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A Política de Gênero e o Direito de A-parecer


Judith Butler

Primeiro capítulo de: BUTLER, Judith. Notes towards


a performative theory of assembly. Harvard: Harvard
University Press, 2015. [Tradução para fins didáticos
realizada por Leandro Soares da Silva. Eunápolis:
UNEB, 2017.]

Originalmente eu havia dado o “título” Corpos em aliança para as palestras no Bryn


Mawr College, em 2011, que fundam os elementos deste texto. Foi uma maré oportuna,
embora no momento em que escolhi o título não pudesse saber como seu significado iria
repercutir e assumir outros perfil e força. Então aqui estamos, reunidas nesse espaço
acadêmico – como as pessoas estão se reunindo nos Estados Unidos e em várias outras nações
– para contestar muitos problemas como a injustiça econômica e o governo despótico, às
vezes desafiando o próprio capitalismo ou algumas de suas versões contemporâneas. E às
vezes, possivelmente ao mesmo tempo, se reunindo em multidões a fim de serem vistas e
ouvidas como força e presença políticas.
Podemos enxergar essas demonstrações de massa como uma rejeição coletiva da
precariedade induzida social e economicamente. Mais que isso, no entanto, o que estamos
vendo quando corpos se juntam na rua, na praça ou em lugares públicos é o exercício – pode-
se chamá-lo performativo – do direito de a-parecer*, uma demanda corporal por um cenário
mais habitável.
Embora a noção de “responsabilidade” tenha sido problematicamente apropriada com
fins neoliberais, o conceito permanece crucial para a crítica da desigualdade crescente. Na
moralidade neoliberal cada uma de nós só é responsável por si mesma, e não pelos outros, e é,
sobretudo, responsabilidade de se tornar economicamente autossuficiente quando a
autossuficiência está estruturalmente comprometida. Aqueles e aquelas que não podem bancar
os planos de saúde constituem apenas uma versão da população considerada descartável. E
todas pessoas que veem a crescente lacuna entre pobres e ricos, que compreendem como
perderam a promessa de segurança em suas várias formas, também se veem como
abandonadas pelo governo e pela política econômica que claramente aumentam a riqueza de
muito poucos, às custas da população geral. Assim, quando as pessoas se juntam em público
nas ruas, uma consequência se faz evidente: eles ainda estão aqui e ali, persistindo, se
reunindo e manifestando o entendimento de que partilham uma mesma situação – ou pelo
menos o começo desse entendimento. Mesmo quando não falam ou não apresentam um
conjunto de demandas negociáveis, o clamor pela justiça é praticado: os corpos em
assembleia “dizem”: “não somos descartáveis”, usando ou não palavras; “ainda estamos aqui,
persistindo, exigindo uma justiça melhor, o fim da precariedade, a possibilidade de uma vida
habitável”.
Exigir a justiça é algo forte de se fazer – imediatamente também envolve cada ativista
num problema filosófico: O que é justiça, e como a demanda por justiça pode ser feita,
compreendida e aceita? O motivo é que, às vezes, se diz que “não há demandas” quando
corpos se juntam dessa maneira, ou que uma lista de demandas não diminuiria o significado
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da justiça exigida. Em outras palavras, pode-se imaginar apenas soluções para a saúde, a
educação, a habitação, a distribuição e disponibilidade de comida – isto é, podemos elencar
injustiças no plural, e apresentá-las como um conjunto específico de exigências. Talvez a
reivindicação por justiça esteja presente em cada uma dessas demandas, mas também
necessariamente as exceda. Este é, obviamente, um argumento platônico, mas não temos que
consignar uma teoria da Forma para enxergar os outros meios pelos quais ela funciona. Pois
quando corpos se reúnem para expressar indignação e manifestar suas existências plurais em
público, eles estão também tornando as exigências mais amplas: eles querem ser reconhecidos
e valorizados, estão exercendo o direito de a-parecer, da liberdade, e demandando uma vida
habitável. Claro que há condições para que essa reivindicação seja registrada.
Com as manifestações públicas em Ferguson e Missouri, no verão de 2014, é fácil
perceber quão rapidamente as formas públicas de oposição política são renomeadas como
“desordem” e “tumulto” – neste caso, o assassinato de um homem negro desarmado, Michael
Brown, por um policial. As ações orquestradas de grupos a fim de se opor à violência de
Estado são compreendidas como ações violentas, mesmo quando não envolvem atos
violentos. Como podemos compreender o significado que tais protestos buscam comunicar
em relação com a forma como eles são nomeados por seus opositores? É essa uma maneira
política de manifestar a performatividade plural – cujo funcionamento requer sua própria
consideração?
Uma questão frequentemente me colocada é a seguinte: Como alguém sai da teoria de
performatividade de gênero para ponderar sobre vidas precárias? Embora às vezes se espere
uma resposta biográfica, ainda é uma questão filosófica – qual a conexão entre esses dois
conceitos, se há alguma? Parece que eu estava preocupada com a teoria queer e com os
direitos de minorias sexuais e de gênero, e agora estou escrevendo mais sobre os modos pelos
quais a guerra e outras condições sociais designam certas populações como indignas do luto.
No livro Problemas de gênero (1989), dizia que certos atos performados pelos indivíduos
teriam ou poderiam ter um efeito subversivo nas normas de gênero. Agora, eu estou
trabalhando a questão das alianças entre várias populações minoritárias tidas como
descartáveis; mais especificamente, estou pensando sobre como a precariedade – esse termo
médio e mediador – pode atuar, ou está atuando, como espaço de aliança entre grupos de
pessoas que, em outras circunstâncias, pouco ou nada teriam em comum e que às vezes até se
suspeitam ou se antagonizam. Uma questão provavelmente permanece a mesma, embora meu
foco tenha se deslocado, que é a de como as políticas da identidade falham ao fornecer um
conceito mais amplo do que significa, politicamente, viver juntos apesar das diferenças, em
modos de proximidade não escolhida – especialmente quando viver junto, por mais difícil que
possa ser, permanece um imperativo político e ético. Além disso, a liberdade é mais
frequentemente exercida junto do que sozinho, e não de uma forma mais unificada ou
conformista. Isso não presume ou produz de fato uma identidade coletiva, mas uma série de
relações dinâmicas e favoráveis que inclui o apoio, a disputa, o rompimento, a alegria e a
solidariedade.
Para compreender a dinâmica, eu proponho investigar dois campos da teoria
abreviados pelos termos “performatividade” e “precariedade”, com o fim de então sugerir
como podemos considerar o direito de a-parecer como uma estrutura de coalizão que associa
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gênero e minorias sexuais com as populações precarizadas de modo geral. A performatividade


caracteriza, em primeiro lugar, a declaração linguística que no momento em que é realizada
faz algo acontecer ou cria algum fenômeno. J. L. Austin é responsável pelo termo, mas ele foi
revisado e alterado, especialmente, por exemplo, pelos trabalhos de Jacques Derrida, Pierre
Bordieu e Eve Kosofsky Sedgwick. Uma elocução cria aquilo que diz (ilocucionária) ou faz
uma série de eventos acontecer como consequência da fala (perlocucionária). Por que as
pessoas estariam interessadas por uma relativamente obscura teoria dos atos da fala? Ao
primeiro olhar, parece que a performatividade é um modo de nomear o poder da linguagem de
causar uma nova situação ou pôr em movimento uma série de efeitos. Não é por acidente que
Deus é geralmente creditado com o primeiro performativo – “Faça-se a luz”, e então, de
repente, a luz fez-se. Ou o presidente que declara guerra e comumente as vê se materializando
como resultado de suas declarações; ou o juiz que declara duas pessoas casadas, sob
condições legais, e produz casamentos como resultado de suas elocuções. A questão não é que
a linguagem atua, mas que atua poderosamente. Então, como uma teoria dos atos de fala
performativos se torna uma teoria do gênero performativo? Primeiro, quando profissionais de
saúde declaram que um recém nascido é menino ou menina; e mesmo que sua fala não passe
de um ruído, a resposta que assinalam é legível nos documentos que registram o gênero da
criança. Minha aposta é que a maioria de nós teve seu gênero estabelecido por alguém
marcando uma opção num formulário, embora em alguns casos, principalmente para as
pessoas na condição de intersexo, pode ter levado algum tempo para a opção ser escolhida, ou
a marcação de caneta pode ter sido apagada algumas vezes, e o formulário ter tido seu envio
atrasado. Em todo caso, houve sem dúvida um evento gráfico que inaugurou o gênero para a
maioria de nós, ou talvez alguém simplesmente tenha exclamado “é um menino” ou “é uma
menina” (apesar de que a primeira dessas exclamações pode às vezes ser uma pergunta: uma
pessoa, que só gostaria de ter um menino, questiona: “é um menino?”). Se somos adotadas,
alguém assim decidiu marcando a preferência de gênero num formulário, ou teve que
concordar com nosso gênero antes de proceder à adoção. De certo modo, todos esses
momentos permanecem discursivos na origem de nossas vidas generificadas. Raramente
houve só uma pessoa que decidiu nosso destino – a ideia de um poder soberano com força
extraordinariamente linguística é na maioria das vezes substituída por um conjunto de poderes
institucionais mais difusos e complicados.
Logo, se a performatividade foi considerada linguística, como atos corporais se
tornam performativos? Essa é a questão que precisamos fazer para compreendermos a
formação do gênero, mas também a performatividade das demonstrações em massa. No caso
do gênero, aquelas inscrições e interpelações primárias vêm com expectativas e fantasias de
outrem que nos afetam de maneiras que são, incialmente, incontroláveis: é a imposição
psicossocial e a lenta inculcação das normas. Elas chegam quando mal esperamos, e abrem
seu caminho conosco, animando e estruturando nossa própria capacidade de reação. Tais
normas não nos são simplesmente impostas, nos fazendo e nos estigmatizando como
destinatários passivos de uma máquina da cultura; elas também nos “produzem”, mas não no
sentido de nos criarmos, nem no sentido de estritamente determinar quem somos. Na verdade,
elas informam os modos vivos de personificação que adquirimos ao longo do tempo, e os
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próprios modos de personificação podem se tornar maneiras de contestar essas normas, até
mesmo quebrá-las.
Um exemplo de como isso acontece é quando nós rejeitamos os termos do gênero que
nos foi designado; de fato, podemos personificar ou manifestar essa rejeição antes mesmo de
colocar nossos pontos de vista em palavras. Com efeito, podemos conhecer essa rejeição
primeiro como recusa visceral de se conformar às normas retransmitidas pela designação do
gênero. Embora sejamos obrigadas a reproduzir as normas, o policiamento que supervisiona
nossa conformidade ao gênero também cochila no trabalho. E, assim, nos desviamos do
caminho designado, parcialmente nas sombras, se perguntando se em tal ocasião agimos
como uma menina, se agimos o suficiente como uma menina ou menino, se a ideia de menino
é bem exemplificada pelo menino que deveríamos ser; e se de algum modo falhamos ou nos
encontramos felizes (ou nada felizes) com essas categorias do gênero. A possibilidade de
falha está sempre aí na manifestação do gênero; de fato, o gênero pode ser a manifestação
cuja falha é a característica definidora. Há um ideal, senão uma dimensão fantasmática das
normas culturais do gênero, e mesmo quando humanos em desenvolvimento procuram reiterar
e se acomodar a essas normas, eles certamente se tornam cônscios da lacuna entre os ideais –
muitos dos quais conflitantes – e as várias formas de personificação nas quais nossa
compreensão de si e dos outros se contradiz. Se o gênero primeiro vem até nós como a norma
do outro, ele reside em nós como fantasia que é ao mesmo tempo parcialmente formada pelos
outros e por mim.
Mas meu ponto aqui, ao menos, é algo simples: o gênero não é recebido, mas também
não é simplesmente inscrito em nossos corpos como se fôssemos uma tábua destinada a
receber uma marca. O que nós somos obrigadas, primeiro, é a manifestar o gênero com que
fomos designadas, e isso envolve, num nível desconhecido, ser formada por um conjunto de
fantasias estrangeiras que nos são retransmitidas por meio de interpelações de vários tipos.
Embora o gênero seja manifestado repetidamente, sua manifestação não está sempre de
acordo com certos tipos de normas nem em precisa conformidade com elas. Pode haver um
problema em decifrá-la (várias demandas conflitantes retransmitidas da versão do gênero a ser
atingido, e dos modos a atingi-lo), mas também pode haver algo sobre manifestar a norma que
reserva a possibilidade de não conformidade. Apesar de as normas do gênero nos preceder e
atuar sobre nós (este é o sentido de sua manifestação), somos obrigadas a reproduzi-las, e
quando começamos, sempre involuntariamente, algo pode dar errado (e esse é o segundo
sentido de sua manifestação). Além disso, no curso de sua reprodução, alguma fraqueza da
norma é revelada, ou outro conjunto de convenções culturais intervém para produzir confusão
e conflito no campo de atuação das normas, ou, no meio de nosso manifestar-se, um outro
desejo começa a nos governar e uma forma de resistência se desenvolve, e algo novo ocorre,
não necessariamente planejado. O objetivo aparente de uma interpelação de gênero, mesmo
nos estágios mais iniciais, pode muito bem se materializar de uma maneira totalmente
diferente. Esse “desvio” do objetivo acontece em meio à personificação: fazemos outra coisa,
ou a si mesmas de um modo que não é exatamente aquele que tinham em mente para nós.
Embora haja discursos autorizados sobre gênero (a lei, a medicina e a psiquiatria, para
nomear alguns) que procuram inaugurar e sustentar a vida humana em termos específicos de
gênero, eles nem sempre tem sucesso ao conter os efeitos que seus discursos que provocam.
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Mais que isso, não pode existir reprodução das normas do gênero sem a personificação
corporal dessas normas; quando o campo de normas se abre, mesmo que provisoriamente, os
objetivos animadores do discurso regulatório, manifestados pelo corpo, dão origem a
consequências nem sempre previsíveis, abrindo espaço para modos de viver o gênero que
desafiam o reconhecimento das normas dominantes. Assim, podemos francamente ver a
surgimento do transgênero, genderqueer, butch, femme, dos hiperbólicos ou dissidentes
modos de masculinidade e feminilidade, e mesmo de zonas da vida generificada que se
opõem a todas distinções categóricas como essas. Há alguns anos, tentei localizar na
performatividade do gênero uma forma de ação [agency] involuntária, que certamente não
estava fora de toda cultura, poder e discurso, mas que saía, de forma importante, do interior de
seus termos e desvios imprevistos, estabelecendo possibilidades culturais que co-fundariam os
objetivos soberanos de todos aqueles regimes institucionais, incluindo as estruturas de
parentesco, que procuram de antemão saber e normalizar o gênero.
Então, antes de mais nada, dizer que o gênero é performativo é dizer que é um certo
tipo de manifestação; a “aparência” do gênero é mal compreendida com frequência como
signo de sua verdade interna ou inerente; gênero é motivado por normas obrigatórias que
exigem que nos tornemos de um gênero ou do outro (geralmente dentro de uma estrutura
estritamente binária); a reprodução do gênero é, assim, sempre uma negociação com o poder;
e, finalmente, não há gênero sem essa reprodução de normas que, no decorrer de suas
manifestações repetidas, arrisca desfazer ou refazê-las de maneiras imprevistas, abrindo a
possibilidade de remanejar a realidade generificada de novas maneiras. A aspiração política
dessa análise, talvez sua meta normativa, é deixar as vidas das minorias sexuais e de gênero se
tornarem mais possíveis e mais habitáveis; para os corpos inconformes ao gênero, e para os
que estão bem conformes (a um alto custo), serem capazes de respirar e se mover com mais
liberdade nos espaços públicos e privados, e também em todas as zonas que cruzam e
confundem esses dois espaços. É claro, a teoria da performatividade de gênero que formulei
nunca prescreveu quais performances de gênero eram corretas ou mais subversivas, e quais
eram erradas e reacionárias, mesmo quando estava claro que eu valorizava a inovação de
certos tipos de performance de gênero no espaço público, livre da brutalidade policial,
assédio, criminalização e patologização. O ponto era justamente relaxar a pressão coercitiva
das normas sobre vidas generificadas – que não é o mesmo que transcender ou abolir todas as
normas – para propiciar o sustento de vidas mais habitáveis. Esta última é um ponto de vista
normativo não no sentido de ser uma forma de normalidade, mas sim de que essas vidas
representam uma visão do mundo como ele deveria ser. De fato, o mundo como deveria ser
precisa de brechas de segurança na normalidade, e oferecer apoio e afirmação àquelas pessoas
que fazem essas brechas.
Talvez seja possível ver como a precariedade sempre esteve nesse cenário, desde que a
performatividade de gênero era uma teoria e uma prática, pode-se dizer, que se opunha às
condições inviáveis nas quais as minorias sexuais e de gênero habitam (e às vezes também
aquelas pessoas que “passam” como normativas a um custo psíquico e somático muito alto).
“Precariedade” designa a condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem
com frágeis redes econômicas e sociais de apoio mais do que outras e se tornam
diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte. Como mencionei antes,
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precariedade é a distribuição diferencial da condição precária. Populações expostas de forma


diferente sofrem o aumento das taxas de doença, pobreza, fome, desalojamento e
vulnerabilidade à violência, sem proteção adequada ou reparação. Precariedade também
caracteriza a condição politicamente induzida de vulnerabilidade máxima, entregue à
violência estatal arbitrária, violência doméstica ou das ruas, e outras formas não praticadas
pelos estados, mas pelas quais seus instrumentos jurídicos falham ao providenciar proteção e
reparação suficientes. Assim, ao usar o termo precariedade, podemos nos referir às
populações que passam fome ou estão prestes a isso, àquelas cujas fontes de comida chegam
num dia mas não no outro, ou são cuidadosamente racionadas – como vemos quando o estado
de Israel decide quanta comida os palestinos, em Gaza, precisam para sobreviver – e outros
inúmeros exemplos globais de como a moradia é temporária ou inexistente. Pode-se também
falar sobre profissionais do sexo transgêneros que precisam se defender contra a violência das
ruas ou do assédio da polícia. Às vezes são os mesmos grupos, às vezes são diferentes, mas
quando são parte da mesma população estão unidos pela súbita ou demorada sujeição à
precariedade, mesmo se não querem reconhecer esse elo.
Desse modo, precariedade está, talvez obviamente, relacionada às normas do gênero,
desde que reconheçamos que as pessoas que não vivem seus gêneros de modos inteligíveis
correm um alto de risco de assédio, patologização e violência. Normas de gênero têm tudo a
ver como e de que modo pode-se aparecer no espaço público, e como essa distinção é
instrumentalizada à serviço da política sexual. Quem será criminalizada/o com base em sua
aparência pública, quer dizer, quem será tratada e produzida como criminosa? (Que não é
sempre o mesmo que ser nomeada criminosa por um código legal que proíbe manifestações
de certas normas de gênero ou certas práticas sexuais.) Quem não será protegida pela lei, ou,
mais especificamente, pela polícia, na rua, no trabalho ou em casa – nos códigos legais ou
instituições religiosas? De quem a reclamação pelos danos será recusada, e quem será
estigmatizada e marginalizada ao mesmo tempo em que se tornará objeto de fascínio e prazer
consumista? Quem terá benefícios médicos diante da lei? Quais relações íntimas e de
parentesco serão reconhecidas diante da lei ou criminalizadas por ela, ou quem se encontrará
a uma distância de ser um novo sujeito com direitos ou criminoso? O status legal de muitos
relacionamentos (conjugais ou parentais) muda radicalmente a depender de em qual jurisdição
a pessoa se encontra, se o tribunal é religioso ou secular, e se a tensão entre códigos legais
concorrentes acontece de ser resolvida no momento em que a pessoa aparecer ou não.
A questão do reconhecimento é importante, pois dizemos acreditar que todos os
sujeitos humanos merecem o mesmo reconhecimento, e presumimos que todos são
igualmente habilitados para o reconhecimento. Mas e se o campo altamente regulado da
aparência não admitir qualquer um, precisando de zonas onde muitos não podem aparecer ou
são legalmente proibidos de fazê-lo? Por que esse campo é regulado de tal maneira que só
certos tipos de seres podem aparecer como sujeitos reconhecíveis, e outros não? De fato, a
demanda compulsória a aparecer de um jeito, mas não de outro, funciona como precondição
do aparecer. E isso significa que a personificação da norma ou normas pelas quais se ganha
um status de reconhecimento é um modo de ratificar e reproduzir certas normas mais do que
outras, e assim restringir o campo do reconhecível.
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Isso certamente é um problema proposto pelo movimento dos direitos dos animais;
por que só os sujeitos humanos são reconhecidos, mas não os seres vivos não humanos? O ato
pelo qual humanos alcançam o reconhecimento implicitamente escolhe apenas as qualidades
do humano que são indiscutivelmente separadas do resto da vida animal? O conceito dessa
forma de reconhecimento funda a si mesma, pois seria tal criatura distintamente humana
reconhecida se fosse separada de sua existência como criatura? Com o que se pareceria? Essa
pergunta está relacionada com, e confundida por, outra: quais humanos contam como
humano? Quais humanos são aptos para o reconhecimento na esfera da aparência e quais não
são? Que normas racistas, por exemplo, funcionam para distinguir entre quem pode ser
reconhecido como humano e quem não pode? Essas perguntas são ainda mais relevantes
quando formas historicamente arraigadas de racismo se apoiam em construções bestiais da
negritude. O próprio fato de que posso perguntar quais humanos são reconhecíveis como
humano significa que há um campo distinto do humano que permanece irreconhecível, de
acordo com as normas vigentes, mas que obviamente é reconhecido no interior do campo
epistêmico aberto pelas formas contra-hegemônicas de saber. De um lado, há uma evidente
contradição: um grupo de humanos é reconhecido como humano e outro grupo de humanos
não o é. Talvez quem escrevesse essa sentença visse que ambos os grupos são igualmente
humanos, mas o outro grupo não. Esse outro grupo ainda possui algum critério sobre o que
constitui um humano, mesmo que não seja explicitamente tematizado, e se o segundo grupo
argumentar em favor de sua versão de humanidade, cairá em dificuldade, pois a afirmação de
que um grupo é humano, até mesmo paradigmaticamente humano, significa introduzir um
critério para qualquer um que pareça possa ser julgado. E o critério estipulado pelo segundo
grupo falhará ao assegurar o tipo de concordância que precisa para ser verdadeiro. Esse
critério presume o domínio do humano não humano, e depende dele ser diferenciado do
paradigma do humano que pretende defender. É esse tipo de pensamento que deixa as
pessoas doidas, claro, e que parece correto. Pode-se usar uma linguagem sensata de forma
errada, e até cometer erros de lógica com vistas a criar precisamente essa ruptura promovida
pelas normas de reconhecimento, que de modo constante diferenciam entre quem deve ou não
ser reconhecida/o. Somos jogadas num dilema cruel e curioso: um humano não reconhecido
como tal não é humano; assim, não devemos nos referir a ela ou ele como se o fosse. Pode-se
ver isso como uma formulação importante do racismo explícito que apresenta sua contradição
mesmo quando a impõe como norma. Tanto quanto precisamos compreender que normas de
gênero são retransmitidas por meio de fantasias psicossociais que não foram primeiramente
feitas por nós, precisamos perceber que as normas do humano são criadas por formas de poder
que pretendem normatizar certas versões do humano em detrimento de outras, seja
distinguindo entre os humanos, seja expandido o domínio do não humano segundo sua
vontade. Perguntar como essas normas são instaladas e normatizadas é o início do processo de
não tomar a norma como certa, de não deixar de perguntar como ela foi instalada e
promulgada, e às custas de quem. Para as pessoas excluídas ou rebaixadas pela norma que
deveriam incorporar, a luta se torna personificada pelo reconhecimento, uma instância pública
para existir e ter importância. Assim, só através de uma abordagem crítica das normas de
reconhecimento podemos começar a desmantelar essas formas hediondas de lógica que
mantêm o racismo e o antropocentrismo. E somente através de uma forma insistente de a-
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parecer quando e onde somos excluídas fará a esfera da aparência quebrar e se abrir de novas
maneiras.
Uma teoria crítica desse tipo é constantemente acometida por dilemas linguísticos:
como chamamos as pessoas que não podem aparecer como “sujeitos” no interior do discurso
hegemônico? Uma resposta óbvia é refazer a questão: como os excluídos chamam a si
mesmos? Como eles aparecem, quais são as convenções e efeitos nos discursos dominantes
que atuam em esquemas lógicos tomados como certos? Embora o gênero não possa funcionar
como paradigma de todas as formas de existência que lutam contra a construção normativa do
humano, ele pode nos oferecer um ponto de saída para pensar sobre poder, ação [agency] e
resistência. Se aceitarmos que há normas sexuais e de gênero que condicionam quem será
reconhecido e “legível” e quem não será, começaremos a ver como o “ilegível” pode formar
um grupo, desenvolver formas de se tornar legível entre si e ser exposto a formas diferentes
de vivenciar a violência de gênero – essa exposição comum pode ser a base para a resistência.
Para compreender, por exemplo, que são mal reconhecidos/as ou que permanecem
sem reconhecimento, é necessário entender como eles/as existem – e persistem – nos limites
das normas estabelecidas para o pensamento, personificação e até pessoalidade. Há formas de
sexualidade para as quais não existe vocabulário justamente porque a lógica poderosa que
determina como pensamos sobre desejo, orientação, atos sexuais e prazeres não os permite se
tornarem legíveis. Não há uma exigência crítica para repensar nosso vocabulário existente, ou
revalorizar os nomes e formas de dirigir-se a alguém para expandir as normas limitadoras não
só do que é pensável, mas da capacidade de pensar vidas com gêneros inconformes?
A performatividade de gênero presume um âmbito da aparência no qual ele aparece e
um esquema de reconhecimento no interior do qual ele se revela da maneira que é; e já que o
âmbito da aparência é regulado por normas de reconhecimento que são elas mesmas
hierarquizadas e excludentes, o performativo de gênero é vinculado aos modos diferenciais
pelos quais os sujeitos se tornam aptos ao reconhecimento. Reconhecer um gênero depende
fundamentalmente da existência de um modo de apresentação para ele, uma condição para seu
aparecimento. Chamamos de seu meio ou modo de apresentação. Na medida em que isso é
verdadeiro, é também o fato de que o gênero pode às vezes aparecer fazendo uso,
retrabalhando ou rompendo com as condições consagradas da aparência, infringindo as
normas existentes ou importando normas de legados culturais inusitados. Mesmo que as
normas pareçam determinar quais gêneros podem a-parecer ou não, elas também fracassam ao
controlar a esfera da aparência, funcionando mais como um policiamento ausente ou falho do
que como um poder totalitário efetivo. Ademais, se pensarmos mais cuidadosamente sobre o
reconhecimento, devemos perguntar: há uma maneira de distinguir entre o reconhecimento
parcial e total, ou de distinguir entre o reconhecimento e sua ausência? Essa última questão é
muito importante de ser considerada, dado que reconhecer um gênero envolve com muita
frequência aceitar uma certa conformidade corporal com a norma, e as normas são de certo
modo compostas de ideais que nunca serão completamente atingidos. Assim, ao reconhecer
um gênero, aceita-se a trajetória de um esforço para atingir um ideal estabelecido, cuja
completa personificação sem dúvidas sacrificaria alguma dimensão da vida do ser vivente. Se
alguma de nós “se torna” um ideal normativo em algum momento e de uma vez por todas, foi
preciso sobrepujar todo esforço, toda inconsistência e toda complexidade, isto é, perder uma
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dimensão crucial do que significa viver. O gênero hipernormativo pode levar à repressão de
alguns seres vivos, mas às vezes é o “hiper” que trabalha com e contra a falha constitutiva
deliberadamente, com tenacidade e prazer, com um sentido vívido de retidão; pode ser um
jeito de criar novos modos de vidas transgênero dignas de apoio. Contudo, outras vezes, há
uma maneira de preencher essa lacuna para que o gênero de alguém se torne aquele pelo qual
a pessoa é reconhecida, e essa retidão é a precondição de uma vida habitável. O ideal de
gênero não é uma armadilha, mas um jeito de viver desejável, um jeito de personificar um
sentido de retidão que requer, e merece, reconhecimento.
Mesmo que a completa personificação e completo reconhecimento seja algo
fantasioso, que ameaça nos fixar num certo ideal nos despojando da singularidade viva de
nossas existências, seria possível viver bem sem qualquer fantasia desse tipo? Uma vida
habitável pode obedecer à demanda por viver um sentido corpóreo de gênero, e assim escapar
da restrição que não permite esse modo de viver livremente no mundo. Ser radicalmente
desprovida de reconhecimento ameaça a própria possibilidade de existir e persistir. Ser um
sujeito requer primeiro encontrar seu caminho entre as normas de reconhecimento, normas
que nunca escolhemos, e que chegam até nós e nos envolvem com seu poder estruturante e
vivificante. Assim, se nos é impossível se encontrar nas normas de gênero e sexualidade
designadas, ou se temos grande dificuldade para isso, seremos expostas ao significado dos
limites do reconhecimento: essa situação pode ser, dependendo da circunstância, terrível e
estimulante. Existir em tal limite significa que a própria viabilidade da vida é posta em
questão, o que podemos chamar de condições sociais ontológicas da persistência. Também
significa que podemos estar no limiar de desenvolver os termos que nos permitiriam viver.
Em certos discursos liberais, sujeitos são pensados como o tipo de ser que vem diante
da lei e pede por reconhecimento, mas o que torna possível que alguém possa se apresentar
diante da lei (certamente uma pergunta kafkiana)? Parece-nos que é preciso ter permissão ou
representatividade, ou estar apta a declarar ou a-parecer de alguma forma. Preparar um
acusado diante do tribunal é sobre produzir o sujeito cujo pleito por reconhecimento tem uma
chance. Isso com frequência significa se conformar às normas raciais ou produzir a si mesma
como “pós-racial”. A “lei” já está trabalhando antes da acusada entrar no tribunal; ela toma a
forma de um regimento estruturante do âmbito da aparência que estabelece quem pode ser
vista, ouvida e reconhecida. O domínio legal superpõe-se com o âmbito político. Pode-se
apenas imaginar a situação de trabalhadores sem documentos que querem vistos ou cidadania,
cujo próprio pleito de “se tornar legais” é considerado uma atividade criminosa. Consultar um
advogado é em si um ato que poderia expor o/a trabalhador/a em situação não regularizada à
prisão ou deportação. Encontrar as “condições de aparência” certas é um assunto complicado,
desde que não seja um assunto sobre como o corpo se apresenta diante do tribunal de justiça,
mas sobre como ele pode se ver na fila que possivelmente o levará a um tribunal.
Pode ser que a ascensão das demonstrações em massa dos últimos anos, de pessoas
vivendo em situação não regularizada, esteja relacionada às demonstrações daquelas que
foram abandonadas por processos políticos e econômicos (e a específica cooperação entre
governos que liquidam serviços públicos e a economia neoliberal). A entrada de tais
populações na esfera da aparência pode muito bem ser a produção de um conjunto de
reivindicações sobre o direito de ser reconhecida e ter uma vida habitável concedida, mas é
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também uma maneira de reivindicar na esfera pública, seja ou não por meio da radiodifusão,
do ajuntamento na praça, de marchar pelas ruas principais dos centros urbanos ou da
insurreição às margens da metrópole.
Pode parecer que estou requerendo que concedam às pessoas sem direitos políticos um
lugar devido na concepção emergente de comunidade humana. De certa forma é verdade,
embora isso não seja um sumário de meus esforços aqui. Se a trajetória normativa deste
projeto fosse restrita a tal reivindicação, nós não seríamos aptas a compreender como o
humano é diferencialmente produzido e com que custo. Aquelas que suportam esse custo, ou
efetivamente “são” o custo do humano, seu detrito ou repulsa, são exatamente as pessoas que
às vezes se veem, de forma inesperada, aliadas entre si numa demanda pela persistência e
exercício de formas de liberdade que superam as versões tacanhas de individualismo sem
sucumbir às formas compulsórias de coletividade.
Pensar criticamente sobre como a norma do humano é construída e mantida requer que
tomemos posição fora de seus termos, não apenas em nome do não humano ou até do anti-
humano, mas, sim, numa forma de sociabilidade e interdependência que não é redutível às
formas humanas de vida e que não pode ser adequadamente nomeada por nenhuma definição
compulsória da natureza humana ou do indivíduo humano. Falar sobre o que é viver uma vida
humana é indispensável para o que a conceituamos. Em termos hegelianos, se o humano não
pode ser humano sem o inumano, então o inumano não é apenas essencial ao humano, mas
está instituído em sua essência. Essa é a razão pela qual racistas são tão desesperadamente
dependentes de seu próprio ódio por aqueles cuja humanidade são incapazes de negar.
A questão aqui não é apenas inverter as relações para todos unidos sob a bandeira do
inumano ou não humano. E certamente não é aceitar o status de excluído como uma “vida
simples” incapaz de se unir ou resistir. Nós começamos talvez por ter em mente esse aparente
paradoxo de um novo pensamento da “vida humana”, na qual seus componentes, “vida” e
“humano”, nunca coincidem totalmente um com o outro, embora, como expressão, pretenda
conter dois termos que se repelem ou que trabalham em direções opostas. A vida humana
nunca é inteiramente vida, não pode nunca nomear todos os processos vitais de que depende,
e a vida nunca pode ser a singularidade definidora do humano – seja o que for que chamarmos
de vida humana, inevitavelmente ela consiste em negociar com essa tensão. Talvez o humano
seja o nome que damos à própria negociação de ser uma criatura viva entre criaturas e no seio
de formas de vida que nos excedem.
É minha hipótese que os modos de declarar e demonstrar certas formas de
interdependência têm a chance de transformar o âmbito da aparência em si mesmo.
Eticamente considerado, deve haver um meio de encontrar e forjar uma série de laços e
alianças, unir a interdependência ao princípio de igualdade, e fazer isso para se opor aos
poderes que diferencialmente repartem o reconhecimento, ou que atrapalham seu
funcionamento cotidiano. À medida que a vida seja compreendida como igualmente
inestimável e interdependente, certas formulações éticas terão resultado. Em Quadros de
Guerra, sugeri que mesmo que minha vida não seja arruinada na guerra, algo nela é destruído,
quando outras vidas e processos de vida são arruinados pela guerra. Como isso se dá? Desde
que outras vidas, entendidas como parte da vida que me excede, são condições daquilo que eu
sou, minha vida não pode fazer uma reivindicação exclusiva sobre o viver, e minha própria
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vida não é apenas mais uma, e não pode ser. Em outras palavras, estar viva já é estar
conectada não só com o que vive longe de mim, mas além da minha humanidade, e nenhum
ser ou humano pode viver sem essa conexão com uma rede biológica que excede o domínio
do animal humano.
A destruição do ambiente e da infraestrutura que nos sustenta é a destruição daquilo
que idealmente deveria organizar e manter a vida de maneira habitável. Água potável é um
enfático exemplo disso. Essa é a razão porque alguém ao se opor à guerra não só se opõe à
destruição de outras vidas humanas, mas também ao envenenamento do meio ambiente, e ao
abuso mais generalizado do mundo vivente. O humano que é dependente não pode sobreviver
num solo tóxico, mas o humano que envenena o solo prejudica sua própria qualidade de vida
num mundo em comum, no qual a perspectiva de vida “própria” está invariavelmente unida a
de todos os outros humanos.
Só no contexto de um mundo vivo o humano como criatura de ação surge, cuja
dependência dos outros e dos processos de vida dão vazão à sua própria capacidade de ação.
Viver e agir estão unidos de tal maneira que as condições que tornam possível para todos
viverem são parte do próprio objeto de ação e reflexão políticas. A pergunta ética (como devo
viver?) ou a pergunta política (como devemos viver juntos?) dependem de uma organização
da vida que possibilite encarar esses problemas de forma expressiva. Assim, a questão do que
é preciso para uma vida habitável é anterior à da vida que deveríamos viver, que alguns
chamam de condições biopolíticas para as questões normativas.
Considero essa uma importante réplica crítica a filósofas como Hannah Arendt, que,
em A condição humana, bastante enfaticamente distingue a esfera privada como a da
dependência e inatividade e a esfera pública como a da ação independente. Como podemos
pensar na passagem do privado ao público? Algum de nós deixa a esfera da dependência
“para trás” mesmo quando aparece como ator autônomo numa esfera pública convencional?
Se a ação é definida como independente, implicando uma diferença fundamental da
dependência, então nosso autoconhecimento como atores é baseado no repúdio das relações
interdependentes e vivas das quais nossas vidas dependem. Se formos atores políticos que
buscam instituir a importância da ecologia, das políticas domésticas, de saúde, moradia,
alimentação e desmilitarização, então seria natural que a ideia do humano e de ser vivo que
ampara nossos esforços seria aquela que ultrapassa a cisma entre agir e ser interdependente.
Somente como criaturas que reconhecem as condições de interdependência, que asseguram
nossa persistência e florescimento, pode qualquer uma de nós disputar a realização desses
importantes objetivos políticos no tempo em que a própria condição social da existência tem
estado sob ataque político e econômico.
As implicações da performatividade política parecem importantes; se a
performatividade implica ação, quais são então as condições sociais e ativas da ação? Não
pode ser que a ação seja um poder específico do ato de fala, e que o ato de fala seja o modelo
da ação política. A pressuposição de Arendt na Condição Humana conjetura que o corpo não
participa do ato de fala, e este é compreendido como um modo de pensar e julgar. A esfera
pública na qual o ato de fala se qualifica como ação política paradigmaticamente é aquela que
já foi, na visão da autora, separada da esfera privada: o espaço de mulheres, escravizados,
crianças e dos mais velhos ou incapazes de trabalhar. Em certo sentido, todas essas pessoas
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estão associadas com a forma corpórea de existência, caracterizada pela “transitoriedade” de


seu trabalho, e contrastada com os verdadeiros atos, como a criação das obras culturais e a
fala pública. A distinção implícita entre corpo e mente na Condição Humana foi acolhida com
atenção crítica por teorias feministas durante algum tempo. De forma significativa, essa visão
de que o corpo estrangeiro, pouco qualificado e feminino, pertence à esfera privada é a
condição de possibilidade para o cidadão masculino falar (que foi, de modo verossímil,
alimentado por alguém e protegido em algum lugar, cuja nutrição e apoio tendem a ser
realizados por alguma pessoa sem direitos políticos).
Para ser justa, Arendt de fato observa, em Sobre a Revolução, que a revolução é
personificada. Referindo-se aos “pobres que tomam o fluxo das ruas”, ela escreve que algo
“irresistível” os motiva, e essa “irresistibilidade, que encontramos intimamente ligada ao
sentido original de ‘revolução’, é personificada”. Ela conecta esse “elemento de
irresistibilidade” com a “necessidade que imputamos aos processos naturais… porque
experimentamos a necessidade ao ponto de nos encontrarmos, como corpos orgânicos,
sujeitos a processos necessários e irresistíveis”. Quando os pobres tomam o fluxo das ruas,
eles agem por necessidade, de fome ou carência, e buscam “alcançar tal liberação [das
necessidades da vida]… por meio da violência.” Como resultado, Arendt nos diz, “a
necessidade invadiu o âmbito político, o único no qual homens podem ser verdadeiramente
livres.” Compreende-se que o movimento político causado pela fome seja motivado pela
necessidade e não pela liberdade, e que sua forma de liberação não seja a da liberdade, mas a
de um esforço impossível e violento de ser libertar das necessidades da vida. Parece que o
resultado dos movimentos sociais dos pobres não é aliviar a pobreza, mas a necessidade;
como a autora claramente afirma, a violência entre homens para quem as necessidades da vida
já foram assistidas é “menos aterrorizante” que a violência realizada pelos pobres. Na visão
dela, “nada, podemos dizer hoje, poderia ser mais obsoleto que a tentativa de liberar a
humanidade da pobreza por meios políticos.” Não apenas nós vemos uma distinção operativa
entre “liberação” e “liberdade”, obviamente sugerindo que os movimentos de liberação
trabalham com um sentido menos que “verdadeiro” da liberdade, mas também percebemos
que o domínio da política é mais uma vez inflexivelmente distinto do domínio da carência
econômica. Para Arendt, aqueles que agem por necessidade agem a partir do corpo, mas a
necessidade nunca pode ser uma forma de liberdade (são opostos), e a liberdade só pode ser
alcançada por aqueles que não estão, bem, com fome. Mas, e quanto à possibilidade de que
alguém com fome e raiva seja também livre e com raciocínio? E que um movimento político
para acabar com desigualdade na distribuição de alimentos seja um movimento político justo?
Se o corpo permanece no nível da necessidade, então nenhuma descrição política da liberdade
pode ser personificada.
Linda Zerilli fez um excelente argumento de que a referência de Arendt ao corpo
como uma esfera da necessidade significa marcar os padrões rítmicos da transitoriedade, o
fato de que os artefatos humanos chegam ao mundo e desaparecem, e este fato da mortalidade
lança uma sombra tanto nas formas humanas de criar (poiesis) quanto nas de agir (praxis).
Podemos compreender como a mortalidade implacável e repetitiva do corpo não pode ser
descrita ou aliviada pela ação humana. Não há “voo da existência personificada”,
compreendido como “necessidade”, sem a perda da liberdade em si. Essa formulação é
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sensata desde que “ação personificada” seja identificada com “necessidade”; mas se a
liberdade é personificada, a formulação se mostra vaga. Procurar uma forma de ação humana
capaz de superar a morte é em si impossível e perigoso, levando-nos mais longe do sentido da
precariedade da vida. Nessa perspectiva, o corpo impõe um princípio de humildade e um
sentido do limite necessário para toda ação humana.
No entanto, se abordarmos a questão do ponto de vista da distribuição demográfica
desigual da precariedade, então teríamos que perguntar: de quem são as vidas que são
abreviadas mais facilmente? De quem são as vidas submersas num sentido mais amplo de
transitoriedade e de mortalidade precoce? Como é que a exposição diferencial à mortalidade é
gerenciada? Em outras palavras, nós já estamos no político quando pensamos sobre
transitoriedade e mortalidade. Isso não significa que num mundo justo não haveria
mortalidade! Nem um pouco. Significa apenas que o compromisso com a igualdade e a justiça
implica descrever cada nível institucional da exposição à morte que atualmente caracteriza as
vidas de pessoas subjugadas e precarizadas, com frequência como resultado do racismo
sistêmico ou de formas calculadas de abandono. Ruth Gilmore fez uma agora famosa
descrição do racismo que torna a questão mais evidente: “Racismo, especificamente, é a
produção e exploração informal ou sancionada pelo Estado da vulnerabilidade diferenciada de
um grupo à morte prematura.”
Apesar desses limites óbvios, Arendt oferece uma abertura para compreensão de como
o encontro e reunião de pessoas agem para estabelecer ou reestabelecer o espaço da aparência,
como nas demonstrações sob o nome de “Vidas Negras Importam”. Mesmo se não pudermos
aceitar que a mortalidade do corpo é uma condição pré-política da vida, ainda encontraremos
modos importantes de entender o caráter personificado da ação plural humana em seus
escritos. Talvez a finalidade aqui seja tentar repensar essas distinções em Arendt, mostrando
que o corpo, ou melhor, a ação conjunta de corpos – reunir, gesticular, ficar de pé, todas as
partes que compõe uma “assembleia” e que não foram rapidamente assimiladas como
discurso verbal – pode significar o princípio da liberdade e da igualdade.
Embora eu critique algumas dimensões das políticas do corpo oferecidas por Hannah
Arendt, quero chamar atenção para seu texto “O declínio do Estado-Nação e o fim dos
direitos do homem”, que apresenta a questão dos direitos daqueles que não têm direitos. A
asserção de Arendt de que mesmo as pessoas sem estado têm “o direito a ter direitos” é em si
um tipo de exercício performativo, como foi apontado por Bonnie Honig e outros; Arendt está
constituindo por meio de sua própria argumentação o direito a ter direitos, e não há lugar para
essa alegação fora de si mesma. Embora às vezes ela seja compreendida como puramente
linguística, está claro que a alegação é manifestada por meio do movimento corporal, da
reunião, ação e resistência. Em 2006, trabalhadores mexicanos sem documentação
reivindicaram seus direitos cantando o hino nacional americano em público; eles o fizeram
com e através da vocalização. E aqueles que lutavam contra a expulsão dos Roma (ciganos)
da França falaram não só dos Roma, mas contra o poder violento e arbitrário de um Estado
para tornar apátrida um segmento de sua população. De modo similar, podemos dizer que a
autorização do Estado para que a polícia prendesse e deportasse as mulheres com véu na
França é outro exemplo de ação discriminatória que toma uma minoria como alvo, e que
claramente nega seus direitos de a-parecer em público de acordo com sua vontade. Feministas
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francesas que se chamam de universalistas apoiaram a lei que daria poder à polícia de
prender, deter, multar e deportar mulheres usando véu. Que tipo de política é essa que recruta
a função policial do Estado para monitorar e restringir mulheres de minorias religiosas na
esfera pública? Por que as mesmas universalistas que abertamente afirmam o direito de
pessoas transgênero de a-parecer livremente em público sem assédio policial ao mesmo tempo
apoiam a detenção de mulheres muçulmanas que usam roupas religiosas? Quem apoia tal
proibição argumenta em nome do feminismo universalista, clamando que o véu ofende as
sensibilidades do universalismo. Então, que universalismo é esse que está embasado num tipo
muito específico de tradição secular e que falha em honrar os direitos das minorias religiosas
que seguem códigos de indumentária? Mesmo se alguém estiver no enquadramento
problemático do universalismo, seria difícil apresentar um critério coerente e não
contraditório para que as pessoas transgênero devam ser protegidas da violência policial e ter
direito de a-parecer em público, enquanto mulheres muçulmanas, mas não cristãs ou judias
usando insígnias religiosas, podem ser desprovidas do direito de a-parecer em público de
maneiras que demonstram seu pertencimento ou afiliação religiosa. Se direitos podem ser
universalizados apenas para quem segue à risca as normas seculares, ou para quem pertence a
religiões elegíveis para proteção legal, então certamente o “universal” tem um significado
vazio ou, pior, se tornou instrumento de discriminação, racismo e exclusão. Se o direito de a-
parecer deve ser honrado como “universal” então não seria possível sobreviver em tal óbvia e
insuportável contradição.
O que às vezes chamamos de “direito” de a-parecer é tacitamente apoiado por
esquemas regulatórios que qualificam apenas certos sujeitos como passíveis de exercer esse
direito. Então não importa quão “universal” o direito de a-parecer se reivindique, se seu
universalismo é anulado pelas formas diferenciais de poder que qualificam quem pode e não
pode a-parecer. Para aquelas que são consideradas “inelegíveis”, a luta por alianças é
primordial, e envolve um posicionamento performático e plural de elegibilidade onde antes
não havia nenhum. Esse tipo de performatividade plural não busca simplesmente fundar o
lugar daqueles/as previamente desconsiderados e ativamente precarizados numa esfera
existente da aparência. Mais que isso, é preciso produzir uma fissura no interior da esfera da
aparência, expor a contradição pela qual sua reivindicação à universalidade é postulada e
anulada. Não pode haver entrada na esfera da aparência sem uma crítica das formas
diferenciais de poder pelas quais essa esfera é constituída, e sem uma aliança crítica formada
entre os desvalorizados, os inelegíveis – os precários – para estabelecer novas formas de
aparência que buscam superar essa forma diferencial de poder. Pode ser que cada forma de
aparência seja constituída por seu “exterior”, mas isso não é motivo para não continuar a luta.
De fato, é o único motivo para insistir na luta em curso.
Às vezes existem atos cotidianos que muito frequentemente estão em jogo quando
tentamos compreender a política performativa em sua luta com e contra a precariedade. Como
sabemos, nem todas as pessoas têm a garantia de poder andar na rua ou ir a um bar sem serem
assediadas. Andar na rua sozinha sem assédio policial não é o mesmo que andar em
companhia dos outros, ou seja lá quais forem as formas não policiais de proteção. Quando
uma pessoa transgênero anda na rua, em Ankara, ou entra num Macdonald’s, em Baltimore,
pergunta-se se esse direito pode ser exercido pelo indivíduo sozinho. Se a pessoa é
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extraordinariamente boa em defesa pessoal, ou talvez estivesse num espaço cultural onde é
aceita, certamente ela pode. Mas quando é possível andar desprotegida e ainda estar a salvo,
porque a vida cotidiana se tornou viável sem medo da violência, então isso certamente ocorre
porque há muito apoio a seu direito mesmo quando ele é exercido por uma pessoa sozinha. Se
o direito é exercido e honrado, é porque há muitos o exercendo também, estejam ou não
sozinhas na cena. Cada “eu” traz o “nós” junto quando ele ou ela entra ou sai pela porta, seja
estando num recinto fechado ou exposto/a na rua. Pode-se dizer que existe uma congregação,
senão uma aliança, esteja ela ou não à vista. É claro, uma pessoa que anda na rua, que corre
esse risco, é também como categoria social que faz sua marcha particular, seu movimento
singular no mundo; e se é atacada, isso atinge tanto a categoria social quanto a individual ao
mesmo tempo. Talvez ainda se possa chamar de “performativo” tanto esse exercício do
gênero quanto o clamor político personificado pela igualdade, proteção da violência e pela
habilidade de se mover como categoria no espaço público. Andar é dizer que este é o espaço
público no qual pessoas transgênero andam, que este é o espaço público no qual pessoas com
vários tipos de vestimenta, não importa quão generificadas sejam ou a que religião pertençam,
são livres para se mover sem a ameaça de violência.
Para participar da política, se tornar parte de uma ação coletiva orquestrada, não é
preciso apenas fazer a reivindicação por igualdade (direitos iguais, tratamento igual), mas agir
e requerer nos termos da igualdade, como um ator em pé de igualdade com os outros. Desse
modo, as comunidades se juntam nas ruas e começam a manifestar outra ideia de igualdade,
liberdade e justiça que não aquela com a qual se opõem. O “eu” é assim, ao mesmo tempo,
“nós”, sem ser fundido numa unidade impossível. Ser um ator politico é uma função, uma
característica do agir em termos de igualdade com outros humanos – esta importante
formulação de Arendt permanece relevante para as lutas democráticas contemporâneas.
Igualdade é a condição e a natureza da ação política em si ao mesmo tempo em que é seu
objetivo. O exercício da liberdade é algo que não vem do outro ou de mim, mas do que está
entre nós, do laço que criamos no momento em que exercemos a liberdade juntas, um laço
sem o qual não há liberdade alguma.
Em 2010, em Ankara, Turquia, eu estava presente na conferência internacional contra
homofobia e transfobia. Foi um evento especialmente importante na capital da Turquia, onde
pessoas transgênero são com frequência multadas por aparecer em público; apanham, às vezes
da polícia, e assassinatos de mulheres transgênero ocorreram quase uma vez por mês nos
últimos anos. Se trago esse exemplo da Turquia não é para apontar que o país está “para trás”
– algo que a representação da embaixada dinamarquesa foi rápida ao me sugerir, e que me
recusei a aceitar com a mesma rapidez. Asseguro que há assassinatos igualmente brutais fora
de Los Angeles e Detroit, no Wyoming e na Lousiana, prisões e espancamentos em
Baltimore, como sabemos, e na Penn Station na cidade de Nova York. O que parecia
exemplar sobre as alianças é que várias organizações feministas trabalharam juntas com
pessoas queer, gay/lésbicas e transgênero contra a violência policial, mas também contra o
militarismo, o nacionalismo e as formas de masculinidade que os apoiam. Assim, nas ruas,
depois da conferência, feministas se alinharam com drag queens, genderqueers com ativistas
dos direitos humanos, lésbicas com suas amigas bi ou heterossexuais; a marcha incluía
secularistas e muçulmanos. Eles entoavam “não seremos soldados e não mataremos”. Opor-se
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à violência policial contra pessoas trans era assim ser abertamente contra a violência militar e
a escalada nacionalista do militarismo; era também se opor à agressão militar contra os curdos
e à incapacidade de reconhecer suas reivindicações políticas, mas também agir em memória
do genocídio de armênios e repudiar os Estados que continuam a violência de outras formas.
Assim, na Turquia, feministas tomaram as ruas com ativistas trans, mas em muitos
círculos feministas continuava a haver resistência a esse tipo de aliança. Na França, por
exemplo, algumas feministas que se entendem como de esquerda, até materialistas,
convergem na ideia de que a transexualidade é um tipo de patologia. É claro, há uma
diferença entre criminalizar pessoas queer e transgênero que aparecem em público e
patologizá-las. A primeira opinião é moral, geralmente baseada numa concepção espúria de
moralidade pública. Criminalizar essa população não só a destitui da proteção contra a
violência policial e outros tipos de violência, como também prejudica a luta do movimento
político pela descriminalização e emancipação. Mudar do modelo da “doença” – ou, de fato,
do modelo “psicótico” – é recrutar uma explicação pseudocientífica com o fim de descreditar
certos modos personificados de existência que não fazem mal algum aos outros. De fato, o
modelo da patologização também funciona prejudicando o movimento político da
emancipação, pois sua explicação sugere que tais minorias sexuais e de gênero precisam mais
de “tratamento” do que de direitos. Como resultado, deveríamos ter cautela daqueles esforços
para garantir direitos para transexuais, como fez o governo espanhol, ao mesmo tempo em
que adota o padrão de saúde mental que patologiza as próprias populações que defendem. E
nos Estados Unidos e em outros países dominados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM), deveríamos igualmente ter cautela quanto ao modos estipulados
de “transição” que requerem das pessoas trans confirmação de uma condição patológica para
serem aptas ao apoio financeiro para suas transições e reconhecimento legal como o gênero
que desejarem.
Se as pessoas trans devem às vezes passar pela “patologização” como meio de
entender a característica não patológica de seu desejo e para confirmar um modo de vida
personificado que seja habitável, então a consequência nesses casos é que o preço da
emancipação é viver por meio da patologia; que tipo de emancipação é essa, e como é
possível não pagar um preço tão terrível? Os instrumentos que usamos se tornam mais fortes à
medida que são usados, e com mais frequência atingem os resultados desejados. Mas esses
resultados desejados não são sempre o mesmo que seus efeitos políticos e sociais mais
amplos. Então tem-se a necessidade de pensar sobre o tipo de reivindicação que a
transexualidade está fazendo, que está conectada ao direito de a-parecer em público, exercer
esse tipo de liberdade implicitamente relacionado a toda luta por a-parecer nas ruas sem
ameaça de violência. Nesse sentido a liberdade de a-parecer é central a qualquer luta
democrática, o que significa que uma crítica das formas políticas de aparecimento é crucial
para entendermos o que a liberdade pode ser e quais intervenções são necessárias, incluindo
as formas de restrição e mediação pelas quais toda liberdade pode a-parecer.
Claro, tudo isso ainda não se refere ao que significa a-parecer, e se esse direito não
privilegiaria uma ideia de presença corpórea ou o que alguns chamariam de “metafísica de
presença”. A mídia não seleciona o que pode ou não pode a-parecer? E quanto àqueles/as que
preferem não a-parecer, mas se engajam no ativismo democrático de outras maneiras? Às
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vezes a ação política é mais efetiva quando iniciada nas sombras ou nas margens, e este é um
ponto importante – por exemplo, a associação de Palestinxs Queer pelo Boicote,
Desinvestimento e Sanções questiona a ideia de que o ativismo queer exige exposição
pública. Certamente cada ativista precisaria negociar quanta exposição, e como, é necessária
para atingir seus objetivos políticos. É um jeito de negociar, pode-se dizer, entre a
necessidade de proteção e a demanda por assumir um risco público. Às vezes a face pública
pode ser uma série de palavras, e às vezes os corpos nas ruas nem precisam falar para fazer
suas demandas.
Ninguém deveria ser criminalizado/a por sua apresentação de gênero, nem ser
ameaçada/o com uma vida precária por causa da natureza performativa de sua apresentação.
Ainda assim, essa reivindicação de que as pessoas devem ser protegidas do assédio e da
intimidação, da patologização do gênero que parecem ter, em nenhum momento prescreve
quando ou como a-parecer. De fato, é importante não impor normas baseadas nos Estados
Unidos de hipervisibilidade para pessoas que têm outros jeitos de criar uma comunidade
política e lutar por sua liberdade. A questão aqui é mais expor a injustiça da criminalização
da apresentação de gênero. Um código penal que justifica a criminalização com base no
gênero com que alguém se apresenta ou com o qual se parece é em si mesmo criminoso e
ilegítimo. Se as minorias sexuais e de gênero são criminalizadas ou patologizadas por como
elas a-parecem, por como ocupam o espaço público, pela linguagem por meio da qual se
compreendem, por seus meios de expressar amor ou desejo, por aqueles/as com quem
abertamente se aliam, escolhem estar juntos ou envolvem-se sexualmente, ou por como
exercem sua liberdade corporal, então esses atos de criminalização são em si mesmos
violentos; e, nesse sentido, são também injustos e criminosos. Policiar o gênero é um ato
criminoso, um ato pelo qual a polícia se torna criminosa, e as pessoas expostas à violência
estão sem proteção. Ser incapaz de prevenir a violência de parte da polícia estatal contra
comunidades minoritárias é em si uma negligência criminosa; quando a polícia comete um
crime, as minorias já foram abandonadas como precárias nas ruas.
Quando exercemos o direito de ser o nosso gênero ou quando exercemos o direito de
participar de práticas sexuais que não causam danos a outrem, nós estamos certamente
exercendo uma certa liberdade. Logo, mesmo se alguém sente que não escolheu a própria
sexualidade ou gênero, seja dado pela natureza ou por alguma outra autoridade externa, a
situação permanece a mesma: se reivindicamos que a sexualidade é um direito acima e além
do conjunto das leis ou códigos que a consideram criminosa ou desonrosa, a reivindicação em
si é performativa. Eis uma maneira de nomear esse exercício do direito exatamente quando
não há lei para protegê-lo. Pode haver, claro, uma comunidade local, um conjunto
internacional de precedentes, mas isso nem sempre protege quem reivindica localmente, como
sabemos. Mas o que é, no meu entendimento, mais importante é reivindicar em público,
andando nas ruas, encontrando emprego e morada sem discriminação, protegida/o da
violência das ruas e da tortura policial.
Até quando se escolhe quem se é, e quem alguém “é” é concebido como não
escolhido, cria-se a liberdade como parte do próprio projeto social. Não começamos com um
gênero e só depois decidimos como e quando manifestá-lo. A manifestação, que começa antes
de qualquer ação do “eu”, é parte da própria modalidade ontológica do gênero, e assim
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importa como e quando e com que consequências essa manifestação acontece, porque tudo
isso muda o gênero que alguém “é”. Logo, não é possível separar os gêneros que somos e as
sexualidades que participamos do direito de cada um/a para afirmar essas realidades em
público, livremente, e protegidas/os da violência. De certo modo, a sexualidade não precede o
direito; o exercício da sexualidade é um exercício do direito de exercê-la. É um movimento
social no interior de nossas vidas íntimas que clama por igualdade; não é apenas gênero e
sexualidade que são num certo sentido performativos, mas sua articulação política e as
reinvindicações feitas em seu nome.
Podemos retomar a pergunta: que significa reivindicar direitos quando não se tem
nenhum? Significa reivindicar ao próprio poder que nos é negado, para expor e militar contra
essa negação. Como os movimentos dos sem-teto em Buenos Aires ocupando prédios a fim
de fundamentar as razões de seu clamor por direito à moradia, às vezes não é uma questão de
primeiro ter o poder e só então ser capaz de agir; amiúde é uma questão de agir, e, na ação,
reivindicar o poder de que se precisa. Essa é a performatividade como compreendo, e é
também um modo de agir a partir da e contra a precariedade.
Precariedade é a rubrica que une mulheres, queers, pessoas transgênero, portadoras de
necessidades especiais e sem Estado, mas também as minorias raciais e religiosas: é uma
condição social e econômica, mas não uma identidade (de fato, ela cruza essas categorias e
produz alianças em potencial entre aqueles/as que não reconhecem como estão unidos). E
acredito que testemunhamos isso nas demonstrações do Ocupai Wall Street – a ninguém foi
solicitado um cartão de identidade antes de ganhar acesso a essas manifestações. Se você
aparece como um corpo na rua, ajuda a fazer a reivindicação que emerge do conjunto plural
daqueles corpos, se acumulando e persistindo ali. Claro, isso só pode acontecer se você pode
a-parecer, se as ruas são acessíveis, e se você não está presa/o. Retornaremos a esse problema
quando considerarmos a “liberdade de ajuntamento” no capítulo 5.
A questão de como a performatividade une-se com a precariedade pode ser resumida
nestas questões mais importantes: Como a população sem voz fala e reivindica? Que tipo de
ruptura ocorre nesse campo do poder? E como podem tais populações reivindicar o que
precisam a fim de persistirem? Não é só que precisamos viver para agir, mas que temos que
agir, e agir politicamente, para assegurar as condições da existência. Às vezes as normas de
reconhecimento nos amarra de modo a comprometer nossa capacidade de viver: e se o gênero
que funda as normas necessárias para que sejamos reconhecíveis também nos violentar e
comprometer nossa própria sobrevivência? Então as mesmas categorias que nos prometem a
vida a tira de nós. O ponto não é aceitar tal duplo vínculo, mas empenhar-se por modos de
vida nos quais os atos performativos lutam contra a precariedade, uma luta que pretende um
futuro no qual poderemos viver novas maneiras sociais de existência, às vezes no limiar
crítico do reconhecível e às vezes na ribalta da mídia dominante – mas em todo caso, ou no
espectro intervalar, existe uma ação coletiva sem um sujeito coletivo preestabelecido; ou
melhor, o “nós” é manifestado pelo ajuntamento dos corpos plurais, persistindo, agindo e
reivindicando na esfera pública aquilo por que foram abandonados.
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Talvez haja modalidades de violência que precisamos pensar a fim de entender as


funções da polícia discutidas aqui. Afinal, quem insiste que o gênero deve sempre a-parecer
de um jeito, ou numa versão vestida, mais no que de outro, quem procura criminalizar ou
patologizar aquelas/es que vivem seu gênero ou sexualidade de modos não normativos, estão
agindo como a polícia para a esfera da aparência, pertençam ou não a alguma força policial.
Como sabemos, a força estatal da polícia violenta minorias sexuais e de gênero quando ela
mesma é incapaz de investigar e indiciar o assassino de uma mulher transgênero, ou é incapaz
de prevenir a violência contra membros transgênero da população.
Em termos de Arendt, diríamos que ser excluída/o do espaço da aparência, ser
excluída/o de ser parte da pluralidade que põe em vigor o espaço da aparência, é ser
impedida/o do direito de ter direitos. Ação pública e plural é o exercício do direito de se
posicionar e se incluir, e esse exercício é o meio pelo qual o espaço da aparência é
pressuposto e colocado em funcionamento.
Deixe-me retornar à noção de gênero com a qual comecei, tanto para usar Arendt
quanto para clarificar porque resisto à autora em certos sentidos. Se dizemos que gênero é
exercício da liberdade, não significa que tudo que o constitui é livremente escolhido.
Clamamos apenas que mesmo aquelas dimensões do gênero que parecem bastante “fixas” –
sejam constitutivas ou adquiridas – devem ser possíveis de ser reivindicadas e exercidas de
forma livre. Com isso, tomo certa distância da definição de Arendt. Esse exercício da
liberdade deve ser concedido com o mesmo tratamento de qualquer outro exercício de
liberdade diante da lei. E, politicamente, devemos expandir nossas concepções de igualdade
para incluir essa forma de liberdade personificada. Então, o que significa dizer que a
sexualidade ou gênero é um exercício de liberdade? Para repetir: não estou afirmando que
todos nós escolhemos nosso gênero e sexualidade. Certamente somos formados pela
linguagem e cultura, pela história, pelas lutas sociais de que participamos, por forças
psicológicas e históricas – na interação e pelo modo como as situações biológicas tem suas
próprias história e eficácia. De fato, pode-se sentir que como desejamos (e o quê) são
características bastante fixadas, indeléveis ou irreversíveis do que somos. Mas, independente
se compreendemos nosso gênero ou nossa sexualidade como dada ou escolhida, temos o
direito a reivindicá-lo. Faz diferença se podemos reivindicá-los ou não; quando se exerce o
direito de a-parecer como o gênero que se é – até quando se sente que não se tem escolha –
ainda se exerce certa liberdade, e também se está fazendo algo mais.
Quando alguém livremente exerce o direito de ser quem é, e defende uma categoria
social a fim de descrever seu modo de ser, então faz-se, de fato, da liberdade uma parte de sua
própria categoria social, discursivamente mudando a própria ontologia em questão. Não é
possível separar os gêneros que reivindicamos ser, e as sexualidades com as quais
participamos, do direito de qualquer uma de nós de afirmar livremente essas realidades em
público ou em privado (ou nos vários umbrais que existem entre os dois), isto é, sem medo da
violência. Quando, muito tempo atrás, eu disse que o gênero era performativo, quis dizer que
é certo tipo de manifestação, o que significa que uma pessoa não é primeiro o gênero e só
depois decide como e quando manifestá-lo. A manifestação é parte de sua própria ontologia, é
um meio de repensar o modo ontológico do gênero, e assim importa como, quando e com que
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consequências essas manifestações ocorrem, porque tudo isso muda o próprio gênero que
alguém “é”.
Compreende-se mudar, por exemplo, como atos significativos pelos quais a
designação de gênero é recusada ou revisada. A linguagem exerce um distinto efeito
performativo sobre o corpo no ato de ser nomeado com esse ou aquele gênero, como se faz
quando se refere a alguém, ainda quando a linguagem é rudimentar, dessa ou daquela cor ou
raça ou nacionalidade ou como pobre ou portadora de necessidade especial. Descobrir como
uma pessoa é considerada em algum desses aspectos é resumir num nome que não se conhece
ou escolhe, ser circundado/a e infiltrada/o pelo discurso que age de formas que não se podem
compreender quando se começa a agir. Podemos perguntar: “Eu sou esse nome?” E às vezes
continuaremos a perguntar até que tomemos uma decisão se somos ou não, ou tentarmos
descobrir um nome melhor para a vida que desejamos viver, ou empreendermos uma vida nos
interstícios de todos os nomes.

Como se pensa sobre a força e o efeito desses nomes que somos chamados antes
mesmo de surgirmos na linguagem como seres falantes, antes de qualquer capacidade de ato
de fala próprio? A fala atua sobre nós antes de falarmos, e, se não atuasse, poderíamos falar
de algum modo? Talvez não seja simplesmente uma questão de sequência: a fala continua a
agir sobre nós no momento em que falamos, para acharmos que estamos agindo, quando na
verdade estamos também sendo forçados a agir?
Há muitos anos, Eve Sedgwick ressaltou que os atos de fala desviam de seus
objetivos, com muita frequência produzindo consequências que eram ao mesmo não
intencionais e bastante felizes. Por exemplo, pode-se fazer um voto de casamento, e esse ato
poderia na verdade abrigar uma zona de vida sexual que ocupa um espaço bastante separado
do casamento, geralmente despercebido. Assim, embora se compreenda como objetivo do
casamento organizar a sexualidade em termos monógamos e conjugais, pode-se estabelecer
também uma zona desejada para a sexualidade que não é exposta ao escrutínio público e ao
reconhecimento. Sedgwick ressalta como o ato de fala (“Eu os declaro marido e mulher”)
pode se desviar de seu objetivo aparente, e esse “desvio” é um sentido muito importante da
palavra queer, entendida menos como identidade do que como movimento de pensamento,
linguagem e ação que se move em direções bastante contrárias àquelas explicitamente
reconhecidas. Tanto quanto o reconhecimento parece ser uma precondição da vida habitável,
ele também pode servir para fins de escrutínio, vigilância e normatização, para os quais uma
escapada queer prova-se necessária exatamente a fim de alcançar a habitabilidade fora de seus
termos.
Eu meu trabalho mais antigo, estava interessada em como vários discursos pareciam
criar e circular certos ideais de gênero, gerando-os, mas tomando-os como essências naturais
ou verdades internas que eram subsequentemente expressadas nos ideais. Assim, o efeito de
um discurso – neste caso, um conjunto de ideais de gênero – era amplamente mal interpretado
como causa interna do desejo da pessoa e do seu comportamento, uma realidade fundamental
que se expressava em seus gestos e ações. Essa causa interna ou realidade central não só
substituía a norma social, como efetivamente mascarava e facilitava o funcionamento da
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norma. A fórmula “gênero é performativo” deu vazão a duas interpretações contrárias: a


primeira, que nós radicalmente escolhemos nossos gêneros; a segunda, que somos
inteiramente determinadas/os pelas normas de gênero. Essas respostas extremamente
divergentes significaram que algo não foi bem articulado e apreendido sobre as dimensões
duais de qualquer relato da performatividade. Pois se a linguagem atua sobre nós antes
mesmo de agirmos, e continua a atuar em cada instante que agimos, então temos que pensar
sobre a performatividade de gênero primeiro como “designação de gênero” – todos os modos
em que somos, por assim dizer, chamadas/os por um nome, e generificadas/os antes de
compreender qualquer coisa sobre como as normas de gênero atuam sobre nós e nos molda, e
antes de nossa capacidade de reproduzir essas normas do jeito que decidirmos escolher. A
escolha, de fato, chega tarde nesse processo de performatividade. Depois, seguindo Sedgwick,
é preciso entender como os desvios das normas podem e conseguem ocorrer, sugerindo que
algo de “queer” está operando no coração da performatividade de gênero, uma estranheza
[queerness] que não é muito diferente dos desvios feitos pela iterabilidade na descrição de
Derrida do ato de fala como citacional.
Vamos assumir que a performatividade descreve tanto o processo de ser forçada a agir
e as condições de possibilidade para agir, e que não podemos entender seu funcionamento
sem essas duas dimensões. A norma que atua sobre nós implica que somos suscetíveis a sua
ação, vulneráveis a certos insultos desde o início. E isso registra um nível anterior a qualquer
possibilidade de volição. Uma compreensão da designação de gênero tem tomado esse campo
com receptividade, suscetibilidade e vulnerabilidade involuntárias, um modo de ser exposto à
linguagem antes de toda possibilidade de formar ou manifestar um ato de fala. Normas como
essas requerem e instituem certos padrões de vulnerabilidade corporal sem a qual seu
funcionamento não seria pensável. Pode-se descrever a poderosa força citacional das normas
de gênero como instituídas e aplicadas pelas instituições médicas, legais e psiquiátricas, e
objetar quanto ao efeito que têm na formação e compreensão do gênero em termos
patológicos ou criminais; mais ainda, esse próprio domínio da suscetibilidade, essa condição
de ser afetada/o, é também onde algo de queer pode acontecer, onde a norma será recusada ou
revista, ou onde novas formulações de gênero começarão. Exatamente porque algo inesperado
e involuntário pode acontecer nesse âmbito de “ser afetada/o”, o gênero pode surgir de forma
a quebrar ou desviar dos padrões mecânicos de repetição, ressignificação e até mesmo romper
as amarras citacionais da normatividade de gênero, abrindo espaço para novas formas de vida
generificada.
A performatividade de gênero não só caracteriza o que fazemos, como também o
discurso; e o poder institucional nos afeta, nos restringindo e nos deslocando em relação
àquilo que chamamos de “nossa” ação. Para compreender que os nomes pelos quais somos
chamados são tão importantes para a performatividade quanto os nomes pelos quais nos
chamamos entre si, temos de identificar as convenções que funcionam num vasto leque de
estratégias de designação de gênero. Então poderemos perceber como o ato de fala nos afeta e
nos anima de um jeito personificado – o campo da suscetibilidade e do afeto já é um assunto
de registro corporal de certo tipo. De fato, a personificação implicada por gênero e
performance é dependente das estruturas institucionais e mundos sociais mais amplos. Não
podemos falar sobre um corpo sem conhecer o que o apoia , e qual sua relação com esse apoio
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– ou sua falta. Desse modo, o corpo é menos uma entidade do que um conjunto vivo de
relações; o corpo não pode ser completamente dissociado das condições ambientais e de
infraestrutura da sua vida e ação. Sua ação é sempre condicionada, que é um sentido da
característica histórica do corpo. Mais que isso, a dependência do humano e de outras
criaturas do apoio de uma infraestrutura expõe uma vulnerabilidade específica que temos
quando não somos apoiados, quando essas condições infraestruturais começam a se
decompor, ou quando nos vemos radicalmente sem apoio em condições de precariedade. Agir
em nome desse alicerce, sem esse alicerce, é o paradoxo da ação performativa plural em
condições de precariedade.

NOTA DA TRADUÇÃO:
O estilo de Judith Butler é notório por sua dificuldade, muitas vezes justificada pelos assuntos ou ideias
desenvolvidas pela autora. Além desse fato, seu discurso é construído com uma quantidade enorme de orações
coordenadas e subordinadas, que tornam ainda mais complicada a tarefa de quem se propõe a ler seus textos.
Nesta tradução tentei sempre preservar essa marca da autora, embora em raros casos tenha sido necessário impor
algumas pausas para preservar a legibilidade do texto. O objetivo da tradução é estritamente didático, para uso
em minhas aulas e não tem pretensão de substituir o trabalho de tradutores profissionais; logo, o texto traduzido
é mediado por mim para um público formado por estudantes sem proficiência em inglês. Obviamente essa
mediação em sala de aula tem grande peso para preencher lacunas e deslizes do texto traduzido. Feito essa
advertência, gostaria de explicar algumas decisões tradutórias que, de certa forma, justificam tal mediação:

a) Sempre que “appear” está na locução “right to appear”, escolhi verter por “a-parecer” para explicitar o sentido
de “aparência”. “To appear” pode ser traduzido tanto por “parecer” quanto por “aparecer”; mas o uso de
“appearance”, por outro lado, sempre se verteu por “aparência”. Em todos os casos em que “appear” se apresenta
fora da expressão “right to appear” ele foi traduzido de acordo com o contexto – ora “parecer” ou “aparecer”.
Um outro sentido que se perde na tradução é o de “comparecer”, que também se relaciona com muitas das ideias
do texto original.

b) “Embodiment” sempre foi traduzido por “personificação”, quando substantivo, ou “personificar” (e flexões),
quando verbo. Duas traduções foram consideradas além dessa: “incorporação” e “materialização”.
“Incorporação” tem a vantagem de se referir à ideia de “corpo”, que, assim como no inglês, é morfema desse
léxico; porém, em nossa língua, outros sentidos também são possíveis e com maior frequência de uso do que o
de “dar/tomar corpo” ou de “materializar”. “Materialização” é uma palavra do campo semântico de vários textos
de Butler, especialmente no livro Bodies that matter. Mas, como a outra opção, a frequência no sentido de
“corporificar” é menor. “Corporificar”, a meu ver, seria a tradução mais literal de todas, mas não optei por ela
pelo seguinte motivo: “personificar” leva à ideia de algo que se torna alguém; em outras palavras, conduz à
noção de que houve (ou há) um processo de tornar humano, atribuir predicados típicos do humano, tornar digno
de ser considerado como “pessoa” alguma coisa que geralmente não tem esse tratamento. Esse sentido me parece
estar de acordo com todo o clamor do texto de Butler.

c) A autora usa amiúde o termo “livable”. Escolhi a tradução mais fácil (“habitável”), mas por um raciocínio
mais sinuoso, que logo explicarei. Se fôssemos verter o sentido literal de “livable” chegaríamos a “vivível”, algo
ou alguém que permite ou torna possível viver melhor. Poderíamos também traduzir por “suportável”. Ora, se
algo se torna habitável é porque oferece condições confortáveis e plenas, minimamente, de uma vida melhor.
Uma vida “habitável” seria a que apresenta essas mínimas condições que a tornam “vivível”.

d) Outra palavra muito usada é “claim/to claim”. Traduzi na maioria das vezes por “reivindicação/ reivindicar”.
Seria uma tradução simples, se já não fizesse parte do, digamos, léxico butleriano. Como substantivo, “claim”
pode ser também “apelo”, “clamor” ou até “pretensão”; mas é como índice de um performativo que a prefiro ler:
o “clamor” de alguém é sempre um ato de fala investido de força política que nem sempre está evidente em
“reivindicação”. Porém, este último substantivo esclarece melhor o texto. “Reivindicação”, em nossa língua, traz
à cena mais o político do que “clamor”; mas “clamor” tem mais força de performativo. Conduzo a leitora ou
leitor para o livro Antigone’s claim, de J. Butler.
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e) Em inglês o gênero das palavras não flexiona, com raras exceções. Sempre que possível, apresentei as
desinências duplas do português. Butler usa com bastante frequência orações com o pronome impessoal “one”,
neutro quanto ao gênero, traduzidas como orações de sujeito indeterminado (“Pode-se dizer que...”) ou como “a
pessoa” (“A pessoa pode dizer que...”). De igual modo, também faz parte da retórica da autora (e de textos
filosóficos em geral) o uso de “we” (“nós”) para explicar um argumento (“Nós podemos dizer que...”). Em
alguns desses casos, em português, foi necessário escolher algum substantivo com desinência de gênero nos
complementos.

Por fim, qualquer contribuição sobre a tradução será bem-vinda.

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