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PARA UMA AGENDA DA REFORMA DA JUSTIÇA

Memorando do Observatório Permanente da Justiça

Portuguesa sobre Bloqueios e Propostas de Solução

Boaventura de Sousa Santos


Director Científico

OBSERV AT ÓRIO PERM ANE NT E D A JUS T IÇ A PORT UG UES A

CENT RO DE EST UDOS SOCIAIS

FACULDA DE DE ECO NOM I A

U N IV ER SID AD E D E C O IM B R A

M AI O 2005
INTRODUÇÃO

O presente memorando, elaborado a solicitação de Sua Excelência, o Sr.


Ministro da Justiça, resulta dos projectos de investigação concluídos no âmbito
do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ), cujos resultados
estão publicados em diversos relatórios. A partir deles foi possível identificar
alguns dos principais bloqueios no âmbito da justiça cível, penal, laboral e
tutelar bem como sugerir algumas medidas que poderão, a curto e médio
prazo, ajudar a removê-los.

A investigação e a reflexão acumulada permitem-nos, ainda, contribuir


para a construção de uma agenda de reforma do sistema judicial português,
que consideramos dever nortear-se pelos seguintes objectivos estratégicos:

- definição de uma nova politica pública de justiça que não esteja


demasiado dependente dos tribunais judiciais, mas também assente num
sistema integrado de resolução de litígios, consolidando os mecanismos
extrajudiciais já existentes ou criando outros no âmbito do Estado ou da
sociedade;

- criação de uma nova cultura judiciária que permita colocar a justiça


ao serviço da cidadania e do aprofundamento da democracia que passa,
necessariamente, pelo desenvolvimento de um novo modelo de recrutamento e
de formação dos operadores judiciários, em especial, dos magistrados;

- criação de um novo modelo de avaliação interna do desempenho dos


magistrados e funcionários judiciais e de avaliação externa e de prestação de
contas do sistema judiciário;

- criação de um novo modelo de progressão na carreira e de


concurso interno para os magistrados;

- construção de um novo paradigma de processo orientado pelos


princípios da oralidade, consenso, simplificação dos procedimentos, uso dos
meios electrónicos e, ainda, no processo penal pelos princípios da
legalidade/oportunidade mitigada, da justiça restaurativa, do encurtamento dos
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prazos da prisão preventiva, e do direito penal exclusivamente para adultos,


consagrando a imputabilidade penal aos 18 anos;

- reorganização do mapa judiciário que considere a função dos


tribunais judiciais e a necessidade de criação de um sistema integrado de
resolução de litígios e que consagre a agregação/extinção de pequenas
comarcas, a especialização dos tribunais judiciais, a criação do círculo judicial
como matriz organizacional e centro de serviços jurídicos, de serviços
auxiliares ao funcionamento da administração da justiça e de gestão de
recursos humanos e financeiros do sistema judicial e a criação de um efectivo
duplo grau de jurisdição de direito e de facto;

- modernização da gestão e organização dos tribunais introduzindo


reformas de racionalização do sistema através de uma nova filosofia
organizacional de gestão dos processos, dos recursos humanos e materiais e
do funcionamento dos tribunais;

- reforma do acesso ao direito e à justiça que permita criar um


verdadeiro e eficaz sistema de acesso ao direito e à justiça. Para tal, é
fundamental a revogação da lei vigente de modo a facilitar o acesso a todos os
que necessitem, e, ainda, a construção de um novo figurino institucional de
informação, consulta e patrocínio judiciário;

- criação de um sistema de monitorização e da avaliação das


reformas de modo a que seja possível, em tempo útil, comparar os objectivos
planeados com os resultados alcançados e eliminar ou atenuar bloqueios ou
efeitos perversos.

Neste relatório, abordaremos, à luz da investigação desenvolvida no


âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, alguns dos pontos
dessa agenda devendo outros integrar uma futura agenda de investigação.
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1. NOVO PARADIGMA DE POLÍTICA PÚBLICA DE JUSTIÇA

O actual modelo de administração de justiça assenta no “quase


monopólio” dos tribunais judiciais. Ora, as transformações do Estado moderno,
do mercado e da sociedade, mas também da procura dos cidadãos pela defesa
dos seus direitos individuais ou colectivos têm como consequência a
necessidade de um novo paradigma de política pública de justiça.

Os tribunais não podem resolver todos os litígios. Não devem sequer


resolver os litígios de massa, como, por exemplo, as dívidas, os crimes de
condução em estado de embriaguez ou sem habilitação legal. É fundamental
encontrar mecanismos que permitam gerir, de forma racional e diferenciada, o
volume da procura do sistema judicial. Esses caminhos podem passar pela
informalização e desjudicialização de certos litígios. Esta pode ser uma via, não
só para “descarregar” os tribunais da “litigação de massa” e melhorar o seu
desempenho, mas, também, para desenvolver uma perspectiva de integração
social, reduzindo tensões sociais, criando solidariedades através da
participação dos cidadãos e promovendo o acesso ao direito e à justiça.

A pedra de toque de um novo modelo de administração da justiça é,


assim, a criação de um sistema integrado de resolução de litígios que
assente na promoção do acesso ao direito e à justiça pelos cidadãos e
que permita vencer as barreiras sociais, económicas e culturais que
obstem à sua efectivação. Neste modelo, o “tribunal” deve ser entendido
como a entidade que os litigantes considerem mais legítima e adequada para a
resolução do seu conflito e defesa dos seus direitos. Essa entidade tanto pode
ser o tribunal judicial como qualquer instância que cumpra essa finalidade. No
entanto, a limitação do acesso aos tribunais judiciais só deverá ser permitida
aos “litígios de massa”, ou de “baixa intensidade” ou em casos em que não há
um verdadeiro conflito, em que o interesse público ou repartição do ónus do
risco social fundamente que o Estado, as empresas ou outras organizações
devam assumir o custo/risco do seu direito não ser tutelado judicialmente,
como contributo para que os tribunais judiciais sejam um serviço público de
justiça de qualidade, cuja ratio seja, em primeiro lugar, a promoção e defesa
dos direitos dos cidadãos.
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Neste sistema de resolução de litígios reconfiguram-se as funções do


Estado e da sociedade civil, desenvolvem-se parcerias entre o público, a
comunidade e, eventualmente, o mercado e assume-se um novo modelo de
justiça, ou seja, um sistema integrado de resolução de litígios, em que a
pluralidade dos ADR tanto podem consistir em alternativas aos tribunais
judiciais (resolvem litígios que os tribunais também dirimem) ou antes um seu
complemento (para os litígios que nunca chegariam a tribunal) ou, ainda, um
seu substituto (a transferência de competências de resolução de litígios dos
tribunais para estes meios).

Esse novo sistema pode ser representado por uma pirâmide (Figura 1)
em que teremos, na base, os mecanismos de autocomposição, no seu vértice,
os tribunais judiciais e na zona intermédia a panóplia de meios de ADR que o
Estado e a sociedade conseguem gerar.

Figura 1(*)

A pirâmide da justiça

(ou do sistema integrado da resolução de litígios)

Tribunal

Meios híbridos
de resolução de
A desenvolver por
litígios próximos do
entidades privadas ou
modelo judicial
mistas
Arbitragem

Mediação

Conciliação

Profissões jurídicas (ou não) que resolvem litígios

Prevenção de litígios

Aconselhamento de direitos com e sem resolução de litígios

Autoregulação / Autocomposição

(*) Adaptado de Wouters e Van Loon (1991: 23); Santos et al. (1996: 50) e Dufresne (1993).
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O novo sistema integrado de resolução de litígios, que defendemos, tem


como consequência a assunção e reconhecimento, pelo Estado, duma política
pública de justiça, que inclui os tribunais judiciais e o denominado “pluralismo
jurídico e judicial”, ou seja, reconhece-se também aos meios não judiciais que o
Estado e a sociedade geram, informal ou formalmente, legitimidade para dirimir
litígios. A informalização da justiça e a desjudicialização, incluindo todo o
movimento ADR, constituem, assim, caminhos da reforma da administração da
justiça desde que defendam a igualdade das partes e promovam o acesso ao
direito. Só deste modo esta multiplicidade de processos pode tornar a justiça
mais democrática.

É de salientar, ainda, que este processo de construção de um novo


paradigma de administração de justiça deve ser efectuado em simultâneo com
a reforma dos tribunais judiciais, com o objectivo de que estes sejam mais
eficientes e centrados na promoção da cidadania.
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2. NOVO PARADIGMA DO PROCESSO

2. 1. O Processo Civil

É consensual o diagnóstico de que a actual estrutura do processo civil é


complexa, burocrática, indutora de morosidade (por exemplo, a acção
declarativa cível com processo ordinário decidida nos tempos previstos
na lei teria cerca de 180 actos diferentes e demoraria cerca de três anos) e
desadequada às actuais expectativas dos cidadãos e ao tempo social e muito
mais, ainda, ao seu tempo pessoal ou biográfico.

Assim, a reforma da legislação processual civil deve assentar no


princípio de dois articulados (petição - contestação), seguido de julgamento,
com reforço da oralidade (com gravação de prova) e de modo a que sejam
incorporadas práticas de organização e de automatização dos procedimentos
que eliminem actos processuais ou reduzam o tempo de outros. Só um
processo assente no princípio de dois articulados, que aproveite as actuais
potencialidades do actual processo de trabalho, seguidos de produção de
prova, que privilegie a via electrónica (por exemplo, remessa obrigatória de
articulados e notificação de advogados por via electrónica) e com a garantia de
um duplo grau de jurisdição em matéria de facto e de direito, poderá permitir
que a justiça cível seja mais célere e eficaz, no equilíbrio entre o tempo
processual necessário ao contraditório e um tempo justo e mais próximo das
expectativas dos cidadãos e das empresas.

2. 2. O Processo Penal

Os recentes casos do que chamamos justiça dramática (os casos que


trazem os tribunais para as primeiras páginas dos jornais) vieram colocar no
centro do debate a reforma do processo penal.

À semelhança do que preconizamos para o processo civil, consideramos


fundamental começar a pensar-se na transformação do actual paradigma
processual penal.
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Essa transformação já iniciada, assenta, em nosso entender, nos


seguintes princípios:

a) consagração do principio da legalidade mitigada (ou oportunidade


mitigada) de modo a que o poder politico defina as prioridades de politica
criminal em função dos meios existentes e se construa um controle
democrático sobre o principio de oportunidade já aplicado na prática;

b) desenvolvimento da intervenção dos mecanismos de consenso e


do princípio da justiça restaurativa na solução e na “sanção” da pequena e
média criminalidade (mediação, reparação à vitima, trabalho a favor da
comunidade), não só como forma de celeridade, mas também, no sentido de
criar uma nova forma de convivência social e, implicitamente, gerar uma nova
imagem da justiça;

c) encurtamento dos prazos da prisão preventiva até ao julgamento


em primeira instância, sem prejuízo da necessária diferenciação de prazos em
razão da maior ou menor complexidade da investigação criminal;

d) recentramento da sua aplicação como medida de coacção, e não


como modo de investigação ou de sanção penal por antecipação;

e) consagração de imputabilidade penal aos 18 anos, garantindo a


separação definitiva de um sistema penal para adultos e de um sistema tutelar
educativo para os menores de 18 anos, que pratiquem factos considerados
como crime pela lei penal.
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3. REORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA E MAPA JUDICIÁRIO

A estrutura da organização judiciária deve ser repensada, considerando


as funções dos tribunais, a necessidade de um sistema integrado e composto
de resolução de litígios, as variáveis políticas, económicas, sociais,
demográficas e institucionais, no respeito pela soberania do poder judicial e
pela proximidade aos cidadãos, o crescimento de uma litigação urbana e
concentrada na cobrança de dívidas, a necessidade de melhorar o acesso à
justiça e o facto de, à excepção da criação dos tribunais de círculo (entretanto
extintos) e dos julgados de paz, as reformas da organização judiciária,
ocorridas desde 1977, pretenderam unicamente adaptar a resposta judicial ao
aumento dos processos entrados e pendentes.

Das opiniões recolhidas nos nossos estudos e da nossa reflexão sobre os


problemas actuais da organização judiciária resultou um conjunto de
propostas de que damos conta no nosso relatório “Os tribunais e o
território: um contributo para o debate sobre a reforma da organização
judiciária em Portugal” que, aplicadas de modo integrado, melhorariam, em
nosso entender, não só a eficiência dos tribunais, mas também a qualidade do
serviço público de justiça e o acesso dos cidadãos ao direito e à resolução dos
seus litígios. Eis algumas dessas propostas.

a) Densificação, a nível nacional, de uma justiça de base municipal,


não judicial, assente em estruturas similares aos actuais julgados de paz,
comissões de protecção de crianças e jovens em perigo ou centros de
arbitragem de conflitos de consumo. Admite-se que alguns destes meios de
resolução de litígios, devido à sua função e especialização, possam ser de
nível supra-municipal.

A pequena litigiosidade e os actos litigiosos de baixa intensidade ou sem


verdadeiro conflito deveriam ser desjudicializados para esta justiça municipal
ou de proximidade.
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Os processos de cobrança de dívidas que, como é hoje consensual,


colonizaram os tribunais, deveriam, na sua grande maioria, serem desviados
para procedimentos administrativos e entidades não judiciais ou para-judiciais.

b) Os tribunais de comarca de competência genérica continuariam a


ser a célula matricial da organização judiciária para as comarcas com um
movimento processual de pequena dimensão. No entanto, admite-se a
extinção de tribunais de comarca com baixa procura, através de uma solução
de fusão/agregação, mantendo-se, no entanto, em funcionamento aqueles
tribunais enquanto espaços físicos da justiça, onde poderiam funcionar os
julgados de paz, ou outras instâncias de resolução de litígios, realizar-se a
tramitação de processos judiciais e fazer-se julgamentos no âmbito da anterior
comarca (agora agregada a outra ou outras) e/ou, ainda, fazer-se julgamentos
ou outras diligências no âmbito dos tribunais com competência para todo o
círculo, varas mistas ou tribunais especializados com competência na área
territorial da primitiva comarca.

c) O círculo seria uma circunscrição territorial correspondente a uma área


que, em regra, seria superior ao tribunal de comarca. O círculo passaria a ser
a matriz organizacional ao nível das comarcas de dimensão média.
Integraria um centro de serviços jurídicos e de serviços auxiliares ao
funcionamento da administração da justiça (medicina legal, assessorias
técnicas, reinserção social, etc.) e de gestão integrada de recursos humanos e
financeiros dos tribunais desse círculo, bem como eventual instância de
recurso (facto e direito) de litígios de pequeno valor ou bagatelas penais e de
conflitos de competência.

d) Os círculos poderiam integrar tribunais com competência para


todo o círculo, varas mistas ou tribunais de competência especializada.
Admite-se o princípio da deslocação do tribunal aos tribunais de comarca.
Estes tribunais coexistiriam com o sistema de dupla corregedoria para as áreas
em que a comarca continuasse a ser a base da organização judiciária. Esta
solução diferenciada é adequada a um país a que corresponde, em nosso
entender, em função da procura da tutela judicial, três tipos de Portugal
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judiciário (Lisboa e Porto, litoral e cidades do interior com urbanização e interior


rural).

e) Os tribunais de competência especializada, conforme a sua


competência material, poderiam variar de competência territorial ao nível do
distrito, do círculo ou mesmo da comarca.

f) Possibilidade da divisão do distrito judicial de Lisboa (à


semelhança do que aconteceu para o Porto), com a criação dos consequentes
tribunais da Relação.

g) Necessidade de garantir um efectivo duplo grau de jurisdição em


matéria de facto.
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4. MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E DA GESTÃO DO SISTEMA


JUDICIÁRIO

É consensual que um dos grandes problemas dos tribunais1 portugueses


decorre de deficiências organizativas. A actual organização do sistema de
justiça, em especial dos tribunais, e a sua desadequação à realidade social e
económica e ao volume e características da procura social que lhes é dirigida
são as principais causas da ineficiência do seu desempenho. O défice de
organização, gestão e planeamento do sistema de justiça verifica-se a
três níveis: a nível central, a um nível inferior que consideramos dever ser a
nível do círculo judicial, e a nível de cada tribunal enquanto conjunto de
unidades de decisão. Temos, por isso, vindo a alertar que é fundamental
introduzir reformas profundas de racionalização do sistema judicial
através de uma nova filosofia organizacional, bem como critérios de
contingentação e distribuição de processos, este último trabalho em
execução, para os juízos cíveis, no âmbito do Observatório Permanente da
Justiça, cujos resultados serão apresentado em breve.

4. 1. Organização, gestão e planeamento a nível central

A organização, gestão e planeamento do sistema de justiça a nível central


está dependente dos Conselhos Superiores das Magistraturas e do Ministério
da Justiça. Consideramos que, por um lado, estas estruturas não têm a
capacidade necessária para fazer face às exigências de gestão e de
planeamento da sua intervenção no sistema de justiça, e, por outro, a
dispersão das competências de gestão e de administração pelas várias
componentes do sistema, associada a uma dificuldade estrutural na
coordenação dos esforços de todas essas entidades, impede uma actuação
concertada no sentido de aplicar medidas mais eficientes.

1
Adoptamos uma definição lata de “tribunal” que inclui os magistrados judiciais os magistrados
do Ministério Público, a secretaria, as secções de processo e, ainda, na especificidade das
suas funções, os advogados e os serviços de apoio (Instituto de Reinserção Social, Segurança
Social e Instituto da Medicina Legal).
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Assim, à luz da nossa investigação, propomos as seguintes medidas:

a) reforço das competências dos Conselhos Superiores, dotando-os


de unidades técnicas que lhes permitam um melhor desempenho das suas
competências de administração do sistema;

b) criação de uma estrutura de coordenação e de planeamento de


políticas de administração dos recursos humanos e materiais afectos ao
sistema de justiça com a participação dos Conselhos Superiores e do Ministério
da Justiça. Esta estrutura poderia ter, numa primeira fase, um papel de
concertação de políticas e de acções destinadas a tornar o sistema de justiça
mais eficiente, evoluindo, numa segunda fase, para a assunção de
competências próprias;

c) criação, a nível central, de um Gabinete de Comunicação Social


para as questões de justiça, visando o desenvolvimento de uma relação mais
virtuosa entre justiça e comunicação social;

4. 2. Criação de estruturas de organização, gestão e planeamento a


um nível inferior ao distrito judicial

Consideramos que a administração e gestão racional do sistema de


justiça requer a criação de uma rede de estruturas de organização, gestão e
planeamento a um nível inferior ao distrito judicial, que hoje não existe. É uma
das formas de organização da administração do sistema judiciário que tem sido
adoptada em outros países com resultados positivos. Eis algumas das nossas
propostas.

a) A unidade de administração e gestão deverá ter uma extensão


territorial idêntica aos actuais círculos, mas a sua definição em concreto
dependerá da aplicação de critérios complexos que tenham em conta diversas
variáveis, designadamente varáveis demográficas, políticas, económicas de
volume e de estrutura da litigação dominante.

Deste modo, dever-se-á redefinir o conceito de círculo judicial,


passando a ser uma unidade de administração e gestão do sistema de justiça
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com autonomia para uma gestão flexível dos recursos humanos, materiais e
financeiros que seriam afectos a essa unidade administrativa. Esta rede de
unidades administrativas poderia assentar, num primeiro momento, na
delegação de competências das entidades centrais e, num segundo momento,
numa descentralização dessas competências.

b) Esta nova unidade administrativa seria composta por três órgãos


fundamentais: o Conselho de Gestão do Círculo, o Juiz Presidente do
Círculo e o Administrador de Círculo. O Conselho de Gestão do Círculo,
com competências de administração e gestão para todo o círculo, seria
composto pelo juiz presidente do círculo, pelo administrador do círculo e por
representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados, dos
Funcionários Judiciais, da Câmara dos Solicitadores, do Instituto de Reinserção
Social, da Segurança Social e dos Presidentes das Câmaras dos municípios
que fariam parte desse círculo.

Ao Juiz Presidente do Círculo caberia, igualmente, a competência


para a resolução de conflitos de competência que deveria ser
regulamentada de modo a possibilitar uma decisão rápida e definitiva.

c) Esta organização das unidades administrativas do sistema de justiça


deveria ser objecto de um projecto-piloto com duração de 3 anos, sujeito a
uma monitorização e avaliação (interna e externa).

4. 3. A organização do tribunal enquanto conjunto de unidades de


decisão

O actual modelo de organização interna dos tribunais, enquanto conjunto


de unidades de decisão, não tem sido eficiente, contribuindo para a
morosidade processual. A manutenção desta estrutura organizacional terá
como consequências necessárias o crescimento contínuo da afectação de
recursos ao sistema judicial e a banalização da função de juiz, o que não é
desejável.

Consideramos, por isso, que é necessário reorganizar internamente os


tribunais enquanto conjuntos de unidades de decisão de modo a potenciar
Para uma agenda da reforma da justiça 14

a eficiência de cada um dos seus elementos constitutivos. Para tal,


apresentamos as seguintes propostas.

a) Construção de critérios que permitam diferenciar tribunais de


elevada complexidade de outros tribunais. Os primeiros seriam dotados de
um administrador com competências de gestão de recursos, colocando cada
uma das secções/secretarias especializadas sob a direcção de um secretário
judicial. Nos segundos, o secretário do tribunal teria ambas as competências,
podendo delegar as competências de direcção das secções/secretarias
especializadas num escrivão de direito. O Secretário do Tribunal veria, assim,
reforçadas as suas competências administrativas e de controlo das
secções/secretarias especializadas.

b) Seria criada, a par da secção de processos, uma nova estrutura: o


Gabinete do Juiz. Este Gabinete seria composto, além do juiz, por um
escrivão-adjunto ou auxiliar afecto especialmente ao apoio administrativo e de
secretariado do juiz. A este escrivão competiria, para além do auxílio do juiz em
diligências, a redacção de determinados documentos e a realização de
determinados actos, não decisórios, que o juiz entendesse lhe poder delegar
(exemplo: gestão das agendas). Poderia, ainda, sempre que tal se justificasse,
ser afecto ao Gabinete do Juiz, um assessor técnico com competência para a
preparação de determinados despachos e decisões da competência do juiz e
para a realização de determinados actos delegados pelo juiz.

A criação deste Gabinete do Juiz permitirá libertar os juízes das tarefas


administrativas e a sua consequente concentração na sua actividade principal,
diminuição dos custos e uma maior celeridade na decisão dos processos
judiciais. Esta medida poderá levar à diminuição de tribunais, seja por extinção
ou por agregação.

c) A criação do Gabinete do Juiz exige que se proceda a uma profunda


reorganização da secção de processos, que deverá integrar, em regra, um
escrivão de direito, qualificado e com competências próprias em determinadas
matérias, como, por exemplo, em algumas notificações, auxiliado, conforme o
volume de processos, por um, dois ou três escrivães-adjuntos e um, dois ou
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três escrivães-auxiliares. Nas secções de processos não deve ser efectuado


atendimento ao público para não perturbar o seu funcionamento.

d) O atendimento ao público, pessoal e telefónico, deveria ser feito


num gabinete próprio (“quiosque de atendimento”), fisicamente isolado da
área de trabalho da secretaria, o que possibilitaria uma maior concentração e
eficiência no trabalho relacionado com a tramitação dos processos.

e) A reorganização da secção de processos deverá ser acompanhada de


um desenvolvimento dos meios informáticos facilitando, não só o trabalho
relacionado com a tramitação dos processos, mas também a sua consulta.

e) Este novo modelo de organização interna de um tribunal, enquanto


conjunto de unidades de decisão, deveria ser objecto de um projecto-piloto,
que funcionaria em articulação com o projecto-piloto da implementação da
nova unidade administrativa ao nível do círculo judicial, monitorizado e avaliado
(interna e externamente).
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5. JUSTIÇA CÍVEL

A reforma da justiça cível assenta, como já se referiu, na criação de um


novo paradigma de processo, a médio e longo prazo. No entanto, devem ser
tomadas, desde já, as seguintes medidas.

5. 1. Resposta à litigação de massa

A explosão da litigação de massa, mobilizada por litigantes frequentes,


burocratiza os tribunais, aumenta desmesuradamente o volume de processos e
os actos processuais materiais, potenciando a lentidão da justiça e os
bloqueios no sistema judicial. A sobrecarga dos tribunais com este tipo de
litígios, que vem assumindo contornos dramáticos, desvia a justiça da sua
função principal de promover e garantir os direitos dos cidadãos, o que acaba
por se traduzir em menos justiça para todos. Assim, propõe-se:

a) recentramento da justiça nas suas funções essenciais de


promoção e garantia dos direitos com o desvio da “litigação de rotina e de
certificação” (dívidas, cheques, etc.) - salvaguarda da prossecução em
procedimento judicial quando necessário para garantir os direitos das partes -
para procedimentos automáticos administrativos ou judiciais (desenvolvimento
da injunção e outros procedimentos), bem como para meios alternativos de
resolução de litígios, designadamente “câmaras de cobranças de dívidas”,
patrocinadas por entidades representativas dos credores e dos consumidores
ou, ainda, permitindo a certificação da incobrabilidade duma dívida por um
revisor oficial de contas;

b) desenvolvimento e criação de estruturas de “justiça de


proximidade”, designadamente de serviços de conciliação e de mediação (por
exemplo, conflitos laborais, familiares, ou mesmo, penais) e de arbitragem (por
exemplo, consumo, ambiente, conflitos civis e comerciais);

c) criação de um modelo de resolução extrajudicial do


sobreendividamento de pessoas singulares, que para atenuar os riscos
inerentes a um uso abusivo por parte de pessoas que a ele recorram de má fé
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ou com intenções meramente dilatórias, deve prever mecanismos de filtragem


e de avaliação.

5. 2. Medidas de combate à morosidade processual civil

Parece-nos, ser urgente, para além da criação de uma comissão de


redacção de um novo Código de Processo Civil simplificado e das medidas de
resposta à litigação de massa, já defendidas, em acréscimo às medidas que
vêm a ser tomadas desde os finais dos anos noventa, que sejam tomadas as
seguintes medidas:

5. 2. 1. A acção declarativa

a) Para a diminuição de uma das principais causas de morosidade,


que é a frustração da citação, reforçar as possibilidades de citação em
domicílio convencional ou legal e voltar a legislar no sentido de dar a
possibilidade de reforço da citação por via postal simples, desde que, invocada
a falta de citação, em caso de ser provada, tenha por efeito a invalidade da
citação, sem a presunção legal da citação existente na anterior legislação,
revogada aquando da entrada em vigor da reforma da acção executiva;

b) A reintrodução de obrigatoriedade legal das partes remeteram os


seus articulados por e-mail para o tribunal, pelo menos nos tribunais
predominantemente urbanos e de média e grande dimensão;

c) A consagração legal de que os advogados abrangidos pela


obrigatoriedade da alínea b) passariam, sempre, a ser notificados, em todas
as circunstâncias, através de correio electrónico;

d) As partes devem, em regra, apresentar as suas testemunhas em


julgamento, salvo as testemunhas que fundamentadamente sejam “hostis” ou
impossíveis de fazer comparecer (o processo de trabalho tem esta solução
sem que haja contestação e com sucesso);

e) Remeter o Supremo Tribunal de Justiça para a função de tribunal


de recursos de revista, restringindo as causas a um duplo grau de jurisdição
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de recurso de facto e de direito, de modo a transformar aquele tribunal num


verdadeiro órgão doutrinador da realidade judiciária, fonte do direito aplicado.

5. 2. 2. A acção executiva

A reforma da acção executiva é, consensualmente assumida como uma


reforma falhada, dado que não foram criadas as condições essenciais para a
sua devida execução e implementação. Assim, é urgente proceder à cabal
avaliação desta reforma, sem prejuízo da definição de um plano para
efectividade da acção executiva, do qual constem, designadamente as
seguintes medidas:

a) a criação de equipas (brigadas de recuperação) que distribuam as


acções executivas recebidas e pendentes, há meses no e-mail dos juízos de
execução de Lisboa e Porto, e que não são distribuídas, com a alegação de
falta de meios;

b) a criação de uma rede de juízos e de secretarias de execução e de


solicitadores de execução, que receberiam, não só os processos novos,
como também os processos pendentes ainda a tramitar nos juízos cíveis;

c) a criação, em cada capital de distrito, de um armazém para depósito


dos objectos penhorados ou apreendidos, garantindo a transparência dos
negócios com esses objectos ou, pelo menos, livre acessibilidade de todos os
interessados aos objectos e bens em venda;

d) a realização de penhora electrónica de contas bancárias e de


outros bens sujeitos a registo;

e) a formação adequada dos solicitadores de execução;

f) o Ministério Público só deveria instaurar acções executivas após


confirmação da existência e localização efectiva de bens penhoráveis
(não vale a pena instaurar execuções que não darão qualquer resultado).

5. 3. A adopção: necessidade de melhorar procedimentos e práticas

A Segurança Social, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e todas as


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instituições públicas ou privadas que acolhem crianças, têm de definir o


projecto de vida da criança, que pode passar pelo regresso à família biológica
nuclear ou alargada, pela confiança a uma família idónea, pelo
encaminhamento para uma instituição ou, ainda, pelo encaminhamento para
adopção. Este processo de definição do projecto de vida de encaminhamento
para a adopção é um processo de intervenção social e administrativo de
decisão complexa. Assim, entre a decisão das Comissões de Protecção de
Crianças e Jovens ou do tribunal de retirar uma criança do perigo, até à
decisão de a entregar para adopção e a consequente entrega administrativa ou
propositura de confiança judicial, existe um processo complexo, moroso e,
ainda, não totalmente regulado, permitindo que cada entidade o processe como
melhor entender.

As Comissões de Protecção demonstram, no geral, ainda não terem


uma capacidade de resposta adequada às solicitações. Esta fragilidade
poderia ser ultrapassada se estas entidades fossem dotadas dos meios
humanos necessários, em termos jurídicos e de apoio social. Já quanto à
intervenção dos tribunais nesta fase, verifica-se que, por vezes, existe uma
inversão no timing da sua intervenção, em resultado de uma má coordenação
com os serviços de Segurança Social ou da Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa. Duas das principais críticas relacionam-se com o facto dos magistrados
terem uma visão demasiado estática de todo o processo e com a excessiva
preocupação em procurarem resolver a situação no âmbito da família biológica,
deixando arrastar o processo até se comprovar a impossibilidade dessa
solução.

A prevalência das medidas em meio familiar poderá ocultar um excesso


de compreensão para com a família biológica. À insistência dos magistrados na
família biológica, privilegiando, por vezes, o seu interesse em desfavor do
interesse do menor, acresce, ainda, o facto de a citação simples no processo
de confiança judicial ser pessoal e poder demorar, por falta de recursos
humanos, retardando o processo. Entre outros problemas detectados,
destacamos os seguintes: a) as dificuldades de a citação, que podem
retardar o processo, segundo alguns operadores, dois ou três anos; b) a
Para uma agenda da reforma da justiça 20

existência de prazos muito alargados face à urgência das situações; c) o


desaproveitamento, nalguns casos, das informações contidas nos relatórios
que estiveram na base das medidas de promoção e protecção, obrigando a um
repetir de várias fases e procedimentos; d) e a descoordenação entre os vários
serviços e instituições sociais e os magistrados, quer nos objectivos, quer nas
soluções envolvendo os menores.

Apesar das reformas facilitadoras introduzidas no regime jurídico com o


objectivo de facilitar e viabilizar o instituto da adopção e apesar dos princípios
gerais que lhe estão subjacentes, quer de natureza sociológica, psicológica, ou
jurídica, considerarem a adopção como uma das medidas que melhor integram
socialmente as crianças que não podem permanecer nas suas famílias
biológicas, as estatísticas mostram que o número de processos de adopção se
mantém invariavelmente baixo, se compararmos com o número de crianças
sociologicamente adoptáveis.

Assim, consideramos urgente adoptar, designadamente as seguintes


medidas:

a) necessidade dos organismos de Segurança Social, com eventual


conhecimento do Ministério Público, decidirem com maior celeridade os
projectos de vida das crianças que vivem fora do meio familiar e o seu
encaminhamento para adopção;

b) necessidade de uniformizar e melhorar as actuais práticas, exigindo


a regulamentação legal do procedimento onde se decide o projecto de vida de
uma criança e o seu encaminhamento para adopção;

c) necessidade dos organismos de Segurança Social e do Ministério


Público exercerem uma mais efectiva supervisão sobre as instituições de
acolhimento, de modo a que os projectos de vida sejam decididos em seis
meses;

d) apesar da evolução já detectada, é necessário o reforço quantitativo


e qualitativo e da formação das equipas dos organismos de Segurança
Para uma agenda da reforma da justiça 21

Social, que decidem a confiança administrativa ou desencadeiam os processos


de confiança judicial;

e) a criação legal, no respeito pelas normas constitucionais e de


protecção de dados pessoais, de bases de dados nacionais de candidato(s)
a adoptante(s) e de criança(s) a encaminhar para adopção, que substitua o
actual sistema informal de troca de informações entre os diversos serviços
distritais e concelhio de adopções;

f) os organismos de segurança social não devem esgotar o prazo de um


ano para elaborarem o relatório de pré-adopção. Devem elaborá-lo logo que
entendam que o acompanhamento dos adoptandos e dos adoptantes é
suficiente;

g) as necessidades conflituantes de um processo justo e com


contraditório e de aceleração dos processos de confiança judicial e de adopção
só nos permitem propor uma melhor gestão dos processos, no respeito pela
sua qualificação legal de urgentes, com a realização de actos, diligências e
sentenças em férias judiciais, bem como a concentração temporal de todas as
diligências de prova, de modo a conseguir o objectivo de que todos sejam
decididos em menos de um ano;

h) a complexidade sociológica, psicológica e jurídica das matérias


relacionadas com a adopção exige, consensualmente, que os magistrados que
trabalham nessa área sejam sujeitos a formação específica, que a jurisdição
seja integralmente especializada e esses tribunais sejam dotados de
acompanhamento técnico especializado;

i) a melhoria da efectividade do processo de adopção pressupõe uma


melhoria de aplicação da Lei de Promoção dos Direitos e Protecção das
Crianças e Jovens em Perigo, que entrou em vigor em 2001 e, ainda, não foi
objecto de avaliação.
Para uma agenda da reforma da justiça 22

6. POLÍTICA CRIMINAL E JUSTIÇA PENAL

A reforma da justiça penal assenta, por um lado, na política criminal que


for definida e, por outro, no sentido em que ocorrer a transformação do
paradigma processual penal. Se é certo que algumas medidas estruturais que
se propõem dependem, sobretudo, da agenda da política criminal, outras,
como as medidas de descriminalização e de promoção dos mecanismos de
celeridade e consenso, são medidas pontuais, de curto prazo, que têm como
objectivo imediato descongestionar os tribunais e aumentar a eficiência e a
eficácia da justiça penal. Assim, além das medidas já referidas no ponto 2.2
deste memorando, propõem-se as seguintes:

6. 1. Resposta à grande criminalidade

O crime económico organizado, a corrupção, as associações criminosas,


as redes de tráfico de crianças, de pessoas e de órgãos são crimes que
extravasam dos estereótipos dominantes, quer pelo tipo de crime, quer pelo
tipo de criminosos, quer, ainda, pelo tipo de factores que podem estar na sua
origem. Por isso, num contexto de aumento deste tipo de crimes põe-se, de
imediato, a questão da vontade política para os investigar e do preparo técnico,
quer no âmbito dos recursos humanos, quer no âmbito dos recursos materiais
do sistema judiciário e do sistema de investigação.

O combate à grande criminalidade deve ser uma questão central da


política criminal. É fundamental que se crie uma agenda de preparação para
uma grande estratificação na criminalidade, para uma criminalidade muito
organizada, com alto potencial técnico e social, que exige medidas fortes de
ataque. Muitas dessas medidas pressupõe mudanças em outros sectores da
actividade do Estado ou sujeitos à sua regulação, como é o caso de áreas
específicas dos sistemas fiscal e bancário. Outras passam por alterações no
âmbito da justiça penal, facilitadoras de um maior activismo e eficiência do
sistema judicial, globalmente considerado, no combate àquelas formas de
criminalidade, em especial à criminalidade dita complexa, porque cometida com
sofisticados recursos financeiros e administrativos por indivíduos política ou
economicamente muito poderosos. De entre elas, destacamos:
Para uma agenda da reforma da justiça 23

a) a consagração do princípio da legalidade mitigada ou


oportunidade mitigada nos termos referidos no ponto 2.2 deste memorando
visando uma política criminal pragmática e diferenciada;

b) a avaliação da Lei de Organização da Investigação Criminal;

c) a criação de mecanismos legais e/ ou organizacionais que permitam


uma maior coordenação entre Ministério Público e forças policiais e
judiciárias envolvidas no combate à grande criminalidade;

d) a criação formal, a nível nacional, dentro da estrutura do


Ministério Público de uma rede de organismos específicos para o
combate à grande criminalidade, de modo a que seja possível um tratamento
separado e diferenciado da pequena e média criminalidade e da criminalidade
mais grave. Estes organismos, devidamente articulados com DCIAP, devem
ser cabalmente apetrechados com recursos técnicos e humanos. A colocação
dos magistrados nestes organismos teria que ser precedida de formação
específica;

e) alguns exames efectuados no Laboratório de Polícia Científica


devem ser concebidos e tratados cientificamente para uso generalizado-
as impressões digitais são disso um bom exemplo (todas as autoridades
policiais deviam ter formação específica para a recolha de impressões digitais e
terem acesso a um banco nacional de dados onde pudessem de imediato
associar a impressão recolhida às existentes nesse banco);

f) a avaliação da formação dos agentes dos órgãos de polícia, em


especial, da Polícia Judiciária;

g) a criação de um sistema de monitorização das medidas de


combate à grande criminalidade com a apresentação pública de um relatório
anual.
Para uma agenda da reforma da justiça 24

6. 2. Respostas à pequena e média criminalidade

No âmbito da pequena e média criminalidade, distinguimos, à luz da


nossa investigação, dois tipos de problemas: o primeiro, é que o sistema de
justiça penal está, hoje, ainda muito ocupado com o que podemos designar de
uma “criminalidade de massa”, constituída, sobretudo, pelos crimes de
condução sem habilitação legal e de condução em estado de embriaguez e
pelos crimes de emissão de cheque sem provisão. O segundo está relacionado
com a subutilização das formas especiais de processo. A solução deste
último problema passa pela alteração de outras características estruturais do
sistema judicial, designadamente da formação de magistrados. Consideramos,
contudo, de impacto positivo no tratamento da pequena e média
criminalidade as seguintes medidas:

a) Descriminalização das condutas correspondentes aos crimes de


condução sob o efeito do álcool e de condução sem habilitação legal.
Estas condutas devem ser descriminalizadas e sujeitas ao processo de contra-
ordenação passando a competência para aplicar essas coimas para entidades
administrativas;

b) Descriminalização da emissão de cheque sem provisão,


devolvendo-o à sua função exclusiva de título de crédito;

c) reforço da oralidade na decisão destes processos;

e) Medidas potenciadoras de uma maior utilização dos mecanismos


de celeridade e consenso (formas especiais de processo e suspensão
provisória do processo).

Processo Sumário

i) Estudar a possibilidade de alargamento da aplicação do processo


sumário a todas as situações de detenção em flagrante delito de modo a
integrar aquelas em que a detenção não é realizada por uma autoridade
judiciária ou policial, mas a quem os detidos são entregues de imediato
(situação que ocorre, com alguma frequência, no caso de furtos simples);
Para uma agenda da reforma da justiça 25

ii) Alteração da norma do artigo 387º n.º 2 do Código de Processo


Penal, clarificando-a no sentido de admitir a apresentação do arguido ao
Ministério Público bem como a realização de audiência de julgamento em dias
de turno ou de férias judicias;

iii) Alteração da norma do artigo 390º do CPP no sentido de permitir o


reenvio dos autos para qualquer outra forma de processo especial e apenas a
título excepcional para o processo comum.

Processo Sumaríssimo

i) Alteração da norma do artigo 395º do CPP no sentido de permitir


expressamente o reenvio do processo para qualquer forma de processo
aplicável, privilegiando-se, quando admissível, o processo abreviado;

ii) Estudar a possibilidade de alteração do regime jurídico de forma a


aprofundar o consenso entre o MP e o arguido e, no caso de crime
dependente de acusação particular, entre aqueles e o assistente. As normas
deveriam ser alteradas no sentido de o juiz, ao receber o requerimento do MP
com a proposta de sanção sem oposição do arguido e, naqueles casos, do
assistente, devidamente notificados, apenas poder discordar da sanção
proposta quando a mesma for legalmente inadmissível (esta solução obriga à
notificação do arguido e do assistente, nos casos de crime dependente de
acusação particular, para oposição antes da remessa do requerimento que
propõe a sanção a aplicar ao juiz. Obriga, ainda, à alteração do regime jurídico
do segredo de justiça);

iii) Estudar a possibilidade de alteração do regime jurídico no sentido de


permitir a aplicação ao processo sumaríssimo do disposto no artigo 82º-A
do CPP;

iv) Alargamento da possibilidade de aplicação desta forma de processo


aos crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos.
Para uma agenda da reforma da justiça 26

Processo abreviado

i) Alteração da norma do artigo 391º-A n.º 1 do CPP. Face ao facto de


muitos crimes que poderiam ser julgados sob a forma de processo abreviado
serem semi-públicos ou particulares, ou seja, em que se pode exercer o direito
de queixa em seis meses, sugere-se a alteração da contagem do prazo de 90
dias, começando-se a contar da apresentação da queixa e não da prática do
crime.

Suspensão provisória do processo

i) Alteração da norma do artigo 281º n.º 1 alínea b) no sentido de abolir o


requisito de ausência de antecedentes criminais;

ii) Alteração da norma do artigo 281º n.º 1 alínea d) no sentido de se


prever como requisito, em vez de “culpa diminuta”, “culpa não muito grave” de
modo a permitir a aplicação da suspensão aos casos de dolo eventual;

iii) Alteração da norma do artigo 281º n.º 1 no sentido de eliminar a


exigência de intervenção do juiz, atendendo à fase processual e à exigência de
concordância do arguido e do assistente;

iv) Alteração do regime jurídico no sentido de permitir ao arguido propor,


à semelhança do regime jurídico da Lei Tutelar Educativa, a suspensão
provisória do processo apresentando um plano de injunções a cumprir que
seria sindicado pelo Ministério Público (esta alteração implica, também,
alterações ao regime jurídico do segredo de justiça).

6. 3. Medidas de carácter geral

a) dinamização e reforço da capacidade de coordenação das


procuradorias;

b) avaliação das comarcas onde devem ser criados Departamentos de


Investigação e Acção Penal (DIAPs) com vista à sua implementação formal;

c) estudar a possibilidade de introduzir tribunais de turno apenas com


juizes com experiência na jurisdição penal;
Para uma agenda da reforma da justiça 27

d) avaliação urgente de todo o processo de informatização do Ministério


Público e dos diferentes órgãos de polícia com o objectivo, em especial, de
permitir a sua compatibilização e funcionamento em rede;

e) criação de mecanismos que permitam uma melhor e mais consolidada


articulação entre o Ministério Público e os órgãos de policia criminal.

6. 4. Sanções penais

No domínio das sanções penais salientamos dois tipos de problemas: a


baixíssima utilização das medidas alternativas (admoestação, medidas
especiais para jovens e, em especial, da pena de prestação do trabalho a favor
da comunidade) e os vários problemas na execução da pena de prisão
atendendo, sobretudo, à disjunção entre o princípio da ressocialização que o
sistema normativo considera como princípio orientador da execução da pena
de prisão e a sua concretização prática. Estas matérias foram objectos de
dois estudos do Observatório Permanente da Justiça, cujos resultados
constam do relatório “As tendências da criminalidade e das sanções
penais na década de 90- Problemas e bloqueios na execução da pena de
prisão e da prestação de trabalho a favor da comunidade” e do relatório
“A reinserção social dos reclusos- Um contributo para o debate sobre a
reforma do sistema prisional”. Muitos dos problemas identificados e das
propostas de solução estão incorporados no relatório final e no anteprojecto da
proposta de Lei-Quadro da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do
Sistema Prisional em que o Observatório Permanente da Justiça participou. A
sua solução pressupõe, assim, a continuidade e o desenvolvimento do
processo, já iniciado, de reforma do sistema prisional.

Deixam-se aqui apenas algumas recomendações, quanto à pena de


prestação de trabalho a favor da comunidade, cuja aplicação se deve
aproximar de outros países europeus:

a) estudar a possibilidade da sua introdução no ordenamento jurídico-penal


como pena principal;
Para uma agenda da reforma da justiça 28

b) alargar o âmbito da sua aplicação para casos em que a pena de


prisão, em concreto, não seja superior a dois anos;

c) criação de mecanismos que permitam uma melhor interacção entre


tribunais e o Instituto de Reinserção Social;

d) lançamento de uma “campanha” que deve passar pela formação


inicial no CEJ e pela formação permanente visando a informação e divulgação
das potencialidades da aplicação desta medida.
Para uma agenda da reforma da justiça 29

7. JUSTIÇA TUTELAR

A avaliação da Lei Tutelar Educativa foi feita pelo Observatório


Permanente da Justiça Portuguesa, cujos resultados constam do relatório
“Os caminhos difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa – Uma
avaliação de dois anos de aplicação da Lei Tutelar Educativa”.

A nossa investigação permitiu-nos identificar um conjunto de problemas


e bloqueios de carácter normativo, cultural ou organizacional que
consideramos determinantes para as disjunções existentes entre os princípios
orientadores e os objectivos que enformam a reforma do Direito dos Menores,
em especial, a nova Lei Tutelar Educativa e a sua concretização prática.
Destacamos, de entre eles, os seguintes: a) o baixo recurso ao instituto da
mediação; b) a frequente utilização do processo tutelar educativo, ao arrepio
dos comandos legislativos, como mecanismo de promoção e protecção de
crianças e jovens; c) a existência de diferenciação de interpretações e de
procedimentos entre tribunais e, mesmo dentro de um dado tribunal, entre
magistrados; d) a ausência de critérios que atendam às especiais qualificações
do magistrado na colocação em tribunais de competência especializada e falta
de mais tribunais especializados; e) a ausência de um registo informático
nacional que permita a consulta da situação processual do jovem em todos os
tribunais do país; f) a falta de formação adequada dos operadores judiciários
(magistrados, funcionários e advogados) a trabalharem nesta jurisdição; g) a
necessidade de regulamentação da execução das medidas não institucionais;
h) a baixa aplicação da medida de prestação de tarefas a favor da comunidade;
i) as dificuldades de execução da medida de imposição de obrigações, de
frequência de programas formativos e de acompanhamento educativo,
decorrentes da ausência de programas formativos e cursos de formação
profissional adequados em número e qualidade; j) e a deficiente articulação do
IRS com outras entidades na execução de medidas tutelares não institucionais,
designadamente com a Segurança Social, com a escola e com as Comissões
de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

À luz da investigação desenvolvida pelo Observatório Permanente da


Justiça Portuguesa, propomos, no nosso relatório, 50 medidas que
Para uma agenda da reforma da justiça 30

consideramos adequadas e fundamentais para melhorar o sistema tutelar


educativo. As medidas estão agrupadas nos seguintes temas: a montante da
aplicação da Lei Tutelar Educativa; alteração da organização judiciária, da
formação e da Lei Tutelar Educativa e da regulamentação; criação e
uniformização de boas práticas (benchmarking) de aplicação de medidas
tutelares educativas; e a aplicação das medidas. De entre as medidas
propostas destacamos as seguintes:

a) a urgente avaliação da aplicação da Lei de Promoção e Protecção


(as crianças e jovens que entram no “sistema tutelar educativo” estão ou
estiveram, na sua grande maioria, sujeitas a factores de risco que justificariam
a intervenção mais cedo do sistema de protecção e promoção dos direitos das
crianças ou uma intervenção mais eficaz);

b) o reforço das estruturas sociais de acolhimento dos jovens com


comportamentos desviantes;

c) alterações pontuais ao regime jurídico das medidas tutelares


educativas, de modo a prever a realização obrigatória do “cúmulo jurídico”
de medidas tutelares; flexibilizar a aplicação das medidas tutelares; e proibir
a possibilidade de aplicação da prisão preventiva quando o jovem está a
cumprir uma medida tutelar educativa institucional;

d) a criação de tribunais de família e de menores em todo o país;

e) a criação de um sistema de follow-up que siga durante algum tempo


os jovens que já cumpriram a medida tutelar educativa de modo a averiguar o
sucesso da educação para o direito e se se conseguiu evitar que entrassem
numa “carreira” criminal;

f) a criação de canais formais que permitam uma melhor articulação


entre as várias instituições que actuam nesta área;

g) a criação, pelo sistema de segurança social, de respostas eficazes de


acompanhamento e, quando necessário, de acolhimento, para jovens que
ainda não entraram no “sistema tutelar educativo”, mas que se dedicam já a
comportamentos desviantes ou mesmo paradelinquentes.
Para uma agenda da reforma da justiça 31

8. JUSTIÇA LABORAL

A presente situação da justiça laboral pode ser avaliada sócio-


juridicamente partindo-se de uma dupla perspectiva: a da articulação com
factores externos, neste caso, o sistema de relações laborais e o sistema de
resolução dos conflitos; e a da transformação de factores internos, neste caso,
as alterações processuais decorrentes da introdução do novo Código de
Processo do Trabalho, Decreto-Lei n.º 480/99 de 9 de Novembro e as
modificações no regime do acesso.

Da aplicação de cada uma das perspectivas acima enunciadas, resulta a


identificação de um conjunto de elementos críticos, os quais configuram, em
nosso entender, as principais situações de bloqueio experimentadas pela
justiça laboral na actualidade.

8. 1. A justiça laboral na sua articulação com o sistema de relações


laborais e o sistema de resolução de conflitos: o bloqueio das
formas alternativas de resolução dos litígios individuais de trabalho

A actividade da justiça laboral é influenciada contextualmente pelas


dinâmicas do sistema de relações laborais e do sistema de resolução dos
conflitos laborais. Os estudos desenvolvidos a propósito destes convergem no
reconhecimento da dificuldade da transposição de matérias negociadas em
sede de concertação social para outros níveis de negociação e na situação de
bloqueio da negociação colectiva, a que acresce a conflitualidade
político-laboral emergente da introdução do Código do Trabalho. As principais
consequências para a justiça laboral são as seguintes:

a) inefectividade e “suspensão”, por parte dos parceiros sociais, da


discussão em sede de Comissão Permanente de Concertação Social relativa à
promoção de centros de arbitragem, mediação e conciliação visando a
composição dos litígios individuais de trabalho que estiveram na base dos
protocolos negociados entre os parceiros sociais e que permitiram a
constituição do Serviço Regional de Conciliação e Arbitragem do Trabalho dos
Açores, entidade que promove extra-judicialmente a resolução de litígios
Para uma agenda da reforma da justiça 32

laborais criado pelo Decreto Legislativo regional n.º 24/88/A de 19 de Maio


(SERCAT);

b) inefectividade das normas que permitem a institucionalização nas


próprias convenções colectivas de mecanismos de conciliação, mediação e
arbitragem possibilitada pelo DL 209/92 de 2 de Outubro, artigo 5º, nº 1, alínea
c), que prevê que as convenções colectivas podem regular “os processos de
resolução de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho
celebrados entre entidades empregadoras e trabalhadores, instituindo
mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem”.

As formas alternativas de resolução de litígios individuais de trabalho são


seguramente uma metodologia adequada à facilitação do acesso à justiça e ao
aumento da qualidade da justiça laboral, sobretudo se considerarmos o
crescimento sustentado do número de processos laborais entrados nos
tribunais de trabalho. Por exemplo, o número de processos entrados nos
últimos quatro anos foi o seguinte: 58.511 em 1999, 68.296 em 2000, 67.316
em 2001 e 72.806 em 2002. Assim, é nossa proposta:

a) que se retomem as discussões versando o encontrar de soluções em


matéria de formas alternativas de resolução dos litígios envolvendo os
parceiros sociais, nomeadamente em sede de concertação social e no âmbito
do actual processo de revisão do Código do Trabalho;

b) deve, ainda, estudar-se soluções que obstem à instauração de


acções de contrato de trabalho “inúteis”, como é o caso da acções
instauradas no âmbito dos processos de falência (uma vez que estes
processos registam uma longa duração e a fim de evitar a prescrição da acção
laboral, não há alternativa senão instaurar acções dos contratos de trabalho no
Tribunal de Trabalho, mesmo que se saiba que a empresa vai acabar por ser
declarada falida); e das acções para reclamação de créditos em processos de
execução fiscal. Sabendo-se que, na generalidade dos casos, estas acções
dizem respeito a salários em atraso deveria encontrar-se uma alternativa,
como, por exemplo, a atribuição de força de título executivo à declaração da
IGT/IDICT.
Para uma agenda da reforma da justiça 33

8. 2. As alterações processuais decorrentes da introdução do novo


Código de Processo do Trabalho e as modificações no regime do
acesso

8. 2. 1. O Código de Processo do Trabalho e a audiência de


partes – artigo 54.º

Uma das principais novidades do actual CPT é a designada audiência de


partes – artigo 54.º do DL n.º 480/99 de 9 de Novembro, instituto que suscitou
as mais diversas reacções críticas por parte dos operadores judiciais. Apesar
das resistências iniciais, o estudo realizado no âmbito do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa revela a aceitação desta figura processual.
Deve assinalar-se, todavia a existência de um principal factor de perturbação
da audiência de partes que diz respeito às práticas judiciais que se lhe
encontram associadas, nomeadamente as que decorrem de falta de
uniformização de entendimentos práticos acerca deste momento processual.
Por exemplo, enquanto alguns magistrados o entendem como um mero
“requisito formal”, outros interpretam-no como um verdadeiro “acto
conciliatório”.

Como forma de ultrapassar as críticas por parte dos operadores judiciais


a este momento processual, sugerem-se dois tipos de medidas:

a) socialização e difusão, junto dos operadores judiciais, dos objectivos


visados pela audiência de partes;

b) aperfeiçoamento normativo do instituto que passaria a remeter a


audiência de partes para os 15 dias imediatamente a seguir à entrega do último
articulado. Deste modo, ultrapassava-se a crítica de que a audiência de partes
funciona como um factor de retardamento do processo (dilatória); obstava-se
ao problema de uma das partes aparecer na audiência antes de ter contestado;
facilitava-se aos magistrados a previsão da data da marcação do julgamento
por se conhecerem quantos articulados vão ser feitos; criavam-se condições
para que o processo findasse por acordo; e, caso tal não ocorresse, estava-se
em condições de marcar de imediato (com carácter obrigatório) a data do
julgamento. Esta última consequência pressupõe a revogação da lei que proíbe
Para uma agenda da reforma da justiça 34

a marcação de julgamentos com mais de 90 dias de antecedência, a qual é


invocada para a não marcação de julgamentos na audiência de partes.

8. 2. 2. As alterações ao regime do acesso

Como é sabido, as políticas judiciais de fixação das custas judiciais são


um importante factor de regulação do acesso aos tribunais. De acordo com
entrevistas realizadas recentemente junto de operadores judiciais e utilizadores
da justiça laboral, parece detectar-se uma reacção crítica às alterações
introduzidas nas custas judiciais. Com efeito, os valores das taxas de justiça
subiram em consequência da actualização da Unidade de Conta (UC), da
alteração do regime de custas nos tribunais superiores, pela derrogação da
disposição que permitia às acções do foro laboral pagar, apenas, ½ da taxa de
justiça e pela extensão aos processos de acidente de trabalho e doenças
profissionais do regime geral de custas; exceptuando-se os casos em que os
sinistrados ou portadores de doença profissional estiverem patrocinados pelo
ministério público (actual n.º 2, al. e) do Código das Custas.

Por outro lado, também o actual regime de apoio judiciário tem sido alvo
de críticas, nomeadamente no que diz respeito ao facto do apoio ser concedido
não em função do cidadão, mas do agregado familiar; ao montante do
designado rendimento relevante para efeitos de apreciação do caso concreto;
quanto ao regime de pagamento faseado e quanto à eliminação das
presunções de insuficiência económica.

Parecem-nos, assim, ser urgentes as seguintes medidas:

a) adaptação da tabela de pagamento das taxas de justiça às


especificidades do Processo de Trabalho;

b) reapreciação e reintrodução da designada isenção objectiva de custas


nos processos de acidente de trabalho e doença profissional;

c) isenção de custas às associações sindicais nos processos em que


tenham legitimidade activa para propor acções em representação dos
trabalhadores;
Para uma agenda da reforma da justiça 35

d) reapreciação dos critérios para aferição da insuficiência económica da


lei 34/2004;

e) agilização do processo de concessão do apoio;

f) reapreciação/reintrodução das presunções de insuficiência económica.


Para uma agenda da reforma da justiça 36

9. O ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA

É consensual que a recente legislação de acesso ao direito e à justiça


restringiu o sistema aos indigentes, não estimulou a criação de gabinetes de
consulta jurídica, nem criou um sistema de patrocínio oficioso de qualidade.

Na investigação que efectuámos encontrámos uma pluralidade de formas


de acesso dos cidadãos ao direito e à justiça através de entidades, públicas e
privadas, que actuam fora do sistema judicial. Esta “quase” rede de serviços
jurídicos complementares permite estabelecer uma nova concepção de acesso
dos cidadãos ao direito e à justiça.

Da análise efectuada, resultou um conjunto de conclusões gerais e


transversais às várias experiências nacionais estudadas de serviços jurídicos
complementares na promoção do acesso dos cidadãos ao direito e à justiça.
Em primeiro lugar, a diversidade das entidades prestadoras de serviços
jurídicos complementares de apoio aos cidadãos demonstra uma maior
vitalidade do que se pressupunha inicialmente. Além disso, esta diversidade de
entidades não está associada ao sistema de justiça oficial nem se encontra só
na esfera do Estado, antes demonstrando uma multiplicidade de tipologias:
estaduais (centrais ou locais); profissionais; semi-profissionais ou semi-
voluntárias; e voluntárias. Em segundo lugar, a existência, dentro do Estado, de
uma rede de entidades públicas que presta informação jurídica concreta não
está articulada entre si e/ou com o sistema judicial ou não judicial de resolução
de conflitos, nem está, à partida, vocacionada para o desempenho “natural”
dessas funções, testemunhando, ainda, uma falta de informação sobre a sua
“arquitectura”, competências, funções, localização e composição. Em terceiro
lugar, conclui-se que existe uma enorme disparidade de meios e de recursos
entre os vários casos analisados. Esta disparidade proporciona desempenhos
muito desequilibrados entre si. Assim, e apesar da vontade de possuir serviços
jurídicos ser relativamente consensual nos estudos de caso analisados, a
possibilidade de prestá-los está directamente relacionada com os meios
financeiros e logísticos disponíveis por cada uma das entidades estudadas.
Para uma agenda da reforma da justiça 37

O desenvolvimento de um sistema integrado de acesso ao direito e à


justiça não pode ignorar a acção destas entidades públicas e privadas, que
funcionam como um facilitador da informação jurídica, da consulta jurídica e até
da prevenção e resolução de litígios. A dimensão encontrada permite-nos
concluir pela existência de uma rede não orgânica e quase-informal de serviços
jurídicos complementares àqueles que normalmente são reconhecidos como
integradores do sistema de apoio judiciário, ou seja, a informação e a consulta
jurídica prestada pela Ordem dos Advogados (casuística e de cobertura
territorial limitada) e pelo Ministério Público.

Em consequência do consenso sobre a inacessibilidade da nova lei do


apoio judiciário (Lei n.º34/2004, de 29/7) e das potencialidades que existem no
Estado e na sociedade portuguesa para a criação de um novo regime
jurídico do acesso ao direito e à justiça, é, em nosso entender, urgente
tomar as seguintes medidas:

a) a reforma urgente do regime de apoio judiciário não pode deixar de


considerar as dinâmicas do Estado e da sociedade, que constituem uma rede
de entidades prestadoras de serviços jurídicos e que demonstram que o regime
do acesso ao direito e à justiça não pode ser confinado a uma visão estrita e
limitada de apoio aos mais carenciados economicamente com o único
objectivo de que estes possam defender os seus direitos através de uma
acção judicial;

b) revisão imediata dos critérios de elegibilidade legais que só permitem


o acesso a patrocínio judiciário oficioso, e isenção de custas a quem seja
indigente ou viva em situação de pobreza quase extrema;

c) reposição das presunções de insuficiência económica;

d) o novo sistema de acesso ao direito e à justiça deverá ter, por um lado,


um novo figurino institucional e jurídico (criação de uma entidade pública ou
de fins e controle público para a gestão do apoio judiciário) que integre todas
as respostas existentes e a criar, no âmbito da informação, consulta e
patrocínio judiciário e ainda de entidades não judiciais que previnam ou
resolvam litígios. Por outro lado, o novo sistema deve ser construído de modo,
Para uma agenda da reforma da justiça 38

a que no respeito da independência da profissão dos advogados estes sejam


recrutados por concursos públicos temporários e estejam vinculados, com
alguma continuidade temporal, às funções do regime de apoio judiciário, de
modo a que possam desempenhar essas funções com qualidade e
adequadamente remuneradas;

e) o patrocínio judiciário, no âmbito da defesa e patrocínio oficioso, não


pode ser deixado só a advogados em início de carreira, devendo ser atribuído
a advogados experientes, que os interessados poderão escolher, sem
prejuízo do controle e repressão de fraude que seja praticada por advogados
que manipulem o sistema.
Para uma agenda da reforma da justiça 39

10. RECRUTAMENTO E FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS

Temos vindo a defender que um dos parâmetros de respostas futuras que


deverão orientar as reformas do judiciário tem necessariamente que passar por
outro modelo de recrutamento e formação de magistrados. O recrutamento e a
formação dos magistrados, quer a formação inicial, quer a formação
permanente assume um papel central num qualquer projecto de reforma
estrutural do sistema de justiça dirigido, não só ao aumento da eficácia, mas
também à melhoria da qualidade de justiça e à criação de uma nova cultura
judiciária.

No nosso actual modelo de formação identificamos três principais


fraquezas: a primeira é que a formação, quer a formação nas faculdades de
direito, quer a formação no CEJ é excessivamente técnica onde a realidade
social está muito ausente; a segunda fraqueza reside no quase nulo relevo
dado pelas faculdades de direito e pelo CEJ aos direitos humanos como um
dos pilares fundamentais de uma ordem jurídica democrática; a terceira
fraqueza reside na pouca importância que, em Portugal, se dá à formação
permanente, não só nesta área, mas em muitas outras.

Em 2001 apresentámos publicamente uma proposta de recrutamento e


formação de magistrados pautada pelo objectivo da criação de uma nova
cultura judiciária, mais democrática, mais atenta aos direitos humanos, mais
próxima dos cidadãos. Essa proposta assenta em seis princípios básicos:

a) o recrutamento deve ser assegurado por uma "entidade" ou um "júri"


que reflicta a legitimidade constitucional do poder judicial;

b) o recrutamento deve ser plural e diversificado nas competências,


experiências e saberes. Não devem, por isso, existir bloqueios à entrada de
jovens e de profissionais com experiência;

c) o recrutamento, por concurso público, deve assumir formas


diferenciadas, adequado às qualificações académicas, à formação e à
experiência profissional dos candidatos;
Para uma agenda da reforma da justiça 40

d) a formação deve criar condições para que se formem magistrados


dotados de um sólido apetrechamento técnico-jurídico, aptos para o
exercício de funções segundo critérios éticos e deontológicos, de
independência e de responsabilização, mas que saibam igualmente
interpretar adequadamente a realidade social que subjaz aos autos;

e) a formação tem de incidir tanto na formação inicial como na


permanente e deve incluir a formação especializada para as jurisdições
especializadas;

f) os conteúdos da formação devem privilegiar o desenvolvimento nos


magistrados de uma cultura de cidadania;

À luz daqueles princípios avançamos com uma proposta concreta de


estruturação do sistema de recrutamento e formação que consta, de
forma detalhada, do relatório “O recrutamento e a formação de
magistrados: Uma proposta de renovação – Análise comparada de
sistemas e do discurso judiciário em Portugal”.

Nessa proposta, o modelo de recrutamento proposto assenta nas


seguintes principais características:

a) recrutamento plural, incentivando, em simultâneo, a entrada de jovens


licenciados e de profissionais detentores de diversos saberes e experiências;

b) concurso público anual, com análise curricular, entrevista, exames ou


provas de selecção escritas e orais e avaliação psicológica;

c) o júri do recrutamento deve reflectir a legitimação constitucional do


poder judicial;

d) o recrutamento seria conjunto para as duas magistraturas, com o


mesmo júri e com as mesmas provas e critérios de selecção;

e) a opção pela Magistratura judicial ou do Ministério Público seria


efectuada após o primeiro ano de formação.
Para uma agenda da reforma da justiça 41

Quanto à formação propusemos um modelo de formação de magistrados


que inclui um período de formação inicial no CEJ e dá uma grande ênfase à
formação permanente. Esta formação deveria ser obrigatória, específica,
adequada e necessária à progressão na carreira.

A formação inicial desenvolver-se-ia em dois períodos. O primeiro


ano, comum às duas magistraturas, compreenderia uma fase teórica forte na
reflexão sobre as funções do judiciário e a independência do poder judicial e na
leccionação de matérias que não leccionadas nas Faculdades de Direito e que
sejam necessárias à compreensão da vida judiciária, seguida de uma fase
prática de contacto em instituições relacionadas com a vida judiciária.

No segundo ano, após os auditores terem efectuado a sua opção de


magistratura, teria lugar uma formação teórico-prática específica com modelos
de formação separada para cada uma das magistraturas, tendo, todavia, em
atenção a existência de um tronco de formação comum a ambas,
designadamente em matérias jurídicas de interesse comum (por exemplo,
processo penal e direito do trabalho).

O terceiro ano seria o ano de estágio, podendo dividir-se em dois


períodos: um período inicial com um máximo de dois meses de estudo e
despachos simulados nos processos judiciais, seguido de um outro período de
dez meses de estudo e despacho efectivo nos processos judiciais sob a tutoria
de um juiz ou de um magistrado do Ministério Público formador.

Uma vez concluída a formação inicial ela não deve dar lugar à
nomeação para o quadro. Depois da formação deve ser estabelecido um
período em que os novos magistrados são avaliados e só depois dessa
avaliação é que terão nomeação vitalícia.
Para uma agenda da reforma da justiça 42

11. AVALIAÇÃO INTERNA E EXTERNA DO SISTEMA JUDICIAL

Nas sociedades democráticas as organizações judiciais devem, tal como


outras organizações do Estado, sujeitar-se a um processo de avaliação externa
e de prestação de contas. A construção de indicadores e de padrões de
qualidade que permitam a avaliação do sistema judiciário é uma questão em
debate em muitos países europeus, à qual o sistema português não deve fugir.
Mas, também, a avaliação interna deve ser objecto de transformação. Por um
lado, o actual sistema de avaliação permite, por exemplo, a existência de
desempenhos muito desiguais que não são eficazmente controlados, por outro
o concurso interno e a progressão nas carreiras judiciais assentam em critérios
que privilegiam a antiguidade e a classificação de serviço e não em critérios
que atendam à preparação técnica e ao perfil do candidato para o exercício das
funções que vai desempenhar.

Neste domínio há pouco trabalho realizado entre nós e esta é uma das
nossas propostas de investigação para o período do Observatório Permanente
da Justiça Portuguesa a iniciar em breve. Esta proposta vai no sentido de se
avaliar a experiência comparada nesta matéria e de se fazer uma discussão
nacional sobre a transformação da avaliação interna e externa do sistema
judicial e da progressão das carreiras de modo a adequar o desempenho
profissional ao novo paradigma de política pública de justiça que descrevemos
no ponto 1 deste memorando.
Para uma agenda da reforma da justiça 43

12. AGENDA DE INVESTIGAÇÃO

A última década não foi marcada pela ausência de reformas. Houve


reformas processuais, organizacionais, de desjudicialização, todas anunciadas
como medidas que visavam contribuir para a eficácia do sistema de justiça e
para o reforço dos direitos dos cidadãos, em especial do direito de acesso à
justiça e à obtenção de uma decisão judicial em tempo útil. Na verdade, não
tivemos escassez de reformas, mas escassez de reformas que conseguiram
atingir os seus objectivos. O problema com que nos confrontamos é o de saber
porque é que tais reformas tiveram um impacto positivo tão reduzido e,
por vezes, tiveram mesmo impacto negativo, os chamados efeitos perversos.

Pensamos que tal deve-se a duas razões essenciais. Em primeiro lugar,


muitas das reformas não foram acompanhadas da criação de condições
necessárias que permitissem atingir os seus objectivos. Em segundo lugar,
não se fez uma monitorização exigente dessas reformas de modo a
identificar, em detalhe, as causas do seu fracasso ou os seus efeitos
perversos. Aliás, ainda neste domínio, temos vindo a propor a introdução de
reformas experimentais, à semelhança do que se fez com os julgados de paz.
O carácter experimental das medidas, além de permitir a identificação de
deficiências que podem ser corrigidas no período pós-experimental, permite,
ainda, atenuar os conflitos de interesses que normalmente são ateados sempre
que se introduz uma ruptura com carácter definitivo.
Para uma agenda da reforma da justiça 44

Índice

INTRODUÇÃO .........................................................................................................................1

1. NOVO PARADIGMA DE POLÍTICA PÚBLICA DE JUSTIÇA ..............................................3

2. NOVO PARADIGMA DO PROCESSO ...............................................................................6

2. 1. O Processo Civil .......................................................................................................6

2. 2. O Processo Penal.....................................................................................................6

3. REORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA E MAPA JUDICIÁRIO.....................................................8

4. MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E DA GESTÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO .......... 11

4. 1. Organização, gestão e planeamento a nível central ................................................ 11

4. 2. Criação de estruturas de organização, gestão e planeamento a um nível inferior


ao distrito judicial ....................................................................................................... 12

4. 3. A organização do tribunal enquanto conjunto de unidades de decisão .................... 13

5. JUSTIÇA CÍVEL............................................................................................................... 16

5. 1. Resposta à litigação de massa ............................................................................... 16

5. 2. Medidas de combate à morosidade processual civil................................................ 17

5. 2. 1. A acção declarativa .......................................................................................... 17

5. 2. 2. A acção executiva ............................................................................................ 18

5. 3. A adopção: necessidade de melhorar procedimentos e práticas ............................. 18

6. POLÍTICA CRIMINAL E JUSTIÇA PENAL........................................................................ 22

6. 1. Resposta à grande criminalidade............................................................................ 22

6. 2. Respostas à pequena e média criminalidade .......................................................... 24

6. 3. Medidas de carácter geral ...................................................................................... 26

6. 4. Sanções penais ...................................................................................................... 27

7. JUSTIÇA TUTELAR......................................................................................................... 29

8. JUSTIÇA LABORAL......................................................................................................... 31

8. 1. A justiça laboral na sua articulação com o sistema de relações laborais e o


sistema de resolução de conflitos: o bloqueio das formas alternativas de resolução
dos litígios individuais de trabalho.............................................................................. 31

8. 2. As alterações processuais decorrentes da introdução do novo Código de


Processo do Trabalho e as modificações no regime do acesso .................................. 33

8. 2. 1. O Código de Processo do Trabalho e a audiência de partes – artigo 54.º ......... 33


Para uma agenda da reforma da justiça 45

8. 2. 2. As alterações ao regime do acesso .................................................................. 34

9. O ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA........................................................................... 36

10. RECRUTAMENTO E FORMAÇÃO DE MAGISTRADOS .................................................. 39

11. AVALIAÇÃO INTERNA E EXTERNA DO SISTEMA JUDICIAL......................................... 42

12. AGENDA DE INVESTIGAÇÃO......................................................................................... 43

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