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INSTITUTO FEDERAL DE

EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA INSTITUTO FEDERAL DE


Colorado do Oeste
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Colorado do Oeste

Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


As discussões e diálogos travados durante
o I Seminário de Ciência e Tecnologia, do
Instituto Federal de Rondônia - Campus
Colorado do Oeste -, realizado em novembro
de 2014, resultou nesta obra onde
pesquisadores e professores, de diferentes e
diversas áreas de formação, desenvolveram
ideias, concepções e conceitos sobre a
importância da Ciência e da Tecnologia
para nossa sociedade contemporânea. Duas ENTRE BELEROFONTE
E A QUIMERA:
palavras tão usuais e tão presentes em
nosso cotidiano, mas que são, ao mesmo
tempo, um mal necessário e um bem nefasto
para os homens e mulheres do século XXI.
Os textos aqui expostos apresentaram Reflexões sobre a Ciência
na Contemporaneidade
interessantes perspectivas sobre essa
intrigada relação. Leiam aqui até onde a
ciência é nosso Belerofonte e, ao mesmo
MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA
tempo, nossa Quimera contemporânea. ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA
WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA
(ORGs)

ISBN 978-85-67589-44-2
entre belerOfOnte
e a quimera:
Reflexões sobre a Ciência
na Contemporaneidade
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE
RONDÔNIA – IFRO
CAMPUS COLORADO DO OESTE

REITOR
Uberlando Tiburtino Leite

DIRETORA GERAL CAMPUS COLORADO DO OESTE


Larissa Ferraz Bedôr Jardim

DIRETORA DE ENSINO
Salete Borino
DIRETOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO
Eduardo Norberto Aquino

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE EXTENSÃO


Leandro Cecílio Matte

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE PESQUISA, INOVAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO


Rafael Henrique Pereira dos Reis
INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Colorado do Oeste

entre belerOfOnte
e a quimera:
Reflexões sobre a Ciência
na Contemporaneidade

MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA


ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA
WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA
(ORGs)

COLORADO DO OESTE (RO)


2016
© 2016 Mauro Henrique Miranda de Alcântara, Roberta Carolina Ferreira Galvão de Ho-
landa e William Kennedy do Amaral Souza
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, de qualquer forma ou por qualquer meio,
sem autorização dos autores.

Revisão técnica e de conteúdo:


Moisés José Rosa Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Nacional
E61
Entre Belerofonte e a Quimera: reflexões sobre a ciência na
contemporaneidade/ Organizado por Mauro Henrique Miranda de
Alcântara, Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda e William
Kennedy do Amaral Souza - Colorado do Oeste : MC&G Editorial,
2016.
140 p. : il .

ISBN: 978-85-67589-44-2

1. Sociologia. 2. Ciência e Sociedade. 3. Meio Ambiente e Sociedade.


4. Relações Trabalhistas – Brasil. I. Título. II. Alcântara, Mauro
Henrique Miranda de. III. Holanda,Roberta Carolina Ferreira Galvão
de. IV. Souza, William Kennedy do Amaral.
CDU: 316

BR 435, Km 63, Zona Rural


Caixa Postal 51,
CEP: 76.993-000
Colorado do Oeste, Rondônia.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................... 7

CAPÍTULO I – O “Prometeu acorrentado”: À guisa de uma


introdução................................................................................................. 11
Mauro Henrique Miranda de Alcântara

CAPÍTULO II – Crenças e credos em Ciência dos Solos na


Amazônia....................................................................................................21
Stella Cristiani Gonçalves Matoso
Paulo Guilherme Salvador Wadt

CAPÍTULO III – Meio ambiente e sociedade:


Transformação e história.......................................................... 49
Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda

CAPÍTULO IV – Trabalho, consumo e preservação


ambiental: Discurso capitalista para uma
prática inerente ao sistema........................................................... 63
Marcos Antonio Oliveira Rodrigues
William Kennedy do Amaral Souza

CAPÍTULO V – Entre os “imprescindíveis” e os


“redundantes” — olhares sobre as relações
de trabalho no Brasil......................................................................77
Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

CAPÍTULO VI – A ciência, a tecnologia e o


desenvolvimento: Em busca de um caminho
voltado para o homem................................................................. 99
Alisson Diôni Gomes

CAPÍTULO VII – Ciência, gênero e sexualidade: A influência


epistemológica dos estudos de gênero no
discurso biológico................................................................................111
Emerson R. de A. Pessoa
Franciele Monique Scopetc dos Santos
Gustavo Piovezan

CAPÍTULO VIII – Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa


social na contemporaneidade.................................................. 127
Raphaela Rezzieri
João Paulo Rossatti

SOBRE OS AUTORES................................................................................................................139
APRESENTAÇÃO

Este livro é resultado dos diálogos, debates e comunicações


realizados no I Seminário de Ciência e Tecnologia do Instituto
Federal de Rondônia — Campus Colorado do Oeste realizado entre
os dias 19 e 20 de novembro de 2014. Esse evento foi desenvolvido
para contemplar as atividades da Semana da Ciência e Tecnologia,
proposta anualmente pelo Ministério da Ciência e Tecnologia.
Em 2014, a temática sugerida para as atividades da semana foi
A Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social. A partir
desse eixo temático começamos a pensar e organizar as atividades
do evento.
A primeira pergunta que perseguimos para organizar o evento
e, posteriormente, na organização deste livro foi: É possível a ciência
e a tecnologia garantirem o desenvolvimento social? Organizamos
quatro mesas redondas e duas conferências com pesquisadores
de diversas áreas, a fim de debatermos esses questionamentos e
propormos possíveis saídas.
O resultado dos diálogos travados durante o evento, ou ao
menos parte dele, poderemos verificar ao ler esta publicação. Nela,
pesquisadores enriqueceram com aprofundamentos temáticos
e teóricos as propostas apresentadas durante as atividades do I
Seminário de Ciência e Tecnologia.
O capítulo que abre este livro, justamente porque busca
apresentar uma introdução aos debates vindouros, é o texto do
professor Mauro Henrique Miranda de Alcântara (IFRO), cujo título
é O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução. Neste
texto, o autor problematiza a relação entre a busca por uma verdade
nas ciências e a consequente mitificação dos seus usos, tanto pelos
cientistas, quanto pela sociedade.
No capítulo II, escrito pela professora Stella Cristiani
Gonçalves Matoso (IFRO) e o pesquisador Paulo Guilherme
Salvador Wadt (EMBRAPA), sob o título Crenças e Credos em
Ciência dos Solos na Amazônia, os autores buscaram, por meio
de apresentação e explicação de dados numéricos, biológicos e

7
fórmulas químicas, desmistificar algumas crenças e credos sobre
os solos amazônicos.
O capítulo seguinte, Meio Ambiente e Sociedade: transformação
e história, escrito pela professora Roberta Carolina Ferreira Galvão
de Holanda (IFRO), apresenta uma interessante discussão sobre
o avanço do consumismo na sociedade capitalista ocidental e a
consequente transformação e deterioração do meio ambiente.
Em Trabalho, consumo e preservação ambiental: discurso
capitalista para uma prática inerente ao sistema, o acadêmico
Marcos Antonio Oliveira Rodrigues (IFRO) e o professor William
Kennedy do Amaral Souza (IFRO), amparados pelo diálogo entre
as teses de Marx e muito dos seus interlocutores contemporâneos,
apresentam como os discursos do capitalismo objetivam a práticas
mais simbólicas do que reais, em torno da preservação ambiental.
A professora Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa (UFMT), no
capítulo intitulado Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” —
olhares sobre as relações de trabalho no Brasil, nos apresenta, por
meio de discursos de trabalhadores, mapas de violência e outras
fontes, a problemática relacionada entre o avanço do “progresso” e
as relações de trabalho no Brasil.
O professor Alisson Diôni Gomes (UNIR), no capítulo VI,
intitulado A Ciência, a Tecnologia e o Desenvolvimento: Em busca
de um caminho voltado para o homem apresenta uma reflexão
sobre como a produção científica e tecnológica contemporânea
podem fornecer subsídios para um desenvolvimento humano, de
fato, em meio a muitos absurdos oriundos do capitalismo.
A produção de verdades científicas, em torno das questões
de gênero e sexualidade na história, é a temática central do
capítulo VII, intitulado Ciência, gênero e sexualidade: A influência
epistemológica dos estudos de gênero no discurso biológico, escrito
pelos professores Emerson R. de A. Pessoa (UNIR), Franciele
Monique Scopetc dos Santos (UNESP) e Gustavo Piovezan (UTFPR).
O capítulo que fecha esta coletânea é o escrito pelos
professores Raphaela Rezzieri (UNEMAT) e João Paulo Rossatti
(UFMT), intitulado Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa
social na contemporaneidade. Através de uma breve abordagem
histórica, esse texto apresenta a consonância entre arte e ciência
na transformação da sociedade ocidental.

8 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Convidamos-vos para que façam a leitura destes capítulos,
com um olhar curioso, buscando mais obter perguntas do que
respostas, pois após as reflexões que estes textos nos trazem, o
título do livro é a metáfora para as questões abertas sobre a ciência
no mundo contemporâneo: ela é tanto a fonte do mal, quanto do
bem. Ou seja, ela é a Belerofonte e a Quimera.

Boa leitura!

Os organizadores

9
CAPÍTULO I

O “Prometeu acorrentado”:
à guisa de uma introdução

Mauro Henrique Miranda de Alcântara

Era o deus Prometeu, um habilidoso escultor. Filho dos Titãs Japeto


e Ásia, seria ele o responsável por uma das mais importantes criações de
Zeus: o homem. Sem compreender inicialmente tal tarefa, a ele incumbi-
da pelo deus supremo, começou a confeccioná-lo sem mais delongas. Ao
finalizar o trabalho, todo orgulhoso, foi apresentá-lo aos deuses que não
somente aprovaram a criatura, como também encobriram o “escultor” de
majestosos elogios.
Embevecido com tamanha honraria, Prometeu tornou o “homem” a
sua obra-prima e passou a buscar meios para que sua “arte” vivesse o me-
lhor possível. Ele roubou do sol uma pequena chama que enviou aos ho-
mens. No entanto estes, bem como toda criatura em relação ao seu cria-
dor, acabaram por entrar em conflito com Zeus. Certo da necessidade de
aplicar um castigo aos homens, o deus supremo retirou deles o direito ao
fogo, presenteado por Prometeu.
Mesmo alertado quanto à possibilidade de uma punição àqueles que
desobedecessem às ordens de Zeus, Prometeu tornou a roubar uma cha-
ma e dá-la aos homens. Irado, Zeus mandou acorrentar o desobediente
Prometeu no alto de um rochedo, e enviou uma ave de rapina para que
comesse, todos os dias, um pouco do seu fígado. Sua fúria era tão grande
que ordenou a Prometeu ficar eternamente preso ao rochedo.
Após longos anos de sofrimento, Zeus, em um ato de compaixão,
resolveu dar uma trégua, libertar Prometeu do seu sofrimento, se este
jurasse esconder dos homens o segredo do fogo. Prometeu recusou e
manteve-se em silêncio.
Héracles, filho de Zeus, acabou por ajudar a atenuar o sofrimen-
to de Prometeu. Em uma de suas jornadas aventureiras, acabou por
matar o abutre que devorava constantemente o seu fígado. Prometeu
conseguiu se livrar das correntes, mas Zeus apareceu e disse-lhe ser

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 11


impossível se livrar de tal castigo, pois a sua ordem, de que ele deve-
ria ficar eternamente ligado àqueles rochedos, seria eterna. Prome-
teu sugeriu a Zeus uma ideia para manter tal ordem, mas conceden-
do-lhe a liberdade. Pediu que Héracles fabricasse com suas correntes
um anel. Zeus concordou. Assim que o recebeu, Prometeu o colocou
e afirmou que agora, ele estaria eternamente preso ao dito rochedo,
conforme ordem do deus supremo do Olimpo. Zeus ficou espantado e
admirado com tal sagacidade. E resolveu pôr fim a tal contenda.
Entre tantos mitos e seres míticos herdados da cultura grega, tal-
vez este seja um dos mais intrigantes e significantes para a vida huma-
na. Provavelmente dele podemos pensar muito do que somos e, princi-
palmente, do que nos tornamos. A metáfora do “Prometeu acorrentado”,
nos dá certa dimensão para pensar o papel da ciência, dos cientistas e da
tecnologia em nossos dias.
A ciência, como a concebemos hoje, é fruto da sagacidade, inteligên-
cia, destreza e curiosidade humana. Sem tais características, não pode-
ríamos ter construído tantos conhecimentos, organizado e disseminado,
tal como fazemos. Bem como Prometeu que, sem tais adjetivos, não teria
conseguido conceber a sua “obra-prima”, o homem.
Como o mito grego, a ciência, por diversas vezes, acaba por “desres-
peitar as ordens humanas”, ou melhor, a ciência, capaz de nos dar condi-
ções de pensar objetivamente um “mundo ideal, real”, concebe um código
de ética para as suas atividades, mas ao mesmo tempo, acaba por desres-
peitar aquilo que prega e “comprova” ser o melhor. O que seria o “antiéti-
co” diante de uma construção “ética”, se não isso?
A ciência e Prometeu se assemelham ainda em um ponto: ambos são
em demasia “humanos”. Talvez porque, por mais que se busquem apre-
sentar ambas as explicações fora de um contexto humanístico, são elas
construções dos homens, para os homens e no ambiente dos homens.
Possuem a mesma capacidade de superar desafios com perspicácia para
a melhoria da humanidade. Ambos possuem dentro de si um tanto de mal
quanto de bem. Quer algo mais humano do que isso?
O que mais os transformam em uma construção humana, ou me-
lhor, humanizada é que tanto o mito do “Prometeu acorrentado”, quanto
a ciência moderna, são construções discursivas. Ou seja, ambos só podem
existir materializados por uma narrativa que, até o prezado momento, é
uma atividade exclusivamente humana.
Antes de entrar em um terreno movediço, que apresenta tudo e a to-
dos como meras representações, apresentamos aqui as reais diferenças
entre a construção de um mito e da ciência.

12 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


O mito é uma representação, ou melhor, são metáforas para explicar
observações do homem em relação ao seu mundo, mas sem a capacidade
e as devidas ferramentas para uma explicação plausível para aconteci-
mentos, fatos, coisas. A ciência se arquiteta na busca de uma comprova-
ção, por meio dessa explicação plausível e com as devidas ferramentas,
as quais foram insuficientes, inicialmente, para os gregos. Os mitos per-
manecem em nosso meio e, muitas vezes, é justamente na ciência que
eles se perpetuam, como veremos à frente.
O fato é que, independentemente do caráter explicativo (objetivo ou
subjetivo), ambas formas narrativas buscam apresentar explicações do
seu mundo para os seus pares, daquilo que a curiosidade humana é insti-
gada. Entre os gregos, durante muito tempo, os mitos foram suficientes
para dar conta dos acontecimentos humanos. No entanto, tal fenômeno,
bem como todas as coisas humanas, acabou-se por ser insuficiente. Eis
onde entra o papel da filosofia grega e sua busca por indagar-se e apre-
sentar explicações mais próximas do “real” dos acontecimentos munda-
nos e, até mesmo, metafísicos.
Eis que as indagações e explicações filosóficas não se perpetuaram,
uma vez que a natureza humana é uma parente próxima de Prometeu,
sagaz, curiosa e principalmente, ambiciosa. A ciência moderna, constru-
ção de um mundo “iluminado”, apresenta-se como a solução da humani-
dade a partir do século XVIII, resplandece e tem seu momento de glória
e consolidação no século XIX, no entanto apresenta-nos o caos e a des-
crença com as atrocidades e genocídios ocasionados por grandes eventos
bélicos no século XX.
Assim com Prometeu, a ciência foi e é capaz de grandes feitos e gran-
des destruições ao mesmo tempo. Seria a ciência (ou os próprios seres
humanos?) ao mesmo tempo o maravilhoso e corajoso herói Belerofonte
e o mais terrível monstro com quem ele lutou, a Quimera?
Deixando momentaneamente de lado a metáfora do “Prometeu
acorrentado”, mas não a mitologia, estes discursos utilizados pelos
gregos antigos para explicar o mundo possuíam, provavelmente, a
mesma importância que os discursos científicos para nossa atual so-
ciedade. Ou seja, independentemente do período histórico, as práticas
discursivas acabam por nos dar a base explicativa para a vida neste
planeta. Os gregos utilizavam as explicações míticas diante de um
sentido religioso, ou seja, tais discursos buscavam “religar” essa so-
ciedade aos seus deuses. Dominique Maingueneau, linguista francês,
utiliza-se do termo “discurso constituinte” para explicar a capacidade
de certos discursos serem justificados em si mesmo:

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 13


A pretensão desses discursos, assim chamados
por nós de “constituintes”, é de não reconhecer ou-
tra autoridade além da sua própria, de não admitir
quaisquer outros discursos acima deles. Isso não
significa que as diversas outras zonas de produ-
ção verbal […] não exerçam ação sobre eles; bem
ao contrário, existe uma interação constante entre
discursos constituintes e não-constituintes, assim
como entre discursos constituintes. Mas faz parte
da natureza dos discursos constituintes negar essa
interação ou pretender submetê-la a seus princípios.
(MAINGUENEAU, 2008, p. 37).

O mais interessante dessa colocação do francês é que para ele os dis-


cursos, tidos, como constituintes são: os discursos científicos, religiosos
e jurídicos. Mais uma vez verificamos aproximações entre o “Prometeu”
e a ciência. Tanto um quanto o outro buscavam e buscam governar, justi-
ficar e constituir a vida de suas respectivas sociedades.
Dessa forma é como tais discursos buscam se caracterizar e apre-
sentar, no entanto trata-se de discursos de caráter sócio-históricos,
influenciados diretamente pelas estruturas sociais, econômicos e cul-
turais.
Se hoje não concebemos a mitologia grega como uma explicação do
mundo, apenas olhamos para tais mitos com um olhar de historicidade,
do que foi um dia. A ciência, apesar de estar e ser presente em nossa so-
ciedade, também é marcada por uma historicidade, ou melhor, por uma
“validade histórica”.
O historiador das ciências Thomas Kuhn apresenta a ciência como
uma “convenção”, e a “comunidade científica”, onde ela é desenvolvida,
é “ao mesmo tempo, o lugar e o resultado dessa convenção” (HOCHMAN,
1994, p. 203). Portanto, por ser uma convenção, a ciência é algo construí-
do sócio historicamente, por indivíduos de tal local, e exposta a todas as
estruturas do seu tempo. Quando as respostas que esse “paradigma cien-
tífico” fornece não conseguem satisfazer as questões levantadas pela so-
ciedade, vem a crise e a mudança:
Enquanto os instrumentos proporcionados por
um paradigma continuam capazes de resolver os
problemas que este define, a ciência move-se com
maior rapidez e aprofunda-se ainda mais através da
utilização confiante desses instrumentos. A razão é
clara. Na manufatura, como na ciência — a produção
de novos instrumentos é uma extravagância reservada

14 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


para as ocasiões que a exigem. O significado das crises
consiste exatamente no fato de que indicam que é
chegada a ocasião para renovar os instrumentos.
(KUHN, 206, p. 105).

Eis, provavelmente, o motivo para a existência deste texto e, princi-


palmente, para a abertura de diálogos, reflexões e debates sobre o papel
da ciência, da tecnologia e dos cientistas na contemporaneidade, a partir
de artefatos textuais, noticiários, eventos, entre outros. Nossa sociedade
busca novas respostas, as ciências, apesar de conseguirem se renovar e
inovar em uma velocidade impressionante (a aceleração do tempo, eis a
marca de nossa sociedade), ela não consegue apresentar características
e formas que atendem tais demandas.
No entanto, o que presenciamos é uma busca incessante, por parte
dos cientistas com vistas a justificarem o resultado dos seus trabalhos
como “discursos constituintes”, ignorando a dialética à qual estão en-
volvidos diretamente. Isso porque muitas vezes, não conseguem com-
preender para quem trabalham, e acreditam piamente na possibilidade
da construção de um conhecimento objetivo, isento e comprovado. Ho-
chman, ao explicar como o sociólogo francês Pierre Bourdieu compreen-
de a lógica de um “campo científico”, relata:
O campo científico é um campo de lutas,
estruturalmente determinado pelas batalhas passadas,
no qual agentes/cientistas buscam o monopólio da
autoridade/competência científica. Os conflitos que
ocorrem no e pelo domínio desse campo são entre
agentes que têm lugares socialmente prefixados no
mesmo, assim como qualquer agente na sociedade, e
são fundamentalmente interessados, isto é, desejam
maximizar, e se puderem monopolizar, a competência/
autoridade científica — reconhecida pelos pares.
(HOCHMAN, 1994, p. 209).

Os cientistas possuem um pouco do “Prometeu”, ao não aceitarem,


muitas vezes, a possibilidade de interferências às suas “obras-primas”.
No entanto, diferentemente do mítico personagem, que fora castigado
por Zeus, geralmente essa prática científica é ratificada pelos pares. Per-
petua-se o que Pierre Bourdieu descreve como habitus:
[...] sistema de disposições duráveis e transponíveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, ou seja, como
princípios geradores e organizadores de práticas e de

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 15


representações que podem ser objetivamente adaptadas
ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins
e o domínio expresso das operações necessárias para
alcança-los, objetivamente “reguladas” e “regulares”
sem em nada ser o produto da obediência a algumas
regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas
sem ser o produto da ação organizadora de um maestro.
(BOURDIEU, 2009, p. 87).

E não somente entre os pares e o campo científico tal prática


discursiva é aceita e ratificada. Geralmente, quando há “descobertas
científicas”, é noticiada midiaticamente, em formas de discursos jorna-
lísticos, ou seja, para que a população compreenda, a fim de que “po-
pularizem”, sem questionamentos, tais saberes e “verdades”. Ou seja,
ao invés de colaborar na validação de tal conhecimento, questionando,
refutando, dialogando, refletindo sobre tais conhecimentos, o papel da
mídia acaba por colaborar na construção de verdadeiros “mitos” em tor-
no dos discursos científicos. Vera Portocarrero, ao estudar as concep-
ções de saber e verdade nas obras de Michel Foucault, nos indica uma
resposta plausível para essa “mitificação científica”, ou melhor seria, a
“mitificação da verdade e do saber” na sociedade contemporânea:
[...] vivemos em uma sociedade que caminha “ao compasso
da verdade” […], ou seja, que produz e faz circular
discursos que funcionam como verdade, e que por isso
representam poderes específicos. Um dos principais
problemas da civilização ocidental é a produção de
discursos “verdadeiros”, que, por sinal, mudam sempre.
(PORTOCARRERO, 1994, p. 56).

A circulação dessas “verdades”, mesmo que dinâmicas, pois


como diz a autora “mudam sempre”, acabam por criar tais “mitos”.
Mais quais seriam os reais interesses nessa “mitificação” das “verda-
des”, dos “saberes” e da “ciência”? Para Michel Foucault, a ciência é um
dos instrumentos para as classes que detêm o poder de construir um
conjunto de verdades que será aceito pelas demais classes. Portanto,
para ele, a ciência e/ou o saber está vinculado ao jogo das relações de
poder na sociedade:
Sem dúvida, um dos aspectos mais importantes desta
história da verdade é a relação por ele estabelecida
entre a produção de verdades e as relações de poder: A
produção de verdade é inteiramente infiltrada pelas
relações de poder. (PORTOCARRERO, 1994, p. 46).

16 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Diante do exposto, é possível compreender o quão difuso e opaco
são os discursos construídos pela “ciência”. Afinal, ela está vinculada às
estruturas econômicas, às relações de poder, mas o seu objeto em si é
a construção de “verdades”, às vezes limitada por estes jogos de poder.
Voltamos ao “Prometeu”. Seria possível, diferentemente desse
personagem, a ciência enfrentar “Zeus” e conseguir se livrar da eterna
ligação ao “rochedo”? Em outras palavras, seria possível a ciência apre-
sentar toda a isenção e imparcialidade diante dos interesses políticos e
econômicos que a cercam (e principalmente a financiam)?
A resposta que teríamos para hoje seria que inevitavelmente o dis-
curso científico sempre estará à mercê das relações de poderes. Portan-
to, trata-se de um categórico “não!” em relação ao questionamento. Por
que não? Oras, durante todo este texto temos demonstrando o quão hu-
mano é a prática científica, e que por mais que ela busca se “livrar do ro-
chedo”, o aspecto humano é o anel do “Prometeu” que a ciência terá que
levar eternamente. Ou seja, “Zeus” venceu!
Mas ainda não terminamos. Mesmo não havendo saída para as
questões que levantamos, podemos pensar e repensar as condições de
práticas científicas, sem perder de vista o ponto de partida do fazer
ciência: a racionalidade humana. O historiador alemão Jörn Rüsen fa-
cilitará nosso trabalho:
[...] o pensamento é um processo genérico e habitual
da vida humana. A ciência é um modo particular de
realizar esse processo. O homem não pensa porque a
ciência existe, mas ele faz ciência porque pensa. Se se
puder estabelecer que esse modo particular, científico,
do pensamento humano está enraizado no pensamento
humano em geral, ter-se-á um ponto de partida para
responder à pergunta: por que o pensamento se dá e se
deve dar no modo científico? (RÜSEN, 2010, pp. 54-55).

Assim como em determinado tempo histórico, o “Prometeu” foi pos-


sível e responsável para atender explicações levantadas pelos gregos,
a ciência hoje é um meio para explicar nossas angustiantes questões. A
ciência é, antes de tudo, um meio de materialização (podemos dizer, uma
forma objetiva disso) do pensamento humano. Nada mais é esse meio de
“racionalização do pensamento” que uma construção histórica humana.
É por meio disso que conseguimos significar nossa vida. E provavelmente
será por meio dele, que nos guiaremos por um longo espaço de tempo.
Mais uma vez Rüsen nos ajuda a compreender tal situação, e diminuir
nossas possíveis angústias:

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 17


O homem necessita estabelecer um quadro interpretativo
do que experimenta como mudança de si mesmo e de
seu mundo, ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse
decurso temporal, ou seja, assenhorar-se dele de forma
tal que possa realizar as intenções de seu agir. Nessas
intenções há igualmente um fator temporal. Nelas o
homem vai além, também em perspectiva temporal,
do que é o caso para si e para o seu mundo; ele vai, por
conseguinte, sempre além do que experimenta como
mudança temporal, como fluxo ou processo do tempo.
Pode-se dizer que o homem, com suas intenções e
nelas, projeta o tempo como algo que não lhe é dado na
experiência. (RÜSEN, 2010, pp. 57-58).

O que podemos aprender com essa posição de Rüsen é que, antes de


tudo, o homem é um ser histórico por natureza. É nas relações temporais
que ele consegue se “encontrar” no mundo e, a partir dessa capacidade
de construir um quadro interpretativo daquilo que se é e onde se vive,
buscará apresentar modelos explicativos para tais interrogações. Como
ser que se relaciona diretamente com as dimensões temporais, busca-
rá sempre reencontrar e reorganizar um quadro explicativo para a sua
existência.
Retomamos nesse momento Kuhn. Todas as vezes que o “quadro
explicativo” não atender aos questionamentos, deverão ocorrer crises e
rupturas até um “novo quadro” ser constituído, validado e aceito, diante
de todas as características que buscamos apresentar no texto.
Antes de tudo, precisamos aceitar e compreender a ciência, a tecno-
logia e o cientista como uma criação, invenção, respostas dadas a ques-
tionamentos feitos pelos seres humanos para os próprios seres humanos.
Humanizar a ciência não é transformá-la em algo menor; é compreendê
-la como algo “real”, constituído de questões concretas, buscando expli-
cações “reais”.
Vivemos hoje em uma realidade um tanto quanto distópica. Espera-
mos, ansiosos, no entanto ceticamente, por uma “novidade”, uma “inven-
ção”, uma “descoberta”. Mas tudo isso dentro de uma perspectiva muito
mais próxima de uma ficção científica do que diante de uma “realidade”.
Tudo nos parece distante e, a ciência, a tecnologia e o cientista parecem
ser as “estradas” que buscam manter tal distanciamento.
Os textos que, vocês leitores, terão a possibilidade de apreciar
neste livro, foram motivados justamente para debater, dialogar e refletir
sobre esse cenário que buscamos apresentar nesta (tentativa de) intro-

18 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


dução. Resultado de comunicações apresentadas em um seminário, cujo
objetivo foi justamente tentar compreender qual o papel da ciência e da
tecnologia para o desenvolvimento social.
Buscamos apresentar neste singelo artefato textual, justamen-
te esse questionamento: apesar de ser apresentado como um “discurso
constituinte”, divulgado e perpetuado de forma “mítica”, organizado por
profissionais que buscam sempre distanciar-se dos demais agentes so-
ciais, e se confinam em seus “campos científicos” e trabalham a partir
de seus habitus, disseminando um conhecimento, a distribuição de uma
“verdade”, muitas vezes sem conceber as “relações de poder” que as en-
volve, quais seriam os “reais” papéis da ciência e da tecnologia para nossa
atual sociedade?
Após as leituras e diálogos que buscamos realizar, provavelmente
poderíamos responder da seguinte maneira o questionamento: a ciência
e a tecnologia são, justamente, o resultado do trabalho humano, da ca-
pacidade humana de inventar e se reinventar, criar mecanismos, ou me-
lhor, novos quadros explicativos para sua existência (e para sua melhor
existência) sempre que necessário. Precisa-se, para isso, humanizar o
conhecimento científico.
Mesmo estando sujeito, assim como “Prometeu”, a ficar eternamen-
te ligado ao rochedo, a ciência, por ser um conhecimento realizado pelo
homem, sempre terá a capacidade, sagacidade, inteligência de construir
“anéis” que lhe oportunizarão uma vida melhor.

O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução 19


REFERÊNCIAS

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FERREIRA, F. H.; Odsson A. Prometeu e a caixa de Pandora. Portal Tem-
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teudo=12&value=Prometeu e a caixa de Pandora&civ=Mitologia Gre-
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GRIMAL, Pierre. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. 2. ed. Tradu-
ção: V. Jabouille. Lisboa: DIFEL, 1993.
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de Kuhn, Bourdieu, Latour e Knorr-Cetina. In: PORTOCARRERO, V. (Org.).
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neas. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. Disponível em: <http://static.scielo.
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São Paulo: Perspectiva, 2006.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da Enunciação. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
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In: PORTOCARRERO, V. (Org.). Filosofia, história e sociologia das ciên-
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RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciên-
cia histórica. 1. reimpr. Brasília: EdUNB, 2010.

20 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


CAPÍTULO II

Crenças e credos em Ciência


dos Solos na Amazônia
Stella Cristiani Gonçalves Matoso
Paulo Guilherme Salvador Wadt

Introdução
Era intenção, aqui, fazer uma introdução sobre a construção do co-
nhecimento científico, seus métodos de investigação e publicação. Mas,
após a analogia realizada entre a metáfora de Prometeu acorrentado e
a nossa ciência atual, por Mauro Henrique Miranda de Alcântara no pri-
meiro capítulo deste livro, nossas colocações tornam-se dispensáveis e
até irrelevantes.
Apenas como contextualização, podemos citar que o processo de
construção do conhecimento científico, e das tecnologias decorrentes
desse, é predominantemente acumulativo. A Ciência do Solo, como nesse
aspecto não difere das outras áreas, está inserida nesse cenário.
À medida que se acumula conhecimento sobre a natureza e as
propriedades do solo, podem-se construir modelos teóricos sobre a dinâ-
mica dos diversos processos que ocorrem no mesmo de modo que pos-
teriormente seja possível desenvolver inovações, originando processos
tecnológicos (como técnicas de manejo de solo) ou novos produtos (como
inoculantes ou fertilizantes). Essa inovação tecnológica; sendo incre-
mental ou radical, ou mesmo quando restrita a um contexto peculiar de
investimentos em tempo, recursos e conhecimentos; é produto do conhe-
cimento adquirido pela coletividade.
Há quarenta anos, o Brasil estava se reorganizando no âmbito da pes-
quisa agropecuária. Com relação aos órgãos governamentais, destaca-se a
criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária no início da déca-
da de 1970; e a criação dos primeiros programas de Pós-Graduação na área
e subáreas da Ciência do Solo, nas Universidades Federais e em algumas
Estaduais, onde hoje se concentra a maior parte da capacidade criativa
e inovadora. Reconhece-se, portanto, o significativo avanço obtido pela
Ciência do Solo nesse período. Podendo pressupor que os profissionais
possuem melhor formação e criticidade para enfrentar os desafios que se
colocam frente à contínua modernização da agricultura brasileira.

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 21


Apesar do reconhecimento do avanço coletivo da Ciência do Solo e
da melhoria individual do profissional, temos que retomar a discussão
do primeiro capítulo, sobre as particularidades da construção da ciência,
construção essa que é uma prática humana e discursiva. A falta de aceita-
ção de que o ser humano interfere em sua obra e de dialética nas publica-
ções científicas da Ciência do Solo constitui um empecilho ao avanço inte-
lectual, qualitativo, inovador e tecnológico dessa área do conhecimento e
contribui ainda para a propagação de “verdades absolutas”, mitos e crenças.
Quando a comunidade científica aceita a comprovação de uma hi-
pótese que foi testada pelo método científico, essa afirmação se torna
uma “verdade”. Muitas vezes ouvimos entre leigos em qualquer assunto a
expressão: “comprovado cientificamente”. Desse modo, se dá veracidade
àquilo que está sendo dito. Como a ciência é dinâmica, por vezes, essas
“verdades” são modificadas ou até mesmo rejeitadas, mas uma nova acei-
tação pode demorar, ou mesmo não acontecer.
A mídia, o poder público e grandes empreendedores podem ter in-
fluência direta nesse aspecto. Discursos interessantes à determinada
parcela da sociedade podem perdurar, mesmo não sendo mais conside-
rados “verdades”. Nesse capítulo, vamos apontar alguns conhecimentos
com relação à região amazônica que, em dado momento, foram tidos
como “verdades” e que tamanha foi sua propagação que viraram verda-
deiras crenças. Apresentamos a seguir três crenças que alguns seguem
como verdadeiros credos.

1.ª Os solos da Amazônia são pobres e improdutivos


É muito comum veicular na mídia e em publicações científicas
caracterizações dos solos amazônicos como sendo de baixa fertilidade
natural, elevada acidez, porém sem impedimentos físicos para a
mecanização. O que viria onerar os custos de produção na região, devido
à necessidade de insumos, como corretivos e fertilizantes. Muito similar
aos adjetivos dados aos solos do Cerrado.
Para entender de onde vem essa generalização, temos que fazer al-
guns apontamentos. Primeiramente, vamos fazer uma síntese sobre o
processo de formação dos solos. O solo se forma a partir de cinco fato-
res: material de origem, clima, organismo, relevo e tempo. Esses fatores
em conjunto passam por processos pedogenéticos e tipos de formação
do solo. O produto de todo esse processo origina um perfil composto por
horizontes e camadas com relações pedogenéticas entre si que, no Brasil,
pode ser classificado em treze ordens (OLIVEIRA, 2008).

22 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


No bioma amazônico, devido ao seu clima equatorial quente e úmido,
ênfase exacerbada é dada a esse fator (clima) no processo de formação do
solo, deixando-se de lado os demais. Aliado a isso, o relevo predominante
da região é de terras baixas, tais como, planícies, planaltos rebaixados e
planaltos (QUESADA et al., 2011). Desse modo, a região amazônica se-
ria uma vasta extensão territorial quente e úmida, com uma condição de
paisagem ligeiramente aplainada.
Para visualizarmos essa situação, podemos observar na Figura 1 o
trajeto em linha reta entre a cidade de Porto Maldonado, Peru, até a foz
do Rio Amazonas. Essa cidade localiza-se às margens do rio Madre de
Dios, afluente de rios que formam a bacia do rio Madeira e do rio Ama-
zonas, possui altitude média de 210 metros e se encontra em linha reta
a mais de 2.500 km da foz do rio Amazonas, no Atlântico. Considerando
então, o desnível e a distância até a foz do Amazonas, a declividade média
seria de apenas 0,00875%. Se desconsiderarmos as variações de altitude
do relevo local durante o percurso, o relevo macrorregional pode ser con-
siderado praticamente plano (QUESADA et al., 2011).

Figura 1. Trajetória em linha reta entre Porto Maldonado, Peru, e a foz do Rio Amazonas,
formando um relevo macrorregional plano

Fonte: Google Earth (2016).

Esse cenário, além de trabalhos pontuais com caracterização de so-


los de baixa fertilidade, levou a comunidade científica a assumir alguns
posicionamentos. Os pedólogos concluíram que os solos da Amazônia

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 23


seriam invariavelmente maduros,1 lateríticos2 e intensivamente lixivia-
dos.3 Já os biólogos inferiram que a disponibilidade de nutrientes
no sistema seria obtida exclusivamente por meio de processos de
ciclagem dos nutrientes dentro da própria floresta.
Além do processo de formação do solo, a própria ocupação da região
amazônica pode ter contribuído para essa visão reducionista dos solos
amazônicos. Até meados da década de 1980, a maior parte da expansão
agropecuária e das cidades sobre a região ocorreu sobre solos formados
sobre o Escudo Brasileiro, na região leste do bioma amazônico, em áreas
com idade geológica de 2,0 a 3,6 bilhões de anos, enquanto que na região
mais a oeste, com solos de menor idade geológica, persistiam as ativida-
des urbanas e agrícolas as margens dos rios navegáveis (Figura 2).

Figura 2. Máxima idade geológica associada as formações geológicas no bioma amazônico

Fonte: Quesada et al. (2011).

1 Solos que passaram por longo processo de intemperismo. O intemperismo, por sua vez, é
conjunto de processos mecânicos, químicos e biológicos que ocasionam a desintegração e
decomposição das rochas, e a consequente formação do solo.
2 Solos lateríticos são formados pelo processo de laterização, o qual se caracteriza pela
ocorrência de intensa lixiviação de bases, que ocorre pelo excesso de chuvas, formando
solos profundos, ricos em óxidos de ferro e alumínio. Quando o processo é muito intenso
pode e a laterização é quase total, o solo se chama laterita, após desidratação originam-se
crostas, cangas e concreções, que impedem o desenvolvimento das raízes.
3 Lixiviação é o processo de extração de uma substância presente em componentes sólidos
através da sua dissolução em um líquido. Portanto solos lixiviados são aqueles que perde-
ram nutrientes, por percolação no perfil, a partir da dissolução dos mesmos em água.

24 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Figura 3. Evolução da geologia na bacia amazônica a partir dos últimos
23 milhões de anos anteriores à época atual

Fonte: adaptado de Hoorn et al. (2010).

CRENÇAS E CREDOS EM CIÊNCIA DOS SOLOS NA AMAZÔNIA 25


O início da ruptura do paradigma da baixa fertilidade dos solos ama-
zônicos somente foi possível ao se desconsiderar a magnitude do efeito
do clima na formação os solos na região e dar maior ênfase aos outros
fatores de formação (QUESADA et al., 2011).
A relevância de fatores como evolução geológica e modelagem da
paisagem foi, por muito tempo, ignorada. Somente nos dias mais recen-
tes, alguns autores (HOORN et al., 2010) têm argumentado que grande
parte da diversidade dos solos da Amazônia origina-se das diferenças
geológicas e geomorfológicas que ocorrem através da bacia, destacan-
do-se como processos promissores o soerguimento da Cordilheira dos
Andes e a consequente formação das antibacias de depressão à leste da
cordilheira, local onde acumularam sedimentos, transformando profun-
damente a geologia local (Figura 3).
Desses processos geológicos relacionados ao soerguimento das
Cordilheiras do Andes originaram solos extremamente imaturos4 em
um ambiente com enorme pressão de intemperismo químico e biológico
(devido às condições climáticas), resultando em grande variabilidade de
ambientes e condições edafológicas.
Como exemplos típicos, temos a ocorrência de Cambissolos5 com
características vérticas6 na porção mais a oeste da bacia amazônica ou
dos Plintossolos7 na porção mais central (Figura 4), além da ocorrência
de solos como os Vertissolos8 e Luvissolos9 na porção central da bacia

4 Solos que sofreram pouca atuação das forças do intemperismo. Ainda se encontram no
início do processo de formação.
5 Solos pouco desenvolvidos. Possuem o horizonte B incipiente, que resumidamente, ca-
racteriza-se pela presença de 4% ou mais de minerais primários, elevada relação silte/
argila (acima de 0,7), capacidade de troca de cátions acima de 17 cmolc dm-3 e 5% ou
mais do volume do solo apresenta estrutura da rocha original.
6 Presença de minerais de argila de alta atividade expansivos, que devido aos movimen-
tos de expansão e contração dos minerais formam fendas e “slickensides” (superfícies
de fricção), ou estrutura cuneiforme e, ou, paralepipédica, em quantidade e expressão
insuficientes para caracterizar o próprio horizonte vértico.
7 Solos minerais, formados sob condições de restrição à percolação da água, sujeitos ao
efeito temporário de excesso de umidade, de maneira geral imperfeitamente ou mal dre-
nados, que se caracterizam fundamentalmente por apresentar expressiva plintitização
com ou sem petroplintita
8 Solos constituídos por minerais de argila de alta atividade e expansivos. Em época seca
apresentam fendas profundas, e evidências de movimentação da massa do solo, sob a
forma de superfície de fricção (slickensides). São desenvolvidos normalmente em am-
bientes de bacias sedimentares ou a partir de sedimentos com predomínio de materiais
de textura fina e com altos teores de cálcio e magnésio, ou ainda diretamente de rochas
básicas ricas em cálcio e magnésio.
9 Solos com B textural de argila de atividade alta, saturação por bases alta, ligeiramente
ácidos a alcalinos e pouco profundos.

26 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


do Acre (ANJOS et al., 2013) ou Planossolos Nátricos10 nas savanas de
Roraima (VALE JR et al., 2010).

Figura 4. Distribuição de Cambissolos (à esquerda) e Plintossolos


(à direita) na bacia amazônica

Fonte: Hoorn et al. (2010).

Associado a esse processo, destaca-se também a energia erosiva


atuando na modelagem atual do relevo regional. Devido ao soerguimento
da Cordilheira dos Andes, foram formadas sucessivas camadas deposicio-
nais de materiais sedimentares com diferentes granulometrias e tipos de
argilas. Com a atuação das forças erosivas11 sobre essas camadas, tem-se
como resultado “inversões” da paisagem (Figura 5), como observado em
algumas regiões do sudoeste amazônico, com a ocorrência de Vertissolos
nos topos da paisagem e Argissolos nas áreas baixas (LOSS et al., 2014).

10 Solos minerais imperfeitamente ou mal drenados, com horizonte superficial de textu-


ra mais leve, que contrasta abruptamente com o horizonte imediatamente subjacente,
adensado, geralmente de acentuada concentração de argila, permeabilidade lenta ou
muito lenta. Com elevada saturação por sódio (≥ 15% da capacidade de troca de cátions).
11 Agentes mecânicos que atuam na erosão do solo. A erosão, por sua vez, é o deslocamento
das partículas do solo, que pode ser feito por agentes como o vento (erosão eólica) e a
água (erosão hídrica). Nesse caso, nos referimos principalmente a erosão hídrica.

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 27


Figura 5. Sequência de sedimentação de materiais onde sedimentos previamente
intemperizados, e/ou mais grosseiros, ocorrem nas camadas de maior profundidade e
sedimentos pouco alterados e mais leves ocorrem nas camadas mais superficiais, e após
processo de modelagem da paisagem pela erosão atual, afetam a gênese dos solos,
resultando em solos mais imaturos nos topos e solos mais evoluídos nas baixadas.

Nesse ambiente, forças do intemperismo químico (temperatura, umi-


dade e acidez elevadas) passam a atuar sobre materiais de origem ricos em
minerais primários12 ou secundários13 ainda pouco intemperizados, resul-
tando em solos muitas vezes de alta fertilidade natural, embora associa-
dos a indicadores como elevada acidez e grandes quantidades de alumí-
nio extraível por solução salina concentrada. Esses processos têm levado,
por exemplo, à ocorrência de solos com propriedades químicas extremas,
como os solos com argilas do tipo 2:114 associados a altos teores de alumí-
nio trocável (GAMA; KIEHL, 1999; MARQUES et al., 2001; CUNHA, 2013).
Além dos processos citados, a deposição material vulcânico também
já foi comprovada nos solos amazônicos. No Estado do Acre foi confirma-
da, por análises químicas e mineralógicas, a influência de material vul-

12 Os minerais primários são herdados do material originário; mantém-se praticamente inal-


terado na sua composição. Resultam da combinação dos oito principais elementos da li-
tosfera: oxigênio, silício, alumínio, ferro, cálcio, potássio, magnésio e sódio. Os principais
exemplos são: feldspatos, feldspatóides, anfibólios e piroxênios, micas, olivina e quartzo.
13 Os minerais secundários são formados a partir da intemperização dos minerais primá-
rios. Os mais frequentes no solo são os minerais de argila, óxidos e hidróxidos de alumínio
e ferro e carbonatos de cálcio e de magnésio.
14 Minerais secundários pouco intemperizados com elevada atividade.

28 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


cânico sobre a gênese de parte de seus solos. Por sua posição geográfica
infere-se que esse material seja originário dos Andes (GAMA et al., 1992).
Recentemente (em 2011) o vulcão chileno Puyehue retornou à atividade,
formando uma nuvem de cinzas de 10 km de altura, que se espalhou pela
América do Sul, chegando a atingir Porto Alegre, RS, depositando mate-
riais vítreos ricos SiO2 e Al2O3, e com conteúdos baixos de álcalis e FeO
(LIMA et al., 2012) (Figura 6). Atividades semelhantes podem ter ocorri-
do em tempos passados, atingindo a região amazônica.

Figura 6. Localização do complexo vulcânico Puyehue-Cordón Caulle (à esquerda) e imagem de


satélite, em 4 de junho de 2011, da nuvem de cinzas formada pela erupção do vulcão (à direita)

Fontes: Lima et al. (2012); NASA (2011).

Outros exemplos de solos férteis podem ser encontrados na Amazô-


nia. Não vamos tomar aqui como exemplo as Terras Pretas de Índio ou como
também conhecidas Arqueológicas, pois a estas se atribui origem antro-
pogênica. Mas temos manchas férteis no Estado de Rondônia atribuídas à
sua formação geológica: Domínio dos sedimentos cenozoicos a mesozoicos,
pouco a moderadamente consolidados, associados a profundas e extensas
bacias sedimentares (DCM) (Formação Solimões) (Figura 7a), Domínio do
vulcanismo fissural mesozoico do tipo plateau (DVM) (com predomínio de
rochas basálticas) (Figura 7b), Domínio de corpos máfico-ultramáficos; bá-
sicos e ultrabásicos alcalinos e vulcanismo associado (DCMU) (Figura 7c).
Domínio de sequências vulcanossedimentares proterozoicas dobradas e
metamorfizadas de baixo a alto grau (DSVP2) (com exceção do predomínio
de quartizitos) (Figura 7d), Domínio de sequências vulcanossedimentares
tipo greenstone belt, arqueano até o mesoproterozoico (DGB) (Figura 7e),
além de outras formações com materiais variáveis que originam solos dis-
tintos em fertilidade (ADAMY, 2010).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 29


Figura 7. Domínios geológico-ambientais do Estado de Rondônia que apresentam
condições de originar solos férteis

Fonte: Adaptado de Adamy (2010).

30 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Não é regra que em cada domínio desses os solos serão obriga-
toriamente férteis, pois como citado o processo de formação do solo
depende da atuação dos fatores em conjunto. O município de Chupin-
guaia, onde hoje as terras são valorizadas para o cultivo de grãos, lo-
caliza-se no domínio DMV (Figura 7b). Os municípios de Colorado do
Oeste e Ouro Preto do Oeste, os quais apresentamos a caracterização
química de solos na Tabela 1, encontram-se no domínio DSVP2 (Figu-
ra 7d) e no Domínio de complexos granitoides deformados (DCGR2),
respectivamente. O DCGR2, que ocupa grande parte do Estado, não foi
apresentado na figura acima devido a sua variabilidade mineralógica
e fertilidade dos solos.
Podemos observar na Tabela 1 que o solo de Colorado do Oeste
possui elevada fertilidade, caracterizada pelos altos teores de fósforo
disponível, bem como de cálcio e magnésio trocáveis, pH elevado e au-
sência de alumínio trocável. Os solos de Ouro Preto do Oeste demons-
trados, apesar dos baixos teores de fósforo, possuem fertilidade de
média a alta, considerando principalmente os níveis de potássio dispo-
nível e cálcio e magnésio trocáveis, ausência de alumínio trocável e pH
adequado ao desenvolvimento da maioria das culturas.

Tabela 1. Características químicas de um perfil de solo localizado em Colorado do Oeste-RO

Horizonte Espessura pHH2O pHCaCl2 P K Ca Mg Al+H Al MO


--------------------cmol dm-3
----------------
cm mg dm-3 c
g dm-3
-----
Colorado do Oeste
A 0-30 6,7 5,5 2,0 0,06 29,84 17,60 2,75 0,00 4,00
Bi 31-65 7,1 5,7 44,3 0,02 22,92 11,30 1,88 0,00 4,00
Ouro Preto do Oeste
A - 5,9 - 1,0 0,04 2,30 0,80 0,18 0,00 1,40
Bt1 - 5,9 - 1,0 0,04 2,14 0,80 0,18 0,00 2,40
Ouro Preto do Oeste
A - 6,9 - 4,0 0,46 4,00 1,50 2,0 0,00 4,10
Bt - 6,4 - 3,0 0,04 2,90 1,20 1,5 0,00 7,50
Ouro Preto do Oeste
A - 5,9 - 2,0 0,21 2,30 1,20 3,3 0,00 12,80
Bt - 5,5 - 1,0 0,16 0,90 0,90 2,3 0,00 19,20

Fonte: Matoso et al. (2015) e Pequeno et al. (2001).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 31


Mais exemplos de solos férteis podem ser encontrados em outros
Estados, como no caso de Roraima, onde se registra a ocorrência de Ni-
tossolos, Chernossolos e Cambissolos de alta fertilidade, com pH varian-
do de 5,7 a 7,0, e teores de cálcio trocável de 2,3 a 9,31 cmolc dm-3 e de
magnésio trocável de 0,04 a 3,16 cmolc dm-3 (Melo et al., 2011). No Pará,
também se encontram solos naturalmente férteis condicionadas ao
material de origem, tais como Domínio dos corpos máfico-ultramáficos
(DCMU), contendo rochas básicas (JOÃO, 2013).
Com esta sumária análise podemos então contribuir para a des-
mitificação de que os solos da Amazônia são invariavelmente de baixa
fertilidade e improdutivos. Sequer mencionamos os recursos disponí-
veis para trabalhar agronomicamente os solos que realmente possuem
baixa fertilidade, mas deixemos isso para outra oportunidade. Nossa
intenção, esperamos que cumprida, foi apenas mostrar que em matéria
de solos a Amazônia não é essa vastidão homogênea e pobre pregada e
seguida por muitos, mas sim um mosaico de solos de fertilidade variada
que vai de baixa a alta.

2.ª A Amazônia é o “pulmão do mundo”


Essa é uma crença que, apesar de vir sendo desmistificada nas últi-
mas décadas, ainda está arraigada no senso comum da sociedade. Primei-
ramente vamos debater por que essa afirmação está equivocada para, em
seguida, discutir quais seriam os aspectos de real importância ecológica,
social e cultural do bioma amazônico.
José Lutzenberger, em entrevista a Ney Gastal em 1989, já
mencionava o duplo equívoco da afirmação de que a Amazônia é o pul-
mão do mundo:
Existe aí um duplo equívoco. O pulmão consome, e não
produz oxigênio, ao contrário do que pretendem os
que utilizam esta imagem para dizer que a Amazônia
é uma espécie de fábrica de oxigênio. Mas ela também
está incorreta sob outro ponto de vista. Se a floresta, ou
qualquer outro ecossistema, produzisse mais oxigênio
do que consome, a concentração deste gás na atmosfera
terrestre estaria em constante aumento. E isto não
acontece. Pelo que sabemos, desde que houve a primeira
transformação da atmosfera inicial, que era reduzinte,
para uma atmosfera oxidante (dois e meio ou três
bilhões de anos atrás), os níveis de oxigênio mudaram
muito pouco (LUTZENBERGER, 1989).

32 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


As duas afirmações de Lutzenberger poderiam ser contrapostas.
A primeira por constituir uma figura de linguagem e, usar da liberdade
de um termo conotativo, representa a Amazônia como uma fornece-
dora de oxigênio. O fato de um ecossistema produzir mais oxigênio do
que consome pode ocorrer, sem que haja aumento dos níveis desse gás
na atmosfera, desde que ocorra o consumo por outro compartimento,
seja biótico ou não. Entretanto, ele tinha razão em não concordar com
a crença de que a Amazônia é o pulmão do mundo. Para entender o por-
quê, vamos relembrar dois processos biológicos básicos, fotossíntese e
respiração celular.
A respiração celular é um processo metabólico que pode ocorrer
de duas formas: aeróbia (usando oxigênio) e anaeróbia (na ausência
de oxigênio). A respiração aeróbia predomina na natureza e é mais
eficiente na produção de energia. A produção de dióxido de carbono
(CO2) ocorre nos dois tipos de respiração, e em qualquer organismo. A
diferença entre plantas e animais está na forma de obtenção da fonte
de energia (carboidratos).
Os animais são denominados heterótrofos, pois obtém seu ali-
mento de outrem, a partir da ingestão de vegetais e outros animais.
As plantas e alguns microrganismos realizam o processo chamado
fotossíntese, no qual, de uma forma simplificada, a partir de alguns
comprimentos de onda da luz solar, gás carbônico e água, produzem
carboidratos e oxigênio. Portanto, durante o dia as plantas da flores-
ta amazônica absorvem dióxido de carbono e liberam oxigênio. En-
tretanto, no período noturno, ocorre o processo de respiração, e os
carboidratos produzidos na fotossíntese são queimados, produzindo
energia para a planta e liberando dióxido de carbono para a atmosfe-
ra, como explicado acima.
Desse modo, fotossíntese e respiração celular completam um ciclo,
não havendo saldo positivo de oxigênio na atmosfera, pois aquilo que não
é consumido pela respiração da planta é utilizado pela microbiota e fau-
na do solo no processo de decomposição da matéria orgânica (Figura 8),
mantendo assim o nível de oxigênio praticamente estável nos últimos
bilhões de anos como explicado por Lutzenberger (1989).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 33


Figura 8. Ciclo simplificado dos processos que envolvem o carbono e o oxigênio

Assim, podemos nos remeter ao ponto seguinte. Se ocorre a libera-


ção de dióxido de carbono no período noturno e pela decomposição da
matéria orgânica, a Amazônia realmente sequestra carbono em quanti-
dades significativas?
O próprio leitor, após ter relembrado alguns conceitos básicos de
biologia, já deve pressupor a resposta. Mas, podemos fazer mais algumas
considerações a respeito.
A primeira pergunta a ser respondida é: todo o carbono fixado na
planta via fotossíntese é perdido pela respiração celular? A respos-
ta imediata é não. Parte desse carbono compõe a estrutura (tecidos e
órgãos) da planta. E, como vimos, após a decomposição da matéria or-
gânica, parte desse carbono retorna a atmosfera (Figura 8), mas ainda
existe outro reservatório, dessa vez abiótico, que é o solo. Portanto, a
floresta só é um reservatório significativo de carbono enquanto perma-
nece viva.
Atualmente, se aceita que os organismos que realmente possuem
a capacidade de retirar o carbono do ciclo por longo período estão na
água e não na terra. São microrganismos que constituem o fitoplânc-
ton (Figura 9). O fitoplâncton absorve o CO2 da água do oceano e o

34 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


converte em carbonato de cálcio (CaCO3), que passa a constituir seus
esqueletos e escudos. O ciclo de vida desses microrganismos é extre-
mamente curto, cerca de vinte e quatro horas, se não for consumido,
por outros organismos marinhos, eles morrem e são depositados no
fundo do oceano. Dessa forma, o carbono neles fixado leva pelo me-
nos quatrocentos milhões de anos para voltar à atmosfera, por emis-
sões vulcânicas e hidrotérmicas. Essa é a principal forma natural e em
escala global de sequestro de carbono em longo prazo. Existe ainda o
processo físico (circulação termoalina) que também ocorre nos ocea-
nos e o sequestro geológico, processo artificial sendo realizado por
grandes indústrias (BARBOSA et al., 2013).

Figura 9. Explosão de crescimento de fitoplâncton na costa da Nova Zelândia no perídodo


de 11 a 25 de outubro de 2009

Fonte: NASA (2009).

Observa-se, desse modo, que as florestas são reservatórios de car-


bono enquanto vivas, e o fitoplâncton, após sua morte. Essa diferença
é primordial para entender o processo, pois com a eventual retirada da
floresta ela deixa de ser reservatório de carbono, passando a ser fonte
de emissão.
Com isso, as afirmações de que a floresta amazônica sequestra car-
bono, veiculadas na mídia e nas publicações científicas, não condizem
com a verdade. É preciso considerar a sua preservação em um curto es-
paço de tempo, como exemplificadas, abaixo:
O Brasil lança por ano na atmosfera o equivalente a
1,5 bilhão de toneladas de dióxido de carbono (CO2,
molécula formada por um átomo de carbono e dois de

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 35


oxigênio). A Amazônia tem capacidade para retirar
por ano da atmosfera, por fotossíntese, entre 1
bilhão e 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono.
Subtraia um pelo outro e a contribuição do Brasil para
o aquecimento global pode chegar a zero. Tudo que
o Brasil joga para cima, a floresta puxa de volta para
baixo (ESCOBAR, 2007).
Os números são baseados em estimativas do
Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera
na Amazônia (LBA), comparadas com o inventário
nacional de emissões e cálculos do Centro de Estudos
Integrados sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas
(Centro Clima) da Coordenação dos Programas de Pós-
Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. O cruzamento de dados foi
feito pelo Estado e os resultados, confirmados por
especialistas (ESCOBAR, 2007).
O sequestro de carbono é a absorção de grandes
quantidades de gás carbônico (CO2) presentes na
atmosfera. A forma mais comum de sequestro de
carbono é naturalmente realizada pelas florestas.
Na fase de crescimento, as árvores demandam
uma quantidade muito grande de carbono para
se desenvolver e acabam tirando esse elemento
do ar. Esse processo natural ajuda a diminuir
consideravelmente a quantidade de CO2 na atmosfera:
cada hectare de floresta em desenvolvimento é capaz
de absorver nada menos do que 150 a 200 toneladas
de carbono (CUNHA, 2011).

O conceito de sequestro de carbono foi concebido durante a confe-


rência de Kyoto em 1997, da qual participaram representantes de mais
de cento e sessenta países e foi criado um tratado internacional que de-
termina metas de redução de emissões de gases do efeito estufa. Desde
então, outras reuniões e tratados desse cunho foram firmados entre di-
versos países. A preservação das florestas tropicais sempre está entre
essas metas. O que intriga a muitos e, por vezes, revolta, é o fato de países
desenvolvidos como os Estados Unidos da América (EUA) nunca assina-
rem esses acordos. Não é nosso intuito aqui analisar a fundo a razão pela
qual países como esse tomam essa postura, mas um dos fatores pode es-
tar ligado ao ciclo geológico do carbono.
A importância de preservar a floresta amazônica, evitar des-
matamentos e queimadas, pode estar relacionada a outros aspectos

36 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


ecológicos, sociais, socioambientais e culturais, mas a sua principal
relevância talvez não esteja relacionada ao ciclo do carbono. Em um
primeiro momento, essa afirmativa pode causar estranheza, todavia,
estamos analisando o ciclo do carbono, e não a importância do bioma
amazônico para a vida no planeta e no modo que vivemos hoje.
O fogo, por exemplo, é um processo natural para a renovação da
vegetação em escala planetária. Nas vegetações caducifólias, semica-
ducifólias, ou mesmo nas regiões onde ocorrem períodos de estiagem é
comum a presença do fogo. Algumas espécies até se adaptaram a essa
intempérie. Suas sementes só quebram o período de dormência após a
passagem do fogo. A queima da biomassa libera para a atmosfera gran-
de quantidade de CO2, além de outros gases. Contudo, em seguida, ocor-
re renovação da vegetação. Nessa fase há grande demanda por fotoas-
similados para o crescimento das plantas. Ocorre então, novamente a
fixação de CO2, a partir da fotossíntese (Figura 10).

Figura 10. Renovação da vegetação do Yellowstone National Park (EUA) após um grande
incêndio em 1988.

Fonte: NASA (2011).

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 37


A retirada da floresta e a consequente diminuição do reservató-
rio de carbono não ocorrem somente pelo desmatamento e queima da
vegetação. Em um artigo publicado recentemente pela revista Nature
foi demonstrado que na última década a floresta amazônica está per-
dendo sua capacidade de armazenar carbono da atmosfera devido ao
aumento acelerado na mortalidade de suas árvores. Segundo os pes-
quisadores, o aumento de CO2 na atmosfera, nas últimas três décadas,
proporcionou um surto no crescimento de árvores na Amazônia. En-
tretanto esse carbono adicional teve consequências inesperadas. Pois,
do mesmo modo que estimula às taxas de fotossíntese, fazendo com
que as árvores se desenvolvam rapidamente, faz com que elas morram
mais cedo (BRIENEN et al., 2015). Portanto, a menor longevidade das
árvores e maior decomposição da matéria orgânica fazem com que a
floresta diminua seu potencial de reservatório de carbono.
A diminuição da cobertura vegetal, seja por processos naturais ou
antrópicos, expõe o solo aos processos erosivos. Barbosa e Fearnside
(2000) estimaram a perda de solo no Estado de Roraima em função
de seu uso em 1.128 kg ha-1 ano-1 sob cultivo de pastagem (Brachiaria
humídicola) e em 150 kg ha-1 ano-1 sob floresta primária. Nunes et al.
(2012) determinaram a tolerância a perda de solo em diferentes or-
dens, sendo que os Argissolos foram os menos tolerantes e os Cambis-
solos, Gleissolos, e Latossolos foram os mais, perdendo até cerca de 15
t ha-1 ano-1 de solo.
Por um lado, o processo erosivo causa danos diversos, desde am-
bientais a socioeconômicos. Entretanto, em outra perspectiva, o solo
erodido na bacia amazônica é depositado no Oceano Atlântico em uma
região denominada Delta do Amazonas (Figura 11). Esses sedimentos
levam consigo nutrientes que elevam a multiplicação do fitoplâncton
pela adição de nutrientes contidos nos sedimentos erodidos que, por
sua vez, aumentam a retirada de CO2 da atmosfera. Portanto, do ponto
de vista do ciclo geológico do carbono, a retirada da floresta amazônica
exporia o solo à erosão e, mesmo emitindo toneladas de CO2 para a at-
mosfera via decomposição, com o aumento da reprodução do fitoplânc-
ton, o ciclo seria novamente equilibrado.

38 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Figura 11. Fluxo de sedimentos na foz do Rio Amazonas (Delta do Amazonas)

Fonte: Google Earth (2016).

Países desenvolvidos como os EUA e membros da União Europeia


têm como políticas ambientais prioritárias a conservação do solo, da
água, da flora e da fauna endêmica, com menor ênfase no sequestro de
carbono por meio de restrições impostas ao uso da terra.
Com essa explanação pretendemos desmitificar a crença de que a
Amazônia é o “pulmão do mundo” e, como vimos, basta uma revisão bási-
ca de biologia para atingir o objetivo. Quanto à mesma ser um reservató-
rio de carbono, percebemos também que este é temporário e, caso venha
a findar, o planeta tem mecanismos para equilibrar o ciclo desse ele-
mento. Nesse momento, devemos passar então a discutir qual a impor-
tância desse bioma local e globalmente, nos aspectos ecológicos, sociais
e socioambientais. Discussão essa que nos remeterá automaticamente a
próxima crença.

3.ª A “conservação” da Amazônia gera riquezas para as


populações locais
O Brasil, como é bastante divulgado, é um país megadiverso, mas
ainda se conhece muito pouco em termos quantitativos e qualitativos so-
bre a sua biodiversidade (GAETANI et al., 2012). A Amazônia se encaixa
nesse contexto, e os diversos genótipos presentes nessa região podem

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 39


fornecer além de serviços ambientais, produtos, tais como, fármacos,
cosméticos, alimentos, dentre outros. Entretanto, pouco se sabe em nú-
mero de espécies, menos ainda da ecologia desses organismos.
O meio de preservação da floresta adotado hoje é o pagamento por
serviços ambientais, além da própria legislação que prevê os limites e
formas do desmatamento.
Serviços ambientais, ou serviços ecossistêmicos, são os benefícios
que as pessoas obtêm dos ecossistemas, os quais são essenciais não só
para a sobrevivência humana, mas, também, para a redução da pobreza.
A degradação dos recursos naturais tem muitas causas, inclusive a de-
manda excessiva por eles, decorrentes de crescimento da economia, mu-
danças demográficas e escolhas individuais. Assim quanto maior a força
de exploração maior a vulnerabilidade dos sistemas. Ecossistemas bem
manejados reduzem os riscos e vulnerabilidades, sistemas mal maneja-
dos podem aumentar os riscos de enchentes, secas, perdas de safra, fome
e doenças. E esses riscos são particularmente maiores nas áreas rurais
(PEIXOTO, 2011).
Os mecanismos de mercado para os serviços ambientais não são efi-
cazes tanto para a conservação dos recursos naturais quanto para a me-
lhoria da qualidade de vida das populações locais. Peixoto (2011) destaca
dois fatores importantes: a falta de mercado para determinados serviços,
tais como os culturais ou de regulação, e a dificuldade que as políticas e
as instituições impõem às pessoas que vivem dentro do ecossistema de
se beneficiar dos serviços para proporcioná-los a outras que estão dis-
tantes, seja em espaço físico ou temporal.
O principal meio de pagamento por serviços ambientais de ecossis-
temas florestais é o crédito de carbono, que hoje beneficia geralmente
grandes empreendimentos e empresas e muito pouco a população local
do ecossistema.
Podemos citar como exemplo o caso dos projetos Purus, Valparaiso
e Russas no Estado do Acre. Esses projetos são em regiões de seringais
e preveem restrições e até paralisação das atividades tradicionais de
cultivo agrícola de famílias de seringueiros e posseiros para que emis-
sões assim evitadas possam ser vendidas no mercado internacional de
créditos de carbono. Contudo, as famílias dos seringais foram induzidas
a assinarem documentos reconhecendo a posse das terras em favor de
uma empresa denominada Moura e Rosa Investimentos Ltda., mesmo
morando no local há mais de quarenta anos. O caso hoje envolve o Centro
de Memória das Lutas e Movimentos Sociais da Amazônia e Ministério
Público do Acre. Mas mesmo resolvendo a questão da posse da terra, se

40 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


o projeto for levado a cabo, haverá rupturas extremas no modo de vida
dessas comunidades.
A advogada do Centro de Memória das Lutas e Movimentos Sociais
da Amazônia aponta algumas questões equivocadas relativas ao caso:
Para justificar o Projeto Purus, baseado na hipótese
do “desmatamento evitado” para a geração de créditos
de carbono, a empresa Moura & Rosa alegou que, como
proprietária, poderia converter parte da floresta dos
seringais em pastagem (prevendo o corte raso de 20%
de sua extensão total para acomodar de 10 a 12 mil
cabeças de gado), além de desenvolver atividades
madeireiras. Numa lógica inversa e perversa, explica
a advogada, criminaliza-se então o manejo tradicional
dos pequenos agricultores, impondo-lhes restrições
que justifiquem a venda de carbono (apesar de o próprio
governo do Acre ter reconhecido que o uso do fogo é
essencial na agricultura familiar de pequeno porte, e
sua proibição poderia causar insegurança alimentar),
e limita-se definitivamente o desenvolvimento futuro
da comunidade através da restrição da área disponível.
“Além da agricultura, as famílias também usam as áreas
florestadas para caçar, para o extrativismo, retirada
de madeira para casas ou construção de canoas. Isso
passaria a ser proibido, bem como o estabelecimento
de atividades produtivas das próximas gerações.
Como ficariam os filhos dos posseiros se não puderem
estabelecer futuramente seus próprios lotes produtivos,
com casas e roças?” (GLASS, 2013).

Além de casos como esses, sabemos que grandes empreendimen-


tos têm acesso muito mais facilmente ao crédito de carbono do que a
população local. A exemplo disso, temos os casos das hidrelétricas tro-
picais, que são hoje um dos principais destinos dos fundos no âmbito
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Na Amazônia temos o
complexo de Jirau que, em 17 de maio 2013, foi contemplado pelo MDL
para obtenção de crédito de carbono, tornando-se o maior projeto de
“energia renovável” do MDL até agora em termos de toneladas de CO-
2
-eq supostamente mitigados (FEARNSIDE, 2014). Entretanto, há gran-
de controvérsia se as usinas elétricas realmente mitigam a emissão de
CO2 (KEMENES, 2007).
Portanto, além desses empreendimentos alterarem o modo de
vida da comunidade local possibilitam que os países que compram os
créditos emitam carbono para a atmosfera, sem qualquer compensação

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 41


verdadeira das emissões pelos projetos de MDL. Projetos hidrelétricos
no MDL também consomem uma parte substancial do dinheiro que o
mundo tem para combater o aquecimento global (FEARNSIDE, 2014).
Se pensarmos na qualidade de vida como proteção ao modo de
vida das comunidades tradicionais, vemos que as políticas de paga-
mento por serviço ambiental são ineficazes. Se considerarmos o aces-
so à educação, saúde, saneamento básico, lazer e cultura, esse meca-
nismo é ainda menos eficaz.
Como comunidades tradicionais ou sociedades tradicionais enten-
dem-se o conceito de Diegues e Arruda (2001):
Utiliza-se neste estudo a noção de “sociedades
tradicionais” para definir grupos humanos diferenciados
sob o ponto de vista cultural, que reproduzem
historicamente seu modo de vida, de forma mais ou
menos isolada, com base na cooperação social e relações
próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto
a povos indígenas quanto a segmentos da população
nacional, que desenvolveram modos particulares de
existência, adaptados a nichos ecológicos específicos.

Projetos com comunidades extrativistas também não têm se mos-


trado efetivos para a conservação da biodiversidade e elevação da qua-
lidade de vida. O Banco Mundial publicou dados referentes 2,6 bilhões
de dólares gastos em 289 projetos em florestas de 75 países, entre 2002
e 2011, dentre os quais, no Brasil foram financiados a demarcação de
45 milhões de hectares de terras indígenas e outros 26 milhões em re-
servas ambientais. O relatório aponta como uma das causas do fracasso
a insistência de ONGs e de governos em considerar que as atividades
de subsistência e extrativistas como a melhor opção para o desenvolvi-
mento das comunidades pobres (COUTINHO et al., 2013).
Na visão do Banco Mundial a atividade de subsistência não deveria
ser o objetivo final dos projetos, mas apenas um meio para as pessoas
sobreviverem enquanto se organizam para uma atividade econômica
capaz de produzir maior riqueza. Em outras palavras, na maioria dos
programas financiados pelo banco, os moradores das reservas garan-
tem o mínimo para sobreviver e não obtêm autonomia financeira. Ou-
tro fator negativo trata da falta de efeito das políticas públicas sobre
a população do entorno das reservas que muito pouco ou em nada foi
beneficiada. Apenas a Costa Rica e o México são citadas como exemplo
de sucesso pelo relatório, eles adotam políticas totalmente diferentes
do Brasil (COUTINHO et al., 2013).

42 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Outro fator de relevância é a proteção das comunidades tradicio-
nais e seu conhecimento associado que, por vezes, são expostos por
políticas públicas, empreendimentos, fluxo migratório e até mesmo
pesquisas científicas.
A conservação da floresta relaciona-se ainda com a preservação
dos recursos hídricos. Recursos esses de suma importância em escala
local e global. Contudo, nosso país e região não possuem sequer políti-
ca de controle de erosão do solo.
Os mecanismos adotados hoje para pagamento de serviços am-
bientais não contemplam nenhum dos fatores considerados relevantes
quanto à conservação da floresta amazônica. Desse modo, acreditamos
que a pressão exercida dentro e fora de nosso país pela conservação
da Amazônia voltada às mudanças climáticas, em especial ao ciclo do
carbono, está equivocada. Deixamos a pergunta ao nosso leitor: esse
equívoco é de forma ingênua ou não?

Considerações finais
Com essa explanação, podemos observar que o processo de cria-
ção e disseminação do conhecimento e o conflito de interesses entre
atores da sociedade como o poder público, o mercado privado e a mídia
podem vir a criar mitos em relação a determinados assuntos.
Com relação à Amazônia, consideramos que esses mitos se tor-
naram verdadeiras crenças pregadas e seguidas por muitos, por moti-
vações e interesses diversos, os quais não foram objeto de nossa dis-
cussão. Objetivamos, apenas, contribuir para a desmistificação dessas
“verdades” absolutas.
Como não rompemos aqui nenhum paradigma com relação ao
processo de construção do conhecimento atual, utilizamos para nossa
análise as mesmas ferramentas inerentes ao método científico, resul-
tados pautados na observação e experimentação. Entretanto, nos per-
mitindo usar da subjetividade e inferências, valores esses intrínsecos
ao ser humano.
Com isso demonstramos três aspectos principais relacionados
ao bioma amazônico: a) a Amazônia não é constituída de solos inva-
riavelmente de baixa fertilidade, mas sim de um mosaico de solos de
fertilidade variável; b) a floresta amazônica não é o pulmão do mundo
e a sua retirada por meios naturais ou antrópicos não resultaria, em
longo prazo, em consequências sérias ao ciclo do carbono, pois o pla-
neta possui mecanismos de sequestro não relacionados à floresta; c)

Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 43


os mecanismos utilizados para a conservação da floresta atualmente
não geram riquezas para as populações locais, autonomia financeira,
tão pouco, melhoria na qualidade de vida.
Desse modo, pretendemos elevar o debate das questões amazôni-
cas, adicionando um novo olhar sobre as mesmas.

44 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


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Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia 47


CAPÍTULO III

Meio ambiente e sociedade:


transformação e história
Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda

O meio ambiente está em risco e as ameaças são provenientes de


diversas fontes: poluição, contaminação, má distribuição de renda,
resíduos sólidos, químicos e biológicos. Todas essas ameaças são origi-
nadas do consumo exagerado e tem como consequência tragédias que
vêm se repetindo ao longo do tempo.
O capitalismo é o ponto de partida dos problemas ambientais
atuais. Se as leis fossem cumpridas e a Educação Ambiental saísse do
papel não haveria, por exemplo, pilhas jogadas em bueiros, peixes con-
taminados com mercúrio e pessoas morrendo intoxicadas. A tecnolo-
gia se constitui como ponto de incremento de doenças na atualidade.
Enquanto os ecossistemas sofrem com doses diárias de venenos
que se acumulam na biota, o homem continua levando a vida sem pre-
ver o que pode acontecer com o planeta se o consumismo continuar
moldando a sociedade.

O consumismo e a transformação da sociedade e do meio


onde ela se encontra
É fato: o homem está em constante busca. Dentre as suas diversas
buscas estão o celular com o maior número de funções e aplicativos; a
televisão com a melhor definição; além do carro mais equipado e com
o motor mais potente. As buscas por essas novidades tecnológicas e
suas vantagens fazem com que o homem substitua frequentemente o
bem, considerado por ele ultrapassado, por outro considerado o suces-
so do momento. Eis um exemplo clássico de consumismo.
O consumo insustentável no dia a dia da sociedade traz consequên-
cias drásticas para o homem e para o meio ambiente: o homem torna-se
escravo do consumo, em meio a dívidas; e o ambiente é alterado, como con-
sequência do descarte inadequado de produtos e subprodutos industriais
e residenciais que o envenenam. Onde está a justiça socioambiental?

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 49


Diante da crise socioambiental atual, o tema desenvolvimento
sustentável vem sendo debatido nas reuniões internacionais, a fim
de evitar o esgotamento dos recursos naturais. Porém a responsabili-
dade ambiental, econômica e social está longe de ser aplicada, diante
da lógica capitalista que ameaça as gerações presentes e futuras. Na
prática, o consumismo, fruto do capitalismo, vem transformando gra-
dualmente a sociedade e o meio onde ela se encontra.

Capitalismo como origem do desequilíbrio ambiental


Segundo Velasco (2002), o equilíbrio dos sistemas não-humanos
“meio ambiente” e vida humana estão ameaçados pelo capitalismo,
justamente pelos efeitos destrutivos da ciência e da tecnologia. Isso
pode significar que a teórica busca pelo desenvolvimento sustentável
é, na verdade, um histórico e permanente retrocesso que traz como
consequência o envenenamento da biota.
A História revela que o desenvolvimento de muitos países, hoje
desenvolvidos, ocorreu à custa da exploração e da deterioração dos
recursos naturais. Esse modelo capitalista de desenvolvimento gerou
um desequilíbrio ambiental que ultrapassou fronteiras e ainda traz
consequências para os ecossistemas. Muitas das agressões ao meio
ambiente são perceptíveis, outras não são tão evidentes, embora se-
jam drásticas.
Dentre as consequências desse desenvolvimento não sustentável
estão à erosão, a lixiviação, o assoreamento e a perda da fertilidade
do solo; contaminação das águas, do solo e do ar; extinção de espécies;
além do surgimento e disseminação de doenças associadas aos proble-
mas ambientais que, segundo Ruscheinsky e Costa (2002), parecem
ser agravados pelos efeitos da organização da sociedade.
O avanço da produção no sistema capitalista trouxe consigo tam-
bém o problema do lixo: O que fazer com os resíduos sólidos? Onde
descartar telefones celulares, baterias, monitores de computadores
e televisores? Sabe-se que o lixo eletrônico pode contaminar o lençol
freático com produtos altamente nocivos à saúde dos ecossistemas.
Dessa forma, é necessário reconhecer que este problema existe cada
vez mais próximo da população. É necessário dar a ele a devida impor-
tância, para que haja o descarte correto do lixo eletrônico ao final de
sua vida útil.

50 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Elementos-traço
Dentre os resíduos dos componentes eletrônicos estão os elemen-
tos-traço, mais conhecidos como metais pesados. Segundo Esteves
(2011), os elementos-traço são encontrados naturalmente na natureza
na ordem de partes por milhão (ppm). Alguns deles possuem funções
biológicas conhecidas, sendo assim elementos essenciais, como o ferro
(Fe), constituinte da molécula de hemoglobina, pigmento que transpor-
ta o oxigênio; o magnésio (Mg), componente da clorofila, principal pig-
mento responsável pela fotossíntese, e o cobre (Cu), um dos nutrientes
atuantes na cadeia transportadora de elétrons (TAIZ; ZEIGER, 2013).
Os elementos-traço que não possuem funções biológicas conheci-
das são, na maioria das vezes, tóxicos podendo bioacumular nos seres
vivos e biomagnificar ao longo dos níveis tróficos. Dentre eles estão, o
mercúrio (Hg), que é um dos mais preocupantes, por ser neurotóxico,
representando risco à saúde humana, particularmente quando ingeri-
do sob a forma de metilmercúrio (BASTOS; LACERDA, 2004); além do
chumbo (Pb) e do cádmio (Cd) que apresentam potencial cancerígeno
(CETESB, 2012).
O homem tem colaborado para o incremento das concentrações
desses e outros elementos-traço no meio ambiente, através do descar-
te inadequado de baterias, pilhas, lâmpadas, além de atividades indus-
triais. No Art. 22. da Resolução n.º 401/08 está disposto:
Não serão permitidas formas inadequadas de disposição
ou destinação final de pilhas e baterias usadas, de
quaisquer tipos ou características, tais como:
I – lançamento a céu aberto, tanto em áreas urbanas
como rurais, ou em aterro não licenciado;
II- queima a céu aberto ou incineração em instalações e
equipamentos não licenciados;
III – lançamento em corpos d´água, praias, manguezais,
pântanos, terrenos baldios, poços ou cacimbas, cavidades
subterrâneas, redes de drenagem de águas pluviais,
esgotos, ou redes de eletricidade ou telefone, mesmo
que abandonadas, ou em áreas sujeitas à inundação
(CONAMA, 2008).

É possível observar que a proibição do descarte inadequado de


pilhas e baterias está claro na legislação brasileira, entretanto ainda
falta a adoção de medidas básicas para o cumprimento da lei, além da

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 51


conscientização da própria população. Os elementos-traço transfor-
mam o ambiente e ameaçam a vida do próprio ser humano. Nesse sen-
tido, a tabela 01 apresenta alguns elementos-traço que constituem o
lixo eletrônico, mais presentes no dia-a-dia da população e os danos
que estes podem causar a sua saúde.

Tabela 01: Elementos-traço constituintes do lixo eletrônico e os possíveis


danos causados por eles
Elemento-Traço Onde é encontrado Danos causados
Chumbo Computadores, celulares e tele- Danos aos sistemas nervoso e sanguíneo
visores
Mercúrio Computadores, monitores e Danos ao cérebro e ao fígado
televisores de tela plana, con-
servante de vacinas, cosméticos,
agrotóxicos
Cádmio Computadores, monitores antigos Envenenamento, danos aos ossos, rins e pul-
e baterias de notebooks mões
Arsênio Celulares Doenças de pele, danos ao sistema nervoso e
pode causar câncer no pulmão
Berílio Computadores e celulares Câncer no pulmão
Lítio Pilhas e baterias Afeta o sistema nervoso central, gerando visão
turva, ruídos nos ouvidos, vertigens, debilidade
e tremores
Níquel Pilhas e baterias Dermatites, distúrbios respiratórios, gengivites,
“sarna de níquel”, efeitos carcinogênicos,
cirrose e insuficiência renal
Zinco Pilhas e baterias Vômitos e diarreias
Cobalto Baterias de lítio “Sarna do cobalto”, conjuntivite, bronquite e
asma.

Fonte: UFSM e CETESB, 2012.

O descarte inadequado de constituintes do lixo eletrônico torna o


meio ambiente e o próprio homem, que dele faz parte, suscetíveis à con-
taminação pelos elementos-traço. Essa contaminação pode ser pontual,
difusa, aguda ou crônica. A história revela que com o avanço da tecnolo-
gia houve também o surgimento de novos “problemas” socioambientais.
Uma forma de contaminação trágica e com consequências dolorosas.

52 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Algumas tragédias químicas que marcaram a história
Doença de Minamata
No ano de 1956, em Minamata, Japão, ocorreu o maior caso já re-
gistrado de contaminação por mercúrio (Hg). Essa contaminação ocorreu
devido ao despejo indiscriminado de duzentas a seiscentas toneladas de
mercúrio metálico e metilmercúrio (MeHg) na baía de Minamata, du-
rante o período de 1930 a meados de 1950. O resultado dramático desse
crime ambiental foram os efeitos neurológicos irreversíveis que se ma-
nifestaram na população daquela cidade, devido ao consumo de peixes
contaminados da baía de Minamata (COLASSO, 2011; KUGLER, 2013).
O despejo indiscriminado de mercúrio naquelas águas contaminou
o plâncton, os moluscos, peixes, gatos, cachorros, as aves e os humanos.
O mercúrio é um elemento lipofílico, bioacumulativo e que possui a ca-
pacidade de biomagnificar-se ao longo dos níveis tróficos. Com essas
características foi possível que esse elemento-traço atingisse toda a
cadeia alimentar daquela cidade, incluindo os moradores da comuni-
dade que apresentaram os sintomas de intoxicação por mercúrio: con-
vulsões, febre alta, tremores, e diminuição do campo visual. (CETESB,
2012; KUGLER, 2013).
Segundo Colasso (2009) e CETESB (2012), o mercúrio atravessa
facilmente a barreira placentária e hematoencefálica. Dessa forma ele
atingiu os fetos das mulheres da cidade de Minamata, contaminadas
com MeHg. Estas crianças apresentaram anormalidades no desenvol-
vimento e paralisia cerebral.
A origem de toda essa tragédia foi o lançamento de mercúrio na
baía de Minamata, por uma fábrica que produzia plásticos. Por que não
evitaram o despejo do mercúrio no ambiente, recolhendo-o? Descaso?
Falta de conhecimento dos prováveis problemas que poderiam ocor-
rer? O fato é que a tragédia aconteceu e ainda vive entre os japoneses.
A fim de prevenir que possíveis contaminações de origem indus-
trial aconteçam no Brasil, o artigo primeiro do Decreto-lei n.° 1.413/75
expõe que “As indústrias instaladas ou a se instalarem em território
nacional são obrigadas a promover as medidas necessárias a prevenir
ou corrigir os inconvenientes e prejuízos da poluição e da contamina-
ção do meio ambiente” (BRASIL, 1975).
Que se faça cumprir a lei. Cabe ao ser humano evitar que novas
tragédias aconteçam através da adoção de medidas preventivas.

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 53


Separando o joio do trigo
A aplicação de um fungicida à base de mercúrio em sementes de
trigo ocasionou uma tragédia no Iraque, na década de 1970. Este fato
protagonizou um dos maiores acidentes de contaminação por mercúrio
naquele país, tendo em vista que a principal fonte de intoxicação por
este elemento químico foi o pão (KUGLER, 2013).
Mais uma vez, pessoas foram alvo dos efeitos toxicológicos do
mercúrio. O motivo foi o uso errôneo deste elemento químico no trata-
mento de sementes de trigo. Essa tragédia não foi suficiente para pre-
venir possíveis desastres, pois atualmente o uso de agroquímicos com
metais pesados na agricultura tem sido comum. Soma-se ainda o uso de
xenobióticos como base de agroquímicos.
Rocha et al. , (2009) relatam que atualmente é difícil imaginar a não
-utilização de pesticidas/herbicidas na agricultura. O controle químico
pode ser o mais eficaz a curto prazo, mas é o mais perigoso: vários estudos
demonstram seus efeitos nocivos ao ambiente (RAMALHO et al. , 2000;
GIBBONS et al. , 2015). Separar o joio do trigo não é fácil, mas é possível.
Existem formas alternativas de tratar sementes sem efeito residual, con-
trolar pragas e ervas daninhas (EMBRAPA, 2006; DALZOTO; UHRY, 2009;
MENTEN et al. , 2010). Aí está o desenvolvimento ambiental sustentável.

Dicloro-difenil-tricloroetano: um dos inseticidas mais letais


O livro Primavera Silenciosa apresenta a história de pássaros que
não conseguiam voar, abelhas que não polinizavam flores, mortandade
de peixes, além de mortes súbitas entre adultos e crianças no norte da
América. Carson (2010) explica o motivo: o uso do inseticida DDT nas
plantações.
O DDT é um composto orgânico, formado por hidrocarbonetos clo-
rados, que faz parte da lista de poluentes orgânicos persistentes (POPs)
(CARSON, 2010; CETESB, 2012). Após ter sido muito utilizado em plan-
tações e no combate à malária, descobriu-se seu potencial para atraves-
sar a placenta, ser excretado pelo leite materno, bioacumular nas ca-
deias alimentares, além de ser cancerígeno. Por essas características, o
uso do DDT foi banido.
Os danos à saúde dos ecossistemas e, consequentemente, da popu-
lação onde esta substância foi amplamente utilizada, foram detalhada-
mente retratados por Carson, mas os efeitos do uso do DDT também che-
garam ao Brasil, conforme relatado por Tauil (1985). Além dos mosquitos

54 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


que com o tempo adquiriram resistência, os agentes da Superintendên-
cia de Combate à Malária (SUCAM), hoje denominada Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA) foram e são os que mais sentiram os efeitos do DDT.
Os agentes da antiga SUCAM desenvolveram um trabalho muito
importante do ponto de vista de saúde pública, mas enquanto trabalha-
vam estavam expostos diretamente ao DDT. Hoje, investigações clínicas
apontam que seu estado de saúde debilitado é consequência de intoxica-
ção com DDT. Segundo Muniz (2015), os ex-agentes da SUCAM estão “na
fila da morte”.

Agroquímicos, agrotóxicos ou defensivos agrícolas?


Atualmente são várias as denominações que existem para os inseti-
cidas, os herbicidas e os fungicidas. Os biólogos podem preferir o termo
agrotóxico, os engenheiros agrônomos podem preferir utilizar defensi-
vos agrícolas. Seja qual for a denominação escolhida, a verdade é que o
nome não esconde o mal que tais produtos químicos podem causar à saú-
de do meio ambiente e à saúde do homem. Sendo assim, deste ponto em
diante será adotado o uso do termo agrotóxico.
Segundo o artigo primeiro, inciso IV do decreto n.º 4.074/02, agro-
tóxicos e afins são:
Produtos e agentes de processos físicos, químicos
ou biológicos, destinados ao uso nos setores de
produção, no armazenamento e beneficiamento
de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção
de florestas, nativas ou plantadas, e de outros
ecossistemas e de ambientes urbanos, hídricos e
industriais, cuja finalidade seja alterar a composição
da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação
danosa de seres vivos considerados nocivos, bem
como as substâncias e produtos empregados como
desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores
de crescimento (BRASIL, 2002).

A repetição dos mesmos erros do passado pode ser observada atual-


mente, pois o uso de inseticidas, herbicidas e fungicidas continua. O cres-
cimento exponencial da população requer a modernização das práticas
agrícolas e o uso de produtos químicos. É clara a impossibilidade de pro-
duzir em grande escala sem utilizar o controle químico, mas... Por que
não combiná-lo com outras formas de controle? Controle físico e biológi-
co, por exemplo, (BEGON et al. , 2007).

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 55


Segundo Carson (2010), a ameaça química recai sobre a própria
plantação “Alguns inseticidas afetam plantas sensíveis como o feijão,
o trigo, a cevada ou o centeio, retardando o desenvolvimento da raiz
ou reduzindo o crescimento das mudas”. Mas a ameaça também pode
recair sobre populações, a exemplo da Desordem do Colapso da Colô-
nia (ROCHA e ALENCAR, 2012) e câncer (INCA, 2006).
A fim de minimizar os danos que podem ser causados pelos agro-
tóxicos ao ambiente, cabe ao poder público o papel de fiscalização,
conforme está disposto no artigo setenta do decreto n.º 4.074/02:
Serão objeto de inspeção e fiscalização os agrotóxicos,
seus componentes e afins, sua produção, manipulação,
importação, exportação transporte, armazenamento,
comercialização, utilização, rotulagem e a destinação
final de suas sobras, resíduos e embalagens (BRASIL,
2002).

Cabe ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e


ao Ministério da Saúde monitorar os resíduos de agrotóxicos e afins
em produtos de origem vegetal (Art. 3.º, decreto n. º 4.074/02), entre-
tanto o agricultor também tem uma importante função no combate a
contaminação humana por agrotóxicos, por meio de medidas simples,
tais como usar a quantidade recomendada e respeitar o período de la-
tência do produto químico.
Uma questão importante acerca do cumprimento das leis é o pe-
queno número de agentes ambientais, o que inviabiliza a fiscaliza-
ção. Quando há a abertura de concursos públicos para os órgãos de
fiscalização ambientais, observa-se um pequeno número de vagas e,
muitas vezes, essas vagas não contemplam apenas profissionais da
área ambiental, mas de todas as áreas. Somam-se a isso os diversos
mecanismos de “fuga” do cumprimento de leis adotados por muitos
extrativistas, mineradoras e agricultores, cujas atividades são de-
senvolvidas fora da lei. O desconhecimento da lei também dificulta
sua implementação.
O uso de pesticidas oferece risco à biodiversidade e aos ecossis-
temas terrestres e aquáticos. Neonicotinoide e fipronil são exemplos
de inseticidas que são absorvidos pelas plantas através da aplicação
direta no solo ou no tratamento de sementes. Ambos apresentam efei-
tos negativos sobre o crescimento e a reprodução de insetos, anfíbios,
peixes, répteis, pássaros e mamíferos, podendo levá-los a morte (GIB-
BONS et al. , 2015).

56 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Neonicotinoide e fipronil estão associados ao fenômeno da De-
sordem do Colapso da Colônia (DCC). Observado inicialmente pelos
apicultores europeus, este fenômeno é decorrente da perda rápida da
população adulta de uma colmeia, após a aplicação desses inseticidas
(ROCHA; ALENCAR, 2012). Há indícios de que os agrotóxicos estejam
entre os três principais causadores do desaparecimento de abelhas no
Brasil (NICOLETTI, 2013).
Sabe-se que, além de neonocotinoides e fipronis, existe uma gama
de agrotóxicos sendo utilizados indiscriminadamente pelo mundo. A
fim de minimizar os danos que podem ser causados por eles devido à
ocorrência de interações e modificações invisíveis entre eles (CARSON,
2010), no artigo setenta e um do decreto n.° 4.074/12, a lei é clara:
A fiscalização dos agrotóxicos, seus componentes e
afins é da competência:
I - dos órgãos federais responsáveis pelos setores da
agricultura, saúde e meio ambiente, dentro de suas
respectivas áreas de competência, quando se tratar de:
a) estabelecimentos de produção, importação e
exportação;
b) produção, importação e exportação;
c) coleta de amostras para análise de controle ou de
fiscalização;
d) resíduos de agrotóxicos e afins em produtos agrícolas
e de seus subprodutos; e
e) quando se tratar do uso de agrotóxicos e afins em
tratamentos quarentenários e fitossanitários realizados
no trânsito internacional de vegetais e suas partes;
II - dos órgãos estaduais e do Distrito Federal
responsáveis pelos setores de agricultura, saúde e
meio ambiente, dentro de sua área de competência,
ressalvadas competências específicas dos órgãos
federais desses mesmos setores, quando se tratar de:
a) uso e consumo dos produtos agrotóxicos, seus
componentes e afins na sua jurisdição;
b) estabelecimentos de comercialização, de
armazenamento e de prestação de serviços;
c) devolução e destinação adequada de embalagens de
agrotóxicos, seus componentes e afins, de produtos

Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 57


apreendidos pela ação fiscalizadora e daqueles
impróprios para utilização ou em desuso;
d) transporte de agrotóxicos, seus componentes e afins,
por qualquer via ou meio, em sua jurisdição;
e) coleta de amostras para análise de fiscalização;
f) armazenamento, transporte, reciclagem, reutilização
e inutilização de embalagens vazias e dos produtos
apreendidos pela ação fiscalizadora e daqueles
impróprios para utilização ou em desuso; e
g) resíduos de agrotóxicos e afins em produtos agrícolas
e seus subprodutos”
(BRASIL, 2012).

Cabe ao poder público, aos produtores e a população em geral fa-


zer com que a lei seja cumprida e adotar outras medidas que venham
prevenir intoxicações semelhantes às ocorridas em Minamata, no Ira-
que e no norte dos Estados Unidos.

Considerações Finais
Uma crise socioambiental vem se estabelecendo no mundo: polui-
ção de solos, rios e da atmosfera, contaminação por elementos-traço
e agrotóxicos, tragédias, doenças e mortalidade tem sido amplamente
divulgadas. A História revela que problemas atuais são o reflexo de
problemas que já ocorreram no passado.
O consumismo tem colaborado para o desperdício e para a degra-
dação do meio ambiente. O lixo eletrônico é um exemplo de fonte de
contaminação que, associado ao modo de produção agrícola, gera um
passivo ambiental que talvez jamais seja remediado.
O Brasil é referência na elaboração de leis que visam proteger o
meio ambiente, mas o cumprimento dessas leis está limitado ao pe-
queno número de agentes ambientais, o que possibilita mecanismos
de descumprimento das leis e até o próprio conhecimento das leis que
não são divulgadas na medida em que deveriam sê-lo.

58 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


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Meio ambiente e sociedade: Transformação e história 61


CAPÍTULO IV

Trabalho, consumo e preservação


ambiental: Discurso capitalista para
uma prática inerente ao sistema
Marcos Antonio Oliveira Rodrigues
William Kennedy do Amaral Souza

Introdução
Na sociedade regida pelo capital, o movimento real das classes e
de seus antagonismos é transformado em algo invisível. O trabalhador
e o capitalista são vistos como agentes dos imperativos do consumo. Os
planificadores desse modelo de sociedade querem nos fazer crer que as
classes não são portadoras de projetos, são apenas compradores ávidos
da última moda transformada em necessidade. A propósito da questão
em causa, Dias (1998), em um artigo muito esclarecedor, destaca que:
Para os seus teóricos e práticos o capitalismo apareceu
sempre como o fim da história, plena realização da
espécie humana, negação da existência de classes
antagônicas. Para eles os antagonismos são coisas do
passado. Capital e trabalho são parceiros ativos (p. 45).

Esse é um processo antigo, iniciado quando o artesanato foi substi-


tuído pela maquinaria. A produção em massa exige consumo desenfrea-
do, as coisas deixam de ser usadas para ser consumidas. Ou, como expli-
citou Hannah Arendt (2005, p. 137): “Consiste em tratar os objetos de uso
como se fossem bens de consumo, de sorte que uma cadeira ou uma mesa
seria consumida tão rapidamente como um vestido, e um vestido tão ra-
pidamente como um alimento”.
Com o advento da sociedade capitalista e a consequente divisão de
trabalho, o homem perdeu a relação com o produto final de seu traba-
lho; aos poucos foi se tornando uma máquina que executa apenas uma
atividade no processo produtivo, e que lhe impõe um cerco do qual não
consegue sair, como exemplificaram Marx e Engels. A propósito veja o
que disseram esses autores sobre o processo em causa:

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 63


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
Com efeito, a partir do instante em que o trabalho
começa a ser dividido, cada um tem uma esfera
de atividade que ele não pode fugir, ele é caçador,
pescador, pastor ou crítico, e deverá permanecer assim
se não quiser perder seus meios de sobrevivência e
permanecer na esfera que lhe é dedicada (MARX &
ENGELS, 2001, p. 28).

Justamente com a estruturação da propriedade privada dos meios


de produção e com a consequente divisão do trabalho dela decorrente,
produz-se uma falta de sentido na relação do trabalhador com o produto
final do seu trabalho, ou seja, produz-se um “estranhamento”. Para Luká-
cs, o “estranhamento” ocorre:
[...] quando as formas objetificadas da sociedade
adquirem ou assumem funções que põem a essência do
homem em contraposição à sua existência, submetem
a essência humana ao ser social, a deformam ou
dilaceram é que se produz a relação objetivamente social
do estranhamento (LUKÁCS, 1974, p. 26).

Assim, o trabalho se converte em meio de subsistência. A força de


trabalho torna-se, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser
a produção de novas mercadorias. O que deveria ser a forma humana de
realização do indivíduo reduz-se à única possibilidade de subsistência
do despossuído. Esta é a radical constatação de Marx: a precariedade e
a perversidade do trabalho na sociedade capitalista. Desfigurado, o tra-
balho torna-se meio de subsistência e não “primeira necessidade” de rea-
lização humana. Assim, “o trabalho não produz apenas mercadorias; pro-
duz-se também a si mesmo e ao trabalhador como mercadorias” (MARX,
2002, p. 111).
Desse modo, a conversão da força de trabalho em mercadoria acaba
por adequar e submeter à energia humana a diferentes formas de con-
trole e finalidades de produção. O controle é necessário porque existe
uma “defasagem do capitalismo”, o processo de produção está fora de sin-
tonia com a posse dos meios de produção, “o trabalho já se encontra cole-
tivizado, mas a posse dos meios de produção jaz individualizada” (CODO,
1988, p. 93).
Segundo Marx, todo esse processo-alienação do trabalho se dá em
razão dos produtores não serem os donos dos meios de produção. Conse-
quentemente, a sua produção não lhes pertence, o que gera insatisfação
tamanha ao próprio trabalhador. Isso ocorre tanto nas indústrias, em que

64 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


o trabalhador tem em mãos o produto final, seja ele um alfinete, uma mesa,
um carro, ou outros, e não pode possuí-lo, quanto no setor de serviços, no
qual o trabalhador vê as metas definidas pela empresa serem alcançadas
sem poder usufruir dos benefícios delas decorrentes. Tal situação reforça
ainda mais as observações de Marx quando diz que o trabalhador:
[...] não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo,
não se sente bem, mas, infeliz, não desenvolve
livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-
se fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o
trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto
no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho
não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não
constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas
um meio de satisfazer outras necessidades. O trabalho
externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um
trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio (MARX,
2002, p. 114).

Nesse contexto, o indivíduo muda o que tem de melhor: a sua essên-


cia e a sua subjetividade. O estranhamento, como expressão de uma re-
lação social fundada na propriedade privada e no dinheiro e, consequen-
temente, na separação entre os produtores e os meios de produção, é a
abstração da natureza pessoal do ser social, do indivíduo desumanizado.
O estranhamento traz a ideia de “barreiras sociais” (ANTUNES, 1999, p.
125) que obstaculizam o desenvolvimento da personalidade humana.
Tem-se, então, ao contrário da expansão do indivíduo e das faculdades
humanas, a redução ao que lhe é instintivo e animal. Como explanou
Marx: “[...] o homem só se sente livremente ativo nas suas funções ani-
mais — comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno
etc., - enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal” (MARX,
2002, pp. 114-115).
Assim, o trabalho torna-se responsável pela fetichização e coisifi-
cação dos homens e mulheres que vendem a sua força de trabalho. Por
incrível que pareça é neste ponto reside a chave do sucesso no mundo
capitalista. A vontade de se embelezar e de comprar itens que vá torná-lo
belo faz com que o indivíduo torne-se cada vez mais escravo de um siste-
ma que o oprime.
Esta implosão de massificação é efeito de um trabalho muito bem
estruturado pelo que ficou conhecido por indústria cultural, termo
cunhado e popularizado pelos integrantes da Escola de Frankfurt. Como
afirma Adorno:

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 65


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
A indústria cultural pode se vangloriar de haver atuado
com energia e de ter erigido em princípio a transposição
— tantas vezes grosseira — da arte para a esfera do
consumo, de haver liberado a diversão da sua ingenuidade
mais desagradável e de haver melhorado a confecção das
mercadorias. Quanto mais total ela se tornou, quanto
mais impiedosamente obriga cada marginal à falência
ou a entrar na corporação, tanto mais se fez astuciosa e
respeitável. (ADORNO, 2002, p.17).

Para o filósofo húngaro Karel Kosik, o problema atinge os indiví-


duos em sua essência:
O preocupar-se é a práxis no seu aspecto fenomênico
alienado, que já agora não alude à gênese do mundo
humano (o mundo dos homens, da cultura humana e
da humanização da natureza), mas exprime à práxis
das operações diárias, em que o homem é empregado
no sistema das coisas já prontas, isto é, dos aparelhos,
sistema em que o próprio homem se torna objeto de
manipulação. A práxis da manipulação (faina, labuta)
transforma os homens em manipuladores e objetos de
manipulação (KOSIK, 2011, p. 74)

Todo este processo de alienação do trabalho que culmina com uma


sociedade de consumo extremado vai afetar o planeta e seus habitantes
de maneira radical.
O crescimento exponencial da poluição do ar nas grandes cidades,
da água potável e do meio ambiente em geral; o aquecimento do Planeta,
o começo da fusão das calotas polares, a multiplicação das catástrofes
“naturais”; o início da destruição da camada de ozônio; a destruição, numa
velocidade cada vez maior, das florestas tropicais e a rápida redução da
biodiversidade pela extinção de milhares de espécies; o esgotamento
dos solos, a desertificação; a acumulação de resíduos, nomeadamente
nucleares, impossíveis de controlar; a multiplicação dos acidentes nu-
cleares e a ameaça de um novo Chernobyl; a poluição alimentar, as ma-
nipulações genéticas, a “vaca louca”, o gado com hormônios. É evidente
que a corrida louca atrás do lucro, a lógica produtivista e mercantil da
civilização capitalista/industrial leva-nos a um desastre ecológico de
proporções incalculáveis.
Como reagir frente a esse perigo? O socialismo e a ecologia — ou pelo
menos algumas das suas correntes — têm objetivo comuns, os quais im-
plicam questionar a autonomização da economia, do reino da quantifica-

66 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


ção, da produção como um objetivo em si mesmo, da ditadura do dinheiro,
da redução do universo social ao cálculo das margens da rentabilidade e
às necessidades da acumulação do capital.
Ambos pedem valores qualitativos: o valor de uso, a satisfação das
necessidades, a igualdade social para uns, a preservação da natureza, o
equilíbrio ecológico para outros. Ambos concebem a economia como “in-
serida” no meio ambiente: social para uns, natural para outros.
Dito isso, divergências fundamentais têm separado até aqui os “ver-
melhos” dos “verdes”, os marxistas dos ecologistas. Os ecologistas acusam
Marx e Engels de produtivismo. É essa acusação justificada? Sim e não.
Na realidade, encontramos nos escritos de Marx e Engels a susten-
tação para ambas as interpretações. A questão ecológica é, a meu ver, o
grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no início do
século XXI. Tal questão exige dos marxistas uma revisão crítica profun-
da da sua concepção tradicional de “forças produtivas”, bem como uma
ruptura radical com a ideologia do progresso linear e com o paradigma
tecnológico e econômico da civilização industrial moderna. Walter Ben-
jamin foi um dos primeiros marxistas do século XX a colocar esse tipo de
questão: já em 1928, no seu livro Sentido Único, ele denunciava a ideia de
dominação da natureza como um “ensino imperialista” e propunha uma
nova concepção da técnica como “domínio da relação entre a natureza e
a humanidade”.
Ainda hoje, o marxismo está longe de ter preenchido o seu atraso
nessa área. No entanto, algumas reflexões começam a dedicar-se a essa
tarefa. Por exemplo, é preciso acrescentar à primeira contradição do
capitalismo, examinada por Marx, a que há entre as forças e as relações
de produção, uma segunda contradição, a que há entre as forças produ-
tivas e as condições de produção: os trabalhadores, o espaço urbano, a
natureza. Pela sua dinâmica expansionista, o capital põe em perigo ou
destrói as suas próprias condições, a começar pelo meio ambiente na-
tural — uma possibilidade que Marx não tinha levado suficientemente
em consideração.
Quer seja marxista ou não, o movimento operário tradicional na
Europa — sindicatos, partidos socialdemocratas e comunistas — perma-
nece ainda profundamente marcado pela ideologia do “progresso” e pelo
produtivismo, chegando até mesmo, em alguns casos, a defender, sem
se questionar muito, a energia nuclear ou a indústria automobilística. É
verdade que um princípio de sensibilização ecologista está em vias de de-
senvolvimento, notadamente nos sindicatos e partidos de esquerda nos
países nórdicos, na Espanha, na Alemanha, etc.

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 67


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
Crise de civilização e uma possível alternativa
A grande contribuição da ecologia foi — e ainda é — fazer-nos to-
mar consciência dos perigos que ameaçam o Planeta em consequência
do atual modo de produção e consumo. O crescimento exponencial das
agressões ao meio ambiente, a ameaça crescente de uma ruptura do
equilíbrio ecológico configura um cenário-catástrofe que põe em ques-
tão a própria sobrevivência da vida humana. Confrontamo-nos com uma
crise de civilização que exige mudanças radicais.
O problema é que as propostas feitas pelas correntes dominantes da
ecologia política europeia são muito insuficientes ou levam a becos sem
saída. A sua principal fraqueza é ignorar a conexão necessária entre o
produtivismo e o capitalismo, o que leva à ilusão do “capitalismo limpo”
ou de reformas capazes de o controlar os “excessos” (como, por exemplo,
as eco taxas). Ou então, tomando por pretexto a imitação, pelas econo-
mias burocráticas do comando, do produtivismo ocidental, tais correntes
põem capitalismo e “socialismo” de costas grudadas, como variantes do
mesmo modelo — um argumento que perdeu muito do seu interesse após
o desabamento do pretenso “socialismo real”.
Os ecologistas enganam-se ao pensar que podem fazer a economia
da crítica marxiana do capitalismo: uma ecologia que não se dá conta da
relação entre “produtivismo” e lógica do lucro está votada ao fracasso —
ou pior, à recuperação pelo sistema. Os exemplos abundam... A ausência
de uma postura anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos
verdes europeus — na França, Alemanha, Itália, Bélgica — a tornarem-se
simples partidários “eco reformistas” da gestão social-liberal do capita-
lismo pelos governos de centro-esquerda.
Considerando os trabalhadores como irremediavelmente vota-
dos ao produtivismo, alguns ecologistas não tomam uma posição sobre
o movimento operário, e inscreveram na sua bandeira: “Nem esquerda,
nem direita”. Alguns ex-marxistas convertidos à ecologia dizem apres-
sadamente “adeus à classe operária” (ANDRÉ GORZ), ao passo que outros
(ALAIN LIPIETZ) insistem que é preciso deixar o “vermelho” — isto é, o
marxismo ou o socialismo — para aderir ao “verde”, novo paradigma que
traria uma resposta para todos os problemas econômicos e sociais.
Talvez um misto disso tudo seja a solução. Este misto atende pelo
nome de eco socialismo. Trata-se de uma corrente de pensamento e de
ação ecológica que faz suas as aquisições fundamentais do marxismo
— ao mesmo tempo em que o livra das suas escórias produtivistas. Esta
corrente tem no sociólogo Michel Lowi sua maior expressão. Para os ecos

68 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


socialistas a lógica do mercado e do lucro — assim como a do autoritaris-
mo burocrático de ferro e do “socialismo real” — são incompatíveis com as
exigências de preservação do meio ambiente natural.
Essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas a
maioria dos seus representantes partilha alguns temas comuns. Em rup-
tura com a ideologia produtivista do progresso — na sua forma capitalis-
ta e/ou burocrática — e oposta à expansão até ao infinito de um modo de
produção e de consumo destruidor da natureza, tal corrente representa
uma tentativa original de articular as ideias fundamentais do socialismo
marxista com as aquisições da crítica ecológica.
Talvez a definição de eco socialista seja para as teorias e os movi-
mentos que aspiram a subordinar o valor de troca ao valor de uso, orga-
nizando a produção em função das necessidades sociais e das exigências
da proteção do meio ambiente. O seu objetivo, um socialismo ecológico,
seria uma sociedade ecologicamente racional fundada no controle de-
mocrático, na igualdade social e na predominância do valor de uso.
O raciocínio eco socialista repousa em dois argumentos essenciais:

1) O modo de produção e de consumo atual dos


países capitalistas avançados, fundado numa lógica
de acumulação ilimitada (do capital, dos lucros, das
mercadorias), do esgotamento dos recursos, do consumo
ostentatório e da destruição acelerada do meio ambiente,
não pode, de modo algum, ser expandido para o conjunto
do Planeta, sob pena de uma crise ecológica ainda maior.

2) Seja como for, a continuação do “progresso” capitalista


e a expansão da civilização fundada na economia de
mercado — mesmo sob essa forma brutalmente desigual
— ameaça diretamente, a médio prazo (qualquer
previsão seria arriscada), a própria sobrevivência da
espécie humana. A preservação do meio ambiente
natural é, portanto, um imperativo humanista.

A racionalidade limitada do mercado capitalista, com o seu cálcu-


lo imediatista de perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com
uma racionalidade ecológica, que leve em conta a longa temporalidade
dos ciclos naturais. Não se trata de opor os “maus” capitalistas “ecocidas”
aos “bons” capitalistas verdes: é o próprio sistema, fundado na impiedo-
sa competição, nas exigências da rentabilidade, na corrida atrás do lucro
rápido, que é o destruidor dos equilíbrios naturais. O pretenso capitalis-
mo verde não passa de uma manobra publicitária, de uma etiqueta que

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 69


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
visa vender uma mercadoria, ou, na melhor das hipóteses, de uma inicia-
tiva local equivalente a uma gota de água sobre o solo árido do deserto
capitalista.
As reformas parciais são de todo insuficientes: é preciso substituir
a micro racionalidade do lucro pela macro racionalidade social e ecológi-
ca, o que exige uma verdadeira mudança de civilização. Isso é impossível
sem uma profunda reorientação tecnológica, que vise à substituição das
atuais fontes de energia por outras, não poluentes, renováveis, tais como
a energia eólica ou solar. Portanto, a primeira questão que se coloca é a
do controle dos meios de produção, e, sobretudo, das decisões de investi-
mento e de mutação tecnológica, que devem ser arrancadas dos bancos e
das empresas capitalistas para se tornar um bem comum da sociedade.
É necessária uma reorganização de conjunto do modo de produção
e de consumo, fundada em critérios exteriores ao mercado capitalista:
as necessidades reais da população (não necessariamente “pagáveis”) e
a preservação do meio ambiente. Por outras palavras, uma economia de
transição para o socialismo, porque fundada na escolha democrática das
prioridades e dos investimentos pela própria população.
Essa transição levaria não apenas a um novo modo de produção e
a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de
vida alternativo, a uma civilização nova, eco socialista, para além do rei-
no do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela
publicidade e da produção até ao infinito de mercadorias nocivas ao meio
ambiente.
Utopia? Sim, mas a utopia é indispensável para a mudança social com
a condição de que seja fundada nas contradições da realidade e nos movi-
mentos sociais reais. É o caso do eco socialismo, que propõe uma estratégia
de aliança entre os “vermelhos” e os “verdes” — não no sentido político es-
treito dos partidos socialdemocratas e dos partidos verdes, mas no sentido
amplo, ou seja, entre o movimento operário e o movimento ecológico — e
de solidariedade para com os oprimidos e explorados do Sul.
A ecologia social tornou-se uma força social e política presente na
maior parte dos países europeus, bem como, em certa medida, nos EUA.
Porém, nada seria mais fácil do que considerar que as questões ecológi-
cas só dizem respeito aos países do Norte — um luxo das sociedades ricas.
Cada vez mais se desenvolvem nos países do capitalismo periférico — o
“Sul” — movimentos sociais de dimensão ecológica.
Vemos, também, surgir nos países do Sul um movimento de mobili-
zações populares em defesa da agricultura campestre e do acesso comum
aos recursos naturais ameaçados de destruição pela expansão agressiva

70 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


do mercado (ou do Estado), bem como lutas contra a degradação do am-
biente provocada pela troca desigual, pela industrialização dependente,
pelas manipulações genéticas e pelo desenvolvimento do capitalismo (o
“agro-business”) nos campos. Em geral, tais movimentos não se definem
como ecológicos, mas nem por isso o seu combate deixa de ter uma di-
mensão ecológica determinante.
Inúmeras manifestações da “ecologia dos pobres” apareceram ao
longo destes anos e podemos citar como exemplo, pelo seu alcance ao
mesmo tempo social e ecológico, local e planetário, o combate de Chico
Mendes e a Coligação dos Povos da Floresta em defesa da Amazônia bra-
sileira, contra a obra destrutiva dos grandes proprietários fundiários e
do agronegócio multinacional.
O famoso marxista italiano Antonio Gramsci dizia que o revolucio-
nário socialista deve combinar o pessimismo da razão com o otimismo da
vontade. Precisamos destes dois preceitos para discutir as alternativas
de desenvolvimento para superar o modelo produtivista-consumista.
O problema do aquecimento global, essa acumulação de gases na
atmosfera, vem da Revolução Industrial. Começou em meados do sécu-
lo XVIII, quando esses gases foram se acumulando, e se intensificaram
enormemente nas últimas décadas, as décadas da globalização capitalis-
ta neoliberal. Portanto, o culpado dessa história não é o ser humano em
geral, mas um modelo específico de desenvolvimento econômico, indus-
trial, moderno, capitalista, globalizado, neoliberal: esse é o responsável
pela atual crise ecológica e pela ameaça que pesa sobre a humanidade.
Aqui está o pessimismo da razão.
Quais são as soluções que propõem os representantes da ordem es-
tabelecida? Há uma proposta que é a seguinte: as energias fósseis são
as responsáveis pelo problema, por isso, é imperativo substituí-las por
formas de energia limpas, que não produzem gases, e são seguras, como
a energia nuclear. Está aí uma solução técnica e fácil para o problema:
construir usinas nucleares. Isso foi feito em grande escala nas últimas
décadas. Em 1986, houve um incidente desagradável, em Chernobyl, na
União Soviética. Cientistas calculam que as vítimas de Chernobyl que
foram morrendo no curso dos anos, resultado das irradiações, chegam
a oitocentos mil mortos — mais do que todos os mortos de Hiroshima e
Nagasaki, por decorrência da bomba atômica. O argumento dos respon-
sáveis pela energia nuclear era de que isso aconteceu na União Soviética,
um país totalitário, burocrático, com tecnologia e gestão atrasadas; no
ocidente, com empresas privadas, isso não aconteceria. Esse discurso foi
repetido muitas vezes até que ocorreu o acidente de Fukushima, no Ja-

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 71


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
pão, em 2011. A empresa responsável pela usina, Tokyo Electric Power
Company (TEPCO), é a maior empresa privada de eletricidade do mundo.
É a mais esplêndida manifestação do capitalismo privado no terreno da
energia nuclear. Desse modo, fica claro que essa não é uma alternativa
aos combustíveis fósseis, temos que procurar outras.
Obviamente, há tentativas mais sérias de solução, como a ideia de
que precisamos desenvolver energias alternativas: hidrelétrica, eólica e
solar. Com exceção da hidrelétrica, que já tem um desenvolvimento im-
portante, em países como o Brasil, as outras são pouco desenvolvidas. E
por uma razão bem simples: são menos rentáveis do que o petróleo e o
carvão. Por isso, não interessa às empresas e aos Estados, com algumas
exceções, investir maciçamente nessas energias. Em alguns países, che-
ga a 10% o índice de energia produzida por fontes alternativas, mas o
resto continua com o carvão e o petróleo. Seria necessária uma mudan-
ça, em grande escala, com vistas a acabar com os combustíveis fósseis e
desenvolver energias alternativas. Por enquanto, nenhum governo está
fazendo isso, embora os cientistas já tenham dado o recado: se não mu-
darmos drasticamente o padrão de matriz energética, nos próximos dez
ou vinte anos a situação fugirá do controle. É uma questão de rentabili-
dade — que é o que conta — e de competitividade.
Outra coisa que se deve dizer é que mesmo se as energias fósseis
fossem substituídas pelas energias renováveis, estas também têm seus
probleminhas, como os impactos socioambientais da energia hidrelétri-
ca. Portanto, é uma ilusão achar que é só uma questão técnica, de mudar a
matriz energética, embora isso seja fundamental. De qualquer maneira,
teremos de reduzir significativamente o consumo de energia e, conse-
quentemente, a produção econômica e o consumo. O desenvolvimento
alternativo ao produtivismo e ao consumismo implica uma redução da
produção e do consumo, a começar pelos países capitalistas avançados,
evidentemente, que são os principais responsáveis e os maiores produti-
vistas e consumistas.
Segundo Löwy (2014), aqui vem a proposta do eco socialismo que é
uma crítica, por um lado, do socialismo não ecológico, que foi a experiên-
cia fracassada soviética e de outros países que, do ponto de vista ecoló-
gico, não representou nenhuma alternativa ao modelo ocidental. Pelo
contrário, tratou de copiar o modelo produtivo do capitalismo ocidental.
Eco socialismo é uma crítica desse socialismo — ou pseudossocialismo —
não ecológico, soviético, etc.
Por outro lado, é uma crítica à ecologia não socialista, que acha que
podemos ter um modelo alternativo de desenvolvimento nos quadros

72 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


do capitalismo, do mercado capitalista. Do ponto de vista eco socialis-
ta, achamos que isso é uma ilusão, pela própria dinâmica de expansão
necessária ao capitalismo, de crescimento, que leva necessariamente a
uma colisão com a natureza e com os equilíbrios ecológicos.
É uma crítica também, ou autocrítica, a certas concepções
tradicionais na esquerda em geral, e no marxismo em particular, sobre
o que é uma transformação socialista. Há uma visão clássica de que é
preciso mudar as relações de produção — propriedade coletiva, em vez da
privada — para permitir que as forças produtivas se desenvolvam, já que
as relações de produção são um obstáculo ao livre desenvolvimento das
forças produtivas. Mas não passa por aí. Primeiro, porque não é possível
o desenvolvimento ilimitado das forças produtivas. E, em segundo lugar,
porque pensar em uma transformação e em um modelo alternativo de
desenvolvimento implica questionar não só as formas de propriedade
e as relações de produção, mas as próprias forças produtivas, o próprio
aparelho produtivo. Aqui se estabelece o otimismo da vontade.

Considerações finais
Esse aparelho produtivo, criado pelo capitalismo ocidental, indus-
trial, moderno, é incompatível com a preservação do meio ambiente, por
sua matriz energética e por sua forma de funcionamento, que inclui o
agronegócio, o uso de pesticidas, entre toda uma série de características
que mostram que esse aparelho produtivo não serve. Temos que pensar
em uma profunda transformação, não só das relações de produção, mas
do aparelho produtivo.
Mas não é só isso: precisamos pensar em uma transformação do pa-
drão de consumo. É insustentável o padrão de consumo do capitalismo
moderno, mas há uma diferença enorme entre o consumo ostentatório
das elites dominantes e o consumo das classes populares: uns comem
feijão e milho e outros compram iates enormes, helicópteros, etc. Não é
a mesma coisa. Não é o que come milho que vai ter que comer menos mi-
lho. É o que compra palácios de luxo que deve reduzir drasticamente seu
consumo ostentatório.
Além disso, segundo Löwy (2014), existe no capitalismo algo que se
chama “obsolescência planificada dos objetos de consumo”. Dentro do ca-
pitalismo, os objetos de consumo já têm, em sua própria concepção, sua
obsolescência prevista para o mais rápido possível. Todo mundo sabe que
a geladeira de quarenta anos atrás durava quarenta anos, e as geladeiras
de agora duram três anos. Isso é necessário: para o capital vender mais

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 73


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
e mais geladeiras, produzir mais e mais, precisa ter uma duração muito
menor. É parte do padrão produtivista e consumista, e também precisa
ser modificado.
Precisamos, portanto, de mudanças nas formas de propriedade,
no aparelho produtivo, no padrão de consumo, no padrão de transporte.
Tudo isso deve configurar uma mudança bastante radical no padrão de
civilização. Na verdade, a proposta eco socialista, de um novo modelo de
desenvolvimento mais além do produtivismo e do consumismo, coloca
em questão o paradigma da civilização capitalista ocidental, industrial,
moderna. É uma proposta bastante profunda.
É uma proposta revolucionária, mas talvez a revolução tenha que
ser redefinida. Como bem nos explica Walter Benjamin, “nós, marxistas,
temos o hábito de dizer que as revoluções são a locomotiva da história.
Mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam
a humanidade puxando os freios de emergência para parar o trem. ” É
uma imagem bastante atual. Hoje em dia, somos todos passageiros de um
trem, que é a civilização capitalista, industrial, ocidental, moderna. Esse
trem está indo, com uma rapidez crescente, em direção ao abismo. Lá na
frente há um buraco que se chama aquecimento global ou crise ecológica.
Não se sabe a quantos anos de distância se encontra esse abismo, mas ele
está lá. Portanto, a questão é parar esse trem suicida e mudar de direção.
É o desafio colocado pela proposta eco socialista.

74 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e


Terra, 2002.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? 7. ed. São Paulo: Cortez, Univer-
sidade Estadual de Campinas, 2003.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2005.
BENJAMIN, Walter. Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por
Volta de 1900. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.
CODO, Wanderley. O que é Alienação. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
(Coleção Primeiros Passos)
DIAS, Edmundo Fernandes. Reestruturação produtiva: forma atual da
luta de classes. Revista Outubro. Campinas, SP, n. º 1, 1998. (Revista do
Instituto de Estudos Socialistas)
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
LÖWY, Michael. Razões e estratégias do Ecossocialismo. Disponível
em: : <http://www.outraspalavras.net> Acesso em: 30 nov. 2014.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
______.; ENGELS, Fríederich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Fontes,
2001.

Trabalho, consumo e preservação ambiental: 75


Discurso capitalista para uma prática inerente ao sistema
CAPÍTULO V

Entre os “imprescindíveis” e os
“redundantes” — olhares sobre as
relações de trabalho no Brasil
Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa

Introdução
A existência lhes foi negada, da mesma forma que um
espaço próprio no Lebenswelt (mundo da vida). Foram
desse modo destruídas — porém com uma destruição
criativa. “Eliminar”, afirmou admiravelmente Mary
Douglas, “não é um movimento negativo, mas um esforço
positivo para organizar o ambiente”.

Zygmunt Bauman / Vidas Desperdiçadas

Não tenho o hábito de escrever na primeira pessoa, fui orientada a


utilizar a terceira pessoa ou o infinitivo verbal, orientação que, desde as
primeiras experiências de pesquisa aceitei, por compreender que toda
escrita resulta de um trabalho conjunto, que parte de um diálogo com au-
tores, mediado por uma visão de mundo que comporta muito do lugar em
que estamos e das relações que estabelecemos.
Este texto é fruto de um conjunto de relações estabelecidas, espe-
cialmente após ter ingressado no Doutorado em História do Programa
de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT) e por escolhas um pouco minhas, mas, também de
uma gama de fatores que nos fogem ao controle durante a realização de
nossos projetos pessoais e profissionais. Também por isso, ingressei no
Grupo de Pesquisa em História, Terra e Trabalho (GPHTT), ligado ao Nú-
cleo de Pesquisa em História (NPH), coordenado pelo professor Vitale
Joanoni Neto.
Na ocasião em que ingressei no NPH, o foco do meu projeto de pes-
quisa, apresentado ao PPGHIS, era a produção discursiva na construção
do ideal de modernidade e progresso no contexto dos novos arranjos

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 77


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
produtivos e trabalhista do campo brasileiro, entretanto as vivências
no GPHTT permitiram-me que passasse a pensar mais o humano que os
processos produtivos. As leituras feitas no período em que estive liga-
da ao Projeto Ação Interinstitucional para a Qualificação e Reinserção
Profissional dos Trabalhadores Resgatados do Trabalho Escravo e/ou
Situação de Vulnerabilidade, parceria entre Ministério do Trabalho e
Emprego de Mato Grosso (SRTE (MT)), Ministério Público do Trabalho
através da Procuradoria Regional do Trabalho 23.ª Região (PRT (MT)) e
UFMT, representada pelo GPHTT e, posteriormente, quando participei
do “Projeto de Inclusão Produtiva para o uso de mão de obra de egres-
sos do trabalho análogo ao escravo, em atividades de construção civil,
a partir da experiência da Arena Pantanal em Cuiabá, MT”, juntamente
com o Professor Vitale Joanoni Neto, a Professora Luciene Aparecida
Castravechi e o Professor Adriano Knippelberg Moraes, me ajudaram
nesta mudança.
Larrosa (2013), ao refletir sobre a importância da leitura que resul-
ta em possibilidades de interpretação acerca de si e do mundo, em um
texto para pensar a formação humana, dialoga com a produção mais pes-
soal de Rousseau. O texto “Confissões”, que se propõe ser um relato das
experiências pessoais daquele filósofo, que geralmente é lido como um
pensador do político e das dimensões humanas, sob este viés que não o
pessoal, porém o texto escolhido por Larrosa nos apresenta um Rousseau
mais “íntimo e mais espontâneo”, a outra face de Rousseau. Lida a partir
das narrativas de Larrosa, permite deduzir que toda escrita traz a marca
das relações que estabelecemos ao longo de nossas vidas, “As obras nas
quais Rousseau pretende pintar seu retrato ao natural estão também
construídas com os retos de sua biblioteca, com as convenções narrativas
de seu tempo” (LARROSA, 2013, p. 25).
A escolha, por me colocar neste texto na primeira pessoa, não dei-
xa de considerar todas as relações que se entrelaçam em minha escrita.
Faço-o por tratar-se de um tema acerca do qual tenho me dedicado nos
últimos anos e por se constituir em reflexões mediadas pelo trabalho
de pesquisa, o qual diz muito das minhas trajetórias e das relações hu-
manas que venho mantendo para além do universo da pesquisa, os des-
locamentos resultantes de novas opções de trabalhadores para sobre-
viver dizem muito do que foi minha própria trajetória. Essas trajetórias
pessoais, que contam as experiências vividas por grupos humanos, são
atravessadas por disputas políticas que transcendem o limite do pes-
soal, como palimpsestos, constantemente apagados para dar origem
a novas escritas, do mundo e de si mesmo. Neste sentido, Haesbaert

78 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


(2012), ao pensar o que intitula “O Mito da Desterritorialização”, alerta
para o fato de que a nova dinâmica do capitalismo está promovendo o
“fim dos territórios”, o que impera neste cenário é a multiterritoriali-
dade, entendendo que o território pode ser “definido, em primeiro lu-
gar, pela ‘consciência’ ou pelo ‘valor’ territorial, no sentido simbólico”.
(HAESBAERT, 2012, p. 42).
No Brasil, a problemática da perda de territórios passa pelo as-
pecto material, uma vez que a concentração de terras gera a perda da-
queles espaços por um grande contingente de grupos humanos que, ao
buscarem na fronteira novos espaços de existência, vão promovendo a
multirretorialização de seus espaços geográficos e de suas experiên-
cias pessoais, narradas por muitos trabalhadores como se constituin-
do em experiências de perda e de negação das condições de existência,
conforme dois relatos com os quais trabalharemos ao longo deste tex-
to. O primeiro narrado por José Pereira, trabalhador rural da região de
Confresa, no Mato Grosso; o segundo, de Aparecida Barbosa da Silva,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Confresa, ambos
gravados durante a V Reunião Científica sobre o Trabalho Escravo e
Questões Correlatas.
A constituição territorial brasileira marcada por inúmeras nar-
rativas de negação de territorialidade teve grande influência do po-
der estatal, e há um significativo número de pesquisas que se dedi-
caram a refletir sobre esta questão, dentre elas destaco um conjunto
de dissertações que foram produzidas por estudantes ligadas ao NPH/
UFMT e ao Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos (NERU (UFMT)), que
apontam para a intrínseca relação entre Políticas de Estado e dester-
ritorialização:
Deleuze e Guatarri (s.d.) vão dar ênfase a este processo de
desterritorialização porque é assim que eles entendem
a criação do Estado e a dinâmica do capitalismo.
Eles afirmam que o Estado e o capital vão operar por
desterritorialização e sobrecodificação. Mas enquanto
o Estado e as sociedades capitalistas se constituem
pelo processo de desterritorialização, as sociedades
pré-capitalistas são efetivamente territoriais, pois sua
relação com a terra é totalmente distinta. (HAESBART,
2012, p. 134).

Deduz-se disso que, para os projetos capitalistas de sociedade, as


ações empreendidas pelos governos brasileiros foram consoantes com a
lógica do capital, da qual resulta grande produção de “refugo”, tanto ma-

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 79


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
terial quanto humano, a partir da ótica de Bauman (2005), quando cita a
produção de “redundantes”, portanto, faz coro as medidas impostas pelo
Estado Capitalista e fundamentadas nos discursos de progresso e mo-
dernização que atravessam a História do Brasil.

A terra no Brasil: um breve histórico da ocupação


A distinção entre os grupos humanos em território brasileiro re-
monta ao período colonial, ao desembarcarem em terras brasileiras, em-
briagados por sua visão de mundo, os europeus entenderam que tinham
direito sobre um território ocupado por selvagens que não dominavam as
técnicas de modificação e apropriação dos espaços nos moldes da cultura
europeia. O imaginário eurocêntrico entendeu que as nações que habita-
vam este espaço eram formadas por grupos de selvagens que, portanto,
poderiam e deveriam ser subjugados.
Ao retroceder tão longínquo período da História do Brasil, tenho
como meta apontar alguns discursos em relação a certos grupos huma-
nos que historicamente foram sendo “eleitos” como “imprescindíveis” e
“redundantes”, tais conceitos carregam consigo a concepção de que exis-
tem grupos aptos a produzirem um processo de modernização no qual
o ambiente natural é transformado, tal proposta é resultante do pen-
samento moderno que entendia a natureza como passível de transfor-
mação humana. O projeto de modernidade, fundamentado, sobretudo,
no pensamento de Descartes e que acabou por impor um paradigma ao
Ocidente no período posterior ao século XVII, promoveu uma dissociação
entre Sujeito e Objeto, tal paradigma trazia como marca fundamental a
proposta de progresso, neste sentido, progredir seria alterar o ambiente.
O paradoxo do advento de tal paradigma, sustentado em um ideal
de modernidade e progresso, foi a produção de refugo, foram alteradas
as estruturas do planeta ao produzir em linhas de produção, mercado-
rias descartadas a todo momento. No sentido de se propor pensar as pro-
blemáticas resultantes de tal projeto de modernidade, Bauman (2005)
propõe uma leitura chocante sobre os lugares que um número cada vez
maior de pessoas passou a ocupar neste planeta, onde o projeto de mo-
dernidade triunfou.
Se as interpretações marxistas entendiam que a divisão de classes
havia criado um exército de trabalhadores que comporiam a reserva do
mercado de trabalho, mantendo os níveis salariais baixos, mas tendo a
expectativa de retornarem às atividades produtivas, a novidade da in-
terpretação proposta por Bauman é que este grupo humano, alijado dos

80 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


postos de trabalho, em um momento de predomínio dos processos de
modernização, tende a não voltar ao mercado de trabalho resultando em
“produção de ‘refugo humano’, ou, mais propriamente de seres humanos
refugados [...]” (BAUMAN, 2005, p. 12).
No Brasil, a problemática dos redundantes, efeito colateral de um
projeto moderno iniciado com a colonização deste território, passa a
compor os discursos políticos com maior intensidade durante a “Era Var-
gas”. Em 1937, ao transmitir mensagens radiofônica de fim de ano, foi
lançado pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, o programa
“Marcha para o Oeste”, movimento de ocupação do território central do
país que, nas palavras do presidente, representava o “verdadeiro sentido
da brasilidade”. A campanha contou com a adesão de vários intelectuais
dentre eles o jurista, jornalista, escritor, poeta e membro da Academia
Brasileira de Letras, Cassiano Ricardo. Nos dois volumes da obra inti-
tulada “Marcha para Oeste”, Ricardo retoma o movimento bandeirante,
atribuindo a este o processo de formação do Brasil e defendendo o ad-
vento de um novo movimento de ocupação em direção ao interior do país,
“Desaparecida a bandeira na sua feição histórica, original, repete-se em
outro horizonte cultural. No mínimo, repetem-se atos de bandeirismo, e
quem os pratica é, portanto, bandeirante” (RICARDO, 1970, p. 994).
A obra de Cassiano Ricardo foi uma forma de propaganda dos pro-
jetos de interiorização pensados pelo Governo Federal, os efeitos de tal
projeto podem ser notados no estado de Mato Grosso, onde “[...] a Marcha
para Oeste se concretizou na Colônia Agrícola Nacional de Dourados, na
criação do Território Federal de Ponta Porã, na Fundação Brasil Central
e na criação da Expedição Roncador Xingu” (BARROZO, 2010, p. 12). A
justificativa do Governo para implantar o Programa foi a existência de
excedentes pobres na Região Centro-Sul do país o que gerava uma situa-
ção de potencial tensão social.
A dinâmica de movimento em direção à fronteira, entendida como
o território a ser “desbravado” pelo colonizador pode ser lida na ótica da
tese formulada por Turner15, que encontrou interlocutores nos estudos
sobre fronteira realizados no Brasil, as interpretações dadas por Barro-

15 As leituras da fronteira turneriana presentes neste texto, são resultantes do contato


com uma dissertação (ÁVILA, 2006), em que o autor aponta para o fato de Turner (1862-
1931), ser considerado o grande pai da historiografia moderna nos Estados Unidos. O au-
tor nos apresenta a trajetória de Turner que lançou ao mundo sua Frontier Thesis, em
1893, durante uma feira de exposição em Chicago, postulando que o desenvolvimento
histórico dos Estados Unidos havia se dado graças à existência das chamadas “terras li-
vres” a Oeste, únicas em quantidade e extensão.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 81


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
zo (2010) mostram que a tese de Turner teve como possibilidade teóri-
ca para pensar a dinâmica de ocupação territorial ocorrida no Brasil no
contexto da Marcha para Oeste, “Para esvaziar estes potencias focos de
tensão social, o governo passou a orientar as correntes migratórias para
as cidades do Centro-Sul, e para as novas fronteiras agrícolas, fixando
parte destes migrantes em lotes familiares nas Colônias Agrícolas Na-
cionais” (BARROZO, 2010, p. 13).

Elementos para pensar a problemática da concentração de


terras no Brasil
Os projetos de interiorização, dinamizados pelo Governo Vargas,
foram reintroduzidos durante a vigência dos Governos Civis Militares
no Brasil, momento em que o nacional-estatismo foi retomado, bem
como as propostas de modernização que “sob as asas do terror do AI-5,
construíram-se complexas relações entre a ditadura e a sociedade do
que resultou um país próspero e dinâmico” (AARÃO REIS, 2014, 78). O
período entre os anos de 1967 e 1973 foi marcado por euforia econô-
mica habilmente apelidada de “Milagre Econômico”, entretanto essa
modernização econômica do país foi sendo feita a preço de vidas, houve
neste período, ainda, a configuração de um modelo de propriedade ru-
ral que ainda predomina no país:
No campo, o projeto reformista fundamentado na
distribuição de terra e na agricultura familiar cedera
lugar, com estímulo do governo, a grandes unidades
agrícolas, mecanizadas — aumentando a produção e
possibilitando o aparecimento de novas culturas, como a
da soja, campeã de exportações, e a dos cítricos. (AARÃO
REIS, 2014, p. 80).

A apropriação dos conceitos propostos por Turner, ao pensar a fron-


teira Oeste dos Estados Unidos, está presente em narrativas que pensam
o avanço da fronteira em direção ao interior do Brasil, “A colonização em
Mato grosso e Rondônia, nos anos setentas e oitentas, serviu como ‘por-
tão de escape’ para os problemas fundiários dos agricultores familiares
do sul do Brasil, onde ocorria a modernização da agricultura” (CARDOSO
e MULLER, 1997). Para Turner, a história da colonização americana foi,
em grande medida, a história da civilização do velho Oeste, as terras li-
vres e o avanço da colonização em direção ao Oeste, fatores que explicam
o desenvolvimento americano. As instituições americanas foram compe-

82 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


lidas a se adaptarem às mudanças de um povo em expansão, “desbravan-
do as terras selvagens — wildernees”, driblando as condições econômicas
e políticas da fronteira, criando os limites do contato entre o “mundo sel-
vagem” e a “civilização”. Os discursos de sucessivos governos brasileiros
refletem esta visão de uma necessidade de transcender os limites impos-
tos pela fronteira.

Discurso dos Governos Militares — novos apelos à ocupação


de “terras livres”
Em 1964, resultado de um conjunto de alianças e de relações com-
plexas entre setores da sociedade civil e militares, insatisfeitos com
os rumos políticos propostos por João Goulart, ocorreu o Golpe Mili-
tar, que destitui o presidente legalmente escolhido e dá início à fase
política cuja marca foi a repressão levada a cabo pelo Estado. A histo-
riografia que trata do período não é unânime, sendo que um conjunto
de autores estabelece como marcos os anos de 1964 e 1985. Para Aa-
rão Reis, o período de ditadura durou quinze anos (1964-1979), consi-
derando que a partir de 1979, o país passou por uma fase de transição
democrática.
Durante este período, foi criado o Estatuto da Terra16, que concei-
tuava em seu artigo quinto que na Colonização Oficial:
[...] o Poder Público tomará a iniciativa de recrutar
e selecionar pessoas ou famílias, dentro ou fora do
território nacional, reunindo-as em núcleos agrícolas
ou agroindustriais, podendo encarregar-se de seu
transporte, recepção, hospedagem e encaminhamento,
até a sua colocação e integração nos respectivos núcleos.
(ESTATUTO DA TERRA, 1964, p. 34).

Desta forma, foi organizado um discurso do Governo Civil Militar,


de que a transferência de agricultores para os núcleos de colonização
na Amazônia era apresentada como um processo de Reforma Agrária,
porém as condições de acesso à terra da região por estas pessoas se
deu de forma diferenciada. O órgão criado pelo Governo Federal para
fiscalizar e promover o processo de ocupação das terras devolutas
cometeu diversas irregularidades, “em São José do Povo foram liberados
R$ 165 000,00 para a construção de quinze quilômetros de estradas e

16 Lei n.º 4504 de 30 de novembro de 1964.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 83


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
dois poços artesianos. Nada foi feito. Há uma placa indicando a cons-
trução de um único poço no valor de R$ 320 000,00 que não foi cons-
truído” (JOANONI NETO, 2007, p. 25). A má gestão do dinheiro público
contribuiu para a concentração de terras nas regiões centrais do país.
A solução encontrada pelo Estado, para gerir a colonização ofi-
cial nos moldes propostos pelo Estatuto da Terra, foi a criação de ór-
gãos como a Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia
(SUDAM), o Banco da Amazônia (BASA), a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (IN-
CRA). Estes órgãos do governo atuavam em conjunto, o INCRA aprova-
va os projetos fundiários, entretanto tais espaços eram vazios apenas
nos discursos oficiais, desta forma a intervenção da FUNAI ocorria
no sentido de deslocar os grupos indígenas para outras regiões e a
SUDAM analisava os projetos propostos. A rede que se organizou em
torno de um projeto de Reforma Agrária que, ao final das contas, não
promoveu distribuição, mas concentração territorial. Para isso, esta-
vam os bancos para liberar os financiamentos com dinheiro público e,
aí, entrava o BASA e o Banco do Brasil (BB).
Neste cenário de tensão entre grande e pequeno produtor, muitos
trabalhadores rurais não conseguiram se manter nas propriedades,
sobretudo porque não recebiam auxílio no tocante à infraestrutura,
descapitalizados e sem condições de trabalho acabaram entregando
as terras aos grandes produtores capitalizados que contavam com fi-
nanciamento via Estado. A impossibilidade de se manter na terra ou
tendo a mesma negada, contingentes de trabalhadores passaram a se
deslocar em busca de um território que os abrigasse, levando consigo
os sonhos de uma vida melhor, em geral depararam-se com a explora-
ção de suas forças de trabalho. Os projetos de colonização cumpriram
o objetivo proposto pelo regime político civil militar, de ocupar e apro-
veitar a região amazônica para o desenvolvimento dos setores agríco-
las e pastoris; neste processo, entretanto, foi negado ao trabalhador
rural tanto a condição de acesso quanto de permanência nessas “no-
vas áreas de ocupação”.
Pensando que a preocupação com o conceito de tempo é ineren-
te ao trabalho do historiador, proponho aqui que pensemos acerca da
constituição de um tempo da fronteira, entendendo as permanências
de um conjunto de mazelas sociais decorrentes das Políticas de Gover-
no que foram pensadas para o campo durante o período militar. Naque-
le período havia fatores que incentivavam a migração, sobretudo de na-
tureza econômica, mas não só estes, o sonho, as perspectivas de novas

84 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


condições de vida e trabalho, a esperança são todos constituintes dos
ideais que levaram homens e mulheres a se deslocarem pelo país sem-
pre em busca de um território que os abrigasse, todos esses fatores:
[...] continuam a levar milhares de trabalhadores a se
deslocar com frequência em busca de emprego ou de
um pedaço de terra. Esses migrantes às vezes acabam
sendo submetidos a condições de trabalho desumanas,
tendo sua liberdade tolhida, não podendo sair do local
onde trabalham (JOANONI NETO et al. , p. 17, 2008).

Este cenário de negação e privação constitui o locus de adven-


to de um tipo de trabalho oficialmente extinto em 1888, o trabalho
escravo.

Os Redundantes em um Território de tantos espaços


A prática escravagista constituiu-se em elemento para a forma-
ção da sociedade brasileira, tendo sido abolida oficialmente em 1888,
com a assinatura da Lei Áurea. A permanência da escravidão, ao longo
dos anos posteriores à oficialização de sua proibição, pode ser notada
na presença de documentos oficiais que visualizam a problemática e
institucionalizam formas para coibi-la, exemplo disso é o texto do De-
creto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, cujo Art. 149 caracteriza
como crime previsto no Código Penal o ato de “Reduzir alguém a con-
dição análoga à de escravo”. O mesmo artigo foi reformulado na reda-
ção dada pela Lei n.º 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que passou a
caracterizar o crime a partir da prática de “Reduzir alguém a condição
análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de tra-
balho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão
de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
No tocante ao termo “trabalho forçado”, a Convenção n.º 29 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), o define como “todo tra-
balho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para
o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. Os dados a seguir
mostram o quanto esta forma de trabalho ainda está presente em cer-
tos setores de atividades produtivas no Brasil.
Entre 1995 e 2008, os estados de Mato Grosso e Pará aparecem
como os de maior número de resgatados. Após 2008, Bahia, Tocantins
e Maranhão tiveram crescimento significativo nessa estatística e,

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 85


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
após 2010, o sul do país (Santa Catarina e Paraná), também passou a
compor o topo da lista, saltando de menos de 4% do total dos resga-
tados em 2007 para 15% em 2010. As principais atividades em que
este tipo de relação de trabalho foi verificado (2010/2012) foram na
pecuária e no cultivo de café, algodão, soja e cana de açúcar. Ainda
aparecem nos dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT): carvoaria e
desmatamento, atividades que já estiveram entre as principais no uso
dessa mão de obra (antes de 2007).
Historicamente no Brasil o trabalho escravo contemporâneo é
uma atividade rural, ou diretamente ligada a ela. Apenas recentemente
temos tomado conhecimento de casos em áreas urbanas. Por questões
que extrapolam os propósitos desse texto, não tratarei do alcance ur-
bano da escravidão contemporânea. A maioria absoluta dos egressos é
homem adulto, tomando a série histórica (1995-2012), o percentual se
aproxima dos 96%. Dados do Atlas do Trabalho Escravo apontam para
o fato de que “no trabalho escravo contemporâneo no Brasil, as vítimas
são predominantemente homens, provenientes de outras regiões que
não aquelas onde são escravizados”. A procura por trabalho e por uma
melhoria em sua condição humana, “[...] os trabalhadores são aliciados
e saem de seus lugares por desconhecerem as condições reais de traba-
lho que os esperam, ou pela falta de alternativa em seus lugares de ori-
gem, mesmo conscientes das condições aviltantes que vão enfrentar”
(THÉRY et al. 2009, p. 15).
O mapa a seguir apresenta as regiões com maiores índices de vul-
nerabilidade de trabalhadores, territórios onde há um poder incipiente
do Estado e nos quais os detentores do poder local “[...] tomam para si a
prerrogativa da violência legítima, ou seja, de ações sociais intencional-
mente desenvolvidas para negar a alteridade humana, legitimada pela
cumplicidade do direito”. (RUIZ, 2009, p. 91. apud JOANONI NETO; CAS-
TRAVECHI, 2009, P. 114).

86 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Fonte: THÉRY et al. Atlas do Trabalho Escravo. P. 11

A dinâmica da fronteira comporta aspectos que se interligam,


por mais que a impulsão dos deslocamentos na origem se dê por ques-
tões econômicas, aspectos sociais, são visíveis nos relatos de sonho do
eldorado, de enriquecimento, de alteração no status, no campo ideo-
lógico os discursos promovidos no intuito de fustigar os desejos, as
esperanças, traziam olhares sobre o território a ser ocupado como
compondo os lugares de realização de sonhos, terras de fácil cultivo

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 87


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
e fartura. A movimentação de pessoas alterou os cenários naturais,
nos territórios de expansão, promoveu-se a abertura da mata para o
cultivo de produtos comercializados em grande escala especialmente
a soja, cujos debates acerca das problemáticas resultantes deste tipo
de cultivo agrícola, neste texto, ficará restrito às considerações de
Vankrunkelsven:
Não há nada de errado em si com a soja. É um milagre.
Há mais de cinco mil anos é uma planta sagrada
para os chineses. O escândalo é que mais de 70% da
soja em grão produzida mundialmente vá parar na
ração que alimenta porcos, galinhas, perus, patos,
vacas e peixes. Para farelo de soja este percentual
sobe para 90%, sendo a mais alta fonte de proteína
vegetal em nosso planeta. Além disso, o modo de
cultivo e de comercialização de toda essa soja causa
impactos negativos não só na natureza e na paisagem,
mas também para os agricultores familiares
(VANKRUNKELSVEN, 2008, p. 17).

Foram nos espaços em expansão, que trabalhadores provenientes,


sobretudo do Nordeste brasileiro, tiveram suas vidas subsumidas pela
exploração.

88 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Mapa II — Avanço do desmatamento em direção à Amazônia
Produzido por IPAM, 2012

Fontes de dados: INPE, 2011.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 89


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
As narrativas desses trabalhadores rurais me afetam profunda-
mente, por entender que mais que alterar os rumos da economia do país,
as medidas tomadas em nome da coletividade, projetos pretensamente
ou discursivamente democráticos alteraram trajetórias pessoais, extin-
guiu sonhos, calejou as mãos, entristeceu a alma:
No ano de 1976, eu vim para o Mato Grosso, trabalhei
em fazendas, dormi em matos, debaixo de chuva,
correndo [fugindo], para não morrer naquela
situação mais triste. Dentro da fazenda, trabalhando,
apresentando meu suor e sem ganhar nada. Hoje o
que eu ganhei não vale nada, eu não tenho nada. Hoje
eu tô naquela situação de doença e sem ninguém. Eu,
trabalhando, me jogaram para rua, me abandonaram
e eu fiquei na rua sozinho, sem condições de um
tratamento. Então hoje é, como se diz o outro, é na
favela ou na chácara onde a gente trabalha hoje
ninguém dá valor em ninguém, né? Como lá, mesmo eu
trabalhando, ninguém nunca me deu valor […]. Porque
o povo que eu trabalhei lá me abandonou, me jogou na
rua, saiu fora de mim e nem pagou o meu trabalho.
Esse povo mora lá dentro da cidade. Eu não pude
fazer nada porque é mais fraco do que eu, não tem
nada. Tivesse trabalhando para mim já tinha achado
uma família. Então, hoje a gente não tem que cuidar
da gente e quem cuida, a gente tem que agradecer.
Então eu estou neste problema aí, porque as fazendas
por onde eu trabalhei desde 1976, nunca adquiri
nada. Toda vida também o que eu adquiri também
não valeu nada... (JOSÉ PEREIRA, trabalhador rural
na região de Confresa. Depoimento dado durante a V
Reunião Científica sobre Trabalho Escravo e Questões
Correlatas apud JOANONI NETO, 2013, p. 243).

As narrativas revividas pela memória de José Pereira transpa-


recem profundo pesar por uma existência de perda. A exploração do
trabalho nas fazendas de Mato Grosso lhe impediu de ter família, en-
contra-se em um mundo marcado pela doença e por favores alheios, vi-
vendo em uma sociedade que reforça o discurso do trabalho, a este se
dedica ao longo da vida, entretanto ao invés da reprodução pelo traba-
lho o mesmo lhe nega a vida. Ele foi jogado à rua, envelheceu, adoeceu,
não tem de quem cobrar. A mim, enquanto narradora destas trajetórias
e também parte delas, tendo ouvido ao longo da vida relatos de traba-
lhadores que eram assassinados no momento do acerto com o patrão
da fazenda, ou de pequenos proprietários, posseiros/roceiros que eram
jogados nos rios em Itiquira (MT) e em Sonora (MS), vidas sumidas em

90 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


rios apelidados de “Sumidouros”, mortos, inexistentes, com as trajetó-
rias encerradas abriam caminho para a grilagem de terras, restam-me
o pesar e a revolta. Este foi o contexto da formação de grandes proprie-
dades no Brasil.
O sonho do acesso à terra, da possibilidade de tomar os rumos da
própria vida ainda povoa o imaginário de um grande número de traba-
lhadores no Brasil:
Isso é experiência que nós visualizamos em todos os
egressos do trabalho escravo, pois geralmente não
sabem ler nem escrever. E no meu entendimento, para
resolver essa questão do trabalho escravo, seria a
questão agrária: seria através da terra. Pelo emprego
acredito que não resolverá essa problemática do
trabalho escravo não. Porque a maioria não sabe nem
ler, nem escrever e quando sabe é pouquinho, então
o emprego só se for servente de pedreiro, e não vai
resolver o problema de todos. E não sei por onde iria
resolver essa questão agrária, que é tão emperrada,
que só patina e nunca vai (APARECIDA BARBOSA DA
SILVA. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Confresa. Depoimento dado durante a V
Reunião Científica sobre Trabalho Escravo e Questões
Correlatas apud JOANONI NETO, 2013, p. 247).

Desde 1964, com a promulgação do Estatuto da Terra, poucas fo-


ram as alterações na realidade agrária do país. Muitos trabalhadores
reivindicam a possibilidade de voltar para o campo e as medidas ado-
tadas por sucessivos governos, desde então, pouco avançaram neste
sentido. Aparecida aponta uma questão fundamental para pensar o
trabalho escravo, em geral os trabalhadores egressos, por possuírem
baixa ou nenhuma escolaridade, tendem a formar um ciclo vicioso de
resgate e regresso a essa condição de trabalho. Foi pensando em que-
brar este ciclo que o Projeto Ação Integrada, referido anteriormente,
identificamos como público alvo indivíduos, predominantemente do
sexo masculino, adultos, tanto de áreas urbanas quanto rurais, que
tem em comum baixa ou nenhuma escolaridade, habitando áreas ur-
banas ou rurais periféricas e economicamente frágeis e desassistidas
socialmente pelos poderes públicos.
Entretanto, em uma sociedade marcada pelo consumo “Talvez não
exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta sim-
bólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente
reconhecida, em suma, por humanidade”. (BOURDIEU apud BAUMAN,

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 91


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
2008, P. 07). A inserção pelo consumo foi negada, uma vez que nem ao
menos salário esses trabalhadores recebiam. Reside aí um paradoxo do
capitalismo no Brasil, pensando a respeito das novas modalidades fi-
nanceiras que esse sistema gera, Bauman dialoga com as reflexões fei-
tas por Habermas:
Ele apontou que, se a reprodução da sociedade
capitalista é obtida mediante encontros transnacionais
interminavelmente repetidos entre o capital no papel
de comprador e o trabalho no de mercadoria, então o
Estado capitalista deve cuidar para que esses encontros
ocorram com regularidade e atinjam seus propósitos,
ou seja, culminem em transações de compra e venda
(BAUMAN, 2008, p. 14).

Ao estar inserida em uma lógica de consumo, considerando que o


mundo contemporâneo caracteriza o ser humano como consumidor, a
negação do trabalho ou de uma forma de trabalho não remunerada e
exploratória, cerceia deste sujeito a condição humana. Minhas percep-
ções sobre estas trajetórias de vida negadas dialogam com os escritos
de Larrosa (2013) que, ao pensar o que intitulou de uma “Pedagogia Pro-
fana”, entende a transformação que tanto o processo de leitura quanto
de escrita promove nas pessoas. Neste sentido, a escrita destas vidas
me transforma, na medida em que me permite por meio da leitura das
narrativas das experiências desses trabalhadores “prestar atenção:
o que ficou na penumbra, semiconsciente, não formulado, privado de
consciência e de linguagem, ou ocultado pela própria instituição da
consciência e da linguagem” (LARROSA, 2013, p. 47).
Ao trabalhador que tem sua condição de consumo negada pela au-
sência do trabalho, cada vez mais escasso em uma sociedade tributária
dos investimentos em modernização, Bauman (2005), incluiu nessa ca-
tegoria aqueles que não têm lugar nesse mundo, os prescindíveis, ou, nas
palavras do próprio autor, o lixo. A característica distintiva mais mar-
cante do público alvo deste projeto está no fato de que eles foram objetos
de uma exploração tão exacerbada que os levou de consumidores falhos
a não humanos, ferramentas de trabalho.
Essas considerações feitas nos levam a afirmar que encaminhá-los
para uma possibilidade real de emancipação de sistemas, relações pes-
soais e institucionais de dominação opressiva não se fará em uma única
etapa, mas necessariamente em fases sucessivas. Desde sua libertação
pelos Grupos Móveis de Fiscalização do MTE, passando por ações pon-

92 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


tuais dos poderes públicos (da emissão dos documentos pessoais às ações
judiciais cabíveis), estando a elevação do nível educacional e a formação
profissional, entre essas etapas.
No ano de 2013, em parceria com os pesquisadores do NPH, pro-
fessores Vitale Joanoni Neto, Luciene Aparecida Castravechi e Adriano
Knippelberg Moraes, fiz um diagnóstico do trabalho escravo no Brasil, a
pedido da empresa Mendes Junior que já havia participado da experiên-
cia com o Projeto Ação Integrada e a inserção de trabalhadores egressos
da escravidão nos canteiros de obra da Arena Pantanal. A convite desta
empresa, tracei o perfil dos egressos da escravidão, os dados que seguem
são resultantes deste estudo. Em um total de 2.491 trabalhadores res-
gatados pelos Grupos de Fiscalização Móvel no ano de 2011, 77,6% dos
trabalhadores entrevistados declararam ter nascido em algum estado
desta região, vindo o Centro Oeste em segundo lugar com 8,3%. Um gran-
de exportador dessa mão de obra é o estado do Maranhão (41,2%). Os da-
dos da série histórica do MTE apresentam 61,8% dos egressos nascidos
no Nordeste, também com a predominância do MA (34,3%), o que indica
uma mesma tendência entre os números apresentados, embora nesta úl-
tima, tem-se um maior detalhamento com a presença de todas as regiões,
mesmo que com percentuais bem menores.
Quanto à procedência, ou residência, antes do aliciamento para o
trabalho, majoritariamente encontra-se na Amazônia Legal com per-
centual acima de 65%. Maranhão (25,6%), Mato Grosso (20,7%), e Pará
(19%) aparecem com destaque.

Mapa III a: Perfil dos Egressos da Escravidão Contemporânea

Fonte: Atlas do Trabalho Escravo, p. 22.

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 93


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
Mapa III b: Perfil dos Egressos da Escravidão Contemporânea

Fonte: Atlas do Trabalho Escravo, p. 22.

A educação como alternativa às problemáticas sociais é o hori-


zonte de possibilidades apresentadas por um número significativo de
autores que trabalham com a temática da exclusão humana. Bauman
(2005), ao descrever os processos que levam à produção do “Refugo
Humano”, defende que “A educação superior se tornou a condição mí-
nima de esperança até mesmo de uma duvidosa chance de vida digna
e segura […]. O mundo, ao que parece, deu outro giro, e um número
maior de seus habitantes, incapazes de aguentar a velocidade, caiu
do veículo em aceleração...”. Dentre os pesquisadores que entendem
a educação como alternativa, está a escritora Le Breton. Ao finalizar
“Vidas Roubadas: a escravidão moderna no Brasil contemporâneo”, a
autora aponta cinco medidas que, em sua opinião, podem ser tomadas
pelo governo brasileiro para erradicar o trabalho escravo no Brasil,
aqui destaco a última:
[...] investir recursos suficientes, na casa de milhões de
reais, na erradicação da escravidão e sua prevenção via
a educação do público. Essa despesa só representaria
uma fração do que custa ao Brasil cada nova matéria
publicada pelo New York Times a respeito do trabalho
escravo embutido nas exportações brasileiras (LE
BRETON, 2002, p. 73).

Bastante consciente das limitações presentes neste texto, e já à


guisa de conclusão, entendo que as narrativas que resultam em minha
escrita são diálogos com narrativas, além de outras que se inscrevem

94 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


em meu texto e em minha existência. As privações de trabalhadores
afetam-me, juntamente com os discursos de igualdade proferidos ao
vento enquanto amplia-se o fosso que separa os grupos humanos. Os
projetos modernizantes atingiram o auge. Desde os anos de 1970, a
população trabalhadora aguarda pelo crescimento do bolo econômico
para que, uma vez rico, o país pudesse socializar a riqueza. As propos-
tas de progresso trouxeram grande avanço econômico e na esteira de
tal desenvolvimento vão se constituindo trajetórias de vidas perdi-
das, roubadas, subtraídas.
Eis uma escrita atravessada por outras. Deparo-me com uma deze-
na de textos que se inscrevem em mim, nas trajetórias que vivi, tanto
por meio de experiências pessoais quanto pelo engajamento nos grupos
de pesquisa. As vozes que vibram na linguagem, ora apresentada, dialo-
gam neste texto com autores que vêm dedicando suas vidas a pensar es-
ses processos de degradação. Propor mecanismos de alteração de uma
tragédia humana anunciada desde os primórdios da ocupação do solo
brasileiro é necessário e urgente.
No passado, grupos humanos como índios e negros foram segre-
gados de direitos em nome de um ideal de superioridade, sustentado
em discursos que se propunham científicos e que distinguiam a hu-
manidade em escalas civilizatórias que colocavam o branco europeu
no topo. Tais discursos não se sustentam em um momento em que as
teorias que os sustentam estremecem frente aos avanços do conheci-
mento que possibilitou entender que a humanidade não se divide em
raças. As diferenças existentes não servem para nos fazer inferiores
ou superiores e sim para nos fazer plurais. Entretanto, ainda perdu-
ram discursos que garantem o controle de grupos humanos, dando a
entender que as distinções econômicas sejam naturais e, portanto,
devem ser aceitas.
Entendo que os lugares atribuídos aos “imprescindíveis” e aos
“redundantes” são criações humanas, portanto, perenes e passíveis de
alteração. Coloco-me entre os estudiosos que veem na educação um
caminho interessante, entendendo que a capacidade de ler o mundo
altera o ser que o lê, por textos, por viagens, por relações com outros.
Neste sentido, a leitura/escrita/releitura, forma o ser ao mesmo tem-
po em que o transforma. A nós envolvidos com a educação, cabem os
questionamentos acerca de como estamos formando. As universida-
des estão possibilitando a reflexão acerca da condição humana na
sociedade do consumo? Os cursos de formação na área agrícola, nos
estados da região central do país, estão repensando as práticas de

Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 95


olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
trabalho com a terra, de maneira a não a contaminar, a promover a
produção que alimente o humano? São questões que devem estar pre-
sentes em nossas vidas, para pensarmos alternativas aos projetos de
modernização que não pensam o humano e sendo assim não nos dizem
respeito.

96 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


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Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” — 97


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98 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


CAPÍTULO VI

A Ciência, a Tecnologia e o
Desenvolvimento: Em busca de um
caminho voltado para o homem

Alisson Diôni Gomes

Este trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito


das formas pelas quais a produção científica e tecnológica se relacionam
com o contexto da sociedade capitalista, bem como as suas limitações em
meio a esta sociedade e uma perspectiva de superação deste modelo so-
cial, com vistas à construção voltada para o desenvolvimento do próprio
gênero humano.
Um elemento central desta discussão diz respeito ao conceito de
desenvolvimento. Conforme se discutiu em Gomes (2013), este é um con-
ceito, em certa medida, difuso no que tange ao seu significado, na medida
em que é utilizado, por diversos grupos, como uma forma de legitimação
diante do conjunto do contexto social em que estes grupos se encontram
imersos.
Entretanto, ainda que se observe este caráter de conflito na apro-
priação do significado do termo, é possível tecer considerações que vão
para além deste conflito. Neste sentido, é possível observar que, tanto
no que diz respeito à história social humana quanto na própria história
natural, ocorre um processo de desenvolvimento objetivo, ou seja, algo
que vai para além daquilo que a subjetividade humana, por si só, é capaz
de influenciar.
Em Gomes (2013), o conceito de desenvolvimento é discutido nos
seguintes termos:
O conceito de desenvolvimento diz respeito a um
processo em que um determinado elemento da
realidade, em suas relações com o seu ambiente
circundante, vai, gradativamente, angariando novas
estruturas, habilidades e aptidões, que vão, ao longo
do tempo, permitindo-lhe um melhor relacionamento
com este ambiente (GOMES, 2013, p. 16).

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 99


Em busca de um caminho voltado para o homem
Tais circunstâncias podem ser observadas na medida em que, ao
longo de seu processo histórico de desenvolvimento, a natureza não
apenas foi capaz de produzir aglomerados autônomos e auto-reprodu-
zíveis de elementos químicos — a vida — como também produziu uma
forma de vida que, além de adquirir a consciência de si e de sua relação
com o ambiente circundante, submeteu a natureza aos seus próprios
desígnios. Este é o homem.
O desenvolvimento histórico do homem fez com que, no início de
sua existência, ele tivesse que, não apenas garantir sua alimentação,
mas garantir também que ele próprio não se convertesse na alimenta-
ção de um predador de maior porte. Nos dias atuais, ele apresenta tal
domínio da natureza que não só o torna capaz de viver em residências
providas com energia elétrica e toda uma série de eletrodomésticos,
como também fez com que os antes temidos predadores se tornassem
uma mera diversão de fim de semana em um zoológico. Ainda que
eventualmente a natureza termine dando respostas de determina-
das formas que os indivíduos têm de lidar com o seu funcionamento,
o homem, socialmente, é capaz não só de elaborar análises que bus-
cam compreender a razão destas respostas, como também de buscar
formas alternativas de levar adiante a produção de sua vida material,
interferindo de forma menos nociva nos processos naturais.
O conceito de desenvolvimento é aqui tratado à luz das discus-
sões encampadas pelo materialismo histórico-dialético (MARX, 1985;
2007; MARX & ENGELS, 2006; 2007). Neste sentido, tomam-se como
ponto fundamental as categorias modo de produção, forças produti-
vas e relações de produção.
O momento atual do desenvolvimento histórico da humanidade é
marcado pela predominância global do modo de produção capitalista
e, na esteira deste, os Estados Unidos da América possuem o status
de potência capitalista hegemônica, ainda que ocorra uma gradativa
projeção de Rússia e China neste cenário, o que num momento futuro
pode vir a colocar em xeque a hegemonia estadunidense.
O modo de produção capitalista, do ponto de vista de sua práti-
ca histórica concreta, é marcado pela tendência fundamental de seu
pautar na potencialização cada vez maior de sua própria acumulação,
mediada pelo processo de produção de mercadorias e pela extração da
mais-valia do trabalho. Na frente ideológica, o capital — ou seja, a classe
formada pelos seus detentores — busca se apresentar como o grande
indutor do desenvolvimento humano, bem como o grande responsável
pelas conquistas científicas e tecnológicas alcançadas pela Humanida-

100 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


de. Entretanto, uma breve análise histórica permite verificar que tal
perspectiva constitui uma meia verdade.
Neste ponto entram os conceitos de forças produtivas e relações
de produção. Um aspecto da perspectiva que o capital apresenta no
campo ideológico é em parte verdadeiro: este modo de produção se
marca por um alto grau de desenvolvimento de novas tecnologias pro-
dutivas, na medida em que, em vistas de seu impulso de acumulação,
ele precisa continuamente investir em novas tecnologias que permi-
tam a extração cada vez maior de mais-valia do trabalho, e um efeito
colateral deste investimento é o fato de que estas mesmas tecnologias
podem ser aplicadas no aprimoramento da qualidade de vida humana.
Entretanto, este mesmo impulso faz com que a pesquisa científica e
tecnológica tenda a estar voltada para aqueles aspectos que represen-
tem maior lucratividade para o próprio capital, o que faz com que esta
tenda a não priorizar outros aspectos da realidade que podem ter efei-
tos — tanto úteis quanto nocivos — reais ou potenciais para o homem.
Um grande expoente desta condição é o ramo farmacêutico da in-
dústria. A pesquisa farmacológica é um campo da atividade humana
capaz de trazer à tona uma série de benefícios para o homem, na me-
dida em que pode levar à descoberta de medicamentos que permitem
não só o prolongamento da vida, mas também a construção de uma
vida saudável. Entretanto, o foco da indústria farmacêutica não se
pauta neste aspecto da questão, mas sim nas condições que vão lhe
permitir a maior lucratividade possível. A este respeito, Kanashiro
(2005) discute que:
A despeito da necessidade de investimento em pesquisa
e desenvolvimento, sinalizada desde meados da
década de [19]70 pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), e embora existam altos índices de ocorrência
e mortalidade, doenças tropicais como malária,
leishmaniose ou doença de Chagas não têm sido um
alvo privilegiado pela indústria farmacêutica. ONGs,
médicos e pesquisadores afirmam que o desinteresse
ocorre porque doenças tropicais, recorrentes em países
subdesenvolvidos, não representam um mercado
lucrativo para as indústrias. A organização Médicos
Sem Fronteira (MSF) revela que somente 1% dos
1393 novos medicamentos, registrados entre 1975 e
1999, destinava-se a doenças tropicais e tuberculose.
(KANASHIRO, 2005, grifo nosso).

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 101


Em busca de um caminho voltado para o homem
Mais adiante, observa que:
Sérgio Queiroz [economista da UNICAMP] afirma que
o interesse da indústria farmacêutica pela saúde é
um mito, algo que faz parte do marketing, e explica as
motivações: “Não estou dizendo que por conta disso a
empresa não está nem um pouco interessada na saúde.
Existem várias situações em que buscar a saúde é ao
mesmo tempo buscar o lucro, há uma coincidência
de objetivos sanitários e econômicos. Isso ocorre
frequentemente, mas a empresa não está orientada por
motivos de saúde, e sim pela lucratividade. Se resolver
o problema de saúde, mas não resolver o problema do
lucro, ela não fará”. (KANASHIRO, 2005, grifo nosso).

A autora afirma ainda que, ao mesmo tempo em que se observa


estes fatos, ocorre também, a partir de um determinado momento, o
surgimento de uma outra tendência que impulsiona esta mesma in-
dústria à produção de pesquisas que visem à busca de tratamentos
para doenças tropicais, mas esta mesma tendência também é subor-
dinada à perspectiva do lucro, na medida em que, com a difusão das
Tecnologias da Informação e da Comunicação, as informações passam
a fluir de um modo mais ágil, e informações negativas podem implicar
em diminuição da lucratividade de determinada empresa.
Outro ponto importante desta discussão é o fato de que a Diretora-
Geral da Organização Mundial da Saúde, Margareth Chan:
[...] criticou a indústria farmacêutica por não ter
desenvolvido uma vacina contra o ebola, mesmo após 40
anos do surgimento da doença. Segundo ela, “como o vírus
está confinado a países pobres da África, a indústria, que
é motivada pelo lucro, não investe em mercados que não
podem pagar (AGÊNCIA BRASIL, 2014).

A ciência e a tecnologia, de modo geral, possuem um grande po-


tencial no sentido de aprimorar cada vez mais as relações que o ho-
mem possui tanto com a natureza quanto consigo mesmo. Entretanto,
o fato de estar subordinada aos interesses do capital faz com que este
potencial seja aproveitado em um grau que fica muito aquém daquilo
que poderia ser feito. Este termina sendo um elemento que configura
uma dimensão da contradição que se constrói historicamente durante
a vigência do modo de produção capitalista, tal como propõe o materia-
lismo histórico-dialético.

102 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Entende-se aqui que esta contradição será resolvida na medida
em que ocorrer a superação do modo de produção capitalista e a con-
sequente construção do socialismo enquanto fundamento do processo
de produção da vida material humana. A grande diferença entre estes
modos de produção diz respeito ao fato de que, enquanto o capitalis-
mo se funda no aprofundamento gradativo do processo da acumula-
ção capitalista, o socialismo se presta essencialmente à realização do
gênero humano. Desta forma, temos que, em vista dos fins distintos
que cada um busca, os meios para a sua consecução também se distin-
guirão, sendo que no capitalismo neste meio se traduz na produção de
valor de troca (mercadorias) e na extração-apropriação da mais-valia
do trabalho pelo capital, enquanto que no socialismo o meio de con-
secução se configura na produção de valor de uso (materializado nos
bens e serviços destinados ao conjunto da população) e na reapropria-
ção da mais-valia do trabalho pelo próprio trabalho, na medida em que
esta mais-valia, ou seja, aquela porção da jornada laboral que não se
vincula diretamente ao salário será aplicada na produção dos valores
de uso que o próprio trabalho desfrutará fora do ambiente de serviço.
Considerando estes aspectos, pode-se verificar que a discussão refe-
rente à produção científica e tecnológica e ao desenvolvimento é uma
discussão eminentemente política.
A construção de uma sociedade socialista, entretanto, é um pro-
cesso que não se dá por meio de saltos súbitos. Mesmo as experiên-
cias históricas de construção deste modelo de sociedade — ao menos
as mais relevantes — levadas a cabo durante o século XX, tiveram de
transigir em algum grau com a propriedade privada e com formas
de produção de caráter capitalista, no que se observa, por exemplo,
a aplicação do trabalho social voltada para a produção de mercado-
rias. Neste sentido, pode-se observar o fato de que a União Soviética,
em pleno processo de construção do socialismo, em alguns momentos
teve de se utilizar da produção de trigo com vistas à exportação para
assim angariar recursos que lhe permitissem a construção e consoli-
dação de um setor industrial em seu território (HUBERMAN, 2008).
Ainda assim, estes traços de produção capitalistas não se reproduzi-
ram sem que estivessem submetidos à diretriz social geral, que era a
própria viabilização do projeto de sociedade cuja edificação era leva-
da adiante.
Estas mesmas experiências, ainda que marcadas pelas condições
objetivas à sua volta, permitem observar a capacidade que o socialismo
possui no que diz respeito à melhoria das condições de vida das massas. A

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 103


Em busca de um caminho voltado para o homem
União Soviética, construída a partir do esforço empreendido pela Revo-
lução Russa, em 1917, foi capaz de, no período que compreende este ano
e o início da década de 1950, duas grandes façanhas:

(I) a de ter saído da condição de um país semifeudal —


condição essa que lhe fora legada pelo absolutismo
czarista — à condição de ter sido o país que contribui de
forma mais significativa para a vitória sobre a máquina
de guerra nazista na Segunda Guerra Mundial, tendo,
neste contexto, refreado o avanço das tropas alemãs em
seu território e, posterior a isso, as fez retroceder até
Berlim, quando ocorre a rendição e o fim das batalhas no
front ocidental (HUBERMAN, 2008; LOSURDO, 2010b;
MARTENS, 2003).

(II) após o fim da guerra, da qual foi o país que teve mais
baixas — tanto civis quanto militares — e para a qual
uma das consequências foram grandes estragos em sua
infraestrutura interna, a URSS se recuperou em um
curtíssimo período de tempo, e já no início da década
de 1950, mostrava que já se encontrava recuperada do
conflito (MARTENS, 2003; MARCOU, 2013).

Vale destacar que tal feito foi alcançado sem apoio externo. Neste
período, os Estados Unidos chegaram a oferecer apoio por meio do Plano
Marshall, mas tal apoio não foi aceito, pois tinha como uma de suas con-
dições a aceitação, por parte da URSS, da inspeção de sua infraestrutura
por parte de técnicos vinculados ao Plano (MARCOU, 2013), o que, tendo
em vista o contexto posto, poderia significar um problema de segurança
nacional. Desta forma, observa-se que, contando apenas com suas pró-
prias forças, a URSS foi capaz não apenas de se levantar dos escombros
da guerra, como também sair dela como a segunda potência econômica e
militar do planeta, fazendo frente a hegemonia estadunidense.
Outro exemplo que pode ser tomado como um demonstrativo da
potencialidade do socialismo é Cuba. Este país passa, sobretudo após o
fim da URSS, por numerosas dificuldades materiais, fruto do embargo
econômico que por mais de cinquenta anos lhe foi imposto pelos EUA,
e apenas recentemente foi posto abaixo. Ainda que nestas condições,
Cuba mostra uma série de importantíssimas conquistas sociais, e seus
sistemas de educação e saúde são reconhecidos como exemplos por ins-
tituições de grande prestígio em nível global. No que tange ao campo
da educação, o sistema cubano é reconhecido pelo Banco Mundial como

104 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


o melhor da América Latina e do Caribe (LAMRANI, 2014a), e o de saú-
de é reconhecido como um modelo pela Organização Mundial da Saúde
(LAMRANI, 2014b).
Observar estes casos permite verificar que, ao mesmo tempo em
que os países socialistas mostram conquistas como as elencadas acima,
observa-se que o capitalismo, em seu momento histórico atual, é mar-
cado pela escalada da concentração de renda conjugada com os efeitos
da crise econômica de 2008, seguida pelas assim chamadas medidas de
austeridade, um eufemismo utilizado pelos representantes políticos do
capital para o corte sistemático de direitos dos trabalhadores na Europa.
Outro efeito que se vislumbra é o surgimento de movimentos ultracon-
servadores neste continente e mesmo no Brasil, o que é um perigoso pre-
núncio, uma vez que este tipo de movimento foi a base para a escalada
do nazi-fascismo na década de 1930, em meio também a um contexto de
crise profunda do capitalismo.
Estes elementos permitem vislumbrar a dimensão essencialmen-
te política que baliza a discussão sobre desenvolvimento, visto que o
século XX colocou frente a frente dois modelos socioeconômicos fun-
damentalmente antagônicos entre si e que buscavam expandir sua
hegemonia para o âmbito global. Ao fim deste século, o modelo capita-
lista mostrou que, pelo menos neste momento histórico, se encontra
mais fortalecido, e desfruta atualmente de uma relativa hegemonia
em nível global.17 Mas, concomitantemente, vai mostrando as contra-
dições que lhe permeiam, e busca compensá-la por meio do recurso
da guerra, tal como o fez no Afeganistão, logo após os ataques de 11
de setembro de 2001, e no Iraque, em 2003. Esta dimensão política se
desvela na medida em que, quando se fala em construção do socialis-
mo, deve-se necessariamente tratar da perspectiva de superação do
capitalismo enquanto modo de produção fundante do modelo de so-
ciedade que se deseja construir.
Construir o socialismo implica em, de algum modo e em alguma
intensidade, negar o caminho capitalista ou ao menos aquele dese-
nhado pelas grandes potências capitalistas. Ao passo que se trabalha

17 Há discussões em meio ao Movimento Comunista Internacional a respeito dos fatores


que levaram à derrocada da União Soviética. Disponível em: <http://www.hist-socia-
lismo.com/docs/RestauracaoCapitalismoURSS.pdf> Acesso em: 25 jan. 2015. Losurdo
(2004, 2010a) também discute o tema, atribuindo um forte fator relacionado à própria
estratégia adotada pelos EUA com vistas a eliminar seus reais ou potenciais adversá-
rios geopolíticos, ou mesmo aliados que se mostrassem reticentes aos seus interesses,
estratégias e/ou ações.

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 105


Em busca de um caminho voltado para o homem
tendo por base esta visão de mundo, as forças que buscam manter o
caminho capitalista ou o caminho das grandes potências capitalistas
naturalmente reagirão, buscando inviabilizar, de todas as formas pos-
síveis, a construção da via socialista de desenvolvimento. Um grande
expoente desta forma de atuação das grandes potências capitalistas
são os serviços secretos, dentre os quais se destaca a Agência Central
de Inteligência dos Estados Unidos (CIA), agência essa sistematica-
mente engajada em ações de sabotagem e terrorismo contra países ou
líderes políticos de algum modo se mostrem hostis ou ao menos reti-
centes em relação aos interesses estadunidenses (LOSURDO, 2010a).
Este tipo de serviço, bem como outros, foi largamente utilizado contra
os países socialistas que se formaram ao longo do século XX. Obser-
vem-se as palavras de Losurdo (2004)18 a respeito:
[…] em 1947, no momento em que formulou a política
de “contenção” [do avanço do socialismo a nível global],
seu teórico, George Kennan, enfatizou a necessidade
de influenciar “os acontecimentos no interior da
Rússia e do movimento comunista internacional”,
e não apenas através da “atividade de informação”
dos serviços secretos, a qual, porém, como acentua o
autorizado conselheiro da embaixada norte-americana
em Moscou e do Governo dos EUA, não deveria ser
negligenciada. Em termos mais gerais e ambiciosos,
trata-se de “aumentar enormemente as tensões
(strains) sob a qual a política soviética deve operar”,
de modo a “estimular tendências que devem ao final
desembocar ou na ruptura ou no enfraquecimento
do poder soviético”. Aquela que comumente, com
singular eufemismo, é chamada de “implosão”, é aqui
definida com precisão: uma “ruptura” (break-up),
que, por ser tão pouco espontânea, pode ser prevista,
programada e ativamente promovida com mais de
quarenta anos de antecipação. No plano internacional,
as relações de força econômicas, políticas e militares
são tais que — prossegue ainda Kennan — permitirão ao
Ocidente exercer algo semelhante a um “poder de vida
e morte sobre o movimento comunista e sobre a União
Soviética” (LOSURDO, 2004, p. 26, citando Hofstadter
& Hofstadter, 1982, pp. 418-9 grifo nosso).

18 Os textos citados pelo autor que forem apresentados aqui serão referenciados no final
deste artigo, como forma de dar ao leitor um meio — por mínimo que seja — para que pos-
sa se reportar ao texto original, caso assim deseje. A referência será feita conforme os
métodos do autor citante.

106 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Em outro trabalho Losurdo, faz as seguintes observações:
Tomemos um livro dedicado à reconstrução das
atividades dos “primeiros anos da Agência Central
da Inteligência (CIA)”. Seu autor, um jornalista do
semanário estadunidense Newsweek, refere-se a
inumeráveis tentativas de assassinar Fidel Castro19.
Ele se detém nisso por longos trechos, concentrando-se
sobretudo nos detalhes técnicos ou nos aspectos mais
ou menos pitorescos: os “agentes tóxicos” a utilizar, os
“charutos preferidos” pela vítima designada, o “lenço
tratado com bactérias”, o papel confiado à “máfia”, o
dinheiro a pagar ao assassino […]. [Os serviços secretos
estadunidenses], entre as décadas de 1950 e 1960,
elaboraram planos engenhosos para neutralizar
ou eliminar fisicamente Stalin na União Soviética,
Arbenz na Guatemala, Lumumba no Congo, Sukarno na
Indonésia, e dirigentes políticos e militares de outros
países. A cúpula da CIA parte do pressuposto — refere o
livro sem nenhum distanciamento crítico — de que todo
meio é lícito quando se trata de desembaraçar-se dos
“cães raivosos”. (LOSURDO, 2010a, citando THOMAS,
1995, pp. 225-9, 233 passim).

Com base nestes elementos, Losurdo (2004) afasta a tese de que te-
ria havido uma implosão, um colapso ou um desmoronamento da URSS
e de boa parte do mundo socialista no início da década de 1990, dando
preferência à terminologia “ruptura” (break-up), utilizada pelo próprio
serviço secreto dos EUA, para se referir ao fenômeno.

19 Castro figura no Guiness Book como a pessoa que mais sofreu tentativas de assassinato
ao longo de sua vida, totalizando 638 delas (UOL NOTÍCIAS, 2011). O Jornal Tribuna
Hoje (2014) divulgou uma entrevista concedida por um ex-guarda costas de Castro ao
portal RT Notícias (2014) em que são relatadas, de acordo com o jornal, as dez formas
mais curiosas que a CIA se utilizou para tentar assassinar o líder cubano, dentre as
quais se destaca um charuto explosivo, que “tão potente que poderia explodir sua ca-
beça pelos ares”. Além desta, “um plano de esboço médio [!] foi elaborado para colocar
sal de tálio (um produto químico usado em depilatórios) nos sapatos de Fidel Castro
ou um de seus charutos. O produto químico seria absorvido pela pele ou inalado pelo
líder, fazendo com que sua barba caísse”. Tal plano, ainda que não tenha sido realizado,
é cogitado porque “de acordo com o relatório do Comitê de Inteligência do Senado dos
EUA, em 1975, havia o pensamento de que o poder de Castro estava em sua barba. A CIA
estimava que a perda da barba mostrasse aos cubanos que Castro era fraco e falível”. O
mais curioso a se observar nestas circunstâncias, ainda que seja necessário observar
que se trata de situações de alta gravidade, é o fato de a superpotência se utilizar de
planos dignos do personagem Willy Coyote, dos desenhos animados, para se desfazer
de um de seus inimigos.

A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 107


Em busca de um caminho voltado para o homem
Observa-se, portanto, que tratar da discussão referente à produção
científica e tecnológica conjugada com o desenvolvimento não implica
discutir estes conceitos por si próprios, no sentido de apenas discutir,
por exemplo, as novas tecnologias em si e eventuais aplicações delas.
Implica, sobretudo, reconhecer que se trata de uma discussão eminen-
temente política e que implica na escolha de um determinado caminho
de desenvolvimento que se vincula, ele próprio, a um projeto específico
de sociedade, cuja construção depende da correlação formada entre as
diversas forças sociais que se encontram dispostas nesta arena.

108 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


REFERÊNCIAS

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A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: 109


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vas-de-assassinato.htm> Acesso em: 25 jan. 2015.

110 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


CAPÍTULO VII

Ciência, Gênero e Sexualidade: A


influência epistemológica dos estudos
de gênero no discurso biológico
Emerson R. de A. Pessoa
Franciele Monique Scopetc dos Santos
Gustavo Piovezan

O surgimento do sexo e da sexualidade


O filósofo francês Michel Foucault (2011), em sua História da se-
xualidade, mostrou-nos o modo de conduta da sexualidade humana.
Os códigos morais no século XVII eram mais tolerantes com o imoral,
o obsceno e a decência. Porém, o surgimento da burguesia fez com que
a sexualidade passasse a ser assunto da instituição familiar, tendo sua
principal função a reprodução biológica e seu espaço legítimo o quarto
do casal. Com isso, iniciou-se um processo de transformação, no qual
foram instaurados modelos e normas para a sexualidade. Aqueles que
transgridem e se mostram, serão designados sob o espectro da anorma-
lidade. Não apenas isto, pois o espectro da anormalidade acaba, tam-
bém, por atrair, de algum modo, a repressão.
Neste contexto histórico, a repressão funcionava como uma má-
quina cujo principal mecanismo era o silêncio. Não falar da anormali-
dade, das sexualidades ilegítimas seria um dos modos de se gerar o pre-
conceito e reproduzir o normal, instituindo a heterossexualidade como
norma de conduta. É interessante destacar que o discurso de repressão
sexual coincide com o desenvolvimento do capitalismo e dos valores
burgueses. A repressão está ligada à incompatibilidade da sexualidade
com o trabalho. Em uma “[...] época que se explora sistematicamente a
força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos pra-
zeres, salvo naqueles reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reprodu-
zir-se?” (FOUCAULT, 2011, p. 12).
O século XVII foi marcado por um aprisionamento do sexual, in-
clusive no aspecto linguístico, com o discurso médico, por exemplo, que
visavam o controle dos discursos e instaurando o silêncio. Contudo, a

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 111


dos estudos de gênero no discurso biológico
partir do século XVIII, o cerceamento das regras de decência provocou
uma valorização e uma intensificação do discurso “indecente”. Assim, a
Contrarreforma se dedicou a acelerar o ritmo anual de confissões, devi-
do à importância das penitências a todas as insinuações da carne (FOU-
CAULT, op. cit.). Neste sentido, Foucault alude que:
A confissão, o exame de consciência, toda uma
insistência sobre os segredos e a importância da carne
não foram somente um meio de proibir o sexo ou de
afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma
de colocar a sexualidade no centro da existência e
de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos
obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs,
era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em
discurso (FOUCAULT, 1986, p. 230).

O corpo tornou-se a origem de todos os pecados. Se, por um lado, não


se falou sobre sexo, por outro, o assunto foi encurralado por um discurso
que não permitia obscuridade, nem sossego, procurando uma normati-
zação da sexualidade. A moral cristã exigia a confissão de atos, transfor-
mando todos os desejos humanos em discurso. Era necessária decência,
por isso censuras no vocabulário foram incorporadas no seio social, ten-
do como objetivo torná-lo moralmente aceitável e tecnicamente útil.
O sexo não foi censurado e, tampouco, silenciado. Entretanto, foi re-
grado, medido, analisado, educado e categorizado. Tudo isto aos moldes
do capitalismo que se erigia e, à medida que necessita, incorpora a anor-
malidade, reorganiza-se a si e aos sujeitos. Neste sentido uma profusão
discursiva surgiu à medida que o sexo se tornou um objeto de investiga-
ção e controle social. Escreveu Foucault: “[...] Censura sobre o sexo? Pelo
contrário, constituiu-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre
o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem
efeito de sua própria economia” (FOUCAULT, op. cit., p. 29).
Há que se ressaltar que o crescimento discursivo não estava conec-
tado apenas à espiritualidade cristã, mas, também, à economia dos pra-
zeres individuais e ao interesse público da medicina social. O essencial
deste espectro discursivo não era a moralidade, mas, sim sua inserção em
sistemas de utilidade mercantil, estabelecendo um padrão. O sexo pas-
sou a ser administrado, surgiu algo como que a “polícia do sexo: isto é,
necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e
não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, op. cit., p. 31).
No século XVIII, uma das técnicas de poder de manutenção cor-
poral estabeleceu-se devido ao amplo crescimento da população, haja

112 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


vista que este fato acarretou em problemas econômicos e políticos. No
centro desses problemas políticos, inseriram-se aspectos relacionados à
sexualidade, tais como a natalidade, esperança de vida, taxa de fecun-
didade, saúde, doenças e outros. Desta forma, a conduta sexual do povo
foi considerada objeto de análise e de intervenção. As condutas sexuais
analisadas, suas determinações e seus efeitos, o Estado sentiu necessi-
dade de conhecer a sexualidade de seus cidadãos, “[...] entre o Estado e
o indivíduo, o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda
uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram”
(FOUCAULT, op. cit., p. 33).
Outro exemplo nomeado por Foucault (2011) deu-se nos discursos
relacionados à sexualidade das crianças. Segundo o filósofo, não se fala
menos do sexo infantil, fala-se de outra forma, a partir de outros pontos
de vista e para obter outros efeitos. Neste sentido, ao analisar a educação
escolar, nota-se que “basta atentar para os dispositivos arquitetônicos,
para os regulamentos de disciplina e para toda a organização interior:
lá se trata continuamente de sexo” (FOUCAULT, op. cit., p. 34). Os meca-
nismos adotados dentro da escola para vigiar as crianças mostram que
tudo fala de alguma forma sobre a sexualidade das crianças. Com relação
ao sexo colegial, o filósofo afirmou que, no decorrer do século XVIII, isto
passou a ser um problema público, inclusive uma das tentativas de so-
lução foi a criação de uma escola experimental que tinha como objetivo
educacional controlar e impedir a prática sexual dos jovens.
O século XVIII imprimiu modos de condicionamento corporal. As
escolas, como as de educação infantil nos mostraram como foi se sedi-
mentando a necessidade de controle do sexo. Os discursos médicos deste
período, tal como aponta Foucault (2011), intensificaram-se. As bases da
conduta sexual foram estabelecidas e firmadas, a saber, nomeia-se uma
pedagogia do sexo.
Ciências como a pedagogia, a medicina e a psiquiatria formularam
seus saberes, criando normas para a produção de corpos dóceis. A docili-
dade do corpo é essencial também à manutenção do capitalismo. Contro-
la-se com mais facilidade um corpo dócil do que um corpo rebelde. Disse
Foucault (1987, p. 126): “É dócil um corpo que pode ser submetido, que
pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado [...]”.
Em um sentido semelhante ao proposto por Foucault, as investi-
gações de Laqueur (2001) caminham para uma argumentação em que o
discurso é tópico central da análise. Desde a antiguidade clássica, até o
final do século XVII, existia a concepção de um sexo único, o que a lite-
ratura chamou de isomorfismo. Para os estudiosos deste período, as mu-

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 113


dos estudos de gênero no discurso biológico
lheres tinham os seus órgãos genitais internos devido à falta de um calor
vital. Assim a vagina corresponderia ao pênis, os testículos aos ovários,
inclusive tinha a mesma nomenclatura do corpo-referência, deste modo,
as mulheres eram homens invertidos e os homens mais perfeitos que as
mulheres, pois tinham excesso de calor.
Laqueur (2001) mostrou, ainda, que foi somente em 1759 que a ana-
tomia feminina começou a ser estudada em contraste com o esqueleto
masculino. Antes desse período aplicava-se um único tipo de referência
ao corpo humano: a masculina. Portanto, “a sexualidade como atributo
humano singular e muito importante com um objeto específico — o sexo
oposto — é o produto do final do século XVIII” (LAQUEUR, 2001, p. 24).
Assim, as diferenças anatômicas e fisiológicas foram criadas quan-
do se tornaram importantes à economia do Estado. As lutas por poder
e posição nas esferas públicas decorrentes da Revolução Francesa, por
exemplo. A criação de dois sexos, com órgãos distintos, o dimorfismo, ins-
taurou a diferença. Homens e mulheres não eram mais um mesmo corpo
com maior ou menor calor, mas de naturezas distintas (LAQUEUR, 2011).
Foi essa construção discursiva/científica que colaborou na criação
dos estereótipos de gêneros e diferenças biológicas e sociais. Conse-
quentemente, os discursos sobre sexo foram vistos a partir do século
XIX, primeiramente, com a medicina ocupando-se das “doenças de ner-
vos”, em seguida, com a psiquiatria, preocupando-se com a “extrava-
gância” e, por fim, com o onanismo e as “fraudes contra a procriação”
(FOUCAULT, 1986).
No século XX, a diferença tornou-se tópico do debate social. O mo-
vimento de mulheres intensificou-se, emergindo, então, o feminismo. O
feminismo nasceu, nomeado como tal, desde as lutas abolicionista e su-
fragista do final do século XIX. Categorizou-se em diferentes momentos
históricos, diferentes pautas e reinvindicações, os quais, de modo geral,
dividem-se em três ondas. A defesa da igualdade foi o pleito para consi-
derarmos o feminismo como um campo cultural, filosófico e político.
A primeira onda feminista, desde o final do século XIX até o final
do século XX, caracteriza o feminismo como igualitário, cujas principais
brigas davam-se, até meados da década de 50, com o pleito ao voto, os
direitos trabalhistas justos e a igualdade perante o Estado. A conjuntura
pós-guerra mundial, assim como a guerra do Vietnã, provocou inúmeras
manifestações sociais e culturais, principalmente na América do Norte e
Europa, de onde podemos enunciar a Revolução sexual vivida na década
de 70, período compreendido como segunda onda do feminismo, a qual
em linhas mais gerais destinava-se ainda sobre a esteira da igualdade di-

114 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


reitos junto ao Estado e a sociedade, liberdade sexual e reprodutiva assu-
miam premissas importantes na segunda onda (FRASER, 2000).
Nos anos oitentas, os estudos da linguagem, na filosofia francesa da
diferença proporcionou a eclosão de inúmeras características já enun-
ciadas na segunda onda feminista da década de setenta, e consolidadas
em suas bases epistemológicas e práticas a partir da década de oitenta
com o feminismo da diferença, o qual reverberou pautas únicas feminis-
tas atreladas às opressões comuns, porém acentuou perspectivas de não
mais haver um feminismo e sim feminismos.
Os feminismos acentuam as dinâmicas da diferença. A Igualdade,
historicamente localizável, de cunho Iluminista outrora conquistada
pela cidadania, racionalidade não radicalizadas nas diferenças, sendo as-
sim, Joan Scott nos diz: “[...] o feminismo era um protesto contra a exclu-
são política da mulher: seu objetivo era eliminar as ‘diferenças sexuais’
na política, mas a reivindicação tinha de ser feita em nome das ‘mulhe-
res’ (um produto do próprio discurso da ‘diferença sexual) [...]” (SCOTT,
2002, p. 27). Acerca dos feminismos nos diz:
Quando as mulheres se tornaram cidadãs, a impressão
geral era a de que o indivíduo abstrato se pluralizara;
na verdade ele ficou, na melhor das hipóteses,
neutralizado, e é provável que seja mais correto dizer
que ele ficou masculino. As mulheres foram absorvidas
pela categoria “masculino” e declaradas uma versão do
homem para que pudessem exercer o direito de votar. [...]
Quando as mulheres se tornaram cidadãs, elas puderam
ser representadas como indivíduos (abstratos), mas de
que modo poderiam ser representadas como mulheres?
(SCOTT, 2005, p. 282).

O isomorfismo biológico do século XVII, de maneira análoga, opera-


va no social ao tentar representar as mulheres. Sendo assim, as ondas do
feminismo apresentam a manutenção de algumas demandas e a trans-
formação de muitas. Cabe então ressaltarmos o sentido dinâmico que os
feminismos apresentam nos dias atuais. Sendo assim, hoje os feminis-
mos possuem pautas específicas deste ou daquele grupo de mulheres,
indígenas, negras, lésbicas, transexuais, porém une-se ainda nas dimen-
sões maiores da opressão social.
Os estudos da terceira onda, cujos mecanismos teóricos tratam o ser
humano como um complexo de natureza e cultura, onde o corpo é o meio
do qual o gênero se apresenta, foram os estudos que mais influenciaram
o pensamento biológico, nas ciências da natureza. De modo geral, pensar

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 115


dos estudos de gênero no discurso biológico
o gênero como o corpo vivido permite-nos conceber diversos modos de
ser homem e mulher em nossas sociedades. Até mesmo porque não há
um único tipo de homem e tampouco de mulher. Assim, este aspecto pe-
culiar das teorizações feministas serviu para repensar algumas regras
do jogo, na ciência. Estas regras alteraram-se, proporcionando uma nova
visão da realidade, talvez, mais próxima daquilo que ela é de fato.

O paradigma, as regras da ciência normal e o caso da Biologia


Em linhas gerais, a discussão em teoria da ciência remete-nos à
filosofia contemporânea e às diversas correntes de pensamento epis-
temológico. Thomas Samuel Kuhn, expoente do relativismo científi-
co, é um dos nomes mais conhecidos no debate metodológico e teóri-
co em ciência. Sua noção de paradigma, um corpo argumentativo por
meio do qual toda a atividade desenvolve, é referida, nas universida-
des, para diversas áreas do conhecimento. Muitas vezes, por meio das
discussões nas disciplinas de Metodologia Científica, Metodologia da
Pesquisa ou Epistemologia é que as ideias kuhnianas são apresentadas
aos acadêmicos como um modo de se pensar a atividade científica nas
universidades e institutos de pesquisa e, sobretudo, em sua própria
área de formação.
Ao desenvolver sua teoria da ciência, Kuhn recorre inúmeras vezes
a ilustrações para seus argumentos. Estas ilustrações ou exemplos re-
pousam no campo da física quântica, da mecânica dos corpos celestes,
das substâncias químicas e suas interações, do movimento dos planetas,
isto é, objetos de estudo que são distantes de muitos de nós, educadoras
e educadores.
Aqui cabe uma observação, pois dizemos nós, na medida em que
consideramos uma escola, um grupo de alunos, uma proposta didática,
uma proposta pedagógica, um grupo social, minoria ou outros grupos
potenciais de se estabelecer uma relação didático-pedagógica. Com isso
queremos dizer que os fenômenos naturais, bem como suas descrições
teóricas, em nada se assemelham aos objetos de investigação das ciên-
cias humanas, das artes, enfim, das diferentes esferas do saber que não
pertencem ao ramo das ciências naturais.
Do ponto de vista histórico, a humanidade, por meio de suas rela-
ções com a realidade, produz análises teóricas desde a Grécia Antiga. À
medida que o tempo cronológico avançou, as estruturas sociais foram se
transformando e, da mesma forma, o conhecimento. Neste caminho, to-
das as ciências, antes de se constituírem como tal, foram filosofia e me-

116 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


tafísica. Os discursos de Aristóteles, na Grécia antiga, são, por exemplo,
ideias sobre o movimento.
Entretanto, nos moldes epistemológicos estabelecidos por Kuhn,
somente com o surgimento das leis newtonianas sobre o movimento é
que se configurou o conhecimento científico da forma como o concebe-
mos hoje, nesta segunda década do século XXI. Foi exatamente no perío-
do que percorre o início do século XVI até a primeira metade do século XI
que as ciências emanaram, uma a uma, no seio social. Surgiram, a princí-
pio, as ciências da natureza (física, química, biologia) e, posteriormente,
na segunda metade do século XIX e início do século XX, surgiram a an-
tropologia, a sociologia e a psicologia.
Neste contexto, ao descrever o conceito de paradigma, Thomas
Kuhn o fez propondo uma reflexão sobre o modo como um pesquisador
isola as regras aceitas pela comunidade científica. Em linhas gerais, um
grupo de pesquisadores tem um modo próprio de prosseguir, caracterís-
ticas comuns que acabam por defini-lo como comunidade. Este modo de
prosseguir concebe toda uma estrutura metodológica e técnicas de aná-
lises, os quais se fundamentam, também, no paradigma. Na Biologia, por
exemplo, a estrutura teórica que guia a pesquisa científica é o darwinis-
mo contemporâneo, também conhecido como neodarwinismo ou teoria
sintética da evolução, que conecta o pensamento evolutivo, proposto por
Darwin, às leis da genética e epigenética e, recentemente, em fins do sé-
culo XX e início do século XXI, à ecologia.
A teoria sintética da evolução permite-nos investigar questões com-
portamentais conectadas à estrutura genômica ou à estrutura física. A
descoberta dos chimpanzés bonobos, Pan paniscus, foi um caso deste.
Ernest Schwarz, na Bélgica, em 1829, após a morte de um chimpanzé
de comportamento demasiado afável e amoroso — comportamento este
fora do comum para os chimpanzés Pan troglodytes — procedeu à análise
anatômica daquele chimpanzé, que se acreditava ser juvenil, tendo em
vistas a sua pequena estrutura craniana (nos Pan troglodytes os jovens
têm o crânio menor que os adultos, estes crânios juvenis assemelham-
se ao crânio do adulto Pan paniscus). As diferenças procederam além do
crânio e possibilitaram a descoberta de uma nova espécie, pois as dife-
renças tanto no âmbito anatômico quanto comportamentais eram dema-
siadas. Tais diferenças depois foram confirmadas pela análise genômica.
As técnicas de análise, sejam elas da anatomia ou da genética, permi-
tiram identificar um padrão desconhecido e trazer luz à realidade miste-
riosa daquele chimpanzé afável e amoroso que vivia no zoológico e morreu
de ataque cardíaco durante a tempestade. Permitiu ainda conhecer um

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 117


dos estudos de gênero no discurso biológico
pouco mais da história da vida na terra e sua manifestação nas diferentes
formas de seres. As regras que permitem descobertas como estas são par-
tilhadas senão por todos, ao menos pela maioria dos pesquisadores.
Kuhn alerta-nos que uma comunidade científica exerce uma con-
cordância na identificação paradigmática, isto é, em uma determinada
imagem de realidade, uma visão de mundo. Esta imagem produz um dis-
curso de verdade sobre o real, porém, gostaríamos de ressaltar, esta con-
cordância não é a mesma no que diz respeito à interpretação e à raciona-
lização do paradigma. Kuhn afirma:
A falta de uma interpretação padronizada ou de uma
redução a regras que goze de unanimidade não impede
que um paradigma oriente a pesquisa. A ciência normal
pode ser parcialmente determinada através da inspeção
direta dos paradigmas. Esse processo é frequentemente
auxiliado pela formulação de regras e suposições, mas
não depende dela. Na verdade, a existência de um
paradigma nem mesmo precisa implicar a existência
de qualquer conjunto completo de regras (KUHN, 2011,
p. 69. Grifo nosso).

Segundo Kuhn, as regras de um paradigma não implicam em sua


existência ou sucesso ante à comunidade científica. Dito em outras pa-
lavras, não é porque uma regra pode mudar no ato de fazer ciência que
a ciência deixará de ser ciência — há que se considerar que o paradigma
traz consigo métodos e técnicas próprios, assim, uma regra para a obten-
ção de resultados pode ser substituída por outra sem causar danos na es-
trutura paradigmática.
Ainda a pensar a Biologia neste contexto, alguns exemplos podem
ser explorados para tornar claro o modo com as regras do jogo podem
mudar regras da atividade da ciência normal, sem, no entanto, desca-
racterizar o paradigma. A etologia e as pesquisas em ecologia compor-
tamental auxiliam-nos neste caminho. Estas disciplinas científicas tem
um problema quanto à concordância das regras do jogo. O modo de des-
crição comportamental enfrenta um problema que surgiu graças ao fe-
minismo e às ciências humanas.
Em linhas gerais, a Biologia pode ser considerada a ciência natural
em que os estudos feministas e de gênero tiveram mais impacto. Os mo-
tivos pelo seu sucesso na biologia ainda são estudados por pesquisadoras
e pesquisadores20. Contudo, alguns indícios servem como apontamentos,

20 Aqui podemos referenciar: Nancy Leys Stepan (2005); Richard C. Lewontin (1987).

118 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


a saber: as analogias e metáforas que descrevem certas áreas da biologia
são realizadas nos modelos heterossexuais e de gênero.
A linguagem figurativa na descrição, principalmente, da reprodu-
ção de seres contém indícios generizados que, muitas vezes, implicam em
uma interpretação dos resultados apreendidos, distanciando-se daquilo
que potencialmente ocorre na natureza (SCHIEBINGER, 2001). Efetuar
descrições de corte e casamento para plantas e animais em moldes he-
terossexuais, por exemplo, pode impor um obstáculo à compreensão do
fenômeno biológico da reprodução. Neste sentido, escreve a feminista
Londa Schiebinger:
As bactérias eram consideradas como sendo
estritamente assexuadas, até a década de 1940,
quando sua “vida sexual” foi, pela primeira vez,
descrita em termos fortemente heterossexuais. As
bactérias não possuem células de óvulos nem de
esperma; de fato, nas palavras de Lynn Margulis, “a
extrema promiscuidade da transferência de genes
nas bactérias torna a ideia de sexos fixos sem sentido”.
As bactérias foram, não obstante, definidas como
machos ou fêmeas com base na presença ou ausência
de uma “fertilidade” ou fator F (machos são F+; fêmeas
são F-). Para transferir material genético, o “doador”
ou “macho” estende seu pili sexual ao “recipiente” ou
“fêmea”. Diferentemente do que ocorre em organismos
mais elevados, a transferência cromossômica é
unidirecional do macho para a fêmea e o macho, não a
fêmea, produz crias. Além disso, quando uma célula F+
transfere uma cópia de seu fator F- para uma parceira
F-, o recipiente torna-se macho ou F+. Porque a célula
doadora replica seu fator F- durante a conjugação,
ela também permanece F+. Assim, todas as células
em culturas mistas tornam-se rapidamente células
doadoras machos (F+): as fêmeas transformam- se
em machos, os machos permanecem machos, e todos
ficam felizes. Uma célula recombinante F- (fêmea)
resulta apenas de uma transferência “rompida” ou
falha de DNA (o que Aristóteles teria chamado de um
erro da natureza) (SCHIEBINGER,2001, pp. 278-279).

Uma consequência deste tipo de descrição das interações sexuais


bacterianas nos moldes heterossexuais solidifica noções tradicionais
de sexualidade e gênero. Em outras palavras, solidifica o dualismo ma-
cho dominador versus fêmea passiva. Em uma perspectiva retórica

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 119


dos estudos de gênero no discurso biológico
poderíamos inferir, também, que a analogia ao modelo heterossexual da
descrição das transferências bacterianas pode nos impedir de enxergar
a transexualidade existente no fenômeno da reprodução.
Schiebinger (2001) menciona ainda a ênfase dada às explicações
homossexuais em comportamento animal (que não a espécie humana):
durante a procura pela existência de relações e acasalamentos homosse-
xuais foram descobertas treze espécies de lagartos de cauda de chicote
que vivem no sudoeste dos Estados Unidos da América. Embora as fê-
meas destas espécies possam se reproduzir sozinhas, ao “estabelecerem
uma união” com outras fêmeas, estas produzem mais ovos. Este exemplo,
simples, mostra que algumas regras do jogo mudaram ou necessitam de
mudança, mas, a ciência ainda permanece como tal.
As ciências sociais, com os estudos de gênero, permitiram que al-
gumas estruturas do mundo natural, sobretudo aquelas relacionadas à
sexualidade, fossem identificadas de outra forma. Não apenas identifi-
cadas, permitiu que percebêssemos a natureza talvez mais próxima da-
quilo que ela realmente é. O fenômeno é o mesmo: o sexo, entretanto, o
modo como se faz sua descrição mudou. Ele acompanha, graças às inves-
tigações do movimento feminista, novas percepções de como a realidade
se manifesta ante nossos olhos. As bactérias, então, seriam transexuais,
se é que assim podemos chamá-las. Não tínhamos consciência disto até
que os estudos feministas sobre gênero e sexualidade trouxessem à tona
as investigações e informações sobre a transexualidade.
Outro exemplo, mas, sobre o ser humano também nos serve aqui. O
comportamento sexual humano é objeto de estudo na ciência em suas
correntes naturalista e culturalista. De um lado, os naturalistas incum-
bem-se de investigar sistemas de interação entre seres humanos como
atração sexual, estratégias de corte e acasalamento, histórias de vida, di-
ferenças sexuais, influência da voz, da face, altura e outras característi-
cas sexuais. Essas investigações contribuem para desmistificar padrões
de pensamento em nossas sociedades, como ocorreu nos EUA, mais espe-
cificamente no Estado do Texas, quando estudos sobre interações entre
indivíduos do mesmo sexo foram utilizadas na corte texana para revogar
a lei que condenava a sodomia.
Contudo, há ressalvas a esse caráter positivo (como referido no
Texas), pois, a história da ciência mostra-nos casos que o que ocorre é a pa-
tologização do ser humano e, como consequência, um aprisionamento do
sujeito — durante o nazismo na Alemanha, por exemplo, o parágrafo 175
condenava os homossexuais masculinos e femininos aos campos de con-
centração apenas em função de suas identidades sexuais (ELÍDIO, 2010).

120 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Do ponto de vista naturalista, inúmeros casos de interação entre
indivíduos do mesmo sexo têm sido observados em diferentes espé-
cies, incluindo nos mamíferos, aves, répteis, anfíbios, insetos, moluscos
e nemátodos. De modo geral, há duas grandes áreas de investigações: a
primeira descreve os mecanismos que fundamentam o comportamen-
to sexual entre indivíduos do mesmo sexo, esses estudos mecanicistas
foram elaborados com Drosophilas melanogaster, Caenorhabditis ele-
gans e tentilhões-zebra, e especularam sobre os fundamentos genéticos,
neurológicos, hormonais e sociais do problema; a segunda área de estudo
foca o sentido adaptativo do comportamento sexual entre indivíduos do
mesmo sexo (BAILEY, 2009).
O segundo tipo de investigação, conforme indica-nos Bailey (2009),
tem seu objeto de estudo no paradoxo que esse comportamento aparen-
temente apresenta. Há uma ideia superficial de que o comportamento
entre indivíduos do mesmo sexo seria incompatível com o ponto de vista
evolutivo, algo como uma violação da lei natural ou da lei da procriação.
Nesse sentido, as investigações tentam conciliar esse fenômeno compor-
tamental com a teoria da seleção natural e sexual, de modo que os re-
sultados, até o presente momento, sugerem explicações adaptativas que
Bailey (2009) divide em três grupos:
1. O comportamento homossexual providencia os laços
necessários para manter e reforçar as relações sociais,
como é o caso dos golfinhos;
2. O comportamento homossexual intensifica ou diminui
a agressão intrasexual e de conflito, como ocorrem
em algumas espécies de besouros, que montam outros
machos para conseguirem mais chances de acalamentos
com as fêmeas;
3. As interações sexuais do mesmo sexo forneceriam
experiência na prática de corte, montagem e outros
comportamentos associados à reprodução, o que
melhoraria o sucesso reprodutivo no caso de uma
interação heterossexual em um futuro possível.

O trabalho de Bailey (2009) mostra-nos que os estudos sobre inte-


rações entre indivíduos do mesmo sexo apontam, também, para algumas
conclusões: as interações macho-macho ocorrem com maior frequência
em espécies poligâmicas, ao passo que as interações fêmea-fêmea ocor-
rem em espécies com acasalamentos monogâmicos.
A sexualidade e a reprodução no comportamento animal têm sido
objetos de investigação desde o final do século XX. Roughgarden, com

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 121


dos estudos de gênero no discurso biológico
influência do movimento feminista, publicou, em 2007, um artigo na
Science, que resultou dois anos depois em sua obra O gene genial, uma
crítica à teoria da seleção sexual de Darwin e ao neodarwinismo de Ri-
chard Dawkins. Em Do we need a sexual selectio 2.0? escreveu que a co-
munidade científica necessita de uma teoria que suplante ou substitua
a teoria de Darwin tendo em vista os erros descritivos e de observação
que ela apresenta.
Entretanto, no plano epistemológico, a teoria de Roughgarden
consiste em uma alternativa à de Darwin e também apresenta erros
metodológicos e de observação. Nesse sentido, não ocorre um con-
fronto teórico na explicação fenomênica da natureza. Antes, há uma
proposta de substituição no modo como se realiza a descrição do real.
Aqui, neste ponto, voltamos ao início de nosso texto: mudam-se as
regras do jogo, mas, o jogo continua. Alguns cientistas partilham dos
anseios de Roughgarden, ao passo que outros acham-na apenas mais
uma voz a gritar contra o darwinismo e, por fim, há aqueles que mes-
claram algumas ideias de Roughgarden aos seus trabalhos e ativida-
des de ciência normal.
Além dos argumentos pelo exemplo de Roughgarden, a expli-
cação evolutiva angaria figuras metafóricas nas obras do psicólogo
Franz De Wall. Suas pesquisas com primatas não humanos trazem, ao
grande público, informações sobre a natureza benevolente de nossos
parentes mais próximos. A novidade na abordagem feita por De Wall
(2007) se dá em consequência da recente descoberta dos chimpanzés
bonobos, Pan paniscus.
Os bonobos possuem uma natureza mais tranquila do que as outras
espécies de primatas não-humanos que conhecemos. Além disso, são
animais sociais, membros de colônias matriarcais, onde o sexo reina
como principal mecanismo para o controle do poder e manutenção das
tensões sociais. As fêmeas estão no topo da hierarquia social e fazem a
distribuição da comida. Em De Wall (2007; 2009), a metáfora da comu-
nidade é também evocada.
Conhecidos pela frase “faça amor e não guerra” os bonobos ser-
viram para contrapor as pesquisas sobre a natureza da agressivida-
de e do egoísmo, posicionando-se no lado altruísta da discussão sobre
a natureza humana. Um fator importante é que, além de explorar a
sexualidade, De Wall investiga o grooming e a resolução de conflitos.
Tais temas, antes considerados ‘femininos’ por causa de preconceitos
sociais e históricos, somente agora são pensados na biologia e, nesse
sentido, mostram a influência resultante da crítica que as humanida-

122 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


des efetivaram ao pensamento biológico. Tal mudança, em um sentido
estrito, constitui uma influência epistemológica na abordagem fe-
nomênica do real. Uma influência que impulsiona a mudança de re-
gras no jogo paradigmático da ciência.

Sexualidade, epistemologia e ciência


De modo geral, o papel da ciência no decorrer da história moder-
na foi produzir discursos de verdade. No caso de questões sociais que
envolvem sujeitos o discurso direcionou-se ao louco, ao onanista, à
histérica e ao homossexual. O principal intuito deste discurso, segun-
do Foucault (1986), foi a produção de corpos dóceis. A psiquiatria, por
exemplo, ao desenvolver um campo exclusivo de atuação, denominado
perversões sexuais, criou o homossexual moderno, contrapondo-o ao
sodomita.
A partir de 1870, a homossexualidade passou a ser constituída pe-
los psiquiatras como objeto da análise médica. Tais corpos foram mar-
cados linguisticamente por dispositivos de saber-poder que controlam
as relações entre sexo, desejos e subjetividades (FOUCAULT, 2011):
O homossexual do século XIX torna-se um personagem:
um passado, uma história, uma infância, um caráter,
uma forma de vida; também é morfologia, com uma
anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa.
Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa a sua
sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a
todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso
e infinitamente ativo das mesmas; inscrita em seu
pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo
que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto
como pecado habitual, porém, como natureza singular
(FOUCAULT, op. cit., p. 50. Grifo nosso).

Não houve censura, o que houve foi uma fomentação do discurso re-
gulador e polimorfo. E foi a partir da necessidade, urgência de natureza
econômica e política, que os discursos foram criados, sempre limitados,
codificados, para mantê-los em segredo. Contudo, este segredo, à me-
dida que o movimento feminista e de liberação sexual procederam em
suas análises sobre a natureza e o discurso científico, foi se esvaindo. As
análises identificaram problemas, os quais entravam em desacordo com
o discurso biológico — como no caso que mencionamos da reprodução
bacteriana ou das descrições comportamentais. Com a intensa produção

Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 123


dos estudos de gênero no discurso biológico
intelectual das teorias feministas e de gênero estas áreas das ciências
naturais que tratam, também, do tema sexo e sexualidade acabaram por
se contaminar, mudando algumas regras do jogo.
Este processo ainda se encontra em mudança, mas, já de ante-
mão, afirmamos que o discurso da verdade, por exemplo, em intera-
ções sexuais de indivíduos do mesmo sexo é encarado de outra forma.
Com um olhar menos heterossexual, favorecendo, talvez, a realidade,
mostrando-a mais próxima daquilo que ela é. Esta verdade só foi pos-
sível graças ao desenvolvimento de dois campos distintos de conheci-
mento. De um lado as ciências naturais com suas investigações sobre
os viventes, do outro lado as ciências humanas e suas investigações
sobre o fenômeno do sexo em nossa espécie.
Joan Roughgarden e Franz de Wall são exemplos de cientistas que
fornecem um tratamento mais adequado a estas questões. Ambos so-
freram influências do movimento feminista e de questões empáticas
presentes na natureza. Suas pesquisas alcançaram grande repercus-
são na comunidade científica neste início do século XXI, culminando
em aceitação por parte de alguns e rejeição por parte de outros (menos
abertos às diferenças, talvez). Isto, no final das contas, não nos vem ao
caso, pois o que nos importa aqui é o caráter processual que a ciência se
apresenta, onde os discursos de verdade mudam.

124 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


REFERÊNCIAS

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HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos Esco-
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LEWONTIN, R. C.; ROSE, Steven; KAMIN, Leon. J. Genética e política. Tra-
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______. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do ho-
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Ciência, gênero e sexualidade: A influência epistemológica 125


dos estudos de gênero no discurso biológico
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socialista-feminista da cultura política do capitalismo tardio. Debate Fe-
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LAQUEUR, Thomas. W. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos à
Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

126 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


CAPÍTULO VIII

Arte e Ciência: Contribuições para a


pesquisa social na contemporaneidade

Raphaela Rezzieri
João Paulo Rossatti

Como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas


são o fundamento da sociedade, aquelas constituem
seu deleite. Enquanto o Governo e as leis atendem
à segurança e ao bem-estar dos homens reunidos,
as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e
talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores
sobre as cadeias de ferro de que estão eles carregados,
afogam-lhes o sentimento dessa liberdade original
para qual pareciam ter nascido, fazem com que amem
sua escravidão e formam assim o que se chama povos
policiados. A necessidade levantou os tronos; as ciências
e as artes os fortaleceram. Potências da terra, amai
os talentos e protegei aqueles que os cultivam. Povos
policiados, cultivai-os; escravos felizes, vós lhes deveis
esse gosto delicado e fino com que vos excitais, essa
doçura de caráter e essa urbanidade de costumes, que
tornam tão afável o comércio entre vós, em uma palavra:
a aparência de todas as virtudes, sem que se possua
nenhuma delas

Jean-Jacques ROUSSEAU. Discurso sobre as ciências e as artes.

A história da humanidade é marcada por uma sequência de trans-


formações na maneira de se ver e compreender o mundo. Nas ciências
(em todas as suas instâncias e grandes áreas), conforme pontuou Tho-
mas Kuhn, podemos denominá-las por “paradigmas”. Esta sequência de
mudanças nas formas de se compreender o mundo que, para este autor,
podem ser caracterizadas como as realizações científicas que, por algum
tempo, são capazes de fornecer soluções e problemas com os quais um
agrupamento humano trabalha. No que concernem as artes, essas mu-

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 127


danças assinalaram a maneira do homem se expressar e de representar a
sociedade e a si próprio, ou seja, as diferentes maneiras pelas quais a lite-
ratura, pintura, escultura, entre outras, foram produzidas pelos homens.
Umas das mais emblemáticas transformações na maneira de perce-
ber o universo que nos cerca ocorreu na Itália, a partir do século XIV e
colocou em movimento uma série de questões (se seguirmos a concepção
de Kuhn, podemos dizer que esse momento estabeleceu uma série de pa-
radigmas) que até hoje ressoam em nossa sociedade. Ao final do período
que conhecemos como Idade Média, o homem voltou-se para si e passou a
procurar e a conceber novas fontes de saber, antes, limitadas pelo poder
político e dominação espiritual da Igreja. Desse ato, descobriu que a ver-
dade, para além dos muros da religião e do misticismo, estava dentro de
si. Novos paradigmas ou formas de se compreender surgiram, atribuindo
novas “cores” ao mundo. Ao assumir o seu compromisso com o saber, o ho-
mem da renascença nomeou o período anterior como “Idade das Trevas”
que, a partir de então, dava lugar a “Idade da Luz”. Como efeito, teve início
um movimento que pouco a pouco diminuiu a importância da escatologia
cristã no cotidiano, colocando o homem, desde então, como o soberano de
seu próprio destino21.
Nesse período, surgiu na Europa o movimento humanista, que bus-
cou no racionalismo o cerne de seus desdobramentos. Os humanistas
foram buscar na antiguidade clássica a inspiração para o seu modelo de
produção intelectual e artística. Dessa maneira, o declínio da influên-
cia doutrinal e mística da religião somada às ideias propostas por esses
pensadores, influenciou sobremaneira os estudos da época. A difusão do
pensamento humanista ganhou força com o desenvolvimento da impren-
sa, a partir da segunda metade do século XV, o que, sem dúvida alguma,
alavancou o estabelecimento de instituições de ensino que valorizavam,
sobretudo, a razão.
O papel da imprensa como meio de divulgação do conhecimento e
também de representações artísticas, tornou-se um ponto evidente dian-
te da dimensão das transformações na própria difusão do conhecimento,
que passou a circular de forma mais rápida nos espaços urbanos do perío-
do. A maior e mais dinâmica circulação de ideias contribuiu para a efeti-
vação da busca empírica para a explicação do mundo, impulsionando o
desenvolvimento das Ciências, conforme aponta John B. Thompson:

21 É necessário frisar que o desenvolvimento da ciência e da arte não ocorreu sem que hou-
vesse um contra movimento de reação, por exemplo, o caso de Giordano Bruno que foi
queimado na fogueira pelo Santo Ofício acusado de blasfêmia.

128 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


O desenvolvimento dos meios de comunicação se
entrelaçou de maneira complexa com um número de
outros processos de desenvolvimento que, considerados
em sua totalidade, se constituíram naquilo que hoje
chamamos de “modernidade”. Por isso, se quisermos
entender a natureza da modernidade — isto é, as
características institucionais das sociedades modernas
e as condições de vida criadas por elas — deveremos
dar um lugar central ao desenvolvimento dos meios de
comunicação e seu impacto (THOMPSON, 2013. p. 25).

Foi nesse ambiente de efervescência cultural que começaram a sur-


gir os primeiros clubes de leitura, bibliotecas e acervos de arte,22 e, prin-
cipalmente, os salões, espaços frequentados por intelectuais e homens
das letras que, nesse lugar de socialização, uma esfera pública segundo
Jürgen Habermas, utilizavam da razão para discutir e tecer apreciações
sobre o mundo.23
Todo esse movimento estimulou uma nova maneira de os homens
(especificamente o europeu) observarem o mundo e, consequentemen-
te, de se expressarem. Tal período ficou conhecido como Renascimento
Cultural, cujo “renascer” legou à humanidade uma nova estética. Histori-
camente, o período entre o final da Idade Média e o início da Moderna foi
representado por inúmeras transformações sociais, econômicas e políti-
cas. Com o renascimento cultural veio também o renascimento urbano,
assinalado pela intensificação do comércio e o aparecimento de grandes
feiras em cidades europeias. O comércio, sabe-se, intensificou as trocas
não só de mercadorias, mas também de ideias, além de promover a loco-
moção de pessoas, que, devido à melhoria das estradas, passaram a ter
maior mobilidade. Movimento que não cessou até o século XX, quando
a maior parte da população mundial já se concentrava em espaços urba-
nos.24 Em outras palavras, o crescimento das cidades era ditado pelo rit-
mo do mercado, isto é, pelas relações mercantis ali estabelecidas.
As transformações de ordem econômica incentivaram um novo
panorama cultural. Ao passo em que o pensamento mercantil, e poste-

22 Cf.: CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: EdU-
NESP, 2003.
23 A discussão mediante “razão”, para Habermas, acontece quando dois sujeitos, ou mais,
que se compreendem como iguais, reúnem-se para discutir política, arte, etc., mediante
processos argumentativos racionais. A imprensa tem importante papel nesse processo,
pois, por meio dela se estabeleceu uma audiência crítica de indivíduos. Cf.: HABERMAS,
Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo: Edunesp, 2014.
24 Cf.: LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Edunesp, 1998.

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 129


riormente o capitalista,25 se cristalizava uma figura singular: o mece-
nas. Senhores ricos interessados em patrocinar as artes.26 A busca pelo
prestígio e a tentativa de conservar a estrutura social da época moviam
os detentores do poder econômico e político. Interessados em manter
o poder hegemônico e, sobretudo, alcançar a confiança (consenso) do
povo, muitos governantes e religiosos utilizaram a arte para difundir
suas mensagens políticas. Desse modo, a arte fora utilizada como forma
de propagar entre as camadas populares representações sociais, políti-
cas e estéticas da sociedade. Atividade esta facilitada pelo desenvolvi-
mento técnico da imprensa na reprodução de textos e imagens, como
apontamos anteriormente.
Foi uma característica notória dos artistas do Renascimento, a
capacidade de dialogar com as diferentes manifestações artísticas e
científicas. Muitos de seus artistas eram matemáticos, escritores, ana-
tomistas, escultores, entre outros, dos quais podemos destacar a genia-
lidade polivalente de Leonardo Da Vinci que “passeou” pela engenharia,
arquitetura, pintura, escultura, anatomia, matemática, astronomia e
vários outros campos. Da Vinci, por exemplo, por meio de seus estudos
sobre anatomia humana e sobre a dinâmica do movimento corporal,
ajudou a desenvolver a técnica da pintura realista. Ora, a ciência veio
oferecer suporte para a produção artística e em linhas gerais, não há
como estabelecer fronteiras claras entre a permanente influência da
arte na ciência e da ciência na arte.
Sendo a cultura o resultado de uma elaboração do homem, enten-
dendo que a ciência e a arte são atividades ou processos humanos, ambos
são desdobramentos da produção humana, logo, uma atividade cultural.
Mas há aí uma hierarquização da produção cultural, onde comumente (e
por vezes, preconceituosamente), a esquematizamos entre erudita e po-
pular. Porém, as trocas entre o que se convencionou caracterizar como
“popular” e “erudito” sempre existiram nas sociedades pré-industriais,
assim, podemos asseverar para o movimento fluído do contato entre am-
bas, pois, conforme dois famosos estudiosos (Mikhail Bakhtin e Carlo
Ginzburg) existiu um movimento de circularidade cultural, uma vez que
as obras (que a princípio não haviam sido produzidas para determinado
público) acabavam circulando em diferentes estratos sociais, o que por

25 Para uma noção mais ampla sobre o desenvolvimento do pensamento capitalista no seio
da sociedade europeia a partir do século XV, ver os três volumes de “Civilização material
e capitalismo” do historiador francês Fernand Braudel.
26 Cf.: BURKE, Peter. O renascimento cultural italiano. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

130 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


sua vez deixa explícito “um relacionamento circular feito de influencias
recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para bai-
xo” (GINZBURG, 2008. p. 10).
Para os homens do renascimento, ainda era possível observar o
mundo em conexão. Isto é, como escreveu Da Vinci: “Para desenvolver
uma mente completa estude a arte da ciência; estude a ciência da arte.
Aprenda a enxergar. Perceba que tudo se conecta a tudo” (DA VINCI apud
ARAÚJO-JORGE, 2004, p. 15). A partir do século XIX, contudo, a sociedade
ocidental entrou em uma era de especialização e acabou por negligenciar
essa capacidade, valorizada em outros tempos, pois, como sabemos, foi
a partir desse momento que as ciências começaram a se desenvolver e,
logo em seguida, foram colocadas em escaninhos próprios. Decorrente a
isto, a estrutura universitária foi dividida em especialidades e cátedras,
conforme conhecemos hoje em dia.
Agora que apontamos os meandros do desenvolvimento da ciên-
cia e suas influências na cultura, podemos construir um esboço sobre
como se constituiu o caminho contrário. Como resultado do estabe-
lecimento concreto da disciplina de Antropologia, que ocorreu em
meados do século XIX, é possível buscarmos, já no século XX, uma
definição antropológica para o conceito de cultura — conforme já
apresentado — como o resultado de toda e qualquer produção huma-
na. Todos os seres humanos, independente dos recursos materiais ou
intelectuais que possuem, produzem cultura. Desse modo, a cultura
seria o “cimento” para as demais produções, inclusive a própria arte,
bem como, para a ciência. Ou seja, a cultura além de funcionar como
a “cola” que une os homens, também funciona como uma “jaula” que o
aprisiona certas determinações sociais27.
Bom, já sabemos que a ciência faz parte da esfera cultural, agora,
podemos compreender a cultura como ciência? Tanto nas chamadas
ciências biológicas ou naturais, como nas humanas e sociais, o elemen-
to subjetivo, isto é, a presença do sujeito observador, traz consigo sua
própria cultura, seus sentimentos, sua maneira de olhar o mundo. Essa
perspectiva subjetivista está atrelada à mudança do paradigma cientí-
fico advinda, sobretudo, da física de partículas (a mecânica quântica)
que, no início do século XX (principalmente após a publicação da Teoria
Geral da Relatividade em 1916), causou uma transformação na forma e
na relação entre o observador e o objeto. Sob esta perspectiva, o obser-

27 Segundo Ginzburg a cultura funciona como “uma jaula flexível e invisível dentro da qual
se exercita a liberdade condicionada de cada um”. In: GINZBURG. C. op cit. p. 20.

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 131


vador carrega consigo as condicionantes do seu espaço de experiência,
isto é, o seu ponto de vista depende diretamente dos referências cultu-
rais em que está inserido, e, portanto, é subjetivo, fato que pode alte-
rar o resultado da pesquisa. Tal constatação teve grande repercussão
nas ciências humanas, principalmente na antropologia que, daquele
momento em diante, passou a considerar a perspectiva do observador
com relação ao observado e vice-versa28. Para solucionar este problema
e atribuir a “neutralidade” necessária aos estudos, o que passou a carac-
terizar a cientificidade da pesquisa foram basicamente os métodos de
investigação, entretanto, o sujeito observador sempre existirá, preco-
nizando o “relativismo cultural” como perspectiva analítica29.
As transformações que ocorreram no período renascentista de-
sembocaram no que compreendemos por modernidade ou Idade Mo-
derna, cujo auge foi representado pelo movimento iluminista no sécu-
lo XVIII. A razão, ou a “iluminação” pelo conhecimento, proposta nesse
momento, encontrou seus fundamentos na libertação do homem das
crenças que o prendiam à escuridão — e mais importante –, na própria
subjetividade dos indivíduos. Assim, a modernidade construiu seus
alicerces sobre o racionalismo expresso na questão do método, debate
que culminou com a crítica da razão proposta por Kant: “até onde é
possível conhecer?”. Segundo Rousseau:
É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por
seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar, por
meio das luzes de sua razão, as trevas nas quais o envolveu
a natureza; elevar-se acima de si mesmo lançar-se, pelo
espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de
gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que
é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para
estudar o homem e conhecer sua natureza, seus deveres
e seu fim (ROUSSEAU, 2000, p. 189).

O louvor de Rousseau ao restabelecimento das artes e das ciências


encontra alguns pontos negativos. A advertência que o genebrino faz em
seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes” objetiva levar seus leitores a
refletirem sobre a deturpação/corrupção dos valores morais engendra-
da pelas artes e pelas ciências.

28 Cf.: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
29 Conforme defende, por exemplo, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz em ar-
tigo chamado “o anti antirrelativismo”. In: GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropolo-
gia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 47-67.

132 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Retomemos a citação inicial. Ora, para Rousseau a arte e a ciência
escondem caminhos perigosos, sobretudo, por terem se transforma-
do em objetos de distinção social e legitimidade política, isto é, por
terem sido transformadas em instrumentos do poder hegemônico.
Arte e ciência para Rousseau seriam nocivas aos bons costumes prin-
cipalmente porque os filósofos ilustres pouco se interessavam pelos
saberes rústicos, sobrepondo-os aos saberes científicos, julgando que,
sem acessar estes últimos, a população em si não poderia compreen-
der suas verdades.
Um dos males das artes e das ciências seria então, a vaidade e o luxo.
Conforme Rousseau:
Tal é o luxo, como elas nascido da ociosidade e da
vaidade dos homens. O luxo, raramente, apresenta-
se sem as ciências e as artes, e estas jamais andam
sem ele. Eu sei que a nossa filosofia, sempre
fecunda em máximas singulares, pretende, contra
os séculos, que o luxo seja o esplendor dos Estados;
[...] Os antigos políticos falavam constantemente
de costumes e de virtudes, os nossos só falam de
comércio e de dinheiro. [...] Avaliam os homens como
gado. (ROUSSEAU, 2000, p. 205).

Na ciência, por meio do método e da razão, construímos modelos de


explicação do real. Na arte, ao contrário, utilizamos da experiência sen-
sível para compreender e, em alguns momentos, transformar a maneira
como interpretamos o mundo.
Costumamos entender a experiência sensível provocada pela
arte como gratuita e desinteressada. Será mesmo? Como o próprio
Rousseau antecipou e Marx posteriormente reelaborou; a arte, como
produto individual do sujeito, revela também a psicologia social de
uma época, ou, a ideia que se quer construir sobre tal época. Então
chamamos a atenção para pensarmos a arte não como um objeto esté-
tico com fim em si mesmo, mas como um instrumento político. “Toda a
arte surge de uma concepção ideológica do mundo; não existe [...] qual-
quer obra de arte que será inteiramente livre de conteúdo ideológico”
(EAGLETON, 2011, p. 37).
Mesmo impregnada de conteúdo ideológico, a arte consegue nos
distanciar do objeto artístico ao ponto de nos pe rmitir “sentir” a ori-
gem dessa ideologia, ou seja, é um recurso de mão dupla. Ciência e
arte podem se debruçar sobre um mesmo objeto, contudo, da ciência
objetivamos extrair o conhecimento conceitual puro, enquanto a arte

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 133


nos possibilita “experienciar” situações. Ao “experiênciá-las”, somos
conduzidos a um entendimento completo, que pode ser interpretado
como científico.
A arte transforma a experiência vivida em objeto do conhecimen-
to por meio dos sentimentos, ou seja, não depende necessariamente da
ciência, pois a sua relação com o público é muito mais subjetiva, já que
visa atingir o “sentir” do homem, ao contrário da ciência que se ancora
na objetividade. Aí reside a importância da crítica. É indispensável se
pensar acerca dos objetos artísticos, pois estes tendem a legitimar com
maior facilidade nosso olhar sobre o mundo e, portanto, podem ser utili-
zados (e com frequência o são), tanto para libertar, como para aprisionar
os homens à sua condição. Numa sociedade como a nossa, onde a criação
dos desejos de consumo encontra seu suporte mais elementar na expe-
riência sensível, ou seja, na estética, o olhar crítico sobre os objetos de
arte se faz imprescindível. Entenda-se aqui “objetos artísticos” em um
sentido bastante amplo, podendo englobar literatura, pintura, fotogra-
fia, teatro, música, cinema e até mesmo as peças publicitárias, altamente
estetizadas na atualidade (pop art). Mesmo com sua objetividade intrín-
seca (vender um produto) as criações publicitárias recorrem a elementos
emotivos, podendo alterar a nossa compreensão da realidade, criando
novas possibilidades para a imaginação.
Segundo Jean-Paul Sartre (2013), o ato imaginativo tem seus peri-
gos e vantagens. A imaginação nos liberta do real, mas não nos separa
dele. Trata-se de um certo tipo de consciência, representado como ato,
não como coisa. Em outras palavras, a imagem é a consciência que cons-
truímos de alguma coisa. Um processo que atua como mediador entre o
vivido e o pensado. A experiência sensível transforma o mundo em ima-
gens e a imaginação decorrente desse processo alarga o campo do real
percebido, conferindo-lhe sentidos. O problema dos significados passa
necessariamente pelos sentidos.
Na experiência estética, a imaginação manifesta a relação dialéti-
ca que os sujeitos estabelecem com natureza. O sentimento que o objeto
desperta resulta em imagens. As potencialidades despertadas pela ex-
periência estética, não são apenas de um sentimento em relação a uma
obra, mas de um mundo que se descortina. A consciência é o centro da
atividade do conhecimento. Os significados produzidos pela arte permi-
tem que as coisas adquiram sentido para nós e a imaginação permite aos
sujeitos irem além do visível.
O que se faz necessário, portanto, é refletir como a obra nos atinge
e como ela age em nós. Ao se encarnar no sujeito, a obra se objetiva e se

134 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


abre para uma nova história. A cada experiência o sujeito torna-se apto a
descobrir mais “sentidos”, dos quais ele não acrescenta à obra, mas acres-
centa a obra dentro de si.
Grosso modo, o que pretendemos com esse texto foi chamar a aten-
ção para pensarmos um pouco em como nossa percepção se relaciona
com os fenômenos e com a realidade que nos cerca. A desnaturalização
do nosso olhar sobre esse processo é essencial para tornar cognoscível o
que engendra o movimento capaz de tornar visível ou invisível um dis-
curso. Como pesquisadores, estudantes, cidadãos e sujeitos críticos que
objetivamos ser, pensar para além do que está posto se faz indispensável.
Precisamos nos tornar ávidos observadores da realidade social. Esse pe-
queno, mas complexo exercício nos permite compreender como certas
“verdades” são estabelecidas e legitimadas. Essa é a primeira atitude do
pesquisador; partir da dúvida, elaborar perguntas, procurar repostas, en-
contrar os porquês. Essa é a primeira atitude capaz de devolver a sobera-
nia de nosso próprio espírito.
Ao longo dos últimos séculos, a experiência histórica no mundo Oci-
dental, em significativos momentos, evocou o partidarismo político cons-
ciente e a capacidade de produzir uma arte política, desenvolvendo-os
simultaneamente. Devemos ter em mente que a arte pode ser um objeto,
um produto da consciência social, uma visão de mundo; mas também, na
sociedade contemporânea, é caracterizado como um produto a ser con-
sumido/vendido no mercado do lucro, conforme aponta Theodore Ador-
no, em seu famoso ensaio sobre a arte na era da reprodução técnica. E,
conforme Marx e Engels alegaram, a arte pode ser o produto social mais
mediado em sua relação com a base econômica e política, sendo também
parte constitutiva dessa estrutura. Mesmo produto da sociedade capita-
lista, sendo com frequência convertida em mercadoria e deformada pela
ideologia; a arte é capaz de nos atingir e de nos proporcionar uma espé-
cie de verdade ou conhecimento, e revelar como os homens vivem, como
compreendem sua condição e como agem sobre ela. “Ler” criticamente a
arte é um requisito elementar para interpretarmos nosso presente. Des-
te ato, talvez, possamos nos tornar capazes de transformá-lo. Lembramo-
nos sempre: “só ajo sobre aquilo que conheço”.
O exercício crítico da arte e de seus desdobramentos nos permite
apreender com profundidade os objetos artísticos e consequentemente,
estimulam a criação de uma arte e de uma sociedade melhor. A crítica é
indispensável para a libertação de todo o tipo de opressão.
Nessas veredas que percorremos agora (de maneira muito breve),
da Idade Média até a contemporaneidade, tivemos como norte de-

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 135


monstrar como arte e ciência caminharam juntas por muito tempo,
como se “divorciaram” em alguns momentos, a fim de atender inte-
resses de determinados setores sociais, ou mesmo, quando a dicoto-
mia entre ambas foi estabelecida, rompendo com um possível diálogo.
Contudo, é necessário frisar: para uma compreensão mais profunda
das relações sociais, não é possível negligenciar a contribuição ex-
pressiva da arte que, por excelência, foi a depositária mais fiel das
vontades e desejos que moveram os homens no tempo.

136 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


REFERÊNCIAS

ARAUJO-JORGE, Tania Cremonini. Ciência e arte: caminhos para a ino-


vação e criatividade. In: ______.(Org.). Ciência e Arte: encontros e sintonias.
1. ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2004.
BURKE, Peter. O renascimento cultural italiano. São Paulo: EdUNESP,
2010.
CHARTIER, Roger. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São
Paulo: EdUNESP, 2004.
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. São Paulo: EdUNESP,
2011.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. São Paulo:
EdUNESP, 2014.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um mo-
leiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Cia. das Letras. 2008.
KUHN, Thomas S. As estruturas das revoluções científicas. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: EdUNESP, 1998.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. São Pau-
lo: Nova Cultural, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. Porto Alegre: L&PM, 2013.
THOMPSON, John. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia.
Petrópolis: Vozes, 2013.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

OBRE OS AUTORES

Arte e Ciência: Contribuições para a pesquisa social na contemporaneidade 137


SOBRE OS AUTORES

Capítulo I
O “Prometeu acorrentado”: à guisa de uma introdução
Mauro Henrique Miranda de Alcântara – Professor do Instituto Federal de Rondônia,
Campus Colorado do Oeste. Graduado, Mestre e Doutorando em História pela
Universidade Federal de Mato Grosso.

Capítulo II
Crenças e credos em Ciência dos Solos na Amazônia
Stella Cristiani Gonçalves Matoso – Professora do Instituto Federal de Rondônia,
Campus Colorado do Oeste. Graduada em Agronomia pela Universidade Federal
de Rondônia. Mestre em Produção Vegetal pela Universidade Federal do Acre.
Doutoranda em Biodiversidade e Biotecnologia pela Rede BIONORTE.
Paulo Guilherme Salvador Wadt – Pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária, bolsista Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão
Inovadora (nível 2) do CNPq e, docente permanente nos Programas de Pós-Graduação:
Doutorado e Mestrado em Agronomia (UFAC) e doutorado em Biodiversidade e
Biotecnologia (Rede Bionorte). Graduado em Engenharia Agronômica e Mestre em
Ciência do Solo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorado em Solos
e Nutrição de Plantas pela Universidade Federal de Viçosa. Realizou pós-doutorado
em Geomática pela Universidade da Flórida.

Capítulo III
Meio ambiente e sociedade: transformação e história
Roberta Carolina Ferreira Galvão de Holanda – Professora do Instituto Federal
de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Graduada em Ciências Biológicas pela
Universidade Federal de Rondônia. Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio
Ambiente pela Universidade Federal de Rondônia. Doutoranda em Fisiologia Vegetal
pela Universidade Federal de Viçosa.

Capítulo IV
Trabalho, consumo e preservação ambiental: discurso
capitalista para uma prática inerente ao sistema
Marcos Antonio Oliveira Rodrigues – Acadêmico do curso de Licenciatura em Ciências
Biológicas do Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste. Bolsista do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Formado em Técnico
em Agropecuária pelo Instituto Federal de Rondônia, Campus Colorado do Oeste.

William Kennedy do Amaral Souza – Professor do Instituto Federal de Rondônia,


Campus Colorado do Oeste. Graduado em Ciências Sociais e Mestre em Educação pela
Universidade Federal de Mato Grosso.

139
Capítulo V
Entre os “imprescindíveis” e os “redundantes” —
olhares sobre as relações de trabalho no Brasil
Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa – Professora do Departamento de História
da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis.
Graduada, Mestre e Doutoranda em História pela Universidade Federal de Mato
Grosso. Fez especialização em Metodologia do Ensino de História, pelo Instituto
Cuiabano de Educação (ICE).

Capítulo VI
A ciência, a tecnologia e o desenvolvimento: em busca de um
caminho voltado para o homem
Alisson Diôni Gomes – Professor da Universidade Federal de Rondônia. Bacharel
em Informática, em Ciências Sociais e Mestre em Desenvolvimento Regional e Meio
Ambiente pela Universidade Federal de Rondônia

Capítulo VII
Ciência, gênero e sexualidade: a influência epistemológica
dos estudos de gênero no discurso biológico
Emerson Roberto de Araujo Pessoa – Professor da Universidade Federal de Rondônia,
Campus de Vilhena. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Maringá. Mestre nesta mesma área e instituição.
Franciele Monique Scopetc dos Santos – Doutoranda em Educação Escolar na
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP/Araraquara.
Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Educação
para o Ensino de Ciências e a Matemática na Universidade Estadual de Maringá.
Gustavo Piovezan – Professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal de Rondônia, Campus Ji-Paraná.. Graduado em Filosofia, mestre
e doutor em Educação para a Ciência e o Ensino de Matemática pela Universidade
Estadual de Maringá.

Capítulo VIII
Arte e Ciência: contribuições para a pesquisa social na
contemporaneidade
Raphaela Rezzieri – Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Barra
do Bugres. Graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.
João Paulo Rossatti – Graduado em História pela Universidade Estadual do Centro-
Oeste e mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso.

140 Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


Revisão Ortográfica - Normalização Bibliográfica
Carlos Otávio Flexa — MC&G Design Editorial

Ficha Catalográfica
Soraya Lacerda | CRB1/1320 — MC&G Design Editorial

Criação de capa Programação Visual


Glaucio Coelho —MC&G Design Editorial

Programação Visual
MC&G Design Editorial

Editoração Eletrônica
Glaucio Coelho — MC&G Design Editorial

Produção Editorial e Gráfica


Maria Clara Costa — MC&G Design Editorial

CTP e Impressão Gráfica


Reproset Gráfica e Editora — MC&G Design Editorial

Formato 15 x 21cm
Tipologia das famílias Helvética Neue , Apex Serif e Diogenes
Couchet Foscco 300g/m2 capa • Off set 75g/m2 miolo
144 p.
Tiragem: 500 exemplares
Ano: 2016
INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA INSTITUTO FEDERAL DE
Colorado do Oeste
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Colorado do Oeste

Entre Belerofonte e a Quimera: Reflexões sobre a Ciência na Contemporaneidade


As discussões e diálogos travados durante
o I Seminário de Ciência e Tecnologia, do
Instituto Federal de Rondônia - Campus
Colorado do Oeste -, realizado em novembro
de 2014, resultou nesta obra onde
pesquisadores e professores, de diferentes e
diversas áreas de formação, desenvolveram
ideias, concepções e conceitos sobre a
importância da Ciência e da Tecnologia
para nossa sociedade contemporânea. Duas ENTRE BELEROFONTE
E A QUIMERA:
palavras tão usuais e tão presentes em
nosso cotidiano, mas que são, ao mesmo
tempo, um mal necessário e um bem nefasto
para os homens e mulheres do século XXI.
Os textos aqui expostos apresentaram Reflexões sobre a Ciência
na Contemporaneidade
interessantes perspectivas sobre essa
intrigada relação. Leiam aqui até onde a
ciência é nosso Belerofonte e, ao mesmo
MAURO HENRIQUE MIRANDA DE ALCÂNTARA
tempo, nossa Quimera contemporânea. ROBERTA CAROLINA FERREIRA GALVÃO DE HOLANDA
WILLIAM KENNEDY DO AMARAL SOUZA
(ORGs)

ISBN 978-85-67589-44-2

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