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PRÁTICA CLÍNICA

O que provoca
realmente a mudança
nos fumadores?
Algumas reflexões
MIGUEL TRIGO*

RESUMO
Com base num percurso pessoal, o texto apresenta dez reflexões sobre a prática clínica em desabi-
tuação tabágica: 1. Começa por se referir a complexidade e a importância desta problemática. 2.
Depois, é realçada a força da dependência nicotínica, a qual é mantida, quer por um processo de vários profissionais.
auto-medicação, quer por determinantes sócio-demográficos. 3. Discute-se como poderá o fumador À medida que se contacta com fuma-
manter o seu sentido de coerência interna, ao envolver-se numa conduta auto-destrutiva. 4. dores, descobre-se que todos os desa-
Criticam-se as abordagens persuasivas e enfatizam-se os processos baseados na empatia e na pes- fios intrínsecos aos processos de mu-
soa. 5. Realça-se o papel da auto-eficácia e da auto-transcendência na consolidação da mudança. dança se encontram presentes nestas
6. Caracteriza-se a tomada de decisão como um processo marcado pela ambivalência e liberdade pessoas. Na verdade, surgem dificul-
de escolha. 7. Define-se a motivação como um fenómeno dependente de competências pessoais e dades acrescidas no manejo da desa-
de um sentido existencial. 8. Sublinha-se a importância das interacções verbais no movimento de bituação tabágica. Muitos fumadores
mudança pessoal. 9. Apresentam-se os principais componentes dos programas para deixar de fumar não reconhecem ter um problema de
e as principais dificuldades no seu manuseamento. 10. Finalmente, sublinha-se a pertinência de saúde, minimizando a importância da
recorrer a várias técnicas e abordagens complementares no tratamento de fumadores. sua dependência, recusando a sua
própria vulnerabilidade ou evocando
Palavras Chave: Cessação de Hábitos Tabágicos, Dependência Nicotínica, Entrevista de Motivação, exemplos de pessoas conhecidas que
Aconselhamento, Estádios de Mudança, Processos de Mudança. adoeceram sem nunca terem fumado,
isto é, apresentando vários tipos de en-
viesamentos cognitivos (racionalização,
O DESAFIO DA MUDANÇA negação, atenção e abstracção selecti-
NA DESABITUAÇÃO TABÁGICA va)3. Outros fumadores, apesar de pre-
tenderem deixar de fumar, optam por
área da desabituação tabági- não recorrer a qualquer ajuda espe-

A ca foi, durante bastante tem-


po, um domínio pouco inves-
tido. Contudo, o crescente
reconhecimento da magnitude dos
efeitos nefastos associados ao consumo
cializada4. Há quem não esteja sequer
receptivo a falar sobre o assunto e
muitos fazem uma escolha pelo prazer,
em detrimento da saúde. Na maior
parte dos casos, trata-se de fumadores
de tabaco, considerado a principal em fases de pré-contemplação que
causa de morbimortalidade evitável nos apresentam, não apenas falta de infor-
países industrializados1,2 terá, certa- mação e indisponibilidade para reflec-
mente, contribuído para recolocar o tir sobre as consequências do tabagis-
*Psicólogo clínico. problema no seu correcto lugar. Na rea- mo, mas principalmente fortes meca-
Docente no Departamento de
Psicologia da Universidade Lusófona lidade, o tratamento de fumadores nismos de resistência e negação que
de Humanidades e Tecnologias. constitui não apenas uma das princi- evitam qualquer pensamento angus-
Consulta de Desabituação pais medidas preventivas em saúde tiante acerca das consequências nega-
Tabágica do Centro de Saúde de
Odivelas/Unidade Comunitária de pública, como também um desafio com- tivas do seu comportamento5.
Cuidados Psiquiátricos de Odivelas. plexo que exige colaboração entre os Igualmente difícil revela-se o acon-

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selhamento dos fumadores que, apesar tir o desconforto físico da privação. As-
de mostrarem abertura para alcançar sim, contrariamente à crença mais co-
maior controlo sobre o seu hábito, não mum nos fumadores, fumar pode
efectuam mudanças reais. Nestes ca- provocar stresse, desconforto e afec-
sos, é comum confrontarmo-nos com tividade negativa8,9. Poderíamos tam-
manifestações de intenção que esbar- bém recordar as reacções dos fumado-
ram em racionalizações e situações de res quando lhes perguntamos – o que
vida que, embora compreensíveis, per- sente se de repente ficar sem cigarros?
petuam comportamentos e impedem a O mais habitual é termos uma respos-
pessoa de iniciar mudanças. Aquilo que ta do género – nunca deixo os cigarros
se torna necessário nestas situações acabar! É como se um estado de com-
são acções concretas, isto é, opções por pleta desorientação, regressão e deses-
fazer, em vez de escolhas pela impossi- pero se abatesse sobre o fumador na
bilidade de agir. Curiosamente, mais de eventualidade de não poder contar com
90% dos fumadores debate-se com o apoio dos cigarros, ainda que só por
problemas desta natureza, situando-se algum tempo. A gravidade dos compor-
em estádios de pré-contemplação tamentos de dependência é tal que um
(59,1%) ou contemplação crónica jogador patológico, que também fuma-
(33,2%)6. va, me dizia – gosto mais do jogo e do
Casino que da minha família ou da mi-
nha casa. Isto é uma aberração, não é?
O BRAÇO FÉRREO DA
Na realidade, a gestão da síndroma
DEPENDÊNCIA NICOTÍNICA de abstinência é intuitiva e pouco cons-
ciente ou reconhecida pelos fumadores,
A decisão de parar de fumar não cons- ao passo que é frequente ouvir argu-
titui uma escolha dicotómica. Resulta mentos hedonistas como – «fumar é
de um processo contínuo e complexo, agradável», «relaxante» ou «ajuda a con-
marcado por recuos e avanços, am- centrar». Quando confrontados com o
bivalência e decisões, receios e actos de potencial efeito ansiogénico da nicotina,
coragem. Parte significativa desta toma- muitos fumadores, um pouco admira-
da de decisão não depende sequer de ar- dos, acabam por reformular a sua con-
gumentos racionais, mas de circuitos vicção benigna de que fumar promove
cognitivos irracionais e de desejos/an- estados emocionais positivos ou que
gústias inconscientes. Por outro lado, os ajuda a lidar com o stresse. Na realida-
fumadores utilizam os cigarros como de, parte desse stresse é induzido pre-
fonte de prazer e/ou mecanismo para cisamente pelo facto de a pessoa fumar,
auto-regulação dos estados emocionais, criando-se assim um duplo circuito de
sendo bem conhecido o efeito bifásico manutenção da conduta (efeito bifási-
da nicotina (activação – estimulação vs. co e gestão da abstinência) que culmi-
desactivação – sedação)7. na num ritual de auto-medicação (ver
No caso dos fumadores mais pesa- Figura 1).
dos, a resposta do organismo à privação Nem tudo, porém, está dentro do fu-
da nicotina constitui mais um obstáculo mador, existindo outros condicionalis-
difícil de superar e, de facto, são muitos mos importantes, como os factores so-
os que fumam um cigarro imediata- ciais, étnicos ou económicos10. Sabe-
mente após o acordar. Nestes casos, -se, por exemplo, que a prevalência do
não se trata apenas da necessidade de tabagismo é maior entre as pessoas de
repor os níveis de nicotina no organis- classes sócio-económicas desfavoreci-
mo, mas também de procurar o efeito das, comparativamente às mais favore-
sedativo que protege o fumador de sen- cidas (40% vs. 12%), uma vez que o de-

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Procura de
Situação Fumar Alívio
Sensações

Gestão hedónica
Fonte de prazer Efeito bifásico
activação – estimulação
desactivação – relaxação Gratificação e
manutenção Auto-medicação
da conduta
Gestão da abstinência
Fonte de stresse Efeito sedativo
e desconforto evitar privação
repor níveis de nicotina

Abstinência Stresse Fumar Alívio

Figura 1. Duplo circuito de manutenção da conduta de fumar.


A parte a cinzento refere-se a um efeito negativo da nicotina que geralmente não é reconhecido pelos fumadores.

clínio de fumadores tem ocorrido essen- mais de 4.000 substâncias nocivas para
cialmente nas classes mais diferencia- o organismo13,14. Embora algumas des-
das11. Variáveis sócio-demográficas sas substâncias sejam desconhecidas
também surgem associadas ao hábito do grande público, os fumadores sabem
de fumar, nomeadamente a idade e o que os cigarros contêm alcatrão, nicoti-
género. Dados da versão portuguesa do na, monóxido de carbono ou cianeto. Ao
CINDI que acompanham a literatura in- atentar contra o «código existencial», o
ternacional, encontram diferenças na acto de fumar desafia as clássicas con-
prevalência do tabagismo entre homens cepções acerca do «instinto de sobre-
e mulheres, nas faixas etárias dos 15- vivência», da «luta pela existência» ou da
-24 anos de idade (36,5% vs. 31,1%) e «selecção dos caracteres mais aptos»15.
dos 55-64 anos (33,9% vs. 0,0%), em- Por outro lado, não deixará também de
bora o número de homens que deixa- causar perplexidade que a mesma en-
ram de fumar tenha aumentado, tal tidade que exige a colocação de avisos
como o número de mulheres que co- como «Fumar mata» ou «Fumar pode
meçou a fumar12. provocar morte lenta e dolorosa»16, per-
mita simultaneamente a venda desse
veneno em máquinas automáticas de
COMO PODEM OS FUMADORES
livre acesso, 24 horas por dia, arreca-
ATENTAR CONTRA SI? dando 80% de impostos sobre a venda
do produto17. Que parcela deste mon-
Apesar de reconhecermos a força que a tante será reinvestida em prevenção ou
dependência nicotínica exerce, através no tratamento de fumadores?
da longa e distorcida aprendizagem a Apesar de tudo, cada fumador tem a
que os fumadores se submetem, pelo possibilidade de optar pela saúde, não
sistema de auto-gratificações que se fumando ou pela doença, fumando.
instituiu ou pela necessidade de man- Viktor Frankl, na arrebatadora descri-
ter os níveis de nicotina no organismo, ção da sua estadia num campo de con-
não deixa de ser surpreendente como centração nazi, coloca o problema da es-
as pessoas se envolvem e mantêm num colha entre a condenação à morte e a
processo auto-destrutivo, inalando sobrevivência de forma pragmática: (…)

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doze cigarros valiam doze sopas e doze as suas dores, os doentes colocam-se
sopas realmente significavam muitas instintivamente numa posição intermé-
vezes a salvação da morte por inanição, dia entre a flexão e a extensão que faz
durante pelo menos duas semanas. (…) com que os músculos exerçam menos
Quando um colega começava a fumar os pressão sobre as superfícies articulares
seus poucos cigarros, já sabíamos que (p. 146)21. Num sentido figurado, as
havia perdido a esperança de poder con- «posições psicológicas intermédias» fun-
tinuar (p. 18)18. Nesta situação limite, na cionam como antídotos que ajudam a
qual se encontram muitos doentes acalmar a dolência e o sofrimento que
crónicos com hábitos tabágicos (cardía- a existência provoca. Muitos destes es-
cos, oncológicos e respiratórios), o que tilos de vida e comportamentos com-
está em causa é simplesmente a alter- pensatórios não têm uma natureza emi-
nativa entre a vida e a morte. Como nentemente patológica. Qualquer adul-
pode então o Homem deixar voluntaria- to terá já tomado bebidas alcoólicas em
mente em risco a sua integridade, negli- ocasiões festivas, fumado um charuto
genciando os sinais de perigo e alarme? em dias especiais ou comido em exces-
Talvez seja prudente encarar esta ques- so um prato da sua predilecção. Então,
tão acrescentando duas reflexões com- isto quer dizer que condutas deste tipo
plementares: oscilam num contínuo entre a saúde e
• O mistério da saúde. O curso da a doença. O seu aspecto nefasto surge
existência não é linear, consistindo um associado à duração, intensidade e na-
jogo de trocas, cedências e soluções de tureza inevitável ou insubstituível da
compromisso que nem sempre ocorrem conduta em causa.
em função do que é ou não saudável. • O duplo nó psicológico. Precisa-
Por seu turno, a própria saúde resulta mente entre os fumadores regulares
de um equilíbrio precário que depende ocorre uma combinação comum às de-
de múltiplas medidas de contrapeso, pendências, ou seja, a procura de grati-
ainda que algumas delas ameacem o ficação imediata e o adiamento das con-
seu próprio equilíbrio19. Deste ponto de sequências negativas22. Entretanto,
vista torna-se particularmente miste- para se protegerem do confronto com o
rioso como é que as pessoas conservam paradoxo de fumar – escolha por um
a sua saúde, resistindo às agressões do prazer que provoca dependência mortal,
meio e à fatalidade da doença20. De fac- muitos fumadores fazem como que um
to, as medidas de compensação que «duplo nó psicológico». No primeiro nó,
adoptamos são variadas e a sua natu- a pessoa nega que fumar seja auto-des-
reza pode ser benigna (praticar despor- trutivo (não pensa sobre isso, acha-se
to, ter um passatempo, ler, sair de fim- diferente dos outros, invoca a sua saúde
-de-semana, fazer jardinagem, estar ou o facto de ser jovem). Este movimen-
com amigos) ou potencialmente perni- to que visa manter intacto o sentido de
ciosa quando utilizadas sem flexibili- coerência interna, começa por anular a
dade e equilíbrio (comer em excesso, ansiedade e a culpa que resultaria da
beber álcool, usar drogas, fumar, jogar dissonância entre a sua conduta auto-
compulsivamente, trabalhar em exces- -destrutiva e o medo de morrer. O se-
so, viver em stresse constante). Georges gundo nó, ao negar a dependência, con-
Canguilhem, citando Nélaton, ilustra solida a opção de fumar (valorização do
de forma curiosa o sentido hedónico e prazer e da liberdade de escolha, refe-
normativo que o comportamento pato- rência à capacidade de controlar a de-
lógico pode assumir: (…) É raro que o pendência), promovendo a percepção
membro se conserve normalmente em de controlo sobre a conduta. Deste mo-
posição recta. Com efeito, para acalmar do, o fumador dissipa as inquietações

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sobre o paradoxo de fumar. Esta é a resultado revelou-se infrutífero, algu-


mentira por excelência, porque se nega mas vezes criando a ilusão momen-
ver aquilo que é evidente, é não querer tânea de ter convencido alguém a agir
ver o que se vê. Pouco importa se a men- em seu benefício, outras vezes deixan-
tira foi dita perante testemunhas ou do a sensação de ter saído de uma con-
não. A mentira mais frequente é a que tenda verbal frustrante. Na maior parte
cada qual diz a si próprio23. Assim, qual- destas situações, ocorre um efeito de
quer atitude de excessivo confronto que boomerang, uma vez que os argumen-
vise remover esta «catarata psicológi- tos apresentados são de tal forma dis-
ca», irá desencadear irritação no fuma- crepantes da intenção e sistema de
dor que, na realidade, vai buscar a sua crenças do fumador que apenas re-
energia à ansiedade anulada e à angús- forçam a sua opção, provocando ansie-
tia de morte negada (ver Figura 2). Pas- dade e vontade de fumar25.
cal afirmava que os homens, não ten- Reflectindo sobre essas abordagens
do podido debelar a morte, acharam reconheço o receio que sentia de não ser
melhor não pensar, para serem felizes. suficientemente útil ou capaz de prestar
Esta é a atitude que recua perante a ajuda. Como em qualquer processo de
consideração da sua própria condição mudança, os desejos omnipotentes do
e que procura por todas as formas dis- terapeuta apenas geram no cliente de-
trair-se dela24. pendência, passividade, não responsa-
bilização pela mudança ou mesmo
abandono do tratamento. O fumador
INTERVENÇÕES DE EFEITO BOOMERANG acaba por responder espontaneamente
E O MODELO DA CONCHA a este movimento de «objectificação»*,
«objectificando» o intruso através de ati-
A questão que, então, se colocou foi a tudes de resistência e respostas pa-
de saber o que poderia promover a mu- dronizadas (contra-argumentar, inter-
dança destas pessoas. A primeira ten- romper, negar, ignorar). É uma questão
tação foi encetar terapias de confronto, de «objectificar-ou-ser-objectificado»
recorrendo a argumentos de autoridade
técnico-científica, persuadindo activa-
*Entendemos por «objectificação», um modelo de
mente e usando as intimidantes es- intervenção centrado no saber do técnico que se
tatísticas vitais. Invariavelmente, o impõe ao cliente e não se amolda a este.

sentido de coerência mantido

irritação
Negação do paradoxo com
avisos

Fumar é Fumar não é


auto-destrutivo auto-destrutivo

Negação da dependência
anulação da
ansiedade e culpa percepção de
controlo mantida

Figura 2. Modelo do duplo nó psicológico.

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que encerra no seu âmago a liberdade PROXIMIDADE, AUTO-DISTANCIAMENTO


de escolha entre ser em função de mim
E TRANSCENDÊNCIA
(autenticidade) ou ser o querer do outro
(inautenticidade)26. Ora, o centro nun-
ca poderá ser o clínico, mas sim o clien- Estas constatações têm-me levado a
te. A transformação genuína não é im- procurar caminhos diferentes. Foi fun-
posta, mas intrínseca, resultando da damental compreender que os proces-
prontidão interna, da vontade profun- sos de transformação pessoal assen-
da e de um sentimento de competência tam na qualidade da relação estabele-
pessoal. Curiosamente, quando força- cida. Em primeiro lugar é necessária a
da a mudança foge, mas pode emergir proximidade, através da compreensão
por entre a compartilha estabelecida dos significados do mundo alheio e da
entre o clínico e a pessoa27. sua aceitação incondicional28. Depois,
Uma imagem ilustrativa é a reacção é necessário o distanciamento sufi-
de uma concha. Se forçarmos a sua ciente, não só para reconhecer focos
abertura, tentando introduzir-lhe qual- susceptíveis de criar dissonância entre
quer objecto, imediatamente ela se o actual comportamento do fumador e
fecha e o acesso ao seu interior só o desejo de atingir objectivos pessoais
poderá acontecer após uma crueldade. relevantes (evitar condições de doença
Trata-se de uma reacção de defesa, crónica, melhorar a qualidade de vida,
marcada pela resistência e stresse face planear uma gravidez, ver os netos cres-
a uma pressão ameaçadora. De forma cer), mas também para promover a ava-
inversa, se soubermos esperar, acom- liação dos prós e contras inerentes às
panhando e compreendendo a concha várias tomadas de decisão. Neste
a partir do seu meio ambiente, podemos vaivém, revela-se sempre particular-
observar como ela, ao sentir-se em se- mente difícil não cair na malha dos con-
gurança, naturalmente se abre, num tra-argumentos (sim, mas,…) ou emba-
processo de harmoniosa interacção (ver ter no muro da resistência. O equilíbrio
Figura 3). Esta metáfora descreve duas entre a escuta activa e a fala dirigida à
abordagens diametralmente opostas mudança é precário. Igualmente difícil
perante o aconselhamento: uma per- para o terapeuta é a gestão dos seus
suasiva, ameaçadora e incorrecta e a sentimentos de frustração e omnipo-
outra motivacional, baseada na com- tência perante a recaída do fumador ou
preensão e na transformação genuína. a falta de adesão ao tratamento por

Defesa
Defesa pressão
pressão Abertura
Abertura
Cooperação
Cooperação
Resistência
Resistência
(fight-or-flight
(fight-or-flight response)
response)
meio
meio natural
natural

meio
meio hostil
hostil

A
A Ameaça
Ameaça BB Segurança
Segurança

Figura 3. Modelo da concha em aconselhamento.


Desenho A: Abordagem persuasiva. Desenho B: Abordagem motivacional.

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11 22

Combater
Combaterooobstáculo
obstáculo Controlar
Controlarooobstáculo
obstáculo

Figura 4. «Saber levar a dependência».


Desenho 1: Estratégia incorrecta. Desenho 2: Estratégia correcta.

parte de um doente para quem seria vi- simples e eficazes que vençam a depen-
tal parar de fumar. Em qualquer dos ca- dência (ver Figura 4). À medida que o
sos será útil uma boa dose de confian- fumador reaprende a distanciar-se da
ça em si, tolerância à frustração e, mais dependência, a confiança, a auto-esti-
uma vez, capacidade de se manter en- ma e a auto-eficácia aumentam e, con-
volvido com distanciamento. sequentemente, a probabilidade de se
A proximidade certa do terapeuta libertar da nicotina29. Assim, o senti-
relativamente ao fumador levanta uma mento de poder desperta, através da
outra questão que é o auto-distancia- superação das resistências e da mu-
mento do fumador em relação à sua tação dos velhos valores acerca do que
própria conduta. Sabemos que existem a pessoa é, ou não, capaz de fazer23.
diversas cognições, estados emocionais Importa, pois, criar sistemas de auto-
e situações a desencadear o desejo e a -monitorização capazes, não só de iden-
urgência de fumar, ou seja, a necessi- tificar antecipadamente estados emo-
dade de gratificação imediata. Enquan- cionais (positivos ou negativos) e con-
to o desejo se reporta ao querer experi- textos sociais que desencadeiem dese-
mentar determinada situação de forma jo (auto-observação), mas também
intensa e obsessiva, a urgência liga-se promover um diálogo interno que
ao acto ou à compulsão que visa aliviar sustenha a reactividade emocional, a
a tensão sentida. O desejo e a urgência expectativa de gratificação e o impulso
tendem a desencadear-se de forma para a acção (auto-controlo). Inspirados
automática e inevitável face a variadas no trabalho de Powell30 sobre o contro-
situações («tenho» de fumar…). Porém, lo da reactividade emocional, introduzi-
quanto maior for o intervalo entre o mos duas metáforas – o anzol e a lâmpa-
aparecimento do desejo e a urgência de da. O objectivo desta técnica é substi-
agir, maior o auto-controlo, a capaci- tuir uma atitude de reactividade, por
dade para adiar a gratificação e a pos- outra de resistência ao stresse. Assim,
sibilidade de escolher comportamentos a imagem do anzol serve para represen-
alternativos, diminuindo também o tar as situações de risco, sugerindo-se
comportamento impulsivo3. Lembre- à pessoa que passe a pensar nelas como
mos que ao fumador não interessa com- se de um anzol se tratasse, desvalori-
bater directamente estes obstáculos, zando o acontecimento em si. Desta for-
mas antes compensar a mecanização ma substitui-se o carácter provocador
mão-boca através de soluções criativas ou tentador da situação real, por uma

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conotação neutra de perigo e risco. Por monumentos e atribuir-lhe um valor


seu turno, a imagem da lâmpada visa relativo. Esta imagem é semelhante ao
mobilizar respostas defensivas e de con- que ocorre durante o processo de desa-
tenção imediata, alternativas ao com- bituação tabágica, o qual inclui um mo-
portamento a evitar. Ao inverter a ex- mento de expectativa em relação à ces-
pectativa de gratificação (querer fumar), sação, de confronto directo com a situa-
pela consciência do risco (anzol – fumar ção de deixar de fumar, na qual se vê
é perigoso), a pessoa desactiva o dese- completamente envolvido e, gradual-
jo, reinvestindo estilos de vida saudá- mente, de superação, distanciamento,
veis e equilibrados (lâmpada). Utiliza- relativização e crescimento a partir
mos estas metáforas integradas numa dessa experiência.
análise funcional do comportamento
mais alargada, designada por técnica
ABC(DE) (Activating events, Beliefs,
OS FENÓMENOS INTERNOS
Consequences, Dispute beliefs, Effective DA TOMADA DE DECISÃO
thinking)10. Aqui o anzol representa o A
e a lâmpada o E, isto é, os dois extremos Estas abordagens em desabituação
do acrónimo, os desencadeantes da tabágica também não constituem uma
reactividade e as respostas de controlo solução mágica. Depois da consulta,
que estarão na base do auto-distancia- muitos fumadores mantêm a opção de
mento. fumar. Contudo, em certos casos, a se-
Paralelamente ao auto-distancia- mente da mudança ficou implantada
mento psicológico, interessa que o fu- no fumador. É como se parte da activi-
mador seja capaz de transcender os dade do clínico passasse pela função de
seus receios, dirigindo a sua atenção arar e semear o inconsciente32. Há mu-
para metas mais profundas e ricas de danças que não são comportamentais
sentido existencial. Para isso é neces- ou visíveis, mas envolvem avanços na
sário que a conversa conduza à con- intenção de tomar decisões e que resul-
frontação da pessoa com as suas ne- tam de processos de amadurecimento
cessidades espirituais e existenciais31. imperceptíveis. O fumador não decide
Trata-se de alimentar a saudável ten- de uma só vez, vai decidindo à medida
são entre aquilo que já se alcançou e o que acumula aprendizagens e sofre in-
que ainda deverá ser alcançado, pro- fluências do meio social, até essa in-
movendo-se a auto-realização enquan- tenção assumir os contornos de um ob-
to resultado de um processo contínuo jectivo conscientemente reconhecido.
de transcendência pessoal18. Este facto Porém, ao tornar-se consciente, a pes-
suscita-me uma analogia com um turis- soa fica iludida de que a sua decisão
ta curioso. À medida que ele se aproxi- ocorreu nesse momento, como se de
ma de um importante monumento, um processo binário e concreto se
cresce em si a excitação pela imponên- tratasse. Na realidade, muitos dos pro-
cia da obra e quando muito próximo ele gressos que entretanto se tornam cons-
pode contemplar os seus pormenores, cientes não podem ser avaliados se-
perdendo contudo a capacidade de o gundo o princípio do «tudo-ou-nada»,
abarcar por completo no seu campo vi- uma vez que resultam de transfor-
sual. Ao distanciar-se novamente, mações subtis, como a diminuição do
readquire a perspectiva global e o número de cigarros fumados, fumar só
enquadramento em que ele se situa. ao fim-de-semana ou fazer apenas duas
Mais tarde recordará alguns dos seus ou três inalações em cada cigarro33.
aspectos e o impacto que lhe causou. Importa, porém, reconhecer que exis-
Pode também compará-lo com outros tem decisões impulsivas e imprevisíveis

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de índole mais comportamental do que ca de cigarros, para começar o proces-


racional (acting outs). Estes impulsos so de redução gradual: mas eu não gos-
para diante que não decorrem de uma to desses cigarros, prefiro os que fumo
prontidão real, geralmente envolvem agora. O pedido era claro e até habitual
pouca determinação, estando conde- em processos psicoterapêuticos, mude-
nados ao fracasso22. Um caso diferente -me sem eu ter de mudar nada. O jovem,
de corte radical com os hábitos prévios que parecia inclusivamente esquecer
refere-se às situações que envolvem que procurara ajuda para deixar de fu-
ameaças graves à saúde e identidade do mar, apresentava não apenas uma forte
fumador, como é o caso do enfarte do dependência, como se encontrava nu-
miocárdio34. Em rigor, estas condições ma fase muito inicial do seu processo
de sofrimento suscitam interrogações de motivação e mudança.
profundas sobre o sentido da vida e in- Em outras ocasiões acontece o opos-
vestem o indivíduo de um tal espírito de to daquilo que descrevíamos. Os fuma-
missão que até os maiores desafios dores surgem de tal modo investidos de
parecem pequenas etapas, num movi- dinamismo e empenho que, entre a ses-
mento de auto-transcendência31. Ao são de avaliação e a primeira consulta
transformar as condições de sofrimen- de tratamento, deixaram de fumar,
to em oportunidades de crescimento, antes mesmo de ter sido discutida uma
as pessoas compreendem que não são data de paragem. Nestes casos, o que
apenas elas a esperar algo da vida, mas faltava era uma cumplicidade capaz de
que a própria vida espera algo delas18, despoletar a acção final (parar de fu-
ou seja, a não rendição e a busca de al- mar), uma vez que a genuína tomada
ternativas. de decisão ocorrera previamente à
Note-se que muitas destas mudan- procura de ajuda. Aqui o que conta é o
ças súbitas não são genuínas, resul- testemunho compartilhado da mudan-
tando antes de um medo profundo que ça, a responsabilização daí resultante27
suscita a fuga para a frente. Há algum e o significado dessa experiência36. A
tempo confidenciava-me uma doente partir desse momento, a autoria do pro-
com enfisema e história de ventilação jecto de não fumar tornou-se pública
mecânica, um pouco perplexa consigo porque foi assistida pelo clínico e por
– vou contar-lhe um segredo. O senhor é aqueles que são significativos (família e
psicólogo, talvez me compreenda… Se amigos), mas também singular porque
eu pudesse fazer um transplante do pul- pertence à esfera das vivências de cada
mão, continuava a fumar. Só parei um dos intervenientes. Ao fazer a sua
porque tenho pavor de ficar outra vez en- escolha, o ex-fumador implica os outros
tubada! A doente deixara de fumar, mas na decisão (cônjuge, filhos, familiares,
psicologicamente mantinha-se fuma- amigos, sociedade), não apenas pelo
dora. É o paradoxo entre o desejo e a compromisso que com eles assume,
realidade. Para o desejo, o ideal é fumar mas pelas implicações que essa mu-
e ser saudável, mas, no plano da reali- dança acarreta (provocar a decisão de
dade, apenas uma das alternativas é deixar de fumar em outros familiares ou
possível; ou fumar e prejudicar a saúde amigos, evitar ser um modelo de inicia-
ou proteger a saúde e parar de fumar. ção ao tabaco, deixar de contribuir para
Isto lembra o dilema sugerido por Paul o tabagismo passivo, aumentar a dis-
Watzlawick et al., não é possível comer ponibilidade financeira, ser motivo de
o bolo e conservá-lo ao mesmo tempo (p. orgulho e satisfação para a família). É
195)35. Um outro fumador muito depen- nestes momentos que a solidão da vida
dente (80 cigarros por dia) respondeu- se ilumina pela presença dos outros.
-me, quando lhe sugeri mudar de mar- Os processos de tomada de decisão

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PRÁTICA CLÍNICA

não se cingem ao período inicial da de- tade. (…) Bem, eu fui às compras. Sabia
sabituação tabágica (acção), mas pro- exactamente o que queria e onde ir para
longam-se pela fase de manutenção (en- as arranjar mas, veja só, tinha-se esgo-
tre os seis meses e cinco anos após pa- tado aquilo que precisava. Para me ani-
rar) e terminação (tentação zero e 100% mar pensei que podia tomar um café. Sei
de auto-eficácia)37. As escolhas feitas que tenho um fraco por bolos, então re-
nesta altura podem reforçar a decisão solvi tomar só o café. Mas quando vi
de parar ou aproximar a pessoa do aquele bolo com creme,… bem, eu sei
retrocesso. São bem conhecidos os es- que isto vai parecer cómico, mas o creme
quemas cognitivos envolvidos na recaí- fez-me comê-lo (tradução livre, p. 1)38.
da, em particular a «visão em túnel» (an- Embora racionalizadas e denegadas,
tecipação da gratificação, imperativos podem-se aqui reconhecer várias «mini-
orientados para o alívio, crenças per- -decisões» ou decisões aparentemente
missivas)3, mas também o efeito de vio- irrelevantes22 que acabam por sabotar
lação da abstinência (EVA)22. o compromisso de não comer doces,
Nos casos da «visão em túnel» e do bem como falhas na identificação dos
EVA, estão em causa processos de de- alertas e consequente inoperância das
cisão geralmente marcados quer pelo manobras de evitamento ou bypass à
carácter de imposição decorrente de situação de risco.
aprendizagens muito profundas («visão Sem dúvida que o ser humano é fini-
em túnel» – tenho de fumar, é mais forte to e a sua liberdade restrita. Porém, não
que eu, não consigo resistir mais), quer se trata de estar livre de factores condi-
pela culpabilização e raciocínio di- cionantes, mas sim da liberdade de to-
cotómico (EVA – não valho nada, voltei mar uma posição frente aos condicio-
a fumar). Em ambos os fenómenos es- nalismos, ou ceder ou resistir. Uma vez
tamos perante uma postura passiva e que estamos constantemente colocados
indefesa, dominada por expectativas perante «bifurcações existenciais» (pon-
negativas em relação ao sucesso da re- tos Y) nas quais se jogam caminhos
cuperação que camuflam o facto de a diferentes, será mais correcto encarar
pessoa ser verdadeiramente livre e res- o hábito de fumar como uma coisa que
ponsável pelas suas escolhas. Ao invo- se faz e não como algo que se é. Assim,
car a força de vontade, o fumador tor- apesar das situações nascerem do meio
na mais fácil desvincular-se, quer do ambiente, é o indivíduo quem aprovei-
compromisso que livremente aceitou de ta ou perde essas oportunidades,
não fumar, quer de assumir que a sua através das quais ele se decide39. Sem-
decisão oscilou ao ter fumado. Todavia, pre e em toda a parte, a pessoa está co-
a decisão de fumar, ou não fumar, não locada diante da decisão de transformar
depende da força de vontade, como se a sua situação numa realização interior
de uma entidade externa se tratasse, de valores e cada um é insubstituível
mas da pessoa que a cada momento nesse papel18. Para o fumador, cada de-
pode voltar a fazer outras escolhas e cisão depende das competências adqui-
mudar (curva em U), inclusivamente ridas, do nível de compromisso com a
tornar-se fumador outra vez. mudança, das expectativas em relação
Um exemplo hilariante dos estrata- ao resultado e daquilo que é autentica-
gemas mentais envolvidos na recaída é mente significativo para ele. Até que
descrito por Dryden, ao citar o caso da ponto deixar de fumar é importante? A
Senhora Jones, uma mulher diabética pessoa deixa de fumar porque está na
que não resistira a comer um cremoso moda? Porque o seu médico aconse-
bolo: Racionalmente sei que não devo lhou? Por ser um objectivo pessoal? Por
comer bolos, mas não tenho força de von- todas estas razões? Colocamo-nos aqui

172 Rev Port Clin Geral 2005;21:161-182


PRÁTICA CLÍNICA

Meta-necessidades
Saúde
Liberdade
Qualidade
de vida Para quê deixar de fumar?
[«arco intencional»]
Longevidade

O que fazer para deixar de fumar

curso existencial

Ponto A Ponto B Ponto C


Fumar Deixar de fumar Não fumar
passado presente futuro

Figura 5. Duas faces da motivação – O quê? Para quê?

ao nível das motivações profundas – poral, porém, é distinta. Enquanto a


para quê deixar de fumar? pergunta o quê? se relaciona preferen-
cialmente com o presente, o para quê?
estabelece um «arco intencional» entre
FUMAR OU NÃO FUMAR… o passado e o futuro que confere senti-
EIS A MOTIVAÇÃO! do ao momento actual, isto é, à situação
(ver Figura 5).
Deixar os cigarros é uma das decisões O que é necessário para deixar de fu-
mais importantes e difíceis de tomar na mar? Para deixar de fumar é útil um
vida40. Não fumar implica rejeitar uma nível elevado de estoicismo, mas isso
gratificação imediata e certa, por um não chega. Muitos fumadores cheios de
sofrimento que se vislumbra longo e força de vontade cedem ao desejo, quer
penoso. O medo da dor, ainda que da perante adversidades e circunstâncias
dor infinitamente pequena, tende a quotidianas, quer como meio de evitar
acabar na piedade de si23. Como pode o desconforto dos sintomas de privação.
então a pessoa lançar-se neste caminho O contacto com ex-fumadores bem
incerto que exige abandonar um com- sucedidos ensina-nos que muitos deles
panheiro de tão longa data – o cigarro? procuram soluções criativas para en-
Certamente que a motivação desempe- frentar os momentos difíceis, benefi-
nha aqui um papel chave. Porém, com- ciando das aprendizagens acumuladas
preender a motivação é uma tarefa com- em tentativas anteriores. Normalmente,
plexa que envolve procurar os signifi- a abstinência total surge após vários
cados pessoais capazes de fazer a pes- lapsos e recaídas22. Assim, a indução e
soa mover -se. É comum misturar a manutenção dos níveis de motivação
inadvertidamente o que é necessário para mudar dependem de factores di-
fazer para atingir um objectivo (os versos como o sentimento de compe-
meios), com o para quê desse movi- tência e controlo pessoal29, tolerância à
mento (significado existencial). Ambas frustração41, controlo do impulso22 ou
as dimensões são importantes, consti- o planeamento de comportamentos
tuindo faces de uma mesma moeda – a substitutos do ritual mão-boca. Em boa
motivação. A relação que cada uma das medida está aqui em causa o nível de
questões mantém com o horizonte tem- confiança pessoal para empreender es-

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PRÁTICA CLÍNICA

tas mudanças. -lhe a seguinte imagem: Pense no seu


Para quê deixar de fumar? A motivação cão ou, se não tem nenhum, imagine um
não resulta apenas de um elevado senti- cão muito estimado. Agora imagine latas
mento de confiança, mas também por de comida de cão com rótulos que dizem
uma percepção consistente acerca da «veneno». Você não iria alimentar o cão
importância da mudança a operar42. Na com comida para cães envenenada, não
prática clínica, é comum observar dife- é verdade? (…) Então, por que não tratar
rentes combinações destes dois deter- o seu corpo tão bem como trataria o seu
minantes, por exemplo quando se abor- cão? (tradução livre, p. 164)46. Penso
dam fumadores que confiam nas suas que a imagem fala por si, para quê fu-
capacidades, mas não consideram im- mar?
portante parar ou o inverso. De facto, o
balanço destas forças faz-se num eixo
longitudinal de meta-necessidades, va-
FALAR AJUDA A MUDAR
lores e aspirações diferenciadas (saúde,
liberdade, longevidade, qualidade de Interrogo-me frequentemente sobre o
vida)43 que se orientam em direcção à que as pessoas são capazes de fazer por
auto-realização do ser44. Este plano, que si e sobre o que realmente fazemos com
transcende largamente o presente ou a as pessoas nos processos de aconse-
gratificação imediata, põe em contacto lhamento. A este propósito surgem-me
quem eu fui (história pessoal), com o duas ideias. Primeiro, um pensamento
que pretendo ser ou fazer de mim de Pascal que realça o carácter miste-
(projecto pessoal). É este «arco inten- rioso e imprevisível da natureza: Os
cional» que confere significado ontoló- segredos da natureza estão ocultos; se
gico à motivação e à praxis, neste caso, bem que ela actue sempre, nem sempre
para quê (ontologia) deixar de fumar se lhe descobrem os efeitos24. Relativa-
(praxis)? Para a fenomenologia, este mente ao aconselhamento ele pode, de
processo de significação que não ocorre facto, suscitar «efeitos caleidoscópicos»
num tempo ou espaço objectivo chama- inesperados, abrindo o leque existencial
-se intencionalidade45. de escolhas e o caminho da auto-desco-
De facto, o motivo fundamental da berta. Porém, existe aqui uma dimen-
existência humana é a «vontade de sen- são inesperada ou desconhecida, uma
tido»18, a procura de um ponto elevado força ou impulso que pertence à cria-
colocado no futuro, em função do qual tividade, à imaginação que felizmente
viver. A expectativa de acompanhar al- não é, nem controlável, nem domável.
guém durante a vida (enquanto filho, O segundo pensamento que me
marido, pai, avô ou amigo), de não so- ocorre refere-se ao comentário de um
frer uma doença, de viver mais anos ou ex-fumador – fumei durante toda a vida
a tentativa de aconchegar a angústia de mais de um maço de cigarros (há já cer-
morte, zelando pela saúde, serão certa- ca de 40 anos). Se alguém me dissesse
mente respostas importantes do ponto que devia parar de fumar, ria-me na cara
de vista existencial. A este propósito ci- dele. Há cerca de um ano, tomei a de-
tamos um caso clínico descrito por Irvin cisão que chegava de me matar! Agarrei
Yalom em que, apoiado por um colega, no maço e deitei-o fora. Não me pergunte,
pretendia ajudar Marie a parar de fu- porque não sei dizer como nem porquê,
mar. Partindo de três valores impor- mas parei de um dia para o outro. É evi-
tantes para Marie – o facto de ela que- dente que coexistem neste caso dois re-
rer viver, de precisar do seu corpo para gistos, por um lado, ocorreram proces-
viver e dos cigarros serem veneno para samentos lineares e conscientes, por
o seu corpo – os terapeutas sugerem- outro, processamentos subliminares e

174 Rev Port Clin Geral 2005;21:161-182


PRÁTICA CLÍNICA

não conscientes que se dirigiram às in- Passámos, pois, do pensamento à ver-


formações que lhe criavam dissonância balização, o que constitui uma acção
cognitiva. Estas, por seu turno, conti- (acto ilocutório) e um compromisso com
nuaram a criar tensão no indivíduo, o futuro.
mesmo sem ele ter consciência disso, Desta maneira compreende-se que
conduzindo-o a restaurar o sentimen- um fumador, sem intenção de parar de
to de bem-estar e segurança, parando fumar, ao fim de alguns minutos de
de fumar47. Aqui podemos de facto as- conversa, possa deslocar-se de uma po-
sistir ao que as pessoas são capazes de sição de pré-contemplação ou contem-
fazer por si próprias e ao poder intem- plação para um estádio de acção. Lem-
poral das palavras. bro-me de um fumador idoso que co-
Embora a mudança possa ocorrer a meçou a sua consulta dizendo-me que
todo o momento, ela assenta frequen- apenas queria um medicamento que o
temente em interacções, conversas ou fizesse deixar de fumar e não estava
trocas comuns e mundanas, mas que nada interessado no «blá, blá», nem que-
têm capacidade para abrir o discurso ao ria assistir a «palestras». Após conver-
outro, apontando direcções, ajudando sarmos acerca das suas necessidades
a filtrar sentidos e criando esboços de e expectativas, acabou por aceitar que
novos modos de estar-no-mundo36. Um o tratamento e o pharmacon («remédio»)
dos avanços recentes no estudo da cog- teriam de passar por si, prontificando-
nição foi precisamente redescobrir o pa- -se a participar no programa de seis se-
pel do senso comum. Sabemos que uma manas. Devemos fazer duas ressalvas.
das nossas faculdades mais importan- Em primeiro lugar, as falas dirigidas à
tes é a de nos interrogarmos em cada mudança precisam de uma direcção
momento da nossa vida. Estas interro- precisa, capaz de ultrapassar a malha
gações não são predefinidas, mas de argumentos defensivos e irracionais
emergem de um pano de fundo, segun- («nunca», «sempre», «tenho de», «não pos-
do critérios ditados pelo bom-senso e so», «é mais forte que eu», «é inevitável»,
pelo contexto48. Na realidade, existe «sim, mas…»), desvelando assim as mo-
uma proximidade entre «acção» e «actor» tivações profundas que alimentam es-
que sublinha o processo circular, no sas crenças e receios. Em segundo lu-
aqui-e-agora, do fenómeno interpreta- gar, e num sentido oposto ao primeiro,
tivo (acção → actor → contexto → inter- importa reconhecer que o entendimen-
pretação → saber → acção). Assim, todo to, a reflexão e a mudança não têm sem-
o saber sobre si se converte em objecto pre um carácter linguístico. A com-
de um novo saber, num movimento preensão muda e silenciosa, o acordo
contínuo de reflexão e auto-consciência tácito, a solidariedade ou o insight são
que transforma a própria realidade49. também modos profundos e íntimos de
No lugar do sujeito solitário e isolado em compreensão49.
si, surge a comunicação, a acção e o Quanto ao fumador, ele está ali de
mundo, através dos quais vivem as facto. É concreto, tem a sua história, as
operações cognitivas, marcadas pelo suas razões para procurar ajuda, con-
seu carácter inter-subjectivo e coopera- vicções próprias, diversos sentimentos,
tivo50. Os pensamentos fluem através do muitas hesitações, comportamentos
diálogo e as conversas que a pessoa observáveis, designadamente o tabági-
mantém moldam o que ela pensa. Ao co, expectativas em relação ao futuro e
dizer «eu quero», «vou fazer» ou «prome- um universo de reacções frente à pes-
to» não só afirmo algo, como comunico soa do terapeuta. Enfim, é uma pessoa,
as minhas intenções, colocando-me sob um ser singular. Da nossa parte sabe-
o compromisso de fazer o que disse36. mos o que nos é pedido (ajuda para

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PRÁTICA CLÍNICA

QUADRO I

AVALIAÇÃO DA DEPENDÊNCIA E MOTIVAÇÃO

Nível de dependência nicotínica Fumador pesado


Quantos cigarros fuma por dia? ≥ 20 cpd
Quanto tempo depois de acordar fuma o seu primeiro cigarro? ≤ 30 minutos
Concentração de monóxido de carbono. CO ≥ 10 ppm
Motivação para deixar de fumar (pontuação entre 0-10) Motivação alta
Até que ponto é importante para si deixar de fumar? 10
Até que ponto tem confiança em conseguir parar de fumar? 10

CO = Monóxido de carbono; cpd = cigarros por dia; ppm = partes por milhão (uma parte de monóxido de carbono/um milhão de partes de ar expirado).

deixar de fumar) e conhecemos um mador. Da posição de «cliente» ou


método, um caminho, mais ou menos «doente», o ex-fumador assumiu o pa-
universal e validado (programa de desa- pel da pessoa responsável pela sua
bituação tabágica), para chegar a este transformação e, portanto, do «auto-te-
objectivo partilhado. No final, a pessoa rapeuta», num processo em que se
deverá ter deixado de fumar e esse é um aprende a mudar e a manter a mudan-
dos factos mais relevantes. Quem o con- ça, investindo em cuidados pessoais,
seguiu foi a pessoa, tendo o aconse- em estilos de vida equilibrados e em
lhamento apenas facilitado o engaja- gratificações não destrutivas.
mento no processo de mudança. Im-
portarão menos as técnicas utilizadas
e seus nomes, mas será absolutamente
O PROCESSO DE ACONSELHAMENTO
crucial a capacidade de entrega do fu-
mador ao seu objectivo e, de forma com- O primeiro passo no tratamento do
plementar, a disponibilidade do clínico tabagismo consiste, precisamente, em
para escutar, motivar e falar. identificar os fumadores e avaliar o seu
Apesar da brevidade do aconselha- nível de dependência nicotínica51, a con-
mento, ele é significativo precisamente centração do monóxido de carbono52 e
pela entrega e pela disponibilidade que a motivação para deixar de fumar42 (ver
estabelecem a ligação entre os interlo- Quadro I). A seguir surge o processo de
cutores e seus mundos. Porém, o cur- aconselhamento propriamente dito, no
so da vida segue e o ex-fumador terá de qual se distingue a intervenção breve (3
se escolher sucessivamente, já sem a minutos), baseada nos 5 A’s (Ask, Advi-
nossa presença física. Ele terá interiori- ce, Assess, Assist, Arrange), da inter-
zado o lema do «faça você mesmo», venção intensiva, com programas mul-
aprendendo a identificar as situações de ticomponentes mais longos53. Enquan-
risco, a monitorizar o seu diálogo inter- to os 5 A’s se desenvolvem tradicional-
no, a adoptar os comportamentos mais mente a partir dos cuidados de saúde
ajustados e a compensar-se pelos es- primários, atendendo à diversidade e
forços e ganhos conseguidos. Ao quantidade de doentes, bem como às
reaprender a ser não fumador, ele «de- limitações de tempo, a intervenção in-
saprende» a ser fumador. Esta mu- tensiva exige mais recursos (logísticos
dança ocorre quando a conversação en- e humanos) e maior especialização nas
tre o terapeuta e o fumador se transferiu competências de aconselhamento. Con-
para um diálogo interno entre o eu (self) trariamente ao que se possa pensar,
e o comportamento do próprio ex-fu- não são apenas os fumadores pesados

176 Rev Port Clin Geral 2005;21:161-182


PRÁTICA CLÍNICA

que beneficiam desta intervenção, mas De facto, embora o aconselhamento


qualquer fumador. Por outro lado, es- em desabituação tabágica tenha um
tas intervenções apresentam maior foco de intervenção bem definido (com-
eficácia (40%-50% intensiva vs. 3%-4% portamento tabágico) e indicações tera-
breve)54, embora muitos fumadores se- pêuticas precisas (elevada motivação e
jam relutantes em participar nestes ausência de comorbilidade psicopato-
programas. lógica), a prática clínica apresenta con-
De facto, os programas mais eficazes tornos bem mais subjectivos. Na ver-
incluem vários componentes (entrevista dade, o foco de intervenção pode-se
de motivação, programa de desabitua- alargar no decurso da intervenção.
ção tabágica, equilíbrio dos estilos de vi- Recordo-me de uma jovem fumadora
da, prevenção da recaída e terapia de que, ao avaliarmos os prós e contras da
substituição nicotínica), uma média de sua decisão, se recusava a mencionar
cinco a sete sessões, seguimentos após os benefícios que teria para a saúde ao
terminar o programa (1o, 6o e 12o mês), parar de fumar. Quando questionada
equipas multidisciplinares e contactos sobre tal recusa, respondeu (chorando)
face-a-face, baseados numa aliança ter- – eu nunca gostei de mim, nunca me
apêutica forte (empatia, confiança, per- preocupei em cuidar da minha saúde.
sonalização, aceitação incondi- Que ilações tirar desta reacção? Porque
cional)55,56,57. Por outro lado, existem sentiria esta jovem não merecer algo de
opções por estratégias de tratamento bom? Estaria o fumar a desempenhar
que devem ser partilhadas com o fuma- uma função punitiva? Teria o tabaco
dor, designadamente a opção entre um efeito de auto-medicação/auto-re-
abordagem individual vs. grupo (7-9 gulação? O mais provável é que a sua
pessoas), redução gradual de ingestão desvalorização pessoal constituísse um
de nicotina e alcatrão (fading) vs. para- problema prioritário relativamente ao
gem abrupta (cold turkey) ou o tipo de objectivo inicial.
terapia de substituição nicotínica. Sabemos que a morbilidade psico-
Estes factos parecem securizantes, patológica é mais elevada entre os fu-
mas não devemos esquecer que esta- madores que na população em geral.
mos a falar de programas com objec- Cerca de 30% das pessoas que procu-
tivos, técnicas e estrutura previamente ram programas de desabituação apre-
definida, normalizada ou universal que sentam história de depressão58 e 20%
visa ajustar-se aos fumadores em geral de abuso ou dependência de álcool59.
e não ao fumador em concreto. Assim, Outras populações psiquiátricas reve-
pode revelar-se difícil ajustá-los às ne- lam ainda maior prevalência de tabagis-
cessidades e características de cada mo, designadamente a esquizofrenia
pessoa. Esta situação sugere-me uma (88%), a doença bipolar (61%), a depen-
comparação entre o fato que se pode dência e abuso de álcool (56%), a ago-
comprar no alfaiate que confeccionará rafobia (48%) e a depressão major
cada peça à medida e gosto exclusivo do (45%)60.
seu cliente e a roupa adquirida num Ao equacionar os problemas do foco
pronto-a-vestir. O uso destes progra- e do duplo diagnóstico (dependência
mas não pode ser cego. Muitas pessoas nicotínica vs. perturbação emocional,
introduzem temas e preocupações que quadros psiquiátricos e dependência de
não estavam inicialmente previstos nos outras substâncias), é inevitável pon-
objectivos da sessão, outras são mais derar sobre os critérios de inclusão dos
lentas na mudança e assimilação dos fumadores em programas de cessação
conteúdos, outras ainda já partici- tabágica. De facto, acabamos por perce-
param em programas e recaíram. ber que muitos pedidos de ajuda para

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PRÁTICA CLÍNICA

Consulta de nutrição
Ênfase no Reforço da
Consulta de comportamento mudança
Actividade física
desabituação tabágica vs.
Ênfase no prevenção
Psicoterapia insight da recaída

Figura 6. Articulação de cuidados a partir da Consulta de Desabituação tabágica.

deixar de fumar constituem uma porta conseguir estar presente no interior das
de entrada atrás da qual se escondem pessoas e relacionarmo-nos com elas,
outras necessidades subjectivas. Tal num espírito de entrega e escuta, sem
como se abordam as questões relacio- violência e sem nos desviarmos da rea-
nadas com o ganho ponderal ou a activi- lidade ou do objectivo39.
dade física, é igualmente necessário Um problema mais transversal é o
despistar e encaminhar os fumadores «espartilho científico» ou a necessidade
para abordagens psicoterapêuticas de apertar a complexidade, reduzindo-
mais profundas e dirigidas ao insight. -a a uma realidade mais simples (redu-
Certamente que a diferenciação e com- cionismo). É uma questão diversas
binação de cuidados contribui para o vezes discutida pela fenomenologia, pe-
reforço das mudanças a efectuar e para la teoria da gestalt e pela epistemologia
a prevenção da recaída (ver Figura 6). em geral. Ao estudar a realidade, sepa-
ramos os fenómenos (biológicos, psi-
cológicos, sociais, antropológicos), os
O MOINHO TERAPÊUTICO seus conteúdos (motivações, cognições,
emoções, acções) e as relações que en-
Um dos aspectos que me suscitou tre si mantêm (compreensão estática),
várias dúvidas e reflexões teve a ver com para mais tarde voltarmos a atribuir-
o tipo de abordagem ou modelo de trata- -lhes o significado que deles recolhe-
mento a usar na desabituação tabági- mos (compreensão genética). Este
ca. Na literatura, são comuns as re- vaivém científico tem dois resultados:
ferências à eficácia da terapia cogniti- por um lado, a perda de sentidos, a divi-
vo-comportamental 53. Contudo, os são artificial e a simplificação excessi-
modelos cognitivistas clássicos e espe- va, por outro lado, faz emergir a inter-
cialmente os comportamentalistas res- pretação, a teorização e a re-nomeação
tringiram o papel desempenhado pelas da realidade. Esta tensão entre des-
dimensões da afectividade e da vivên- construção e reconstrução leva a que o
cia humana, remetendo-as para um discurso científico se funda num equi-
plano secundário. Esta perspectiva deu líbrio precário entre simplicidade vs.
origem a modelos «frios» do processa- complexidade, consenso vs. dissensão,
mento da informação47. Depois de verdadeiro vs. falso, científico vs. não
terem sido proscritas destas aborda- científico (intuição, curiosidade, criativi-
gens, quer o «calor» emocional, quer as dade), obrigando a ciência a caminhar
vivências do ser, acabaram por ser rea- sobre as suas patas independentes e in-
bilitadas pelas recentes concepções do terdependentes da racionalidade, do
processamento da informação a «quen- empirismo, da imaginação e da verifi-
te»38,47,61, isto é, as que incluem os con- cação62.
textos emocionais, vivenciais e rela- Outra implicação é que a ciência re-
cionais. É, na verdade, fundamental sulta de construções pessoais ou de

178 Rev Port Clin Geral 2005;21:161-182


PRÁTICA CLÍNICA

grupos de investigadores que usam lógica, ao passo que a razão depende de


uma linguagem – o método científico. sistemas cerebrais específicos, alguns
Imaginemos a seguinte situação: ao dos quais processam sentimentos. As-
observar que o componente A, pela sua sim, pode existir um elo de ligação, em
interacção com o componente B, de- termos anatómicos e funcionais, da
sencadeia uma reacção entre B e C que razão aos sentimentos e destes ao cor-
resulta numa diminuição da produção po64. De facto, as estruturas psicofisio-
de D, o observador podia sugerir que A lógicas e psicossociais dos sistemas
controla a produção de D. Porém, no vivos não só cooperam circularmente de
mundo real estes elementos (A, B, C e forma local e global/sistémica como
D) interagem através de relações de con- têm capacidade de retro-alimentação,
tiguidade e simultaneidade, agora divi- homeostase, autonomia, auto-organi-
didas e identificadas por letras ou zação e criatividade, definindo-se pela
nomes. Relações de causalidade, con- sua natureza de auto-poiesis (criação,
trolo ou função, não são relações de produção)63.
contiguidade, são antes relações perce- Que sentido terá então escolher en-
bidas por um observador que se coloca tre uma abordagem marcadamente
num meta-domínio e as descreve por comportamentalista, cognitivista, dinâ-
palavras suas, estabelecendo sucessi- mica ou outra? A verdade ou a eficácia
vos signos linguísticos63. Neste sentido não têm contrato de exclusividade com
a linguagem consiste num sistema in- nenhum modelo. Cada um tem o seu
terpretativo da realidade36. A distância contributo essencial que devemos saber
e o ajustamento entre as suas palavras recolher para a nossa prática clínica.
(fenómeno – interno) e a coisa em si (fe- Conotar a nossa intervenção com uma
nómeno – externo) provavelmente nun- determinada Escola de pensamento pa-
ca poderá ser conhecida. rece-nos, nesta altura, mais uma
Em termos práticos preconiza-se que questão de linguagem, filiação e ideolo-
no aconselhamento em desabituação gia científica. As Escolas têm também
tabágica a intervenção incida sobre os de comunicar, porque a realidade dos
enviesamentos cognitivos, os mecanis- fenómenos humanos a isso obriga. Eles
mos de reactividade emocional, o com- circulam e fazem-nos mover para, so-
portamento, nomeadamente através de bre eles, poder intervir, numa abor-
técnicas aversivas, no treino da as- dagem que nos sugere a imagem de
sertividade para lidar com as pressões um «moinho terapêutico». Trata-se aqui
ambientes ou na mudança dos estilos de integrar e aproveitar os vários
de vida. Importa porém reconhecer que recursos científicos naturalmente
entre estas dimensões existe (moti- disponíveis, numa atitude ecologista
vações, cognições, emoções e compor- e de reciclagem (ver Figura 7). Neste
tamentos) uma rede invisível de cumpli- âmbito da desabituação tabágica
cidades, dependências, inter-pene- não poderíamos deixar de sublinhar a
trações e sinergias que escapam larga- importância das teorias sócio-cogni-
mente à nossa compreensão. A tivas 3,47, fenomenológico-existen-
aparente distância entre os conceitos é, ciais, humanistas18,26,27,28,31,39,44,46 e da
na realidade, ilusória e teórica, uma vez terapia racional-emotiva do compor-
que eles mantêm relações simultâneas tamento10,38,41,61, bem como dos mode-
de vizinhança e de identidade própria. los transteorético5, 37, da auto-eficácia29,
Relativamente aos sentimentos, por da motivação42 e da prevenção da re-
exemplo, eles parecem resultar de um caída22.
delicado sistema com múltiplos compo- Finalmente, importa referir que a
nentes indissociáveis da regulação bio- eficácia (rapidez do efeito) dos trata-

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PRÁTICA CLÍNICA

Comportamento
(ex. tabagismo)

Emoções Cognições

Projecto de vida

curso existencial

História de vida
Motivação

Figura 7. Moinho terapêutico.

mentos psicológicos não reside apenas te medicalizado ou mesmo alvo da in-


na natureza das técnicas utilizadas, tervenção dos técnicos de saúde67 e, por
mas também da pessoa que a aplica e outro lado, que muitos ex-fumadores,
da pessoa sobre quem ela é aplicada, o leves e pesados, pararam sem recorrer
que levanta a questão da validade das a qualquer ajuda especializada.
intervenções (robustez do efeito). Certas
correntes, porém, fortemente influen-
ciadas pelo movimento da medicina
REFERÊNCIAS
baseada em provas, não se cansam de
mostrar cientificamente a eficácia dos 1. World Health Organization (WHO). The tobac-
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apenas que os melhores resultados são
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tion. The realization of the living (Vol. 42). London: D.
Reidel Publishing Company; 1980.
Av. Campo Grande, 376
64. Damásio A. O erro de Descartes. Emoção, 1749-024 Lisboa
razão e cérebro humano. Mem-Martins: Publicações Telef: 217 515 500
Europa América; 1994. E-mail: miguel.trigo@ulusofona.pt
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66. Gilliéron E. Manual de psicoterapias breves. Recebido para publicação em: 07/10/04
Lisboa: Climepsi Editores; 1998. Aceite para publicação em: 05/12/04

WHAT TRULY PROVOKES A CHANGE IN SMOKERS? SOME REFLECTIONS

ABSTRACT
Based on a personal experience, the text presents ten reflections about clinical practice in smoking cessation. 1.
We start by addressing the complexity and importance of this issue. 2. Then, the power of the nicotine dependen-
ce is raised, nourished by a self-medication process, and by social-demographic determinants. 3. We discuss how
the smoker can maintain his internal sense of coherence, when he is involved in a self-destructive behaviour.
4. Persuasive counseling is criticized, and empathy and person centered processes are emphasized. 5. The impor-
tance of self-efficacy and self-transcendence in the change consolidation is underlined. 6. Decision-making is
characterized as a process dominated by ambivalence and freedom of choice. 7. Motivation is defined as a pheno-
menon depending on personal competencies and his existential meaning. 8. The importance of verbal interactions
in the movement of personal change is highlighted. 9. The principal components of smoking cessation programs
are presented, as well as some of their main management difficulties. 10. At last, we stress the pertinence of
using several techniques and complementary strategies in the smoker’s treatment.

Key-Words: Smoking Cessation Habits, Nicotine Dependence, Motivational Interviewing, Counseling, Stages of Change, Processes
of Change.

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