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Trovadorismo Capítulo 01

1 Trovadorismo
A Língua Portuguesa é muito rica e é falada em Portugal, Brasil,
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Prín-
cipe e Timor Leste. Na Idade Média ela contabilizava apenas 15.000
palavras. No século XVI, período marcado pelas grandes navegações,
esse número dobrou e, no fim do século XIX, os dicionários já regis-
travam 90.000 vocábulos. Hoje, a Academia Brasileira de Letras cal-
cula em 400.000 o total de palavras da Língua Portuguesa. A origem
dos vocábulos incorporados ao português ao longo dos séculos variou
conforme o tipo de contato mantido com outros povos. Entre os sécu-
los VIII e XV, o idioma absorveu muitos termos de origem árabe por
causa da ocupação moura na Península Ibérica. Durante o Renasci-
mento, a arte e a arquitetura italiana universalizaram várias palavras
relacionadas a elas. No século XX, a França ditava a moda no Ociden-
te, e várias palavras de origem francesa foram incorporadas ao portu-
guês. Interessa-nos, neste Capítulo, a formação da Língua Portuguesa
durante a Idade Média.

As primeiras manifestações encontradas em Portugal são em verso


(séc. XII). Há três principais coletâneas: 1) Cancioneiro da Ajuda (310
canções, cujos manuscritos datam da época trovadoresca); 2) Cancio-
neiro da Vaticana (1.205 canções); e 3) Cancioneiro da Biblioteca Na-
cional (1.647 canções).

O Trovadorismo foi a primeira escola literária portuguesa, surgiu e


desenvolveu-se entre 1198 a 1418. Paio Soares de Taveirós foi o autor da
Canção da Ribeirinha, também conhecida como Cantiga da Guarvaia
(1198), uma das cantigas mais antigas que se conhece em nossa língua.
Os poemas eram cantados por poetas e músicos com instrumentos de
corda e sopro. Podemos classificá-los nas seguintes categorias:

ӲӲ TROVADOR: poeta, em geral era uma pessoa culta que compu-


nha a letra e a música de canções sem preocupações financeiras;

ӲӲ MENESTREL: músicos-poetas sedentários que viviam na casa


de um fidalgo, enquanto o jogral andava de terra em terra;

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Literatura Portuguesa I

ӲӲ JOGRAL: cantores e tangedores ambulantes;

ӲӲ SEGREL: trovadores profissionais que iam de castelo em caste-


lo, acompanhados por um jogral.

Eram esses músicos que compunham e divulgavam as cantigas que


veremos em seguida.

1.1 Cantigas de Amigo


Com relação à poesia lírica, lembre-se
de que ela exprime as vivências íntimas da
primeira pessoa do discurso. São vivências,
sobretudo, afetivas e amorosas. O eu do po-
eta (eu lírico) pode aparecer explicitado ou
subentendido. De origem galego-portugue-
sa, as Cantigas de Amigo exprimem o sen-
timento feminino, embora escritas por ho-
mens. O poeta assume o que denominamos
de eu lírico feminino, e então, por meio des-
se estratagema, a mulher faz confidências
de seu amor.

Note que a mulher sofre pelo amigo


ausente (esse termo é aqui usado no sentido
de amante): é um ser mais real e concreto.
Figura 1 – Menestréis
Apresenta estrutura muito simples, chama-
da paralelística: repetições de versos seme-
lhantes, com alterações nas palavras finais.

Assim, as cantigas de amigo ambientam-se em lugares mais simples


e cotidianos, como bosques, meio rural, meio campesino ou perto do
mar. Ademais,

Uma antiga e longa tradição oral de cantigas ao som das quais se dança-
va existiu antes da compilação de poesias nos cancioneiros trovadores-
cos (compilação realizada no final do reinado de D. Afonso III, época do
manuscrito do Cancioneiro da Ajuda). António José Saraiva é da opinião
que, pelas suas características rítmicas e pelo ambiente social que evo-

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cam, algumas cantigas remontam certamente a um antiquíssimo pas-
sado, anterior à fundação do reino.

Ao lermos as cantigas de amigo, gênero lírico da tradição medieval


galego-portuguesa, fitamos um difuso simbolismo esotérico feito de
uma coincidência entre sentimento e ambiente, como por exemplo:
“Amor = natureza alegremente faladora (Primavera) / indiferença = na-
tureza tristemente silenciosa (Inverno)” [...].

Algumas destas cantigas têm a forma de diálogo de uma rapariga ena-


morada com a mãe, ou a irmã, ou as amigas, sempre acerca do “amigo” ou
com este mesmo. Outras são monólogos de uma mulher enamorada. O
lirismo vazado nestas composições tanto versa sobre o amor não cor-
respondido, causa de sofrimento, desconforto e lamento, como tam-
bém pode ser manifestação de um amor espontâneo e promissor.
Assim, são diversos os sentimentos e reações psicológicas da donzela: o
amor tranquilo e alegre; o fervor da paixão; a ansiedade e angústia porque
o amigo não dá notícias; as saudades e a tristeza pela ausência do amado;
os ciúmes ou as promessas de vingança pela infidelidade do amigo…

* Feição autóctone (origem galaico-portuguesa).

* A donzela (moça solteira) exprime a sua situação amorosa ou os seus


dramas na relação com o amigo.
* A donzela é uma moça simples, por vezes ingênua, mas enamorada.
* O amor é natural, espontâneo.

* O ambiente é rural ou marinho (sempre em contacto com a natu-


reza). A natureza é muitas vezes a confidente ou reflete o estado de
espírito da donzela.

* O paralelismo é um elemento distintivo, bem como o uso do refrão.


* Possuem uma estrutura simples.

* Confidentes: a mãe; a irmã; as amigas e a natureza.

* Sentimentos:

- o sofrimento de amor;
- a morte de amor;
- cuidados e ansiedade;
- tristeza e saudade;
- alegria na volta do amigo;
- ódio aos mexericos.

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* Ambientes:

- a fonte e o rio;

- a praia e o campo;

- a casa (SARAIVA, 1999, p. 19-22).

Vamos ler agora um exemplo de uma cantiga de amigo da autoria


do rei D. Dinis

Figura 2 – ‘Cantigas de Amigo’, manuscrito de Martin Codax.

Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi há jurado!
ai Deus, e u é?

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Observe que o poeta assume a voz feminina num lamento de des-
consolo e tristeza. Você pode constatar que se trata de um português
arcaico, também denominado de galego-português. A estrutura para-
lelística pode ser observada nas palavras em azul, retomadas ao longo
da cantiga; sempre no verso seguinte de cada estrofe, com pequena alte- Podemos encontrar
muitas influências da
ração no final: verde pino/verde ramo – meu amigo/meu amado. literatura medieval por-
tuguesa nas composi-
Os dois primeiros versos da primeira e da terceira estrofes são reto- ções de Elomar, músico
do sertão baiano, cujas
mados respectivamente na segunda e na quarta estrofes, com pequenas letras das músicas e
modificações. Há um verso que finaliza cada estrofe e que não é modi- vídeos estão disponí-
veis em:<http://letras.
ficado; sua estrutura mantém-se a mesma: ai Deus, e u é? Isso é o que terra.com.br/elomar/>.
chamamos de refrão e que você conhece muito bem nas músicas da atu- Vale a pena conferir,
também, as músicas de
alidade. Algumas delas tornam-se famosas pelo seu refrão interessante Chico Buarque (http://
e fácil de ser decorado. www.chicobuarque.
com.br/), cujas letras
Para as Cantigas de Amigo, temos várias classificações, de acordo apresentam aspectos
das cantigas medievais.
com o lugar onde elas se desenvolvem: Sugerimos, ainda, que
você ouça o CD Musi-
1) Barcarolas ou marinhas: ocorrem na presença do mar, que ad- kantiga e Cantigas de
amigo, de La Bataglia.
quire certa personalização ao se dirigir à amiga como seu con-
fidente;

2) Cantigas de peregrinação: a amiga está em um santuário, ermi-


ta ou capela, lugar de reunião que serve de pretexto para o en-
contro dos apaixonados. Esse contexto é exclusivo da literatura
galego-portuguesa;

3) Dançadas: composições alegres e festivas nas quais se realiza


um convite à dança;

4) Alvas ou alvoradas: faz-se referência ao amanhecer; nas “alvas”


provençais os amantes separavam-se após terem pernoitado
juntos. (RODRIGUES; CASTRO, 1994, p. 27-28).

As cantigas de amigo têm uma estrutura muito formalizada e rígi-


da, baseada na repetição. Os elementos característicos são:

5) Paralelismo: repetição da mesma ideia em duas estrofes suces-


sivas, nas quais só mudam as palavras finais de cada verso ou a
ordem delas, com o que varia a rima;

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Literatura Portuguesa I

6) Leixa-pren: repetição dos segundos versos de um par de es-


trofes como primeiros versos do par seguinte, o que acentua o
paralelismo entre as estrofes que o possuem;

7) Refrão: verso ou versos repetidos ao final de cada estrofe (RO-


DRIGUES; CASTRO, 1994, p. 27-28).

Figura 3 – Iluminura medieval do manuscrito medieval


As cantigas, de Alphonse Le Sage (século XV).

Os trovadores mais notáveis que compuseram cantigas foram: Pe-


dro da Ponte, Joan Garcia de Guilhade, Martin Codax, D. Afonso X -
Rei de Castela e de Leão, D. Dinis - Rei de Portugal.

1.2 Cantigas de Amor


De origem provençal, as cantigas de amor exprimem o sentimento
masculino e ambientam-se em palácios. Louvam-se as virtudes da dama
por meio do termo mia senhor, que significa minha senhora, minha dama
ou minha dona, ou trata-se da coita d’amor, expressão que pode ser tra-
duzida como sofrimento por amor. Eis aqui a origem do termo coitado.

No chamado amor cortês, o homem presta vassalagem amorosa


sem citar nomes. O amor é uma forma de aprimoramento espiritual. A
mulher é idealizada, perfeita, sem nenhum defeito, paira acima de tudo
e de todos. Essas cantigas desenvolvem-se geralmente em ambiente de
cidades, em palácios, festas, torneios.

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Trovadorismo Capítulo 01

Figura 4 – Vassalagem amorosa, iluminura medieval

A seguir você lerá a Cantiga da Ribeirinha, também conhecida


como Cantiga da Guarvaia, escrita aproximadamente em 1198, em um
português arcaico, pois a língua portuguesa ainda estava em formação.

Cantiga da Ribeirinha

Paio Soares de Taveirós

No mundo non me sei parelha

mentre me for como me vai,

ca já moiro por vós – e ai!

Mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia!

Mau dia me levantei,

que vos entom non vi fea!

E, mia senhor, des aquel di’, ai!

Me foi a mi muin mal,

e vós, filha de don Paai

Moniz, e bem vos semelha

d’haver eu por vós guarvaia,

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Literatura Portuguesa I

pois eu, mia senhor, d’alfaia

nunca de vós houve nem ei

Corre d’ûa Correa.

Agora você lerá uma tradução, ou melhor, uma transcriação para o


português moderno que você conhece, feita pelo professor Stélio Furlan
e utilizada em uma de suas aulas na UFSC:

Cantiga da Ribeirinha

Stélio Furlan

No mundo ninguém se assemelha a mim

enquanto a minha continuar como vai,

porque morro por vós, e ai!

minha senhora de pele alva e faces rosadas,

quereis que vos retrate (que me afaste)

quando vos vi sem manto! (na intimidade)

Maldito dia! me levantei

que não vos vi feia!

E, minha senhora, desde aquele dia, ai!

Tudo me foi muito mal,

e vós, filha de don Pai

Moniz, e bem vos parece

de ter eu por vós guarvaia,

pois eu, minha senhora, como mimo

de vós nunca recebi

algo, mesmo sem valor.

Em 2001, o poeta e professor Stélio Furlan, tomou a liberdade


de incluir ao final dessa cantiga uma estrofe que não havia na versão
original da Cantiga da Ribeirinha, de Paio de Taveirós:

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E só teu odor, oh dor! me anima.

Somente teu ser me resume

Suspenso entre o riso e o siso,

sois toda o que não preciso.

Minha esperança não se adere

à tua espera, minha Senhora.

Resta a lembrança do teu hálito,

tua cor: senhas para o sonho.

Em seguida temos outro exemplo de cantiga de amor também es-


crita no português arcaico, com um pequeno vocabulário numerado
para facilitar sua compreensão: 1) porque; 2) desde então;
3) vós sois; 4) trovo pelo;
5) vede a hora; 6) bom
Tam grave dia que vos conhoci,
senso; 7) se cumpra; 8)
nada; 9) isso; 10) porém;
por quanto mal me vem por vós, senhor!
11) ele.
ca (1) me ven coita, nunca vi mayor,

sen outro ben, por vós, senhor, des i (2)

por este mal que mh’a mim por vós ven,

come se fosse bem, ven-me por em

gran mal a quem nunca o mereci.

Ca, mha senhor, porque vos eu servi,

sempre digo que sode’la (3) milhor

do mund’e trobo polo (4) vosso amor,

que me fazedes gram ben e assy

veed’ora (5) mha senhor do bon sen, (6)

este bem tal se compre (7) en mi rrem (8),

senon, se valedes vós mays per y (9).

Mais eu, senhor, en mal dia naci.

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del que non tem, nem é conhecedor

do vosso bem, a que non fez valor

Deus de lho dar, que lhy fezo bem y,

per, (10) senhor, assy me venha bem,

deste gram bem, que el (11) por ben non tem,

muy pouco del seria grand’a mi.

Poys, mha senhor, razon é, quand’alguen

serv’e non pede, já que rem lhi den;

eu servi sempr’e nunca vos pedi.”

(D. Afonso Sanches)

Nessa cantiga, temos um típico exemplo do amor cortês, com o


trovador confessando o seu amor pela mulher amada, assumindo que
ela é superior a ele, afirmando que nada quer, a não ser viver o seu pró-
prio sentimento, sem interesse. Fica, no entanto, sentido porque ela não
corresponde a seus amores.

1.3 Cantigas de Escárnio


No gênero satírico o objetivo é criticar alguém, ridicularizando essa
pessoa de forma sutil ou grosseira; a esse gênero pertencem as Cantigas
de Escárnio e as Cantigas de Maldizer. As primeiras são indiretas e há
o uso e abuso do equívoco e da ironia, enquanto as segundas são dire-
tas, sem equívocos, com intenção difamatória, com o uso de palavrões
e xingamentos. A diferença entre esses dois tipos de cantiga é, portanto,
apenas relativa, uma vez que, frequentemente, encontramos ambigui-
dade na sua classificação. O próprio significado das palavras escárnio e
maldizer pode deixar mais clara essa diferença entre os dois tipos de sá-
tira. Podemos pensar em cantigas de escárnio como zombaria, menos-
prezo, desprezo, desdém, e em cantigas de maldizer como uma espécie
de praga proferida contra alguém específico para provocar maledicência
e difamação.

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As cantigas satíricas apresentam interesse, sobretudo, histórico. São
verdadeiros documentos da vida social, principalmente da corte. Fazem
ecoar as reações públicas a certos fatos políticos: revelam detalhes da
vida íntima da aristocracia, dos trovadores e dos jograis, trazendo até
nós os mexericos e os vícios ocultos da fidalguia medieval portuguesa.

Essas composições satíricas (Escárnio e Maldizer) circulavam por


lugares públicos como feiras, colheitas, tabernas, periferias urbanas, ca-
racterizando uma literatura marginal e, por isso mesmo, de importância
histórica bastante razoável, a exemplo das Cantigas de Amigo, pelo re-
gistro social ali contido.

As Cantigas de Escárnio são sátiras indiretas com uso de expres-


sões irônicas: não se revela o nome da pessoa satirizada e não há uso
exagerado de palavrões. A seguir, apresentamos, da autoria de João Gar-
cia de Ghilhade, um exemplo de cantiga em que a pessoa satirizada não
é nomeada.

Cantiga de Escárnio
João Garcia de Ghilhade

Ai, dona fea, fostes-vos queixar

que vos nunca louv[o] em meu trobar;

mais ora quero fazer um cantar

em que vos loarei toda via;

e vedes como vos quero loar:

dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi perdon!

pois avedes [a]tam gram coraçon

que vos eu loe, em esta razon

vos quero já loar toda via; Figura 5 – Menestrel

e vedes qual será a loaçon:

dona fea, velha e sandia!

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Observe que esse português, em formação, lembra um pouco o es-


panhol e o francês. Em uma tradução, ou melhor, transcriação para o
português moderno, teríamos o seguinte:

Transcriação

Ai, dona feia, foste-vos queixar

que nunca vos louvo em meu cantar;

mas agora quero fazer um cantar

em que vos louvares de qualquer modo;

e vede como quero vos louvar

dona feia, velha e louca!

Dona feia, que Deus me perdoe,

pois tendes tão grande desejo

de que eu vos louve, por este motivo

quero vos louvar já de qualquer modo;

e vede qual será a louvação:

dona feia, velha e louca!

As Cantigas de Escárnio influenciaram e influenciam músicas com


forte tônica crítica em relação à política. Abaixo um trecho da música O
Meu País, de Zé Ramalho:

O Meu País

Tô vendo tudo, tô vendo tudo

Mas, bico calado, faz de conta que sou mudo

Um país que crianças elimina

Que não ouve o clamor dos esquecidos

Onde nunca os humildes são ouvidos

E uma elite sem deus é quem domina

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Que permite um estupro em cada esquina

E a certeza da dúvida infeliz

Onde quem tem razão baixa a cerviz

E massacram - se o negro e a mulher

Pode ser o país de quem quiser

Mas não é, com certeza, o meu país

Um país onde as leis são descartáveis

Por ausência de códigos corretos

Com quarenta milhões de analfabetos

E maior multidão de miseráveis

Um país onde os homens confiáveis

Não têm voz, não têm vez, nem diretriz

Mas corruptos têm voz e vez e bis

E o respaldo de estímulo incomum

Pode ser o país de qualquer um

Mas não é com certeza o meu país

Um país que perdeu a identidade

Sepultou o idioma português Figura 6 – Meu país

Aprendeu a falar pornofonês

Aderindo à global vulgaridade

Um país que não tem capacidade

De saber o que pensa e o que diz

Que não pode esconder a cicatriz

De um povo de bem que vive mal

Pode ser o país do carnaval

Mas não é com certeza o meu país

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1.4 Cantigas de Maldizer


Trata-se de sátiras diretas, com a citação explícita dos nomes das
pessoas envolvidas. A temática central é o adultério, o amor interesseiro
ou ilícito. São composições que expressam melhor a psicologia do tem-
po, na qual observamos a presença de assuntos que despertam grandes
comentários na época, nas relações sociais dos trovadores. São sátiras
que atingem a vida social e política da época, sempre em um tom de
irreverência e grande riqueza, uma vez que se apresentam em conside-
rável vocabulário, observando-se muitas vezes o uso de trocadilhos; fo-
gem às normas rígidas das cantigas de amor e oferecem novos recursos
poéticos.

Enquanto as Cantigas de Escárnio utilizam a ironia e o equívoco


para realizar mais indiretamente essas zombarias, as Cantigas de Mal-
dizer são sátiras diretas. Eis o porquê de sua maior virulência, do em-
prego mais frequente de palavrões (em geral os mesmos utilizados até
hoje) e da abordagem mais desabusada dos vícios sexuais atribuídos aos
satirizados. Observe, a seguir, uma Cantiga de Maldizer típica, de au-
toria de Afonso Eanes do Coton, seguida de um pequeno dicionário
1) em troca de; 2) como se das palavras desconhecidas, que facilitará o entendimento da Cantiga
diz; 3) suficiente; 4) sairei;
5) antes me algo; 6) pois; de Escárnio.
7) hei, há; 8) de graça; 9)
tiverdes; 10) vestido; 11) Ben me cuidei eu, Maria Garcia,
novamente; 12) na; 13)
vossa casa; 14) tendes; en outro dia, quando vos fodi,
15) nenhum; 16) graças;
17) salvo. que me non partiss’eu de vós assi

como me parti já, mão vazia,

vel (1) por serviço muito que vos fiz;

que me non deste, como x’omen diz (2),

sequer um soldo que ceass’ (3) um dia.

Mais desta seerei (4) eu escarmentado

de nunca foder já outra tal molher,

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Trovadorismo Capítulo 01
se m’ant’algo (5) na mão non poser,

ca (6) non ei (7)


porque foda endoado (8);

sabedes como: ide-o fazer

con quen teverdes (9) vistid’e (10) calçado.

Ca me non vistides nem me calçades

nem ar (11) sel’eu eno (12) vosso casal (13),

nen avedes (14) sobre min non pagades;

ante mui ben e mais vos en direi:

nulho (15) medo, grad’a (16) Deus, e a el-Rei,

non ei de força que me vós façades.

E, mia dona, quen pregunta non erra;

e vós, por Deus, mandade preguntar

polos naturaes deste logar

se foderan nunca en paz nen en guerra,

ergo (17) se foi por alg’ou por amor.

Id’adubar vossa prol, ai, senhor,

c’avedes, grad’a Deus, renda na terra.

Observe que essa cantiga traz o nome da pessoa satirizada, Ma-


ria Garcia, e o uso do palavrão é constante. Se vivêssemos na época de
Afonso Eanes, certamente ele seria uma pessoa que jamais gostaríamos
de ter como inimigo...

1.5 Amor cortesão


O termo amor cortesão surgiu em 1883 e foi criado por Gaston Pa-
ris em seus escritos sobre Lancelot e Guinevere. O amor cortesão sig-
nificava uma espécie de fino amor, um amor perfeito, depurado como

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Literatura Portuguesa I

ouro mais fino, digno de nobres e finos amantes. Geralmente tratava-se


de um amor platônico, impossível de ser realizado, e também adúltero,
já que a dama, na maior parte das vezes, era casada. Citamos aqui os
filmes Excalibur; As Brumas de Avalon; Lancelot: o primeiro cavaleiro; e
Tristão e Isolda. Se você preferir, e é o que aconselhamos, pode ler di-
retamente as obras. Em Tristão e Isolda, Tristão apaixona-se por Isolda,
que é casada com o Rei Marcos; já Lancelot... retrata, talvez, o mais fa-
moso triângulo adúltero de todos os tempos: Arthur amava Guinevere,
que amava Lancelot, o primeiro cavaleiro de Arthur.

Cabe esclarecer que o fino amor não está relacionado ao casamento,


já que quase sempre se desenvolve fora deste. O fino amor envolve cor-
tesia e é um grande canto do amor. Em 1184 André Capelão escreveu
um tratado sobre o amor.

A cortesia é um ideal de comportamento aristocrático, uma arte


de viver que implica polidez, refinamento de costumes, elegância, e o
sentido de honra cavalheiresca. O amor cortesão, no sentido de amor
platônico, aquele que nunca se efetiva no plano real, é um amor virtual-
mente adúltero, porque dificilmente chega a se concretizar: repetimos, a
dama casada e o os poemas são os mensageiros do fino amor.

O amor cortesão é calcado no


modelo feudo-vassálico; o cavalheiro
e cavaleiro coloca-se diante da mulher
como se estivesse diante de um rei ou
um senhor feudal ao qual ele deve
prestar vassalagem amorosa, por isso
é constante o uso de minha senhora,
minha dona. Como cavalheiro e ca-
valeiro nobre, deve ser homem de um
único Senhor e uma única Senhora, e
manter segredo absoluto sobre seus
avanços na conquista. Ele deve enca-
rar as diversas fases e dificuldades da
conquista como se fossem pequenas
batalhas de guerra. O amor deve ser
Figura 7 – Tristão e Isolda, de Edmund Blair Leighton (1902).
conquistado aos poucos, até que o ini-

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Trovadorismo Capítulo 01
migo (a amada) se renda. O fino amor é a maior guerra que um homem
pode travar, portanto requer paciência: só se conquista ao fim de um
longo percurso. Na realidade trata-se de um jogo perigoso e excitante,
o homem sempre deve ser o conquistador, o galanteador; e a mulher, o
objeto de desejo que deve, mesmo amando e desejando o amante, man-
ter distância e apresentar todas as negativas possíveis. Ela não pode se
render de imediato, sob pena de ser considerada vulgar.

O cavaleiro deve render homenagem, fazer um juramento de amor


e conquistar a mulher progressivamente por meio de um olhar, de um
beijo, declarar seu amor, e muito raramente algo a mais. Na realidade
o algo a mais, o finalmente, excepcionalmente, ocorre. O homem deve
ser leal, cortês, participar de combates e torneios, ser viril e digno de
diversas proezas.

Figura 8 – Leonor de Aquitânia nomeando um cava-


lheiro, de Edmund Blair Leighton (1902).

Na ética amorosa não é só a vassalagem amorosa que importa, mas


o amor deve se transformar numa religião, a mulher deve ser cultuada.
O amador deve viver e respirar pela amada, fazer disso o centro de sua
vida, viver em estado de dorveille (torpor), permanecer cativo pela ima-
gem da amada, fascinado por ela, quase que em um estado que beira

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Literatura Portuguesa I

a depressão. Lembre-se, porém, de que o fino amor é uma erótica do


controle do desejo. Esse controle pode ser observado nas várias deno-
minações dos vários estágios do enamorado/amante virtual. Cada está-
gio recebe um nome, como você poderá observar:

1) Ser provado em sua castidade (extraordinário domínio do desejo)


– assag;

2) Suspirar/desejar – fenhador;

3) Suplicar – precador;

4) Se for aceito – entendedor (língua d´oc);

5) Amante carnal - drut;

6) Alegria final – joy – a força do desejo;

7) Tomar cuidado com o losengier – o bajulador invejoso que des-


trói os amantes – espião;

8) Muito raramente após a conquista e a devoção, o cavaleiro, o po-


eta terá direito à recompensa: guerredon.

Por tudo que você já leu, deve ter percebido que o amor cortesão
é uma arte de amar inacessível aos pobres mortais, já que transfor-
ma algo simples e natural em algo extremamente disciplinado, uma
paixão que deve ser controlada; transforma o amor em uma religião
e a mulher em um ser angelical e inacessível. O enamorado deve obe-
decer a regras de etiquetas claras, uma delas (e a mais importante) é
que ele deve cultuar a mulher amada secretamente – jamais revelar
o nome da dama. Esse amor, logicamente, é proibido aos clérigos e
aos plebeus. O amor cortesão apresenta um paradoxo: mantém cer-
ta aproximação com a moral cristã, no sentido de que transforma a
mulher amada em um ser angelical, inacessível, e o amor é transfor-
mado em uma religião. Trata-se, no entanto, de um amor adúltero,
o que de certa forma anula a moral cristã nesse aspecto. A chamada

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Trovadorismo Capítulo 01
erótica cortesã é vista como uma técnica sutil de não amar, uma
maneira de não realizar o amor, uma vez que o homem tem medo
da mulher diante da qual ele teme sua própria sexualidade. O amor
cortês revela uma mulher completamente superior e inacessível e
mostra as relações entre o feminino e o masculino, mas o homem é,
na verdade, o dono desse jogo. O ideal é uma coisa, o real é outra. O
público a quem se dirigiam poetas e romancistas era constituído de
machos celibatários dos quais a cavalaria estava cheia. Alimentando-
-lhes o ardor, a literatura cortesã torna-se instrumento pedagógico.

O amor apresenta-se como o extremo refinamento da cortesia. Esse


fino amor é cantado em canções de amor e em romances de amor. A
produção lírica demonstra bem essa arte poética e hermética, muito
complicada e paradoxal de amar. O amor cortesão pode ser visto
como sinônimo de galanteria, mesura, autocontrole, domínio. Sua
grande lição é que a vida sem amor não vale nada. O amor
cortesão tem origem na poesia latina de Ovídio (A arte de Amar),
na poesia árabe-andaluza e na chamada matéria da Bretanha – as
narrativas de amor do ciclo arthuriano.

Na realidade, o amor cortesão não apresenta um conceito unâni-


me entre os estudiosos. O amor é uma loucura, uma bela loucura, pois,
cativo de desejo, o poeta morre de amor, mas, como a Fênix, renasce
das cinzas. O tormento causado pelo amor é simultaneamente prazer
e morte. A dama, a mulher amada, tem o poder da vida e da morte do
amado. No sul da França, os trovadores serão chamados de troubadour
e, no norte, de trouvère. Essa ideologia cortesã, o chamado modelo cor-
tesão, permanece até o final do século XV e depois migra para o gênero
romance. No chamado romance romântico teremos a retomada desse
modelo cortesão: a mulher idealizada, o amor platônico, sofrimentos e
final infeliz.

A Música Sertaneja no Brasil assumiu praticamente essa temática


do amor impossível, do amor não correspondido, do sofrer por amor.
Os maiores sucessos da música sertaneja cantada de norte a sul do país,

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Literatura Portuguesa I

chegando até a universidade no gênero que é denominado de Sertane-


jo Universitário, versam sobre o amor que não deu certo, abandono e
traição. Escolhemos, entre centenas de canções, um trecho da música
Sinônimos, de Chitãozinho & Chororó:

Sinônimos

Quem revelará o mistério

Que tem a fé

E quantos segredos traz


O coração de uma mulher
Como é triste a tristeza
Mendigando um sorriso
Um cego procurando a luz
Na imensidão do paraíso
Quem tem amor na vida
Tem sorte
Quem na fraqueza sabe
Ser bem mais forte
Ninguém sabe dizer
Onde a felicidade está...

O amor é feito de paixões


E quando perde a razão
Não sabe quem vai machucar
Figura 9 – O beijo, de Francesco Hayez (1859).
Quem ama nunca sente medo
De contar o seu segredo
Sinônimo de amor é amar...

Desde os Trovadores até as modas da Música Caipira, passando


pelas canções da MPB, chegando à explosão da Música Sertaneja no
Brasil, ao Sertanejo Universitário, sinônimo de amor é amar... São as
senhas para o sonho...

Leia mais!
BEDIER, Joseph. O romance de Tristão e Isolda. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.

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Trovadorismo Capítulo 01
DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa feudal à Renas-
cença. São Paulo, Martins Fontes, 2009. V.2.
SPINA, Segismundo. 1ª Época Medieval. In: _____. Presença da Litera-
tura Portuguesa: Era Medieval. São Paulo: Difel, 1987.

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