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Políticas culturais, regionalismo e inclusão: O Nordeste paradoxal do MUHNE

Este trabalho consiste em uma análise do sentido de Nordeste produzido a partir da


releitura da representação da região realizada no Museu do Homem do Nordeste – Muhne.
Tal processo de revisão e crítica vem se dando desde a década passada e materializa-se a
partir de mudanças realizadas em sua exposição de longa duração assim como em outras
políticas executadas por esta instituição desde então.
O Muhne está situado na cidade de Recife, Pernambuco, e é pertencente à Fundação
Joaquim Nabuco – Fundaj, a qual foi idealizada e fundada por Gilberto Freyre, artífice da
“brasilidade nordestina”, uma produção discursiva fundada em uma tese idílica acerca da
relação entre brancos e negros no Brasil, nostálgica da civilização do açúcar e que produziu
um fetiche sob aspectos da cultura local, apresentando-os como vantagens comparativas a
outros lugares, o que alçava o Nordeste a condição de mais relevante e tradicional região do
país, beneficiado culturalmente pela miscigenação e onde era possível achar as raízes da
civilização brasileira: “The Northeat keeps the part, over more than one aspect, more
Brazilian from Brazil”.
Ter no museu o caminho para compreender formulações contemporâneas sobre a
região nordeste é, inicialmente, ter em conta as formulações clássicas oriundas dos estudos
regionais que entendem a representação como um aspecto fundamental para a
consagração de projetos de região, comunidade e estados. É a isto que Benedict
Anderson(2006) se referiu ao dizer que instrumentos representacionais, como museus,
moldaram profundamente o mundo colonial no que diz respeito à natureza dos indivíduos
governados, a geografia do território e ao próprio passado. É também o que Eric Hobsbawn
e Ranger (2012) sugerem em sua compreensão de que a capacidade de selecionar,
preservar e institucionalizar (tarefas que entende-se aqui serem característica dos museus)
é fundamental para a invenção de tradições; matéria prima para o sentimento de que há no
presente uma continuidade com o passado, o qual se faz necessário para a legitimidade de
nações, comunidades e regiões.
Considerar o museu neste papel é dar centralidade a sua condição de operar
enquanto dispositivo, no sentido que Foucault (ANO) e Agamben (2005) concebem sobre
este termo. Esta escolha se harmoniza com abordagens inerentes aos estudos culturais,
tanto no que diz respeito a questões de disciplina e hegemonia, quanto por questões de
governamentalidade. Exatamente esta articulação é o que está presente na análise de Tony
Benett (2013), o qual aponta existir no museu contradições insuperáveis inerentes a sua
racionalidade politica, o que deixa marcas em suas políticas e, consequentemente, nas
verdades que almeja inscrever por meio de suas narrativas.
Narrativa esta que será aqui pensada, também, a partir de fluxos nacionais e globais
que influenciam a composição do seu sentido. Pensar a região, e sua representação significa
aqui tomar sua gênese, sua consagração e suas reelaborações como produto de uma
articulação que transcende as variáveis provinciais. Se Courtney Campbell (2014)
demonstrou que a formação histórica da identidade social do nordeste é um processo
inacabado e está fortemente associada ao mundo que está além das suas fronteiras
geográficas, utilizando os próprios expedientes de representação do Muhne como espelho
de seus argumentos, será considerado neste trabalho que suas contínuas e recentes
reformulações estão pautadas por uma agenda global, que relaciona diversidade e
visibilidade, e que se enraíza a partir do status estratégico que as instituições culturais
foram alçadas na luta política por reconhecimento na atualidade.
O Muhne foi inaugurado no ano de 1979, e desde a sua idealização – nos exercícios
realizados previamente por Gilberto Freyre de propor o que haveria de ser um museu
adequado – o que se pode perceber é uma influência estrutural do que ele apreendeu de
suas visitações a instituições deste tipo espalhadas pelo mundo, especialmente as
européias. Entre o apreço pela sistematização de dados dos museus americanos; as agendas
de pesquisa de museus russos, chineses e japoneses (fundadas nas condições de vida e
habitação das populações rurais); as possibilidades de pesquisa etnológica sobre aspectos
(tais como o Banguê e o Palaquim) que conectavam partes do mundo “não-europeu” ao
Brasil; o manejo da temporalidade no Museu do Homem em Paris, que acreditou ser o ideal
para um museu, entre outras coisas, certamente a experiência de sua visita ao Museu
Nacional Germânico em Nuremberg foi uma das mais marcantes na construção de seus
entendimentos: “Dentro dele, a gente duvida que aquilo seja mesmo um museu. Não se
tem a impressão de estar entre retalhos de coisas mortas” (Freyre, p 18).
Ao invés de um mero inventário de suas experiências em museus, o que se quer
demonstrar aqui, de antemão, é tanto a marca de um imperativo de interlocução global que
haveria de estar impressa na instituição a ser criada, quanto sua crença na centralidade que
deveria existir em uma narrativa que inscrevesse sobre o visitante um sentimento de ligação
e atualidade com o que estava exposto.
Recentemente, a Fundaj publicou uma edição com análises do que haveria de ser o
pensamento museológico de Gilberto Freyre (???, 2018). Em meio a este trabalho, duas
assertivas são bastante sugestivas. Gleice Heitor entende que o que estava sendo idealizado
era uma plataforma para conferir espacialidade ao seu pensamento; assim como Alexandro
de Jesus compreende que o bom laboro institucional do museu residiria em forjar sentidos
sobre a experiência (mediante sua indesejada impossibilidade de mimetizar a vida).
Consequentemente, o que haveria de ser a mais refinada técnica museológica consistiria,
justamente, na sua eficácia em inscrever, sobre e na vida, regimes de verdade que
pudessem dizer respeito a lugares, temporalidades, comunidades e etc.
Não coincidentemente, Freyre era um grande entusiasta destes lugares como
plataformas para que mestres como ele pudessem atuar. Com absoluta constância, referia-
se ao traço indelével dos grandes antropólogos e cientistas no comando de instituições
museológicas. A razão está em que estas duas condições articuladas: ser lugar de
materialização de enunciados e inscrição de sentidos (por vezes, temporalmente e
localmente marcados) careciam da competência hermenêutica de tais autoridades para
produzir legitimidade e status de verdade ao que estava sendo arquivado.
Dito de outra forma, considerando que isto é algo mais depreendido do seu
pensamento do que expresso diretamente por Freyre, o que estava em jogo para ele era
que o museu pudesse operar enquanto um arquivo, no sentido derridiano do termo
(DERRIDA, 2001). Isto quer dizer ser lugar (uma exterioridade, um suporte), sob a tutela de
uma autoridade hermenêutica, que interpreta aquilo que arquiva, articula princípios de
tempo e de ordem a fim de consignar os signos a serem arquivados (por vezes
evidenciando, por vezes reprimindo) e que, a partir dele, inscrevem-se verdades sobre o
objeto de arquivamento.
Pensar o muhne sob esta perspectiva faz-se importante diante da pretensão de
tratar, mais adiante, as marcas que estão impressas neste arquivo e que são articuladas em
sua releitura. Sua própria gênese – o muhne foi criado a partir da fusão de três outros
museus, o Museu de Antropologia (1961-1979), da própria Fundaj; o Museu do Açúcar
(1955-1966) do Instituto do Açúcar e do Álcool; e o Museu de Arte popular (???) do Governo
do Estado de PE – sugere o momento de produção de um traço que se tornou perene nas
forma do museu dizer a região ao longo de sua existência.
Embora um corpus de um novo museu tenha sido produzido nesta fusão, havia algo
de aristocrático, racial, pré-industrial e nostálgico de uma civilização no que estava se
dizendo açúcar. Assim como, algo de popular, artesanal e católico nos sentidos do que
estava musealizado enquanto arte popular. Durval Muniz de Albuquerque referiu-se a tal
dissonância no muhne “original”, ao registrar sua percepção sobre a existência de uma
dificuldade do museu construir narrativas com os objetos que dispunha no acerco em razão
da diversidade de suas origens1. A consignação destes elementos díspares pelo arconte de
apipucos produziu uma unidade que, ao mesmo tempo, estava se dizendo aleatória,
incidental e ampla de Nordeste. Não sendo coincidência que a linguagem expográfica
utilizada para narrar a região foi, assumidamente, inspirada nas feiras populares da região,
dado o fato que estes lugares carregam um sentido em meio ao senso comum de que nela
tudo cabe e pode ser encontrado.
Em meados da década passada, o Muhne decidiu reformular esta exposição
almejando superar os limites de uma representação que procurava ser a síntese da região.
Tal iniciativa, em seu início, tomada por seus agentes como algo teleológico pois
corresponderia ao resultado de um natural amadurecimento institucional (Brayner, 2010),
trazia consigo o imperativo de democratizar a representação do sujeito coletivo nordestino
como uma releitura da “brasilidade nordestina”, pautando-se na visibilidade de grupos
socialmente marcados sob o pretexto de produzir inclusão social.
Na base deste discurso, estava uma compreensão a respeito do que deveria ser o
papel político e social dos museus, cunhada a partir de um movimento internacional, a nova
museologia, a qual se assenta sobre princípios de democratização cultural, visibilidade e
desenvolvimento. Ou seja, a ideia central de reforma era a de que dizer este Nordeste
haveria de ser algo a ser feito narrando sua diversidade e desenvolvendo políticas
institucionais que a associassem a tais fundamentos.
Embora sejam plurais as narrativas sobre a gênese desta tendência renovadora dos
museus, o paradeiro de seu mais relevante agente é muito claro: A Unesco, por meio do seu
Conselho Internacional dos Museus – ICOM. Esta instituição articula globalmente desde
agendas para políticas públicas, gestão do patrimônio musealizado à elaboração e
disseminação de uma pretensa ciência dos museus – a museologia. Embora seja
relativamente heterogêneo, o ICOM exerce importante influência sobre a museologia
brasileira e colabora bastante para a difusão do que seriam suas concepções.
Neste sentido, a releitura que se queria produzir no Muhne trazia consigo uma
articulação com um projeto internacional para os museus, e que é também parte de uma
agenda global para além do que está circunscrito ao ICOM/Unesco. Esta, que relaciona
patrimônio e reconhecimento, está muito bem descrita por Boaventura de Souza Santos
(2003), ao se referir ao multiculturalismo que emerge no sul global a partir da emergência
de novas áreas (tais como museus) de resistência, luta e práticas políticas de aspirações
emancipatórias como resultado do desejo por visibilidade. Assim como por Anibal Quijano
(2005) e Nestor Canclini (2012), que se referem às tensões entre grupos que competem por
representação e protagonismo em instituições dessa natureza na América Latina. Está
também perceptível no que discutem Ella Shoat e Robert Stam (1994), ao demonstrarem
1
https://www.youtube.com/watch?v=3j8PM_Q7iNc&t=2992s
como o debate sobre o multiculturalismo nos EUA transcende os limites acadêmicos e
ocupa um amplo espaço na mídia a qual expande para além das fronteiras nacionais o
imperativo de visibilidade de minorias. Por fim, está muito bem descrito no argumento de
George Yúdice (2006) sobre a conveniência e os usos da cultura na era global, onde a gestão
há de ser atualmente a força que resinifica a cultura redefinindo-a enquanto recurso em
favor de pleitos econômicos e sociais.
Sendo assim, a referida reformulação da representação de Nordeste do Muhne
materializou-se por meio da exposição “Nordeste: territórios plurais, culturais e direitos
coletivos”. Entre o ano de sua inauguração (2008) e 2018, consta que ela sofreu uma
mudança pontual (2016) e é sobre o resultado final deste processo que as questões a seguir
estão sendo colocadas.
O que haveria de ser seu elemento revisor mais relevante, em relação à brasilidade
nordestina, está evidente logo em seus primeiros gestos expográficos. Nestes, sentidos são
afirmados de forma a ditar o tom de todo o restante da exposição, sem que precisem ser
expressamente repetidos, já que a potência com que se apresentaram produz um eco que
se faz presente por toda a expografia. São tais gestos, primeiramente, um grande painel
repleto de fotografias que consiste em uma composição visual sobre diversidade, onde está
presente logo acima das imagens a seguinte pergunta: “Quem é o Homem do Nordeste?”. O
segundo gesto, que está simetricamente ao frente ao primeiro painel, consiste na
representação de um grande mapa mundi, onde estão representadas algumas conexões
econômicas do Nordeste com o resto do planeta.
A sequência da exposição se organiza a partir de uma estratégia de fluxo de tráfego
sugerido, onde o visitante goza de alguma autonomia para estabelecer seu percurso. Em
meio às distintas seções, o cosmopolitismo nordestino sugerido em tal mapa ecoa e conecta
as mais distintas referências, assim como descrito por Courtney Campbell na forma
seguinte:

“The tour begins with a contemplation of the Northeast through its external
influences, leading the guest through Chinese porcelain and Dutch coins, the
lyrics to the Jackson do Pandeiro song Chiclete com banana, tiny clay figures
working on telephone lines, faded photographs of soccer teams, images from
early Pernambucan cinema, and a poem about young Northeastern women
who dated U.S. soldiers during World War II.”(???)

Da mesma forma, a mensagem de um Nordeste incapaz de definir estavelmente seu


sujeito institui um arsenal de formas de dizer (como se fosse um léxico), que ordenam
visualmente as representações que se seguem na exposição; as quais espelham um
conteúdo multicultural – no sentido de uma problemática celebração da diversidade do
Outro - que haveria de ser uma resposta para a pergunta retórica “Quem é o Homem do
Nordeste?”.
É isto que perpassa a seção inicial, que articula visualmente a boneca calunga Dona
Joventina (uma divindade do maracatu), a imagem de São Mateus do Século XVIII (Santo
Padroeiro do Engenho Massangana – que pertenceu a família de Joaquim Nabuco), e um
filme que exibe referências à composição étnica da região. Assim como é, também, o que
está presente no dizer de um nordeste indígena em meio a seção que apresenta uma
grande imagem do Cacique Xikão Xucuru, assassinado em 1998 por motivos relacionados a
disputa por terras, ao lado de um depoimento textual de Maninha Xucuru, liderança
indígena, que reafirma a importância do orgulho de sua comunidade em se reconhecer
etnicamente.
É esse sentido, estocado pela pergunta fundante da exposição, que está presente no
amálgama do mosaico em que constam referências à escravidão e aos respectivos signos da
resistência negra – a religiosidade, as festividades e os quilombos – todas estas, por
conseguinte, arquivadas como manifestações nordestinas e já parte de suas tradições
culturais. É ele que diz também que há um pertencimento à região do camponês
representado em grandes imagens, seja ele o agricultor sem-terra da Zona da Mata em
meio aos caboclos de lança, seja ele o vaqueiro do sertão, que tange bois usando uma
motocicleta.
Para além destes expedientes, a exposição traz consigo ainda um conjunto
significativo de representação de mulheres negras, de comunidades em condição de
vulnerabilidade, de crianças exploradas pelo trabalho infantil, dos símbolos do fausto
inerente à civilização do açúcar (tais como móveis, objetos de decoração e seu próprio
maquinário), e uma coleção de ex-votos. Tudo parte de uma narrativa que busca afirmar a
tensão existente dentro do conjunto de signos que estão presentes no que está concebido
como a região e que, ao mesmo tempo, pereniza a hermenêutica freyriana que interpretou
o “tudo” como algo passível de ser posto dentro da rubrica nordeste.
Tal releitura, referendou a pretensão de se fazer “novo” museologicamente do
muhne – para ser mais exato, seria museologia social, uma variante brasileira da nova
museologia, a forma como seus agentes definem essa abordagem. Mas, além disso,
potencializou o imperativo inclusivo e multicultural de dizer o Nordeste em meio a outros
fazeres da instituição, tal como ocorreu com a exposição intitulada “Nordeste Mix”, lançada
em 2012, sob a premissa de desconstruir estereótipos a partir de uma prática museológica
que se alegava ser suficientemente heterodoxa para tal tarefa. Nesta, a referida pergunta
sobre o sujeito da região também se faz presente e é articulada com uma coexistência de
estéticas distintas apresentadas em objetos e obras de arte.
Além desta exposição, outros três projetos mais significativos foram desenvolvidos
no mesmo sentido. O primeiro, correspondeu ao “Programa de Formação do Jovem
Artesão”, que, na verdade, teve sua origem em 2005, mas que foi executado até o ano de
2011. Detentor de menções honrosas em premiações nacionais e internacionais sobre
práticas educativas em museus, este programa descrevia-se como uma ação de inclusão
social, gestada a partir da parceria com uma multinacional (Unilever), que buscou capacitar
jovens enquanto artesãos a partir de cursos de empreendedorismo, liderança, organização e
gestão; alegando estar, com isso, produzindo uma experiência educacional libertadora aos
moldes do que Paulo Freire preconizou. Ao Muhne, coube atuar como agenciador de um
processo de internalização, junto ao público alvo desta ação, de valores caros a uma
indústria cultural globalizada, a qual enxerga na diversidade uma fonte inesgotável de
recursos para o desenvolvimento.
O segundo projeto chamava-se “Nordestes Emergentes”, que almejava registrar e
dar visibilidade a cenários que corresponderiam a antíteses de representações tradicionais
do Nordeste, e que incorporou parte de seus resultados à referida exposição permanente.
Um destes cenários, e o mais emblemático, consistiu na orla da cidade de Fortaleza, o qual
em razão das dezenas de altíssimos prédios de fachada espelhada; de possuir uma
atmosfera de requinte imobiliário, comercial e turístico; e de concentrar um segmento
social abastado que empreendia na região; foi tratado pelos agentes do Muhne como o
expoente do que seria um processo de “miamização” do Nordeste. “Miamização” esta
celebrada, tratada como uma possibilidade de ser da região que não corresponderia a sua
identidade de primo pobre do país; reflexo do que seria uma emergência da região (o vale
do Cariri, a propósito, com seus shoppings de alto padrão, concessionárias de luxo e um
setor de comércio e serviços em ebulição, seria a Nova Califórnia) 2, mas que, como
evidenciaram Francisco Sá Barreto e Izabella Medeiros (2017), transparecia na verdade uma
tentativa de superar os males que estão estruturalmente ligados ao conceito de Nordeste
meramente pautando outras imagens de região, e tomando a disposição para o
desenvolvimento como sua mais importante referência.
O terceiro projeto era denominado “Museus Múltiplos”, e consistia em estabelecer
interlocução com comunidades de localidades ausentes de representação no Muhne
espalhadas pelo Nordeste, a fim de produzir um exercício de visibilidade de suas memórias
sob propósitos inclusivos. A primeira ação correspondeu à articulação de uma experiência
no terreiro do Ilê Axê Ijexá Orixá Olufon, em Itabuna, na Bahia; a qual ensejou a montagem
de uma exposição itinerante com imagens em banners do acervo do muhne. A segunda,
ocorreu na Colônia Penal Feminina Bom Pastor, em Recife; quando o museu desenvolveu (a
partir da reinvindicação das educandas) uma oficina de fotografia; uma mostra fotográfica, e
um desfile de moda produzido por uma prestigiada estilista recifense.
Todo este conjunto de novas formas de dizer e atuar sobre a região evidenciam uma
rearticulação sobre os registros do que seria, ainda com J. Derrida, o arquivo Muhne.
Rearticulação – e não destruição total, porque alguns princípios continuam operando de
forma similar a como foram instituídos com Freyre. É o caso do que se percebe no traço da
flexibilidade (quase sem limites) do que cabe na rubrica em questão, e que potencializou a
controversa percepção de formas alternativas de apontar emergências da região baseadas
em referências de um tipo bastante específico (e prosaico) de desenvolvimento econômico.
Assim como na porosidade institucional a fluxos globais na concepção de suas políticas, que
ao ser preconizada por Freyre legitimou a inserção do muhne em uma pretensa agenda de
renovação.
No entanto, a partir do gesto que produziria sua mais pretensiosa transformação – o
de revisar a concepção de Freyre em favor de inscrever uma verdade multicultural e
inclusiva sobre a região; tal operação produz um traço paradoxal sobre o sentido de
Nordeste dito no Muhne. Paradoxo este que se desenha, primeiramente, de sua
impossibilidade de ser como se anuncia em razão das contradições que são constitutivas da
própria racionalidade política do museu.
Contradições estas, tal como demonstra Tony Benett (2013), que consistem tanto no
fato do museu precisar produzir exclusões para constituir o objeto das suas narrativas
enquanto aspira por representar totalidades; quanto nas pretensões de democratizar o
acesso ao museu, mas esbarrar diretamente nos marcadores culturais com os quais a
instituição se edifica. Com isso, o que se percebe, é o museu reelaborando estereótipos – tal
como o prédio de luxo a beira-mar (quando diz querer superá-los); reafirmando seus hiatos
– mediante o desinteresse do publico que sempre se reinstitui após suas episódicas ações
inclusivas (quando diz estar os incluindo no museu); operando hegemonia - ao passo que
disciplina indivíduos para o mundo do trabalho, com projetos educativos que
instrumentalizam léxicos progressistas para obscurecer seu conservadorismo (quando diz
estar transformando a sociedade); e reforçando invisibilidades - tal qual se percebe
mediante um cenário que se repete quase que diariamente no Muhne, que é quando se
2
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/economia/noticia/2013/10/13/pesquisa-da-fundaj-apresenta-um-
nordeste-emergente-101096.php
recebem estudantes jovens negros, periféricos e evangélicos de escolas públicas (que
compõem uma parcela massiva da população da cidade segundo o censo de 2010) e estes
não encontram nenhum tipo de representação sobre o neopentecostalismo massificado no
Nordeste do qual eles seriam parte (quando diz estar produzindo reconhecimento).
Diante disso, é importante registrar que não é que se esteja questionando aqui a
potência desejada por Gilberto Freyre de ser o museu uma instância produtora de sentidos
sobre a experiência, como já foi dito aqui anteriormente. Ao contrário, o museu executa tal
tarefa, mas o faz inscrevendo um sentido de região que, embora se anuncie renovado,
plural e descontínuo; reafirma, atualiza e sofistica elaborações inerentes as formas de se
dizer e ver o Nordeste. A crítica do muhne se dá, apenas, sob algumas elaborações da região
e propõe-se outras tantas em substituição a elas. Mas sem tirar de horizonte a projeção de
que existe uma verdade a ser dita sobre a região – que, parte dela, seria sua diversidade; e
que, ao ser dita expograficamente, homogeneíza sob uma rubrica estável o que haveria de
ser a nordestinidade e o homem do nordeste (a despeito de seu interesse em não dizê-lo).
Com isso, ao olhar então para os efeitos dessa operação, percebe-se que o que
objetivamente ela produz é uma politica cultural que se inscreve no que se convencionou
chamar de guerras culturais na contemporaneidade. Ao menos, no sentido que Terry
Eagleton (2001) se refere a esta questão, desta enquanto uma questão política real, parte
da forma com que opera a politica mundial na atualidade, e efeito de uma contenda não por
definições acadêmicas de cultura, mas de um choque entre Cultura (enquanto projeto de
civilidade) e da cultura (enquanto identidade); onde o Estado, interessado na reabilitação de
sua legitimidade, governamentaliza a diferença e a integra ao seu projeto sob o signo da
diversidade.
Não coincidentemente, o muhne regojiza-se de sua fidelidade a uma politica
nacional dos museus, especialmente de seu anseio em produzir a inclusão e coesão social
que o estatuto nacional dos museus preconiza. Mais ainda, sob o signo ainda freyriano
acerca do museu ideal, esmera-se em performar uma função educativa que inscreva sob a
experiência captada por estudantes, pesquisadores e visitantes em geral, com a mais
absoluta eficácia, tanto esta verdade multicultural que se demonstra hegemônica, quanto o
cultivo em si, esta construção interminável, de uma cidadania que se pretende ser fiel ao
que seria uma “nordestinidade”.

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