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Texto 3

Texto de referência para a aula  Professor José Knust


Natureza e Sociedade  Primeiro semestre

Rafael Cariello, “O Antropólogo contra o Estado.”


Revista Piauí, Edição 88, Janeiro de 2014.
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-88/vultos-das-humanidades/o-antropologo-contra-o-estado.

Do ponto de vista intelectual, Viveiros de Castro é comparável ao que conferimos ao trabalho e à fabricação
herdeiro de cientistas sociais que ajudaram a derrubar o de bens de consumo. Diferentes espécies animais são
senso comum de que os povos indígenas são marcados pensadas a partir da posição que ocupam nessa relação.
pelo atraso em relação ao mundo ocidental. Essas Gente, por exemplo, é ao mesmo tempo presa de onça e
sociedades sempre foram descritas como “primitivas” por predadora de porcos.
carecerem de instituições modernas – como o Estado e a Duas alunas suas, Aparecida Vilaça e Tânia Stolze
ciência. Foi [o antropólogo francês] Claude Lévi-Strauss Lima, preparavam, naquela ocasião, teses de doutorado
quem aposentou definitivamente a ideia de que os povos que chamavam a atenção para outra característica curiosa
sem escrita seriam menos racionais do que os europeus. do pensamento de diferentes grupos indígenas. (...) de
(...) O pesquisador francês argumentou que havia método acordo com os interlocutores de ambas, os animais podiam
e ordem nas aparentemente caóticas associações que esses assumir a perspectiva humana. (...) Segundo diferentes
povos faziam (...). etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros
Nos anos 70, o antropólogo francês Pierre Clastres como gente. E enxergavam os humanos, seus predadores,
argumentou que a falta de Estado nos povos das terras como onça. As onças, por sua vez, viam a si mesmas e às
baixas sul-americanas – em contraste com a forte outras onças como gente. Para elas, contudo, os índios
centralização política de seus vizinhos andinos – não seria eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se
uma carência, mas uma escolha deliberada, coletiva. Há restringia aos animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem
entre eles, com frequência, alguma forma de chefia. (...) os homens como caça, e também aos deuses e aos mortos.
Por mais populares que sejam, contudo, tais líderes não Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente
dispõem de nenhuma capacidade coercitiva. O chefe não é quem ocupa a posição de sujeito. No mundo amazônico,
manda. Tudo se passa como se essas sociedades criassem escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu e na terra
uma posição privilegiada, o lugar exato onde o Estado do que sonham nossas antropologias”.
poderia nascer, para então esvaziá-la de poder, numa Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se
espécie de ação preventiva. Foi o que Clastres chamou de os índios pensassem o mundo de maneira inversa à nossa,
“sociedades contra o Estado”. se consideradas as noções de “natureza” e de “cultura”.
Naquela mesma década de 70, o norte-americano Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para
Marshall Sahlins se ocupou da dimensão econômica todos os povos do planeta. O que é construído é a cultura,
dessas sociedades. Procurou analisar as mais “pobres” que varia de uma sociedade para outra. Para os povos
dentre elas, os grupos nômades de caçadores-coletores. ameríndios, ao contrário, o dado universal é a cultura, uma
Segundo a visão então consagrada, tais sociedades mal única cultura, que é sempre a mesma para todo sujeito. Ser
conseguiriam assegurar a própria subsistência. (...) Ocorre gente, para seres humanos, animais e espíritos, é viver
que o tempo dedicado ao trabalho também era pequeno. segundo as regras de casamento do grupo, comer peixe,
Esses estranhos “primitivos” pareciam ser ao mesmo beber cauim, temer onça, caçar porco. Mas se a cultura é
tempo miseráveis e ociosos. O que Sahlins argumentou é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que
que não fazia sentido, para grupos nômades, acumular é construído, dependendo do observador, é a natureza.
bens – quanto menos tivessem que carregar, tanto melhor. Para o urubu, os vermes no corpo em decomposição são
Tampouco era lógico produzir estoques, quando esses peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma terceira
estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista posição, superior e fundadora das outras duas. Ao
dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar passarmos de um observador a outro, para que a cultura
pouco era uma escolha, e aqueles grupos constituiriam o permaneça a mesma, toda a natureza em volta precisa
que o antropólogo chamou de primeira “sociedade de mudar. (...)
afluência” [isto é, de abundância]. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora
Pedi que Viveiros de Castro falasse sobre a ideia que o da Universidade de Chicago, avalia que as ideias
projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos”, a desenvolvidas por Viveiros de Castro a partir do
que se referia Lévi-Strauss, surgiu em 1996. Ganhou o perspectivismo ameríndio dialogam diretamente com boa
nome de “perspectivismo ameríndio”. Fazia já alguns parte da tradição filosófica ocidental. Ao mesmo tempo, a
anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço síntese que ele propôs do pensamento indígena é uma
específico do pensamento indígena nas Américas. (...) O crítica a essa tradição, ao colocar em questão as noções de
pensamento ameríndio dá muita importância às relações “natureza” e “cultura” da “vulgata metafísica ocidental”.
entre caça e caçador – que têm, para eles, um valor
Francisco Vasconcelos, “Filosofia Ubuntu”
LOGEION: Filosofia da informação, Rio de Janeiro, v. 3 n. 2, mar./ ago. 2017, p. 100-105.

Umuntu ngumuntu ngabantu (“Uma pessoa é uma viver. Negligenciar o Outro é, na perspectiva do
pessoa através de outras pessoas”) é um provérbio dos Ubuntu, desumanizar-se. Urge, pois, sair ao encontro
Zulus que ilustra bem o espírito da filosofia Ubuntu. Este desse Outro, reconhecê-lo e construir com ele uma
típico modo de pensar e de agir está presente em boa parte solidariedade afetiva, calorosa, como a própria
etimologia da ética indica. (MACHADO, 2015).
do continente africano, pertencendo aos povos bantu. Esta
designação resulta da predominância de um determinado
Sem dúvida alguma, como esclarece objetivamente a
grupo linguístico na região. “Existe no continente africano
citação acima, quando nos esquecemos do Outro, nós nos
uma diversidade imensa de línguas e de culturas, sendo
desumanizamos. Em meu modo de entender, reside aqui a
que podemos reconhecer neste conjunto uma unidade
força do potencial ético-político dessa corrente filosófica.
cultural. Unidade esta que Diop denomina como a unidade
na diversidade”. Nas línguas africanas as existências do mundo material
Ubuntu aponta para uma existência marcada pela e imaterial podem ser agrupadas em um número de pelo
convivência harmoniosa com o Outro. Dessa forma, o menos quatro categorias. São classificações
espírito que dá vida a essa filosofia traduz-se em respeito linguísticas. Estas quatro categorias básicas de tudo que
que se converte na valorização do humano (muntu) e da existe é bem explicita nas línguas bantu e podem ser
natureza (kintu). Tratar-se-ia, nas palavras de Frans nomeadas como: MUNTU, para os seres humanos
Tempels, de "uma filosofia sem filósofos". Numa época completos, KINTU, para as coisas animadas e
em que a capacidade filosófica dos povos bantu era inanimadas consideradas todas como portadores de
colocada em xeque, o pensador belga, que viveu boa parte vida, HANTU, representando tudo que tem relação
com tempo e espaço, KUNTU, como modalidade ou
de sua vida como missionário católico, na região do antigo
como os atributos de inter-relação de categorias, como
Congo Belga, advoga a tese contrária, apresentando uma força que permite a ligação entre dois significados.
argumentos para demonstrar a existência de um pensar (KAGAME, 1956 apud ROCHA JUNIOR, 2010, p.
filosófico elaborado por eles. Infelizmente, a história 87-88).
testemunha o seguinte fato: “Dado ao desconhecimento
ocidental, às vezes acidental noutras proposital, grande (...)
parte do conhecimento da humanidade não existe como Na verdade, trata-se aqui de uma racionalidade
conhecimento racional”. Contudo, felizmente, cresce o diferente daquela que construiu o Ocidente,
número de autores do Ocidente que percebem a presença caracterizada pela tendência a instrumentalizar seja a
do pensamento filosófico no continente africano. (...) pessoa seja a natureza. Consideremos dois exemplos de
Traduzir Ubuntu para a linguagem ocidental, seu potencial nefasto: contra a pessoa, citemos a
certamente, não é coisa fácil. Este conceito diz respeito colonização; contra a natureza, podemos mencionar o
à essência do ser humano. Quando desejamos ofertar avanço científico-tecnológico. (...)
nosso mais alto apreço a alguém, dizemos: “Yu, u Em seu estágio atual, a humanidade experimenta um
nobuntu” (“Ei, ele ou ela tem Ubuntu”). Isto significa elevadíssimo grau de desenvolvimento científico-
que a pessoa é generosa, hospitaleira, amigável, tecnológico jamais visto anteriormente. O problema (...)
atenciosa e compassiva. Ela compartilhou o que consiste na incapacidade do homem em controlar,
possuía. Significa também que minha humanidade foi totalmente, os efeitos da aplicação dessa tecnologia. (...)
alcançada, está inextrincavelmente ligada a da outra As modernas tecnologias podem fazer do homem um
pessoa. Nós pertencemos a uma mesma força vital. A objeto de seu agir. (...)
pessoa é humana porque pertence, participa, (...) a cultura ocidental sempre comportou uma ética
compartilha. Alguém com Ubuntu á aberta e acessível antropocêntrica e simétrica, que abarca apenas as relações
aos outros. (...) entre as pessoas.
(...) a filosofia Ubuntu aponta para a intersubjetividade, Essa nova racionalidade [ubuntu] se caracteriza por ser
mas uma subjetividade em profunda sintonia e humanista. Todavia, vale ressaltar o fato desse humanismo
dependência com a natureza. ser compreendido adequadamente somente se
considerarmos, como foi colocado acima, que a existência
[...] partir do outro como ponto de partida ético — vale da pessoa, considerada individualmente, está
a redundância — é então considerar que vivemos em condicionada a existência das outras pessoas e da natureza.
um mundo, em uma sociedade, que é, parafraseando Trata-se, portanto, de um tipo de racionalidade que leva a
Tempels, como uma rede, onde não se pode mover um agir sempre considerando o Outro (muntu e kintu) como
fio sem que os outros se movam. Com outras palavras, um ser ontologicamente próximo. Em relação a esse
já não há a necessidade de demonstrar que dependemos
não apenas dos outros seres humanos, mas também de
Outro, ela exige o respeito, a responsabilidade e a
outras entidades cósmicas (ar, água, montanhas, capacidade de abrir mão de certos interesses pessoais em
árvores, minerais, animais, etc.) que nos possibilitam benefício do bem dele.
Jessica Sequeira, “As criaturas do Popol Vuh”
Aeon. 21 de setembro de 2021. Traduzido por José Knust.
https://aeon.co/essays/belonging-among-the-beasts-and-the-gods-in-mayan-cosmology

Os animais estão por toda parte no Popol Vuh. (...) Eles com elementos tanto dos humanos quanto dos deuses. Os
são considerados sagrados, não como seres desencarnados três grupos não estão claramente separados e há
em algum lugar distante, mas em sua convivência com os movimento entre os corpos físicos, assim como em
humanos, no dia a dia nas florestas. (...) O Popol Vuh sistemas de pensamento como o hinduísmo, em que uma
fornece a narrativa da criação da humanidade e a alma assume diferentes formas físicas. Quando os gêmeos
mitologia, história e cultura subsequentes do povo heróis morrem em Xibalba, enfrentando os senhores da
indígena maia K'iche no planalto central da Guatemala. morte na quadra de bola, suas cinzas são jogadas em um
Os mundos animais, humanos e divinos formam um rio e revivem como peixes-gente híbridos. Os maias
todo fluente, comunicando-se e mudando de forma, aceitam a força animista e vital dos animais que os cercam,
engajados em relações de amor, amizade, rivalidade, fluindo, mas não se limitando a um único corpo físico.
instinto. No Popol Vuh, os humanos não domesticam ou Ao longo do Popol Vuh, a relação humana com os
são indulgentes com os animais (...). Eles os caçam, os animais muda, à medida que os próprios humanos mudam.
enviam em missões, anotam as mensagens dos deuses, os (...) Da primeira para a segunda parte do manuscrito, os
sacrificam, os enganam. O animal não era um ser inferior, humanos são separados de seu relacionamento com a vida
sobre o qual, como acreditavam os europeus, Deus havia não humana, que inclui animais, plantas, o divino. Os
concedido o domínio ao homem. Para os maias K'iche, os deuses começam a se sentir ameaçados pelos novos
animais eram vizinhos, alteregos e uma forma de humanos e tiram algumas de suas habilidades (...).
comunicação com os deuses. As ‘novas gerações de homens’ que sobrevivem
A primeira metade do Popol Vuh é circular e começam a adorar os céus longínquos e distantes. No
mitológica, partindo de uma noção mística de tempo (...). processo, algo estranho acontece. Os humanos ganham
A segunda metade é mais histórica e linear, narrando almas, mas também se tornam mais "animais",
eventos desde os reinados dos reis maias até a trágica coordenados como grupos, mas sem questionar sua
chegada dos colonizadores espanhóis. Baseado em condição. Sem pensar, eles trabalham em nome da tribo.
tradições orais e performativas, o Popol Vuh como um Ao mesmo tempo, os animais não humanos se afastam do
todo exibe uma autoconsciência fascinante sobre a panorama.
mudança no relacionamento com deuses e animais, em que Não mais intermediários, os animais da segunda
novas ideias de moralidade, existência sedentária, metade do Popol Vuh tornam-se algo a ser copiado, um
subserviência a deuses que oferecem felicidades poder a ser canalizado. Os novos humanos não trabalham
temporárias, como comida e mulheres e controle sobre os mais com eles; agora eles querem ser eles. A insígnia da
animais diferem dos arranjos mais fluidos antigos (...). realeza para os novos reis humanos, assim como deuses, é
Na primeira metade do Popol Vuh, os animais são animal: garras de puma e de onça, cabeças e pés de veado,
mensageiros de deuses e homens, capazes de se conchas de caracol e muitas penas - de papagaios, garças,
comunicarem tanto com os grupos quanto entre si. Eles araras vermelhas e azuis, raxons ou cotingas e quetzals. Os
são, por sua vez, vingativos e colaborativos, frustrando ou reis assumem nomes de animais, e certos reis têm o poder
auxiliando os planos humanos. Os animais podem ser de se metamorfosear em outras criaturas. (...)
seres prestativos; uma horda de formigas ajuda Hunahpú e Os novos humanos adoradores de deuses veem os
Xbalanqué, gêmeos e heróis do Popol Vuh, a expulsar seus animais como rivais a serem consumidos ou os copiam
inimigos (...). Os animais não são necessariamente para adquirir seus poderes. Agora, os sacrifícios, tanto
mágicos, mas práticos e astutos. Macacos bugios negros, animais como humanos, começam para valer. Os deuses
onças, cascavéis, tatus, morcegos, piolhos, sapos, cobras, perseguem mulheres humanas e pedem oferendas.
falcões, corujas, javalis, tartarugas, coelhos, pombas, Primeiro, eles pegam criaturas da floresta e dos campos,
mosquitos, formigas vermelhas e pretas e outras espécies veados fêmeas e pássaros. Então eles querem mais. Os
- são mais de 30 - aparecem em cena e muitas vezes sacerdotes perfuram a própria carne com espinhos de
roubam o show. (...) arraia para extrair sangue humano, mas os deuses
Os animais também cometem violência, amoralmente, continuam famintos. (...) Começam a raptar homens e
com frequência e - para os gostos humanos modernos - matar tribos inteiras em nome do sacrifício. Os deuses
desnecessariamente, assim como o golpe de um gato em fingem ser coiotes, gatos da montanha, pumas e onças,
um rato parece gratuito. (...) Em vez de um mundo com fazendo seus ruídos para enganar os humanos. Os homens
um deus mudo dominando as pessoas bem comportadas, revidam, fazendo capas bordadas com desenhos de
aqui estão homens e deuses em situação de comunicação animais. Muito sangue é derramado. As últimas páginas
fragmentada e antagônica, com os animais sempre no do Popol Vuh são uma recitação melancólica da linhagem,
meio, cientes do que está acontecendo, participando. os nomes de reis e grandes casas.
Nunca apenas um pano de fundo, eles são essenciais para É quando chegam os espanhóis, para enforcar os reis e
seu mundo transbordante, latejante e pulsante. (...) transformar os prédios em ruínas, lares de corujas e gatos
Dentro da complexa mitologia maia, os animais selvagens. (...)
permanecem uma parte indispensável e sagrada do mundo,
Rodrigo Cavalcante e Rodrigo Maroja, Animais, eles também têm cultura
Revista Superinteressante, edição 179, agosto de 2002.
Disponível em: http://super.abril.com.br/ciencia/animais-eles-tambem-tem-cultura

Há quase 50 anos, na pequena ilha de Koshima, no alguma forma de cultura”, diz Eduardo Ottoni,
Japão, Imo, um jovem macaco que gostava de batata- pesquisador da Universidade de São Paulo. Ou seja: (...) a
doce, teve um insight que mudaria para sempre o hábito aptidão para aprender teria surgido em função do estilo de
alimentar da sua espécie. Num dia de setembro de 1953, vida social da espécie.
ele não levou a batata diretamente à boca, como faziam O maior defensor dessa ideia é o estudioso de primatas
todos os outros animais. Ninguém sabe ao certo se ele Carel van Schaik, professor de Antropologia Biológica da
percebeu que a terra suja desgastava seus dentes. Ou se ele Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados
achou mais saboroso comer ela limpa. O fato é que Imo Unidos. Ao estudar dois grupos de orangotangos, ele
começou a lavar a batata antes de comer (...) Três meses notou que, enquanto um usava ferramentas elaboradas
depois, dois amigos dele começaram a fazer o mesmo e o para extrair mel ou comer sementes, o outro parecia pouco
hábito se espalhou pelos irmãos mais velhos, foi repetido dotado de tecnologias desse tipo. Foi aí que Schaik
pelas mães, numa espécie de reação em cadeia. Em cinco percebeu que o grupo mais avançado tecnicamente era o
anos, mais de três quartos dos jovens da espécie lavavam mesmo em que havia maior tolerância dos mais velhos
a batata exatamente como Imo. Hoje, comer a batata limpa com os filhotes. Sua conclusão foi de que essa tolerância
é uma característica das novas gerações de macacos da ilha permitiu um maior contato entre as gerações e,
de Koshima. consequentemente, mais aprendizado e cultura.
A descoberta de Imo pode parecer banal, mas obrigou Um bom exemplo de ensino e aprendizado entre
os cientistas a reverem para sempre a forma como viam os gerações é o das baleias orca, na costa da Argentina. Nessa
animais e a espécie humana. Para os pesquisadores, a região, elas se arriscam a encalhar na areia para devorar as
capacidade de Imo transmitir uma nova técnica para outras focas que nadam na praia. Como essa técnica envolve uma
gerações é uma das provas de que alguns animais também série de riscos que os filhotes não querem correr, as mães
têm um dom que era considerado exclusivo do homem: a praticamente empurram os aprendizes na marra para a
cultura. “Precisamos reconhecer que está caindo uma das perigosa caça e permanecem perto para evitar que algum
últimas barreiras que nos separam das outras espécies”, diz fique preso num banco de areia – como qualquer pai atento
o primatologista holandês Frans de Waal (...). Ele diz que que vê o filho andar de bicicleta pela primeira vez. Os
é claro que cultura, nesse caso, não significa a capacidade pesquisadores também descobriram que, quando as
para escrever obras literárias ou pintar quadros cubistas. pequenas orcas não nadam em direção à presa, as próprias
“Cultura é um comportamento transmitido socialmente mães se encarregam de jogar focas vivas sobre elas para
que não é adquirido individualmente nem geneticamente”, que façam o dever de casa. “O aprendizado é uma das
diz de Wall. “É algo que se aprende com os outros, como chaves da cultura”, diz o pesquisador Eduardo Ottoni. “E
a técnica de lavar batata dos macacos japoneses”. (...) não é só entre os humanos que os mais velhos têm um
Todas essas descobertas só vieram à tona quando os papel crucial no ensino.” (...)
pesquisadores passaram a prestar atenção nos animais Todas essas descobertas devem alterar, pelo menos no
como uma forma de descobrir mais sobre a própria futuro, a relação do homem com diversas espécies. Steven
evolução humana. Foi o que ocorreu com a inglesa Jane Wise, advogado americano especialista em Direito dos
Goodall, que ficou famosa por seu convívio com os Animais, diz que a atual discussão sobre se alguns animais
chimpanzés na década de 1960, na Reserva Nacional de têm ou não cultura é muito semelhante ao debate dos
Gombe, na Tanzânia. (...) Goodall comprovou que os religiosos europeus que, no século XVI, com a descoberta
chimpanzés tinham uma complexa vida social, uma dos índios na América, se perguntavam se eles tinham ou
linguagem primitiva com mais de 20 sons diferentes e não alma – o papa Paulo III, em 1537, chegou a editar uma
usavam diversas ferramentas para extrair alimento – algo bula para discutir o tema. Wise também lembra que a
que até então era considerado um marco da cultura escravidão, baseada em teorias de inferioridade racial,
humana. (...) logo foi descartada quando ficou claro que não havia
Em meio à diversidade da vida animal, um dos nenhuma base científica para afirmar que algum ser
principais desafios dos cientistas é tentar entender por que humano era inferior a outro. “De certa forma, o mesmo
algumas espécies são capazes de desenvolver a deve acontecer com os animais”, diz Wise. “É claro que a
inteligência e certas habilidades culturais e outras não. No questão não vai ser se os animais são ou não humanos. Eles
passado, o tamanho e a complexidade do cérebro eram não são. A pergunta será: que tipo de animal você é?”
considerados os únicos pré-requisitos para essas aptidões. Dependendo da resposta, Wise diz que já existem
Mas os pesquisadores já têm novas pistas. “Apesar de o dados suficientes para que chimpanzés, orangotangos,
cérebro não ter perdido sua importância nessa gorilas e golfinhos tenham garantido seus direitos básicos
classificação, hoje há um certo consenso de que quanto de liberdade – não podendo ser considerados legalmente
mais complexa for a dinâmica social do grupo, há mais como “propriedade” de alguém ou de alguma instituição,
probabilidade para o desenvolvimento do aprendizado e de como eram os escravos

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