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Parashat Vaishlach – Leis da violação da virgem na Torá e na Lei Assíria

Uma breve análise comparativa

A Dra Eve Levavi Feinstein realizou uma comparação breve, no objetivo


de realizarmos uma interpretação adequada nos estudos bíblicos
acadêmicos, para os casos em que, a visão cultural da Bíblia Hebraica não
mais reflete a visão ética e moral que temos hoje.

Ao comparar textos na Bíblia Hebraica com os textos de outras culturas do


Oriente Médio Antigo, os estudiosos puderam discernir diferenças
estilísticas e substantivas entre os diferentes autores.

O exemplo é o da concepção da “lei do estupro da virgem solteira”, de


Devarim 22: 28 – 29. Este é um excelente exemplo de um texto bíblico
que é esclarecido, quando fazemos a comparação com outros textos, dentro
e fora da Bíblia Hebraica.

Nesta primeira parte do estudo, examinaremos o material da Torá, em duas


passagens relacionadas:

A lei da sedução da virgem solteira, em Shemot 22: 15–16 e uma


passagem das Leis Medo-Assírias (LMA).

[O texto destas leis, estão no livro de Martha T. Roth “Law Collections


from Mesopotamia and Asia Minor” (segunda edição, Atlanta, Scholars
Press, 1997) páginas 174, 75]

Começando por Shemot, veremos Devarim em seguida e, depois,


consideraremos as leis Medo assírias, antes de discutir o relacionamento
entre as três.

Shemot e Devarim - Sedução versus Estupro


Shemot 22: 15–16 diz:

: ‫וְכִ י יְפַ ֶּת ה ִאיׁש ְּב תּולָ ה אֲ ֶׁש ר ל ֹא אֹ ָרָׂש ה וְָׁש כַב ִעָּמ ּה ָמהֹ ר י ְִמהָ ֶרָּנה ּלֹו ְל ִאָּׁש ה׃ ִאם‬
‫ָמאֵ ן י ְָמאֵ ן אָ ִביהָ ְל ִתָּת ּה לֹו ֶּכסֶ ף יְִׁש קֹ ל ְּכ מֹהַ ר הַ ְּב תּוֹלת‬

Se um homem seduzir uma virgem por quem o preço da noiva não foi
pago e se deitar com ela, ele deverá fazer dela sua esposa, pagando o preço
da noiva. Se o pai dela se recusar a entregá-la, ele ainda assim deverá pesar
a prata, de acordo com o preço da noiva, pelas virgens.

Esta lei trata da antiga prática de noivado no Oriente Médio Antigo, onde
um homem obteria uma noiva, dando a seu pai uma quantidade de prata
como um "preço da noiva" (às vezes também chamado de "riqueza da
noiva" ou “dote”).

O preço da noiva era mais alto para as virgens, então dormir com uma
virgem antes do casamento, “roubaria” - por assim dizer - da família, a
quantia mais alta. Dado o valor atribuído à virgindade, isso também
reduziria severamente, suas chances de conseguir um marido, o que a
deixaria social e economicamente vulnerável. A lei resolve esses
problemas, exigindo que o “sedutor” pague a quantia mais alta e tome a
menina como esposa. No entanto, o pai da menina se reserva o direito de
recusar o casamento, e mesmo assim, manter a prata.

A lei paralela em Devarim 22: 28–29 tem a seguinte declaração:

‫ ְונ ַָתן‬:‫ּותפָ ָׂש ּה וְָׁש כַב ִעָּמ ּה וְנִ ְמצָ אּו‬


ְ ‫ִּכ י י ְִמצָ א ִאיׁש נַעַ ר [ ַנע ֲָרה] ְבתּולָ ה אֲ ֶׁש ר ל ֹא אֹ ָרָׂש ה‬
‫הָ ִאיׁש הַ ֹּׁש כֵב ִעָּמ ּה לַ אֲ ִבי הַ ַּנעַ ר [הַ ] [ַּנ ע ֲָרה] חֲ ִמִּׁש ים ָּכסֶ ף וְלֹו ִת ְהיֶה ְל ִאָּׁש ה ַּת חַ ת‬
‫אֲ ֶׁש ר ִעָּנּה ל ֹא יּוכַל ַׁש ְּל חָ ּה ָּכל י ָָמיו‬

Se um homem se deparar com uma virgem que não está noiva e ele a
tomar e se deitar com ela - e forem descobertos - o homem que deitar com
ela pagará ao pai da menina, cinquenta siclos de prata, e ela será sua
esposa. E porque ele a violou, ele nunca pode ter o direito de se divorciar
dela.
Essa lei trata mais de estupro do que de sedução, mas a penalidade é
semelhante: o homem deve se casar com a garota e pagar ao pai.

Comparando as duas leis

As diferenças entre as penalidades são detalhadas:

O Shemot exige o preço habitual da noiva, que pode ter variado ao longo
do tempo e de uma comunidade para outra, enquanto o Devarim fornece
uma quantia fixa.

Devarim proíbe o homem de se divorciar de sua esposa "porque ele a


violou". Somente Shemot permite que o pai da menina recuse o
casamento.

Aparentemente, essas leis não são redundantes: Devarim explica o que


fazer quando uma virgem sem compromisso é estuprada, e Shemot explica
o que fazer se o relacionamento parecer consensual.

Porém, na leitura crítica, as diferenças entre as penalidades das leis não se


correlacionam com a distinção entre estupro e sedução:

1 - As diferentes formulações da penalidade monetária tornam impossível


saber qual é a mais alta. Pode ser que cinquenta shekels tenham sido mais
altos do que o preço típico da noiva e, portanto, serviriam como uma
penalidade adicional pelo estupro, mas esperaríamos que o Devarim desse
uma quantia relativa - talvez o dobro do preço usual da noiva, ou do preço
usual da noiva mais alguma quantia fixa.

2 - À primeira vista, Devarim 22: 29 parece oferecer proteção extra à


garota, proibindo o divórcio porque ela foi estuprada ("porque ele a
violou").
Mas o termo ‫“ ענה‬violada”, não necessariamente denota estupro. O Sefer
Devarim 22: 23–24, que está intimamente relacionado à presente lei, usa
‫ ענה‬para descrever um ato sexual considerado consensual também.
Nesse contexto, o termo parece se referir à desvalorização financeira de
uma garota, tirando a virgindade. Assim, embora essa lei lide claramente
com o estupro, a justificativa para proibir o divórcio por causa disso, não é
que a menina tenha falhado em consentir, mas que sua virgindade foi
tomada.

3 - A disposição em Shemot, de permitir que o pai da menina recusasse o


casamento seria, mais apropriada para um caso de estupro do que sedução:
apesar da proteção oferecida por qualquer casamento, um pai poderia ver
facilmente a filha ficar solteira, como um mal menor comparado a se casar
com seu violador.

Além dessas dificuldades, se as leis pretendiam se complementar,


esperaríamos que elas aparecessem lado a lado, e não em dois pontos
totalmente diferentes da Torá.

Explicando as diferenças

Podemos começar a entender essas questões compreendendo que as leis


pertencem a dois códigos jurídicos diferentes, mas relacionados.

A “lei da sedução” pertence ao que os estudiosos chamam de "Código da


Aliança" ou, mais precisamente, a "Coleção da Aliança" (CA), que
compreende Shemot 20: 19–23: 33.

[Diferente de um código jurídico que procura cobrir um amplo sistema


legal ou, de uma lei em particular, as porções legislativas da Torá, na maior
parte, são coletâneas não exaustivas de leis sobre, temas diversos]

A “lei do estupro” pertence ao chamado “Código Deuteronômico” ou


“Coleção Deuteronômica” (CD), que corresponde ao Devarim 12–26.
Como os israelitas atribuíram suas leis à comunicação da Divindade com
Moshe, as duas coleções foram finalmente incorporadas a coletânea
literária na composição da Torá.

Embora as datas precisas dessas coleções jurídicas sejam ainda debatidas,


a maioria dos estudiosos concorda que o CD foi escrito depois do CA e,
em muitos casos, o repete ou o revisa.

Algumas das mudanças nesta lei podem refletir uma decisão de


afastamento, de um sistema que colocava a autoridade nas mãos dos
patriarcas da família e nos costumes locais, no sentido de que concedia
mais autoridade aos oficiais do governo e em regulamentos fixos.

[ver o artigo de Tikva Frymer-Kensky “Virginity in the Bible” no “Gender


and Law in the Hebrew Bible and The Ancient Near East (edição Victor H
Matthews, Bernard S Levinson e Tikva Frymer-Kensy; pela Sheffield
Academic Press, 1998) páginas 91, 92]

Assim, o dote habitual tornou-se um montante fixo e o pai da menina


perdeu o direito de decidir seu destino.

A proibição de divórcio pode ser uma limitação semelhante aos direitos de


homens individuais, mas também reflete uma preocupação adicional com o
bem-estar da menina.

É mais difícil explicar por que uma lei usa a sedução como exemplo,
enquanto a outra usa o estupro. Antes de retornar a esta pergunta,
consideraremos uma passagem paralela na Lei Medo Assíria.

Leis Medo Assírias

As leis Medo Assírias foram compostas por volta de 1076 antes da era
comum, provavelmente antes de qualquer uma das coleções bíblicas.
O tablet A da LMA contém duas leis sobre sexo com uma virgem sem
compromisso, uma sobre estupro e outra sobre sexo consensual e, ao
contrário da Torá, as duas leis aparecem lado a lado.

LMA A ¶55 lida com estupro:

O estuprador deve levar a garota para sua proteção e, se não for casado,
deve se casar com a garota pelo triplo do preço da noiva, embora seu pai se
mantenha o direito de rejeitar a união. Se o estuprador for casado, no
entanto, sua própria esposa deve ser estuprada.

LMA A ¶56 lida com um relacionamento ostensivamente consensual:

Nesse caso, o homem simplesmente paga a multa monetária e o pai da


menina "deve tratar a filha da maneira que ele escolher".

Ao contrário das leis bíblicas, o LMA A distingue estupro de sexo


consensual, adicionando uma penalidade, exigindo o estupro da esposa do
estuprador.

Como as leis bíblicas carecem dessa disposição, elas não permitem uma
distinção significativa entre os dois cenários, e cada coleção precisava
apenas de uma lei. Na maioria dos outros aspectos, as leis da LMA A se
assemelham à lei da CA: elas permitem que o pai rejeite a união, não
proíbem explicitamente o divórcio e baseiam a penalidade monetária no
preço habitual da noiva, embora neste caso seja triplicado.

Avaliando a relação entre as leis

Os estudiosos tem opiniões divergentes em suas avaliações da relação


entre CA, CD e LMA A, mas há um bom argumento para a visão de que o
LMA A influenciou as leis bíblicas.

[como diz David P Wright, no “Invention God’s Law: How the Covenant
Code of the Bible Used and Revised the Laws of Hammurabi (New York,
Oxford University Press, 2009) páginas 110, 14]
Se isso estiver correto, parece que a CD criou o cenário de estupro da
LMA A ¶55, enquanto a CA criou o cenário do sexo consensual da LMA A
¶56.

As razões para essas decisões não são claras, mas pode haver uma pista em
Devarim 22: 23 – 27, que poupa uma garota prometida da pena de morte
por sexo com um homem que não é seu noivo, se ela foi estuprada. Isso
indica que o autor de CD considerou o consentimento um fator potencial
na determinação da culpabilidade feminina.

[“autor” aqui é só um modo de falar, dado que estas leis foram redigidas
durante um longo período de tempo. Entretanto, muitas partes do CD,
incluindo estas, mostram consistência de estilo suficientes para que sejam
atribuídas a um redator]

Talvez ele estivesse desconfortável usando o exemplo de um


relacionamento consensual em uma lei que visava, em parte, proteger a
garota, mesmo que o consentimento não tivesse impacto legal neste caso.

Quando as leis da Torá são comparadas às leis da LMA A, as semelhanças


e as diferenças aparecem.

Todas as leis enfatizam que a ofensa foi contra o pai. Não se trata de um
crime de agressão contra a mulher, embora tentem mostrar alguma
consideração pelo bem-estar da mulher, ao proporcionar a possibilidade de
casamento.

As leis diferem em suas penalidades monetárias também: o CA


simplesmente exige a restituição do valor perdido da menina, enquanto o
LMA A exige uma quantia bem maior, presumivelmente como uma
punição, por contornar a autoridade do pai para organizar um casamento
para a filha. (A penalidade da CD é difícil de avaliar, como observado
acima.)

A diferença mais significativa entre as leis, no entanto, é a punição da


LMA A por estupro, com o estupro da esposa do estuprador. Punições
vicárias similares “medida por medida”, aparecem no Código de Hamurabi
(CH), mas, nenhuma que aparece nas coletâneas bíblicas, restringem a
punição ao agressor.

[“medida por Medida”, também chamada “Lei de Talião”, aparece em


Shemot 31: 24, 25; Vaicrá 24: 20 e Devarim 19: 21. No Hamurabi, está em
196-97, 200; 209-10; 229-30. Algumas destas leis, incluem o famoso “olho
por olho”, que aparece também em coletâneas bíblicas. O Hamurabi
também tem punições medida por medida, prescritas em caso da morte da
filha no caso da morte de uma grávida, bem como no caso da morte do
filho, pela morte do filho]

O Sefer Devarim 24: 16 se distancia, expressando a distinção: "Os pais não


serão mortos pelos filhos, nem os filhos serão mortos pelos pais: uma
pessoa será morta apenas por seu próprio crime".

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