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2698 FÓRUM FORUM

Geografia da Fome: clínica de paisagens ou


epidemiologia crítica?

The Geography of Hunger: clinical interpretation


of landscapes or critical epidemiology?

Djalma Agripino de Melo Filho 1

Abstract O centenário de nascimento de Josué de Castro


(1908-1973) constitui uma oportunidade para
1 Núcleo de Saúde Pública
This article provides a new interpretation of Geo- perscrutar nas principais obras a tecibilidade de
e Desenvolvimento Social,
Universidade Federal de grafia da Fome [The Geography of Hunger], by objetos e meios de trabalho transdisciplinares
Pernambuco, Recife, Brasil. Josué de Castro, focusing on the convergence of e sua ressonância nos tempos atuais. Particu-
three fields of knowledge: geography, clinical larmente no âmbito da produção intelectual da
Correspondência
D. A. Melo Filho science, and epidemiology. Although there is a nova saúde pública brasileira, não se percebe
Núcleo de Saúde Pública certain commonality in the methodological pro- registro importante da contribuição do pensa-
e Desenvolvimento Social, mento josuelino ao desenvolvimento desta área,
cedures, the book offers multiple configurations
Universidade Federal de
Pernambuco. of objects and a cross-disciplinary theoretical mesmo quando se fixa o olhar numa especifici-
Rua Nunes Machado 119, framework for explaining the phenomenon of dade epidemiológica como a das relações entre
apto. 603, Recife, PE
hunger. espaço e processo de adoecimento. Alguns ar-
50050-590, Brasil.
djalmaf@truenet.com.br tigos 1,2,3,4 com esse propósito não fazem refe-
Hunger; Semiotics; Knowledge rência, por exemplo, à Geografia da Fome cujo
objeto, fome e ocupação do espaço no Brasil, foi
deslindado de modo inovador, no recorte espa-
cial e na perspectiva da tipologia e causalidade
do fenômeno. O olvidamento dessa e de outras
obras clássicas que pensaram o Brasil expressa,
segundo o geógrafo Milton Santos (1926-2001),
o atual momento das universidades cuja voca-
ção para o instantâneo dificulta o regresso às
fontes 5. Publicada pela primeira vez em 1946,
durante o pós-guerra, e traduzida para mais de
20 idiomas, a Geografia da Fome constitui um
epígono da geração que concebeu o Brasil como
um concreto-pensado cujo pioneirismo coube
à Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto
Freyre (1900-1987); Raízes do Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e For-
mação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio
Prado Jr. (1907-1990).

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Embora seja necessário perquirir as razões da fome individual” 8 (p. 22), expulsando-o da
que possibilitem explicar esse esquecimento, o circunscrição da clínica. O objetivo é analisar “o
propósito desta reflexão fixa-se fundamental- fenômeno da fome coletiva – da fome atingindo
mente no signo original. Na enquadração semi- endêmica ou epidemicamente as grandes massas
ótica, a Geografia da Fome é um legissigno pela humanas” 8 (p. 23). Amparado numa metáfora
própria natureza, um argumento conforme seu cinematográfica, o autor justifica sua preferên-
interpretante e um símbolo pela relação estabe- cia por um plano mais distante, donde se possa
lecida com seu objeto. Vínculo este instituído de obter uma visão panorâmica de conjunto, visão
forma mentada, por isso, segundo Peirce 6 (p. 74), onde alguns pequenos detalhes certamente se
o símbolo “é um signo que perderia o caráter que apagarão, mas na qual se destacarão de maneira
o torna um signo se não houvesse um interpretan- compreensiva, as ligações, as influências, as co-
te. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso nexões dos múltiplos fatores que interferem nas
que significa aquilo que significa apenas por força manifestações do fenômeno 8.
de compreender-se que possui essa significação”. Talvez um consenso pudesse ser construído
Por outro lado, também se pode conceber o li- se esse objeto fosse classificado como epide-
vro como um valor cuja racionalidade, como diz miológico, pois “aborda o coletivo, busca a ge-
Agnes Heller 7, leitora de Max Weber, depende de neralidade, o grupo de casos, o todos” 8 (p. 64),
seu reconhecimento social e da constante firme- enquanto a perspectiva clínica “trata do sujei-
za da ação daqueles que o escolhem e o defen- to considerado em suas particularidades, o caso,
dem. Assim sendo, reinterpretações da Geografia o um” 9 (p. 65). Todavia, segundo José Ricardo
da Fome restauram sua dimensão simbólica no Ayres 10 (p. 110), “a particularidade que permi-
campo científico e revigoram seu valor enquanto te identificar as relações de necessidade próprias
conjunto de subsídios para a ação política. dos enunciados epidemiológicos pode ser sinteti-
Procedendo à perscrutação, parte-se do pres- camente descrita pelo conjunto indissociável de
suposto de que a concepção que trata a Geografia três características discursivas da epidemiologia
da Fome apenas como um estudo geográfico é do risco e seus antecessores: uma pragmática do
reducionista e diverge do eixo transdisciplinar controle técnico; uma sintaxe do comportamento
que caracteriza o conjunto das obras de Josué coletivo e uma semântica da variação quantitati-
de Castro. É evidente que o autor a concebeu no va”. Os dois últimos sinais locucionários podem
âmbito da ciência geográfica, pois não só a in- ser encontrados, o segundo mais do que o tercei-
clusão do termo geografia, no seu título, mas, e ro, na Geografia da Fome, especialmente quando,
sobretudo, os argumentos que se encontram no de forma pioneira, a partir das reconceituações
Prefácio da primeira edição ratificam este liame efetivadas pela epidemiologia norte-americana,
8. Mesmo aí, a demarcação dos saberes não é tão em especial a de Frost, destacada pelo próprio
nítida, nem irretorquível. Por um lado adere ao Josué de Castro, os termos endemia e epidemia,
método geográfico, considerando-o o único que antes restritos ao comportamento das doenças
“permite estudar o problema em sua realidade infecciosas, passaram a tipificar as duas fomes:
total” 8 (p. 20), mesmo fazendo a ressalva: não a permanente, característica das paisagens Ama-
o descritivo da antiga geografia, mas sim o in- zônica e do Nordeste Açucareiro, e a transitória,
terpretativo da moderna ciência geográfica. Por assoladora do Sertão Nordestino. Mas o controle
outro, afirma que não se trata estritamente de técnico, em sua expressão mais restrita, parece
uma monografia geográfica sobre a fome, pois há estar ausente. Em seu lugar aparecem reforma
outros aspectos abordados do problema, como e transformação, tal como em Villermé, quan-
os biológicos, médicos e higiênicos. Embora sob do estudou as condições de saúde-doença dos
a orientação dos princípios geográficos, a solei- trabalhadores franceses no século XIX 10. E isso
ra demarcatória entre os campos disciplinares seria suficiente para afastar a Geografia da Fome
se desvanece ao longo da obra, passando a ser da tradição epidemiológica, pelo menos, daquela
concebida como “ensaio de natureza ecológica”, que desembocou no paradigma do risco.
além de exibir trechos de natureza tipicamente Mas o vínculo com a epidemiologia estaria
econômica, sociológica, antropológica ou histó- definitivamente descartado ou haveria possibi-
rica. Esse transbordamento do objeto geográfico lidade de uma aproximação parcial ou incom-
permite que emerja outra questão: a Geografia pleta? Ao deslindar o enredo epidemiológico em
da Fome pode ser compreendida também como três períodos: constituição (1872-1929), exposi-
uma clínica de paisagem ou uma epidemiologia ção (1930-1945) e risco (após 1946), José Ricardo
crítica? Ayres assere que na epidemiologia moderna “o
Examine-se, inicialmente, o objeto do estudo conteúdo conceitual do meio vai gradativamente
cuja formulação vem precedida de uma adver- se rarefazendo. De uma referência teórica passa a
tência: “Não constitui objeto deste ensaio o estudo um suporte lógico da argumentação para depois

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ser completamente superado no núcleo significa- Mas mesmo assim, não deixa de ser um es-
tivo do discurso epidemiológico, permanecendo torvo a inclusão da Geografia da Fome na tradi-
na maior parte das vezes como uma referência ção epidemiológica da qual brotou o discurso do
quase residual. O elemento discursivo que mais risco, pois à proporção que a referência ao meio
centralmente responde por essa superação concei- se esvai, o risco se adensa e ocupa a centralidade
tual é muitíssimo conhecido de todos nós e razão da argumentação 10. Ora, se o autor não desejou
deste estudo: o risco” 10 (p. 152). se filiar a essa vertente e se um ou dois elementos
Como a referência ao meio (paisagem) cons- da tríade identificadora dessa epidemiologia, o
titui a essência da Geografia da Fome, isto limita controle técnico e a variação quantitativa, estão
ou mesmo impede seu enquadramento na epi- ausentes ou esmaecidos na Geografia da Fome,
demiologia da exposição, que eleva o risco à con- não seria o momento de abandonar o afã de clas-
dição de conceito, ou na epidemiologia do risco sificá-la como um estudo epidemiológico?
na qual “o risco não é mais um qualificador do Considerando o rigor e a qualidade alcan-
caráter coletivo e quase-atual de um mau-destino, çados na teoria e no método empregados, seria
ele é, imediatamente, expressão formal e probabi- impróprio tratá-la como uma pré-epidemiolo-
lística do comportamento de freqüências de de- gia. Mesmo abordando um fenômeno coletivo,
terminados eventos de saúde quando inquiridos a seria, talvez, uma clínica, uma vez que os casos
respeito de associações particulares” 10 (p. 282). não aparecem sob a forma de um somatório,
Sendo o risco uma criação da década de mas sim, condensados no caso único, singular,
1920 e reconhecendo-se a atualização das fon- típico e complexo? Eis as tipologias da fome: xe-
tes bibliográficas que embasaram a Geografia roftalmia, pelagra, beribéri, anemia ferropriva,
da Fome, percebe-se de modo bastante explí- geofagia, raquitismo, bócio endêmico, marasmo,
cito, ou até mesmo contundente, que Josué de kwaskiorkor. Descrevendo os corpos abatidos
Castro rejeitou aderir a qualquer vertente quan- pela fome no Sertão Nordestino, o registro clínico
tificadora para analisar o fenômeno da fome co- constitui um Portinari em texto: “A fome quanti-
letiva: “Não vamos, para completar o quadro do tativa se traduz de logo pela magreza aterradora,
conjunto brasileiro, enfileirar aqui dados estatís- exibindo todos, fácies chupados, secos, mirrados,
ticos comprovantes dessa miséria alimentar. (...) com os olhos embutidos dentro de órbitas fundas,
Este ensaio não visa propriamente uma análise as bochechas sumidas e as ossaturas desenhadas
do problema em seu aspecto quantitativo mas, em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e
principalmente, em seus aspectos qualitativos. enegrecida. Indivíduos que mesmo no tempo de
O método estatístico, com sua tendência subs- abundância – nas épocas do verde – nunca foram
tancial para os grandes agrupamentos e para a de muita gordura, apresentando-se sempre com
homogeneização dos fatos, não nos poderia dar sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas
em seus painéis genéricos uma noção exata de épocas secas, até 50% de seu peso” 8 (pp. 243-4).
certas nuances, das infinitas gradações de cores Se a inflexão do olhar no corpo doente cons-
de que se reveste o fenômeno, nos dois sentidos, titui a principal tecnologia da clínica, este mes-
no vertical e no horizontal, na ampla superfí- mo procedimento servirá para delimitar as pai-
cie de sua área territorial e nas diferentes capas sagens: Amazônica, Mata e Sertão Nordestinos,
sociais que estruturam a nacionalidade. Esta a Centro-Oeste e Extremo Sul. Ao caracterizá-las,
razão pela qual os dados estatísticos apenas par- Josué de Castro afirma que: “não se pode clas-
ticipam deste ensaio como matéria-prima, a ser sificar senão a base da verificação de seus traços
sempre que possível manipulada e transformada predominantes que lhe dão expressão típica e não
em argumentos explicativos, visando penetrar de seus traços excepcionais por mais gritantes que
um tanto mais fundo a essência de fenômeno, tão eles se apresentem, em sua categoria de exceção.
cambiante e polimorfo, como o da fome em sua Para que uma determinada região possa ser con-
expressão social” 8 (p. 291). siderada uma área de fome, dentro de nosso con-
Talvez essa recusa não esmaeça uma aproxi- ceito geográfico é necessário que as deficiências
mação que ainda se pretende fazer entre a Geo- alimentares que aí se manifestem, incidam sobre
grafia da Fome e a epidemiologia da constituição, a maioria dos indivíduos que compõem seu efeti-
pois nela o meio aparece como uma referência vo demográfico” 8 (p. 50).
mais avultante do que nos períodos seguintes. É, Se o processo de argumentação da epide-
pois, nessa brecha, ao delimitar as constituições miologia se inicia na observação de um número
epidemiológicas específicas, como, por exemplo, suficiente de casos e busca estabelecer regras ou
as epidemias de beribéri durante o Ciclo da Bor- princípios gerais para explicá-los, na seqüência:
racha na Região Amazônica, ou de cegueira por caso-resultado-regra, não foi este o percurso
avitaminose A, após as secas no Sertão Nordesti- adotado na Geografia da Fome. Em vez de uma
no, que se poderia, parcialmente, inseri-la. abordagem indutivista, uma outra seqüência,

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regra-caso-resultado, característica da argumen- histórico não aparece nem na teoria, nem no


tação dedutiva, foi empregada. Da paisagem método empregados na Geografia da Fome. Se-
sobrevinham as regras, quase todas de nature- rá essa uma das razões para a sua ausência? As
za histórico-social, tendo o latifúndio na raiz. Os propostas de solução das antinomias, “biológico
casos eram descritos com o reforço de exemplos versus social” e “individual versus coletivo”, e o
extraídos de pesquisas atualizadas e, finalmente, modelo de determinação/causalidade adotados
a ligação do caso com a regra era estabelecida. Se na Geografia da Fome poderiam ter enriqueci-
fossem considerados apenas o objeto (casos con- do o debate em torno dessas reflexões candentes
densados em um único caso), o processo de ar- para a superação da epidemiologia do risco.
gumentação (dedução) e a tecnologia (o olhar), a Pela primeira vez, a questão da causalidade
Geografia da Fome poderia ser considerada uma da fome no Brasil foi abordada de forma rigoro-
clínica de paisagens, todavia a abordagem pa- sa e genuinamente científica, uma vez que pro-
norâmica do fenômeno, como pretendia o pró- curou hierarquizar e integrar as causas formal
prio autor, e também a solução proposta para o (estrutural), final e eficiente do fenômeno. Não
problema excedem os limites da própria clínica. se percebe a menor vacilação de Josué de Castro
Não se recomendou apenas medidas paliativas, em afirmar que a principal causa da fome tem
emergenciais ou focalizadas: “O tipo de reforma origem estrutural. No Nordeste açucareiro, as ra-
que julgamos um imperativo da hora presente ízes da fome estavam fincadas na monocultura
não é um simples expediente de desapropriação e latifundiária da cana-de-açúçar.
redistribuição da terra para atender às aspirações Agnes Heller 13, nos passos da classificação
dos sem-terra. Processo simplista que não traz so- aristotélica, afirma que a causa formal (estrutu-
lução real aos problemas da economia agrária. ral) explica o fenômeno não pelos eventos, mas
Concebemos a reforma agrária como um processo pelas “macroestruturas”, pela lógica interna dos
de revisão das relações jurídicas e econômicas, en- sistemas: “x pôde ocorrer porque a era verdade”.
tre os que detêm a propriedade agrícola e os que Embora não seja a única, esse tipo de causa cons-
trabalham nas atividades rurais. Traduz, pois, a titui o “único tipo genuinamente científico”, pois
reforma agrária uma aspiração de que se reali- as causas eficiente e final guardam consigo uma
zem, através de um estatuto legal, as necessárias “ingenuidade”, uma vez que estão muito enrai-
limitações à exploração da propriedade agrária, zadas na opinião (dóxa) 13. Todavia assevera que
de forma a tornar o seu rendimento mais elevado todas as teorias são incompletas se falham na
e principalmente melhor distribuído em benefício conjugação das causas.
de toda a coletividade rural” [trecho ausente na A Geografia da Fome foi exemplar na teci-
edição de 1946] 11 (p. 300). bilidade das redes causais. Em relação à causa
Foi esse engajamento que a tornou uma obra eficiente, a responsável (imediata) pelo efeito e
clássica, juntamente com a Geografia do Subde- que desperta o sentimento de “entendi” (expli-
senvolvimento, de Yves Lacoste. Segundo Anto- cação da ocorrência do fenômeno), encontra-se
nio Carlos Robert Moraes 12 (p. 119), esses livros referenciada durante a ocorrência de fome epi-
“não iam além da proposta regional, porém apre- dêmica, após as secas, no Sertão nordestino, ou
sentavam realidades tão contraditórias, que sua de fome endêmica na área Amazônica pela au-
simples descrição adquiria uma força considerá- sência de carne, leite, frutas e verduras, ou seja,
vel de denúncia, fazendo da Geografia um ins- “x pôde ocorrer por causa do acontecimento de a, b
trumento de ação política. Estes estudos tiveram e c”. Embora não se deixe de perceber em alguns
papel significativo, pois abriram novos horizontes fragmentos uma subordinação da causa eficiente
para os geógrafos, ao apontarem uma perspectiva à causa formal (estrutural): “Há tempos que nos
de engajamento social, de atuação crítica”. batemos para demonstrar, para incutir na consci-
Mas se essa solução para o fenômeno da fo- ência nacional o fato de que a seca não é o princi-
me afastou a Geografia da Fome da clínica, ela pal fator da pobreza ou da fome nordestinas. Que
não é estranha a uma outra epidemiologia, tam- é apenas um fator de agravamento agudo desta
bém denominada de crítica, movimento renova- situação cujas causas são outras. São causas mais
dor que buscou a partir de meados da década de ligadas ao arcabouço social do que aos acidentes
1970, principalmente na América Latina, romper naturais, às condições ou bases físicas da região.
com os fundamentos positivistas da epidemio- Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome
logia do risco. Verifica-se, entretanto, que a Ge- no Nordeste é o pauperismo generalizado, a pro-
ografia da Fome não constituiu uma referência letarização progressiva de suas populações...” 11
para a produção intelectual desse movimento. (pp. 259-60).
Por desconhecimento? Por recusa? Embora pare- Mas Josué de Castro ainda foi além, quando
ça exalar marxismo (quando analisa as estruturas também apelou para a causa final a fim de expli-
socioeconômicas), efetivamente o materialismo car as mudanças não só pelas estruturas ou pelos

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acontecimentos, mas pelas volições, intenções, E no segundo, numa direção oposta à dos co-
desejos, motivações e idéias. Nesse sentido, fixa a lonizadores portugueses, os negros reagiram à
atenção na ação humana, antes obscurecida pela monocultura, plantando mandioca, batata-do-
estrutura. Aqui é pertinente sublinhar que: “As ce, feijão e milho nos quilombos, redutos de sua
alternativas históricas são sempre reais: sempre é libertação: “Sujando aqui, acolá, o verde monó-
possível decidir, em face delas, de um modo diver- tono dos canaviais com manchas salvadoras da
so daquele em que realmente se decide. Não era monotonia alimentar da região. (...) Palmares, o
obrigatório que o desenvolvimento social tomasse mais significativo dos núcleos de libertação negra
a forma que tomou; simplesmente foi possível que da tirania monocultora, se apresenta como uma
surgisse essa configuração (ou outra)” 14 (p. 15). demonstração decisiva da absoluta integração do
Em dois fragmentos, a causa final do fenô- negro à natureza regional, aproveitando integral-
meno se sobressai. Um e outro caso ratifica o mente seus recursos e desenvolvendo, a favor de
argumento de que “x pôde ocorrer porque a, b e suas possibilidades, recursos novos” 11 (p. 133).
c queriam que x acontecesse e porque a’, b’ e c’ Finalmente, percebe-se, na perspectiva de-
aconteceram”. senvolvida, que não é fácil a tarefa de enquadrar,
No primeiro, Josué de Castro defende a tese fixar, aprisionar a Geografia da Fome em um de-
de que a monocultura da cana-de-açúcar foi uma terminado campo disciplinar. Aproxima-se da
decisão dos colonizadores portugueses: “Desco- geografia pelo método, mas extrapola seus limi-
brindo cedo que as terras do Nordeste se presta- tes por investigar objeto reivindicado pela epi-
vam maravilhosamente ao cultivo da cana-de- demiologia. Daí se afasta quando esta assume o
açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as ou- discurso do risco. Avizinha-se da clínica quando
tras possibilidades ao plantio exclusivo da cana. condensa os múltiplos casos em um só, o caso
Aos interesses da sua monocultura intempestiva, típico de fome, posto em alto-relevo com uma
destruíram quase que inteiramente o revestimen- paisagem ao fundo. Mas se distancia quando
to vivo, vegetal e animal da região, subvertendo constrói o modelo causal para o fenômeno, re-
por completo o equilíbrio ecológico da paisagem tornando novamente para a epidemiologia, com
e entravando todas as tentativas de cultivo de ou- e sem risco, que ainda parece desconhecer o fas-
tras plantas alimentares no lugar, degradando ao cínio proporcionado pelo polimorfismo objetal
máximo, deste modo, os recursos alimentares da da obra.
região” 11 (p. 115).

Resumo

Procede-se a uma releitura da Geografia da Fome, de


Josué de Castro, na perspectiva da convergência de três
saberes: geografia, clínica e epidemiologia. Embora
haja uma fixidez nos procedimentos metodológicos,
observam-se múltiplas configurações de objetos e um
arcabouço teórico transdisciplinar para explicar o fe-
nômeno da fome.

Fome; Semiótica; Conhecimento

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