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A ESQUERDA AUSENTE

CRISE, SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, GUERRA


LOSURDO
DOMENICO
A ESQUERDA AUSENTE
CRISE, SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, GUERRA

Tradução:
Maria Lucília Ruy

2ª Edição

São Paulo
2020
Título original: La sinistra assente - Crisi, società dello spettacolo, guerra
copyright@2014 by Carocci Editore

Todos os direitos em língua portuguesa, para o Brasil, reservados à


Fundação Maurício Grabois

Produção: Fundação Maurício Grabois / Editora Anita Garibaldi

Coordenação da primeira edição: Augusto César Buonicore (in memoriam)

Coordenação da segunda edição: Cláudio Gonzalez

Tradução: Maria Lucília Ruy

Revisão: Maria Lucília Ruy e Bruna Sanches Ruy

Projeto gráfico, diagramação e capa: Cláudio Gonzalez e Laércio D’Ângelo

Administração: Laércio D’Ângelo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

L881e Losurdo, Domenico

A esquerda ausente: crise, sociedade do espetáculo, guerra /


Domenico Losurdo ; traduzido por Maria Lucília Ruy. - 2. ed. - São
Paulo, SP : Anita Garibaldi ; Fundação Maurício Grabois, 2020.
376 p. ; 15,5cm x 23cm.

ISBN: 978-65-990905-8-5

1. Ciências políticas. 2. Capitalismo. 3. Colonialismo. 4. Domenico


Losurdo. 5. Comunismo. 6. Democracia. 7. Esquerda. 8. Política. 9.
China. 10. EUA. 11. Ocidente. I. Ruy, Maria Lucília. II. Título.

CDD 320
CDU 32
2020-2591

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático:


1. Ciências políticas 320
2. Ciências políticas 32

CONSELHO EDITORAL
Ana Maria Prestes Augusto Cesar Buonicore (in memoriam) Cláudio Gonzalez
Fábio Palácio de Azevedo Fernando Garcia de Faria João Quartim de Moraes
Júlio Vellozo Manuela D’Ávila Mariana de Rossi Venturini Nereide Saviani
Nilson Araújo Nilson Weisheimer Osvaldo Bertolino
Recordando com saudades
as apaixonadas discussões
com meu irmão Vito Luigi
SUMÁRIO
11 Entrevista

23 Prefácio
Alento para uma esquerda presente e lúcida | Walter Sorrentino

33 Introdução

1. Ataque ao Estado de Bem-Estar Social, barbárie


neocolonial, guerra. O Ocidente e a esquerda ausente

1.1. Declínio de uma “grande divergência” e ascensão de


41 uma outra
1.2. O Estado de Bem-Estar Social: dois séculos de luta de
45 classe
48 1.3. “Não existe sociedade, só existem os indivíduos”
52 1.4. O grande assalto: de 1989 aos dias atuais
55 1.5. Guerra e retorno da “sociedade”
58 1.6. Iraque, Líbia, Síria: uma destruição após outra
1.7. Um fundamento do Ocidente, da opressão das
61 mulheres e da “nova escravidão”
1.8. O retorno das “mulheres de consolo” e da escravidão
64 sexual
1.9. Rumo a uma nova grande guerra? O fantasma de
68 Hiroshima
1.10. O neoliberalismo (econômico e político), o
72 neocolonialismo e a esquerda ausente

2. O mundo capitalista-imperialista como “mundo livre”?

81 2.1. Miséria em massa e prisão em massa


84 2.2. Unipartidarismo competitivo e retorno da
discriminação censitária
89 2.3. “Kill list” (Lista de morte) e crise do Estado de Direito
2.4. A aniquilação do rule of law (Estado de Direito) nas
93 relações internacionais
95 2.5. Democracia ou Império?
100 2.6. “O poder absoluto corrompe de modo absoluto”

7
SUMÁRIO
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

3. Sociedade do espetáculo, terrorismo da indignação e


guerra

107 3.1. Da produção das ideias à produção das emoções


113 3.2. Consolidação e cumplicidade do Ocidente
3.3. Comoção pelos recém-nascidos e desencadeamento
118 da guerra
120 3.4. Psywar, Revolution in Military Affairs, Internet Wars
3.5. Da sociedade do espetáculo ao espetáculo como
126 técnica de guerra
136 3.6. Seleção e direcionamento da indignação
3.7. “Evidência” da imagem e uso soberano das
142 categorias
148 3.8. As duas funções bélicas da sociedade do espetáculo
151 3.9. Hollywood e a nação moral por excelência

4. De Truman até 1973, e de 1989 aos dias atuais. Duas ondas


de golpe de Estado

155 4.1. Um terrorismo da indignação ligado ao passado


160 4.2. O “despotismo iluminado” na Praça Tienanmen
164 4.3. Guerra Fria e primeira onda de golpes de Estado
4.4. A partir de 1989: a segunda onda de golpes de
167 Estado
174 4.5. Belgrado 2000: da guerra ao golpe de Estado
4.6. Teerã – 1953 e 2009: um golpe de Estado bem-
178 sucedido e outro malogrado
180 4.7. Da ditadura militar ao “protetorado democrático”
4.8. Plutocracia, democracia, democracia nas relações
184 internacionais

5. A construção do universalismo imperial

5.1. Do protecionismo comercial e ideológico ao


189 imperialismo do livre comércio e dos direitos humanos
5.2. O Ocidente do politeísmo ao monoteísmo dos
192 valores
195 5.3. Calendário sagrado e controle da memória histórica

8
SUMÁRIO

199 5.4. A destruição da identidade dos possíveis inimigos


5.5. Autocelebração e promoção da autofobia no campo
205 inimigo

209 5.6. O silogismo de guerra do “universalismo” imperial


215 5.7. Universalismo e etnocentrismo exaltado?
222 5.8. Fervor democrático e cínica Realpolitik
228 5.9. “Universalismo” ou “excepcionalismo”?

6. Do colonialismo ao neocolonialismo: descontinuidade e


continuidade

231 6.1. Uma luta de longa duração


6.2. A terceira etapa do confronto entre colonialismo e
236 anticolonialismo
239 6.3. Um neocolonialismo econômico-tecnológico- judicial
6.4. Da “filantropia + 5%” do Império britânico aos
246 “valores e interesses” dos EUA

250 6.5. Missionários, ONGs e redução da Carta dos Direitos


6.6. As ONGs e a deslegitimação da revolução
255 anticolonial
260 6.7. O Prêmio Nobel pela paz e o Império
263 6.8. A extraterritorialidade dos cristãos aos “dissidentes”
6.9. Um olhar laico sobre os “mártires” da religião civil
266 dos direitos humanos

272 6.10. Da “dissidência” ao “colaboracionismo”

7. Contrarrevolução neocolonial e “pivot” antichinês

277 7.1. Os EUA e a China


7.2. Um país muito grande para não querer o
283 desmembramento
289 7.3. Os mutáveis alvos da Cruzada democrática
7.4. Um ataque à China pela direita e pela esquerda: uma
293 estratégia consolidada
7.5. Mutilação da Carta dos Direitos e relançamento da
296 Cruzada

9
SUMÁRIO
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

8. Entre esquerda imperial e esquerda populista e anarcoide.


A situação no Ocidente

8.1. Cínicos e boas almas: uma divisão conflituosa do


301 trabalho
305 8.2. Terrorismo da indignação e capitulação da esquerda
308 8.3. Do “cristianismo imperial” à esquerda imperial
312 8.4. A hegemonia exercida pela esquerda imperial
8.5. “Miséria socializada” ou Estado de Bem-Estar Social?
316 Harvey e a China de Deng
8.6. A esquerda radical, Žižek e a deslegitimação do
326 Estado de Bem-Estar Social
8.7. Latouche e a deslegitimação da luta contra o
334 neoliberalismo e o imperialismo

341 8.8. Nos rastros de Hayek: Foucault e a esquerda


346 8.9. Movimento real e teoria: um divórcio desastroso

Conclusão

O novo quadro mundial, os crescentes perigos de guerra


351 e a dispersa esquerda ocidental

Referência bibliográficas
359

10
entrevista
A ESQUERDA AUSENTE E A GUERRA PRESENTE

Em março de 2017, Domenico Losurdo esteve em São Paulo para par-


ticipar do seminário “100 anos da Revolução Russa e 95 do PCdoB”.
Por ocasião desta visita ao Brasil, Losurdo também lançou a edição
brasileira de A Esquerda Ausente e concedeu entrevista à revista Prin-
cípios. Publicamos a íntegra da entrevista nesta segunda edição de A
Esquerda Ausente – em substituição à apresentação do autor à primei-
ra edição. A entrevista traz análises que ajudam a contextualizar, com
elementos mais atuais, as reflexões apresentadas por Losurdo neste
livro. Participaram da entrevista Walter Sorrentino, vice-presidente
do PCdoB; Fábio Palácio, professor do Departamento de Comuni-
cação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e atual
editor da revista Princípios; Cristiano Capovilla, professor de Filosofia
da UFMA e Osvaldo Bertolino, jornalista e escritor.

Confira a entrevista completa:

O senhor faz uma distinção sobre o comportamento da esquerda


entre a resistência ao neoliberalismo e ao neocolonialismo.
Como é isso?
Domenico Losurdo - Há uma reação ao neoliberalismo. Pode ser
considerada insuficiente, mas há. Há uma reação contra o desman-
telamento do Estado de Bem-Estar Social. Enquanto, ao contrário, no
que diz respeito à resposta ao neocolonialismo, às guerras neocolo-
niais, essa resposta é muito mais fraca e, na verdade, muito artificial.
Na Itália tivemos um grande escândalo, no sentido político do termo,
quando houve a guerra contra a Líbia em 2011, precisamente cem
anos depois da guerra que a Itália liberal fez contra a Líbia em 1911.
E foi uma horrível guerra colonial.
Comunistas dignos desse nome, e outros democratas dignos
desse nome, relembrando essa guerra infame deveriam resistir a esta

11
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nova guerra. No entanto, isso não aconteceu. Em 2011 o presidente


era Silvio Berlusconi, que hesitava em fazer a guerra. Nessa circuns-
tância, interveio Susanna Camusso, então secretária-geral da Confe-
derazione Generale Italiana del Lavoro (Confederação Geral Italiana
do Trabalho), a entidade mais forte dos trabalhadores, com uma tra-
dição gloriosa, a favor da guerra. É uma entidade que por um longo
tempo teve forte influência do Partido Comunista Italiano. Susanna
Camusso criticou Berlusconi por hesitar em fazer a guerra. E Berlus-
coni participou dessa guerra infame. Esta é a “esquerda ausente” de
que falo.
A esquerda condena o neoliberalismo, mas podemos dizer que
às vezes de maneira fraca, insuficiente, e às vezes não chega a se en-
volver. Isto é: há uma certa resistência em relação ao neoliberalismo,
contra a política de desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social,
mas a esquerda não compreendeu o neocolonialismo. Não apenas
não o condena, mas muitas vezes o apoia de modo explícito. Mesmo
hoje uma certa esquerda apoia a guerra contra a Síria.
Não, a esquerda hoje continua surda diante da questão colonial.
Se alguém toma posição a favor da Síria é acusado de ser amigo de
um ditador cruel, sanguinário. Não se dá conta de que aquela guerra
não é civil. É uma guerra neocolonial. Muito antes de ter eclodido
os tumultos na Síria, eu li textos dos neoconservadores estaduniden-
ses dizendo que o presidente Bashar al-Assad deveria ser derrubado
porque era inimigo de Israel e do Ocidente.
Uma guerra neocolonial que primeiro foi conduzida como ma-
nobra de desestabilização e agora com intervenções militares. A Rús-
sia é o único país que interveio de acordo com o governo sírio e sob
a sua supervisão, enquanto os Estados Unidos, a Turquia e a Arábia
Saudita intervêm a seu modo, pisoteando descaradamente o princí-
pio da soberania nacional.

Quando se fala em esquerda, não existe nuances nesse conceito?


Domenico Losurdo – Há nuances, claro. Para compreender como é
grave a situação, se pegarmos uma força como a Refundação Comu-
nista, na qual existem verdadeiros comunistas, vemos que é muito
hesitante na defesa da Síria contra essa guerra infame neocolonial.

12
ENTREVISTA

Portanto, quando me refiro à esquerda em geral nós devemos manter


separadas as forças autenticamente comunistas que tenham presen-
tes os ensinamentos leninistas. Mas estas são minoria. Ao passo que
existem forças que participam da luta contra o neoliberalismo — e
por isso, pelo menos desse ponto de vista, podem ser consideradas
de esquerda —, mas não participam de forma alguma da luta contra
o neocolonialismo — e, deste ponto de vista, trata-se de uma falsa
esquerda.

No caso da China trata-se de uma guerra mais de sentido comercial?


Domenico Losurdo - Logo depois do triunfo obtido na Guerra Fria,
o Ocidente julgava poder impor uma globalização, com os Estados
Unidos exercendo hegemonia absoluta. O historiador britânico Niall
Ferguson diz que quando a China iniciou a política de reformas e de
abertura, a política de Deng Xiaoping, no final de 1978, os Estados
Unidos esperavam poder transformar a China em uma imensa semi-
colônia. A divisão do trabalho que os Estados Unidos imaginavam
era a que eles manteriam o monopólio da alta tecnologia, de traba-
lhos mais avançados e trabalhos qualificados, enquanto a China seria
um imenso mercado.
As coisas ocorreram de modo diferente, porque a China se de-
senvolveu muitíssimo também no plano tecnológico. Na verdade, a
China quebrou o monopólio ocidental da alta tecnologia. Devemos
reverenciar esse fato. Ele é um desfecho da revolução anticolonial.
No entanto, é claro que do ponto de vista do capitalismo monopo-
lista estadunidense e ocidental esse é um fato negativo, porque se vê
que as relações de força no plano econômico estão se modificando de
modo radical.
Daí a manifestação de Donald Trump, que disse pretender fazer
os Estados Unidos restabelecerem o primado econômico, militar e
tecnológico no mundo, sobretudo em relação à China. Trump decla-
rou que quer desencadear uma guerra comercial contra a China. Na-
turalmente sabemos que as guerras comerciais podem se transformar
em guerras militares.
Por um período considerável de tempo, uma parte da burgue-
sia monopolista estadunidense era contrária a uma política de guerra

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A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

aberta contra a China, porque ganhava com os investimentos naquele


país. Agora, ela está assumindo uma atitude mais antichinesa por-
que, ao contrário de quando a China exportava produtos de baixo
valor tecnológico, exporta celular, trem de alta velocidade, possui
os computadores mais velozes do mundo. É claro que o quadro está
mudando radicalmente.

Como o senhor avalia as divisões na classe dominante dos Estados


Unidos, bem visíveis nas recentes eleições presidenciais?
Domenico Losurdo - As profundas divisões que estão se manifestan-
do dentro da classe dominante estadunidense não são entre o partido
da paz e o partido da guerra. Por exemplo: Trump não foi criticado
por querer aumentar o orçamento militar. Por isso, no que se refere
à política de rearmamento a classe dominante é fundamentalmente
unida. Ela acredita que os Estados Unidos deveriam fazer uma polí-
tica de reconciliação com a Rússia de modo a poder isolar e combater
melhor a China. Há um setor que tem insistindo mais na política de
regime change (mudança de regime) para derrubar Putin, repetindo
a operação que o Ocidente já fez na Ucrânia, e desse modo colocar as
mãos sobre o imenso patrimônio energético da Rússia e isolar tam-
bém no plano econômico a China. É uma discussão entre militaristas,
entre belicistas.
É ilusão achar que Hilary Clinton representava uma alternativa
pacífica em relação a Trump. Grande parte da classe dominante esta-
va com Hillary Clinton. Cito precisamente o magnata George Soros.
Ele foi certamente o maior financiador dela e aquele que realizou a
operação de regime change na Ucrânia e queria organizá-la também
na Rússia. Porém, não diria que toda a oligarquia financeira de Wall
Street estava com Hillary Clinton. Podemos dizer que a maior parte
sim. Mas, em suma, a divisão da classe dominante estadunidense ca-
racteriza também a oligarquia financeira.

É possível falar em redescoberta da questão nacional na Europa,


agora com o Brexit na Inglaterra?
Domenico Losurdo - Hoje quem quer defender a independência
nacional de um país como a Itália, Espanha, França, e mesmo a Ale-

14
ENTREVISTA

manha deve lutar em primeiro lugar contra os Estados Unidos e a


Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Sem essa luta
não há nenhuma redescoberta da questão nacional. O Brexit certa-
mente não representa uma redescoberta da questão nacional por-
que, com ele, a Grã-Bretanha se une ainda mais aos Estados Unidos.
De qualquer modo, eu dei como exemplo países como a Itália, mas
poderiam ser também outros países da União Europeia (UE), que
apenas correm o risco de servirem de bucha de canhão para o impe-
rialismo estadunidense.
A Itália não é uma semicolônia da UE, mas dos Estados Unidos.
Corre o risco de ser afetada por uma catástrofe nuclear por culpa dos
Estados Unidos e não de outros países da UE. Podemos condenar a
UE; no entanto, o perigo principal para a independência nacional da
Itália vem dos Estados Unidos. As bases militares na Itália são con-
troladas pelo Estados Unidos. Os jornais burgueses escrevem que se
Estados Unidos conduzirem uma política de guerra contra a Rússia,
da Itália sairão os aviões e haverá resposta bombardeando as bases
norte-americanas naquele país.

Pode-se dizer que a democracia perdeu vigor nesse processo?


Domenico Losurdo – O esvaziamento da democracia está se mani-
festando de várias formas. No livro A esquerda ausente, por exem-
plo, eu digo que até mesmo diversos intelectuais burgueses estão
escrevendo, inclusive no jornal The New York Times, que agora nos
Estados Unidos a democracia está sendo substituída pela plutocracia.
Isto é: pelo domínio do dinheiro, da grande potência econômica e
financeira. No livro A esquerda ausente e em outros livros citei mui-
tas vezes um grande historiador estadunidense que se chama Schle-
singer Jr., que também foi por algum tempo assessor do presidente
John Kennedy. Portanto, fazia parte em suma do mainstream, do es-
tablishment.
Pois bem: esse historiador Schlesinger afirmou que, com o peso
crescente, enorme, do dinheiro na vida política dos Estados Unidos,
nas campanhas eleitorais, principalmente à Presidência da República,
a tradicional discriminação censitária, expulsa pela porta está retor-
nando pela janela. Sabem o que significa a discriminação censitária?

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A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Durante séculos, no mundo liberal, direito de votar e ser eleito era so-
mente para os ricos, os proprietários. Isto é: o monopólio proprietário
dos direitos políticos. Os estratos populares não possuíam políticos.
Schlesinger Jr. disse que essa discriminação censitária está supe-
rada historicamente. Ele não compreende que ela foi superada graças
ao movimento comunista. No entanto, essa discriminação hoje está
representada de uma forma diferente, porque quem quiser se apre-
sentar como candidato se não tiver uma quantia enorme de dinheiro
não pode participar com alguma esperança de êxito. É por isso que
disse esse Schlesinger Jr. que a discriminação censitária, expulsa pela
porta, está retornando pela janela.

A mídia, com a espetacularização da notícia, também contribui para


esse enfraquecimento da democracia?
Domenico Losurdo - No que se refere à espetacularização, Karl Marx
e Friedrich Engels escreveram na obra A Ideologia Alemã que as
ideias dominantes são as da classe dominante. As classes dominan-
tes podem criar uma opinião pública à sua imagem e semelhança.
Portanto, desse ponto de vista retornamos de novo ao tema da pluto-
cracia. Hoje, a grande burguesia não detém apenas o monopólio da
produção material, da produção das ideias, mas também o da produ-
ção das emoções.
Por exemplo: é difundida a imagem de um menino que foi bom-
bardeado — pode ter sido realmente bombardeado ou ser uma farsa
— isolada, que comove e causa indignação. E se desenvolve o ter-
rorismo da indignação. Eis que na Síria foi descoberto um menino
que, ao que parece, teria sido bombardeado por aviões russos. Foi
realmente bombardeado por aviões russos? Foi bombardeado? Com
esse espetáculo do monopólio da produção das emoções se desen-
volve uma grande campanha a favor da guerra. E quem se opõe é
descrito como alguém que não tem sentimentos humanos. Não se
comove pelo menino. Não se comove pela causa da humanidade e,
portanto, é isolado.
É uma velha técnica agora muito aperfeiçoada. Isso já aconte-
cia nos tempos de Bismarck, o chanceler da Alemanha, do império
de Guilherme II, no final do século 19. Quando a Alemanha queria

16
ENTREVISTA

conquistar o império colonial, que até aquele momento não possuía,


Bismarck se dirigiu a seus colaboradores dizendo que seria possível
montar um episódio de crueldade em países africanos ou árabes por-
que na sua base seria formada a indignação da opinião pública para
facilitar a campanha pela guerra.
Bismarck ainda agia com métodos artesanais. Agora, nos tem-
pos da sociedade do espetáculo, essa técnica de inventar episódios de
crueldade do inimigo, ou de agravá-los, se tornou sofisticada e assim
são conduzidas e preparadas as guerras. A espetacularização torna
mais fácil a guerra e a eliminação da democracia. Porque o presiden-
te dos Estados Unidos, por exemplo, pode desencadear uma guerra
sem necessitar nem mesmo da autorização do Congresso Nacional.

Há uma gradação, nessa conjuntura de perigo de guerra, segundo sua


tese de que existem diferenças entre a extrema-direita e a direita?
Domenico Losurdo – Quando se fala de extrema-direita eu conti-
nuo a acreditar que não há um perigo fascista tradicional. Fala-se,
por exemplo, de uma Marine Le Pen como uma fascista. O seu pai é
um fascista declarado, mas não a filha, que quer em primeiro lugar
conquistar posições de poder. Ela não poderia se tornar presidente da
República francesa levando adiante uma política fascista aberta e de-
clarada. Devemos considerá-la fascista? Eu tenho sérias dúvidas. Por-
que o fascismo tradicionalmente foi a promoção da guerra. Qual foi
a análise da Internacional Comunista? Que o fascismo é a parte mais
agressiva da burguesia imperialista, aquela mais declaradamente
empenhada a favor da guerra de expansão.
Então, em que sentido a atitude de Marine Le Pen é muito pe-
rigosa e devemos condená-la? Ela não é de direita liberal. É da di-
reita de um tipo diferente. Não existem apenas a direita liberal e a
direita fascista. É de direita demagógica, que em vez de dizer que
os imigrantes são o resultado da política colonialista do Ocidente,
da França, retrata o quadro de uma Europa invadida pelos estran-
geiros, pelos islâmicos, pelos bárbaros. E naturalmente essa pro-
paganda é muito perigosa, transmite a discórdia, o ódio, inclusive,
nas massas trabalhadoras. Portanto, devemos condenar duramente
tudo isso.

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A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Mas, a meu ver, não é o fascismo tradicional. Marine Le Pen não


toma posições a favor da guerra. E, portanto, desse ponto de vista,
nós devemos ficar atentos. Podemos e devemos condenar Marine Le
Pen, mas sem cair na armadilha, na qual, para condená-la teríamos
que apoiar o “antifascista” François Hollande, que é aquele que faz a
guerra contra a Síria e está pronto a fazê-la contra a Rússia.
A situação é complicada. Como eu disse, no que se refere aos Es-
tados Unidos devemos condenar Trump sem idealizar Hillary Clin-
ton. No que se refere à França, devemos condenar severamente Ma-
rine Le Pen, mas sem dar a patente de antifascista a personalidades
como Sarkozy, como Hollande, que desencadearam guerras infames
no Oriente Médio e que estão prontos a conduzir uma política pelo
menos de “guerra fria” contra a Rússia.

Seria uma direita nacionalista, um fenômeno novo?


Domenico Losurdo – É um fenômeno novo, mas eu sequer usaria a
expressão direita nacionalista, não apenas porque o chamado à na-
ção nesse caso é demagógico, é instrumental, é manipulativo. Não é
nacionalista no sentido de que ela esconde a questão social dizendo
que a miséria dos trabalhadores franceses é somente consequência da
afluência de imigrantes.
É claro que essa é uma campanha infame, que divide comple-
tamente as classes populares. Mas não é o fascismo. A meu ver, se-
ria errado confundir essa direita com o fascismo tradicional. E seria
também perigoso, no plano político, porque corre-se o risco de dar
uma patente de antifascismo a forças reacionárias. Quem é que está
proibindo os comunistas na Ucrânia? É Marine Le Pen ou são, ao con-
trário, os partidos tradicionais no poder?

A esquerda tem responsabilidade nesse fenômeno?


Domenico Losurdo - A esquerda deve fazer autocrítica. Como acon-
teceu de Marine Le Pen levar votos também das massas populares?
Não é culpa também da esquerda? A Europa intervém contra a Rús-
sia com qual ideologia? Dizendo que Putin é contra a democracia.
Se na Europa, digamos, houvesse um partido abertamente fascista,
ela estaria num grande embaraço porque não poderia conduzir a sua

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ENTREVISTA

política de interferência em outros países em nome da democracia.


A Europa pretende interferir no Irã, na Rússia, na China. Sempre em
nome da democracia.
A UE quer desempenhar uma função internacional, pretende ser
a encarnação dos valores da democracia. Hoje o fascismo aberto é
contrário aos interesses da burguesia monopolista europeia. Porque
ela, repito, pretende desempenhar um papel internacional dizendo
ser a democracia. Nos tempos de Benito Mussolini, ao contrário, os
fascistas se arrogavam a ordem, o restabelecimento da autoridade,
e colocariam fim à confusão da democracia. Que sentido tem usar a
categoria de fascismo? Não existe apenas o perigo fascista. Existem
outros perigos. Essa demagogia social terrível que está dividindo a
classe operária e as massas populares.

E qual o papel da Rússia nesse xadrez internacional?


Domenico Losurso - Na conclusão de A esquerda ausente falo muito
sobre a Rússia. Me permito fazer uma crítica a Marx, porque digo
que quando Marx analisa o papel da Rússia em um certo sentido ele
é unilateral. A Rússia é um país complexo. Se examinarmos a sua his-
tória, não apenas destes últimos tempos, mas desde a sua fundação,
ela foi, por um lado, imperialista e expansionista. No entanto, isso é
apenas uma parte da verdade histórica. Porque por muito tempo a
Rússia foi um país que corria o risco de se tornar uma colônia ou uma
semicolônia.
Se pegarmos os inícios de 1600, não governavam os russos, mas
os poloneses. Isto é: não era um país propriamente independente.
A Rússia primeiro sofreu ataques dos cavaleiros teutônicos, depois
foi atacada por Carlos XII da Suécia, por Napoleão, por Adolf Hi-
tler. Estou falando apenas dos ataques principais, porque depois da
Primeira Guerra Mundial também sofreu ataques da Entente, como
é conhecido. Após o fim da Guerra Fria, a Rússia estava passando
por um processo de balcanização. Não perdeu influência apenas nos
países que tinham se tornado independentes: Ucrânia, Geórgia, para
não falar dos países do Leste.
A Rússia corria o risco de desagregar-se, de se despedaçar, de
ter o mesmo fim que a Iugoslávia. Não apenas isso. A Rússia estava

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A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

se tornando uma semicolônia também no plano econômico. Porque


com a privatização selvagem, que tinha ocorrido imediatamente após
a vitória do Ocidente na Guerra Fria, não apenas o povo trabalhador
tinha perdido suas conquistas, mas a nação russa estava para ser ex-
propriada do seu imenso patrimônio energético e mineral.
Putin não é um comunista, sem sombra de dúvidas. Mas se rebe-
lou em nome da defesa dos interesses nacionais da Rússia. Foi quem
devolveu para as mãos da Rússia o seu imenso patrimônio energéti-
co. E assim se iniciou a campanha do Ocidente contra Putin, dizendo
que ele é antidemocrático. No entanto, foi Boris Iéltsin quem bom-
bardeou o parlamento. E o Ocidente não disse que ele era antide-
mocrático, porque estava cedendo o patrimônio energético. Dizem
também que Putin é corrupto. Mas Iéltsin notoriamente era corrupto,
corruptíssimo. Ele transferiu uma infinidade de capitais para a Suíça.
Portanto, a campanha do Ocidente contra Putin é contra um país,
contra um dirigente político que se opõe à neocolonização da Rússia.

Fale um pouco dessa tendência de golpes na América Latina e no


mundo.
Domenico Losurdo – Já faz um que tempo os Estados Unidos são
protagonistas da “revolução” neoconservadora, que conduzem gol-
pes de Estado em nome da democracia. São manobras de desestabili-
zação. Contra Hugo Chávez em 2002 ocorreu um golpe de Estado de
tipo tradicional na Venezuela. Inicialmente foi um golpe de Estado
militar, depois interveio a massa do povo e os golpistas foram obriga-
dos a recuar. Mas os Estados Unidos já tinham reconhecido o golpe.
Agora, são técnicas diferentes.
A praça Tienanmen, na China, o que vocês acham que foi? Eu
escrevo também sobre isso nA esquerda ausente. Foi uma tentativa
de revolução colorida, uma tentativa de golpe de Estado. Cito toda
uma série de autores estadunidenses que dizem que na época das
manifestações ou das insurreições da praça Tienanmen, o embaixa-
dor estadunidense na China, junto com outros embaixadores ociden-
tais, praticamente controlava o território de Pequim. Portanto, a meu
ver, esse perigo de golpe de Estado e de regime change de desestabi-
lização é ainda atual.

20
ENTREVISTA

Até mesmo na Rússia os Estados Unidos não renunciaram ao


projeto de regime change, de golpe de Estado. Não renunciaram à
ideia de derrubar Putin do mesmo modo que derrubaram o governo
na Ucrânia. Mas isso demonstra mais uma vez que o perigo provém
hoje não do fascismo tradicional, mas de formas autoritárias que agi-
tam a bandeira da democracia. E acredito que não devemos descui-
dar do valor da democracia. Devemos dizer que não há democracia
se não houver democratização nas relações internacionais.
O principal inimigo da democracia são os Estados Unidos.
Quando eles se arrogam o direito de desencadear guerras em todos
os cantos do mundo, sem a autorização do Conselho de Segurança
da Organização das Nações Unidas (ONU), fazem a política tradi-
cional do imperialismo. Isto é: arrogam a si mesmos uma soberania
dilatada, enquanto outros países praticamente não têm nenhuma so-
berania, com base nessa lógica de que eles podem intervir em todos
os cantos do mundo.
Desse ponto de vista, lembro de uma das definições que Lênin
sobre imperialismo. Uma definição da qual em particular gosto mui-
to. Lênin deu várias definições sob esse aspecto. Ele disse que o im-
perialismo é a pretensão de algumas poucas nações escolhidas de re-
servar a si mesmas o direito de se constituírem como Estado nacional
independente, negando-o ao restante da humanidade. A lógica do
imperialismo é a da antidemocracia, mesmo quando agita a bandeira
da democracia.
Quando Bill Clinton pronunciou o primeiro discurso como pre-
sidente ele disse que os Estados Unidos são a mais antiga democracia
do mundo e por isso tem a tarefa de comandar o mundo. Seria uma
missão divina. Clinton tinha uma visão singular de democracia. Defi-
nia como a primeira democracia do mundo um país que escravizava os
negros e exterminava os índios. É claro, essa é a democracia dos senho-
res. Uma democracia entendida no sentido racista, pensando apenas
na comunidade branca e excluindo os povos de origem colonial.

E o papel da mídia nessa tendência?


Domenico Losurdo - Quem está tentando restringir a mídia, redu-
zindo a democracia? É o mainstream tradicional. Angela Merkel

21
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

quer adotar, ou já está adotando, severíssimas sanções financeiras


para quem difundir as chamadas fake News (notícias falsas). Somos
obrigados a repensar o problema da democracia na sua radicalidade.
Falamos de plutocracia, de monopólio da burguesia na produção não
apenas das ideias, mas também das emoções. E isso naturalmente
torna frágil o sistema eleitoral. Devemos repensá-la em profundida-
de, reconhecendo ao mesmo tempo os nossos limites.
No passado, os comunistas frequentemente se iludiam, e ilu-
diam os outros, quando diziam que já tinham uma ideia de demo-
cracia completamente diferente que resolveria os problemas dessa
questão. No entanto, a democracia burguesa está em crise no próprio
Ocidente, mas não estamos ainda em condições de apresentar um
modelo alternativo. Devemos reconhecer isso e continuar a estudar
o problema. Reconhecer a profunda crise da democracia burguesa,
mas reconhecer também o atraso nosso em repensar, em desenvolver
um modelo alternativo.

Tradução: Lavínia Clara Del Roio


Revisão: Maria Lucília Ruy
Texto e edição final: Osvaldo Bertolino

22
prefácio
à segunda edição

Alento para uma esquerda


presente e lúcida

Walter Sorrentino*

E
sta segunda edição brasileira do livro de Losurdo – A Esquer-
da Ausente: Crise, Sociedade do Espetáculo, Guerra – se dá num
contexto modificado, em medida significativa com relação à
anterior, datada de 2016 (na Europa originalmente foi editada em
2014). Em primeiro lugar, pela morte inesperada do próprio Dome-
nico, ocorrida num triste dia de junho de 2018. Foi-se um amigo
leal dos comunistas e de toda a esquerda brasileira, com seu jeito
simples, saudável ceticismo e ironia, inclusive quanto a si próprio,
de memória e cultura histórica espantosas. Poucos pensadores des-
se nível se dedicaram à teoria geral do conflito, como a intitulou, com
sua dialética radical que expôs as vísceras do liberalismo e fez uma
adensada crítica ao marxismo ocidental, renovando o arcabouço re-
volucionário marxista.
Não por acaso, sua obra recebeu uma fortuna crítica digna de
merecimento e que não para de crescer. No Brasil, seus livros fo-
ram publicados por diversas editoras, com várias reedições; o que
confirma palavras do próprio Domenico, cheias de graça, ao dizer
várias vezes que ele recebia mais atenção no Brasil do que em seu
próprio país… Medida maior ainda da mudança, Losurdo foi re-
ferência central recentemente, num assunto cheio de repercussão
cultural, pelo fato de Caetano Veloso, poeta-profeta da brasilidade,
admitir ter modificado sua relação com o liberalismo e estar reven-
do posições sobre o ideário socialista após ter conhecido a crítica

23
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

poderosa de Losurdo. A indigência cultural, rasa e abjeta, claro


que fez sobre Caetano uma pesada acusação de querer dar vida a
um tal neostalinismo. Outro fato digno de nota é a homenagem que
lhe prestamos, pela Fundação Maurício Grabois, com a edição de
Losurdo, Presença e Permanência, organizado por João Quartim de
Moraes, aberto com um ensaio de Stefano Azzarà (Editora Anita
Garibaldi, 2020).
Assim, seguem fortes as mensagens losurdianas, em todos os
âmbitos, inclusive nas academias. Muito desse interesse se relacio-
na com a China. A partir de sua perspectiva, compreender a China
hoje é um dever incontornável da esquerda ocidental, perdida em
abstrações e reducionismos, uma esquerda ausente.
Como se sabe, a China é notícia para todos os lados, demons-
trando a quem queira ver que sim, há alternativas ao atual estado
de coisas. O socialismo “fracassou”? Não, o novo sistema, ao con-
trário, está se reformulando em suas bases teóricas e abrindo um
novo ciclo histórico de transição ao socialismo. A China edificou
um laboratório novo, utilizando os grandes aprendizados provin-
dos da derrota da primeira experiência socialista cujo vértice foi
a URSS. E está demonstrando ao mundo que há outros caminhos
bem-sucedidos contra o neoliberalismo senil, sob o tacão do capita-
lismo financeirizado, que leva o mundo a contradições insanáveis,
às crises do liberalismo e da globalização imperialista, às guerras
e agressões de todo tipo; um sistema que veda, às imensas massas
sociais, a apropriação dos efeitos dos grandes desenvolvimentos
tecnológicos da época – ao contrário, pressionando-as a se torna-
rem uma imensa massa de desvalidos que nem sequer terão o di-
reito a ser explorados mediante um salário.
Ainda quanto à China e seu papel geopolítico, não há como en-
tender as lutas de classes, no plano internacional e sua relação com
a questão nacional, em quaisquer de suas manifestações, desvin-
culadas da estratégia norte-americana de uma guerra contínua e
multidimensional contra a China e pela contenção da Rússia (aliás,
em aliança estratégica sólida entre si) – com armas de todo tipo,
de renovada penetração e letalidade –, em disputa do domínio da
ponta tecnológica que definirá em maior medida os contornos do

24
PREFÁCIO

mundo de amanhã em todos os âmbitos da vida política, econô-


mica e social. Um mundo que não será mais da pax americana, cujo
eixo econômico é mais propriamente asiático e em relações inter-
nacionais multipolares.
Numa contribuição marcante, Losurdo faz uma defesa do socia-
lismo chinês como desenvolvimento de uma segunda etapa da luta
anticolonial, ao promover um renascimento nacional sob governo
comunista. Isso se integra a muitas investigações teóricas sobre um
novo tipo de formação econômico-social em construção na China, recu-
perando essa crucial categoria marxista para o entendimento das
totalidades concretas em desenvolvimento contraditório, como é a
vida real – uma dialética radical diante da opacidade do real, e não
uma dialética diáfana que se submete a esquemas (pré)conceituais
estreitos e engessados. No caso, a noção de capitalismo de Estado
ou propriamente um suposto capitalismo. Losurdo é tributário de
uma visão mais complexa sobre a realidade chinesa, e foi alento
para cientistas como Elias Jabbour, no Brasil, e Alberto Gabriele, na
Itália, entre outros.
Não é por acaso que toda a obra de Domenico Losurdo é polê-
mica. Como afirmou Augusto Buonicore, outro gigante intelectual
comunista de nosso país – também falecido em idade precoce dei-
xando-nos muita dor –, “Losurdo desfere críticas contundentes à
subordinação de parte significativa da esquerda ocidental à ideolo-
gia liberal-burguesa, processo que a faz se ausentar da luta contra o
neocolonialismo. Este fenômeno vem se agravando desde a derrota
das experiências socialistas na antiga União Soviética e no Leste
Europeu. A nova esquerda, desprovida de capacidade crítica e in-
ventiva, tornou-se refém do ‘terrorismo da indignação’, produzido
por um poderoso aparelho midiático a serviço da construção da he-
gemonia mundial do imperialismo, especialmente estadunidense.”
Adendo, de minha parte, que essas palavras são ainda mais
agudas quando falamos de identitarismo, enquanto ideário e mes-
mo estratégia política, que acaba por tornar a esquerda prisioneira
de visões liberais, onde a noção de povo é fragmentada, negado-
ra de uma totalidade que precisa ser revolucionada mediante um
programa nacional, democrático e popular. Não é pouco o desvio

25
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

que essa tendência tem imprimido à esquerda ocidental, como a


“fuga ao real”. Enfim, não há como negar o espaço nacional como
espaço primordial de se pensar uma estratégia transformadora re-
volucionária, fazendo a justa combinação entre internacionalismo
e questão nacional.
Neste sentido, ele resgata criticamente que o século 20 foi es-
sencialmente o século das lutas pela descolonização do mundo e
evidencia não haver como ser uma esquerda disposta a revolucio-
nar o atual estado de coisas, presente e consequente, sem captar a
essência deste fenômeno da época, reposta contemporaneamente
como luta antineocolonialista e anti-imperialista. Suposto está, por
evidente, que esse caminho tem duas premissas: precisa estar im-
bricado com uma Nova Luta pelo Socialismo. Nova porque – e este
é o corolário – não há modelo para cada nação abrir caminhos de
transição para o socialismo, ao contrário, cada nação está chamada
a assentá-los no terreno mais profundo de sua própria e particular
formação econômico-social nacional.
Não que Losurdo não leve em conta as contradições de todo tipo
que confluem no sistema social. Muito pelo contrário. Desenvol-
vendo um conceito simples na teoria geral dos conflitos, ele nos
fala das lutas de classes, pluralizadas, incorporando em si não ape-
nas o conflito distributivo dos trabalhadores e a luta pela soberania
nacional – por meio de um Estado nacional suficientemente forte
para assegurar sua auto-determinação –, mas também envolvendo
a luta contra a dependência em ligação com a luta antineoliberal,
pelo desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo, base
para o atendimento das demandas democráticas e sociais de uma
nova ordem social. Nesse espaço interagem as lutas pela emanci-
pação das mulheres, contra o racismo estrutural criado pelo libe-
ralismo histórico, pelas liberdades civis, humanas e individuais, as
questões ambientais e tantas outras que emergem em meio ao atual
estado de coisas. Como bom marxista e leninista que é, ele parte
dessas lutas de classes para alcançar o universalismo de projeto
político alternativo de sociedade, sem traços de positivismo e de
abstrações idealizantes fora dos marcos das relações de classe e de
forças, internas e externas, nacionais e internacionais.

26
PREFÁCIO

Quem conhece a obra de Losurdo sabe do poderoso combate


que ele trava contra as ideias liberais racistas, supremacistas e pa-
triarcais próprias do capitalismo. Ele disseca a modernidade liberal
com profunda bagagem teórica e amplo domínio dos fatos histó-
ricos, com arguta capacidade em lidar com a história das ideias.
Dialético radical que é, vai às raízes do pensamento liberal com sua
crítica implacável.
Estas são considerações da démarche do pensamento de Losurdo.
É necessário reconhecer aí que ele se apropria, e aprofunda, das
contribuições de Lênin e Gramsci, dando-lhes novos desenvolvi-
mentos e aportes.
Este livro é uma peça desse tabuleiro. O mais impressionante
nele é o panorama em grandes traços históricos da luta da esquer-
da do século XIX até hoje, atualizado com uma multiplicidade de
fatos empíricos da opressão capitalista tal como se configuraram
após a Guerra Fria e a débâcle do socialismo, sob a forma de crises,
guerras e sociedade do espetáculo.
Ele aponta para as “grandes divergências” no mundo atual, o
entrelaçamento de dois processos entre si conflitivos: aquele dos
países saídos da dominação colonial e neocolonial, empenhados
na luta pelo desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo
(que alcança sucessos importantes, caso da China, e marca outras
experiências como as de Vietnã, Cuba e Coreia do Norte, cada qual
com suas especificidades e ritmos próprios), que tende a contrastar
e restringir o processo que, por alguns séculos, reservou ao Oci-
dente uma posição de absoluta superioridade em relação ao restan-
te do mundo; e aquele, simultâneo, em que nos países capitalistas
avançados se abre um abismo, a “grande divergência” que separa
do resto da população uma elite opulenta cada vez mais restrita.
O livro argumenta que se constituiu uma nova fase na luta con-
tra o colonialismo e o neocolonialismo, que põe em questão se
terá caráter progressivo ou regressivo quanto à ordem mundial na
atualidade. Aliás, por isso mesmo, o papel e perspectivas da China
têm a centralidade já aludida, contestando o senso comum consolida-
do na esquerda ocidental acerca da estratégia do “socialismo com
características chinesas” e apontando a incapacidade de a esquer-

27
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da levar em conta o fato inconteste, que ela ostenta, de resistir ao


projeto do imperialismo norte-americano no mundo, descortinar
outros caminhos para o desenvolvimento, democratizando a nova
ordem mundial e forjando-a mais equilibrada, por meio do mul-
tilateralismo, e mesmo liderando a fronteira tecnológica mundial.
Esse é o alerta dele contra o estado de desorientação e confu-
são da esquerda ocidental. E estende a crítica a outros inúmeros
aspectos da atualidade mundial, em particular quanto ao fato de
ela dever lutar, sim, pela defesa do Estado social, mas sem promo-
ver, ao mesmo tempo, a difusão da filosofia e ideologia largamente
funcionais ao neoliberalismo. Saberá a esquerda, pergunta ele, dar
sinais de vida, especificamente nos EUA e Europa? (E eu me per-
gunto: e no Brasil?)
São penetrantes, nesta obra, as análises sobre as guerras milita-
res e comunicacionais contemporâneas, o neocolonialismo econô-
mico-tecnológico-judicial, o papel da ideologia liberal da plutocra-
cia, os novos perigos de guerra no quadro mundial e a luta tenaz
entre uma ordem mundial unipolar e multipolar. Desse modo,
Losurdo arma a esquerda contra os ideólogos do liberalismo, de-
nunciando cada desastre que ele provoca contra os trabalhadores,
arrastando povos e nações inteiras à regressão civilizacional, bem
como cada concessão, consciente ou não, que se faça nesse terreno.
Porém, A Esquerda Ausente não é um libelo ao feitio de acusação,
mas de chamado crítico e generoso à esquerda, nos países centrais
do sistema capitalista, instando-a à tomada de consciência, à pre-
sença e à responsabilidade, pois é disto que se trata: uma esquerda
ausente no Ocidente liberal, que se apresenta como patrono da “de-
mocracia” e dos “direitos humanos”, combate por vezes os efeitos
do neoliberalismo, mas não de modo pleno o colonialismo, o neo-
colonialismo e o imperialismo.
Seu chamado crítico é impiedoso: “(...) não possui nenhuma cre-
dibilidade uma profissão de fé democrática que não lute em pri-
meiro lugar pela democratização das relações internacionais [...]
Infelizmente, à pretensão ‘universalista’ do imperialismo continua
a dar crédito a esquerda ocidental que frequentemente apoia as
‘guerras humanitárias’ ou se revela incerta e hesitante em questio-

28
PREFÁCIO

ná-las”. E é irônico, quando afirma, por exemplo, a “amarga verda-


de [de que] se realizada prematura e ingenuamente, a democratiza-
ção de um país pode significar o caminho livre para as manobras
desestabilizadoras e golpistas e permitir o triunfo da ditadura
planetária do imperialismo”. Ou então ao nomear de “cibertontos”
aqueles que levam terrivelmente a sério a propaganda relativa à
“espontaneidade” da internet, sem se darem conta da dimensão
geopolítica da rede.
Evidencia-se que a questão democrática, ou mesmo a social, des-
ligadas de projeto de nação independente, tem se revelado campo
fértil, por um lado, para ilusões sobre as lutas de classes e o caráter
de classe do Estado e, por outro, para a formação de uma nova di-
reita antiliberal, promovendo aventuras neoliberais, representando
uma divisão dos estratos dominantes quanto à forma de manter
sua dominação em meio à realidade senil do capitalismo..
Assim, manejando as três vertentes estratégicas entrelaçadas –
nacional, social e democrática –, ele repõe a centralidade da questão
nacional, dando continuidade contemporânea ao eixo histórico da
luta anticolonial e anti-imperialista e das revoluções socialistas do
século XX, em um novo ciclo de lutas pelo socialismo, para confron-
tar a tendência principal desta época: a globalização neoliberal, o im-
perialismo, a unipolaridade, o monopólio da produção material e da
produção intelectual, os poderes financeiros, midiáticos, culturais,
militares, diplomáticos e políticos de que dispõe. A isso corresponde
a luta pelo desenvolvimento soberano e por fazer dos Estados na-
cionais, sob direção progressista, uma força de contraste com essa
ordem, como se processou (ainda que parcialmente) na experiência
sul-americana nestas primeiras décadas do século XXI. Por que, per-
gunto, deveria-se renunciar ao papel do Estado nacional soberano,
suficientemente empoderado, como força decisiva e indispensável
para combater a maior e mais forte fonte do mal de nossa época?
A esquerda brasileira também está chamada a evidenciar e ul-
trapassar as contradições e os limites da reflexão estratégica das
últimas décadas, não se bastando com formulações táticas, sem
esse referencial maior, para um mundo e sociedades em profundas
mudanças.

29
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O livro termina com estas palavras: “[Não são] insignificantes as


distinções no âmbito da esquerda. No que se refere à política internacio-
nal, é preciso saber distinguir (...) a esquerda já subordinada a posições
neoliberais e a esquerda que, de maneira mais ou menos consequente e
mais ou menos lúcida (nos planos político e cultural), está empenhada na
defesa dos direitos sociais e econômicos. (…) Resta o fato de que, apesar dos
sinais de retomada aqui e ali do movimento comunista e, mais em geral, de
uma esquerda realmente adversária da ordem existente (...), a esquerda no
Ocidente parece caracterizada pela confusão e a dispersão. É uma situação
preocupante que não pode ser superada apenas com a denúncia do opor-
tunismo e mediante os apelos ao rigor revolucionário. Há necessidade, em
primeiro lugar, de uma análise da nova situação mundial que foi criada: se
servir para abrir um debate sobre esse tema crucial, este livro terá alcan-
çado o seu objetivo”.
Não há como deixar de reconhecer que, sim, este livro serve ao
debate, e muitíssimo. O filósofo, cientista, político e homem de ação
Domenico Losurdo, por seu rigor e lucidez, deixa lições, por muitos
anos mais, para a emancipação da humanidade. Sem dúvida, as
reflexões de Losurdo nesta obra estarão presentes nesse esforço dos
brasileiros e dos latino-americanos.
Uma esquerda ausente: a imagem me remete de imediato à ale-
goria poderosa de Paolo Sorrentino em A grande beleza, em que Jep
Gambardella (o excelente ator Toni Servillo), irônico e ácido, numa
cena onírica que se passa nas Termas de Caracalla, se vê diante de
uma girafa que, no instante seguinte, já não mais está lá. Sim, uma
girafa, no país que conheceu o maior partido de esquerda do Oci-
dente até os anos 90 do século XX. Onde está a girafa? Onde está a
esquerda?

São Paulo, 30 de setembro de 2020.

* Walter Sorrentino é médico, vice-presidente nacional do PCdoB,


presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois.

30
A ESQUERDA AUSENTE
CRISE, SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, GUERRA

31
Introdução

Não seria possível encontrar


detalhes horripilantes em episódios
de crueldade?
Otto von Bismarck

Ninguém mente tanto


quanto o indignado
Friedrich Nietzsche

O
futuro historiador não poderá fazer menos do que ex-
pressar a sua surpresa por um fenômeno que caracteriza
a nossa sociedade e o nosso tempo. Por um lado, não é
difícil encontrar em livros, revistas e jornais análises realistas e
cruas da condição atual do Ocidente, dos problemas e dos dramas
do nosso presente. A crise econômica se entrelaça à crise política:
assiste-se – como observam respeitáveis estudiosos – ao exauri-
mento da democracia, que cede lugar ao poder da grande riqueza
e à “plutocracia”. Mas há no Ocidente uma esquerda capaz de
repropor esta análise e esta denúncia e sobre tal base articular um
projeto de luta, e de transformação política do existente? No que
se refere à política internacional, até mesmo órgãos de imprensa
– que de costume não se distinguem por sua coragem – deixam
escapar a admissão do caráter neocolonial assumido pelas mais
recentes guerras desencadeadas pelos EUA e pela Otan no Orien-
te Médio. Diante dos olhos de todos estão os horrores de Gaza
e a tragédia que o domínio e o expansionismo colonial de Israel

33
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

impõem ao povo palestino. E novamente somos obrigados a nos


perguntar: há no Ocidente uma esquerda capaz de se opor a esse
irresponsável descaminho, que já agora dissemina morte e des-
truição, mas que tem incubados em si os germes de uma contur-
bação em escala bem mais ampla?
Em março de 2014, Seymour M. Hersh, um jornalista esta-
dunidense agraciado com o prestigioso prêmio Pulitzer, fez im-
portantes revelações a propósito do recurso às armas químicas
que ocorreu na Síria em 21 de agosto do ano passado: não, os
responsáveis por tal infâmia não foram os governantes daquele
país, mas os “rebeldes” – apoiados pelas monarquias reacionárias
do Golfo Pérsico, aliadas ao Ocidente, e pela Turquia, país-mem-
bro da Otan e protagonista principal da provocação e da ence-
nação – que deveriam ter criado, contra os governantes sírios,
uma onda de indignação em nível mundial e justificado a ação
devastadora dos aviões de bombardeio, cujos motores já estavam
ligados e prontos para entrar em ação contra a Síria. Em agosto
de 2013, homens de Estado, jornalistas, celebridades da socieda-
de do espetáculo, haviam competido para descrever, da maneira
mais tenebrosa possível, o inimigo a ser derrotado. Convém di-
zer que o desmascaramento da mentira encontrou, nos diversos
órgãos de informação, um eco muito mais reduzido que o alarde
da própria mentira: seria melhor não divulgar muito o escândalo;
isso não devia desabonar e envolver uma indústria de mentiras
que sempre pode ser útil para a preparação de futuras guerras. E
novamente a esquerda brilhou com a sua ausência.
Não teve a coragem de formular questões e expor as dúvidas
no momento em que a manipulação se propagava, e não julgou
necessário chamar a atenção da opinião pública para o desmasca-
ramento da manipulação e, mais em geral, para a indústria bélica
da mentira que, apesar de tudo, continua a florescer. De fato, a
esquerda desaparece justamente no momento em que é chamada
a reagir ao processo em curso de polarização social e de maciça
redistribuição da renda em favor da grande riqueza, e de uma
grande riqueza amiúde parasitária; ao ressurgimento das guerras
coloniais ou neocoloniais e ao delineamento de guerras em larga

34
INTRODUÇÃO

escala; à redução e à distorção da esfera pública provocadas pela


“plutocracia” e por uma indústria da mentira mais florescente,
mais potente e mais convincente do que nunca.
Enfim, emergiu com suficiente clareza esse paradoxo, que
precisa ser explicado. Não podemos remeter esta tarefa ao histo-
riador futuro, porque os dramas e os perigos do presente exigem
aqui e agora uma tomada de consciência e de responsabilidade.
Este livro visa a respaldá-la.
Trata-se em primeiro lugar de proceder a um reconheci-
mento do terreno. É um tema examinado no primeiro capítulo.
Mesmo que existam efeitos de alcance planetário, a crise devas-
tadora que ocorre diante de nossos olhos não atinge o mundo
inteiro. Os países que no século XX livraram-se do domínio co-
lonial e neocolonial, nos dias atuais estão empenhados na luta
por autonomia em seu desenvolvimento econômico e tecnoló-
gico, e no curso de tal luta obtêm importantes êxitos – isso pode
ser demonstrado particularmente no caso da China e de outros
países emergentes. Não se compreenderia nada do atual qua-
dro internacional se não se tivesse presente o entrelaçamento
de dois processos entre si contrastantes: a “grande divergên-
cia”, que por alguns séculos reservou ao Ocidente uma posição
de absoluta superioridade em relação ao resto do mundo, tende
a se reduzir e a ser dissipada; ao mesmo tempo, nos países capi-
talistas avançados se abre um abismo: a “grande divergência”
que separa do resto da população uma elite opulenta sempre
mais restrita. Compreende-se, então, que em tal situação o Oci-
dente capitalista reaja sim desmantelando o Estado de Bem-Es-
tar Social e lançando medidas de “austeridade” antipopulares,
mas ainda procurando assegurar ou restabelecer a sua supre-
macia internacional mediante o recurso à guerra, cujo caráter
neocolonial torna-se muito mais evidente e acaba por ser re-
conhecido até mesmo pelos grandes meios de informação. No
decurso dessas guerras neocoloniais, os EUA e a União Euro-
peia não hesitam em aliar-se, no Oriente Médio, com forças rea-
cionárias que escravizam os imigrantes, oprimem as mulheres,
reintroduzem a poligamia etc.

35
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Tudo isso deveria provocar uma reação da esquerda. Mas


– observa o segundo capítulo – o mundo capitalista-imperialis-
ta consegue ainda ser reconhecido como o “mundo livre”. Uma
pretensão que durante séculos é um elemento constitutivo da au-
toconsciência e falsa consciência do Ocidente. Mas hoje mais do
que nunca ela deveria ser desprovida de credibilidade. Além de
não serem colocados em prática, graças à ofensiva neoliberal, os
“direitos sociais e econômicos” sancionados pela ONU são des-
legitimados até no plano teórico. No que se refere aos direitos
políticos, eles são desprezados pela “plutocracia” que progressi-
vamente se impõe no Ocidente: é como se tivesse sido reintrodu-
zida, sub-repticiamente e de forma indireta, a discriminação cen-
sitária que, por séculos, excluiu as classes subalternas da partici-
pação da vida política. Permanecem em pé ao menos os direitos
civis e o Estado de Direito? Toda terça-feira – declara o New York
Times – o presidente dos EUA se reúne com os seus colaboradores
para emitir a “kill list”, ou seja a lista dos suspeitos de terrorismo
a serem “eliminados” pelos drones – como indica a anódina lin-
guagem burocrática. Se, embora raros, nessa lista de morte não
faltam nem mesmo nomes de cidadãos estadunidenses, como
podemos falar em “rule of law” (Estado de Direito)? E principal-
mente: é compatível a profissão de fé democrática do Ocidente
com a sua pretensão de exercer uma ditadura em nível planetário,
reservando-se o direito soberano de desencadear guerras e em-
bargos devastadores mesmo sem a autorização do Conselho de
Segurança da ONU?
A arrogância do Ocidente muitas vezes é grotesca. E no en-
tanto ele continua a exercer uma influência ideológica tão grande
que amiúde chega a cegar a esquerda nos EUA e na Europa. Cer-
tamente genial se revelou Marx quando, à sua época, observou
que o monopólio da produção material é também o monopólio
da produção intelectual. Mas hoje a grande burguesia capitalista
além de basear a sua força no monopólio das ideias o faz também,
e sobretudo, no monopólio das emoções: é este o tema central
do terceiro capítulo deste livro. De que maneira, atualmente, se
programa e se prepara uma guerra? Busca-se, manipula-se ou se

36
INTRODUÇÃO

inventa uma imagem que demonstre a crueldade, a selvageria,


a desumanidade do inimigo a ser atacado ou abatido: por meio
da imprensa, rádio, televisão, internet e das redes sociais, essa
imagem é difundida, obsessivamente reproduzida e, por assim
dizer, bombardeada, em todos os cantos do mundo; e aquele que
se recusa a se alinhar incondicionalmente ao lado do Ocidente
– na guerra que por este esteja sendo desencadeada – revela-se
surdo às razões da moral e cúmplice do Mal. É o terrorismo da
indignação, uma indignação que se pretende moral, mas que na
realidade é, de modo vil, maquiavélica. Graças a ele a sociedade
do espetáculo se configura então como uma mortífera técnica de
guerra.
O terrorismo da indignação desempenha um papel essencial
até nos golpes de Estado, habilmente camuflados como “revo-
luções coloridas”, que promovem a expansão da Otan e do Oci-
dente: mesmo neste caso o momento de viragem é representado
por uma mentira, por uma manipulação ou por uma provocação
chamada a gerar uma onda de indignação moral, necessária para
derrubar o regime odiado ou considerado como um obstáculo
pelos aspirantes a senhores do mundo. O quarto capítulo do li-
vro delineia um balanço histórico dos golpes de Estado ou das
tentativas de golpes de Estado que decorrem na segunda metade
do século XX e no início do século XXI: a primeira onda cobre
mais ou menos os anos da Guerra Fria, a segunda começa com
o delineamento do fim da Guerra Fria; e entre uma e outra onda
não faltam os elementos de descontinuidade, mas ambas têm em
comum a arrogância imperial que não para de se manifestar.
Quer se desencadeiem guerras ou golpes de Estado, o Oci-
dente constantemente legitima a ambos agitando a bandeira do
universalismo dos valores e do livre mercado, um universalismo
que não conhece e não tolera limites estatais e nacionais. A esse
propósito o quinto capítulo deste livro chama a atenção para as
suas colossais mutações ocorridas em relação ao passado. Aque-
le que hoje é um país-guia do Ocidente na segunda metade do
século XIX era o defensor mundial do protecionismo alfandegá-
rio. E o protecionismo afetou também as ideias: ainda nos anos

37
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da Guerra Fria, nos EUA os comunistas eram perseguidos pela


difusão de uma visão de mundo que dirigia um apelo univer-
salista aos proletários e aos povos oprimidos de todo o mundo
e que, com efeito, demonstrou uma extraordinária capacidade
de atração em todos os cantos do planeta, mas que pelas autori-
dades estadunidenses era tachada como alheia à autêntica alma
“americana” e ao “americanismo”. Isso já devia nos fazer des-
confiados em relação à ideologia hoje dominante no Ocidente.
Na realidade, quando uma cultura ou uma determinada civili-
zação pretende ser a encarnação permanente dos valores univer-
sais, ela dá provas não de universalismo, mas sim, ao contrário,
de um etnocentrismo exacerbado. E o etnocentrismo exacerbado
sempre tem servido para desencadear guerras coloniais ou neo-
coloniais em nome da Civilização, da qual o agressor se julga o
representante exclusivo.
Porém, podem realmente ser consideradas neocoloniais as
guerras que, entre o final do século XX e o início do século XXI,
devastaram o Panamá, a Iugoslávia, o Iraque, a Líbia, e continu-
am a devastar a Síria? A esta pergunta responde o sexto capítulo
deste livro, que se empenha em refletir sobre a história secular da
luta entre colonialismo e anticolonialismo e sobre os elementos
de continuidade entre o velho e o novo colonialismo. Em meados
do século XIX, os canhoneiros britânicos dominaram a China, que
não tinha como se defender frente ao fogo inimigo; é a situação
que nos dias atuais se reproduz (a favor dos EUA e da Otan) no
Panamá, nos Bálcãs e no Oriente Médio. Os derrotados, mesmo
quando ocupam o cargo de chefe de Estado, são entregues à Cor-
te Penal Internacional que, no entanto, não pode nem mesmo
indagar sobre o último dos soldados e os contractors (soldados
mercenários) estadunidenses: a dupla jurisdição é um elemento
constitutivo da tradição colonial. Nos dias atuais, a agressão é
conduzida em nome dos “valores” e dos “interesses” ocidentais;
não diferente era a ideologia que guiou as guerras coloniais clás-
sicas. De prepará-las no plano ideológico se ocuparam, no passa-
do, os missionários cristãos que, hoje em dia, cederam esse posto
às Organizações Não Governamentais (ONGs), frequentemente

38
INTRODUÇÃO

controladas, ou influenciadas, por Washington ou por Bruxelas.


Com um olhar mais atento, impressionante se torna a continui-
dade entre colonialismo e neocolonialismo, e no entanto não
deve ser subestimado o alcance das mudanças ocorridas que, seja
como for, têm bastado para desorientar e fazer calar a esquerda
ocidental.
Enquanto se valem da colaboração dos aliados europeus
com o objetivo de consolidar as posições do Ocidente no Oriente
Médio ou em outras partes do mundo, os EUA põem em prática o
“pivot”, o deslocamento do grosso do seu gigantesco aparato mi-
litar em direção à Ásia e ao Pacífico. Foram iniciados a contenção
e o cerco à China. Planeja-se uma nova Guerra Fria, por definição
sempre prestes a se transformar em uma guerra quente e mesmo
em um holocausto nuclear? Mais do que nunca é urgente a luta
pela paz, mas a esquerda que seria chamada a promovê-la cala-se,
mesmo porque não compreende que se trata de uma nova fase do
confronto entre colonialismo e anticolonialismo. Apenas pode ser
representante da causa do anticolonialismo a República Popular
da China, que surgiu da maior revolução anticolonial da história
e que forneceu – e fornece – ao movimento anticolonialista um
contributo essencial: com a teoria da “guerra popular”, tão cara
a Mao Tse-tung, esclareceu o modo com o qual um povo opri-
mido pode desafiar e derrotar uma grande potência; com Deng
Xiaoping, esclareceu que a luta de libertação nacional não é com-
pleta se a independência política não for também acompanhada
da independência econômica.
Depois de ter analisado os problemas e as contradições que
constituem o presente, e de ter constatado a debilidade e a ausên-
cia da esquerda, é preciso proceder a uma reflexão mais sistemá-
tica sobre as razões de tal debilidade e tal ausência. É essa a tarefa
na qual se empenharam o capítulo final deste livro (o oitavo) e
a Conclusão. É bom dizer já que mudanças tão radicais como as
que ocorreram em nível mundial entre 1989 e 1991 só podiam
provocar um efeito de desorientação e confusão. Sim, não poucas
vezes no Ocidente a esquerda, seja aquela moderada seja aquela
“radical”, acaba por se colocar a reboque da ideologia dominante.

39
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O terrorismo de indignação que norteia o desencadeamento das


guerras neocoloniais intimidou sobretudo a esquerda: o papel
que, no século XIX, cabia ao “cristianismo imperial” – que, com
os seus missionários bem-intencionados, preparou o terreno para
o expansionismo colonial –, é agora desempenhado pela “esquer-
da imperial”. No que se refere à luta econômico-social dentro de
cada país, a esquerda que sai em defesa do Estado de Bem-Estar
Social, ao mesmo tempo promove, sim, a difusão de filosofias e
ideologias plenamente úteis ao neoliberalismo.
A crise econômica e política e a degeneração da situação in-
ternacional exigem a superação desse estado de desorientação e
confusão em que se encontra a esquerda. Para isto este livro tem
intenção de contribuir: esta história e crítica da decadência da es-
querda e os desenvolvimentos objetivos, no âmbito interno e in-
ternacional, que favoreceram tal decadência.
As análises desenvolvidas nas páginas que seguem encon-
tram uma trágica confirmação enquanto o volume vai para a edi-
ção: no Oriente Médio balcanizado e devastado pelas guerras se
fortalecem os cruéis grupos islâmicos usados pelo Ocidente para
atacar os regimes de inspiração anticolonialista e laica; em conti-
nuação ao golpe de Estado na Ucrânia e ao ameaçador avanço da
Otan na Europa oriental ocorre a reação russa; o “pivot” dos EUA
transforma a Ásia num paiol de pólvora. Agravam-se os perigos
de guerra sobre os quais fala este livro. Saberá a esquerda dar
sinais de vida?

40
1

Ataque ao Estado de
Bem-Estar Social, barbárie
neocolonial, guerra.
O Ocidente e a esquerda
ausente
1.1. Declínio de uma “grande divergência” e ascensão de
uma outra

E
m comparação à Grande Depressão que irrompeu a partir
de 1929, a crise eclodida em 2008 no Ocidente – mesmo
que em meio a sinais brandos de recuperação e novas per-
turbações, e atingindo de modo desigual e inconstante diferen-
tes países e diferentes áreas –, no geral, não para de manifestar
os seus efeitos: é a calamidade descrita com precisão por Marx,
da qual os apologetas do capitalismo haviam imprudentemen-
te anunciado a superação. A devastação que dela derivou está
diante dos olhos de todos: “No final da década havia 50 milhões
de pobres nos Estados Unidos”, enquanto na União Europeia
havia “120 milhões de pessoas, ¼ da população, com risco de
chegarem à pobreza ou à exclusão social” (GALLINO, 2013, p. 9).
Dado que o Estado de Bem-Estar Social – desde sempre ausente e
ainda hoje debilitado nos EUA – vem se desmantelando na pró-
pria Europa, o número crescente de pobres se encontra cada vez
mais sem uma rede de proteção social. Alastram-se as demissões,

41
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

o desemprego e a precariedade de trabalho. E isso não é tudo.


Entre os próprios ocupados, surge novamente a figura do wor-
king poor (trabalhador pobre), de maneira que a miséria não pou-
pa nem mesmo aqueles aos quais a sorte favorece de encontrar
trabalho. Em Nova Iorque pode até acontecer que uma pessoa
dedicada a dois empregos, com o segundo envolvendo o turno
da noite, seja condenada a um destino como homeless (sem teto)
(RAMPINI, 2013, p. 85-86). Esses duríssimos sacrifícios servem
pelo menos para assegurar um mínimo de mobilidade social aos
filhos? Na realidade:
“A escola pública vem sendo sangrada com uma impetuosa
violência, que até dois líderes democratas como Bill Clinton e
Obama preferiram mandar as filhas a caríssimos colégios parti-
culares. A instrução, que era o caminho principal para o avanço
das classes menos privilegiadas, se torna um instrumento que
perpetua as desigualdades” (IDEM, p. 43).

Na verdade:

“As vítimas de hoje são em grande parte filhos e netos dos mem-
bros da classe operária e da classe média que foram afetadas,
principalmente nos EUA, pela estagnação dos salários ocorrida
desde os anos 1970 (...). Em outras palavras, a crise quando chega
não apenas sempre toca duas vezes, mas quando retorna fica
bem atenta para todas as vezes tocar à mesma porta de antes”
(GALLINO, 2013, p. 11).

Contrariamente aos mitos, não há lugar para a “esperança


meritocrática”; assiste-se na realidade ao triunfo do “capitalismo
patrimonial”, amplamente fundamentado nas dinastias familia-
res e na transmissão hereditária da riqueza (PIKETTY, 2013, p.
221 e 671).
A formação, na parte inferior, de uma espécie de casta here-
ditária dos pobres assinala uma assustadora regressão em curso.
Em todo caso, é o desmantelamento do Estado de Bem-Estar So-
cial, é a aniquilação dos “direitos sociais e econômicos” – mesmo

42
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem


adotada pela ONU em 1948 –, é a degradação social. São por si
só eloquentes as fotos dos gregos, dos espanhóis ou dos italianos
que vasculham lixo em busca de alimento, ou dos sem teto que
nos EUA tentam a todo custo se protegerem do frio. É um proble-
ma certamente não ignorado pela Grã-Bretanha, onde os manifes-
tantes agitam cartazes, que demonstram o dilema diante do qual
se encontra a crescente massa de pobres: eating or heating? Comer
ou se aquecer, ou, para ser mais claro: passar fome ou passar frio?
O sofrimento de qualquer modo é inevitável, e isso vale tam-
bém para o país europeu sobre o qual a crise parece ter um im-
pacto mais limitado. Sim, na Alemanha não há recessão, a econo-
mia avança, mas ao preço de “um índice de trabalhadores pobres
(com um salário 60% menor que o salário médio) que supera os
20%”. No país em que Bismarck, pressionado pelo movimento
socialista, dá os primeiros passos em direção ao Estado de Bem-
-Estar Social, há “mais de 7 milhões de ‘minijobs’ (450 euros por
mês por 15 horas semanais, ainda que complementados com ou-
tros benefícios)”. Quais necessidades podem ser satisfeitas com
esse salário de fome? É um fato: o país europeu considerado mais
favorecido é aquele “com o mais alto índice de desigualdade da
Europa” (GALLINO, 2013, p. 59). E tudo isso em um período his-
tórico caracterizado por um prodigioso desenvolvimento da ciên-
cia e da tecnologia, que na teoria deveria garantir um crescimento
significativo de bem-estar social.
A bem da verdade, com a crise o restrito número de privile-
giados desponta com uma riqueza ainda maior, ou melhor com
uma opulência mais descarada do que nunca. Mesmo que com
orientações diferentes, os analistas parecem concordar em um
ponto: nos países capitalistas avançados as desigualdades estão
aumentando, e a polarização social se intensifica. Dá o que pensar
o título de um livro que saiu recentemente nos EUA: a “grande
divergência” (The Great Divergence) (NOAH, 2012). A categoria
tradicionalmente usada para descrever o processo pelo qual, a
partir de um determinado momento, se verificou uma clara bre-
cha entre o Ocidente mais desenvolvido e o resto do mundo (PO-

43
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

MERANZ, 2004), é agora chamada a ilustrar a “grande divergên-


cia” ou a “grande brecha” em curso no país-guia do Ocidente (e
no Ocidente em geral) – uma divergência cada vez mais aguda
entre a diminuta minoria de privilegiados e a imensa maioria da
população, condenada à insegurança, à precariedade, à miséria,
e mesmo à fome. É como se o Terceiro Mundo, que se restringe
nos países emergentes, e de um modo muito especial na China,
se ampliasse no âmbito dos países até agora mais desenvolvidos.
Para ser mais preciso, nos EUA a polarização social não espe-
rou a crise de 2008 para manifestar-se de modo virulento. Volte-
mos no tempo quatro décadas em relação a essa data e vejamos
o que acontecia em 1969, valendo-nos do testemunho de uma
revista estadunidense de distribuição internacional (“Seleções da
Reader’s Digest”), empenhada na propaganda do American way
of life. “Fome na América” é o título, por si só eloquente, de um
artigo que assim continuou:

“Em Washington, capital federal, 70% dos internados no hospi-


tal pediátrico tinham desnutrição (...). Na América, os planos de
assistência alimentar atingem apenas por volta de 27 milhões de
necessitados (...). Um grupo de médicos, depois de uma viagem
de pesquisa nas zonas rurais do Mississippi, declarou diante da
subcomissão do senado: ‘As crianças que vimos estão perdendo
saúde, energia e vivacidade de modo inconteste. Passam fome
e são doentes, e estas são as razões diretas e indiretas que os
fazem morrer’” (ROWAN, MAZIE, 1969, p. 100-102).

Duas décadas depois, na prática a Guerra Fria estava termina-


da. Os Estados Unidos se preparavam para celebrar um fragoroso
triunfo; ali não teria havido dificuldades para desviar recursos do
setor militar, que se inchou desmedidamente, para o civil. E no
entanto: “O professor Larry Brown, da Escola Pública de Harvard
de Saúde pública, presidente da força-tarefa dos médicos para o
problema da fome, denunciou que há de 18 a 21 milhões de ame-
ricanos que não comem o suficiente. Dentre estes, sete milhões
são crianças” (GINZBERG, 1988).

44
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Façamos um outro salto de vinte anos e assim chegamos à crise


agora em curso. A polarização social se agravou de modo decor-
rente. O editor de finanças do Wall Street Journal em Nova Iorque
observa: nos EUA “1% da população controla mais de 1/5 da ri-
queza do país e 15% do povo vivem abaixo da linha de miséria”
(GUERRERA, 2012, p. 41). Sim, é contra 1% de privilegiados que
protesta o movimento que tem em mira o centro da riqueza e da
especulação financeira: Occupy Wall Street! Trata-se de uma polê-
mica exagerada? Ouçamos outras vozes, também essas dificilmen-
te suspeitas de inclinação demagógica: “Quase ¼ de crianças ame-
ricanas vive em condições de pobreza” (STIGLITZ, 2014). E mais:

“Os 300 mil americanos mais ricos – que não são o famoso 1%,
mas sim uma elite ainda mais restrita: o 0,1% – (...), sozinhos, em-
bolsam uma cota do rendimento nacional que representa mais
da metade da receita ganha por 60% da população da parcela
baixa, isto é por 180 milhões de seus concidadãos” (RAMPINI,
2012, p. 22).

Muitas vezes se fala de retomada, mas quem são os seus bene-


ficiários?

“Os economistas Emmanuel Saez e Thomaz Piketty calculam


que ‘93% dos ganhos da retomada vão para o 1% dos mais ricos’.
Convém deslocar o olhar mais para cima ainda: aqueles que têm
rendimentos anuais acima de 4 milhões de dólares, isto é o 0,01%
dos americanos, arrebataram 37% de todos os benefícios da mi-
niretomada em curso” (RAMPINI, 2013, p. 41).

Se se trata de retomada, ela agrava de modo decorrente a


“grande divergência” que lacera o Ocidente, e agrava, enquanto a
ascensão dos países emergentes reduz, a distância que os separa
dos países capitalistas avançados: o que está acontecendo?

1.2. O Estado de Bem-Estar Social:


dois séculos de luta de classe

45
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O desmonte do Estado de Bem-Estar Social na mesma Europa


ocidental e o aniquilamento dos “direitos sociais e econômicos”
são o resultado característico da crise econômica e das dificulda-
des orçamentárias do Estado? É esta a tese sobre a qual não pa-
ram de insistir o poder e a ideologia dominantes; no entanto, sem
se preocuparem em explicar as razões das crescentes fortunas
de uma oligarquia tanto restrita quanto de rapina. Mas há uma
consideração mais importante: os processos em curso, nos dias
atuais, remetem a um conflito que tem uma longa, longuíssima
história.
No final da Segunda Guerra Mundial, da Inglaterra, onde o
Welfare State (Estado de Bem-Estar) começava a dar os seus pri-
meiros passos, Hayek (1986a, p. 10-11) advertiu: era grave a amea-
ça que pesava sobre as “características essenciais da civilização
ocidental”; estavam em perigo o “individualismo” e o legado não
apenas do “liberalismo dos séculos XIX e XVIII”, mas também –
fazendo um recuo no tempo – de Erasmo e Montaigne, de Cícero
e Tácito, de Péricles e Tucídides! A luta contra o Estado de Bem-
-Estar Social era uma batalha de civilização, ou melhor, olhando
bem de perto, era mesmo uma guerra de religião: o “individua-
lismo” (oposto ao Estado de Bem-Estar Social), muito além do
que na “filosofia da antiguidade clássica”, fincou as suas raízes
também no cristianismo.
Quinze anos depois, um dos dois patriarcas do neoliberalis-
mo (o outro, como veremos, é Ludwig von Mises) retomou sua
investida: era preciso acabar de uma vez por todas com a “de-
mocracia ‘social’ ou totalitária”, revelada na França (e na Europa
continental) já na revolução de 1848, e com a reivindicação, que
nela era reproduzida, do direito ao trabalho (HAYEK, 1969, p. 76
e 79). Nos anos 1970, essa tese foi rebatida: os “direitos sociais e
econômicos”, caros à ONU (uma instituição aos olhos dos con-
servadores sujeita à demagogia do Terceiro Mundo), e a própria
“liberdade de não passar necessidade” e a de viver sem miséria,
teorizada por F. D. Roosevelt, eram apresentados como expressão
da influência catastrófica exercida pela “revolução marxista rus-
sa” (HAYEK, 1986b, p. 310).

46
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Como se vê, ao solicitar a eliminação dos “direitos sociais e eco-


nômicos” (e da “liberdade de não passar necessidade”) da Carta
dos Direitos, Hayek não fazia nenhuma referência a problemas
de orçamento ou de contabilidade econômica. O Estado de Bem-
-Estar Social era profundamente combatido por razões bem mais
nobres: mesmo quando assumia a forma de “democracia ‘social’”,
ele era intrinsicamente totalitário, alheio à civilização ocidental e,
em última análise, sinônimo de barbárie.
A principal responsável por tudo isso foi identificada na Revo-
lução de Outubro. Com efeito, “a Rússia comunista” havia sido
o primeiro país a ter “feito da satisfação das necessidades sociais
fundamentais dos seus cidadãos o desígnio declarado do Estado”.
A fim de responder a esse desafio, a república de Weimar sancio-
nou na Constituição a perseguição do objetivo de uma “existên-
cia digna para todos” (PEUKERT, 1996, p. 54 e 146). E o desafio
comunista repercutiu até mesmo na república norte-americana,
primeiro nas medidas tomadas por F. D. Roosevelt com o fim de
enfrentar a todo custo a Grande Depressão; e depois na teorização
e reivindicação da “liberdade de não passar necessidade”, isto é a
liberdade de viver sem miséria, sem penúria material.
Além da “revolução marxista russa”, Hayek também colocou
em discussão o ciclo revolucionário francês. E, mais uma vez,
acertou no alvo: com efeito, Robespierre (1950-1967, vol. 9, p. 112)
tinha falado do direito à vida como o primeiro entre os “direitos
irrevogáveis do homem”. Não menos interessante havia sido a
resposta ao líder jacobino dada por Sieyès: ampliar a esfera da
política até abarcar a questão social significava transformar a
“res-pública” em uma “res-total”, isto é transformar a república
em uma instituição total ou totalitária (BASTIDE, 1939, p. 17-18).
É a acusação que os neoliberais continuam a dirigir ao Estado
de Bem-Estar Social. Ele remete a uma tradição política maldita
aos olhos da ideologia hoje dominante, ou melhor, o resultado
de uma luta de classes bastante prolongada. Disso estava ciente
Hayek (1969, p. 76) que, ao condenar a “democracia ‘social’ ou
totalitária”, denunciou o nefasto papel dos ouvriers, os operários
franceses protagonistas da revolução de 1848.

47
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Estamos, pois, na presença de uma luta de classe que abrange


mais de dois séculos de história. Imediatamente após o final da
Segunda Guerra Mundial, os protagonistas da construção do Es-
tado de Bem-Estar Social na Europa ocidental “vislumbravam, na
difusão de sólidas formas de proteção social, um meio eficiente
para questionar a influência ideológica e política da União So-
viética” (GALLINO, 2013, p. 209). E por isso, no momento em
que lançou a sua Cruzada neoliberal, Hayek acabou ficando iso-
lado; a sua influência cresceu à medida que diminuía no mundo a
capacidade de atração do movimento socialista e comunista; em
1974, ele recebeu o Prêmio Nobel de economia e se tornou naque-
les anos o inspirador da política econômica de Ronald Reagan
e de Margareth Thatcher. O seu triunfo ocorreria em 1989-1991.
É o momento de viragem: o “Grande Salto à frente em relação à
justiça social”, estimulado pela “revolução bolchevique de 1917”,
ocorria após a “onda ultraliberal” que se desenvolveu “a partir
dos anos 1980-1990” (PIKETTY, 2013, p. 557, 806 e 789). “Quando
a América triunfou na Guerra Fria, parecia não mais existir um
competidor eficaz para o nosso modelo americano” (STIGLITZ,
2014). E mais:

“Com um olhar em retrospectiva, talvez se possa dizer que foi


o ocaso do socialismo que desinibiu o capitalismo e fez com que
seus ideólogos passassem dos belos discursos à uma retórica
mais dura. A concorrência dos sistemas foi dissipada e o capita-
lismo decidiu que não mais devia se preocupar com a sua acei-
tação” (JESSEN, 2011).

1.3. “Não existe a sociedade, existem apenas os indivíduos”

Com efeito, o atual clima ideológico está radicalmente modifi-


cado em relação ao passado. No discurso sobre as “quatro liber-
dades”, pronunciado por F. D. Roosevelt (presidente acusado de
ter-se deixado influenciar pela “revolução marxista russa”) em 6
de janeiro de 1941, foi feito todo um reconhecimento da “supre-
macia dos direitos humanos” e da realização da “liberdade de
não passar necessidade”; mas esta última é então eliminada do

48
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

campo de precaução para ser negligenciada ou retirada até pe-


las organizações estatutariamente empenhadas na proteção e na
promoção dos direitos humanos. Agora os demitidos, os desem-
pregados, os pobres não têm mais ninguém a quem apelar. Ou,
antes, agitando a bandeira da “justiça social” e no encalço “da ilu-
são da justiça social”, eles se revelam como indivíduos afetados
pelo “atavismo” e pela nostalgia da “sociedade tribal”, e são de
alguma forma comparáveis a “pessoas definidas como alienadas”
(HAYEK, 1986b, p. 181 e 358).
Essas pessoas estão obstinadas em dirigir-se à sociedade, e
desse modo demonstram apenas que não entenderam a lição pro-
ferida por Thatcher, então primeira-ministra da Grã-Bretanha,
em outubro de 1987: “Não existe a sociedade, existem apenas os
indivíduos”. Por outro lado, há treze anos antes, um filósofo es-
tadunidense de sucesso havia sentenciado: não existe “uma enti-
dade social”, “existem apenas indivíduos, indivíduos diferentes,
com as suas vidas individuais” (NOZICK, 1981, p. 35). Estamos
em 1974. Difundia-se a guerra contra o Vietnã e nos EUA esta-
va em vigor o alistamento obrigatório: o Estado se revelou uma
“entidade social” tão prepotente a ponto de exigir o risco, e até
o sacrifício, de vida, mas se refugiou na não existência quando
indivíduos ou classes sociais procuravam chamar a atenção para
a sua difícil, ou desesperada, condição.
Os indivíduos aqui focalizados pelo filósofo e pela estadista
não poderiam tentar corrigir, com uma atividade sindical, a con-
dição em que se encontram? O working poor, por exemplo, não
poderia se organizar com o objetivo de granjear salários mais
dignos? Mesmo com esse propósito o quadro não é cor de rosa,
sobretudo o dos Estados Unidos: o número de empregados des-
moronou, principalmente no setor privado, e os causadores des-
se resultado não foram, em primeiro lugar, as “forças imparciais
do mercado”. Os empresários recorrem a meios ilegais, não têm
nenhuma dificuldade em pagar as pequenas multas pecuniárias
previstas para a violação das (tão cheias de lacunas) leis traba-
lhistas (WESTERN, ROSENFELD, 2012, p. 91). De outra parte,
a tornar ainda mais difíceis a organização sindical e o recurso à

49
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

greve, se encontra uma circunstância macroscópica: “Apenas 27%


dos desempregados podem contar com um salário-desemprego.
Isso permite que as empresas ataquem os sindicatos e ameacem
os operários que procuram se organizar (no plano sindical)” (REI-
CH, 2011). Com os seus 1.400 milhão de empregados a grande
cadeia de supermercado Walmart “é nos Estados Unidos a maior
entidade patronal do setor privado. Nenhum é sindicalizado”.
Qualquer tentativa de organização sindical é aniquilada com im-
piedosa eficiência (NOAH, 2012, p. 125). E isso não é particular-
mente difícil para a empresa: “Qualquer trabalhador empregado
aqui nos Estados Unidos é passível de ser demitido a qualquer
hora”. Frequentemente até no emprego público. Pelo efeito dos
cortes de orçamento ao nível dos entes locais (estados e muni-
cípios) vi serem demitidos milhares de funcionários públicos”
(RAMPINI, 2012, p. 17). Sim, um trabalhador é “passível de ser
demitido a qualquer hora”, mas se ele atua no sindicato é como
se tivesse a demissão garantida.
O ativismo antissindical difundido pelos empresários não é
por nada desencorajado pelo poder político: no verão de 1981
Reagan demitiu em bloco 13 mil controladores de voo que tinham
entrado em greve por melhores condições salariais e de trabalho.
O resultado dessa ação de força foi imediato e de grande vulto:
“as greves diminuíram em 2/3 durante os anos 1980 e 1990”. No
setor público, sobretudo em alguns Estados, o sindicato ainda
possui uma considerável presença; e eis então a “coordenada
ofensiva” antissindical lançada pelos governadores republicanos
(WESTERN, ROSENFELD, 2012, p. 91-92).
Não podemos esquecer o papel da ideologia: na sua maioria
os economistas contribuem para o trabalho de deslegitimação
dos sindicatos (IDEM, p. 93-94). Nada de novo sob o sol! O neo-
liberalismo e, em primeiro lugar, os seus dois patriarcas sempre
olharam com hostilidade para os sindicatos, considerados como
responsáveis por nada menos do que o “destruicionismo”. É esta
a acusação formulada por Mises (1927, p. 149; 1922, p. 469 e 460-
461), que não hesitou em alvejar a “proteção legal do trabalho” e a
regulamentação jurídica da jornada de trabalho, recomendada pe-

50
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

los “escritores estatistas”, mas responsáveis por reduzir “a quan-


tidade de trabalho distribuída e o rendimento do processo de pro-
dução econômica”, e por conseguinte responsáveis por promover
uma “política destruicionista”. Mais recentemente, Hayek (1986b,
p. 516 e 518) afirmou ser um “claro dever moral do governo não
apenas evitar de interferir no jogo [do mercado], mas também de
impedir que o faça qualquer outro grupo organizado”, isto é o sin-
dicato. E tão mais justo é atacar este último por uma razão muito
simples: impõem a aprovação de regras que regulamentam o mer-
cado de trabalho exatamente “as organizações dos trabalhadores”
que “exploram outros trabalhadores privando-os totalmente da
oportunidade de um bom emprego”, e impedindo-os de “exercer
o trabalho que gostariam”.
Como se vê, nos EUA a potencial anulação da liberdade de
associação sindical tem por trás de si uma longa história e uma
constelação de nomes ilustres; é apenas o caso de acrescentar que
a crise está provocando dificuldades na vida de vários países da
própria Europa ocidental. No geral, enquanto pioram a miséria e
a insegurança social, torna-se mais difícil impedi-las ou contê-las
por meio da organização sindical.
Se não com a ação sindical, se poderia procurar transformar as
relações sociais existentes valendo-se da liberdade política e das
eleições livres. Mas como estão realmente as coisas a esse respei-
to? Damos a palavra ao New York Times:

“Na terceira quarta-feira de todo mês, nove membros de uma


elite de Wall Street se reúnem em Midtown Manhattan. Eles
compartilham um objetivo comum: proteger os interesses dos
grandes bancos no imenso mercado de derivados, um dos cam-
pos mais vantajosos e mais controversos das finanças. Eles com-
partilham também de um segredo comum: os detalhes de seus
encontros, e até as suas identidades são estritamente confiden-
ciais (...). Na teoria, esse grupo existe para preservar a integrida-
de de um mercado de trilhões de dólares. Na prática, ele defende
o domínio dos grandes bancos”.

51
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

“Dominance of the great banks” (Domínio dos grandes bancos),


e não apenas no âmbito econômico: ocorre levar em conta essa
realidade! As (raras) tentativas do poder político de exercer um
controle, ou pelo menos estabelecer regras claras, vão de encontro
a uma barreira intransponível: no Congresso ela é constituída por
aqueles que na teoria deveriam ser os representantes do povo,
mas que amiúde “receberam dos banqueiros gordas contribuições
para a campanha eleitoral” e por conseguinte se revelam gratos e
prestativos em relação a seus financiadores (STORY, 2010).
Infelizmente, existe o “domínio dos grandes bancos” e, mais em
geral, das grandes fortunas, e isso é tão incontestável e difundido
que um número cada vez maior de observadores e analistas lamen-
ta a dissipação da democracia. Já há alguns anos antes do estouro
da crise, no International Herald Tribune podia-se ler: “Os Estados
Unidos se tornaram uma plutocracia”, enfim se consumou “a toma-
da de posse das instituições governamentais por obra da riqueza de
indivíduos e das sociedades limitadas”, enquanto “o resto da popu-
lação é jogado fora” (PFAFF, 2000). Depois do estouro da crise, a de-
núncia contra a “plutocracia” ou a “plutonomia” (RAMPINI, 2012,
p. 20), se às vezes ecoa na própria Europa (JESSEN, 2011), torna-se
habitual nos Estados Unidos. É uma plutocracia que, nas condições
do atual “capitalismo patrimonial”, sanciona sim o poder da rique-
za – mais exatamente, porém, a riqueza hereditária, aquela que não
tem nenhuma relação com o mérito pessoal (PIKETTY, 2013). En-
quanto impede ou reprime a ação sindical, a “plutocracia” tende a
esvaziar de significado os organismos representativos.

1.4. O grande assalto de 1989 aos dias atuais

Firmes no controle exercido sobre as instituições políticas, as


grandes fortunas e a grande finança revelam-se absolutamente
desprovidas de escrúpulos morais e chegam ao ponto até de es-
magar a própria legalidade. Os manifestantes, tendo amadureci-
do essa opinião, na sua denúncia das especulações desenfreadas
do capital financeiro têm em mira os “bankster”, neologismo que
resulta da fusão de “banker” e “gangster”. Um respeitável jornalis-

52
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

ta e analista não hesitou em escrever: “Os grandes bandidos do


nosso tempo são os banqueiros”. E para quem ainda não tenha
compreendido: o comportamento deles é “de grandes bandidos
no sentido específico da palavra” (RAMPINI, 2013, p. 10).
Não se trata absolutamente de uma voz isolada. Há hoje uma
ampla e respeitável literatura internacional, que soa o alarme
para os malfeitos do capital financeiro ou da “máfia financeira”,
e para a caracterização dos magnatas da finança como “crimi-
nalidade organizada”, empenhada em uma “grande fraude”, ou
melhor em um verdadeiro “crime econômico contra a humanida-
de”. Um ilustre sociólogo italiano (GALLINO, 2013, p. 123-150)
apresenta uma visão geral dessa literatura internacional. Este, na
continuação de sua análise, se refere a advertências, informes e
documentos procedentes de fontes, de certo modo, oficiais:

“Uma empresa especializada em pesquisas sobre fraudes fi-


nanceiras declarou à Comissão [Nacional de Inquérito instituí-
da nos EUA] que eram fraudulentos cerca de um trilhão de dó-
lares de empréstimos hipotecários concedidos de 2005 a 2007
(...). O FBI havia denunciado desde 2004 o surgimento de uma
‘epidemia’ de fraudes financeiras (...).
Aconteceu também que, a fim de estipular o maior número de
empréstimos fraudulentos, os entes financeiros contrataram
legiões de intermediários eventuais: mais de 200 mil começa-
ram um serviço ex novo (novamente) durante o boom, ‘e al-
guns’ – como se lê no relatório – ‘foram tudo menos honestos
nas tratativas com os empregados (...). Entre 2000 e 2007, pelo
menos 10.500, com a ficha criminal suja, entraram em campo
na Flórida, inclusive os 4.065 que anteriormente tinham sido
reconhecidos como culpados por crimes como fraudes, assaltos
a bancos, chantagem e extorsão’” (IDEM, p. 125-126).

Dos EUA passemos para a Europa. É “Jean-François Gayrand,


especialista em fraudes financeiras da polícia francesa”, que fala
de “sistema fraudulento” e de “roubos de grandes proporções”,
concluídos com absoluta tranquilidade:

53
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

“Os autores dessa fraude não se colocaram acima das leis, não
saíram fora do sistema, eles eram a lei e o sistema. Conseguiram
realizar, legalmente (ou quase), uma enorme transferência de ri-
queza (...) das classes pobres e médias para os bolsos dos ladrões
financeiros. Uma parte da oligarquia (quase) legalizou o roubo”
(IDEM, p. 147).

Frequentemente legalizado (mas não sempre), esse colossal


assalto, no entanto, permanece impune. Certamente – comenta
o sociólogo aqui por mim analisado –, “terríveis” consequências
recaíram e recaem sobre as condições de vida e de trabalho de
“dezenas de milhões de pessoas pertencentes às classes operária e
média”; mas, “as leis para chamar os responsáveis para dar conta
disso ou não existem ou são favoráveis aos farsantes porque eles
próprios concretamente as escreveram” (IDEM, p. 148). Pelo que
parece, a plutocracia é ao mesmo tempo uma cleptocracia; o do-
mínio da riqueza tende a ser ao mesmo tempo o domínio de uma
criminalidade financeira organizada!
O grande assalto pode, assim, continuar sem ser importu-
nado. Ele, no entanto, não se iniciou nos anos imediatamente
anteriores ao estouro da crise econômica e não se iniciou nem
sequer no Ocidente. Aproximadamente no final do século XX,
o processo de privatizações selvagens na Rússia pós-soviética,
que consentia a um punhado de privilegiados a literalmente
roubar o patrimônio estatal, foi assim resumido pelo Financial
Times: “Para a maioria do público foi dada uma eficaz imagem
da máxima de Proudhon, segundo a qual ‘a propriedade é um
roubo’” (BOFFA, 1997, p. 71). Essa análise alguns anos depois
foi confirmada por um artigo que apareceu em um respeitável
diário estadunidense: a derrocada da URSS tinha significado a
chegada de “um sistema de fraudes, rapina, confisco e apropria-
ção de recursos públicos” por obra de “oligarcas” muitas vezes
ligados a “forças criminosas internacionais” e decididos a pôr
as mãos até no poder político. Um desses oligarcas, Boris Bere-
zovsky, não escondia as suas ambições: “Por toda parte a demo-
cracia é o governo da grande finança” (PFAFF, 2005). Iniciada na

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Rússia e na Europa oriental (até na Ucrânia o empobrecimento


em massa acompanhou pari passu o escandaloso enriquecimento
dos cleptocratas colocados seja no governo seja na oposição),
mais do que nunca irrompe no Ocidente a desforra do privilé-
gio, e do privilégio mais parasitário; os oligarcas russos equi-
valem aos plutocratas estadunidenses e europeus, que de fato
também exercem o poder político.

1.5. Guerra e retorno da “sociedade”

Declarada inexistente pela senhora Thatcher e pela ideologia


dominante, a “sociedade” (ocidental) não se cansa de desenca-
dear uma guerra após outra em nome da segurança e dos valores
da sociedade ocidental, da “comunidade internacional”, da hu-
manidade enquanto tal. As entidades metaindividuais desapare-
cem quando se trata de deslegitimar os movimentos de protesto
contra as relações sociais vigentes e, portanto, contra a sociedade
existente, mas rapidamente retornam a ser vitais, ou melhor im-
prescindíveis, quando se trata de legitimar os bombardeamentos
e as guerras. Ao convidar os seus concidadãos mais desafortuna-
dos a culparem apenas a si mesmos, Thatcher negou a existência
da sociedade (e da nação), como fez de um modo particularmen-
te vigoroso na declaração de 1987. Mas de uma maneira bem di-
ferente ela havia se manifestado cinco anos antes, para ser exato
em 14 de abril de 1982, quando foi desencadeada a guerra das
ilhas Falkland (Guerra das Malvinas): era necessário fazer valer
as razões de uma nação por séculos conhecida como símbolo da
liberdade e por conseguinte com uma história sobre os ombros
com que “nenhuma outra nação no mundo podia se vangloriar”.
Eis que, quando se tratou de não concretizar, ou levar a sério, os
direitos sociais e econômicos, mas de apelar para o sacrifício, e
até para o sacrifício da vida, a nação, a sociedade, irrompeu no-
vamente em cena – e se tratava não da nação, ou da sociedade,
constituída apenas pelos contemporâneos do primeiro-ministro
inglês, mas da nação, ou da sociedade, em sua existência pluris-
secular.

55
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Essa contradição não é exclusiva de Thatcher, mesmo que


com ela tenha assumido uma forma particularmente estridente.
Em nenhum país a retórica do individualismo foi tão difundida
e alastrada como nos EUA. Mas depois, todos, democratas ou
republicanos que seja, se submetem ao culto à única “nação in-
dispensável”, segundo o preceito divulgado por Bill Clinton em
1997, ou da “nação escolhida por Deus”, conforme o preceito tão
caro em particular a Bush Jr. Parecia que existiam apenas os indi-
víduos, mas agora as diferentes sociedades e as diferentes nações
ressurgem com uma tal consistência e uma tal firmeza para serem
posicionadas em uma ordem hierárquica. E se trata de uma ordem
hierárquica consagrada por Deus e que não pode ser modificada
pela vontade e pelos méritos ou inaptidão de cada um dos indi-
víduos deste ou daquele país. Exatamente enquanto “indispensá-
vel” e “escolhida por Deus”, a nação americana ou estadunidense
tem o dever, colocando-se no comando do Ocidente, de garantir o
respeito aos valores universais em todos os cantos do mundo, se
necessário fazendo uso de armas e de guerras mesmo sem a auto-
rização do Conselho de Segurança da ONU.
Veremos que, em relação às últimas guerras, quem promove o
espectro do colonialismo ou do neocolonialismo são insuspeitos
autores e órgãos de imprensa ocidentais. Por ora convém con-
centrar-se no exemplo da Líbia. Quantas vítimas provocou uma
guerra que, aliás, “não levou os líbios à ‘libertação das garras do
tirano’, mas criou o enésimo Estado falido, nas mãos de bandos
armados” e do “extremismo islâmico”? (PANEBIANCO, 2013).
Para responder a essa pergunta damos a palavra a um filósofo
de renome internacional: “Hoje sabemos que a guerra fez pelo
menos 30 mil mortos, em oposição às 300 vítimas da repressão
inicial”, executada pelo regime que a Otan estava determinada
a derrubar (TODOROV, 2012). É necessário acrescentar que a re-
pressão atacou uma revolta, que certamente tinha bases até endó-
genas, mas à qual não eram nada estranhos os serviços secretos
ocidentais, a começar daqueles enviados pelo governo de Lon-
dres, os quais – como revelou a imprensa britânica mais respeitá-
vel – já havia um certo tempo se propunham assassinar Gaddafi,

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

recorrendo a qualquer meio (cf. mais adiante, § 3.7). E, de fato, a


guerra sangrenta de 2011 – desencadeada enquanto não poucos
países, sobretudo da África e da América Latina, pressionavam
por uma conferência internacional e pela busca de uma solução
pacífica – foi terminada com o linchamento de Gaddafi e com o
ultraje ao seu cadáver.
Ao saber dessa notícia, Hillary Clinton alegrou-se descome-
didamente. Imitando o célebre “vim, vi, venci” de Júlio Cesar e
acrescentando um toque de brutalidade ao original, a então se-
cretária de Estado gritou: “viemos, vimos, ele morreu!” (we came,
we saw, He died!). Questionada por um repórter, que presenciou o
desabafo, se sua visita a Trípoli teria alguma coisa a ver com o fim
de Gaddafi, a senhora respondeu orgulhosa: “Estou segura de que
sim”. Algum tempo depois, em um programa de televisão, um
jornalista da Fox News perguntou-lhe se por acaso ela lamentava o
seu comentário imperial feito anteriormente, já que o assassinato
do líder líbio havia sido declarado como um “crime de guerra” por
estudiosos de direito. O jornalista foi obrigado a repetir a pergun-
ta, mas a única resposta que chegou a receber foi: “Não pretendo
comentar”. O significado da guerra e do seu fim, por conseguinte,
estava claro. O noticiário da Fox News tinha como título: “Obama
empunha um outro escalpo” (FORTE, 2012, p. 130-131).
No entanto, seria equivocado perder de vista o papel essen-
cial desempenhado pelos serviços secretos franceses no crime de
guerra do qual se fala aqui. Damos a palavra ao Corriere della
Sera: “É um segredo de Polichinelo o fato de que em Paris que-
riam eliminar o Coronel”; e então o presidente Nicolas Sarkozy
estava decidido a evitar a todo custo que se viesse a saber dos
maciços financiamentos eleitorais a ele encaminhados pelo “di-
tador” (CREMONESI, 2012a). Por conseguinte, aquele que tinha
sido talvez o defensor mais zeloso da “guerra humanitária” era
na realidade o principal beneficiário dos petrodólares do “dita-
dor”, antes recebido com todas as honras no Élysée e depois le-
vado a calar-se com uma regulamentação das contas privadas
e, por conseguinte, com um assassinato aos moldes da máfia.
Podia-se pensar, ou esperar, que essas revelações provocassem

57
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

inquéritos, debates parlamentares, crise de governo. Nada dis-


so aconteceu: evidentemente, o comportamento que acabamos
de ver é considerado mais ou menos normal pelas chancelarias
ocidentais e pela opinião pública predominante no Ocidente. O
sucessor de Sarkozy, François Hollande, se apressou em enfati-
zar a continuidade da política externa da França.
O presidente “socialista” e os homólogos “democratas” não
mudaram de ideia, apesar do gradual aumento do número de re-
fugiados provenientes da Líbia: eles fogem de um país “falido”,
ou mais exatamente forçado pela Otan à “falência”, saindo de
“campos” controlados pelas milícias, “onde se estupra sistemati-
camente, onde se tortura sistematicamente, onde são estabeleci-
das tarifas para serem embarcados rumo ao desconhecido, onde
nenhum controle pode ser exercido por ninguém” (VENTURINI,
2014).

1.6. Iraque, Líbia, Síria: uma destruição após outra

Concluída a operação em Trípoli, o Ocidente e as monarquias


do Golfo puderam se valer até mesmo do apoio dos islamistas lí-
bios, agora no poder para desestabilizar a Síria, invadida por mi-
lhares e milhares de milicianos e assolada por uma guerra marca-
da por atrocidades de uma parte e de outra. Mesmo nesse caso os
agressores posam como guardiões da moral, no entanto algumas
pontas de verdade acabam por ser reveladas pelos conhecedores
de estratégia e geopolítica. No verão de 2013, mesmo denuncian-
do o regime sírio, um ilustre politicólogo estadunidense descre-
veu cruamente o comportamento dos rebeldes:

“Salafitas fanáticos ao estilo talibã que espancam e matam até


devotos sunitas para que não reproduzam costumes a eles estra-
nhos; sunitas extremistas que se dedicam a assassinar inocentes
alauitas e cristãos apenas por causa da sua religião (...). Se os
rebeldes vencerem, aos sírios não sunitas só cabe esperar a ex-
clusão social e até a um verdadeiro massacre”.

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Uma análise tão crua foi um apelo para fazer malograr o peri-
go que indicava? Nada disso:
“A este ponto, uma trégua prolongada é o único resultado que
não seria prejudicial para os interesses americanos (...). Há ape-
nas uma saída que pode ser favorável aos Estados Unidos: um
empate por tempo indeterminado. Imobilizando o exército de
Assad e seus aliados (Irã e Hezbollah) em uma guerra contra os
combatentes extremistas aliados do Al-Qaeda, quatro inimigos
de Washington estariam empenhados em uma guerra de uns
contra os outros e ficariam, por conseguinte, impossibilitados
de atacar os americanos e os aliados da América” (LUTTWAK,
2013).

O mundo civilizado e o país em seu comando podiam até ga-


nhar muito com uma situação trágica existente entre os bárbaros!
Mais um ano e meio depois, Hollande persistia numa campanha
de bombardeamentos contra a Síria. Os Rafale franceses estavam
já prontos para entrar em ação: a guerra teria sido “um ótimo
ponto, incidentemente, para o caça-bombardeiro em relação ao
qual se envida muitos esforços para vender no mundo” (MAT-
TIOLI, 2013). A ocasião por ora está indefinida, mas seguramente
não faltará outra.
Em todo caso, um resultado já se obteve. No verão de 2011
podia-se ler no International Herald Tribune:

“No Iraque, a Síria representa ainda algo semelhante a um oásis.


Os iraquianos começaram a exilar-se de lá para fugir da guerra
comandada pelos EUA e do subsequente banho de sangue da
violência sectária. Ao longo da guerra, a Síria acolheu cerca de
300 mil refugiados iraquianos, mais do que qualquer outro país
na região (pelo que relata o Alto Comissariado da ONU para os
refugiados).
Nestes dias, mesmo que a Síria deva enfrentar os seus tumultos,
são poucos os iraquianos que retornam à pátria. De fato, há um
número muito maior de iraquianos que partem para a Síria do
que o daqueles que retornam à pátria”.

59
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Os iraquianos fugiam não apenas para deixar para trás a guer-


ra que continuava, mas também porque não aguentavam mais
um país devastado pela corrupção e pela ineficácia dos serviços
públicos. Sim, “a Síria é vista como um país melhor para se vi-
ver”. Consultados pelo International Herald Tribune, os iraquianos
se exprimiram com simplicidade e eficiência. Com relação à Síria
declararam: “Lá a vida é bela, lá as mulheres são bonitas” (e não
havia a obrigação do véu). Em todo caso, “há uma coisa impor-
tante: liberdade e segurança em toda parte”. Por isso, “por causa
das férias de verão aumentou o número de pessoas que abando-
nam o Iraque e vão para a Síria” (ARANGO, 2011). Agora, ao con-
trário, transbordante é a maré de refugiados que fogem da Síria...
A partir daquilo que havia sido apregoado como o ano da gra-
ça, a começar de 1989, foram afetados pela guerra o Panamá, o
Iraque, a Iugoslávia, a Líbia, a Síria. O epicentro desses conflitos
é constituído pelo Oriente Médio, para onde o Ocidente garan-
te querer levar civilização, democracia, paz. Depois de centenas
de milhares de mortes, milhões de feridos e milhões de refugia-
dos, a realidade está aos olhos de todos. Não se trata apenas das
terríveis devastações materiais. Por ocasião da primeira e da se-
gunda Guerra do Golfo (1991 e 2003), os xiitas iraquianos foram
chamados à manifestação contra os sunitas guiados por Saddam
Hussein; sucessivamente, com o olhar voltado para o Irã xiita
e os seus possíveis aliados, os sunitas foram chamados a pegar
em armas contra os xiitas no Iraque, e sobretudo na Síria. Nos
dias atuais, depois de terem sido por muito tempo estimulados
na Síria, os cruéis guerreiros sunitas do Califado são rechaçados
no Iraque e principalmente no Curdistão secessionista. Em todo
o Oriente Médio, na luta contra os regimes laicos oriundos das
revoluções anticoloniais (ocorridas depois da Segunda Guerra
Mundial) e contra os movimentos de libertação nacional conso-
lidados com posições laicas, o Ocidente fez um apelo à religião e
ao fundamentalismo religioso; e assim no Iraque, na Líbia, Síria,
Palestina, onde Israel à sua época apoiou o Hamas contra a OLP
de Arafat. É impressionante o rastro de destruição e de morte:
países como Iraque, Líbia, Síria correm o risco de não mais existi-

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

rem como Estados nacionais unitários e independentes, enquan-


to, na atualidade, é visto com total incredulidade a criação de um
Estado nacional para o povo mártir palestino, cujo território se
torna cada vez menor e fragmentado. Mas há coisas piores. No
Oriente Médio eclode a guerra civil entre laicos e religiosos, no
âmbito do mundo religioso entre islâmicos e cristãos, e no âmbito
do Islã entre sunitas e xiitas. A consequência de tudo isso é que
grande parte dos territórios do Iraque e da Síria está ocupada por
forças da Al-Qaeda, financiadas e armadas pela Arábia Saudita
(que, apesar de altos e baixos, segue alinhada com o Ocidente),
cujo comportamento pode ser aqui exemplificado por um episó-
dio, novamente retirado do International New York Times (que já há
algum tempo se chama International Herald Tribune). Solicitado a
fornecer esclarecimentos sobre os corpos de crianças que jaziam
ensanguentadas no chão e que claramente haviam sido mortas a
sangue frio, um chefe da Al-Qaeda assim explicou as razões do
acontecido: “elas não eram islâmicas”! (WORTH, 2014).

1.7. Um fundamento do Ocidente, da opressão feminina e


da “nova escravidão”

Ao destruir ou desestabilizar um ano após outro os países já


mencionados, os EUA se serviram de quando em quando da co-
laboração deste ou daquele Estado árabe que, no entanto, podia
facilmente se transformar de aliado subalterno em inimigo e alvo
de uma nova coligação política e militar. No âmbito dessa diplo-
macia de geometria variável, dois pontos permaneciam fixos: de
um lado, a relação estrita e indissolúvel com Israel (o principal
beneficiário geopolítico da balcanização do Oriente Médio) e, de
outro, a ligação estável e permanente com as monarquias do Gol-
fo Pérsico.
Detenhamo-nos sobre este último ponto. O fundamento do
Ocidente (e em particular dos Estados Unidos) nessa área de in-
discutível importância estratégica é um grupo de países nos quais
se manifesta, com toda a sua repugnância e crueldade, aquilo que
é amiúde definido como “nova escravidão”. A história do capi-

61
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

talismo está marcada por três gigantescas ondas de remoção for-


çada ou de migração da mão de obra: a primeira é constituída
do tráfico de escravos negros, deportados da África. A segunda,
que se desenvolveu no século XIX após a abolição da escravidão
propriamente dita, teve como protagonistas principais os coolies
indianos e chineses: na teoria, são servos com contrato e perío-
do de trabalho determinados, mas a sua condição real, por cau-
sa do prolongamento do contrato arbitrariamente imposto pelos
patrões, não era muito diferente em relação à daqueles escravos;
não por acaso eles eram provenientes respectivamente da maior
colônia inglesa e do país mais populoso do mundo, pouco antes
atacado por uma agressão colonialista e lançado em um abismo
de desespero. A terceira onda tem como pressupostos dois pro-
cessos entre si contraditórios: por um lado, os altos e baixos da
revolução anticolonial e, por outro, a derrota do socialismo na
Europa oriental: dos países que no plano político ainda não con-
seguiram uma estabilidade, ou a tenham perdido após a ofensiva
neocolonial, e que no plano econômico ainda não conseguiram
superar o subdesenvolvimento, sobrevêm gigantescas ondas de
migrantes e de refugiados. A globalização numa perspectiva neo-
liberal demanda o deslocamento em escala planetária de uma
enorme massa de mão de obra reduzida a mercadoria como qual-
quer outra. Nessas circunstâncias, o “despotismo” em uma fábri-
ca e, mais em geral, no local de trabalho, do qual fala o Manifesto
do Partido Comunista (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 4, p. 469),
assume formas radicais e acaba por ser exercido não apenas sobre
a mão de obra, mas também sobre o próprio migrante.
Bem se compreende que a “nova escravidão” tenha como seu
local de escolha os países do Golfo. A enorme massa de petrodó-
lares e os investimentos e as atividades econômicas a eles ligadas
não podem deixar de se constituírem em polo de atração a es-
ses migrantes pobres e pobríssimos de várias partes do mundo.
Os patrões, no entanto – que são destinados a assumi-los –, são
membros de uma aristocracia hereditária e estão cada vez mais
habituados a exercer um poder autocrático sobre seus serviçais,
os quais tendem a ser considerados como membros de uma casta

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

hereditária ou raça inferior, e ainda mais porque eles, vindos de


uma região longínqua e de língua, cultura e religião diferentes,
são “estrangeiros” duas vezes (no plano social e no étnico-cul-
tural). É por isso que os países do Conselho de Cooperação do
Golfo (Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Ku-
wait, Omã, Catar), e em geral os mais ricos e mais autocráticos
do Golfo Pérsico, são o lugar onde a “nova escravidão” tende a se
aproximar perigosamente da escravidão clássica.
Há inclusive uma carga extra de crueldade, dado que de fato
a escravidão ali em vigor, além de ter uma óbvia finalidade pro-
dutiva, visa também a satisfazer o desejo da casta hereditária,
ou de uma espécie de “raça” de senhores, de domínio em todos
os níveis.
Expressivas são as investigações velhas e novas: migrantes
“serviçais lançados terraço abaixo, queimados, ou cegados, ou es-
pancados até a morte” (MACARTHUR, 1992, p. 44-45). Talvez ain-
da mais trágica seja a condição das “colaboradoras domésticas”:

“Apreensão do passaporte na chegada, impossibilidade de mu-


dar de trabalho sem o consentimento do empregador, horários
impraticáveis e nenhum repouso semanal. E tudo por salários
de fome, amiúde mantidas pelo patrão por tempo indetermina-
do, nas nações que se vangloriam de estar entre algumas das
que possuem o PIB mais alto do mundo (...). Espancadas pelas
patroas, violentadas pelos patrões, obrigadas a dormir no vão
da escada, em garagens ou em porões. Obrigadas a sofrer todo
tipo de violência, desde pancadas até queimaduras por cigarro,
desde óleo fervente jogado sobre o corpo até amputações” (GRI-
FONI, 2014).

Como explicou Tocqueville, à sua época, a barreira de casta ou


“racial” dificulta ou bloqueia a formação de uma “comiseração
geral”, capaz de abranger até os membros da casta ou “raça” infe-
rior (LOSURDO, 1996, cap. 2, § 8).
Não por acaso, os países dos quais aqui se fala são os mes-
mos que nunca foram atingidos pela revolução anticolonial (e

63
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

antifeudal) e que exatamente por isso se constituem no funda-


mento do Ocidente no Oriente Médio. O Conselho de Coopera-
ção do Golfo foi criado em 1981 a pedido dos Estados Unidos:
cerca de dois anos antes havia sido derrubado no Irã o regime
do Xá; à revolução anticolonial de inspiração laica (que havia
conseguido a vitória em alguns países árabes) se acrescentou,
mas no âmbito de uma rígida concorrência, a revolução anti-
colonial de inspiração islâmica e xiita. Washington enfrentou o
perigo, de um lado, estimulando o Iraque a agredir o Irã e, de
outro, promovendo a fundação do Conselho de Cooperação do
Golfo, que em 1991 havia participado da guerra contra o Iraque
e vinte anos depois da guerra contra a Líbia e a Síria.
Além da “nova escravidão, o fundamento do Ocidente no
Oriente Médio também se caracteriza pela opressão contra as mu-
lheres em seu conjunto, ali privadas inclusive dos direitos mais
elementares.

1.8. O retorno das “mulheres de consolo” e da escravidão


sexual

Exatamente nesse ponto, a barbárie neocolonialista atualmente


em curso se revela com particular evidência. No Oriente Médio as
revoluções anticoloniais conduziram a um claro avanço na emanci-
pação feminina, consolidada no entanto numa sociedade civil ainda
amplamente hegemonizada por costumes patriarcais e machistas
muito mais perseverantes quando canonizados por uma secular
tradição religiosa. O Ocidente tem se apoiado nesta cultura e nes-
te ambiente para voltar a submeter com prepotência uma região
que esteve durante muito tempo sob seu domínio. Os resultados
são devastadores: na Líbia “a seção constitucional da Corte supre-
ma de Trípoli restaura a poligamia em nome da lei muçulmana”.
Não se trata de uma alteração inesperada. No “discurso da vitória”,
pronunciado em 28 de outubro de 2011, o líder imposto pela Otan,
pelos milicianos e pelo dinheiro das monarquias do Golfo, rapida-
mente “anunciou que na ‘nova Líbia’ todo homem poderia ter o
direito de ter até quatro esposas, respeitando plenamente o Corão”.

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Sim:

“Nas suas palavras, foi esse um dos tantos procedimentos con-


templados para apagar para sempre o legado da ditadura de Ga-
ddafi. Este último, sobretudo na primeira fase mais socialista e
‘nasseriana’ de seus quarenta anos no poder, havia buscado con-
ceder algumas melhorias ao status das mulheres, introduzindo-
-as maciçamente no mundo do trabalho e limitando a poligamia,
pelo menos no quanto era possível numa sociedade como aque-
la” (CREMONESI, 2013a).

Socialismo? Nasserismo? É aquilo que de mais odioso ali pode


haver aos olhos do Ocidente neoliberal e neocolonial; mas, a con-
trarrevolução neocolonial é ao mesmo tempo a contrarrevolução
antifeminista.
Entre a massa de refugiados, as mulheres são as que sofrem
de um modo todo particular, frequentemente destinadas à venda
como “esposas”. Vejamos o que acontece na Jordânia: “Muitos
taxistas de Amã agora estão acostumados. Aguardam os sauditas
ricos e dos países do Golfo no aeroporto ou em frente a hotéis
cinco estrelas. Não precisa muito para compreender o que eles
querem”. As meninas e as mulheres sírias são procuradas por sua
beleza. E além disso:

“Custam pouco as meninas de 15 ou 16 anos, oferecidas pelas fa-


mílias por cifras que podem ficar entre 1.000 e 2.000 euros. Uma
ninharia, amendoins, para os homens de negócio do Golfo. Es-
tão acostumados a gastar muito mais. Uma noite na companhia
de prostitutas ucranianas em um hotel em Dubai pode chegar a
custar até o dobro” (CREMONESI, 2012b).

E assim, os membros da aristocracia corrupta e parasitária, no


poder nos países do Golfo, mimada e protegida pelo Ocidente,
podem gerar uma dupla vantagem para a política de desestabi-
lização por eles perseguida na Síria: enfraquecem um regime lai-
co e até blasfemador pelo fato de promover a emancipação das

65
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mulheres; podem obter a preços bem inferiores mulheres, garotas


e meninas de beleza fora do comum. Obviamente, nas áreas da
Síria conquistadas pelos “rebeldes”, as mulheres são obrigadas a
tolerar o retorno ao antigo regime: elas devem cobrir totalmente
o corpo e condenadas ao isolamento e à escravidão doméstica; as
“adúlteras” são apedrejadas.
Mas a tragédia das mulheres do Oriente Médio ainda não che-
gou ao ápice. Sabemos já do “estupro sistemático” em curso na
Líbia, “libertada” pela Otan. A eclosão e o agravamento da crise
na Síria fizeram surgir a terrível realidade da “jihad do sexo”, que
aqui é necessário ser descrita sempre a partir de correspondentes
da mais respeitável imprensa ocidental. Convencidas por auto-
ridades religiosas e por pregadores fundamentalistas, sobretudo
na Tunísia, “prostitutas meninas” e “garotas de famílias pobres,
menores de idade e frequentemente analfabetas”, chegam clan-
destinas à Síria para se oferecerem aos guerreiros islâmicos e
diverti-los entre uma batalha e outra, de modo a garantir-lhes o
acesso ao Paraíso. É duro o trabalho das “escravas tunisianas”:
“Muitas delas tiveram relações sexuais até com vinte, trinta, cem
mujahedins”. Algumas ficam grávidas, e a tragédia então se agra-
va: “No Magreb rural, nas aldeias do Sul tunisiano, uma mãe sem
marido é só uma prostituta”, e por essa razão frequentemente não
são mais reconhecidas e são renegadas pelos próprios pais. Mas
quem são os responsáveis por tudo isso? Não se trata só do fun-
damentalismo tunisiano: quem também estimula a “guerra santa
do sexo” é um “xeique” da Arábia Saudita (o país que não olha o
valor das despesas para armar os rebeldes). De outra parte, como
os guerreiros, assim também as meninas e garotas chamadas a
oferecer-lhes consolo sexual vão para a Síria “via Líbia ou Tur-
quia”; e, “segundo um relatório da ONU”, os custos com trans-
porte são supridos com “recursos do Catar” (BATTISTINI, 2013).
Por conseguinte, para além dos guerreiros islâmicos genuínos,
oriundos de todos os cantos do mundo e do próprio Ocidente,
quem desestabiliza e tenta destruir o regime sírio – protagonista
de um importante processo de emancipação das mulheres – são
garotas e meninas que se sujeitam a uma total desemancipação.

66
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

Somos levados a pensar nas comfort women (mulheres de consolo),


nas mulheres coreanas e chinesas que ao longo da Segunda Guer-
ra Mundial foram obrigadas a se prostituírem aos militares do
exército de ocupação japonês necessitado de “consolo”. As comfort
women propriamente ditas eram lastimadas por seu povo, mas as
protagonistas, ou melhor, vítimas da “guerra santa do sexo”, são
desprezadas e até repudiadas pelo seu próprio povo. Não há dúvi-
da de que o Ocidente é corresponsável por toda infâmia fomenta-
da por religiosos e autoridades da Arábia Saudita, financiada pelo
Catar, que se tornou possível com a cumplicidade da Turquia e
da “nova Líbia”. Trata-se de países que usufruem de uma susten-
tação política ou pelo menos de uma tolerância condescendente
da parte de Washington e Bruxelas. A Turquia inclusive faz parte
da Otan, e o seu governo “mantém aberta a fronteira da Síria e
permite que os combatentes (islâmicos) tenham um porto livre no
Sul do país, enquanto armas, dinheiro vivo e outros suprimentos
circulam pelo campo de batalha” (ARANGO, 2013). Entre esses
“suprimentos”, também estão incluídas evidentemente as garotas
e meninas destinadas à prostituição sagrada e bélica.
Se, nesse caso, para alimentar a “jihad do sexo” elas são em
teoria “voluntárias”, em outros casos surge muito claramente a
violência da escravização sexual. Podemos ler ainda no Corriere
della Sera:
“Os milicianos das brigadas islâmicas na Síria possuem todo um
sistema próprio para escolher as mulheres curdas. Normalmen-
te acontece em blitz. Sobem em ônibus civis com metralhadoras
em punho, obrigam os condutores a entregarem a lista de pas-
sageiros e buscam por nomes não árabes. Identificadas as mais
jovens e bonitas, obrigam-nas a descer, fazem-nas ajoelhar-se e,
apoiando sua palma da mão sobre a testa delas, declaram-nas
‘halal’ – que, pela tradição, indica carne abatida segundo a lei
corânica –e, assim, se tornam ‘islamizadas’, purificadas, prontas
para se unirem carnalmente com os cavaleiros da guerra san-
ta. Violência de um único miliciano ou de um grupo: as moças
são consideradas ‘esposas temporárias’. Podem ser mantidas por
poucas horas, ou por semanas. Algumas retornam para casa,

67
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

outras no final acabam mortas (...). Como disse Ipek Ezidxelo,


30 anos, ativista do Partido da União Democrática (PYD), o mais
importante movimento armado nas regiões curdas sírias, os ex-
tremistas qaedistas, sobretudo os afegãos, tchetchenos e líbios,
até competem entre si para capturar vivas as combatentes cur-
das” (CREMONESI, 2013b).

Agora mais do que nunca somos levados a pensar nas comfort


women, e agora mais do que nunca a realidade da escravidão se-
xual está diante dos nossos olhos com toda a sua repugnância! E
novamente surge o papel nada lisonjeiro do Ocidente, muito pou-
co interessado em chamar a atenção da opinião pública mundial
sobre a tragédia das mulheres curdas, e menos ainda interessado
em impedir o afluxo em direção à Síria de estupradores prove-
nientes da Líbia “libertada” pela Otan.

1.9. Rumo a uma nova grande guerra?


O fantasma de Hiroshima

Estão cada vez mais pesados os custos humanos e sociais da


tentativa de remodelar o Oriente Médio em consonância com as
exigências estratégicas e geopolíticas dos Estados Unidos e dos
países europeus mais obstinadamente aferrados à tradição colo-
nial. Mas onde é que vai parar essa tentativa? A guerra também
fará investidas contra o Irã? E o que vem a significar a transfe-
rência (anunciada e já iniciada) da maior parte do aparato militar
estadunidense rumo ao Pacífico e à China?
Retorna à nossa mente o já citado discurso de F. D. Roosevelt.
Entre as “quatro liberdades” consideradas irrefutáveis, junto à
“liberdade de não passar necessidade” também se sobressaía a
“liberdade de viver sem medo” (freedom from fear). E ela exigia
“uma redução dos armamentos em escala mundial, conduzida a
um ponto e de tal modo, que em nenhum canto do mundo uma
nação teria condições de executar um ato de agressão contra o seu
vizinho”. A polêmica dirigiu-se contra o Terceiro Reich e deu voz
a uma generalizada angústia e indignação: quais seriam os novos

68
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

alvos da política hitleriana de agressão? Que sentido havia em se


falar de liberdade numa situação demarcada pelo medo e pelo
terror da guerra à sua porta? O real usufruto da liberdade não po-
dia ser pensado numa dimensão apenas nacional; era necessário
também levar em consideração o contexto internacional. Obvia-
mente, o atual quadro político é totalmente diferente, no entan-
to, a ironia da história é impiedosa: o país onde foi enunciado o
princípio da “liberdade de não sentir medo” é aquele que desde
há muito se mostra decidido a extingui-lo não apenas na prática
mas também na teoria! Aos olhos de F. D. Roosevelt, nenhum país
em nenhum canto do mundo devia estar em nível de ameaçar
impunemente o seu vizinho, de lhe provocar “medo” a partir de
uma posição de irremediável vantagem militar; hoje em dia, os
EUA, que são comandados por um presidente republicano, ou
democrata, estão explicitamente empenhados em conseguir, ou
em conservar, uma superioridade militar tão incisiva para lhes
tornar possível intervir de modo resoluto ou devastador em
qualquer país de qualquer canto do mundo. E, para eliminar da
maneira mais radical possível a “liberdade de não sentir medo”,
fornecem uma rede de formidáveis bases militares, terrestres ou
marítimas, que abrange o planeta inteiro. A esse comportamento
prático corresponde uma teoria que despreza o ideal – caro a F.
D. Roosevelt – de equilíbrio, de moderação. Ao contrário – isto
está assegurado –, a salvação do mundo é garantida pela ausên-
cia de qualquer equilíbrio no plano militar, pela superioridade
absoluta do Ocidente, sobretudo do seu país-guia. Em resumo,
é tão perfeitamente bem sucedida a supressão da “liberdade de
não sentir medo” da lista dos direitos do homem que ela não é
nem mais lembrada nas tomadas de posição e nas resoluções das
associações inspiradas – segundo nos asseguram – na defesa e na
reafirmação dos direitos do homem.
Ao longo destas últimas décadas, estão sendo bombardeados,
atacados e muitas vezes desmembrados pequenos países, atrasa-
dos tecnologicamente e incapazes de opor uma real resistência. As
sucessivas incursões militares reforçaram a autoconsciência orgu-
lhosa e a arrogância dos vencedores, que talvez também tenham

69
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

tido a ocasião de consolidar a coesão interna e de desviar a aten-


ção sobre a crise econômica. Mas agora Washington está aumen-
tando suas pretensões. Já no início deste século, um historiador
estadunidense de renome concluiu seu livro dedicado à “política
das grandes potências”, convidando o seu país a promover uma
política de controle econômico da China:

“Os Estados Unidos têm um profundo interesse em diminuir o


crescimento econômico da China nos próximos anos (...). Não é
muito tarde para os Estados Unidos para mudar o curso e fazer
o que podem com o objetivo de conter a ascensão da China. As
imposições estruturais do sistema internacional, que são pode-
rosas, provavelmente obrigarão os Estados Unidos a abandona-
rem a política de esforço construtivo. Com efeito, já há sinais de
que a nova administração Bush deu os primeiros passos nessa
direção” (MEARSHEIMER, 2001, p. 402).

Na realidade, quem decididamente avança nessa direção é


sobretudo Obama, que anunciou o “pivot”, o deslocamento do
grosso do colossal aparato militar do seu país no Pacífico, com
o olhar voltado para a China. E não é tudo. Os analistas têm a
mesma opinião ao interpretarem como uma espécie de Otan eco-
nômica a gigantesca área de livre comércio que deveria unir os
EUA à União Europeia e aos países das duas margens do Pacífico,
excluindo e marginalizando o país mais populoso e a segunda
economia do mundo (e talvez já o primeiro em termos de pari-
dade de poder de compra). E se trata de uma Otan econômica
que se apoia em uma Otan militar já em ação e de fato em vias de
contínua expansão até no Pacífico.
As coisas se encaminharam até o ponto de uma renomada re-
vista estadunidense, Foreign Policy – certamente não conhecida
por ser como um ninho de pombas brancas –, julgou oportuno
não esconder as suas preocupações: inutilmente provocatória é
a estratégia da “Batalha Aéreo-naval” (Air-Sea Battle) anunciada
pela administração Obama; ela “sugere que os Estados Unidos
ataquem a China antes que a China ataque as forças dos EUA”, e

70
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

ataquem a China não apenas em suas forças navais e aéreas, mas


em profundidade, no seu coração (GOMPERT, KELLY, 2013). O
artigo aqui citado é muito mais importante porque o assinam dois
respeitáveis expoentes do establishment político-militar: o primei-
ro em particular, como esclarece a revista, além de ser “professor
na Academia Naval dos EUA”, ocupou o cargo de “primeiro vi-
ce-diretor da inteligência nacional como representante do presi-
dente Obama”.
Há pelo menos algum sinal de que as guerras em curso, ou
no horizonte, são chamadas a não irem adiante? No Corriere del-
la Sera de algum tempo atrás podia-se ler um ilustre historiador
israelense bradar tranquilamente contra o Irã a ameaça de “uma
ação nuclear preventiva da parte de Israel” (MORRIS, 2008). E
não foi uma tomada de posição isolada. Podemos ler numa re-
nomada revista de geopolítica: “Na teoria, se poderia fazer o Irã
voltar à idade da pedra com um ataque atômico israelense e/ou
americano, ou até da Otan. Um cenário impensável. Por ora” (LI-
MES, 2012, p. 16). Na realidade, em dezembro de 2013, um mem-
bro republicano do Congresso, para ser mais exato, Duncan Hun-
ter, explicitamente evocou uma campanha de bombardeamentos
com armas nucleares táticas contra a República islâmica.
Novamente, surge o fantasma de Hiroshima, e não apenas em
relação a este país do Oriente Médio. Alguns anos atrás a Foreign
Affairs publicou um ensaio, que se pode definir como alarmante.
Vejamos os seus pontos essenciais: “a dramática viragem na ba-
lança do poder nuclear” permite enfim que os Estados Unidos
desfiram um “primeiro ataque nuclear” contra a Rússia e a Chi-
na sem precisar temer uma represália nuclear. Contrariamente
aos mitos correntes, a “modernização nuclear” há algum tempo
buscada por Washington não tem em vista “os terroristas ou os
Estados canalhas”; olhando atentamente, “a atual e futura força
nuclear estadunidense parece projetada para conduzir um ata-
que preventivo e capaz de desarmar a Rússia ou a China”; e, de
outra parte, tal objetivo está em plena consonância com a política
explicitamente anunciada pelos EUA de “querer expandir o seu
domínio global”. Só os ingênuos podem criticar o programa em

71
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

curso de defesa antimíssil: é verdade que ele não teria condições


de impedir um ataque maciço proveniente da Rússia, mas bem
poderia evitar a tentativa de resposta nuclear da Rússia, e ainda
mais da China, colocadas fora do combate por um “primeiro ata-
que” nuclear desferido pela única real superpotência existente.
Não por acaso ela continua a se recusar a comprometer-se em não
ser o primeiro país a utilizar armas nucleares (como, ao contrário,
fez a China) (LIEBER, PRESS, 2006, p. 43 e 51-53). É uma contin-
gência que alguns anos depois foi confirmada por um expoente
de primeiro escalão do aparato militar estadunidense: “a defesa
com mísseis é a peça que faltava para assegurar o primeiro ata-
que nuclear” (in: ENGDAHL, 2009, p. 159). Já faz um tempo que
os EUA almejam garantir “a si mesmos a possibilidade de um
primeiro ataque impune” (ROMANO, 2014, p. 29), mas hoje tal-
vez o perigo seja mais grave. Existem círculos que acalentam um
sonho perverso: a superpotência, ainda por algum tempo solitá-
ria, poderia tentar consolidar e tornar definitiva a sua primazia e
livrar-se da crise e do declínio, desencadeando um devastador e
potente ataque nuclear num espaço de tempo em que parece não
precisar temer uma reação, ou uma relevante reação. Exorcizado
nos anos da Guerra Fria pela estabilidade do terror, o fantasma
da guerra nuclear retorna na atualidade: a “liberdade de não sen-
tir medo” se desviou para o seu sentido oposto, e em um sentido
oposto que agora pesa como um pesadelo sobre a humanidade
inteira.

1.10. O neoliberalismo (econômico e político),


o neocolonialismo e a esquerda ausente

Retomemos: nos dias atuais, a situação dos mais importantes


países capitalistas se caracteriza por desemprego em massa, pre-
cariedade crescente, deslegitimação mais ou menos explícita dos
direitos sociais e econômicos e desmantelamento mais ou menos
acentuado do Estado de Bem-Estar Social. É a ofensiva do neo-
liberalismo no plano econômico. É bom assinalar este ponto pelo
fato de que do neoliberalismo amiúde se tem uma visão limita-

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

da, como se ele não tivesse também uma dimensão política. Na


realidade, se pegarmos os dois patriarcas dessa corrente de pen-
samento veremos que eles unem estreitamente a negação do Es-
tado de Bem-Estar Social à reprovação da democracia de massa,
dos partidos de massa, dos sindicatos. E a exaltação do mercado
segue no mesmo passo que a evocação de um mundo ainda não
contaminado pelo sufrágio universal, ou melhor pelo sufrágio
de massa. Para Mises e Hayek, trata-se de colocar em discussão,
junto com o Estado de Bem-Estar Social, tudo isso que o tornou
possível: “A grande massa não possui a capacidade de pensar
logicamente” e de “compreender os problemas mais complica-
dos da vida social” – declara o primeiro. Sim – reforça o segundo
–, em certas condições a melhor solução pode ser “um sufrágio
limitado, por exemplo, apenas para os proprietários de terras”,
ou – sugere Mises – um sistema político no âmbito do qual quem
esteja no poder seja a figura de um “gentleman desprovido de
profissão”, como no Parlamento inglês entre as duas guerras. Em
todo caso – conclui Hayek –, “a participação popular” nas es-
colhas políticas, a “liberdade coletiva” não é em nada essencial;
insistir nisso, como partidos de massa e sindicatos começaram a
fazer na metade do século XIX, é já expressão do veemente “de-
clínio da doutrina liberal” (LOSURDO, 1993, cap. 7, §§ 1 e 5).
A ligação entre economia e política continua se manifestando
mesmo no atual neoliberalismo. Certamente, seria muito arrisca-
do pôr em discussão o sufrágio universal, mas mesmo deixando-
-o de pé é possível transformar a democracia em “plutocracia”
ou “plutonomia” e retornar ao poder exercido por elites muito
restritas. Com efeito, nos dias atuais é tão forte o peso exerci-
do pela riqueza que o sistema político-eleitoral existente de fato
condena ao silêncio as classes inferiores e dá voz apenas à com-
petição, aliás furiosa, de elites políticas que remetem em última
análise à mesma classe social, isto é à grande burguesia.
O neoliberalismo amiúde se revela entrelaçado ao colonialis-
mo velho e novo: é de se ver com suspeitas a “liberdade coletiva”
reivindicada pelas classes inferiores, e ainda mais a reivindicada
pelos povos coloniais; a democratização das relações internacio-

73
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nais almejada pelos povos recém-independentes, e com uma ren-


da per capita na maioria das vezes muito mais modesta, é ainda
mais perigosa que o sufrágio universal do qual desfrutam até os
mais pobres, nas metrópoles capitalistas, a partir do “declínio da
doutrina liberal”. Crítico do universalismo e da Declaração Uni-
versal dos Direitos do Homem, Hayek (1969, p. 21) rende exclu-
siva homenagem ao “homem ocidental”; por sua vez, em nome
do mercado e do livre comércio, Mises não hesita em enaltecer
as guerras do ópio, isto é, um dos capítulos mais vergonhosos da
história do colonialismo (cf. mais adiante, § 5.7). Para querer ser
consequente, a crítica ao neoliberalismo deveria abarcar também
o neocolonialismo; ainda mais que o desmantelamento do setor
público da economia – recomendado e frequentemente imposto
pelo neoliberal “Consenso de Washington”, pelo Fundo Monetá-
rio Internacional e pelo Banco Mundial – é um pressuposto para
o controle neocolonial exercido pelas multinacionais e pelas gran-
des potências capitalistas sobre o país de vez em quando “auxi-
liado”. De outra parte, já a partir das guerras do ópio, a expansão
e a prevalência do mercado foram, não poucas vezes, impostas a
mão armada. E mesmo hoje em dia: em 1973 ocorreu o golpe de
Estado no Chile, instigado pelos EUA para impor a prevalência
do neoliberalismo, bem como em 1999 a guerra, pela Otan, para
consolidar na Iugoslávia o definitivo desmantelamento de sua
economia pública. O “Estado Mínimo” no plano social não exclui
totalmente o Estado forte no plano político (com a repressão aos
protestos de massa) e no plano militar (com o desencadeamento
de guerras provocadas para defender a liberdade do mercado).
No entanto, apesar do vínculo que os une, neoliberalismo e
neocolonialismo são ainda dois fenômenos diferentes. E, por
conseguinte, é preciso perguntar: Qual resistência encontram a
ofensiva neoliberal e neocolonial e o entrelaçamento potencial-
mente explosivo de uma persistente crise econômica com um ci-
clo de guerras longe de seu fim? Em um país como a Grécia não
se atenuam as manifestações de rua, mas, por mais sólidas que
sejam, elas não conseguem impedir a tragédia de todo um povo.
Nas duas margens do Atlântico, novos e inéditos movimentos,

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1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

como os “Revoltados” e “Occupy Wall Street”, tiveram o mérito


de promover significativos protestos contra a oligarquia econô-
mica e política e contra medidas de “austeridade”, das quais o
único resultado é o decorrente agravamento da polarização so-
cial. Mas tais manifestações de rua têm um caráter episódico na
maioria das vezes. Pode até acontecer de elas se transformarem
em revoltas, mas sempre se trata mesmo de chamas que se pro-
pagam inesperadamente para logo em seguida se dissiparem,
mas permanecendo incubadas sob as cinzas. Entre 6 e 10 de
agosto de 2011, Londres e outras cidades da Grã-Bretanha foram
atacadas por jacqueries urbanos, de caráter espontâneo e mesmo
anarcoide; mas a dura repressão parece ter conseguido silenciá-
-los totalmente. O poder e a ideologia dominantes são ainda tão
fortes que apenas deixam espaço para explosões de cólera, que
revelam sim um difuso e profundo mal-estar, mas não promo-
vem nenhuma alteração real na situação. E o movimento de pro-
testo ataca mais o neoliberalismo econômico do que o político;
visa às próprias medidas de austeridade antipopulares mais do
que à “plutocracia” com base na malograda edificação ou no des-
mantelamento do Estado de Bem-Estar Social.
Percebe-se a falta de uma visão e de um projeto de conjunto. Se
nos países capitalistas mais dramaticamente penalizados pela cri-
se se assiste a um agravamento do fenômeno das mulheres obri-
gadas a se prostituírem para sobreviver ou para equilibrar suas
contas, as guerras neocoloniais em curso no Oriente Médio tor-
nam possível o retorno da poligamia e mesmo das comfort women,
ou da escravidão sexual. Drástico é o agravamento da condição
feminina. Mas a tudo isso não parece haver uma resposta adequa-
da da parte dos movimentos feministas, muitas vezes inclinados
a se fecharem em uma espécie de “corporativismo de gênero”,
que se ilude em poder enfrentar o grande tema da emancipação
da mulher desconsiderando os conflitos e as tragédias da política
internacional. Ainda existe uma esquerda no Ocidente?
Demonstra fortes limitações sobretudo o movimento de luta
contra a guerra e o colonialismo velho e novo. No entanto, em
2003, por ocasião da segunda Guerra do Golfo, por algum tem-

75
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

po esse movimento parecia arrebatador; na realidade, o refluxo


não se fez esperar. Mais recentemente, nos anos subsequentes à
explosão da crise econômica, no transcurso das manifestações
ocorridas em Nova Iorque e em outras cidades estadunidenses,
apareceram cartazes que pediam a investigação não apenas de
Wall Street mas também da War Street e que, portanto, identifi-
caram o setor da alta finança como o setor ao mesmo tempo do
complexo militar industrial e da política de guerra. Dele se tratou
de um ângulo muito feliz, cujas promessas, entretanto, não foram
cumpridas. Talvez o movimento pela paz tenha conhecido o seu
auge em 2003, no momento em que o próprio Ocidente estava
dividido e a iniciativa de guerra anglo-americana entrou em cho-
que com a resistência e mesmo com a oposição de alguns países
europeus. Ao longo das sucessivas guerras, ao ser restabelecida a
unidade do Ocidente, a unificação de seu poder de fogo multimi-
diático encontrou bem pouca resistência. Existe ainda esquerda
nessa parte do mundo?
A representação artificial dos limites próprios dos movimen-
tos de protesto que, no entanto, por sorte continuam a se mani-
festar, é fornecida por alguns acontecimentos sobre os quais vale
a pena nos deter. Em setembro de 2011 em Tel Aviv (e em outras
cidades israelenses), centenas de milhares de “revoltados” saí-
ram às ruas contra a escassez, aluguéis inadmissíveis etc., mas
eles não colocaram em discussão a política colonialista de Israel:
totalmente ignorado era o nexo que liga o corte nos gastos sociais
ao aumento de recursos destinados à colonização das terras reti-
radas dos palestinos, e também ao fortalecimento do já colossal
aparato militar e à maquinação da guerra em primeiro lugar con-
tra o Irã. Acima de tudo, a “revolta” não ultrapassou os limites da
comunidade hebraica, não se deu conta da tragédia do povo pa-
lestino. No entanto, naquele mesmo período, ela foi assim descri-
ta, em uma renomada revista estadunidense, por um professor da
Universidade Hebraica de Jerusalém: pelo menos no que se refere
aos territórios palestinos ocupados, Israel é uma “etnocracia”, em
última análise um Estado racial. A colonização e a anexação das
terras expropriadas, pela força militar, dos palestinos ainda con-

76
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

tinuam. Aqueles que ousam protestar “são tratados duramente,


algumas vezes aprisionados por um longo período de tempo, e
outras assassinados no decorrer das manifestações”. Tudo isso se
coloca no âmbito de “uma campanha maligna que visa a tornar
a vida dos palestinos o mais miserável possível (...), na esperança
de que eles fossem embora”. Está em ação uma limpeza étnica,
ainda que atenuada ao longo do tempo. No geral, estamos diante
de uma etnocracia tão dura que traz à memória os “tenebrosos
antecedentes da história do século passado” (SHULMAN, 2012).
Tudo isso os “revoltados” de Tel Aviv cobriam com um espesso
véu de silêncio. Se a esquerda é historicamente caracterizada tam-
bém por ter sua atenção voltada aos povos oprimidos pela “etno-
cracia”, aos povos coloniais, então ela esteve claramente ausente.
Nesse mesmo ano, um episódio igualmente sintomático ocor-
reu na Itália. O país havia sido protagonista, exatamente havia
um século, de uma sanguinária guerra colonial contra a Líbia, e
tinha, portanto, condições ideais para compreender os aconteci-
mentos do verão de 2011. Em 26 de agosto desse ano, La Stampa
se abria com um título de página inteira: “Nova Líbia, desafio
Itália-França”. E para quem não tivesse entendido de que tipo de
desafio se tratava o editorial esclareceu: desde o início das opera-
ções bélicas, caracterizadas por um frenético ativismo do presi-
dente francês, “rapidamente se compreendeu que a guerra contra
o Coronel se transformaria em um conflito de outro tipo: guerra
econômica, com um novo adversário, a Itália obviamente” (BA-
RONI, 2011). Podia-se falar de tudo menos de uma desinteressa-
da intervenção humanitária!
Nos meses seguintes, outras vozes e outros órgãos de imprensa
cuidaram de enriquecer a análise: a “desastrosa guerra da Líbia
[havia sido] desejada pelo presidente Sarkozy para compensar a
‘perda’ francesa da Tunísia” (PANEBIANCO, 2013). A natureza
colonial de tal projeto se tornou ainda mais evidente após a tenta-
tiva de desestabilização da Síria e de impor a Damasco um regime
pró-saudita e pró-ocidental. Foi protagonista dessa nova aventura,
junto com a Grã-Bretanha, a França que, mesmo sob a presidência
do “socialista” Hollande, continuou a se inspirar na “lembrança

77
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

do seu passado enquanto potência colonial no Levante” (TOSCA-


NO, 2013). Não era mistério para ninguém de qual lembrança se
tratava: nos EUA, na Turquia, em Israel, nos países árabes, jornais
e analistas, muitas vezes ilustres, falavam de um “novo Sykes-Pi-
cot”, isto é, de um novo acordo de repartição do Oriente Médio,
similar àquele secretamente firmado ao longo da Primeira Guerra
Mundial por dois diplomatas, respectivamente britânico e francês,
que deram nome ao pacto de 1916 (MOLINARI, 2013a).
Pois bem. Enquanto pouco a pouco aumentavam os trabalhos
jornalísticos que reconheciam o caráter colonial da guerra, em um
momento em que a Itália se mostrava perplexa e receosa com o
protagonismo da França, sobretudo em relação à Líbia, em 22 de
fevereiro de 2011 Susanna Camusso, secretária-geral da CGIL,
isto é do mais importante sindicato operário, deu uma declaração
exaltada condenando as hesitações do governo e impelindo-o a
uma intervenção bélica! O tradicional anticolonialismo do movi-
mento operário e sindical se consubstanciava no seu contrário,
e no seu contrário se consubstanciava igualmente o tradicional
antimilitarismo: ao invés de exigir a redução do orçamento mili-
tar, que havia se tornado mais do que necessária para o corte no
gasto social imposto em nome da austeridade, de fato Camusso
estimulou um aumento desses gastos.
A ausência da esquerda, ou o seu estado de confusão, foram
confirmados poucas semanas depois de uma nova desconcertante
tomada de posição: eis que Rossana Rossanda se manifestou, em Il
Manifesto de 9 de março, para exigir o abandono de qualquer “mo-
deração” e pedir um decidido apoio aos rebeldes, sem se deixar
amedrontar, ou se incomodar, com a “guerra humanitária” que
se esboçava no horizonte; os rebeldes deviam então se defender
contra um regime vil e criminoso. E novamente apareceu a devas-
tação cultural e política que havia atingido a esquerda. Apagada
estava a memória histórica: cem anos antes, a Itália havia fomen-
tado contra a Líbia uma guerra colonial, esta sim não desprovida
de práticas genocidas. E para perturbar os dois ilustres expoentes
da esquerda italiana não serviram nem mesmo as tomadas de po-
sição de líderes do Terceiro Mundo que se pronunciaram por uma

78
1- ATAQUE AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL, BARBÁRIE NEOCOLONIAL, GUERRA.
O OCIDENTE E A ESQUERDA AUSENTE

solução negociada, ou que – pela voz do presidente da Nicarágua,


Daniel Ortega – clamaram pela defesa do “irmão” Gaddafi contra
a “feroz campanha”, muito mais midiática do que militar, instiga-
da contra ele pelo neocolonialismo. Na imprensa italiana e na in-
ternacional podia-se ler tranquilamente que as covert actions (ações
sigilosas) tinham sido colocadas em ação pelos serviços secretos
ocidentais havia já muitos anos antes da eclosão da crise; veremos
que os mesmos jornais e revistas empenhados em apoiar a guerra
contra a Líbia de Gaddafi desenharam um quadro nada lisonjei-
ro dos rebeldes, os quais se dedicaram a pilhagens contra o seu
próprio povo, executaram os soldados feitos prisioneiros, desafo-
garam a sua raiva contra negros e migrantes negros, acusando-os,
sem provas, de serem mercenários a serviço do regime de Gad-
dafi e, como consequência, foram assim tratados (cf. mais adiante,
§ 3.7). Recorrendo a uma informação um pouco mais sofisticada
foi possível deduzir um quadro mais equilibrado das mudanças
ocorridas na Líbia durante a revolução anticolonial, à época con-
duzida por Gaddafi: a duração média de vida dos líbios passou de
51 para 74 anos de idade, foi realizada uma alfabetização em mas-
sa, inclusive das mulheres, a renda per capita aumentou de forma
considerável. No plano internacional, o regime havia combatido a
instalação de bases militares estrangeiras, e lutado pelo desenvol-
vimento soberano e pela unidade econômica e tendencialmente
política da África. Sobre esta base o líder líbio atraiu, sim, sobre si
uma hostilidade implacável do Ocidente, mas também havia ga-
nhado, apesar do caráter pessoal e autoritário do seu poder, a esti-
ma de não poucos líderes do Terceiro Mundo, inclusive de Nelson
Mandela (FORTE, 2012, p. 143 e passim). Tudo isso foi ignorado
por Rossanda. Mas até para querer aceitar a análise por ela feita
da Líbia de 2011, sempre ficará uma pergunta a ser respondida:
para uma líder histórica do movimento de inspiração marxista e
comunista, as promessas não cumpridas pela revolução anticolo-
nial são um motivo suficiente para ter aderido à contrarrevolução
neocolonial?
Talvez a tomada de posição de Camusso e Rossanda se expli-
que pela pressa, a falta de informações adequadas; mas se real-

79
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mente isso ocorreu a reflexão não veio a público. Mais uma vez
impiedosa se revela a ironia da história. À sua época, enquanto
se alastrava a carnificina do primeiro conflito mundial, foram os
bolcheviques que difundiram, junto com outros acordos do mes-
mo tipo, o pacto Sykes-Picot propriamente dito, e denunciaram
a realidade da partilha das colônias que se escondia por detrás
da ideologia da guerra de Prevenção, hipocritamente empenhada
em defender a causa da democracia e da paz no mundo. Hoje
em dia, o novo Sykes-Picot foi de fato endossado pela secretária
de um sindicato que ao longo da história se distinguiu inclusive
na vanguarda da luta anticolonialista e antimilitarista, e por uma
figura de destaque de um “diário comunista” que geralmente de-
senvolveu, e desenvolve, um significativo papel na oposição às
aventuras bélicas do poder dominante.
Da mesma forma que em relação à sucessão de guerras neo-
coloniais também no que se refere ao agravamento do perigo de
guerra em larga escala, é fraca, ou totalmente inexistente, a res-
posta da esquerda ocidental; enquanto isso, vão se ampliando os
focos de um conflito que pode ser catastrófico e, inclusive, cruzar
os umbrais de uma guerra nuclear. E se poderia dizer até que
esteja apagada da memória histórica uma grande época de luta
contra a guerra e os perigos da guerra!
Certamente, o quadro que se afigura da esquerda no Ocidente
varia de país para país. Aqui e ali se notam sintomas de recupera-
ção, enquanto – já dado como morto – o movimento comunista dá
sinais de vida. E, no entanto, no geral falta uma resposta adequa-
da aos processos de desemancipação em curso e aos graves peri-
gos que se delineiam no horizonte. Como explicar – a esta altura
da situação – a ausência, nos EUA e na Europa, de uma esquerda?

80
2

O mundo capitalista-
imperialista como
“mundo livre”?

2.1. Miséria em massa e prisão em massa

N
ão há dúvida: nos Estados Unidos e na também Euro-
pa, e talvez mais do que nunca, continua com crédito
a ideologia que foi imposta com a eclosão da Guerra
Fria, que representa o atual mundo capitalista-imperialista como
o “mundo livre”, ou como a ilha da liberdade (e da civilização)
rodeada por um violento e ameaçador oceano de países que não
compreendem e não conseguem assimilar plenamente o valor da
liberdade. No entanto, exatamente por causa do êxito alcançado
ao longo da Guerra Fria, as condições dentro do Ocidente piora-
ram.
À sua época, A sagrada família percebeu que, em relação à ques-
tão social e à miséria em massa, o Estado burguês se limita “a fe-
char os olhos e a declarar que certas oposições reais não possuem
caráter político, e que elas não lhe causam aborrecimento”, dado
que possuem caráter meramente privado (MARX, ENGELS,
1955-1989, vol. 2, p. 101). Na verdade, justamente o movimento
que foi iniciado por dois pensadores e militantes revolucionários

81
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

“falsificou” essa descrição, no sentido de ter obrigado as clas-


ses dominantes a tomarem medidas mais ou menos amplas de
contenção do mal-estar e do protesto social. É uma dialética que
se evidenciou após a Revolução de Outubro, e sem o desafio re-
presentado por ela não se pode compreender adequadamente o
Estado de Bem-Estar Social que foi criado na Europa ocidental.
Eliminado aquele desafio, a descrição contida n’A Sagrada Família
tende a readquirir atualidade; a questão social é progressivamen-
te remetida à esfera privada.
A crise, a propagação da precariedade e a ameaça da espada
de Dâmocles das demissões e do desemprego (e ainda da restri-
ção de liberdade de ação sindical, em curso sobretudo nos Esta-
dos Unidos) também significam o retorno do “despotismo” na
fábrica (e no local de trabalho), denunciado, como sabemos, pelo
Manifesto do Partido Comunista. A pretensão da ordem existente de
ser a encarnação do princípio da liberdade se desestabiliza nota-
velmente.
Aliás, para compreender isso não há necessidade sequer de
se reportar a Marx e a Engels. Na época de ouro do liberalismo,
Benjamin Constant explicou a exclusão do trabalhador assala-
riado dos direitos políticos desta forma: ele não possui a “renda
necessária para viver independente da vontade alheia”; “os pro-
prietários são donos de sua existência porque podem negar-lhe
trabalho” (CONSTANT, 1957, p. 1149; CONSTANT, 1970, p. 102).
A luta secular do movimento operário e sindical para impulsionar
o reconhecimento do direito ao trabalho, para limitar o poder dos
“proprietários” de demitir a seu bel prazer os seus subordinados,
para conter por meio da construção do Estado de Bem-Estar Social
os efeitos catastróficos da demissão, visou não apenas a melhorar
as condições de vida e de trabalho do trabalhador assalariado ou
subalterno, mas também a reduzir o poder sobre ele exercido pela
“vontade alheia” e a obter um mínimo de “independência”. Tra-
tava-se, em última análise, de uma luta também pela liberdade.
Agora, essa luta pela liberdade é posta de lado; a “vontade alheia”
volta a ditar leis ao trabalhador subalterno; ele, como nos tempos
de ouro do capitalismo e do liberalismo, volta a estar em poder de

82
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

“proprietários” que “são donos da sua existência”. Em consequên-


cia da nova relação de força entre as classes sociais, o despotismo
no local de trabalho mais do que nunca pode prosseguir sem ser
perturbado: nos EUA “a era da desigualdade coincidiu com uma
dramática queda do trabalho organizado” (NOAH, 2012, p. 127).
Disso resulta um subsequente aguçamento da polarização social,
agora tão implacável que se configura, em última análise, como
uma questão de vida ou de morte: nas áreas mais pobres “a expec-
tativa média de vida de um homem é de 10 a 15 anos menor que
nas regiões ricas”. É uma questão de vida ou de morte com uma
dimensão também racial:

“Um homem negro de trinta anos que more no Harlem presumi-


velmente morrerá mais jovem do que um homem de trinta anos
de Bangladesh, e ele muito provavelmente morrerá de infarto,
doença cardíaca, câncer ou diabetes, e não, como se poderia
pensar, de homicídio ou por complicações pelo uso de drogas”
(EPSTEIN, 1998, p. 27).

Aliás, uma vez que – em homenagem ao liberalismo clássi-


co e ao neoliberalismo – a miséria em massa é considerada uma
questão que diz respeito exclusivamente à vida privada, a ques-
tão social se torna um problema de ordem pública: não poucos
desempregados, demitidos, pobres estão destinados a percorrer
o caminho que leva à prisão: “Com cerca de 5% da população
mundial”, os EUA possuem “por volta de ¼ dos presos do mun-
do” (STIGLITZ, 2014). Em 1991, um escritor francês estabeleceu
uma comparação entre a república norte-americana e a república
sul-africana, naquele momento ainda segregacionista e domina-
da pela minoria branca:

“Em dez anos a população carcerária americana mais do que


duplicou, ultrapassando agora em 30% a taxa recorde da África
do Sul (4,26% contra 3,33%). Qual palavra seria preciso inventar
para designar tal ‘gulag’? E então o que acontece na América?”
(ALBERT, 1991, p. 30 e 49).

83
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O paralelo é muito mais agudo pelo fato de que o “gulag” esta-


dunidense mostra-se abarrotado sobretudo de negros: “Os afro-
-americanos constituem um oitavo da população, mas ocupam a
metade dos lugares nas prisões americanas”. A desigualdade não
diminui nem mesmo diante da morte e da condenação à morte:
“Para uma pessoa considerada culpada por ter matado um bran-
co a probabilidade de ser condenada à morte é onze vezes maior
que a de uma pessoa considerada culpada por ter matado um
negro” (LEMANN, 1998, p. 25 e 28). Atualmente, um livro de su-
cesso denuncia a proliferação da prisão em massa, que penaliza
as classes subalternas em geral, mas se abate sobre os negros a
tal ponto que traz à lembrança a perseguição racial dos anos do
regime de supremacia branca (ALEXANDER, 2010).
O “boom penitenciário” e a sua fúria contra as classes subal-
ternas e, por conseguinte, contra as minorias “raciais”, consti-
tuem um fenômeno que não é exclusivo dos EUA: “Nas prisões
europeias muitos presos são migrantes ou filhos de imigrantes,
enquanto nos Estados Unidos são afro-americanos e latinos. As
prisões ocidentais são “prisões negras” que se candidatam, pela
indiferença geral, a principal instrumento de segregação racial do
terceiro milênio”. E se trata de prisões que, por causa em primeiro
lugar do “abarrotamento”, tornam quase impossível “a garantia
dos mais elementares direitos das pessoas presas” e se configu-
ram como “locais insalubres” e até como “aparelho de tortura”
(RE, 2006, p. vi-vii).

2.2. Unipartidarismo competitivo e retorno


da discriminação censitária

No que se refere à liberdade política, já conhecemos a propagada


denúncia do advento da “plutocracia” ou “plutonomia”. Já há mui-
tos anos um eminente historiador estadunidense traçou um quadro
bem pouco lisonjeiro da democracia no seu país: “A ação política,
em certa ocasião apoiada no ativismo, baseia-se agora na disponi-
bilidade financeira”. Dados os “custos assustadoramente altos das
recentes campanhas eleitorais”, claramente se esboça a tendência

84
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

de “limitar o acesso à política àqueles candidatos que possuem for-


tunas pessoais ou que recebem dinheiro de comitês de ação políti-
ca”, ou de “grupos de interesse” e lobbies vários (SCHLESINGER
JR., 1991, p. 380, 377 e 382). É claro: “em um país dominado pelo
dinheiro (...) a desigualdade econômica se traduz em desigualdade
política” (STIGLITZ, 2014). É como se, expulsa pela porta, a discri-
minação censitária voltasse pela janela.
A plutocracia, ou a plutonomia, não exclui a competição. Em
um livro publicado no início dos anos 1990 tratei sobre tal propó-
sito de “unipartidarismo competitivo”: para competir, ao longo
de uma disputa eleitoral que pode até ser muito difícil, há dois
partidos, ou melhor duas personalidades, que na sua visão de
mundo e em seu programa remetem, em última análise, a um ou
a outro dos “grupos de interesse” nos quais se articula aquele 1%
que controla a riqueza e a vida política do país1.
Para que a competição não questione o unipartidarismo
substancial, ela não deve se estender a muitos candidatos, e
possivelmente não deveria envolver mais de dois. Tal exigên-
cia corresponde ao bipartidarismo, que amiúde é identificado e
transfigurado como expressão de sabedoria superior e do mais
robusto sentido prático dos anglo-saxões e de suas “democracias
empíricas” (SARTORI, 1987, p. 54). Na realidade, em determina-
dos momentos críticos da história dos EUA, o bipartidarismo foi
imposto por meio da força pela classe dominante. Nas eleições
municipais de 1917, na onda da luta contra a guerra, os socia-
listas tinham se tornado um partido de primeiro plano: o seu
candidato a prefeito de Nova Iorque obteve 22% dos votos; dez
socialistas foram eleitos para a Assembleia Legislativa do estado
de Nova Iorque; em Chicago os votos socialistas aumentaram em
até 34,7%. O bipartidarismo estava em crise: como reconheceu o
próprio conselheiro do presidente Wilson, Joseph Tumulty: “os
dois partidos [tradicionais] conheceram um total desabono aos
olhos do cidadão médio”, enquanto era reforçado um partido
totalmente alternativo em relação aos democratas e aos republi-

(1) Para a análise do unipartidarismo competitivo e para a história da sua consolidação nos EUA e no
Ocidente ver LOSURDO (1993), cap. 5, §§ 2 e 4 e cap. 8, § 4.

85
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

canos, ambos anuentes em apoiar a intervenção na guerra dos


EUA e em enaltecer a “missão” bélica americana (ZINN, 2002,
p. 414 e 425). O bipartidarismo se restabelecia graças à repressão
que se abateu sobre todos os que eram suspeitos de pouco zelo
patriótico ou pouca lealdade, e que irrompeu principalmente so-
bre o Partido Socialista: o seu candidato às eleições presidenciais
(Eugene V. Debs) foi preso e condenado a dez anos de prisão, se
bem que depois, em dezembro de 1921, ele foi libertado aos se-
tenta anos de idade. Mesmo com a enorme repercussão causada
em nível mundial pela Revolução de Outubro, o fim da guerra
não marcou o fim da violência, legal e ilegal: a Assembleia Legis-
lativa do estado de Nova Iorque foi depurada dos representantes
socialistas presentes em seu seio, apesar de eles terem sido elei-
tos regularmente. De modo parecido, cerca de três décadas de-
pois, por ocasião da eclosão da Guerra Fria, o bipartidarismo foi
resgatado e posteriormente consolidado graças à repressão da
qual foram vítimas os comunistas e todos os suspeitos de serem
seus aliados ou simpatizantes.
Em condições de desenvolvimento relativamente pacífico,
para proteger o regime unipartidarista competitivo intervieram
mecanismos mais sutis: o sistema uninominal e majoritário por
si só já isola os candidatos que não disponham de uma massa
consistente de recursos financeiros; a isto se acrescentam os di-
ferenciados pequenos expedientes com os quais nos EUA cada
um dos estados limita ou dificulta o acesso à candidatura dos
partidos e candidatos independentes. Quando, então, alguém es-
tranho ao sistema político dominante consegue igualmente apre-
sentar sua própria candidatura, superando os muitos obstáculos
legislativos e práticos, eis que tem de enfrentar a censura dos
meios de comunicação, imposta, porém, não pelo alto mas pela
“sociedade civil”.
Observemos as eleições de 1988, aquelas que ratificaram a
ascensão à presidência do republicano George H. W. Bush e a
derrota do candidato democrata Michel S. Dukakis. Pois bem,
nos mesmos Estados Unidos, quem, no devido tempo, teve co-
nhecimento do fato de que também participava da competição

86
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

eleitoral uma certa Leonora B. Fulani? Trata-se de uma mulher


negra, psicóloga de Nova Iorque, apoiada pela comunidade ne-
gra, – que estava frustrada com o Partido democrata – que apre-
sentou um programa pacifista, de amizade com Cuba e de so-
lidariedade ao povo palestino. As televisões que organizaram
os debates eleitorais tomaram precauções no sentido de não
convidá-la, ou mesmo ao apenas mencioná-la. Disso resultou
um recurso à Comissão que deveria, em teoria, garantir “iguais
oportunidades” aos diversos candidatos. As emissoras de televi-
são tinham “vedado aos eleitores americanos o conhecimento do
fato de que havia um terceiro candidato nacional”: com relação
a isso foi apresentado recurso que, no entanto, foi rejeitado com
o argumento de que as emissoras de televisão haviam considera-
do, como um direito seu, a candidatura da senhora Fulani como
“não suficientemente digna de notícia”. Apesar disso, naqueles
mesmos dias, uma respeitável pesquisa de sondagem admitia
que 63% dos eleitores não se sentiam representados nem pelo
candidato republicano nem pelo democrata.
Pode-se apresentar um exemplo mais recente do mesmo fenô-
meno. Nas eleições presidenciais de 2012 era candidata, dentre
outros, Jill Stein, pelo Partido Verde: tentou organizar um pro-
testo público em razão de sua exclusão dos debates na TV, mas
foi rapidamente retirada e controlada pela polícia. De fato, em
um país onde a disputa eleitoral ocorre em primeiro lugar como
duelo televisivo, quem decide os participantes são os grandes
grupos monopolistas que controlam as cadeias de televisão e os
meios de comunicação, quem decide é a riqueza: estamos ainda,
permanentemente, em regime de plutocracia ou plutonomia!
Uma vez excluídos os candidatos não convencionais, eis que a
habitual competição eleitoral se volta em torno da exaltação e re-
afirmação do primado moral (e militar) dos EUA. O mito, ou me-
lhor “o ópio da excepcionalidade” americana, não permite que se
proceda de modo diferente. E assim – reconhece o New York Times
– são ignorados e esquecidos os problemas reais, os temas e dados
que deveriam ser os mais inquietantes: na classificação dos países
que mais se distinguem pela luta contra a “miséria infantil” e a

87
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

“mortalidade infantil” os Estados Unidos ocupam respectivamen-


te os lugares 34º e 49º; eles se saem ainda pior no que se refere à
“mobilidade social”. No entanto, eles encabeçam a lista num que-
sito nada honroso: a superpotência mundial “é a número um no
aprisionamento de seus cidadãos, com a uma taxa de prisão bem
superior à da Rússia, de Cuba, do Irã ou da China” (SHANE 2012).
E não se pense que as condições carcerárias sejam muito suaves
nos Estados Unidos. Eles adoram se apresentar como um modelo
de respeito aos direitos humanos, e assim se mostram particular-
mente em contraposição à China. Mas, quando neste último país
os círculos mais pró-ocidentais vêm a saber que na maior parte
dos Estados da república norte-americana as mulheres presas são
obrigadas a dar à luz acorrentadas, eles ficam incrédulos e horro-
rizados (TATLOW, 2012). É um tema, no entanto, que parece atrair
pouca atenção nos EUA: os problemas reais do país ocupam um
papel marginal nas campanhas eleitorais, como sempre animadís-
simas, que parecem empenhadas em primeiro lugar em discutir
e em disputar sobre a melhor maneira de enaltecer e apresentar
a plutocracia de fato existente como a democracia mais antiga e
mais extraordinária, e sobre a melhor maneira de reforçar, ampliar
ou administrar o poder imperial da Casa Branca, ou sobre o candi-
dato mais qualificado a exercê-lo.
No Ocidente, o unipartidarismo competitivo tende agora a
se difundir para muito além da república norte-americana (e da
Grã-Bretanha), e essa difusão é ao mesmo tempo a garantia do
triunfo da plutocracia. Não por acaso os movimentos de protes-
to assumem com cada vez mais frequência a forma de jacquerie
urbana, que é desprovida de saída política e mesmo de interlo-
cução com as forças políticas presentes no Parlamento: é a de-
monstração de que grande parte das massas populares não se
sente mais representada em organismos representativos eleitos
com base em uma discriminação censitária de fato.
Nos últimos tempos, no entanto, a desconexão entre as institui-
ções e a realidade social é tão acentuada que a tendência à difusão
do unipartidarismo competitivo esbarra em uma contratendência,
com o fortalecimento dos partidos populistas: expressão do cres-

88
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

cente protesto contra a polarização social e um sistema político


obstruído, eles tendem a detectar a origem de todo mal no pro-
cesso de globalização enquanto tal (em curso em nível europeu
e mundial) e se revelam por conseguinte incapazes de elaborar
uma real alternativa, e acabam frequentemente reproduzindo nos
organismos representativos as jacqueries de rua.

2.3. “Kill list” (Lista de morte) e crise do Estado de


Direito

Neste quadro desolador pelo menos continua firme o rule of law,


o Estado de Direito? Para responder a essa questão convém men-
cionar um tipo de reuniões, geralmente secretas, mas diferentes
daquelas que temos visto manifestar e ao mesmo tempo ratificar o
“domínio dos grandes bancos”. Destas reuniões secretas, que agora
é bom analisar, a elite financeira estadunidense não participa, mas
sim a elite política, e em primeiro lugar Barack Obama. Em 2008, ele
chegou à presidência dos EUA ostentando a promessa de fechar de
uma vez por todas Guantánamo; mas essa instituição total – onde
há prisioneiros sem processo e sem ao menos conhecer o termo de
acusação, que não poucas vezes são submetidos à tortura – conti-
nua funcionando. É verdade, o número de novos detentos dimi-
nuiu claramente, mas por qual razão? Quem nos explica isso é o
New York Times. Toda terça-feira, o presidente se reúne com os seus
colaboradores para aprovar a “kill list” definitiva, a lista dos “ter-
roristas suspeitos” que os drones, das alturas, deverão “eliminar”:
segundo a asséptica linguagem do pelotão de execução instalado na
Casa Branca. Não obstante as inumeráveis ações levadas a termo,
a lista não é destinada a se concluir em um futuro próximo, pois
nela são sempre incluídos novos candidatos à morte, os quais mui-
tas vezes nem mesmo alcançaram a maioridade. Numa “kill list”
passada pelo crivo do homem mais poderoso do mundo, em uma
dessas terças-feiras, havia “dois adolescentes, incluindo uma garota
[na foto anexada] que até parecia ter menos de 17 anos”: a forma
verbal da qual se faz recurso aqui nos faz compreender que a ope-
ração decidida pelo presidente estadunidense foi coroada de êxito;

89
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

e talvez a execução não tenha demandado “danos colaterais”. Nem


sempre tais “danos” podem ser evitados ou eliminados: “Quando
surge uma rara oportunidade de atacar com drones um líder terro-
rista, mas a família do terrorista está junto dele, é o presidente que
concede a si mesmo fazer o cálculo moral final”. Ainda que nos seja
assegurado que ele sempre se preocupa em atuar em conformidade
com os “valores americanos”, sabemos, no entanto, que ele pode
decidir soberanamente a morte não apenas deste ou daquele “sus-
peito”, mas na verdade até dos membros da sua família.
Da “kill list” que determinou a sorte dos dois adolescentes fa-
ziam parte até “americanos” (BECKER, SHANE, 2012). E, por con-
seguinte, mesmo os cidadãos estadunidenses que vivem no exte-
rior podem ser condenados à morte com base em uma suspeita, e
vítimas dessas execuções extrajudiciais podem até ser familiares (e
amigos) estadunidenses que tiveram a desventura de estar ao lado
deles. O que aconteceu com o Estado de Direito? O rule of law se
converteu inclusive no direito de vida e de morte exercido sobera-
namente pelo chefe do Estado mais poderoso do mundo.
Certamente, é um direito de vida e de morte que só em situação
excepcional tem em mira os cidadãos estadunidenses, enquanto
é regularmente exercido sobre os “estrangeiros”, e não apenas
aqueles acusados ou suspeitos de terrorismo. Pelo menos até o
início das tratativas entre o Ocidente e a república islâmica, os téc-
nicos e cientistas iranianos que trabalhavam no desenvolvimento
de drones (e de centrais nucleares) caíram vítimas de atentados,
autênticas execuções extrajudiciais, cometidos por iniciativa ou
cumplicidade dos Estados Unidos (PAOLINI, 2012, p. 70-72). Isto
é, para ser incluído na “kill list” de Obama, ou de seus aliados
mais próximos, basta ser ativo na defesa nacional de um país que
não esteja com boas relações com os EUA e que tenha alguma ra-
zão para se sentir ameaçado. Mas isso não é tudo. Sem trair as
emoções, o Corriere della Sera conta que “em total identidade de
pontos de vista com Washington”, os serviços secretos israelenses
têm a missão de “eliminar” os “líderes dos grupos palestinos onde
quer que se encontrem”, os “cientistas iranianos empenhados no
projeto da Bomba” e até aqueles que em outros países são “suspei-

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2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

tos de colaborar com o Irã” (OLIMPIO, 2003). Para ser mais exato,
vimos que mesmo contribuir, ou ser suspeito de contribuir, com o
projeto ou a produção de drones iranianos pode ser fatal. E, então,
seja iraniano ou não, basta a suspeita, e a suspeita de desenvolver
uma atividade por si só – mesmo se considerada inadmissível pe-
los EUA e por Israel – torna legítimo que seja proferida a conde-
nação à morte. Sem falar, para além disso, dos “líderes dos grupos
palestinos” que, “onde quer que se encontrem”, podem ser assas-
sinados com a ativa colaboração, ou com o tácito consentimento,
de Washington. A “kill list” tende a aumentar cada vez mais. Ape-
sar do abrandamento da tensão entre o Ocidente e a república is-
lâmica, de maneira nenhuma se dissipou o perigo de guerra e do
retorno – antes até de um eventual início de hostilidades – das exe-
cuções extrajudiciais de cidadãos iranianos ou de outros países.
Trata-se de uma prática que foi usada primeiro pelo país que se
autoelogia, e é elogiado por seus aliados e adeptos, como a única
democracia existente no Oriente Médio. Ainda no início deste sé-
culo, um respeitável periódico estadunidense criticou duramente
as execuções extrajudiciais realizadas por Israel e “a política ina-
ceitável de assassinar líderes palestinos suspeitos de organizar
ataques” (The Washington Post, 2001). Nos dias atuais, graças aos
EUA, essa prática passou por uma difusão em escala intencional-
mente planetária e se tornou uma trivial rotina. E o burocrata que
atualmente se encontra no centro dessa rotina pode até se vanglo-
riar pelo Prêmio Nobel pela paz.
Sim, os drones exterminadores estadunidenses não conhecem
limites. Operam, por exemplo, no Paquistão. Certamente, o go-
verno e a opinião pública protestam indignados seja pela viola-
ção da soberania, por obra de um país teoricamente aliado, seja
pelo considerável e crescente número de vítimas inocentes: em
alguns vilarejos na fronteira com o Afeganistão o efeito combina-
do de execuções extrajudiciais e danos colaterais parece que teria
resultado em uma espécie de dizimação (BECKER, SHANE, 2012).
As manifestações de protesto se tornam cada vez mais intensas e
raivosas, mas nem assim se observam em Washington sinais de
inquietação e de reflexão.

91
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Uma conclusão se impõe: em homenagem à tradição da “de-


mocracia para o povo dos senhores”, que perpassa profundamen-
te a história do Ocidente liberal, o Estado de Direito não se aplica
aos considerados estrangeiros, em relação ao restrito espaço sa-
grado, aos “bárbaros”. Estes, em virtude de uma simples suspei-
ta, podem sofrer a condenação à morte mediante uma execução
extrajudicial. Ou podem ser submetidos a atrozes torturas: neste
caso, as vítimas são capturadas e aprisionadas em toda parte do
mundo por agentes da CIA que, depois, as entregam aos esbirros
designados (é a famigerada rendition). A tortura é praticada fora
dos EUA, os quais assim podem pleitear sua inocência. De acordo
com a mesma lógica, o campo de concentração de Guantánamo
foi instalado não no território nacional, em stricto sensu, da repú-
blica norte-americana, mas em seu domínio colonial. De maneira
parecida, na segunda metade do século XVIII, o país-guia (naque-
le momento) do Ocidente proclamou orgulhosamente: “O ar da
Inglaterra é muito puro para que os escravos possam respirá-lo”
(LOSURDO, 2005, cap. 2, § 5). Sim, a escravidão não era permitida
dentro do Reino Unido que, em todo caso, ainda era considerado
o país com o maior número de escravos, mesmo que pudicamente
do lado de fora do espaço sagrado. Aparente é também a inocên-
cia dos Estados Unidos: embora procurem apagar ou falsear os
vestígios, para além de Guantánamo, eles são os responsáveis pela
rendition e pela tortura a ela ligada, mesmo que praticada em uma
longínqua parte do mundo.
São conhecidos os argumentos com os quais tudo isso é justi-
ficado: se trataria, em última análise, de operações de polícia que
submetem à justiça os responsáveis por crimes horrendos. É um
argumento claramente desprovido de validade no que se refere
aos cientistas e técnicos, vitimados por uma antecipada execução
extrajudicial como corresponsáveis por possíveis, e futuros crimes,
que os dirigentes políticos do seu país teriam a intenção de come-
ter. Não são convincentes nem mesmo o apelo para não se perder
de vista o trauma do ataque às torres gêmeas e a preocupação com
a recorrência de devastadores atentados terroristas. Nesse argu-
mento, em si racional e sensato, há o erro de se fazer valer apenas

92
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

para os EUA, e não para os países por eles ameaçados militar-


mente e, portanto, submetidos a um Estado de exceção bem mais
grave do que aquele alardeado pela república norte-americana. E
sobretudo a prática da qual se fala aqui chama à memória os es-
quadrões da morte aos quais por muito tempo recorreram certos
regimes da América Latina apoiados pelos Estados Unidos com
o fim de diligentemente se livrar de seus opositores mais radicais
e mais perigosos. É um modelo que nunca foi abandonado: nos
anos imediatamente após a segunda Guerra do Golfo, a imprensa
internacional mencionou que Washington havia decidido recor-
rer, no Iraque, à “opção Salvador”, assim descrita: “Para derrotar
os rebeldes salvadorenhos o governo dos EUA financiou e treinou
os famigerados ‘esquadrões da morte’ governamentais, encarre-
gados de aterrorizar e assassinar os líderes rebeldes e seus parti-
dários” (FARKAS, 2005).
É esta a história que tem sobre os ombros a “kill list” e as exe-
cuções extrajudiciais. Em outras palavras, a crise do rule of law –
que acomete a própria metrópole capitalista e imperialista, e que,
embora atinja em primeiro lugar os bárbaros, se necessário não
poupa nem mesmo os cidadãos estadunidenses – tem por funda-
mento a tradicional recusa do Ocidente capitalista em respeitar
o Estado de Direito quando se trata de povos que ele considera
“bárbaros”.

2.4. A aniquilação do rule of law (Estado de Direito) nas


relações internacionais

O Ocidente e o seu país-guia pretendem exercer um poder de


vida e de morte não apenas sobre os indivíduos em particular,
mas também sobre países e povos inteiros. Depois da Segunda
Guerra Mundial e dos processos de Nuremberg e de Tóquio – que
consideraram ato criminoso mesmo a eclosão da guerra –, e de-
pois da fundação da Organização das Nações Unidas, de fato foi
estabelecido um sistema internacional, segundo o qual as únicas
guerras legítimas são aquelas de defesa, ou aquelas explicitamente
autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU. É esse o sistema

93
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

que os EUA radicalmente questionam, reservando a si mesmos


e à aliança por eles controlada o direito soberano de intervirem
militarmente em todos os cantos do mundo, como fizeram, por
exemplo, em 1999 por ocasião da guerra contra a Iugoslávia e, em
2003, por ocasião da segunda guerra contra o Iraque.
Vem à mente uma marcante definição de Kant. No texto de
1798 (O conflito das faculdades), ele escreveu: “O que é um monarca
absoluto? É aquele que quando ordena: ‘a guerra deve ocorrer’, a
guerra efetivamente ocorre” (KANT, 1900, vol. 7, p. 90, nota). Se
não no plano interno pelo menos em nível internacional o pre-
sidente estadunidense tende a se comportar como o “monarca
absoluto” descrito pelo grande filósofo. Tanto é verdade que, se
os monarcas absolutos de outrora pretendiam desfrutar de uma
investidura divina, nos dias atuais os inquilinos da Casa Branca
proclamam que a sua nação foi “escolhida por Deus” com a tarefa
de comandar o mundo; e adotam esse dogma com igual fervor
tanto republicanos como democratas.
É verdade, por vezes os EUA e o Ocidente, antes de desencadear
uma guerra, se dirigem ao Conselho de Segurança da ONU para
obterem autorização, mas sem renunciarem ao direito soberano
que eles arrogam para si mesmos. Mas nenhuma pessoa sensata
definiria como democrático e realmente representativo da vontade
popular um chefe de Estado que se dirigisse ao Parlamento com
este discurso: “convido-os a demonstrarem a sua confiança em
mim, mas, mesmo sem a sua confiança e até mesmo diante de seu
explícito voto de desconfiança, eu continuarei a governar como
melhor entendo...”. É exatamente nesses termos que os EUA e
o Ocidente se dirigem à ONU! Isto é, as votações que ocorrem
no Conselho de Segurança são constantemente deturpadas por
alguma chantagem!
E não se trata do único. No início dos anos 1990 um periódico
italiano assim se referiu a um debate que se realizou no Conse-
lho de Segurança: “A China se opôs às sanções contra a Líbia e as
três potências ocidentais ameaçaram com represálias comerciais”
(CARETTO, 1992). Tratava-se de represálias que podiam ser tão
devastadoras – destacavam ainda no final daquela década um

94
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

respeitável jornalista e um ilustre politicólogo estadunidense – a


ponto de serem confundidas com um comercial do uso de uma
“arma nuclear” (cf. mais adiante, § 6.10). Certamente, nesse ínte-
rim, no que se refere ao grande país asiático a situação mudou
radicalmente; mas, em relação aos membros não permanentes do
Conselho de Segurança, a chantagem acima mencionada continua
a ser exercida (e a funcionar). Não há nenhuma necessidade de
explicitá-la: “Um estudo de 1999 demonstrou que os países que se
alinham com os EUA nas votações das Nações Unidas têm muito
mais possibilidades de obterem ajuda do Fundo Monetário Inter-
nacional” (FOLEY, 2012).
A referência às “represálias comerciais”, ou às “sanções”, nos
autorizam a passar da guerra propriamente dita à guerra econô-
mica. Sim, até o embargo pode ser incluído na categoria de guerra.
Quem tiver dúvidas poderia ler o comentário sobre isso de uma
revista oficiosa do Departamento de Estado, que é a Foreign Affairs:
após a derrocada do “socialismo real”, em um mundo unificado
sob a hegemonia estadunidense, o embargo constitui a arma de
destruição em massa por excelência; oficialmente imposto para
impedir o acesso de Saddam às armas de destruição em massa, o
embargo ao Iraque, “nos anos posteriores à Guerra Fria, provocou
mais mortes que todas as armas de destruição em massa ao longo
da história” juntas (MUELLER, MUELLER, 1999). Pois bem, para
a guerra econômica se repete o espetáculo já visto com a guerra
em sentido estrito: os EUA e o Ocidente se dirigem ao Conselho
de Segurança para lançarem um embargo contra este ou aquele
país, mas sempre se reservando o direito de procederem de modo
unilateral e soberano. Em outras palavras, mesmo nesse caso, os
governantes do Ocidente continuam se comportando como os
“monarcas absolutos” contra os quais Kant preveniu.

2.5. Democracia ou Império?

Pelo menos no que se refere aos EUA, a ambição e o orgulho


imperial não são disfarçados. Eles estão implícitos na autocele-
bração como nação escolhida por Deus e por Ele investida da

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A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

eterna missão de comandar o mundo, e como única “nação im-


prescindível”. Mas há momento em que tal ambição e tal orgulho
se expressam em alto e bom som. Assim aconteceu nos primeirís-
simos anos deste século, quando personalidades e revistas res-
peitáveis, claramente ligadas aos círculos dirigentes, instigaram
a que se tomasse conhecimento do caráter benéfico e necessário
do “Império americano”, da lógica iminente e inevitável do “im-
perialismo” ou do “neoimperialismo”, da oportunidade de tirar
proveito da experiência histórica do Império romano e do Impé-
rio britânico, instituindo uma “Seção colonial” em Washington e
daqui enviando “pró-cônsules” para toda parte do mundo (FER-
GUSON, 2005, p. 4-6).
Estávamos, nessa época, bem perto do triunfo obtido pelos
EUA na guerra contra a Iugoslávia; a Rússia estava mais do que
nunca debilitada e a ascensão da China ainda não havia se torna-
do evidente com toda a sua força; e as decepções das guerras no
Afeganistão e Iraque ainda estavam por vir. Depois a situação mu-
dou de maneira significativa. E, no entanto, é preciso não perder
de vista um ponto essencial: temos que lidar com um país que des-
de a sua fundação é guiado pelos desígnios do Império. Jefferson
já reivindicava para o seu país, assim que surgiu, a construção de
um “império pela liberdade” destinado a se tornar mais abrangen-
te que o britânico e o romano, ou melhor, o maior e mais glorioso
“desde a Criação até hoje” (LOSURDO, 2005, cap. 8, § 14).
Sem nos determos em uma história bissecular, vamos a seu ca-
pítulo mais recente. Pelo que parece, sobre os neoconservadores
estadunidenses Leo Strauss exerceu uma notável influência. Este,
em fevereiro de 1941, enquanto já se propagava a Segunda Guerra
Mundial (mesmo ainda sem a interferência da URSS e dos EUA),
obviamente tomou uma posição contra a Alemanha hitleriana, da
qual havia fugido, mas não de imediato condenando ou criticando
a ideia de Império. Pelo contrário:

“São os ingleses e nãos os alemães que merecem ser uma nação


imperial (imperial nation); porque apenas os ingleses, e não os
alemães, compreenderam que, para merecer o exercício de um

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2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

poder imperial, regere imperio populos (governar os povos, N.


Trad.), é necessário ter aprendido ao longo do tempo a poupar os
vencidos e a destruir os insolentes, parcere subiectis et debellare
superbos” (STRAUSS, 1999, p. 373).

Eram os anos em que, depois de ter conquistado a Etiópia após


uma bárbara guerra de agressão, Mussolini se apresentou como
o novo César e proclamou que o Império havia feito um triunfal
retorno às “implacáveis colinas de Roma”. Aos olhos de Hitler, o
Terceiro Reich é que seguia os passos do Sagrado Império Romano
da nação alemã e do Império romano propriamente dito. Ao invés
de ridicularizar tais pretensões, Leo Strauss, citando Virgílio, de-
clarou o Império britânico como o verdadeiro herdeiro do Império
romano. Naturalizado três anos depois cidadão estadunidense, o
filósofo não tinha dificuldade em teorizar sobre uma nova trans-
latio Imperii (mudança de Império), de Londres para Washington,
após aquela de Roma a Londres. Dá o que pensar o fato de – justa-
mente quando começava a se erguer a onda de revolução antico-
lonial (na China, na Índia e em outros lugares) – o futuro profeta
da (contra)revolução conservadora, com absurda semelhança com
Hitler, referir-se ao modelo do Império romano que, pelas pala-
vras de Virgílio, estava disposto a “conceder o perdão” (parcere)
apenas aos povos inclinados a se conformarem com a condição
de “subjugados” (subiecti), enquanto não havia salvação para os
povos “insolentes” e obstinados em recusar o jugo imperial.
Saltemos adiante algumas décadas. Nos anos 1970 eis que um
ilustre politicólogo estadunidense publicou um livro todo cheio
de comparações entre Império romano e Império americano e
pela exaltação de ambos: “Nós, igual aos romanos (We, like the
Romans)...” (LUTTWAK, 1993, p. xii). E não apenas os intelectu-
ais argumentaram e sentiram desse modo. Vimos Hillary Clin-
ton enunciar-se como novo Cesar e enaltecer o triunfo imperial
não muito distante do martirizado cadáver, e ainda quente, de
Gaddafi, o rebelde que havia recusado a começar a fazer parte
dos “subjugados” e ao qual, portanto, não era possível “conceder
o perdão”.

97
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Sobre a pretensão da república norte-americana de se conduzir


pelos rastros do Império romano, convém dar a palavra a um dos
mais respeitáveis estrategistas estadunidenses:

“Na supremacia global da América é possível reconhecer de al-


guma maneira os traços dos antigos impérios [em particular “do
romano”], apesar de que a sua extensão fosse certamente mais
reduzida. Aqueles impérios instituíam o seu poder com uma
ordem hierárquica constituída por vassalos, protetorados e colô-
nias, e aqueles que não lhes pertenciam eram considerados bár-
baros. Por mais anacrônica que possa parecer, esta terminologia
se destina muito bem a alguns Estados que atualmente gravitam
na órbita americana” (BRZEZINSKI, 1998, p. 19-20).

Em consonância com a “ordem hierárquica” aqui discrimina-


da, no que se refere ao presente, neste meu livro se fala de Império
(e imperialismo) apenas em relação aos EUA. Os aliados europeus
ou asiáticos podem muito bem ser protagonistas de infames guer-
ras coloniais, mas estão aptos a fazer isso apenas com a condição
de não desafiarem o Grande Irmão; eles exibem sim a sua pre-
sumida superioridade em relação aos “bárbaros”, mas em todo
caso ainda continuam, se não “vassalos”, aliados subalternos dos
Estados Unidos: acolhem as suas bases militares, correndo, des-
sa forma, o risco de serem envolvidos em guerras soberanamente
desencadeadas por Washington, e são expostos a vigilância e con-
trole do Grande Irmão. Devem, inclusive, aceitar a sua jurisdição:
os bancos europeus podem ser obrigados a pagar pesadas sanções
por não terem respeitado suficientemente as leis estadunidenses
que impõem o embargo contra este ou aquele país!
No trecho de Brzezinski destaquei em itálico as palavras que
chamam a atenção para a ampliação sem precedentes do novo
Império. Volta à nossa memória a profecia de Jefferson, que rei-
vindicou para o país, fundado havia pouco tempo, a conquista do
maior e mais poderoso Império “desde a Criação até hoje”. Eis que
a profecia se realizou e um ciclo se fechou. Nos dias atuais desfru-
ta de um extraordinário sucesso nos EUA um historiador britâ-

98
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

nico (ou de origem britânica), que se empenhou manifestamente


na exaltação do “Império americano” e que chama os inquilinos
da Casa Branca a superarem os resquícios de hesitação política e
proibições linguísticas: “Não há imperialistas mais seguros de si
que os Pais Fundadores” (FERGUSON, 2005, p. 33-34).
Agora o historiador acima citado pode muito bem enaltecer,
olhando para Washington, o “Império liberal” (IDEM, p. 2), mas é
claro que Império e liberdade, e principalmente Império e demo-
cracia, não são termos entre si compatíveis. No que se refere aos
Pais Fundadores, o seu imperialismo manifestou-se sobretudo na
expropriação, deportação e dizimação dos nativos, mas também
na escravização dos negros e na tentativa de forçar a rendição ou
de condenar à morte por inanição os escravos negros de Santo Do-
mingo, no Haiti, que tinham cometido o erro de se rebelar e de
derrubar a autocracia branca. Para se aproximar de nossos dias,
a tentativa de submeter o Afeganistão e o Iraque ao Império le-
vou a Abu Ghraib e a outros terríveis locais de prisão, que muitos
analistas fazem lembrar o universo de campos de concentração do
século XX.
E mais: do fato aqui descrito resulta confirmada a tese de Marx
e Engels, segundo a qual não é livre um povo que oprime um ou-
tro. Está claro o percurso que a partir das guerras imperiais no
Oriente Médio e na Ásia central conduz à “kill list”, que sema-
nalmente é lançada por Washington e que, se ainda tem em mira
sobretudo os “bárbaros”, muitas vezes não poupa nem mesmo os
próprios cidadãos estadunidenses, que são destituídos do rule of
law e até condenados à morte sem julgamento. E o panóptico in-
ventado pelo Pentágono e pela Casa Branca, visando a controlar
as comunicações telefônicas e digitais em todo canto do mundo, se
necessário promovendo operações de “regime change” (mudança
de regime) nos países considerados insubmissos ao Império, aca-
ba por vetar aos próprios estadunidenses o direito à privacy (priva-
cidade). Por fim, faz um tempo que ressoa nos EUA a denúncia de
que a política imperial de fato seguida conduziu ao surgimento de
uma “Presidência imperial” (SCHLESINGER JR., 1973b), que so-
beranamente coloca a nação diante do fato consumado da guerra

99
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ou da aventura bélica. À luz de tal denúncia, é ainda nesse sentido


que, por ocasião de crises internacionais, o presidente estaduni-
dense tende a se configurar, do ponto de vista de Kant, como um
“monarca absoluto”.

2.6. “O poder absoluto corrompe de modo absoluto”

O aspirante a Império planetário do qual aqui nos ocupamos


visa a obter (e a mantê-la) uma superioridade militar tão avassa-
ladora a ponto de não haver precedentes em toda a nossa história.
Damos a palavra ao historiador estadunidense Paul Kennedy:

“O exército britânico era muito menor que os exércitos europeus,


e inclusive a Marinha real não superava em tamanho as duas
Marinhas juntas das potências que ocupavam o segundo e o
terceiro lugares – neste momento, todas as outras Marinhas do
mundo juntas não poderiam minimamente afetar a supremacia
militar americana (in: HIRSH, 2002, p. 71).

E não se trata apenas da Marinha:

“Os Estados Unidos dispõem de uma superioridade sem prece-


dentes na dimensão militar, sintetizada na entranhada vanta-
gem da qual desfrutam setores de ponta do bombardeamento
estratégico, de aviões stealth, telecomunicações, sensores e mu-
nições com guia de precisão e, além disso, nas dimensões do
orçamento da defesa (que é quase igual àquele de todas as outras
potências juntas) e das despesas com pesquisa e incremento no
setor militar (que são quatro vezes maiores do que a soma dos
gastos de França, Grã-Bretanha, Alemanha e Itália). Graças a
essa superioridade, os Estados Unidos indiscutivelmente domi-
nam todas as áreas comuns (mar, ar, espaço) das quais depende
a capacidade de projeção da potência e, por conseguinte, o pos-
sível desempenho de uma hegemonia mundial” (COLOMBO,
2010, p. 25).

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2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

Convém ir ainda mais longe: a Full spectrum dominance (pre-


dominância de espectro total) à qual os Estados Unidos aspiram
explicitamente implica o pleno controle das cinco dimensões do
espectro de batalha (terra, mar, ar, espaço extra-atmosférico e ci-
berespaço).
Essa descomunal superioridade militar é muitas vezes or-
gulhosamente proclamada e exibida de modo ameaçador por
estrategistas e políticos estadunidenses: “A amplitude e a pene-
tração da potência mundial americana constituem hoje um fe-
nômeno único” na história; temos que lidar com “um exército
tecnologicamente inigualável, o único em condições de contro-
lar o planeta inteiro” (BRZEZINSKI, 1998, p. 33 e 35). Se, para
além do fator estritamente militar, levamos em consideração o
fator político-diplomático, ainda mais incontestável se revela a
superioridade dos Estados Unidos: o Japão é “essencialmente
um seu protetorado”. Acima de tudo: “A brutal realidade é que
a Europa ocidental, assim como a central em proporção sempre
maior, continua substancialmente sendo um protetorado ameri-
cano, com aliados que lembram vagamente vassalos e feudatá-
rios do passado” (IDEM, p. 40 e 84). É um julgamento reiterado
até mesmo recentemente: a Europa “continua sendo um parceiro
geopolítico subalterno dos EUA no âmbito do Ocidente semiuni-
ficado” (BRZEZINSKI, 2012, p. 22).
Aliás, não se trata apenas de armas e alianças militares. Graças
à sua superioridade tecnológica os EUA têm condições de trans-
formar o “planeta inteiro” em um imenso panóptico que subjuga
os próprios aliados sob o olhar atento de Washington. E isso não é
tudo. Vejamos o que acontece no nível financeiro:

Mesmo a rede internacional de agências técnicas, sobretudo fi-


nanceiras, pode agora ser considerada parte integrante do siste-
ma americano. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Ban-
co Mundial, mesmo representando interesses “globais”, são na
realidade profundamente influenciados pelos Estados Unidos
(BRZEZINSKI, 1998, p. 40-41).

101
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Isso permite controlar vigorosamente os trabalhos da ONU e


do seu Conselho de Segurança, os trabalhos dos organismos que
possam deliberar sobre a paz e sobre a guerra. Para uma execução
combinada desses múltiplos fatores, em 3 de julho de 2013, na es-
perança, que depois se revelou infundada, de aprisionar Edward
Snowden (culpado de ter tornado de domínio público alguns as-
pectos do panóptico estadunidense), os EUA e os seus aliados não
hesitaram em desviar e sequestrar o avião do presidente boliviano
Evo Morales: pelo menos no Ocidente, a indubitável violação da
legalidade internacional não gerou nem protestos e nem revoltas.
Por fim, convém não perder de vista a vastíssima influência exer-
cida no aparato multimidiático internacional, um aparato que,
como logo veremos, permite o controle da produção não apenas
das ideias, como também das emoções.
É verdade, a crise econômica vem gerando dificuldades até mes-
mo ao Pentágono, obrigado a reduzir o seu orçamento, que conti-
nua sendo gigantesco e sem precedentes. Mas, ao invés de atenuar,
essa circunstância pode aumentar as preocupações sobre o futuro
da paz. Podia-se dizer que Washington queria reafirmar e fortale-
cer a sua hegemonia mundial antes que seja muito tarde: por isso
então o “pivot”, a movimentação do aparato militar na Ásia com a
mira apontada em direção à China, os exaltados preparativos para
o desenvolvimento e a instalação de um sistema antimíssil, chama-
do a garantir aos EUA o quase monopólio de arma nuclear e, por
conseguinte, a possibilidade de um resolutório “primeiro golpe”.
Diante dessa situação, e dessa ambição, teria sido possível espe-
rar que os intelectuais mais zelosos do Ocidente liberal fossem de-
monstrar preocupação. Afinal, à sua época, Lord Acton, um clássi-
co do liberalismo, pronunciou a máxima segundo a qual “o poder
tende a corromper, o poder absoluto corrompe de modo absoluto”.
O grande mérito histórico do liberalismo foi o de deslocar o foco
da busca de excelentes governantes para a introdução de regras e
mecanismos prontos a limitar o poder e, por conseguinte, torná-lo
aceitável e de algum modo inofensivo. Pois bem, à luz deste en-
sinamento, independentemente da personalidade dos presidentes
que se sucedem na Casa Branca, o poder absoluto de vida e de

102
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

morte que eles exerceram, ou aspiram a exercer, em nível planetá-


rio deveria ser considerado um grave e inaceitável risco, ou melhor
uma calamidade. Mas, ao invés disso, o Ocidente liberal em seu
conjunto e os seus pensadores mais influentes preferiram demons-
trar uma preocupação contrária: mostram-se inquietos e alarma-
dos com o fato de que o poder absoluto reivindicado por Washin-
gton foi desestabilizado pela inesperada resistência que encontrou,
e encontra, em diversos cantos do mundo, pelas dificuldades eco-
nômicas que dificultam a manutenção e o desenvolvimento de um
aparato militar tão colossal e pela ascensão dos países emergentes,
e em particular da China.
Devemos então concluir que o atual Ocidente liberal não assi-
milou a lição de Lord Acton ou a traiu sem hesitação? Seria uma
conclusão apressada. Detenhamo-nos um instante sobre a máxi-
ma agora no centro de nossas atenções. Quem fez uma afirmação
tão sábia foi um autor que por ocasião da Guerra da Secessão se
dizia favorável ao Sul escravista. Ou seja, o princípio da limitação
de poder se fazia valer no âmbito da comunidade branca, mas não
no que diz respeito ao relacionamento desta última com a popula-
ção de cor e de origem colonial; era considerado válido no âmbito
do espaço sagrado, mas não no que se refere à relação entre espaço
sagrado e espaço profano: o poder absoluto que o patrão branco
exercia sobre seus escravos negros e sobre os nativos (expropria-
dos, deportados e dizimados) não constituía um problema.
Não se tratava de modo algum de um caso isolado. Mais ou
menos contemporâneo de Lord Acton, o liberal de esquerda John
Stuart Mill assumiu aberta posição contra o Sul e favorável à aboli-
ção da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, em uma obra dedicada
já no título à exaltação da liberdade (On Liberty), ele não teve ne-
nhuma dificuldade em teorizar sobre o “despotismo” do Ociden-
te sobre “raças” ainda “menores de idade”, obrigadas a cumprir
uma “absoluta obediência” a fim de serem conduzidas rumo ao
progresso. A homenagem rendida à “liberdade”, por um lado, e
ao “despotismo” e à “absoluta obediência”, por outro, era um mo-
tivo tão pequeno de embaraço, que John Stuart Mill, em uma sua
outra obra dedicada à exaltação do “governo representativo” e,

103
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

por conseguinte, em última análise, da liberdade, chegou a esta


veemente conclusão: o “despotismo que os povos avançados exer-
cem” sobre os povos atrasados já é “uma condição usual”, mas
que deve se tornar “geral”. Ou então tomemos Tocqueville. Com
soberano desprezo, ele chamou de “sanguinolenta catástrofe” a
grande revolução de Santo Domingo, no Haiti – que tinha abo-
lido a escravidão, e foi o primeiro país do continente sul-ameri-
cano a se libertar de tal flagelo. Por outro lado, Jefferson (o presi-
dente-proprietário de escravos, intransigente adversário do país
nascido da revolução dos escravos negros, o estadista propenso
a encorajar a tentativa de Napoleão de, com o terror, reincorporar
Santo Domingo, no Haiti, como um domínio colonial) afigurava-
-se para o liberal francês como o “maior democrata, como nunca
antes havia saído das entranhas da democracia americana”2. Em-
bora assumindo posições políticas entre si diferentes, Acton, Mill
e Tocqueville concordaram em relação a um ponto essencial: defi-
niram e exaltaram a liberdade ou a democracia limitando-as à co-
munidade branca e desconsiderando totalmente a escravidão, ou
melhor a ditadura terrorista imposta por essa comunidade branca
sobre negros e outras raças consideradas inferiores.
É um capítulo da história que ainda não está terminado e está
bem longe de ser concluído. Karl R. Popper conquistou fama
internacional e, melhor, é enaltecido no panteão do Ocidente
liberal como teórico da “sociedade aberta” e defensor de um “novo
enfoque” no âmbito do discurso político. Em vez de continuar a
se perguntar “quem deve governar” seria preciso se colocar um
problema diferente: “Como podemos organizar as instituições
políticas de modo a impedir que os maus ou incompetentes
governantes façam um grande estrago?” (POPPER, 1974, vol. 1, p.
174-175). E agora vejamos de que maneira o teórico da “sociedade
aberta” se move no âmbito das relações internacionais. Um ano
depois da primeira Guerra do Golfo, em relação às ex-colônias
ele proclama: “Libertamos esses Estados muito rápido e de uma
maneira muito simplista”; é como “abandonar à própria sorte um
(2) Cf. LOSURDO (2005), cap. 5, § 9 (para Lord Acton); cap. 1, § 1 e cap. 8, § 3 (para J. S. Mill); e cap. 5,
§ 12 (para Tocqueville).

104
2. O MUNDO CAPITALISTA-IMPERIALISTA COMO “MUNDO LIVRE”?

abrigo de crianças”. Portanto, a pergunta referente a “quem deve


governar” não tem nada de obsoleta: quem deve governar é o Oci-
dente. E este é chamado a exercer o poder não apenas sobre países
como o Iraque; é preciso não perder de vista “a China comunista,
para nós inacessível”. Os países que se autoproclamam represen-
tantes exclusivos da civilização não devem hesitar em impor a sua
vontade sobre o planeta inteiro, se necessário recorrendo às ar-
mas: “Não devemos ter medo de executar guerras pela paz”, pela
realização da “pax civilitatis” (paz da civilização) em nível mundial
(POPPER, 1992b e 1992c). O almejado “novo enfoque” revela-se
como a adaptação do enfoque tradicional, segundo o qual se o
Ocidente deve-se concentrar no problema da limitação de poderes
(como conter o “estrago” de eventuais “maus ou incompetentes
governantes”), em nível planetário o problema fundamental é:
“quem deve governar?”. Para Pop­per, não existem dúvidas: quem
deve exercer o poder é o Ocidente e de modo substancialmente
ditatorial, apelando à sua superioridade militar e sem esperar a
autorização do Conselho de Segurança da ONU, sobre a qual o
teórico da “sociedade aberta” não faz referência alguma.
Em Lord Acton – que, com o olhar voltado à comunidade bran-
ca, exigia a limitação de poder, mas ao mesmo tempo considerava
legítimo o poder absoluto exercido pelos brancos sobre os escra-
vos negros –, não é difícil perceber os rastros daquela “democracia
para o povo dos senhores” que profundamente atravessa a histó-
ria do Ocidente liberal. Seria tolice ignorar ou subestimar as pro-
fundas mudanças que ocorreram nesse ínterim, após a revolução
anticolonial mundial. Entretanto, algo da tradicional “democracia
para o povo dos senhores” ainda sobrevive na maneira de agir do
“mundo livre”. Não é certamente uma ruptura total com o pas-
sado reinterpretar a white supremacy (supremacia branca) como a
western supremacy (supremacia ocidental) que o Ocidente fez valer
por muito tempo e violentamente, continuando a ignorar o prin-
cípio de igualdade entre as nações e o problema da efetivação da
democracia e do Estado de Direito em nível internacional.
Infelizmente, de uma maneira parecida argumenta a esquerda
ocidental, que, nesse ponto de vista, herda acriticamente todas as

105
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

limitações da tradição liberal. Para Norberto Bobbio, pelo menos


no que se refere à última fase da sua evolução, não há dúvidas.
Quem representa a causa da liberdade e da democracia são os
EUA e os seus aliados: os golpes de Estado engendrados na Amé-
rica Latina, por exemplo; as guerras ocasionadas sem a aprovação
do Conselho de Segurança da ONU; a “liberdade de não sentir
medo”, anulada em base planetária, enfim, a democracia nas rela-
ções internacionais não desempenha nenhuma função! Poderia se
pensar que para a esquerda radical as coisas ocorressem de modo
diferente, mas não é assim. Quando Slavoj Žižek fala da China
como um “capitalismo autoritário” (cf. mais adiante, § 7.5) procede
a uma implícita contraposição em relação ao capitalismo de algu-
ma forma “democrático” do Ocidente: ele argumenta além disso
do mesmo modo que Bobbio (e de Popper). Mas a coisa é muito
mais assombrosa pelo fato de que, ao contrário do filósofo italia-
no, o filósofo esloveno chama a atenção para um aspecto essencial
da política estadunidense. Ele relembra a diretriz fornecida por
Henry Kissinger à CIA no final do processo de desestabilização do
governo de Salvador Allende no Chile (“Faça, sim, com que a eco-
nomia grite de dor”) e ressalta como tal política continuou sendo
colocada em prática contra a Venezuela de Chávez (ŽIŽEK, 2011,
p. 130; 2012, p. 85). Mas, mesmo reconhecida e colocada em evi-
dência, a pretensão de exercer uma ditadura planetária, usando
de todos os recursos, não tem nenhuma função quando se trata de
distinguir entre países “autoritários” e países que assim não são.
A questão que a esquerda ocidental constantemente evita está
no centro deste livro: o “mundo livre” realmente simboliza a cau-
sa da liberdade? As mudanças ocorridas após o triunfo por ele
obtido na Guerra Fria tornaram evidente o caráter mais do que
nunca problemático, se não enganador, dessa autorrepresentação.
Por outro lado, esse triunfo decididamente tornou mais insegura,
ou entregue a um estado de confusão mental, a oposição ao siste-
ma existente. É dessa forma que se pode explicar a hegemonia da
qual desfrutam o neoliberalismo (econômico e político) e princi-
palmente o neocolonialismo?

106
3

Sociedade do
espetáculo, terrorismo
da indignação e guerra

3.1. Da produção de ideias à produção de emoções

N
a realidade, a viragem de 1989-1991 não é o bastante para
explicar o abatimento que ainda afeta a esquerda no Oci-
dente, apesar da crise econômica e política e da sucessão
de guerras desencadeadas em violação do direito internacional,
de natureza claramente neocolonial e portadoras de catástrofes
em escala bem mais ampla. Convém aprofundar a análise, investi-
gando as mudanças ocorridas no interior da metrópole capitalista.
Para compreendê-las começamos a nos questionar sobre uma ob-
servação feita por Marx nos anos 40 do século XIX:

“As ideias da classe dominante são em qualquer época as ideias


dominantes; isto é, a classe que é a potência material dominante
é ao mesmo tempo a sua potência espiritual dominante. A classe
que dispõe dos meios de produção material dispõe, ao mesmo
tempo, dos meios de produção intelectual, de maneira que, em
linhas gerais, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de
produção intelectuais estão submetidas a ela” (MARX; ENGELS, 1955-1989,
vol. 3, p. 46).

107
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Certamente, essa análise pode ser considerada válida apenas


em relação a uma situação de relativa estabilidade, e mesmo nesse
caso convém não perder de vista a resistência inclusive ideológi-
ca desenvolvida de modo circunspecto pelas classes subalternas.
Para avaliar adequadamente o trecho acima citado d’A Ideologia
Alemã, convém confrontá-lo com um trecho contemporâneo, da
Democracia na América, que assim descreveu a situação vigente na-
quele país no que se refere à imprensa:

“A criação de um jornal é um empreendimento simples e fácil;


com poucos assinantes já dá para um jornalista cobrir as despe-
sas: assim o número das publicações periódicas ou semiperió-
dicas nos Estados Unidos ultrapassa tudo o que se possa imagi-
nar. Os americanos mais ilustres atribuem o pequeno poder da
imprensa a essa inacreditável dispersão das suas forças” (TOC-
QUEVILLE, 1951, vol. i.1, p. 189-190 = TOCQUEVILLE, 1968, p.
221-222).

É o caso de apenas observar que esse quadro, talvez não


destituído de tons edificantes logo no momento em que foi
traçado, de nenhum modo corresponde mais à realidade atual,
caracterizada por um gigantesco processo de concentração que, de
fato, assegurou à grande burguesia o monopólio sobre a imprensa.
Mas há uma outra novidade em relação aos tempos de Marx (e de
Tocqueville). A ideologia Alemã se referia à imprensa, à produção
de “ideias” e à sujeição que sofreram as “ideias” das classes su-
balternas.
Mas – observou Gustave Le Bon no final do século XIX – era
preciso analisar a realidade: “as massas são (...) femininas”, irra-
cionais. E, portanto, para influenciá-las ou controlá-las devia-se
apelar para os seus “sentimentos”, para aquilo que “persuade”,
e assim provocar entusiasmo por “ações heroicas evidentemente
um pouco inconscientes” ou para “quimeras, filhas do inconscien-
te” (LE BON, 1980, p. 63, 148 e 56-57). A partir desse momento,
no centro da luta pelo poder estava sim o controle das ideias, mas
principalmente das emoções, e tal controle seria possível de ser

108
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

conquistado ou mantido fazendo apelo, em primeiro lugar, ao


“inconsciente”. Justamente por isso era necessário recorrer a técni-
cas de “publicidade” comercial: um candidato às eleições ou uma
guerra desencadeada por um governo deviam ser propagandea-
dos exatamente como se fossem um “chocolate”, mediante a siste-
mática repetição de uma “afirmação pura e simples, desvinculada
de qualquer raciocínio e de qualquer prova” (IDEM, p. 159-160).
O embaralhamento de uma sugestão mais ou menos inconsciente
com uma obsessiva repetição foi chamado para desarticular as já
debilitadas resistências racionais das “massas”.
A viragem aqui genialmente intuída se tornou prática diária e
científica por mais de meio século ainda e, após a junção de pro-
dução de massa, consumo de massa e publicidade comercial, volta
a estimular exatamente o consumo de massa. Nos anos de recons-
trução pós-guerra e do milagre econômico, um livro de grande
sucesso nos EUA em 1957 chamou a atenção para um fenômeno
inédito e inquietante: “O ataque ao inconsciente” realizado pela
publicidade comercial havia assumido uma dimensão qualitati-
vamente nova. Era preciso considerar a realidade: “a nossa exis-
tência diária está sujeita a constantes manipulações das quais não
nos damos conta”; a última palavra era agora dos “manipulado-
res ocultos”, dos “magos do espírito”, empenhados em analisar e
causar “especiais ‘efeitos subliminares’”. Agora “os fabricantes de
imagens haviam se convencido de que justamente o fator emotivo
podia ser determinante no comércio de massa”; de maneira que
“os manipuladores mais astutos sempre utilizam palavras-chave
e imagens-chave para produzir as reações desejadas” (PACKARD,
1964, p. 13, 19, 32, 50, 56). A viragem não atropelou apenas o mun-
do dos consumos de massa. A publicidade comercial e as public
relations (relações públicas) desempenharam um papel essencial
e mesmo decisivo até nas disputas eleitorais e na vida política em
geral. Impunha-se uma conclusão desoladora: “No fundo, o méto-
do é útil, em escala nacional, ao homem político, que age sobre o
eleitor – hoje em dia tratado mais como o cão adestrado de Pavlov
– com o uso excessivo de símbolos, convenientemente manipula-
dos e repetidos” (IDEM, p. 14 e 191).

109
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

A política da qual se fala é ainda predominantemente aquela


interna de cada país; a publicidade comercial e as public relations
ainda não atingiram plenamente a política internacional. Para
compreender esta última viragem é preciso dar um passo atrás.
Pouco antes de Le Bon publicar a sua Psicologia das massas, Otto
von Bismarck, atraído pelo expansionismo colonial promovido
pelo Segundo Reich e pelas outras grandes potências do Ocidente
– em nome da expansão da civilização e da defesa dos princípios
humanitários –, assim se dirigiu aos seus colaboradores: “Não
seria possível encontrar detalhes horripilantes em episódios de
crueldade?”. Na onda de indignação moral por elas gerada teria
sido afinal mais fácil apregoar a cruzada contra a barbárie afri-
cana e islâmica e reforçar o papel internacional da Alemanha. O
chanceler de ferro pode ser considerado o primeiro teórico das
“guerras humanitárias”, que no final do século XIX tinham como
pretensão ser inspiradas, como as atuais, no amor à liberdade e à
justiça, ou inspiradas no desprezo à manutenção da escravidão no
Oriente Médio e na África. É nesse contexto que está colocado o
memorável princípio de Nietzsche: “Ninguém mente tanto quan-
to o indignado” (1). Se Le Bon transferiu a ênfase sobre a produção
de ideias para a produção de emoções, Bismarck apontou a indig-
nação como a emoção de fundamental importância: a produção
artificial de indignação e o seu manejo haviam agora se tornado
um expediente de política internacional.
Bismarck pretendia utilizá-lo visando aos “bárbaros” que a
Europa e o Ocidente eram estimulados a submeter e civilizar ao
longo de campanhas apoiadas por uma massa tomada de indig-
nação. Mas nos EUA, desde as suas origens habituados a conduzir
as campanhas contra os nativos como guerras de civilização e de
religião, o recurso à produção e à manipulação da indignação ten-
dia a se tornar um componente essencial das operações de guer-
ra enquanto tais, qualquer que fosse o inimigo a ser alvejado. A
guerra hispano-americana, que encerrou o século XIX e inaugurou
o XX, foi preparada ideologicamente por Washington mediante a

(1) Para além do bem e do mal, 26; sobre tudo isso ver LOSURDO (2002), cap. 32, § 2.

110
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

difusão de “notícias” completamente inventadas, que diziam ser


os espanhóis os responsáveis pela morte de prisioneiros desarma-
dos e pelo massacre de 300 mulheres cubanas (MILLIS, 1989, p.
60). E, assim, criou a indignação contra um inimigo que – bradava
a resolução do Congresso de 20 de abril de 1898 – não hesitou em
recorrer a medidas que contrariavam o “sentido moral do povo
dos Estados Unidos” e que representavam uma “desgraça para a
civilização cristã” (in: COMMAGER, 1963, vol. 2, p. 5).
Assistiu-se a um agravamento da situação, durante o primei-
ro conflito mundial, quando a intuição genial de Bismarck foi
aplicada precisamente contra o país do chanceler de ferro. Sim,
foi particularmente infamante a acusação contra os alemães: es-
tes, conforme a aviltante denúncia, confirmada por intelectuais
ingleses de primeira linha (sobretudo Arnold Toynbee), tinham
violado mulheres e até crianças, empalado e crucificado homens,
decepado línguas e peitos, arrancado olhos e incendiado povoa-
dos inteiros. Essas infâmias foram documentadas não apenas por
testemunhos oculares como também por inequívocas fotografias:
estas, porém, foram o resultado de uma hábil manipulação, à qual
havia fornecido a sua resoluta contribuição a nascente indústria
cinematográfica estadunidense, que em Nova Jérsei filmava as
cenas das atrocidades com as quais foram desonradas as tropas
alemãs na Bélgica! Principalmente duas particularidades dão o
que pensar. O fato das mulheres estupradas e seios arrancados
nos remete às dramatizações com as quais na América a ideologia
oficial procurou estimular os “ímpetos sexuais e raciais” em rela-
ção aos índios. Em seguida, há os homens “crucificados: era como
se a prática de homicídio ritual, tradicionalmente imputada aos
hebreus, fosse atribuída aos alemães (LOSURDO, 1996, cap. 5, § 1).
Na medida em que o acirramento dos conflitos entre povos “civi-
lizados” levava à expulsão da comunidade civil do inimigo, recor-
ria-se então a uma arma tradicionalmente destinada à luta contra
os “bárbaros”. Por meio de mensagens conscientes e subliminares,
nada que pudesse aumentar a carga de indignação foi despreza-
do. A “mobilização total” – palavra de ordem que em todos os pa-
íses acompanhou a Primeira Guerra Mundial – ia de mãos dadas

111
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

com a manipulação total, que tinha em seu âmago a produção e o


manejo da indignação. E por isso, o método sugerido por Le Bon
está estritamente ligado àquele teorizado por Bismarck: a missão
principal da propaganda de guerra foi a incessante repetição de
“revelações” e o incansável apelo a imagens chamadas a produzir,
graças ainda ao recurso a técnicas subliminares, uma avassalado-
ra e irresistível onda de indignação contra um inimigo capaz de
qualquer infâmia.
Um subsequente salto de qualidade se verifica a partir do fim da
Guerra Fria, e não apenas pelo papel ativo e essencial que, como ve-
remos, as agências de public relations são chamadas a desempenhar
na eclosão e na condução da guerra. Não, há muito mais: a produção
de indignação já não é conveniente apenas para inflamar o próprio
exército e para desmoralizar o inimigo. Graças à televisão, aos
celulares, ao computador e às redes sociais, a indignação espontâ-
nea ou artificialmente produzida pode contar com uma difusão de
uma sutileza e abrangência sem precedentes, e dela pode servir-se o
país mais poderoso, também na área da tecnologia da comunicação,
para desestabilizar o país inimigo já a partir de dentro. Ao longo da
guerra contra o Vietnã, os Estados Unidos puderam comprovar o
impacto dramático que tinham sobre a opinião pública as imagens
televisivas dos campos de batalha e das cidades e aldeias bombar-
deadas sem piedade. Uma questão se afigurou na mente dos estra-
tegistas, sobretudo dos estadunidenses: quais resultados podem ser
obtidos ao se escolher como alvo um país totalmente indefeso mes-
mo no âmbito multimidiático, e ao bombardeá-lo, com um poder de
fogo sem precedentes, com imagens (inclusive fabricadas artificial-
mente) preparadas para produzir a indignação na opinião pública
interna e também na de fora?
É uma questão à qual se procurará responder ao longo da
próxima exposição. Mas por enquanto pode-se trazer duas
conclusões. Em primeiro lugar: hoje em dia, no âmbito da
política interna, o controle monopolista exercido pela grande
riqueza sobre os meios de produção das ideias, e principalmente
das emoções, desempenha um papel de longe mais importante
que nos tempos de Marx.

112
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

Em segundo lugar, é preciso levar em consideração as relações


de força hoje vigentes no plano internacional: monstruoso e de
uma força sem precedentes na história é o aparato militar mantido
pelos Estados Unidos. A coisa é bem conhecida e a ela prestam a
devida atenção seja os países obrigados a viver sob permanente
ameaça de bombardeamentos, de guerra e de invasão, seja os mo-
vimentos empenhados na luta pela paz. Menos conhecida é uma
outra realidade, que no entanto é estritamente ligada à primeira:
é o terrível poder de fogo multimidiático, é o terrorismo da indig-
nação ao qual pode recorrer a Casa Branca quando promove ou
conduz as suas intervenções militares. Antes que se desenrolem
os bombardeamentos com sua carga de morte, já está atuante uma
intensa campanha de desinformação, destinada a isolar o máximo
possível o inimigo e a produzir contra ele uma onda planetária de
indignação moral. Considerações análogas valem para as opera-
ções que visam a desestabilizar o país inimigo ou potencialmente
inimigo e a produzir no seu interior a regime change (mudança de
regime) pretendida por Washington.

3.2. Consolidação e cumplicidade do Ocidente

Mas tudo isso ainda não é suficiente para explicar o conside-


rável monopólio conseguido pelo Ocidente (ou por suas classes
dominantes) na produção das ideias e das emoções. No quadro
até aqui traçado é preciso fazer constar também a mudança nas
relações de força que se verificou nos planos interno e externo a
partir da crise do movimento socialista e comunista. Durante todo
um período histórico, no âmbito de cada país individualmente,
as trombetas das classes dominantes foram de algum modo con-
frontadas pelas sinetas das classes subalternas: os partidos e os
sindicatos de inspiração marxista e de orientação socialista ou
comunista. E estas sinetas continuaram por um longo tempo a
desempenhar um importante papel, apesar do processo de pro-
gressiva concentração dos meios de comunicação nas mãos da
grande burguesia. Certamente, as duas partes não combatiam de
igual para igual a batalha midiática ou multimidiática. No plano

113
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

material, as relações de força eram claramente favoráveis às clas-


ses ricas e dominantes, porém, a paixão idealista e o compromis-
so generoso de um número mais ou menos elevado de militantes
tratavam de equilibrar, ou refrear, em certa medida esse desequi-
líbrio. A ideologia dominante qualificou as células, as seções, as
escolas do partido, as revistas, os jornais, os livretos e os folhetos
que eram divulgados fora dos circuitos normais, e circulavam de
mão em mão, como sinônimos de doutrinamento. Mas tudo isso
funcionou ao mesmo tempo como um abrigo em relação ao inces-
sante bombardeamento multimidiático colocado em prática pelos
detentores da riqueza, do poder e dos grandes meios de comuni-
cação. Algo parecido ocorreu no âmbito internacional: apesar da
esmagadora superioridade material e multimidiática do Ocidente,
não era nada irrelevante o contrapeso representado pelo “campo
socialista” e o movimento comunista, sobretudo no Terceiro Mun-
do, onde estava em curso a revolução anticolonial. Hoje em dia
atuam, apenas controlando a produção e difusão das ideias e so-
bretudo das emoções, as trombetas das classes dominantes. Além
de mais potentes e penetrantes, elas ecoam em uníssono e até se
assemelham a uma espécie de coro.
É necessário, sim, levar em consideração uma outra importante
mudança que se verificou no cenário internacional. Durante todo
um período histórico, os conflitos entre as grandes potências
capitalistas, como todas as lutas internas da burguesia e das
classes dominantes, forneceram às classes e aos povos em situação
de inferioridade “elementos educativos” (Bildungselemente) ou
importantes “elementos de esclarecimento e de progresso” (Au-
fklärungs-und Fortschrittselemente): assim se expressou o Manifesto
do Partido Comunista (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 4, p. 471).
Uma observação que acertou no alvo. Acusada pela maior parte da
opinião pública internacional pela brutalidade com a qual havia
conduzido a guerra contra os bôeres (presos em massa em cam-
pos de concentração que prenunciaram o horror do século XX), a
Grã-Bretanha reagiu com um discurso pronunciado pelo ministro
das Colônias, Joseph Chamberlain, em 25 de outubro de 1901 em
Edimburgo, o qual, indistintamente, tinha como alvo Rússia, Áus-

114
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

tria, França e Alemanha: “O governo inglês nunca chegará perto


do que fizeram outras nações na Polônia, no Cáucaso, na Bósnia,
em Tonkin e na guerra de 1870” (in: DE ROSA, 1986, p. 303). Ao
longo da Primeira Guerra Mundial, Max Weber (1988, p. 354) cha-
mou a atenção sobre as vergonhas do regime de white supremacy
em vigor nos Estados Unidos, que então pretendiam dar uma lição
de democracia na Alemanha. Cerca de vinte anos depois, apesar
da experiência da fraternidade de armas da Primeira Guerra Mun-
dial, Kipling (1964, p. 123) rebateu os EUA – que criticaram a dura
repressão contra o movimento independentista na Índia britânica
–, dizendo que o seu país não podia aceitar lições de moral de
um povo que havia “exterminado os aborígenes do seu continen-
te com uma perfeição até então desconhecida de qualquer outra
raça da atualidade”. No decorrer de sua disputa por hegemonia,
as grandes potências se desmascaravam reciprocamente.
Agora esse elemento de esclarecimento e de “iluminismo” so-
freu um drástico redimensionamento. Certamente, logo depois
das divergências surgidas por ocasião da segunda Guerra do
Golfo, em 2003, quando a França se contrapôs à política de Wa-
shington e de Londres, um renomado historiador, apregoador da
missão imperial antes britânica e hoje americana, assim encarou o
país rebelde:

“Aqueles que hoje veem no presidente francês Jacques Chirac


a personificação da consciência de comunidade internacional
deveriam refletir sobre o papel da França nesse pesadelo [o mas-
sacre em Ruanda dos Tutsi por parte dos Hutu]. Foi a França que
forneceu desde os primeiros anos da década de 1990 apoio mili-
tar ao governo de Juvenal Habyarimana controlado pelos Hutu
(...). Foi a França que enviou tropas com o fim de estabelecer no
sudoeste do país “áreas seguras” para os Hutu, entre os quais
estavam os autores dos massacres” (FERGUSON, 2005, p. 149).

Em síntese: a França que em 2003 denunciou como um imoral


derramamento de sangue a guerra desencadeada por Bush Jr. e
Tony Blair sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU,

115
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

e usando de mentiras (as armas de destruição de massa nas mãos


de um Saddam ansioso por usá-las), havia sido alguns anos antes
corresponsável por um horrível genocídio; a troca de acusações
fez a indignação ricochetear de um país para outro. Mas, hoje em
dia essa polêmica representa uma exceção: a regra são as guerras
desencadeadas de comum acordo e ao longo das quais as duas
margens do Atlântico se fornecem suporte reciprocamente não
apenas no plano militar como também no multimidiático.
Graças à indiscutível superioridade militar e tecnológica por
eles obtida, os EUA conseguiram consolidar o mundo capitalista
sob a sua direção: os dirigentes europeus que vão a Washington
em viagem ou em peregrinação – mesmo se não se prostram dian-
te da liderança moral e política da república norte-americana – es-
tão de qualquer modo empenhados em enaltecer o Ocidente no
geral.
As vozes discordantes têm muitas dificuldades para se fazerem
ouvir. Enquanto desmoronava o “campo socialista”, um estudioso
da “ocidentalização do mundo” descreveu este quadro:

“O mercado da comunicação é o quase monopólio de quatro


agências: Associated Press e United Press (Estados Unidos);
Reuter (Grã-Bretanha); e France Press. Todas as rádios, todas as
cadeias de televisão, todos os periódicos do mundo são usuários
dessas agências. 65% das ‘informações’ mundiais saem dos Es-
tados Unidos” (LATOUCHE, 1992, p. 29).

Por volta de dez anos depois, a situação tornou-se ainda mais


desequilibrada a favor do Ocidente, principalmente do seu país-
-guia:

“Os programas de televisão e os filmes americanos cobrem ¾


do mercado mundial (...). A língua da internet é o inglês, e gran-
de parte das tagarelices que circulam ao longo da Grande Teia
Mundial tem a sua fonte na América (...). Graduados de universi-
dades americanas podem ser encontrados nos governos de qua-
se todos os países” (BRZEZINSKI, 1998, p. 38).

116
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

Para esclarecer o efeito devastador da atual relação de força


no plano multimidiático pode servir um exemplo:

“Antes de 2002, durante sete décadas, Los Angeles Times, New


York Times, Usa Today, Wall Street Journal descreveram o
water boarding [simulação de afogamento de um prisioneiro]
como uma forma de tortura numa frequência de 81% a 96% dos
casos. Depois de 2002, quando os Estados Unidos começaram
a realizar o water boarding, esses diários o definiram como
tortura em menos de 5% dos casos” (THAKUR, 2014).

O poder multimidiático operou o milagre de fazer desapare-


cer a tortura que era usada pelo país-guia do Ocidente.
Apesar da ascensão da China e de outros países emergentes,
o quadro não mudou de modo significativo no que se refere à
produção das ideias e das emoções. Ainda mais que o controle
sobre as comunicações e sobre as imagens, e sobre a produção de
ideias e de emoções foi consequentemente reforçado por meio do
uso de medidas políticas suplementares.
O exército recrutado, à sua época enviado para lutar no Viet-
nã, estava obviamente relutante em se alistar e, em consequência
também dessa relutância, tornou-se muitas vezes fonte de infor-
mações e de testemunhos inconvenientes sobre a guerra e os seus
horrores. Bem se compreende então que o exército recrutado te-
nha sido substituído por um profissional, formado por voluntá-
rios e por contractors particulares.
Assim os vazamentos de notícias podem ser contidos. Pe-
daços de verdade terminam sendo revelados em consequência
de incoerências ocasionais do sistema de controle; e, mesmo
com a inexistência de tais incoerências, podemos imaginar o
que de alguma maneira se procura esconder da realidade, nos
perguntando sobre as razões que levam ao suicídio um nú-
mero cada vez maior de soldados e veteranos estadunidenses.
Resta o fato de que o regime de controle da produção e difu-
são das ideias e das emoções adquiriu uma rigidez e eficiência
totalmente novas.

117
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

3.3. Comoção pelos recém-nascidos e desencadeamento da


guerra

Certamente, existem os jornalistas. Mas mesmo nessa área não


podem ser ignoradas as importantes mudanças ocorridas nesse
ínterim. Os jornalistas tradicionais são substituídos por aqueles
“embebbed”, enquadrados no exército invasor e, em última análise,
por ele empregados. É um sistema criado e testado com sucesso
ao longo da primeira Guerra do Golfo, que – depois dos passeios
militares que foram as rápidas invasões de Granada e do Panamá,
respectivamente em 1983 e 1989 – libertou o povo americano da
“síndrome do Vietnã” e, pelo menos por algum tempo, o fez read-
quirir o gosto pela guerra. Um corajoso jornalista esclareceu como
ocorreu “a vitória do Pentágono sobre a mídia” ou a “grandiosa
derrota da mídia por obra do governo dos Estados Unidos” (MA-
CARTHUR, 1992, p. 208-222).
Em 1991, a situação não era fácil para o Pentágono (e para a
Casa Branca). Tratava-se de convencer, sobre a necessidade da
guerra, um povo ainda consternado pela lembrança do Vietnã.
E daí? Várias medidas astuciosas reduziram drasticamente a
possibilidade de os jornalistas se relacionarem com os soldados
ou de se comunicarem diretamente com o front. Na medida do
possível tudo tinha que ser filtrado: o cheiro da morte, o sangue,
os sofrimentos e as lágrimas da população civil não deviam ser
mencionados nas casas dos cidadãos estadunidenses (e da popu-
lação do mundo inteiro) como nos tempos da guerra do Vietnã.
Mas o problema central e de mais difícil solução era outro: era
preciso demonizar o Iraque de Saddam Hussein, que – apesar de
alguns anos antes ter se tornado respeitável aos olhos dos EUA,
atacando o Irã oriundo da revolução islâmica e antiamericana
em 1979 – predispunha-se a encontrar adeptos no Oriente Mé-
dio. A demonização resultaria muito mais eficaz se ao mesmo
tempo a vítima se tornasse angelical. Operação nada fácil, e não
apenas pelo fato de que no Kuwait a repressão a qualquer for-
ma de oposição era dura e impiedosa. Havia algo de pior. Os
trabalhos mais humildes eram desempenhados pelos imigran-

118
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

tes, submetidos a uma “escravidão de fato”, que frequentemente


assumia formas sádicas (cf. § 1.7).
E no entanto... Generosa e extraordinariamente recompensada,
uma agência publicitária estadunidense tinha remédio para tudo.
Ela chamou a atenção para uma horripilante particularidade: os
soldados iraquianos cortavam as “orelhas” dos kuwaitianos que
resistissem. Mas o jogo teatral dessa campanha era outro: os inva-
sores tinham invadido um hospital “retirando 312 recém-nascidos
de suas incubadoras e deixando-os morrer no chão frio do hospi-
tal Kuwait City” (MACARTHUR, 1992, p. 54). Alardeada repeti-
damente pelo presidente Bush Jr., reforçada pelo Congresso, con-
firmada pela imprensa mais respeitável e até pela Anistia Interna-
cional, essa notícia – tão horripilante, mas também tão detalhada a
ponto de indicar com absoluta precisão o número de vítimas – não
podia deixar de produzir uma arrebatadora onda de indignação:
Saddam era um monstro e, mais precisamente, um novo Hitler; a
guerra contra ele não era apenas necessária como também urgente
e aqueles que se opunham a ela, ou a ela se rebelassem, eram con-
siderados como cúmplices, mais ou menos conscientes, do mons-
tro ou do novo Hitler! A notícia foi obviamente uma invenção sa-
biamente produzida e difundida, e justamente por isso a agência
publicitária mereceu seus honorários.
A reconstrução desse fato consta de um capítulo do livro aqui
citado, com um título pertinente: Bebês de publicidade (Selling Ba-
bies). A bem da verdade, não somente os recém-nascidos foram
“propagandeados”. Justamente no início das operações de com-
bate estava sendo divulgada em todo o mundo a imagem de um
cormorão ensopado em petróleo, que jorrava dos poços que ha-
viam sido explodidos pelo Iraque. Verdade ou manipulação? A
catástrofe ecológica havia sido provocada por Saddam ou pelos
seus inimigos? E realmente havia desses pássaros naquela região
do planeta e naquela estação do ano? Não importa: a compai-
xão geral, que se indigna e se mobiliza até por uma vítima não
humana, se modificada para o seu inverso poderia ver as bom-
bas lançadas sobre Bagdá como um espetáculo de fogos de ar-
tifício. Certamente, o Iraque também buscava isso: fazer apelo à

119
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

indignação, esforçando-se por difundir no Ocidente as terríveis


imagens das vítimas civis causadas pelas bombas “inteligentes”.
A resposta de Washington não se fez esperar, mais uma vez bom-
bardeou com o seu insuperável poder de fogo multimidiático: o
responsável por aquele massacre era o regime iraquiano que ha-
via colocado mulheres e crianças dentro de um objetivo militar.
Era verídica tal acusação? A única coisa certa é que novamente
tinha mudado de rumo a corrente da compaixão geral, terrivel-
mente alimentada por um novo crime terrível imputado ao inimi-
go a ser derrotado. E assim o trabalho de sistemática destruição
mediante o uso de bombas (e depois por meio de um embargo
não menos funesto) poderia continuar indefinidamente sem per-
turbar a boa consciência dos responsáveis e dos espectadores.

3.4. Psywar, Revolution in Military Affairs, Internet Wars

Selling Babies: é necessário retomar esta expressão. Contempo-


râneas à primeira Guerra do Golfo foram a elaboração e a publi-
cação nos EUA de um livro que, começando particularmente pela
guerra da Coreia, ressaltou a centralidade da Psywar, ou da guerra
psicológica, e depois esclareceu a sua tese de fundo, fornecendo
uma série de conselhos:

“A PSYWAR estratégica demanda propaganda, mentiras delibera-


das e distorção da verdade de modo a influenciar as mentes e a
opinião pública internacional no sentido contrário ao inimigo (...).
Você pode demonstrar as suas afirmações com fotos de escolas des-
truídas pelas bombas e de crianças feridas (...). O seu inimigo é re-
tratado como um indivíduo encorpado que agride um pobre rapaz
franzino, uma potência mundial que usa o seu ilimitado poder de
modo ilegal e violando as normas internacionais de comportamen-
to reconhecidas. Pode dizer que esses soldados são profissionais
que matam sem escrúpulos de consciência. Eles matam civis recor-
rendo ao uso de bactérias e de gases venenosos. Eles se propõem
exterminá-los totalmente com bombas nucleares. Em resumo: não
importa qual seja a ‘verdade’: você é um honrado rapaz oprimido e
o inimigo é Satã, a imagem da morte” (PEASE, 1992, p. 6-7).

120
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

Como apareceu na quarta capa, o autor do livro aqui mencio-


nado era “chefe da Advanced Systems Division del Quartier Generale
(Divisão de Sistemas Avançados do Quartel General) do Air Force
Space Command (Comando Espacial da Força Aérea) e oficial do ser-
viço de inteligência com 20 anos de carreira”. Tratava-se, portanto,
de um respeitável personagem, que se movia à vontade dentro do
aparato da Psywar, a guerra psicológica, por ele realisticamente
descrita e recomendada com entusiasmo. E ele redigiu o seu texto
enquanto se preparava, ou estava em curso, a primeira Guerra do
Golfo, e as sugestões contidas em seu manual teórico de guerra
psicológica correspondiam perfeitamente ao comportamento e às
ideias do Pentágono e da Casa Branca. O manual de Psywar exigia
retratar o inimigo como um “Satã” pronto a aniquilar até crianças
inocentes; pois bem, em 1991 as tropas de Saddam foram expostas
ao escárnio universal por terem retirado das incubadoras precisa-
mente 312 recém-nascidos para fazê-los morrer abandonados no
chão frio do hospital infantil. O “Satã” elaborado e anotado no
manual de Psywar visava a aniquilar com suas bombas nucleares
uma ilimitada massa de pessoas inocentes: precisamente esta era
a acusação esgrimida contra Saddam Hussein, por ocasião da se-
gunda Guerra do Golfo, na campanha propagandística que insis-
tia também na iminência do perigo. O “Satã” do manual de Psywar
não se contentou em destruir as suas vítimas com armas nucleares,
estava pronto para liberar também as “bactérias” e os “gases
venenosos” à sua disposição: em seu discurso de fevereiro de
2003 no Conselho de Segurança das Nações Unidas, Colin Powell,
secretário de Estado estadunidense, se empenhou em demonstrar
que Saddam Hussein havia preparado, ou estava ansiosamente
preparando, um arsenal de armas químicas e bacteriológicas.
Obviamente, outros países também recorrem à guerra psico-
lógica. Resta ainda um fato: a superpotência única tem uma clara
vantagem também neste campo e não fica atrás de nenhum país
no que se refere à falta de escrúpulos morais. Para além do manu-
al até aqui analisado, isso foi demonstrado por alguns artigos de
conteúdo inquietante difundidos por órgãos de imprensa insus-
peitos de antiamericanismo. Veio a se saber, alguns anos atrás,

121
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

que uma antropóloga da Universidade do Estado de Washing­


ton, Rebecca Lemov, publicou um livro que “demonstra as de-
sumanas tentativas da CIA e de alguns dos grandes psiquiatras
de ‘destruir e reconstruir’ a mente dos pacientes nos anos 1950”
(CARETTO, 2006). Podemos então compreender um fato que
ocorreu naquele mesmo período. Em 16 de agosto de 1951, fe-
nômenos estranhos e alarmantes vieram a abalar Pont-Saint-Es-
prit, “uma tranquila e pitoresca vila” localizada “no sudeste da
França”. Sim, “o povoado foi atingido por uma misteriosa onda
de loucura coletiva. Pelo menos cinco pessoas morreram, deze-
nas acabaram no manicômio, centenas apresentaram sinais de
delírio e de alucinações (...). Muitos acabaram num hospital em
camisa de força”. Pelo que parece, agora acabou o mistério, que
por muito tempo rodeou essa repentina explosão de “loucura
coletiva”: tratou-se – como revelou o Corriere della Sera – de “um
teste conduzido pela CIA, junto com a SOD (Special Operation
Division, Divisão de Operação Especial), unidade ultrassecreta
do exército dos EUA de Fort Detrick em Maryland”; os agentes
da CIA “contaminaram com LSD os pães vendidos nas pada-
rias do povoado”, com os resultados que vimos acima (FARKAS,
2010). Estamos nos primeiros anos da Guerra Fria: certamente,
os Estados Unidos eram aliados da França, e justamente por isso
ela serviu bem para os experimentos da guerra psicológica, que
visavam sim ao “campo socialista” (e a revolução anticolonial),
mas que dificilmente poderiam ser executados nos países locali-
zados do lado de lá da cortina de ferro.
Nesse ínterim, irrompeu, e estava em plena evolução, a Revolu-
tion in Military Affairs (RMA, Revolução nos Assuntos Militares),
e ela não se referia apenas à aviação, a mísseis, aos sistemas mi-
litares no sentido estrito. Também foi usada a Psywar, que agora
pode dispor de internet, telefones celulares, facebook, twitter, re-
des sociais. Abre-se um novo capítulo na história da tecnologia
militar e paramilitar, das relações internacionais, da guerra, e é
um capítulo que me disponho a analisar remetendo a autores e
órgãos de imprensa estadunidenses e ocidentais, de maneira al-
guma situados na oposição em relação ao sistema dominante. Já

122
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

no final dos anos 1990, no International Herald Tribune podia-se ler:


“As novas tecnologias transformaram a política internacional”;
quem tem condições de controlá-las vê aumentar exorbitantemen-
te o seu poder, e a sua capacidade de desestabilização, sobre os pa-
íses mais fracos e tecnologicamente menos avançados (SCHMITT,
1997). Surgiu uma nova arma, suscetível de tornar as relações de
força no plano internacional de maneira ainda mais eficaz a favor
do Ocidente e de seu país-guia. Isso não é segredo para ninguém.
Hoje em dia, nos EUA, um rei da comédia de televisão como Jon
Stewart afirma: “Mas por que enviamos nossos exércitos se derru-
bar ditaduras pela internet é tão fácil quanto comprar um par de
sapatos?” (in: GAGGI, 2010). Por sua vez, em uma revista ligada
ao Departamento de Estado, um estudioso escreveu para chamar
a atenção sobre as possibilidades e as dificuldades de “militarizar”
(to weaponize) as novas mídias. Essa é uma operação nada fácil já
que nela há objetivos de curto prazo e correlacionados apenas a
um determinado país; melhor perseguir objetivos de maior fôlego
(SHIRKY, 2011, p. 31). Em todo caso, uma nova arma passou a
fazer parte do arsenal militar.
E se trata de uma arma formidável. Em primeiro lugar, como
meio para desestabilizar um país inimigo. Como aponta um do-
cumento de 2003, assinado pelo então secretário da Defesa, Do-
nald Rumsfeld, o Pentágono “por muito tempo avaliou ser melhor
utilizar no plano militar as oportunidades oferecidas pelos novos
meios de comunicação”. O olhar não se voltou apenas aos tradi-
cionais campos de batalha: por meio “da desinformação difundi-
da no exterior com as operações psicológicas (pela sigla PsyOps)”
é possível condicionar ou determinar o desenvolvimento interno
deste ou daquele país. Em todo caso:

“A internet se tornou o meio preferido para a desinformação


americana (...). São inúmeras as operações previstas: funcioná-
rios públicos que ludibriam os jornalistas, tropas destinadas a
operações psicológicas procuram manipular o pensamento e
as convicções do inimigo, hackers especialistas que procuram
derrubar as redes de computador dos adversários (...). E até sur-

123
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

giram sites de pura desinformação sobre a política africana e nos


Bálcãs, todos gerenciados pelo Pentágono” (MASERA, 2006).

O setor de pesquisa e desenvolvimento, nos EUA, ponto for-


te da tecnologia militar (e civil), está trabalhando para também
fortalecer o aparato programado para as Internet Wars e para as
PsyOps. Uma associação produziu “programas que permitiriam
a uma pessoa empenhada em uma campanha de desinformação
assumir atualmente até 70 identidades (perfis de rede social, conta
em fórum etc.), administrando-as em paralelo: tudo isso sem que
se possa descobrir quem manipula os fios dessas marionetes vir-
tuais”. Quem utiliza tais programas? Não é difícil de adivinhar.
O diário aqui citado, mais uma vez insuspeito de antiamericanis-
mo, informa que a empresa em questão “fornece serviços a várias
agências governamentais do EUA, como a CIA e o ministério da
Defesa” (FORMENTI, 2011). Novamente vem à lembrança o “ex-
perimento coordenado pela CIA” no verão de 1951, que produziu
“uma misteriosa onda de loucura coletiva” na “tranquila e pitores-
ca vila” francesa de Pont-Saint-Esprit. Somos obrigados a colocar
uma questão aqui: a “loucura coletiva” pode ser apenas produzi-
da pela farmacologia, ou hoje pode até ser o resultado do uso de
“novas tecnologias” da comunicação de massa? Podendo dispor
de instrumentos que tornam impossível diferenciar verdade de
manipulação, a Psywar conquistou uma importância sem prece-
dentes. É necessário registrar isto: “Internet e telefones celulares”,
as redes sociais, “a revolução na tecnologia das comunicações é
agora uma importante realidade da geopolítica deste século”, são
um instrumento essencial da “projeção de poder” (BRZEZINSKI,
2012, p. 31-32 e 112).
Mas a internet não é a própria expressão da espontaneidade
individual? Apenas os mais ingênuos (ou os mais abusados) ar-
gumentam desse modo. Na realidade – reconhece Douglas Paal,
colaborador de Reagan e de Bush Jr. –, a internet é até agora “ge-
renciada por uma ONG que de fato é oriunda do Departamento
de Comércio dos Estados Unidos” (PAAL, 2010). Trata-se apenas
de comércio? Sobre esse ponto o semanário alemão Die Zeit pede

124
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

uma luz a James Bamford, um dos maiores experts em serviços


secretos estadunidenses: “Os chineses também temem que em-
presas americanas como o Google se transformem, no território
chinês, em instrumentos, em última análise, dos serviços secretos
americanos. É uma atitude paranoica?”. “Absolutamente não” – é
a resposta exata. Ou melhor – acrescenta o expert – até mesmo em
“organizações e instituições estrangeiras” se infiltram os serviços
secretos estadunidenses que, de qualquer modo, têm condições de
interceptar as ligações telefônicas em qualquer canto do planeta
e são considerados os maiores hackers do mundo (BAMFORD,
2010). Agora – confirmam dois jornalistas alemães do Die Zeit –
não restam dúvidas:

“Os grandes grupos da internet se tornaram um instrumento


da geopolítica dos EUA. Antes havia necessidade de cansativas
operações secretas para apoiar movimentos políticos em países
longínquos. Hoje muitas vezes basta pôr em prática um pouco
de técnica de comunicação a partir do Ocidente (...). O serviço
secreto tecnológico dos EUA, a National Security Agency, está
equipando uma organização completamente nova para as guer-
ras na Internet” (FISCHERMANN; HAMANN, 2010).

É o caso de apenas acrescentar que tudo isso foi totalmente


confirmado pelas revelações de Snowden, obrigado não por acaso
a fugir e levar uma vida não destituída de perigos.
Os países e movimentos visados por essas novas armas não
ficam de braços cruzados: como em todas as guerras, os fracos
procuram superar a desvantagem aprendendo com os mais for-
tes. E eis que estes últimos ficam enfurecidos: “No Líbano quem
mais domina a new media (nova mídia) e as redes sociais não são
as forças políticas pró-ocidentais”, mas o hezbollah. Do mesmo
modo que para as mais sofisticadas armas (propriamente ditas),
também para as novas tecnologias e as novas armas de comunica-
ção e desinformação de massa, os Estados Unidos e os seus aliados
gostariam de manter o monopólio de forma a ditar leis no Oriente
Médio como no resto do mundo. Infelizmente – lamenta Moisés

125
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Naím, diretor do Foreign Policy –, o Ocidente não se ocupa mais


com os “cibertontos de outrora”. Estes “contra-atacam com as
mesmas armas, produzem contrainformação, envenenam os po-
ços” (GAGGI, 2010): uma verdadeira e peculiar tragédia do ponto
de vista dos pretensos defensores do pluralismo!
A tímida tentativa de criar um espaço alternativo àquele ad-
ministrado e hegemonizado pela única superpotência é tachada
de “envenenamento dos poços”: aqueles que detêm o monopólio
principal da produção das ideias e das emoções tratam de refor-
çá-lo, desacreditando e intimidando aqueles que procuram dele se
proteger de alguma forma.

3.5. Da sociedade do espetáculo ao espetáculo


como técnica de guerra

Em tais condições, “o verdadeiro é um momento do falso” (DE-


BORD, 1992, Tese 9). Certamente, o autor dessa aguda observação,
que consta de um conhecido livro dedicado à análise da “socieda-
de do espetáculo”, não imaginava que o espetáculo pudesse se tor-
nar uma verdadeira e conveniente técnica de guerra. Apesar de ter
sido publicado em 1967 – alguns anos depois do fim da revolução
da Argélia, da tentativa estadunidense de invasão de Cuba (com
o desembarque na Baía dos Porcos) e da crise dos mísseis (asso-
ciada ao perigo de um holocausto nuclear planetário) e enquanto
se propagava a guerra estadunidense contra o Vietnã –, o livro do
qual se fala aqui era todo plasmado da convicção de que o mundo
fosse substancialmente unificado. Era preciso não se deixar enga-
nar pelas aparentes contradições que encrespavam o “espetáculo
total” e que sempre retornavam na divisão mundial das tarefas
extraordinárias” (IDEM, Tese 57). Na determinação do nexo entre
sociedade do espetáculo e guerra, muito mais longe foi Le Bon,
que havia aludido à possibilidade de uso político-militar das téc-
nicas de sedução próprias da publicidade comercial: “O tipo de
herói apreciado pelas massas sempre terá a estrutura de um César.
O seu penacho seduz. A sua autoridade se faz respeitar e a sua
espada dá medo” (LE BON, 1980, p. 80 e 160). Entretanto, também

126
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

neste caso nos movemos sempre no âmbito da política interna; a


técnica publicitária visava a assegurar a estima da opinião pública
do país do líder empenhado em seduzi-la e manipulá-la, ainda
não transformada num instrumento para atacar e desestabilizar
um país adversário ou inimigo.
Ocorreu uma viragem em 1989. Embora amplamente desacre-
ditado, Nicolae Ceauşescu ainda estava no poder na Romênia.
Como derrubá-lo? Os meios de comunicação de massa ocidentais
difundiam maciçamente entre a população romena informações e
imagens do “genocídio” ocorrido em Timişoara justamente pela
polícia de Ceauşescu. O que havia acontecido de verdade? Valen-
do-se da análise de Debord sobre a “sociedade do espetáculo”, um
ilustre filósofo italiano (Giorgio Agamben) resumiu de maneira
magistral o fato do qual aqui se trata:

“Pela primeira vez na história da humanidade, cadáveres recém-


-enterrados, ou alinhados sobre mesas de morgues (dos necro-
térios) foram depressa desenterrados e mutilados para simular
diante das câmeras de televisão o genocídio que devia tornar le-
gítimo o novo regime. Aquilo que todo mundo via ao vivo como
a autêntica verdade nas telas da televisão era a absoluta não ver-
dade; e, apesar de que às vezes a falsificação fosse evidente, ela foi
reconhecida como verdadeira pelo sistema mundial dos meios de
comunicação, para que ficasse claro que a verdade agora não pas-
sava de um momento do necessário movimento do falso. Assim,
verdade e falsidade se tornaram indiscerníveis e o espetáculo se
tornava legítimo unicamente por meio do espetáculo.
Timişoara é, nesse sentido, a Auschwitz da sociedade do espe-
táculo: e, como foi dito que depois de Auschwitz é impossível
escrever e pensar como antes, então, depois de Timişoara não
será mais possível olhar para uma tela de televisão da mesma
forma” (AGAMBEN, 1996, p. 67).

Mil novecentos e oitenta e nove foi o ano em que a passagem da


sociedade do espetáculo para o espetáculo como técnica de guerra
se manifestou em escala planetária. Algumas semanas antes do

127
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

golpe de Estado, ou da “revolução Cinecittà”* na Romênia (FE-


JTÖ, 1994, p. 263), em 17 de novembro de 1989 a “revolução de
veludo” vencia em Praga, agitando uma palavra de ordem gan-
dhiana: “Amor e Verdade”. Na realidade, um papel fundamental
desempenhou a difusão da falsa notícia segundo a qual um es-
tudante havia sido “brutalmente assassinado” pela polícia. Vinte
anos depois, revelou isso, compadecido, “um jornalista e líder da
dissidência, Jan Urban”, executor da manipulação: a sua “mentira”
tinha tido o mérito de produzir indignação em massa e a derroca-
da de um regime já periclitante (BILEFSKY, 2009). Algo parecido
ocorreu na China: em 8 de abril de 1989, Hu Yaobang, secretário
do PCCh até janeiro de dois anos antes, teve um infarto no decor-
rer de uma reunião da secretaria política e morreu uma semana
depois. Para a multidão da Praça Tienanmen (ou para aqueles que
visavam a incitá-la), essa morte estava ligada ao duro conflito polí-
tico que havia surgido durante aquela reunião (DOMENACH; RI-
CHER, 1995, p. 550); de qualquer modo, ele foi apresentado como
vítima de um sistema que se queria derrubar. Em todos os três
casos, a invenção e a denúncia de um crime foram acionadas para
produzir a onda de indignação da qual necessitava o movimento
de revolta. Embora tenha obtido pleno êxito na Tchecoslováquia
e na Romênia (onde o regime socialista foi implantado após o
avanço do Exército Vermelho), essa estratégia falhou na República
Popular da China oriunda de uma grande revolução nacional (e
também social). E eis que tal revés se tornou o ponto de partida
para uma nova e mais intensa guerra midiática, ainda hoje em ple-
no andamento, e desencadeada por uma superpotência que não
tolera rivais ou possíveis rivais.
Alguns anos depois da viragem evidenciada em Timişoara,
ou a “Auschwitz da sociedade do espetáculo”, foi iniciada a dis-
solução, ou melhor o desmembramento da Iugoslávia. Contra a
Sérvia, que historicamente havia sido a protagonista do proces-
so de unificação desse país multiétnico, nos meses anteriores aos

* Centro aparelhado para a produção cinematográfica em escala industrial; o nome da “Città del Ci-
nema” (Cidade do Cinema), projetada em Roma pelo regime fascista e inaugurada em 1937 (Nota da
tradutora).

128
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

verdadeiros bombardeamentos ocorreram ondas, uma após outra,


de bombardeios multimidiáticos. Em agosto de 1998, um jorna-
lista estadunidense e um alemão “mencionaram a existência de
valas comuns com 500 cadáveres de albaneses, entre os quais 430
crianças, nos arredores de Orahovac, onde houve duros combates.
A notícia foi repassada por outros jornais ocidentais com grande
destaque. Mas é tudo falso, como demonstra uma Comissão de
Observação da UE” (MOROZZO DELLA ROCCA, 1999, p. 17).
Nem por isso a sofisticada indústria da mentira e da indigna-
ção entraria em crise. No início de 1999, os meios de comunicação
ocidentais começaram a bombardear a opinião pública internacio-
nal com fotos de cadáveres empilhados ao fundo de um barran-
co e alguns decapitados e mutilados; as legendas e os textos que
acompanhavam tais imagens afirmavam que se tratava de civis
albaneses desarmados que haviam sido exterminados pelos sér-
vios. Mas:

“O massacre de Račak é horripilante, com mutilações e cabeças


cortadas. É uma cena ideal para gerar indignação na opinião pú-
blica internacional. Algo parece estranho no tipo de matança. Os
sérvios habitualmente matam sem fazer mutilações (...). Como a
guerra da Bósnia indica, as denúncias de atrocidades nos cor-
pos, sinais de torturas, decapitações são uma propalada arma
de propaganda (...). Talvez não os sérvios, mas os guerrilheiros
albaneses tenham mutilado os corpos” (IDEM, p. 249).

Provavelmente, os cadáveres das vítimas de um dos inumerá-


veis combates entre grupos armados tenham sido submetidos a
um posterior procedimento, de maneira a levar que se acreditasse
numa fria execução e numa explosão de fúria bestial, do que era
manifestamente acusado o país que a Otan se preparava para des-
truir (SAILLOT, 2010, p. 11-18).
A encenação de Račak foi apenas o clímax de uma campanha
de desinformação obstinada e cruel. Algum tempo antes, o bom-
bardeamento do mercado de Saraievo permitiu que a Otan se re-
velasse como uma suprema autoridade moral, que não podia per-

129
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mitir deixar impunes as “atrocidades” sérvias, e exclusivamente


sérvias. Hoje em dia, pode-se ler até no Corriere della Sera que “foi
uma bomba de muito duvidosa paternidade que fez os estragos
no mercado de Saraievo, e levou à intervenção da Otan” (VEN-
TURINI, 2013). Com esse precedente como referencial, Račak nos
parece hoje como uma espécie de reedição de Timişoara – uma
reedição que foi prolongada por alguns anos.
No entanto, também nesse caso obteve-se sucesso. O ilustre fi-
lósofo, que em um artigo publicado originalmente em 1990 tinha
denunciado “o Auschwitz da sociedade do espetáculo”, cinco anos
depois se alinhou ao coro dominante e bradou de modo manique-
ísta contra “o repentino escorregão das classes dirigentes ex-comu-
nistas ao racismo extremista (como na Sérvia, com o programa de
“limpeza étnica)” (AGAMBEN, 1995, p. 134-135). Depois de ter re-
sumido de modo eficaz a nova situação que veio a ser criada após
a encenação de Timişoara (“não será mais possível olhar uma tela
de televisão do mesmo modo” que antes), ele se resignou à indús-
tria televisiva ocidental da mentira e da indignação, como se nada
tivesse acontecido; depois de ter analisado profundamente a tragé-
dia de não ser possível diferenciar “verdade e falsidade” no âmbito
da sociedade do espetáculo, ele acabou por confirmá-la involunta-
riamente, aceitando de modo abrupto a versão (ou a propaganda
de guerra) difundida pelo “sistema mundial dos meios de comuni-
cação”, por ele antes exposta como principal fonte da manipulação;
depois de ter denunciado a redução do “verdadeiro” ao “momento
do movimento necessário do falso”, efetuada pela sociedade do es-
petáculo, ele se limitou a imprimir uma aparência de profundidade
filosófica a esse “verdadeiro”, reduzido precisamente a um “mo-
mento do movimento necessário do falso”.
Por outro lado, um elemento essencial na guerra contra a Iu-
goslávia, mais do que contra Timişoara, nos remete à primeira
Guerra do Golfo. É o papel desempenhado pelas public relations:

“Milosevic é um homem reservado, não gosta de publicidade,


não gosta de aparecer ou fazer discursos em público. Parece
que nos primeiros indícios de desagregação da Iugoslávia, a Ru-

130
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

der&Finn, empresa de relações públicas que trabalhava para o


Kuwait, em 1991, a ele se apresentou oferecendo os seus serviços.
Foi dispensada. A Ruder&Finn foi imediatamente contratada
pela Croácia, pelos muçulmanos da Bósnia e pelos albaneses de
Kosovo por US$ 17 milhões ao ano, para proteger e incentivar a
imagem desses três grupos. E fez um excelente trabalho!
James Harf, diretor da Ruder&Finn Global Public Affairs, em
uma entrevista (...) afirmou: ‘Fomos capazes de, na opinião pú-
blica, tornar semelhantes sérvios e nazistas (...). Nós somos pro-
fissionais. Temos um trabalho a fazer e o fazemos. Não somos
pagos para dar lição de moral’” (TOSCHI; MARAZZANI; VIS-
CONTI, 1999, p. 31).

Vamos agora para a segunda Guerra do Golfo: nos primeiros


dias de fevereiro de 2003, o secretário de Estado dos EUA, Colin
Powell, mostrou aos participantes do Conselho de Segurança da
ONU as imagens dos supostos laboratórios móveis para a produ-
ção de armas químicas e biológicas, das quais o Iraque teria posse.
Algum tempo depois, o primeiro-ministro inglês, Tony Blair, au-
mentou a dose: não apenas Saddam possuía armas atômicas como
também já havia elaborado planos para usá-las e tinha a capaci-
dade de ativá-las “em 45 minutos” (FERGUSON, 2005, p. 159). E
novamente o espetáculo, ainda mais do que um prelúdio à guerra,
foi o primeiro ato da própria guerra, recorrendo ao terrorismo da
indignação, alimentado por uma insistente campanha multimidi-
ática contra um inimigo, do qual o gênero humano foi chamado a
urgentemente se livrar.
Mas o arsenal de armas da mentira, colocadas em prática ou
prontas para serem usadas, tinha ido longe demais. Com o obje-
tivo de “desacreditar o líder iraquiano aos olhos do seu próprio
povo”, a CIA se propunha a “difundir em Bagdá uma filmagem
na qual foi revelado que Saddam era gay. O vídeo deveria mos-
trar o ditador fazendo sexo com um rapaz. Devia parecer ter sido
filmado por uma câmera escondida, como se se tratasse de uma
gravação secreta”. E estava sendo analisada a “possibilidade de
interromper as transmissões da TV iraquiana com uma engano-

131
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

sa edição extraordinária do telejornal que continha o anúncio de


que Saddam havia renunciado e que o seu temido e odiado filho,
Uday, havia tomado o poder” (FRANCESCHINI, 2010).
Se o Mal deve ser mostrado e chancelado em todo o seu hor-
ror, o Bem deve aparecer em todo o seu esplendor. Em dezembro
de 1992, os fuzileiros estadunidenses desembarcaram na praia
de Mogadíscio. Para ser exato, nela desembarcaram por duas
vezes, e a repetição da operação não ocorreu devido a impre-
vistas dificuldades militares ou de logística. Era preciso mostrar
ao mundo que, antes mesmo de ser um corpo militar de elite,
os fuzileiros eram uma organização benevolente e piedosa que
levava a esperança e o sorriso ao povo somali assolado pela mi-
séria e pela fome. A repetição do desembarque-espetáculo devia
corrigir os seus detalhes errados ou defeituosos. Um jornalista e
observador explicou:

“Tudo o que está acontecendo na Somália, e que ocorrerá nas


próximas semanas, é um show militar-diplomático (...). Uma
nova era na história da política e da guerra se iniciou de verdade
na insólita noite de Mogadíscio (...). A ‘Operação Esperança’ foi
a primeira operação militar não apenas filmada ao vivo pelas
câmeras de televisão como também foi pensada, construída e
organizada como um show de TV” (ZUCCONI, 1992).

Mogadíscio foi o pendant de Timişoara. Poucos anos depois da


representação do Mal (o comunismo que se afundava na infâmia),
chegava a representação do Bem (o Império americano que surgia
triunfante e benevolente).
Estão claros agora os elementos constitutivos da guerra-espe-
táculo e do seu êxito. No geral, a análise crítica da sociedade do
espetáculo realizada por Debord, ou à sua esteira – que insiste no
pressuposto equivocado da unidade planetária de tal sociedade –,
mesmo quando resulta brilhante, é impressionista e muito pouco
perspicaz. De maneira que a manipulação, que é em primeiro lu-
gar a manipulação imperial, pode resultar essencialmente incon-
testável, e de fato tão incontestável que muitas vezes não tem nem

132
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

necessidade de ser dissimulada. No verão de 2009, em um respei-


tável diário italiano podia-se ler:

“Há alguns dias, no Twitter, circula uma imagem de proveniên-


cia incerta (...). Diante de nós uma fotografia com um profundo
valor simbólico: uma página do nosso presente.
Uma mulher com um véu negro, usando uma malha verde e
uma calça jeans: extremo Oriente misturado a extremo Ociden-
te. Está sozinha, de pé. Tem o braço direito estendido para o alto
e os punhos cerrados. E adiante, imponente, a dianteira de um
Honda SUV, de cujo teto solar surge – imponente – Mahmud
Ahmadinejad. Atrás, os guarda-costas.
O jogo dos gestos se equipara: o da mulher, de exasperada pro-
vocação; e o do presidente iraniano, místico”.

Tratava-se, no entanto, de uma “fotomontagem”, que certa-


mente parecia “verossímil”, de modo a conseguir com mais eficá-
cia “dominar ideias, convicções” (TRIONE, 2009). Mas o autor do
artigo aqui mencionado se esquivou de condenar a manipulação.
Ainda no verão de 2009, as novas mídias no Irã, e todos os
meios de comunicação no Ocidente difundiram a imagem de uma
bela garota atingida por uma bala: “Começa a ensanguentar, per-
de a consciência. Em segundos, ou pouco tempo depois, morreu.
Ninguém sabe dizer se foi surpreendida no fogo cruzado ou se foi
atacada intencionalmente”. Mas a busca da verdade era a última
das preocupações. O importante era outra coisa: “Agora a revolta
tem um nome: Neda”. Finalmente se podia divulgar a mensagem
pretendida: “Neda inocente contra Ahmadinejad”, ou “uma ju-
ventude corajosa contra um regime desprezível”. E a mensagem
se tornou arrebatadora: “É impossível ver na internet fria e obje-
tivamente o vídeo de Neda Soltani, um pequeno trecho no qual
o pai da jovem mulher e um médico procuram salvar a vida da
iraniana de vinte e seis anos” (KREYE, 2009). Mesmo nesse caso se
trata de uma sofisticada operação, atentamente estudada e regu-
lada em todos os seus detalhes (gráficos, políticos e psicológicos),
com o objetivo de desacreditar e tornar o mais execrável possível

133
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

a administração iraniana, contra a qual Israel e o Ocidente prepa-


ravam a guerra havia algum tempo. Mais uma vez a sociedade do
espetáculo foi transformada em um espetáculo que era ao mesmo
tempo uma operação bélica ou de incitação à guerra.
E o espetáculo e a guerra continuam. Com relação à campanha
midiática e militar estimulada pelo Ocidente e pela Otan contra a
Líbia de Gaddafi, uma revista italiana de geopolítica falou de “uso
estratégico da mentira”, como foi confirmado em primeiro lugar
pela “desconcertante notícia falsa sobre as valas comuns” (DOT-
TORI, 2011, p. 43-44).
Da Líbia passamos à Síria. No início da crise, a agência do go-
verno “Sana” mencionou a apreensão de “garrafas de plástico
cheias de sangue”, usada para “produzir vídeos amadores falsos”
de mortos e feridos entre os manifestantes (TROMBETTA, 2011).
Mais tarde, os mortos e feridos se tornaram bem mais reais e em
número bem maior, com a explosão de uma guerra civil e de um
conflito internacional cada vez mais devastadores. Mas que papel
a manipulação e a produção da indignação desempenharam nessa
tragédia, ou em que medida as garrafas de sangue falso contribuí-
ram para fazer escorrer rios de sangue verdadeiro?
Enquanto a guerra civil na Síria ocorria fazia um ano, na Itália
La Repubblica publicou um artigo repleto de fotos e legendas que
contrastava com a versão alardeada pelos meios de comunicação,
em razão dos fatos verdadeiros que foram descobertos nesse ínte-
rim (por mim destacados em negrito):

“15 de março de 2011. Início oficial da revolta, manifestação na


cidade de Dara’a. A oposição apoia o protesto contra a prisão de
alguns garotos, autores de pichações antigoverno. Mas até agora
ninguém localizou esses garotos. (...)
6 de junho. Amina, a blogueira “Gay Girl in Damascus” (Menina
Gay em Damasco) foi sequestrada pelos órgãos de segurança sí-
rios. A notícia aparece nos meios de comunicação internacionais.
Poucos dias depois, um jornalista britânico revela a identidade
da blogueira. Na realidade, é um rapaz americano que escreve
da Suíça.

134
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

8 de agosto. A foto dos cadáveres de oito recém-nascidos prema-


turos em uma incubadora, mortos por um blackout, circula pelo
mundo. A foto original ressurge no Egito: são recém-nascidos
dormindo em uma incubadora.
(...) Fevereiro. O diretor do “Syrian observatory for human
rights” (Observatório Sírio para os Direitos Humanos), com sede
em Londres, é a principal fonte das notícias sobre a Síria. Os
próprios ativistas admitem que o suposto diretor Rami Abdel
Rahman não existe” (STABILE, 2012).

Quase dois anos depois, o Corriere della Sera reproduziu uma


foto angustiante que circulou no Twitter: “um menino dorme no
meio dos túmulos dos pais, assassinados pelo regime [sírio]”. Tra-
tava-se de uma outra mentira (FRATTINI, 2014). Mas as manipula-
ções que acabam se revelando enquanto tais representam apenas a
ponta de um gigantesco iceberg que continua a crescer: a indústria
da mentira é agora parte integrante da máquina de guerra.
Infelizmente, o jornalista do La Repubblica antes citado arrui-
nou o seu louvável trabalho com um comentário óbvio, mas que
ao mesmo tempo encobriu a verdade: quem conduziu a guerra
midiática foram (e são) ambas as partes! E quem alguma vez po-
deria colocar em dúvida que a guerra pressupõe um combate en-
tre duas partes contrárias? Entretanto, concentrar-se nessa obvie-
dade significaria não proferir a verdade, mas sim desfigurá-la.
Mesmo em relação à guerra midiática, é preciso fazer a análise
das relações de força, separando, de um lado, as grandes potên-
cias e, de outro, um pequeno e consideravelmente indefeso país;
entre agressores e agredidos: apoiados como eram pelo Ociden-
te, os “rebeldes” podiam se gabar de uma esmagadora superio-
ridade inclusive no terreno da produção da mentira e pela ca-
pacidade de difundi-la para todas as direções. Dá muito o que
pensar a questão dos recém-nascidos e da incubadora. Nós já a
conhecemos desde a primeira Guerra do Golfo e isso remete aos
indiscutíveis defensores estadunidenses e ocidentais das public
relations, da Psywar e da sociedade do espetáculo como técnica
de guerra.

135
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

3.6. Seleção e direcionamento da indignação

O lugar da verdade não é a simples proposição, mas sim a ar-


gumentação, da qual é preciso investigar a coesão e a coerência:
esta tese e esta advertência de Hegel mais do que nunca parecem
mais essenciais do que a verdade que – mais ainda do que a uma
simples e elementar proposição – é reduzida a uma percepção que
deveria ser imediata e incontestável, mas na realidade é produ-
zida por uma imagem, se não sabiamente manipulada, em todo
caso escolhida de modo meticuloso e instrumental. Pelas palavras
de Debord, é nesse sentido que na sociedade do espetáculo (e prin-
cipalmente na sociedade que transforma o espetáculo em técnica
de guerra), admitindo-se que nela ainda houvesse espaço para “o
verdadeiro”, este é apenas “um momento do falso”. As imagens
(os recém-nascidos retirados da incubadora, o cormorão ensopa-
do de petróleo, os cadáveres mutilados, as supostas valas comuns
etc.) são acionadas para funcionar como smoking gun, ou “arma
fumegante”; a esta altura, a ninguém é admissível colocar em dú-
vida a selvageria do inimigo, e a ninguém é admissível impedir ou
dificultar a luta contra o Mal. Temos visto que o objetivo explícito
e declarado da Psywar é o de tachar o inimigo como encarnação de
Satanás. Com o advento da internet e das novas mídias, essa técni-
ca adquire uma significativa eficácia: “A luta vem primeiro repre-
sentada como um duelo entre o prepotente e a vítima indefesa, e
em seguida rapidamente transformada em uma contraposição en-
tre o Bem e o Mal absolutos”. Nestas circunstâncias, bem longe de
ser um instrumento de liberdade, os novos meios de comunicação
produzem o resultado contrário. Estamos diante de uma técnica
de manipulação que “restringe fortemente a liberdade de escolha
dos espectadores”; “os espaços para a análise racional são reduzi-
dos ao máximo, sobretudo explorando o efeito emotivo da rápida
sucessão de imagens” (DOTTORI, 2011, p. 43-44). É precisamente
o terrorismo multimidiático da indignação.
Isso deveria estar bem claro agora. Mas agora na sequência me-
rece ser investigado o processo que leva a indignação a funcionar
como arma mortífera. Para que possa expandir toda a sua força

136
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

destruidora, ela deve ser canalizada e focada em uma direção es-


pecífica e bem determinada. Considere-se a guerra contra a Iugos-
lávia, contra um país que certamente naquele momento não era
a única área em crise no mundo. Não muito distante, a Turquia,
um país da Otan, continuava a conduzir a “campanha genocida”
contra os curdos iniciada em 1992 (JOHNSON, 2001, p. 34). Talvez
ainda mais grave tenha sido o que aconteceu na África. Em um
livro recente, um autor holandês, que também foi testemunha di-
reta dos acontecimentos, escreveu: “A partir de 1998, só no Congo
foram mortos por causa da guerra pelo menos três milhões, tal-
vez cinco milhões de pessoas” (REYBROUCK, p. 518). Os fatos de
que se fala aqui são parte integrante daquela que, nos moldes da
Grande Guerra, em primeiro lugar europeia, ocorrida entre 1914
e 1918, foi denominada como a “Grande Guerra africana”: o seu
horror atingiu o auge em Ruanda com o massacre dos Tutsi por
ação dos Hutu.Vimos um famoso historiador britânico destacar
o apoio fornecido pela França aos agressores. Mas os outros paí-
ses ocidentais, por ocasião desse “incontestável caso de genocídio
ou da “mais lamentável violação dos direitos humanos” dos anos
1990, não tiveram comportamento melhor. Ainda o historiador já
citado fala, em relação aos EUA, de uma “vergonhosa negligência
diante de um genocídio bem mais grave de tudo o que ocorreu nos
Bálcãs”. Na realidade, “a recusa dos Estados Unidos de impedir as
transmissões de rádio dos Hutu”, empenhados no massacre (FER-
GUSON, 2005, p. 148-150), nos coloca diante de algo muito maior
do que um simples ato de negligência.
Mas o ponto essencial é outro. O descaso reservado, mesmo
no plano multimidiático, à Grande Guerra africana permitiu que
o olhar se concentrasse sobre os Bálcãs, sobre a área onde se pre-
parava uma intervenção armada. Foi o primeiro ato de escolha do
uso da indignação, mas não foi o último. Múltiplas foram as tragé-
dias que se abateram sobre a Iugoslávia, ou ex-Iugoslávia, naque-
les anos. Ao procurarmos entender as razões disso, não podemos
evitar a questão: na dissolução desse país (multiétnico, multicultu-
ral e multirreligioso) – proveniente sim da Primeira Guerra Mun-
dial, mas que se consolidou ao longo de uma memorável luta de

137
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

resistência e de libertação nacional contra a agressão nazi-fascis-


ta, e justamente por isso transformado em um dos países-guia do
Terceiro Mundo –, tal desmembramento foi um fato puramente
endógeno? Já em um livro publicado em 1991, um jornalista do
New York Times prognosticou, esperançoso, que a Iugoslávia seria
“fragmentada politicamente” e transformada em “uma Confede-
ração com real autonomia para as Repúblicas”. Isso teria levado
países como a Alemanha e a França a se empenharem em garantir
“uma posição de predomínio naqueles mercados” e naquela re-
gião (BURSTEIN, 1991, p. 400). Não se tratava de especulação de
um único analista político. Nesse mesmo período, foram dados
os primeiros passos para alcançar aquele objetivo. Damos a pa-
lavra mais uma vez ao historiador britânico por mim citado ou-
tras vezes: “Foi ministro do exterior da Alemanha, Hans-Dietrich
Genscher, entusiasmado com a facilidade com que o seu país tinha
conseguido a reunificação em 1990, que acabou acelerando a de-
sintegração da Federação iugoslava com o reconhecimento pre-
cipitado da independência da Eslovênia e da Croácia no outono
do ano seguinte” (FERGUSON, 2005, p. 144). Essa iniciativa tinha
provocado polêmicas e tensões no interior da Europa e do Ociden-
te, mas tudo seria esquecido, ou superado, no momento de cuidar
de canalizar a indignação da opinião pública mundial em direção
a um único objetivo.
Mesmo pretendendo concentrar a atenção exclusivamente
sobre a Iugoslávia, a operação não foi fácil. A realidade sobre o
terreno constituía um considerável obstáculo para a ideologia da
guerra que estava sendo preparada: na Sérvia – lembrou um ar-
tigo de La Stampa algum tempo depois do início dos bombardea-
mentos da Otan –, “a presença de refugiados é a mais alta de que
se tem notícia na Europa: mais de 700 mil pessoas” (ZACCARIA,
1999) expulsas de sua terra, na maioria dos casos de Krajina (por
iniciativa dos governantes croatas apoiados, beneficiados e arma-
dos pelo Ocidente). Tal tragédia foi omitida pela Otan e o seu apa-
rato multimidiático: impunha-se um novo procedimento para a
escolha da comoção e da indignação. Tudo devia se concentrar em
Kosovo, mas nem mesmo isso bastava: “não muito tempo atrás

138
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

foram os albaneses de Kosovo que oprimiram os sérvios de Ko-


sovo e comandaram uma horrível limpeza étnica” (ROSENFELD,
1999). Para ser mais preciso, aquela opressão não havia acabado
totalmente: continuavam sendo atacados os “residentes sérvios”
nas áreas controladas pelo ELK, Exército de Libertação do Kosovo
(UCK, na sigla original) (MOROZZO DELLA ROCCA, 1999, p.
18). Tudo isso devia ser escondido ou superado para poder dar
uma interpretação absolutamente maniqueísta do conflito em cur-
so naquela região e retratar os sérvios como uma massa de crimi-
nosos endiabrados, segundo os ditames já conhecidos da Psywar.
Identificamos o ELK como a organização que fomentou a re-
volta. Tratava-se de uma revolta pacífica? Retomando a notícia do
Washington Post, um respeitável periódico italiano mencionou que,
de armas nas mãos, o ELK obrigava os refugiados do sexo mascu-
lino de 18 a 50 anos a se incorporarem aos campos de treinamento
(BATTISTA, 1999). Portanto, estamos diante de bandos armados
ou de um exército, cujos componentes de modo algum eram re-
crutados de maneira voluntária. A essa organização a Otan per-
mitia que aterrorizasse – sem legalidade alguma – as famílias dos
refugiados, que dizia pretender proteger e salvar. Quantos foram
os jovens kosovares assassinados pelo ELK? Sobre isso calaram-se
os órgãos de comunicação bem como sobre os inúmeros kosovares
de etnia albanesa achincalhados como “colaboracionistas” pelos
guerrilheiros tão prezados pelo Ocidente.
Vejamos agora o que ocorreu após o desmembramento da
Iugoslávia. Em Foreign Affairs pode-se ler que, segundo um rela-
tório do Conselho da Europa, “o primeiro-ministro do Kosovo,
HashimThaçi, e os seus aliados políticos exercem “um controle
violento sobre o comércio de heroína e outros narcóticos”, e ocu-
pam postos importantes nas “estruturas do crime organizado de
tipo mafioso em ação em Kosovo” (NAÍM, 2012, p. 104). Era um
comércio já consolidado ao longo da guerra, e isso se torna algo
bastante inocente se comparado com outras práticas colocadas em
ação pelos guerrilheiros apoiados pela Otan: “Uma fazenda em
Rripe, na Albânia central, transformada pelos homens do ELK em
centro cirúrgico e, como pacientes, prisioneiros de guerra sérvios:

139
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

um golpe na cabeça, antes de retirar os seus rins, com a cumpli-


cidade de médicos estrangeiros” (presumivelmente ocidentais)
(GERGOLET, 2010).
Justamente essa organização cínica e sanguinária forneceu uma
preciosa ajuda aos seus patrões ocidentais para conduzir uma in-
dignação moral generalizada contra o governo de Belgrado a ser
derrotado:

“O ELK sabe que não tem condições de, sozinho, derrotar os sér-
vios. A técnica adotada é a de provocar os sérvios, assassinando
policiais e civis, à espera de que a sua reação se diferencie pela
brutalidade e seja desprezada pela população civil, como fre-
quentemente ocorre, de modo a fazer com que haja intervenção
da Otan e dos americanos” (MOROZZO DELLA ROCCA, 1999,
p. 16-17).

Às vésperas dos bombardeamentos já programados, foi


organizada a Conferência de Rambouillet com a missão oficial
de intermediar as partes adversárias. Na realidade, daí surgiu
um ultimato inédito. Recentemente, um grande historiador fez
uma comparação com aquele lançado pela Áustria sobre a Sérvia
após o atentado de Saraievo e, portanto, às vésperas da eclosão
da Primeira Guerra Mundial. O segundo ultimato, lançado no
verão de 1914 pelo governo do império austríaco (apoiado pela
Alemanha de Guilherme II), com razão foi lido à sua época,
e é lido ainda hoje, como uma folha de parreira que tentava
inadequadamente encobrir a decisão já tomada de acender o pavio
da pólvora. No entanto, o ultimato de 1914 foi bem mais brando
que o de oitenta e cinco anos depois: “ele não era, ao contrário
de Rambouillet, um pedido de total prostração do Estado sérvio”.
Sim, “Kissinger, indubitavelmente, tinha razão quando descreveu
Rambouillet como ‘uma provocação, um pretexto para iniciar os
bombardeamentos’” (CLARK, 2013, p. 456-457).
O fracasso da tentativa de fazer Belgrado capitular permitiu
que o Ocidente conduzisse ao auge o processo de demonização do
inimigo que agora, mais intensamente do que no passado, era acu-

140
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

sado como o responsável pelo “genocídio” e mesmo por um novo


“holocausto”. Opunha-se a esse propósito Claude Lanzmann, di-
retor do documentário Shoah (Holocausto):

“Os intelectuais não recorreram a essa referência ao Holocausto


nem mesmo nos piores momentos da guerra da Argélia, quando
os combatentes da FLN foram assassinados em larga escala e
torturados, e em grandes áreas do país os seus habitantes foram
desalojados. E assim também por ocasião da guerra vietnamita,
quando centenas de aldeias foram arrasadas junto com as flo-
restas, plantações de arroz etc. (...). Estas constantes referências
ao Holocausto (por ocasião da guerra contra a Iugoslávia) foram
um modo de abafar qualquer discussão. Era proibido falar! Esta-
va acabada a discussão!” (in: GIBBS, 2009, p. 218).

Justamente esse era o trabalho do terrorismo da indignação! O


paralelismo do inimigo com Satanás, segundo sugestão do manu-
al já conhecido de Psywar, não se esgotou certamente com o início
dos bombardeamentos. “A demonização de Milosevic é necessá-
ria para continuar com os ataques aéreos” (COHEN, 1999): foi a
afirmação de um jornalista estadunidense, mas soou como uma
diretriz do Pentágono. Um general e estrategista italiano reforçou:
“Há necessidade, para a democracia, de demonizar o inimigo jus-
tamente para se obter aderência da opinião pública” (JEAN, 1999).
Aliás, o próprio porta-voz da Otan, Jamie Shea, declarou explici-
tamente: “Esta é a guerra mais midiática do século XX e eu quero
combatê-la dando o meu melhor” (in: DI FEO, 1999).
E assim os bombardeamentos puderam continuar imediata-
mente. Apesar disso tudo, a capitulação do país agredido e consi-
deravelmente indefeso demorou a chegar. Para superar a situação
de impasse que havia sido criada, o “campo aéreo” foi, pelos go-
vernos ocidentais, “ampliado para objetivos civis”. No geral, “o
número de civis assassinados pela Otan”, e não poucos foram víti-
mas das “bombas de fragmentação” explodidas após o fim oficial
das hostilidades, correspondia quase ao de “kosovares albaneses”
mortos pelos sérvios (FERGUSON, 2001, p. 413). Com a diferen-

141
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ça – é preciso acrescentar – de que no segundo caso tratava-se de


uma terrível guerra civil de ambos os lados, enquanto no primeiro
caso quem atacou foram pilotos, na prática inatingíveis pela defe-
sa antiaérea.
Ao menos os bombardeamentos serviram para pôr fim à vio-
lência étnica e aos ajustes de contas? Mais de um ano e meio de-
pois do triunfo da suposta missão humanitária, um jornalista ita-
liano chamou a atenção para uma “notícia trágica” ou para um
“dado perturbante, mas incontestável, em qualquer fonte que se
dedique a isso”, isto é: “em Kosovo os ‘mortos da paz’ superaram
os mortos da guerra” (ZACCARIA, 2001). Nesse ínterim, porém,
o desmembramento da Iugoslávia foi levado a termo e nascia um
novo Estado, mais ou menos “independente” com uma gigantesca
base militar estadunidense ao centro (Camp Bondsteel); ao mes-
mo tempo, o vitorioso desenlace da “guerra humanitária” refor-
çou a orgulhosa autoconsciência do Ocidente de ser o invencível
defensor da causa dos direitos humanos.

3.7. “Evidência” da imagem e uso soberano das categorias

A campanha contra a Líbia de Gaddafi nos coloca diante de uma


significativa variante de “guerra humanitária”. Inicialmente, ela se
desenvolveu conforme o esquema já analisado. Tratava-se, em pri-
meiro lugar, de mutilar a realidade de modo a isolar o alvo a ser
atacado primeiro com o bombardeamento da indignação e, depois,
com as bombas reais. No Oriente Médio, em 2011, não faltaram cer-
tamente as situações e os comportamentos suscetíveis de provocar
preocupações humanitárias e indignação moral. Prosseguiram inin-
terruptos, por um lado, o expansionismo colonial e a “etnocracia”
de Israel e, por outro, o martírio do povo palestino, subjugado por
uma ocupação militar de duração talvez sem precedentes na histó-
ria: os palestinos estavam (e ainda estão) permanentemente expos-
tos ao risco de captura, de reclusão em um campo de concentra-
ção, de execução extrajudicial, tudo decidido soberanamente pelo
ocupante. Todas as tentativas de levar o Conselho de Segurança a
expressar a sua desaprovação ou a sua preocupação foram derro-

142
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

tadas pelo veto dos EUA. Neste caso, mesmo uma censura branda,
destituída de consequências militares, econômicas ou diplomáticas,
foi considerada por Washington intolerável.
Aliás, a crise líbia irrompeu quando as tropas da Arábia Saudita
intervieram em Bahrein para respaldar a dura repressão executa-
da por autoridades locais. Sobre este último aspecto, foi eloquente
o testemunho reproduzido no International Herald Tribune:

“Nas últimas semanas eu vi cadáveres de manifestantes, ataca-


dos de uma curta distância por tiros de armas de fogo, vi uma
menina contorcer-se de dor depois de ter sido espancada, vi os
atendentes de uma ambulância serem espancados por terem
tentado salvar manifestantes”.

A ainda:

“Um vídeo de Bahrein parece mostrar forças de segurança que,


a poucos metros de distância, batiam com um extintor de incên-
dio no peito de um homem de meia idade desarmado. O homem
cai no chão e tenta se levantar. E eis que então o golpeiam com o
extintor na cabeça”.

E não foi só isso: “nos últimos dias as coisas vão muito pior”.
Mesmo antes da repressão, a violência já ocorria na vida cotidiana:
a maioria xiita foi obrigada a amargar um regime de “apartheid”.
O aparato de repressão foi reforçado (e ainda é) por “mercenários
estrangeiros” e “tanques, armas e gás lacrimogêneo” estaduni-
denses. Determinante foi (e é) o papel dos EUA, como esclareceu
o jornalista do International Herald Tribune, referindo-se a um epi-
sódio por si só esclarecedor:

“Algumas semanas atrás, o meu colega do New York Times, Mi-


chael Slackman, foi capturado pelas forças de segurança de Bah-
rein. Ele me contou que apontaram armas contra ele. Com medo
de que atirassem, ele levantou o passaporte e gritou que era um
jornalista americano. A partir daquele momento o ambiente mu-

143
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

dou repentinamente; o líder do grupo se aproximou, pegou a


mão de Slackman, gritando com energia: ‘Não se preocupe! Nós
amamos os americanos!’” (KRISTOF, 2011).

De fato, Bahrein foi e é uma base da Quinta Frota estaduni-


dense. E, por isso, o mesmo silêncio sobre Israel foi observado em
relação a Bahrein e à Arábia Saudita. Não se admitiam descuidos.
A preocupação humanitária devia se concentrar exclusivamente
sobre o conflito em curso na Líbia.
A esta altura iniciava-se o segundo ato da Psywar, isto é, a ence-
nação maniqueísta do conflito no país norte-africano. Apesar disso
tudo, o processo de beatificação dos rebeldes antiGaddafi acabou
esbarrando na realidade. Aqui e lá a imprensa ocidental reconhe-
ceu a presença entre os rebeldes de grupos ligados ao fundamen-
talismo islâmico e violentamente contrários à emancipação das
mulheres oriunda da revolução anticolonial. Em uma consagrada
revista estadunidense podia-se ler algo como: “Os rebeldes assas-
sinaram, pensando que fossem mercenários, negros africanos que
eram feitos prisioneiros de guerra”; também estavam na sua mira
negros africanos alheios ao conflito, que mesmo assim eram lin-
chados ou jogados ao mar dos navios enviados pelos governos eu-
ropeus com o fim de remover a população civil (PELHAM, 2011,
p. 77). Sim – outra fonte igualmente confiável confirmou –, foram
assassinados “migrantes africanos inofensivos que eram confun-
didos, pelos adversários de Gaddafi, com mercenários a soldo do
regime deste” (DOTTORI, 2011, p. 45).
A bem da verdade, os rebeldes se comportaram de modo mui-
to duvidoso mesmo em relação aos líbios em sentido estrito, pelo
menos a julgar por um relato, no Corriere della Sera: “Na confusão
geral, ocorreram até saques. O mais visível foi no hotel El Fade-
el, de onde [os rebeldes] levaram televisões, cobertas, colchões e
transformaram as cozinhas em chiqueiros, os corredores em aloja-
mentos imundos” (CREMONESI, 2011a).
Além disso, quanto ao tratamento reservado aos soldados do
exército de Gaddafi, limito-me a citar um artigo publicado no In-
ternational Herald Tribune de 26 de agosto:

144
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

“Em um acampamento no centro de Trípoli foram encontrados


crivados de balas os corpos de 30 combatentes pró-Gaddafi. Pelo
menos dois estavam presos com algemas de plástico, e isso leva
a pensar que tenham sido executados. Desses mortos cinco fo-
ram encontrados em um hospital de campo; um estava em uma
ambulância, deitado em uma maca, amarrado com uma correia
e com o soro ainda ligado na veia do braço” (FAHIM, GLADS-
TONE, 2011).

Como se vê, decerto não faltou material empírico para contes-


tar a encenação maniqueísta do conflito, mas isso foi anulado ou
retirado sem escrúpulos: era preciso a todo custo reforçar o dog-
ma segundo o qual o responsável por qualquer infâmia era o “di-
tador”, ao qual o Ocidente tinha obrigação moral de condenar e
matar.
E principalmente devia ser escondido o fato de que os servi-
ços secretos ocidentais estavam em ação na Líbia bem antes de
terem ocorrido as “atrocidades” de Gaddafi e, obviamente, sem
a autorização do Conselho de Segurança da ONU. O Sunday Mir-
ror de 20 de março revelou que havia “três semanas” já estavam
em ação na Líbia “centenas” de soldados britânicos, fixados em
uma das corporações militares mais sofisticadas e mais temidas
do mundo, o Serviço Aéreo Especial (SAS, na sigla em inglês, Spe-
cial Air Service); entre elas, se incluíam “duas unidades especiais,
chamadas ‘Smash’ por causa de sua capacidade de destruição”
(HAMILTON, 2011). Portanto, a agressão já havia sido iniciada,
ainda mais que colaboraram com as centenas de soldados britâni-
cos “pequenos grupos da CIA” – no âmbito de “uma ampla força
ocidental em ação na escuridão” e encarregada pela “administra-
ção Obama”, ainda “antes da eclosão das agressões de 19 de mar-
ço”, de “prender os rebeldes e aniquilar o exército de Gaddafi”
(MAZZETTI, SCHIMITT, SOMAIYA, 2011, p. 1). Foram operações
bem mais relevantes e efetuadas em um país por si só já frágil por
causa de sua estrutura tribal e pelo dualismo de longa data entre
Tripolitânia e Cirenaica. E além disso, operações com uma longa
história sobre os ombros: de acordo com o The Observer, já em 1996

145
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

os serviços secretos britânicos tinham o objetivo de “assassinar o


coronel Gaddafi” e, para alcançar esse propósito, não hesitaram
em “pagar vultosas somas de dinheiro para uma célula da al-Qae-
da na Líbia” (BRIGHT, 2002). Há quinze anos de distância – como
nos revela desta vez o International Herald Tribune –, era a adminis-
tração Obama que depositava as suas esperanças em “uma bala ou
em um míssil que coloque um fim a quarenta anos de governo do
ditador” (SANGER, 2011, p. 8).
Todas essas informações, quando conseguiam escapar, eram
abafadas e eliminadas pela interminável massa de crônicas falsi-
ficadas, de anúncios de propaganda e de desinformação. Sobre
esses pedaços de verdade apenas estava informado um número
reduzido de pessoas, em geral pouco propensas a fazer um uso
combativo dos mesmos; a encenação oficial e maniqueísta do con-
flito quase não teve oposição. Para levar à exasperação a indigna-
ção crescente e desencadear a guerra havia muito tempo almejada
e preparada apenas faltava a smoking gun.
Oportuna e convenientemente difundiu-se a denúncia de um
outro crime de Gaddafi, acusado de ter empanturrado os seus
soldados com viagra de modo que mais facilmente pudessem
cometer estupros repetidas vezes um após outro. Esta “notícia”,
que não era alheia à fantasia erótica de seus inventores, caiu ra-
pidamente no ridículo; de outra parte, não chegaram a encontrar
as valas comuns. O tempo escasseava e eis que a sociedade do
espetáculo como técnica de guerra soou o alarme sobre um imi-
nente “genocídio”: o regime se preparava para cometê-lo contra
Bengasi e a população civil em geral. Isso foi demonstrado pelos
bombardeamentos aéreos “terroristas”. No entanto, também neste
caso, algum pedaço de verdade acabou por vazar das informações
de jornalistas corajosos, ou simplesmente desatentos. Folheemos
La Stampa de 1º de março: “É verdade, provavelmente não tenha
ocorrido nenhum bombardeamento” (RUOTOLO, 2011). A situa-
ção mudaria de modo radical nos dias seguintes? O Corriere della
Sera de 18 de março declarou sobre Tobruk: “E como já aconteceu
nos outros lugares onde houve intervenção da aviação [da Líbia
de Gaddafi], ocorreram na maioria das vezes ataques de advertên-

146
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

cia. “‘Eles queriam assustar. Muito barulho e nenhum prejuízo’,


nos disse por telefone um dos porta-vozes do governo provisório”
(rebelde) (CREMONESI, 2011b). De fato, as próprias “vítimas”
desmentiram o “genocídio” que havia sido praticado contra elas
e que no Ocidente foi usado como justificativa para a guerra “hu-
manitária”.
Nem por isso a campanha intervencionista acabaria. Pelo con-
trário, ela chegou ao seu auge em 20 de março de 2011, quando o
Corriere della Sera reproduziu com evidência a foto de um avião
que caía do céu em chamas em Bengasi. Tanto a legenda quanto
o artigo explicaram tratar-se de um “caça” em combate contra o
regime, pilotado por um dos “pilotos mais experientes” do cam-
po rebelde e derrubado por “mísseis terra-ar de Gaddafi” (CRE-
MONESI, 2011c). Portanto, bem longe de estarem desarmados,
os revoltosos dispunham de armas sofisticadas de ataque, e de
pessoal militar qualificado. Tudo isso deveria colocar em crise a
ideologia de guerra da Otan, que apresentou os seus bombarde-
amentos como uma operação humanitária com o objetivo de sal-
var de um iminente massacre uma população civil indefesa. Mas
a esta altura sobreveio “uma afirmação pura e simples, desvin-
culada de qualquer raciocínio e de qualquer prova”, apresentada
por Le Bon: neste caso, entrou em ação a repetição do dogma da
ideologia de guerra, não a repetição ou reapresentação da foto do
avião derrubado pelos rebeldes, que aquele dogma tinha desmen-
tido espalhafatosamente. E assim permaneceu de pé o dogma, evi-
dentemente falso, que o poder de manipulação sem precedentes
tornou inatingível. As poucas vozes isoladas que convidavam a
raciocinar foram impotentes: “Rebeldes combatentes” – fazia no-
tar um jurista em uma das colunas do Frankfurter Allgemeine Zei-
tung – “não são civis, mesmo se poucas horas antes eram padeiros,
sapateiros e professores” (MERKEL, 2011). Não tinha sentido,
então – enfatizou o filósofo estadunidense Michael Walzer –, falar
de “uma intervenção humanitária para pôr fim a um massacre”
(LAU, 2011).
O poder de fogo multimidiático do Ocidente e da Otan obte-
ve resultados que nem mesmo Le Bon teria imaginado; conseguiu

147
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

fazer triunfar uma tese que não apenas era destituída de “prova”
como também tinha contra si a “prova” da foto do avião de guerra
pilotado por um dos “mais experientes” pilotos rebeldes. Após a
intervenção da Otan, novamente a Líbia ficou consideravelmente
indefesa e desarmada em relação a seus inimigos que a tinham
bombardeado impunemente, matando milhares e milhares de lí-
bios (civis na maior parte), sem medo de serem atacados. No en-
tanto, o dogma apregoado por Washington e nas capitais euro-
peias continuou valendo exatamente enquanto dogma: em outras
palavras, do mesmo modo que contra os verdadeiros bombardea-
mentos a Líbia de Gaddafi também ficou impotente contra o bom-
bardeamento multimidiático ocidental e o uso soberano ocidental
das categorias.

3.8. As duas funções bélicas da sociedade do espetáculo

Às vésperas de uma guerra mais ou menos “humanitária”,


o bombardeamento multimidiático anterior a ela provoca
frequentemente o que vem a ser chamado de “efeito CNN”: uma
parte considerável da população estadunidense (e ocidental)
exige ou está pronta a aplaudir o recurso às bombas e aos mísseis
com o objetivo de punir ou eliminar os bárbaros de cujos crimes
a cadeia de televisão forneceu a pronta e incontestável evidência.
Assim, o elemento bélico da sociedade do espetáculo tornou-
se evidente. Não se trata mais de convencer o consumidor a
comprar aquele “chocolate” e não um outro, ou a votar em um
tal candidato e não em outro, como dizia Le Bon. Somos levados,
ao contrário, a pensar nas técnicas de propaganda de guerra no
século XX. O seu objetivo – observou um estudioso estaduniden-
se, Harold Lasswell – era o de “destruir a insubmissão dos indi-
víduos na fornalha da dança da guerra”, “modelar milhares e até
milhões de seres humanos em uma massa cheia de ódio, de von-
tade, de esperança”, e também de um “beligerante entusiasmo”
(in: LOSURDO, 1993, cap. 5, § 2). Esse mesmo objetivo hoje é al-
cançado com ideologias e técnicas diferentes em comparação às
do passado. Faria pouco sentido recorrer ao espírito de sacrifício

148
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

e à disposição ao sacrifício extremo, exigidos, por exemplo, ao


longo de dois conflitos mundiais: isso se tornou supérfluo e mes-
mo embaraçoso, agora que a Otan pode conduzir as suas guerras
neocoloniais sem precisar se preocupar com a integridade física
de seus pilotos, e agora que o pessoal militar do Ocidente faz
lembrar mais um pelotão de fuzilamento do que um exército tra-
dicional. Não se trata tampouco de apelar ao patriotismo, que
geraria um eco muito limitado e, por isso, entraria em contradi-
ção com o universalismo ou internacionalismo suscitados pelos
promotores das intervenções “humanitárias”. Trata-se, ao con-
trário, de tirar vantagem da crescente variedade e sofisticação
dos meios de comunicação para gerar contra o inimigo a ser aba-
tido em cada ocasião uma onda de indignação tão poderosa que
resulte arrebatadora, e para exercer uma pressão, em última aná-
lise, terrorista: a excomunhão da “comunidade internacional” e
do gênero humano atinge não apenas o inimigo como também os
neutros e indecisos, todos aqueles que, por uma razão ou outra,
não se alinham com a opinião e o poder dominantes.
Poderia se dizer que nas guerras neocoloniais ocorridas no
Oriente Médio a partir de 1991, a sociedade do espetáculo desem-
penha um duplo papel: por um lado, alimenta o terrorismo de
indignação contra o inimigo e, por outro, faz que pareçam um jogo
consideravelmente inofensivo e até divertido os bombardeamen-
tos desencadeados contra ele, eliminando totalmente as dezenas
de milhares de mortos e feridos, os prédios e casas civis destruí-
dos, a massa de refugiados frequentemente aniquilada. Viemos a
saber que o príncipe Harry, segundo filho da família real britânica,
pôde finalmente ter seu batismo de fogo no Afeganistão, matan-
do inclusive algum inimigo. Completou a sua missão do alto de
um helicóptero Apache e, por isso, sem correr grandes riscos. Bem
se compreende que ele tenha vivenciado “tudo como um jogo”.
Um jogo que incluiu, como ocorre frequentemente, “danos colate-
rais” entre a população civil? Nisso igual aos seus companheiros,
o príncipe não gosta de se pôr questões inquietantes: “Harry conta
que entre uma missão e outra batia um grande tédio, e por sor-
te havia os videogames nos quais basicamente se usa o joystick,

149
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

como no Apache”. Seja como for, a missão de guerra reduzida a


um jogo foi conveniente para fazer esquecer o jogo anterior, quan-
do o príncipe foi fotografado com o distintivo do Afrika Korps e
com a suástica nazista (SABADIN, 2013; GALLO, 2013). A socie-
dade do espetáculo transforma em um jogo as guerras do presente
como aquelas do passado, as guerras da Grã-Bretanha (e da Otan)
bem como aquelas do Terceiro Reich.
Se quisermos encontrar um exemplo da dupla função da so-
ciedade do espetáculo, é preciso ir ao Sul dos EUA entre os sé-
culos XIX e XX, quando despontou o regime da White suprema-
cy. Os negros acusados, quase sempre totalmente sem razão, de
terem estuprado uma mulher branca eram retratados do modo
mais lúgubre e sórdido. Dessa campanha participou ativamente
a imprensa local, que ao mesmo tempo anunciou data, horário e
local da punição preparada para o monstro: e assim se passou da
primeira função da sociedade do espetáculo (a desumanização
e demonização da vítima) à segunda função. À punição assistiu
uma considerável multidão: homens, mulheres (muitas vezes com
filhos de tenra idade nos braços), rapazes cuja escola lhes havia
concedido um dia livre, até espectadores vindos de longe, às ve-
zes se aproveitando de vagões extras acrescentados aos trens para
a ocasião. Antes de receber o golpe de misericórdia e de poder
receber a morte como uma libertação, a vítima sofria uma intermi-
nável tortura, que incluía castração ou mutilações de vários tipos.
Mas tudo isso se tornava divertido e até hilariante para o vasto
público: a segunda função da sociedade do espetáculo tinha con-
dições de transformar em espetáculo até uma violência decidida-
mente repugnante. Como os afro-americanos atacados pelo regi-
me da White supremacy, até Gaddafi foi acusado como responsável
de estupro, e até de um estupro em massa: e assim a demonização
alcançou o seu auge. E eis que a destruição de um país inteiro,
dos seus prédios e casas civis, a morte de dezenas de milhares de
líbios, tudo se tornou um espetáculo ao qual assistiram milhões e
milhões de pessoas, que contemplavam tranquilas ou satisfeitas as
imagens entre uma garfada e outra no café da manhã, no almoço
e no jantar.

150
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

Como consequência, ainda da passagem da primeira para a


segunda função da sociedade do espetáculo, o linchamento im-
posto a Gaddafi tornou-se ele próprio um espetáculo, e não ge-
rou nenhum movimento de contestação. A função pedagógica
das duas punições-espetáculo aqui comparadas é a mesma, ou
é bastante parecida: tratava-se, ou trata-se, de reforçar a inven-
cibilidade do regime da “supremacia branca” ou da “suprema-
cia ocidental” (não esquecendo que, junto com Gaddafi, também
foram submetidos a um linchamento não poucos africanos que
tiveram a desventura de serem negros). Hoje sabemos que a
acusação de estupro contra Gaddafi tem a mesma credibilidade
daquela, à sua época, dirigida aos afro-americanos; ou melhor,
verificou-se que justamente os rebeldes líbios foram vitoriosos
graças ao apoio do Ocidente que desempenhou um papel de pri-
meiro plano no “sistemático estupro” seja na Líbia, seja na Síria
contra as mulheres curdas, capturadas e submetidas à escravi-
dão sexual (cf. §§ 1.5 e 1.8).
No entanto, apesar de tudo isso e apesar da catastrófica situa-
ção da atual Líbia, altos membros da Otan declaram estar orgulho-
sos do trabalho desenvolvido; somos levados a pensar no orgulho,
à sua época, demonstrado pelos apoiadores da Ku Klux Klan. Re-
forçando a função pedagógica da punição-espetáculo, o orgulho
dos vencedores é parte integrante da sociedade do espetáculo e do
espetáculo como técnica de guerra.

3.9. Hollywood e a nação moral por excelência

Obviamente, a manipulação é um fenômeno que não tem nada


de novo, mas os progressos da tecnologia, por um lado, e da psi-
cologia aplicada, por outro, conferem agora à ação manipuladora
uma amplidão, uma profundidade e uma capacidade de ação su-
bliminar sem precedentes. O representante privilegiado da nova
era da manipulação total não podia ser nenhum dos dois países ou
nenhum dos dois regimes que consistem no alvo da teoria clássica
do totalitarismo. Não obstante o indiscutível controle dos meios de
comunicação e a repressão cruel sobre a divergência de opinião, a

151
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

URSS de Stálin sempre foi rigorosa com a preocupação doutriná-


ria. Para adquirir legitimidade, o poder devia demonstrar que, no
plano da política interna e externa, agia em conformidade com o
ensinamento dos clássicos e com o programa revolucionário origi-
nário: por mais difícil ou angustiante que fosse essa tentativa, dela
procedia ainda um elemento de crítica do presente, continuamen-
te colocado em confronto com um modelo ambicioso, pretensioso
e mesmo inatingível; em todo caso, deixava pouca margem para a
ação subliminar, que é mais profunda e eficaz.
No que se refere à Alemanha, ao longo da Primeira Guerra
Mundial ela repôs todas as esperanças no seu poder militar. De-
pois da derrota, um autor como Ernest Jünger expressou o seu de-
sapontamento com o fato de que o seu país não soube de nenhum
modo enfrentar a ofensiva ideológica desencadeada pelos inimi-
gos. Mas essa advertência implícita não foi realmente levada a sé-
rio pelo Terceiro Reich. Goebbels e o aparato publicitário nazista
se deram conta da importância ideológica mais no plano interno
do que no externo, não compreenderam convenientemente que
nos conflitos entre as grandes potências entrava em jogo a opinião
pública mundial e tinha se tornado essencial o apelo às ideias e
principalmente às emoções adequadas para demonizar o inimigo.
De outra parte, a tentativa de renovar e radicalizar a tradição co-
lonial, no momento em que já havia se iniciado o movimento de
emancipação dos povos coloniais, não podia deixar de gerar uma
enorme oposição em nível mundial.
Certamente, o Terceiro Reich preparou o desmembramento da
Tchecoslováquia em uma campanha de imprensa que também
lança um feixe de luz sobre a moderna ideologia de guerra. Fo-
lheemos o Völkischer Beobachter (Observador Popular), órgão do
partido nazista. Vejamos alguns títulos: “Soldados tchecos prati-
cam tiro ao alvo contra os camponeses alemães dos Sudetos”. “Até
quando os alemães dos Sudetos serão tratados como caça?” (9 de
agosto de 1938). “Sangue, morte e sofrimento dos alemães dos Su-
detos” (13 de agosto de 1938). Mesmo nesse caso é evidente a ten-
tativa de gerar indignação contra as vítimas que Hitler se prepara-
va para atacar: mas como tudo isso parece improvisado e amador

152
3. SOCIEDADE DO ESPETÁCULO, TERRORISMO DA INDIGNAÇÃO E GUERRA

com comparação às campanhas científicas de public relations e às


sofisticadas técnicas modernas!
Bem se compreende que o privilegiado representante da era
da manipulação total tenha sido e seja o país que combateu como
guerras ditadas pela moral e pela religião as guerras contra os pe-
les-vermelhas “selvagens” e “pagãos” e contra o México e a Espa-
nha católicos e “papistas”. Ao longo do século XX, esse país, na
pessoa de Wilson, promoveu e comemorou a sua intervenção no
primeiro conflito mundial como uma “guerra santa, a mais santa
de todas as guerras” e, pelas palavras de Eisenhower, apresen-
tou como uma “cruzada” a sua participação no segundo conflito
mundial; como defensor de uma missão sagrada ele foi visto e re-
petidamente anunciado também no decorrer da Guerra Fria (2).
O país moral e religioso por excelência se transformou, graças a
Hollywood inclusive, na vanguarda da sociedade do espetáculo e
do espetáculo como técnica de guerra.
A ascensão dos EUA para o papel de grande potência mundial,
e depois de única superpotência, foi marcada pelas guerras que fo-
ram antecedidas pelo uso de encenações e imagens, que visavam a
estimular o terrorismo da imediata percepção e indignação:
a) 1898: a guerra contra a Espanha foi apresentada por Washin-
gton como uma resposta ao afundamento do cruzador estaduni-
dense Maine no porto de Havana, um afundamento talvez aciden-
tal e do qual de qualquer forma não há provas da culpabilidade
dos espanhóis. Quem poderia resistir à onda de indignação cau-
sada pela lembrança dos marinheiros estadunidenses mortos em
consequência de um ataque traiçoeiro, por ação de um inimigo já
habituado, por seu “papismo” e seu substancial “paganismo”, a
qualquer infâmia?
b) 1917: a intervenção na Primeira Guerra Mundial foi aparen-
temente uma reação ao afundamento do barco Lusitânia (se omi-
tia sobre o transporte de armas por ele efetuado, para falar apenas
dos infelizes passageiros). E novamente por causa de um crime
de guerra tão bem retratado, tornavam-se arrebatadores a raiva

(2) Cf. EISENHOWER (1948); LOSURDO (2007), cap. 6, § 12 e cap. 3, § 6.

153
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

e o furor bélico. Ainda mais que a barbárie do inimigo alemão já


havia sido amplamente demonstrada pelas horripilantes imagens
que haviam circulado em Nova Jérsei e que mostraram as tropas
guilherminas, na Bélgica traiçoeiramente invadida, matando sem
razão crianças e mulheres e se divertindo em mutilar os seios des-
sas infelizes.
c) 7 de dezembro de 1941: ataque japonês a Pearl Harbor. Ele foi
tudo menos imprevisto: pouco mais de quarenta anos antes o Im-
pério do Sol Levante tinha agido de maneira semelhante contra a
Rússia czarista; de outra parte, o embargo lançado pelos EUA co-
locou em uma situação insustentável o governo de Tóquio, de fato
obrigado a escolher entre uma renúncia derrotista ao seu ímpeto
expansionista e a eclosão da guerra. Segundo não poucos historia-
dores, o ataque foi previsto (e talvez até tenha sido desencadeado)
por F. D. Roosevelt que, no entanto, não perdeu tempo em deno-
minar o 7 de dezembro de 1941 como “uma data marcada pela
infâmia” de uma agressão traiçoeira, e além disso desencadeada
enquanto o governo estadunidense se empenhava na “tentativa
de manter a paz no Pacífico”. Esta última afirmação é claramen-
te uma mentira: os dois lados se preparavam febrilmente para a
guerra. Em todo caso, no que se refere aos EUA o resultado da sá-
bia gestão da crise, e de ter atribuído a Tóquio a responsabilidade
exclusiva pela guerra, foi “uma descarga de adrenalina nacional,
uma mistura de raiva, energia e princípios em uma unidade sem
precedentes” (BRUCE, 1995, p. 24-29).
d) agosto de 1965: um previsto e incompreensível ataque norte-
-vietnamita no Golfo de Tonkin a uma unidade da mais poderosa
marinha militar do mundo daria a Washington o pretexto para
iniciar o sistemático e terrorista bombardeamento contra o país
indicado como responsável pela injustificável agressão. Tratava-se
de uma encenação cujo caráter mentiroso é hoje conhecido univer-
salmente.

154
4

De Truman até 1973


e de 1989 aos dias
atuais. Duas ondas de
golpes de Estado

4.1. Um terrorismo da indignação ligado ao passado

M
ais do que ao presente, o terrorismo da indignação pode
ser ligado ao passado. É possível, por assim dizer, fazer
uma imagem – verdadeira ou falsa, mas seja como for
meticulosa e instrumentalmente selecionada – grudar em um con-
corrente, um inimigo em potencial, um inimigo a ser desacredita-
do ou, mais exatamente, para ser exposto ao escárnio da opinião
pública internacional. Ao recordar todo ano a tragédia da Praça
Tienanmen, no início de junho os meios de comunicação ociden-
tais reapresentam infalivelmente a fotografia do jovem chinês que,
desarmado, enfrenta com coragem um tanque do exército. A men-
sagem que se quer transmitir é clara: quem desafia a prepotência
e o despotismo é um combatente pela liberdade ao qual o Ociden-
te não se cansa de render homenagens, e apenas no Ocidente ele
pode encontrar a sua pátria escolhida.
Mas realmente tudo é tão óbvio? Realmente não há espaço
para dúvida e indefinição? Procurar refletir um pouco, antes de
internalizar e tornar verídica a mensagem maniqueísta que nos é
mostrada, ou que se procura impor, é só sinônimo de uma postu-

155
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ra sofística e de indiferença em relação às razões da moral? Está à


espreita o terrorismo de imediata percepção e indignação. Quem
quer evitar cair numa armadilha faria bem demonstrar dúvida
por um momento e se fazer algumas perguntas antes de chegar
a uma conclusão não apenas apressada, mas principalmente im-
posta de fora com prepotência. E se quiser ainda se ater a anos
mais recentes, há um grande número de fotos que poderiam vir
a ser um símbolo de crueldade e violência. Os grandes meios de
comunicação empenhados na busca de imagens suscetíveis de
despertar ou manter viva a consciência moral da humanidade te-
riam apenas uma dificuldade de escolha: eles poderiam trazer à
tona as humilhações, os maus tratos e torturas sofridos pelos ira-
quianos confinados na prisão estadunidense de Abu Ghraib; ou
poderiam resgatar o rosto franzino dos presos (sem julgamento)
de Guantánamo em uma greve de fome, interrompida pelas au-
toridades carcerárias com uma degradante alimentação forçada,
amplamente ignorada pelos meios de comunicação ocidentais.
Ou, se se quer algo mais forte, por que não dar espaço para a
imagem do “rebelde” que na Síria degustou o fígado retirado
do cadáver de um soldado do regime odiado e combatido pelo
Ocidente?
Quer se concentrar exclusivamente nos acontecimentos da Pra-
ça Tienanmen? Tomemos nota de que já ocorreu uma primeira
seleção. Mas eis que imediatamente irrompe uma segunda. Ainda
em relação àqueles acontecimentos, se poderia recorrer à foto que
circula pela internet do soldado chinês queimado vivo pelos ma-
nifestantes e depois enforcado em um poste. Pretendemos usar
aquela foto mesmo que, sem saber ao certo por qual razão, não nos
pareça crível o suficiente? Desconsiderando as imagens visuais,
de modo a dar um mínimo de espaço para a reflexão, poderíamos
nos concentrar nas descrições apresentadas nos Tienanmen Papers,
no Ocidente publicadas com grande alvoroço e após uma suposta
operação clandestina, e festejadas como a definitiva revelação das
infâmias que o regime no poder na China em vão procura escon-
der. Graças à leitura nos deparamos com circunstâncias e detalhes
inesperados:

156
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

“Repentinamente e chegando depressa, um jovem jogou algo


em um carro blindado e fugiu. Alguns segundos depois, se viu
sair uma fumaça verde-amarelada do veículo, enquanto os sol-
dados se arrastavam para fora e se deitavam no chão, na rua,
agonizantes. Alguém disse que haviam inalado gás venenoso.
Mas os oficiais e os soldados, apesar da raiva, conseguiram man-
ter o autocontrole”.

Bastaria concentrar a atenção nos espasmos e na agonia dos


soldados atacados com o gás venenoso para fazer mudar radical-
mente a direção dos movimentos de comoção e de indignação: o
primeiro se dirigiria ao Exército Popular de Libertação (que, ape-
sar de tudo, consegue “manter o controle”) e o segundo se voltaria
contra os manifestantes, não apenas bem armados como também
prontos a recorrer a algo semelhante às armas químicas. Conti-
nuemos a ler:

“Mais de quinhentos caminhões do exército foram incendiados


em dezenas de cruzamentos (...). Na avenida Chang’an um ca-
minhão do exército foi parado por causa de um defeito no motor
e duzentos revoltosos atacaram o motorista espancando-o até a
morte (...). No entroncamento Cuiwei, um caminhão que trans-
portava seis soldados desacelerou para não atingir a multidão.
Então, um grupo de manifestantes começou a jogar pedras, co-
quetéis molotov e tochas contra ele que, a certa altura se inclinou
para o lado esquerdo porque um dos seus pneus havia sido fu-
rado por pregos que os revoltosos tinham espalhado. Então, os
manifestantes colocaram fogo em alguns objetos e os atiraram
contra o veículo, cujo tanque explodiu. Todos os seis soldados
foram mortos em meio às chamas” (NATHAN, LINK, 2001, p.
435 e 444-445).

Detenhamo-nos neste último episódio: soldados se viram con-


denados à morte no mesmo instante em que procuravam poupar a
vida e a própria saúde dos seus agressores. Eis um outro possível
símbolo da crueldade humana que, no entanto, não poderia ser

157
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

atribuído ao Partido Comunista no poder na China, mas aos “dis-


sidentes” beneficiados e apoiados pelo Ocidente.
Mas imaginamos que, por uma razão qualquer, a imagem do
jovem chinês que enfrenta o tanque de guerra seja considerada
particularmente emblemática. Pois bem, essa fotografia faz parte
de uma sequência. Como reage o motorista do tanque frente ao
jovem desarmado que o encara: o atropela e o esmaga, mata-o com
a metralhadora ou, ao invés disso, desvia dele? A esse propósito,
os Tienanmen Papers dão a palavra a um membro do comando de
Pequim:

“Vimos todas as imagens do jovem rapaz que enfrentou o tan-


que de guerra. O nosso tanque diminuiu a marcha algumas ve-
zes, mas o rapaz ficou o tempo todo ali no meio da rua, e ainda
quando tentou subir nele os soldados se contiveram e não atira-
ram. Isso diz muito! Se os militares tivessem aberto fogo, a re-
percussão teria sido muito diferente. Os nossos soldados segui-
ram perfeitamente as ordens do partido central. É incrível que
eles tenham conseguido manter a calma numa situação desse
tipo!” (IDEM, p. 486).

Se se conhecesse a obstinação do jovem desarmado que desa-


fiou o motorista do tanque de guerra que, com igual obstinação, se
empenha em salvar a vida e integridade física do desafiante, tal-
vez nesse caso o respeito, a simpatia e a admiração do espectador
não se dirigiriam para uma única direção. Uma coisa é certa: ao
reapresentar a imagem do jovem que enfrenta o tanque de guer-
ra e ao excluir a imagem do motorista do tanque empenhado em
evitar atropelá-lo, os meios de comunicação ocidentais procedem
a uma terceira seleção. Desse modo, a transformação da fotografia
em símbolo da tragédia da Praça Tiananmen, longe de apresentar
uma evidência imediata, não é imediata e nem tem um significado
por si só evidente. Não é imediata porque é o resultado de uma
seleção tríplice, muito cuidadosa. Não tem um significado por si
só evidente porque, apesar da cuidadosa e múltipla seleção, ela, se
bem observada ou bem compreendida, poderia ter um significado

158
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

bastante diferente e até oposto em relação àquele que a ideolo-


gia dominante lhe atribuiu. Em circunstâncias semelhantes, nos
territórios palestinos ocupados, o motorista do tanque de guerra
israelense (e ocidental) demonstraria o mesmo autocontrole do
motorista chinês?
Nos últimos anos várias vozes autorizadas e insuspeitas joga-
ram luz sobre os acontecimentos da Praça Tienanmen. O ex-chan-
celer alemão Helmut Schmidt lembrou que em Pequim a interven-
ção militar foi decisiva em razão do prolongamento indefinido de
uma situação intolerável (os manifestantes impediram a atividade
do governo e rejeitaram qualquer compromisso). E principalmen-
te: os soldados chamados a restabelecer a ordem “no primeiro mo-
mento resistiram, mas eles foram atacados com pedras e coquetéis
molotov e se defenderam com as suas armas” (SCHMIDT, 2012).
E essa versão dos fatos é indiretamente confirmada pelo então em-
baixador estadunidense em Pequim: o recurso às tropas foi deci-
dido só quando “o governo se encontrava já sem opções, além do
ataque militar”. Mas claramente se tratava de uma decisão de má
vontade: os primeiros soldados enviados para desocupar a praça
“faziam que se pensasse mais em uma cruzada de crianças do que
uma estratégia militar”. Eram “tropas desarmadas”. Da outra par-
te: “uma multidão irritada tinha destruído dez veículos militares”.
Os soldados foram obrigados a se retirar. O attaché (adido) militar
estadunidense, o general Jack Leide, foi capaz de comentar com
confessada satisfação: o fiasco do Exército Popular de Libertação
foi “uma versão chinesa da saída de Napoleão de Moscou” (LIL-
LEY, 2004, p. 309 e 311-312). Inevitável foi uma nova tentativa de
desocupar a praça, mas é bom não perder de vista um ponto fun-
damental: “Deng não ordenou o massacre”. Na medida do possí-
vel ele procurou evitar um derramamento de sangue ou reduzi-lo
ao mínimo. Com efeito, as cenas descritas pelo então embaixador
estadunidense são eloquentes: eis que um soldado pula o cordão
de isolamento para evitar ser “queimado vivo”. Ou: estudantes
“carregando barricas de gasolina procuravam, no lado norte da
praça, atear fogo nos carros do exército, mas foram presos pelos
soldados” (IDEM, p. 316, 318 e 320).

159
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Quando reapresentam, ao menos uma vez por ano, a fotografia


da qual tratamos aqui, os meios de comunicação ocidentais de-
nunciam, ao mesmo tempo, a censura exercida pelas autoridades
chinesas. Com efeito, eles dispendem esforços desesperados para
conseguirem divulgar as imagens do “incidente da Praça Tienan-
men”. Mas, a esta altura se impõe a pergunta quiçá mais inquie-
tante: quem manipula a verdade mais e mais profundamente é
a censura chinesa ou a aparente inexistência de censura da qual
se vangloria o Ocidente? No primeiro caso, sem dúvidas temos
de lidar com uma mutilação da verdade: um pedaço dela foi ex-
cluído. No segundo caso, bem longe de ser excluído, esse peda-
ço, essa fotografia, resultado de um tríplice processo de seleção, é
obsessivamente mostrado e exibido, e no entanto essa verdade é
agora apenas um momento da mentira em seu conjunto. Pior, tal
verdade é agora parte integrante não apenas da mentira, mas de
uma mentira que visa a impossibilitar a reflexão e a argumentação
racional e a fabricar, como uma espécie de reflexo condicionado,
uma indignação manipulada e suscetível de ser operacionaliza-
da com sórdidos propósitos. E já está em ação a primeira função
bélica da sociedade do espetáculo (a demonização do inimigo ou
do inimigo em potencial) – enquanto a segunda está à espreita
–, a sua transformação em espetáculo da violência exercida em
nome da causa humanitária dos direitos do homem. Talvez o fu-
turo historiador colocará a imagem do jovem chinês que enfrenta
o tanque de guerra ao lado das imagens ou das “notícias” relati-
vas ao afundamento do cruzador Maine, do barco Lusitânia e dos
navios afundados em Pearl Harbor, ou dos “atacados” no Golfo
de Tonkin; e talvez o futuro historiador se pergunte sobre a carga
de violência intrínseca em uma imagem que pretende se dispor a
representar a condenação da violência enquanto tal.

4.2. O “despotismo iluminado” na Praça Tienanmen

Sim, a verdade da imagem do jovem que enfrenta o tanque de


guerra é apenas um momento da mentira em seu conjunto. Por
meio do terrorismo da imediata percepção e indignação aquela

160
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

imagem visa a impossibilitar a reflexão e a pergunta: se não a cau-


sa da não violência, o movimento da Praça Tienanmen represen-
tou indubitavelmente a causa da democracia? Dos manifestantes,
não poucos olhavam Zhao Ziyang com simpatia e admiração.
Antes de chegar ao topo da administração chinesa, ele “foi vis-
to reprimindo as últimas manifestações da esquerda radical” em
Sichuan; no momento da crise da primavera de 1989 ele foi fo-
mentador de “uma solução ‘neoautoritária’, paternalista e tecno-
crata” (DOMENACH, RICHER, 1995, p. 697 e 550). Trata-se de
um dirigente conhecido e estimado (em certos círculos chineses e
externos) como defensor de um “despotismo iluminado” (MINQI
LI, 2008, p. xi). Não há dúvidas: “Zhao não era um democrata.
Naqueles anos visava a promover a economia de mercado com
punho de ferro”. Nas manifestações em curso ele viu e procurou a
sua grande ocasião:

“Expoentes reformistas do PCCh autorizaram as ‘massas’ a se


manifestarem, e para as manifestações elas foram levadas, das
fábricas, repartições públicas e dos ministérios, em caminhões
e ônibus. Da mesma forma, o apoio logístico aos estudantes foi
dado pelos funcionários e empresários privados próximos de
Zhao Ziyang” (FERRARO, 2001).

Este último – conforme destacam dois autores estadunidenses


– foi considerado “provavelmente o líder chinês mais pró-ame-
ricano da história recente” (BERNSTEIN, MUNRO, 1997, p. 39).
Mas o que ele admirava nos Estados Unidos e o que a adminis-
tração estadunidense apreciava nele? O que intensificou a relação
de afinidades entre as duas partes foi o amor pela liberdade, ou
melhor o determinismo neoliberal, pronto se necessário a recorrer
até a medidas “neoautoritárias” e mesmo “despóticas”?
A esta altura pode-se colocar aqui uma pergunta subsequente:
a revolta da Praça Tienanmen foi um acontecimento chinês total-
mente interno? Um diálogo é revelador. Algum tempo depois da
tragédia, quando os enviados do presidente Bush pai se dirigiam
a Pequim para se encontrar com Deng Xiaoping, este se lamen-

161
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

tou pelo fato de que os EUA estivessem “profundamente envol-


vidos” nos acontecimentos da Praça Tienanmen e acrescentou:
“Para sermos francos, isto podia até levar à guerra” (KISSINGER,
2011, p. 418-419). Falava desse modo um estadista conhecido por
seu pragmatismo e sua prudência, um teórico de “baixo perfil”
no cenário internacional que, além disso, naquele momento tinha
total interesse em restaurar as relações com Washington, inclusi-
ve com o fim de evitar o isolamento diplomático e comercial da
China. Quem cita tal declaração é um defensor da Realpolitik que
não sente a necessidade de contestar uma acusação tão dura e que
não menciona uma resposta polêmica da parte dos interlocutores
estadunidenses ao líder chinês.
Não apenas Deng não é desmentido como também a sua lei-
tura dos fatos é hoje indiretamente confirmada por uma respeitá-
vel testemunha. Trata-se do então embaixador estadunidense na
China. Ele lembra que naqueles dias “dez andares da Embaixada
foram alvejados por mais de cem balas” disparadas pelo exército
chinês empenhado em perseguir – esta é a versão das autorida-
des de Pequim – “um atirador que havia matado um soldado de
uma coluna que se retirava”. O embaixador estadunidense conta
que logo depois do tiroteio comentou: “Acho que os chineses estão
tentando nos enviar uma mensagem” (LILLEY, 2004, p. xii). Sim,
mas qual?
Nós a podemos deduzir a partir de outras particularidades des-
se testemunho. Enquanto o confronto entre estudantes e governo
chinês se exacerbava, subitamente o “adido militar” da embaixada
estadunidense em Pequim chega a acordos e trabalha lado a lado
“com os seus colegas das embaixadas australiana, britânica, cana-
dense, francesa, alemã e japonesa”. Com qual objetivo?

“Eles dividiram a cidade em setores e trocaram informações


obtidas graças a patrulhas. No final de maio, em resposta à di-
minuição da crise, os adidos militares das diversas embaixadas
estabeleceram postos de vigilância em tempo integral em locais
da cidade anteriormente escolhidos. Com gesto perspicaz, o ge-
neral Jack Leide, o attaché militar da embaixada estadunidense,

162
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

é chamado a agir para obter, e obtém, permissão para alugar


quartos de hotel para os inspetores dos EUA. Além de um quar-
to no Fuxingmen Hotel, na parte ocidental da cidade, reserva-
mos dois quartos adicionais no Peking Hotel, do lado nordeste
da Praça Tienanmen, que nos proporcionavam uma ampla vi-
são da praça. Além disso, Leide equipou os seus homens com
rádios emissores portáteis (walkie-talkies) contrabandeados do
exterior. Era uma violação do protocolo diplomático, pelo fato de
que não é permitido às missões diplomáticas manter dentro da
China a sua rádio particular de comunicações, mas ao cometer
tal violação me senti à vontade” (IDEM, p. 306).

A atividade promovida pelos adidos militares das embaixadas


dos mais importantes países (ocidentais e pró-ocidentais), desen-
volvida graças a instrumentos proibidos e ilegalmente contraban-
deados e comandada por um “perspicaz” general estadunidense,
tinha por objetivo apenas acompanhar ao vivo a crise ou também
influenciá-la?
Tirando vantagem do “excelente” conhecimento de “manda-
rim” de alguns de seus membros, “o nosso [estadunidense] staff
diplomático em Pequim tinha estabelecido sólidas relações com
membros do exército, do movimento estudantil e da classe inte-
lectual”; e tais relações poderiam dar consideráveis “dividendos”
(IDEM, p. 314 e 306). Quais podem ser os “dividendos” prove-
nientes de uma relação com membros e setores do exército chinês?
Como esclarece o texto da orelha do seu livro, o autor desse tes-
temunho “prestou serviços por cerca de trinta anos para a CIA em
Tóquio, Taiwan, Hong Kong, Laos, Bangkok, Camboja e Pequim
antes de entrar, no início dos anos 1980, para o Departamento de
Estado e de iniciar uma brilhante carreira diplomática”. Era ape-
nas casual o fato de um diplomata com uma experiência consoli-
dada como agente da CIA ter dirigido a frenética operação vista
acima? Naqueles dias encontrava-se na capital chinesa também o
general Sharp (ENGDAHL, 2009, p. 93), o teórico das “revoluções
coloridas”. Estamos diante de uma outra casual coincidência? E
como explicar então que, ainda naquele período, Winston Lord,

163
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ex-embaixador em Pequim e conselheiro de primeiro escalão do


futuro presidente Clinton, não se cansava de repetir que a queda
do regime comunista na China era “uma questão de semanas ou
de meses”? (BERNSTEIN, MUNRO, 1997, p. 95). E o que se pre-
tendia com a falsificação da “capa do ‘Diário do povo’”, o órgão
oficial do Partido Comunista chinês? (NATHAN, LINK, 2001, p.
324). E quem seria o responsável por uma operação tão sofisticada
e suscetível de dividir em duas partes contrapostas o partido no
poder e o Estado enquanto tal?
Retorna à nossa mente a advertência de Deng Xiaoping, não
contestada nem por Kissinger nem por algum membro da delega-
ção estadunidense: os EUA haviam se tornado responsáveis por
uma operação que podia “levar à guerra”. E o que podia ser essa
operação, este casus belli (motivo de guerra), se não uma tentativa
de golpe de Estado conduzida de fora e talvez visando a levar ao
poder “o líder chinês mais pró-americano”, aquele pronto a re-
correr a um “despotismo iluminado” de base neoliberal? Vistos
retrospectivamente, os incidentes da Praça Tienanmen de 1989 se
apresentam como prova geral dos golpes de Estado camuflados
ou das “revoluções coloridas”, que se sucederam nos anos subse-
quentes.

4.3. Guerra Fria e primeira onda de golpes de Estado

A minha análise pode causar escândalo, mas quem assim se


sentir deveria refletir sobre o clima político e ideológico que foi
criado no Ocidente com a eclosão da Guerra Fria. Com base na
doutrina apresentada em 12 de março de 1947 pelo presidente
estadunidense Harry S. Truman e que leva o seu nome, era pre-
ciso enfrentar a “agressão direta ou indireta” do totalitarismo co-
munista e, portanto, também aquela que recorre a “estratagemas
como a infiltração política” (political infiltration) (in: COMMAGER,
1963, vol. 2, p. 524-525). Aqui, a influência política exercida pe-
los comunistas e a sua capacidade de persuasão já eram sinônimo
de “infiltração” e “agressão”. Nos documentos da administração
Truman eles eram recriminados como portadores de “uma fanáti-

164
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

ca convicção” (in: G. SMITH, 1994, p. 66). Do lado de cá do Atlân-


tico, um outro defensor da Guerra Fria, ou seja Winston Churchill
(1974, p. 7800 e 7809), em duas declarações, de 25 e 31 de março
de 1949, estabeleceu uma eloquente comparação entre nazismo e
comunismo: o primeiro era menos perigoso, dado que podia ape-
lar “apenas para o orgulho Herrenvolk e o ódio antissemita”; não
como o segundo que podia contar com “uma igreja de adeptos
comunistas, cujos missionários se encontram em todos os países”
e entre todos os povos. Os militantes comunistas eram acusados
não porque se lançassem impetuosamente ao exterior, como os
militares do exército nazista, mas por agirem como missionários
dentro de um país, transmitindo a sua convicção. E era preciso
neutralizar estes “missionários” a qualquer custo: “Os Estados
Unidos apoiavam colocar na ilegalidade os partidos comunistas
dos países da América Latina” (G. SMITH, 1994, p. 15). Por mais
livres que pudessem ser, se os comunistas ou os seus verdadeiros
ou presumíveis aliados ganhassem as eleições estas eram a priori
consideradas ilegítimas pela doutrina Truman. E, de fato, Washin-
gton fomentou seguidos golpes de Estado contra líderes políticos
democraticamente eleitos. Pensemos no Irã de 1953 e na Guate-
mala de 1954: era o início de uma longa série de golpes militares
com o propósito de restabelecer a ordem em primeiro lugar no
“galinheiro” dos EUA, mas também em outras partes do mundo.
Com base em documentos estadunidenses desclassificados há al-
guns anos, comprovou-se que às vésperas das eleições de abril de
1948, a CIA estava pronta, em caso de vitória das esquerdas, para
apoiar movimentos separatistas na Sardenha e na Sicília (MOLI-
NARI, 1999). Independentemente do resultado das eleições e do
seu caráter democrático, a Itália devia permanecer, em sua totali-
dade ou pelo menos parcialmente, sob o controle de Washington.
Esses golpes de Estado e golpes de mão foram expostos em
1950 por George F. Kennan, o grande teórico da política de “res-
trição”: os comunistas demonstravam uma extraordinária capa-
cidade de atrair, entusiasmar e organizar as massas; e para fazer
malograr tal perigo eram necessárias medidas drásticas e exem-
plares, impunham-se “medidas coercitivas capazes de levar ao co-

165
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nhecimento de outros governos como é perigoso provocar a nossa


hostilidade a uma excessiva tolerância em relação às atividades
antiamericanas” (in: G. SMITH, 1994, p. 69-70).
Significativamente, ao longo de uma conversa que aconteceu
em Viena, em 1961, John Kennedy – veterano da ingloriosa aven-
tura da Baía dos Porcos, isto é, da tentativa de invadir a Cuba de
Fidel Castro – reclamou com Nikita Kruschev pelos êxitos e o di-
namismo da revolução cubana: os EUA não podiam tolerar um
regime que pretendia prejudicar a sua hegemonia no “hemisfé-
rio ocidental”, em sua “zona de interesse vital”, do mesmo modo
que a URSS não teria tolerado “um governo pró-americano em
Varsóvia”. Foi um discurso que, bem longe de apelar para o uni-
versalismo, o criticava; se se quisesse evitar o holocausto nuclear,
era preciso prestar atenção – mais do que na vontade dos povos
– na manutenção do “equilíbrio de poder existente”; podiam ser
toleradas apenas mudanças que não “alterassem o equilíbrio do
poder mundial” (SCHLENSIGER JR., 1967, p. 338).
Doze anos depois, em 1973, se restabelecia o “equilíbrio do
poder”, que havia sido alterado pela eleição de Salvador Allende
no Chile, através de um golpe de Estado programado pelos EUA
havia três anos, isto é, imediatamente após a posse do presidente
democraticamente eleito: como conta nas suas memórias Richard
Helms, o então diretor da CIA, “Nixon era obcecado pela ideia de
perder o Chile como Kennedy tinha perdido Cuba” (CHIERICI,
2013, p. 42). A queda e a morte de Allende fecharam o ciclo de gol-
pes de Estado inspirado na doutrina Truman e iniciado em 1953
no Irã, com a queda e o exílio forçado de Mossadeq, também ele
democraticamente eleito. No período aqui levado em considera-
ção há uma série de golpes não apenas programados e realizados
por Washington, como programados e realizados com base em
uma doutrina específica, formulada com a habitual e cínica clare-
za, por Kissinger: “Não vejo nenhuma razão para esperar que um
país se torne marxista só porque o seu povo é irresponsável” (in:
CHIERICI, 2013, p. 39).
Abriu-se depois uma fase de transição. Ainda no final dos anos
1970, Jimmy Carter afirmou, sim, que “os direitos humanos são a

166
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

alma da nossa política externa”, mas isto não o impediu de render


homenagens ao xá da Pérsia (levado ao poder depois de um golpe
de Estado que tinha anulado o resultado de eleições democráti-
cas) em termos bastante enfáticos: “Este é um grande tributo ao
senhor, Vossa Majestade, e à sua leadership (liderança), e ao res-
peito, à admiração e ao amor de vosso povo à Vossa Majestade”.
Estamos em Teerã, na noite de 31 de dezembro de 1977. Alguns
meses depois, disseminava-se a agitação revolucionária e desen-
cadava-se uma furiosa repressão. Carter se apressou em telefonar
ao xá para reafirmar “a relação estreita e amistosa entre o Irã e os
Estados Unidos e a importância da continuidade da aliança do Irã
com o Ocidente”. Mais tarde, a revolta de todo o povo fez tremer
uma ditadura impiedosa, mas isso não impressionou particular-
mente Carter que, em 12 de dezembro de 1978, declarou: “Espero
resolutamente que o xá mantenha o poder no Irã (...). O xá tem o
nosso apoio e também desfruta de nossa confiança” (T. SMITH,
1994, p. 241 e 259). Mais ou menos no mesmo período, uma ra-
dical viragem política ocorreu também na Nicarágua; mas nem
mesmo a queda da ditadura de Somoza causou entusiasmo em
Washington, ainda mais que os novos governantes em vez de se
inclinarem aos Estados Unidos (isto é, ao país responsável pela su-
jeição da Nicarágua ao despotismo sanguinário da dinastia Somo-
za) tinham o demérito de olhar para Cuba com simpatia. Naqueles
anos, o princípio de legitimação democrática, através de eleições
livres e com a participação de vários partidos, era proposto pelo
império com o olhar voltado especialmente sobre Cuba e o mundo
comunista, porém tendo bastante cuidado de não colocar em risco
seus aliados e vassalos.

4.4. A partir de 1989: a segunda onda de golpes de Estado

Foi apenas na última fase da Guerra Fria, depois que o movi-


mento comunista via enfraquecer a sua força de atração e a sua
capacidade expansiva, que os Estados Unidos, junto com o livre
mercado, instituíram as “eleições livres” (e o respeito aos “direitos
do homem”) como princípio universal de legitimação de poder

167
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

político e se atribuíram a missão de exportar livre mercado e de-


mocracia inclusive pela força das armas.
Com relação particularmente à derrocada do socialismo na
Europa oriental, falou-se de “terceira onda” de democratização,
depois daquelas que se desenvolveram entre os séculos XIX e
XX, e em seguida nos anos imediatamente posteriores à Segunda
Guerra Mundial (HUNTINGTON, 1995, p. 38-48). Não há dúvi-
das de que também na Europa oriental, no antigo “campo socia-
lista”, foi afirmado o princípio da legitimação democrática a par-
tir de eleições com a participação de mais partidos concorrentes.
Mas a democracia pode assumir formas múltiplas e representar
projetos políticos e líderes bem diferentes, e para propiciar ou
impor a solução de sua preferência, os EUA e a União Europeia
não hesitaram em recorrer ao uso da força. É correto falar, em tal
propósito, de uma segunda onda de golpes de Estado engendra-
dos pelo Ocidente, depois da primeira que vimos ocorrer após a
eclosão da Guerra Fria. Na Europa oriental, essa segunda onda de
golpes de Estado coincide em larga medida com a “terceira onda”
de democratização.
Em 1990, na Bulgária, apesar da ameaça de represálias econô-
micas e a intervenção explícita na campanha eleitoral da parte dos
EUA (o embaixador estava bem à vista no palco por ocasião dos
comícios organizados pelo partido apreciado por Washington),
os ex ou pós-comunistas do Partido Socialista búlgaro venceram
as eleições: o seu resultado, porém, foi anulado por revoltas de
rua organizadas, financiadas e legitimadas pelo Ocidente. Era um
cenário que se repetiria no ano seguinte na Albânia (BLUM, 2003,
p. 466-474).
É particularmente inspirador o que ocorreu no país mais
importante da Europa oriental. Nos últimos meses ou anos
de vida da União Soviética se confrontavam dois projetos de
democratização. O primeiro, iniciado por Gorbachev (que, no fim,
capitulou), acabou sendo derrotado pelo segundo. O defensor do
segundo projeto, isto é Iéltsin, foi definitivamente apoiado pelo
Ocidente, fortemente interessado na implementação de inúmeras
e rápidas privatizações que teriam assegurado aos Estados Unidos

168
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

e à União Europeia enormes vantagens econômicas e políticas.


O triunfo do novo líder passaria, no entanto, por uma prova de
força em 1993: em 21 de setembro, em franco desacordo com a
Constituição russa concebida havia pouco tempo, o presidente
(Iéltsin) dissolveu o Parlamento, que em vão procurava resistir e,
por isso, primeiro foi bombardeado e depois aniquilado graças à
intervenção das tropas especiais e de tanques de guerra.
Dez anos depois, era a vez da Geórgia: a denominada “revolu-
ção das rosas” de novembro de 2003 se desenvolveu mais ou me-
nos conforme o cenário já visto na Bulgária e na Albânia. Há ape-
nas uma diferença digna de nota: Shevardnadze, o líder que se
tencionava derrotar, era acusado de ter se enriquecido de modo
abusivo e ser proprietário em Baden Baden de uma vila muito
luxuosa, cuja foto, ininterruptamente exibida, na realidade havia
sido obtida na internet. O criterioso recurso à mentira não bastava
para se produzir o resultado eleitoral esperado: para resolver a
situação, foi fabricada uma revolta mais uma vez incentivada e
legitimada pelo Ocidente.
Como se depreende de respeitáveis estudos, o papel dos EUA
e da União Europeia nas denominadas “revoluções coloridas”
foi decisivo; em todas elas, se impôs um poder imperial superior
(LOSURDO, 2010, cap. 9, § 2). Já a escolha de uma determinada
cor para cada ocasião remete aos estudos efetuados, nos primei-
ros anos do segundo pós-guerra, pelos estrategistas estaduniden-
ses da “persuasão oculta” e pelo Color Research Institute (PA-
CKARD, 1964).
Estamos claramente diante de uma série de golpes de Estado,
cuidadosamente programados. Isso se confirma pelos mais recen-
tes acontecimentos na Ucrânia. Neste país, na “revolução laranja”
do final de 2004 houve a participação de “inúmeras Organizações
Não Governamentais dos Estados Unidos” (ROMANO, 2013).
Nove anos depois as coisas se repetiram. A partir da segunda
metade de novembro de 2013, a Ucrânia, que havia apenas se re-
cusado a assinar um acordo destinado a levá-la a aderir à União
Europeia (e à Otan), foi sacudida por enormes manifestações de
protesto. Já em 3 de dezembro, um diário italiano de comprova-

169
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da fé na Otan e no Ocidente falava de um “golpe de Estado” em


curso. Não por acaso o epicentro do protesto era Kiev, distante e
protegida das regiões orientais, claramente contrárias à agitação
que estava sendo preparada na capital, no centro do poder que
era necessário derrotar:

“Barricadas e ocupações de edifícios públicos importantes fa-


zem parte de um plano muito bem tramado, que se encaminha
a derrubar o governo, com um golpe de Estado. A repressão dos
cabeças-duras da polícia foi exagerada de propósito para fazer
uma ruidosa publicidade nos meios de comunicação de meio
mundo. Por trás da revolta ‘espontânea’ em nome da Europa há
grupos nacionalistas que têm padrinhos fortes entre os vizinhos
polacos e na potente Alemanha (...). No centro da capital foram
erguidas barricadas. O município foi ocupado e no quartel-gene-
ral dos sindicatos foi instalado um ‘Comitê de resistência revo-
lucionária’. Grupos de jovens musculosos, com casacos de pele
pretos como ‘farda’, organizam as próximas manifestações (...). A
‘Guarda branca’ dos revoltosos poderia atrair para o seu lado os
agentes do Oeste [da Ucrânia] mal pagos” (BILOSLAVO, 2013).

Confirmou a tese do “golpe de Estado”, consumados os fatos,


um respeitável ex-diplomata de alta categoria (ROMANO, 2014,
p 115). Em nenhum outro país, por mais democrático que fosse,
teriam sido toleradas violências da parte dos manifestantes, que
de modo explícito e declarado procuraram tornar impossível o
funcionamento das instituições, obstruir os centros vitais de po-
der e de impor a alteração de regime. Ainda mais que, ao atacar
as forças policiais com pesados porretes ou coquetéis Molotov, os
revoltosos apelaram a “grupos de jovens musculosos” e de “uni-
forme”, e a grupos ou gangues de vândalos inspirados por uma
ideologia muito inquietante: sim, como acabou por reconhecer a
grande imprensa, os seus heróis eram os nacionalistas ucranianos
que algumas décadas antes haviam colaborado com os nazistas
na guerra contra a União Soviética, contra o inimigo judaico-bol-
chevique e na caça genocida aos hebreus (VALLI, 2014). Apesar

170
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

de tudo isso, qualquer intervenção em Kiev pelas forças da ordem


era a priori considerada pelo Ocidente como violência inadmissí-
vel contra manifestantes pacíficos e não violentos e, por isso, Wa-
shington e Bruxelas, para recorrer ao uso de sanções econômicas,
se sentiam autorizados a considerar como violência qualquer ma-
nifestação. Expoentes de primeiro escalão dos Estados Unidos e
da União Europeia correram até Kiev para estimular os manifes-
tantes ou os revoltosos. A Otan, uma organização universalmente
conhecida por sua adesão ao princípio da não violência, também
demonstrou indignação pela “violência” com a qual se difamava
o governo ucraniano!
Tudo de acordo com um roteiro cuidadosamente elaborado:
era necessário obstruir o poder e impedir o retorno à normali-
dade; era necessário prolongar o caos e a incerteza pelo maior
tempo possível: já insatisfeitas com as suas precárias condições
econômicas, cedo ou tarde as forças policiais da Ucrânia (oci-
dental) se dariam conta da inabilidade de seus governantes e da
inutilidade de resistir a facções paramilitares que desfrutavam de
impunidade e da proteção dos patrões do mundo.
É uma técnica de golpe de Estado descrita com precisão já nos
anos 1930 por um grande intelectual do século XX:

“Se pequenos grupos armados ocupam simultaneamente os


edifícios públicos, o palácio do governo, os correios, as estações
de transporte, rádio etc., todo o sistema de defesa existente cor-
re o risco de ser paralisado. O atual governo deixa de aparecer
como a autoridade oficial que controla os locais e órgãos-chave
do Estado, enquanto o dos revoltosos se afigura como legítimo.
Não só isso, também se o velho governo tenta opor resistência é
então destituído dos recursos essenciais para tal fim, que são os
meios de comunicação. Uma parte dos governantes é presa en-
quanto a outra é afastada, insegura, sem saber como agir nem
como reunir as forças” (ARON, 1998, p. 193).

É uma ironia da história: esta análise foi desenvolvida com o


olhar voltado, em primeiro lugar, para a Revolução de Outubro

171
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

que desde o início foi obrigada a enfrentar as grandes potências já


fortemente presentes na Rússia e que logo invadiriam o país dos
Sovietes. Na realidade, apesar das intenções de Raymond Aron,
a sua análise esclarece magistralmente a técnica que norteia as
“revoluções coloridas”, verdadeiros golpes de Estado que não
por acaso podem desfrutar do apoio do poder dominante em
nível mundial nos planos econômico, multimidiático, político e
militar.
Na Ucrânia, em fevereiro de 2014, apesar da meticulosa e obs-
tinada preparação, a almejada regime change tardou a ocorrer. E
eis que surgiram atiradores que disparavam incessantemente so-
bre a multidão (e na verdade também sobre as forças da ordem),
provocando inúmeras vítimas. Graças a tal massacre, o terroris-
mo da indignação podia disseminar todos os seus efeitos, atacan-
do subsequentemente a multidão e permitindo que os revoltosos
apoiados pelo Ocidente dessem o empurrão final em um regime
instável e conquistassem o poder. Nos dias imediatamente após o
golpe de Estado podia-se ler na imprensa ocidental eufóricos co-
mentários que alimentavam a ideia de uma repetição em Moscou
da operação recém-concluída em Kiev; e talvez por isso a Rússia
tenha dado uma resposta tão dura no plano político e militar.
Foi uma reação incentivada pela revolta das regiões russófo-
nas da Ucrânia, indignadas com a regime change e assustadas com
o papel desempenhado pelas forças radicalmente russófobas e
fascistoides, e foi, por isso, uma reação de defesa contra a expan-
são da Otan na Europa oriental que, acompanhada com e pelo
avanço espacial, visava a fazer recair sobre Moscou o terror do
primeiro golpe nuclear.
Mas retornemos a Kiev, em fevereiro de 2014. Imediatamen-
te após o golpe do Estado da praça Maidan, surgiu, porém, um
elemento novo e inesperado. Na internet começou a circular um
telefonema, interceptado talvez pelos russos, mas de qualquer
modo de comprovada autenticidade: nele, o ministro do exterior
da Letônia, Urmas Paet, comunicava à responsável pela política
externa da União Europeia, Catherine Ashton, que – com base
nas informações em sua posse – elementos ligados à oposição,

172
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

isto é aos protagonistas do golpe de Estado, é que tinham aberto


fogo tanto contra os manifestantes como contra as forças da or-
dem. Teria sido correto esperar reações exasperadas da parte de
Washington e Bruxelas, mas, ao invés disso, se apressaram em
reconhecer os novos governantes sem exigir esclarecimentos ou
fazer perguntas indiscretas.
De outra parte, esta cínica Realpolitik tinha muitos precedentes.
No início de 1991, a Lituânia, naquele momento parte integran-
te da União Soviética, tinha sido desestabilizada pelas manifes-
tações de rua do movimento independentista. Em 13 de janeiro
daquele ano, Vilnius, a capital do país, foi invadida pelas forças
especiais do ministério do interior, enviadas por Gorbachev, com
o objetivo de recuperar o controle da estação de televisão. A dura
repressão causou catorze mortes: ao menos esta foi (e é) a versão
oficial do “domingo sangrento de Vilnius”. Trata-se, no entanto,
de uma versão sancionada por lei: quem a coloca em dúvida pode
ser submetido a um processo judicial, como aconteceu em 2001
ao presidente da “Frente Popular Socialista”, acusado de ter sus-
tentado a tese segundo a qual quem abriu fogo sobre os manifes-
tantes, na realidade, não foram agentes russos, mas sim agentes
provocadores lituanos, interessados em promover o terrorismo
da indignação necessário para assegurar o apoio da opinião pú-
blica interna e externa, e levar à vitória o movimento separatista
(HOFBAUER, 2011, p. 245-247).
Tudo leva a pensar que, quando manipulações e mentiras se
revelam insuficientes, o recurso a agentes provocadores é uma
prática estabelecida pelas operações da regime change. Em todo
caso, na Ucrânia a ação posta em prática, entre novembro de 2013
e fevereiro do ano seguinte, lança uma luz retrospectiva sobre os
golpes de Estado, ou tentativas de golpe, anteriores. É uma ação
que faz seus primeiros ensaios já na Praça Tienanmen: vimos ma-
nifestações, nada pacíficas e fortemente apoiadas pelo exterior,
ser prolongadas por tempo indeterminado e procurar impedir o
funcionamento normal das instituições, à espera, ou na esperan-
ça, de uma fragmentação do aparato estatal e governamental, já
instável – pelo menos assim pensava Washington – por causa da

173
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

derrocada do socialismo que se delineava na Europa oriental e


da difusão, também na China, da tese sustentada pelo aparato
propagandístico ocidental do inevitável triunfo do capitalismo.
Após a vitória do golpe de Estado ocorreu em Kiev a “caça aos
pró-russos”: quem relatou isso foi a mesma imprensa ocidental
que, no entanto, continuou a sustentar a tese segundo a qual na
capital da Ucrânia a não violência tinha vencido a violência. Vol-
ta à nossa mente o avião de guerra à disposição dos revoltosos
líbios que o Ocidente, contra qualquer evidência, insistia em defi-
nir como desarmados e pacíficos...

4.5. Belgrado 2000: da guerra ao golpe de Estado

Fora de cena permaneceu até agora a Iugoslávia, que merece


uma análise mais detalhada. Sabemos já do papel desempenha-
do principalmente pela Alemanha, na dissolução (ou desmem-
bramento) do país balcânico. Mas, para definitivamente levar a
melhor em Belgrado, o Ocidente precisou de uma guerra em 1999
e de um golpe de Estado no ano seguinte.
Vejamos o que aconteceu em 2000 na Iugoslávia, devastada e
enfraquecida também politicamente depois dos bombardeamen-
tos realizados um ano antes pela Otan. Nos dias e nas semanas
anteriores às eleições, a imprensa estadunidense expos, contente,
as dificuldades encontradas por Milosevic no desenrolar da cam-
panha eleitoral: “Temeroso de ser assassinado, o presidente cin-
quentão raramente aparece em público e o faz apenas para pro-
nunciar diante de seus correligionários breves discursos sobre os
males do fascismo” (J. SMITH, 2000). Não se tratava de preocu-
pações imaginárias. Pelo menos no que se refere aos países mais
fracos, todos os dirigentes inoportunos para Washington, quer se
trate de Castro, Gaddafi ou Saddam Hussein, sabem que devem
se precaver diariamente e a todo instante das conspirações e das
tentativas de assassinato orquestradas pela CIA. E ainda, justa-
mente na Iugoslávia, a partir do fim dos bombardeamentos aére-
os, ocorreram misteriosos atentados e execuções. Outro jornalista
estadunidense se encarregou de jogar luz sobre esse mistério: não

174
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

haverá paz nos Bálcãs “até que Milosevic não seja corrompido,
derrotado ou arrastado para fora do poder num caixão” (HOA-
GLAND, 2000).
Ao “criminoso de guerra” procurado pelo “tribunal interna-
cional” até tinha sido oferecido muito dinheiro, além da liberda-
de, com a condição – bem entendido – de que cedesse à vontade
dos patrões do mundo. Caso contrário... Para além de uma pes-
soa concreta, um povo inteiro foi mantido na mira, e não apenas
pela ameaça da continuação, a qualquer custo, de um embargo
devastador: “os Estados Unidos enviaram porta-aviões ao Adri-
ático poucos dias antes da votação, quase como se eles já estives-
sem preparados para o pior” (BILOSLAVO, 2000). Não faltaram,
no entanto, as maquinações. Se tivesse votado de modo politica-
mente correto, o povo iugoslavo teria se livrado do embargo, do
perigo de morrer de fome e de frio; ou melhor, teria sido genero-
samente ajudado a consertar o que foi destruído e curar as feridas
ocasionadas pelos mesmos que se faziam de salvadores enviados
pelo céu.
E, no entanto, por mais pesadas e infames que fossem, apenas
chantagens e ameaças não bastavam para fazer prevalecer a von-
tade da Otan. Queria ali uma “revolução”. Procuramos recons-
truí-la confiando exclusivamente em jornais e revistas de grande
credibilidade e comprovadamente anticomunistas. Comecemos
com “Il Giornale”, um diário italiano ultrarreacionário que, justa-
mente por isso, não sentia necessidade de formalidades verbais.
Já o título era de uma clareza inequívoca: “Assim a América em
pouco tempo inventou o anti-Slobodan” (isto é, anti-Milosevic).
Mas vejamos o conteúdo por escrito (tenha-se presente que se tra-
ta de um artigo veiculado antes da consagração formal do triunfo
de Vojislav Koshtunitsa):

“Nos bastidores da revolta que ameaçava perturbar o regime


de Slobodan Milosevic não pode passar despercebida uma há-
bil operação de pressões e interferências dirigida pelos Estados
Unidos. Washington já tinha gasto 20 bilhões de liras, em di-
nheiro vivo, para instar as infrutíferas manifestações de protes-

175
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

to do ano passado e fontes americanas confirmam que nos úl-


timos meses foram destinados outros 70 bilhões de liras. Antes
que a DOS [oposição democrática sérvia], coligação dos 17 par-
tidos anti-Milosevic, criasse o candidato vencedor das eleições
presidenciais, os seus líderes, a começar de Zoran Djindjic, fo-
ram muitas vezes convocados pelos ocidentais em Montenegro,
Hungria ou mesmo Londres. O fruto desses conluios foi um rio
de dinheiro que logo chegou à Sérvia, em malas transportadas
por contrabandistas provenientes da Romênia e da Hungria. Os
maços de dólares eram usados para adquirir fax, computadores
e impressoras para a propaganda (...). A tudo isso se acrescenta
o sistema de transmissão de rádios independentes, criado para
cercar a Sérvia” (IDEM).

Está claro. O cerco posto em prática contra a Iugoslávia foi


bem além da radiofonia. Era sempre “Il Giornale” a expor satisfei-
to: “Ninguém levou em consideração as desesperadas denúncias
do ministro de Comunicações sérvio, Goran Matic, convencido
de que agentes da Otan, ‘vestindo uniformes do exército federal,
se infiltram no nosso País, para fazer pensar que os soldados es-
tão do lado de quem quer organizar tumultos’” (IDEM). No ano-
nimato, mas pronta para intervir a qualquer momento, já estava
alinhada, como sabemos, a força aeronaval dos EUA.
Como se vê, a campanha eleitoral a favor de Koshtunitsa era
realmente poderosa. Se depois, apesar de tudo, falhasse, nin-
guém em Washington ou em outras capitais do Ocidente pensava
em se apoiar nas regras do jogo e na democracia “formal”. Ainda
a fonte jornalística aqui utilizada afirmou que já estavam em ação
“as forças especiais britânicas” e enormes quantias foram fixadas
para levar a termo a aniquilação de Milosevic, o homem que ou-
sou desafiar a Otan.
Os dólares (ou libras esterlinas, ou marcos), que jorravam
como um rio, serviram “também para financiar artificiosas pes-
quisas de opinião realizadas pela mesma empresa utilizada por
Bill Clinton”. Deve nos fazer pensar o adjetivo utilizado. Fala-se
aqui de pesquisas não idôneas, mas “artificiosas”, já que visavam

176
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

a persuadir a opinião pública de que o resultado já estava defini-


do: “A poucas horas do encerramento das eleições, Koshtunitsa
foi indicado como vencedor, mas chocava como, imediatamente,
em particular ingleses e americanos, tinham considerado a elei-
ção um fato consumado”. Ficou perplexo e se mostrou “hesitan-
te” o próprio “professor” chamado pela Otan para se tornar o
“novo chefe do Estado iugoslavo”. Pode-se compreender então as
“pressões sobre Koshtunitsa para autoproclamar-se presidente”,
tanto mais que ele podia contar com o “imediato reconhecimento
internacional” (IDEM).
A essa altura, para encerrar definitivamente a partida, ocorre-
ram as manifestações e as violências de rua. Damos agora a pala-
vra a dois jornalistas estadunidenses:

“Um olhar atento sobre a revolta revela um planejamento que


inclui escolher cuidadosamente os objetivos, invadir o sistema
secreto de transmissão da polícia, recrutar oficiais da polícia
musculosos, porém desleais, e paraquedistas fora de serviço,
bem como enviar um representante a Budapeste para informar
o governo dos EUA” (ERLANGER, COHEN, 2000).

O homem-forte da situação, particularmente benquisto por


Washington, era Zoran Djindjic, posteriormente assassinado, que
às vésperas da revolta encontrou-se “com o ex-chefe da polícia
secreta”. E eis que oficiais com importantes postos de poder pas-
saram para a oposição “democrática”. E, é claro, efetuaram essa
mudança de campo não para perseguir nobres ideais, mas, como
revelam fontes bem informadas, para concretizar objetivos bem
mais consistentes: “Para salvar as suas próprias vidas. E o seu
dinheiro, sim uma bela pilha de dinheiro. Talvez também para
garantir a liberdade” (ASH, 2000, p. 13). Por isso, o trabalho de
persuasão sabia muito bem utilizar chantagens, ameaças e cor-
rupções. Tudo segundo um “roteiro” bem detalhado (BILOSLA-
VO, 2000), que podia ser ainda de grande utilidade. “Se isso pôde
ocorrer na Sérvia, por que não na Birmânia? E por que não em
Cuba?” (ASH, 2000, p.14).

177
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

4.6. Teerã – 1953 e 2009: um golpe de Estado bem-sucedido


e outro malogrado

Nos mesmos dias em que os serviços secretos ocidentais feste-


jaram o seu triunfo em Belgrado, Le Monde diplomatique falava da
divulgação de um relatório da CIA sobre o golpe de Estado, por
ela planejado e efetivado, em colaboração com os serviços secretos
britânicos, no Irã em 1953. Em 4 de abril daquele ano, “a seção da
CIA de Teerã recebeu um milhão de dólares para ‘derrubar Mos-
sadeq a qualquer custo’”, mas, de preferência, “de modo ‘quase
legal’”. Não demorou para se desenvolverem as diversas etapas
da operação. Antes de mais nada, era preciso executar um traba-
lho de corrupção em larga escala: “No final de maio de 1953, a
seção da CIA foi autorizada a investir cerca de 11.000 dólares por
semana para garantir a colaboração dos parlamentares”; enormes
recursos envolvem também os “líderes religiosos”. A esta altura
poderia se iniciar a “campanha da imprensa contra Mossadeq”,
que se tornou muito mais eficaz pelo fato de estar entrelaçada com
“ações clandestinas” e atentados, às vezes atribuídos à esquerda
de modo a piorar o clima de incerteza e de confusão. Para execu-
tá-lo rapidamente, o trabalho de cerceamento da base social de
consenso do governo Mossadeq, culpado de ter pisado nos calos
das companhias petrolíferas anglo-americanas, se reverteu em
violentas manifestações de rua que terminaram com a ocupação
“de estações de rádio e de outros pontos-chave”. Segundo a de-
finição encontrada no relatório da CIA, o que ocorreu no Irã em
1953 foram manifestações “semiespontâneas” (GASIOROWSKI,
2000); ao invés disso, a respeito da “revolta” contra Milosevic,
quarenta e sete anos depois, o International Herald Tribune falou
de “espontaneidade organizada” (ERLANGER, COHEN, 2000).
Estamos diante de uma técnica de golpe de Estado bem ensaiada.
Mas agora convém comparar os acontecimentos de 1953 com
aqueles que ocorreram cinquenta e seis anos depois, ainda no Irã.
As eleições presidenciais de 12 de junho de 2009 não deram os re-
sultados esperados por Washington e por Bruxelas que, depressa,
denunciaram uma “fraude eleitoral”. Quem colocou em dúvida

178
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

ou ridicularizou essa acusação foi o presidente brasileiro, Lula,


dentre outros. Até mesmo o Washington Post disse que não havia
nenhuma prova para sustentar a tese das fraudes: ou melhor, tudo
levava a pensar que fosse legítima a “comprovada vitória” obtida
por Ahmadinejad. Com efeito, as previsões difundidas às véspe-
ras das eleições pela agência “Reuter” atribuíram-lhe uma vanta-
gem ainda mais clara do que aquela que, depois, realmente obteve
(DIMAGGIO, 2000, p. 293). Mas, na sua imensa maioria, os meios
de comunicação ocidentais voltavam as suas atenções exclusiva-
mente para os líderes políticos do Ocidente, particularmente esta-
dunidenses e britânicos; isto é, puseram fé apenas naqueles líderes
políticos que, na preparação da segunda Guerra do Golfo, não ti-
nham hesitado em mentir despudoradamente sobre as armas de
destruição em massa, que já estariam preparadas para ser usadas
por Saddam. Desenvolveu-se, assim, uma insensata campanha
multimidiática que estimulou e mobilizou o candidato e o partido
derrotados no Irã e os levou a exigirem novas eleições ou, mais
exatamente, à “revisão” do resultado dessas eleições.
Assistia-se assim a uma tentativa de golpe de Estado, prepa-
rada com a habitual falta de escrúpulos e a habitual profusão de
recursos. A única novidade relevante é que foram deixados de
lado os tradicionais órgãos de imprensa e valorizadas as novas
mídias: este trabalho esteve a cargo de “um grupo de especialistas
formado pelo departamento de Estado para estudar a blogosfe-
ra iraniana”. A máquina da guerra para desestabilização do país
inimigo estava perfeitamente azeitada e a ninguém era permitido
interpor obstáculos, nem mesmo involuntariamente. A certa altu-
ra, “um alto funcionário do Departamento de Estado enviou um
e-mail aos diretores do Twitter pedindo para mudar a data das
previstas (e naquele momento evidentemente inoportunas) opera-
ções de manutenção do site, que tinham desestruturado os protes-
tos iranianos”; a sugestão foi rapidamente acolhida (MOROZOV,
2011, p. 13 e 10). Podia-se finalmente “bombardear o Irã com a
banda larga”. Entre as imagens bombardeadas com o objetivo de
desencadear o terrorismo de indignação está aquela de uma ati-
vista presa por motivos de pouca monta e “violentada, desfigura-

179
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da, assassinada e depois transformada na mártir do movimento”.


Foi “uma invenção” como tantas outras (IDEM, p. 20 e 18), mas,
como tantas outras, de grande eficácia. Na vertente oposta, o can-
didato presidencial derrotado, Mir Hussein Mousavi, apesar de à
sua época ter feito parte do grupo dirigente oriundo da revolução
iraniana, era representado e enaltecido pelos meios de comuni-
cação ocidentais como o “Gandhi do Irã” (LOSURDO, 2010, cap.
9, § 1). A encenação maniqueísta do conflito chegava assim à sua
efetivação.
Nada havia sido negligenciado na preparação do golpe de Es-
tado chamado a produzir a regime change e para reimplantar no
Oriente Médio o domínio total do Ocidente. No entanto, a vitória
não sorriu aos estrategistas de Washington. A memória histórica
desempenhou um papel para eles desfavorável: no Irã ainda havia
desconfiança pelo fato de, em primeiro lugar, terem se mostrado
como defensores da democracia os dois países (EUA e Grã-Breta-
nha) que a tinham derrubado em 1953 para impor a sanguinária
autocracia do xá (MOROZOV, 2011, p. 10).

4.7. Da ditadura militar ao “protetorado democrático”

Surge com clareza a verdadeira natureza das “revoluções co-


loridas”, isto é da segunda onda de golpes de Estado postos em
prática, ou aventados, pelo Ocidente. Convém agora analisar os
elementos de continuidade e descontinuidade em relação à pri-
meira onda. Vale a pena observar que, mesmo depois do triunfo
obtido no encerramento da Guerra Fria, quando as circunstâncias
assim exigiam, o retorno aos velhos métodos em nenhum caso
foi excluído por Washington. Em 1991, não foram feitas objeções
contra os militares que na Argélia anularam a vitória eleitoral da
Frente islâmica. Em 2006 (e nos anos seguintes), de acordo com
Israel e com as facções palestinas mais “moderadas”, os EUA fa-
ziam de tudo para subverter o resultado das eleições livres que
haviam consagrado a vitória do Hamas. No verão de 2013, pelo
menos num primeiro momento, o secretário de Estado, John Ker-
ry, aclamou como uma promissora transição à democracia o golpe

180
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

de Estado militar que no Egito destituiu e encarcerou o presidente


Morsi democraticamente eleito. Do Oriente Médio passamos para
a América Latina. Quando, em abril de 2002, na Venezuela um
golpe militar derrubava o presidente Hugo Chávez, democratica-
mente eleito e apoiado por um amplo consenso popular, os Esta-
dos Unidos (e os seus aliados e vassalos) não tiveram dificuldades,
pelo contrário se apressaram, de reconhecer o fato consumado, e
depois ficaram desapontados com a imensa revolta popular que
impôs a retirada dos golpistas e o restabelecimento da democra-
cia. Em 28 de junho de 2009, em Honduras, o presidente demo-
craticamente eleito, Manuel Zelaya, suspeito de mostrar simpatia
à Venezuela de Chávez, foi preso por militares golpistas e exilado
na Costa Rica. Sobreveio a condenação de Washington que, no en-
tanto, foi de curta duração e rapidamente cedeu lugar à norma-
lização das relações com os novos governantes. No que se refere
à Rússia, vimos o apoio prestado ao ataque contra o Parlamento
provocado por Iéltsin. Qualquer que seja a opinião sobre o po-
sicionamento assumido nessa ocasião pelos Estados Unidos, de
modo algum ele foi motivado pelo respeito ao resultado eleitoral
e às regras democráticas.
Isso, no que se refere à continuidade do passado; vejamos ago-
ra a descontinuidade. A mudança de regime, imposta pela força,
mas sem recorrer ao clássico golpe de Estado militar, apresenta
algumas características agravantes:
a) O governante a ser alvejado primeiro é isolado, criminaliza-
do e desestabilizado com uma campanha internacional e, depois,
derrubado com um empurrão final, graças a uma violência pro-
veniente, sim, de baixo e aparentemente de dentro, mas sempre
apoiada no plano financeiro e organizativo e, enfim, aclamada de
fora e de cima (pelo Ocidente): isso foi o que ocorreu na Bulgária,
Albânia e Geórgia;
b) na fase final da sua preparação, ou às vésperas do desenca-
deamento, da mesma forma que as guerras humanitárias também
os golpes de Estado da segunda onda são estimulados poderosa-
mente por uma mentira ou por uma encenação ou uma cruenta
provocação criadas para conduzir ao seu auge o terrorismo da

181
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

indignação, e a eles dar o empurrão final: tem-se em mente a sun-


tuosa vila atribuída na Geórgia a Shevardnadze; as manipulações
praticadas, aliás sem sucesso, no Irã em 2009; ou o papel obscuro,
mas decisivo, desempenhado pelos atiradores, na Ucrânia em fe-
vereiro de 2014;
c) a violência final de baixo (e na realidade de fora e do alto)
passa amplamente despercebida, ou, seja como for, não causa es-
cândalo, pelo fato de ser legitimada pelo Ocidente que soberana-
mente decide quando as eleições são regulares e quando a violên-
cia é legítima.
Para além das novidades táticas (a utilização sem escrúpulos
das novas mídias ao longo da Psywar e das PsyOps), é preciso ter
presentes as novidades políticas da segunda onda. Desenvolvida
quando a capacidade de atração exercida pelo movimento comu-
nista era mais forte do que nunca, a primeira onda de golpes de
Estado engendrados pelos EUA em geral redundou em ditaduras
militares imunes à pressão da opinião pública; a segunda, ao con-
trário, posta em prática por um Ocidente que então podia expandir
a sua supremacia absoluta em termos de soft power (além de hard
power), conduziu, para além disso, à instauração de democracias
colocadas sob a proteção de Washington e Bruxelas, que se reser-
vam o direito de anular a legitimação; isto é, conduz à instauração
de “democracias protegidas” ou de “protetorados democráticos”.
No geral, a política atualmente perseguida pelo Ocidente visa
a transformar o mundo inteiro em um “livre mercado” e em uma
“democracia” entendida como “livre mercado político”, aberto às
mercadorias, aos “valores”, à esmagadora superioridade multimi-
diática dos Estados Unidos e de seus aliados. Devido à supremacia
que continua a desfrutar em todos os níveis, e à extraordinária ex-
periência acumulada – pelas suas redes de inteligência, pelas suas
agências de public relations, pelas Organizações Não Governamen-
tais por ele fomentadas ou hegemonizadas, pelos seus “promoto-
res incógnitos”, pelos seus “magos do espírito”, pelas suas embai-
xadas há muito tempo habituadas a interferir nos negócios internos
de outros países –, o Ocidente está confiante de que pode conseguir
a vitória. Ainda mais que ele, graças ao controle do FMI, do Banco

182
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

Mundial e dos centros de poder econômico e financeiro interna-


cionais, pode favorecer fortemente os governos amigos e colocar
em gravíssimas dificuldades aqueles considerados hostis ou não
confiáveis. De qualquer modo, o Ocidente se reserva o direito de
decidir soberanamente sobre a regularidade das eleições e sobre
a legitimidade dos protestos de rua e das intervenções da polícia,
ou sobre a decretação do Estado de exceção, que torna inevitável o
recurso à força. Enfim, ele pode ameaçar de denunciar ao Tribunal
Penal Internacional ou então prometer (ou garantir) a impunidade
a chefes de Estado e de governo, a ministros e a funcionários do
aparato estatal e governamental (cf. mais adiante, § 6.3).
Há dois casos emblemáticos. Nos anos imediatamente após o
triunfo dos EUA na Guerra Fria, um prestigiado intelectual rus-
so – até a viragem de 1989 um corajoso dissidente em relação ao
regime comunista – constatou que o seu país estava de fato vi-
vendo uma “democracia colonial” (ZINOVIEV, 1994). Com efeito,
o processo atroz de privatização ou apropriação privada da eco-
nomia pública tinha envolvido não apenas um desapoderamento
das massas populares para o benefício de um círculo restrito de
privilegiados, mas também um desapoderamento da nação russa:
uma parte considerável do seu imenso patrimônio energético caiu
nas mãos dos plutocratas e cleptocratas e de multinacionais que,
em última análise, tinham os seus pontos de referência em Wa-
shington e Bruxelas. Estados Unidos e União Europeia muito mais
facilmente podiam controlar a situação na Rússia, pelo fato de que
o seu presidente, amante da bebida, nem sempre se encontrava
em condições de discernimento. Estava em ação a “democracia
colonial” ou então o “protetorado democrático”, reverenciado ca-
lorosamente pelo Ocidente – o qual, no entanto, rapidamente de-
nunciou a violação dos princípios democráticos quando Vladimir
Putin se dedicou a recuperar a soberania do país; e essa denún-
cia não se deixou impressionar pelo fato de o novo líder ter sido
democraticamente eleito, desfrutar de um consenso popular bem
mais amplo, procurar restabelecer em certa medida os direitos so-
ciais e econômicos e, ao contrário de Iéltsin, não ter consolidado o
seu poder por meio de bombardeamento do Parlamento.

183
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O segundo caso emblemático é o da Ucrânia. Às vésperas do


golpe de Estado, Washington, Bruxelas e Berlim entraram em dis-
puta para decidir quem devia ser o novo líder do país; a competi-
ção era cerrada e não destituída de aspereza e golpes baixos, mas
nenhuma dessas capitais colocou em dúvida o direito do Ocidente
de designar o líder, intervindo aberta e espalhafatosamente nos
negócios internos de um país que deveria ser soberano, e finan-
ciando, estimulando e instruindo sobre o que fazer uma oposição
que certamente não se esquivou da violência e se organizou como
um contrapoder, ou melhor, como único poder legítimo, por ter
sido consagrado pelos EUA e pela União Europeia; tudo isso se-
gundo as regras do “protetorado democrático”.
Essa última categoria é mais ampla do que a de “democracia
colonial” e, por conseguinte, se torna mais funcional. Os países
obrigados a se tornar “protetorado democrático” podem ser sub-
metidos a uma dependência mais ou menos clara, dependendo
das relações de força, da localização geográfica e geopolítica e de
circunstâncias as mais diversas: em certos casos, a dependência
econômica vai até a renúncia à soberania monetária (o dólar esta-
dunidense substitui a moeda local); a “cooperação” política pode
englobar a participação mais ou menos direta de especialistas es-
tadunidenses ou de fora do governo do país; a “cooperação” mi-
litar pode significar a anuência deste ou daquele país à instalação
de bases militares ou à cessão de soldados para as guerras neo-
coloniais dos EUA e da Otan. Fica estabelecido que apenas o Oci-
dente pode decidir sobre a legitimidade democrática. No plano de
fundo, pouco visível, mas bem presente, continua a agir a ameaça
de recorrer ao uso de força contra países e regimes, por eles exe-
crados. Washington e Bruxelas sempre se reservam o direito de
promover, mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança
da ONU, embargos devastadores ou verdadeiras guerras.

4.8. Plutocracia, democracia, democracia nas


relações internacionais

É um paradoxo: o Ocidente decidiu exportar, de mãos armadas,

184
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

a democracia justamente quando em seu interior aumentam as


vozes que lamentam a passagem de democracia para “plutocracia”.
Mesmo se se quiser considerar irrelevante essa circunstância e se
contentar com uma definição “diminuta” de democracia, é preciso
no entanto tomar nota de que a mesma democracia “mínima”
torna-se problemática ou impossível pela ausência de democracia
nas relações internacionais. Na grande imprensa pode-se ler que em
1996 a maciça intervenção financeira do Ocidente, particularmente
da França e da Alemanha, é que fez malograr o retorno ao poder
dos comunistas na Rússia: “foram os franceses e os alemães, sem
saber, e não os russos – que sabem só agora – que mantiveram Boris
Iéltsin no poder”, o qual nas pesquisas contava com um percentual
de votos absolutamente insignificante (CHIESA, 2009).
Trouxe aqui o exemplo de uma, dentre tantas ingerências fi-
nanceiras, mas é preciso não esquecer das ingerências políticas:
vimos diplomatas e governantes ocidentais interferirem de modo
excessivo nos negócios internos deste ou daquele país, alinhan-
do-se a favor de uma determinada força política contra outras. As
ingerências, seja de caráter econômico ou político, e mais direta-
mente, podem se efetivar por meio de Organizações Não Gover-
namentais, que são amplamente controladas pelo Ocidente e que
colocam à disposição do partido por elas escolhido grandes recur-
sos financeiros e humanos (conselheiros, agentes de public relations
etc.) e, assim, têm condições de alterar de modo inevitável a usual
dialética democrática.
Os meios de comunicação é que deveriam animar ou reanimar
tal dialética. Mas a análise dos golpes de Estado demonstra que
estes normalmente começam com a corrupção dos jornalistas:
pensando particularmente no Irã de 1953 e no Chile de 1973, isto
é, o primeiro e o último dos golpes de Estado da primeira onda;
em ambos os casos, televisões, rádios e órgãos de imprensa fo-
ram inundados por um rio de dinheiro proveniente dos EUA e da
Grã-Bretanha e, assim, motivados para que apoiassem a oposição
golpista. No que se refere à segunda onda de golpes de Estado,
já deveria estar claro o papel fundamental desempenhado (por
exemplo, na Geórgia) pela indústria da mentira colocada em ação

185
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

pelos centros internacionais de poder político, econômico e multi-


midiático; e também ser notório que, no Irã de 2009, as novas mí-
dias mostraram-se bem receptivas às solicitações da Casa Branca.
Normalmente, também as instituições representativas e as or-
ganizações sindicais se ocupam em reanimar a dialética democrá-
tica. Mas nenhuma delas está protegida contra as manobras gol-
pistas: pensando nos parlamentares iranianos de 1953 convenci-
dos com dólares e libras esterlinas a colaborarem com a derrubada
do presidente democraticamente eleito; ou então na colaboração
direta, sempre por meio de dinheiro, do sindicato dos caminho-
neiros com os golpistas chilenos e a CIA.
Em síntese, a plutocracia também tem uma dimensão inter-
nacional. O domínio da grande finança (pelo menos até este mo-
mento concentrada nos países ocidentais ou pró-ocidentais) torna
muito mais problemático o desenvolvimento de relações realmen-
te democráticas dentro dos países mais fracos. E esta conclusão se
impõe muito mais se considerarmos a dimensão militar ou políti-
co-militar do problema: na Iugoslávia, em 2000, Milosevic quase
foi impossibilitado de desenvolver a sua campanha eleitoral por
causa do medo, fundamentado e nada paranoico, de se tornar ví-
tima de um atentado posto em prática ou orquestrado pelos servi-
ços secretos ocidentais em ação no país.
Chegamos assim ao ponto fundamental que quero esclarecer
recorrendo a um exemplo. O ano de 1990 via o fim do primeiro
governo sandinista na Nicarágua, liderado por Ortega e inspirado
no exemplo de Cuba. O que havia acontecido? Nos anos anterio-
res, o país havia sido submetido ao bloqueio econômico e militar
da parte da administração Reagan, que também havia tratado de
destruir os portos do pequeno e indefeso país da América Central
e contra ele havia fomentado, financiado e armado o terrorismo
e a guerrilha. Diante de tudo isso, o governo sandinista viu-se
obrigado a tomar medidas limitadas para proteger-se dos ataques
externos e de seus agressores internos. Eis que então os EUA se
mostraram como os defensores dos direitos democráticos viola-
dos pelo “totalitarismo” e desferiram o seu poder de fogo multi-
midiático para desacreditar e demonizar o inimigo. Se o cercea-

186
4. DE TRUMAN ATÉ 1973 E DE 1989 AOS DIAS ATUAIS. DUAS ONDAS DE GOLPES DE ESTADO

mento econômico e a cruzada ideológica já haviam corroído a base


social de consenso do governo sandinista, as pressões militares
e o terrorismo (sustentado por Washington) dos contras haviam
enfraquecido a vontade e a capacidade de resistência. O ato final
foi a encenação das eleições com a vitória da candidata pró-esta-
dunidense. É verdade, em 2006, Ortega voltaria a ser presidente
da Nicarágua, mas com base em um programa mais “moderado”,
então permitido por Washington (que ainda hoje concede a última
palavra). Nem por isso se esgota a pergunta que se impõe a propó-
sito das eleições de 1990: podem ser consideradas “livres” eleições
assinaladas por uma gigantesca desproporção no plano financeiro
e multimidiático e pela intervenção manifesta e vexatória de um
vizinho extremamente poderoso, eleições ao longo das quais um
povo foi ameaçado, em caso de escolha “errada”, de se tornar o
alvo de um novo bloqueio econômico e de um novo ataque mi-
litar? Não por acaso F. D. Roosevelt indicou a “liberdade de não
sentir medo” como um pré-requisito da democracia.
Não fica claro como poderá evitar ou pôr em discussão o triun-
fo da plutocracia nos países capitalistas desenvolvidos. Uma coi-
sa, porém, é certa: como demonstra o caso emblemático da Nica-
rágua, a ausência de democracia nas relações internacionais im-
pede o surgimento ou o desenvolvimento da democracia dentro
da grande maioria dos países. E, no entanto, justamente aqueles
que pretensiosamente rejeitam os apelos à democratização das re-
lações internacionais é que posam como defensores da causa uni-
versal da democracia!
Infelizmente, os pretensos defensores da democracia continu-
am com muito crédito na esquerda ocidental, que muitas vezes
reverenciou como revoluções democráticas golpes de Estado colo-
cados em prática, ou perscrutados, com base na lei do mais forte
nos planos interno e externo.

187
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

188
5

A construção do
universalismo imperial

5.1. Do protecionismo comercial e ideológico ao


imperialismo do livre comércio e dos direitos humanos

A
s declarações universalistas que procedem de Washin-
gton são repetidas, insistentes, intimidatórias e mesmo
ultimativas: portanto, elas nos levam a pensar que tal po-
lítica representa uma constante na história dos EUA. Pois bem,
não poderia haver conclusão tão precipitada e tão falaciosa! Na
realidade, temos de lidar com um país há muito tempo defensor
do protecionismo econômico e político-ideológico. No que se re-
fere ao primeiro ponto, basta refletir sobre uma circunstância: em
meados do século XIX, para desenvolver a sua indústria nacional
a União não hesitou em consentir até mesmo a (sanguinaríssima)
guerra de secessão e o confronto com os estados do Sul, prejudi-
cados pelas altas tarifas alfandegárias que permitiam a decolagem
da indústria do Norte, e tornavam muito difícil a exportação dos
produtos agrícolas do Sul.
No que se refere ao “protecionismo” político-ideológico, ele
foi mostrado com clareza pela doutrina Monroe. Os governantes
de Washington anunciaram ao mundo: decididos a permanecer

189
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

alheios aos conflitos europeus, quaisquer que sejam os interesses,


as ideologias e os valores em jogo, em nenhum caso tencionamos
nos desviar de “nossa política” e muito menos vamos tolerar in-
terferências em detrimento dos “nossos direitos”, da “nossa paz”
e da “nossa segurança”, da “nossa felicidade” “neste hemisfério”,
em “nosso continente”, onde “as condições são profundamente di-
ferentes”; rejeitaremos qualquer tentativa de contaminar o Novo
Mundo com o “sistema político” europeu, que “é essencialmente
diferente daquele da América” (in: COMMAGER, 1963, vol. 1, p.
236-237). Nesse majestoso documento, todo focado no culto à irre-
dutível peculiaridade americana, não há espaço para valores uni-
versais; não por acaso no Sul a escravidão negra começou a ser de-
finida como a “peculiar instituição”, que aos olhos de fora poderia
parecer excepcional, mas que no entanto não poderia ser colocada
em discussão sem privar da sua irrenunciável identidade o povo
que a havia apresentado. Os EUA estavam pouco interessados no
universalismo, tanto que em meados do século XIX, mencionando
explicitamente a doutrina Monroe, advertiram as potências euro-
peias contra qualquer interferência nos acontecimentos internos
do continente americano (G. SMITH, 1994, p. 24), e restabeleceram
a escravidão no Texas, obtido na guerra contra o México.
O culto à peculiaridade não terminou no século XIX. Em 1928,
ao enaltecer o “sistema americano” ou “o nosso sistema político e
econômico americano”, o presidente Herbert Hoover ocupou-se
em ressaltar que ele “se distingue essencialmente de todos os ou-
tros no mundo”. Não se devia confundir o “inflexível individualis-
mo” (rugged individualism) e o “espírito do povo americano” com
“uma filosofia europeia de doutrinas diametralmente opostas, de
doutrinas sob a bandeira do paternalismo e do socialismo de Es-
tado” (próprios tanto da Rússia soviética quanto da república de
Weimar) (in: SCHLESINGER JR., 1973a, p. 2229-2231). Poderia se
argumentar que esta seria a visão apenas do partido republicano
do qual Hoover fazia parte, mas não era assim. Tomemos um dos
mais ilustres presidentes democratas da história dos EUA, que pa-
recia ser a expressão mais completa do universalismo. Pois bem,
Woodrow Wilson, embora fomentando a intervenção do seu país

190
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

na Primeira Guerra Mundial em nome da difusão da democracia


em escala planetária (e da consequente efetivação da paz infinita),
não deixou para trás a exaltação do “espírito americano” (consi-
derado o verdadeiro vencedor da guerra), dos “princípios ameri-
canos”, do “verdadeiro, autêntico americanismo” (WILSON, 1926,
vol. 2, p. 12, 1 e 509). No momento da fundação da Sociedade das
Nações, Wilson obteve a emenda do art. 21 que sancionou como
inviolável a doutrina Monroe e, em última análise, o protetorado
dos EUA sobre a América Latina, com a consequência de que “a
autoridade da Sociedade cabia apenas a uma metade do mundo,
aquela ‘oriental’”, não o hemisfério ocidental (G. SMITH, 1994, p.
30-31). E, no entanto, também essa solução acabou sendo rejeita-
da pelo Senado, mais do que nunca decidido a não admitir que a
nação escolhida por Deus fosse confundida com uma massa de
nações profanas.
Ao longo da campanha eleitoral de 1936, a plataforma republi-
cana acusou F. D. Roosevelt de ter traído o “sistema americano”, e
a plataforma democrata, por sua vez, declarou querer continuar a
“restabelecer o modo americano de viver” (american way of living) e
o “verdadeiro americanismo” (COMMAGER, 19637, vol. 2, p. 354,
358 e 361). F. D. Roosevelt em pessoa, enaltecendo o “nosso siste-
ma americano” e criticando Jefferson por ter se deixado influen-
ciar muito pelas “teorias dos revolucionários franceses”, chamou
os seus concidadãos a se oporem não apenas ao comunismo como
também a “qualquer outro ‘ismo’ estrangeiro” (ROOSEVELT,
1941, p. 28 e 30; SCHLESINGER JR., 1959-1965, vol. 3, p. 638).
Feitas essas conjecturas, bem se compreende que no âmbito
da tradição política da república norte-americana, para deslegi-
timar ou execrar uma corrente política se recorra ao adjetivo un-
-american (antiamericano), enquanto os termos american e america-
nism são usados para legitimar os ideais dos quais um autêntico e
responsável cidadão estadunidense deve se nutrir: os programas
políticos que ele é chamado a cumprir. Em boa parte da história
dos EUA, era chamado de un-american também o que fosse pro-
veniente da Europa, de tão exclusivo e zeloso que era o culto à
peculiaridade “americana”. No período que vai da Revolução

191
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Francesa até o macarthismo, todas as correntes democráticas radi-


cais e revolucionárias foram chamadas de un-americans, e também
os seus partidários perseguidos para que não contaminassem e
corrompessem um país felizmente caracterizado pelo exceptiona-
lism, por um destino sagrado e exclusivo; durante a Guerra Fria, o
macarthismo espionou, despediu, prendeu, perseguiu não apenas
os comunistas mas também todos aqueles que eram suspeitos de
cultivar ideias un-americans e não consonantes com o americanis-
mo autêntico.
Durante todo um período histórico, não apenas Washington
não agitou a bandeira do universalismo como também, na Amé-
rica Latina, em nome da defesa da doutrina Monroe e do ameri-
canism, teorizou, programou e colocou em prática a derrubada
de governos eleitos democraticamente, e no que diz respeito
ao que hoje se considera princípio universal de legitimação do
poder. Apenas a partir da fase final da Guerra Fria o quadro
muda radicalmente: os países socialistas e o movimento comu-
nista se debilitaram gravemente no plano ideológico, político
e propagandístico, e isso abre um espaço novo e amplíssimo
para o universalismo imperial. A partir desse momento, tanto
democratas quanto republicanos, os presidentes estaduniden-
ses não se cansam de enaltecer a virtude do livre mercado e da
democracia, que eles se reservam o direito de impor, em escala
mundial e “universal”, recorrendo a pressões diplomáticas, ao
estrangulamento econômico ou então a verdadeiras interven-
ções militares. É dessa forma que o inicial protecionismo co-
mercial e político-ideológico se lança no imperialismo do livre
mercado e dos direitos humanos.

5.2. O Ocidente do politeísmo ao monoteísmo de valores

Diferente é a história da Europa que, porém e também ela, não


é nada unilinear. Imediatamente após o fim da Primeira Guerra
Mundial – que tinha visto entrarem em confronto em uma luta
mortal os principais países da Europa e do Ocidente –, Max Weber
fez este balanço:

192
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

“Como se poderia fazer para se decidir ‘cientificamente’ entre o


valor da cultura alemã e da francesa, eu desconheço. Também
nesse caso há um antagonismo entre deuses diferentes, o tem-
po todo (...). Sobre esses deuses e suas lutas domina o destino,
certamente não a ‘ciência’. É concedido apenas compreender o
que seja o divino em ambos os casos, ou numa ou outra ordem”
(WEBER, 1966, p. 31-32).

O gigantesco conflito tão logo concluído tinha ido para bem


além do contencioso material e geopolítico. As grandes potências
europeias e ocidentais tinham se enfrentado a partir de “valores” e
até mesmo de “diferentes divindades” entre si inconciliáveis.
Sim, de Glaubenskrieg (guerras religiosas), ou de guerras de
fé contrapostas, havia falado o alemão Werner Sombart. Dessa
opinião também se valiam os inimigos da Alemanha, a se julgar
pela declaração do inglês Leonard T. Hobhouse, que disse: “A
Europa sofre o seu martírio, milhões de pessoas morrem a ser-
viço de falsos deuses, e outros milhões por resistirem a eles”. E
quais eram esses valores, ou divindades, contrapostos? Para o
leitor moderno, pode ser assombroso saber que entre 1914 e 1918
principalmente a Alemanha defendia o valor da dignidade e li-
berdade do indivíduo. Para citar Georg Simmel, o “individualis-
mo” era uma característica “totalmente inseparável da essência
alemã”. Bem diferente era a França que tinha como característica
– afirma desta vez Max Scheler – um “hábito congênito e uma fé
supersticiosa no Estado absoluto e onipotente a partir de dentro,
da intimidade do homem”; de outra parte, também na Inglaterra
ocorria “a humilhação e mesmo a opressão do indivíduo espi-
ritual”, mesmo nesse caso sendo o causador desse resultado a
onipotência não do poder estatal, mas sim da “tradição” e da
“convenção”, do “costume” (1). Na vertente oposta, a Alemanha
foi retratada como a encarnação de um Antigo regime, irreme-
diavelmente hostil aos valores da democracia e da paz, cuidado-
samente preservados, por sua vez, pelos países da coalizão an-

(1) Sobre tudo isso, ver LOSURDO (1992), cap. 12, § 1; (1997), cap. 14, §§ 11-12.

193
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

tialemã (da qual, no entanto, tinha feito parte também a Rússia


czarista até 1917).
Como se vê, bem longe de se apresentar como o único defensor
dos valores universais, o que hoje chamamos de Ocidente mostra-
va-se dilacerado. Apenas com o advento da Guerra Fria o quadro
mudaria. Mas não imediatamente. Ainda em 1953, Churchill, es-
perando salvar algo do Império britânico ou garantir ao seu país
uma posição privilegiada, numa carta dirigida ao presidente esta-
dunidense Eisenhower – ao falar do perigo que representava o co-
munismo soviético e oriental –, ao invés de apelar ao Ocidente em
geral invocou a “Unidade do Mundo de Língua Inglesa” (Unity
of the English-Speaking World) e ressaltou o papel fundamental no
seu interior “com os seus oitenta milhões de habitantes falantes da
língua inglesa” (in: BOYLE, 1990, p. 34). Com a afirmação da hege-
monia incontestável dos EUA, o discurso para Churchill havia se
tornado obsoleto, ainda mais que esse discurso tinha que se mos-
trar contraproducente naqueles anos em que se desenvolveram a
revolução anticolonial e a revolta dos “povos de cor”.
A partir desse momento, dissipam-se totalmente o politeísmo
dos valores e o conflito entre divindades diferentes e opostas; tudo
isso cede lugar ao Ocidente enquanto sujeito substancialmente
unitário e único guardião dos valores universais. Certamente, tal
pretensão parece problemática à luz das terríveis páginas escritas
pelo colonialismo ocidental. Mas termina fazendo escola aquilo
que podemos definir como o estratagema de Hannah Arendt. As
origens do totalitarismo descrevem sem perdão os crimes do colo-
nialismo, acusado, por exemplo, de ter “reduzido a população in-
dígena (do Congo) de 20-40 milhões, em 1890, para 8 milhões, em
1911”. O responsável por essa política de extermínio foi Leopoldo
II, rei da Bélgica, o qual, no entanto, ao agir dessa forma, teria atu-
ado contra “todos os princípios políticos e morais do Ocidente”
(ARENDT, 1989, p. 257 e 259, nota). No plano historiográfico, tra-
ta-se de uma afirmação muito peculiar: a tragédia do Congo não
é certamente um fato isolado no âmbito da expansão colonial do
Ocidente; os congoleses não amargaram um destino pior que o dos
aborígenes da América do Norte, da Austrália, da Nova Zelândia

194
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

etc. E, no entanto, graças a esse estratagema o ritual de purifica-


ção, ou então graças a essa autodefinição apriorística, o Ocidente
pode se anunciar como representante privilegiado ou exclusivo de
valores universais.
Em 2002, enquanto já estava em ação o inferno de Guantá-
namo e se preparava a segunda Guerra do Golfo, o presidente
Bush filho afirmou: “Há um sistema de valores que não podem
ser comprometidos: são valores dados por Deus” (in: FERGU-
SON, 2005, p. 105), e protegidos pelas religiões monoteístas e, em
particular, pelo monoteísmo hebraico-cristão. Aqui, muito mais
claro do que nunca o politeísmo dos valores cede lugar ao mono-
teísmo dos valores.

5.3. Calendário sagrado e controle da memória histórica

Na Europa ocidental, atingida por um galopante processo de


secularização, a religião tradicional da qual teriam descendido os
direitos humanos tende a ceder o lugar à religião civil dos direitos
humanos que, aliás, declara explicitamente colocar-se na esteira
da tradição religiosa hebraico-cristã. Nessa base superficial está a
harmonia nas duas margens do Atlântico: o Ocidente não apenas
apregoa a universalidade da religião dos direitos humanos como
também fixa o seu calendário sagrado.
Em 11 de setembro, todos os anos, nos EUA como em toda par-
te do mundo, é solenemente lembrado o ataque às torres gêmeas.
É justo render homenagem às vítimas inocentes de um ataque ter-
rorista descontrolado. No entanto, eram menos inocentes e menos
dignas de respeito as vítimas de uma tragédia que, décadas antes,
mas nesse mesmo dia e mesmo mês, começou a semear a morte
no Chile? Corria o ano de 1973, quando um sanguinário golpe de
Estado, praticado pelo general Augusto Pinochet, mas inspirado e
promovido por Washington, se abateu sobre o presidente daquele
país democraticamente eleito, Salvador Allende, e sobre um povo
inteiro. Seria interessante se perguntar sobre o eventual nexo entre
esses dois trágicos acontecimentos, que ocorreram no mesmo dia
e no mesmo mês, embora separados por cerca de três décadas: há

195
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

uma relação entre a pretensão dos Estados Unidos de ditar as leis


no Chile e na América Latina (e em toda parte no mundo) e o hor-
rível atentado que se abateu sobre as torres gêmeas? Mas, junto da
lembrança da tragédia chilena, se dissipou também a questão que
dela poderia surgir. E eis o resultado: o 11 de setembro se torna
uma data sagrada do calendário de uma religião civil que se afir-
mou em nível internacional, mas com referência única e exclusiva
à destruição das torres gêmeas nos EUA; e se trata de uma data
sagrada chamada a render homenagem, mais do que às vítimas,
ao país no qual elas encontraram a morte.
Para justificar essa característica maneira de proceder da ideo-
logia dominante se poderia dizer que, em relação a 2001, o ano de
1973 é uma data muito remota no tempo. Voltemos então a nos-
sa atenção para os acontecimentos que ocorrem no mesmo ano,
mais exatamente em 1989. Eis que todos somos levados a pensar
na China e na repressão da Praça Tienanmen. Mas não há outros
fatos conhecidos e trágicos daquele ano? Já sabemos do “Aus-
chwitz da sociedade do espetáculo” que ocorreu na Romênia no
final de 1989, quando “pela primeira vez na história da humani-
dade” cadáveres foram desenterrados e mutilados com o objetivo
de simular um genocídio, fomentar a indignação moral e canali-
zá-la em uma direção bem determinada e friamente programada.
Não seria o caso de refrescar periodicamente a memória sobre essa
infâmia, o recurso a técnicas de manipulação tão sem escrúpulos
que não poupam nem mesmo os mortos, e tão sofisticadas a ponto
de transformarem a mentira em uma verdade evidente e incontes-
tável? Não seria o caso de prevenir contra o perigo de encontrar
desarmadas justamente as consciências morais mais sensíveis às
manobras de cínicos manipuladores? Claramente, as datas do ca-
lendário sagrado que o Ocidente, e em primeiro lugar os EUA,
gradativamente impõem não visam a desenvolver a consciência
crítica.
Não é de se admirar, então, o silêncio reservado às duas tragé-
dias, que ocorreram no ano da graça de 1989. Enquanto ele che-
gava ao fim, realizou-se a invasão estadunidense do Panamá, an-
tecedida por intensos bombardeamentos, desencadeados sem de-

196
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

claração de guerra, sem aviso algum ou autorização do Conselho


de Segurança da ONU: quarteirões densamente povoados foram
surpreendidos à noite por bombas e pelo fogo. Centenas, prova-
velmente milhares, foram mortos, em sua imensa maioria “civis,
pobres e de pele escura”; e pelo menos 15 mil eram sem teto: como
observa um estudioso estadunidense, trata-se do “episódio mais
sangrento” da história do pequeno país (BUCKLEY, 1991, p. 240
e 264). Seja como for, graças a isso os Estados Unidos se livraram
do ditador e narco-traficante empossado por eles próprios, que
nesse meio tempo se tornou insubordinado. Permaneçamos no
continente americano só que mais ao sul. Em 17 de fevereiro de
1989, Caracas e outras cidades da Venezuela saíram às ruas contra
as drásticas medidas neoliberais do então presidente Carlos An-
drés Pérez que submetia à fome uma enorme parte da população.
Drástica foi a repressão, com milhares e milhares de mortos: era o
“Caracazo”, rebelião popular de Caracas. Em relação à população,
o que ocorreu no Panamá e na Venezuela foi muito mais sangrento
do que o que aconteceu na China em 1989; mas a religião civil dos
direitos do homem, chamada a enaltecer o Ocidente e a cobrir de
vergonha os seus adversários, considera digno de memória ape-
nas o dia 4 de junho daquele ano, quando os tanques de guerra
entraram na Praça Tienanmen.
Para confirmar o duplo padrão moral e o cinismo característi-
cos da religião da qual estamos falando, a partir de 1989 façamos
um salto para trás de mais de trinta anos. Agora estamos mais
exatamente em 1956. Mais ou menos nos mesmos dias ocorreram
na Europa a invasão soviética da Hungria e, no Oriente Médio,
o ataque anglo-franco-israelense contra o Egito. É apenas o caso
de dizer que foi apenas o primeiro acontecimento a ser regular
e solenemente lembrado. Ele era a prova do irremediável “ma-
quiavelismo” comunista: assim se lê em Bobbio, que não sente
necessidade alguma de referir-se ao segundo episódio central de
1956, mesmo que totalmente ligado ao primeiro (BOBBIO, 1990,
p. 114-115). Depois da derrocada do “campo socialista” e do fim
da Guerra Fria, as autoridades húngaras calcularam em 2.500 os
mortos pela repressão à revolta de 1956 (VANNUCCINI, 1996, p.

197
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

17). Quantas foram as vítimas da guerra anglo-franco-israelense


contra o Egito? Não parece que no Ocidente se preocupem com
isso a ponto de calculá-las e recordá-las. No entanto, isso seria pelo
menos um motivo para refrescar a memória sobre aqueles acon-
tecimentos. Tratava-se de uma guerra colonial ou neocolonial que
terminou com um crime de guerra impune, pelo qual se tornaria
responsável o exército israelense invasor: “Quase 300 prisioneiros
(egípcios) foram trucidados a sangue frio, com as mãos algemadas
nas costas” (CREMONESI, 1995).
Queremos tomar a Praça Tienanmen como símbolo da luta
não violenta contra o poder e contra o despotismo asiático? Então
por que não dizer algumas palavras sobre aquela que foi definida
como a Tienanmen sul-coreana e que ocorreu quase exatamente
nove anos antes em um país que era de fato um protetorado esta-
dunidense? Na quarta capa de um livro dedicado a esse aconteci-
mento, Chalmers Johnson assim sintetiza:

“Em maio de 1980 o exército sul-coreano deliberadamente e com


extrema brutalidade assassinou centenas de civis desarmados
na cidade de Kwangju. As vítimas protestavam contra o gover-
no militar no país e pediam a democracia. Expoentes do alto es-
calão do governo dos EUA sabiam dessa carnificina, mas não
fizeram nada para impedi-la e depois procuraram esconder o
que haviam omitido... A nenhum deles foi pedido para prestar
contas do seu comportamento. Os meios de comunicação ame-
ricanos colaboraram para a total ocultação desses crimes contra
a humanidade” (citado em SCOTT-STOKES, Lee Jai Eui, 2000).

O mesmo autor estadunidense constatou que em Kwangju, de-


baixo dos olhos vigilantes da embaixada dos EUA, naqueles anos
não por acaso comandada por “funcionários da CIA”, foi realiza-
da “uma carnificina provavelmente de dimensões muito maiores
que as daquela executada pelos comunistas chineses na Praça Tie-
nanmen em 1989” (JOHNSON, 2001, p. 48-49).
Ou então façamos um recuo mais para trás, mas ainda perma-
necendo na Ásia. No início de 1947, o exército do Kuomintang –

198
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

fixado em Taiwan depois de ter fugido da China continental, onde


os comunistas haviam obtido a vitória – efetuou contra os habi-
tantes da ilha em revolta uma repressão que acarretou em cerca
de 10 mil mortos (LUTZKER, 1987, p. 178). Continuemos a falar
da China, mas não da República Popular da China (proveniente
de uma grande revolução anticolonial) e sim da república chinesa
apoiada pelos EUA com o objetivo de impedir a vitória completa
da revolução e de obstruir a reunificação do grande país asiático.
A repressão sobre a qual se fala aqui é de longe mais sangrenta do
que aquela que todo ano é solenemente lembrada. Como explicar
um duplo padrão tão gritante?
É claro. As festividades e os rituais do calendário sagrado
fixado pelo Ocidente remetem a uma religião civil manipulada.
Não há espaço nem mesmo para a festividade do mais grave “po-
liticídio” do século XX, e talvez da história mundial: o massacre
praticado pelos generais indonésios, orientados pela CIA, de cen-
tenas de milhares de pessoas acusadas, ou sob suspeita, de serem
comunistas. Os comunistas podem ser lembrados como carrascos,
nunca como vítimas!

5.4. A destruição da identidade dos possíveis inimigos

Fixar o calendário significa certificar-se do controle da memória


histórica, e tal controle, obtido mediante um terrorismo de indig-
nação ligado ao passado, é um componente essencial do poderio
geral do aspirante a império planetário. Desde sempre a conquista
de um país é um empreendimento que vai muito além da dimen-
são puramente militar.
Se pensarmos particularmente no mundo colonial, a relação de
domínio resulta sólida e duradoura apenas quando se respalda na
destruição da história, da identidade cultural, da autoestima do
povo dominado, de maneira que este último sucumba à autofobia
e pretenda participar, mesmo que de modo subalterno, da identi-
dade de vencedor. Não se trata de algo que foi concluído com o
fim do colonialismo clássico e restrito ao mundo colonial propria-
mente dito. Pode até mesmo acontecer que um grande movimento

199
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

revolucionário ou alguns de seus componentes contribuam invo-


luntariamente com o processo acima descrito.
Emblemática é, a esse respeito, a história da Rússia, que ao
longo dos séculos oscilou entre a condição de país dominado e
de grande potência (muitas vezes expansionista). Após a derrota
da Primeira Guerra Mundial e a queda da autocracia czarista, o
pêndulo parecia pender para a desagregação, balcanização e co-
lonização do país. O poder soviético é que colocou um fim a tudo
isso, devolvendo ao povo a autoestima e o sentido de identidade
e dignidade nacional. E nessa base foi desbaratada a tentativa hi-
tleriana de encontrar na Europa oriental o espaço vital, ou então o
Far West, para dominar, tendo em vista a instauração das “Índias
alemãs” ou de um império colonial de tipo continental.
De outra parte, desde os seus inícios a Rússia soviética foi mar-
cada pelo surgimento de tendências inclinadas ao niilismo nacio-
nal, ou que objetivamente o favorecessem: em nome da “luta de
classe” e do “internacionalismo” elas pretendiam liquidar tudo
o que não fosse genuína “cultura proletária” (Proletkult), mesmo
a língua russa, considerada como expressão de uma sociedade
fundada na exploração e portanto destinada a desaparecer na
onda da revolução socialista. Embora duramente questionadas
por Lênin e por Stálin, tais tendências nunca desaparecem to-
talmente. Quando, em 1956, por ocasião do XX Congresso do
Partido Comunista, Kruschev qualificou Stálin como sinônimo
de loucura sanguinária, a União Soviética encontrava-se em uma
situação paradoxal e insustentável: o bolchevismo ou as suas
correntes mais “radicais” haviam depreciado em bloco e sem
distinções a Rússia pré-revolucionária, a sua cultura e até a sua
língua; nesta nova etapa se fazia algo semelhante ao que ocorreu
durante os 30 anos de Stálin, portanto, ao período mais longo do
país nascido com a Revolução de Outubro. Não mais capaz de
se manter, com a superpotência rival, na corrida armamentista,
e agora destituída de história, de identidade e de autoestima, a
União Soviética dificilmente poderia resistir à poderosa ofensi-
va desencadeada pelos EUA e pelo Ocidente na última fase da
Guerra Fria. Foi uma derrota desastrosa: durante algum tempo

200
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

a política econômica da Rússia foi decidida em Washington; os


conteúdos e as formas da campanha presidencial de Iéltsin fo-
ram elaborados por agências publicitárias estadunidenses; após
o processo de desindustrialização parecia que se aplicaria a per-
da de controle sobre o imenso patrimônio energético nacional;
por algum tempo a única cultura concebida como digna de con-
sideração foi aquela que se inspirava (acriticamente) no Ocidente
e no seu país-guia, propagandeadas com abundantes recursos
vindos de fundações e de “Organizações Não Governamentais”
generosamente financiadas exatamente pelo Ocidente e por seu
país-guia.
No que se refere à Rússia, o que era um resultado em grande
parte casual agora tornava-se um plano dos estrategistas de Wa-
shington consciente e tenazmente executado ao longo da luta con-
tra a China. Certamente, agora é preciso lidar com uma civilização
milenar, que soube recusar, absorver ou controlar os desafios pro-
venientes do exterior, mesmo no decorrer do trágico “século das
humilhações” que se iniciou com as guerras do ópio. Neste caso, o
espaço para o niilismo nacional é bem mais reduzido, ainda mais
que o Partido Comunista chinês chegou ao poder na onda de uma
gigantesca revolução anticolonial e nacional.
Entretanto, ao longo do século XX não faltaram momentos em
que a China, questionando-se sobre as razões de fundo da ocor-
rência das “humilhações”, colocou em discussão mais ou menos
em bloco a história por trás disso, mesmo aquela mais remota.
Foi o que ocorreu com o movimento de 4 de maio de 1919: jun-
to ao imperialismo japonês, então prestes a substituir o imperia-
lismo ocidental, fez uma crítica impiedosa a Confúcio e ao confu-
cionismo, isto é, à cultura que há dois milênios e meio marca a his-
tória do grande país asiático. Por ocasião da Revolução Cultural
verificou-se, então, uma espécie de réplica mais radical, quando
– como na Rússia soviética do Proletkult – junto com Confúcio e
o confucionismo tornava-se objeto de deboche (e muitas vezes de
iconoclastia) tudo o que não fosse genuinamente “proletário”. No
entanto, ainda naqueles anos continuaram a ser publicadas, estu-
dadas e veneradas as obras de Mao, plenas de referências aos au-

201
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

tores clássicos da cultura milenar chinesa, a começar de Sun Tzu,


o grande estrategista e teórico da guerra do século VI-V a.C., estu-
dado com interesse e citado no decorrer da guerra de resistência
contra o imperialismo japonês.
No entanto, sempre há um espaço para a tentativa de des-
truição da identidade da China: assim se explica o empenho es-
tadunidense e ocidental em deslegitimar a grande revolução e a
República Popular da China dela proveniente, criminalizando e
demonizando em bloco ambos os períodos em que se estabelece
a sua história: um dominado pela figura de Mao Tse-tung e outro
após a chegada ao poder de Deng Xiaoping. Este último livrou da
fome e da miséria mais repulsiva centenas e centenas de milhões
de pessoas. Para usar as palavras de um grande estadista ocidental
(que tem presente sobretudo a dimensão econômica): é “o líder
comunista de maior êxito da história mundial” (SCHMIDT, 2012).
E um respeitável estudioso estadunidense se pergunta: “Há al-
gum outro líder no século XX que tenha feito mais para melhorar
a vida de um número tão alto de pessoas? Há algum outro líder
do século XX que tenha exercido uma influência tão grande e tão
duradoura sobre a história mundial?” (VOGEL, 2011, p. 690). Por-
tanto, a nação chinesa pode muito bem ficar orgulhosa dessa per-
sonalidade; e se compreende bem então a pretensão de ver Deng
Xiaoping enforcado num poste da Praça Tienanmen daqueles que
estão empenhados em privar a República Popular da China de
sua história, de sua autoestima e de sua identidade. Toda vez que
se lembra da tragédia que ocorreu naquela praça o terrorismo da
imediata percepção e indignação a associa constantemente à foto
de Deng Xiaoping, ou a algum comentário sobre ele, à foto do tan-
que de guerra enfrentado pelo manifestante indefeso; o silêncio
sobre a tríplice escolha, para respaldar aquela imagem, facilita a
reprodução da ação subliminar.
Essa operação não estaria completa sem a criminalização e a
demonização de Mao Tse-tung. No entanto, os seus méritos são
enormes e evidentes. Novamente damos a palavra ao ex-chanceler
da República Federal alemã: “Ele reconstituiu (wiederhergestellt) a
China depois de um século e meio de colonização” (SCHMIDT,

202
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

2012). E, ao fazer isso, contribuiu claramente para derrotar o co-


lonialismo em escala mundial e para pôr fim a um longo capítulo
da história caracterizado pelo triunfo da lei do mais forte, da do-
minação e escravização das nações mais fracas, do saque de seus
recursos, da arrogância racial e das infâmias racistas, do recurso
a práticas genocidas. O principal pretexto para proceder à dam-
natio memoriae (condenação da memória) do fundador da Repú-
blica Popular da China é o Grande Salto à frente de 1958-1959:
devido também a calamidades naturais imprevistas e ao contex-
to internacional desfavorável e hostil (ao embargo desde o início
impiedosamente praticado pelos EUA e o Ocidente se somava a
ruptura com a URSS e os outros países socialistas), a tentativa de
acelerar intensamente o desenvolvimento das forças produtivas,
de modo a livrar o povo chinês de uma vez por todas da miséria e
da indigência, fracassou estrondosa e tragicamente; daí ocorreram
a desesperadora fome em massa e a morte por inanição em larga
escala. Tendo como base esse dado incontestável, a máquina pu-
blicitária da ideologia dominante não deixa por menos, age muito
rápido: aumenta as dimensões da tragédia, transforma um grave
erro político em um crime intencional, classifica o fundador da
República Popular da China como um criminoso e ainda como o
maior criminoso da história, e indigna-se com o fato de a China de
hoje continuar a render-lhe homenagem.
Neste caso, as manipulações são tantas e tão intensas que não
basta denunciar apenas uma. Sim, é legítimo ressaltar o caráter
não intencional da tragédia em que desemboca o Grande Salto
(SCHMIDT, 2012). Mas é preciso avançar muito além disso. A tra-
gédia da fome não apareceu na China com a chegada de Mao ao
poder (ele, ao contrário, procurou desesperadamente aplacá-la) e
sim desde quando começou a agressão do Ocidente colonialista.
Basta ler o recente livro de um conhecidíssimo político estaduni-
dense: às vésperas das guerras do ópio, “o PIB da China era qua-
se sete vezes o da Grã-Bretanha” (KISSINGER, 2011, p. 44). Al-
gumas décadas depois, a morte devido à fome não causaria nem
surpresa e nem indignação: era um desastre diário. No geral, se
examinarmos os “anos 1850-1950” – grosso modo o “século das

203
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

humilhações”, que vai da primeira Guerra do Ópio e da eclosão


do colonialismo até a vitória da revolução anticolonial (e de orien-
tação socialista) em 1949 –, podemos ter a verdadeira dimensão
das catástrofes que sinalizaram essa grande crise histórica (inva-
sões militares, insurreições, “catástrofes naturais”) e chegar a uma
conclusão: trata-se talvez do período mais sangrento da história
do mundo (cf. mais adiante, § 6.9).
Não apenas a tragédia da fome na China é em grande parte o
resultado do ataque colonialista, mas também este resultado foi
muitas vezes lucidamente empreendido ou agitado como ameaça.
Já em 1793, o enviado da Coroa britânica, Lord George Macart-
ney, advertia: em caso de não aceitação de suas exigências, graças
à sua potência naval, o governo de Londres tinha condições de
sujeitar, pelo menos as regiões costeiras do Império do Meio, à
“fome absoluta” (in: KISSINGER 2011, p. 43). Mais de um século e
meio depois, deixada destruída pela ocupação japonesa e por uma
guerra civil ainda não totalmente terminada, a nova China se tor-
nou alvo de ameaças militares e da guerra econômica desencade-
ada pelos EUA. A administração Truman perseguia um objetivo
simples e claro: aproveitando-se da “inexperiência comunista na
área da economia urbana”, era preciso impor à República Popu-
lar da China “o flagelo” de “uma situação geral de vida próximo
ou abaixo do nível de subsistência”, e fazer o país passar de uma
situação marcada por “necessidades desesperadas” para uma “si-
tuação econômica catastrófica”, “rumo à tragédia” e ao “colapso”
(ZHANG, 2001, p. 20-22, 25 e 27). Ainda no início dos anos 1960
um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, se
vangloriava pelo triunfo obtido pelos Estados Unidos, que tinham
conseguido desacelerar o desenvolvimento econômico da China
pelo menos em “dezenas de anos” (IDEM, p. 250).
Com as múltiplas manipulações, a habitual demonização de
Mao a partir do Grande Salto à frente dispensa uma pergunta que,
no entanto, deveria ser elementar: a terrível escassez provocada
por aquele experimento político, sem dúvida imprudente, é de
responsabilidade exclusiva do líder comunista chinês, ou também,
e principalmente, dos causadores de um embargo devastador? A

204
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

pergunta até poderia se tornar mais penetrante: são mais graves


as responsabilidades de quem por inexperiência em gestão de eco-
nomia e pelo aventureirismo político provocou um desastre ou as
responsabilidades daqueles que intencionalmente, conscientes da
“inexperiência” do inimigo e valendo-se da própria experiência,
pretendiam e produziram aquele desastre? Perguntas semelhan-
tes são legítimas e necessárias também no que se refere à Praça
Tienanmen: que papel desempenharam na tragédia as interferên-
cias estadunidenses? Elas visavam a facilitar ou a tornar impossí-
veis a conciliação ou o compromisso entre as duas partes em luta?
Washington pretendia evitar ou provocar o derramamento de
sangue (de modo a desacreditar o país comandado por um Parti-
do Comunista)? As interferências estadunidenses que, de acordo
com Deng Xiaoping, ameaçavam desencadear uma guerra com a
China, se preocuparam mais com salvar vidas humanas ou com
o ambicionado ataque final contra o que restava do movimento
comunista no mundo?
O Ocidente se escandalizou com isso, mas o atual presidente
chinês, Xi Jinping, demonstrou ter compreendido bem o que re-
almente está em jogo quando chamou o seu país a rejeitar o “nii-
lismo histórico” em relação tanto a Mao Tse-tung quanto a Deng
Xiaoping.

5.5. Autocelebração e promoção da autofobia no campo


inimigo

A destruição da história, da identidade cultural, da autoesti-


ma de um povo não seria completa sem a supressão do direito,
ao povo dominado ou a ser dominado, de reparação moral pelos
constrangimentos sofridos durante um período mais ou menos
longo da história. O “século das humilhações”, do qual gostam
de falar os governantes chineses, sintetiza as infâmias sofridas
por um povo de antiquíssima civilização que, a partir de guerras
decididamente repugnantes no plano moral (as guerras do ópio),
foi atacado por uma potência imperialista atrás de outra. Num
tempo curto um processo de desumanização o colocou no nível

205
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mais baixo da hierarquia racial, junto a um outro povo que por


muito tempo foi vítima privilegiada do colonialismo e do racis-
mo a este ligado. No final do século XIX, diante de certos par-
ques públicos do Sul dos Estados Unidos uma frase se destacava:
“Proibida a entrada de cães e negros (niggers)”. Em Shangai a con-
cessão francesa defendeu a sua pureza colocando bem à mostra
o letreiro: “Proibida a entrada de cães e chineses” (LOSURDO,
2005, cap. 10, § 3). Em 1882, nos EUA foi promulgado o Chinese
Exclusion Act: criado para evitar a contaminação proveniente dos
migrantes chineses, ele rapidamente se tornou modelo para os
defensores europeus da pureza racial. Após ter sofrido, em 1900,
uma campanha punitiva promovida conjuntamente pelas potên-
cias imperialistas da época, a China se tornou então, depois da in-
vasão japonesa, a vítima de uma das piores infâmias da Segunda
Guerra Mundial e da história mundial. Isso pode ser demonstra-
do não apenas através da escravidão sexual imposta às mulheres,
as chamadas comfort women obrigadas a “consolar” os militares
do Império do Sol Nascente, como também pelo famigerado mas-
sacre de Nanquim em 1937. Dá o que pensar principalmente o
processo de desumanização que atingiu uma rara completude:
os soldados japoneses, para treinar tiro com baioneta, usaram os
chineses como alvos vivos; para além disso, eles foram muitas
vezes usados e sacrificados como cobaias em dissecações e outros
experimentos monstruosos efetuados com armas bacteriológicas.
Os Estados Unidos garantiram a impunidade aos membros da
famosa unidade 731, autênticos criminosos de guerra, em troca
da entrega de todos os dados recolhidos por eles: com a Guerra
Fria já às portas, além das armas nucleares se ensaiou também a
utilização de armas bacteriológicas.
Reconhecer ao povo chinês o direito à reparação moral por es-
sas infâmias demandaria a necessidade de uma autocrítica da par-
te daqueles por elas responsáveis: o Ocidente e principalmente o
Japão que, aliás, é aliado dos EUA; de outra parte, essa reparação
poderia estimular no povo chinês o orgulho de ter sabido pôr fim,
com uma grande revolução, a um trágico período da sua história
e de ter sabido revigorar-se, graças a esforços persistentes e a um

206
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

prolongado processo de aprendizagem, no caminho que conduz


à recuperação da antiga grandeza. Reconhecer o direito à recu-
peração moral para o enorme país asiático significaria renunciar
ao objetivo de debilitar a sua identidade e autoestima. Pelo que
parece, trata-se de um objetivo ao qual não se tenciona renunciar.
No Japão segue havendo peregrinação a um cemitério – ou me-
lhor, um santuário –, onde junto com os restos mortais de soldados
mortos na guerra são guardados os dos responsáveis pelas infâmias
antes mencionadas, todos processados e condenados pelo Tribunal
de Tóquio (o equivalente asiático ao de Nuremberg) e executados
como criminosos de guerra. Junichiro Koizumi, primeiro-ministro
de 2001 a 2006, e o atual primeiro-ministro Shinzo Abe, têm visi-
tado esse cemitério para render as suas homenagens àqueles ho-
mens. O governo de Shinzo Abe e seus apoiadores se evidenciam
ao colocarem uma pedra sobre aquele horrível passado. Quando
não é totalmente negado, a bem pouca coisa se reduz o massacre
de Nanquin; as escravas sexuais se tornam simples prostitutas, de-
saparece da história inclusive a invasão da China: trata-se de uma
matéria controversa – afirmam os governantes japoneses. Ausente
é a onda de indignação que seria de se esperar; o Ocidente não se
abala: o calendário sagrado por ele fixado não considera merecedo-
ra de particular atenção a tragédia do povo chinês.
A reparação moral é negada também de outra maneira. Na im-
prensa estadunidense podem ser lidos artigos, cuja tese de fundo
é esta: no final das contas, o número de vítimas ocasionadas na
China pela agressão do Império do Sol Nascente é inferior ao da-
quelas que se seguiram após a terrível escassez do fim dos anos
1950. Com base nessa lógica, devemos absolver um bom número
de criminosos: são inúmeros os acidentes nas rodovias que pro-
vocam mais vítimas do que um simples assassinato! No entanto,
levamos a sério uma comparação que faz um cotejo de grandezas
tão heterogêneas. Por coerência devemos então reduzir a uma in-
significante bagatela Pearl Harbor: o “dia da infâmia” (segundo F.
D. Roosevelt) é bem pouca coisa em relação à Guerra de Secessão
que, para os EUA, provocou mais vítimas que os dois conflitos
mundiais juntos. Mas talvez tenha pouco sentido se empenhar em

207
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

rebater no plano lógico um raciocínio que visa tão-somente a ne-


gar à China a reparação moral.
Uma vez alcançado esse objetivo, não há mais obstáculos para
a propagação do terrorismo da indignação moral, que liga Mao
à imagem de uma vítima da grande fome e Deng à imagem do
tanque de guerra da Praça Tienanmen. Às diversas tentativas de
criminalização dos Pais Fundadores da República Popular da
China corresponde a deslumbrante transfiguração dos Pais Fun-
dadores dos EUA, destacados no Panteão reservado aos heróis
da liberdade. O fato de Washington, Jefferson e Madison terem
sido proprietários de escravos deveria servir para nos fazer refletir
para termos mais cautela e uma atitude menos maniqueísta. Mas a
ideologia dominante recusa-se a levar em conta essa realidade; e,
infelizmente, de maneira semelhante, até a alta cultura adota essa
posição.
Segundo Arendt, no final do século XVIII, isto é, por ocasião da
fundação dos EUA, o instituto da escravidão era totalmente acei-
to como obviedade. Na realidade, até um historiador nitidamente
empenhado em enaltecer a missão imperial da república norte-a-
mericana reconhece que ela foi fundada “em grande medida por
proprietários de escravos, em um período no qual o movimento
pela abolição da escravidão já estava bem desenvolvido nas duas
margens do Atlântico” (FERGUSON, 2100, p. 129). O Estado pro-
veniente da revolta dos colonos avançava em sentido contrário da
corrente principal. E continuou na contracorrente mesmo nas dé-
cadas posteriores, quando se agarrou firmemente ao instituto da
escravidão, que havia sido liquidado em Santo Domingo, no Haiti,
na onda da Revolução Francesa, e em boa parte da América Latina
de língua espanhola, na onda da revolução antiespanhola.
A ilustre filósofa vai ainda mais longe na transfiguração dos
EUA: “o colonialismo e o imperialismo das nações europeias” são
o “grande crime no qual a América nunca foi envolvida” (AREN-
DT, 1959, p. 46). Nesse esquema, por uma inacreditável distração,
não há espaço para a guerra contra o México e seu desmembra-
mento, para a colonização e a anexação do Hawaí, para a con-
quista das Filipinas e a repressão do movimento independentista

208
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

conduzida de modo cruel, admitindo muitas vezes explicitamente


práticas genocidas já utilizadas ao longo das campanhas contra
os índios. Aqui nos deparamos com uma supressão mais frago-
rosa: a expropriação, deportação e dizimação dos nativos com o
fim de adquirir a terra muitas vezes cultivada graças ao trabalho
realizado por escravos negros, deportados da África ao longo de
uma viagem marcada por uma altíssima taxa de mortalidade. Este
capítulo da história não por acaso inspirou Hitler, que reconhecia
nos “indígenas” da Europa oriental os índios a serem expropria-
dos e dizimados com o objetivo de tornar possível a alemanização
dos territórios conquistados, enquanto os sobreviventes eram des-
tinados a trabalhar como os escravos negros a serviço da raça dos
senhores; pois bem, este capítulo da história, que abrange o arco
temporal do expansionismo colonial do Ocidente e sintetiza todo
o seu horror, não teria nada a ver, segundo Arendt, pelo menos
no que se refere à sua fase inicial americana, com a história do
colonialismo! (2).
Apoiada até pela alta cultura, a república norte-americana
pode entregar-se à autocelebração e proceder a uma contraposição
maniqueísta em relação à República Popular da China, o rival ou
o inimigo em potencial que deve ser condenado à autofobia, para
ser mais facilmente derrotado pelo universalismo imperial.

5.6. O silogismo de guerra do “universalismo” imperial

O universalismo imperial move uma espécie de silogismo de


guerra: há valores universais; deles, o Ocidente é o representante
e o único guardião e, por isso, é titular do direito de exportar esses
valores universais, eventualmente recorrendo até a uma guerra
soberanamente declarada. Esse silogismo de guerra – que norteia
as intervenções militares e as manobras de desestabilização dos
países a serem submetidos ao domínio neocolonial e imperial –
é manifestado na sua forma mais ingênua pelo presidente Bush
(2) Sobre a tendência de Arendt e de outros importantes autores ocidentais de alterar a história da
república norte-americana, e sobre o nazismo referir-se aos EUA como país defensor da white supre-
macy e do expansionismo colonial no Far West, ver LOSURDO (2005), cap. 1, § 7; (2007), cap. 3, § 4 e
cap. 7, § 7.

209
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

filho. Depois de ter apregoado a existência de um “sistema de va-


lores”, que não é uma criação humana, mas um conjunto de “va-
lores dados por Deus”, ele concluiu de modo inspirador: este é o
propósito da “nossa política externa”, da “nossa ação militar” (in:
FERGUSON, 2005, p. 105). Existem, portanto, valores que de tão
evidente e incontroversa universalidade conduzem diretamente a
Deus; eles se materializam no Ocidente (e de maneira totalmente
particular em seu país-guia); de modo que as guerras conduzidas
para difundir “valores dados por Deus” e universais devem ser
consideradas, em última análise, guerras santas. Mesmo que de-
monstrado com uma linguagem em geral mais sofisticada, esse si-
logismo de guerra se tornou quase um lugar-comum no Ocidente,
embora nunca tenha havido um silogismo mais incongruente nos
planos lógico e histórico.
Começamos a analisar aquela que poderia ser considerada a
premissa maior: existem valores universais. Sim, mas quais? Nem
mesmo no Ocidente entra-se em acordo ao defini-los. Se pensar-
mos em aborto, trata-se de uma prática que para alguns é expres-
são do direito intransferível da mulher de dispor livremente de si
e do próprio corpo, mas para outros é sinônimo de anulação total
dos direitos do nascituro. Considerações semelhantes poderiam
ser feitas em relação à eutanásia. Ou à pena de morte, em vigor
nos EUA, mas de modo frequente e muitas vezes severamente
condenada na Europa.
Deixemos de lado, no entanto, os delicados problemas de cons-
ciência que põem em causa a visão geral de mundo e, de algum
modo, a religião. Ocupemo-nos com temas que remetam direta-
mente à política em sua dimensão cotidiana. Tomemos a questão
da permissão de uso de armas: ela é realmente um direito irre-
nunciável do homem, como muitos pensam na república norte-a-
mericana, ou, ao contrário, comporta um inaceitável sacrifício de
vidas humanas no altar dos lucros da indústria de armas, como de
modo oposto pensa grandíssima parte da opinião pública do lado
de cá do Atlântico?
Agora voltemos a atenção aos “direitos sociais e econômicos”:
fazem parte do patrimônio dos valores universais defendidos pelo

210
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

Ocidente? Na realidade, vimos que a “liberdade de não passar ne-


cessidade” teorizada por F. D. Roosevelt é chamada por Hayek de
bizarra e antagônica em relação aos valores e à tradição ocidental,
e expressão da influência exercida pela oriental (ou orientalizan-
te) “revolução marxista russa”. Pois bem, do Ocidente autêntico
devemos expulsar aquele que, por quatro mandatos consecutivos,
foi eleito presidente do país-guia justamente do Ocidente, ou o
patriarca do neoliberalismo consagrado com o Prêmio Nobel de
economia em 1974 e mentor da política econômica de um outro
“grande” presidente estadunidense, isto é de Reagan? Na Europa
não faltam aqueles que preferiram expulsar Hayek, mas no en-
tanto continuaria a ser bem difícil contestar a tese deste último
referente ao papel desempenhado pelo movimento comunista na
promoção e realização dos “direitos sociais e econômicos”.
Nos anos 1990, argumentavam de maneira semelhante a Hayek
não poucas personalidades ilustres do mundo político estaduni-
dense. Leiamos esta declaração: “A América continua a ser a única
sociedade global e universal da história da humanidade”. Seria
preciso “devolver força aos valores e aos princípios que fizeram
com que se tornasse única a sociedade americana” e acabar com o
“Estado assistencial que violou a natureza humana e transformou
os cidadãos em clientes, submetendo-os à burocracia e a regras
contrárias ao trabalho, à família, às oportunidades individuais e
aos direitos de propriedade”. Mais que reformado, o Welfare State
devia ser eliminado (GINGRICH, 1995). Aqui, o Ocidente parecia
mais fragmentado do que nunca: os valores americanos eram de-
finidos em contraposição ao Estado de Bem-Estar Social europeu,
mas também aos “direitos sociais e econômicos” sancionados na
Declaração Universal dos Direitos do Homem adotada pela ONU em
1948. Se considerarmos este último ponto, o Ocidente autêntico,
que aos olhos de Gingrich se materializa nos EUA, seria a antítese
do universalismo ou pelo menos da Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem. Com linguagem mais vaga, Brzezinski (1998, p. 39)
confirmou o mesmo conceito: “o Velho Continente deveria imitar
a cultura econômica americana, mais rude e competitiva” e em
seguida virar as costas ao “Estado de Bem-Estar Social”.

211
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Naquele mesmo período, observando as duas margens do


Atlântico, um autor francês de renome falou de dois “sistemas de
valores” opostos, porém nesse caso para elogiar a Europa em de-
trimento dos Estados Unidos, caracterizados pela perversa “ten-
dência a ver no desempregado se não um incurável indolente,
pelo menos um indivíduo ao qual faltou coragem para se adap-
tar às condições do mercado de trabalho”, logo um fracassado
(ALBERT, 1991, p. 26 e 13). A esse tipo de darwinismo social se
contrapôs o modelo europeu de capitalismo fundado na “econo-
mia social de mercado”, na solidariedade, um modelo capaz de
impor “valores sociais diferentes daqueles do dinheiro”, de reduzir as
“desigualdades” e alcançar um certo grau de “segurança” social
(IDEM, p. 138, 123 e 169). Tratava-se de um modelo, o europeu,
ou “renano” – como foi aqui definido – que não perdeu de vista o
“interesse coletivo”, mas nem por isso foi condescendente com o
“coletivismo” ou com a “economia centralizada”; foi um modelo
que realizou uma “economia ‘social’” por meio de “uma síntese
bem sucedida entre capitalismo e social-democracia” (IDEM, p.
145-146). É bom logo assinalar que a ideologia acima exposta não
era a de um intelectual isolado. Ao comentar a revolta negra de
Los Angeles, o presidente francês François Mitterrand declarou
que ela representava “o resultado” de uma “teoria política extre-
mamente conservadora, liberal em economia”, e da falta de uma
legislação social bem presente na Europa (in: BENEDETTO, 1992).
Foram os anos em que a Europa se encontrava numa condição
de algum modo eufórica: a derrocada do “campo socialista” e o
profundo alquebramento da Rússia abriram-lhe um espaço enor-
me de ampliação e de propagação ao Leste; ainda não haviam sur-
gido as dificuldades do processo de unificação nem se delineado
claramente a ascensão dos países emergentes e o fabuloso renas-
cimento da China. Nessas circunstâncias, o Velho continente se
iludia pensando desempenhar um papel geopolítico de primeirís-
simo plano e, portanto, não hesitou em disputar a primazia moral
e política com seu aliado do outro lado do Atlântico. Por algum
tempo, mesmo dentro do Ocidente, o monoteísmo dos valores no-
vamente cedia lugar ao politeísmo. Depois se produziram sensí-

212
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

veis alterações na situação, e a unidade do Ocidente se consolidou


sob a liderança da república norte-americana. No entanto, entre as
duas margens do Atlântico continuou sendo relevante a diferença
de abordagem no que se refere ao Estado de Bem-Estar Social e
aos direitos sociais e econômicos, mesmo se, com o olhar direcio-
nado para os países emergentes e em particular para a China, o
monoteísmo dos valores voltava ao topo e se configurava como
um universalismo agressivo.
O que se deve entender por valores universais? O discurso hoje
dominante no Ocidente interpreta a universalidade como um con-
junto de valores irrenunciáveis em toda parte e em qualquer cir-
cunstância. Mas essa noção foi contestada no final do século XVIII
por ninguém menos que Adam Smith. Este observa que a escravi-
dão pode ser abolida mais facilmente em um “governo despótico”
do que em um “governo livre”, com os seus organismos represen-
tativos exclusivamente destinados aos proprietários brancos.
Desesperada é, nesse caso, a condição dos escravos negros:
“toda lei é feita por seus patrões, os quais nunca deixarão passar
uma medida que lhes seja prejudicial”. E, por isso: “A liberdade
do homem livre é o motivo da grande opressão dos escravos (...).
E, dado que eles constituem a parte mais numerosa da população,
nenhuma pessoa dotada de humanidade desejaria a liberdade
em um país no qual foi estabelecida essa instituição” (A. SMITH,
1982, p. 452-453 e 182). Com efeito, muitas décadas mais tarde, no
Sul dos Estados Unidos a escravidão foi abolida depois de uma
guerra sanguinária e da ditadura militar imposta pela União sobre
os estados secessionistas e escravistas; quando a União desiste do
punho de ferro, os brancos novamente recuperam, sim, o autogo-
verno local e os negros retornam a uma condição semisservil.
Aos olhos de Smith, não apenas a liberdade dos negros, mas
também o self government e a negação do “governo despótico”
representavam os valores universais; só que, em uma situação
histórica concreta em que certos valores universais entravam em
conflito com outros, ele considerou que devia ser fixada uma es-
cala de prioridades. Poderia se dizer que nos dias atuais um país
como Cuba procede de maneira parecida: por séculos submetida

213
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

primeiro ao domínio colonial espanhol e, depois, ao protetorado


estadunidense, vítima em 1961 de uma tentativa de invasão, as-
sediada e ameaçada por uma superpotência que no passado ten-
tou várias vezes assassinar o líder da ilha rebelde, Cuba é de fato
obrigada a fixar entre os diversos valores universais uma escala
de prioridades, no topo da qual vem obviamente o valor, também
universal, da independência e dignidade nacional. Considerações
semelhantes poderiam ser feitas em relação a outros países.
De outra parte, um ilustre filósofo estadunidense contemporâ-
neo, ao teorizar sobre a subordinação da igualdade à liberdade,
submete a uma importante cláusula limitativa o princípio por ele
formulado, considerando-o válido apenas “para além de um nível
mínimo de renda” (RAWLS, 1982, p. 441). É uma formulação que
soa como uma justificação da política empreendida particular-
mente pelos governantes da República Popular da China: eles até
agora colocaram ênfase sobre o direito à vida e sobre a retirada da
miséria de centenas de milhões de pessoas – valores cuja universa-
lidade é difícil de contestar – mais do que sobre a democratização
em relação à qual, no entanto, declaram não pretenderem renun-
ciar e em relação à qual não negam o atributo de universalidade,
mesmo que se trate de uma universalidade que agora deve respei-
tar as peculiaridades nacionais. Mesmo depois dos êxitos espeta-
culares obtidos no âmbito econômico, os governantes chineses de-
vem levar em conta duas emergências, ou possíveis emergências,
a serem enfrentadas: o cerco militar realizado pela superpotência
que faz de tudo para estimular no grande país asiático todo e qual-
quer possível movimento separatista e toda e qualquer possível
dissidência; a disparidade inerente ao fato de ter que alimentar
um quinto da humanidade, mesmo tendo apenas 7% da superfície
cultivável e da água doce disponíveis em nível mundial.
Obviamente, se não as prioridades fixadas pelos governantes
cubanos ou chineses (ou vietnamitas etc.), podem ser colocados
em discussão os períodos de efetivação dos diversos valores uni-
versais, mas talvez devessem dar provas de menos presunção os
defensores da Cruzada democrática que nos EUA na primeira
ocasião relativizam amplamente o princípio e o valor universal do

214
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

rule of law (Estado de Direito), como demonstram Guantánamo, a


prática da rendition e a “kill list” semanal de Obama.

5.7. Universalismo e etnocentrismo exaltado?

Equivocada é a concepção da universalidade própria do dis-


curso hoje dominante. Mas muito mais absurda é a pretensão de
fazer do Ocidente o seu representante privilegiado ou exclusivo.
Mesmo querendo ignorar o aviso de Rawls e pretendendo se con-
centrar exclusivamente na liberdade formal como é compreendi-
da pela tradição liberal, vejamos qual foi o destino reservado à
liberdade de imprensa e de expressão ao longo da guerra contra
a Iugoslávia. Na noite de 23 para 24 de abril de 1999, para con-
cluir uma ação ordenada e reivindicada pelos mais altos coman-
dos, os aviões estadunidenses e europeus destruíram o edifício
da televisão sérvia, matando e ferindo gravemente dezenas de
jornalistas e funcionários que nela trabalhavam. Não se trata de
um caso isolado: “No momento provavelmente mais difícil para
o front dos rebeldes, a Otan voltou a bombardear violentamente a
região de Trípoli na tentativa de impedir a propaganda de Gadda-
fi”; as bombas atacaram desta vez a televisão líbia, silenciada me-
diante a destruição das estruturas e do assassinato dos jornalistas
(CREMONESI, 2011d). Além de violar a Convenção de Genebra
de 1949, que proíbe ataques deliberados contra a população civil,
tais condutas desrespeitaram a liberdade de imprensa a ponto de
condenar à morte os jornalistas de TV iugoslavos e líbios acusados
de não compartilharem da opinião dos chefes da Otan e de persis-
tirem em condenar o ataque sofrido por seu país.
É conhecida a resposta que gostam de dar os dirigentes políticos
e militares do Ocidente, mas também os defensores do papel do
Império: colocando-se a favor de Milosevic ou de Gaddafi (e in-
diretamente da sua política “genocida”), os jornalistas sérvios e
líbios não se limitaram a expressar uma opinião, mas instigaram a
um delito e, por isso, cometeram um crime. Poderia ter sido o mo-
mento para um debate sobre o papel da imprensa e dos meios de
comunicação em geral: qual o limite que separa a liberdade de opi-

215
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nião e de informação da instigação ao crime? Para dar apenas um


exemplo, não há dúvida de que as chamadas de capa dos jornais,
as rádios, as televisões chilenas, às vésperas do 11 de setembro de
1973 postas a serviço da CIA e por ela suntuosamente financia-
das, desempenharam um papel golpista e criminoso, se tornaram
corresponsáveis pelos crimes cometidos pelo regime imposto por
Augusto Pinochet e pelos governantes de Washington (CHIERICI,
2013, p. 39). Este debate nunca foi realizado. Se ele tivesse ocorri-
do, antes de terem sido assassinados, os jornalistas sérvios teriam
podido argumentar aos seus acusadores: como responsáveis por
crimes deveriam ser designados, na sua imensa maioria, os jorna-
listas ocidentais; estes justificaram ou enalteceram a ação da Otan
(desencadeada contra a Iugoslávia sem a aprovação do Conselho
de Segurança da ONU e, por isso, contrária ao direito internacio-
nal) e os seus bombardeamentos (muitas vezes com urânio empo-
brecido), que sistematicamente destruíram infraestruturas civis e
não pouparam pessoas inocentes, mulheres e crianças. E de ma-
neira semelhante, com alguma variação, antes de terem sido assas-
sinados, os jornalistas líbios poderiam ter argumentado.
Ao invés de um debate preferiu-se o recurso às bombas e, em
última análise, ao pelotão de fuzilamento. Soberanamente, o Oci-
dente e a Otan decidem o que é uma opinião e o que se caracteriza
como crime, pois dispõem de aparato militar (e multimidiático)
mais potente; assim, os mais fracos podem expressar a sua opinião
apenas por sua própria conta e risco. O que pensar de uma “liber-
dade de expressão” que pode soberanamente ser anulada pelos
donos do mundo justamente quando ela seria mais necessária, por
ocasião de guerras e de grotescos conflitos?
No tema da liberdade de expressão e de imprensa há uma cir-
cunstância que dá o que pensar: entre os jornalistas mais famosos
da atualidade se inclui Julian Assange, que com o WikiLeaks trou-
xe à luz, entre outros, alguns crimes de guerra cometidos pelos
contractors estadunidenses no Iraque; e Gleen Greenwald, que cha-
mou a atenção para a rede universal de espionagem criada pelos
EUA. O primeiro, por conveniência, foi acusado de violência sexu-
al e, temendo ser extraditado para o outro lado do Atlântico, refu-

216
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

giou-se na embaixada do Equador em Londres; o segundo, mes-


mo não tendo sido submetido a nenhuma medida judicial, parece
aterrorizado e no Rio de Janeiro “vive mudando constantemente
de casa, número de telefone e de e-mail” (MOLINARI, 2013b).
Acrescente-se a isso que a fonte do primeiro jornalista (Bradley
Manning) está na prisão, onde corre o risco de passar o resto de
sua vida, enquanto a fonte do segundo (Edward Snowden), em-
bora refugiado em Moscou, não se sente completamente seguro e
vive em uma espécie de clandestinidade.
Um valor clássico da tradição liberal é também o Estado de Di-
reito. Deste não desfrutam aqueles que – suspeitos de terrorismo
– são submetidos, por drones, a uma execução extrajudiciária, ou
os “bárbaros” presos em Guantánamo. Entre 2002 e 2003 a sua
condição foi assim descrita por jornalistas ocidentais, sem relação
com qualquer forma de antiamericanismo: os detentos são presos,
sem julgamento, sem possibilidade de defesa e sem poder se co-
municar com a própria família. São obrigados a viver, ou melhor
a vegetar, em “um canil para humanos”. Ou melhor, em algo que
é muito pior: só um sádico exporia um cão ao “calor abrasador
das celas feitas de chapas metálicas”. A tudo isso se acrescentam
as torturas: são “obrigados a ficar em pé por dias inteiros”; “obri-
gados a ficar de joelhos por dias inteiros”, “obrigados a ficar em
posições dolorosas por dias inteiros”, “cegueira imposta com um
capuz negro”, “privação do sono com ‘bombardeamento’ de luz”.
Desse inferno os presos procuram fugir com o suicídio, e por ele
passaram também dois idosos, de 88 e de 98 anos, e algumas crian-
ças entre 13 e 15 anos (cf. LOSURDO, 2007, cap. 6, § 2). Mesmo se
quisermos desconsiderar os “bárbaros”, nem mesmo os cidadãos
estadunidenses, incluídos nas “kill list”, desfrutam da proteção do
Estado de Direito.
Ao quadro aqui traçado pode-se argumentar ressaltando que
em outros países, de fora do Ocidente, a liberdade de imprensa e
o Estado de Direito se encontram em piores condições, ou reme-
tendo à gravidade do perigo que a partir do 11 de setembro pesa
sobre os EUA. Mas estamos seguros de que o maior grau de pro-
teção da liberdade e da garantia do Estado de Direito na república

217
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

norte-americana não depende em primeiro lugar de uma situação


geopolítica e militar relativamente mais favorável? Trata-se de um
país que é protegido contra a invasão ou o perigo de invasão e
que, antes do ataque às torres gêmeas, se considerava invulnerá-
vel. Não por acaso após o 11 de setembro – um ataque que, apesar
de sua gravidade, foi muito menos importante se o compararmos
às invasões sofridas por países como a União Soviética e a China
– foram aprovadas medidas restritivas de liberdade e uma indubi-
tável violação do princípio do rule of law (Estado de Direito).
Aliás, não é nada nova a pretensão do Ocidente e do seu atual
país-guia de se mostrarem como defensores dos valores univer-
sais, a começar pelo da liberdade; e não é de hoje que tal pretensão
se revela destituída de qualquer credibilidade. Já em 1809 Jeffer-
son enaltecia os EUA como “um império para a liberdade” e como
um modelo para o mundo inteiro. Expressou-se dessa maneira
um proprietário de escravos, no plano pessoal bastante inescru-
puloso para vender separadamente, como simples mercadorias,
os escravos ligados por laços familiares. No plano mais estrita-
mente político, ele se empenhou orgulhosamente em submeter
a um devastador embargo e em “sujeitar à morte por inanição”
os protagonistas da grande revolução que em Santo Domingo, no
Haiti, aboliu a escravidão negra e viu o surgimento do primeiro
país do continente americano a se livrar dessa instituição e dessa
vergonha. Mas tudo isso não impediu Jefferson de apresentar-se
a si mesmo e o seu país como defensores do valor da liberdade
(LOSURDO, 2005, cap. 8, § 3 e cap. 5, § 8).
Façamos agora um salto de quase oito décadas. Quando, entre
1880 e 1886, foi erguida a Estátua da Liberdade que domina a baía
de Nova Iorque e que devia servir de inspiração e de orientação
para o mundo inteiro, recrudesceu sobre os negros o regime ter-
rorista de white supremacy e os peles-vermelhas foram definitiva-
mente aniquilados da face da terra. E novamente não provocou
nenhum embaraço a discrepância entre ideologia, de um lado, e
realidade das relações sociais e raciais, de outro.
Chegamos, enfim, aos dias de hoje. Inaugurado o seu primei-
ro mandato presidencial, Clinton sentenciou: a América é “a mais

218
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

antiga democracia do mundo”, e ela “deve continuar a comandar


o mundo”; “a nossa missão é atemporal”. O título de democracia
atribuído aos EUA já no momento de sua fundação passou discre-
tamente ao largo do genocídio das populações indígenas e a escra-
vidão dos negros (que, no entanto, constituíam 20% da população
total). Estamos diante de uma visão que é transmitida de presi-
dente para presidente; mas de qual universalidade pode ser re-
presentante um país que continua a se autoenaltecer como “a mais
antiga democracia do mundo”, considerando irrelevante o horrí-
vel destino imposto às populações coloniais e de origem colonial?
E não se trata de um acontecimento já acabado e recuado no tem-
po. Os EUA afirmam ter desempenhado no século XX um papel
inequivocamente positivo como representantes do valor universal
da liberdade. Mas há alguns anos a “comissão pela verdade” ins-
tituída na Guatemala acusou a CIA de ter ajudado intensamente
a ditadura militar a cometer “atos de genocídio” em prejuízo dos
índios maia, acusados de simpatizantes dos opositores do regime
caro a Washington (NAVARRO, 1999). Diversos exemplos pode-
riam ser dados, remetendo a outros países da América Latina, ao
Vietnã etc. O fato é que a “democracia” continua a ser definida e
enaltecida de um modo nada universal, isto é, sempre desconside-
rando o destino imposto aos povos coloniais ou de origem colo-
nial. Servem obviamente para o Ocidente em geral as considera-
ções aqui desenvolvidas em relação ao seu país-guia.
Para concluir: quando um único país e uma única civilização
(cada um e cada uma com os seus pontos fortes e fracos, as suas
páginas gloriosas e indignas) pretende ser a encarnação da univer-
salidade, na verdade acaba sendo a sua negação. A atual situação
internacional é caracterizada por uma contradição de fundo: por
um lado, generalizados são a exigência e o fascínio do universalis-
mo, por outro, pretendendo ser o seu representante privilegiado
ou exclusivo, está um país que se autoapresenta como a “nação
escolhida” por Deus ou como a única “nação indispensável” e que
reivindica para si o “excepcionalismo”; em outras palavras: quem
agita com particular empenho a bandeira do universalismo é o
país que encarna o etnocentrismo mais exaltado.

219
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

A reivindicação do “excepcionalismo”, em certa medida apro-


vada pelo Ocidente em seu conjunto, e especialmente pelo seu país-
-guia, não encontrou opositores nem mesmo na alta cultura. Pegue-
mos o filósofo cujo pensamento poderia ser sintetizado no slogan:
Universalismo ou barbárie! Pois bem, para Leo Strauss – de quem
se fala –, à exaltação do universalismo se associa tranquilamente a
do “homem ocidental” (STRAUSS, 1998b, p. 323). Como se fossem
a mesma coisa! E não é tudo: ao render homenagem à “alma do Oci-
dente”, ele especifica que se trata “em particular do Ocidente anglo-
-saxão” (STRAUSS, 1999, p. 358). Assistimos aqui a duas sucessivas
reduções do universalismo, identificado primeiro com o Ocidente
e depois com o “Ocidente anglo-saxão”. Sobrevém uma terceira re-
dução, por meio da qual do “Ocidente anglo-saxão” se passa final-
mente à “experiência americana”. Mas como explicar este último
acontecimento? Strauss destaca “a diferença entre uma nação, con-
cebida na liberdade e dedicada ao princípio segundo o qual todos
os homens são criados iguais, e as nações do velho continente, que
certamente não foram concebidas na liberdade” (STRAUSS, 1998a,
p. 43-44). Desse quadro hagiográfico foram retirados o aniquila-
mento dos ameríndios, a escravidão dos afro-americanos e o regime
da terrorista supremacia branca que tomou o lugar da escravidão
propriamente dita e continuou a se alastrar ainda nas primeiras
décadas do século XX. Além disso, Strauss procede à sua acrítica
celebração justamente nos anos em que os Estados Unidos manti-
veram ou instauraram no continente americano (e em outros países
do mundo) ditaduras militares, ferozes internamente, mas no plano
internacional servis em relação ao Grande Irmão.
Observando bem, o “universalismo” aqui debatido é apenas a
reelaboração do mito genealógico que desde sempre acompanha
a história dos Estados Unidos, enaltecidos como a “Cidade sobre a
Colina”, um exemplo para o mundo inteiro como o país revestido
de um providencial “destino manifesto”, como a “nação escolhi-
da” por Deus. Bem se compreende que Strauss tenha servido de
inspiração ao neoconservadorismo estadunidense e às guerras por
este ocasionadas em nome da exportação da democracia e da rea-
firmação do seu valor universal.

220
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

E agora damos a palavra ao teórico da sociedade aberta que,


começando pela vitória da Aliança na Primeira Guerra Mundial,
assim procede à exaltação do Ocidente (do qual é arbitrariamente
excluída a Alemanha):

“A ideologia ocidental (...) era a verdade. O Ocidente lutava pela


paz: conquistou-a naquela Europa que, desde o início da história
humana, sempre foi atormentada pelas guerras, e a conquistou
quase em todos os lugares em que os europeus ocidentais ti-
nham tido uma influência” (POPPER, 1992a, p. 94).

É tão enganadora a transfiguração do Ocidente (oportu­nisti­


camente depurado da Alemanha de Guilherme II, além de Hitler)
que as empresas coloniais, por mais sanguinárias que possam ter
sido, são de fato consideradas como uma contribuição para a cau-
sa da paz. Quem enaltecesse nesses termos um único país seria
com razão acusado de chauvinista delirante, mas não muda nada
se a auréola de santo, ao invés de um único país, cingir uma única
área de civilização.
Enfim, ao lado de Hayek, o atual pai fundador e autor de re-
ferência do neoliberalismo é Ludwig von Mises. Vejamos como
ele procedeu quando se encontrou diante de um momento emba-
raçante da tradição liberal. Trata-se do período em que J. S. Mill
(1981, p. 130) justificou ou enalteceu as guerras do ópio como Cru-
zadas pela liberdade: “a proibição de importar ópio na China” vio-
la a “liberdade (...) do comprador” antes ainda do que a “do pro-
dutor ou do vendedor”. Ao invés de se distanciar dessa veemente
defesa dos britânicos narco-traficantes de Estado, Mises (1922, p.
220-221, nota) reforçou: “Do ponto de vista dos liberais não é lícito
colocar obstáculos nem mesmo ao comércio de venenos, pois cada
um é chamado a rejeitar, por livre escolha, os prazeres danosos ao
seu organismo, e tudo isso não é tão infame e vulgar como sus-
tentam os autores socialistas e anglófobos”. Da mesma forma que
para J. S. Mill, também para Mises os protagonistas das guerras do
ópio eram os defensores dos valores universais da liberdade e da
“livre escolha” do consumidor. Mas três anos antes da publicação

221
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

do texto de Mises, aqui citado, ocorreu o triunfo do proibicionis-


mo justamente nos Estados Unidos, tão estimados pelo profeta
do neoliberalismo. Porém, este não parecia disposto a autorizar a
China a invadir o país que se opunha ao livre comércio de bebidas
alcoólicas. E nem mesmo estava disposto a considerar como mis-
sionários da liberdade os chefes mafiosos, mesmo fortemente em-
penhados – como os soldados britânicos há algumas décadas atrás
– em afirmar o princípio da liberdade de consumidor e da livre
circulação, neste caso de um tipo de consumo (o álcool) bem mais
difundido que o ópio. E, portanto, a aclamada universalidade das
normas só é válida num único sentido; e a lei do mais forte é que
impõe a sua aplicação. Clara está a dificuldade, ou incapacidade,
de formular e de reconhecer regras gerais e de pensar em termos
universais, e ainda mais clara está a tendência de tachar de univer-
salismo aquilo que na realidade é um etnocentrismo exacerbado.

5.8. Fervor democrático e cínica Realpolitik

E chegamos assim à conclusão do silogismo de guerra, a que


autoriza o Ocidente a estimular a difusão dos valores universais
e irrenunciáveis dos quais seria guardião, mesmo por meio do re-
curso à força, seja da guerra econômica ou da guerra em si. É uma
conclusão que pode ser contestada de várias formas. Pode-se pôr
em dúvida o conceito de democracia. Por exemplo, a imprensa
italiana e internacional está cheia de artigos ou de tomadas de po-
sição enaltecendo, ou pelo menos justificando, a atuação de Isra-
el: depois de tudo – afirma-se –, aquele é o único país do Oriente
Médio no qual perduram a liberdade de expressão e de associação
e o Estado de Direito, no qual atua um regime democrático. Mas
de tudo isso continuam excluídos os palestinos. E eis que se esbo-
çam duas abordagens contrapostas: a democracia da qual Israel
se vangloria torna legítimos a expropriação da terra palestina, a
imposição de um regime de ocupação militar em detrimento dos
expropriados e o direito de vida e de morte sobre os resistentes, ou
o domínio colonial exercido sobre o povo palestino torna ridícula
a pretensão de Israel de ser uma democracia? Podemos fazer essa

222
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

mesma pergunta em relação aos EUA e ao Ocidente em seu con-


junto: a democracia de que se vangloriam os autoriza a bombarde-
ar ou a desmembrar cada Estado por eles soberanamente definido
Estado-pária (ou bandido ou antidemocrático) ou a condenar à
fome ou à inanição a sua população, ou tudo isso é a demonstra-
ção do caráter antidemocrático daqueles que pretendem exercer
um despotismo planetário?
Ou então, pode-se contestar a conclusão do silogismo de guer-
ra remetendo ao padrão duplo do qual dão provas os pretensos
defensores do triunfo da democracia em escala planetária. Tome-
mos o caso do Irã, que por muito tempo foi (e poderia rapidamen-
te voltar a ser) o inimigo número um do Ocidente: apesar de tudo,
com o seu pluripartidarismo e a sua vigorosa dialética política, o
atual regime é bem mais democrático do que o do xá que o ante-
cedeu e que foi imposto pelos EUA e a Grã-Bretanha, depois de
ter derrubado com um golpe de Estado Mohammad Mossadeq, o
presidente democraticamente eleito, que respeitava as regras de-
mocráticas e era um fervoroso admirador de Gandhi. Ainda nos
restringindo exclusivamente aos dias atuais: mesmo vivendo sob
a ameaça de uma guerra (aliás, já iniciada na forma de cyberwar
com o assassinato dos seus cientistas), o Irã dificilmente pode ser
considerado mais autoritário e mais teocrático que a Arábia Saudi-
ta, apoiada diplomaticamente e armada até os dentes pelos vários
governos que se sucedem em Washington.
Mesmo que válidas e incontestáveis, as habituais objeções à
conclusão do silogismo de guerra aqui analisado se equivocam ao
não colocarem a pergunta principal: com a sua política o Ocidente
facilita ou atrapalha a difusão da democracia? Em 1787, às véspe-
ras do lançamento da Constituição federal, Alexander Hamilton
explicou que a limitação do poder e a instauração do Estado de
Direito tinham tido êxito em dois países insulares, Grã-Bretanha e
EUA, graças à miríade de medidas contra as ameaças das potên-
cias rivais. Se tivesse falhado o projeto de União e sobre as suas
ruínas tivesse irrompido um sistema de Estados semelhante ao
existente no continente europeu, teriam surgido também na Amé-
rica os fenômenos do exército permanente, com um forte poder

223
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

central, e até do absolutismo: “Veremos, assim, em curto espaço


de tempo, bem firmes em nosso país inteiro, aqueles mesmos ins-
trumentos de despotismo que arruinaram o Velho Mundo” (The
Federalist, art. 8).
Se não os dirigentes estadunidenses (e ocidentais), em todo
caso os seus conselheiros conhecem essa citação e não podem dei-
xar de apreciar a sua sagacidade. Com efeito, embora protegida
pelo Atlântico e pelo Pacífico, toda vez que com ou sem razão se
sentiu em perigo, a república norte-americana reforçou de manei-
ra mais ou menos drástica o seu poder executivo e impôs uma res-
trição mais ou menos pesada às liberdades de reunião e de expres-
são. Isso vale para os anos imediatamente seguintes à Revolução
Francesa (quando os seus partidários em terra americana foram
atingidos pelas duras medidas previstas nos Alien and Sedition Acts
“Atos sobre sedições e estrangeiros”), para a Guerra de Secessão, a
Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão, a Segunda Guerra
Mundial, a Guerra Fria, a situação que foi criada após o ataque às
torres gêmeas.
Para dar um exemplo particularmente forte, o que aconteceu
com as tradicionais liberdades liberais depois do lançamento, em
16 de maio de 1918, do Espionage Act? Com base nele podia-se
ser condenado até a vinte anos de prisão para alguém que se
expressasse “de modo desleal, desrespeitoso, vulgar ou abusi-
vo em relação à forma de governo dos Estados Unidos, ou en-
tão em relação à Constituição dos Estados Unidos, ou às forças
militares ou navais dos Estados Unidos, ou à sua bandeira (...),
ou ao uniforme do exército ou da marinha dos Estados Unidos”
(COMMAGER, 19637, vol. 2, p. 146). Ou então, vejamos de que
modo o outro país ainda mais representativo da tradição libe-
ral enfrentou a revolta independentista na Irlanda do Norte nos
anos 1970: a Grã-Bretanha constituiu um corpo militar secreto,
cujos membros dispunham de “uma licença permanente para
matar civis” (International New York Times, 2013a). Os países ex-
-coloniais atualmente atacados ou ameaçados de agressão pelo
Ocidente correm riscos bem mais graves; não é de se espantar
se os governantes daqueles países se defrontem com o Estado

224
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

de exceção preocupando-se pouco, ou em nada, com a regra da


limitação de poder, expressa pelos clássicos do liberalismo para
uma situação de normalidade.
Se os governantes de Washington (e de Bruxelas) realmente
levassem a sério a sua Cruzada democrática, procurariam de
todo modo reforçar a tranquilidade geopolítica e o sentido de
segurança dos países em relação aos quais declaram pretender
promover uma evolução democrática. Mas eles se comportam
de modo exatamente oposto. Não vale a pena insistir em relação
à arma apontada (neste caso em sentido quase literal), por mais
de meio século, para a cabeça de Cuba e de seus governantes.
Vamos pegar o caso da China: depois que intervieram na guerra
civil para impedir que se completasse a sua reunificação nacio-
nal, os Estados Unidos em várias ocasiões ameaçaram recorrer
ao uso de arma atômica. O grande país asiático foi de fato aliado
dos EUA ao longo da última fase da Guerra Fria. Mas, tão logo
esta terminou, a superpotência única – como reconheceu tran-
quilamente um estudioso que foi conselheiro do vice-presidente
Dick Cheney – com suas forças navais e aéreas violou “impune-
mente” e sem escrúpulos “o espaço aéreo e as águas do território
da China” (FRIEDBERG, 2009, p. 20-21). Nos dias de hoje, essas
violações se tornaram mais difíceis, e eis que então se aplica o
“pivot”, o deslocamento para o Pacífico de grande parte do mais
gigantesco aparato militar que já viu a história.
Podia-se dizer que os governantes de Washington tenham com-
preendido perfeitamente a lição de Hamilton, mas para aplicá-la
às avessas: uma situação de tranquilidade geopolítica é o pressu-
posto do desenvolvimento do Estado de Direito e da democracia?
Pois bem, as bases militares cada vez mais fortalecidas e um nú-
mero crescente de aviões e de navios de guerra não podem deixar
de causar preocupação para a China, sobre a qual, como sabemos,
continua a pesar a ameaça de um ataque nuclear tão devastador
a ponto de levá-la à impossibilidade de reagir; nessas condições,
o desenvolvimento da democracia torna-se impossível ou muito
mais problemático. Mas muito mais força adquiriu a Cruzada “de-
mocrática” proscrita pelos EUA e por seus aliados!

225
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

A tranquilidade geopolítica sobre a qual Hamilton chama a


atenção é apenas uma das condições essenciais para o desen-
volvimento do Estado de Direito e da democracia; a outra cons-
titui-se da ausência de conflitos internos dilacerantes e da pro-
teção contra uma condição de miséria generalizada e desespe-
radora. Disso estavam cientes os Pais Fundadores dos EUA que
olhavam como um pesadelo as metrópoles europeias e a plebe
maltrapilha, esfomeada e violenta nelas existente. Não há dú-
vidas: o Estado de Direito e a democracia dificilmente podem
se estabelecer em um país em condições de extrema miséria.
Essa verdade, óbvia para qualquer um que tenha um mínimo
de familiaridade com a análise histórica e sociológica, foi re-
centemente reforçada por Rawls, filósofo estadunidense já cita-
do: a prioridade da liberdade vale apenas para um país acima
de um certo nível de renda (não muito baixa). E, novamente, é
como se os governantes de Washington aplicassem essa lição às
avessas. Por declaração explícita de seus expoentes, decretando
embargo contra a República Popular da China, a administra-
ção Truman se propunha não apenas a levar o nível de vida
“abaixo da linha de miséria”, mas também a provocar “revol-
tas populares” e um “estado de caos”, “catástrofe”, “colapso”
(ZHANG, 2001, p. 20-22, 25 e 29). Essa política continuou a ser
aplicada por muito tempo contra a China, e por muito tempo
se ameaçou lançar medidas que eram o “equivalente comercial
de um ataque nuclear” (cf. mais adiante § 6.1). Pelo contrário,
se observarmos bem, a situação não mudou radicalmente nem
mesmo atualmente: a China continua de fato vivendo sob ame-
aça de um bloqueio naval ou de um bloqueio no abastecimento
de energia, com consequências literalmente catastróficas para
a economia e os habitantes do país mais populoso do mundo
e, obviamente, para a própria ordem pública. Pois bem, ainda
segundo Hamilton, toda vez que está em perigo “a manutenção
da paz pública”, seja ela ameaçada por “ataques externos” seja
por “possíveis revoltas internas”, é chamado a enfrentar essa
situação um grande poder, inclusive sem “vínculos constitucio-
nais de qualquer tipo” (The Federalist, art. 23).

226
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

É como se os defensores da Cruzada democrática – ameaçando


com um terrível aparato de destruição e morte determinados
países perseguidos, e se necessário tratando de submetê-los à
fome e se empenhando em desestabilizá-los por dentro – fizessem
todo o possível para impedir o seu real êxito: Isso seria simples
ingenuidade ou cínica Realpolitik? A essa pergunta pode-se acres-
centar uma outra: a república norte-americana reagiu ante a ame-
aça de terrorismo utilizando mecanismos como Guantánamo, as
“listas da morte” semanais, o panóptico universal e a prática de
rendition? Pois bem, o que seria da democracia estadunidense se,
invertendo-se a situação atual, fosse a China que cercasse e asse-
diasse os EUA com potentes bases militares, atiçando fogo em
todo conflito interno e ao mesmo tempo fazendo pesar sobre eles
a ameaça de um ataque nuclear devastador e definitivo, ou pelo
menos de um bloqueio naval suscetível de submeter um país intei-
ro à fome e ao desespero?
Vimos analistas e estrategistas ocidentais de alguma forma
zombando dos “cibertontos”, isto é, daqueles que levam tremen-
damente a sério a publicidade referente à “espontaneidade” da
internet, sem se darem conta da dimensão geopolítica da Rede (cf.
§ 3.4). Na realidade, no plano político vem se desenvolvendo uma
dialética semelhante àquela claramente em ação no plano militar.
Mesmo recorrendo, inclusive nessa ocasião, a um duplo padrão,
o Ocidente declara querer impedir a proliferação das armas de
destruição em massa; na realidade, faz de tudo para fomentá-la.
Teriam sido atacados o Iraque de Saddam e a Líbia de Gaddafi
se tivessem tido à sua disposição uma crível dissuasão de armas
nucleares ou químicas? Uma consideração semelhante pode-se fa-
zer a propósito da democracia da qual EUA e União Europeia se
mostram defensores. Contrariamente aos mitos difundidos pela
ideologia e pelo poder dominantes, o que validou o trágico fim
de Milosevic foi a democracia e não a sua ausência. Citando fon-
tes jornalísticas de grande credibilidade no Ocidente, vimos que
na Iugoslávia em 2000 havia “17 partidos antiMilosevic”, que ti-
nham à disposição montanhas de dólares, instrumentos técnicos
sofisticados, conselheiros e agentes, e que poderiam tirar proveito

227
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

das ameaças e chantagens e das campanhas de desinformação e


desestabilização colocadas em ação pelo Ocidente (cf. § 4.5). Foi
a democracia que tornou possível a ampliação da superpotência
e da arrogância imperialistas que levaram aos golpes de Estado
no Chile em 1973, na Iugoslávia em 2000, na Venezuela em 2002.
Qualquer que seja a conclusão a que se queira chegar em relação
a isso, é preciso tomar nota de uma verdade amarga: se realizada
prematura e ingenuamente, a democratização de um país pode
significar um caminho livre para manobras desestabilizadoras e
golpistas e permitir o triunfo da ditadura planetária do imperia-
lismo. É a confirmação de que não possui nenhuma credibilidade
uma profissão de fé democrática que não lute em primeiro lugar
pela democratização das relações internacionais.

5.9. “Universalismo” ou “excepcionalismo”?

A tragédia e o horror dos dois conflitos mundiais fizeram sur-


gir entre os povos do mundo uma generalizada aspiração à ins-
tauração de um sistema internacional e supranacional. Mas por
quais razões isso encontra tantas dificuldades? O maior obstáculo
é compreensivelmente constituído pelo país que apresenta a pre-
tensão de “excepcionalismo”: como no advento da modernida-
de, a tentativa de eliminar o privilégio aristocrático era tachada
pelo conservadorismo como sinônimo de insensato igualitarismo
plebeu, também hoje em dia a tentativa de firmar o princípio de
igualdade entre as nações e de realizar a democracia nas relações
internacionais se choca com a oposição de quem não pretende re-
nunciar ao privilégio imperial de um “excepcionalismo” determi-
nado até no plano teológico.
No final do primeiro conflito mundial, já no momento de sua
fundação, a Sociedade das Nações foi ridicularizada por sua pre-
tensão universal, após a inserção no seu Estatuto de um artigo que
ratificou a legitimidade e a inviolabilidade da doutrina Monroe.
Como resultado, um continente inteiro (a América Latina) foi pri-
vado da jurisdição justamente da Sociedade das Nações. Para ser
mais exato, o princípio de igualdade entre as nações, que é o único

228
5. A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSALISMO IMPERIAL

fundamento possível de uma organização supranacional de tipo


democrático, foi violado em duplo sentido. Ao atribuir às potên-
cias vencedoras da Primeira Guerra Mundial o “mandato”, ou a
“sagrada missão” de comandar os povos que não estavam ainda
à altura da “atual civilização”, o artigo 22 reforçou a discrimina-
ção colonial entre povos dignos de se constituírem como Estado
nacional independente e povos que não o eram, consagrando a
legitimidade da doutrina Monroe. Enquanto colocava de fato os
povos latino-americanos no mundo colonial, o artigo 21 instituiu
uma subsequente desigualdade: apenas os EUA ficaram isentos,
também na teoria, do controle da Sociedade das Nações. Não por
acaso, mais tarde, pelas palavras principalmente de Carl Schmitt,
o Terceiro Reich reivindicou o direito de ter validade na Europa
oriental a sua doutrina Monroe.
Nas décadas seguintes, o comportamento de Washington não
mudou. Quando, em 27 de junho de 1986, o Tribunal de Haia
condenou os atos de agressão contra a Nicarágua sandinista, pra-
ticados pelos governantes de Washington que inclusive haviam
destruído os portos do pequeno país da América Central, a admi-
nistração Reagan se antecipou em desconsiderar o tribunal inter-
nacional e a negar-lhe competência. Algo de semelhante ocorre,
mesmo hoje, em relação à Corte Penal Internacional: Os Estados
Unidos a apoiam ressaltando que, se culpado por graves crimes, à
sua jurisdição não pode escapar nem mesmo um chefe de Estado,
mas estabelecendo que nenhum soldado ou contractor estaduni-
dense pode ser enviado àquela Corte!
Ao decretar e prolongar o embargo contra Cuba, o Congres-
so dos EUA não apenas não presta nenhuma atenção ao voto da
Assembleia Geral da ONU, que quase por unanimidade pede o
cancelamento dessa medida, como também aprova uma legisla-
ção que pretende atacar até os países intermediários “acusados”
de violar o embargo.
Já conhecemos a relação que Washington estabeleceu com o
Conselho de Segurança: ele é considerado útil e precioso enquanto
legitima as decisões tomadas pela Casa Branca, mas rapidamente
se torna um estorvo embaraçoso quando não partilha de tais de-

229
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

cisões. A república norte-americana é o país que mais recorre ao


veto, porém quando outros países fazem o mesmo, ela, é claro, os
acusa de serem insensíveis aos valores “universais”, que devem
ser impostos sem se deixar estorvar pelo formalismo da legalidade
internacional!
Enfim, não se esqueçam da diferença e da hostilidade em re-
lação à Unesco (a Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, a Ciência e a Cultura), da qual Washington suspeita de ser
muito sensível às exigências do Terceiro Mundo, isto é dos países
ex-coloniais.
Os Estados Unidos propagam a causa do universalismo ao me-
nos no plano da organização econômica? Sem dúvida foi essen-
cial o seu papel no lançamento, em 1944, dos acordos de Bretton
Woods, que faziam do dólar, convertível em ouro, a moeda de
referência para os câmbios. Mas quando se encontraram em di-
ficuldades por causa da guerra no Vietnã, eles não hesitaram em
anular, em 15 de agosto de 1971, a conversão do dólar em ouro. E
isso com uma decisão soberana e unilateral: não por acaso se falou
a respeito disso como o maior golpe econômico da história!
Ou, pode-se levar em consideração a história da Organização
Mundial do Comércio (OMC), o organismo chamado a fomentar
o livre mercado. Também neste caso, está fora de discussão o pa-
pel desempenhado pelos EUA na sua fundação. Mas o que nos
acontece hoje em dia? Diante da rápida ascensão da China e da
sua consolidação como potência comercial, com o objetivo de “de-
ter” um possível rival no plano econômico, Washington está de
fato esvaziando de significado a OMC e criando uma espécie de
Otan econômica. Nem por isso, no entanto, os EUA param de po-
sar como representantes e guardiões exclusivos da “democracia”
e do “livre mercado”: é justamente o imperialismo dos direitos
humanos e do livre mercado. E tal imperialismo é sinônimo de
arrogância chauvinista, não certamente de universalismo!
A esquerda ocidental, infelizmente, continua a dar crédito às
pretensões “universalistas” do imperialismo e, frequentemente,
apoia as “guerras humanitárias” ou se revela incerta ou hesitante
em questioná-las.

230
6

Do colonialismo ao
neocolonialismo:
descontinuidade e
continuidade

6.1. Uma luta de longa duração

O
universalismo imperial não tem dificuldades em justifi-
car ou enaltecer as guerras que, no próprio Ocidente, ter-
minaram sendo reconhecidas como guerras neocoloniais
pelos círculos e órgãos de imprensa, embora alinhados com o po-
der dominante. Mas o colonialismo não tinha acabado de uma vez
por todas com a conquista da independência da parte das ex-co-
lônias? Na realidade, se observarmos com mais atenção, podemos
constatar a persistência do conflito entre colonialismo e anticolo-
nialismo; tanto que está bem longe de terminar.
Desde o seu início, a política de sujeição dos povos deparou-se
com a resistência das suas vítimas. Mas durante todo um perío-
do histórico, essa resistência precisou ter em conta as relações de
força desfavoráveis e, portanto, seus resultados foram limitados
e de curta duração. Pensamos, para dar um exemplo tirado da
história da América Latina, na série de rebeliões que culminaram
em 1780-1781 na revolta de Túpac Amaru, descendente dos anti-
gos governantes Inca, que procurou ganhar para a sua causa os
negros, libertando-os dos grilhões da escravidão. Partindo do sul

231
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

do Peru, a revolta se alastrou pela Bolívia e a Argentina, antes de


ter sido violentamente reprimida. Melhor afortunada seria, mais
de uma década depois, a revolução dos escravos negros que, em
Santo Domingo, Haiti, levaria à formação de um país independen-
te e livre – o primeiro no continente americano – do flagelo da
escravidão. E, no entanto, esse triunfo foi violentamente refreado
pelo poder chauvinista e colonialista dominante em nível interna-
cional mediante uma política de cerco diplomático e militar e de
restrição econômica. Em consequência dessa política (promovida
por França, Grã-Bretanha e EUA), o Haiti passou de uma verda-
deira “anexação política” para uma “anexação econômica” – para
retomar as categorias usadas por Lênin (1955-1970, vol. 23, p. 41-
42) –, ou então de domínio colonial declarado e explícito para do-
mínio neocolonial. Nas décadas seguintes, o perigo de contágio
proveniente da revolução vitoriosa dos escravos negros de Santo
Domingo, Haiti, foi neutralizado, para evitar a temida revolução
vinda de baixo através de uma “revolução passiva” arquitetada de
cima: a escravidão negra foi abolida pelo poder branco primeiro
nas colônias britânicas e, depois, com diferentes meios, nos EUA
(com a Guerra de Secessão). Desse modo foi preservada a essên-
cia do poder colonial branco no plano interno e em nível inter-
nacional. Apenas entre o fim do século XIX e os primeiros anos
do século XX é que ocorreu uma série de revoluções anticoloniais
que tendiam a se estender pelo planeta inteiro: a América Latina
(Cuba e México), a África (Sudão), a Ásia (Filipinas, com a revolta,
primeiro contra o domínio espanhol e depois contra o domínio
estadunidense; a China, com a insurreição dos Boxer e em seguida
com a derrocada da dinastia Manchu), o Oriente Médio (Pérsia),
a Europa (Irlanda, que protestou contra o governo de Londres ao
longo da Primeira Guerra Mundial).
Todas essas revoluções anticoloniais ocorreram separadamente
uma da outra: Foi Lênin e o Outubro bolchevique que realizaram
o balanço teórico e político da viragem que se delineava e lança-
ram o apelo aos “escravos das colônias” para que se rebelassem, e
colocassem radicalmente em questão o sistema colonial em nível
mundial. Agora não se tratava mais de revoltas exclusivamente

232
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

locais, mas sim de um desafio de alcance planetário. Eis que então


surgiu a primeira onda de revoluções e de movimentos antico-
loniais. Muitas vezes comandados ou influenciados por partidos
comunistas, esses movimentos passaram por uma notável expan-
são em países como China e Índia e se fizeram sentir em todas as
partes do mundo.
Para fazer frente a essa onda houve duas respostas sensivel-
mente diferentes entre si. A Grã-Bretanha e a França, enquanto
protegiam as suas posses coloniais clássicas, aproveitaram a der-
rota e a dissolução do Império otomano para dele arrancar outras.
Metiam as mãos respectivamente sobre Iraque e Síria, mas refe-
rindo-se a um novo princípio de legitimidade: aquele sancionado
pela Sociedade das Nações, que confiou às potências coloniais a
tarefa de civilizar os povos a elas momentaneamente entregues.
De maneira parecida se comportaram os Estados Unidos: sem
renunciar à “anexação política” das Filipinas, retiraram da Socie-
dade das Nações o reconhecimento da legitimidade da doutrina
Monroe que, no entanto, na reinterpretação de Theodore Roose-
velt de alguns anos antes, conferia aos EUA um “poder de polícia
internacional” na América Latina, reduzida assim à condição de
semicolônia do Grande Irmão norte-americano.
Bem diferente foi a reação do Terceiro Reich, do Império do Sol
Nascente e da Itália fascista que, desconsiderando as seduções do
neocolonialismo, retomaram e radicalizaram a tradição colonial
clássica. Radicalizaram ao ponto de pretender dominar e escra-
vizar países e povos até aquele momento situados no âmbito do
mundo “civilizado” ou pelo menos próximo disso. Foi baseado
nessa lógica que Hitler se empenhou em construir o seu Império
continental na Europa centro-oriental em detrimento dos eslavos,
e que os militaristas japoneses tentaram transformar a China (a
mais antiga civilização do mundo) de semicolônia do capitalismo
internacional em sua colônia direta. Por sua vez, Mussolini ane-
xou, sim, a Etiópia, última parte da África que ainda se mantinha
mais ou menos independente, e ao mesmo tempo procurou ex-
pandir o seu Império nos Bálcãs invadindo e tentando dominar
inclusive a Grécia (considerada o berço da civilização ocidental).

233
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

A derrota sofrida pelos três países defensores do fascismo e


do relançamento, de modo particularmente bárbaro, da tradição
colonial, marcou o início da segunda onda da revolução anti-
colonial. Havia falhado a tentativa de abrir novos espaços para
o expansionismo, e mais: agora era inseguro o domínio colonial
clássico, a “anexação política” em sentido estrito. Era chegada a
hora do neocolonialismo. Disso se deram conta os EUA que ela-
boraram uma política articulada em três pontos: a) concederam
independência às Filipinas e se apresentaram como o país que,
ao contrário da Europa, não tinha um passado colonial sobre os
ombros (como se a expropriação e a dizimação dos nativos, e a de-
portação, escravização e permanente opressão dos negros, mesmo
depois da abolição formal da escravidão, não se constituíssem em
duas das páginas mais horripilantes da história do colonialismo!);
b) por bem ou por mal procuraram transformar o tradicional do-
mínio colonial direto, exercido pelas potências europeias, em um
domínio colonial indireto, em última análise, hegemonizado por
Washington; c) desencadearam uma ofensiva extremamente vio-
lenta contra as grandes revoluções que, além do colonialismo em
sentido estrito, tencionavam também livrar-se de qualquer tipo
de neocolonialismo, isto é, procuravam pôr fim à anexação tanto
política quanto econômica. Assim se explicam: a intervenção na
guerra civil chinesa e a prolongada tentativa de excluir da ONU a
República Popular da China, que havia se tornado o centro do mo-
vimento anticolonialista mundial; o massacre em 1965 de centenas
de milhares de comunistas na Indonésia, de Sukarno, que não por
acaso alguns anos antes havia recebido a Conferência de Bandung,
e constituía um ponto essencial de referência do Terceiro Mundo
e da luta contra o neocolonialismo; a guerra bárbara contra o Viet-
nã e o Camboja, as reiteradas intervenções na América Latina, na
África e no Oriente Médio. Trata-se de um confronto de alcance
planetário, que derrotou o tradicional sistema colonial, e teve o
seu auge em 25 de outubro de 1971, quando, apesar da oposição
dos EUA, a República Popular da China foi admitida pela ONU e
o seu Conselho de Segurança, graças, em primeiro lugar, ao apoio
dos países do Terceiro Mundo.

234
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

A história da Guerra Fria foi em grande medida a história


do confronto entre colonialismo e anticolonialismo. Mao com-
preendeu isso muito bem e, em uma conhecida entrevista para
Anna Louise Strong, em agosto de 1946, chegou a esta conclu-
são: sem dúvidas, “o imperialismo dos EUA” preparava todos
os instrumentos necessários para atacar a União Soviética, mas
antes de qualquer coisa aproveitou o clima de guerra para am-
pliar as suas “bases militares”, reforçar o controle seja sobre
os “países coloniais” seja sobre “outros países capitalistas”, os
quais viam as suas posses coloniais ou neocoloniais passar para
o controle estadunidense. Sim, os EUA procuraram “pôr sob
o seu controle inclusive todo o Império britânico” (MAO TSE-
-TUNG, 1969-1975, vol. 4, p. 94-96).
Assim foi traçada com lucidez e precisão a política de Wa-
shington. Antes de obter independência, as Filipinas foram
obrigadas a aceitar a instalação de bases militares estaduniden-
ses e medidas econômicas que ocasionariam o “atraso na sua
industrialização” e na aquisição de uma real independência
econômica (ALBERTINI, 1982, p. 486-487). Cerca de dez anos
depois, os EUA começaram a usar sabiamente a crise de Suez
provocada pelas potências coloniais clássicas (Grã-Bretanha e
França, às quais se juntou Israel, ele próprio empenhado em um
expansionismo colonial de tipo clássico): com o lançamento, em
9 de março de 1957, da doutrina de Eisenhower, “a área geral
do Oriente Médio” se tornou “vital” para os “interesses nacio-
nais” da então longínqua república norte-americana; o controle
de uma área de indiscutível importância estratégica passou, as-
sim, da Grã-Bretanha e da França para os Estados Unidos (que
continuaram como cúmplices e padrinhos do expansionismo
israelense). Já tendo unificado, sob sua direção, o mundo ca-
pitalista e reforçado o seu controle econômico e militar sobre
países formalmente independentes, mas na realidade submeti-
dos ao domínio neocolonial, por ocasião do triunfo obtido no
fim da Guerra Fria, os EUA pareciam a ponto de estabelecer um
Império planetário.

235
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

6.2. A terceira etapa do confronto entre colonialismo e


anticolonialismo

Naqueles anos, regozijavam-se os defensores do Império pla-


netário que se esboçava no horizonte: o Ocidente havia triunfado
não apenas sobre o “comunismo”, mas também sobre o “tercei-
ro-mundismo”, isto é sobre o movimento de luta do qual eram
protagonistas os países que, além da independência política pre-
tendiam obter também a econômica, de modo a retirar de suas
costas, além do colonialismo clássico também o neocolonialismo.
Tão radical parecia a derrota do terceiro-mundismo, que impor-
tantes círculos culturais e políticos do Ocidente procederam a uma
reabilitação e à exaltação explícita do colonialismo (e mesmo do
imperialismo) (1).
Nada podia nem devia atrapalhar a efetivação do Império pla-
netário ocidental ou, mais exatamente, estadunidense. Até mesmo
o ex-adversário, dos anos da Guerra Fria, da superpotência foi le-
vado a se tornar uma semicolônia de Washington, que tinha con-
dições de exercer um amplo controle econômico e ideológico so-
bre a Rússia, para onde enviava ONGs e “missionários” de vários
tipos encarregados de converter e controlar uma nação à época a
ponto de perder o sentido de sua própria identidade.
Do ponto de vista da Casa Branca, era também muito encoraja-
dora a situação na China. As reformas de Deng Xiaoping pareciam
abrir espaços novos e bastante promissores para a penetração
econômica e política dos EUA. Irrompia depois, na primavera de
1989, a crise da Praça Tienanmen que parecia pressagiar o triunfo
da superpotência, agora única, também no grande país asiático.
Na América Latina, a doutrina Monroe festejou novos triunfos.
Já em 1983, Reagan enviou os marines a Granada com o fim de im-
pedir o contágio cubano. Em 1989, foi invadido o Panamá. O pro-
tagonista desse novo empreendimento foi Bush pai que, no ano
seguinte, pôde vangloriar-se de um triunfo ainda maior. Ocorre-
ram as eleições na Nicarágua sandinista, submetida a uma guerra
(1) Sobre o clima político e ideológico dos anos imediatamente após o triunfo do Ocidente na Guerra
Fria, ver LOSURDO (2013), cap. 10, § 1.

236
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

não declarada durante anos, mas nem por isso menos sangrenta:
Washington tinha patrocinado os bandos armados dos contras,
tinha imposto um bloqueio econômico e militar, tinha destruído
os portos. Já arruinada e esgotada, com uma faca no pescoço –
em uma situação internacional que anunciava a invencibilidade
da então única superpotência –, a grande maioria do povo nica-
raguense decidiu que não havia mais chance de êxito para a re-
sistência e, portanto, confiou o poder ao partido pró-americano,
aferrando-se à doutrina Monroe. Mas tudo isso ainda não bastava
para Washington. Em julho de 1991, enquanto a URSS se debatia
agonizante, em viagem para Moscou Bush pai apresentou decla-
rações, assim resumidas pelo título de um dos mais importantes
diários italianos: “Em Moscou pedirei a cabeça de Castro”. O jor-
nalista mencionaria depois o ponto de vista do presidente esta-
dunidense: a presença de um regime comunista “a oitenta milhas
do nosso litoral é intolerável” (CARETTO, 1991). E novamente foi
evocada a doutrina Monroe que parecia a ponto de obter o seu
triunfo mais estrondoso.
Para completar o quadro internacional, é preciso enfim ter pre-
sente que a morte do marechal Tito, em 1980, abriu novos espaços
para a intervenção do Ocidente e dos EUA nos Bálcãs, que estava
sob a proteção da Rússia da qual alguns analistas e estrategistas
estadunidenses anunciaram uma subsequente fragmentação.
É verdade, em 1979, em Teerã triunfou uma revolução com forte
caráter antiamericano; mas em seguida ocorreu a providencial
guerra contra o Irã, desencadeada pelo Iraque de Saddam Hussein
– que, sob os olhos benévolos dos EUA, não hesitou em recorrer,
em larga escala, às armas químicas. O resultado foi o sangramento
e o enfraquecimento dos dois adversários e o subsequente
fortalecimento de Israel (e dos EUA) no Oriente Médio.
Parecia, portanto, incontrolável o avanço do Império; na rea-
lidade, com a radical viragem geopolítica ocorrida entre 1989 e
1991, iniciava-se a terceira etapa da luta entre colonialismo e anti-
colonialismo. Podemos assim resumir essa luta: a primeira etapa
vai da Revolução de Outubro (e do apelo à resistência enviado por
Lênin aos escravos das colônias) a Stalingrado e à derrota ocorri-

237
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da na Europa e na Ásia do projeto (levado adiante pelo Terceiro


Reich, pelo Império do Sol Nascente e pela Itália mussoliniana)
de retomar e radicalizar a tradição colonial, fazendo-a valer tam-
bém nos países de consolidada e antiga, ou antiquíssima, civiliza-
ção, como Polônia e Rússia, China e Bálcãs. A segunda etapa vai
de Stalingrado até o triunfo estadunidense e ocidental na Guerra
Fria, e vê, de um lado, a derrota do colonialismo clássico e, de ou-
tro, o ardiloso surgimento do neocolonialismo. A terceira etapa se
inicia com o fim da Guerra Fria (e a derrota da URSS e do campo
socialista), e ainda está em curso. Se nos primeiros anos desta eta-
pa parecia se delinear o triunfo generalizado do neocolonialismo
e do Império estadunidense, hoje o quadro internacional é muito
diferente.
Há um quarto de século de distância de 1989, ano do início
(com a invasão do Panamá) do ciclo de guerras neocoloniais, po-
demos fazer um primeiro balanço, começando exatamente pela
América Latina. Não há dúvidas: fracassou grandemente a ten-
tativa de retornar às antigas glórias da doutrina Monroe, nos dias
atuais radicalmente colocada em discussão não mais apenas por
Cuba, mas por um número crescente de países do “hemisfério
ocidental”. Sim, nos Bálcãs, para finalizar a divisão da Iugoslávia,
os EUA conseguiram instalar a poderosa base militar de Camp
Bondsteel; mas talvez tenha sido justamente o triunfo obtido na
guerra da primavera de 1999 que tenha favorecido e acelerado (no
final daquele mesmo ano) a ascensão em Moscou de Vladimir Pu-
tin, que restabeleceu o controle da Rússia sobre o seu patrimônio
energético e impediu o desmoronamento do grande país euroasi-
ático em uma condição de dependência neocolonial do Ocidente.
Na Ásia, a derrota sofrida por Washington é ainda mais aparatosa
e fragorosa: esperava transformar em uma semicolônia a China
(cf. mais adiante, § 7.1), mas ela fortaleceu enormemente a sua in-
dependência não apenas no plano político como também no eco-
nômico e tecnológico, criando assim um contrapeso cada vez mais
forte à única superpotência.
Infelizmente, há uma área (importante) do globo onde os Esta-
dos Unidos e os seus aliados podem se vangloriar, nestes últimos

238
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

tempos, de um significativo êxito: o Oriente Médio. Pesadíssimos


são os seus custos humanos e sociais e, no entanto, esse êxito é
inegável. O que é que o tornou possível?

6.3. Um neocolonialismo econômico-tecnológico-judicial

Os efeitos produzidos pela mudança das relações de força


ocorrida após a viragem geopolítica de 1989-1991 estão à vista de
todos. Como observou um ilustre político e estrategista estadu-
nidense, a partir do final da Segunda Guerra Mundial (isto é, no
início da segunda etapa do confronto entre colonialismo e antico-
lonialismo) manifestou-se uma “crescente inquietação” nos povos
coloniais: “Emancipação nacional tornou-se o seu grito de guerra,
enquanto o apoio soviético no plano ideológico e mesmo militar
tornou a repressão muito mais difícil”, tanto mais que a “guerra
popular” reuniu condições para enfrentar eficazmente a superio-
ridade tecnológica do Ocidente. Foram-se os tempos em que, no
confronto entre nativos, de um lado, e grandes potências domina-
doras, de outro, as perdas estiveram em “uma relação de 100 para
1” em prejuízo dos primeiros (BRZEZINSKI, 2012, p. 14 e 34).
Com efeito, a “guerra popular” teorizada em primeiro lugar
por Mao Tse-tung – depois de ter imposto uma dura lição ao im-
perialismo japonês e à tentativa dos EUA de intervir, em apoio ao
Kuomintang – também selou a vitória da revolução anticolonial
no Vietnã. Assim se explica a “síndrome do Vietnã” que por al-
gum tempo dificultou o intervencionismo de Washington. Com
o delineamento e a precipitação da crise do “campo socialista” o
quadro mudou radicalmente: a desastrosa derrota sofrida pelo
movimento comunista, principal inspirador do movimento anti-
colonialista, fez desaparecer os pressupostos políticos da “guer-
ra popular”; na direção oposta, foi rápida a cura da “síndrome
do Vietnã”. Significativamente, em 1989, que marcou o início da
radical viragem geopolítica, ocorreu a guerra dos EUA contra o
Panamá, enquanto em 1991 – ano em que se desintegrou a URSS
e chegou a se concretizar a viragem geopolítica – houve a eclosão
da primeira Guerra do Golfo e o início no Oriente Médio de uma

239
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

série de guerras (de caráter mais ou menos colonial) das quais por
enquanto não se avista o fim.
Mas para compreender essa viragem não basta referir-se à mu-
dança do quadro político internacional. Há uma outra circunstân-
cia que devemos levar em conta e que convém analisar a partir
de um tempo bastante longínquo. Quando, em 1840, os navios de
guerra ingleses se perfilaram no litoral e em cidades da China, os
agressores dispunham de poder de fogo de várias centenas de ca-
nhões e podiam disseminar destruição e morte em larga escala,
sem o temor de serem atacados pela artilharia inimiga, cujo alcan-
ce era bem mais reduzido. Foi o triunfo da política das canhonei-
ras: ela não se limitava mais a atacar povos destituídos de organi-
zação estatal articulada, mas se arremetia contra uma civilização
milenar e um Estado que tinha dado provas de extraordinária es-
tabilidade ao longo de sua história. O grande país asiático foi obri-
gado a ceder, e a amargar, a partir daquele momento, o “século
das humilhações”.
Hoje em dia, a assim chamada Revolution in Military Affairs “Re-
volução nos Assuntos Militares” (RMA, na sigla em inglês) criou
em inúmeros países do Terceiro Mundo uma situação parecida
àquela enfrentada pela China por ocasião das guerras do ópio.
Ao atacar a Líbia de Gaddafi, a Otan realizou tranquilamente mi-
lhares e milhares de bombardeamentos, e não apenas não sofreu
nenhuma perda como também nem mesmo correu o risco de vir
a sofrê-la. É um dado real: a renovada desproporção tecnológica
e militar relança as ambições e as tentações colonialistas de um
Ocidente que, como demonstra a aclamada autoconsciência e falsa
consciência que continua a mostrar, recusa-se a realmente acer-
tar as contas com a sua história. E não se trata apenas de aviões,
navios de guerra e satélites: ainda mais clara é a vantagem com a
qual Washington e os seus aliados podem contar no que se refere
à capacidade de bombardeamento multimidiático.
À grande desproporção de forças (no plano militar e
multimidiático) corresponde uma dupla jurisdição que abre
uma profunda fissura entre os povos em condições coloniais
ou semicoloniais, de um lado, e povos “civilizados” e potências

240
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

coloniais, de outro. Essa dupla jurisdição imediatamente se tornou


evidente na Palestina: embora violando sistematicamente o direito
internacional, os colonos israelenses desfrutam plenamente do
rule of law (Estado de Direito) e de financiamentos e facilidades
de todo tipo garantidos pelo governo de Tel Aviv; os palestinos
retirados ilegalmente de sua terra podem ao invés disso ser presos
e assassinados por decisão soberana do poder político e militar de
ocupação.
Mas a dupla jurisdição vai muito além da Palestina: ela é par-
te integrante da história do colonialismo velho e novo. Para es-
clarecer esse ponto, retornamos à primeira Guerra do Ópio, que
se encerrou em 1842 com o tratado de Nanquim. Foi o primeiro
dos “tratados desiguais” impostos pela força das armas. No ano
seguinte foi a vez dos Estados Unidos. Eles também enviaram ca-
nhoneiras com o fim de alcançar o mesmo resultado obtido pela
Grã-Bretanha, ou algo melhor. O tratado de Wanghia (próximo
de Macau) de 1843 garantiu para os cidadãos estadunidenses re-
sidentes na China o privilégio da extraterritorialidade: mesmo os
acusados de crimes comuns não eram obrigados a responder por
eles perante a magistratura chinesa. Obviamente, esse privilégio
não era recíproco, não valia para os cidadãos chineses residentes
nos Estados Unidos: uma coisa era a massa de escravos coloniais
e outra coisa, bem diferente, os países e os povos que representa-
vam a civilização.
E nos dias atuais? Convém prestar atenção no papel da Corte
Penal Internacional (CPI). Salta aos olhos imediatamente que à sua
jurisdição estão submetidos até os chefes de Estado, no entanto,
dela estão excluídos não apenas os governantes como também os
cidadãos estadunidenses e os soldados e mercenários, com suas
estrelas e listras, distribuídos pelo mundo todo.
A imunidade não vale apenas para os EUA. Algum tempo atrás
um advogado da Universidade da Califórnia chamou a atenção
para um ponto importante: “Com base no Estatuto de fundação da
CPI, graves violações às Convenções de Genebra, incluindo a ins-
talação de civis em territórios ocupados, são consideradas crimes
de guerra”. Por que, então, Israel não é submetido a julgamento?

241
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

(BISHARAT, 2013). Não seria difícil responder a essa pergunta:


em novembro do ano anterior os palestinos, que reivindicavam o
reconhecimento pelo menos como “Estado” observador, mas não
propriamente membro da ONU, foram convidados pelo ministro
do exterior britânico, William Hague, “a renunciarem à entrada na
Corte Penal Internacional”, de modo a tranquilizar Tel Aviv (CA-
PRARA, 2012). O que aconteceu então com o caráter internacional
da CPI?
A dupla jurisdição já é evidente, mas para compreender todo
o seu alcance é bom analisar o que aconteceu por ocasião da guer-
ra contra a Líbia. Ali, vimos agentes britânicos e estadunidenses
em ação para fomentar a revolta e assassinar Gaddafi, valendo-se
quando necessário de uma célula da Al-Qaeda, suntuosamente
financiada (cf. § 3.7). Tratava-se de crimes que podiam ser inves-
tigados pela CPI. Mas, por uma milagrosa metamorfose, os possí-
veis acusados se transformaram em juízes ou possíveis juízes. Em
26 de fevereiro de 2011, The Guardian revelou: “Oficiais britânicos
estão contatando pessoal líbio de nível elevado para pressioná-los
e levá-los a tomar uma decisão: abandonar Muammar Gaddafi ou
serem julgados junto com ele por crimes contra a humanidade”
(WINTOUR, BORGER, 2011). Bem longe de ser um tribunal neu-
tro, no caso aqui examinado a CPI e a ameaça de recorrer a ela
funcionaram como instrumento de guerra a serviço das grandes
potências ocidentais e dos “rebeldes” seus aliados. Se se pretende
falar justamente de tribunal, lidamos aqui com um “tribunal” co-
lonialista, como aqueles criados pela Ku Klux Klan para “julgar”
os negros antes de serem horrivelmente linchados. Com efeito,
depois de ter sido novamente enviado por conveniência a julga-
mento, justamente quando recrudesciam os bombardeamentos da
Otan sobre o seu país, Gaddafi foi capturado, torturado e linchado
pelos “rebeldes” que utilizavam as informações e a colaboração da
Otan, e particularmente os serviços secretos franceses.
Em todo caso, a dupla jurisdição surgiu com clareza: além da
morte por causa dos bombardeamentos que claramente extrapo-
laram o mandato da ONU (limitado à proteção dos civis) e que
chegaram até a destruição sistemática de Sirte (a cidade natal e

242
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

última fortaleza de Gaddafi), os cidadãos líbios corriam o risco de


se verem condenados à prisão perpétua, em última análise, pelos
mesmos que os atacavam. Na vertente oposta, os cidadãos do país
realizador e supremo fiador da operação bélica foram explicita-
mente isentados da jurisdição da CPI; isso de fato valeu inclusive
para os outros ocidentais, tão seguros de si que faziam, contra os
inimigos que ousassem resistir, ameaça de uma pesada condena-
ção da parte do tribunal “internacional”. De fato desfrutaram de
imunidade os responsáveis por uma guerra não apenas de agres-
são mas que também violou as normas do direito internacional,
até porque não distinguia entre soldado e população civil. Mesmo
um funcionário civil líbio e sem nenhuma relação com o aparato
de repressão podia ser chantageado: rendição ou então condena-
ção a trabalhos forçados e perda da liberdade por boa parte ou
pelo resto da vida.
As vítimas escolhidas pela CPI eram os líderes políticos e até
cidadãos comuns dos países ex-coloniais, sobretudo africanos.
Ainda não havia se dobrado o presidente da União Africana, o
etíope Hailemariam Desalegn, quando denunciou (no outono de
2013) a “caça racial” desencadeada pela intitulada “Corte Penal
Internacional”.
Com um olhar mais atento, a dupla jurisdição é um fenômeno
global. Uma resolução da Assembleia parlamentar norte-atlântica
de novembro de 1998 chamou a Otan para realizar uma nova ta-
refa, além daquela tradicional de resposta à “agressão”: a aliança
militar devia estar “pronta para agir nos casos em que o Conselho
de Segurança das Nações Unidas fosse impedido de cumprir os
seus deveres institucionais de garantir a paz e a segurança inter-
nacional” (in: ZOLO, 2000, p. 86). Sucessivamente, à Otan tam-
bém foi atribuído o direito de intervenção, independentemente de
qualquer ameaça à “paz” e à “segurança internacional”, toda vez
que, segundo seu entendimento, se tornasse necessário prevenir
ou resolver uma situação de grave crise humanitária. E, portan-
to: os membros da Aliança ocidental são titulares de um jus ad
bellum (direito à guerra), não sujeito à aprovação do Conselho de
Segurança da ONU e ao direito internacional; isso não vale para

243
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

os outros membros da comunidade internacional. A dupla juris-


dição, que surge mais uma vez, não diz respeito exclusivamente
aos Estados: apenas os cidadãos dos países-membros da Otan po-
dem desfrutar dessa freedom from fear, a “liberdade de não sentir
medo”, enquanto esse direito fundamental do homem é de fato
negado aos cidadãos dos países que estão fora da escolhida comu-
nidade atlântica e que, portanto, continuarão expostos ao risco de
ataque – de algum modo motivado – da Aliança atlântica.
Podemos compreender a situação que veio a ser criada anali-
sando a história da tradição colonial. Em 1900, no final da guerra
contra a Espanha, nos EUA não eram poucos os que advogavam
a anexação pura e simples de Cuba (uma aspiração que remonta a
Jefferson). Mas isso incluiria um sensível acréscimo da população
negra, que na república norte-americana já havia sido indicada
como um peso intolerável pelos defensores do regime da White
supremacy. A solução adotada foi a anexação econômica, reforçada
pela presença de uma base militar em Guantánamo e pela impo-
sição de um tratado que (com a “Emenda Platt”) reconhecia aos
Estados Unidos o direito de intervir em Cuba todas as vezes que
pelo seu entendimento estivessem em perigo a ordem pública e a
segurança da propriedade e da liberdade. É este, em última análi-
se, o modelo ao qual o Ocidente e o seu país-guia procuram seguir
em sua relação com o resto do mundo. É como se se procurasse
agora fazer valer indiretamente, e em nível planetário, ou numa
escala a mais ampla possível, a “Emenda Platt”, que em 1934 foi
revogada pelo presidente F. D. Roosevelt (obrigado a levar em
conta o movimento patriótico e anti-imperialista em Cuba).
Somos levados a pensar naquela que, segundo Lênin (1955-
1970, vol. 20, p. 147), é uma das características fundamentais do
imperialismo: a pretensão da parte das grandes potências de posa-
rem como “nações-modelo”, atribuindo a si próprias “o privilégio
exclusivo de formação do Estado” e negando-o aos bárbaros das
colônias ou semicolônias. É evidente que, arrogando-se o direito
de declararem como superada a soberania de outros Estados, os
países da Otan se atribuem uma soberania ampliada e imperial
para a exercerem muito além do próprio território nacional. Em

244
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

novas formas se reproduz a característica dicotomia do imperialis-


mo (nações escolhidas e realmente munidas de soberania/ povos
indignos de se constituírem em Estado nacional autônomo).
Certamente, é preciso não perder de vista os elementos de atu-
alidade. Hoje em dia, o colonialismo clássico sobrevive apenas na
Palestina: aqui os nativos são oprimidos, sistematicamente expul-
sos de suas terras, marginalizados e humilhados, assim como à sua
época ocorreu com os irlandeses e os peles-vermelhas por ação res-
pectivamente dos colonos ingleses e norte-americanos. Tudo isso
prejudica a credibilidade do papel de guardiões universais dos di-
reitos do homem que os Estados Unidos e a União Europeia gostam
de se atribuir. A partir daqui, os seus repetidos pedidos (sempre
respeitosos) a Israel para que faça alguma concessão e passe da ane-
xação política para a anexação econômica (fortalecida pela ameaça
militar e judicial), do colonialismo para o neocolonialismo.
Em geral, estão claros os elementos constitutivos do modelo de
domínio neocolonial almejado pelo Ocidente: a) um controle mui-
to grande da economia dos países dominados ou a serem domina-
dos para tornar possível a sua rendição já com a imposição de um
embargo e o isolamento e cerco econômico; b) uma superioridade
tecnológico-militar imensamente grande para conduzir à impo-
tência militar do inimigo; c) um poder de fogo multimidiático que
caracterize irremediavelmente o inimigo como transgressor dos
direitos do homem e como bárbaro, em última análise, excluído
do gênero humano; d) uma dupla jurisdição que garanta impu-
nidade ao agressor e o possibilite de continuar a atacar o inimigo
mesmo depois de sua rendição. É o neocolonialismo econômico-
-tecnológico-judicial.
É um neocolonialismo que avança afirmando o fim do Estado
nacional e saudando o alvorecer do Estado mundial que, pelo que
parece, se delineia no horizonte. Segundo a clássica fórmula de
Weber, o que define o Estado é, em primeiro lugar, o monopólio da
violência legítima. No plano internacional, os EUA já se comportam
como se detivessem o monopólio da violência legítima reservando
exclusivamente a si mesmos (e aos seus aliados e subalternos) o
jus ad bellum e de fato controlando a Corte Penal Internacional e

245
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

o exercício da justiça internacional em seu conjunto. Acreditan-


do dar provas de “internacionalismo”, no Ocidente a esquerda
muitas vezes aplaude tudo isso sem se dar conta de que o Estado
mundial por ela apoiado não é senão o Império planetário desde
sempre ambicionado pela potência mundial cada vez mais ambi-
ciosa e chauvinista.

6.4. Da “filantropia + 5%” do Império britânico aos


“valores e interesses” dos EUA

Estão claros os elementos de atualidade no que se refere seja à


“anexação política”, própria do colonialismo clássico, seja à “ane-
xação econômica” do neocolonialismo analisado por Lênin. Mas
não faltam os elementos de continuidade, e eles são tais que re-
metem inclusive à época clássica do colonialismo. As guerras co-
loniais daquela época foram assim descritas por Lênin (1955-1970,
vol. 24, p. 416-417):

“Estas guerras são ‘pequenas’, porque nelas são mortos poucos


europeus, enquanto nela perderam a vida centenas de milhares
de homens pertencentes aos povos que os europeus oprimem
(...). Eis como são as guerras travadas contra eles: estes homens
estavam desarmados, e os europeus os exterminaram com me-
tralhadoras. Pode-se falar de guerras? Não, a rigor, não se pode
falar de guerras, e assim tudo isso pode ser deixado de lado”.
São os anos em que Theodore Roosevelt, referindo-se à dou-
trina Monroe, por ele reinterpretada e radicalizada, e à Emenda
Platt, teorizou em 1904 sobre um international police power (poder
de polícia internacional) a ser exercido pela “sociedade civilizada”
em seu conjunto e pelos EUA, no que dizia respeito à América
Latina. Se um país se demonstrasse incapaz de “agir com razoável
eficiência e decência” e de garantir “no âmbito do seu território o
reinado da paz e da justiça”, a “sociedade civilizada” seria obriga-
da a exercer o seu “poder de polícia internacional” (in: MARTIN,
ROYOT, 1989, p. 179). Devido à desproporção de forças e ao nú-
mero tão reduzido de vítimas, para as grandes potências “civili-

246
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

zadas”, as guerras coloniais, mesmo se muito sanguinárias para


a população local, podiam tranquilamente ser rebatizadas como
inofensivas e benéficas operações de restabelecimento da ordem.
É o que novamente acontece hoje, em prejuízo dos países que não
conseguiram acompanhar a revolução tecnológico-militar desen-
volvida pelo Ocidente. A unidade de elite dos EUA e da Otan
gosta de se apresentar como um batalhão de polícia internacional,
embora a comparação mais correta – mesmo em consideração ao
fim imposto, por exemplo, a Saddam Hussein e a Gaddafi – seria
com um pelotão de fuzilamento.
Se até o recurso a um poderoso aparato militar e a uma sofis-
ticada tecnologia bélica muitas vezes leva, ou obriga, a se falar de
guerra, aqui se apressa logo a indicar que se trata de uma “guerra
humanitária”: o adjetivo neutraliza grandemente o substantivo.
Mas mesmo nesse caso saltam aos olhos os elementos de conti-
nuidade da tradição colonial clássica. O expansionismo colonial
continuamente estabeleceu a pretensão de difundir a civilização e
o Estado de Direito entre os bárbaros. Sabia muito bem disso Hob-
son, o liberal inglês de esquerda lido e apreciado por Lênin: “O
imperialismo, esta pequena e sórdida coisa, chega a se disfarçar
aos olhos de todos (...). Surpreendei-vos que as forças egoístas que
comandam o imperialismo utilizem as cores protetoras de movi-
mentos desinteressados?” (HOBSON, 1974). Os governantes das
potências coloniais e das grandes indústrias posavam de defen-
sores da luta contra “a crueldade dos escravocratas africanos” ou
contra outras infâmias: “eles se apegam simples e instintivamente
a qualquer sentimento elevado, forte e sincero que lhes sirva, reci-
clam-no e o alimentam até que em torno dele se crie um fervor, e
depois o utilizam para os seus objetivos”. Leopoldo II, da Bélgica,
gostava de exibir a sua preocupação com o Congo: “O nosso único
programa é o da reabilitação moral e material do país” (HOBSON,
1974, p. 168-169). Mas o resultado dessa “reabilitação” foi, como é
conhecido, o genocídio.
A motivação humanitária está presente nas mais diversas tra-
dições culturais e não é estranha nem mesmo ao imperialismo
alemão. No final da Primeira Guerra Mundial, desenrolou-se um

247
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

interessante debate, do qual foi protagonista sobretudo Max von


Baden (tornado chanceler do Reich na última fase do Império Gui-
lhermino):

“Se pretende resistir às tempestades da democracia e à sua rei-


vindicação de uma melhoria no mundo, o imperialismo alemão
deve adotar um fundamento ético (...). Agora podemos tranqui-
lamente acrescentar em nosso programa os propósitos da huma-
nidade (...), nos encontramos na feliz situação de poder escrever
o pensamento do direito sobre nossas bandeiras (...). O direito
está conosco”.

Enquanto isso, com Brest-Litovski o Segundo Reich tinha con-


quistado um enorme espaço colonial a leste, e eis como um gene-
ral esclarece os objetivos dessa expansão: “O propósito da nossa
política oriental não é de usar de violência contra os Estados me-
nores, mas de garantir a liberdade e a ordem do seu Estado”; tra-
tava-se de perseguir “propósitos humanos universais” (in: OPITZ,
1977, p. 436-450).
A agitação da bandeira humanitária não é estranha nem mes-
mo ao fascismo. Ao desencadear a sua guerra de extermínio con-
tra a Etiópia, depois de ter chamado o negus Hailè Selassiè de
carrasco e “traficante de negros”, Mussolini posava de defensor
da causa da libertação dos infelizes escravos vítimas da opressão.
Acrescente-se que, com efeito, alguma forma de escravidão ainda
permanecia na Etiópia, mas de longe bem menos bárbara do que
aquela de fato introduzida pelo duce.
Pode-se fazer uma consideração de caráter mais geral. Nos dias
atuais, exacerbado é o pathos dos “valores” aos quais recorrem Es-
tados Unidos e União Europeia, algumas vezes conjuntamente
e outras em concorrência recíproca. Em uma análise mais atenta
das intervenções dos líderes políticos e dos ideólogos do Ociden-
te, nota-se que os “valores” não se separam dos “interesses”. Ou
melhor, nos últimos tempos, “interesses e valores americanos” pa-
recem ter se tornado o logotipo da política externa estadunidense.
Inspirador, a respeito disso, é o discurso com o qual, em novembro

248
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

de 2011, a então secretária de Estado, Hillary Clinton – com o olhar


voltado para a China que devia ser “contida” –, anunciou anteci-
padamente o “pivot” em direção ao Pacífico: devemos “assegurar
os nossos interesses e fazer propagar os nossos valores”. “Nossos
valores”: eles devem ser considerados estadunidenses ou univer-
sais? Para uma espécie de harmonia preestabelecida, há muita
coincidência entre os dois adjetivos. Isso já é um milagre, mas sur-
ge um segundo milagre, ou então uma segunda harmonia prees-
tabelecida, desta vez entre, de um lado, os “interesses econômicos
e estratégicos americanos” e, de outro, os valores (estadunidenses
e universais). Entre os “interesses econômicos e estratégicos ame-
ricanos” voltam a entrar a conquista de “novos mercados para as
empresas americanas” e, sobretudo, a manutenção da “liderança
americana” no novo século.
Esta dupla harmonia preestabelecida assinala também o dis-
curso pronunciado por Obama em 21 de janeiro de 2013 na aber-
tura do seu segundo mandato presidencial. Depois de expressar
a habitual homenagem aos “nossos valores”, e que “a nação mais
poderosa do mundo” é chamada a demonstrar muito “agradeci-
mento ao poder das armas e ao Estado de Direito”, ele continua
afirmando: “os nossos interesses e a nossa consciência nos obri-
gam a agir a favor daqueles que aspiram à liberdade”.
E novamente se faz lembrar a presença da tradição colonial.
Pensamos em particular em Cecil Rhodes, que assim resumiu a
filosofia do Império britânico do qual era adulador: “filantropia
+ 5%” (WILLIAMS, 1921, p. 51-52); onde “filantropia” é sinôni-
mo de valores e direitos universais e a porcentagem de 5% indica
os concretos interesses da burguesia capitalista inglesa: os ganhos
que ela obteve ou se propunha a obter mediante as conquistas co-
loniais e a agitação da bandeira dos valores e direitos humanos
universais.

6.5. Missionários, ONGs e redução da Carta dos Direitos

A continuidade do universalismo imperial irrompe também


em um outro nível. O historiador e adulador do Império dos EUA,

249
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

por mim citado várias vezes, ressalta que ele pode contar sobre o
apoio fornecido pelas Organizações Não Governamentais (FER-
GUSON, 2005, p. 11-13 e 15). Não é de se espantar: os missionários
cristãos de antigamente favoreceram fortemente o expansionismo
e o domínio colonial do Ocidente, e hoje os frequentes ativistas pe-
los direitos humanos assumiram o lugar dos missionários cristãos
de outrora.
Inúmeras, múltiplas e variegadas são as ONGs e, consequen-
temente, amplo é o espaço que se abre às agências e aos serviços
secretos das grandes potências. Há alguns anos, causou rebuliço
o reconhecimento, que involuntariamente escapou, do então mi-
nistro das relações exteriores francês, Bernard Kouchner, conhe-
cido defensor das guerras “humanitárias”, durante a sua visita a
Jerusalém: “Oficialmente não temos contatos com o Hamas, mas
oficiosamente existem inúmeras organizações internacionais, em
particular francesas, que entram na Faixa de Gaza e nos fornecem
informações” (NAVA, 2008). Foram “informações” úteis apenas
para a França ou também para Israel e para as contínuas execuções
extrajudiciais e os bombardeamentos constantes? Não faltam nem
mesmo ONGs, claramente influenciadas pelo Ocidente, que, seja
de modo dissimulado ou cauteloso, procuram fomentar a quebra
ou então o desmembramento da China. Leiamos uma correspon-
dência de Pequim publicada no International Herald Tribune:

“Não existe ‘uma única China’ (...). Há talvez tantas Chinas


quantos são os países europeus (...). A ideia segundo a qual a po-
pulação rotulada de ‘chineses Han’ seria homogênea é um mito
nacional – afirma Human Rights in China em um relatório de
2002. No âmbito dessa categoria há grande diversidade cultural
e linguística” (LAGUE, 2006).

Eis, portanto, uma ONG que, em nome dos direitos humanos,


sugere o desmembramento da China em trinta países, mais ou
menos a quantidade de “países europeus”, e que, com tal propósi-
to, aproveita os argumentos tradicionalmente usados pela campa-
nha promovida por Washington: além de atiçar o separatismo no

250
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

Tibete, em Xinjiang, na Mongólia Interior, tal campanha denuncia


também a pressuposta “invenção de uma única etnia de chineses
Han” (cf. mais adiante, § 7.2), exatamente como faz a ONG já citada.
Obviamente que a quebra do grande país asiático aqui menciona-
da incluiria graves e sangrentos conflitos: se verificaria uma répli-
ca em escala decididamente mais ampla que a da tragédia iugosla-
va; mas com essa colossal catástrofe para os direitos humanos não
parecem se preocupar os seus pretensos defensores.
Não faltam, portanto, ONGs que são a perfeita tradução de um
projeto imperial. E, no entanto, tanto no passado quanto no pre-
sente, a influência e a hegemonia ideológica é que desempenham
um papel fundamental. Vimos a Anistia Internacional confirmar a
mentira dos recém-nascidos kuwaitianos inexplicavelmente con-
denados à morte por Saddam Hussein, e assim contribuir para a
preparação ideológica do desencadeamento da primeira Guerra
do Golfo. Dá o que pensar sobretudo a contribuição fornecida
por não poucas ONGs para instigar a nova Guerra Fria, sempre
à espreita. Em 2008 e em 2014, elas se empenharam em sabotar
e deslegitimar os Jogos de Verão de Pequim e os de Inverno de
Sóchi, alinhando-se acriticamente com a campanha desencadeada
pelo Ocidente, primeiro contra a China e depois contra a Rússia.
Esta última foi acusada de ter aprovado uma lei controversa que
proibia a propaganda gay dirigida a menores de idade, ou feita
na presença deles. Mas, naquele mesmo período, na Índia, a Corte
Suprema confirmou que a relação homossexual devia ser consi-
derada ou tratada como crime; e, no entanto, toda a atenção se
concentrou sobre o país de Putin, exposto internacionalmente ao
ridículo. Entre os dois Jogos assinalados acima, foram realizados
os de Verão de Londres: e os recebeu o país que alguns anos an-
tes foi protagonista da segunda Guerra do Golfo, preparada por
meio da difusão de mentiras sobre armas de destruição em massa
e desencadeada sem a autorização do Conselho de Segurança da
ONU; quem os recebeu foi o país que tinha alguma responsabili-
dade também sobre o campo de concentração e as torturas de Abu
Ghraib. Entretanto, não passou pela cabeça de ninguém contestar
os Jogos de Londres ou de colocar qualquer sombra de dúvida

251
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

sobre eles. Seria fácil denunciar esse duplo padrão. Na realidade,


a coisa mais importante é outra: criados como momentos de en-
contro, de diálogo e de superação de animosidades e hostilidades,
os Jogos foram transformados pelo Ocidente em um instrumento
de Guerra Fria, e tudo isso graças à colaboração de não poucas
ONGs (com as quais comumente e voluntariamente a esquerda
se alinha).
A influência e a hegemonia ideológica do Império se manifes-
tam já na definição da área dos direitos humanos. Ao ler os do-
cumentos e as tomadas de posição da esmagadora maioria das
ONGs, tem-se a impressão de que elas nunca haviam ouvido falar
da “liberdade de não passar necessidade” e da “liberdade de não
sentir medo”, que para F. D. Roosevelt eram direitos humanos
fundamentais e intransferíveis.
Como se chegou a tal desfecho? Ainda em 1981, em um artigo já
no título dedicado a analisar as relações entre “Direitos humanos e
política externa americana”, uma respeitável voz do conservado-
rismo estadunidense (Jeane Kirkpatrick) acusou Jimmy Carter de
ter beneficiado “a igualdade mais do que a liberdade, e os direitos
econômicos mais do que os direitos políticos”, portanto, tendo em
mira mais “os tradicionais regimes militares” do que a “ditadura
comunista” (in: T. SMITH, 1994, p. 244). Na realidade, embora com
feições de homem santo e talvez justamente graças a essa aparên-
cia, Carter se mostrou um estrategista mais hábil e perspicaz do
que seus críticos estadunidenses. Ele nunca perdeu de vista nem a
Realpolitik nem a doutrina Monroe: procurou impedir a vitória dos
sandinistas na Nicarágua e passou a financiar os seus adversários
através da CIA (BLUM, 2003, p. 433). Contra nenhuma das ditadu-
ras militares da América Latina ele lançou medidas remotamente
comparáveis àquelas que continuaram em vigor contra Cuba; ou
melhor, mesmo que de modo indireto, o cruel regime no poder na
Nicarágua continuou a receber armamentos e equipamento mili-
tar (IDEM, p. 350); do mesmo modo que no Irã, onde, até o último
momento, o xá pôde desfrutar do apoio de Washington (cf. § 4.3).
Em relação à União Soviética e ao “campo socialista”, porém,
Carter estava ciente de que devia assumir uma atitude mais habi-

252
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

lidosa do que aquela recomendada por Kirkpatrick. Tratava-se de


países que certamente continuavam a dar provas de incapacidade
de superar o Estado de exceção e de garantir o Estado de Direi-
to (e isso por causa da persistência da Guerra Fria, mas também
dos fortes limites dos grupos governantes e da estratégica prote-
ção teórica e política do movimento comunista em seu conjunto).
Entretanto, aqueles países ainda eram protagonistas de grandes
conquistas no que dizia respeito aos direitos sociais e econômicos;
por isso um programa neoliberal, mais ou menos explícito, não
serviria para desestabilização do sistema. E, com efeito, ao pro-
pagar o que ele definiu claramente como “uma luta ideológica”
contra a União Soviética entre “os fundamentais direitos huma-
nos”, concretizados e preservados nos EUA, Carter foi obrigado a
incluir (de modo, aliás, um tanto arriscado) “a proibição do sofri-
mento proveniente de uma assistência sanitária inadequada” (in:
T. SMITH, 1994, p. 239).
Levada a termo a desestabilização do “socialismo real” na Eu-
ropa, eis que a Carta dos Direitos sofre uma supressão silenciosa e
até mesmo explícita: não há mais espaço para a “liberdade de não
passar necessidade” à sua época caracterizada por F. D. Roosevelt
como um dos fundamentais direitos humanos; ou então para os
“direitos sociais e econômicos” aprovados pela ONU por ocasião
de sua fundação. Essa redução da Carta dos Direitos foi secreta-
mente ratificada pela maior parte das ONGs, hoje mais próximas
de Kirkpatrick do que de Carter.
Considerações semelhantes poderiam ser feitas em relação à
“liberdade de não sentir medo”, que tem sua raiz na trágica Se-
gunda Guerra Mundial e na experiência da luta contra o nazi-fas-
cismo e em particular contra o Terceiro Reich, e surgiu como o
direito humano talvez mais importante de todos. Um país – so-
bretudo se for mais ou menos débil – deve temer constantemente
por sua segurança por causa do ameaçador desenvolvimento em
sua fronteira, ou, por se encontrar a pouca distância de um pode-
roso aparato militar, se for obrigado a viver debaixo de ameaças
de agressão, não pode dedicar todos os seus recursos materiais ne-
cessários para a realização dos direitos sociais e econômicos; pas-

253
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

sam por isso também os direitos civis e políticos que, inclusive nos
países de sólida tradição liberal, sofrem pesadas restrições quan-
do a segurança nacional está em perigo. No entanto, a “liberdade
de não sentir medo” é desviada do campo de atenção das ONGs
de maneira ainda mais radical do que a “liberdade de não passar
necessidade”. Os processos de Nuremberg e de Tóquio, que pu-
seram um ponto final na Segunda Guerra Mundial, condenaram
os réus também, e principalmente, como culpados pelo desenca-
deamento da guerra. E em 24 de novembro de 1948, ao confirmar
as sete condenações à morte emitidas pelo Tribunal de Tóquio, o
general MacArthur afirmou: “Que a Providência Todo-Poderosa
recorra a essa trágica expiação como símbolo para prevenir todas
as pessoas de boa vontade a se darem conta da total inutilidade da
guerra – o flagelo mais terrível e o maior pecado da humanidade
– e consiga em definitivo que todas as nações a ela renunciem”
(HARRIES, HARRIES, 1987, p. 172). Da condenação à morte por
ter fomentado uma guerra, e assim violado o direito humano à “li-
berdade de não sentir medo”, às guerras desencadeadas em nome
da defesa dos direitos humanos dos quais, porém, termina exclu-
ída a “liberdade de não sentir medo”: as ONGs são corresponsá-
veis por essa infeliz inversão!
Contudo, por mais extraordinária que seja, essa inversão é com-
preensível. Para levar a sério a “liberdade de não sentir medo” se
deveria reconhecer que hoje os EUA são os primeiros a colocá-la
radicalmente em questão, ou eliminá-la por completo, pois insta-
laram poderosas bases militares em todos os cantos do mundo e se
reservam o direito soberano de atacar todos os países. E o mesmo
esquecimento que envolve a “liberdade de não passar necessida-
de” não se explica apenas com o triunfo do neoliberalismo. É pre-
ciso não perder de vista a dimensão geopolítica do problema. Va-
mos tentar levar a sério a “liberdade de não passar necessidade”.
É necessário então reconhecer uma verdade ignorada e desusada:
o país que mais se distinguiu na concretização desse fundamental
direito humano foi a República Popular da China que, mesmo de-
pois de um penoso processo de aprendizagem, retirou centenas de
milhões de pessoas da miséria absoluta; aquela miséria absoluta

254
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

à qual o grande país asiático foi submetido em consequência, em


primeiro lugar, das guerras do ópio e do ataque colonialista. Isto
é, para pretender levar a sério a “liberdade de não passar neces-
sidade” seria preciso render homenagem à República Popular da
China e criticar o Ocidente liberal. Mas se comportam exatamente
de modo contrário não apenas, obviamente, a ideologia e o poder
dominantes, mas também a esmagadora maioria das ONGs.

6.6. As ONGs e a deslegitimação da revolução anticolonial

As Organizações Não Governamentais revelam a sua subordi-


nação ideológica e política inclusive em um nível diferente. Vimos
no século XX ocorrerem no plano mundial a revolução anticolo-
nial e o confronto entre anticolonialismo e colonialismo velho e
novo. Uma cultura realmente atenta aos direitos do homem não
pode deixar de levar em conta que para os países de independên-
cia recente a prioridade consiste na “liberdade de não passar ne-
cessidade”: uma vez desvencilhados da preocupação de terem de
enfrentar um ataque, a pressão, as chantagens, as interferências,
as tentativas de desestabilização – colocados em ação por grandes
potências pouco inclinadas a renunciar à sua tradicional posição
de domínio e de hegemonia –, os países de independência recente
graças ao desenvolvimento poderiam garantir aos seus cidadãos
o direito à vida, e a uma vida mais digna, e prosperar via Estado
de Direito e a democratização das relações sociais e das institui-
ções políticas. Ao contemplar com olhos atentos e sem indulgência
acrítica os países de independência recente, uma cultura dos direi-
tos do homem digna desse nome deveria prestar atenção particu-
larmente no comportamento das grandes potências ex-coloniais:
elas procuram beneficiar ou impedir, ou mesmo tornar impossí-
vel, um soberano desenvolvimento econômico e político das ex-
-colônias? Infelizmente, a ideologia dominante no Ocidente igno-
ra essa pergunta. Vejamos como argumenta um ilustre estudioso
dos “processos de democratização no final do século XX” (e assim
anuncia o subtítulo de uma obra famosa): “A descolonização da
África levou à mais profunda proliferação de regimes autoritários

255
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

da história” (HUNTINGTON, 1995, p. 43). Ou então tomemos o


historiador conservador britânico que ao mesmo tempo exalta o
Império americano como “Império liberal”: tão logo terminou a
Segunda Guerra Mundial, “a Ásia e o Oriente Médio foram leva-
dos a uma nova onda de violências que os historiadores destacam
com o eufemismo ‘descolonização’” (FERGUSON, 2008, p. 36).
Totalmente equivocado é o exame histórico sobre o qual se ba-
seia a condenação maniqueísta da descolonização. Esta é sinôni-
mo de violência? Na realidade, não por acaso a violência extrema
inerente ao colonialismo acaba por desembocar no horror do Ter-
ceiro Reich, do Império do Sol Nascente e do Império mussolinia-
no, que pretendiam retomar e radicalizar a tradição colonial. E no
que se refere ao “autoritarismo”: as cruéis ditaduras militares, que
por muito tempo marcaram o cenário político da América Latina,
foram derrubadas ao longo da luta anticolonial contra a doutrina
Monroe. E na África, apesar de tudo, a revolução anticolonial sig-
nificou o fim do poder despótico e tendente a práticas genocidas
por muito tempo exercidas pelo Ocidente contra Congo, Quênia,
Argélia, as colônias portuguesas etc. Segundo Huntington (1995,
p. 44), “a terceira onda de democratização” se inicia com o “fim da
ditadura portuguesa”. Estamos em 1974. No ano anterior, havia
ocorrido no Chile o golpe de Estado que impôs a ditadura militar
de Pinochet e reafirmou a doutrina Monroe e o poder neocolonial
de Washington. Sobre isso nada diz o estudioso estadunidense,
e do mesmo modo nada diz sobre o fato de que a viragem, que
ocorreu em Portugal em 1974, não pode ser pensada sem a revo-
lução anticolonial então em curso na África: os protagonistas da
“revolução dos cravos” são militares cansados e descontentes com
a violenta repressão suscitada pelo regime de Lisboa contra as in-
surreições independentistas em ação nas colônias portuguesas.
Manifestamente equivocado é o balanço histórico exposto por
Huntington e Ferguson, mas não é esse o ponto fundamental. O
fato de eles, com uma clareza e a intensidade ausentes em tantos
outros autores – em nome do repúdio ao “autoritarismo” e das
“violências” e da reafirmação da superioridade política e moral do
“Império liberal” –, deslegitimarem e até demonizarem a revolu-

256
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

ção anticolonial nos faz compreender qual o real objetivo do atual


discurso dominante dos direitos do homem. Anuladas ou removi-
das a “liberdade de não sentir medo” e a “liberdade de não pas-
sar necessidade”, e desconsiderando totalmente do bem diferente
contexto histórico e geopolítico no qual se encontram, de um lado,
as ex-potências coloniais e, de outro, as ex-colônias, as primeiras
podem continuar ou voltar a ser os juízes das segundas. De qual-
quer modo, retorna-se à “Emenda Platt” de funesta lembrança e se
pretende fazê-la valer em escala planetária.
Nem as ONGs nem a esquerda ocidental têm condições de con-
trapor um discurso alternativo sobre os direitos do homem. Para
esclarecer subsequentemente este ponto pode-se ter como base o
lema que, aos olhos de um renomado escritor (Anatole France),
sintetiza a hipocrisia da sociedade burguesa: “A majestosa igual-
dade das leis proíbe aos ricos bem como aos pobres de dormirem
embaixo de pontes, de mendigar pelas ruas e de roubar pão”. De
fato, quem comete esses atos ilegais são os pobres e, com isso, se
mostram malfeitores irrecuperáveis (se não por hereditariedade).
A conclusões não menos absurdas podemos chegar se apelamos
para o princípio da “majestosa igualdade das leis” quando preten-
demos julgar o respeito aos direitos clássicos da tradição liberal
em todas as partes do mundo. É absurdo, por exemplo, colocar no
mesmo plano os EUA e Cuba. De um lado, temos a superpotência
única que se arroga o direito soberano de intervir nos países rebel-
des. De outro, um pequeno país que em 1961 teve que enfrentar a
tentativa de invasão militar organizada por seu superpotente vizi-
nho; um país que muitas vezes ao longo da história sofreu atenta-
dos terroristas inspirados e tolerados por Washington e várias ten-
tativas de assassinato do seu dirigente (Fidel Castro) por agentes
da CIA; um país que há décadas suporta um embargo funesto, isto
é uma guerra econômica sempre a ponto de se converter numa
guerra de verdade; um país que vê apontada a sinistra arma da
base militar de Guantánamo para o seu próprio território. Quan-
do os EUA, tendo se comportado do modo já visto, se indignam
com o não cumprimento dos direitos humanos em Cuba, nos leva
a pensar no carrasco que, depois de ter terminado a execução, se

257
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

indigna com a cor pálida e cadavérica de sua vítima. Infelizmente,


não são poucas as ONGs que, mais do que compreender as razões
da vítima, fazem eco à propaganda do carrasco. E, ao fazerem isso,
elas se revelam incapazes de herdar os pontos fortes da tradição
liberal à qual, no entanto, não se cansam de render homenagem;
além disso, não levam em consideração a observação, já vista, de
Hamilton, com base na qual a situação de segurança geopolítica e
militar é a condição necessária para o florescimento da liberdade
de opinião e de associação.
Os autointitulados missionários de hoje se revelam inábeis
mesmo quando empreendem a campanha pela extinção da pena
de morte. A justeza dessa causa está fora de discussão. Não há
como não olhar com simpatia para o movimento de crítica em
relação às penas que não permitem nenhuma possibilidade de
redenção ao condenado (algumas vezes ele próprio vítima de
miseráveis condições ambientais). Mas tal movimento pode se
tornar plausível apenas quando se visa, em primeiro lugar, às
condenações à morte impostas sem julgamento, ou por disparar
indiscriminadamente contra inocentes. Refiro-me obviamente às
execuções extrajudiciais que amiúde envolvem pesados “danos
colaterais” – para usar uma linguagem que é bastante generali-
zada e que tem o defeito de desumanizar, em primeiro lugar, as
vítimas dos drones estadunidenses e israelenses.
É preciso acrescentar que, mesmo no caso das condenações
à morte legalmente determinadas e executadas, é absurdo fazer
valer o princípio da “majestosa igualdade” ridicularizada por
Anatole France. Historicamente, no Ocidente, a extinção da pena
de morte se estabeleceu numa situação consolidada de relativo
bem-estar e de paz e de segurança (um caso particular é o dos
Estados Unidos que desde sempre têm em seu seio uma espécie
de Terceiro Mundo para controlar e reprimir e onde quem sofre a
condenação capital são, em primeiro lugar, os negros e os pobres).
Não se pode, certamente, falar de paz e de segurança para os países
ameaçados de ataque ou desestabilização pelo imperialismo.
Verifica-se uma situação de exceção: em uma realidade como a
da Palestina ou de Cuba, o efeito dissuasório normal das penas de

258
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

detenção é frustrado pelas esperanças depositadas na intervenção


de um vizinho extrapotente, pronto a recompensar até os piores
criminosos e mesmo a levá-los ao poder, desde que sejam seus
fiéis lacaios. Em tais circunstâncias, a pena de morte pode se
tornar infelizmente a medida extrema para se obter a certeza do
direito: só assim pode-se afastar o perigo de que os responsáveis
por crimes hediondos não apenas permaneçam impunes como
também recebam abertamente recompensas e vantagens de todo
tipo. O valor inerente a um sistema jurídico que evite o recurso à
pena de morte entra em conflito com o valor não menos importante
da certeza do direito e da real igualdade diante da lei: é uma
situação trágica que, no entanto, é imputada, em primeiro lugar,
não a quem a sofre mas sim a quem a impõe, isto é, a prepotência
imperialista. Infelizmente, não parece que as ONGs tenham lido
e refletido sobre os textos de Anatole France, pois, mesmo nesse
caso, levando em consideração a “majestosa igualdade das leis”,
acabam acusando mais as vítimas do que os culpados.
À sua época, um lúcido e corajoso crítico do imperialismo
denunciou o apoio a este fornecido, na maioria das vezes com
impecável boa-fé, pelos missionários e pelo “cristianismo
imperial” (HOBSON, 1974, p. 199). Em tempos de galopante
secularização, a religião civil dos direitos humanos, encarnada
pelas ONGs, desempenha um notável papel: hoje em dia é a essa
religião que o atual neocolonialismo apela, a religião imperial
por excelência, a religião enquanto instrumentum imperii (recurso
de governo).
A subserviência das Organizações Não Governamentais à
ideologia dominante não significa que elas esporadicamente não
entrem em contradição com os governantes e com os funcioná-
rios do Império. Segundo a análise de Marx (cf. mais adiante, §
8.1), é uma contradição que, inevitavelmente, irrompe entre os
que se empenham na gestão prática do poder (neste caso, do po-
der imperial) e os que são chamados a legitimá-lo e transformá-
-lo no plano ideológico: mas se trata ainda de uma tensão interna
e de uma divisão do trabalho no geral funcional à legitimação e
à defesa do Império.

259
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

6.7. O Prêmio Nobel pela paz e o Império

A uma espécie de Organização não governamental pode ser


equiparada uma instituição que concede anualmente o Prêmio
Nobel pela paz. Mesmo neste caso, a subserviência é evidente. Dá
o que pensar a frequência com que ele é garantido a líderes políti-
cos estadunidenses. Em 1973, Henry Kissinger foi o coroado. Foi
o período em que este, de acordo com o presidente Richard Ni-
xon, ordenou “o lançamento em áreas rurais do Camboja de mais
bombas do que as que foram lançadas sobre o Japão durante a Se-
gunda Guerra Mundial, matando pelo menos 750 mil camponeses
cambojanos” (JOHNSON, 2001, p. 31). Nem é o caso de falar das
vítimas vietnamitas da dioxina: há trinta anos do fim das agres-
sões – segundo cálculos de um jornal conservador francês –, havia
ainda “quatro milhões” de vítimas com o corpo destroçado pelo
“terrível agente laranja” (em referência à cor da dioxina lançada
sem controle sobre todo um povo) (LOSURDO, 2007, cap. 1, § 3).
Em 2009, o almejado reconhecimento coube a Obama, causando
perplexidade. E novamente ficamos pasmos: mesmo com a inten-
ção de silenciar sobre Guantánamo, sobre a “kill list” semanal e os
“danos colaterais” provocados por drones, foi aclamado defensor
da causa da paz o líder de um país que se distingue, mas não pro-
priamente por ser pacifista: possui o orçamento militar de longe o
mais gigantesco do mundo e bases militares dispostas ameaçado-
ramente em todos os cantos do planeta; além disso, recusando-se
a comprometer-se em não ser o primeiro a usar a arma atômica,
de fato se reserva o direito do first strike (primeiro ataque) nuclear.
À homenagem feita periodicamente ao Império corresponde
o rude tratamento imposto aos seus inimigos ou possíveis
inimigos. Podia-se dizer que o Prêmio Nobel da paz direcione
particularmente a sua atenção aos dois países em torno dos quais
gira a principal disputa geopolítica atual. Há, porém, uma diferença
nada insignificante: no caso dos EUA são premiados e incentivados
os governantes; no caso da China, ao contrário, são os adversários,
os “dissidentes”. Em 1989, o Prêmio Nobel da paz foi concedido
ao XIV Dalai Lama, que tinha fugido da China havia três décadas,

260
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

mas que até aquele momento ainda não tinha conseguido se tornar
um regular frequentador e protegido da Casa Branca. Nos anos da
Guerra Fria os EUA precisaram agir com cautela: mesmo Taiwan
era decididamente contra a independência do Tibete. Mas com a
crise cada vez mais grave e já no horizonte o aniquilamento do
“campo socialista” e da União Soviética, era Pequim o novo alvo
da política de Washington e... do júri do Prêmio Nobel pela paz!
Depois do presidente estadunidense Obama, em 2010 foi agra-
ciado com o Prêmio Nobel pela paz um outro adversário da Re-
pública Popular da China, Liu Xiaobo. Eu disse “adversário” pelo
motivo já visto: Liu Xiaobo não se limitou a condenar o governo
de Pequim; ele expressou a sua nostalgia pela tão curta duração da
dominação colonial ou semicolonial, imposta a um país de grande
e antiga civilização, a partir das guerras particularmente hedion-
das como as do ópio; enalteceu o período anterior à fundação da
República Popular da China, que poderia ser simbolizado pelo
cartaz, já mencionado, no qual chineses são comparados a cães.
Entre os primeiros a se alegrarem com essa escolha estava a
senhora Shirin Ebadi. A “dissidente” iraniana, Prêmio Nobel pela
paz de 2003, esclareceria logo depois que não se tratava tanto de
homenagear uma pessoa, e sim para além disso de expor ao ridí-
culo um país por ela assinalado como responsável por todas as
maldades, desde o apoio a ditaduras no plano internacional até a
“exploração dos operários” no plano interno. Naturalmente, nesse
quadro não há espaço nem para as ditaduras impostas ou protegi-
das pelo Ocidente (por exemplo, no Irã do xá), nem para a retirada
de centenas de milhões de pessoas da fome, como havia ocorrido
no grande país asiático; não havia espaço para os fundamentais
direitos humanos da “liberdade de não passar necessidade” e da
“liberdade de não sentir medo”. E assim a “dissidente” e “Prêmio
Nobel pela paz” pôde divulgar a sua Cruzada: era preciso boico-
tar “os produtos chineses” e “limitar o mais possível as mudanças
econômicas e comerciais com a China” (MAZZA, 2010). Foi um
apelo a uma guerra comercial de efeitos potencialmente devasta-
dores. Uma pergunta se impõe: Prêmio Nobel pela paz ou pela
guerra (ainda que inicialmente apenas fria)?

261
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Para desfazer qualquer dúvida utilizou o discurso pronuncia-


do pelo presidente do Comitê Nobel por ocasião da entrega do
prêmio pela paz a Liu Xiaobo, transmitida ao vivo por todas as
mais importantes redes de televisão do mundo. O conceito fun-
damental estava claro: as democracias nunca fizeram guerra e não
fazem guerra entre si; por isso, para fazer a causa da paz triunfar
de uma vez por todas era preciso difundir a democracia em escala
planetária, laureando um defensor da democracia e dos direitos
do homem como Liu Xiaobo. Identificando processo de paz com
processo de democracia, o presidente do Comitê Nobel embele-
zou a história do colonialismo, que viu muitas vezes países “de-
mocráticos” fomentarem o expansionismo recorrendo à guerra, à
violência mais brutal e mesmo a práticas genocidas. E, sobretudo,
legitimou a posteriori a primeira Guerra do Golfo, a guerra contra
a Iugoslávia, a segunda Guerra do Golfo, todas comandadas por
grandes “democracias” e em nome da “democracia”.
Uma mensagem clara (e maniqueísta), mas nem por isso menos
desconexa. O presidente do Comitê Nobel teria se beneficiado da
leitura de um livro escrito por um Prêmio Nobel pela paz particu-
larmente renomado:

“Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, na Europa a maior


parte dos países (inclusive Grã-Bretanha, França e Alemanha)
era governada por instituições essencialmente democráticas. No
entanto, a Primeira Guerra Mundial – uma catástrofe da qual a
Europa nunca se recuperou totalmente – foi com empolgação
aprovada por todos os parlamentos (democraticamente eleitos)”
(KISSINGER, 2011, p. 425-426).

Mesmo se quiséssemos considerar como únicas democracias


autênticas as anglo-saxônicas, como possivelmente se inclina a
pensar o presidente do Comitê Nobel, a guerra entre a Grã-Bre-
tanha e os Estados Unidos (1812-1815) desmonta claramente sua
argumentação. Foram as únicas democracias da época e, no entan-
to, era tão exaltado o furor bélico que Thomas Jefferson comparou
o governo de Londres a “Satanás” e até chegou a declarar que a

262
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

Grã-Bretanha e os EUA estavam empenhados em uma “guerra


eterna” (eternal war), que estava destinada a se concluir com o “ex-
termínio (extermination) de uma ou de outra parte” (LOSURDO,
2010, cap. 10, § 5).
Sim, ao mesmo tempo claro, maniqueísta e desconexo foi o dis-
curso do presidente do Comitê Nobel e, no entanto, não destituído
de eficácia: foi notável a sua contribuição para a incitação à guer-
ra, felizmente à época apenas fria, contra a República Popular da
China.

6.8. A extraterritorialidade dos cristãos aos “dissidentes”

Na época clássica do colonialismo, depois de ter arrancado o


privilégio de extraterritorialidade para os seus cidadãos (solda-
dos, comerciantes e missionários), as grandes potências coloniais
terminaram impondo a ampliação desse privilégio aos cristãos
locais, àqueles que tinham se convertido à cultura e aos valores
dos conquistadores ou aspirantes a conquistadores. Se os missio-
nários de outrora encontraram os seus herdeiros nas ONGs, os
convertidos ao cristianismo levam a pensar nos atuais “dissiden-
tes”. Sim, os “dissidentes” reconhecidos e consagrados enquanto
tais pelo Ocidente tendem a desfrutar de uma espécie de extra-
territorialidade de fato. Eles primeiro são condecorados com as
mais prestigiadas recompensas (Prêmio Nobel pela paz, Prêmio
Sakharov pela liberdade de opinião criado pelo Parlamento eu-
ropeu em 1988, Prêmio pela paz dos livreiros alemães, concedido
por ocasião da Feira do Livro de Frankfurt, prêmios literários de
todo tipo); depois que se desenvolve uma campanha, que pode ser
acompanhada por ameaça de sanções comerciais e diplomáticas,
para que os agraciados por tais reconhecimentos possam em liber-
dade desenvolver as suas atividades.
Os “dissidentes”, enquanto tais, gozam de imunidade. Não im-
porta que sua ação seja criminosa, como ocorreu na Ucrânia entre
novembro de 2013 e fevereiro do ano seguinte: segundo Washin-
gton e Bruxelas, os grupos paramilitares que atacavam e ocupa-
vam ruas e edifícios públicos – onde se entrincheiravam como que

263
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

antecipando um enfrentamento armado, e com a cumplicidade,


ou sob a supervisão, do Ocidente, preparavam o golpe de Estado
– não deviam ser atacados e nem sequer impedidos; o privilégio
de extraterritorialidade era concedido até mesmo a membros de
organizações de inspiração antissemita e fascistoide, desde que
consagrados pelos Estados Unidos e pela União Europeia como
“dissidentes” e “democratas”! Quem não respeitasse esse privi-
légio era declarado inimigo dos direitos humanos e desse modo
devia ser tratado!
Honrando a dissidência e recompensando-a, os prestigiados
e inúmeros prêmios já mencionados servem também para pro-
movê-la e fomentá-la; e o mesmo objetivo perseguem as cátedras
universitárias, as bolsas de estudo etc. generosamente colocadas à
disposição dos “dissidentes” que chegam ao Ocidente.
Por sua vez, estando em sua pátria ou no exterior, os “dissiden-
tes” se preocupam em se apresentarem com uma roupa mais dig-
na e deslumbrante. Para ampliar o seu papel de heróis e mártires
da liberdade, não são tão exigentes na escolha dos meios. Grande
êxito obteve na Alemanha Liao Yiwu, “dissidente” chinês agracia-
do em grande estilo com o Prêmio pela paz dos livreiros alemães e
autor de um livro que denuncia o horror da tortura por ele sofrida
nas prisões do seu país de origem. Mas os sinólogos alemães e
os próprios círculos da “dissidência” chinesa, ou de algum modo
de oposição, chamaram a atenção para os “exageros” ou inven-
ções de que se revestia a denúncia (KÖCKRITZ, 2013). Outro caso
ainda mais estranhamente político foi aquele no qual o XIV Dalai
Lama, em agosto de 2008, teve papel de destaque. Estavam em
andamento em Pequim as Olimpíadas que ele se empenhou em
sabotar de todo modo: em uma entrevista ao Le Monde denunciou
o “massacre” realizado por autoridades chinesas no Tibete e no
qual foram mortas 140 vítimas inocentes. Mas a “revelação” logo
se mostraria destituída de qualquer credibilidade. Apesar de usar
uma linguagem cautelosa ou vacilante, o diário francês foi obri-
gado a registrar um obscuro desarranjo: “O Dalai Lama indicou
depois que as 140 vítimas não estavam confirmadas e em seguida
negou ter falado sobre o número de mortos” (BOULIN, 2008).

264
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

Como os cristãos convertidos, na época clássica do colonialis-


mo, também os atuais “dissidentes” têm as suas razões, mas como
se chega a tal avaliação e a tal reconhecimento? Por que, mais do
que “dissidente”, Edward Snowden deve ser considerado como
um traidor ou um criminoso, e um criminoso tão perigoso que,
além de prendê-lo, os EUA e o Ocidente foram autorizados a in-
terromper a viagem do presidente boliviano e a violar o direito
internacional?
Sobre a categoria de “dissidente” e sobre o seu significado e uso
convém refletir posteriormente. São considerados “dissidentes”
aqueles que nos anos da Guerra Fria, por exemplo, na Alemanha,
foram capturados e presos como membros do Partido Comunista?
Ou aqueles que, suspeitos de alimentar ideias subversivas, foram
impedidos de acessar o ensino nas escolas, nas universidades e
em outros setores de emprego público? A esses militantes ou sim-
ples cidadãos, perseguidos com o aval, ou muitas vezes a pedido
de Washington, além dos direitos humanos foram-lhes negados a
classificação de “dissidente” bem como as atenções e os reconhe-
cimentos a ela ligados. Os “não dissidentes” dos quais falamos
não tiveram a mesma sorte dos atuais “dissidentes” mimados pelo
Ocidente, aparentemente a única autoridade à qual compete o di-
reito de atribuir uma avaliação altamente dignificante.
Evidentemente, estamos diante de uma categoria usada de
modo funcional e muitas vezes como arma. Tomemos um expo-
ente da oposição pró-ocidental a Cuba: ele é certamente um “dis-
sidente” em relação ao poder em vigor em seu país que, no entan-
to, é por sua vez “dissidente” em relação ao poder exercido pelos
EUA em nível planetário e, de modo particularmente convincente,
na América Latina. Se se critica a pena de prisão imposta ao pri-
meiro “dissidente”, com maior razão é preciso criticar a tentativa
de silenciar o segundo “dissidente” mediante a invasão armada
da ilha e o assassinato de seu líder.
O círculo concêntrico das dissidências pode ser ainda mais
complicado: o XIV Dalai Lama e os seus partidários são “dissi-
dentes” em relação ao poder central vigente na China que, por
sua vez, acusada de ser “dissidente” e de estimular a dissidência

265
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

antiestadunidense e antiocidental, durante décadas por iniciativa


de Washington foi excluída até mesmo da ONU. Até aqui, não há
novidades no que se refere à situação anteriormente analisada. O
elemento novo (e quase sempre suprimido) são os “dissidentes”
em relação ao XIV Dalai Lama. Eles não são poucos e em nada
resignados: em 1992, durante a sua viagem a Londres, ele foi moti-
vo de manifestações hostis da parte da maior organização budista
da Grã-Bretanha, que o acusou de ser um “cruel ditador” e um
“opressor da liberdade religiosa” (LOPEZ JR., 1998, p. 193-194).
Assim se expressam os devotos de uma divindade tibetana (Dor-
je Shugden) por muito tempo venerada pelo próprio XIV Dalai
Lama, antes de ele proibir o seu culto em 1975. Nem todos o segui-
ram nesse caminho; e aqueles que persistiram em se ater à velha fé
foram punidos com excomunhão, isolamento social, intimidação
ou violência real. A partir daí começaram a protestar em Londres
e em outros lugares. Para concluir: temos três círculos de dissidên-
cia, mas, aos olhos do Ocidente, os únicos “dissidentes” dignos
desse nome e merecedores de respeito são aqueles que se alinham
contra a República Popular da China ou contra outros países acu-
sados de serem dissidentes em relação a Washington e Bruxelas.
Aos que soberanamente receberam o título de “dissidentes”, o
Ocidente procura não apenas garantir o privilégio da extraterrito-
rialidade e outros benefícios materiais, desde que tenham deixado
o seu país de origem, como também concede-lhes o título de san-
tos e mártires da religião civil dos direitos humanos, da qual posa
como representante e guardião.

6.9. Um olhar laico sobre os “mártires” da religião civil


dos direitos humanos

É certo lançar um olhar laico a tais santos e mártires sem


ser acusado de blasfêmia? Dentre eles também figura Mikhail
Khodorkovski, cujo enriquecimento imediato e fabuloso logo após
o aniquilamento da União Soviética foi descrito muitas vezes pela
própria imprensa estadunidense como um capítulo da história da
criminalidade financeira russa e internacional (PFAFF, 2005). Mas

266
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

não faltam certamente outras personalidades notáveis. Há algum


tempo atrás o La Stampa publicou um artigo do correspondente de
Moscou do Sunday Times com este título: Il blogger Navalny: Putin
ha paura di fare la fine di Gheddafi (O blogueiro Navalny: Putin tem
medo de acabar como Gaddafi). Eis um “dissidente” a chamar,
ou clamar, a repetição de um odioso crime e clamá-lo contra um
presidente no poder graças a um voto – ressaltava o mesmo arti-
go – considerado “válido” pelos “observadores internacionais”. E
quem era aquele que desejava o linchamento, a tortura e o assassi-
nato de um presidente eleito democraticamente? Era – comentou
a fonte já citada – um personagem conhecido por “suas ideias na-
cionalistas e a dura posição contra os imigrantes” (FRANCHET-
TI, 2012). Entre os milagres do aspirante a Império planetário se
encontra também aquele de transformar em “dissidentes” ou até
em santos e mártires da causa da democracia mesmo os chefes de
bandos fascistoides.
Obviamente que, na atual plêiade internacional, os dissidentes
por excelência são aqueles que tomam posição contra o governo
da República Popular da China. Dentre eles se distingue Wei Jin-
gsheng, um dos protagonistas de Tienanmen em 1989, que ago-
ra vive com todas as honras em Nova Iorque. Mais do que em
um livro seu, também traduzido na Itália, convém tomar como
base uma entrevista dele, de 1998, para uma renomada revista
estadunidense. Depois de lamentar a pouca atenção a ele reser-
vada, durante a sua viagem a Paris, pelas autoridades e pela po-
pulação francesa, o ilustre “dissidente” sentenciou: “É isso o que
acontece quando países do Ocidente adotam os valores chineses”
(in: MIRSKY, 1998). Como se vê, alvo da polêmica não é o Parti-
do Comunista chinês, mas sim a China enquanto tal, que aqui se
torna sinônimo de barbárie, como na ideologia e na propaganda
do colonialismo e do imperialismo clássicos. E, na vertente opos-
ta, enaltecido como único guardião da civilização e dos direitos
do homem não foi apenas o Ocidente de hoje, mas ao invés disso
o Ocidente enquanto tal, incluindo o protagonista das sórdidas
guerras do ópio (e dos ataques e dos massacres que transpassam
profundamente a tradição colonial).

267
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

O mínimo que se pode dizer é que a autofobia imposta pe-


los colonizadores foi aqui assimilada e internalizada profunda-
mente. Na realidade, nos encontramos diante de algo muito pior.
Wei Jingsheng faz uma reivindicação exaltada do imperialismo
e de sua missão civilizadora planetária. Recusando-se a recorrer
a uma guerra comercial (ou até de outro tipo?) contra os gover-
nantes de Pequim, os Estados Unidos demonstram ter “confiado
o povo chinês a um líder que não tem absolutamente nenhum
interesse nos direitos humanos” (IDEM). Sublinhei em itálico um
termo revelador: a soberania universal compete originariamente
e por direito intransferível ao líder planetário que se encontra
em Washington e que pode garbosamente “confiá-la” aqui e ali a
uma pessoa próxima digna de sua confiança. Mas nos encontra-
mos diante de um “dissidente” ou de um aspirante a pró-cônsul
do Império americano?
Certamente, Wei Jingsheng é particularmente tosco. Ocupemo-
-nos então de um “dissidente” com uma cultura claramente supe-
rior. Dele reconstruímos a figura e a atividade recorrendo a uma
recordação afetuosa escrita, por ocasião de sua morte, por um
autor estadunidense. Trata-se de Fang Lizhi, “um eminente pro-
fessor de astrofísica, um astro na luta pelos direitos humanos na
China contemporânea”. Depois da chegada de Deng Xiaoping ao
poder, enquanto os governantes do seu país falavam na necessida-
de de uma “modernização com características chinesas” também
no que se refere às reformas políticas, “Fang respondeu em modo
satírico perguntando aos estudantes se eles acreditavam em uma
física com características chinesas”. Foi essa campanha de agita-
ção nas aulas universitárias que provocou o conflito. No entanto,
pelo menos até 1987, Fang Lizhi continuou a ocupar o cargo, a ele
confiado em 1984, de vice-reitor da Universidade de Ciência e Tec-
nologia de Hefei (LINK, 2012). Após a sua demissão, tornou-se o
maître à penser (guru) dos manifestantes (nada pacíficos) da Praça
Tienanmen: antes de ser preso, ele se refugiou junto com a esposa
na Embaixada estadunidense em Pequim para depois se mudar
para os EUA (KISSINGER, 2011, p. 429). A razão estava totalmente
do lado do “dissidente”? Como justificativa para o seu comporta-

268
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

mento as autoridades chinesas podiam ter usado um clássico do


pensamento ocidental: “A política não combina com sala de aula
(...). A cátedra não é para os profetas e os demagogos” (WEBER,
1966, p. 28-29). Tendo deixado para trás as campanhas de mobi-
lização ideológica e de doutrinação do período maoísta, o novo
percurso de Deng Xiaoping chamava as escolas e universidades a
desempenharem o papel tradicional de estudo, ensino e pesquisa.
O ilustre astrofísico, ao contrário, pretendia promover uma cam-
panha política de oposição, e promover tal campanha justamen-
te no momento em que, depois de ter alcançado êxito na Europa
oriental, os EUA tentaram repeti-lo no grande país asiático. Entre
os tantos hagiógrafos da dissidência chinesa, nenhum jamais se
perguntou se nos Estados Unidos dos anos da Guerra Fria a um
astrofísico comunista teria sido permitido valer-se de sua cátedra
para divulgar os méritos da China de Mao Tse-tung e condenar a
política de estrangulamento contra ela praticada por Washington?
Mas agora nos detenhamos sobre o modo de argumentar de
Fang Lizhi, e igualmente como o descreveu seu dedicado hagi-
ógrafo estadunidense: é correto comparar a “modernização” ou
mesmo a democracia com a ciência física, como se a história, a
cultura, as condições concretas de um simples país não desem-
penhassem nenhum papel? No âmbito do próprio Ocidente são
evidentes as diferenças de sistema político e social entre um país
e outro. E, no que se refere aos EUA, trata-se de um país que, para
conseguir a sua atual configuração (com a abolição da escravidão
e do regime de white supremacy e com a superação da discrimina-
ção censitária e sexual além da racial), precisou de cerca de dois
séculos.
De tudo isso não tem conhecimento Fang Lizhi, que justamente
por isso pode se tornar precioso para a campanha de demoniza-
ção da República Popular da China. No The New York Review of
Books ele resenhou o livro de Ezra F. Vogel (professor emérito de
Harvard) dedicado a Deng Xiaoping, usando uma linguagem que
dá o que pensar. O autor do livro ressalta: superada a tragédia da
Praça Tienanmen, a China conheceu um milagre econômico que
retirou da miséria centenas de milhões de pessoas. Enfurecida foi

269
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

a resposta do dissidente que citou um discurso pronunciado por


Reagan em Pequim em abril de 1984:

“A nossa paixão pela liberdade conduziu à Revolução Ameri-


cana, a primeira grande revolta pelos direitos humanos e a in-
dependência do poder colonial. Sabíamos que nenhum de nós
podia usufruir da liberdade se não estivéssemos dispostos a
compartilhá-la com todos os outros”.
O “dissidente” comentou: “O livro de Vogel permite apenas
duas possibilidades: o autor não compartilha essas ideias sobre os
direitos humanos, ou então ele recorre a um duplo padrão para
a China e para os EUA” (FANG LIZHI, 2011, p. 8). Surge uma
constante no discurso dos “dissidentes”. São objeto de enalteci-
mento acrítico os EUA, enquanto tais a partir da sua fundação:
do quadro histórico é apagado o destino reservado aos negros e
peles-vermelhas pela revolução americana e pelos Pais Fundado-
res; e naturalmente não há espaço para um retrato um pouco mais
realista de Reagan. Na vertente oposta, também com o objetivo
de demonizar a China, é suprimida da Carta dos Direitos a “li-
berdade de não passar necessidade” (além da “liberdade de não
sentir medo”), de modo que se torna imediatamente um inimigo
dos direitos do homem (e em seguida do Ocidente) qualquer um
que ouse reconhecer o mérito da República Popular da China de
ter retirado centenas de milhões de pessoas da miséria e de uma
condição desesperadora (à qual o ataque colonialista e imperialis-
ta havia reduzido uma civilização milenar). No estudo de Vogel,
a conclusão do astrofísico “dissidente” é categórica: a “sistemática
falta de consideração pelos direitos humanos é uma das caracte-
rísticas do livro” (IDEM, p. 8). É quase uma denúncia, e na época
de MacCarthy o seu autor podia ter feito carreira (e provocar o
desfortúnio de Vogel).
Desse discurso da dissidência surge um elogio ao Ocidente tão
fundamentalista que tende a desembocar na reabilitação até mes-
mo do colonialismo ocidental. Essa tendência se torna explícita
no “dissidente” chinês hoje mais conhecido, Liu Xiaobo, que em
2010 obteve o Prêmio Nobel pela paz. Em 1988, declarou em uma

270
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

entrevista que a China precisava passar por “300 anos de coloni-


zação” para poder se tornar um país decente, de tipo obviamente
ocidental; e reforçou essa tese em 2007. Retiro essa informação de
um artigo publicado no South China Morning Post de Hong Kong
(SAUTMAN, HAIRONG, 2010). Não se trata de um jornal alinha-
do com as posições de Pequim, ao contrário, ele censura o governo
por ter punido uma opinião tão “repulsiva” com a prisão e não
com a crítica.
A observação é interessante. É preciso, porém, ter presente que
na Europa certamente não faltam países que punem com o cárcere
opiniões consideradas “negacionistas”, acusadas de negar, colo-
car em dúvida ou mesmo apenas de redimensionar a verdade do
genocídio causado pelo Terceiro Reich ao povo hebreu. O povo
chinês não teve o mesmo destino, ainda que Sun Yat-Sen temesse
ser este justamente o resultado da dominação colonial: “Os peles-
-vermelhas da América já foram exterminados (...). A raça amare-
la asiática é hoje oprimida pelos brancos, talvez não passe muito
tempo e também ela seja exterminada” (SUN YAT-SEN, 1976, p.
66-67). Por sorte, esse temor se revelou exagerado. Entretanto,
analisando um período ao qual um respeitável historiador ociden-
tal chamou de “China crucificada”, “dos anos 1850-1950”, quando
o grande país foi vítima da agressão colonial (na prática, período
que vai das Guerras do Ópio à fundação da República popular), é
preciso não perder de vista um dado impressionante: “sem dúvi-
da o número de vítimas na história do mundo nunca foi tão alto”
(GERNET, 1978, p. 565 segs. e 579). Após a invasão desencadeada
pelo Japão, que recupera e radicaliza a tradição colonial, ocorre o
que uma autora chinesa de Taiwan definiu como “o holocausto
esquecido”. Nas áreas onde é mais encarniçada a resistência, os in-
vasores recorrem à política dos “três tudo”, isto é: “Saqueia tudo,
mate todos, queima tudo”. Em seu diário, um coronel japonês
constatou: “Recebi ordens do meu superior para que aqui todas as
pessoas devem ser mortas” (CHANG, 1997, p. 215-216). Se é cor-
reto punir com penas de prisão os negacionistas do hebreucídio,
é correto destinar o mesmo tratamento também aos negacionistas
da “China crucificada” e do “holocausto esquecido”.

271
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Ainda mais porque o que foi expressado por Liu Xiaobo não
é uma simples opinião. Se apenas a ficção política pode imaginar
um retorno ao poder do nazismo na Alemanha, sobre a China con-
tinua a pesar de uma maneira ou de outra a pressão das grandes
potências que no passado provocaram a sua “crucificação” ou a
sua catástrofe. Podemos, porém, chegar a uma conclusão: é bem
difícil identificar a causa dos “dissidentes” com a causa da demo-
cracia, muito menos com a causa da democracia nas relações in-
ternacionais, da qual eles são inimigos implacáveis e declarados.

6.10. Da “dissidência” ao “colaboracionismo”

Na época clássica do colonialismo os cristãos convertidos à cul-


tura e à religião do Ocidente, e por este último felicitados e recom-
pensados com o privilégio da extraterritorialidade e com outros
favores, tinham as suas razões; mas os seus inimigos ou perse-
guidores também não estavam destituídos de razão. Vejamos qual
foi a atitude dos cristãos (missionários e convertidos) na China da
segunda metade do século XIX. Naqueles anos, um diplomata es-
tadunidense constatou criticamente o fato de que, não contentes
com desfrutar do privilégio da extraterritorialidade, os missioná-
rios católicos

“(...) procuram contestar a autoridade dos funcionários chineses


sobre os cristãos do lugar, o que na prática retira esta categoria
da jurisdição dos seus governantes: nesse sentido, a ação dos
missionários católicos protege os cristãos locais das sanções
da lei e desse modo estimula aqueles que andam fora da lei a
aderirem à Igreja católica, a qual tira assim grande vantagem”
(ESHERICK, 1987, p. 83).

Em 31 de dezembro de 1897, o coronel Browne, adido militar


da Embaixada britânica em Pequim, afirmou que “neste país, ainda
que o estrangeiro seja desprezado, o nativo que segue o credo dos
estrangeiros conquista frequentemente poder e influência que não
poderia conquistar de modo diferente” (PURCELL, 1963, p. 124).

272
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

De maneira semelhante, no mundo islâmico as comunidades


estrangeiras, ou mesmo cristãs e hebraicas, funcionavam como
Estados dentro de Estados e desfrutavam de uma extraterritoria-
lidade imposta por força militar do Ocidente (LEWIS, 1993, p. 48).
Estava em ação um protetorado que autorizava a Rússia czarista
a se exibir como protetora não apenas dos cristãos mas também
dos hebreus que ela oprimia sem piedade em sua própria casa
(LEWIS, 1984, p. 161).
É particularmente significativo o que ocorreu em 1900. O The
Times assim descreveu o comportamento da comunidade cristã
chinesa por ocasião da brutal repressão ocidental da revolta dos
Boxer:

“O fim do cerco foi marcado pelo massacre de uma grande quan-


tidade de chineses que haviam sido cercados em um beco sem
saída e foram mortos até o último homem, enquanto os chineses
convertidos ao cristianismo se uniram aos soldados franceses da
força libertadora, que lhes emprestaram as baionetas para que
se entregassem a um espírito de vingança” (in: HOBSON, 1974,
p. 259, nota).

Claramente, na China os cristãos haviam passado da “dissidên-


cia” em relação ao poder em vigor em Pequim ao “colaboracionis-
mo” ao lado e a serviço das potências coloniais. E nos dias atuais?
Qual relação os “dissidentes” instituíram com o país em que vivem
ou do qual são provenientes? Vejamos alguns exemplos, começan-
do pela Rússia. Estamos em janeiro de 1996: assustado com o êxi-
to eleitoral obtido pelos comunistas, o presidente Iéltsin se sentiu
obrigado a torpedear alguns dos “reformistas” mais fanáticos que,
com a privatização selvagem da economia, tinham provocado um
desastre; os “reformistas” (ou então, mais exatamente, os fanáti-
cos do neoliberalismo) reagiram prontamente apelando ao Fundo
Monetário Internacional e aos EUA para que negassem a Moscou
o empréstimo já prometido de 9 bilhões de dólares (DOBBS, 1996).
Foram os anos mais terríveis da Rússia pós-soviética, aflita com a
“queda da expectativa média de vida” e com o “genocídio dos ve-

273
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

lhos” (DUVERGER, 1993). Mas com nada disso se preocupavam


os “dissidentes” protegidos pelo Ocidente e por seu país-guia.
De maneira semelhante, naquele mesmo período os “dissiden-
tes” chineses apoiavam, ou melhor solicitavam uma política que
foi assim descrita no International Herald Tribune: todo ano, “os lí-
deres americanos sacavam uma das armas mais poderosas do seu
arsenal comercial, visando de modo ostensivo à China, e depois
discutiam violentamente se puxariam ou não o gatilho”. A não
renovação da cláusula da nação mais favorecida (que, apesar do
nome pomposo, na realidade estabelece regulares câmbios comer-
ciais) constituiria, “em termos de dólares, a maior sanção comer-
cial da história dos EUA, excluindo as duas guerras mundiais”;
seria “o equivalente comercial de um ataque nuclear” (DALE,
1996). Esta era também a opinião de um ilustre politicólogo esta-
dunidense, Edward Luttwak (1999, p. 151): “Com uma metáfora
se poderia afirmar que o bloqueio das importações chinesas é a
arma nuclear que a América tem apontada para a China”. É preci-
so admitir que ameaçar ou pedir ataques tão devastadores contra
os próprios concidadãos é um modo bastante particular de pro-
mover os seus direitos humanos. Pelo menos no que se refere às
relações internacionais, certamente não são os “dissidentes”, que
ao contrário teorizam a lei do mais forte, que podem expressar as
razões da democracia. Seria conveniente avaliar a sinceridade da
sua profissão de fé democrática com a análise das posições por
eles tomadas em relação às tormentas de fogo e de sangue e aos
embargos com que são punidos e dizimados os povos dissidentes
em relação a Washington.
Enfim. Estamos no Irã, entre outubro e dezembro de 2012: a
visita programada de deputados europeus a Teerã, que depois foi
efetivamente cancelada, – comentou um respeitável diário fran-
cês – foi impedida pelas manobras e as “pressões (lobbies) de Isra-
el, dos Estados Unidos e da oposição iraniana” (STROOBANTS,
2012). Portanto, os assim ditos “dissidentes” participaram ativa-
mente, junto com os inimigos declarados do Irã, de um movimen-
to que visava a isolar e refrear o país em que viviam e trabalha-
vam, enfraquecendo-o em vista também do ataque militar, ao qual

274
6. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO: DESCONTINUIDADE E CONTINUIDADE

Tel Aviv e Washington declararam abertamente estarem prontos a


executar: tudo isso foi apenas um crime de opinião reprimido por
um regime autoritário ou totalitário? Mas isso não é tudo. Leia-
mos uma outra notícia, desta vez extraída de um diário italiano,
também insuspeito de sentimentos antiocidentais. Um novo vírus
atacou o Irã. Quem foram os responsáveis? Os olhares estavam
voltados para Israel e os EUA; mas talvez podia se tratar de “um
‘trabalho interno’”, isto é, de “uma ação praticada por sabotadores
ligados à oposição ou por qualquer funcionário das estruturas es-
tatais iranianas”. Havia sido então formulada a hipótese de “dissi-
dentes” em ação, enquanto no país estavam em curso “sabotagens,
explosões nas bases, assassinatos de cientistas” (OLIMPIO, 2012).
A esta altura se impõe uma comparação. Os suspeitos islâmicos,
possíveis protagonistas ou cúmplices de um atentado terrorista
nos Estados Unidos ou em Israel, ou nas áreas ocupadas por Isra-
el, são sistematicamente eliminados em execuções extrajudiciais;
porém, só há indignação quando se tomam medidas bem menos
graves contra aqueles que colaboram, pelo menos no plano políti-
co, com as potências responsáveis pelo desencadeamento da cyber
war contra o Irã e pelo assassinato dos seus cientistas nucleares;
contra aqueles que desempenham um papel ativo na imposição
de um embargo devastador e que podem ser suspeitos de estarem
prontos a apoiar no plano político, ou com operações de inteli-
gência, os bombardeamentos em larga escala que se esboçam no
horizonte. É preciso reconhecer que, ao atacarem os seus inimigos
ou possíveis inimigos, os governantes de Teerã se revelam mais
moderados que os de Tel Aviv e Washington. Ainda mais que ape-
nas os primeiros correm o risco de serem barbaramente torturados
e assassinados como Gaddafi, ou de terminarem os seus dias em
uma prisão em Haia, depois de serem submetidos a um processo
unilateral, se não farsante, por obra da Corte Penal Internacional;
enquanto desfrutam de imunidade aqueles que no Ocidente se
tornam responsáveis ou corresponsáveis por uma sucessão inter-
minável de execuções extrajudiciais e em seguida muitos danos e
vítimas colaterais, e bombardeamentos e guerras não autorizados
pelo Conselho de Segurança da ONU.

275
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Em relação à independência de tais “dissidentes” também é


correto ter alguma dúvida. A Internacional Comunista, o Comin-
tern, já há um certo tempo está morta, e foram extintas igualmente
as organizações que a ela se seguiram. Permaneceu a “Internacio-
nal” comandada pelos EUA que, em nome dos “direitos huma-
nos”, pretendem interferir nos assuntos internos de qualquer país,
onde, seja da forma que for, ela conta com a sua ativa “seção”. Na
realidade, para compreender o atual cenário internacional, mais
do que ao Comintern é preciso fazer referência à tradição colonial.
São melhores os atuais “dissidentes” do que os cristãos converti-
dos (graças à ação de missionários enviados pelas grandes potên-
cias coloniais da época aos países dominados ou a serem domina-
dos) e protegidos por escandalosos privilégios? Eis uma pergunta
constantemente ignorada pela esquerda ocidental.

276
7

Contrarrevolução
neocolonial e “pivot”
antichinês

7.1. Os EUA e a China

É
muito mais necessário e urgente refletir sobre a história
do colonialismo velho e novo pelo fato de a situação
internacional e o conflito de longa data entre colonialismo
e anticolonialismo estarem a ponto de sofrer uma viragem.
Com a guerra contra a Líbia e com o “novo Sykes-Picot” que foi
concebido no Oriente Médio, vemos surgir uma nova divisão de
trabalho no âmbito do imperialismo, obviamente sob o comando
de Washington, mas não destituída de contradições em seu
interior. As grandes potências coloniais tradicionais, como a
Inglaterra e a França, se concentram no Oriente Médio e na África,
enquanto a Alemanha – como demonstra a atitude assumida por
esta por ocasião da crise iugoslava e depois ucraniana – concentra
as suas atenções e estende o seu ativismo para os Bálcãs e a Europa
oriental; os EUA poderiam, assim, transferir cada vez mais o seu
dispositivo militar para a Ásia visando com o “pivot” à República
Popular da China.
Voltamos assim ao país surgido daquela que pode ser definida
como a maior revolução anticolonial da história. Não se trata ape-

277
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nas do fato de ela ter acontecido no país mais populoso do mundo:


a tragédia que ocorreu a partir das Guerras do Ópio teve como
vítima um povo que, depois de ter ocupado por séculos e mesmo
por milênios um lugar de primeiro plano no âmbito da civilização
mundial, em um tempo extraordinariamente curto sofreu uma
catástrofe sem precedentes e um processo de rápida e radical de-
monização. O “século das humilhações” ou ainda da “China cru-
cificada” coincidiu com o período em que a arrogância e a barbárie
do colonialismo e do imperialismo haviam chegado ao seu ápice; e
a fundação da República Popular da China é o resultado da resis-
tência primeiro contra o imperialismo japonês (que rivalizava com
o hitleriano) e depois contra o imperialismo estadunidense.
A República Popular da China é o país que sintetiza ao mes-
mo tempo a história do movimento comunista e do movimento
anticolonialista. Na onda da Revolução de Outubro, Lênin espe-
rava que o conteúdo principal, ou exclusivo, do século XX que se
iniciava, seria a luta entre capitalismo, de um lado, e socialismo/
comunismo, de outro: o mundo colonial havia sido então total-
mente ocupado pelas potências capitalistas e toda nova partilha,
por iniciativa das potências derrotadas ou “prejudicadas”, pode-
ria significar uma nova guerra mundial e um novo passo adiante
rumo à destruição final do sistema capitalista: a conquista da nova
ordem socialista entrou imediatamente na ordem do dia! Mas Hi-
tler fez um movimento inesperado: detectou na Europa oriental
o espaço colonial ainda livre e à disposição do império alemão a
ser edificado; e de modo semelhante, como sabemos, se compor-
taram o Império do Sol Nascente e a Itália fascista. Foi assim que
no país de antiga ou antiquíssima civilização e na própria Europa
irrompeu a luta entre, de um lado, colonialismo e, de outro, anti-
colonialismo (promovido e, em geral, comandado pelo movimen-
to comunista). Dessa situação inesperada Mao Tse-tung forneceu a
síntese mais eficaz, evidenciando em determinadas circunstâncias
“a identidade entre a luta nacional e a luta de classe” (LOSURDO,
2013, cap. 6, § 7).
A vitória da revolução anticolonialista mundial não fez desapa-
recer a questão colonial: os países de independência recente foram

278
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

chamados a preencher o abismo econômico e tecnológico que os


separavam dos países capitalistas mais avançados (e das ex-po-
tências coloniais), se quisessem evitar que a independência polí-
tica conquistada se tornasse algo meramente formal. Demonstrou
uma consciência mais lúcida sobre a necessidade dessa nova etapa
da revolução anticolonial um outro líder chinês, Deng Xiaoping.
Afirmar a centralidade no século XX e neste início do século
XXI da luta entre colonialismo e anticolonialismo não significa ig-
norar a luta anticapitalista.Trata-se ao contrário de compreender
esta última a partir da primeira. Tanto Mao quanto Deng estima-
vam a palavra de ordem “só o socialismo pode salvar a China”: no
grande país asiático a nova ordem pós-capitalista foi planejada e
começou a tomar forma a partir da luta contra a dominação colo-
nial; de modo semelhante, na América Latina, o “socialismo do sé-
culo XX” foi pensado e se difundiu na onda da luta contra a dou-
trina Monroe e pela independência nacional. Resta o fato de que,
mais do que qualquer outro país, a República Popular da China
expressa de modo resumido a história da revolução anticolonia-
lista e do movimento comunista e do entrelaçamento daquela com
este. Vimos Brzezinski ressaltar o papel essencial desempenhado
pela “guerra popular” (que teve em Mao o seu primeiro grande
representante) ao longo da revolução anticolonial. Mas não me-
nos importante é o ensinamento aos países recém-independentes
fornecido por Mao Tse-tung e depois, de forma mais orgânica, por
Deng Xiaoping, sobre a necessidade da passagem da fase predomi-
nantemente militar para a fase predominantemente econômica da
revolução anticolonial. Não é por acaso que as reformas realizadas
na China inspiram o Vietnã e, mais recentemente, também Cuba
e, com modalidades diversas, um número crescente de países do
Terceiro Mundo, inclinados a acabar com o neoliberal “Consenso
de Washington” para dedicar-se ao “Consenso de Pequim”.
Se o país contra o qual é dirigido o “pivot” é proveniente da
maior revolução anticolonial da história, o país que o promove é
aquele que mais do que qualquer outro conseguiu conferir uma
aparência anticolonial ao seu expansionismo colonial e neocolo-
nial. Isso valeu desde a fundação dos EUA, provenientes não de

279
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

uma revolução anticolonial, mas sim de uma contrarrevolução


colonialista. A minha afirmação pode parecer inutilmente polêmi-
ca e provocativa, mas ela está em consonância com a conclusão à
qual chegam os analistas estadunidenses de orientação conserva-
dora, mas capazes de olhar de frente a realidade:

“A revolução americana não foi uma revolução social como a


francesa, a russa, chinesa, mexicana ou cubana, foi uma guerra
de independência. E se tratou não de uma guerra de indepen-
dência conduzida pelos autóctones contra os conquistadores
estrangeiros (como no caso dos indonésios em luta contra os ho-
landeses e dos vietnamitas e argelinos contra os franceses), mas
da guerra dos colonos contra o seu país de origem. Se quiser
compará-la a alguma coisa recente é preciso referir-se à revolta
dos Pieds-Noirs (franceses) da Argélia contra a República (fran-
cesa) ou à atitude assumida pelos (colonos) rodesianos em rela-
ção ao Reino Unido” (HUNTINGTON, 1968, p. 134).

Ninguém falaria de revolução a propósito das revoltas dos co-


lonos contra uma mãe-pátria considerada culpada de fazer con-
cessões à revolução anticolonial. Na América do Norte, no fim do
século XVIII, protagonistas da revolta foram os colonos que não
suportavam a proibição de expansão para além dos montes Apa-
laches imposta pelo governo de Londres. No início do século XX,
Theodore Roosevelt (1901, p. 246-247) ressaltou:

“O fator principal que produziu a Revolução, e mais tarde a


guerra de 1812, foi a incapacidade da mãe-pátria de compreen-
der que os homens livres, que avançavam na conquista do con-
tinente, deviam ser encorajados nessa ação (...). A expansão dos
duros e aventureiros homens da fronteira era para os estadis-
tas de Londres motivo de preocupação mais do que orgulho, e
a famosa Lei de Quebec de 1774 foi em parte elaborada com o
objetivo de manter permanentemente ao leste dos Aleganis as
colônias de língua inglesa e manter o poderoso e belo vale do
Ohio como terreno de caça para os selvagens”.

280
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

Colocada em sua justa perspectiva histórica a guerra de inde-


pendência contra a Grã-Bretanha é uma – e mesmo a mais impor-
tante – das recorrentes insurreições por meio das quais os colonos
procuraram se libertar do controle exercido seja pelo poder cen-
tral seja pela Igreja, para chegarem a uma espécie de solução final
para a questão representada pelos nativos: não por acaso o perío-
do mais trágico da história dos ameríndios se iniciou justamente
com a fundação dos EUA.
Ao mesmo resultado chegamos se nos concentramos sobre a
“questão negra”. Na república norte-americana a escravidão foi
abolida três décadas mais tarde que nas colônias do país (a Grã-
-Bretanha) contra o qual ela havia se rebelado. Certamente, para
um daqueles paradoxos dos quais é rica a história, tal rebelião ter-
minou por inspirar a Revolução Francesa que desaguou, em Santo
Domingo, no Haiti, na revolução dos escravos negros comandada
por Toussaint Louverture. E, no entanto, junto com a França na-
poleônica, os Estados Unidos se revelaram os mais implacáveis
inimigos do país proveniente dessa Revolução, do primeiro país
no Novo Mundo a ter se livrado do instituto da escravidão. Ainda
mais significativo é o fato de que, em meados do século XIX, no
Texas arrancado do México, os EUA vitoriosos restabeleceram a
escravidão anteriormente abolida na onda da revolução antiespa-
nhola.
Em relação à doutrina Monroe pode-se fazer uma conside-
ração semelhante àquela já desenvolvida sobre a fundação dos
EUA: aparentemente, aquela doutrina visava apenas a proteger o
hemisfério ocidental do expansionismo colonial europeu; de fato,
ela significou a abertura de um novo capítulo da história do colo-
nialismo: o neocolonialismo fomentado e imposto pela república
norte-americana.
Vamos agora dar um salto de algumas décadas. A guerra co-
mumente chamada de hispano-americana é também, e talvez em
primeiro lugar, uma nova contrarrevolução colonial (ou neocolo-
nial). Em Cuba a intervenção dos EUA sufocou o movimento in-
dependentista, obrigado assim a permitir a Emenda Platt e o pro-
tetorado de Washington. Algo muito pior ocorreria nas Filipinas,

281
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

colônia espanhola: sobre a revolução conduzida por Aguinaldo se


abateu uma repressão de rara violência (em certos vilarejos recor-
ria à execução de todos os homens acima de dez anos de idade)
(LOSURDO, 1996, cap. 7, § 5). Na onda desses acontecimentos,
Theodore Roosevelt teorizou o “poder de polícia internacional”
que os países realmente civilizados foram chamados a exercer so-
bre os bárbaros ou semibárbaros (entre os quais, também Cuba e
as Filipinas).
No que se refere ao território metropolitano dos EUA, após a
abolição da escravidão ao final da Guerra de Secessão (ocorrida
com décadas de atraso em relação às colônias britânicas e a boa
parte da América Latina) surgiu o regime terrorista assentado na
white supremacy (supremacia branca) que, não por acaso, se tornou
mais tarde um modelo para o Terceiro Reich, empenhado em reto-
mar e radicalizar a tradição colonial e a construir um Estado racial.
Após a derrota da Alemanha hitleriana, não há dúvidas de que
os Estados Unidos tenham se tornado o inimigo principal da re-
volução anticolonialista: dela sabem algo Cuba e inúmeros outros
países da América Latina; dela sabe algo o Vietnã; dela sabe algo a
própria Palestina, cujos habitantes sofrem um processo de ininter-
ruptas expropriação e colonização também por causa da substan-
cial cumplicidade entre Washington e Tel Aviv.
Enfim, dela sabe algo a China: depois de ter sido impedida de
levar a termo o processo de unificação nacional e de recuperação
da integridade territorial, ter permanecido por longo tempo isola-
da diplomaticamente e debilitada economicamente, é agora alvo
do “pivot” organizado por um aterrorizante aparato militar. No
momento da finalização da primeira etapa da revolução antico-
lonial do grande país asiático, desenvolveu-se nos EUA um in-
quietante e revelador debate: “Who lost China?”. A superpotência
aparentemente invencível tinha deixado escapar de suas mãos um
país de enorme importância estratégica e um mercado potencial-
mente imenso: quem era o responsável? Com o lançamento das re-
formas de Deng, no início da segunda etapa da revolução antico-
lonial ressurgiram nos Estados Unidos esperanças de reconquistar
o país “perdido” trinta anos antes:

282
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

“Alguns analistas previram até que as Zonas econômicas espe-


ciais se tornariam uma espécie de colônia americana na Ásia
oriental (...). Os americanos acreditavam que a China se tornaria
uma gigantesca sucursal econômica dos Estados Unidos” (FER-
GUSON, 2008, p. 585-586).

Mas mesmo neste caso, a decepção não demorou a chegar. Se


após a primeira “perda” do grande país asiático ocorreu a política
de “contenção” e de cruel estrangulamento diplomático e econô-
mico, após a segunda “perda” ocorreu o “pivot”.

7.2. Um país muito grande para não querer o


desmembramento

O “pivot” é frequentemente apresentado no Ocidente como


uma resposta à “ameaça” proveniente de Pequim. Não há dúvi-
das de que a ascensão ou, mais exatamente, o retorno da China,
depois do fim do “século das humilhações”, e o poderoso desen-
volvimento industrial e tecnológico do grande país asiático estão
modificando o quadro internacional de maneira radical. Em mar-
ço de 1949, o general estadunidense MacArthur pôde constatar
satisfeito: “Agora o Pacífico se tornou um lago Anglo-Saxão” (in:
KISSINGER, 2011, p. 125). Dadas as relações de força existentes,
os EUA ainda nutriam alguma esperança de impedir, com a sua
intervenção, a subida ao poder do Partido Comunista e de Mao
Tse-tung; a esperança foi rapidamente desfeita e, em Washington,
entre exasperadas polêmicas, se desencadeou a caça ao responsá-
vel pela “perda” do grande país asiático.
O Pacífico não era mais em estrito senso “um lago Anglo-Sa-
xão”, mas, como sabemos, ainda no fim da Guerra Fria os Estados
Unidos, sem serem importunados, violaram o espaço aéreo e ma-
rítimo chinês (cf. § 5.8). Foram os anos em que a superpotência,
única à época, procurou consolidar e tornar permanente a sua já
nítida superioridade militar mediante a Revolution in Military Af-
fairs. Esta conheceu o seu triunfal batismo de fogo ao longo da pri-
meira Guerra do Golfo: embora armado de modo não desprezível,

283
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

o Iraque de Saddam Hussein sofreu uma derrota rápida e irrepa-


rável. Tocou um sinal de alarme, principalmente para os países
que havia pouco tempo tinham se livrado do jugo colonial.
Em Pequim, em junho de 1991, Jiang Zemin (2010, p. 134, 136 e
591) expressou a sua preocupação: “Ainda que uma guerra mun-
dial não seja iminente, o mundo está bem longe de ser pacífico”;
“particularmente preocupante é a Guerra do Golfo”. “O papel da
tecnologia militar se tornou uma questão importante”: no que se
refere à China, em certos setores do aparato militar “o fosso está
aumentando”. Um conceito que foi definido e reforçado cinco
anos depois: “A aplicação em larga escala de novas e sofisticadas
tecnologias está mudando o mundo profundamente no plano não
apenas social e econômico, mas também no militar, e está introdu-
zindo mudanças revolucionárias no âmbito militar”. O descom-
passo com a primeira revolução industrial e tecnológica marcou o
início do “século das humilhações”; o descompasso com a revolu-
ção industrial, tecnológica e militar em andamento teria permitido
que se repetisse a tragédia talvez em escala mais ampla. É nesse
marco que devemos situar o esforço realizado pela China nesses
últimos anos para diminuir o seu atraso no plano militar.
A “ameaça chinesa”, argumento de política ficcional usado in-
clusive em um passado bem recente, de repente se tornou real e
consistente nos dias atuais? Damos a palavra a um estudioso es-
tadunidense de origem chinesa, autor de um livro publicado por
uma instituição de algum modo oficial do país-guia do Ocidente
(Strategic Studies Institute, US Army War College). Pois bem, nes-
se estudo podemos ler que, segundo alguns analistas, os mísseis
chineses poderiam “obrigar a Marinha estadunidense a operar a
uma distância maior da costa [chinesa], pelo menos na fase inicial
do conflito” (LAI, 2011, p. 217). Estando as coisas assim, podem
ser compreendidos os constrangimentos de Washington pelo fato
de o Pacífico não ser mais (na sua parte ocidental) “um lago An-
glo-Saxão”, ou melhor um “lago particular” (DYER, 2014, p. 2), ou
pelo fato de não ser mais tão fácil violar o espaço territorial, aéreo
e marítimo do grande país asiático; no entanto, pareceria temeroso
falar de “China Threat” (ameaça chinesa) ou de “perigo amare-

284
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

lo”! Atualmente, a marinha militar estadunidense, que desfruta de


uma esmagadora superioridade, “atua a poucas milhas de distân-
cia de muitas das mais importantes cidades chinesas” (IDEM, p.
1). Se isso já é sinônimo de “ameaça chinesa”, o que se deveria
dizer de uma situação invertida, com base na qual uma marinha
militar superior é que tivesse sob controle e sob ameaça, a poucas
milhas de distância, San Francisco e Nova Iorque? Na realidade,
em Foreign Affairs, o autor do artigo já citado sobre a capacida-
de estadunidense de assestar o primeiro ataque nuclear, ressalta
satisfeito “o ritmo glacial da modernização das forças nucleares
chinesas”: portanto, “as probabilidades de que Pequim adquira na
próxima década capacidade de dissuasão nuclear que lhe permita
sobreviver são escassas (...). Contra a China os Estados Unidos têm
hoje a possibilidade do primeiro ataque e serão capazes de mantê-
-la por mais de uma década” (LIEBER, PRESS, 2006, p. 43 e 49-50).
Mas como explicar então os conflitos em torno de algumas
ilhas situadas no Mar Chinês Oriental e no Mar Chinês Meridio-
nal? Retomemos a leitura do estudo publicado pelo estadunidense
Strategic Studies Institute:

“A China tem uma longa história de pescadores nessas águas,


bem como de reivindicações oficiais dessas ilhas. Presumivel-
mente, os chineses foram os primeiros a lhes dar nomes, e as
utilizaram como pontos de referência para a navegação, tenta-
ram estabelecê-las como territórios chineses colocando-as sob
a jurisdição das províncias costeiras meridionais da China e
definindo-as como tal nos mapas. Durante séculos os chineses
deram como seguro que aquele título histórico (historical reach)
estabeleceu a sua propriedade nessas ilhas e águas circunvizi-
nhas” (LAI, 2011, p. 127).

Depois ocorreram o declínio da China e o expansionismo co-


lonial: “nos anos 1930 os franceses tomaram posse das ilhas Pa-
racelso (Xisha em chinês) e Spratly (Nancha em chinês), de modo
a expandir o alcance do seu protetorado colonial” e “durante a
Segunda Guerra Mundial o Japão assumiu o controle de todas as

285
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ilhas do Mar Chinês Meridional” (IDEM, p. 128). Com a Declara-


ção do Cairo (1943) e a Declaração de Potsdam (1945), o Japão se
comprometeu a devolver todos os territórios que “tinha roubado”.
Mas, após a eclosão da Guerra Fria, para a Conferência de Paz de
San Francisco não foram convidadas nem a República Popular da
China nem a República da China (Taiwan); e o Japão, aliado dos
EUA, pôde ficar com as ilhas Senkaku (chamada de Diaoyu pelos
chineses). Elas deviam ter sido devolvidas, mas pelas novas cir-
cunstâncias passaram a ser de grande utilidade, como uma arma
apontada contra o inimigo proveniente de uma grande revolução
anticolonial, e inspiradoras, na Ásia, de uma onda de revoluções
anticoloniais. Bem soube se precaver o primeiro-ministro Zhou
Enlai que, às vésperas da conferência, criticou os EUA pelo fato
“de privarem a China do seu direito de recuperar os seus territó-
rios perdidos” e “de redigirem um tratado para a guerra, não para
a paz, no Pacífico Ocidental” (IDEM, p. 129).
Vale a pena observar que em relação às ilhas disputadas a Re-
pública Popular da China não assume uma posição diferente da
República da China (Taiwan). Ou melhor, parece que esta última
teria dado provas de maior firmeza, a julgar pelo menos pela fonte
estadunidense muitas vezes citada:

“Em 1946, o governo da República da China (a república anterior


à chegada dos comunistas ao poder) enviou navios de guerra
para ‘recuperar’ as ilhas Paracelso e Spratly. Em um mundo que
enfatiza o controle de fato mais do que as reivindicações histó-
ricas, a China teria podido manter ali as suas tropas com o fim
de exercer o controle de fato sobre aqueles territórios e procla-
mar posse sólida e incontestável daquelas ilhas. Por ter falha-
do nisso e ter descuidado por décadas das ilhas do Mar Chinês
Meridional, os líderes chineses (em primeiro lugar da República
popular) têm de repreender a si mesmos (...). Os líderes chineses
(da República Popular) desperdiçaram todo o seu tempo e todas
as suas energias jogando os chineses uns contra os outros nas
‘eternas revoluções e lutas de classe’, enquanto deixaram despro-
tegidos os territórios disputados em mar aberto” (IDEM, p. 130).

286
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

Particularmente intratável revelou-se o conflito entre a China e


o Japão, mas este último é que o provocou. A verdade acaba por
surgir das mesmas análises de jornalistas e estudiosos ocidentais:
“razoável” é a reivindicação anunciada por Pequim sobre as “ilhas
Diaoyu” (ou Senkaku); e se trata de uma reivindicação expressa
pela nação chinesa em seu conjunto, que frequentemente critica os
seus governantes por assumirem uma atitude “muito conciliadora
e indulgente” (KRISTOF, 2013). Não obstante isso – ressalta um
sociólogo britânico –, a China se contentaria se a posse das ilhas
fosse definida como “em disputa”, remetendo a solução do pro-
blema para as futuras gerações. Trata-se de uma proposta já suge-
rida à sua época por Zhou Enlai e inicialmente aceita pelo Japão,
que agora ao contrário a rejeita secamente. É uma “loucura” que
só se explica pela onda chauvinista que atinge o país do Sol Nas-
cente (DORE, 2013). Trata-se de um país – é preciso acrescentar
– que não consegue acertar as contas com o seu horrível passado.
Em 1965, enquanto recrudesciam os ataques contra o Vietnã, o pri-
meiro-ministro japonês Eisaku Sato solicitou ao secretário estadu-
nidense de defesa, Robert McNamara, que recorresse à arma nu-
clear no caso de guerra contra a China, acusada de ajudar o Vietnã
(International Herald Tribune, 2008). Hoje em dia, estimulado pelo
apoio dos EUA e pelo “pivot” antichinês por eles realizado, o go-
verno japonês persiste em um negacionismo que é um insulto à
memória das suas vítimas, não deixa que se anteveja nada de bom
para o futuro e, por causa do seu radicalismo, termina por inquie-
tar até Washington.
Em todo caso, totalmente despropositada se revela a palavra
de ordem “China Threat” (ou “perigo amarelo”): esta palavra de
ordem é uma completa deturpação da verdade. O fato é que não
podemos considerar definitivamente concluída a luta de liberta-
ção nacional que direcionou ao nascimento da República Popular
da China. Não se trata apenas de Taiwan. Ecoam insistentes as
vozes que preveem ou desejam para o grande país asiático um
fim semelhante ao ocorrido com a União Soviética ou a Iugoslávia:
“uma nova fragmentação da China é o resultado mais provável” –
anunciou um livro de sucesso publicado em Nova Iorque no mes-

287
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mo ano da “implosão” do país derrotado ao longo da Guerra Fria


(FRIEDMAN, LEBARD, 1991).
Desde então, nos EUA e nos países a eles aliados, se multipli-
caram as afirmações de analistas, estrategistas, políticos, homens
de Estado que preveem ou clamam a “fragmentação do gigante
chinês”, o seu desmembramento em “sete Chinas” ou em “muitas
Taiwan”. O ideal seria realizar uma “desintegração por dentro”
(disintegration from within). Em todo caso, Washington é chamada a
“encarar de modo mais coerente a futura fragmentação da China”.
Estamos diante de uma campanha que se move em várias frentes:
dá o que pensar o prêmio concedido pelo Los Angeles Times a um
livro que clama pelo retorno à China da dinastia Ming (que ter-
minou em 1644), excluindo, portanto, Tibete, Xinjiang, Mongólia
Interior e Manchúria. Certamente, se de maneira semelhante se
devesse proceder em relação aos EUA, eles não mais seriam um
Estado independente e se tornariam uma nova colônia da Grã-Bre-
tanha! Mas, obviamente, o autor aqui citado tem em mira apenas
a República Popular da China: junto então a séculos de história,
deveria ser colocada em discussão uma parte bastante considerá-
vel (mais ou menos a metade) do seu atual território. Outro livro
aclamado no Ocidente vai ainda mais longe: é preciso questionar
o governo de Pequim a propósito da “invenção de uma única et-
nia de chineses Han”; na realidade, em seu interior ainda existem
notáveis diferenças no que se refere à mesma língua e, portanto...
(LOSURDO, 2010, cap. 8, § 8).
Às vezes, o simples desejo de se livrar de um possível con­cor­rente
gosta de se camuflar como previsão histórica: “Alguns especialistas
têm profetizado sem hesitação que se repetirá um daqueles ciclos
históricos com os quais se assistiu ao desmembramento do país,
que faria evaporar os sonhos de grandeza da China” (BRZEZINSKI,
1998, p. 218). Qualquer que seja a linguagem por vezes usada,
temos de lidar com um objetivo perseguido independentemente
da política adotada pelo governo de Pequim no plano nacional ou
internacional: em 1999, o ano do bombardeamento da Embaixada
chinesa em Belgrado, um expoente relevante da administração
estadunidense declarou que, apenas por sua “dimensão”, a China

288
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

constituía um problema ou uma possível ameaça (RICHARDSON,


1999).
Não é de se estranhar então que, ao receber o Prêmio pela paz
dos livreiros alemães, o “dissidente” chinês Liao Yiwu tenha pro-
nunciado um discurso no qual a palavra de ordem em relação ao
seu país era: “Este Império deve terminar aos pedaços” (auseinan-
derbrechen) (KOCKRITZ, 2012). Como se vê, o desmembramento
da China, seja lá como for obtido, é considerado uma contribuição
à causa da paz! Resta o fato de que está verdadeiramente sob ame-
aça o país cujo desmembramento se planeja, se sonha e se clama.

7.3. Os mutáveis alvos da Cruzada democrática

Contra a República Popular da China foi lançada uma espécie


de Cruzada democrática, mas, para se dar conta do seu caráter
estereotipado, basta refletir sobre uma página da história hoje am-
plamente esquecida. Entre o final dos anos 1980 e o início dos anos
1990, a ascensão econômica do Japão é que preocupava profun-
damente os EUA que, rapidamente, passaram a pintar o possível
concorrente com cores mais sombrias, ao longo de uma campanha
na qual se empenharam políticos, sindicalistas, politicólogos, jor-
nalistas, intelectuais e até historiadores renomados.
Ocupou-se em esclarecer as coisas em primeiro lugar um ro-
mance de grande sucesso: o Japão “não é uma potência industrial
ocidental” (CRICHTON, 1992, p. 397). Uma opinião equivalente
a uma excomunhão, posteriormente assim motivada: o Japão não
fazia propriamente parte do “mundo livre”. Ele ainda possuía
muitas características de “feudalismo”; o que o caracterizava as-
sim era um “benévolo despotismo econômico-político” que promovia
“o interesse de unidades econômicas coletivas em detrimento da liber-
dade individual, dos interesses dos consumidores ou dos livres
mercados” (BURSTEIN, 1991, p. 16). Sim – contestou um ilustre
historiador estadunidense –, “a tão propalada harmonia social (...)
foi obtida empurrando o conformismo e o respeito até o limite da
verdadeira repressão” (KENNEDY, 1993, p. 188). Observando bem,
o coletivismo se espalhou por todos os aspectos da vida cotidiana

289
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

dos japoneses: “Engolem merda da parte da manhã até a noite.


Espremidos como sardinhas nos metrôs, sempre trabalhando para
grandes corporações. Não podem dizer o que pensam” (CRICH-
TON, 1992, p. 53). E ainda: “A viagem de trem de subúrbio é um
pesadelo (não se corre o risco de facada, mas se corre o risco de
sufocamento) (...), um dia livre para ir ao golfe quer dizer fazer por
horas o mesmo movimento, guiados por um alto-falante, como
em um campo de concentração benévolo, junto com doze mil pessoas”
(in: COLOMBO, 1992).
Mas, então, por que os EUA estavam em dificuldade? Não cer-
tamente pela “criatividade” do Japão, onde na realidade “todo o
sistema educativo se baseia na memorização de fatos e no enalteci-
mento da ‘coletividade’” (KENNEDY, 1993, p. 188). Não, a explica-
ção era outra: tratava-se de um país que recorria a todos os meios
lícitos para promover as exportações e estimular as importações,
e portanto era a encarnação do “mercantilismo” (BURSTEIN, 1991,
p. 16). E não é tudo: “A ‘empresa Japão’ também empreendeu a
sistemática tentativa de descumprir as regras da integridade comercial
internacional. Durante décadas, os produtos estrangeiros rivais dos
japoneses foram banidos do mercado interno”. Além disso, o país
asiático também havia “prejudicado os rivais estrangeiros ‘desfa-
zendo-se’ no exterior de determinados produtos abaixo do preço de mer-
cado e mantendo esse preço alto no próprio mercado interno de-
vidamente protegido”; para não falar da sistemática “espionagem
industrial” promovida por todas as mais importantes corporações
japonesas, que haviam organizado seções complementares para
tal atividade ilegal (KENNEDY, 1993, p. 189-190 e 186). Quem
pagou as despesas dessas práticas ilegais – denunciaram os diri-
gentes sindicais – foram os trabalhadores estadunidenses: dos oito
milhões de desempregados “pelo menos três milhões perderam o
posto de trabalho por causa, direta ou indiretamente, da concorrência ja-
ponesa”, absolutamente desleal (in: PICCIONE, 1991).
Repressão, autoritarismo, totalitarismo, coletivismo, estadis-
mo, falta de respeito ao indivíduo e à criatividade individual,
dumping, mercantilismo, concorrência desleal, roubo de postos de
trabalho de outros: ressaltei com itálico os pontos centrais de uma

290
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

reprimenda que ontem acusou o Japão e hoje, com ativa participa-


ção dos acusados de outrora, visa à China.
E isso vale também para outros pontos de acusação que con-
tinuarei a ressaltar em itálico. O Japão – vociferava a campanha
desencadeada contra ele – é culpado de tratar como inimigos não
apenas os seus concorrentes mas também a sua própria sociedade:
sim, nas cidades japonesas, “o tráfego e a poluição são horrendas ano-
malias” (COLOMBO, 1992). Administravam as cidades e governa-
vam o país “animais pensantes em termos econômicos” e exclu-
sivamente em termos econômicos, e isso não prometia nada de
bom. Delinearam-se “catástrofes ecológicas em consequência da
destruição dos oceanos e das florestas por ação do Japão”, e “so-
frimentos em larga escala” pelo mundo inteiro (ELEGANT, 1991,
p. 565).
É necessário tomar nota de que uma sociedade fechada em si
mesma desafiou os EUA e o Ocidente: “A suposta especificidade
da sua cultura impede o Japão de propor a outros povos valores
universais, como ocorreu, ao contrário, com a antiga Atenas, a Itália
renascentista, e os próprios Estados Unidos, cuja contribuição à
civilização mundial é reconhecida unanimemente” (KENNEDY,
1993, p. 189). E novamente somos levados a pensar na situação
atual em que se vê também o Japão, depois dos EUA, empenhan-
do-se em incluir a China como verdadeira inimiga dos “valores
universais”.
Mas voltemos ao período do final dos anos 1980 ao início dos
1990. Se a civilização que o país do Sol Nascente pretendia repre-
sentar era aparente e enganosa, terrivelmente reais foram a sua
marcha rumo ao “predomínio mundial” e o perigo que isso repre-
sentou para a autêntica civilização. Os EUA e a Europa deviam se
unir e ficar preparados: “Digo isso aqui de maneira explícita; não
estou seguro de que o Japão poderá ser contido sem uma catás-
trofe. E, no entanto, se ainda as medidas contra o Japão podem ter
uma perspectiva de êxito, é agora que os outros países devem se
engajar nessa luta heroica” (ELEGANT, 1991, p. 564-565). Trans-
parente foi o chamamento à guerra sobre a qual insistia, com lin-
guagem mais explícita, o romance de grande sucesso que já co-

291
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nhecemos: “estamos decididamente em guerra com os japoneses”.


Estes últimos teriam feito bem em dar provas de maior cautela:
“cedo ou tarde os americanos vão acordar” (CRICHTON, 1992, p.
149 e 291).
O romance não hesitou em chamar o fantasma de Pearl Harbor
e de Hiroshima e Nagasaki. A um senador estadunidense o autor
mandou dizer: “Estamos em guerra com o Japão (...). Saiba, alguns
colegas meus dizem que cedo ou tarde seremos obrigados a lançar
uma outra bomba. Pensam se chegará a esse ponto (...). Mas eu
não penso assim. Geralmente” (CRICHTON, 1992, p. 269). Tênue
e incerta era a fronteira entre ficção romanesca e realidade, dado
que, como relatou naqueles anos uma correspondente dos EUA:
um senador particularmente agressivo, polemizando contra aque-
les que no Japão atribuíam o déficit comercial estadunidense à
preguiça ou à imprudência dos operários estadunidenses, rebateu
“sem hesitação e sem desculpas: ‘Será que no dia de Hiroshima os
japoneses consideraram os trabalhadores americanos preguiçosos
e incapazes?’” (COLOMBO, 1992).
Hoje o quadro mudou radicalmente. Entre os anos 1980 e 1990
o país do Sol Nascente foi criticado pela “aviltante veia racista” da
qual deu provas em primeiro lugar em relação aos “coreanos” e
“chineses” (KENNEDY, 1993, p. 189). Pelo menos essa crítica tinha
o seu fundamento: como demonstram a irritação pela recusa de
Tóquio de realmente acertar as contas com um passado marcado
por um colonialismo particularmente bárbaro e a sua obstinação
por homenagear aqueles que se desonraram pelos horríveis cri-
mes executados justamente contra chineses e coreanos. Mas tudo
isso foi esquecido. Tendo deixado de ser um temível concorrente
dos EUA, o Japão não apenas foi cooptado pelo clube das verda-
deiras democracias como também agora participa ativamente e na
primeira fila da campanha contra o novo inimigo, que é a Repú-
blica Popular da China, o país que encarna a vitalidade da revo-
lução anticolonial. No entanto, se o alvo da Cruzada democrática
e a composição do alinhamento empenhado em levá-la adiante
mudaram, permanece inalterada, porém, a ideologia da guerra do
país-guia do Ocidente.

292
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

7.4. Um ataque à China pela direita e pela esquerda: uma


estratégia consolidada

Devido ao emaranhado enredo de contradições do qual sur-


giu e ao ambicioso projeto de transformação que empreende, toda
grande revolução termina sendo questionada por blocos contra-
postos, que por algum tempo até podem ter causas em comum.
Assim ocorreu com a Revolução Francesa: Babeuf, que havia
atacado Robespierre pela “esquerda”, inicialmente saudou com
fervor o Thermidor, ao qual depois acabou condenando à morte.
Dessa dialética objetiva do século XX souberam tirar proveito as
grandes potências empenhadas em desestabilizar os países prove-
nientes de uma grande revolução.
Enquanto, de um lado, o Terceiro Reich denunciava de manei-
ra apocalíptica a investida provocada pelos bolcheviques contra
a propriedade urbana e rural, de outro, agitava um motivo con-
trário. Em abril de 1938, Joseph Goebbels registrou em seu diário:
“A nossa emissora de rádio clandestina que transmite da Prússia
oriental para a Rússia causa um enorme alvoroço. Opera em nome
de Trotsky e dá muito trabalho a Stálin”. Imediatamente após o
desencadeamento da operação Barbarossa, em uma anotação de
diário de 14 de julho, depois de ter citado o tratado firmado entre
União Soviética e Grã-Bretanha e a declaração conjunta dos dois
países, o responsável pelos serviços de propaganda da Alemanha
hitleriana assim prosseguiu: “Esta é para nós uma ocasião bem
propícia para demonstrar a confraternização entre capitalismo e
bolchevismo (aqui sinônimo de poder soviético oficial). A declara-
ção encontrará pouca simpatia entre os círculos dos leninistas na
Rússia (tenha-se presente que os trotskistas gostam de se definir
como os ‘bolchevistas-leninistas’ em contraposição aos ‘stalinistas’
considerados traidores do leninismo)” (GOEBBELS, 1992, p. 123 e
1635). Em outras palavras, a União Soviética foi atacada como se
fosse uma destruidora da propriedade burguesa e capitalista e, ao
mesmo tempo, como predisposta a restaurar o capitalismo. Ain-
da mais significativa é uma outra anotação do diário, sempre das
primeiras semanas da guerra: “Agora trabalhamos com três rádios

293
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

clandestinas para a Rússia: a primeira é trotskista, a segunda sepa-


ratista e a terceira nacional-russa, todas as três rigorosamente con-
tra o regime stalinista” (IDEM, p. 1614). Concentremo-nos sobre as
duas últimas: a propaganda nazista instigou as minorias contra a
nacionalidade russa e esta última contra as minorias.
Tendo sido “mantida intacta” a organização Gehlen herdada
do Terceiro Reich, não é de se assombrar que a CIA tenha segui-
do a mesma estratégia. Particular empenho foi empreendido para
financiar “a esquerda não comunista”, ou de algum modo hostil
à União Soviética; ou melhor, esse foi “o fundamento teórico das
operações políticas” da agência de espionagem estadunidense.
Nesse contexto, inclui-se o financiamento do livro do iugoslavo
Milovan Djilas. Já no título (A nova classe), ele afirmou que o país
proveniente da Revolução de Outubro, bem longe de avançar
rumo a uma sociedade sem classes e privilégios de classe, estava
dominada por uma nova e mais odiosa oligarquia (SAUNDERS,
2004, p. 41, 60 e 222). Por outro lado, desfecharam-se ataques con-
tra o regime que havia coletivizado toda a economia e não mos-
trava nenhum respeito pela propriedade privada. A manobra em
forma de pinça, do mesmo modo, mostrou-se como uma forma
de comunicação certamente de origem endógena, mas fortemente
apoiada pelo exterior: muito difundido foi o samzidat que denun-
ciou o poder a partir de posições pró-ocidentais; ao mesmo tempo,
“o país estava cheio de samzidats que acusavam o governo de vio-
lar os princípios capitais do marxismo-leninismo” (MOROZOV,
2011, p. 45). A duplicidade se manifestou de maneira ainda mais
estrepitosa em outro âmbito: foi incansável o trabalho de instiga-
ção das minorias nacionais, mas é significativo como a extinção
da União Soviética foi levada a termo por Iéltsin. O grande trunfo
daquele que ao menos por algum tempo tornou-se o predileto do
Ocidente “foi o nacionalismo russo ou, como ele sempre preferiu
dizer, a ideia de ‘independência russa’, de ‘soberania da Rússia’,
da sua supremacia sobre a União: ‘a Rússia, antes de mais nada,
em primeiro lugar’”! Sim, “o atrito com Gorbachev foi por ele
transformado no conflito entre a Rússia e a União” (BOFFA, 1995,
p. 300).

294
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

Não há motivo para abandonar uma estratégia experimentada


e coroada de êxito, e essa é de fato, mais do que nunca, a mesma
ação que está sendo usada contra a República Popular da China.
Quantas denúncias podem ser vistas na imprensa norte-america-
na e europeia sobre a exploração da classe operária da parte de um
regime comunista ou que se proclama como tal? Contudo, as crí-
ticas feitas pelo jornalista de TV estadunidense Mike Wallace em
2 de setembro de 1986 a Deng Xiaoping são de um teor bastante
distinto: “os investidores ocidentais se lamentam que a China tor-
na difíceis os seus negócios: aluguéis exorbitantes para escritórios,
muita concorrência para os contratos, muitas taxas especiais; até
o trabalho é excessivamente caro” (in: DENG XIAOPING, 1992-
1995, vol. 3, p. 173).Cerca de vinte anos depois houve uma repeti-
ção do fato a que se referiu o International Herald Tribune: o gover-
no chinês elaborou uma lei visando a “proteger os trabalhadores”,
impedir ou conter os abusos patronais e “conferir um poder real
aos sindicatos”; ocorreu o protesto do qual foram protagonistas os
grandes industriais, a “Câmara Americana de Comércio” e “de-
putados americanos” (BARBOZA, 2006). Tais lamúrias ressurgem
toda vez que em Pequim o poder político lança normas a favor da
classe operária.
É uma duplicidade que se manifesta em todos os níveis. Sim,
incansável é a campanha que denuncia o atraso das regiões mais
afastadas do mar e, portanto, desfavorecidas no plano geográfico
(mesmo que nos últimos anos esse atraso tenha começado a
diminuir); mas não faltam nem mesmo os apelos dirigidos às
regiões costeiras para que se livrem do peso morto que represen-
tam as regiões mais atrasadas. E nesses apelos tem tudo menos
perplexidade, se se pensar sobre o fato de que desde sempre os
EUA olharam com desconfiança ou hostilidade o Estado de Bem-
-Estar Social, e de que o Estado de Bem-Estar Social encontra sua
expressão na China até na ajuda que as regiões mais desenvolvi-
das, as costeiras precisamente, são obrigadas a fornecer às outras.
Ou então, vamos pegar a questão ambiental. Sobre a sua dra-
maticidade na China com razão o Ocidente não se cansa de insistir
(mantendo no esquecimento a grande poluição que em dezembro

295
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

de 1952 provocou em Londres milhares de mortes; e a catástrofe


ecológica talvez mais grave da história da humanidade, que ocor-
reu em dezembro de 1984 em Bhopal pela qual foi responsável
a filial indiana da Union Carbide, uma multinacional de fertili-
zantes e inseticidas agrícolas que tinha sua matriz nos Estados
Unidos). Ao mesmo tempo, no entanto, eis que a mais respeitável
imprensa estadunidense e ocidental deu um grande espaço a um
“dissidente”, um escritor, que tomou posições contra o governo
chinês nestes termos: é inadmissível pretender limitar o tráfego, o
fumo, churrasqueiras ao ar livre; ridículo é o slogan com base no
qual “a redução da poluição começa por mim mesmo”; é aberran-
te também o fechamento das “pequenas fábricas de propriedade
privada”. Tudo é inútil até que não sejam maciçamente atacadas
as “grandes e médias fábricas de propriedade estatal” (YU HUA,
2013). E assim enquanto se protesta contra a República Popular
da China devido ao seu desenvolvimento sem respeitar o meio
ambiente, se zomba das medidas tomadas em qualquer país civili-
zado para conter a poluição e se reafirma o direito dos motoristas,
dos fumantes, dos apaixonados por churrasco, de poluírem a seu
bel prazer. Para o “dissidente”, bem como aos círculos estaduni-
denses que o protegem, o que verdadeiramente está no centro não
são o meio ambiente e o desenvolvimento da consciência ecológi-
ca, mas sim o desmantelamento da indústria estatal, que permitiu
que a China superasse ilesa a devastadora crise econômica que se
abateu sobre o Ocidente.

7.5. Mutilação da Carta dos Direitos e relançamento da


Cruzada

O ataque à China se torna muito mais eficaz pelo fato de que


a redução da Carta dos Direitos do homem permite que Washin-
gton repreenda o país potencialmente inimigo pela suposta falta
de respeito à religião civil do nosso tempo. Vimos que para F. D.
Roosevelt também está incluída entre os direitos fundamentais do
homem a “liberdade de não passar necessidade” e, se se mantém
firme este ponto, devemos chegar a uma conclusão que é diame-

296
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

tralmente oposta à ideologia dominante e que, no entanto, é in-


questionável. Nas décadas anteriores às Guerras do Ópio a China
se gabava de um Produto Interno Bruto e de uma expectativa de
vida invejáveis (cf. mais adiante, § 8.7). No encerramento do “sécu-
lo das humilhações”, a China era um dos países mais pobres do
mundo ou talvez o mais pobre. Em outras palavras, no período
iniciado com as Guerras do Ópio houve uma violação em escala
sem precedentes daquele fundamental direito do homem que é
a “liberdade de não passar necessidade”. Hoje, na China, a saí-
da da miséria e da fome significa a reconquista da “liberdade de
não passar necessidade” para centenas e centenas de milhões de
pessoas, e também um triunfo de alcance histórico a favor da cau-
sa dos direitos do homem. Com rigor lógico, devem ser acusados
exatamente aqueles que hoje se julgam juízes superiores e incon-
testáveis.
À mesma conclusão se chega partindo da “liberdade de não
sentir medo”, aquele outro direito fundamental do homem, ainda
segundo F. D. Roosevelt. Neste caso, o quadro fica ainda mais claro,
e para ilus­trá-lo limi­to-me a citar um artigo do mais respeitável
diário estadunidense (e ocidental). Tomando a conjuntura dos
recentes acordos comerciais celebrados pela China com os países
da Ásia central, que preveem também a extensão das ligações
ferroviárias entre as duas partes, mal escondendo a sua decepção
ele faz esta observação:

“Enquanto a maior parte das importações de matérias-primas e


das exportações de bens perecíveis passa habitualmente por ro-
tas marítimas controladas pela Marinha dos EUA, o desenvolvi-
mento de rotas terrestres no Cazaquistão e o acesso ao petróleo
abundante, ferro e trigo desse país significa que uma crescente
porcentagem do comércio chinês viaja por áreas fora do domí-
nio americano”.

A China não deseja estar à mercê de “qualquer coisa que os


Estados Unidos decidam fazer” (BRADSHER, 2013). Um bloqueio
dos fluxos comerciais do grande país asiático significaria condenar

297
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

à fome mais de um bilhão e trezentas milhões de pessoas. Neste


caso, a “liberdade de não sentir medo” coincide com a “liberdade
de não passar necessidade”, e fica claro quem está decidido a pre-
servar uma e outra e quem está tentando anular ambas.
Infelizmente, a ideologia e o poder dominantes suprimiram da
Carta dos Direitos do homem a “liberdade de não passar neces-
sidade” e a “liberdade de não sentir medo”; estas foram grande-
mente esquecidas pelas Organizações Não Governamentais e de-
las a própria esquerda parece ter uma lembrança vaga e confusa.
Enquanto condena o desmantelamento do Estado de Bem-Estar
Social, a crescente miséria em massa e, portanto, a anulação da “li-
berdade de não passar necessidade”, a esquerda não faz referência
a ela quando analisa a situação internacional. Quando contrapõe
o capitalismo ocidental ao “capitalismo autoritário” da China e ao
“capitalismo populista” (tendente ao caudilhismo e ao autorita-
rismo) da “América Latina”, Žižek (2009a, p. 131 e 2009b, p. 450)
não leva em conta nem a “liberdade de não passar necessidade”
e nem a “liberdade de não sentir medo”. E, ao fazer comparações
abstratas entre países tão diferentes, na realidade ele também ig-
nora a lição de Hamilton, o qual explicou definitivamente que
uma situação de tranquilidade geopolítica é a condição para o de-
senvolvimento do Estado de Direito, das instituições liberais e da
democracia.
Constantemente quem sai pior nessa comparação são os paí-
ses que têm como referencial uma revolução anticolonial e que de
alguma forma estão empenhados em levá-la adiante. Junto com
a China, na categoria de “capitalismo autoritário” poderia ser in-
cluído também o Vietnã, e corre o risco de ser incluída a própria
Cuba, que nos últimos anos segue por um caminho não muito di-
ferente do que foi empreendido pela China e o Vietnã. A categoria
“capitalismo populista” leva rapidamente a pensar, em primeiro
lugar, na Venezuela de Hugo Chávez e de Nicolas Maduro. Na
vertente oposta, distinguem-se positivamente pelo fato de serem,
seja como for, imunes ao autoritarismo e ao populismo as grandes
potências capitalistas e imperialistas responsáveis por destruir a
tranquilidade geopolítica e as possibilidades de desenvolvimento

298
7. CONTRARREVOLUÇÃO NEOCOLONIAL E “PIVOT” ANTICHINÊS

democrático dos países que são o principal alvo do poder e da


ideologia dominantes (e do próprio Žižek).
Talvez se possa estabelecer uma comparação totalmente dife-
rente. Para levarem a termo o seu processo de democratização,
mesmo desfrutando de uma situação geopolítica excepcionalmen-
te favorável, os EUA precisaram de dois séculos (sim, na república
norte-americana o Estado racial e a discriminação contra os negros
e outras “raças” tradicionalmente consideradas “inferiores” con-
tinuaram por algum tempo mesmo depois da queda do Tercei-
ro Reich). Deve-se acrescentar que depois do 11 de setembro, o
processo de democratização conheceu retrocessos significativos.
Semelhantes considerações podem ser feitas em relação a países
como Grã-Bretanha e França. O que realmente motiva a impaci-
ência da qual o Ocidente no seu conjunto (incluindo grande parte
da esquerda) dá provas em relação aos países e sistemas políticos
provenientes de uma revolução anticolonial?

299
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

300
8

Entre esquerda imperial


e esquerda populista e
anarcoide. A situação
no Ocidente

8.1. Cínicos e boas almas: uma divisão conflituosa do


trabalho

P
erseguida pelo terrorismo da indignação ligado ao presente
ou ao passado, a esquerda como um todo não sabe opor
uma real resistência à ofensiva reacionária; ou melhor, não
poucas vezes a ela se soma, às vezes tratando até de se distinguir
como um dos seus protagonistas mais zelosos e intransigentes. Ao
menos no que se refere à política internacional, desenvolveu-se
uma dialética às vezes amargamente divertida.
Vejamos o que ocorreu em 1999 por ocasião da guerra contra
a Iugoslávia. Os estrategistas, os estudiosos da geopolítica e os
analistas políticos mais familiarizados em relação ao poder polí-
tico e militar no Ocidente falavam uma linguagem que remetia
de modo explícito aos interesses materiais, às relações de força,
mas também ao caráter benéfico e envolvente do Império. Alguns
anos antes do início dos bombardeamentos, na mais respeitável
imprensa estadunidense já se podia ler: “Parece que as regiões que
por algum tempo foram governadas pelo Império otomano se tor-
naram o centro do terceiro Império americano”: o primeiro se es-

301
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

tabeleceu na onda da derrota imposta à Espanha imperial no iní-


cio do século XX; o segundo, após a Segunda Guerra Mundial e ao
declínio das tradicionais potências coloniais como França e Ingla-
terra; o terceiro tomou corpo a partir do triunfo obtido na Guerra
Fria (HEILBRUNN, LIND, 1996). É bom ter presente o ano em que
ocorreu esta declaração: não se falava de Kosovo ou dos “massa-
cres” sofridos pela população de etnia albanesa; começando pela
guerra hispano-americana de 1898-1900, isto é, um período em
que a Iugoslávia nem existia ainda, todo o discurso se concentrou
sobre a ascensão imperial da superpotência agora transformada
em única e mais do que nunca santificada na sua solidão.
Na primavera de 1999, o discurso referia-se aos bombardeiros
e às bombas. Os sérvios insistiam em resistir. E eis que, abando-
nadas as hipócritas diferenças entre governantes e povo sérvio,
um analista do New York Times pedia para atacar diretamente a
população civil: “É preciso uma verdadeira guerra aérea. A ideia
de que em Belgrado as pessoas escutem concertos de rock ou que
passeiem no domingo enquanto os seus compatriotas limpam o
Kosovo é ultrajante”. E ainda:

“Gostem ou não, estamos em guerra com a nação sérvia (os sér-


vios certamente já estão convencidos disso) e as cartas devem
ser colocadas na mesa muito claramente: cada semana a mais de
devastações no Kosovo, faremos o seu País retroceder dez anos
aniquilando-os. Querem 1950? Podemos dar-lhes 1950. Querem
1389? Também podemos fazer isso” (FRIEDMAN, 1999).

Talvez o jornalista que assim se expressou conhecesse o conte-


údo dos panfletos que, junto com as bombas, caíam sobre a Iugos-
lávia. Eles intimavam: “Levantem os olhos ao céu porque prova-
velmente amanhã não mais o verão” (E. ST., 1999).
Após o previsto triunfo dos Estados Unidos e dos seus aliados
e subalternos, no International Herald Tribune um artigo se deleita-
va: “O que de bom se aprende com Kosovo o mundo deveria pôr
em prática: a Otan pode e quer fazer tudo o que é necessário para
defender os seus interesses vitais” (FITCHETT, 2000, p. 4). Foi o

302
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

triunfo do cinismo: a vontade de poder foi declarada e não sentia


a necessidade de se legitimar apelando a valores e a preceitos uni-
versais.
E agora examinemos o discurso elaborado pelos dois filósofos
talvez os mais ilustres da época, Habermas e Bobbio. Também eles
apoiaram a guerra da Otan, e com determinação. Mas os interes-
ses materiais e o litigioso geopolítico haviam desaparecido com-
pletamente em suas tomadas de posição: ali se respirava um ar
rarefeito onde havia lugar apenas para os direitos humanos, as ra-
zões da moral e o caráter exclusivamente “humanitário” da guerra
contra a Iugoslávia. Neste caso, quem tomava a palavra eram as
boas almas. À primeira vista, os dois discursos dos cínicos e das
boas almas pareciam opostos, mas com um olhar mais atento não
se pode deixar de notar a sua convergência. O discurso que, de um
lado, pedia o punho de ferro dos agressores e, de outro, a rendição
do exército e do povo iugoslavo não podia ser diferente do discur-
so dirigido, em primeiro lugar, à opinião pública ocidental para
que apoiasse e aprovasse os incessantes bombardeamentos sobre
um país consideravelmente indefeso. Assistia-se assim a uma es-
pécie de divisão de trabalho (não destituída de contradições em
seu interior): aqueles que eram chamados a instigar enérgicas ope-
rações bélicas e a colocar em evidência a sua invencibilidade se
expressaram em termos necessariamente mais grosseiros do que
aqueles que estavam empenhados em legitimar e descaracterizar
tais operações. E obviamente foi o primeiro discurso em nome da
Realpolitik a ser assinalado como de maior lucidez.
Se Bobbio foi obstinado ao publicar um artigo após outro para
questionar aqueles que expressaram dúvidas sobre o caráter mo-
ralmente justo da guerra contra a Iugoslávia, Habermas foi muito
além disso. Ele rechaçou altivamente “a desconfiança em perspec-
tiva de crítica da ideologia” desenvolvida em relação às “justifica-
ções universalistas” da guerra fornecidas por líderes do Ocidente.
Não, não havia reais interesses materiais e geopolíticos para fun-
damento de “uma intervenção tão comprometedora, arriscada e
perigosa”; “o que a hermenêutica da desconfiança pode atribuir
ao ataque contra a Iugoslávia é mais frágil” (HABERMAS, 1999, p.

303
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

6). Não precisamos ser grandes estrategistas, basta um mínimo de


familiaridade com a história para ficarmos conscientes do relevan-
te papel geopolítico que os Bálcãs desempenharam nas duas guer-
ras mundiais e na Guerra Fria. E que continuam a desempenhar
hoje em dia, depois que o triunfo obtido em 1999 permitiu que os
EUA estabelecessem, em Kosovo, transformado em semicolônia, a
gigantesca base militar de Camp Bondsteel. O filósofo alemão po-
deria ter lido o que, às vésperas da guerra, escreveu um dos mais
ilustres estrategistas de Washington: “Historicamente, os Bálcãs
propriamente ditos têm representado uma possível recompen-
sa geopolítica na luta pela supremacia europeia” (BRZEZINSKI,
1998, p. 168).
As escorregadelas de Habermas ou de Bobbio não são uma ca-
racterística exclusiva da esquerda “moderada”. Ainda por ocasião
da guerra contra a Iugoslávia, um dos autores de Empire, o livro de
referência da esquerda “radical”, escreveu:

“Devemos reconhecer que essa não é uma ação do imperialismo


americano. É com efeito uma operação internacional (ou, para
dizer a verdade, supranacional). E os seus objetivos não estão
dirigidos aos limitados interesses nacionais dos Estados Unidos:
ela efetivamente foi realizada para proteger os direitos humanos
(ou, para dizer a verdade, a vida humana)” (HARDT, 1999, p. 8).

A essa declaração da boa alma pode-se contrapor o cinismo de


Kissinger, que não esconde a “provocação” montada pelos EUA
e a Otan para dar uma aparência de legitimidade a uma guerra já
decidida com o fim de atingir objetivos geopolíticos bem precisos
(cf. § 3.6).
Nós nos encontramos diante de um continuum. Na Itália a inter-
venção na Primeira Guerra Mundial foi divulgada por nacionalis-
tas em nome das conquistas coloniais e por autores como Gaetano
Salvemini em nome da difusão da democracia e da efetivação da
paz perpétua; analogamente, na Alemanha tomaram posição a fa-
vor da gigantesca carnificina, de um lado, os declarados defenso-
res do Império e, de outro, os socialistas, ridicularizados por Rosa

304
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Luxemburgo, que se propunham a derrubar a autocracia czarista


na Rússia para construir a democracia. Retrocedamos para mais
longe ainda. À sua época, o expansionismo colonial do Ocidente
foi enaltecido com razões contrapostas, pelo menos aparentemen-
te: os cínicos remetiam à superioridade racial dos conquistadores,
as boas almas ressaltavam a necessidade de exportar a civilização
para benefício dos povos dominados. Em todos esses casos, a agi-
tação da bandeira dos valores universais na melhor das hipóte-
ses pode ter dificultado os processos reais, mas não os impediu,
e pode até mesmo tê-los favorecido graças à sua transformação e
sublimação.
Pode-se aqui retomar e adaptar uma observação de A Ideolo-
gia Alemã: enquanto a burguesia imediatamente empenhada nas
atividades econômicas tem uma atitude fria e distante em relação
à ideologia chamada a justificar e disfarçar os seus interesses de
classe, são conduzidos a levá-la bem mais a sério os grupos que
fazem “da elaboração da ilusão dessa classe sobre si mesma o seu
intento principal”. Essa divisão de trabalho pode, no entanto, se
tornar uma “cisão”, e uma cisão que se desenvolve “até que se crie
entre as duas partes uma certa oposição e uma certa hostilidade”;
trata-se de uma fratura que tende a ser reabsorvida em períodos
mais ou menos curtos (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 3, p. 46-
47). Considerações semelhantes podem ser feitas no que se refere
à política internacional: não se deve subestimar a “hostilidade”
que pode distinguir os ideólogos puros dos que têm maior fami-
liaridade com a elaboração e condução da estratégia geopolítica e
militar. No entanto, por mais conflitante que possa ser a divisão
do trabalho com os cínicos, as boas almas não constituem uma
alternativa real.

8.2. Terrorismo da indignação e capitulação da esquerda

A partir daqui é possível compreender a capitulação de gran-


de parte da atual esquerda ocidental em cujo âmbito, em con-
sequência do grave enfraquecimento do movimento operário,
exercem um peso decisivo os grupos intelectuais e ideológicos,

305
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

aqueles mais inclinados, segundo a análise de Marx, a levar ter-


rivelmente a sério as ilusões “morais” que a burguesia alimenta
sobre si mesma.
Além disso, a “esquerda” ocidental é alvo direto do terroris-
mo da indignação: os ex-comunistas claramente incorporaram o
motivo de fundo da ideologia hoje dominante, isto é a damnatio
memoriae do comunismo como movimento insensível às razões da
moral e até mesmo pronto a sacrificá-la no altar da filosofia da
história. É por isso que, por ocasião de todos os conflitos da Psywar
e da sociedade do espetáculo representado como conflito entre
o Bem e o Mal, os ex-comunistas se deixam tomar de medo e se
apressam a se apresentarem como os defensores mais intransigen-
tes da moral. De outra parte, é de todos conhecida a particular de-
voção da qual dão provas os neófitos. A esse propósito podem ser
acrescentados dois exemplos inspiradores. Na primavera de 1989,
a repressão se abateu sobre os manifestantes da Praça Tienanmen.
Na imprensa internacional não faltou alguma referência à dimen-
são geopolítica do conflito. Mas, obviamente, o tom dominante foi
a denúncia do “massacre”. Nada disso bastava ao L’Unità, que em
5 de junho de 1989 saiu com um título sensacional: Um genocídio
em Pequim. Obviamente, o mencionado diário evitou usar uma lin-
guagem semelhante por ocasião do bombardeamento do Panamá
pelos EUA, que ocorreu alguns meses depois e que causou um
número de mortos não menor do que aquele que se verificou na
capital chinesa, e, em relação à população, de longe foi o mais alto.
O terrorismo da imediata percepção e indignação produziu, as-
sim, os efeitos programados.
E continuou a produzi-los mais de vinte anos depois, quando
dele se tornaram vítimas Rossanda e Camusso. Convém agora
ocupar-se principalmente desta última. Estava em curso na Líbia
a revolta dos grupos armados e organizados pelos serviços secre-
tos britânicos e estadunidenses e se esboçava no horizonte a inter-
venção armada do Ocidente. Não faltaram, no entanto, apelos por
cautela e indícios da existência de diferentes e contrastantes inte-
resses em jogo. E eis que em 22 de fevereiro de 2011, ao se pronun-
ciar favorável à guerra, a secretária-geral da CGIL [Confederação

306
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Geral Italiana do Trabalho] recorreu a uma linguagem exacerba-


da: era preciso finalmente dar-se conta do que estava ocorrendo
no país norte-africano. E o que estava acontecendo? Mas é óbvio:
“um genocídio”. Sim, “na Líbia estava em curso um genocídio”.
Ainda que tenha apagado a agressão e a desestabilização prati-
cadas pelos serviços secretos ocidentais bem antes da eclosão da
crise, a imprensa falava na maioria das vezes de “guerra civil”.
Mas isso não parecia suficientemente moral (e maniqueísta) para
Camusso, que rapidamente se contrapôs: “não estamos diante de
um conflito no seio da população”! Não, era apenas uma popula-
ção civil e desarmada sendo bombardeada e exterminada por um
regime cruel. Estava no poder o governo Berlusconi que, pouco
tempo depois, entraria em guerra junto com seus aliados contra
um país com o qual três anos antes havia estabelecido um pacto
de conciliação e amizade. Naquela ocasião, o primeiro-ministro
italiano comunicou a sua aprovação do fato de que Itália e Líbia
tinham decidido “colocar de lado tudo o que não era amor”. Mas,
do ponto de vista de Camusso, o imoral não era passar dessa de-
claração de amor à participação nos bombardeamentos selvagens
(e no linchamento final da pessoa “amada”), mas sim a lentidão
com que essa passagem estava sendo feita.
A prioridade da moral deveria ser absoluta e a defensora des-
te caráter absoluto, em primeiro lugar, deveria ser a esquerda, fi-
nalmente livre de qualquer resíduo de maquiavelismo. Ninguém
mais lembrava a reflexão de Lanzmann, o diretor do documentário
Shoah, referente ao caráter profundamente imoral da evocação do
“holocausto” (ou do genocídio) feita, levianamente e de modo ins-
trumental, para alcançar determinados objetivos de poder o mais
rápido possível, liquidando com argumentos terroristas qualquer
oposição, qualquer tentativa de reflexão (cf. § 3.6).
Firmemente convictas de sua imaculada pureza, as boas almas
não se questionavam sobre as repugnantes consequências que
historicamente teve o terrorismo da indignação. Limito-me aqui a
apenas alguns exemplos. Ao longo da Primeira Guerra Mundial,
vimos a indústria anglo-americana da mentira ser particularmen-
te eficaz e produzir textos e imagens que “documentavam” a fúria

307
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

bestial com que as tropas de Guilherme II aniquilaram mulheres e


crianças. Mais tarde, soldados britânicos lembraram e admitiram:

“Alguns (alemães rendidos) rastejaram de joelhos erguendo a


foto de uma mulher ou de uma criança, mas foram todos fuzi-
lados (...). Matamos a sangue frio porque matar o maior núme-
ro possível era o nosso dever. Pensei muitas vezes no Lusitânia.
Orei para que chegasse o dia (da vingança), e quando final-
mente ele chegou matei exatamente o que havia esperado que
a sorte me concedesse (...).
Também nós chegamos a fazer alguns prisioneiros (10) e, a
partir do momento que fiquei sabendo da perda do Lusitânia,
após uma consulta de 10 minutos entre os suboficiais e a tropa,
matamos todos a coronhadas (dos fuzis)” (FERGUSON, 2008,
p. 146-147).

O terrorismo da indignação ampliou toda a sua eficácia tam-


bém em outro momento: a “revelação” do ataque traiçoeiro norte-
-vietnamita no Golfo de Tonquin deu um novo impulso aos selva-
gens bombardeamentos estadunidenses.
Mesmo hoje em dia, o terrorismo da indignação continua a fun-
cionar de modo notável e funesto, difundindo tanto puras menti-
ras quanto meias verdades, e isso frequentemente provoca mais
vítimas do que aquelas que pretende proteger. A apresentação
enganosa do combate na Líbia como genocídio consumado con-
tra uma massa de civis desarmados permitiu que um gigantesco
aparato militar aniquilasse dezenas de milhares de pessoas, sem
encontrar oposição na opinião pública, pelo contrário até receben-
do o seu consentimento.

8.3. Do “cristianismo imperial” à esquerda imperial

Na Itália (e no Ocidente), com a adesão mais ou menos explí-


cita à “guerra humanitária” de duas personalidades ilustres da
esquerda, celebra seus triunfos a esquerda imperial, e assume a
funesta herança do “cristianismo imperial” que se desenvolveu na

308
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

virada do século XIX para o XX. Dessa esquerda imperial, entre o


fim do século XX e o início do século XXI, o expoente mais ilustre
e mais coerente em nível internacional é Norberto Bobbio.
Este, três anos antes do início da derrota do “campo socialista”
e do “socialismo real”, condena in toto (por inteiro) o movimen-
to comunista, como culpado de constantemente ter sacrificado a
moral no altar da filosofia da história, a partir da maquiavélica
“máxima de que o fim justifica os meios” (BOBBIO, 1990, p. 114).
E, ao contrário, tranquilamente fala de “maquiavelismo america-
no” um historiador conservador empenhado em teorizar explici-
tamente o caráter benéfico e necessário do “Império” conduzido
pela Casa Branca (FERGUSON, 2005, p. 119). E novamente surge
a diferença entre cínicos e boas almas, e estas últimas revelaram
uma tendência ao maniqueísmo mais acentuada: no filósofo turi-
nense a condenação nos termos já vistos do movimento comunista
é, ao mesmo tempo, a transfiguração do ponto de vista moral dos
seus adversários, considerados imunes ao pecado mortal do ma-
quiavelismo.
Nessa base, torna-se fácil justificar uma após outra as guerras
desencadeadas pelos EUA e os seus aliados, a começar da primei-
ra Guerra do Golfo. Este último ponto de vista é sustentado por
grandíssima parte da opinião pública, mas com enfoques diferen-
tes. Eis o balanço descrito alguns anos depois por um renomado
politicólogo estadunidense:

“Estava em jogo (na primeira Guerra do Golfo) estabelecer se o


grosso das maiores reservas petrolíferas do mundo seria contro-
lado pelos governos sauditas e dos emirados – cuja segurança
foi confiada à potência militar ocidental – ou pelos regimes in-
dependentes antiocidentais em condições, e talvez decididos, de
utilizar a arma do petróleo contra o Ocidente”.

Felizmente, graças à esmagadora vitória obtida pelos EUA e


seus aliados, o Golfo Pérsico “tornou-se um lago americano”
(HUNTINGTON, 1997, p. 373-374).
É inútil procurar referências ao petróleo nos depoimentos de

309
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Bobbio e Habermas que, de qualquer forma, também apoiaram a


guerra contra a Iugoslávia de 1999. Por ocasião da segunda Guerra
do Golfo – desencadeada em 2003 pelos EUA e Grã-Bretanha
não apenas sem a autorização do Conselho de Segurança como
também com a oposição de França e Alemanha –, pelo menos
Habermas sentiu necessidade de expressar a sua discordância,
mas a expressou sem desenvolver nenhuma reflexão autocrítica
pela aprovação dada às guerras anteriores e pelo ingênuo méto-
do seguido em tal circunstância. A esquerda imperial continuou
não fazendo referência aos interesses materiais e ao quadro ou ao
contencioso geopolítico, remetendo apenas a grandes princípios
morais. Tudo isso segundo o modelo do “cristianismo imperial”.
A religião civil dos direitos do homem tomou o lugar do cristianis-
mo. Diferenciando-se de Rhodes, empenhado em ampliar o Impé-
rio britânico em nome da “filantropia + 5%”, o “cristianismo im-
perial” deixou de lado a última parte dessa palavra de ordem para
agitar apenas a bandeira da “filantropia”; tomando distância dos
mais banais defensores do atual Império, que chamam à luta em
defesa dos “valores e interesses” americanos ou ocidentais, Bob-
bio deixou de lado o segundo substantivo, o mais prosaico; e até
o adjetivo sofreu uma deturpação, de maneira que os “valores”,
mais do que americanos ou ocidentais, se tornaram universais.
Aliás, não faltou ingenuidade filosófica: a “máxima de que o
fim justifica os meios” foi altivamente rejeitada com o olhar volta-
do para os adversários, mas com a total ausência do momento de
autorreflexão: a justificativa de uma série de guerras como neces-
sárias para restabelecer o respeito aos direitos humanos e aos va-
lores universais não foi ela própria fundamentada na odiosa má-
xima maquiavélica? Era igualmente ingênua a convicção de que a
moral seria por si mesma a solução, ou pelo menos a superação,
do conflito. Como se, apenas para dar um exemplo, a Cruzada,
uma guerra que tende a ser total, não tivesse sido, à sua época,
chamada por Bernardo de Claraval (não por acaso um santo), por
razões morais, em nome da justa e santa luta contra o Mal repre-
sentado pelo mundo islâmico: exatamente por isso a morte em ba-
talha do inimigo islâmico, mais do que uma dolorosa necessidade

310
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

imposta pela guerra, tinha o significado de uma ação louvável em


si, era sinônimo de “malicidium” (LOSURDO, 2007, cap. 4, § 8). O
apelo impensado à moral pode produzir uma exacerbação tal do
conflito que se aproxima da desumanização do inimigo.
Não obstante o seu fervor moral e religioso, ou talvez exata-
mente por causa disso, o “cristianismo imperial” terminou como
um apêndice das grandes potências coloniais. De modo semelhan-
te, Bobbio não percebeu que o seu pathos moral, bem longe de estar
filosoficamente bem acima do conflito, reproduzia involuntaria-
mente a ideologia ocidental da Guerra Fria. Por ocasião da fun-
dação da Otan, o secretário de Estado dos EUA, Dean Achlson,
comparou as “convicções morais e éticas” próprias da “civilização
ocidental” com a “convicção comunista com base na qual a coer-
ção pela força é o método apropriado para apressar o inevitável”
(in: HOFSTADTER, HOFSTADTER, 1982, vol. 3, p. 420). Os co-
munistas tinham o vício de querer acelerar com a violência o fim
do capitalismo que eles consideravam definitivamente condenado
pela história: era a ideologia com a qual a Otan enfrentou à sua
época a Guerra Fria, e era o argumento continuamente utilizado
pelo filósofo turinense. E foi usado justamente quando os gover-
nantes estadunidenses – pensando em Bill Clinton ou Bush Filho
e hoje em Barack Obama – que se sentiam autorizados a “apressar
o inevitável”, recorrendo a embargos catastróficos, a golpes de Es-
tado ou a guerras desencadeadas sem a autorização do Conselho
de Segurança da ONU. Aliás, a solene homenagem feita à moral
por Acheson não impediu nem mesmo dificultou os massacres na
Argélia e no Vietnã e a imposição na América Latina de ditaduras
militares prontas a recorrerem a práticas genocidas; não incluía a
renúncia a tentativas (algumas vezes bem-sucedidas, outras malo-
gradas) de assassinar chefes de Estado e de governo indesejáveis.
Uma consideração conclusiva se impõe no que se refere à es-
querda imperial. A ela se incorporaram não poucos ex-comunis-
tas. Fortemente atraídos pelo pensamento de Bobbio, eles moti-
varam a sua mudança de campo em nome da universalidade do
valor da democracia, da absoluta inviolabilidade do Estado de Di-
reito e das regras do jogo, efetuando a redescoberta das “formas”

311
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

injustamente ultrajadas e violadas pelo movimento comunista.


Mas, por ocasião da guerra contra a Iugoslávia ou contra o Iraque
em 2003, junto ao filósofo turinense eles se viram obrigados a um
duplo salto mortal: as regras do direito internacional, o estatuto
da ONU e o Estado de Direito não tinham nenhum valor diante
da “substancial” justiça da cruzada humanitária apregoada por
Washington! Apesar do pathos moral dos seus discursos, acaba-
ram prevalecendo Maquiavel e a “máxima de que o fim justifica
os meios”!

8.4. A hegemonia exercida pela esquerda imperial

A afirmação da esquerda imperial é sintoma da crise geral da


esquerda no Ocidente. Durante todo um período histórico, a es-
querda se caracterizou pelo seu empenho na metrópole a favor da
emancipação das classes populares e das mulheres que, segundo
o ensinamento de Engels, constituem a vítima da “primeira opres-
são de classe”, e na família tradicional representam “o proletaria-
do” (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 21, p. 68 e 75), e nas colônias
e semicolônias ela é favorável aos povos oprimidos. Benjamin Dis-
raeli não era considerado de esquerda: certamente, ele promoveu
a extensão do voto às classes populares e a favor delas tomou al-
gumas medidas, embora tímidas, de reforma social; por um ou-
tro lado, porém, o primeiro-ministro britânico era defensor do ex-
pansionismo colonial e do domínio que o Ocidente era chamado
a exercer sobre as raças “inferiores”. Um século depois, não era
considerado de esquerda nem mesmo Lyndon Johnson que, em
nome da construção de uma “Great Society”, se propunha a com-
bater nos EUA a miséria e a discriminação racial, com o objetivo
de ampliar a base social de consenso para levar adiante a infame
guerra desencadeada contra o Vietnã. Contra ela se desenvolveu
no Ocidente um imponente movimento de massa que identificou
justamente no presidente estadunidense um dos seus principais
alvos: “Johnson carrasco”! Naqueles anos, aos olhos da esquerda,
não podiam se separar a luta anticapitalista, de um lado, e a luta
anticolonialista e anti-imperialista, de outro.

312
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Era o revisionismo histórico que, ao contrário, semeava confu-


são. Renzo De Felice (1992, p. 105 e 64-65) colocou na “esquerda”
o fascismo e acreditava poder ver nele certa herança da Revolução
Francesa. Afinal de contas, ele tinha se empenhado em um “pro-
cesso revolucionário” que impôs, “por exemplo, o uso de ‘vós’ em
lugar de ‘você’”, encurtando sensivelmente as distâncias entre os
italianos. É verdade, participando em 25 de outubro de 1938 do
Conselho Nacional do Partido Nacional Fascista, o duce propôs a
introdução de relações de maior camaradagem entre os italianos,
e também condenou firmemente a tese segundo a qual “existem
duas raças na Itália: a do vale do Pó e a meridional”. Mas a outra
face da moeda era que na África e nas colônias os “indígenas” de-
viam ter “bem claro como predominante o conceito da nossa su-
perioridade”. E, portanto, era preciso eliminar expressões “muito
evanescentes” como aquela de “gênero humano” (MUSSOLINI,
1951, vol. 29, p. 185-189). Assim, foi liquidada a palavra de ordem
central proveniente da Revolução Francesa, aquela que faz refe-
rência ao homem e aos direitos do homem enquanto tais. De resto,
em outra ocasião, De Felice (1990, vol. 1, p. 1287) reconhecia que
Mussolini até o fim tinha se atribuído a “missão” de combater as
ideias de 1789. Estamos diante de um fenômeno bem conhecido:
a comunidade que se estabeleceu no seio do povo ou da pretensa
raça dos senhores é apenas um lado da moeda; a outra é constitu-
ída pela irrecuperável distância (e opressão) que se implanta con-
tra os “indígenas” e os povos coloniais em geral. Mas o historiador
revisionista considerava que se podia proceder a uma avaliação
global do fascismo limitando-se a observar, com uma certa con-
descendência, apenas um lado da moeda. E assim rebatizou como
de “esquerda” um declarado defensor da hierarquia racial e o res-
ponsável por infames guerras coloniais na Etiópia e nos Bálcãs.
Mas ninguém na esquerda levou a sério a classificação proposta
por De Felice. Ainda não havia ocorrido a confusão que hoje reina
soberana, como demonstra o surgimento da esquerda imperial.
Esta tende até a exercer uma hegemonia sobre a esquerda em
seu conjunto. Na guerra contra a Iugoslávia vimos Hardt assumir
uma posição idêntica à de Bobbio. Ainda mais que da esquerda

313
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

imperial e de certos deslizes inesperados em suas posições, são


sintomáticas as tomadas de posição de intelectuais de primeirís-
simo plano da assim chamada “esquerda radical”. Žižek (2007, p.
2 e 5) não economizou a sua ironia sobre uma tendência por ele
considerada totalmente desviante: a luta de classe não veria mais
como protagonistas “os capitalistas e o proletariado em todos
os países”, mas se desenrolaria num quadro internacional, con-
trapondo os Estados mais do que as classes sociais; de tal modo
que a marxiana “crítica do capitalismo enquanto tal” se reduz e
se desfigura em “crítica do ‘imperialismo’”, que perde de vista o
essencial, isto é relações capitalistas de produção. São enviadas
por Žižek, para uma esfera profana e substancialmente estranha
ao processo de emancipação, as gigantescas lutas de classe (e de
emancipação) que impediram que o Terceiro Reich e o Império
do Sol Nascente impusessem uma escravidão colonial de fato na
Europa oriental e na Ásia respectivamente; as lutas de classe que
derrotaram no Vietnã primeiro o colonialismo clássico francês e
depois o neocolonialismo estadunidense; enfim, as lutas de classe
que na América Latina recolocaram radicalmente em discussão
a doutrina Monroe e que a partir daí começaram a pensar a
promover novos modelos de sistema social.
E agora vejamos uma recente tomada de posição relativa aos
atuais movimentos de protesto contra a austeridade antipopular
imposta sobre a onda da crise: “Uma parte dos indignados isra-
elenses acampados no boulevard de Tel Aviv pensou em si mes-
mos como renovadores da alma e da forma política da tradição do
kibutz, baseada em relações comunitárias semelhantes” (HARDT,
NEGRI, 2012, p. 66). Na realidade, vimos que esses indignados
nada disseram sobre a sorte imposta por Israel aos palestinos.
E, no plano mais propriamente histórico, o que dizer do elogio
sem reservas aos kibutz? À sua época, Arendt (1986, p. 85-86 e 92)
chamou a atenção sobre a presença dentro do sionismo de uma
tendência à primeira vista singular: ela é caracterizada, por um
lado, pelo apoio aos objetivos “chauvinistas” e, por outro, pelo
empenho na busca de experimentos coletivistas e de uma “rigo-
rosa realização da justiça social” dentro da própria comunidade.

314
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Delineia-se, assim, um “conglomerado absolutamente paradoxal


de tendência radical e de reformas sociais revolucionárias na polí-
tica interna, e de métodos antiquados e totalmente reacionários na
política externa”, no campo das relações com os povos coloniais.
Deparamo-nos aqui com uma tendência que, por analogia com
a “democracia para o povo dos senhores” (que durante séculos
assinalou a história do Ocidente liberal), pode ser definida como
“socialismo para o povo dos senhores”. Mas é de se considerar
de esquerda e realmente emancipadora uma tal tendência, ou é
atribuição da esquerda a luta contra a pretensão de determinado
grupo étnico ou social de fingir ser povo dos senhores?
Nessa exaltação do kibutz, cuja dimensão colonial é lucida-
mente descrita por Arendt, novamente se percebe a influência da
esquerda imperial. Como explicá-la? Muitas vezes chamei a aten-
ção para o extraordinário superpoder multimidiático do qual atu-
almente desfruta a burguesia ocidental. Mas isso não basta. São
duas as circunstâncias que possibilitaram mudar radicalmente o
quadro político internacional e a torná-lo muito menos claro. Em
primeiro lugar, a transição do colonialismo para o neocolonialis-
mo: a “anexação política” é imediatamente evidente; não o é, ao
contrário, a “anexação econômica”, ou então “econômico-tecno-
lógico-judicial”, que é característica do neocolonialismo. Em se-
gundo lugar, desempenhou um papel fortemente negativo aquilo
que podemos chamar de romantismo revolucionário: era fácil se
identificar com Cuba que, em 1961, rechaçou a invasão da Baía
dos Porcos fomentada pelos EUA; ou com o Vietnã que, nos anos
seguintes, primeiro colocou em xeque e depois levou à fuga a
maior potência militar da época; ou com a China que conquistou
e defendeu a independência nacional primeiro com a luta contra
o imperialismo japonês e, depois, contra o estadunidense. Nos
dias atuais, os países anteriormente citados estão, em circunstân-
cias diferentes, empenhados em consolidar a sua independência
política mediante o desenvolvimento econômico e tecnológico: é
uma tarefa muito mais prosaica e obscura que a resistência arma-
da contra um monstruoso Golias militar e político, e é uma tarefa
que não chama a atenção nem gera simpatia de todos os que, no

315
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

âmbito da esquerda denominada radical, estão afetados por um


romantismo revolucionário.

8.5. “Miséria socializada” ou Estado de Bem-Estar Social?


Harvey e a China de Deng

A falta de compreensão da questão colonial e nacional produz


efeitos negativos, que vão além da leitura do atual quadro inter-
nacional. Afastado o problema da falta de democracia nas relações
entre os diferentes países e Estados e da luta em curso entre colo-
nialismo e anticolonialismo, a China foi caracterizada como um
país de capitalismo autoritário e de modelo até neoliberal. Na sua
Breve história do neoliberalismo, David Harvey inclui no âmbito do
movimento político por ele analisado também a China pós-maoís-
ta, aproximando Deng Xiaoping de Pinochet, Reagan e Thatcher!
No entanto, é o mesmo autor marxista inglês a esclarecer que as
reformas econômicas introduzidas a partir do fim de 1979 servem
para o grande país asiático “desenvolver as capacidades tecnoló-
gicas” e “se defender melhor contra ataques de fora” (HARVEY,
2007, p. 142). Elas, a saber, são também uma apólice de seguro
contra os impulsos e os projetos imperialistas conduzidos pelas
grandes potências responsáveis por terem imposto a um quinto
ou a um quarto da população mundial um “século de humilha-
ção” e uma negativa tão radical dos direitos sociais e econômicos
que permite a morte por inanição em larga escala. Mas então que
sentido tem aproximar e até identificar Deng Xiaoping e Reagan,
isto é, duas personalidades com papéis antagônicos, as possíveis
vítimas e os possíveis responsáveis pelas “agressões externas”?
Encontramo-nos diante de um livro que, paradoxalmente, com
a sua análise marcada de lucidez e honestidade intelectual, acaba
por desmentir a tese de fundo indicada já no título. São neoliberais
as reformas implantadas por Deng? Na realidade, elas são prove-
nientes da necessidade de acabar com “vários anos de estagnação
econômica”, promovem, dentre outras coisas, um gigantesco pro-
grama de desenvolvimento da malha rodoviária, “financiado pelo
déficit, segundo o clássico estilo keynesiano”, e no entanto reali-

316
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

zam um “crescimento econômico excepcional”, assegurando “ní-


veis crescentes de vida a uma parte considerável da população”
(IDEM, p. 139, 152 e 141). Os resultados estão diante dos olhos de
todos: “A China se orgulha da economia mais dinâmica e de maior
êxito no mundo” (IDEM, p. 156). Parece-me que tudo isso não tem
nada a ver com neoliberalismo!
É óbvio, nem toda a riqueza produzida por esse “crescimento
econômico excepcional” é usada para a construção do Estado de
Bem-Estar Social. Ocorrem fortes investimentos para desenvolver
as forças produtivas (que é o pressuposto da manutenção e da
progressiva consolidação do Estado de Bem-Estar Social), para sair
do estado de subdesenvolvimento, fortalecer as infraestruturas,
ampliar a esfera de consumo. Apenas assim é possível ampliar a
base social de consenso do poder proveniente da revolução contra
o poder colonial e semicolonial e o Antigo regime. Deng Xiaoping e
os seus sucessores devem ter refletido sobre as circunstâncias com
que se desenvolveu a Guerra Fria no plano ideológico: se o “campo
socialista” exibiu orgulhosamente o espaço sem precedentes
garantido aos direitos econômicos e sociais (pleno emprego, acesso
gratuito, mesmo aos níveis mais altos de instrução, à assistência
médica e ao gozo de um período de férias), o Ocidente, enquanto
procurava enfrentar a ofensiva nesse campo iniciando aqui e ali
um Estado de Bem-Estar Social mais ou menos avançado, contra-
-atacou exibindo uma sociedade de consumo decididamente mais
opulenta. No final, esta última manobra tornou-se vencedora. Pelas
fronteiras entre a Europa oriental e a ocidental que, dadas as dife-
rentes condições de desenvolvimento, eram também o limite entre
o Sul e o Norte do planeta, passavam homens e mulheres atraídos
por uma sociedade do consumo há muito tempo almejada, mas
sem se darem conta de que haviam deixado para trás a segurança
social que os tinha amparado e até aquele momento era conside-
rada óbvia. A aparência de obviedade desapareceu totalmente nos
anos seguintes, mas era impossível voltar atrás; resta o fato de que,
se não enfrenta adequadamente o desafio que representa a socieda-
de de consumo, uma sociedade pós-capitalista não tem condições
de com o tempo defender o Estado de Bem-Estar Social.

317
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

A tomada de consciência da necessidade de ligar a progressi-


va construção do Estado de Bem-Estar Social ao desenvolvimento
das forças produtivas e ao aumento de consumo não tem nada a
ver com a política de Reagan e de Thatcher (sem falar de Pinochet).
Com isso termina concordando o próprio autor marxista inglês:
“De um certo ponto de vista os chineses se diferenciam de modo
evidente do modelo neoliberal. A China possui enormes exceden-
tes de força de trabalho, e se pretende atingir uma estabilidade so-
cial e política deve absorver esses excedentes ou reprimi-los com
violência”. Escolheu a primeira opção e ei-la “agindo como um
Estado keynesiano, mantendo o controle sobre o capital e taxas de
câmbio” e em seguida colocando em discussão “as regras globais
do FMI, WTO [World Trade Organization, OMC na sigla em por-
tuguês] e Tesouro estadunidense” (IDEM, p. 162). Portanto, bem
longe de haver consonância, há um contraste em relação aos cen-
tros de promoção e imposição das políticas neoliberais. Em todo
caso, deixando para trás o período de “estagnação econômica”, as
reformas de Deng permitiram um desenvolvimento do emprego e
tornaram mais fácil a absorção da força de trabalho excedente: são
os pontos programáticos fundamentais de toda força política que
pretenda concretamente enfrentar o neoliberalismo.
A divergência em relação aos centros de poder do capitalismo
mundial e do neoliberalismo é apenas um incidente de percurso
ou além disso expressa uma específica linha política? Na realida-
de, aqueles que exercem o poder no grande país asiático perse-
guem o “objetivo de impedir a formação de qualquer bloco de po-
der coerente da classe capitalista dentro da China”, levam adiante
uma política que tem como característica a “tentativa de impedir
a formação de uma classe capitalista” e que “retira do capital
uma das suas armas mais importantes face ao poder do Estado”
(IDEM, p. 142). E novamente nos deparamos com um paradoxo. O
autor inglês aqui citado é um severo crítico de Deng, mas parece
tirar proveito da sua análise e confirma a validade dela há décadas
de distância. “Existe a possibilidade de que surja uma nova bur-
guesia?” – se perguntava em 1985 o líder chinês que rapidamente
respondeu: “Pode se formar um punhado de elementos burgue-

318
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

ses, mas eles não constituirão uma classe”, ainda mais que há um
“aparato estatal” que é “potente” e tem condições de controlá-los;
de outra parte, algo de semelhante ocorreu quando Lênin “adotou
a Nova Política Econômica” (DENG XIAOPING, 1992-1995, vol. 3,
p. 142-143; cf. LOSURDO, 2013, cap. 8, § 7).
Certamente, não faltaram (e não faltam) desvios, desafios
e perigos. E, no entanto, “as tentativas iniciais da parte das em-
presas estrangeiras de conquistar o mercado interno da China,
em setores como o automobilístico e dos produtos industriais,
não tiveram êxito” (HARVEY, 2007, p. 150). À mesma conclusão
chegou um historiador conservador britânico: as multinacionais
estadunidenses esperavam colonizar o grande país asiático e es-
tavam convencidas de poderem se valer, com tal objetivo, das
Zonas Econômicas Especiais. Na realidade, elas permitiram que
a China adquirisse “um know how tecnológico de vital importân-
cia” (FERGUSON, 2008, p. 585-586). E agora dito com as palavras
do autor marxista britânico: “A China foi aberta, mesmo que sob
uma severa supervisão do Estado, ao comércio com o exterior e
aos investimentos estrangeiros, pondo fim ao seu distanciamento
do mercado mundial” (e da tecnologia mundial mais avançada)
(HARVEY, 2007, p. 140). Pode-se acrescentar que à sua época Mao
levou em consideração acelerar o retorno à pátria mãe de Hong
Kong e de Macau, justamente com o objetivo de impedir a política
de estrangulamento econômico e de apartheid tecnológico prati-
cada por Washington; as colônias ainda não recuperadas podiam
desempenhar, em escala mais reduzida, a função mais tarde atri-
buída às Zonas Econômicas Especiais.
E novamente se impõe a questão: à luz de tudo isso, qual o sen-
tido em se falar, a propósito do novo percurso iniciado por Deng,
de neoliberalismo e até de “confluência com a onda neoconser-
vadora que está se alastrando pelos Estados Unidos”? (IDEM, p.
173). Para tornar plausível tal imputação basta remeter à “rápida
polarização social”, ao fato de que “foram aprofundadas as desi-
gualdades regionais” (IDEM, p. 164) e que foi cancelada a “tigela
de ferro de arroz” com base na qual aos trabalhadores emprega-
dos na economia pública (mas não aos camponeses), independen-

319
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

temente do trabalho realizado (ou não realizado), era garantido


um mínimo de serviços e de segurança social? Esse cancelamento
é sinônimo de desmantelamento neoliberal do Estado de Bem-Es-
tar Social? Se a tal pergunta se respondesse afirmativamente se
chegaria a uma conclusão claramente absurda: se deveria dizer
que na China em que (ainda que em consequência também da
difícil situação internacional e do devastador embargo imposto
por Washington) milhões de pessoas corriam o risco ou acabavam
morrendo por inanição estava em ação o Estado de Bem-Estar So-
cial, que ao contrário desapareceu justamente nas décadas em que
centenas de milhões de pessoas haviam se livrado do perigo de
morte por inanição e da miséria.
Uma coisa é proclamar, por orientação de princípio, os “di-
reitos sociais e econômicos” e outra coisa bem diferente é ga-
rantir a realização deles, a qual pressupõe um certo desenvolvi-
mento das forças produtivas e da riqueza social. Numa situação
de miséria absoluta se é obrigado a proceder a uma hierarqui-
zação dos “direitos sociais e econômicos” e colocar numa po-
sição prioritária, obviamente, o direito à vida. Desencorajando
a competição e o compromisso produtivo, a “tigela de ferro
de arroz” era de fato um obstáculo para a concreta afirmação
do direito à vida e, portanto, à introdução dos primeiros rudi-
mentos de Estado de Bem-Estar Social. A tal conclusão reagirá
espantado e mesmo horrorizado quem imagina como retilíneo
o percurso de construção do Estado de Bem-Estar Social; mas
mesmo nesse caso o processo histórico real revela o seu caráter
complexo e tortuoso.
Em relação à garantia do direito à vida todo o resto era secun-
dário, a começar das “desigualdades regionais” e da “polarização
social” trazidas à luz pelo autor marxista inglês que, porém, re-
conhece que “na China o igualitarismo, como objetivo de longo
prazo, não foi esquecido” (HARVEY, 2007, p. 139). Não se trata de
uma homenagem formal a uma teoria vazia. Um dos pilares da
política seguida por Deng e por seus sucessores são os gigantescos
investimentos na modernização e no desenvolvimento das infra-
estruturas: eles não correspondem à lógica do lucro – não pou-

320
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

cas vezes apresentam déficit –, mas visam a, além de aumentar a


produtividade do sistema econômico como um todo, atrelar à lo-
comotiva do rápido desenvolvimento as regiões geográfica e his-
toricamente mais desfavorecidas. É preciso acrescentar que, seja
como for, as regiões mais ricas e desenvolvidas são obrigadas hoje
a ajudar, em diferentes proporções, as mais pobres e relativamente
mais atrasadas.
Em consequência disso tudo, agora se torna anacrônica a afir-
mação segundo a qual as “desigualdades regionais” vão se apro-
fundando: nestes últimos anos, algumas das regiões menos desen-
volvidas apresentam um índice de crescimento mais rápido que as
regiões costeiras mais avançadas, enquanto no centro do país im-
portantes metrópoles (Chongqing, Chengdu, Xian) florescem até
no plano tecnológico. Além das desigualdades regionais, também
as desigualdades, dentro de cada uma das regiões, entre morado-
res da cidade e moradores do campo tendem a diminuir: em 2013,
ajustada pela inflação, os primeiros viram aumentar a sua renda
em 7%, os segundos em 9,3% (WASSENER, 2014).
E tudo isso graças aos gigantescos investimentos efetuados
pelo governo federal e tornados possíveis pelo extraordinário
desenvolvimento das forças produtivas que aconteceu após o
abandono da “tigela de ferro de arroz”. Ocorreu um paradoxo.
“A desigualdade social nunca foi erradicada em período revo-
lucionário, a diferenciação entre cidade e campo foi até sancio-
nada por lei”, mediante a imposição daquele tipo de passaporte
interno que impedia (e impede) o afluxo do campo para a cida-
de (HARVEY, 2007, p. 164). Pois bem, hoje em dia essa “diferen-
ciação” diminuiu: por um lado, o limite entre cidade e campo
se tornou mais poroso e o passaporte interno está menos rígido
e em alguns casos se extinguiu ou está em vias de se extinguir;
por outro lado, em consequência do rápido processo de urba-
nização, diminuiu de modo rápido e maciço o número dos que
são discriminados negativamente pela tal “diferenciação”. Em
conclusão, a desigualdade entre cidade e campo tornou-se me-
nos aguda a partir das reformas de Deng e do desenvolvimento
das forças produtivas a elas ligado.

321
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Ainda mais que, para as regiões mais pobres, o governo federal,


além da ajuda financeira, está transferindo importantes recursos
humanos. No International New York Times (2013b), podemos ler:

“Recursos financeiros foram transferidos para as escolas pobres,


rurais, para construir novos prédios e modernizar os velhos.
Professores foram transferidos das cidades para áreas rurais e
vice-versa. As escolas urbanas mais estáveis foram agrupadas
com escolas rurais com o objetivo de melhorar os métodos de
ensino. E, em consonância com uma recente estratégia, escolas
estáveis assumiram a administração das mais fracas”.

No entanto, certamente, continua pesada a “polarização social”


indicada por Harvey. Mas é de se notar, em primeiro lugar, que
ela não tem nada de espantoso. É uma dialética nada nova na his-
tória dos países de orientação socialista. Em 1936-1937, fazendo
um balanço do país oriundo da Revolução de Outubro, Trotsky
explicou que isso “teve incontestavelmente em sua primeira fase
um caráter muito mais igualitário” do que na fase seguinte; “mas
a sua igualdade foi a da miséria comum” e “os recursos do país
eram tão escassos que não podiam se formar camadas relativa-
mente privilegiadas separadas das massas”; deve-se acrescentar
que “o salário ‘igualitário’, ao eliminar o estímulo individual, se
torna um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas”.
Eram os anos da “miséria socializada” (e, no entanto, absoluta)
ou então, para usar desta vez a expressão de Gramsci, do “coleti-
vismo da miséria, do sofrimento”, ou ainda, para dizer enfim com
Deng Xiaoping, da “tigela de arroz de ferro”, certamente distri-
buída igualitariamente, mas de forma tão severa que não garan-
tia nem mesmo a sobrevivência. Para ser mais preciso, a “igual-
dade da miséria comum” (Trotsky) e o “coletivismo da miséria”
(Gramsci) eram mais aparentes do que reais, ou então reais no
plano quantitativo mas não no qualitativo: em condições de mi-
séria extrema também um minúsculo pedaço de pão, que pode
assegurar a sobrevivência, comporta uma absoluta desigualdade
qualitativa, aquela que permanece desde que se nasce até a morte

322
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

(LOSURDO, 2013, cap. 7, §§ 2, 3 e 6). O primeiro passo no proces-


so de construção do Estado de Bem-Estar Social é dado pela defi-
nitiva superação dessa absoluta desigualdade qualitativa; e mais
uma vez somos remetidos à necessidade do desenvolvimento das
forças produtivas.
O crescimento da riqueza social torna possível, e, na realidade,
numa primeira fase, inevitável, o surgimento da “polarização so-
cial”. Justamente com base no “materialismo histórico-geográfico”,
com razão adotado por Harvey (2013, p. 1), é fácil compreender,
por exemplo, que as primeiras que se desenvolvem são as regiões
costeiras e que se localizam em frente de países que se destacam por
um grande dinamismo econômico e comercial. Mas nem o adeus à
“miséria socializada”, ou ao “coletivismo da miséria”, próprio do
comunismo de guerra, nem a superação do princípio da “tigela de
ferro de arroz” significam a mudança para o neoliberalismo, bem
como não é uma profissão de fé neoliberal a dura crítica que o Mani-
festo do Partido Comunista dirige a todos que seguem o ideal de uma
sociedade que se baseia em “um ascetismo universal e um tosco
igualitarismo”; eles se consideram socialistas, mas na realidade se
limitam a “dar ao ascetismo cristão uma pincelada de verniz socia-
lista” (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 4, p. 489 e 484).
O juízo histórico global sobre o novo curso desenvolvido por
Deng dependerá obviamente do modo como é, e será, enfrentada
a “polarização social” que entretanto surgiu. Mesmo nesse plano
há novidades importantes: “Segundo um estudo do Boston Con-
sulting Group (BCG), os salários chineses aumentaram em dois
dígitos em 2000 (...). Até agora, toda vez que os operários de uma
fábrica mostraram sinais de insatisfação, o partido pressionou por
imediatos aumentos salariais, para manter a paz social” (TAINO,
2013). É também significativo o que está ocorrendo no sistema es-
colar. Este, conforme o International New York Times (2013b), está
assumindo uma configuração “mais igualitária” em relação ao
passado; em todo caso, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde
as escolas são estruturadas em última análise com base na renda
familiar, no país governado pelo Partido Comunista “estudantes
de origem social e capacidade diferentes são educados sob o mes-

323
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mo teto”. Também são anunciados ambiciosos planos fiscais e de


redistribuição de renda. E, portanto, mesmo que esteja longe de
ser superada, a polarização social é atacada em muitos sentidos.
Aliás, seria errado limitar a análise apenas ao quadro nacional:
“nos anos 1990 a China começou a subir na escala do valor agrega-
do” (HARVEY, 2007, p. 159), um processo que claramente se acen-
tuou nos últimos tempos, com o resultado da sensível diminuição
da “grande divergência” que há séculos separa o Ocidente do resto
do mundo. E novamente estamos diante de um resultado, que é
consciente e obstinadamente perseguido pelo governo chinês, mas
que certamente não aparece entre os objetivos do neoliberalismo.
Atualmente, não poucos analistas veem se contrapor ao “Con-
senso de Washington” (sinônimo de neoliberalismo) o “Consenso
de Pequim”, que em seu centro possui uma política de desenvolvi-
mento fomentada e favorecida por um setor mais ou menos amplo
da economia pública, admirado em particular pelos países do Ter-
ceiro Mundo; e é para melhor conduzirem a luta contra o “Con-
senso de Pequim” que os EUA e a UE ainda se recusam a aceitar o
status da China como economia de mercado. Esse mesmo objetivo
possui também aquela espécie de Otan econômica que Obama se
propõe a realizar e que, como condição para a admissão, coloca,
entre outras, o desmantelamento do setor público da economia.
Olhando bem, é claro o contraste entre China, de um lado, e
o Ocidente, e os EUA em particular, de outro. Mas justamente é
preciso olhar com muita atenção. A abordagem empirista, que
se limita a verificar o nível dos salários ou da assistência social,
pode parecer concreta, mas é, ao contrário, muito mais abstrata.
Ela omite o fundamental: o estágio de desenvolvimento em que
se encontram os países submetidos a essa comparação e as linhas
de tendência que os caracterizam. Se na China (com uma renda
per capita ainda relativamente baixa) o Estado de Bem-Estar Social
está sendo construído, no Ocidente ele está no geral em vias de
desmantelamento; se no primeiro caso todas as previsões (mesmo
ocidentais) falam de rápida ampliação da classe média, no segun-
do caso ninguém tem dúvidas sobre a progressiva diminuição da
classe média e a crescente polarização social; se no grande país asi-

324
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

ático, as desigualdades regionais começam a dar sinais de retro-


cesso como consequência do ritmo de desenvolvimento particu-
larmente rápido obtido nos últimos anos pelas regiões (por razões
históricas e geográficas) tradicionalmente mais pobres e atrasadas,
no Ocidente em um país como a Itália a diferença entre Norte e
Sul aumenta espantosamente a ponto de comprometer a própria
unidade nacional. Na China, em virtude da insistência no propó-
sito da “prosperidade comum”, os permanentes obstáculos no
caminho que conduz à realização de tal objetivo são designados
como pedras – que impedem que sejam plenamente desfrutados
os direitos sociais e econômicos –, às quais a sociedade é chamada
a remover no tempo mais curto possível; no Ocidente, ao contrá-
rio, vimos Thatcher sancionar a inexistência da sociedade, quando
a ela apelam estratos sociais em condições difíceis ou extremas.
Enfim, “os milionários e bilionários chineses (...) são realmente
proprietários do seu patrimônio e podem, por exemplo, retirá-lo
livremente da China?” (PIKETTY, 2013, p. 875).
Enquanto critica o presumido desmantelamento do Estado de
Bem-Estar Social na China de Deng, de outra parte, Harvey (2011,
p. 232-233) vê o “igualitarismo radical” e o princípio de igualda-
de” encontrarem expressão nos “movimentos revolucionários, da
tomada da Bastilha à praça Tienanmen”! Mas não cita argumentos
para comprovar a tese segundo a qual entre os partidários do “igua-
litarismo radical” estariam incluídos os revoltosos chineses de 1989.
Foi o ano em que o neoliberalismo triunfou em nível mundial e na
própria Europa oriental: para participar da revolta, dos EUA, Liu
Xiaobo – declarado defensor não apenas do colonialismo, como já
vimos, mas também do total desmantelamento da economia estatal
e pública – antecipou a sua volta a Pequim. Se tivesse conseguido a
vitória o movimento estimulado e seguido passo a passo pela em-
baixada estadunidense – e ao qual, incompreensivelmente, o pró-
prio Harvey vê com tanta simpatia –, então sim o neoliberalismo
teria conseguido triunfar mesmo no grande país asiático!
A esquerda oportunamente se livrou da antiga e ilusória cer-
teza, garantida pela filosofia da história, da inevitável vitória do
futuro grandioso. E é com essa nova consciência crítica que é pre-

325
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ciso olhar para a República Popular da China. É bom, portanto,


concentrar-se no presente: quando se liga acriticamente à campa-
nha antichinesa orquestrada sob o comando dos EUA, a esquerda
ocidental acaba se alinhando com as forças políticas e econômicas
que visam a desmantelar o Estado de Bem-Estar Social para que o
neoliberal “Consenso de Washington” triunfe no mundo inteiro.

8.6. A esquerda radical, Žižek e a deslegitimação do


Estado de Bem-Estar Social

Não é possível concretizar ou manter o Estado de Bem-Estar


Social sem recursos financeiros compatíveis, e estes se tornam dis-
poníveis graças aos impostos que sobrecarregam particularmente
as classes mais ricas, isto é graças à imposição fiscal progressiva.
Bem se compreende por que esta última seja o alvo principal dos
conservadores e do neoliberalismo; mas, nos dias atuais o repre-
sentante talvez mais ilustre da esquerda radical também faz esse
ataque. Para esclarecer este ponto é preciso começar pela Alema-
nha. Neste país que, sob o impulso do movimento operário e so-
cialista, em primeiro lugar foi obrigado a enfrentar a miséria em
massa como “questão social” e a se empenhar na construção do
Estado de Bem-Estar Social, recentemente conquistou as luzes
da ribalta um filósofo neoliberal que não aprecia meias medidas.
Com o olhar voltado para a imposição fiscal progressiva, ele vo-
cifera contra a “redistribuição forçada”, contra o “sistema domi-
nante de coerção fiscal”, contra o “ritual burocrático, baseado na
cobrança obrigatória de impostos”. Para acabar com tudo isso, é
preciso proceder ao “incremento da beneficência” e redescobrir a
“importância da generosidade”, da “ética de dar” e da “ética da
doação”. Em poucas palavras: “Numa sociedade democrática os
impostos deveriam ser transformados de cobranças obrigatórias
em doações em favor da coletividade, dadas pelos cidadãos vo-
luntariamente” (SLOTERDIJK, 2012, p. 9-16).
Em virtude dessa “filosofia”, os protagonistas da evasão fiscal
se veem de fato legitimados e transformados em defensores da
resistência contra a “coerção” estatal, enquanto os partidários do

326
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Estado de Bem-Estar Social e da luta contra a evasão são indireta-


mente tachados de inimigos da liberdade. Recuamos há mais de
um século e meio de história!
Já no início do século XIX, Schleiermacher polemizou contra
aqueles que, ao enfrentar a questão social, propõem que sejam im-
pedidos “por uma lei externa” o “amor cristão”, “a boa vontade
dos indivíduos”. Mais tarde, eis em que modo Friedrich J. Stahl,
expoente de primeiro escalão do conservadorismo alemão, con-
dena Hegel: no seu sistema, todo dominado pelo pathos da etici-
dade – isto é de instituições políticas em condições de pôr fim à
miséria em massa e, assim, tornar concreta a liberdade –, não há
lugar para a “caridade” (Carität), aquela “caridade” que pode se
estender “apenas de pessoa a pessoa”.
É uma explicação que não se encontra apenas na cultura religiosa.
Naqueles mesmos anos, depois de ter negado que os pobres teriam
direito a ser atendidos e ajudados pela sociedade, o liberal Carl
von Rotteck acrescenta que a ausência de uma obrigação jurídica
da parte do poder político, longe de prejudicar os pobres, os ajuda
enquanto estimula a generosidade e a beneficência dos ricos: “O
que se faz com base em uma obrigação jurídica geralmente é feito
com menor cuidado do que aquilo que tivesse sido feito por uma
decisão voluntária, logo, meritória, e que, portanto, encontra a sua
recompensa em uma nobre autoconsciência”. Estamos diante de
um lugar-comum da cultura da época. Na França, Tocqueville
condena a “caridade legal” (isto é, a assistência aos pobres
mediante o uso dos meios que o Estado obtém com os impostos
sobre a riqueza), com o argumento segundo o qual, “o rico, do
qual a lei, sem consultá-lo, toma uma parte dos seus ganhos, vê o
pobre apenas como um ávido estrangeiro chamado pelo legislador
a repartir os seus bens”. Na Grã-Bretanha, Herbert Spencer
aumenta a dose: apelar para o Estado e para a coerção estatal,
com o objetivo de obrigar os ricos a renunciarem a uma parte da
sua riqueza e assim contribuírem para melhorar a condição dos
pobres, significa impor por lei o exercício das virtudes cristãs do
amor ao próximo e da caridade. É como pretender desenterrar a
“Igreja de Estado” de funesta memória! E, portanto, se o velho

327
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

dissenter (dissidente) lutou para que fosse respeitada a espontanei-


dade do autêntico sentimento religioso, também o novo “dissenter
em relação às leis para os pobres confirma que a caridade será
muito mais ampla e muito mais benéfica quanto mais voluntária
for”; se o velho dissenter negou a qualquer autoridade o direito de
controlar a sua consciência religiosa, o novo “dissenter em relação
à caridade institucionalizada argumenta que ninguém tem o direi-
to de se intrometer entre ele e o exercício da sua religião” e reprova
indignado “a interferência do Estado no exercício de um dos mais
importantes preceitos do Evangelho”. O dissenter liberal ou libera-
lista teria o mérito de defender a liberdade religiosa e, ao mesmo
tempo, a liberdade política.
Hegel, isto é, o filósofo que, direta ou indiretamente, é o alvo
principal das críticas dos defensores do “amor cristão” e da “ca-
ridade” e da sua espontaneidade, deu-lhes uma resposta memo-
rável:

“As prescrições frequentemente são vistas com maus olhos,


como por exemplo os impostos para os pobres, os quais queriam
que sua contribuição fosse aplicada para a sua própria caridade.
Só que o indivíduo se coloca, assim, em uma relação incorreta no
que se refere às leis. As leis mais excelentes são aquelas que pres-
crevem o que os homens fazem espontaneamente; justamente
esse é o sentido autêntico, verdadeiro, das leis, que não prescre-
vem nada que não seja o que faz o intelecto, a razão do homem;
depois surge uma regulamentação apenas para a quantidade”.

E àqueles que se lamentam do fato de que a existência de obri-


gações jurídicas abalaria a espontaneidade dos seus sentimentos
morais, Hegel responde que nada os impede de realizar com a
máxima naturalidade o que, aliás, a lei se preocupa justamente
de prescrever: “os homens (honestos) não roubam não porque é
proibido, é espontaneamente que não o fazem” (1).

(1) Para as referências a Hegel e ao debate do século XIX sobre a questão social, bem como para as
sucessivas referências a Constant e Hansemann, que aparecem neste parágrafo, ver LOSURDO (1992),
cap. 8, § 5 e cap. 10, § 5.

328
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Mas, por mais memorável que seja, esta lição parece ter sido
totalmente esquecida. Certamente, depois do processo da radi-
cal secularização que ocorreu nesse ínterim, hoje em dia não se
fala mais de “amor cristão” e de “caridade” (cristã), como faziam
Schleiermacher e Stahl, respectivamente; mas não é diferente o
significado da homenagem feita por Sloterdijk à “beneficência”, à
“generosidade”, à “doação”, à “ética da doação”. E vai na mesma
direção a advertência de Robert Nozick (1981, p. 35 e 247): pode-se
até apelar a um indivíduo rico para que faça um “sacrifício” em
benefício dos pobres, mas “ninguém tem autorização para impor
isso, e muito menos um Estado e um governo”; de resto, se alguém
decide obter uma sociedade mais ou menos igualitária, ninguém o
impede de “transferir uma parte, ou todas, das suas propriedades
de modo a se aproximar o máximo possível da realização (pelo
menos temporária) do modelo que deseja”.
Ao recorrer a uma linguagem mais coloquial, o atual neoli-
beralismo gosta de assumir muitas vezes movimentos rebeldes
e mesmo anarquistas. É uma tendência que encontra a sua ex-
pressão mais completa no “anarco-capitalismo”, que continua
a sustentar o velho dogma conservador da absoluta inviolabi-
lidade da propriedade privada e da esfera da economia, mas
agitando a nova e mais cativante bandeira de um antiestatismo
tão radical que se aproxima do anarquismo! E não por acaso o
“anarco-capitalismo” tomou pé, sobretudo nos EUA (pensando
particularmente em Murray N. Rothbard), onde desde sempre
as tentativas de introdução do Estado de Bem-Estar Social são
tachadas pelo conservadorismo hegemônico como sinônimo de
despotismo e totalitarismo.
Mas, hoje manifesta-se um fenômeno novo e assombroso. O ne-
oliberalismo radical de Sloterdijk, enquanto gerou ríspidas e exas-
peradas polêmicas nos círculos liberais, pôde contar amplamen-
te com a simpática reação de Žižek. Este reservou a sua ironia à
“(previsível) oposição ressentida da esquerda contra Sloterdijk” e
contra a “revolução cultural” planejada por este último. Segundo
Žižek, é paradoxal que a “premissa misantrópica” seja “defendida
com grande força justamente por aquele setor da esquerda que de

329
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

outro modo prega a solidariedade: as pessoas são fundamentalmente


egoístas, de modo que devem ser obrigadas a contribuir com o bem-
estar comum, e é apenas o Estado que, por meio do seu aparato
coercitivo, pode desenvolver a tarefa de garantir a solidariedade e
a redistribuição necessária” (ŽIŽEK, 2013, p. 146-147). Vale a pena
notar que Engels argumentou de maneira exatamente oposta: do seu
ponto de vista, “o princípio da tributação é puramente comunista”
pelo fato de colocar em discussão a tese da absoluta inviolabilidade
da propriedade privada. Alguns anos mais tarde, o “imposto
fortemente progres­sivo” passou a fazer parte do programa exposto
no Manifesto do Partido Comunista (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol.
2, p. 548 e vol. 4, p. 481).
Mas vamos nos concentrar no debate atualmente em curso no
Ocidente. Depois de terem se transformado em “beneficência”,
“generosidade”, “doação” e “ética da doação”, na linguagem de
Sloterdijk, o “amor cristão” e a “caridade” cristã de que falavam
Schleiermacher e Stahl, respectivamente, assumem agora a apa-
rência de “solidariedade”, que obviamente continua sendo vo-
luntária e espontânea. Mantém-se firme a negação da imposição
da norma jurídica objetiva sancionada pelo Estado. A conclusão é
inequívoca e enérgica:

“Devemos deixar para trás o atual estatismo, esse resíduo ab-


solutista que estranhamente sobrevive em nossa época demo-
crática: a ideia, surpreendentemente radicada até na esquerda
tradicional, de que o Estado teria o direito incontestável de co-
brar impostos de seus cidadãos, de determinar e apoderar-se de
parte do seu produto por meio da coerção legal (se necessário)”
(ŽIŽEK, 2013, p. 145-147).

No entanto, vale a pena observar que esse requisitório contra a


“coerção fiscal” procede de maneira um tanto seletiva. E inclusive
essa seleção é explícita, embora não seja argumentada: hoje em dia
“o estrato social produtivo mais explorado não é mais a classe tra-
balhadora”, não são os migrantes ou os working poor. Não, quem
sofre o maior peso de exploração é “a classe média (ou média-al-

330
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

ta): são elas que realmente ‘doam’ pagando excessivos impostos


que financiam a instrução, a saúde etc. da maioria” (IDEM, p. 145).
Pois bem, por que lamentar a “coerção” apenas a respeito da “clas-
se média” ou “média-alta” ou então a respeito da grande riqueza
da qual, ao contrário, faz referência Sloterdijk? Na realidade, dizer
imposto significa dizer coerção, e, dado que é difícil pensar uma
sociedade organizada sem cobrança fiscal, trata-se de escolher não
entre coerção e não coerção, mas sim entre diferentes formas de
coerção fiscal. Certamente, à sua época Bentham definiu como
“voluntários” os impostos sobre o consumo, considerados tam-
bém por Montesquieu como “mais inerentes à liberdade”, ao con-
trário do “imposto per capita” (ou sobre a propriedade ou a renda),
condenado como “inerente à escravidão”. E, no entanto, apesar
da respeitabilidade dos autores que a expressaram, essa opinião é
totalmente infundada. O imposto sobre o consumo é uma coerção
que o Estado exerce não apenas sobre a massa de compradores,
mas também sobre os vendedores de uma determinada mercado-
ria, e é uma coerção que se exerce de maneira repetida e mesmo
diária. Como se vê por essas duas tomadas de posição, antes ainda
do imposto progressivo (criticado por Sloterdijk e Žižek), o impos-
to direto enquanto tal foi condenado pela tradição liberal como
liberticida e difamador da espontaneidade. Portanto, somos obri-
gados a escolher entre coerção e coerção.
O imposto progressivo ou a isenção fiscal em benefício dos
menos abastados violam o princípio da igualdade? Foi essa a
opinião de Constant, para o qual era inadmissível tratar os po-
bres como “uma casta privilegiada”. Uma denúncia que surgiu
em um momento em que, devido ao efeito conjunto de escassez
e inflação, amplas massas passavam fome e às vezes até morriam
de inanição, e, para o liberal francês, essa defesa do princípio
de igualdade no plano fiscal andava pari passu com a teorização
da exclusão da pressuposta “casta privilegiada” do usufruto dos
direitos políticos.
No entanto, levamos a sério a contestação de Constant e a dis-
cutimos: o rico submetido à imposição fiscal progressiva sofre
uma discriminação negativa? Na realidade, abaixo de um certo ní-

331
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

vel de renda a mesma quantidade de dinheiro deduzida pelo fisco


assume um significado qualitativamente diferente. Para o pobre
também uma modesta cobrança fiscal pode implicar consequên-
cias dramáticas, como desistir de investir no ensino superior e na
mobilidade social dos próprios filhos, a perda da casa própria, a
fome e, em situações extremas, até a morte por inanição. Em ou-
tras palavras, é a supressão do imposto progressivo que implica
uma discriminação negativa mais ou menos pesada contra as clas-
ses subalternas, condenadas à miséria ou a ela expostas.
Mesmo o apelo para se passar da coerção à voluntariedade e da
regra objetiva e vinculante à espontaneidade solidária se realiza
de uma maneira um tanto seletiva. Na primeira metade do século
XIX, o grande industrial renano David Hansemann condenou as
tentativas de se introduzir uma regulamentação estatal da jorna-
da e das modalidades de trabalho (particularmente das mulheres
e crianças) com o argumento que já conhecemos: “hegelianos e
socialistas” pretendiam substituir a frieza do Estado e da regra
jurídica pelo calor do “amor”. Devemos destinar ao “amor” ou à
“doação”, à “ética da doação” e à “solidariedade” apenas o siste-
ma fiscal ou também a regulamentação da jornada de trabalho? É
um problema que não se colocam Sloterdijk e Žižek, que parecem
considerar correta a coerção estatal apenas para o segundo caso,
mas sem explicar as razões dessa diferenciação.
É preciso ainda fazer outra pergunta: quais são os limites
da esfera em cujo âmbito é correto fazer valer o princípio da
evidente superioridade da relação intersubjetiva (baseada na
espontaneidade e no calor dos sentimentos) em relação à fria
imposição da lei lançada pelo Estado? Segundo Schelling, aquele
princípio era válido não apenas para a questão social mas também
para a questão político-constitucional. Pelo ponto de vista do
grande filósofo, na última fase da sua vida com posições do
mais rígido conservadorismo, sem sentido era a reivindicação de
uma Constituição escrita e estruturada em uma série de normas
rígidas e insensíveis, incompreensível era o entusiasmo pelo
“texto escrito” que levava a descuidar e a esquecer do essencial:
a relação “pessoal” entre soberano e súditos, o seu “sentimento

332
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

mais íntimo”, a “lei escrita no coração” (LOSURDO, 1997, cap. 11,


§ 3). Foram as posições de um amplo campo político e do próprio
Frederico Guilherme IV da Prússia. E eis aqui um problema
ignorado por Žižek e Sloterdijk: por que parar no meio do
caminho da crítica da “premissa misantrópica” e da reivindicação
do princípio da “solidariedade” e da “ética da doação”? Por que
recusar a coerção e o estatismo apenas para o regulamento fiscal e
não para o constitucional também?
Mencionei as duras reações que foram geradas no âmbito liberal
pelo discurso de Sloterdijk, o qual se refere indignado à acusação
a ele dirigida de pretender substituir o Estado de Bem-Estar Social
pela mendicância (SLOTERDIJK, 2012, p. 13). Mas não se compre-
ende as razões de tal indignação: com uma linguagem talvez ain-
da muito radical a hegeliana Filosofia do direito (§ 242 A) entende a
garantia à beneficência como “acender velas diante de imagens de
santos”. Não por acaso quem se expressa dessa forma é um filósofo
que teorizou sobre o “direito à vida” e aos “direitos materiais”. E eis
que surge a questão central: a condenação da coerção fiscal (sofrida
pelas classes privilegiadas) e do Estado de Bem-Estar Social é, em
última análise, a deslegitimação dos direitos sociais e econômicos
que, como sabemos pela denúncia de Hayek, são o resultado
da influência exercida pela “revolução marxista russa”. Não é
surpreendente que aqueles direitos sejam o alvo da ofensiva neoli-
beral; o que dá muito o que pensar é o crédito do qual tal ofensiva
chega a desfrutar em uma esquerda deslumbrada com palavras de
ordem antiestatalistas e anarcoides.
Para ser mais exato, são colocados em discussão ou esvaziados
de sentido pela campanha em curso contra a imposição fiscal não
apenas os direitos sociais e econômicos, mas de fato também os
políticos. A grande riqueza não esperou os discursos atuais para
dar provas da sua generosidade e do seu apego à “ética da doa-
ção” e ao princípio da “solidariedade”: financia grandemente mo-
vimentos e partidos políticos, Organizações Não Governamentais,
entidades de todo tipo em que ela se reconhece ou deposita as
suas esperanças. Mas justamente a possibilidade de a grande ri-
queza dar comando ilimitado à “ética da doação” e à “solidarieda-

333
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

de” em benefício de um partido político e contra um outro é o que


se considera nos Estados Unidos como um momento fundamental
da crise da democracia, agora muito mais claramente debilitada
pela “plutocracia”. Aliás, essa crítica é parcial e cheia de lacunas;
esquece que a alta finança interfere também nas relações interna-
cionais, promovendo e abarrotando de dinheiro ONGs que têm a
tarefa de desestabilizar países vistos com desconfiança e hostilida-
de pelo Império. A “ética da doação” e da “solidariedade” pode
muito bem lubrificar a máquina da “plutocracia” no plano interno
e internacional. Em todo caso, a partir de posições anarcoides não
é possível defender nem os direitos sociais e econômicos e nem a
democracia na sua dupla dimensão: interna e internacional.

8.7. Latouche e a deslegitimação da luta contra o


neoliberalismo e o imperialismo

Há um outro grande escritor de referência da atual esquerda


no Ocidente que nos instiga a redescobrir o “espírito da doação”
e pedir o retorno dos “velhos conceitos gregos e latinos de cari-
tas”: refiro-me a Serge Latouche, que assume essa posição citando
Marcel Mauss, e, desta vez, a partir da denúncia das desastrosas
consequências do “totalitarismo produtivista” e da “sociedade do
crescimento”. Somos, portanto, reconduzidos à temática da “ca-
ridade” e da “doação”, chamadas a exercer a “supremacia” em
todos os níveis com o fim de evitar a “catástrofe”. E novamente
nos deparamos com uma deslegitimação do Estado de Bem-Estar
Social (baseado na imposição fiscal progressiva, mais do que na
“caridade” ou na “doação”), feita não por um expoente do con-
sagrado neoliberalismo, mas sim por um autor que se sente for-
temente empenhado na crítica ao capitalismo, ao colonialismo e
ao imperialismo e que não desconsidera apelar à “luta de classe”
(LATOUCHE, 2011, p. 64, 67 e 72-73; 2008, p. 21).
A deslegitimação do Estado de Bem-Estar Social é reforçada
em muitas ocasiões a partir de um ângulo visual diferente: “Que-
rer salvar o emprego a todo custo (...) indica na maioria dos casos
um apego visceral, consciente ou inconsciente, à sociedade traba-

334
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

lhista” (LATOUCHE, 2008, p. 104). O direito ao trabalho, parte in-


tegrante dos direitos sociais e econômicos e, a partir de 1848 pelo
menos, um objetivo fundamental da luta do movimento operário,
é, assim, liquidado; e é liquidado com uma tomada de posição às
vésperas da crise econômica que, no Ocidente e em outros países
capitalistas desenvolvidos, condenou milhões e milhões de pesso-
as ao desemprego, à precariedade, a privações, a uma condição de
permanente exposição à chantagem patronal e, portanto, de enor-
me falta de liberdade.
A luta pelo direito ao trabalho e ao pleno emprego esteve no
centro dos que na França foram chamados de os “Trinta anos glo-
riosos”, os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e que vi-
ram a construção do Estado de Bem-Estar Social e em certa medi-
da a participação das massas populares no milagre econômico. As
desigualdades haviam sido reduzidas, “os proprietários privados
tinham parado de controlar as maiores empresas”, havia se enfra-
quecido o “capitalismo patrimonial privado” (PIKETTY, 2013, p.
219-221). Sem apelo é a condenação expressa por Latouche (2011,
p. 105-106): “se se avaliam os prejuízos sofridos pela natureza e
pela humanidade”, aqueles que tradicionalmente são enaltecidos
como os Trinta anos gloriosos se revelam na realidade como os
Trinta anos “Desastrosos”.
É uma declaração surpreendente: é considerada uma catástrofe
não a miséria em massa do imediato pós-guerra, mas sim a sua
superação; no que se refere à questão ecológica, mais do que o
sistema capitalista e a sua caça ao lucro máximo, o que se persegue
é a luta das classes populares pela efetivação do Estado de Bem-
Estar Social; o capítulo da história no qual elas são protagonistas,
e do qual julgam poder ficar orgulhosas, se configura agora
como uma marca de infâmia. Enfim: se os analisamos a partir
das relações internacionais, os trinta anos dos quais aqui se fala
resultam marcados por guerras coloniais, que provocaram não
apenas massacres mas também devastações do meio ambiente
em amplíssima escala. Mas não é deste segundo aspecto que se
vale a condenação dos trinta anos em questão. Quando denuncia
o “etnocídio”, Latouche (2011, p. 49; 2008, p. 21) remete ao “desen­

335
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

volvimento”. Como se este não tivesse tornado possível em países


como a China o fim da tragédia (iniciada com a agressão colonia-
lista) da morte por inanição de milhões e milhões de pessoas, e nos
mesmos países desenvolvidos um sensível aumento da expectati-
va média de vida: “No Reino Unido a expectativa de vida em 1990
era de 76 anos, contra 48 em 1900” (FERGUSON, 2008, p. 7).
Segundo Latouche (2008, p. 21), são indissociáveis “desenvol-
vimento”, de um lado, e “violência da colonização e do impe-
rialismo”, de outro. Na realidade, os chefes de bandos nazistas,
que pretendiam retomar e radicalizar a tradição colonial, tinham
bem claros os seus objetivos: “As indústrias seriam destruídas.
Os operários e suas famílias (...) simplesmente seriam deixados
ao abandono para morrerem de fome” (SHIRER, 1974, p. 1269).
Mas vamos dar uma olhada na história do colonialismo no seu
conjunto. O Terceiro Mundo e a “grande divergência” contra ele
são em grande parte o resultado da desindustrialização e do de-
crescimento impostos pela agressão colonialista e pela abertura
repentina e violenta do mercado nacional às mercadorias mais
baratas provenientes da metrópole imperialista; uma abertu-
ra repentina e violenta também porque tinha como propósito a
manutenção e o fortalecimento do domínio colonial: ainda em
1820 a China tinha como vantagem um Produto Interno Bruto de
32,4% do PIB mundial, enquanto “a expectativa de vida chinesa
(e, portanto, a nutrição) era próxima dos níveis ingleses (e por
isso acima da média continental) até o fim do século XVIII”. Não
muito diferente é a história da Índia que, ainda em 1820, contri-
buiu com 15,7% ao PIB mundial (DAVIS, 2001, p. 299). Justamen-
te depois da agressão colonial nos dois grandes países asiáticos
surgiu um ciclo de progressivo decrescimento, sendo acometi-
dos por uma miséria absoluta e fatal para milhões e milhões de
pessoas; e para debelar essa situação foi imposta uma política de
desenvolvimento autônomo.
Tal política é tudo menos pertinente a Latouche que, em nome
do decrescimento, junto com a defesa do Estado de Bem-Estar So-
cial, deslegitima a luta dos países menos desenvolvidos para se
livrarem do subdesenvolvimento e da dependência colonial ou

336
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

neocolonial a esse intrinsecamente ligada. De fato, isso significa


apoiar o neoliberalismo tanto no plano interno quanto no externo.
Quando Latouche (2011, p. 71-72) contrapõe “totalitarismo
produtivista” a “decrescimento”, acentua o fato de que “a ‘verda-
deira’ riqueza é feita de bens relacionais”, não dos falsos “valores
da sociedade mercantil”: é uma advertência que, apesar de seus
aspectos positivos, se torna deturpada pelo idealismo. Karl Marx
não era certamente escravo dos valores mercantis, o qual, apesar
de continuar fiel a si mesmo, renunciou à vida brilhante e opulen-
ta que teria podido levar. Mas é significativa a maneira com que
ele explicou a grande aprovação de que desfrutava Luís Napoleão
entre os camponeses franceses. Era um mundo caracterizado pelo
subdesenvolvimento e pela não “aplicação da ciência”, pela “mi-
séria” e o “isolamento”. Em síntese: “nenhuma riqueza de rela-
ções sociais” e ao mesmo tempo um “comércio com a sociedade”
reduzido ao extremo; tudo isso tornou vulneráveis os campone-
ses diante das manobras do aventureiro e ditador bonapartista
(MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 8, p. 198). A “riqueza de bens
relacionais” cara a Latouche, ou então a “riqueza das relações so-
ciais” da qual fala Marx, possui um fundamento material e obje-
tivo, pressupõe um certo desenvolvimento das forças produtivas.
E foi o não desenvolvimento das forças produtivas nos campos
franceses e das “relações sociais” que legitimou o triunfo do bo-
napartismo!
Ao convidar a redescobrir a “verdadeira riqueza na ampliação
das relações sociais de convívio” e ao recomendar “a sobriedade e
também uma certa austeridade no consumo material”, Latouche
(2005, p. 78-79) remete a Gandhi. Mas, hoje em dia nem mesmo os
partidários mais fervorosos do teórico do “decrescimento” con-
siderariam aceitável o ideal de sociedade caro ao líder indepen-
dentista indiano. Era uma sociedade na qual era preciso “sair da
cama antes do amanhecer” e correr para o cansativo trabalho que
duraria o dia todo e que, no entanto, de modo nenhum acabaria
com a “miséria”. Não havia espaço para o “tempo livre”, que era
visto com suspeita como uma ocasião para tentações pecamino-
sas. Além disso, tratava-se de uma sociedade caracterizada por

337
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

uma forte coerção social, na qual se proibia o álcool, o chá e muito


mais ainda as relações sexuais que não fossem para procriação e,
portanto, aos olhos de Gandhi, ditadas pela “luxúria” e a “paixão
animal” (LOSURDO, 2010, cap. 4, § 8). O comportamento sexual
aqui condenado em termos tão rígidos hoje é amplamente consi-
derado, até pelos defensores do “decrescimento”, como parte in-
tegrante da “riqueza dos bens relacionais” (conforme Latouche),
ou então da “riqueza de relações sociais” (conforme Marx). Mas
nem por isso precisamos ser muito severos com o líder indiano.
Sabemos por Adam Smith (1977, p. 782; livro V, cap. I, parte iii, art.
3) que, obrigadas como são a uma interminável jornada de traba-
lho e a uma economia muito dura, as classes sociais submetidas à
miséria ou à penúria costumam apresentar uma “moral austera”
também no campo sexual, enquanto a “moral liberal” encontra
maior expressão nas classes mais ou menos abastadas. Revela-se
sem fundamento a visão cara aos populistas segundo a qual a ex-
celência moral se dá em situações de pobreza e de escassez; na rea-
lidade, elas frequentemente carregam um cerceamento e distorção
das relações sociais e um verdadeiro empobrecimento espiritual.
Não por acaso na Índia de Gandhi, junto com a miséria coexistiam
o regime de castas (que impedia as livres relações entre os indiví-
duos) e a opressão das mulheres, frequentemente isoladas entre as
quatro paredes das casas e impossibilitadas de desenvolver rela-
ções sociais dignas desse nome. Trata-se de dois flagelos que não
desapareceram totalmente na Índia de hoje, por causa também da
permanência de amplas áreas de atraso e de miséria extrema ou
então da permanência de relações sociais, duras de se extinguir,
provenientes daquela situação.
Segundo Latouche (2011, p. 72), não há a menor necessidade
do Estado de Bem-Estar Social pelo fato de que “a miséria é em
primeiro lugar psíquica”. É uma afirmação que causa espanto.
Alguns meses depois da eclosão da crise de 2008, a FAO divul-
gou estes dados: “Mais de um bilhão de pessoas – um sexto da
humanidade, 100 milhões a mais do que no ano passado – pas-
sam fome. A cada três segundos, um homem, uma mulher ou
uma criança morrem de fome”. E não se trata apenas do Tercei-

338
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

ro Mundo: nos países desenvolvidos “há 15 milhões de pesso-


as desnutridas, com um aumento de 15,4% em relação ao ano
passado” (La Stampa, 20 de junho de 2009). Nos EUA – afirmou
o Departamento da Agricultura –, em 2007 “cerca de 691 mil
crianças passavam fome, enquanto um americano, dentre oito,
se esforça para se alimentar adequadamente, mesmo antes da
grave crise econômica” (International Herald Tribune, 19 de no-
vembro de 2008). “A miséria é, em primeiro lugar, psíquica”?
Inesperadamente, em um autor de posições anticapitalistas, sur-
ge um outro lugar-comum caro ao conservadorismo de sempre:
o lugar-comum com base no qual pode-se ser livre e feliz mesmo
nas cadeias, nas cadeias da opressão política e também naquelas
impostas pela miséria nefasta.
E como se livrar de uma miséria “em primeiro lugar psíquica”?
Mas é claro: com a “metanoia” (LATOUCHE, 2011, p. 86), ou a pro-
funda mudança de mentalidade também evocada pelas religiões.
Com efeito, o autor francês formula as suas recomendações em
uma linguagem religiosa: acolher “a boa nova” ou a “boa notícia”
do decrescimento; entrar “no caminho da felicidade” e “sair da
economia”; abandonar a busca pelo bem-estar material e a econo-
mia “produtora da banalidade do mal” para trocar pela “ética”;
almejar “radicalmente outra coisa” (IDEM, p. 68, 71, 76-77 e 86). A
escolha da linguagem não é casual: como as religiões tradicionais,
mesmo aquela do decrescimento se dedicou à salvação mediante a
renúncia aos bens do mundo material (considerados mais aparen-
tes que reais). E a religião do decrescimento que age como “ópio
do povo” convence o “povo” a colocar em questão não a miséria,
mas a falsa visão que o faz acreditar ser miserável, e não a fome,
mas a imaginação de ter sido atingido pela fome.
Para concluir, Latouche critica com razão “os valores da socie-
dade mercantil” e a sua absolutização, mas não parece se dar con-
ta de que o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social é a
eliminação daqueles lugares onde a lógica do mercado e o culto
dos valores mercantis são de certo modo neutralizados. Com ra-
zão, ele insiste sobre a dramática gravidade e urgência da questão
ambiental. Mas vamos ler esta declaração:

339
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

“Nunca me senti totalmente à vontade com o velho terceiro-


-mundismo latino-americano. O meu primeiro contato com o
subcontinente ocorreu apenas em 2002, no segundo Fórum So-
cial Mundial de Porto Alegre. O fato de naquela ocasião a crítica
do desenvolvimento ter sido completamente marginalizada a
favor do pathos anti-imperialista (coisa que, aliás, se repetiu em
quase todos os fóruns outro-mundistas) certamente não melho-
rou as coisas” (IDEM, p. 17).

A tomada de distância do “velho terceiro-mundismo latino-a-


mericano” ignora que ele tenha se desenvolvido ao longo da luta
contra uma política de domínio, que no caso de um país como a
Guatemala chegou ao genocídio: seria bem estranho um ecologis-
mo que se preocupasse com todas as espécies vivas menos com os
humanos!
Mesmo querendo deixar tudo isso de lado, a ironia do “pathos
anti-imperialista” não leva em consideração os efeitos devastado-
res da guerra mesmo no meio ambiente, em sentido estrito, ou seja,
desconsidera o homem (mas é preciso não esquecer que é errada
essa desconsideração, dado que o homem é desde sempre parte
da natureza). Aquelas pessoas do movimento verde, que tendem a
interpretar o seu empenho ecológico como fuga do mundo vulgar,
ou profano, da política, fariam bem se refletissem sobre a história.
Vejamos qual a situação que, há quase um século de um dos maio-
res combates da Primeira Guerra Mundial, caracteriza Verdun e
seus entornos:

“A concentração de arsênico é de mil a dez mil vezes mais alta


do que no ambiente natural. O solo está contaminado e ácido a
tal ponto que apenas três tipos de plantas conseguem sobrevi-
ver. Em 2005, as autoridades francesas decidiram cercar o local
e, sucessivamente em 2012, impedir formalmente o acesso” (HO-
PQUIN, 2014).

Sobre o desastre ambiental provocado pela guerra do Vietnã já


foi falado. É preciso acrescentar que a Guerra Fria destinou algo

340
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

de muito pior. Enquanto ela se alastrava, nos EUA o presidente


Eisenhower emitiu ordens para que também fosse preparada a
“guerra ambiental” (environmental warfare). O cenário prenuncia-
do era terrível:

“Mudanças climáticas para deixar os inimigos esfomeados, der-


retimento dos gelos para inundar as cidades portuárias adversá-
rias, desvio das correntes marítimas e obstrução dos canais para
alterar os fenômenos meteorológicos, e até explosões nucleares
para provocar tempestades radioativas e incêndios repentinos
em enormes áreas habitadas” (MASTROLILLI, 2013).

Infelizmente, hoje em dia volta a se apresentar o fantasma de


uma nova grande guerra em larga escala, que poderia também
cruzar o limiar nuclear, isto é o limiar da absoluta catástrofe in-
clusive no âmbito ecológico. Da mesma forma que a seriedade da
luta contra a absolutização dos valores mercantis se mede também
pelo empenho a favor do Estado de Bem-Estar Social, também a
seriedade da luta pela defesa do meio ambiente se mede pela luta
contra o imperialismo e a sua política de guerra. A fuga dos reais
conflitos do mundo atual e o refúgio em uma espécie de corpora-
tivismo ecológico não prometem nada de bom nem de um lado e
nem de outro.

8.8. Nos rastros de Hayek: Foucault e a esquerda

Para a esquerda ocidental uma espécie de símbolo é Michel


Foucault, no qual, no entanto, estão presentes “temáticas neolibe-
rais” tão “radicais” que denunciam “nas políticas sociais do pós-
-guerra uma inspiração semelhante à do nazismo” (GARO, 2011,
p. 139). Não é este o local para discutir o pensamento dele em seu
conjunto e analisar as razões do fascínio por ele exercido. Resta o
fato de que na crítica do Estado de Bem-Estar Social ele não é me-
nos preciso do que Hayek, aliás, ao qual explicitamente se refere.
O ponto mais importante não é a afirmação segundo a qual o Esta-
do de Bem-Estar Social remeteria a “uma racionalidade que surgiu

341
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

por volta da Primeira Guerra Mundial” e estaria em contradição


com “a racionalidade política, econômica e social das sociedades
modernas” (FOUCAULT, 2001, p. 1187): como se a reivindicação
dos direitos sociais e econômicos, que atravessa profundamente o
ciclo revolucionário francês, não tivesse obtido os primeiros êxitos
na Alemanha de Bismarck, levado a impedir com reformas a partir
de cima a temida revolução socialista a partir de baixo! A questão
central é outra: referindo-se a Hayek, Foucault (2004, p. 113-114 e
195-196) em seu entendimento de condenação aproxima nazismo,
comunismo, república de Weimar e socialismo – pelo fato de todos
terem em comum o nefasto culto ao Estado de Bem-Estar Social!
Enquanto se delineava a vitória da coalizão antifascista e
transpareceram os escombros do gigantesco conflito, também se
estabeleceu, na Inglaterra, a exigência de ir, de alguma manei-
ra, além do liberalismo clássico. Imediatamente, Hayek soou o
alarme, argumentando mais ou menos nestes termos: acaso os
direitos sociais e econômicos, a melhoria das condições de vida
das classes subalternas promovida pelo Estado, o Estado de
Bem-Estar Social e o socialismo não apareciam imponentemente
também no programa de Hitler? O seu partido não se chamava
Partido Nacional-Socialista dos Operários Alemães? Esquecendo-
-se do balanço feito em 1927 por outro patriarca do neolibera-
lismo, segundo o qual “o mérito adquirido pelo fascismo vive-
rá eternamente na história” (MISES, 1927, p. 45), Hayek não se
cansou de insistir: socialismo, comunismo, fascismo e nazismo
seriam “espécies” diferentes de um único “gênero” representado
pelo “coletivismo”, as “ideias socialistas” é que aproximavam a
Rússia soviética, a Alemanha hitleriana e a Itália fascista; seria
preciso tomar consciência de que “fascismo e nazismo não fo-
ram uma reação contra as tendências socialistas do período an-
terior, mas seu necessário resultado” (HAYEK, 1986a, p. 25, 7 e
3). Ser fiel à causa do antifascismo significava rechaçar o Estado
de Bem-Estar Social que William Beveridge se dispôs a construir
na Grã-Bretanha! O neoliberalismo se uniu com o revisionismo
histórico: assimilado até com o socialismo reformista, o nazismo
viu se esvair em grande parte o seu horror.

342
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

Inicialmente não levado muito a sério – por causa da vitalidade


da qual deu provas na Europa o movimento socialista e comunis-
ta, após o segundo conflito mundial, e por causa do prestígio da
União Soviética –, décadas depois esse balanço histórico obteve
crédito num momento em que as relações de força no plano polí-
tico e ideológico passavam por uma mudança radical. Durante as
suas aulas de 1978-1979 sobre o Nascimento da biopolítica, Foucault
(2004, p. 196) retomou a tese de Hayek relativa ao nazi-fascismo
como inevitável resultado do movimento socialista.
Eis que então a polêmica contra o Estado de Bem-Estar Social
se enriqueceu com um argumento novo e formidável. Hoje em dia
aclamado pela grande imprensa do seu país, um historiador ale-
mão chama a atenção para o “Estado de Bem-Estar Social”, o “Es-
tado de Bem-Estar Social e popular” que Hitler afirmou pretender
construir, o “socialismo” ou mais propriamente o “socialismo de
sangue bom” ao qual Heinrich Himmler e o nazismo renderam
homenagem (in: ALY, 2005, p. 11 e 28-29). Agora que Estado de
Bem-Estar Social e socialismo estão definitivamente desacredita-
dos, pode-se tranquilamente proceder ao desmantelamento exa-
tamente do Estado de Bem-Estar Social, e ao aniquilamento da
“liberdade de não passar necessidade” e dos “direitos sociais e
econômicos”!
O neoliberalismo, que à sua época, com Mises, exaltou descara-
damente a ditadura de Mussolini, agora vê reconhecido o mérito
de ser o defensor mais expressivo da luta contra o fascismo!
Eficaz no plano político (e demagógico), a proximidade vista
acima é muito mais ingênua no plano lógico e filosófico: a nin-
guém ocorreria de desacreditar de uma vez por todas o ideal da
democracia pelo fato de que nos EUA, dos séculos XIX e XX, se
autodefinia “democrático” o partido que mais tenazmente primei-
ro defendeu o instituto da escravidão negra e, depois, o regime da
terrorista supremacia branca! As afinidades, ou melhor, as asso-
nâncias linguísticas, não são sinônimo de afinidade político-ide-
ológica, como se pensa superficialmente; elas podem até denotar
o antagonismo, a luta acirrada que se desenvolve para interpretar
em uma outra direção palavras de ordem que, em uma determi-

343
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

nada situação histórica, são impostas à consciência comum ou à


disposição geral.
Justamente a declaração de Himmler, à qual se refere de ma-
neira triunfante o historiador alemão, contesta-lhe a tese de fundo.
“Socialismo de sangue bom”: por que se concentrar apenas sobre a
primeira parte da expressão? Analisamos também a referência ao
“sangue”, ao “sangue bom”, isto é à raça superior. O “socialismo”
e o “Estado de Bem-Estar Social” caros ao Terceiro Reich remetem
claramente à tradição colonial: tratava-se de transformar os pro-
letários alemães, de raça ariana ou branca, em colonos aos quais
seriam garantidas terras (extorquidas dos “indígenas” da Europa
oriental) e uma mão de obra mais ou menos servil (constituída dos
“indígenas” que haviam sobrevivido ao processo de expropriação
e deportação).
Desse “socialismo” e desse “Estado de Bem-Estar Social” Lênin
representa a antítese. E não por acaso, a construção de tais “so-
cialismo” e “Estado de Bem-Estar Social” pelo Terceiro Reich, na
onda da expansão colonial na Europa oriental, ocorreu pari passu
com a eliminação sistemática dos quadros comunistas (e o exter-
mínio dos judeus por Hitler, tratados como bolcheviques, e até
mesmo considerados como os seus manipuladores).
Ao proceder dessa maneira, bem longe de se inspirar em Marx,
Engels e Lênin, o nazismo se referia à tradição colonial que preten-
dia retomar e radicalizar. Por detrás desse movimento político ope-
rava a lição de Cecil Rhodes, o trovador do imperialismo britânico,
que chamava a “conquistar novas terras” com o fim de evitar “uma
mortífera guerra civil” (isto é, a revolução anticapitalista). Voltan-
do um pouco no tempo, vemos inúmeros expoentes do liberalismo
(Renan, Tocqueville etc.) indicarem a expansão colonial e a trans-
formação das “classes perigosas” da metrópole em uma casta de
proprietários nas colônias como o único antídoto possível contra o
socialismo, ou como a única solução possível para a questão social.
E, voltando ainda mais no tempo, dá o que pensar o fato de que aos
veteranos da guerra da independência contra a Inglaterra, como re-
conhecimento por sua contribuição à luta que marcou o nascimento
dos EUA, na Virgínia (e em outros estados) foram concedidos escra-

344
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

vos negros e terras (em última análise, extorquidas dos nativos). Por
detrás do “Estado de Bem-Estar Social” fascista e nazista (2) está a
história do Ocidente colonialista e liberal em seu conjunto.
Aliás, na Alemanha o nazismo chegou ao poder quando, após
a Grande Depressão, o Estado de Bem-Estar Social da república
de Weimar já havia sido desmantelado. Antes de entregar o po-
der a Hitler e de se tornar por algum tempo o seu vice-chanceler,
Franz von Papen declarou: seria preciso acabar com a pretensão
de “transformar o Estado numa espécie de Estado assistencial, en-
fraquecendo assim as energias morais da nação”; era necessário
acabar de uma vez por todas com o “socialismo de Estado” (in:
PEUKERT, 1996, p. 160). O Terceiro Reich reforçou as “energias
morais da nação” colocando-as à prova na conquista do Império
colonial a ser construído no Leste; o “Estado de Bem-Estar Social”
e o “socialismo do sangue bom” do qual falavam, respectivamen-
te, Hitler e Himmler eram o oposto do Estado de Bem-Estar Social
e do socialismo que nasceram na Alemanha com a revolução de
novembro e, indiretamente, com a Revolução de Outubro.
Não resiste a uma análise séria o balanço histórico feito por
Hayek, infelizmente assinado por Foucault. Um e outro – que com
desenvoltura buscam aproximar o socialismo marxista, o “socia-
lismo do sangue bom” e o Estado de Bem-Estar Social que Hitler
se propôs a construir, expropriando e escravizando as raças “infe-
riores”, ou submetendo nações ao domínio colonial – demonstram
considerar irrelevantes exatamente a questão colonial e a opressão
racial. Na realidade, se hoje existe algo que de algum modo pode
levar a pensar no “Estado de Bem-Estar Social” caro ao nazismo
são os constantes incentivos financeiros que recebem nos EUA
aqueles que, para fugir da miséria, se alistam no exército, e que
só podem ter esperanças de obter uma melhoria das condições de
vida, e algumas vezes até a cidadania estadunidense, à medida
que se empenharem nas guerras neocoloniais e imperiais decidi-
das por Washington.

(2) Para Virgínia ver LOSURDO (2005), cap. 2, § 6; e para o “Estado de Bem-Estar Social” colonialista no
nazismo e na tradição à qual dá continuidade, e a clara antítese em relação a tudo isso apresentada por
Lênin, ver LOSURDO (2013), cap. 6, § 5.

345
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Foucault se tornou conhecido e ganhou a admiração da esquer-


da também pela sua análise perspicaz e solidária sobre a condição
dos excluídos e marginalizados, que são mantidos em cárceres e
frequentemente terminam por se tornarem instituições totais. In-
felizmente, a deslegitimação que ele faz do Estado de Bem-Estar
Social abre as portas para a configuração da questão social como
problema de ordem pública e para a extrema dilatação do uni-
verso carcerário: demonstra isso particularmente o exemplo dos
EUA, onde o Estado de Bem-Estar Social nunca realmente pôs os
pés e onde não para de aumentar o número de presos, quase sem-
pre de extração popular e muito frequentemente afro-americanos.

8.9. Movimento real e teoria: um divórcio desastroso

Historicamente, a esquerda nasceu do encontro dos movimen-


tos reais de protesto e de luta por emancipação com a teoria que
se dedica a analisar criticamente a ordem existente. Entre o fim
do século XIX e o início do século XX, muitas vezes se inspiran-
do na lição de Marx e de Engels, a esquerda lutou, com maior ou
menor união e coerência, em três frentes da luta de classe, isto é,
pela emancipação política e social das classes subalternas, pela
emancipação da mulher e contra o domínio e as guerras coloniais.
Neste último ponto, as incertezas e as oscilações foram particular-
mente complexas – o que, por ocasião da Primeira Guerra Mun-
dial, provocou desânimo no movimento operário e socialista e seu
dilaceramento final. Resta o fato de que, entre os séculos XIX e
XX, na Europa o movimento socialista enfrentou o expansionismo
colonial nos parlamentos e nas ruas, e não poucas vezes o fez com
firmeza, recorrendo à derrota do país e do exército agressor e até
lembrando o fantasma da revolução. Só assim pode-se compreen-
der a “profunda amargura” de Lênin, por ocasião da eclosão da
Primeira Guerra Mundial, com o “bacanal do chauvinismo” que
então havia contagiado a II Internacional, pela “imensa crise pro-
vocada pela guerra mundial no socialismo europeu” (3).

(3) Cf. LOSURDO (2013), para as três frentes da luta de classe; (2010), cap. 3, § 3 para a luta anticolo-
nislista do movimento socialista; cap. 3, § 8, para a “profunda amargura” de Lênin.

346
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

A situação atual é profundamente diferente: a França tem um


presidente “socialista” que ambiciona colocar-se à frente do “novo
Sykes-Picot” e da contrarrevolução neocolonialista. Mas isso é ape-
nas um exemplo particularmente ruidoso de um fenômeno muito
difundido. Tal esquerda, quase indistinguível em relação aos outros
partidos burgueses, é agora parte integrante do unipartidarismo
competitivo característico dos países capitalistas avançados.
Por sorte, há também uma outra esquerda que não se apequena
diante dos fatos, em relação aos quais pretende também construir
uma alternativa radical. Mas até que ponto ela consegue realizar
as suas promessas? Convém lembrar uma indicação de método
fornecida por Marx, que convida os jovens de orientação radical
da sua geração a começarem pelas “lutas reais” na formulação dos
seus projetos políticos:

“Não enfrentaremos o mundo de modo doutrinário, com um


novo princípio: aqui é a verdade, aqui ponham-se de joelhos (...).
Nós não lhe dizemos: abandona as suas lutas, são tolices; nós
lhe gritaremos a verdadeira palavra de ordem da luta. Nós lhe
mostraremos apenas por que efetivamente ele luta, dado que a
consciência é uma coisa que ele deve fazer sua, mesmo se não o
quiser” (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 1, p. 345).

A minha citação é de uma carta para Arnold Ruge, de setembro


de 1843, e o jovem de vinte e cinco anos que assim se expressa
ainda não havia terminado a transição do liberalismo para o co-
munismo: faltam quase cinco anos para a publicação do Manifes-
to do Partido Comunista. Justamente por isso o texto visto acima é
particularmente interessante. Em vez de dirigir-se exclusivamente
a um determinado partido que ainda não havia sido criado, ele
esclarece a lógica da transformação social: por mais radical que
pretenda ser, um projeto de transformação que não comece pelos
movimentos e as “lutas reais” é incapaz de incidir concretamente
sobre a realidade.
Então, vamos tentar observar os movimentos e as “lutas reais”
do nosso tempo. Uma guerra após outra acontece, e no Oriente

347
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

Médio a destruição de um Estado ocorre uma após outra: quais se-


rão os próximos alvos? Aumentam a preocupação e a aflição entre
os países que surgiram de uma revolução anticolonial e estão hoje
colocados numa posição estratégica. Mais em geral se difunde a
angústia pelos crescentes perigo de guerra. Isso explica o êxito,
enorme mas infelizmente sem continuidade, das manifestações de
protesto contra a segunda Guerra do Golfo em 2003. A partir de
então a situação se agravou ainda mais: os perigos de uma guerra
em larga escala estão presentes e não faltam vozes que evocam
o fantasma de uma guerra total. Com nada disso parece se pre-
ocupar a “esquerda” imperial, mas essa miserável despreocupa-
ção é legitimada, paradoxalmente, por uma esquerda “radical”,
segundo a qual no mundo de hoje existe uma burguesia substan-
cialmente unificada em nível planetário à qual se contrapõe uma
“multidão” também unificada para destruir as barreiras estatais e
nacionais; a questão nacional e colonial se tornaria obsoleta e se-
ria substancialmente sem sentido preocupar-se com os perigos de
guerra entre Estados e nações, que agora de fato não mais existem.
Na realidade, os países que são potenciais alvos da ofensiva ne-
ocolonialista procuram não se entregarem desarmados ao agres-
sor: também por isso o desenvolvimento econômico e tecnológico
é para eles uma questão de vida e de morte, ainda mais que não
faltam em seu interior áreas mais ou menos grandes de miséria
extrema. A partir da crise de 2008, que eclodiu nos países capi-
talistas desenvolvidos, crescentes massas de desempregados, su-
bempregados e de empregados temporários se dedicam a lutar
pelo relançamento da política de desenvolvimento e contra uma
austeridade que é sinônimo de polarização e massacre social. Ob-
viamente, quando se fala de desenvolvimento da riqueza social,
é preciso ter em conta também os recursos naturais: “a natureza
é fonte dos valores de uso (e entre tais valores consta a riqueza
real!)” (MARX, ENGELS, 1955-1989, vol. 19, p.15); mas não é assim
que argumentam certos setores da esquerda, os quais chamam os
povos a tomarem consciência do fato de que a miséria é sobretudo
um fato “psíquico” e, portanto, a desistirem de suas lutas reais e se
curvarem diante da verdade do “decrescimento”!

348
8. ENTRE ESQUERDA IMPERIAL E ESQUERDA POPULISTA E ANARCOIDE. A SITUAÇÃO NO OCIDENTE

No plano internacional, a luta anticolonialista é obviamente


uma luta também pelo poder: o povo palestino visa a conquistar o
poder de administrar autonomamente a própria existência, ao in-
vés de continuar submetido a uma ditadura e aos maus-tratos de
um exército de ocupação; por sua vez, os povos recém-indepen-
dentes não têm nenhuma intenção de ceder aos donos do mundo
o poder conquistado após a revolução anticolonialista. No plano
internacional, a luta pelo poder político e econômico se apresen-
ta como luta para modificar a composição e o funcionamento da
ONU e do seu Conselho de Segurança (onde o peso do Ocidente
continua desmedido), mas também do Banco Mundial e do FMI
(onde ditam as leis as grandes potências capitalistas). Mas como
parecem tacanhas essas lutas reais, à luz da nova verdade, com
base na qual o problema real é para “mudar o mundo sem tomar
o poder”! (HOLLOWAY, 2004). E como parecem tacanhas, retros-
pectivamente, as grandes lutas que os povos coloniais, as classes
subalternas, as mulheres conduziram com o objetivo de extinguir
as três grandes discriminações (racial, de renda e sexual) que ex-
cluem esses três grupos do desfrute dos direitos políticos e da pos-
sibilidade de influir na composição e na orientação dos órgãos de
poder!
É uma constante: no âmbito da esquerda ocidental, a teoria
crítica da ordem existente tende a desligar-se das “lutas reais”,
que agora mais do que nunca aparecem como “tolices”, das quais
é preciso se livrar, como já observava a carta para Ruge de 1843.
Só resta então se entregar, para dizer desta vez como o Manifesto
do Partido Comunista, a “princípios inventados ou descobertos por
algum missionário salvador do mundo” (MARX, ENGELS, 1955-
1989, vol. 4, p. 474).
Menos problemas gera a crítica do neoliberalismo (e do capi-
talismo de rapina e baseado na destruição dos recursos humanos
e naturais que é o fundamento do neoliberalismo). Pelo menos
neste caso, e pelo menos no que se refere à esquerda decidida a
não se apequenar diante dos fatos e a não se deixar reduzir a um
simples componente do unipartidarismo competitivo, não pare-
ce haver uma separação entre teoria, de um lado, e movimentos

349
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

e lutas reais, de outro. Na realidade, a separação termina por se


reproduzir de modo diferente, após a promoção na esquerda de
uma cultura que está em contradição, algumas vezes aguda, com
seus objetivos perseguidos ou apresentados, e que, por exemplo,
ridiculariza ou deslegitima o Estado de Bem-Estar Social e os di-
reitos sociais e econômicos.
Muito variada é a esquerda ocidental e no seu interior agitam-
-se movimentos e partidos entre si muito diferentes. E, no entan-
to, se a considerarmos em seu conjunto, pode-se dizer que – se se
pretende voltar a incidir concretamente sobre a realidade – ela é
chamada a superar as debilidades de caráter não apenas imedia-
tamente político, mas também cultural e filosófico.

350
Conclusão
O novo quadro
mundial, os crescentes
perigos de guerra e
a dispersa esquerda
ocidental

T
oda viragem histórica exige das forças políticas em campo
uma reflexão profunda: é preciso proceder a uma análise
da nova situação que veio a ser criada e definir uma estraté-
gia a seguir. Trata-se de uma regra geral que, no entanto, vale em
particular para os movimentos e as organizações que não se reco-
nhecem na ordem existente e se dedicam a um processo de trans-
formação e a um projeto de emancipação; isto é, vale em particular
para a “esquerda”. Não há dúvidas em relação à radicalidade da
viragem histórica que foi produzida e que ainda está em curso.
O Terceiro Mundo, o conjunto dos países que têm como re-
ferencial um período mais ou menos prolongado de dominação
colonial e semicolonial, passou do estágio político-militar para o
estágio político-econômico da luta pela independência nacional. O
que Lênin chamou de “anexação política” – isto é, o domínio colo-
nial direto exercido sobre um povo ao qual era negado o direito de
se constituir como Estado nacional independente – foi amplamen-
te dissipado. Resta a “anexação econômica”, nos dias atuais incre-
mentada pela ameaça militar (representada por uma gigantesca

351
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

máquina de guerra pronta a entrar em ação mesmo sem autoriza-


ção do Conselho de Segurança da ONU) e judicial (proveniente de
uma “Corte Penal Internacional” amplamente controlada e mano-
brada pelo Ocidente). Mas o que eu defini como neocolonialismo
econômico-tecnológico-judicial vem sendo enfrentado hoje em
dia com métodos diferentes em relação aos do passado. Nenhum
continente tem melhores condições de representar plasticamen-
te a mudança ocorrida do que a América Latina: nos anos 1960 e
1970 havia inúmeros focos de guerrilha, e agora quase todos estão
extintos. Mas isso não significa uma derrota da esquerda: as di-
taduras militares geralmente impostas pelos EUA foram derru-
badas, e os regimes que tomaram o seu lugar se dedicaram mais
do que nunca à luta contra a doutrina Monroe, então reduzida a
uma condição difícil. O então vice-presidente da Bolívia (Garcia
Linera), em 2006, resumiu essa viragem, de um modo muito efi-
caz, com duas expressivas palavras de ordem: “desmantelamento
progressivo da dependência econômica colonial” e “industrializa-
ção ou morte”! Sem de nenhuma forma renegar ou colocar em dis-
cussão a palavra de ordem “Pátria ou morte” – lançada por Fidel
Castro e Che Guevara, durante a luta armada contra a ditadura
pró-estadunidense e enquanto ainda pairava sobre Cuba a amea-
ça de ataque militar –, ela assumia agora uma nova configuração
(LOSURDO, 2013, cap. 12, § 3). No esforço para perseguir uma
real independência nacional, a luta por um desenvolvimento eco-
nômico e tecnológico autônomo tomava o lugar da guerrilha ou
da “guerra popular”. Aliás, o programa exposto por Linera não
consistiu (e não consiste) apenas no esforço pelo desenvolvimento
autônomo das forças produtivas: os países da América Latina
se empenham também em reforçar entre si os laços econômicos,
comerciais e mesmo políticos, de modo a retirar de suas costas
a dependência dos EUA. E, confiantes pelos bons resultados já
alcançados, eles não poucas vezes se distanciaram da política de
guerra de Washington.
Se o Terceiro Mundo mudou de modo radical, o Segundo
Mundo literalmente desapareceu. Com essa expressão se fazia
tradicionalmente referência aos países de orientação socialista,

352
CONCLUSÃO

por algum tempo unidos inclusive num “campo socialista” de


caráter tanto econômico como político-militar. O capitalismo
voltou à Europa oriental, agora em grande parte incorporada
na Otan. Por outro lado, China, Vietnã e, nos últimos tempos,
também Cuba, não se apresentam mais como um modelo social
alternativo frente àquele dominante em nível internacional, não
pretendem mais serem o “farol do socialismo” nesta ou naquela
parte do mundo. Dedicam-se, em primeiro lugar, a alcançar os
países industrial e tecnologicamente mais avançados para ele-
var o nível de vida da população, de modo a também ampliar e
consolidar, para o Partido Comunista no poder, a base social de
consenso e frustrar as tentativas de desestabilização praticadas
pelo Ocidente e em particular por seu país-guia. Nem por isso
abriu-se mão da orientação socialista, mas em virtude da nova
escala de prioridades, China, Vietnã e Cuba tendem a fazer parte
do Terceiro Mundo. Particularmente o primeiro país desempe-
nhou um importante papel: se com Mao e com a sua teoria da
“guerra popular” ele foi o principal inspirador da primeira etapa
(a político-militar) da revolução anticolonial mundial, com Deng
foi o inspirador da segunda fase ainda em curso. Até o fim Mao
confirmou a sua convicção segundo a qual “ou a revolução im-
pede a guerra ou a guerra provoca a revolução”. Era um slogan
que remetia claramente à histórica experiência da primeira me-
tade do século XX: o desenvolvimento do movimento socialista
e comunista não conseguiu impedir a eclosão dos dois conflitos
mundiais que, no entanto, propiciaram a derrocada do sistema
capitalista na Rússia e depois em uma série de outros países.
Deng, ao contrário, esclareceu qual seria o conteúdo principal
das últimas décadas do século XX e das primeiras do século XXI:
o desenvolvimento econômico e tecnológico dos países que vie-
ram da revolução anticolonialista mundial, ou mais exatamente
da sua primeira etapa, político-militar. Desse Terceiro Mundo
ampliado, que engloba os países emergentes, e do qual até a Rús-
sia passou de alguma forma a fazer parte. Certamente, trata-se
de um país que tem sobre os ombros uma história de expansio-
nismo imperialista, mas que, por causa da sua fragilidade econô-

353
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

mico-social e da sua heterogeneidade étnica, pode rapidamente


cair para uma condição de semidependência.
Depois de ter sofrido por quase dois séculos o domínio mon-
gol e por um longo tempo ter vivido o pesadelo dos Cavaleiros
teutônicos, no início de 1600, a Rússia viu a sua capital ocupada
pelos poloneses; cerca de um século depois, irrompia a invasão de
Carlos XII da Suécia e, passado outro século, a de Napoleão; no fi-
nal da Primeira Guerra Mundial, a Rússia sofreu não apenas uma
intervenção das potências ocidentais como também um processo
de balcanização que parecia não ter mais fim. Hitler, a partir des-
se processo, começou a desenvolver seu plano, depois colocado
em prática através da operação Barbarossa, que visava a transfor-
mar o imenso país euroasiático em uma imensa colônia e em uma
imensa reserva de mão de obra servil. Após a derrota sofrida na
Guerra Fria, a Rússia por algum tempo caiu numa condição não
muito diferente daquela pela qual havia passado após a derrota
do primeiro conflito mundial; ainda hoje o implacável avanço da
Otan na Europa oriental cria uma situação cheia de perigos. Te-
mos, assim, um Terceiro Mundo ampliado, que engloba os países
emergentes e os próprios países de orientação socialista e que no
seu conjunto é caracterizado pela luta objetivando concretizar ou
levar à completa consolidação dois direitos fundamentais do ho-
mem: a “liberdade de não passar necessidade” e a “liberdade de
não sentir medo”. Este Terceiro Mundo ampliado, aliás, rico de
contradições em seu interior e certamente não livre de desafios e
dificuldades, representa uma alternativa à ordem existente em ní-
vel planetário, mas não tanto no plano interno de cada país como
no que se refere à divisão internacional do trabalho que, por tanto
tempo, viu o Ocidente monopolizar a alta tecnologia e obrigar o
resto do mundo a ser provedor de matérias-primas e mão de obra
de baixo custo, bem como comprador das mercadorias mais sofis-
ticadas provenientes dos países capitalistas avançados.
E assim chegamos ao Primeiro Mundo. Este também certamen-
te não foi poupado das grandes alterações em curso. E não me re-
firo apenas à globalização. É mais importante examinar duas dinâ-
micas opostas. O êxito alcançado sobre o Segundo Mundo, no final

354
CONCLUSÃO

da Guerra Fria, reforçou a autoconsciência arrogante do Ocidente.


Assim se explica a volta do ímpeto neocolonialista, ainda mais que
a Revolution in Military Affairs – da qual também faz parte a utili-
zação em perspectiva geopolítica das novas mídias – permite que
os EUA e a Otan realizem de maneira mais ou menos tranquila o
bombardeamento militar propriamente dito e o bombardeamento
multimidiático contra os pequenos países que, de tempos em tem-
pos, são alvos de uma agressão ou de manobras de desestabiliza-
ção. Ao mesmo tempo, o Primeiro Mundo está em dificuldades
em relação ao Terceiro Mundo, no qual agora estão incluídos os
países de orientação socialista, que está obtendo importantes êxi-
tos na segunda etapa (a político-econômica) da revolução antico-
lonialista. A rapidíssima ascensão (também tecnológica) da China
é a demonstração incontestável da mudança de época que está se
produzindo nas relações de força em nível mundial.
É uma mudança, porém, que, bem longe de sugerir cautela,
impulsiona as esferas mais aventureiras do Ocidente e sobretudo
do país-guia a um exaltado ativismo geopolítico e militar: é
preciso agir depressa antes que seja muito tarde, com o objetivo
de consolidar e estabilizar por décadas a primazia de que
continuam a desfrutar o Primeiro Mundo capitalista-imperialista
e principalmente aquela que se considera a “nação escolhida”
por Deus e a única “nação indispensável”. As diversas guerras
locais, os golpes de Estado camuflados em variegadas “revoluções
coloridas”, as tentativas de desestabilização em ação contra este
ou aquele país, as iniciativas mais relevantes de estratégia militar,
política e até econômica (pensando na “Otan econômica”) da qual
é protagonista o Ocidente, todos esses processos e todas essas
manobras, apesar de sua extrema diversidade, revelam a um
olhar mais atento um traço comum: a intenção de colocar cada vez
mais em dificuldades a Rússia e principalmente a China. No que
se refere a esta última, os analistas e estrategistas estadunidenses
não têm dificuldades em revelar o seu plano: trata-se de fazer com
que os abastecimentos de energia do grande país asiático, que não
possui matérias-primas essenciais como o petróleo e o gás, sejam
o mais possível expostos aos ataques da superpotente marinha

355
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

militar dos EUA, que assim poderiam exercer um substancial


poder de vida e de morte sobre mais de um milhão e trezentos
mil de pessoas. Não faltam analistas e estrategistas que falam de
guerra e que até já estudam os possíveis cenários de uma guerra
em larga escala e até de uma terceira guerra mundial.
A ideologia chamada a torná-la legítima e a consagrá-la já está
pronta, ou melhor, já algum tempo ela vem sendo obsessivamen-
te apregoada e amplamente difundida – graças ao monopólio da
produção de ideias e principalmente de emoções ainda em poder
do Ocidente, e ao recurso às técnicas subliminares capazes de ge-
rar o terrorismo da indignação e de paralisar em muitos casos o
pensamento crítico. É a ideologia que acompanhou desde os seus
inícios a história dos EUA, que se vangloriam de ser o “império
para a liberdade” já na época em que os seus presidentes eram
quase todos donos de escravos e o país se constituía no continente
americano como o ponto de referência dos defensores do instituto
da escravidão. A esquerda ocidental é em grande parte vítima, ou
participante, dessa ideologia, que superou vitoriosamente a prova
de séculos de história e de guerras. Ela se considera crítica e li-
vre de preconceitos, mas na realidade é chauvinista, e reproduz o
chauvinismo do Primeiro Mundo.
Falei da esquerda sem fazer distinções entre “esquerda mo-
derada” e “esquerda radical”. A razão dessa minha maneira de
proceder é simples. Vamos pegar a guerra contra a Líbia. O seu
caráter neocolonial, que remete a um capítulo bem conhecido da
história do colonialismo (o acordo anglo-francês Sykes-Picot de
1916), terminou aparecendo em declarações de analistas ociden-
tais mais lúcidos e firmes e em artigos de importantes órgãos de
imprensa. Mas, na Itália, tomaram posição a favor de uma infame
guerra colonial, que custou dezenas de milhares de mortes e que
destruiu um país também no plano político, duas ilustres persona-
gens: Camusso e Rossanda, a secretária-geral da CGIL e uma das
fundadoras do “diário comunista” Il Manifesto! Podemos conside-
rar Rossanda como de tendência moderada? Pois bem, vimos Har-
dt, junto com Negri, um dos expoentes mais renomados em nível
mundial da “esquerda radical”, aprovar em 1999 a guerra contra a

356
CONCLUSÃO

Iugoslávia, cujo caráter nada humanitário é tranquilamente reco-


nhecido por um historiador conservador como Ferguson. Querer
expulsar Hardt (e Negri) da “autêntica” esquerda radical não te-
ria muito sentido: não faltam movimentos de inspiração trotskista
que tomaram posição a favor dos rebeldes na Líbia e na Síria. Se,
então, alguém quisesse considerar justamente os trotskistas como
alheios ao movimento comunista “autêntico”, deveria ter presente
que muitas vezes quem repete lugares-comuns da ideologia e do
poder dominante contra a China são organizações e Partidos Co-
munistas que enaltecem Stálin. Por outro lado, tampouco respei-
tou as fronteiras entre “esquerda moderada” e “esquerda radical”
o amplo espectro dos que saudaram como revoluções populares
os golpes de Estado camuflados de “revoluções coloridas”.
Independentemente das tomadas de posições sobre este ou
aquele problema imediato, dá o que pensar o fato de a esquerda,
frequentemente também a “radical”, ter absorvido acriticamente o
calendário sagrado imposto pelo Ocidente: todo ano é solenemen-
te lembrada a tragédia da Praça Tienanmen, mas não a de Kwan-
gju, que ocorreu na Coreia do Sul de maneira parecida e com um
número de vítimas muito maior. Além do calendário sagrado, a
esquerda, muitas vezes também a “radical”, se deixa pautar pela
ideologia e pelo poder dominante, através da Carta dos Direitos: o
discurso sobre esse tema e os julgamentos pronunciados a respeito
dele pelos diversos atores da política internacional frequentemen-
te ignoram os direitos sociais e econômicos e a “liberdade de não
passar necessidade” e a “liberdade de não sentir medo”. Mesmo
quando toma posição a favor de tais direitos e da liberdade, a es-
querda (inclusive a “radical”) expressa ou promove uma cultura
que, não poucas vezes, entra em contradição mais ou menos agu-
da com o objetivo que ela declara pretender perseguir.
Nem por isso tornam-se insignificantes as diferenças no âmbito
da esquerda. No que se refere à política internacional, é preciso
saber distinguir entre esquerda imperial, a esquerda a esta subal-
terna e a esquerda realmente adversária da esquerda imperial. E
igualmente é preciso saber distinguir entre a esquerda agora sub-
metida a posições neoliberais e a esquerda que, de maneira mais

357
A ESQUERDA AUSENTE DOMENICO LOSURDO

ou menos consequente e mais ou menos lúcida (nos planos polí-


tico e cultural), está empenhada na defesa dos direitos sociais e
econômicos. Obviamente, a situação varia sensivelmente de país a
país. Resta o fato de que, apesar dos sinais de retomada aqui e ali
do movimento comunista e, mais em geral, de uma esquerda real-
mente adversária da ordem existente no plano interno e externo,
tomada em seu conjunto a esquerda no Ocidente parece mergu-
lhada na confusão e na dispersão.
É uma situação preocupante que não pode ser superada apenas
com a denúncia do oportunismo e mediante os apelos ao rigor
revolucionário. Há necessidade, em primeiro lugar, de uma
análise da nova situação mundial que foi criada: se ela servir para
abrir um debate sobre esse tema crucial, este livro terá atingido o
seu objetivo.

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AVISO: Para todos os textos citados, o itálico foi mantido, suprimido ou modificado
conforme as necessidades de destaque que surgiam na explanação.

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Este livro foi impresso em outubro de 2020, pela Gráfica
RenovaGraf, em São Paulo, para a Editora Anita Garibaldi.
Composto com a fonte Palatino Linotype corpo 11/15.
O papel do miolo é Polen Soft LD 80g/m2 e o da capa Supremo
Alta Alvura LD 300g/m2, com acabamento Soft Touch.
Tamanho do livro: 15,5x23cm

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