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PROJETO DE FORMAÇÃO DE FORMADORES

INSTITUTO VERA CRUZ E INSTITUTO ANÍSIO TEIXEIRA


SALVADOR - BA
Formação em Matemática
Carla Naíra Milhossi
Samuel Gomes Duarte

ANEXO 5
Encontro 2 - julho de 2020

Texto de referência

Contexto e contextualização nos processos de ensino e aprendizagem da


Matemática ​(Saddo Ag Almouloud)
1

Contexto e contextualização no ensino da Matemática são dois temas presentes em


discussões nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998 e 2010) e nas
diretrizes curriculares. No entanto, esses conceitos têm sido objeto de polêmicas e
equívocos na problematização de situações que têm significado para os estudantes. Muitas
vezes, alguns autores de livros didáticos e professores propõem situações de ensino que
envolvem somente o cotidiano e aspectos utilitários. Isso torna pobre a ideia de contexto e
de contextualização e pode até conduzir ao enfraquecimento dos processos de ensino e de
aprendizagem de conceitos matemáticos.

Nossa concepção, apoiada em Brousseau (1997, apud ALMOULOUD, 2007), é a de que o


aluno aprende se adaptando a um meio que é fator de dificuldades, contradições e
desequilíbrios. O saber, fruto do processo de construção pelo estudante, manifesta-se pela
capacidade dele de resolver os problemas que surgem.

Para que haja intencionalidade didática, o professor tem de criar e organizar um meio no
qual serão desenvolvidas situações que têm o potencial de provocar essas aprendizagens. O

1
Disponível em
https://novaescola.org.br/conteudo/567/contexto-e-contextualizacao-nos-processos-de-ensino-e-apre
ndizagem-da-matematica​ (acesso em 29 jun. 2020)
meio e as situações precisam engajar fortemente os saberes matemáticos envolvidos no
processo de ensino e aprendizagem.

Construir o conhecimento com desafios

O que entendemos por saber Matemática, ensinar Matemática e aprender Matemática?


Para responder, apoio-me em Régine Douady (1994). Segundo a autora, saber Matemática é
ter disponíveis algumas noções e teoremas matemáticos para resolver problemas e
interpretar questões novas. De acordo com isso, as noções e teoremas matemáticos têm o
status de ferramentas. As ferramentas, por sua vez, são inscritas em um contexto, sob a
ação e o controle do professor em um dado momento. As situações ou problemas em que
evoluem as noções matemáticas devem ser geradores de significados para essas noções do
ponto de vista semântico.

Saber Matemática é também identificar noções e teoremas como elementos de um ​corpus


cientificamente e socialmente reconhecido. É ainda formular definições, enunciados de
teoremas desse ​corpus e​ demonstrá-los. De acordo com Douady (1994), as noções e os
teoremas matemáticos têm status de objeto. Eles são descontextualizados,
despersonalizados e atemporais. Os trabalhos de descontextualização e de
despersonalização fazem parte da capitalização do saber. Os de recontextualização e o
tratamento de problemas, oriundos dessas recontextualizações, permitem ampliar o
significado desse saber.

As noções e os teoremas podem ser trabalhados, modificados de acordo com o tipo de


situações nas quais são solicitados e levar à construção de novas noções que necessitam de
novas interpretações, modificações e generalizações. Para os teoremas, é possível explorar
o domínio de validade: imaginar novas formulações ou pontos de vista e demonstrá-las ou
achar contraexemplos.

Ensinar Matemática, por um professor, é criar as condições favoráveis à produção de


conhecimento pelos estudantes.

Aprender Matemática, por um aluno, é se envolver em uma atividade intelectual cuja


consequência é a disponibilidade de um saber com seu duplo status de ferramenta e objeto.
Para que realmente haja ensino e aprendizagem, é necessário que o saber seja um objeto
importante e essencial para as interações entre o educador e a classe, e que esse saber seja
uma aposta importante para a escola.

As situações (apoiadas em um contexto matemático ou de uma certa realidade que tem


sido vivenciada ou não pelo aluno) que têm significado devem ter as seguintes
características:

● Possuir dados facilmente entendidos pelos estudantes, que poderão se engajar na


resolução usando seus conhecimentos.
● Envolver o saber matemático que efetivamente se deseja ensinar.
● Não serem possíveis de ser resolvidas de maneira imediata com os conhecimentos
antigos, pois eles se revelam insuficientes.
● Envolver vários domínios de conhecimentos, como algébrico, geométrico e
numérico.

As atividades devem ser concebidas considerando as recomendações dos PCN e das


propostas curriculares e também os resultados de pesquisas sobre o tema em questão. As
tarefas devem permitir aos alunos desenvolver certas competências e habilidades e
precisam ter, essencialmente, dois objetivos claros:

● Auxiliá-los na construção de conhecimentos (saber-fazer) e saberes (validação


científica) de maneira construtiva e significativa.
● Desenvolver certas habilidades. Por exemplo, saber ler, interpretar e utilizar as
diferentes representações matemáticas, bem como desenvolver o raciocínio
dedutivo.

As situações têm de ser concebidas para permitir aos alunos agir, se expressar, refletir e
evoluir por iniciativa própria, adquirindo novos conhecimentos. O papel do professor nesse
caso é o de mediador e orientador. As intervenções docentes devem ser feitas de modo a
não prejudicar a participação do aluno no seu processo de aprendizagem. Assim, a aplicação
de cada atividade deve levar em consideração duas condições: os estudantes precisam
mobilizar os objetos de saber disponíveis como ferramenta explícita para resolver o
problema, pelo menos parcialmente, e o educador tem de provocar um debate de
confrontação dos resultados obtidos por eles. Nessa fase, diversas formas de saber vão
aparecer. O objetivo é compartilhar e construir o saber da turma toda e promover o
progresso na aquisição individual dos conhecimentos.

É importante que o educador, após o debate, selecione e organize as descobertas dos


alunos e sistematize os novos conhecimentos matemáticos para promover a melhor
compreensão deles. Além disso, ele precisa fazer a institucionalização dos novos conteúdos
estudados. É imprescindível ter uma fase de familiarização na qual o professor propõe
outras situações - cujo objetivo é consolidar os saberes adquiridos pela classe.

O estudante deve aprender por necessidade própria e não por necessidade aparente do
professor ou da escola. Além do mais, pensar uma organização de ensino em várias etapas,
valorizando a dialética ferramenta-objeto (DOUADY, 1993). Régine Douady (1993) distingue,
para um conceito matemático, o polo ferramenta e o polo objeto. Um conceito é
ferramenta quando está sendo usado na resolução de um problema. Por objeto,
entendemos o objeto cultural reconhecido como fazendo parte dos saberes científicos
validados socialmente.

Como organizar o ensino de Matemática

A dialética ferramenta-objeto é um processo cíclico que organiza os papéis respectivos do


docente e dos alunos, durante o qual o conceito tem uma função ora de ferramenta para
resolver problemas, ora de objeto, tomando lugar dentro da construção de um certo saber
organizado.

Por meio da dialética ferramenta-objeto, Régine Douady propõe, então, uma organização de
ensino em várias etapas, descrita a seguir (ALMOULOUD, 2007):

● Antigo ​Como primeira condição para o problema, o enunciado deve ter um sentido
para todos, que podem mobilizar os objetos conhecidos de saber, como ferramenta
explícita, em um processo de resolução ou para resolver somente uma parte do
problema. Nessa fase, os conceitos matemáticos deverão ser utilizados como
ferramentas explícitas para resolver (mesmo que parcialmente) os problemas
propostos.
● Pesquisa-novo implícito ​Como segunda condição, os estudantes não podem resolver
totalmente o problema proposto: o objeto de ensino é a ferramenta adequada para
resolver a questão.
● Explicitação-institucionalização local ​Visto que, nas situações de comunicação, os
alunos apresentam várias formas de saber, o objetivo dessa fase é dar um estatuto
de objeto aos conhecimentos que foram utilizados como ferramenta, como condição
para a homogeneização e a constituição do saber da classe, além de situar o saber e
promover o progresso.
● Institucionalização-estatuto do objeto​ Entre os conhecimentos explicitados na fase
anterior, o professor seleciona alguns deles para serem descontextualizados e que
deverão ser retidos pelos estudantes, a fim de serem utilizados na resolução de
outros problemas futuramente.
● Familiarização-reutilização numa situação nova ​O docente propõe, nessa fase, que o
conhecimento institucionalizado seja utilizado como ferramenta explícita. O novo
objeto torna-se, então, conhecimento antigo para ser utilizado em um novo ciclo da
dialética ferramenta-objeto.
● Complexificação da tarefa ou novo problema ​Nessa fase, são propostas situações
mais complexas, em que os alunos poderão testar e/ou desenvolver os novos
conhecimentos adquiridos.

Nas três primeiras fases, o estudante tem a responsabilidade de construir conhecimentos,


sendo o professor o mediador do processo. O saber em construção está sendo usado como
ferramenta. O saber é contextualizado, personalizado, temporal. Na quarta fase, o educador
traz para si a responsabilidade de socializar e institucionalizar o saber a ensinar. Esse saber,
usado antes como ferramenta de forma implícita, torna-se objeto a ensinar. É
descontextualizado, despersonalizado, atemporal e socializado. Na quinta e na sexta fases, o
saber ensinado/aprendido é recontextualizado, repersonalizado em novas
situações-problema.

É importante que o professor tenha claro o fato de o ensino ser submetido a vários fatores
de difícil controle. Um dos pontos relevantes que ele deve considerar é a existência de um
contexto favorável à construção do saber por parte do aluno.

O contexto tem várias facetas. São elas sociais, cognitivas, situações escolhidas e suas
variáveis didáticas, as interações entre estudantes, as intervenções docentes que se referem
ao contexto escolhido sem alterar o significado da situação e os conhecimentos prévios que
poderão se constituir em obstáculos.

O educador não pode ​vendre la mèche,​ como dizem os franceses. Quer dizer, não deve
entregar o ouro, o que não o impede de fornecer ideias que favoreçam o processo de
aprendizagem da Matemática. Além disso, o docente não deve minimizar a importância do
discurso. De um lado, o que os alunos conversam entre si e coletivamente, analisando a
eficácia das estratégias propostas e formulando os limites dos conhecimentos postos à
prova, assim como as características dos saberes a construir. Do outro lado, o discurso que é
a fala do próprio professor, que pode apresentar propostas e desempenha um papel central
no processo de institucionalização.

Resumo

Na expectativa de facilitar a compreensão dos conteúdos matemáticos ou de tornar as


atividades atrativas para os alunos, alguns educadores investem em situações-problema
contextualizadas, que têm a ver com o cotidiano. Mas elas nem sempre são necessárias e,
por vezes, até atrapalham. Na verdade, para aprender e saber Matemática, é preciso que o
professor ensine a turma a usar ferramentas (como teoremas) para resolver problemas e
interpretar novas questões.

Referências bibliográficas

● ALMOULOUD, S. Ag. Fundamentos da didática da Matemática. Curitiba: UFPR, 1997.


● BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica II. Guia de livros
didáticos, PNLD/2011. Brasília: MEC/SEF, 2010.
● BRASIL. Secretaria do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais -
Matemática - 5ª a 8ª séries. Brasília: MEC/SEF, v. 3. 1998.
● BROUSSEAU, G. ​La théorie des situations didactiques (Cours donné lors de
l'attribution à Guy Brousseau du titre de docteur honoris causa de l'Université de
Montréal)​. 1997. (Acessado em 8/9/2013).
● DOUADY, R. Ingénierie didactique et évolution du rapport au savoir. Une chronique
en calcul mental, un projet en algèbre à l'articulation collège-seconde. Repères IREM
n° 15, avril 1994, Topiques Éditions.
● DOUADY, R. L'ingénierie didactique: un moyen pour l'enseignant d'organiser les
rapports entre l'enseignement et l'apprentissage. Cahier DIDIREM Université de Paris
VII, 1993. v.191.

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