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Embora seja necessário perquirir as razões da fome individual” 8 (p. 22), expulsando-o da
que possibilitem explicar esse esquecimento, o circunscrição da clínica. O objetivo é analisar “o
propósito desta reflexão fixa-se fundamental- fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo
mente no signo original. Na enquadração semi- endêmica ou epidemicamente as grandes massas
ótica, a Geografia da Fome é um legissigno pela humanas” 8 (p. 23). Amparado numa metáfora
própria natureza, um argumento conforme seu cinematográfica, o autor justifica sua preferên-
interpretante e um símbolo pela relação estabe- cia por um plano mais distante, donde se possa
lecida com seu objeto. Vínculo este instituído de obter uma visão panorâmica de conjunto, visão
forma mentada, por isso, segundo Peirce 6 (p. 74), onde alguns pequenos detalhes certamente se
o símbolo “é um signo que perderia o caráter que apagarão, mas na qual se destacarão de maneira
o torna um signo se não houvesse um interpretan- compreensiva, as ligações, as influências, as co-
te. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso nexões dos múltiplos fatores que interferem nas
que significa aquilo que significa apenas por força manifestações do fenômeno 8.
de compreender-se que possui essa significação”. Talvez um consenso pudesse ser construído
Por outro lado, também se pode conceber o li- se esse objeto fosse classificado como epide-
vro como um valor cuja racionalidade, como diz miológico, pois “aborda o coletivo, busca a ge-
Agnes Heller 7, leitora de Max Weber, depende de neralidade, o grupo de casos, o todos” 8 (p. 64),
seu reconhecimento social e da constante firme- enquanto a perspectiva clínica “trata do sujei-
za da ação daqueles que o escolhem e o defen- to considerado em suas particularidades, o caso,
dem. Assim sendo, reinterpretações da Geografia o um” 9 (p. 65). Todavia, segundo José Ricardo
da Fome restauram sua dimensão simbólica no Ayres 10 (p. 110), “a particularidade que permi-
campo científico e revigoram seu valor enquanto te identificar as relações de necessidade próprias
conjunto de subsídios para a ação política. dos enunciados epidemiológicos pode ser sinteti-
Procedendo à perscrutação, parte-se do pres- camente descrita pelo conjunto indissociável de
suposto de que a concepção que trata a Geografia três características discursivas da epidemiologia
da Fome apenas como um estudo geográfico é do risco e seus antecessores: uma pragmática do
reducionista e diverge do eixo transdisciplinar controle técnico; uma sintaxe do comportamento
que caracteriza o conjunto das obras de Josué coletivo e uma semântica da variação quantitati-
de Castro. É evidente que o autor a concebeu no va”. Os dois últimos sinais locucionários podem
âmbito da ciência geográfica, pois não só a in- ser encontrados, o segundo mais do que o tercei-
clusão do termo geografia, no seu título, mas, e ro, na Geografia da Fome, especialmente quando,
sobretudo, os argumentos que se encontram no de forma pioneira, a partir das reconceituações
Prefácio da primeira edição ratificam este liame efetivadas pela epidemiologia norte-americana,
8. Mesmo aí, a demarcação dos saberes não é tão em especial a de Frost, destacada pelo próprio
nítida, nem irretorquível. Por um lado adere ao Josué de Castro, os termos endemia e epidemia,
método geográfico, considerando-o o único que antes restritos ao comportamento das doenças
“permite estudar o problema em sua realidade infecciosas, passaram a tipificar as duas fomes:
total” 8 (p. 20), mesmo fazendo a ressalva: não a permanente, característica das paisagens Ama-
o descritivo da antiga geografia, mas sim o in- zônica e do Nordeste Açucareiro, e a transitória,
terpretativo da moderna ciência geográfica. Por assoladora do Sertão Nordestino. Mas o controle
outro, afirma que não se trata estritamente de técnico, em sua expressão mais restrita, parece
uma monografia geográfica sobre a fome, pois há estar ausente. Em seu lugar aparecem reforma
outros aspectos abordados do problema, como e transformação, tal como em Villermé, quan-
os biológicos, médicos e higiênicos. Embora sob do estudou as condições de saúde-doença dos
a orientação dos princípios geográficos, a solei- trabalhadores franceses no século XIX 10. E isso
ra demarcatória entre os campos disciplinares seria suficiente para afastar a Geografia da Fome
se desvanece ao longo da obra, passando a ser da tradição epidemiológica, pelo menos, daquela
concebida como “ensaio de natureza ecológica”, que desembocou no paradigma do risco.
além de exibir trechos de natureza tipicamente Mas o vínculo com a epidemiologia estaria
econômica, sociológica, antropológica ou histó- definitivamente descartado ou haveria possibi-
rica. Esse transbordamento do objeto geográfico lidade de uma aproximação parcial ou incom-
permite que emerja outra questão: a Geografia pleta? Ao deslindar o enredo epidemiológico em
da Fome pode ser compreendida também como três períodos: constituição (1872-1929), exposi-
uma clínica de paisagem ou uma epidemiologia ção (1930-1945) e risco (após 1946), José Ricardo
crítica? Ayres assere que na epidemiologia moderna “o
Examine-se, inicialmente, o objeto do estudo conteúdo conceitual do meio vai gradativamente
cuja formulação vem precedida de uma adver- se rarefazendo. De uma referência teórica passa a
tência: “Não constitui objeto deste ensaio o estudo um suporte lógico da argumentação para depois
ser completamente superado no núcleo significa- Mas mesmo assim, não deixa de ser um es-
tivo do discurso epidemiológico, permanecendo torvo a inclusão da Geografia da Fome na tradi-
na maior parte das vezes como uma referência ção epidemiológica da qual brotou o discurso do
quase residual. O elemento discursivo que mais risco, pois à proporção que a referência ao meio
centralmente responde por essa superação concei- se esvai, o risco se adensa e ocupa a centralidade
tual é muitíssimo conhecido de todos nós e razão da argumentação 10. Ora, se o autor não desejou
deste estudo: o risco” 10 (p. 152). se filiar a essa vertente e se um ou dois elementos
Como a referência ao meio (paisagem) cons- da tríade identificadora dessa epidemiologia, o
titui a essência da Geografia da Fome, isto limita controle técnico e a variação quantitativa, estão
ou mesmo impede seu enquadramento na epi- ausentes ou esmaecidos na Geografia da Fome,
demiologia da exposição, que eleva o risco à con- não seria o momento de abandonar o afã de clas-
dição de conceito, ou na epidemiologia do risco sificá-la como um estudo epidemiológico?
na qual “o risco não é mais um qualificador do Considerando o rigor e a qualidade alcan-
caráter coletivo e quase-atual de um mau-destino, çados na teoria e no método empregados, seria
ele é, imediatamente, expressão formal e probabi- impróprio tratá-la como uma pré-epidemiolo-
lística do comportamento de freqüências de de- gia. Mesmo abordando um fenômeno coletivo,
terminados eventos de saúde quando inquiridos a seria, talvez, uma clínica, uma vez que os casos
respeito de associações particulares” 10 (p. 282). não aparecem sob a forma de um somatório,
Sendo o risco uma criação da década de mas sim, condensados no caso único, singular,
1920 e reconhecendo-se a atualização das fon- típico e complexo? Eis as tipologias da fome: xe-
tes bibliográficas que embasaram a Geografia roftalmia, pelagra, beribéri, anemia ferropriva,
da Fome, percebe-se de modo bastante explí- geofagia, raquitismo, bócio endêmico, marasmo,
cito, ou até mesmo contundente, que Josué de kwaskiorkor. Descrevendo os corpos abatidos
Castro rejeitou aderir a qualquer vertente quan- pela fome no Sertão Nordestino, o registro clínico
tificadora para analisar o fenômeno da fome co- constitui um Portinari em texto: “A fome quanti-
letiva: “Não vamos, para completar o quadro do tativa se traduz de logo pela magreza aterradora,
conjunto brasileiro, enfileirar aqui dados estatís- exibindo todos, fácies chupados, secos, mirrados,
ticos comprovantes dessa miséria alimentar. (...) com os olhos embutidos dentro de órbitas fundas,
Este ensaio não visa propriamente uma análise as bochechas sumidas e as ossaturas desenhadas
do problema em seu aspecto quantitativo mas, em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e
principalmente, em seus aspectos qualitativos. enegrecida. Indivíduos que mesmo no tempo de
O método estatístico, com sua tendência subs- abundância – nas épocas do verde – nunca foram
tancial para os grandes agrupamentos e para a de muita gordura, apresentando-se sempre com
homogeneização dos fatos, não nos poderia dar sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas
em seus painéis genéricos uma noção exata de épocas secas, até 50% de seu peso” 8 (pp. 243-4).
certas nuances, das infinitas gradações de cores Se a inflexão do olhar no corpo doente cons-
de que se reveste o fenômeno, nos dois sentidos, titui a principal tecnologia da clínica, este mes-
no vertical e no horizontal, na ampla superfí- mo procedimento servirá para delimitar as pai-
cie de sua área territorial e nas diferentes capas sagens: Amazônica, Mata e Sertão Nordestinos,
sociais que estruturam a nacionalidade. Esta a Centro-Oeste e Extremo Sul. Ao caracterizá-las,
razão pela qual os dados estatísticos apenas par- Josué de Castro afirma que: “não se pode clas-
ticipam deste ensaio como matéria-prima, a ser sificar senão a base da verificação de seus traços
sempre que possível manipulada e transformada predominantes que lhe dão expressão típica e não
em argumentos explicativos, visando penetrar de seus traços excepcionais por mais gritantes que
um tanto mais fundo a essência de fenômeno, tão eles se apresentem, em sua categoria de exceção.
cambiante e polimorfo, como o da fome em sua Para que uma determinada região possa ser con-
expressão social” 8 (p. 291). siderada uma área de fome, dentro de nosso con-
Talvez essa recusa não esmaeça uma aproxi- ceito geográfico é necessário que as deficiências
mação que ainda se pretende fazer entre a Geo- alimentares que aí se manifestem, incidam sobre
grafia da Fome e a epidemiologia da constituição, a maioria dos indivíduos que compõem seu efeti-
pois nela o meio aparece como uma referência vo demográfico” 8 (p. 50).
mais avultante do que nos períodos seguintes. É, Se o processo de argumentação da epide-
pois, nessa brecha, ao delimitar as constituições miologia se inicia na observação de um número
epidemiológicas específicas, como, por exemplo, suficiente de casos e busca estabelecer regras ou
as epidemias de beribéri durante o Ciclo da Bor- princípios gerais para explicá-los, na seqüência:
racha na Região Amazônica, ou de cegueira por caso-resultado-regra, não foi este o percurso
avitaminose A, após as secas no Sertão Nordesti- adotado na Geografia da Fome. Em vez de uma
no, que se poderia, parcialmente, inseri-la. abordagem indutivista, uma outra seqüência,
acontecimentos, mas pelas volições, intenções, E no segundo, numa direção oposta à dos co-
desejos, motivações e idéias. Nesse sentido, fixa a lonizadores portugueses, os negros reagiram à
atenção na ação humana, antes obscurecida pela monocultura, plantando mandioca, batata-do-
estrutura. Aqui é pertinente sublinhar que: “As ce, feijão e milho nos quilombos, redutos de sua
alternativas históricas são sempre reais: sempre é libertação: “Sujando aqui, acolá, o verde monó-
possível decidir, em face delas, de um modo diver- tono dos canaviais com manchas salvadoras da
so daquele em que realmente se decide. Não era monotonia alimentar da região. (...) Palmares, o
obrigatório que o desenvolvimento social tomasse mais significativo dos núcleos de libertação negra
a forma que tomou; simplesmente foi possível que da tirania monocultora, se apresenta como uma
surgisse essa configuração (ou outra)” 14 (p. 15). demonstração decisiva da absoluta integração do
Em dois fragmentos, a causa final do fenô- negro à natureza regional, aproveitando integral-
meno se sobressai. Um e outro caso ratifica o mente seus recursos e desenvolvendo, a favor de
argumento de que “x pôde ocorrer porque a, b e suas possibilidades, recursos novos” 11 (p. 133).
c queriam que x acontecesse e porque a’, b’ e c’ Finalmente, percebe-se, na perspectiva de-
aconteceram”. senvolvida, que não é fácil a tarefa de enquadrar,
No primeiro, Josué de Castro defende a tese fixar, aprisionar a Geografia da Fome em um de-
de que a monocultura da cana-de-açúcar foi uma terminado campo disciplinar. Aproxima-se da
decisão dos colonizadores portugueses: “Desco- geografia pelo método, mas extrapola seus limi-
brindo cedo que as terras do Nordeste se presta- tes por investigar objeto reivindicado pela epi-
vam maravilhosamente ao cultivo da cana-de- demiologia. Daí se afasta quando esta assume o
açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as ou- discurso do risco. Avizinha-se da clínica quando
tras possibilidades ao plantio exclusivo da cana. condensa os múltiplos casos em um só, o caso
Aos interesses da sua monocultura intempestiva, típico de fome, posto em alto-relevo com uma
destruíram quase que inteiramente o revestimen- paisagem ao fundo. Mas se distancia quando
to vivo, vegetal e animal da região, subvertendo constrói o modelo causal para o fenômeno, re-
por completo o equilíbrio ecológico da paisagem tornando novamente para a epidemiologia, com
e entravando todas as tentativas de cultivo de ou- e sem risco, que ainda parece desconhecer o fas-
tras plantas alimentares no lugar, degradando ao cínio proporcionado pelo polimorfismo objetal
máximo, deste modo, os recursos alimentares da da obra.
região” 11 (p. 115).
Resumo
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