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Introdução
... Morrem 300 mil crianças no Brasil, por ano, de mortes que poderiam
ser totalmente evitáveis. Nossas crianças, antes de completar um ano,
morrem de diarréia, pneumonia e outras doenças que não as matariam
se estivessem alimentadas e vivendo em lugares dignos.
A cada dia aproximadamente mil crianças estão sendo mortas. No
momento em que você estiver lendo este texto, muitas estarão
morrendo. Mas se são mortes evitáveis, quem poderia evitá-las? Quem
é responsável por isso? A resposta é uma só: NÓS (idem, 1993, p. 2)
Neste trecho do discurso de apelo à solidariedade, observa-se
que ocorre uma certa comunhão com as concepções defendidas
por Peter Singer (op. cit., pp. 233-4) a respeito da distinção
entre o princípio de ‘matar e deixar morrer’ e o seu conseqüente
argumento da ‘obrigação de ajudar’3:
... Por não darem mais do que damos, as pessoas dos países ricos estão
permitindo que os que vivem nos países mais pobres sofram de pobreza
absoluta, com a conseqüente desnutrição, falta de comida e morte. Esta
conclusão não diz respeito apenas aos governos. Aplica-se também a
cada indivíduo absolutamente rico, pois todos nós temos a oportunidade
de fazer alguma coisa para melhorar essa situação; temos, por exemplo,
a oportunidade de dar nosso tempo ou dinheiro para as organizações
voluntárias como a Oxfam, a Care, a War on Want, a Freedom from
Hunger, a Community Aid Abroad, e outras do gênero. Portanto, se o
fato de permitir que alguém morra não é intrinsecamente diferente de
matar alguém, fica a impressão de que somos todos assassinos.
Existe muita coisa que pode ser feita. Desde o tratamento emergencial
das questões que nos abalam, desde o repartir o pão, até a mudança de
rumo de nosso desenvolvimento. Não se trata apenas de dar comida a
quem tem fome. É importante, sim, muitas vezes vital, resolver o problema
emergencial. Mas é preciso pensar no futuro, pensar a longo prazo e
organizar a sociedade em busca de soluções permanentes para o fim da
miséria, da recessão, do desemprego (Ação da Cidadania, 1993, p. 3).
As análises de Mori (op. cit.) e de Schramm (op. cit.), por sua vez,
permitem que se identifique no Movimento Ação da Cidadania a
emergência das concepções da bioética no Brasil. Mori, ao examinar
a natureza e a história da bioética7, aponta o seu surgimento nos
Estados Unidos, entre o final dos anos 1960 e início dos 1970 e a sua
expansão, como um fenômeno mundial e planetário, a partir da
década de 1990. Schramm, procurando configurar o sentido da bioética,
evoca o fundamento biológico do “sentimento empático da com-
paixão para com o sofrimento do outro” contido na gênese do “agir
sanitário”, e isso o faz concluir que “toda ética é, antes e
fundamentalmente, uma bioética” (op. cit., p. 329).
Vale destacar que, em artigo publicado cerca de dez anos após a
emergência dos movimentos da bioética e da Ação da Cidadania no
Brasil, Schramm et al. (op. cit.), analisando as características e
limitações de alguns princípios bioéticos aplicados ao campo da
saúde pública — tais como os princípios da ‘solidariedade’ e da
‘responsabilidade’ —, introduzem importantes elementos teórico-
conceituais para a crítica do conceito de solidariedade 8 e,
conseqüentemente, para a adoção do conceito de proteção. Em
relação às críticas feitas ao princípio da solidarie-dade, é interessante
notar que os autores alertam que as críticas são pertinentes quando
este princípio é utilizado para legitimar políticas públicas de alocação
de recursos, reconhecidamente finitos e escassos em qualquer sistema
de saúde. Sendo assim, enfatizam que o princípio da solidariedade,
aplicado às políticas públicas, é insuficiente ou inadequado na
resolução dos complexos problemas de saúde, e propõem como
alternativa a adoção da ética (ou bioética) da proteção.
O conceito de proteção adotado por esses autores compreende a
“atitude de dar resguardo ou cobertura às necessidades essenciais,
ou seja, àquelas que devem ser satisfeitas para que o indivíduo
Considerações finais
O fato é que, já no decorrer de 1994, talvez em virtude do
redirecionamento das atenções provocado pelos meios de
comunicação — em torno da Copa do Mundo, do lançamento do
Plano Real e da campanha de sucessão presidencial —, a Ação
da Cidadania já não demonstrava a intensidade do apelo anterior,
no que se referia à solidariedade, ao combate ao desem-prego e
à melhoria da renda.9 No início de 1995, o ‘esvaziamento’ da
Ação da Cidadania tornou-se evidente, uma vez que o governo
de Fernando Henrique Cardoso instituiu o programa Comunidade
Solidária, extinguiu o Consea e, em seu lugar, criou o Conselho
da Comunidade Solidária (Valente, op. cit.; Programa Nacional
de DST e Aids, op. cit.; Cardoso et alii, op. cit.; Cardoso, 2002).10
Nos dias atuais, após uma década de emergência da Ação da
Cidadania e pouco mais de um ano da instituição do Programa
Fome Zero11 do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, reafirmam-
se algumas constatações e questionamentos.
A fome é a manifestação social do processo de exploração que
nega ou retira do ser humano um dos seus direitos mais elementares:
o de ter o que comer em quantidade e qualidade necessárias à
manutenção da vida. A fome é uma concepção concreta que, à
época da emergência da Ação da Cidadania, afetava cerca de 32
milhões de brasileiros (Ipea, 1993a) e cujas consequências biológicas,
em contradição com o padrão de modernidade econômica alcançado
NOTAS
1
É importante registrar que, ao se recorrer à obra de Josué de Castro, inevitavelmente depara-se também com as semelhanças
entre a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida e a Associação Mundial de Luta contra a Fome (Ascofam),
organização internacional não-governamental, fundada em 1957, com sede em Genebra, sob a presidência de Josué de
Castro. E muito mais ainda com a Campanha Mundial Contra a Fome, aprovada em 1959, em conferência da FAO (Food and
Agriculture Organization), desenvolvida no período de 1960 a 1965. A respeito dos objetivos e ações encaminhados por esta
entidade, ver por exemplo, Ascofam (1957) e Ferreira Lima et alii (1962).
2
Uma das ações que melhor demonstram a vitalidade da Ação da Cidadania é a realização da campanha Natal sem Fome. Em
sua primeira edição, iniciada em novembro de 1994, arrecadou cerca de 600 toneladas de alimentos. Em 2001, por sua vez,
de acordo com notícias do Comitê Rio, a campanha superou todas as metas no país (Ação da Cidadania, 2002; Aids, 2002).
3
Para uma melhor compreensão das concepções filosóficas de Peter Singer sobre controvertidas temáticas da
contemporaneidade — tais como aborto, discriminação racial, sexual e social, deficiência física, eutanásia, meio ambiente,
combate à pobreza etc. —, sugere-se a leitura de Ética prática (op. cit.), particularmente o capítulo oito (‘Ricos e pobres”).
Nele, dando seqüência à formulação da sua teoria sobre a ética ou sobre o agir moralmente, ele aborda os princípios e
argumentos filosóficos que deveriam ser adotados como estratégias de combate à pobreza absoluta e à fome. Vale destacar
que, embora esta obra de Peter Singer tenha sido publicada pela primeira vez em 1979, apenas com o lançamento da
primeira edição brasileira, em 1994, tais concepções tiveram uma boa divulgação no espaço acadêmico do país.
4
Ver, a esse respeito, Cardoso et alii (2000).
5
Ver, a esse respeito, os mapas da fome elaborados pelo Ipea e o posterior Plano de Combate à Fome e à Miséria (Ipea,
1993a; 1993b).
6
Como indicamos anteriormente, este princípio é utilizado por Singer (op. cit., pp. 25-35) para a análise das mais relevantes
questões éticas da sociedade humana na contemporaneidade, particularmente a questão da “obrigação que têm os ricos de
ajudar os pobres”.
7
A bioética pode ser concebida como um campo específico da chamada ‘ética prática’ que, afora as divergências de concepções
existentes, “tem por objetivo garantir a sobrevivência humana e a qualidade de vida”. Ou, ainda, a bioética constitui “uma
nova e geral ‘visão científica’ do mundo que, ao fixar principalmente a atenção sobre os problemas do desenvolvimento e da
população, toma em conta os problemas emergentes no campo sanitário” (Mori, op. cit., p. 334).
8
Os autores localizam o surgimento do conceito de solidariedade no pensamento sociopolítico francês do século XVIII e sua
propagação, nas encíclicas do período leonino e nas de João Paulo II. Assim, a palavra ‘solidariedade’, derivada do termo
‘sólido’, denotaria a “união dos esforços de todos [do coletivo] para atenuar infortúnios, defender-se de agressões, constituir
um sistema de proteção e trabalhar em conjunto para a obtenção de bens comuns (idem, ibidem, p. 951).
9
Estratégia utilizada pelo movimento a partir de 1994, na tentativa de provocar a discussão sobre as mudanças estruturais
necessárias.
10
Embora extrapole os objetivos do presente artigo, é preciso destacar que, no decorrer do governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002), por intermédio da Comunidade Solidária, pode-se identificar uma ênfase no discurso neoliberal da
“focalização, flexibilidade e parcerias entre o Estado mínimo, o mercado e o chamado terceiro setor (Cardoso et alii., op. cit.).
Uma série de críticas tem sido feitas à Comunidade Solidária, particularmente à composição e forma de atuação do seu
Conselho Executivo. Em linhas gerais, as críticas apontam as alterações substanciais ocorridas na forma de concepção, orientação
e gerenciamento das políticas públicas entre este programa e o Consea, o que, inclusive, teria provocado o desligamento de
Betinho do conselho. Entretanto, pode-se afirmar que, com a Comunidade Solidária ganhou peso a tendência que vinha se
configurando no âmbito das políticas sociais desde anos anteriores, com sensível redução da intervenção estatal direta e
ampliação do papel do chamado terceiro setor, caracterizado particularmente pela proliferação da atuação de organizações
não-governamentais (Valente, op. cit.; Silva et al., 2001; Demo, 2002).
11
Também ultrapassando os objetivos do presente artigo, vale ressaltar que, com a instituição do Programa Fome Zero,
verifica-se a reinserção do discurso do pacto social, combate à fome e à miséria, direito à alimentação e segurança alimentar
como prioridades da agenda pública brasileira dos próximos quatro anos. Entre o clima de euforia da divulgação e a demora
na execução das primeiras ações do programa, gerou-se um espaço propício a críticas e especulações, sobretudo com relação
ao caráter assistencialista das atividades iniciais anunciadas (as doações). Enfim, no primeiro ano do governo Lula, observou-
se uma intensa propaganda governamental para sensibilização da população em torno do Fome Zero. Inicialmente parece ter
ocorrido uma adequada adesão da sociedade civil e de empresários ao programa. Por enquanto, resta continuar lutando para
que as necessárias medidas estruturais, associadas às medidas emergenciais, sejam colocadas em ação e esperando que, em
breve, a histórica fome estrutural do povo brasileiro seja superada (Fome Zero, 2003a, 2003b, 2003c e 2003d).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS