processo de mudança. Porto Alegre: Artmed Editora;
27. Cancello L. O fio das palavras. Um estudo de 2002.
psicoterapia existencial. 4ª ed. São Paulo: Summus 48. Varela F. Conhecer as ciências cognitivas.
Editorial; 1991. Tendências e perspectivas. Lisboa: Publicações Insti-
28. Rogers C. Tornar-se pessoa. 7ª ed. Lisboa: tuto Piaget; s/d.
Moraes Editores; 1985. 49. Gadamer H. Verdad y metodo II. Salamanca:
29. Bandura A. Self-efficacy. The exercise of con- Ediciones Sígueme; 1994.
trol. New York: W. H. Freeman and Company; 1997. 50. Habermas J. Consciência moral e agir comu-
30. Powell L. The hook: A metaphor for gaining nicativo. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro;
control of emotional reactivity. In: Allan R, Scheidt S. 1989.
eds. Heart and mind: The practice of cardiac psy- 51. Fagerström K. Time to first cigarette: The best
chology. 2nd ed. Washington. American Psychological single indicator of tobacco dependence? (no prelo).
Association; 1998. pp. 313-27. 52. Jarvis M, Tunstall-Pedoe H, Feyerabend C,
31. Frankl V, Böschemeyer U, Längle A, Vesey C, Saloojee Y. Comparison of tests used to dis-
Kretschmer W, Böckmann W, Günter F, et al. Dar sen- tinguish smokers from nonsmokers. Am J Public
tido à vida. A logoterapia de Viktor Frankl. Petrópo- Health 1987 Nov; 77 (11):1435-8.
lis: Editora Vozes; 1990. 53. Fiore M, Bailey W, Cohen S et al. Treating to-
32. Whitaker C, Bumberry W. Dançando com a bacco use and dependence. Clinical practice guide-
família. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990. line. Rockville: United States Department of Health
33. Project MATCH Research Group (1997). and Human Services. Public Health Service; 2000.
Matching alcoholism treatments to client hete- 54. Becoña E, Vázquez F. Tratamiento del
tabaquismo. Dykinson: Madrid; 1998. 67. Trigo M. Recensão de livros. American Lung
55. Kottke T, Battista R, DeFriese G, Brekke M. Association. 7 Steps to a smoke-free life. Rev Port Psi-
Attributes of successful smoking cessation interven- coss 2004; 6 (1): 137-140.
tions in medical practice. A meta-analysis of 39 con-
trolled trials. JAMA 1988 May 20; 259 (19): 2883-9. Agradecimentos
56. Tsoh J, McClure J, Skaar K, Wetter D, Cin- Esta reflexão, apesar de pessoal, não é
ciripini P, Prokhorov A, Friedman K, Gritz E. Smoking
solitária. A sua origem cruza-se com o per-
cessation 2: Components of effective intervention. Be-
hav Med 1997 Spring; 23 (1): 15-27. curso de muitas pessoas e diversas oportu-
57. Fisher E, Goldfarb T. American Lung Associa- nidades de aprendizagem. De todas elas
tion: 7 Steps to a smoke-free life. New York: John Wi- guardo descobertas que fiz acerca de mim e
ley & Sons; 1998. dos que me rodeiam, mas também o alento
58. Anda R, Williamson D, Escobedo L, Mast E, para seguir em frente. Em cada recanto
Giovino G, Remington P. Depression and the dyna-
deste texto consigo reconhecer pessoas e
mics of smoking cessation. A national perspective.
JAMA 1990 Sep 26; 264 (12): 1541-5.
seus contributos. Por estes motivos, estou
59. Breslau N. Psychiatric co-morbidity of smoking grato à Dra. Isaura Lourenço, à Dra. Noélia
and nicotine dependence. Behav Genet 1995 Mar; 25 Canudo, à Dra. Teresa Morais, ao Professor
(2): 95-101. Danilo Silva, ao Professor Evangelista Rocha
60. Lasser K, Boyd J, Woolhandler S, Himmelstein e à minha mulher, Paula, a quem dedico o
D, McCormick D, Bor D. Smoking and mental illness. meu Amor.
A population-based prevalence study. JAMA 2000
Nov 22-29; 284 (20): 2606--10.
61. Dryden W. Fundamentals of rational emotive
behaviour therapy: a training handbook. London:
Whurr Publishers; 2002. Endereço para correspondência
62. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Miguel Trigo
Lisboa: Publicações Instituto Piaget; 1991. Universidade Lusófona de Humanidades e
63. Maturana H, Varela F. Autopoiesis and cogni- Tecnologias. Departamento de Psicologia.
tion. The realization of the living (Vol. 42). London: D.
Reidel Publishing Company; 1980.
Av. Campo Grande, 376
64. Damásio A. O erro de Descartes. Emoção, 1749-024 Lisboa
razão e cérebro humano. Mem-Martins: Publicações Telef: 217 515 500
Europa América; 1994. E-mail: miguel.trigo@ulusofona.pt
65. Mace C, Moorey S, Roberts B. eds. Evidence
in the psychological therapies. A practical guide for
practitioners. Hove: Brunner-Routledge; 2001.
66. Gilliéron E. Manual de psicoterapias breves. Recebido para publicação em: 07/10/04
Lisboa: Climepsi Editores; 1998. Aceite para publicação em: 05/12/04
ABSTRACT
Based on a personal experience, the text presents ten reflections about clinical practice in smoking cessation. 1.
We start by addressing the complexity and importance of this issue. 2. Then, the power of the nicotine dependen-
ce is raised, nourished by a self-medication process, and by social-demographic determinants. 3. We discuss how
the smoker can maintain his internal sense of coherence, when he is involved in a self-destructive behaviour.
4. Persuasive counseling is criticized, and empathy and person centered processes are emphasized. 5. The impor-
tance of self-efficacy and self-transcendence in the change consolidation is underlined. 6. Decision-making is
characterized as a process dominated by ambivalence and freedom of choice. 7. Motivation is defined as a pheno-
menon depending on personal competencies and his existential meaning. 8. The importance of verbal interactions
in the movement of personal change is highlighted. 9. The principal components of smoking cessation programs
are presented, as well as some of their main management difficulties. 10. At last, we stress the pertinence of
using several techniques and complementary strategies in the smoker’s treatment.
Key-Words: Smoking Cessation Habits, Nicotine Dependence, Motivational Interviewing, Counseling, Stages of Change, Processes
of Change.