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AS LUVAS BRANCAS

“As manoplas, formadas de lamínulas ou de


malhas de ferro que se superpõe, protegem as
mãos do cavaleiro dos ferimentos, mas
sobretudo dos contatos impuros. Que ele nunca
esqueça que toda força vem de Deus, o
Soberano Senhor, e que após ter deposto suas
armas e tirado suas manoplas (luvas) resta-lhe
o imperioso dever de juntar as mãos nuas para
render graças, pela prece, a Aquele que lhe deu
a força para vencer...”
Raymundo Lullo

Avental e Luvas Brancas constituem a vestimenta do Maçom. As Faixas, ou


os Colares dos Oficiais são decorações.

Na “Simbólica Maçônica” nosso saudoso Irmão e amigo Jules Boucher nos


diz:
“As luvas brancas dos Maçons são, é preciso dizer, o símbolo da pureza. O
costume de usar luvas brancas ainda não caiu em desuso, e muitos Maçons
franceses respeitam essa tradição. Seria desejável que este costume fosse
generalizado. Em alguns países estrangeiros isto é uma regra estrita, que não
sofre qualquer exceção”.

Jules Boucher escreveu estas linhas em 1947. A Franco-Maçonaria


francesa, acabava de sair do negro período que foi o sinistro e vergonhoso
Governo de Vichy, e havia retomado suas tradições seculares. Hoje, dezessete
anos mais tarde, há poucas Lojas maçônicas bem conduzidas que não respeitam
este costume.

“As luvas brancas são na Maçonaria não apenas um símbolo, mas também
objetos rituais. Sabe-se, de maneira certa, que um magnetismo real emana da
extremidade dos dedos, e as mãos enluvadas de branco só deixam filtrar um
magnetismo transformado e benéfico. Em uma assembléia de Maçons onde todos
estão com luvas brancas, cria-se um ambiente muito particular que até o menos
avisado sente muito nitidamente. Uma impressão de apaziguamento, de
serenidade, de quietude segue-se muito naturalmente. A modificação trazida por
este “signo exterior” é mais profunda do que se poderia crer. Ocorre o mesmo
com muitos de nossos símbolos, que se tornam eficientes quando passam do
plano “mítico” para o plano “ritual”... (J. Boucher : Simbólica Maçônica)

O exemplar original que Jules Boucher nos ofereceu traz a seguinte


dedicatória, em ouro fino: “A meu caro e velho amigo e Irmão Robert Ambelain,
que me deu a Luz Maçônica em 30 de novembro de 1943, com meus sentimentos
afetuosos e cordiais: J. Boucher”.

De nossa parte, agradecemos a Jules Boucher por ter ele deixado aos
Maçons este magnífico trabalho que é seu livro, e felicitamo-nos por ter
conseguido acrescentar à Cadeia milenar de nossa Ordem este “elo” de alto valor.

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Quando de sua recepção nas Obediências fiéis à tradição maçônica secular
conscientes de suas responsabilidades iniciáticas, o Aprendiz recebe dois pares
de luvas brancas, um para ele próprio e que usará no decorrer dos trabalhos em
Loja, e o segundo destinado à mulher que ele mais estima...

Aqui citaremos Oswald Wirth, discípulo de Stanislas de Guaita, pleno de


esoterismo:
“As luvas brancas recebidas no dia de sua iniciação, evocam ao Maçom a
lembrança de seus compromissos. A mulher que os apontará quando estiver a
ponto de falhar, lhe aparecerá como sua consciência viva, como a guardiã de sua
honra. Que missão mais elevada poderia ser confiada à mulher que mais se
estima?

“O Ritual, contínua Oswald Wirth, faz observar que nem sempre é a que
mais se ama, pois o amor, freqüentemente cego, pode se enganar a respeito do
valor moral desta que deve ser a inspiradora de todas as obras generosas e
grandes...” (O livro do Aprendiz, Oswald Wirth)

De fato, no século dezoito, a grande época da Franco Maçonaria, dava-se o


nome de clandestina à mulher julgada a mais digna pelo novo Maçom. Este termo
vem do latim clandestinus que tem relação com o mesmo latim “clam” que significa
secreto, oculto. Podemos supor que se tratasse ai da dama do pensamento dos
Cursos d’Amor dos trovadores e, portanto, próximo como tradição do Amor Per-
feito caro a Dante, aos Cátaros e a toda a Cavalaria medieval.

Esse gesto da oferenda das Luvas simbólicas nos proporciona um novo


aspecto quando Goethe, recebido Aprendiz em Weimar a 23 de junho de 1780,
São João de Verão, ofereceu as suas à Senhora de Stein e lhe fez observar que,
se em aparência o presente era muito modesto, ele apresentava o caráter peculiar
de só poder ser ofertado por um Maçom uma vez em sua vida...

* * *

A Igreja, muito antes da Franco-Maçonaria especulativa, sua irmã gêmea no


universo dos arquétipos, conheceu bem cedo o uso das Luvas.

Seu emprego, sob a denominação latina de Wanti ou Manicae, todavia não


é anterior ao fim do nono século. No décimo segundo século era tão habitual que
Honorius d’Autun, bispo dessa cidade, fazia remontar sua origem aos Apóstolos.
Há aí apenas urna adaptação litúrgica de uma peça de vestimenta profana, com a
finalidade de ornar as mãos do Bispo, como seus pés o eram desde bem antes
(ver o cerimonial do lava-pés considerado como sacramento em determinada
época e em certas regiões da Cristandade.)

Reservado de direito aos Bispos, o uso das luvas como insígnia de


dignidade foi concedido aos Abades desde 1070. Fora de Roma elas eram
usadas freqüentemente com a Capa. Do décimo ou décimo segundo século em
diante as luvas eram ordinariamente de fio. A seda o substituiu pouco a pouco
embora até o fim da Idade Média houvesse ainda luvas de fio e também de lã.
Durand de Monde parece conhecer somente o uso de luvas brancas, mas também
são encontradas luvas de cor (a da liturgia do dia) a partir do décimo segundo
século.

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As luvas litúrgicas foram sempre luvas com dedos separados e não
mitenes. Cada dedo, correspondendo a uma simbólica planetária particular 1 , devia
conservar sua independência e, portanto, sua irradiação própria. A exemplo do
Manto Sagrado, freqüentemente exigia-se que a luva fosse tecida em uma só
peça, para mostrar que a diversidade de irradiações oferecida pelos dedos se
ajustava a uma dependência geral em vista da finalidade comum: a b enção e a
vida espiritual. Sua forma se modificou com o tempo, adaptando-se à moda laica.

Freqüentemente as luvas eram ornadas, no dorso da mão, com plaquetas


de metal esmaltadas ou não, ou ainda com medalhões bordados, emblemas do
papel sacramental das mãos do Oficiante. No fim da Idade Média, estes
ornamentos móveis foram substituídos por bordados executados sobre o próprio
tecido da luva, a exemplo do que acontecia com as vestes.

No simbolismo litúrgico as luvas episcopais, qualquer que seja seu material


(fio, seda, lã), evocam as mãos de Jacob, recobertas de pele de cabrito (ver
Gênesis 27:16). Sabe-se que Jacob significa sup1antador. Conhece-se a visão de
Salomão: “E eu vi o segundo Adolescente levantar-se em lugar do Outro ”
(Eclesiastes 4:15) . No uso das luvas existe a idéia de franquia, de sucessão, de
substituição. O novo homem suplanta o velho homem, a luz afasta as Trevas do
Não Ser, cujos limites últimos jamais deveriam ser ultrapassados. O “Novo Adão”
suplanta o tenebroso soberano que ele havia dado a si mesmo imprudentemente.
Tal é o ensinamento esotérico do cristianismo realmente iniciático. Ele pode ser
aceito e Interpretado pelo Maçom.

Observar-se-á a importância das luvas episcopais no fato de que, no final


da Cerimônia de Sagração de um Bispo, o Consagrador entrega, ao mesmo
tempo, ao novo Eleito, a Mitra e as Luvas 2 . O Bispo recém sagrado ilustra
então a frase célebre dos Evangelhos: “Eis a hora em que o Príncipe deste Mundo
vai ser lançado fora...” (João 12:31). Como reflexo do Cristo, também ele é um
suplantador.

Talvez o Maçom deva reler a Lenda de Hiram, na versão drusa relatada por
Gérard de Nerval em sua Viagem ao Oriente, muito particularmente os últimos
parágrafos das Noites De Ramazan:
“Assim se realizou a predição que a sombra de Enoque havia feito, no
império do Fogo, a seu filho Adoniram, nestes termos: “Tu estás destinado a nos
vingar, e este templo que tu elevas causará a perda de Salomão”.

É, pois, em memória de Hiram, o suplantador de Salomão junto a Balkis,


que os Filhos da Viúva usariam luvas, símbolo dessa missão permanente:
destruição de toda tirania 3

* * *

1
O indicador: Júpiter — O médio: Saturno — O anular: Sol — O auricular: Mercúrio — O polegar:
Vênus — A percussão: a Lua.
2
Cf. R.Aigrain: “Liturgia”, Blond e Gay Editores, Paris 1947.
3
Balkis é o símbolo esotérico da misteriosa “Noiva” do Cântico dos Cânticos, ou seja, a Shekinah
divina.

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Maçonicamente, a luva se reveste de aspectos mais sutis ainda que os da
liturgia religiosa cristã.

A luva simbolizará de fato a doçura, a complacência, a deferência para com


a Ordem e para com os Irmãos da Loja. Em francês se diz “tomar as luvas”
quando se quer expressar todas estas qualidades.

Expressará igualmente o mérito do Aprendiz que triunfou das provas


iniciáticas e obteve do Venerável da Oficina que lhe conferisse finalmente a Luz.
Pois a antigo locução francesa “dar-se as luvas de tal coisa” significa apropriar-se
do mérito dessa coisa 4.

É também o símbolo da honra e da dignidade. Na Idade Média o senhor


suzerano, quando conferia um cargo ou um feudo em “arrendamento”, era
obrigado a dar suas luvas aos agentes que o haviam assistido, ele e seus
vassalos presentes. Isto expressava uma marca de confiança e de gratidão pela
guarda assim assegurada.

A luva é ainda um símbolo iniciático por excelência, é a iniciação em si,


pois para expressar o fato de ter a primeira idéia, o mérito, o proveito, a
descoberta de alguma coisa, dizia-se outrora que se “tinha as luvas”, isto é, a
iniciativa primordial. É também o símbolo da precisão, da perfeição: “isto me cai
como uma luva”.

Era igualmente a imagem do inédito, da revelação, de uma mensagem,


pois outrora eram entregues luvas ao mensageiro portador de uma notícia
importante. Esta locução ainda existe na Espanha, “para guantes” é de fato o
equivalente ibérico (para as luvas) da expressão francesa “gorjeta”.
,
A luva é ainda símbolo da pureza, da retidão, da fé. A antiga locução sobre as
moças “que perderam suas luvas”, significa que perderam sua virgindade. São
conhecidos os versos de La Fontaine:

“Muitas moças perderam suas luvas


E mulheres em troca se tornaram,
Que não sabem na maioria das vezes
Como esta coisa aconteceu”.

* * *

Luva de Nossa Senhora é o nome dado à aquilégia, também denominada


aiglantine (rosa silvestre), e que não é outra senão a aquiléia. Leonardo da Vinci
a colocou à entrada de seu Labirinto.

A aquiléia é a planta de que se serviam os geomantes taxistas da velha


China para confeccionar as cinqüenta varinhas com que interrogavam o I-KING, o
livro das transposições divinatórias estabelecido peio mítico Fo-Hi. É o símbolo da
própria adivinhação 5.

4
Todas estas locuções antigas figuram nos antigos dicionários franceses de Littré.
5
Ver “Adivinhação chinesa pelo I-King”, de Yüan-Kuang (Paris, 1950, Voga edit.)

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Esta planta servia além disto, nos antigos herbários, depois de colhida e
posta em infusão segundo ritos precisos, para curar os males dos olhos, ampliar a
visão. Dai seu outro nome de aiglantine , pois a águia (“aigle” em francês) é o
único pássaro capaz de, por causa da sua dupla pálpebra, contemplar o Sol de
frente.

Assim, pois, colocada por Leonardo da Vinci à entrada do seu Labirinto, a


“luva de Nossa Senhora” é a imagem da adivinhação, da clarividência, suscetível
de conduzir o Iniciado através dos artifícios do Labirinto até a misteriosa Câmara
do Meio, e por seu nome de aiglantine, ela nos sugere o valor da doutrina joanita
para esta delicada operação. Observemos que o Labirinto clássico tinha três
entradas, assim como as Catedrais góticas construídas pelos Maçons
construtores. E isto o liga ao simbolismo da Virgem Celeste, que vai da Isis antiga,
mãe de Horus, o Verbo de Osíris, até Maria, mãe de Jesus, o Verbo do Pai.
Assim, pois, as luvas maçônicas relacionam-se com o simbolismo zodiacal do
Signo da Virgem 6.

Observemos igualmente que o mais célebre dos Labirintos antigos era o de


Cnossos em Creta, descoberto em 1902 pelo Doutor Evans, de Oxford. Era
denominado em latim Absolum, palavra bem próxima do nosso Absoluto.
Acrescentemos que para os Alquimistas familiarizados com a celebre “cabala
solar” ou cabala fonética, Cnossos está bem próximo de Gnosis, que significa
Conhecimento. E encontramos novamente a luva maçônica com todos os seus
precedentes significados esotéricos: adivinhação, clarividência, conhecimento,
iniciação, etc.

Se tomarmos o seu outro nome aiglantine (erva da águia), evocamos a


doutrina joanita pois a águia é o pássaro que, no Tetramorfo, corresponde a São
João. Isto nos leva aos Templários, de quem os Maçons construtores constituíam
de algum modo a ordem terceira, pois que estavam sob a proteção dos senhores
do Templo.

E existe ainda material de jogo para a cabala fonética, ou cabala solar, pois
as luvas em latim se chamam manicae (de manus: mãos, evidentemente), termo
sobre o qual se pode estabelecer um jogo de palavras com maniqueu, epíteto
aplicado aos Templários e aos Cátaros pelos seus adversários. E, de fato, se o

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É por sua “luva” que se diz que “Nossa Senhora” de São Wandrille (a célebre abadia
beneditina) conduz o Iniciado para a Luz, pois que é dita: “... a neqotio perambulante in Tenebris
...“ ou seja: “Aquela que conduz os que caminham nas trevas...” O que significa que é pelo
conhecimento que o Iniciado assegura sua salvação póstuma. “Se tivéssemos de escolher entre a
Salvação e a Gnose, nos diz Clemente de Alexandria, nosso interesse seria escolher a Gnose...’.
O fato de tirar as luvas é, por outro lado, marca de honra, quando nos preparamos para encontrar
alguém a quem desejamos manifestar nosso respeito, como quando da apresentação a um
Soberano, ou quando os Maçons fazem a cadeia de união, invocando o Grande Arquiteto do
Universo.
Um dos aspectos mais profundos desse uso secular se encontra no ritual da caça (caça com
galgos e a cavalo). No momento em que o chefe da equipe deve “servir” (abater) a “caça nobre”,
(cabrito montês, cervo), com a adaga (ou seja, a ferro, como um gentil-homem), e isto em
presença dos “vassalos” (os membros da equipe) e dos valetes de armas (os cães da matilha) ,
as trompas soam o “halali, em terra”. (Deve-se descer do cavalo).
Neste momento todos tiram as luvas, é privilégio do primeiro picador confiscar as luvas daqueles que
esquecem que as honras prestadas ao animal que vai morrer, unem em um mesmo sacrifício, tão
misterioso quanto grandioso, o Homem, o Animal e a Floresta.

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dualismo não existe no Absoluto, existe no Relativo. Daí o juramento pitagórico:
“Pelo Céu e pela Terra, pela Luz e pelas Trevas, pelo Dia e pela Noite, pelo Sol e
pela Lua, pelo Fogo e pela Água...” Ora, assim como os Maçons, os maniqueus
se diziam “ Filhos Da Luz”, e são dois pares de luvas que o Venerável entrega ao
novo Aprendiz 7...

7
“Eu sou Elohim, o único Senhor, criador da Luz e criador das Trevas...” Isaías 45:6-7. “Eu Faço
a Paz, e crio o Mal...” Isaías 45:7. Não são essas, na Bíblia, alusões maniqueístas?
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