1) O documento discute a crise da modernidade, originada pela racionalização do projeto de sociedade e pela influência do capitalismo sobre a vida das pessoas.
2) A modernidade líquida não solucionou as antigas problemáticas da modernidade sólida, como o mal-estar e a tarefa mecânica da vida.
3) O documento defende que a crise não é um problema em si, mas sim a recusa do abismo existencial e a negação da razão e da contemplação.
1) O documento discute a crise da modernidade, originada pela racionalização do projeto de sociedade e pela influência do capitalismo sobre a vida das pessoas.
2) A modernidade líquida não solucionou as antigas problemáticas da modernidade sólida, como o mal-estar e a tarefa mecânica da vida.
3) O documento defende que a crise não é um problema em si, mas sim a recusa do abismo existencial e a negação da razão e da contemplação.
1) O documento discute a crise da modernidade, originada pela racionalização do projeto de sociedade e pela influência do capitalismo sobre a vida das pessoas.
2) A modernidade líquida não solucionou as antigas problemáticas da modernidade sólida, como o mal-estar e a tarefa mecânica da vida.
3) O documento defende que a crise não é um problema em si, mas sim a recusa do abismo existencial e a negação da razão e da contemplação.
“Em si, o cansaço tem alguma coisa de desanimador. Aqui, eu tenho de
concluir que ele é bom. Pois tudo começa com a consciência e nada sem ela tem valor. Essas observações não têm nada de original. Mas são evidentes: por ora isso é suficiente para a oportunidade de um reconhecimento sumário das origens do absurdo. A simples ‘preocupação’ está na origem de tudo.” (Albert Camus; O Mito de Sísifo) A modernidade, seja em seu estado sólido — a priori — ou em seu estado líquido, desponta no fenômeno da industrialização sob forte influência das correntes positivistas e iluministas, privilegiando-se no projeto de sociedade a racionalidade e o técnico, isto é, as ciências e seus avanços [tecnológicos]; a modernidade surge, portanto, sob o manto do progresso, fruto, então, da razão pura. O estágio da modernização deu o início a uma série de convulsões sociais, sobretudo no século XVIII com a ascensão do movimento romântico como forma de denúncia do mal-estar da modernidade.
O romantismo, em termos de um movimento histórico, exerce a
reação à destruição do medieval e ao início do processo de modernização, assume necessariamente a persona da subjetividade moderna e a influência do capitalístico sobre as formas de se viver, de se existir e de se relacionar. Devém da forma moderna de vida, uma crise — que futuramente desdobra- se no niilismo — não se reconhecendo a subjetividade nos produtos ou no cenário moderno constituído, a coerência que a razão coloca sobre a incoerência do mundo e dos seres; o mundo mascarado pelos hábitos e pelos axiomas — não apenas são axiomatizados, mas também recolocados em uma formalidade sublime: o axioma confundido com o fetiche, ou ainda: a forma habitual de vida investida como imagem do próprio ser humano.
Ouso ainda afirmar que o mal-estar não é apenas de uma
subjetividade moderna, mas de uma subjetividade constituída pela implicação do capitalismo sobre a vida, como se diz: a subjetividade capitalística — “E é no capital que se engancham as máquinas e os agentes, de modo que seu próprio funcionamento [17] é miraculado por ele. É objetivamente que tudo parece produzido pelo capital enquanto quase- causa” (Deleuze & Guattari; O Anti-Édipo). Em dado momento há, portanto, um recuo em relação ao positivismo científico e à técnica — ou a tarefa mecânica de repetição — tentando estabelecer a linha divisória entre o capital (a lógica mercantil) e o mundo em si (absurdidade), contudo, doravante, a confusão entre a própria vida e a produção e consumo. A recusa de uma modernidade que se despregue dos vínculos, dos afetos e dos valores, e que esteja restrita apenas ao capital, à razão, ao científico e ao positivo — mais do que isso, a um hábito técnico.
“Esta velha palavra de origem grega, krísis, significa separação, abismo
e também juízo, decisão, etc. Todo existir é um separar-se, toda atividade do existir é seletiva. Há, assim em todo existir um separar-se, um krísis, um abismo. […] A krísis é sempre vencida, ultrapassada pelo devir que vence a sua finitude e ao finitizar-se no eterno transmutar, mas que a afirma em cada instante. Porque ele deslocada daqui aparece inevitável e teimosa ali.” (Mário Ferreira dos Santos, Filosofia da Crise) Segundo Bauman, o processo de liquefação da modernidade — não necessariamente a superação dela, pós-modernidade — é dado por grande influência das problemáticas conflituosas que começam a destituir a imagem de um mundo positivo (a Primeira Guerra, inicialmente) e começam a dar espaço para o crescimento da pobreza e da miséria na Europa pós-guerra; problemáticas que afrontaram o projeto positivo, todavia que tendo a contraria-lo quando o afirma sua completa destruição. Certamente, inegável é a liquefação, mas de fato foi consolidado o fim do positivo-racional, ou ele apenas não se transformou para um movimento de aceleração infinita? Na verdade, a volatilidade tende a afirmar em toda a sua aceleração tanto o positivo quanto o capitalístico.
O século XX, desta forma, atesta a volatilidade dos vínculos e da
forma de vida, a plena aceleração dos processos sociais, culturais, políticos e econômicos, e, por conseguinte, a transmutação valorativa, de maneira a se manter a devida axiomatização das formas de vida, positiva, racional e capitalística. A asserção sobre o suicídio em Werther retorna à obra de Camus sob a perspectiva de uma crise de absurdidade — “Ao contrário, porém, num universo subitamente privado de luzes ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro. Esse exílio não tem saída, pois é destituído das lembranças de uma pátria distante ou da esperança de uma terra prometida.” (Camus; O Mito de Sísifo). O suicídio, portanto, como solução do absurdo, confrontação direta da crise. Mas o que de fato ousa recolocar a problemática romântica em termos de modernidade líquida?
Neste apontamento fica evidente: a liquefação em nada
solucionou as antigas problemáticas de crise da modernidade sólida. Mas, afinal, o que é a crise? Diz Mário Ferreira dos Santos “tudo o que é imanente”. Antes de qualquer contestação, analisemos a premissa básica que o constitui conceitualmente: a crise enquanto fruto das separações operadas pelo ser humano. Dessa forma, como tudo que na imanência reside sofre processos de separação, ou de finitude, a solução para as crises encontra-se em uma unidade transcendente. Pode-se de fato afirmar que a imanência é inteiramente crise? Resposta atípica do fazer filosófico: não. Indubitavelmente a imanência é finita e, portanto, o ser humano que se cria a partir dela enxerga-se na contradição entre a finitude de si e a quase-infinitude daquilo que existe para além dele. Isso necessariamente é crise? Em minha concepção, é o dilema existencial do diálogo entre a finitude imanente da existência e a infinitude transcendente do que é eterno e perdura a causa da potência, da força que instiga o indivíduo a viver, a agir, a se transformar e a experienciar, cultivando os bons afetos em si para fazer crescer sua potência.
O que é recorrente na imanência, oriunda da finitude e da
separação das singularidades, é a desordem das relações, as diferenças que surgem na superfície do plano imanente, as cargas diferenciativas que não permitem que seja formada uma unidade ou uma totalidade. Isto não é crise, isso é potência! O que determina a crise? O assédio à potência; especificamente: o deslocamento do indivíduo de sua natureza trágica, orgânica e desordenada, incongruente por si. Para ser ainda mais claro: quando o ser e sua subjetividade descobrem-se não mais como parte de uma congruência racional e mecânica, de processos positivos e normalizantes, senão como, por natureza, parte do abismo.
“A filosofia é a expressão da intranquilidade dos homens impessoais.
Por isso nos ajuda tão pouco a compreender, em sua totalidade, as vivências dramáticas e últimas.” (Emil Cioran; O Livro das Ilusões) Uma espécie de teatro que se cria, o indivíduo que sobe ao palco já com a trama e a personagem a serem interpretadas descritas em sua própria consciência, devendo cumpri-las, de maneira diferencial, haja vista que a modernidade preserva a diferença em sua constituição, todavia o cenário, o figurino e suas leves maquiagens anti-expressionistas — tomando em conta a negação do mal-estar e a exaltação toda positividade da existência humana — devem ser estritamente seguidos, de maneira inconsciente enquanto se está no palco. À medida que o indivíduo deixa o palco [de pura representação positiva] ele volta-se os olhos para a mediocridade e a miséria que imperam nas coxias; no fim das contas, o teatro é apenas uma busca para satisfazer a angústia, ou à moda pascaliana: o tédio.
Não me proponho aqui a negar a razão, de forma alguma,
proponho-me a diagnosticar a crise sob um olhar tão somente contemplativo. A recusa da razão negligencia o equilíbrio e a contradição, ou seja, afirma-se apenas uma de suas partes; qualquer tentativa de se negar a crise e a tragédia resultam na construção do recluso. Mas se há uma crítica a ser direcionada não é à crise, propriamente, mas sim sua atenuação pela tarefa mecânica de se viver. Quero dizer com isto o demasiado humano reprodutivo que há na vida e que elimina dela a sua singularidade, não necessariamente estático, mas habitual e rotineiro. Não nego a influência do hábito sobre o pensamento presente, mas direciono minha crítica à sua repetição, jamais sua duração. Há-de se especular sobre as origens da repetição: uma origem capitalística alicerçada na eficiência e na docilização dos corpos — há evidências, sobretudo na educação, que apontam para essa alternativa? Ou uma origem da racionalização integral do pensamento, fruto da modernidade — a peça-corpo, ou o indivíduo-máquina? Independe. Tudo isso corrobora apenas para uma atenuação da crise, é claro, pela morte da contemplação, do afeto, a morte do coração, “o coração tem razões que a razão desconhece” (Blaise Pascal). Suponho em dizer que o recorrimento do romântico ao fenômeno do amor ousa manifestar um vazio existencial não da natureza, mas da racionalização de seus sentimentos — vínculos líquidos.
Eterno é o drama entre o ser humano e sua
existência. Não é o problema em si o abismo existencial, mas sim a recusa, ou demonização, do abismo; de tal modo a negação de seu nêmesis, a razão, melhor dizendo: há aqueles que aquiescem com a tragédia sem buscar para si a potência, a positividade da diferença; por outro há os que apenas buscam o absoluto, aquiescem com o cenário axiomatizado e fetichizado e recusam à tragédia. Ambos são problemáticos. Não se trata aqui de como se livrar da crise, mas sim de como potencializar a arte de se viver por intermédio dela: a plena consciência e contemplação sobre o abismo, sem que se retire da vida o sua positividade e prazerosidade — e ouso ainda sustentar que qualquer modo de se tentar revolucionar a crise (sistematicamente, e cabe aqui um outro texto específico sobre) é pueril, de tal modo levar-se para uma realidade além dela. O segundo passo que damos, então, em direção à perigosa conclusão sobre a crise e a angústia, após compreender os processos modernos e as conceituações de tédio e crise, é fazer a afirmação da afirmação, isto é, acatar o infame drama existencial e humano; o drama romântico de Werther, o drama suicida de Camus, o drama divino de Pascal, o drama filosófico de Cioran, pretendendo eternamente o amor fati. Não o determinismo, mas a aceitação fatalista, a recusa de reproduzir mesmo nas angústias do passado: permanência, reprodução, negação do devir, chame como quiser.
Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que
instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento. (Albert Camus; O Mito de Sísifo) O amor líquido e a expressão de Werther em seu drama romântico recorrem a uma realidade não apenas de amor, mas se relacionam antinomicamente. Jamais se previu? Werther é o temor que o homem possui da efemeridade. Ou possuía. A questão revela-se muito mais complexa quando se diz: o amor líquido e Werther formam uma comum unidade de equilíbrio, essencial para a crise. Há quem critique: o jovem suicidado viveu o amor de verdade! De fato, mas como disse, a questão faz-se muito mais complexa do que simplesmente “isto é bom, isto é ruim”. A efemeridade daquilo que se constitui moderno e a aceleração dos processos do mundo caricaturam juntas a positividade da razão, tendendo a efemeridade muito mais a um efeito do que a uma causa ou uma composição interna da razão. O homem torna-se o centro de todas as coisas, a ele é conferido o poder do consumo, o poder das relações, o homem fetichizado, endeusado, miraculado como o redentor do mundo por sua razão — aí uma problemática.
Eis a tarefa mecânica, a técnica: o processo histórico do hábito
[produtivo e moderno; capitalístico] reproduz-se na produção de si e da vida — Portanto, uma máquina técnica não é causa, mas apenas índice de uma forma geral da produção social: assim, [40] as máquinas manuais e as sociedades primitivas, a máquina hidráulica e a forma asiática, a máquina industrial e o capitalismo. (Deleuze & Guattari; O Anti-Édipo). Mais do que isso, caricaturam juntas a efemeridade e a aceleração não somente uma problemática de atenuação, mas um ente do qual não se deve simplesmente escapar — ente da própria natureza — mas retirar do funcionamento técnico a máxima potência de diferenciação e de criação. O amor fati a prescreve. De fato pouco me importa a modernidade líquida, importa-me apenas o que há de mecânico nela, que não arrasta consigo a razão e a positividade inteiramente.
A conceituação de angústia, portanto, remete à impulsividade
em satisfazer a prazerosidade, de se potencializar, na imanência, naquilo que é descrito por Mário Ferreira como crise, contudo que afirmo: desordem. Ainda assim, em certa medida, tenho que assentir: a crise é inexorável na desordem imanente, todavia não é inata a ela, senão os seus processos de deslocamento, em outras palavras a construção de axiomas modernos que fazem da natureza do existir um plano fetichizado, completamente sublime em termos de positividade — transcendência da imanência. Em vista disso, a crise que se constata é nada mais que a atenuação da angústia existencial que Camus vem a nomear “antinomia da condição humana”. A priori eu diria: não se confundem os conceitos da razão aos conceitos da técnica. Doravante é possível constatar que o conceito da razão e da técnica efetivam a atenuação da crise pela antinomia construída com a natureza trágica, incongruente e miserável; o estado de tédio é nada mais que o ponto de saturação, ou de encontro, entre o prazer e a dor: a coexistência de ambos. O elemento mecânico insere-se em: a conceituação de angústia, portanto, remete à compulsividade em satisfazer a prazerosidade, de se potencializar, na imanência.
Toda crise, assim sendo, é característica do plano de imanência
enquanto coexistir nele a razão — líquida, técnica, axiomática, fetichista — e a tragédia — miserável; toda organicidade, contemplatividade e afirmação, que se une, portanto, à razão no prazer e no que é positivo (própria τέλος de ambos), haja vista que se prender às correntes da tragédia é uma dilaceração da potência; é preciso reconhece-la, contempla-la e afirma-la com toda a força do amor fati. Ainda que a oposição exista e o divórcio seja a causa da crise, suas dinâmicas encontram-se no estado de tédio. Podemos afirmar que a crise é o tédio, relações de conciliação e divórcio entre a natureza do existir e a construção humana do existir. Reitero que não venho moralizar a crise e afirmar quem é o inimigo, mas veementemente afirmar a crise, o processo de se repensar a vida por meio deste dinâmico e paradoxal estado de tédio e angústia, a natureza de existência e o demasiado humano.
“Para o homem dionisíaco é impossível não entender alguma sugestão,
ele não ignora nenhum indício de afeto, possui o instinto para compreensão e adivinhação no grau mais elevado. Ele entra em toda pele, em todo afeto: transforma-se continuamente.” (Friedrich Nietzsche; Crepúsculo dos Ídolos)