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O LEITOR E SUA BIBLIOTECA

Conference Paper · October 2010

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Rodrigo Matos de Souza


University of Brasília
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O LEITOR E SUA BIBLIOTECA

RODRIGO MATOS DE SOUZA


UNIJORGE, Professor do curso de Letras (UNIJORGE) e mestre em Estudo de
Linguagens (UNEB)

A imagem de Jorge Luis Borges cego diante de sua escrivaninha na


Biblioteca de Buenos Aires (MANGUEL, 2006, p. 223) é a melhor representação
que pode existir de um leitor voraz e apaixonado pelos livros, um ser que mesmo
na impossibilidade da leitura insiste. Borges também imaginou o paraíso em forma
de biblioteca (2007). Ele trabalhava no paraíso; um discípulo seu o levou a sério e
construiu o seu paraíso particular. O paraíso borgeano tem endereço e morador,
fica no vale do Loire, próximo a Poitiers, num vilarejo que não direi o nome, mas,
cujo destino está disponível a todos que consigam ler as indicações presentes no
livro. Seu proprietário é Alberto Manguel, um argentino-canadense que rodou o
mundo trabalhando com/pelos/para os livros e em um belo dia de verão resolveu
que estes livros deveriam ter o seu lugar, deixar o exílio forçado em várias partes
do mundo e instalar-se em prateleiras, todos juntos e organizados como melhor
conviesse ao proprietário, ou da maneira como cada um deles quisesse, pois os
livros falam e dizem onde querem ficar. É isto que Manguel nos ensina desde as
primeiras linhas de A Biblioteca à Noite (2006)

As bibliotecas - as minhas ou aquelas que compartilhei com um


público mais amplo de leitores – sempre me pareceram lugares
agradavelmente insensatos, e, até onde consigo me lembrar, sempre me
seduziu a lógica labiríntica pela qual a razão (mas não a arte) parecia
imperar sobre um conjunto cacofônico de livros. Sinto um prazer
aventuresco em me perder entre as estantes carregadas, confiando
supersticiosamente que alguma hierarquia de letras ou números há de
me conduzir, um dia, ao destino prometido. Há muito tempo os livros são
instrumentos das artes divinatórias. “Uma grande biblioteca”, meditava

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Northrop Frye num de seus muitos cadernos, “tem o dom das línguas e
enormes poderes de comunicação telepática (MANGUEL, 2006, p. 12)”.

Trata-se de um livro de narrativas históricas – com toda a contradição que


este tipo de escrita nos oferece – sobre a relação do homem com os livros, em
especial, como sujeitos organizam suas bibliotecas. Mas, devo deixar claro que
não se trata de um trabalho teórico no sentido mais estreito do termo, mas sim de
um conjunto de ensaiois-ficcionais-(auto)biográficos, sem a pretensão de se fazer
uma história das bibliotecas e seus proprietários. Este livro está muito mais ligado
a um sentimento estranho que afeta a todos aqueles que foram mordidos pelo
bicho da bibliomania, mas que para não infectar toda a casa, ou aqueles que por
ali passarem, resolveu criar o seu espaço de quarentena (ou se prazerosa
solitude), no qual se pode conversar com as lombadas dos companheiros que
escolheu para compartilhar o cômodo. “Durante a noite, sento-me e leio, e observo
as fileiras de livros que voltam a tentar-me a estabelecer conexões entre vizinhos,
a inventar histórias comuns a todos eles, a associar um fragmento rememorado a
um outro” (2006, p. 24)
Há nesse leitor-autor uma relação que extrapola a intensidade do ato de
ler, é quase sexual – Montaigne (2004), de certa maneira, antecipou este caráter
erótico dos livros, quando enumerou as qualidades destes em relação às
mulheres; e Henry Miller, em celebre frase reafirmou a relação erótica que
podemos estabelecer com os códices, “devemos ler para oferecer à nossa alma a
oportunidade da luxúria” (2004, p. 73). Ele se refere aos livros como se refere aos
amigos e trata do reencontro com um determinado título com a emoção que só é
comparável a de um ente querido ou de um melhor amigo de infância que por
acaso reencontramos ao entrar numa padaria. E assim ele vai descrevendo a sua
biblioteca, construída em partes desde a infância, ao mesmo tempo em que
fornece informações sobre a origem do sistema alfabético, a história da biblioteca
de Alexandria e de bibliotecas organizadas por outros escritores, por críticos da
literatura e por anônimos, cujo único legado deixado à posteridade foram as suas
maneiras de colocar os livros numa estante.

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Esta mania leitora é como um vício ou um vírus que se adquire em um
determinado momento e se carrega para toda a vida, “para leitores como eu não
há uma derradeira aquisição – não deste lado do túmulo (MANGUEL, 2006, p.65),
é como se todo momento vivido fosse uma parte da construção de uma biblioteca
particular, com seu preenchimento e negligências”. Como nos chama a atenção o
bibliófilo José Mindlin (2004, p. 15):

Para mim é difícil falar simplesmente do gosto pelos livros,


porque em matéria de livros meu caso é muito mais grave: é um amor
que vem desde a infância, que me tem acompanhado a vida inteira, e
ainda acima disto, é incurável. [...] De lá para cá, foram se formando
grandes bibliotecas, a ai surge o segundo prazer: possuir o livro, que,
além do conteúdo, também pode ser apreciado como objeto de arte, pela
ilustração, diagramação, papel, tipografia, ou encadernação. O primeiro
livro que se adquire provoca a busca de outros, e, em pouco tempo,
começa a formar-se a biblioteca, em que por sua vez se formam as mais
variadas coleções: autores, assuntos, edições, raridades, manuscritos e
muitos et ceteras.
Há o prazer intelectual da leitura, e o prazer físico do contato com
o livro. Falo sempre de loucura mansa e posso assegurar que não é só
mansa: é também prazerosa.

A vida não se configura apenas como leitura, mas também como consumo
de um universo táctil-sensorial, de escolhas e negligências que constituem toda
biblioteca, pois somos transformados por aquilo que lemos, mas também pelo que
não lemos.

“Como todo leitor sabe, uma página impressa cria seu próprio espaço de
leitura, sua própria paisagem física, na qual a textura do papel, a cor da tinta, a
visão do conjunto adquirem, às mãos do leitor, sentidos específicos que dão tom e
contexto às palavras” (MANGUEL, 2006, p.70). O leitor é aquele que atualiza a
obra, noção ligada à Estética da Recepção, que Manguel toma emprestada,
tornando-a menos sisuda, para reafirmar o caráter criativo da leitura, cuja síntese
pode ser encontrada, justamente, na constituição das bibliotecas por cada um dos
leitores. Ele também passeia pelos caminhos da chamada História Cultural,
elegendo aqui e acolá indivíduos e suas bibliotecas para serem alvos das
monografias que compõem o livro, e ao fazer isso constrói uma sociologia
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histórica da leitura, sem a pretensão de ser reconhecido academicamente como
teórico.
Este elogio à relação do homem com os livros se faz de maneira não
proselitista, há o reconhecimento por parte do autor da nossa condição de minoria,
pois a leitura nunca foi prática cultural massificada, os não-leitores sempre foram
maioria e o ato de ler sempre foi tido como um passatempo frívolo, que não
contribui em nada para a sociedade (MANGUEL, 2004). Os leitores acabam por
formar uma espécie de resistência ou irmandade cujo gabinete se espalha por
todos os espaços de leitura presentes em nossa sociedade, ou mesmo um clube
secreto, como imaginava a personagem Tereza de a Insustentável Leveza do Ser
(KUNDERA, 1995), cujo sinal de reconhecimento e distinção era o carregar de um
livro embaixo do braço. É para esse grupo de Alberto escreve, claro que outros
podem encontrar ali portos seguros para ancorar suas leituras, mas ele está se
comunicando com os seus amigos, espalhados pelas bibliotecas em cinco
continentes.
Manguel constrói bem esta representação do leitor com a sua biblioteca,
incorporando-a como um espírito, reflexo do percurso de muitos outros leitores
que deixaram suas marcas em incunábulos vários; e revela o universo que se
estabelece na interseção homem-livro e no íntimo de todo leitor: a paixão pelos
livros.

Referências Bibliográficas

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

KUNDERA, Milan, A Insustentável Leveza do Ser. Tradução de Tereza B. Carvalho da Fonseca.


São Paulo: Record, 1995.

MANGUEL, Alberto. A Biblioteca à Noite. Tradução de Samuel Titan Junior. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

MILLER, Henry. Devemos ler para oferecer à nossa alma a oportunidade da luxúria. In: A Paixão
pelos Livros. Tradução de Julio Silveira. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.

MINDLIN, José. Loucura Mansa. In: A Paixão pelos Livros. Tradução de Julio Silveira. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2004.
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MONTAIGNE, Michel de. In: A Paixão pelos Livros. Tradução de Julio Silveira. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2004.

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