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Em torno das Casas Senhoriais

dos finais da Idade Média*

Luís Filipe Oliveira

Para os homens dos séculos XIV e XV, uma casa senhorial não se con-

fundia facilmente com as habitações comuns, com as actividades que nelas ti-

nham lugar, ou com os homens que nelas viviam. Para eles, o termo evocava

uma outra realidade mais complexa, por certo ligada à existência e ao modo de

vida dos grandes senhores leigos e eclesiásticos, cuja influência se ia fazendo

sentir na vida das populações de várias cidades e vilas do país. Para muitos deles,

esse era um mundo familiar e bem conhecido, quer por serem caseiros, ou forei-

ros de uma determinada casa, quer por nela cumprirem um leque muito variado

de serviços, quer, ainda, porque com ela se relacionavam de muitas outras for-

mas, mas poucos ignorariam os sinais que definiam a presença desse mumdo na

sociedade portuguesa de finais da Idade Média.

* Uma primeira versão deste trabalho foi apresentado na FCSH da Universidade Nova de Lisboa
(Março de 2000), no ciclo de conferências “Morar e Habitar na Idade Média”. A versão actual muito
deve a sugestões do Professor Doutor Luís Krus, a quem agradeço.

MEDIA ÆTAS, n.º 3 (2000), pp. XX-XX.


LUÍS FILIPE OLIVEIRA

A leitura dos capítulos das Cortes oferece, aliás, vários testemunhos da pre-

sença das casas senhoriais nos quotidianos locais e regionais. Desde meados do

século XIV, que se avolumavam, com efeito, os protestos contra as doações ré-

gias de vilas e lugares aos grandes senhores1, tanto por porem em causa a auto-

nomia dos concelhos, como por gerarem as condições para aqueles poderem

controlar as vereações e os magistrados concelhios2. O problema afectava

mesmo os grandes concelhos do senhorio régio, que viam as suas jurisdições

diminuídas com a doação das aldeias do termo a algum senhor, como sucedeu

com Buarcos em relação a Montemor, com a Golegã e Montargil no que res-

peita a Santarém, ou com Cernache no que toca a Coimbra, entre outros casos

semelhantes3. Noutras ocasiões, preocupava-os o desequilíbrio que a presença

dos senhores trazia aos mercados locais4, ou a circunstância de muitos deles re-

crutarem os seus criados e servidores entre os vizinhos dos concelhos e assim os

1 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Afonso I V (1325-1357) , ed. por O. Marques, Teresa C.
Rodrigues e Nuno Pizarro, Lisboa, 1982, p. 32 (Cortes de 1331); Cortes Portuguesas. Reinado de
D. Fernando I (1367-1383) , ed. por O. Marques e Nuno Pizarro, Lisboa, 1990, vol. I, pp. 35 (Cor-
tes de 1371), 85, 115, 125 (Cortes de 1372).
2 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando cit., vol. I, pp. 43, 47, 56 (Cortes de
1371), 102 (Cortes de 1372). Para a análise de casos concretos, veja-se M.ª H. Coelho, O Baixo
Mondego nos Finais da Idade Média , Lisboa, 1983, vol. I, pp. 566-568; Amélia A. Andrade,
“Composição Social e Gestão Municipal: O Exemplo de Ponte de Lima”, Ler História, 1987, n.º
10, pp. 10-11.
3 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro....cit., p. 105 (Cortes de 1361);Cortes Portu-
guesas. Reinado de D. Fernando ...cit., vol. I, pp. 73 (Cortes de 1371); M.ª H. Coelho, op. cit., pp.
470, 474-477; Pedro de Azevedo, Cartas de Vila, de mudança de nome e do título de notável das po-
voações da Estremadura, sep. do Bol. da Classe de Letras, Coimbra, 1921, vol. XIII, pp. 13 e ss.
4 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367) , ed. por O. Marques e Nuno Pi-
zarro, Lisboa, 1986, p. 58 (Cortes de 1361). Entre outros exemplos, veja-se o raro capítulo dialo-
gado das Cortes de 1446 (Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490),
Porto, 1990, vol. I, pp. 511-512), muito sugestivo a este propósito.

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eximirem dos encargos respectivos5. De resto, os protestos não perderam actua-

lidade durante todo o século XV, já que as queixas motivadas pela acção dos fi-

dalgos e dos grandes senhores, muitas vezes derivadas do exercício das jurisdi-

ções senhoriais, fizeram ouvir-se em cerca de metade das reuniões de Cortes

realizadas entre 1385 e 14906.

A dimensão do problema que afligia então muitas populações concelhias,

ou pelo menos aqueles que falavam em seu nome nas Cortes 7, levou mesmo a

que se pedisse, com alguma insistência, a extinção das jurisdições senhoriais. O

pedido formulou-se nas Cortes de 1372, realizadas no Porto e em Leiria8, e, de

novo, nas assembleias de 1418 e de 14339. Apesar de alguns sucessos esporádi-

cos, como os éditos promulgados por D. Fernando em 1372 e em 1375 10, a

longo prazo essa era uma batalha perdida, já que o fluxo daquelas doações não

dava mostras de abrandar. Talvez conscientes dessa derrota, vendo-se obrigados

a acomodarem-se, portanto, ao exercício das jurisdições senhoriais, os concelhos

5 Os protestos motivados por tal prática fizeram-se ouvir em algumas Cortes de finais do sé-
culo XIV (cf. Armindo de Sousa, op . cit., vol. II, pp. 228, 230) e estiveram talvez na origem de
uma lei de 1434 (Ordenações Afonsinas , fac-simile da ed. de 1792, Lisboa, 1983, Lv. 2, tit.º 38),
que sujeitava aquelas isenções ao consentimento do rei, mas que não evitou a multiplicação dos
protestos (cf. Armindo de Sousa, op . cit., pp. 330, 358, 373, 420) ao longo do século XV.
6 Cf. Idem, ibidem , vol. I, pp. 518-523.
7 Cf. Idem, ibidem , p. 526; J. Mattoso, “Perspectivas económicas e sociais das cortes de
1385”, Estudos Medievais, 1984-5, n.º 5/6, pp. 39-52.
8 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando ...cit., vol. I, pp. 85-86, 124-125.
9 Cf. Armindo de Sousa, op . cit., vol. II, pp. 269, 289.
10 Cf. M. H. Coelho, op . cit., p. 458; Gama Barros, História da Administração Pública em
Portugal , 2.ª ed., Lisboa, 1945, vol. 2º, pp. 469-473; A. H. Oliveira Marques, Portugal na Crise
dos Séculos XIV e XV , vol. IV da Nova História de Portugal, dir. por J. Serrão e Oliveira Marques,
Lisboa, 1987, pp. 240.

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deitaram mão a outros argumentos com maior força moral, lembrando o aban-

dono das antigas funções militares e a multiplicação das despesas que então ca-

racterizava o modo de vida dos senhores. Como diziam os procuradores às

Cortes de 1459, "os fidalgos que têm de vós terra ou tença ou tudo per muitos

anos pera vos haver de servir ao tempo do mester (...) metem-se em tantas des-

pesas baldias, que trazem, que a sua despesa é maior quatro vezes que a recepta.

E quando vêm ao mester não têm tão-somente uma arma com que vos sir-

vam"11. Mais seguros e confiantes pela defesa dos velhos costumes, não tiveram

pejo em rematar que "ca mais rimaria ao fidalgo comprar dez gibanetes pera

quando cumprisse que despender quanto há em louçainhas de que pouco pro-

veito nem honra procede"12.

As preocupações dos procuradores às Cortes de 1459 eram comungadas,

pela mesma época, por Duarte da Gama, que também lamentava, entre os corte-

sãos que o escutavam, aqueles que "ham por cousa boa/ nam ter homens nem

cavalos/ e despreçam os vassalos/ por se virem a Lixboa" e aquelas que "por

competir/ em terem coisas de Frandes/ as fazendas muito grandes/ querem fazer

destroir" 13. Nessa mágoa comum provocada pelas “desordens” do reino, como

lhes chamava Duarte da Gama, havia, talvez, um fundo de verdade. A multipli-

11 Cit. por Armindo de Sousa, “A Socialidade (Estruturas, Grupos e Motivações)”, in J. Matto-


so (coord.), A Monarquia Feudal, vol. II da História de Portugal, dir. de J. Mattoso, Lisboa,
1993, p. 441.
12 Idem, ibidem.
13 Cancioneiro Geral de Garcia de Resende , ed. de A. Fernandes Dias, Lisboa, 1990., vol. III,
n.º 542. Sobre Duarte da Gama veja-se Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa,
org e coord. de G. Lancini e G. Tavani, Lisboa, 1993, s. v. “Duarte da Gama”.

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cação dos gastos de que eles davam conta e que não escapara à argúcia de D.

Duarte, quando observara que os portugueses eram muito perdulários no gover-

no das suas casas14, caracterizava certamente muitas das grandes casas senhoriais

dos séculos XIV e XV. Com efeito, ao avaliar pelo património que detinham,

pela multidão de criados de que se serviam, ou pelos rendimentos que nalguns

casos se conhecem15, o montante das despesas atingia uma dimensão muito con-

siderável. E muitas delas deviam corresponder a louçaínhas e a outras despesas

baldias, quer dizer, às geradas pela existência da própria casa, em boa parte mo-

tivadas pela manutenção de uma mesa farta e condigna, que constituía o centro

da sociabilidade senhorial, às que correspondiam a recompensas feitas a muitos

criados e servidores, ou às relacionadas com o financiamento de tudo aquilo que

moldava o estilo de vida de muitos dos senhores leigos e eclesiásticos16.

Infelizmente, desconhece-se quase tudo acerca da contabilidade senhorial

de finais da Idade Média, dado o desaparecimento da generalidade dos antigos

arquivos familiares. Alguns dados ingleses relativos a uma amostra de 55 casas

senhoriais e que respeitam ao período entre 1350 e 1530 mostram, contudo,

14 Cf. D. Duarte, Leal Conselheiro, introd. e notas de J. Morais Barbosa, Lisboa, 1982, cap.
32, p. 166.
15 Cf. M. Soares da Cunha, Parentesco e Poder. Casa de Bragança (1384-1483) , Lisboa,
1990, pp. 119-124; Luís Filipe Oliveira, A Casa dos Coutinhos: Linhagem, Espaço e Poder (1360-
1452), Cascais, 1999, pp. 84-94. Os testamentos do infante D. Henrique (cf. J. Silva Sousa, A
Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, 1991, pp. 258-279) proporcionam também uma
boa imagem das suas disponibilidades financeiras.
16 Para um panorama das despesas senhoriais, veja-se K. B. Macfarlane, “The English Nobi-
lity, 1290-1536”, The Nobility of Later Medieval England. The Ford Lectures for 1953 and Related
Studies, Oxford, 1973, pp. 83-101; K, Meyers, The English Noble Household (1250-1600). Good
Governance and Political Rule, Oxford, 1988, pp. 102-120.

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que o consumo pessoal do senhor e dos outros membros da sua casa, quer dizer,

a manutenção da própria casa, podia ascender a mais de 70% das receitas dispo-

níveis17. Em Portugal, as despesas dessa ordem não deviam ser então muito raras,

caso não fossem mesmo um rasgo estrutural, já que se documentam, pelo menos,

valores muito semelhantes na maioria das casas senhoriais de finais da época

moderna 18.

O montante e a estrutura das despesas senhoriais não era, porém, o que

verdadeiramente atormentava as populações concelhias. A razão dos seus pro-

testos prendia-se, mais em concreto, com a novidade representada pela multipli-

cação das doações régias do senhorio de concelhos, colocando nas mãos dos se-

nhores o exercício das jurisdições respectivas e a cobrança de um vasto conjunto

de rendas e direitos outrora usufruídos pela Coroa. Tratava-se, com efeito, de um

costume relativamente recente, cujas origens recuavam aos princípios do século

XIV, quando D. Dinis iniciou esse tipo de doações em proveito de membros da

família régia19. Durante algum tempo, esse costume beneficiou apenas um

círculo restrito de personagens, por norma os bastardos dos monarcas e alguns,

poucos, nobres que privavam mais de perto com a casa do soberano, razão que

17 Cf. K. Meyers, op . cit., apêndice B, pp. 216-7; Para Inglaterra, vejam-se ainda as observa-
ções de Ch. Carpenter ("The Fifteenth-Century English Gentry and their Estates", in M. Jones,
Gentry & Lesser Nobility in Late Medieval Europe, Nova Iorque, 1986, pp. 50), e as de M. C. Ger-
bert (La noblesse dans le Royaume de Castille. Etude sur ses structures sociales en Estrémadure de
1454 à 1516 , Paris, 1979, p. 290) e de J. Garcia Marsilla (La Jerarquia de la Mesa. Los Sistemas
Alimentarios en la Valencia Bajomedieval, Valência, 1993, pp. 196-197) para a Península.
18 Cf. Nuno G. Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes (1750-1832), Lisboa, 1988, p. 444.
19 Cf. J. Mattoso, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1095-1325),
Lisboa, 1985, 2.º vol., p. 175.

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permitiu, aos procuradores às Cortes de 1371, ainda recordarem ainda o tempo

em que os reis não doavam terras do seu senhorio e pagavam as mercês com

bens provenientes dos seus tesouros 20. Mas bem depressa se generalizou essa

prática, que contemplaria um número crescente de linhagens, primeiro durante o

reinado de D. Fernando, em seguida no decurso das guerras da independência,

continuando depois pelos reinados de D. Duarte e de D. Afonso V21.

A vulgarização destas doações não foi, porém, alheia à formação de gran-

des casas senhoriais, que caracterizou os séculos finais da Idade Média. De facto,

o senhorio de concelhios proporcionou, a muitas linhagens, um património con-

siderável, e, sobretudo, o exercício de um poder próprio, que se interpunha legi-

timamente entre a Coroa e as comunidades locais e que lhes garantia, desse

modo, uma maior capacidade de intervenção no território. Ao mesmo tempo, a

natureza dos bens doados, que estavam sujeitos ao controle da Coroa e que mal

se adaptavam às regras da partilha hereditária, dada a sua pouca divisibilidade22,

contribuiu certamente para uma maior estabilidade das fortunas nobres, favore-

cendo a transmissão por linha masculina. De qualquer modo, a coincidência

20 Cf. Cortes Portuguesas. Reinado de D. Fernando ... cit., p. 43.


21 Cf. Oliveira Marques, op . cit., pp. 81-89; M.ª J. Ferro Tavares, “A Nobreza no reinado de D.
Fernando”, Revista de História Económica e Social, 1983, n.º 12, pp. 59-71, 77-80; J. Silva
Sousa, D. Duarte — Infante e Rei — E as Casas Senhoriais, conf. proferida na Soc. Histórica da In-
dependência de Portugal, Lisboa, 1991; idem, "Casas Senhoriais no Portugal Quatrocentista", Re-
vista de Ciências Históricas , vol. IX, 1994, pp. 95-104.
22 Num certo sentido, o senhorio de concelhos assemelhava-se às antigas tenências, também
elas transmitidas preferencialmente por linha masculina. Cf. J. Mattoso, op . cit., vol. I, pp. 205-
207, Leontina Ventura, A Nobreza de Corte de Afonso III , diss. de dout. em História Medieval,
Coimbra, 1992, vol. I, pp. 261-264, 268 e ss.

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cronológica dos dois processos merece ser, pelo menos, cuidadosamente ponde-

rada, tanto mais que, para os períodos anteriores ao século XIV, não se tem em

geral detectado a presença de grandes casas senhoriais23.

A formação de grandes casas senhoriais, dotadas com ofícios e oficiais di-

ferenciados, à imagem do que sucedia na Casa do Rei, parece ser, na verdade,

um fenómeno tardio. Entre os magnates dos séculos XII e XIII, documentam-se

sobretudo os cavaleiros e vassalos das suas mesnadas, sendo mais raras as men-

ções a oficiais ligados à administração dos senhorios, como os vigários, os juizes,

os mordomos e os monteiros24. No que respeita ao serviço doméstico, a ausência

de testemunhos directos sugere o seu desempenho por servidores indiferen-

ciados, com fraca ou nenhuma especialização funcional, caso não estivesse asse-

gurado pelas mulheres da casa25. Os moços e os rapazes da casa, a que se refe-

rem algumas passagens dos Livros de Linhagens26, representam, talvez, esse uni-

verso de servidores anónimos, em quem recaíam muitas das tarefas indispensá-

veis à vida doméstica de um rico homem dos séculos XII e XIII. Um universo

dotado de uma organização débil e pouco diferenciada, ainda sem capacidade

23 Cf. J. Mattoso, op . cit., pp. 220-221; J. Augusto Pizarro, Linhagens Medievais Portugue-
sas. Genealogias e Estratégias (1279-1325), diss. de dout. em História Medieval, Porto, 1997,
vol. II, pp. 1191 e ss.
24 Cf. J. Mattoso, op . cit., p. 214; id., Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. A nobreza me-
dieval portuguesa nos séculos XI e XII, 2.ª ed., Lisboa, 1985, 179, 208, 219-220; Leontina Ven-
tura, op . cit., pp. 264-265, 292.
25 De acordo com D. Herlihy (Medieval Households , Londres, 1985, pp. 39, 52, 67), as mu-
lheres eram predominantes nos grupos domésticos das casas leigas e monásticas anteriores ao sé-
culo X.
26 Cf. Livros Velhos de Linhagens .Portugaliae Monumenta Historica. Nova Série , vol. I, ed.
de J. Piel e J. Mattoso, Lisboa, 1980, LV 1M7 e LD 6AC10.

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para notabilizar quem nele se movia, e que não deixou, de resto, grandes marcas

nos Livros de Linhagens da Idade Média27.

Os testemunhos da estruturação interna das casas senhoriais, com servido-

res nomeados com títulos semelhantes aos da corte do rei, datam apenas de

meados do século XIII. Talvez vindo de além Pirinéus, onde se vulgarizara por

volta de 105028, ou mesmo de Leão e Castela, onde se tornara frequente durante

o século XII 29, esse costume generalizou-se primeiro no círculo da corte de

Afonso III. Para os familiares próximos do rei, já então se documentava a exis-

tência de mordomos e de capelães, de chanceleres e de outros profissionais da

escrita, ou mesmo de tesoureiros e de copeiros30. O panorama não diferia muito

entre os elementos mais influentes da nobreza de corte. O chanceler Estevão

Anes tinha ao seu serviço vários mordomos, alguns clérigos e notários, além do

requinte de um cozinheiro 31, sucedendo algo de semelhante nas casas de João

Peres de Aboim, de Rui Garcia de Paiva e de Gil Martins de Riba de Vizela 32,

27 Através de uma rápida consulta aos índices remissivos dos Livros de Linhagens, constata-
se que as referências a servidores senhoriais são muito poucas e pouco diversas. Em regra, os teste-
munhos mais significativos referem-se a membros da família dos monarcas, ou a linhagens de
Leão e de Castela. Para uma interpretação destas referências, vejam-se os comentários de J. Matto-
so, Identificação... cit., vol. I, pp. 220-221.
28 Cf. D. Crouch, The Image of Aristocracy in Britain (1000-1300), Londres, 1992, pp. 288-
291.
29 Cf. S. Barton, The Aristocracy in Twelfth- Century Leon and Castille, Cambridge, 1997,
pp. 58-61.
30 Para tudo isto, vejam-se as biografias organizadas por Leontina Ventura, op. cit., vol. II,
pp. 534, 537, 548, 555, 562.
31 Idem, ibidem, p. 594.
32 Idem, ibidem, pp. 571, 681-682, 697.

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entre outros. Por essa época, sem qualquer receio de ser mal entendido, Pero

Gomes Barroso, que poetava pela corte de Afonso X33, punha a ridículo um rico

homem que se fazia acompanhar, talvez em campanha, por todos os oficiais da

sua casa:

Sei eu un ricome, se Deus mi pardon,


que traj’ alférez e trage pendon; (...)
E trage tenda e trage manjar
e sa cozinha, u faz seu jantar; (...)
Trage reposte, trag’ escançan
e traz çaquiteiro, que lhi dá pan; (...)
Trage seu leito e seu cobertor
e jograrete, de que á sabor;
e, con tod’ est’, assi mi venha ben,
non pod’ el-Rei saber, per nulha ren,
quando se vai, nem sabe quando ven.34

A multiplicação destes exemplos e a imitação daqueles costumes pelas

outras famílias da nobreza portuguesa não devem ter seguido, porém, um ritmo

muito acentuado 35, embora o assunto esteja em boa parte por estudar. Para

muitos membros das famílias da corte de Afonso III, talvez menos sensíveis às

novas modas, não se conhece qualquer oficial das casas respectivas, como suce-

dia, por exemplo, com Pero Pais de Alvarenga, com Afonso Lopes de Baião,

33 Cf. A. Resende de Oliveira, “Trovadores Portugueses na Corte de Afonso X”, Actas das II
Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, Porto, 1990, vol. IV, pp. 1338, 1343; idem,
Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos Cancioneiros peninsulares e as recolhas
dos séculos XIII e XIV, Coimbra, 1992, p. 551.
34 Cantigas D’ Escarnho e De Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, ed.
de Rodrigues Lapa, 2.ª ed., Coimbra, 1970, n.º 391.
35 Entre os cavaleiros ingleses (cf. D. Crouch, op . cit., pp. 302-304), a montagem de casas
próprias é um fenómeno tardio, típico do século XIV.

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EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

com Nuno Martins de Chacim e com Egas Lourenço da Cunha36. Nada de dife-

rente ocorreria com as restantes linhagens nobres, mais afastadas dos modelos

divulgados pela corte do rei e geralmente com recursos menos avultados. Mais

de um século depois, quando o redactor da Crónica de 1419 se referiu à cons-

tituição da casa de D. Dinis, efectuada em 1279, já julgou conveniente esclarecer

quem o lia, que “ante nom avyom os Reys de Portugal em costume de darem

casa a nenhum filho, posto que erdeyro fose, em tal gujsa, que peroo que o

Jffante D. Afonso, filho del Rey D. Sancho, fose casado e tiuesse filhos, sendo ja

de jdade de xxv anos, em casa de seu padre andaua”37.

Qualquer que tenha sido a cronologia deste processo, nos séculos XIV e

XV as casas senhoriais mostravam uma grande tendência para se aproximarem,

cada vez mais, do modelo oferecido pela casa do rei. Salvaguardadas as distân-

cias devidas, a semelhança crescia quando algumas se viram contempladas com

um título de nobreza, que se multiplicaram, também, desde o governo fernan-

dino 38. À sua frente estava aquele que era o chefe da linhagem, ou o "cabeça da

casa", como se começava a dizer por meados do século XV39, em quem recaía a

gestão da maior parte do património da linhagem e a quem pertencia a defini-

36 Cf. Leontina Ventura, op . cit., vol. II, pp. 585, 603, 630, 646.
37 Cf. Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, ed. crítica de Carlos da Silva Tarouca, Lis-
boa, 1952, vol. I, p. 281.
38 Cf. A. H. de Oliveira Marques, op . cit., pp. 245-6; A. B. Freire, Brasões da Sala de Sintra,
2.ª ed., Coimbra, 1930, t. III, pp. 241 e ss.
39 Cf. I. Beceiro Pita e R. Cordoba de La Llave, Parentesco, Poder y Mentalidad. La Nobleza
Castellana Siglos XII-XV, Madrid, 1990, pp. 89-90; Luís Filipe Oliveira, op . cit., p. 11.

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ção das alianças familiares e a representação política dos seus parentes. Como

reconhecia Briolanja Coutinho, em Maio de 1493, a fortuna e o prestígio acu-

mulados pelo chefe da linhagem e seu irmão, o 4º conde de Marialva, transfor-

mavam-se "em muyta homrra E proueyto della dicta Senhora dona Breolanja E

doutros seus parentes a dicta Casa dos Coutinhos ser sempre humentada E acre-

çentada" 40. Alguns anos mais tarde, em Julho de 1503, um sobrinho do mesmo

conde, talvez penhorado pelos trinta mil reais brancos que recebera, também re-

conhecia que cabia ao conde “mais que ha outrem aver os beens E eranças de

seu pay E avoos ficaram pera seer sempre comJumto e encorporado na decta

casa dos coutjnhos de que elle decto conde he ha principall cabeça” 41

Nada disto impedia, porém, que outros parentes possuíssem as suas pró-

prias casas, geralmente de menores dimensões e muitas vezes situadas nos terri-

tórios marginais dos senhorios controlados pelo chefe da linhagem. Na primeira

metade do século XV, era essa situação que se documentava entre os Coutinhos

e na casa de Bragança42, embora a multiplicação de casas aparentadas não esti-

vesse ao alcance de todos, pois exigia o aval da Coroa e disponibilidades patri-

moniais consideráveis. Em qualquer dos casos, a unidade do grupo estava asse-

gurada, com maior ou menor eficácia, por vários factores de coesão, desde a

comunhão do sangue e do nome, à partilha das tradições e até, por vezes, à utili-

40 I.A.N./T.T., Gaveta 15, Mç. 17, n.º 14. O mau estado da parte inicial deste documento
obrigou à utilização do Livro 30 da Reforma das Gavetas, fls. 287 v. e ss.
41 I.A.N./T.T., Gaveta 9, Mç. 6, n.º 21.
42 Cf. M. Soares da Cunha, op . cit.. pp. 60-64; Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 57-58, 81.

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EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

zação comum das residências familiares43. Mesmo em tempo de guerra, ou por

ocasião de conflitos políticos, essa coesão não desaparecia por completo e dava

mostras nalguma acção concertada44, ou quando os outros parentes se integra-

vam na hoste do chefe da linhagem, que dirigia normalmente uma comitiva mais

numerosa45.

O vasto património das grandes casas senhoriais transformava-as, muitas

vezes, como já tem sido assinalado46, em verdadeiros estados senhoriais, dotados

de órgãos de governo próprios, necessários à gestão dos bens, à cobrança das

rendas e direitos, à aplicação da justiça, ou à guarda dos castelos. Nas casas de

maior dimensão, que correspondem geralmente a membros da família real, essas

estruturas assemelhavam-se às da corte do rei e apresentavam já uma certa com-

plexidade organizativa, com uma grande multiplicidade de funções e de servi-

43 A partilha das residências familiares está documentada entre os infantes de Avis (cf. R.
Costa Gomes, A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média, Lisboa, 1995, pp. 228-229),
e entre os Coutinhos (cf. Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 55-56, 124). Para os de Melo, numa
sentença de Abril de 1352 (José Mário Cumbre, Os Melo. Origens, trajectórias familiares e per-
cursos políticos (sécs. XII - XV), diss. mestrado em Hist. Medieval, Lisboa, 1997, doc. n.º 2 do
apêndice) há referência ao facto de Martim Afonso de Melo continuar a morar “no dito logo de mer-
loo todo o Ano ou a mayor parte dele”, embora o senhorio do lugar tivesse ficado para o seu irmão,
Lopo Afonso.
44 Cf. M. Soares da Cunha, op . cit., pp. 139-144; Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 65-66.
Vejam-se, ainda, as observações de D. Crouch, William Marshal. Court, Career and Chivalry in the
Angevin Empire (1147-1219), Londres, 1990, pp. 113-114.
45 Cf. I. Beceiro Pita e R. Cordoba de La Llave, op . cit., p. 57; Luís Filipe Oliveira, op . cit.,
p. 63; F. de Moxó Y Montoliu, La Casa de Luna (1276-1348). Factor Político y Lazos de Sangre en
la Ascension de un Linaje Aragonés, Munster, 1990, pp. 232-233, 236.
46 Cf. A. H. de Oliveira Marques, op. cit., pp. 82, 314; I. Beceiro Pita, "Los dominios de la fa-
milia real castellana (1250-1350)", Génesis Medieval del Estado Moderno: Castilla y Navarra
(1250-1370) , Valhadolide, 1985, pp. 80, 99.

13
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

dores diferenciados47. Nas restantes casas, como sucedia, por exemplo, entre os

Coutinhos, a especialização funcional era consideravelmente menor, documen-

tando-se o predomínio da dupla mordomo/procurador no domínio da adminis-

tração, dos ouvidores no plano judicial e dos escudeiros no âmbito dos cargos

militares 48. Neste último domínio, que reunia, em regra, o maior número de ser-

vidores, as diferenças eram muito significativas, já que nas casas dos infantes D.

Henrique, D. Fernando e D. Pedro, a par de muitos escudeiros e cavaleiros, so-

bressaía a presença de um alferes-mór49 e de vários besteiros, alguns deles ditos

da câmara, pelo que deveriam fazer parte das guardas pessoais respectivas.

Muitos destes homens, pelos quais passava boa parte do relacionamento

do senhor com o território que controlava, integravam ainda o grupo humano

que rodeava mais de perto o senhor da casa. Naquele que vivia com ele de con-

tínuo, como então se dizia, em quem o senhor mais se fiava e a quem se habitu-

ara a confiar as missões mais delicadas, em suma, naquele grupo de homens que

constituía a sua própria corte. Na composição dessa corte entravam, contudo,

47 Além da síntese de Oliveira Marques (op . cit., pp. 257-260) e dos estudos aí citados, veja-se
R. Costa Gomes (A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média, Lisboa, 1995, p. 226) e os
dados apresentados por J. Silva Sousa (A Casa Senhorial... cit., pp. 302-359, 393 e ss.), por S.
Pereira Lopes, (O Infante D. Fernando e a Nobreza Fundiária de Serpa e Moura (1453-1470), diss.
mestrado em Hist. Medieval, Lisboa, 1997, pp. 86-97) e por João Luís Fontes (Percursos e memó-
ria: do Infante D. Fernando ao “Infante Santo”, diss. mestrado em Hist. Medieval, Lisboa, 1999,
pp. 44-51 e os Anexo n.º 1 e 2, pp. 257-263). Para a casa do arcebispo de Braga e a da rainha D.
Leonor, veja-se J. Marques, A Arquidiocese de Braga no Século XV, Lisboa, 1988, pp. 169-226;
Ivo de Sousa, "Introdução ao Estudo do Património, da Casa e da Corte de D. Leonor", Espirituali-
dade e Corte em Portugal (Séculos XVI a XVIII), Porto, 1993, pp. 23-52.
48 Cf. Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 126-129.
49 Cf. J. Silva Sousa, op . cit., pp. 320, 424, ; S. Pereira Lopes, op . cit., p. 97 e n. 156; H. B.
Moreno, A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico, Lourenço Marques,
1973, p. 433.

14
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

muitos outros indivíduos, com destaque para aqueles que o senhor criara na sua

companhia e que o serviam, por vezes, no âmbito da sua sala, ou da sua câmara,

além dos que se ocupavam no aprovisionamento da casa e na organização dos

serviços da cozinha, da capela e da chancelaria senhorial50. A esses juntavam-se,

ainda, aqueles que tratavam das tarefas mais humildes na cozinha, nos estábulos,

ou na limpeza da casa e na lavagem das roupas. O mundo do trabalho a que al-

guns destes últimos pertenciam não se documenta, contudo, com muita facili-

dade, tal como acontece, aliás, com o trabalho feminino51, embora se noticiem,

aqui e ali, um ou outro sapateiro ou alfaiate, um ou outro carniceiro ou ferra-

dor 52, ou mesmo duas lavadeiras da sala e da câmara, registadas na casa senho-

rial do Infante Santo53.

Como seria de esperar, a organização das cortes senhoriais atingia maior

complexidade e uma maior divisão de tarefas nas casas de maior dimensão. Al-

guns dos departamentos atrás referenciados e directamente ligados ao serviço da

sala, da câmara e da capela, apenas se documentavam nesses casos e quase todos

se encontravam sujeitos, também, ao registo escrito das operações realizadas,

dada a multiplicação de secretários e de escrivães da puridade e da câmara, ou

50 Nos estudos disponíveis e atrás referidos raramente se encontra uma distribuição dos servi-
dores conhecidos pelas diferentes áreas de serviço, embora muitos deles estejam identificados pe-
los cargos respectivos. Vejam-se, no entanto, as indicações de Luís Filipe Oliveira (op . cit., pp.
126-130) e de João Luís Fontes (op . cit., p. 45 e n. 102).
51 Cf. R. Costa Gomes, op . cit., pp. 46-7; Luís Filipe Oliveira, op . cit., p. 122; João Luís
Fontes, op . cit., p. 46 e n. 103.
52 Entre outros, veja-se H. B. Moreno, op . cit., p. 491; J. Silva Sousa, op . cit., pp. 318, 456;
S. Pereira Lopes, op . cit., pp. 88, 96.
53 Cf. João Luís Fontes, op . cit., pp. 46 e n. 103, 257, 260.

15
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

até de escrivães do forno, das compras, do tesouro e da cozinha 54, mau grado

muitos desses registos tenham entretanto desaparecido. A homologia com os

cargos documentados na casa real era aí, por vezes, muito grande, chegando

mesmo a comprovar-se a existência de um Conselho na casa do infante D. Fer-

nando 55, à imagem do que sucedia na corte dos reis portugueses. Nas restantes

casas, onde as informações documentais são, também, mais escassas, o grau de

especialização era bem menor, o que aumentava o carácter polivalente das fun-

ções que cada um era chamado a cumprir. No que respeita, por exemplo, aos

Coutinhos, a especialização dos cargos domésticos noticiava-se apenas para os

chefes da casa, por meados do século XV, quando se dá a conhecer a existência

de aios, de compradores, de amos e de camareiros, ou até de um escrivão da pu-

ridade56. Multiplicavam-se aí, por isso, os criados e escudeiros sem funções pre-

cisas no âmbito doméstico. Nas casas mais modestas, onde era fácil controlar as

actividades de toda a gente e onde todos faziam um pouco de tudo, a polivalên-

cia devia ser ainda maior. Nenhum dos membros da casa de Martim Afonso de

Melo III se nomeava, de facto, pelas funções domésticas que aí lhe pertenciam57,

54 Há notícias desses escrivães nas casas dos infantes D. Pedro (H. B. Moreno, op . cit., pp.
466-467), D. Henrique (J. Silva Sousa, op . cit., pp. 317, 403, 412, 417, 448), D. Fernando (S.
Pereira Lopes, op . cit., p. 94) e na do Infante Santo (João Luís Fontes, op . cit., pp. 257, 258,
259, 260).
55 Cf. S. Pereira Lopes, op . cit., p. 95, onde se identifica João Gonçalves da Câmara como
membro do Conselho do infante. Note-se, porém, que o seu pai, João Gonçalves Zarco (cf. M.ª
Anita Machado, A Família e a Casa de João Gonçalves Zarco, diss. mestrado em Hist. Medieval,
Lisboa, 1997, p. 22.) também se identifica, em 1466, como conselheiro do mesmo infante.
56 Cf. Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 128-129.
57 Cf. José Mário Cumbre, op . cit., pp. 161, 172.

16
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

tal como sucedia com aqueles, poucos, que compunham a de João Gonçalves

Zarco58, identificando-se todos apenas como criados e escudeiros dos senhores

respectivos. Para muitos cavaleiros de menores recursos, nem mesmo este pata-

mar estaria ao alcance de todos.

A composição social destas cortes variava, também, de acordo com a im-

portância, o prestígio e o poder dos senhores respectivos. A estreita proximidade

entre as casas principais e a corte do rei fazia com que muitas recrutassem os

seus criados entre as famílias dedicadas ao serviço régio, ou mesmo nas princi-

pais linhagens cortesãs. Como já foi observado, era isso que acontecia com as

casas dos infantes Pedro e Henrique 59, mas a mesma observação vale também

para os séquitos do Infante Santo e do infante D. Fernando 60. As ligações dos

infantes às ordens militares favoreciam, por outro lado, que entrassem ao seu

serviço muitos membros das linhagens tradicionalmente ligadas àquelas ordens.

Ao serviço do infante D. Henrique e do seu filho adoptivo, o infante D. Fer-

nando, encontravam-se, de facto, alguns cavaleiros e comendadores das ordens

que eles governavam, mas o mesmo acontecia na casa do Infante Santo 61. Em

contrapartida, nas restantes casas o recrutamento devia obedecer a um padrão

58 Cf. M.ª Anita Machado, op . cit., pp. 146-147.


59 Cf. R. Costa Gomes, op . cit., p. 227. A mesma característica também se observava nas ca-
sas dos infantes de Castela. Veja-se I. Beceiro Pita, “Los Dominios ... cit., pp. 105-106.
60 Cf., respectivamente, João Luís Fontes, op . cit., p. 47 e S. Pereira Lopes, op . cit., pp. 92-
97.
61 Cf. J. Silva Sousa, op . cit., pp. 401, 406, 409, 411, 414, 416, 421, 424-425 e ss.; S. Pe-
reira Lopes, op . cit., pp. 92-96; João Luís Fontes, op . cit., pp. 47, 48, n. 108.

17
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

mais localizado, mais circunscrito às linhagens herdadas nos territórios que cada

uma controlava. Era esse padrão que se observava, pelo menos, no que toca aos

Coutinhos, cujos criados e clientes provinham, em regra, das famílias implanta-

das na região de Lamego, quando não eram recrutados entre a sua parentela,

ainda que, para Vasco Coutinho, o 1º conde de Marialva, se tenha documentado

uma área de recrutamento um pouco mais vasta62. E como é evidente, todas es-

tas casas recrutavam, também, alguns dos seus criados e servidores nas famílias

da aristocracia urbana, ou mesmo nos estratos populares, sobretudo no que res-

peita aos serviçais mais humildes.

Mesmo nas casas mais modestas, o número de criados e de servidores de-

via atingir, portanto, uma dimensão bastante considerável. Os dados conhecidos

para João Gonçalves Zarco sugerem uma casa composta por cerca de uma de-

zena de indivíduos, quantitativo muito semelhante ao que se regista para alguns

ramos secundários dos Coutinhos, mas um pouco inferior aos valores encontra-

dos para a casa de Martim Afonso de Melo III, mais próximos das duas deze-

nas 63. Para os chefes da casa dos Coutinhos, o número de criados atingia natu-

ralmente valores mais elevados, fixando-se entre as três e as cinco dezenas de

homens, como se observava, por exemplo, nos casos de Gonçalo Vasques Couti-

62 Cf. Luís Filipe Oliveira, op. cit., pp. 133-135.


63 Cf. M.ª Anita Machado, op . cit., pp. 146-147, 149; Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 127,
130; José Mário Cumbre, op . cit., pp. 172-173. Os valores encontrados para os fidalgos da Es-
tremadura castelhana (cf. M. Claude Gerbert, op . cit., pp. 328-330) são muito semelhantes.

18
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

nho e do 4º conde de Marialva, Francisco Coutinho 64. Ainda assim, não é im-

possível que estes valores estejam aquém da realidade, dada a dificuldade em

rastrear aqueles criados na documentação disponível, devido ao desaparecimento

quase total do antigo arquivo senhorial. Nas casas dotadas com um maior patri-

mónio e também com maiores disponibilidades financeiras, como acontecia com

os infantes da família real, mas também com os detentores de algumas

dignidades eclesiásticas65, o número de criados e servidores atingia proporções

quase majestáticas. Em termos gerais, variava entre um mínimo de 168 indiví-

duos, registado para a casa do infante D. Fernando, e um máximo que talvez ul-

trapassasse as cinco centenas, como parece ter-se verificado na casa do infante

D. Henrique66. E se por eles passavam muitas das despesas baldias do senhor da

casa, também passaria muita da sua autoridade e sobretudo muito do prestígio

social da casa respectiva.

Nem toda esta multidão de criados e servidores tinha assento na corte se-

nhorial, embora muitos aí pudessem entrar por questões de serviço, ou por oca-

sião das grandes cerimónias que animavam aquele espaço, quando as portas dos

64 Cf. Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 125, n. 36, 127. M. C. Gerbert (ibidem) encontrou
valores aproximados para os titulares castelhanos.
65 A casa de D. Fernando da Guerra, arcebispo de Braga (cf. José Marques, A Arquidiocese de
Braga ... cit., pp. 223-225) integrava um total de 259 indivíduos.
66 Cf. S. Pereira Lopes, op . cit., pp. 86, 92-97; J. Silva Sousa, op . cit., p. 302. Este último
autor indica um total de 886 indivíduos na casa do infante, mas contabilizou aí muitos lavradores,
marinheiros e pescadores privilegiados por D. Henrique (cf. ibidem, pp. 303, 340). Para o cálculo
do valor indicado no texto utilizaram-se os totais parciais (ibidem, pp. 313-336) indicados pelo
mesmo autor.

19
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

paços se franqueavam a muitos outros convidados 67. Em regra, essas ocasiões

festivas realizavam-se sobretudo na residência principal do senhor, naquela onde

ele se demorava com maior assiduidade. Entre os chefes da casa dos Coutinhos,

essas funções eram desempenhadas pelos paços de Lamego, situados na cerca do

castelo e reconstruídos, com alguma magnificência, nos princípios do século XV,

onde se acolheu a celebração de um casamento e a organização de algumas

festas e banquetes. A organização de eventos semelhantes devia ser menos fre-

quente nas outras residências da casa, mas noticiavam-se, ainda assim, no paço

acastelado de Penedono e na moradia de Trancoso, mas também nas torres de

Fonte Arcada e de Ferreirim. A par destas residências, que acompanhavam a

distribuição dos seus senhorios, os Coutinhos possuíam ainda umas casas de mo-

rada em Santarém e outras em Lisboa, cuja importância radicava, talvez, na sua

maior proximidade aos espaços habitualmente percorridos pela corte do rei68.

O panorama não era, por certo, muito diferente nas outras casas senhoriais,

embora nem sempre as informações sobre a localização e o número dos paços

respectivos estejam devidamente assinaladas nos estudos disponíveis. O 1º duque

de Bragança tinha, pelo menos, a sua residência principal em Guimarães, onde se

realizaram, aliás, alguns casamentos, a par de outros paços em Barcelos, em

67 Para uma reconstituição das cerimónias que animavam a corte dos reis, veja-se R. Costa
Gomes (op . cit., pp. 300-320). Quanto às cortes senhoriais, veja-se João Luís Fontes (op . cit.,
pp. 53-61), sobretudo no respeito à capela do infante.
68 Para tudo isto, veja-se Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 122-124, 131-132.

20
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

Chaves e em Lisboa69, enquanto o seu primogénito possuía os de Ourém e de

Porto de Mós70. Para o Infante Santo, além dos paços situados em vilas associa-

das à mesa mestral de Avis, conhecem-se as residências que possuía em Salva-

terra e na Atouguia, terras que formavam o núcleo original do seu património71.

Os citados paços de Salvaterra devem ter transitado para o seu herdeiro, o in-

fante D. Fernando, que, além dos residências vinculados às mesas mestrais de

Cristo e de Santiago72, tinha uns paços em Belas, nos arredores de Lisboa, em-

bora a sua moradia principal se devesse situar em Beja, cidade que ficou ligada à

memória daquele infante 73. No caso dos infantes, dada a maior familiaridade

com a corte do rei, não é impossível que usufruíssem assiduamente dos espaços

habitacionais da própria corte, mesmo quando se deslocavam através do país. A

presença dos infantes na corte de D. Duarte parece ter sido, pelo menos, muito

frequente74, caso não tenha mesmo assumido um carácter institucional.

A reconstituição das comodidades oferecidas por muitos destes paços,

bem como da vida e das actividades que os animavam ao longo do ano, não se

faz, porém, com muito pormenor, nem com muita facilidade. As fontes disponí-

69 Cf. Paço dos Duques de Bragança. Guimarães, Boletim da DGMN, n.º 102, 1960, p. 15; M.
Soares da Cunha, op . cit., pp. 61, 98.
70 Cf. J. Vieira da Silva, “Paço dos Duques de Bragança em Guimarães”, Patrimonia, n.º 1,
1996, p. 29.
71 Cf. João Luís Fontes, op . cit., pp. 29-30, 54.
72 Cf. M. Sílvio Conde, Tomar Medieval. O espaço e os homens, Cascais, 1996, pp. 56, 68,
91; M.ª Teresa Pereira, Alcácer do Sal na Idade Média, diss. mestr. em Hist. Medieval, Lisboa,
1998, p. 74.
73 Cf. S. Pereira Lopes, op . cit., pp. 39-40, 83.
74 Cf. R. Costa Gomes, op . cit., pp. 228-229.

21
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

veis são, por norma, pouco esclarecedoras sobre muito do que se ia passando na

esfera doméstica da vida senhorial. Apesar desse silêncio incómodo, é possível

caracterizar as cortes senhoriais como importantes centros de consumo cultural.

Talvez mais evidente no domínio da escultura funerária e no âmbito da

arquitectura civil e religiosa75, ou mesmo no que respeita ao consumo e à

circulação de romances de cavalaria, muito apreciados pelas linhagens do século

XV76, essa dimensão cultural prolongava-se, ainda, pelas áreas da música e da

pintura. Na casa do Infante Santo, para lá dos livros e dos cantores que faziam

parte da sua capela, documentavam-se dois músicos, um trompeteiro e o outro

dito tangedor 77, enquanto o infante D. Henrique tinha um pintor entre os seus

criados78. De um modo idêntico, no testamento do 4º conde de Marialva,

Francisco Coutinho, que foi ditado em 1520, encontrava-se uma referência à

importação de retábulos da Flandres, destinados às igrejas do seu padroado 79.

Infelizmente, nada se sabe daqueles outros retábulos que talvez embelezassem

alguns dos seus paços.

A produção cultural que aí tinha lugar devia atingir, contudo, uma dimen-

são mais significativa. O papel da nobreza e das cortes senhoriais na criação lite-

75 Cf. Dionísio David, Escultura Funerária Portuguesa do século XV, diss. mestrado em Hist.
Arte Medieval, 3 vols., Lisboa, 1990; J. Vieira da Silva, Paços Medievais Portugueses. Caracte-
rização e Evolução da Habitação Nobre (sécs. XII-XVI), diss. doutoramento em Hist. Medieval, 2
vols., Lisboa, 1993.
76 Cf. Dicionário de Literatura Medieval ... cit., s.v. “Romance”.
77 Cf. João Luís Fontes, op . cit., p. 259.
78 Cf. J. Silva Sousa, op . cit., p. 450.
79 I.A.N./T.T., Gaveta 9, Mç. 2, n.º 16, fl. 6 v.

22
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

rária assentava, aliás, numa tradição antiga, que nascera da sua relação com o de-

senvolvimento da poesia trovadoresca e com a composição dos Livros de Li-

nhagens80, mas que não desapareceu nos séculos finais da Idade Média. Nos

meios ligados aos Pereiras e à ordem do Hospital procedeu-se, como se sabe, a

duas refundições do Livro de Linhagens do conde D. Pedro, a primeira em

1360-13625 e a segunda entre 1380 e 1383, sendo o autor desta última o res-

ponsável pela narrativa da batalha do Salado81. Uns anos mais tarde, desenvol-

via-se o labor literário de Martim Afonso de Melo III, que deixou uma crónica

de D. Fernando e um livro sobre a arte da Guerra, conhecidos de Fernão Lopes

e de Zurara, e talvez, também, uma crónica do Condestável82. No decurso do sé-

culo XV, outros ambientes senhoriais estiveram por detrás da composição das

histórias do Condestável e do Infante Santo, realizadas em meios ligados às casas

respectivas83, das traduções e das produções literárias dos príncipes de Avis84, e

80 Cf. A. Resende de Oliveira, “História de Uma Despossessão. A nobreza e os primeiros tex-


tos em galego-português”, Revista de História das Ideias, vol. 19, 1998, pp. 105-136; J. Matto-
so, "A Literatura Genealógica e a Cultura da Nobreza em Portugal (s. XIII-XIV), Portugal Medieval.
Novas interpretações, Lisboa, 1984, pp. 309-328; Luís Krus, "O Discurso sobre o Passado na Le-
gitimação do Senhorialismo Português dos Finais do Século XIII", Passado, Memória e Poder na
Sociedade Medieval Portuguesa. Estudos , Redondo, 1994, pp. 197-207.
81 Cf. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro .Portugaliae Monumenta Historica. Nova Série ,
vol. II, tomo I, ed. de J. Mattoso, Lisboa, 1980, pp. 41-50; Dicionário de Literatura Medieval ...
cit., s.v. “Livros de Linhagens”.
82 Cf. José Mário Cumbre, op . cit., p. 165; J. Gouveia Monteiro, “A Cultura Militar da
Nobreza na primeira metade de Quatrocentos. Fontes e Modelos Literários”, Revista de História
das Ideias, vol. 19, 1998, pp. 202-203.
83 Cf. António Manuel Branco, Emergência de Um Herói (Estudo da Crónica do Condestável),
diss. de doutoramento em Lit. Medieval, Faro, 1998, pp. 49-134; João Luís Fontes, op . cit., pp.
149-172, 198 e ss.
84 Cf. Obras dos Príncipes de Avis, introd. e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, 1981.

23
LUÍS FILIPE OLIVEIRA

dalgumas das crónicas de sabor senhorial que ficaram da produção de Gomes

Eanes de Zurara. Também entre os Coutinhos se coligiu, em data incerta, um

Cancioneiro dito do conde de Marialva 85, talvez propriedade de um dos vários

membros da linhagem que têm poemas recolhidos no Cancioneiro Geral de

Garcia de Resende. Nessa mesma casa elaborou-se, ainda, uma primeira versão

da narrativa dos 12 de Inglaterra, assim como um relato genealógico que procu-

rava confundir, por meados do século XV, as origens míticas da linhagem com a

fundação do próprio reino 86. Ao que parece, nem mesmo as casas mais modes-

tas se alheavam do patrocínio de produções literárias deste género, onde a me-

mória dos feitos praticados ajudava a esquecer uma origem menos prestigiada e

a firmar um invejado prestígio cultural. Em 1536, era na casa de Simão Gonçal-

ves da Câmara que se conservava, pelo menos, uma memória manuscrita que ele

herdara acerca do descobrimento da Madeira87, onde se reclamava a descoberta

da ilha para o fundador da linhagem dos Câmaras, o cavaleiro João Gonçalves

Zarco.

O panorama aqui esboçado, posto que breve e sucinto, peca certamente

por defeito. Muitas outras questões nem sequer foram tratadas, em particular

aquelas que dizem respeito ao modo como os senhores exerciam a sua autori-

dade nas terras do interior, ou como recrutavam aí as clientelas em que apoiavam

85 Cf. Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa. I- Idade Média , Lisboa, s.d., pp.
246-247; Carolina Michaelis, Cancioneiro da Ajuda, reimp. da ed. de 1904, Lisboa, 1990, vol.
II, p. 267.
86 Cf. Luís Filipe Oliveira, op . cit., pp. 26-32, 52-53.
87 Cf. M.ª Anita Machado, op . cit., p. 34, n. 9.

24
EM TORNO DAS CASAS SENHORIAIS

o seu poder. O estudo prosopográfico dessas clientelas locais e regionais, assim

como daquelas que se definiam no plano nacional, em redor das grandes casas

senhoriais, encontra-se em grande parte por fazer. Quase nada se conhece acerca

da composição e da mobilidade social que caracterizava aqueles grupos

informais de clientes, muito menos sobre as diferentes estratégias individuais que

se desenrolavam no seu interior. Talvez que o seu estudo permita perceber, um

dia, alguns dos equilíbrios complexos que se desenhavam entre os diferentes

poderes locais e regionais, ou o modo como todos eles se foram ajustando ao

poder dos monarcas, naturalmente mais distante, mas com uma capacidade de

intervenção mais decisiva. E talvez tudo isso ajude a compreender, também, um

pouco melhor, muito daquilo que distinguia as casas senhoriais e as afastava das

habitações comuns.

25

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