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Benson Hugh H Platao
Benson Hugh H Platao
BENSON
e colaboradores
Platão
D837m
Dreyfus, Hubert L.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica; (para além do estruturalismo e da
hermenêutica)/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto
Carreto. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 1995.
Tradução de: Michel Foucault beyond structuralism and hermeneutcs ISBN
85-218-0158-0
l. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Filosofia francesa.
I. Rabirow, Paul. II. Título. II. Série
95-1445 CDD194
CDU 1(44)
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Hugh H. PLATÃO
Benson Benson
CHARLES M. YOUNG
Autores Professor de Filosofia da Universidade de
Claremont. Autor de vários artigos sobre
HUGH H. BENSON (ORG.) Platão e Aristóteles, está atualmente
Professor e Chefe do Departamento de preparando uma monografia sobre virtude e
Filosofia na Universidade de Oklahoma; foi virtudes em Aristóteles, bem como
Samuel Roberts Noble Presidential Professor trabalhando no módulo sobre o livro V da
de 2000 a 2004. E o editor de Ensaios sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles dentro do
Filosofia de Sócrates (1992) e autor de Projeto Archelogos.
Sabedoria Socrático (2000), bem como de
vários artigos sobre a filosofia de Sócrates, CHRISTOPHER JANAWAY
Platão e Aristóteles. Professor de Filosofia na Universidade de
Southampton. E autor de Imagens de
A. A. LONG Excelência: A Crítica de Platão às Artes e
Professor de Línguas Clássicas e Irving Stone publicou largamente na área de estética. Suas
Professor de Literatura na Universidade da outras publicações incluem Simesmo e
Califórnia, Berkeley. Suas obras mais recentes Mundo na Filosofia de Schopenhauer (1989),
incluem Estudos Estóicos (1996) e Epicteto: Schopenhauer: Uma introdução Muito breve
Um Guia Estóico e Socrático à Vida (2002). (2002) e Lendo Estética e Filosofia da Arte
Como editor e colaborador publicou O Guia (Blackwell, 2006).
de Cambridge à Primeira Filosofia Grega
(1999). CHRISTOPHER ROWE
Professor de Grego na Universidade de
C. D. C. REEVE Durham. Obteve um Cargo Professoral de
Professor de Filosofia com distinção Delta Pesquisa Pessoal do Fundo Leverhulme de
Kappa Epsilon na Universidade da Carolina do 1999 a 2004 e foi coeditor da Phronesis
Norte em Chapei Hill. E autor de Confusões de (Leiden) de 1997 a 2003. E autor de
Amor (2005) e Conhecimento Substancial: a comentários a vários diálogos de Platão e
Metafísica de Aristóteles (2000). Seu livro editou, com Malcolm Schofield, A História de
Reis-Filósofos: O Argumento da República de Cambridge do Pensamento Político Grego e
Platão será reimpresso em 2006. Romano (2000). Realizou a tradução de Ética
Nicomaqueia de Aristóteles (que deverá
CHARLES KAHN acompanhar um comentário filosófico por
Professor de Filosofia da Universidade da Sarah Broadie, 2001), editou Novas
Pennsylvania. E autor de Anaxlmenes e as Perspectivas sobre Platão com Julia Annas
Origens da Cosmologia Grega (1960), O Verbo (2002) e, com Terry Penner, escreveu uma
'Ser' em Grego Antigo (1973; reimpresso com monografia sobre o Lísis de Platão (2005).
nova introdução, 2003), A Arte e Pensamento
de Heráclito (1979), Platão e o Diálogo CHRISTOPHER SHIELDS
Socrático (1996) e Pitágoras e os Pitagóricos Membro Tutor da Lady Margaret Hall e Leitor
(2001). Universitário na Universidade de Oxford. E
THOMAS C. BRICKHOUSE
Professor de Filosofia no Lynchburg College e
co-autor (com N. D. Smith) de quatro livros e
numerosos artigos sobre a filosofia de
Sócrates. Escreveu também sobre Platão e
Aristóteles.
WILLIAM J. PRIOR
Professor de Filosofia na Universidade de
Santa Clara. Obteve seu título de doutor na
Universidade do Texas em Austin em 1975. E
autor de Unidade e Desenvolvimento na
Metafísica de Platão (1985) e Virtude e
Conhecimento (1991), editor de Sócrates:
Avaliações Críticas (4 volumes, 1996) e de
numerosos artigos sobre filosofia grega. Está
atualmente trabalhando sobre o problema
socrático e sobre a cosmologia grega.
resposta ............................................... 79
Sumário
A aporia socrática ................................. 81
Autores ....................................................... 4 O paradoxo da escrita ........................... 82
PLATÃO
Ap. Apologia
Chrm. Carmides
Cro. Crátilo
Cri. Críton
Erídano, com vistas a continuar seus II-V do nosso texto atual da República
estudos. Espeusipo de Mirrino, filho – foi publicada antes de 391, quando
de Potone, irmã de Platão, uniu-se ao Ecclesiazusae, a ousada peça de
grupo por volta de 390. O número de Aristófanes, parodiou seus elementos
nomes de matemáticos presentes em centrais (Thesleff 1982: 102-10). A
uma lista originalmente compilada Apologia, uma primeira versão do
por Eudemo na última parte do século Górgias, e o que é agora República I,
quarto a.C. é uma forte indicação que estava provavelmente também entre
o grupo de estudiosos amigos cresceu os diálogos que foram publicados
firmemente nos primeiros anos. É neste primeiro grupo. De tempos em
somente quando Eudoxo de Cnido tempos, Fedro e Lísis foram
chega, no meio dos anos 380, que considerados como também aí
Eudemo reconhece formalmente uma figurando – sobretudo em tradições
Academia. O bosque que iria mais fora da filosofia analítica anglo-
tarde ser a Academia, todavia, tinha americana desde a década de 1950.
um ginásio e amplos espaços abertos Há evidência abundante de revisão
frequentados por jovens intelectuais em vários diálogos, um obstáculo
– e não salas de aula ou anfiteatros insuperável para uma análise
para conferência. computacional definitiva do estilo de
Platão e, portanto, para a certeza
Platão já gozava de celebridade acerca da ordem em que os diálogos
fora de Atenas por volta de 385, foram escritos, exceção feita as
quando foi convidado à corte do últimos (Ledger 1989: 148-51).
tirano de Sicília, Dionísio I, que Contudo, a impressão de três
convidava regularmente atenienses períodos maiores em sua produção,
célebres ao seu palácio real com limites cinzentos, persiste na
fortificado em Ortigia, a península maior parte das tradições de
que se lança no porto de Siracusa. Isto interpretação (Nails, 1995, p. 97-114).
é uma indicação cogente que, ao lado
de seus estudos matemáticos e Platão nos diz que tinha quase 40
filosóficos, Platão tinha começado a anos quando viajou para a Itália, onde
escrever diálogos que eram copiados provavelmente visitou Árquitas em
e difundidos. Há evidência substancial Tarento, e para a Sicília, onde foi
que uma proto-República – que hospedado por Dionísio I, tirano de
compreendia a maior parte dos livros Siracusa. A viagem foi memorável, a
NOTAS
fazer filosofia e pensar coisas por nós somente como um termo útil para
mesmos antes que supor que contrastar com “cético”. Poucos
podemos encontrar o que precisamos leitores modernos tratariam Platão
em outros ou em livros. A última como de fato um “dogmático” por
perspectiva é a visão mais congênere conta das descrições explícitas do
aos naturais sucessores céticos processo filosófico que se encontra
modernos, os intérpretes educados nos diálogos.) O último tipo de leitura
na tradição analítica. é certamente atraente caso, por
exemplo, alguém se concentra nos
Contudo, se olharmos à inteira tipos de ideias que parecem ter sido
história da interpretação de Platão, os defendidas pelos sucessores
diálogos têm mais frequentemente imediatos de Platão na direção da
sido lidos como a fonte de um Academia, Espeusipo e Xenócrates. O
conjunto de teses altamente que poderia ser mais natural do que
significativas e conectadas acerca da supor que estavam seguindo os passos
existência e da natureza humana e de Platão e que suas perspectivas
acerca do mundo em geral, eram na realidade muito similares às
sustentadas com uma firmeza que de Platão, somente expressas de
cético algum poderia aceitar como modo mais explícito e direto, e não
justificada. Ou bem – assim mais escondidas por trás de diálogos
sustentaram seus leitores mais de ficção?
numerosos, na maior parte
“neoplatônicos” – estas teses estão lá Deve-se dizer de saída que a
em Platão para serem lidas, pelo balança de probabilidade parece
intérprete exímio, de cada e de todos estar do lado do tipo de interpretação
os diálogos, ou bem (em uma variante “dogmática” ou “doutrinal” antes que
relativamente recente deste mesmo do lado de sua contraparte “cética”.
modo “dogmático” de interpretação), Há simplesmente muitas ocasiões nos
elas se escondem por trás por diálogos em que mesmo Sócrates não
próprios diálogos, na forma do que somente parece comprometer-se
Aristóteles chamava “doutrinas não com ideias positivas (tanto quanto se
escritas”; para esta última compromete com algo), mas também
perspectiva, deve-se consultar, por não oferece razão para as rejeitar:
exemplo, Kramer, 1959; Szlezák, 1985; acerca da inconfiabilidade das
2004. (“Dogmático” é usado aqui avaliações ordinárias do que é bom e
Gláucon, é difícil ver por que deveria alma “saudável” será obviamente
nos satisfazer e, de fado, muitos preferível a vir a ter uma alma “não
leitores modernos se sentiram saudável”.
ludibriados, assim como se sentiram
ludibriados pela afirmação de Visto que nada disso é exprimido,
Sócrates, algumas linhas antes, sobre é improvável que seja o que convence
que a pessoa cujas partes da alma Gláucon: sua adesão ao argumento
fazem, cada uma, o que incumbe a parece ser muito mais superficial
elas – a definição de justiça, neste (podemos supor, por exemplo, que
contexto, que o caracteriza, para não está atraído pela analogia entre
dizê-la peculiar – muito justiça e saúde, especialmente depois
provavelmente será o menos afeito que a injustiça na alma foi associada
do que qualquer outro a cometer ao desvio de bens, roubo de templos,
coisas normalmente consideradas traição, quebra de palavra, adultério e
injustas. A situação, porém, fica assim por diante). Neste caso, como
inteiramente diferente se lermos o em muitos outros, Platão parece
argumento com base no contexto do operar em níveis diferentes, fazendo
tipo de psicologia socrática corrigida Sócrates oferecer a seus
que se acaba de supor que Platão interlocutores e talvez aos seus
tinha em mente, pois a alma próprios leitores que estão no mesmo
“saudável”, nos termos desta nível que os interlocutores de
explicação da alma humana, será Sócrates, um nível – ou pelo menos
exatamente aquela em que um tipo – de argumento que não é o
mesmo que interessaria a ele ou a
a) a razão vê corretamente que a Sócrates. No caso particular em
coisa justa é a melhor coisa a fazer questão, Sócrates de fato tinha dito
e próximo ao início do livro II que ele
b) não há fatores em contraposição, próprio estava satisfeito com os
na forma das partes irracionais argumentos que já tinha desenvolvido
indisciplinadas, que interfiram com no livro I em favor da justiça, como
esta compreensão correta. resposta a Trasímaco, mas diz que,
obviamente, terá de se esforçar para
E, se o que todos os agentes persuadir Gláucon e seu irmão
querem é o máximo bem (para si Adimanto, que se puseram, no início
próprios), então ter e manter uma do livro II, a retomar a defesa da
separa, a ele e a seu Sócrates, de seu tentar distinguir entre várias coisas
público, e os diálogos tipicamente, se diferentes: Sócrates falando in própria
não exclusivamente, representam persona; Sócrates adotando ou
uma conversa entre duas posições parecendo adotar a posição de uma
bem diferentes: uma conversa ao outra pessoa e Sócrates parecendo
longo da qual o Sócrates de Platão adotar um ponto de vista estrangeiro,
frequentemente parecerá tomar a quando de fato – a se reconstruir o
coloração e as premissas dos outros, argumento – ele mantém o seu ponto
enquanto de fato procura trazê-los à de vista. Acima de tudo, deve-se
sua posição, tanto quanto é possível sempre lembrar que o Sócrates de
trazê-los à sua posição sem uma Platão tem um ponto de vista (ainda
completa mudança de perspectiva. A que sutilmente mude ao longo dos
nova perspectiva envolverá o uso da diálogos, especialmente em relação
mesma linguagem, mas de um modo ao que tem a dizer sobre a ação
bem diferente, de modo que – para humana) e que é sempre provável que
tomar o exemplo mais óbvio – um esteja em jogo – mesmo quando não
conjunto bem diferente de coisas será nos está falando sobre ele. É nosso
denominado “bem” (porque são fracasso em reconhecer isso que
bons, ao passo que o tipo de coisas frequentemente nos leva a supor que
normalmente bem será no máximo há lacunas ou falácias simples
nem bom nem mau). envolvidas em seus argumentos,
quando simplesmente
As variações com que Platão joga compreendemos erradamente as
nesta estratégia são quase tão premissas que está usando (porque
numerosas quanto seus diálogos e esperamos dele que as exprima
não podem ser descritas aqui. Porém, sempre e ele não faz isso).
há certos princípios de leitura que,
aqui se propõem, deverão sempre ser No presente contexto, dada a
mantidos em mente por quem quiser ausência de demonstrações extensas
ler Platão. Primeiro, deve-se sempre sobre a utilidade destas proposições e
estar preparado a seguir o Sócrates de de sua capacidade em iluminar o texto
Platão, ou seus outros interlocutores de Platão, devem ser tomadas como
principais, aonde levam, por mais não mais do que um conjunto de
paradoxais que pareçam seus sugestões para leitura. Ademais, está
resultados. Segundo, deve-se sempre suficientemente claro a partir das
próprias posições, ele fez referência à parte” como fez Platão (Metaph.
às de seus predecessores, inclusive a XIII.4,1078b29-30). Estudiosos
Sócrates. Seu interesse principal ao tomaram esta passagem para marcar
proceder assim era mostrar que, uma distinção crucial entre Platão,
embora pensadores anteriores com sua doutrina das formas
pudessem ter antecipado alguns separadas, e Sócrates. Serviram-se
aspectos de seu pensamento, não o desta distinção para dividir os
levaram à perfeição. Sua tendência de diálogos em estágios de
ver os pensadores anteriores como desenvolvimento: um grupo socrático
prenunciadores de sua própria que não contém a doutrina das
posição gerou questões sobre a formas separadas e um grupo
objetividade de seu relato histórico. platônico posterior que a contém.
Portanto, como no caso de Platão, Todavia, o testemunho de Aristóteles
surge a questão se Aristóteles está gera mais questões do que as
relatando o que Sócrates disse ou o responde. Não é claro o que está
que ele pensava que Sócrates queria atribuindo a Sócrates: uma teoria de
dizer. Finalmente, alguns críticos de universais não separados, como a sua
Aristóteles como uma fonte sobre doutrina (que seria difícil de ser
Sócrates questionaram se havia algo conluiada com a profissão socrática
em seu relato que não se possa traçar de ignorância) ou meramente um
aos diálogos de Platão (Burnet, 1912, interesse metodológico na definição
p. xxiv). universal (ver o capítulo Definições
Platônicas e Formas). O testemunho
Os comentários de Aristóteles de Aristóteles sobre a autoria da
sobre Sócrates se restringem à sua teoria das formas separadas contradiz
filosofia e ele nos fornece várias duas passagens nos diálogos de
informações muito importantes. Vou Platão, nas quais Sócrates reivindica
aqui enfatizar duas. Primeiro, ele ser o autor da teoria: Phd. 100b 1-7 e
confirma o retrato de Platão de Prm. 130b 1-9. Isso levou John Burnet
Sócrates como alguém que e A. E. Taylor, no início do século
professava ignorância (SE 183b6-7). passado, a rejeitar o testemunho de
Segundo, ele nos diz que, embora Aristóteles. A maioria dos estudiosos
Sócrates buscasse definições e ficou do lado de Aristóteles sobre esta
centrasse sua atenção nos universais, questão, mas a tensão entre o retrato
ele não “fez os universais... existirem de Platão de Sócrates e o testemunho
É fácil imaginar, quando se está Isto nos leva à nossa questão final,
participando ou assistindo a um aquela que, mais do que qualquer
exame socrático, que Sócrates deve outra, deu origem ao problema
conhecer as respostas das questões socrático. Por mais que saibamos
que faz. Aqui novamente há acerca da vida de Sócrates, seu
desacordo entre as fontes. O Sócrates caráter, seus interesses e seu método,
de Platão insiste reiteradamente que os estudiosos ficarão insatisfeitos, a
menos que possam determinar quais com os outros, purificando suas almas
– se há alguma – doutrinas filosóficas de modo a estarem prontos para
Sócrates manteve. Aqui novamente, receber o conhecimento (230b-d). A
nossas fontes divergem; mais ainda, descrição que o estrangeiro de Eleia
há conflito internamente à nossa faz é um resumo preciso da atividade
fonte mais significativa, Platão. Nossa de Sócrates tal como descrita nos
incapacidade em responder a esta diálogos primeiros “socráticos”. Nem
questão a respeito da doutrina – vou o estrangeiro de Eleia nem nenhuma
argumentar – deriva desse conflito. outra personagem diz que a pessoa
De nossas fontes, Platão nos oferece assim descrita é Sócrates, mas
o retrato filosoficamente mais rico de dificilmente poderia ser outra.
Sócrates. Não somente nos primeiros Sócrates, neste relato, não é o
diálogos, mas também nas obras proponente de uma doutrina, mas
médias e tardias, Platão retoma alguém que examina as posições dos
sempre e sempre à questão da outros. Se ele tem suas próprias
importância filosófica de Sócrates. crenças, elas não estão em questão,
Três dos retratos platônicos mais pois seu interesse está inteiramente
significativos sobre Sócrates ocorrem ligado à purificação dos outros. Se há
em diálogos geralmente não uma verdade filosófica a ser
considerados pelos estudiosos como aprendida, o Sócrates aqui se limita a
socráticos. preparar o terreno para ela.
adolescentes e ao mesmo tempo sua Sócrates parece ser estéril porque ele
profissão de ignorância, assim como encobre sua fertilidade com uma
casos de ironia (ver o capítulo A máscara de ironia.
Ignorância Socrática). Não tão longe a
ponto de apresentar Sócrates como o Não vejo como resolver este
proponente de doutrinas filosóficas, conflito. Talvez se pudesse
mas diz que ele contém dentro de si argumentar que as duas analogias são
argumentos divinos, de raríssima compatíveis, no sentido em que
sensatez, que são construtivos para o nenhuma nos obriga a atribuir teorias
caráter: conduzem a pessoa ao filosóficas particulares a Sócrates.
verdadeiro bem. “Se você olhar para Tudo o que a analogia com Sileno
dentro dos argumentos de Sócrates”, requer, alguém poderia dizer, é que
diz Alcibíades, “você os verá repletos Sócrates possua argumentos que
de imagens de virtude” e o mesmo é podem ser usados para testar ideias
verdade se você olhar para dentro do filosóficas avançadas por outros.
próprio Sócrates. Assim, a riqueza destes argumentos
reside unicamente no poder que têm
A analogia com a parteira e a com de levar o interlocutor à verdade.
Sileno são poderosas e convincentes, Infelizmente, penso que esta
além de serem encontradas em nossa tentativa malogra. Ela ignora o fato
fonte de maior autoridade sobre o que a analogia com a parteira deve
Sócrates histórico. Porém, não tomar a profissão de Sócrates de
poderiam ser mais inconciliáveis. Uma ignorância como sincera, ao passo que
nos diz que Sócrates é infértil, que faz a analogia com Sileno exige que a
emergir nos outros verdades que ele tomemos como irônica. Também
não possui. A outra nos diz que ele requer o fato que, de acordo com
está repleto de argumentos divinos e Alcibíades, Sócrates, assim como suas
imagens de virtude de um modo que ideias e argumentos, está repleto de
é único entre os homens. Cada imagens divinas de virtude.
imagem explica a característica
central da outra como um tipo de Estamos diante de um “problema
ilusão: de acordo com a analogia com socrático” ao final, porque Platão nos
a parteira, Sócrates parece ser fértil legou duas imagens irreconciliáveis da
porque faz surgir rebentos nos outros; filosofia de Sócrates, imagens que
de acordo com a analogia com Sileno, nossas fontes não nos permitem
Parte I
O MÉTODO
PLATÔNICO E A
FORMA DE DIÁLOGO
você fosse conversar comigo, você como Sócrates. O que, então, fazer
pensaria que seria vantajoso falar mais com a rara referência ao próprio
alto para mim do que para os outros.
De mesmo modo, já que você tombou Platão, no início, quando Fédon,
com uma pessoa que tem pouca recontando a história ao seu amigo
memória, você terá de dar respostas Equecrates, lista os que estavam
curtas se eu devo seguir seu raciocínio. presentes? Muitos socráticos
(Prt. 334c8-d5; tradução de Lombardo eminentes são nomeados – então
e Bell)
Fédon diz: “mas Platão, penso, estava
doente” (59bl0). Ficamos
A observação de Sócrates vem ao
boquiabertos: se Platão estava
final de uma série de pontos acerca do
doente, como devemos tomar este
método e do procedimento, mas sua
relato do que ocorreu? Mas isso é
natureza extraordinária não nos deve
uma história premeditada, uma
passar despercebida: como poderia
elaboração, mesmo uma ficção, não
Sócrates, que pode nos dar um relato
um conjunto de minutas do encontro
aparentemente verbatim do inteiro
na prisão. E isso torna problemática a
encontro, alegar que tem pouca
relação de Platão com Sócrates se,
memória? Há por certo ironia aqui –
diferentemente dos outros socráticos,
mas por quê? A má concatenação
ele não escutou os argumentos finais
entre o relato de Sócrates sobre ele
de seu mestre. É a relação mais
próprio e sua habilidade em narrar a
complexa, menos direta, menos fácil a
história toda chama a atenção a como
ler do que a reprodução de doutrinas
o diálogo está sendo armado: por
escutadas da boca de seu mestre?
quê?
Uma outra característica do drama do
Fédon reitera a questão. O “quadro”
Outros diálogos são
do diálogo é o encontro direto entre
autoconscientes de modo similar.
Fédon e Equecrates, para quem Fédon
Pode-se tomar o Fédon como uma
narra os eventos na prisão. Porém,
tragédia, um relato emocionante do
por duas vezes o quadro interfere na
último dia de Sócrates, de seus
narração. Na primeira vez (88c8-
argumentos sobre a imortalidade da
89a9), o quadro reflete sobre o
alma e da devastação de seus amigos
argumento encartado, quando
no momento de sua morte. O diálogo
Equecrates comenta que ficou
tem um ar pietista e isso de novo pode
convencido por uma objeção à tese de
sugerir que Platão vê a si mesmo
Sócrates que a alma é imortal. Na
disso, ele só pode ser exemplificado cética, supõe-se também que isso seja
no malogro repetido das passível de generalização: a atividade
investigações filosóficas serem da filosofia está constantemente em
conclusivas. E isso pode ser evolução; inconclusiva, talvez, mas
generalizado: não somente os mesmo assim “a vida que não passa
diálogos “socráticos”, mas também por exame não vale a pena ser vivida”.
outros diálogos também fracassam Isso, assim como a interpretação
em produzir conclusões que sejam cética, repousa sua generalidade no
absolutas ou decisivas. Devemos fato mesmo que os diálogos são
notar – tal interpretação argumenta – multiformes, diferentes, com focos
que cada diálogo, não importa quão que discrepam enormemente uns dos
diferente pode ser um do outro, outros. E trata as questões filosóficas
termina com uma nota de indecisão. discutidas no interior dos diálogos
O Teeteto, por exemplo, depois de como de um modo ou outro
uma investigação exaustiva, malogra secundárias em relação à natureza
em explicar o que é o conhecimento; aberta do fim do processo de as
o Filebo se conclui com o relato discutir. A forma de diálogo, nesta
inacabado da melhor vida; mesmo a interpretação, está no coração da
República assinala seu fracasso em explicação platônica da filosofia.
produzir uma demonstração apelando
ao final ao mito. A forma de diálogo, O paradoxo da escrita
segundo esta interpretação, dá-nos
testemunho de um Platão cético. A natureza aberta do fim nos dá uma
explicação, ademais, de como os
De outro lado, talvez o que é diálogos escritos devem ser lidos. Os
importante seja a própria diálogos, como vimos, não
investigação. Mesmo se o ceticismo reivindicam estar exprimindo as
extremo não for o ponto da forma de opiniões de Platão; ao contrário,
diálogo – afinal de contas, nem tudo exprimem as opiniões das
que é dito ou defendido em um personagens retratadas por Platão. O
diálogo é refutado ou conduzido a um que o leitor deve fazer com tudo isso?
impasse –, a prevalência da aporia A posição do leitor, na verdade, pode
pode sugerir que cada diálogo é de ficar profundamente problemática,
um modo ou de outro “de final não menos porque o que ele lê está
aberto”. Assim como a explicação fixado de modo intratável:
Você poderia pensar que [as palavras provocar o leitor a pensar por si
escritas] estão falando como se mesmo. Todas as suas características
tivessem alguma compreensão, mas,
se você fez uma questão sobre algo peculiares e incongruências
que foi dito porque você quer ostensivas, então, devem ser
aprender mais, elas continuam a explicadas como armas do arsenal de
significar sempre exatamente a Platão para forçar a reflexão por parte
mesma coisa. Uma vez escrito, todo da pessoa que parece estar
discurso vai por todos os lugares,
atingindo indiscriminadamente os que
completamente fora da ação do
têm entendimento, não menos do que diálogo: aquele que o lê. Se a filosofia
os que não têm nenhum contato com exige discussão e diálogo, a filosofia
o entendimento, e não sabe a quem escrita pode afinal ligar-se a isso de
falar e a quem não falar. E quando é modo indireto – por meio da forma de
criticado e atacado injustamente,
sempre precisa do apoio de seu
diálogo.
gerador: ele sozinho não pode nem
defender-se nem vir em seu próprio Isto explica, então, por que Platão
apoio. (Phdr. 275d7-e5, tradução de não aparece nos diálogos: é para que
Nehamas e Woodruff) possa ganhar distância do que dizem
suas personagens e assim provocar de
As observações de Sócrates são melhor modo um diálogo com seu
paradoxais, obviamente, já que o leitor. Pode até explicar, como foi
ataque à palavra escrita é ele próprio sugerido, aquelas obras nas quais a
escrito em palavras. Porém, muitos forma de diálogo parece se ter
pensaram que o embaraço a respeito tornado uma formalidade vazia.
da escrita presta apoio às estratégias Platão pode fazer com que um diálogo
do autor Platão, à natureza proponha uma tese, mesmo uma tese
enigmática dos argumentos, aos que tem plausibilidade, quando o
encontros e às conclusões que Platão diálogo não ocorre mais (a explicação
apresenta, pois os diálogos, por mais da falsidade no Sofista, por exemplo),
complexos que sejam, exigem sem se comprometer absolutamente
reiteradamente uma interpretação; com sua verdade, sem declarar em
esta forma (esta forma somente?) sua própria voz que sabe que isso é
pode ser suficientemente flexível de verdadeiro. Esta distância que Platão
modo a proporcionar um embate toma das teses defendidas por suas
dialético com seus leitores. Assim, os personagens (lembre-se: no Fédon,
diálogos são inconclusos de modo a Platão estava doente) se ajusta bem
é melhor que não seja uma linha Dionisodoro não percebem ao longo
meramente cronológica: o Filebo, de todo o Eutidemo a insinuação de
comumente considerado como tendo Sócrates de que eles estão vazios
sido escrito na parte final da vida de daquilo a que deveríamos aspirar
Platão, é tão eticamente prenhe conhecer. Estes momentos irônicos
quanto se pode querer. não são diretamente representativos
porque eles operam ao
Segundo: esta ênfase no drama contrabalançar o que é representado
talvez não explique a relação entre o com aquilo que o leitor entende o que
quadro e o encartado. Pense na significa. Eles requerem interpretação
prática da ironia (socrática ou para além dos limites do próprio
platônica). Quando Sócrates é – ou é diálogo e fazem isso por meio do
acusado de ser – irônico, algo acerca quadro dramático.
do tom do que é dito ou alguma coisa
estranha no contexto indica que de Outro ponto de detalhe amplia o
algum modo Sócrates está escopo de um diálogo para além dos
escondendo de seu companheiro o confins da conversa representada: as
que realmente pensa (o que quer que conexões (frequentemente
se queira dizer ao afirmar que esta profundas e complexas) que são
personagem ficcional “realmente tecidas entre um diálogo e outro. Em
pensa” alguma coisa). Considere, por Phd. 72e3-73a3, por exemplo, Cebes
exemplo, este engano faz alusão à demonstração da
desconcertante do jovem Carmides reminiscência no Mênon (82b9-86b4).
levando-o a pensar que possui uma O cruzamento de referências serve
folha mágica que o livrará de sua dor não meramente como uma nota de
de cabeça: o leitor, mas não rodapé, mas a um objetivo filosófico
Carmides, pode pensar que talvez mais profundo. Com efeito, Sócrates
curar a dor de cabeça seja trivial em argumenta em seguida em favor da
comparação com a aquisição da teoria da reminiscência por meio de
virtude. Ou lembre-se das ocasiões uma discussão do fenômeno
quando Sócrates exprime surpresa cotidiano do ato de lembrar. Porém, o
extravagante quando alguém detalhamento deste fenômeno é
reivindica ter um saber especializado. imediato ao leitor somente se ele
Eutifro, por exemplo, fica surdo às lembrar a passagem do Mênon que
tiradas de Sócrates; Eutidemo e nos é pedido ter em mente e assim o
explicar, mas pelo menos não caíam ampará-las, como Grg. 464b2-465a7
em contradições. nos quer fazer acreditar, por exemplo,
acerca da alegação que, enquanto
Que tipo de explicação Sócrates doces são bons com leite e sonhos
pensa que um artesão pode dar e um com café, nenhum é gostoso com
poeta não pode? Seguindo uma pista uísque escocês. Ou pode ser que as
de Grg. 464b2- 465a7, podemos teses dos poetas podem ser
especular com plausibilidade que um adequadamente explicadas, mas não
médico do século quinto, por por seus proponentes, como um sábio
exemplo, tinha uma teoria acerca da idiota pode acreditar que
saúde humana que lhe fornecia 761.838.257.287 x 193.707.721 = 264 –
recursos conceituas para formular 1 sem ser capaz de realizar os cálculos
suas explicações. Poderia pesar, por necessários.
exemplo, que os corpos humanos são
feitos de terra, ar, fogo e água; que os A sugestão que isso é de fato a
seres humanos têm saúde quando o diferença que Sócrates vê entre os
calor, o frio, a umidade e a secura poetas e os artesãos se confirma pelo
associados a estes elementos estão fato que pensa que se deve dar uma
apropriadamente balanceados e explicação alternativa, em termos de
ficam doentes quando não há o talento natural ou inspiração, para a
balanceamento. Assim: “meu habilidade dos poetas em dizer
paciente está febril; isso deve “muitas coisas belas” em suas
significar que sofre de um excesso de composições. Esta é a prática padrão
calor; sangrá-lo retirará o excesso de de Sócrates nos casos em que alguém
calor e restaurará sua saúde”. A tem aparentemente o controle sobre
diferença entre os poetas e os algum assunto, mas não pode
artesãos, segundo esta sugestão, explicar-se adequadamente. Assim,
reside no fato que os artesãos no Górgias (464b2- 465a7), Sócrates
dispõem de uma teoria de amparo, ao alega que a arte de fazer doces não
passo que os poetas não. Por que passa pelo teste de explicação, visto
exatamente os poetas não dispõem que “não tem nenhum discurso sobre
de uma teoria de amparo não fica a natureza do que aplica pelo que
esclarecido. Pode ser que as “muitas aplica, de modo que é incapaz de
coisas belas” que os poetas dizem não exprimir a causa de cada coisa [que
são do tipo a terem uma teoria para faz]” (465a3-5, trad. Zeyl). Porém,
são inconsistentes (ver Kraut, 1984, p. (C)a (I) são equivalentes entre si e ao
285-8). Mais uma vez, Sócrates sabe supor que (I) e (B) acarretam que a
que pelo menos uma de (A), (B) ou (C) temperança não é calma, sem dar a
deve ser falsa, mas não tem razão Carmides, ou a nós, nenhuma razão
para abandonar nenhuma delas em para aceitar estas suposições que não
particular. são nem um pouco triviais. E, como
muitos já observaram há anos, o ar-
SÓCRATES ESTÁ TRAPACEANDO? gumento de Sócrates se aproveita da
ideia que o contrário de calmo é
Sócrates sustenta conjuntos de rápido, e não, como certamente
crenças que ele próprio sabe que não pretendia Carmides, tumultuoso,
podem ser elas todas verdadeiras. excessivo ou algo similar. É difícil
Porém, ao conduzir o elenchus, ele imaginar que Platão não estava
insiste continuamente para que o consciente de ambos os pontos, é
interlocutor largue a suposição que difícil imaginar que ele não está
ele estava questionando assim que representando Sócrates como
aparecer que a suposição é trapaceando.
inconsistente com outras coisas nas
quais o interlocutor acredita. É isso Porém, por vezes o que é difícil
correto? É isso trapacear, para pôr a de acreditar é verdadeiro; permitam-
questão como veio a ser posta depois me tomar um par de exemplos do Íon
da publicação de Vlastos, 1991, que, penso, são mais claros. Neste
especialmente cAp. 5, “Sócrates diálogo, o rapsodo Íon se atribui duas
trapaceia?” Se trapacear consiste em competências interligadas, uma
oferecer argumentos que se performativa e uma crítica. Ele alega,
reconhece ter uma base questionável primeiro, que é capaz de recitar os
ou se consiste em encorajar seus poemas de Homero com força,
interlocutores a abandonar as sentimento e efeito (530d4-5; cf.
suposições quando não se pode exigir 535b2-3). E alega, em segundo lugar,
tal coisa, parece-me claro que que é capaz de compreender a
Sócrates de fato trapaceia. Ele substância do pensamento de
provavelmente trapaceou no Homero (530c5) e de oferecer
argumento que acabamos de discutir observações críticas pertinentes a
do Carmides, ao supor que as este pensamento (530dl). Íon
formulações de também aceita a sugestão de
essas palavras com estas, tiradas da Porém, creio que, enquanto parte da
explicação que Aristóteles dá na agenda de Platão nos diálogos
Poética de sua tese que a poesia é socráticos consiste em explorar e
mais filosófica e séria do que a desenvolver várias ideias acerca da
história, já que está relacionada a explicação ou causalidade e abstração
universais, não a particulares: que impulsionam a dialética, ele evita,
com apenas algumas exceções (p. ex.,
“entendo por afirmação universal Euthphr. 5dl-5), dar uma
uma que dirá que coisa provável ou apresentação oficial destas ideias até
necessariamente fará um tipo de o Fédon. Por exemplo, em Chrm.
homem, o que é o alvo da poesia, 159b5- 160d3, como vimos, Sócrates
embora ela afixe nomes próprios aos supõe que:
seus personagens” (Poet. 9, 1451b8-
10; trad. Bywater ligeiramente I. Coisas rápidas não são menos
modificada). É a mesma ideia. Platão belas ou admiráveis do que coisas
retoma aos poetas em outro lugar, na calmas (160d2-3) e
República. Porém, ele reserva suas A. A temperança é uma das coisas
armas pesadas na “antiga batalha belas ou admiráveis (159cl).
entre poesia e filosofia” para o livro X, Implicam a falsidade da definição
depois de ter desenvolvido nos livros original de temperança de
IV e livros VIII-IX uma teoria do caráter Carmides:
humano que a torna província da B. Temperança é calma (159b5-6).
filosofia, não da poesia (ver o capítulo
Platão e as Artes). Ele não tem esta Por quê? (B) trata da temperança
teoria no Íon ou não pode, por alguma entendida como um estado do
razão, desenvolvê-la lá. Assim, a razão caráter: é pensada como algo que está
por que a Íon não é permitido dizer o (ou pode estar) em Carmides (veja,
que quer e reivindicar conhecimento por exemplo, 158e6- 159al). É claro a
do caráter humano é que Platão não partir dos argumentos de apoio a (I),
está em condições, no Íon, de em contraste, que é acerca de ações
responder a ele. rápidas e calmas. O que as conecta?
Se (I) e (B) devem ser de algum modo
Quanto a (a), (b) e (c), posso relevantes para a verdade de (A),
somente fazer sugestões (algumas temos de ler (I) como dizendo algo
das quais baseado em Johnson, 1977). acerca das ações que a temperança
e (C) como dizendo que é a coragem para isso teremos de dedicar muito
nas ações corajosas que toma estas mais estudo do que até agora fizemos
ações belas ou admiráveis, e a à dialética dos diálogos socráticos.
perseverança em ações (Passos decisivos nesta direção são
perseverantes sábias é o que as toma feitos por Dancy, 2004. Ver também o
belas ou admiráveis, assim como capítulo Definições Platônicas e
lemos que “o amor é cego” (com Formas.)
desculpas a Jessica no Mercador de
Veneza II virtude 36-9) como dizendo CONCLUSÕES
que o amor nas pessoas que amam os
toma cegos aos erros daqueles que Do modo como descrevi o elenchus
eles amam. Se lermos (G) e (C) deste socrático, ele se vale de um exame
modo e se somos ligados à ideia que cruzado para extrair contradições dos
interlocutores no intuito de expor ao
H. Características similares devem conhecimento suas teses falsas.
ser explicadas por referência a
fatores explicativos similares (cf. Sócrates tinha interesse em expor
PhD. 97a2-b3), estaremos estas teses porque acreditava que
inclinados a concluir, com falsas convicções acerca de questões
Sócrates, que: importantes da vida humana
I. Perseverança sábia é coragem bloqueavam o caminho da felicidade
(192dl0- 11). das pessoas que tinham estas
convicções e que suas falsas
E se notássemos que ações convicções deviam ser removidas se
justas, ações temperantes, etc. são devessem ter chance à felicidade.
também belas ou admiráveis, nos Porém, a agenda dos diálogos
encontraríamos, dado socráticos de Platão vai bem além da
agenda crítica de Sócrates. Alguns de
(H), já a bom caminho da unidade das seus itens são: fazer homenagem a
virtudes na ação. Sócrates e compreender tanto o
homem quanto suas posições
Creio, então, que pode bem ser positivas; distinguir Sócrates de
possível encontrar racionalidade nas outros com os quais poderia ser
inferências nas passagens (a), (b) e (c) confundido (sofistas, erísticos, Crítias,
listadas no início desta seção. Porém, etc.); examinar as credenciais de
universais que não são alguém faz, direi que é pio, e o que
suficientemente universais, como quer que não seja tal, direi que não [é]
pio.
observa Sócrates. O que ele diz é (6d6-
8):
Aqui temos não somente
... Porém, Eutifro, você diria que Substitutividade, mas também o
muitas outras coisas são também pias. Requerimento de
Eutifro: Pois elas também são [pias]. Explicação (que “forma ela própria
pela qual todas as coisas pias são
Até aqui, tudo o que temos é pias”), bem como o Requerimento de
Substitutividade, em particular (Nec): Paradigma (“servindo-me dela como
há outras coisas pias além de um paradigma, o que quer que seja
processar malfeitores, de sorte que tal como ele é... direi que é pio, e o
não nos dá uma condição necessária que quer que não seja tal, direi que
para a piedade. não [é] pio”). Porém, tudo o que
Sócrates requer no argumento contra
O que Sócrates diz a seguir vai (D^io) é (Nec); ele não faz uso algum
além disso (6d9-e7): desses requerimentos adicionais. Fará
isso mais tarde, e eles terão um
Sócrates: Então, você lembra que eu emprego separado (ver a seguir).
não lhe disse para ensinar-me uma ou
duas das muitas coisas pias, mas
Em outros diálogos, o
aquela forma ela própria pela qual
todas as coisas pias são pias? Você, Requerimento de Substitutividade é
pois, disse, eu penso, que é graças a empregado sem menção aos outros.
uma ideia [= forma: veja No Laques, a primeira tentativa
anteriormente] que as coisas ímpias (190e5-6) de definir a coragem como
são ímpias e as coisas pias, pias; ou
“fincando o pé” fracassa porque há
você não lembra?
ações corajosas que não envolvem
Eutifro: Lembro-me, de fato. “fincar o pé”, mas, de fato, recuar
(191a5-c6); Sócrates quer, diz ele, “o
Sócrates: Então, ensina-me esta ideia, que é o mesmo em todos os casos”
o que é, de sorte que, olhando para ela (191el0-ll). Aqui o definiens não logra
e servindo-me dela como um a Substitutividade ao malograr em dar
paradigma, o que quer que seja tal uma condição necessária. A segunda
como ele é entre as coisas que você ou
7b2-4, d9- e4) que os deuses belo ou qualquer outra coisa não
discordam entre si, e alguns aprovam relativamente, ao passo que qualquer
(o “amor) que outros desaprovam. ou todos os casos corriqueiros das
Sócrates generaliza isso, legitima- coisas pias e belas são meramente
mente ou não, na tese que as mesmas relativamente pias, este definiens não
coisas são todas amadas ou odiadas poderá ser substituído por “pio” ou
pelos deuses e conclui que as mesmas “belo” nos casos corriqueiros, pois
coisas são todas pias ou ímpias (7el0- este definiens não nos fornece um
8a9). Precisamos da Substitutividade termo coextensivo ao termo definido,
para isso, mas o que realmente solapa mas sim um termo que designa uma
(D2PÍ0) é isto (8al0-12): única instância do termo definido,
ainda que uma instância perfeita.
Sócrates: Você, então, não respondeu
ao que perguntei, surpreendente Uma das características do
amigo, pois não estava perguntando
por aquilo que é, enquanto é a mesma
discurso de Sócrates que tende a
[coisa], de fato pio e ímpio; porém, ao apoiar o Requerimento de Paradigma
que parece, o que é amado pelos é seu hábito não invariável, mas
deuses é também odiado pelos comum de se referir ao que quer
deuses. definir usando expressões nominais
genericamente abstratas como “o
A crítica não é que há uma pio” ou “o belo” no lugar de nomes
contradição na conclusão que as abstratos como “piedade” ou
mesmas coisas são pias e ímpias; “beleza”. (Por exemplo, o nome
antes, é que (D2pio) fracassa quanto abstrato “beleza” ocorre somente
ao Requerimento de Paradigma: o uma ou duas vezes no Hípias Maior
que é amado pelos deuses não é em 292d3 e provavelmente em uma
consistentemente pio, isto é, pio e citação de Heráclito em 289b5; em
sob nenhuma circunstância ímpio. todos os outros lugares neste diálogo,
ele emprega “o belo”.) Isto toma a
O Requerimento de Paradigma é
tese que o belo é belo parecer uma
problemático: não é em nada óbvio
tautologia; a tese que o belo é feio,
que uma definição possa ao mesmo
uma contradição. Assim, a
tempo satisfazer a ele e à
“Autopredicação” (esta expressão
Substitutividade. Claramente, se um
remonta a Vlastos, 1954) (ver
definiens nos fornece algo que é pio, também o capítulo Problemas para as
aceita por interlocutores que nunca observa que uma moça bela, ainda
refletiram sobre estas questões, que bela quando comparada a um
como (novamente) Protágoras no macaco, é feia quando comparada a
Protágoras (332b6-e2) ou, em um deus (289al-b7), e reformula isso
contextos de busca de definição, na seguinte objeção (289c3-d5,
Carmides e Hípias. omitindo algumas complicações):
papel. (Não é que não haja mais conhecimento é a única coisa boa que
pedidos de definição, mas é existe (87c5-89a7) (ver também o
abandonada a sugestão que, na capítulo O Método da Dialética de
ausência de uma definição, nada se Platão).
pode dizer a respeito.) E com isso é
abandonada a outra novidade a que Porém, ele então solapa seu
devemos prestar atenção: o próprio argumento ao sugerir que,
abandono da Suposição além do conhecimento, a crença
Intelectualista traz consigo um verdadeira também seria uma boa
método de lidar com questões não coisa (96d7-97cl0). Isso é atenuado
definicio- nais como a de saber se a pela sugestão ulterior que a crença
excelência pode ser ensinada, o verdadeira não é tão boa como o
“Método da Hipótese”, do qual conhecimento (97cll-98b6), mas,
Sócrates fornece agora uma descrição então, isso é, por sua vez, objeto de
sumária e bem obscura (86el-87b2). O retratação parcial (98b7-d3) e o
método certamente tem suas raízes diálogo termina, ao modo socrático,
na matemática, no Método de Análise sem conclusão.
da geometria empregado pelos
matemáticos gregos (para uma A Doutrina da Reminiscência, a
exposição, ver Menn, 2002). O retirada da Suposição Intelectualista e
método geométrico envolve iniciar o Método da Hipótese dificilmente
com uma questão cuja resposta é de são socráticos, caso tomarmos os
início desconhecida e funciona para diálogos discutidos anteriormente
trás, em direção às suposições que (se como a pedra de toque do
tudo funcionar corretamente) por fim socratismo. Assim, parece bem
são derivadas de coisas conhecidas, plausível que temos, no Mênon,
como os axiomas geométricos. Platão jogando sua cartada. Ele está,
Sócrates quer aplicar isso à questão de ao que parece, preparado agora a
Mênon sobre a excelência admitir que podemos usar termos
perguntando que suposições seriam sem uma definição explícita e que,
suficientes para nos dar a conclusão quando as definições são exigidas,
que a excelência pode ser ensinada nosso modo de as obter é devido à
(87b2- c3). Ele volta à suposição que a nossa apreensão pré-natal do que
excelência é um tipo de conhecimento deve ser definido.
e, daí, à suposição que o
que não esperamos tal complemento contraste entre ele e “o belo” a este
com “isto é belo”. Talvez, porém, as respeito. E talvez isso tenha a ver com
coisas não tenham soado assim para a familiaridade prévia com o
Platão, pois, como já vimos em pitagórico Filolao (ver 61d6-e4); os
conexão com o Hípias Maior, teria pitagóricos se ocupavam muito da
exigido complementar “isto é belo” noção de igualdade. (Isso é,
com uma cláusula explicando obviamente, uma conjetura, mas não
relativamente a que era belo, em que é uma conjetura, por outro lado, o
contexto, aos olhos de quem e assim contraste entre o conhecimento que
por diante. Dito sumariamente: Símias tem da definição de “igual” e
tomamos “igual” como um termo de sua falta de conhecimento para a
relação; Platão tomou “belo” como definição de “belo”.)
também sendo um termo de relação.
De qualquer modo, em 74b4-c6,
Por que passar a “igual”? Por que tendo gerado em Símias a pretensão
não manter sempre “belo”? Aqui de saber o que é o igual, Sócrates
devemos prestar atenção ao que diz continua argumentando que o igual é
Símias. Em 74b2-3, ele diz que sabe o distinto de quaisquer pedaços de pau
que é igual; isso deve significar que corriqueiros, pedras ou o que quer
está em posição de dar uma definição que seja que nos leva à reminiscência
do termo (definição que, dele. O argumento é, para exprimi-lo
lamentavelmente, ele não formula; esquematicamente (os detalhes são
para uma possibilidade, ver Prm. bem complexos), o que foi dado
161d). Em 76b5-c5, ele dá expressão acima como um exemplo do
ao temor que, uma vez Sócrates Argumento da Relatividade, mas com
morto, não haverá mais ninguém que “igual” substituindo “belo”:
possa dar definições de termos como
“o belo” (mencionado junto com (ARE) Há algo como o Igual.
outros casos em 75cl0-d4). Sócrates,
como todos sabemos, vai morrer ao (ARC) Uma [coisa] igual corriqueira é
final do Fédon, mas Símias não. Assim, também desigual.
deve ser que ele não sabe o que
(digamos) é o belo e não pode defini- (ARIgual) O Igual nunca é desigual.
lo. E, então, deve ser que a razão para
pegar “o igual” é precisamente o .•. (ARC) O Igual não é o mesmo que
8), algo vem a ser dois porque um exame mais aprofundado, ainda
participa da Forma da Díade (101cl-6) que as tomemos por convincentes. E
se você as analisar adequadamente,
e algo vem a ser grande porque seguirá, penso, o argumento tão longe
participa da Forma da Grandeza quanto o pode um homem e, se a con-
(100e5- 101a5). A partir deste clusão for clara, você não mais
princípio causai “seguro” (novamente inquirirá. (107b5-9).
presumivelmente com várias
premissas subsidiárias), Sócrates Esta última passagem torna
infere um princípio causai “mais sutil”, explícito que Sócrates supõe que está
de acordo com o qual uma coisa vem pondo em prática o tempo todo o
a ser o que é, digamos F, por possuir método que propõe. Ele pôs o foco, é
algo que implica F-dade. Por exemplo, verdade, no primeiro dos dois
três vem a ser ímpar por possuir processos que caracterizam o
Unidade que implica Imparidade, ou o método: o processo de identificar e
corpo vem a ser quente por possuir obter as consequências das hipóteses
fogo que implica Calor (105b5-c6). para a questão analisada, neste caso a
Neste ponto, Sócrates inicia seu imortalidade da alma. Porém, ele aqui
argumento final em prol da sustenta que o método não estará
imortalidade da alma, que pode ser completo até que se volte ao segundo
resumido como segue. O princípio processo de verificar e confirmar as
causai “mais sutil” implica que, se a hipóteses empregadas. Assim, aqui no
presença de uma coisa torna x F, Fédon, para o argumento final crucial
então esta coisa não pode ser não F. em prol da imortalidade da alma,
Por exemplo, se a presença de fogo na Platão parece estar apresentando
água torna a água quente, então o Sócrates pondo em prática o método
fogo não pode ser não quente. Dado que propõe, assim como no Mênon.
que a presença da alma torna o corpo
vivo, se segue que a alma não pode Obviamente, dito isso, o
ser não viva. Ela não pode morrer. Ela esquema deste argumento final em
é imortal. Depois de reconhecer que a prol da imortalidade da alma ignora
“hesitação privada” que permanece a um variegado de dificuldades em
Símias é aceitável, Sócrates conclui o torno do argumento e da
argumento do seguinte modo: interpretação do método proposto.
Por exemplo, talvez se objetasse que
Nossas primeiras hipóteses requerem não se pode derivar consequências
método que faz com que Sócrates entender um “primeiro princípio não
proponha e empregue nos livros hipotético de tudo” – algo diante do
centrais da República. O malogro de qual ele parece simplesmente fora de
Platão em apresentar Sócrates pondo propósito. Por agora, todavia,
em prática um método que confirme podemos concluir que um exame
suas hipóteses ao ponto do “primeiro completo do método da dialética em
princípio não hipotético de tudo” Platão não deve confinar-se às
justifica a condição de sucedâneo da afirmações explícitas de Sócrates a
prática de Sócrates nestes diálogos. O respeito do método nos diálogos
método se encontra em algum lugar centrais de Platão. Deve também
entre o método dianoético e o olhar para a prática de Sócrates nestes
dialético. Ele fracassa em confirmar diálogos. Para voltar à citação de
suas hipóteses ao ponto do “primeiro Robinson com a qual começamos este
princípio não hipotético de tudo”. capítulo, no Mênon, no Fédon e na
Porém, reconhece a necessidade de República Platão dá proeminência ao
fazer isso. Por que Platão prefere não método bem como à metodologia.
apresentar Sócrates confirmando
suas hipóteses até tal princípio, dado NOTA
que reconhece que precisa fazer isso,
exige uma resposta. Para dar início a As traduções de Platão foram tomadas de J.
M. Cooper (ed.) Plato: Complete Works
tal resposta é preciso um estudo
(Indianápolis: Hackett, 1997).
detalhado da explicação de Platão da
Forma do Bem, inclusive de por que REFERÊNCIAS E LEITURA
prefere discuti-la por meio de uma COMPLEMENTAR
analogia nos livros centrais da
República (ver o capítulo O Conceito Annas, J. (1981). An Introduction to Plato’s
de Bem em Platão). Também requer Republic. Oxford: Clarendon Press.
distinguir entre praticar filosofia como Bedu-Addo, J. D. (1984). Recollecdon and the
um método de descoberta filosófica e ar- gument from a hypothesis in Plato’s
praticar filosofia como um método de Meno. Journal ofHellenic Studies 104, pp. 1-
instrução filosófica, e considerar 14.
como escrever em filosofia (em forma Benson, H. H. (2003). The method of
de diálogo ou não) está relacionado a hypothesis in the Meno. Proceedings of the
ambos (ver o capítulo A Forma e os Boston Area Collo- quium in Ancient
Philosophy 18, pp. 95-126. Bluck, R. S. (1961).
Diálogos Platônicos). Por fim, requer
Parte II
A EPISTEMOLOGIA
PLATÔNICA
T3. Diga-me, então, o que é esta forma (1) nem (2) teriam um uso para
em si mesma, de modo que possa olhar determinar quais ações são pias e
para ela e, usando-a como um modelo
[molde ou padrão, paradeigmá], dizer quais não são. Assim, não podem ser
que toda ação sua ou de outra pessoa exemplos do que Sócrates está
que for deste tipo é pia e, se não for, procurando e ainda não encontrou. O
não é pia. (Euthphr. 6e3-6) que ele quer é algo que possa servir
como um “molde interno” para pôr os
Para compreender o que está candidatos a ações e pessoas pias
sendo introduzido pelo requerimento para ver se elas se qualificam como
expresso em T3, considere o que sendo pias.
ocorreria se alguém respondesse a
Sócrates dizendo: No diálogo Carmides, Sócrates
pergunta o que é sôphrosunê
1. Piedade é o que todas e somente (“temperança” ou “prudência”). Mais
as ações pias necessariamente têm adiante no diálogo, Crítias propõe o
em comum “autoconhecimento” como sua
resposta à questão “o que é
Ou dizendo: sôphrosunê?”. Ele desafia Sócrates:
“quero agora dar uma explicação
2. Piedade é o que justamente torna desta definição, a menos, é claro, que
pias as coisas pias. você já esteja de acordo que a
temperança seja conhecer a si
mesmo” (165b). Sócrates replica: você diz, estaria fazendo isso por algu-
ma razão outra que a que daria para
T4. Mas Crítias... você me feia como se uma investigação completa de minhas
eu declarasse conhecer as respostas às próprias afirmações – o medo de pen-
minhas próprias questões e como se sar inconscientemente que eu sei algo
pudesse concordar com você se quando eu não sei. E é isso que preten-
realmente assim o desejasse. Não é do estar fazendo agora, examinando o
isso – antes, por causa de minha argumento primariamente para mim
ignorância, estou continuamente mesmo, mas talvez também para meus
investigando em sua companhia o que amigos. (166c7-d4)
for proposto. Todavia, se eu refletir
sobre isso, estarei pronto a dizer se Minha sugestão é que saber o que é a
concordo ou não. Espere somente que piedade ou a temperança, no sentido
eu reflita. (165b4-c2) de ser capaz de dar de modo
informativo condições necessárias e
No diálogo, Sócrates deixa claro suficientes para que um ato ou pessoa
que não pensa que saiba como conte como sendo pia ou temperante,
responder satisfatoriamente à seria, de acordo com Sócrates,
questão “o que é a sôphrosunê?”. conhecer algo belo e bom. Se esta
Contudo, e isto é um ponto resposta estiver na direção correta,
interessante que temos de ter em então as diferentes peças da história
mente, ele se apronta a dizer se do oráculo passam a se ajustar bem
concorda ou não com a sugestão de umas com as outras.
Crítias, isto é, se pensa que se trata de
uma explicação satisfatória do que a A história da filosofia
sôphrosunê é, assim que tiver tido a subsequente mostrou como é
oportunidade para penar sobre isso. irritantemente difícil chegar a uma
análise satisfatória de qualquer
Um pouco mais adiante no conceito filosoficamente
mesmo diálogo, Sócrates liga a busca interessante. Entre os conceitos
pelo que é a temperança à sua decisão filosoficamente interessantes
de não pensar que sabe o que ele não incluímos os éticos, como bravura,
sabe. Novamente ele está se dirigindo virtude, piedade e temperança, todos
a seu interlocutor Crítias: nos quais Sócrates estava
interessado. Porém, devemos
T5. Ah sim!... como você pode pensar
que, ainda que eu refute tudo o que também incluir noções metafísicas,
como causa, tempo e número, para os Neste ponto, uma questão muito
quais filósofos posteriores tentaram importante surge. Se Sócrates não
encontrar, com grande engenho e de sabe o que a piedade é, a coragem ou
modo informativo, condições a temperança, pelo menos não no
necessárias e suficientes, bem como sentido forte de ser capaz de dar de
conceitos epistemológicos, como modo informativo um conjunto
verdade e o próprio conhecimento. satisfatório de condições necessárias
Ora, nenhum de seus esforços foi e suficientes para que uma pessoa ou
aceito universalmente. Não devemos, uma ação conte como pia, corajosa ou
portanto, nos surpreender que os temperante, como pode ele saber
cidadãos atenienses que Sócrates que tal pessoa ou tal ação é pia,
questiona não eram capazes de dar, corajosa ou temperante?
de modo informativo, as condições
necessárias e suficientes para que PRIORIDADE DO CONHECIMENTO
uma ação contasse como corajosa, DEFINICIONAL
pia ou justa. Por outro lado, não
devemos nos surpreender tampouco O próprio Sócrates se põe esta
de encontrar Sócrates pensando que questão em vários diálogos, inclusive
ser capaz de fornecer no Hípias Maior, onde a questão em
satisfatoriamente explicações deste discussão é “o que é to kalon.7” (isto
tipo para os conceitos morais em é, “o que é o belo, o bom ou o
particular seja tão importante para a nobre?”). Eis aqui parte da fala final
vida moral que nossa incapacidade de de Sócrates a Hípias:
fornecer tais condições é uma
ignorância fatal. Até mesmo T6. Se eu mostrar a vocês, homens
sábios, o quão sem saída [isto é, quão
reconhecer que não se é capaz de perplexo] estou, fico enlameado por
fornecer tais explicações para a suas falas quando o mostro. Vocês
virtude e para as virtudes individuais, todos disseram o que você acabou de
como coragem e piedade, poderia dizer, que estou perdendo tempo com
contar como uma forma de coisas que são triviais, pequenas e sem
valor. Mas quando sou convencido por
sabedoria. E seria plausível supor que vocês e digo o que vocês dizem, que a
“o deus” tenha dado a Sócrates a coisa mais excelente é ser capaz de
missão de gerar esta sabedoria nos apresentar um discurso bem e
outros. belamente e resolver as coisas em um
tribunal ou em uma reunião, escuto
T7. É o que ganho, como disse. Insultos qualquer um em algo, seria nisto, que,
e reprovações da parte de vocês; in- como não tenho conhecimento
sultos da parte dele. Mas suponho que adequado das coisas no mundo
seja necessário suportar tudo isso. Não inferior, então eu não penso que
seria estranho caso seja bom para tenha. Porém, eu bem sei que é errado
mim. Eu penso de fato, Hípias, que me e vergonhoso fazer o mal,
ter associado a vocês dois me fez um desobedecer a seus superiores, seja
bem. O provérbio diz: “o que é belo é ele deus ou homem. (29bl-7)
difícil” – penso que eu sei isso. (304e3-
9) Esta passagem inclui uma
alegação qualificada de ignorância
Em uma leitura natural e, penso, (“não tenho conhecimento adequado
correta de T7, Sócrates diz aqui que das coisas no mundo inferior”), assim
ele pensa que sabe que o que é belo é como uma alegação clara, e mesmo
difícil (mais literalmente: que “coisas insistente, de conhecimento (“porém,
nobres são difíceis” – chalepa ta kalá). eu bem sei que é errado e vergonhoso
Assim, ele pensa que sabe algo sobre fazer o mal, desobedecer a seus
o bom ou o nobre, no caso, que coisas superiores, seja ele deus ou homem”).
boas ou nobres são difíceis. Porém, se Sócrates não explica por que seu
ele de fato sabe isso, ele rejeita (D). Já conhecimento do mundo inferior é
esta passagem deve fazer-nos hesitar “inadequado”. Podemos especular
em atribuir que seria inadequado simplesmente
porque, até aquele momento, ele não
(D)para Sócrates. teve nenhuma experiência do mundo
inferior. Mas o que fazer com sua
Na verdade, há outras passagens
alegação de conhecer “que é errado e
que devem nos fazer duvidar que
vergonhoso fazer o mal [e]
Sócrates esteja comprometido com
desobedecer a seus superiores?” Se
(P) ou (D), e mais ainda com a
isso é algo que Sócrates sabe, por que
conjunção de (P) e (D). Considere a
não deveria contar como algo “belo e
seguinte passagem da Apologia:
bom”? Ademais, por que não deveria
T8. Por certo é a mais censurável igno-
contar como um contra-exemplo claro
rância crer que se sabe o que não se a (P)?
sabe. É talvez neste ponto e a este
respeito, cidadãos, que sou diferente
da maioria dos homens e, se fosse
reivindicar ser mais sábio do que
Sugiro que o “primeiro nível” que Assim, T8 parece renegar (P), assim
Sócrates alega ter aqui poderia ser como T7 parecia renegar (D).
sujeito ao mesmo tipo de
questionamento que ele põe a seus A LEITURA APORÉTICA
interlocutores nos diálogos
“definicionais” que estamos Haveria então um outro modo de ler
examinando. Ou seja, Sócrates estas passagens nas quais Sócrates
poderia perguntar “o que é errado?” parece comprometer-se com (P) e
ou “o que é vergonhoso?”. Se devesse (D)? Penso que sim. De fato, a leitura
responder estas questões a si próprio que tenho em mente é muito natural.
ou a outros, pode-se estar seguro que Podemos entender que Sócrates não
nem ele nem seus interlocutores está afirmando que o conhecimento
seriam capazes de apresentar, de definicional é anterior ao conheci-
modo informativo, as condições mento das instâncias e ao
necessárias e suficientes para que conhecimento das conexões
uma ação conte como errada ou como essenciais, mas somente perguntando
vergonhosa. Não possuindo esta como é possível saber, por exemplo,
compreensão, ele e seus que x é pio e y é justo, ou que piedade
interlocutores não possuiriam o tipo e justiça são virtudes, a menos que se
de conhecimento que ele admite não saiba já em um modo informativo, isto
possuir, e é sábio por admitir que não é, não trivial, o que são piedade e
possui, ao passo que outros nem justiça. Vou chamar esta leitura de tais
mesmo se dão conta que não o passagens uma “leitura aporética”.
possuem. Contudo, apesar disso tudo, Minha ideia é que Sócrates usa a
Sócrates claramente alega saber que é questão para exprimir uma
errado ou vergonhoso causar dano e perplexidade (aporia) sobre como se
desobedecer a seus superiores. pode ter conhecimento que x é F ou
que F-dade é G sem ter um
Assim, eis aqui um exemplo de conhecimento anterior do que é F-
Sócrates alegando conhecimento que dade.
uma ação é errada ou vergonhosa,
ainda que, como suspeitamos, tenha Vimos que Sócrates sente-se
de admitir que lhe falta o atraído pela ideia que reconhecemos
conhecimento (belo e bom) do que instâncias de F-dade fazendo apelo a
torna uma ação errada e vergonhosa. um paradigma ou modelo que temos
em nossas mentes. Dado este modelo é, se não for capaz de prover, de modo
de reconhecimento das instâncias, há informativo, as condições necessárias
somente um pequeno passo para a e suficientes para que algo seja bom
conclusão que eu posso saber que x é [ou belo]. Porém, não precisa ser
F se e somente se compreendida deste modo. Pode ser
tomada como uma questão de fato,
1. tenho disponíveis para mim, uma questão que exprime uma
imediatamente, de um modo perplexidade ou aporia acerca de
informativo, condições necessárias como alguém poderia saber que x é
e suficientes para que algo ou uma instância de F-dade sem ter
alguém seja F e determinado que x satisfaz os critérios
2. creio corretamente que x satisfaz para ser F Assim, em minha leitura
estas condições necessárias e aporética, Sócrates não está
suficientes. afirmando que o conhecimento
definicional é anterior; ao invés disso,
É importante notar aqui que, ele está exprimindo perplexidade
caracteristicamente, estas passagens sobre como poderia ser de outro
nas quais Sócrates é suposto modo, ou seja, como alguém poderia
comprometer-se com a Prioridade do reconhecer instâncias sem um
Conhecimento Definicional têm a conhecimento anterior dos critérios
forma de uma questão. Assim, em T6, apropriados.
Sócrates diz que seu parente lhe
perguntará: Se dermos à Prioridade do Conhe-
cimento Definicional a leitura que
T9. Como você saberá qual fala ou uma proponho, então não precisamos nos
outra ação está bem [ou belamente]
surpreender de encontrar Sócrates
apresentada, quando você ignora o
que é o bem [isto é, o belo]? (Hp. Ma. por vezes renegando (P) ou (D), ou
304d8-e2) ambos, como em T8. Considere uma
outra passagem da Apologia. Ela
Comentadores tendem a tomar esta ocorre depois que o tribunal decidiu
questão como uma questão retórica. que Sócrates é culpado das acusações
Ou seja, tomam seu conteúdo como que lhe foram feitas. Para
sendo isto: você não pode saber qual compreender esta passagem,
fala ou outra ação é boa [ou bela] se devemos compreender uma
for ignorante do bem [ou do belo], isto característica do sistema ateniense de
justiça (ver o capítulo Platão e a Lei). ainda que não possa dar, de modo
De acordo com este sistema, se o informativo, as condições necessárias
acusado é declarado culpado, a parte e suficientes para que algo seja um
que o acusou propõe uma pena e a mal. Assim, em minha leitura
parte declarada culpada propõe uma aporética do Princípio da Prioridade
pena alternativa. O tribunal tem então do Conhecimento Definicional,
de aceitar uma das duas propostas; Sócrates estaria autorizado a
ele não pode escolher uma punição de acompanhar a sua asserção em TIO
sua própria lavra. Meleto, o acusador com esta questão: “como posso saber
de Sócrates, propõe a pena de morte que a prisão seria um mal, se não
e Sócrates tem de propor uma pena posso dizer o que é ser um mal para
alternativa. Deve ele propor algum algo?” Porém, ele não estaria forçado,
período de prisão? O tribunal poderia sob pena de inconsistência, a negar
aceitar tal pena. Eis parte do que que tem tal conhecimento.
Sócrates diz:
DIZENDO UMA MENTIRA
TIO. Visto que estou convencido de não
ter causado dano a ninguém, não vou Meu modo favorito para ilustrar o uso
causar dano a mim mesmo dizendo
que mereço algum mal e fazer tal
aporético do Princípio de Prioridade
proposição contra mim mesmo. O que Definicional consiste em contar uma
devo temer? Que eu deva sofrer a história pessoal acerca de uma
punição que Meleto propôs contra tentativa de fornecer, de modo
mim, da qual digo que não sei se é boa informativo, as condições necessárias
ou má? Devo eu então escolher de
preferência a isso algo que eu bem sei
e suficientes para dizer uma mentira.
(eu oida) que é um mal e propor tal Em minha aula, meus estudantes e eu
punição? Prisão? Por que deveria viver propusemos o que chamo a “Análise
em prisão, sempre sujeito às ordens Padrão da Mentira” (APM), que é a
dos onze magistrados? (37b2-c2) seguinte:
sem supor que ele também atribui conhecimento, deve ser tomado ao pé
algum tipo de prioridade ao da letra: renunciou ao conhecimento e
contenta-se em reivindicar não mais
conhecimento não definicional. do que uma crença verdadeira.
(Vlastos, 1994, p. 34)
Volto-me, por fim, a uma breve
revista do que outros filósofos Após discutir estas duas
disseram recentemente acerca da alternativas
ignorância socrática. Início com a
posição sobre a ignorância socrática 1. Sócrates não está sendo sincero
pelo decano dos estudos socráticos de modo a puxar seu interlocutor à
do século XX, Gregory Vlastos. discussão e
2. Sócrates realmente quer dizer que
VLASTOS nada sabe –, Vlastos propõe uma
terceira alternativa.
Vlastos inicia seu artigo “A negação de
conhecimento por parte de Sócrates” Ele distingue dois sentidos dos verbos
estabelecendo duas posições opostas gregos relevantes para “saber”. No
sobre a questão de como devemos que poderíamos chamar “sentido
entender as alegações de Sócrates de forte” desses verbos, que Vlastos
ignorância. Ele escreve: marca com um “C” subscrito, só
sabemos aquilo de que estamos
Nos primeiros diálogos de Platão,
infalivelmente certos. No sentido
quando Sócrates diz que não tem
conhecimento, fala ou não fala fraco, que ele marca com um “E”
seriamente? A posição padrão é que subscrito, podemos saber tudo o que
não. O que pode ser dito em prol desta tiver sobrevivido ao exame elêntico.
posição está bem formulado em Gulley
(1968): a profissão de ignorância de De acordo com a proposta de
Sócrates é “um expediente para
encorajar seu interlocutor a buscar a
Vlastos, é do seguinte modo que
verdade, fazê-lo pensar que está se devemos entender as alegações de
juntando a Sócrates em uma viagem Sócrates de conhecimento e suas
de descoberta” (p. 69). Mais negações de conhecimento:
recentemente, a interpretação oposta
encontrou um advogado de grande Quando ele diz que conhece algo,
clareza: Terence Irwin. Em seu livro A refere-se ao conhecimentoE; quando
Teoria Moral de Platão, ele sustenta diz que não sabe nada –
que, quando Sócrates nega ter
369-82.
Gulley, N. (1968). The Philosophy of Sócrates.
London: Macmillan.
Irwin, T. (1977). Plato’s Moral Theory: The
Early and Middle Dialogues. Oxford: Oxford
University Press.
Kahn, C. H. (1996). Plato and the Socratic
Dialogue. Cambridge: Cambridge University
Press.
Vlastos, G. (1994). Sócrates’ disavowal of
know- ledge. In M. Bumyeat (ed.) Socratic
Studies (pp. 39-66). Cambridge: Cambridge
University Press.
às Formas (75b6. 76d9). E esta óbvio a Platão que ele nem sempre
posição também é sugerida pela cuida para que seja explícito (ver o
atenção às Formas de Igual, Maior e capítulo Aprendendo sobre Platão
Menor. No contexto da reminiscência, com Aristóteles).
a menção a estas Formas pode ser
vista como um comentário à lição de A REMINISCÊNCIA NO FEDRO
geometria do Mênon, onde são
precisamente os juízos de igualdade e A afirmação final da reminiscência no
desigualdade que são citados como Fedro é também a mais completa e a
evidência que o escravo está que é formulada de modo mais
rememorando “as opiniões (doxai) preciso. (O Fedro deve ser posterior
que estão nele”. Portanto, a discussão ao Mênon e ao Fédon, já que pertence
da reminiscência no Fédon, que é ao grupo de diálogos basicamente da
claramente introduzida como uma mesma época que a República –
continuação do tópico tratado no Grupo estilístico II, ao passo que o
Mênon, pode ser vista como uma Mênon e o Fédon pertencem ao grupo
expressão mais completa da doutrina pré-República – Grupo estilístico I. Ver
deste diálogo. A inovação crucial é a Kahn, 2002.) A doutrina é introduzida
conexão entre juízo de percepção, aqui não para explicar como ocorre a
como ilustrado no Mênon, e a aprendizagem (como no Mênon) nem
cognição implícita das Formas. Esta para provar a imortalidade da alma
referência implícita às Formas em (como no Fédon), mas antes para dar
todo juízo de percepção é o correlato uma explicação metafísica da
epistêmico da dependência experiência de amar (ver o capítulo
ontológica das qualidades sensíveis às Eros e Amizade em Platão). Esta
Formas correspondentes (Phd. lOOd: versão da teoria é a mais completa
“nada outro a torna bela senão a porque, de um lado, Sócrates oferece
presença ou participação ou outro uma explicação mítica da visão pré-
modo de conexão com o Belo em si natal das Formas que está de algum
mesmo”) (ver o capítulo O modo pressuposta no Mênon e no
Conhecimento e as Formas em Fédon, enquanto, de outro lado, este
Platão). Este paralelismo estrutural diálogo também contém uma
entre cognição e ontologia, entre afirmação explícita da noção de
referir-se às Formas e participar nas racionalidade humana que está,
Formas pareceu provavelmente tão sugiro, implicada pela explicação da
forma possível de vida humana, isto é, assunto, nem grande nem pequeno”
a mais virtuosa. O problema, contudo, (21bl-5). Contudo, reconhecendo que
é que Sócrates reconhece que não os pronunciamentos do oráculo não
falta em Atenas quem, por si mesmo podem ser falsos, ele se põe a
ou por outros, pense que possui investigar este enigma procurando
competência suficiente para falar indivíduos na cidade reputados pela
com autoridade nestes assuntos. Seu sabedoria e os interrogando para
projeto principal, então, consiste em determinar se, per impossibile, eram
encontrar modos de distinguir com realmente sábios e o oráculo estava
eficiência entre a competência moral errado ou se não tinham a sabedoria
genuína – a pessoa autenticamente que pensavam possuir.
sábia, cujo conselho em matéria
prática deve ser seguido – e os vários Dada a infalibilidade
pretendentes a esta posição. inquestionável do oráculo, o
resultado da investigação de Sócrates
Ao se dedicar a esta tarefa, muito é inteiramente previsível: ele nos diz
naturalmente Sócrates se põe a que cada um dele se revelava, após o
formular condições necessárias, ou exame, não ser realmente sábio. Uma
testes, para a posse de competência das coisas mais importantes destas
genuína em qualquer campo. passagens, todavia, é o quão pouco
Todavia, em muitos casos os testes aprendemos por elas acerca das
empregados de fato neste “programa razões de Sócrates para estas
conclusões negativas. Para dar
de certificação” socrático ficam quase somente um exemplo representativo,
inteiramente sem relato. Talvez o no caso de um Político não nomeado
mais antigo texto relevante seja Ap. que ele interroga, Sócrates diz
20e8-21d7, uma passagem bem somente, em 21c5-8, que, após “ter
conhecida em que Sócrates descreve conversado com ele” (dialego- menos
sua reação ao lhe dizerem o pro- auto(i)), concluiu que este homem
nunciamento do oráculo de Delfos parecia sábio, mas não era realmente
que “ninguém é mais sábio que sábio (einai d’ ou). Sócrates, porém,
Sócrates”. De acordo com Sócrates, não nos diz o que aconteceu durante
ele fica inicialmente intrigado por esta “conversa” para lhe dar esta
este dito, visto que pensa que ele impressão. Assim, ainda que estas
próprio “não é sábio em nenhum passagens na Apologia tornem
essas outras que usou como cavalo de ela própria conhecimento de um tipo
Troia para esta ciência. Meu particular (uma ciência, uma
argumento a seguir sugerirá que o competência). Isso deve ficar
principal objeto desta ciência suficientemente claro pelo modo no
aparecerá, na República, como a qual, na Apologia, Sócrates fala dos
Forma do Bem. artesãos (em contraste com os
Políticos e poetas) como finalmente
Observe aqui que a saúde em posse de algumas formas de
humana, como mesmo Sócrates terá conhecimento (algumas ciências,
pensado a seu respeito, é um objeto algumas competências) – embora
único – a exata mesma coisa que é não a ciência ou competência
estudada em todas as escolas de particular do bem que ele está
medicina, no intuito de lidar com uma buscando.
multiplicidade de pacientes em
qualquer lugar. A ciência da medicina Para resumir o ponto até aqui, as
não é acerca da minha saúde ou da coisas que são perguntadas nas
sua saúde, mas acerca da saúde em questões “o que é X?”, se existirem
geral – um objeto abstrato, um tais coisas a serem questionadas, se
“universal”, como diz Aristóteles revelam ser os objetos das ciências –
(usando um termo cunhado por ele). o bem sendo, no caso central, o
Assim, a virtude é um objeto único, e principal objeto do conhecimento,
também a justiça é um objeto único. É ciência ou competência que é a
porque estes objetos únicos não são virtude. Aristóteles certamente pensa
visíveis em todos os lugares ou não que Sócrates e Platão têm a mesma
são isolados espacialmente que eu os visão dos objetos das ciências, em-
digo objetos abstratos – mais uma bora Aristóteles também pense que
vez, mesmo para Sócrates (e para estes novos objetos das ciências em
Aristóteles). que Platão
parmenídica da existência. Tal tese terá de fazer, que “nada” é por dez
me parece ser não somente em muito vezes ambíguo – e irremediavelmente
superior à de Aristóteles, mas ambíguo? Se a sabedoria ou o número
também uma tese da qual o próprio 4 nada são, então cada um é um
Aristóteles não pode escapar. objeto. Daqui podemos mesmo
derivar um critério para que se possa
PLATÃO PARMENÍDICO declarar abertamente que algo não
existe (um critério negativo de
Para o Platão parmenídico (assim compromisso ontológico).
como também, sem dúvida, para
Sócrates) “existe” ou “ser” não é COMPONTNEG: Se você alega que um
ambíguo, significando coisas suposto objeto não existe, pare então
diferentes em diferentes categorias. de falar sobre ele, pois você não está
Antes, “existe” sempre se refere à se referindo a algo do qual você diz
mesma coisa. Comecemos com o que que nada é.
significa não existir. Platão sustentou,
seguindo Parmênides, que (Isso vai muito no espírito de
Parmênides e Platão.) Eis o critério
NEXNAD: Não existir é nada ser, de positivo correspondente para o
modo que, passando do negativo ao compromisso ontológico:
positivo, podemos atribuir também a COMPONTPOS: Se você vê que não
Platão a tese que EXOB: Existir é não pode evitar se referir a um suposto
ser nada, portanto ser algo (uma objeto, então seja franco e admita
certa coisa) – um objeto. que você pensa que ele existe.
“Sobre o que há” de Quine, de 1948, sem incoerência, ser mantidos ambos
embora em Quine haja uma “virada por Aristóteles, pois (1) requer que
lingüística” totalmente não platônica saúde e pessoas são existam: a saúde
(reduzindo aquilo com o que você se é mais uma coisa no universo, e assim
compromete àquilo com o qual sua na há ambigüidade em “um”
linguagem compromete você). Os tampouco; porém, (2) nega isso.
modos platônico/parmenídico de
pensamento estão implícitos em Eis aqui uma dificuldade paralela:
Frege e em muitos dos pensadores para Aristóteles, não deve ser nem
dos fundamentos da matemática, verdadeiro nem falso, mas sem
muitos não supondo que iriam tão sentido que a saúde é mais uma coisa
longe quanto Quine ao relativizar a além (algo que não é a mesma coisa)
ontologia à linguagem. do que todas as coisas sãs. Porém,
certamente toda teoria que torna
Dada esta descrição da distinção sem sentido a tese obviamente
que Aristóteles tenta estabelecer verdadeira que Sócrates e a saúde são
entre universais e particulares, duas coisas diferentes não é sem
retornemos ao argumento das sentido! E certamente toda teoria que
ciências e à objeção contra ele por diz isso será, na melhor situação,
parte de Aristóteles. Aristóteles nos duvidosa. Assim, a antecipação de
diz que Aristóteles da teoria dos tipos lógicos
(Beth, 1965) e da distinção
1. Platão está correto em que existe conceito/objeto de Frege (Sellars,
algo – saúde – além de todas as 1963) é
pessoas sãs; há uma coisa a mais no
universo do que supõem os a) inconsistente com os métodos de
reducionistas; por outro lado, argumentação com os quais ele
próprio se compromete e é, de
qualquer modo,
b) metafisicamente na verdade
2. Platão está errado ao pensar que a muito duvidosa.
saúde existe no mesmo sentido em
que as muitas pessoas sãs existem. Se Aristóteles estiver errado
neste ponto, a questão ainda surge: o
De fato, (1) e (2), não podem, que nos diálogos de Platão (ou em
algo que Aristóteles possa ter Platão do fluxo heraclíteo nos particu-
entendido de Platão em conversas lares sensíveis com o suposto erro de
com ele ao longo dos vinte anos da tratar os tais como istos. (Não há erro
permanência de Aristóteles na nesta identificação.)
Academia) leva Aristóteles a supor
que há uma diferença importante Duas coisas mostram que este
entre Sócrates e Platão sobre as uso do fluxo dos perceptíveis de fato
Formas? Uma outra passagem em representa um desenvolvimento das
Aristóteles (Metaph. XIII.9.1086a21- posições de Sócrates:
bl3) mostra que Aristóteles identifica
corretamente entre os diálogos a) pode argumentar que não há
jovens (excetuando o Banquete, o nenhuma menção do fluxo nas
Crátilo e o Fédon) e todos os outros partes socráticas dos primeiros
diálogos. A diferença é que Platão diálogos
argumentou em prol das Formas b) Aristóteles nos diz que Platão
alegando que os particulares per- estudou com Crátilo, discípulo de
ceptíveis estão em um fluxo Heráclito, o grande proponente da
constante, enquanto o conhecimento tese que o mundo perceptível está
requer universais (que não estão em em constante fluxo.
constante fluxo: ver o
Concluo que foi este contraste
capítulo Platão: uma Teoria da entre os perceptíveis em perpétuo
Percepção ou um Aceno à Sensação?). movimento no mundo do “vir-a-ser” e
Este contraste que envolve o fluxo, as Formas eternamente existentes no
sugiro, pode ser o que leva Aristóteles mundo do “ser” que foi a principal
– embora concorde que a ciência fonte para que Aristóteles enganasse
requeira universais – a pensar que a si próprio ao pensar que tinha
Platão está “separando” os universais ferrado Platão sugerindo que Platão
dos particulares (a36-b5) ou, como tinha erroneamente “separado” as
ele descreve em a32-4, a tomar os Formas dos particulares sensíveis.
universais como “separados, isto é
(fcat) como particulares”. Neste caso, Aristóteles pode também se ter
o erro de Aristóteles consiste em enganado pelo fato da ênfase de
identificar erradamente o uso de Sócrates recair sobre a objetividade
das ciências – como se poderia
esperar do esforço para mostrar que lógicos e, assim, é sem sentido dizer
a virtude é uma ciência ou que a saúde e as pessoas sãs existem
competência –, ao passo que a ênfase cada uma e são uma em diferentes
de Platão, talvez porque tivesse sentidos.
sentido uma necessidade crescente
de defender as posições de Sócrates Eis um exemplo claro da aborda-
do contra-ataque sofistico, passou a gem parmenídica de Platão da
ser validar a objetividade das ciências existência: um pequeno argumento
por meio da validação dos objetos das importante em R. 475e-476e. Platão
ciências. Estas diferenças de ênfase, faz com que Sócrates dê a Gláucon um
juntamente com o uso por parte de argumento que pensa que muitos não
Platão do fluxo como um modo de aceitariam, mas Gláucon aceitará. É o
argumentar em prol das Formas seguinte:
levaram
Belo e feio são opostos.
sonhar que a sensação de queda que não poderia haver duas entidades a
você está tendo em sonho é uma mais, os opostos belo e feio, cada um
experiência real de queda.) sendo um, além das muitas visões e
sons belos? O que Platão faz Sócrates
Então, o que dizer do suposto observar aqui é que tais reducionistas
“sonho” feito pelos amantes de visões podem pensar que pode referir-se a
e sons? Aqui o texto nos diz que oyeor opostos, mas eles não podem: ver
são o belo em si e as visões e sons COMPONTNEG anteriormente.
belos. Porém, como podem pensar (Incidentalmente, este argumento
que também mostra que a Forma da
Beleza é o outro “belo”.)
O belo em si é idêntico às visões e sons
belos? A visão reducionista que Platão
combate aqui é uma posição cabeça-
Eles nem mesmo creem em dura, direta, próxima do nominalismo
Formas! A posição que Sócrates lhes e do materialismo – uma posição
atribui aqui só é certamente sustentada por intelectuais e por
compreensível se supusermos que pessoas bem não intelectuais, impa-
eles sustentam que o belo em si se cientes com certas posições de
reduz a nada mais do que as visões e intelectuais e religiosos, por exemplo
sons belos! a respeito de forças e deuses
invisíveis. Parece ser uma posição que
Suponho aqui que “crianças” ou vale a pena combater no tempo e
“templos” belos são supostos lugar de Platão, especialmente para
contrastar com “o belo em si” – “belo” quem que, como Sócrates e ele
somente por si mesmo, sem os próprio, esteja comprometido com a
complementos “crianças” ou existência de verdades reais que
“templos”. (Compare a expressão nosso próprio bem requer que
“crianças belas” com a primeira busquemos sistematicamente,
palavra desta expressão por si mesmo que com resultados limitados.
mesma.) Como veremos a seguir,
tomo “o Belo em si” como mera Mencionarei dois outros
abreviação do atributo “ser belo”. exemplos deste tipo de argumento
antirreducionista que surgem em
Como, então, para tais reduções, conexão com a questão “o que é X?”.
comunicação e assim por diante. Mas que se quer é tido, de modo familiar,
não Sócrates – nem Platão. É verdade como idêntico ao que “se decide que
que Sócrates pensa que poderia se quer” ou “que se determina que se
quer”. Isso, como veremos, tem algo
haver pessoas que são competentes a ver com as razões de Sócrates para
em persuasão em um assunto negar que seja uma ciência.
particular, mas não antes de serem
também competentes (terem real Qual seria o objeto desta suposta
conhecimento) no assunto de que ciência da retórica? Sócrates sugere
estão persuadindo. Não é bem a ideia que seria “o que é persuasivo sobre
costumeira de retórica! Aqui Platão qualquer assunto” tomado como
está com Sócrates e contra estas “utilizável com sucesso mesmo por
ciências neutras como a retórica de aqueles que não têm conhecimento
Aristóteles. do assunto”. Isso sugere, naqueles
que (como os sofistas) veem esta
Na época de Platão e Aristóteles, suposta ciência como dando poder e
o tema da retórica, ensinada por obtendo o que se decide que se quer
professores itinerantes conhecidos na vida, certas linhas reducionistas de
como “sofistas”, era apresentado pensamento quase inteiramente
como um meio para adquirir muito novas para a cultura grega de seu
poder e para avançar na vida – es- tempo. Estas novas linhas de
pecialmente no interior das pensamento introduzem alternativas
democracias diretas, como a de sofísticas inovadoras às posições
Atenas, nas quais o sucesso dependia tradicionais do bem, justiça e
pesadamente de persuadir o Demos – similares, bem como sublinham a
os cidadãos. Aqui a persuasão é uma posição sofistica do que poderiam ser
persuasão que diz respeito a questões os objetos desta suposta ciência.
de justiça, sabedoria, guerra, vida
pública (e privada) e tem por desígnio Sof. 1: Todo o bem humano se resume
dar aos oradores (retóricos) o que no que você (decide que você) quer,
querem na vida – como implicado por de modo que todo o poder se resume
POD. na habilidade de fazer o que você
(decide que você) quer;
Um detalhe a mais deve ser
acrescentado aqui: para os sofistas, o
boa, ganhar o que, no meu caso, é Sócrates pressupõe que se possa ter
ganhar minha máxima felicidade para conhecimento autônomo de cada
o resto de minha vida, começando no uma das ciências, isto é,
ponto em que estou agora; no seu conhecimento de uma ciência sem ter
caso, sua máxima felicidade... e assim conhecimento do bem. Porém, tal
por diante para todos os outros. autonomia claramente não precisa
ser pressuposta se o propósito da
Tudo isso sugere que, para ter uma “analogia” consiste em trazer os
dada ciência e assim conhecer o bem interlocutores de Sócrates à ideia de
e o fim da ciência, deve-se conhecer uma ciência do bem.)
por que tal fim é um bem e isto vai
requerer conhecer o que é o bem A República torna claro que a
simpliciter. Assim é que Platão, no Forma do Bem é a peça central da
símile do Sol em R. 506e-509d, diz que Teoria das Formas. Mais ainda, a
nenhuma outra Forma pode ser Forma do Bem está intimamente
conhecida ou mesmo existir a menos conectada à ética da República (ver o
que se conheça a Forma do Bem capítulo O Conceito de Bem em
(assim como nenhum objeto Platão). Argumentei em outro lugar
perceptível pode existir no mundo do que uma compreensão apropriada da
vir-a-ser ou ser percebido sem o Sol divisão de Platão da alma em três
que o nutre e o revela à percepção). O partes, analogamente à sua divisão da
que é ser para uma lançadeira cidade ideal em governantes inte-
consiste em ser um certo bem padrão, lectuais, soldados (polícia) e
que está em uma relação apropriada trabalhadores, é suposta ser
com o bem simpliciter. Assim, a esclarecida por um “caminho mais
existência longo” (IV435c-d, VI.503e-504b) do
seguinte modo. A divisão da alma
serve para nos permitir dizer o que
são as virtudes: por exemplo, que a
e a cognoscibüidade do bem padrão justiça na alma individual é o fato que
(p. ex., a natureza real da lançadeira) cada uma das três partes cumpre sua
depende da existência e função própria. Porém, para entender
cognoscibüidade do bem sim- pliciter. então adequadamente esta
(Pode parecer que a “analogia das explicação, precisamos saber quais
artes” (“analogia da técnica”) de são as funções das partes,
teria aceito que existe uma tal que o próprio Aristóteles inventou.
entidade, um dos supostos objetos (Aristóteles, com efeito, sem dúvida
anotados anteriormente em (Sofl)- deve ter pensado que Platão tentou –
(Sof4) ou o suposto bem aparente em sem sucesso e muito
(SOF). Se for perguntado como ocorre assistematicamente – articular uma
que falamos sobre eles, a resposta é: ciência da lógica.) Aqui, a ideia é que,
no intuito ao predicar anthrôpos (homem, isto
é, o ser humano) ou “grandeza” de
de rejeitar estas criaturas cada coisa de uma multiplicidade, por
malformadas das imaginações exemplo, Alcibíades, Cálias e Aspásia,
sofísticas, “forçadas” com coisas estamos predicando algo em comum
como interesse, força e similares, que a eles três. Porém, este algo não é
de fato existem, mas somente fora idêntico a nenhum dos três. Portanto,
dessas combinações. Falar sobre tais esta coisa predicada em comum é
pseudoatributos é de fato não mais algo a mais: a Forma. Este argumento
do que falar de certas ilusões dos rapidamente geraria todo tipo de
sofistas, com os quais podemos predicado “forçado”, como o suposto
comparar ilusões mais familiares, universal trasimáqueo acima. (E
como o satanismo, o flogisto, a poderia usar este predicado em
bruxaria ou o Papai Noel. silogismos, como Sócrates o faz de
fato na República. Para Aristóteles, é
E AS OUTRAS RAZÕES DE PLATÃO suficiente torná-lo um universal.)
PARA ACREDITAR NAS FORMAS
(LÓGICAS OU MÍSTICO-METAFÍSICO- Porém, propõe Platão um argumento
TEOLÓGICAS)? E TAIS RAZÕES FARÃO deste tipo ou um argumento que o
DAS FORMAS ALGO MAIS DO QUE comprometa com atributos que
SIMPLES ATRIBUTOS? correspondam a tais predicados
“forçados”? Ou é o argumento um
No Das Ideias e em outros lugares, produto da extraordinária criatividade
Aristóteles também atribui a Platão de Aristóteles em oferecer
um Aristóteles “um-de-muitos”, o argumentos
qual, nos tempos modernos, poderia
ser referido como um argumento a
partir da predicação: um argumento
necessário, de fato, à ciência da lógica formais para posições que necessitam
(1991). Desire and power in Sócrates: F.G. Herrmann, and T. Penner (eds.)
the The Good and the Form of the Good in
Plato’s Republic (Procee- dings of the
argument of Gorgias 466a-468e that fourth biennial Leventis conference).
orators and tyrants have no power in Editor em vista: Edinburgh University
the city. Apeiron 24, pp. 147-202. Press. Penner, T. e Rowe, C. J. (1994).
The desire for good: Is the Meno
(2006). Plato’s Theory of Forms in the consistent with the Górgias?
Phronesis 39, pp. 1-25.
Republic. In G. Santas (ed.) The
Blackwell Guide to Plato’s Republic e (2005). Plato’s Lysis. Cambridge:
(pp. 234-62). Malden, Mass. e Oxford:
Blackwell. Cambridge University Press.
O DILEMA TODO-PARTE
dedo humano ou o cabelo humano? O (PRM. 130E4-131 E7)
platônico precisa de uma Forma do
Dedo ou do Cabelo, se houver uma Parmênides agora se volta à questão:
Forma do Ser Humano? Pode-se qual é a relação entre os objetos
explicar talvez o que é um dedo ou físicos e as Formas? As propostas de
cabelo caso se compreenda o que é Sócrates sobre isso e os argumentos
um ser humano (ver Ti. 76cl-d3 para que as acompanham, bem como as
uma explicação funcional do cabelo)? sugestões de Parmênides em bene-
fício de Sócrates também dizem
Este movimento provoca mais respeito a uma outra questão: que
questões: se uma entidade é tipo de entidades são as Formas?
composta de partes (como a lama é
composta de terra e água e um ser Parmênides inicia, como fizera no
humano é composto de várias partes início do primeiro movimento,
funcionais e não funcionais), qual é a aportando esclarecimentos sobre o
relação entre o todo e as partes? É o que pensa ser a posição de Sócrates e
todo o mesmo que o agregado das pedindo que Sócrates confirme:
- Porém, diga-me isto: é sua tese vantagem ser lido à luz daquela
que, como você diz, há certas discussão. No Fédon, Sócrates fornece
formas, das quais estas outras o que ele denomina explicação
coisas, por meio da participação “segura” de por que as coisas belas
nelas, derivam seus nomes são belas. Ele sustenta que a beleza
delas não é explicada por sua cor
como, por exemplo, se tomam brilhante, forma ou algo assim. Aquilo
semelhantes participando da sobre o que está seguro é que a Forma
semelhança, grandes do Belo as faz belas; isto é, ele é vago
participando da grandeza e acerca de qual é a relação entre a
justas e belas participando da Forma e as coisas cuja característica
justiça e da beleza? ela explica. Ele diz:
É bem assim, respondeu
Sócrates. (130e4-131a3) Nada outro a faz bela a não ser a
presença, comunhão ou outro
Sócrates nada dissera modo de ocorrência daquele
expressamente a respeito de nomes belo. Vou me refrear de afirmar
em sua fala, mas a proposta de isso e afirmar somente que é
Parmênides desdobra a tese de pelo belo que todas as coisas são
Sócrates que as coisas que participam belas. (100d4-8)
da Grandeza se tornam grandes. Se
tijolos e pedras vêm a ser semelhantes Para compreender como o Belo
por participarem da Semelhança, torna as coisas belas, precisamos
então, por participarem da compreender a relação entre a Forma
Semelhança, podem ser chamadas e as coisas cuja característica ela
pelo nome “semelhante”, derivado do explica. A relação conversa, entre os
nome da Forma (ver o capítulo Platão objetos físicos e uma Forma, é co-
e a Linguagem). nhecida como “participação”. Em
nosso diálogo, Parmênides força
A frase inicial de Parmênides, com Sócrates a dar uma explicação da
sua referência a nomes, lembra em participação.
muito o lance de abertura no
argumento final da imortalidade da
alma no Fédon, sugerindo que nosso
argumento presente pode com Parmênides propõe duas
uma coisa grande graças à coisas grandes indica que ele supõe
qual todas estas coisas que Sócrates considera a Forma como
parecem grandes? um universal: uma coisa presente em
muitos lugares ao mesmo tempo.
Parece que sim.
Esta interpretação tem uma séria
3. Então uma outra forma de desvantagem. A passagem sugere que
grandeza fará sua aparição, Sócrates faz uma inferência. Ele deve
tendo surgido junto com a concluir que
grandeza em si e as coisas que
participam dela, e mais uma o Grande é um com base no que
vez uma outra junto com observa a respeito das múltiplas
todas estas, graças à qual coisas grandes. O que ele observou foi
todas elas parecem grandes. uma característica. Se uma
Cada uma de suas formas não característica que ele observou é a
será mais uma, mas ilimitada Forma, que inferência ele fez quando
em número. (132al-b2) conclui que a característica é um?
argumentando mais uma vez que sua por que agora concorda em olhar para
Forma é muitas, desta vez por ela juntamente com suas instâncias?
reduplicação. Uma característica comum é o que
agora chamamos de universal. É a
Parmênides está provavelmente característica comum que
sugerindo o seguinte no estágio (1):
sempre que Sócrates olha para um
número de coisas que parecem todas
ser grandes, ele pensa que uma templos e elefantes partilham ela
característica (chame-a “o grande em própria grande? Exceto para certos
nós”) é a mesma em todos os casos e universais pouco usuais, como a
daqui ele infere que a Forma, que unidade e o ser, a maioria dos
corresponde a esta característica, é universais não são instâncias de si
um. No restante do argumento, próprios.
Parmênides mostra a inadequação
das razões de Sócrates para esta Vimos no Dilema Todo-Parte que
conclusão. Parmênides deriva os paradoxos no
caso do Grande, Igual e Pequeno
No estágio (2), o andamento fica pe- baseando-se em duas concepções das
culiar. Pergunta-se a Sócrates para Formas e das características
repetir o que fez no estágio (1), mas imanentes que entram em conflito no
desta vez com o olho da mente: assim caso das Formas das quantidades.
como olhou para as múltiplas coisas Uma delas era a Suposição de
grandes no início, ele deve olhar do Autopredicação: tanto a F-dade em si
mesmo modo (mas com o olho da quanto a F-dade em nós são F. Por
mente) para o Grande em si, jun- exemplo, a Grandeza em si e a
tamente com as outras coisas grandeza em Símias são grandes. Esta
grandes. Por que Parmênides propõe discussão, todavia, toma as Formas
isso como exequível e por que não como universais, mas como
Sócrates permite que ele derive as análogas a materiais. Não é estranho
consequências que propõe? Se, na pensar que a matéria ouro é ouro,
primeira parte, Sócrates tomou a mas é muito estranho pensar que o
Forma simplesmente como a universal ouro é dourado ou que o
característica comum (como na universal grandeza é grande. (Alega-
primeira interpretação do estágio (1)), se que a Autopredicação ocorre
uma sentença pensada sobre algo e a kosmos). Esta associação era comum
palavra grega “kosmos” tem como nas teorias dos primeiros pré-
sentido primeiro ordem ou socráticos da archê ou primeiro
ordenamento. Estudiosos princípio do universo, e veremos que
argumentaram que o termo também é verdadeiro em Platão.
“kosmos”, usado para descrever o
mundo no sentido do universo como Para os propósitos deste artigo,
um todo, deriva de um sentido vou deixar de lado algumas das
primeiro de “ordem” e questões mais disputadas sobre como
conceber as estratégias de redação de
que o primeiro uso de fato mais largo Platão. Vou apresentar, ao invés
foi desenvolvido por Platão disso, as teorias que se pode perceber
(Finkelberg, 1998). O narrador do nos diálogos relevantes, supondo que
Timeu, um astrônomo famoso, algo similar à posição mais
descreve nesse sentido amplo a desenvolvida presente neles, a do
ordem do kosmos quando se refere à Timeu, está próximo das crenças do
estrutura do céu (ouranos). Assim, o próprio Platão. Para avaliar as
uso do termo “kosmos” para designar contribuições de Platão à cosmologia
o mundo no sentido do universo
reflete uma mudança, primeiro, de
seu uso para descrever “ordem” no
sentido de “organização do universo” como uma disciplina, precisamos
e, segundo, para “ordem do mundo entender algo do cenário pré-
(ouranos ou céu) como um todo”. socrático destas teorias; ao final, vou
“Kosmos” é usado neste sentido nos também esboçar um pouco da
diálogos de Platão geralmente tidos influência subsequente destas
como tardios: além do Timeu (p. ex., posições (particularmente as do
em 28b3), também no Político Timeu) nos trabalhos posteriores na
(269d8) e no Filebo (29el, 59a3). Academia e para além dela.
cavalos alados. Sócrates sugere, em para o lugar de onde veio por dez mil
um tipo de ponto de início da criação anos... exceto a alma do homem que
física – ou, pelo menos, antes de cada pratica a filosofia ou ama
encarnação física da alma –, Zeus leva filosoficamente os jovens” (248e5-
sua carruagem alada à frente de uma 249a2). Se estas almas escolherem
grande procissão de todas as almas, este tipo de vida correta três vezes
“olhando para todas as coisas e pondo seguidas, “suas asas voltam a crescer
tudo em ordem” (246e5-6). Neste e elas partem no terceiro milênio”
ponto, os outros onze deuses (isto é, (249a4- 5). Somente a alma de um
todos, exceto Héstia) são postos em sábio e virtuoso filósofo terá de volta
formação. A forma do universo se estas preciosas asas (249c4-5). Como
parece com um teatro grego ou um vimos no mito do Fédon, há um
problema curioso a respeito da chan-
grande estádio aberto. As almas, ce de uma alma evitar a
todas em suas carruagens, fazem uma reencarnação, pois se pode supor
subida íngreme à lateral do teatro que, a menos que seja infinito o
para chegar à borda do universo, provimento de almas, acabaria por
“mas, quando as almas que dizemos não sobrar nenhuma, pondo fim a
imortais alcançam o topo, elas vão toda a vida mortal.
para fora e se põem no cume do céu,
de onde o movimento circular as leva O mito do Fedro complementa o do
em círculos enquanto lá ficarem a Fédon fornecendo uma explicação da
contemplar o que está na parte pré-existência da alma (algo
exterior do céu” (247b6-c2). pressuposto, mas não descrito, na
Teoria da Reminiscência no Fédon),
O Fedro, como o Fédon, descreve mas complementa o Fédon incluindo
a encarnação da alma em um corpo as Formas. Se devêssemos juntar o
como um tipo de queda – a perda das relato físico dos dois mitos,
asas da alma – e supõe que a maioria poderíamos imaginar que as almas
das almas passará por repetidas dos homens virtuosos, assim como as
reencamações. Todavia, também dos seres superiores que natural-
prevê um tempo durante o qual fica mente habitam a superfície da Terra,
sem corpo e, talvez, mesmo para uma são capazes de elevar-se ainda mais
libertação permanente. Platão alto, “voando” em um tipo de Céu
escreve que “nenhuma alma retorna Platônico em que podem ver as
frequentemente seu foco. Uma razão sobre estas questões, muito mais do
é sem dúvida que, desde seus que é geralmente reconhecido. Um
primeiros diálogos, Platão apresentou diálogo inteiro, o Crátilo, é dedicado a
seu principal interlocutor, decodificar as palavras individuais,
usualmente Sócrates, na busca de com um bom número de
definições sempre de termos especulações sobre o estado de
isolados. O que é necessário espírito e as suposições que levaram
preliminarmente para uma os primeiros inventores dessas
investigação filosófica sobre a justiça, palavras a conceber e as designar
a temperança ou a beleza consiste em como o fizeram.
descobrir precisamente o que é que o
termo designa (ver o capítulo Há especulação suficiente similar em
Definições Platônicas e Formas). outros diálogos (bem como nas obras
do mais famoso discípulo de Platão,
Por que isso? Um procedimento Aristóteles) para descartar como
preliminar desse tipo não implica, de improvável a suposição quase
modo questionável, que o nome do universal (não partilhada por leitores
definiendum em pauta já esteja, no na Antiguidade) que Platão não está
uso do grego, tão firmemente ligado a sendo sério nestas decodificações
um conceito ou entidade única etimológicas e que o Crátilo pode ser
corretamente demarcada que com segurança posto à margem, pelo
perguntar o que significa um termo é menos enquanto este tipo de exegese
um caminho apropriado para a lingüística estiver em questão.
descoberta deste conceito ou
entidade? E isso por sua vez provoca As principais teses de Platão são
mais questões: como o termo entrou as seguintes. (Muito do que se segue
por primeira vez em nosso está baseado em minha exposição
vocabulário e com base em que mais completa em Sedley, 2003.)
autoridade foi ele ligado ao conceito Tenham sido os termos introduzidos
que agora nomeia? pelos primeiros membros da raça
humana (a opinião privilegiada no
O CRÁTILO Crátilo), por uma fonte divina (ver,
por exemplo, Ti. 73c6-d2) ou por uma
Na verdade, Platão tem teses mistura dos dois, eles foram
razoavelmente bem desenvolvidas tentativas de encerrar as naturezas
exemplos como esse estão perfeita- Muito importante, esta conclusão não
mente de acordo com a prática significa que
etimológica dos Antigos e não há boa
razão para pensar que Platão não a filosofia deve dispensar o uso da
estivesse falando seriamente a seu linguagem, mas somente que ela não
respeito enquanto decodificava as pa- deve basear-se na decodificação dos
lavras gregas em uso. nomes individuais como um guia para
a verdade.
Isso não quer obviamente dizer
que Platão está pronto para se basear No percurso para chegar à
na autoridade dos que cunharam as conclusão recém-exposta, o Sócrates
palavras. Na verdade, ele deixa claro de Platão mostra em muito como ele
que, embora muitas nomeações pensa que a linguagem opera. Um
revelem uma real fagulha, espe- nome (onoma, o equivalente aqui de
cialmente acerca da natureza da Platão mais próximo à “palavra”, mas
divindade, não se deve confiar nelas quase exclusivamente ilustrado por
com relação à maioria do vocabulário nomes e adjetivos) é um instrumento
ético grego. A nomenclatura grega com uma dupla função comunicativa
existente para isso revela (388bl3-cl): prover “instrução” e
incompreensões sistemáticas da “separar o ser”. A “instrução” em
parte de quem nomeia, atribuíveis pauta poderia ter sido imaginada
implicitamente à relutância deles em como o ato meramente mundano de
reconhecer a existência de valores transmitir informação, mas não é, de
estáveis. Seria um erro, conclui qualquer modo, como Platão a
Sócrates, buscar o conhecimento por apresenta. Antes, em linha com os
meio deste tipo de estudo princípios teleológicos com os quais
etimológico, precisamente porque abri este capítulo, ele localiza a função
não se pode necessariamente confiar de um nome no que for o mais alto
nas opiniões das pessoas que bem a que aspira gerar, e Platão
cunharam originalmente as palavras, identifica este bem implicitamente ao
ainda que possam ser recuperadas ensino das verdades filosóficas
com adequada habilidade. Temos, (donde, por exemplo, em 390c-d,
portanto, de estudar as próprias quem faz o uso apropriado dos nomes
coisas diretamente e não por meio de é identificado não ao falante ordinário
seus nomes (Cra. 438d2-439b9). da linguagem, mas ao dialético).
Cratylus: limning the world. Ancient que ele gastou na refutação dos
Philosophy 21, pp. 1-18. paralogismos geométricos de Hobbes
não teria sido perdido se Hobbes
tivesse mantido sua promessa de
“abandonar seu estudo
16 extremamente fracassado de toda a
geometria” (Huygens, Carta 149, em
Platão e a matemática Hobbes, 1994, vol. 2: 538).
por dados físicos) está sem dúvida sugerido (mas não, em sua opinião,
intimamente relacionada a um ponto inteiramente realizado ou entendido)
que Platão reiteradamente enfatiza. pelo tipo de abstração que caracteriza
O estudo da matemática deve ter o a prática matemática grega. Falando
efeito de fazer voltar a alma do de sua “harmônica pura”, mas talvez
domínio mutável da sensação implicitamente também se referindo
(identificado, no melhor modo às outras áreas da matemática,
platônico, com o “vir-a-ser”) ao Sócrates diz que a disciplina, se
domínio imutável do pensamento buscada corretamente, é “útil na
(identificado com busca do belo e do bem. Porém, bus-
cada por qualquer outro propósito,
o “ser”). A aritmética ou teoria dos não tem utilidade” (R. 531c6-7). Ele
números grega e a geometria grega continua:
da época de Platão tinham
progredido até um certo ponto de Se a investigação de todos os
abstração. Um geômetra que fizesse a objetos que mencionamos [isto
prova do Teorema de Pitágoras não é, as disciplinas matemáticas]
concebia a si mesmo como provando traz à luz sua associação e
o teorema (somente) para um relação umas com as outras e
diagrama particular de um triângulo tira conclusões acerca de sua
reto. Um aritmético não se via, afinidade, contribui de fato em
quando investigava as propriedades algo a nosso objetivo e não é
dos números “quadrados” e trabalho em vão, mas... de outro
“retangulares”, como investigando modo é em vão. (R. 531c9-d4)
(somente) certos conjuntos de pedras
ou de outros marcadores dispostos Um pouco adiante no diálogo,
em configurações geométricas Sócrates legisla que, na idade de 20
quadradas ou retangulares (não anos, os jovens que são escolhidos
quadradas). A questão é o que Platão para seguir o caminho para tornarem-
fez com a tendência “natural” à se governantes serão ensinados de
abstração que ele encontrou na um modo mais sistemático (e
prática matemática grega. avançado) os “temas que aprenderam
sem nenhuma ordem particular
A resposta parece ser que ele quando crianças [e que] agora devem
encontrou um bom bocado que era agrupar para formar uma visão
que fornece luz para tudo. E assim apreender e aprender mais fácil
que tiverem visto o bem em si e rapidamente os assuntos que
mesmo, devem, cada um em turno, são de maior importância e de
pôr a cidade, seus cidadãos e eles maior valor. Não penso, porém,
próprios em ordem, servindo-se dele que seja adequado aplicar o
como modelo” (R. 540a7-bl). termo “filosofia” a um
Contudo, dificilmente parece que dez treinamento que nada nos serve
anos de treinamento em matemática no presente para nossas falas ou
avançada seriam necessários se o ações, mas o chamaria antes
propósito desse treinamento ginástica da mente e uma
consistisse meramente em dar a preparação à filosofia.
disciplina mental para aprimorar o (Antidosis 265-6, em Isócrates,
intelecto à dialética ou para 1956, p. 333)
acostumar a alma a dar às costas ao
concreto e sensível em direção ao No que parece ser uma
abstrato e universal. Uma posição observação dirigida aos “matemáticos
“puramente instrumentalista” do va- profissionais”, Isócrates observa que
lor da matemática poria esse valor no
que Burnyeat chama “treinamento alguns dos que se tomaram tão
mental”: é uma posição que “implica completamente versados
que o conteúdo do currículo nesses estudos a ponto de
matemático é irrelevante ao seu ensinar outras pessoas não
objetivo” (Burnyeat, 2000, p. 3). conseguem usar o
conhecimento que possuem
Como Burnyeat observa, houve com oportunidade, ao passo
certamente representantes desta que nas
posição que eram contemporâneos
de Platão. Talvez o mais notável tenha
sido o retórico Isócrates, do quarto
século a.C. Ele sustenta que, por meio outras atividades da vida eles
do estudo da geometria e da as- são menos cultivados do que
tronomia (juntamente com o seus estudantes – hesito em
argumento “erístico”), dizer menos cultivados do que
seus servidores. (Panathenaicus
Ganhamos o poder... de 28-9, em Isócrates, 1956, p. 391)
enfatiza, um número grego (arithmos) pelos que “dizem que os números são
deve ser uma pluralidade definida substâncias separadas e a primeira
(não infinita) de unidades (monades), causa das coisas” (Metaph.
em que a unidade é ou um (tipo de) XIII.6.1080al3-14), “depois de 1, [há]
objeto físico ou uma unidade um
“abstrata”; na verdade, até os
cálculos mais simples (adição, 2 distinto, que não inclui o primeiro 1,
subtração) baseia-se no tratamento e um
dos números como coleções de 3 que não inclui o 2, e os outros
unidades (Pritchard, 1995, p. 65, 123). números de modo similar” (1080a33-
Se (como Platão pode sugerir no 5). Há, portanto, um tipo de
Fédon 101b ss.) a causa de um grupo descontinuidade – uma “desco-
de cinco coisas ser cinco quanto ao nexão”, se você quiser – entre esses
número e um grupo de três coisas ser números “superiores” (Forma?) e os
três em número é a participação números encontrados na prática
destes grupos nas Formas não matemática real.
compostas, eternas, imutáveis do
cinco-em-si e do três-em-si, A evidência sugere que a metamate-
respectivamente, estas Formas não mática pitagorizante e dirigida para
vão ter muito uso no cálculo cima estava em grande parte
aritmético (ou na teoria numérica desligada da prática matemática
antiga). técnica real e tinha pouca influência
sobre ela. Quando tomamos em
Apesar do conteúdo da discussão consideração a matemática antiga
crítica de Aristóteles (que começa no que passou para o “cânone
sexto capítulo do livro XIII da matemático” ocidental – a de Eudoxo,
Metafísica) dos asumblêtoi arithmoi Menecmo e Euclides, a de
(números não comparáveis) ser Arquimedes e Eratóstenes, de
controverso, ele parece estar obser- Apolônio de Perga, de Diofanto e
vando que os “números Papus – as características
matemáticos” (isto é, os números de pitagorizantes não parecem ser
fato usados pelos matemáticos) essenciais às realizações matemáticas
devem ser constituídos por unidades técnicas. Um dos métodos de
comparáveis ou mônadas. Porém, a Menecmo para determinar duas
respeito dos números postulados proporções médias em uma
sensíveis e das Formas, ele diz suas construções e provam seu teo-
que existem os objetos remas sobre as Formas (que são
matemáticos (ta mathêmatiká), “únicas” e sui generis), mas,
que ocupam tuna posição tipicamente, usam múltiplas
intermediária, diferindo dos entidades do mesmo tipo – círculos,
objetos sensíveis por serem triângulos, parábolas, unidades,
eternos e imutáveis; das coleções de unidades – que são
Formas, por serem muitos, ao pensadas como sendo manipuladas
passo que a Forma em si mesma de vários modos nas construções e
é única em cada caso. (Metaph. provas.
I.5.987bl4-18, trad. W. D. Ross)
Aristóteles, obviamente, rejeita a
Penso que devemos aceitar a con- inferência do platonismo operacional
clusão de Julia Annas que, embora ao metafísico. Embora alguns dos
possa detalhes da doutrina do próprio
Aristóteles estejam longe de ser
haver referências a ta mathêmatika translúcidos, ele parece ter sus-
como ta metaxu (“intermediários” tentado um tipo de doutrina
ontológicos entre as Formas e os abstracionista-construtivista dos
objetos sensíveis) em vários lugares objetos das ciências matemáticas.
do corpus platônico, “Platão em Alguns estudiosos acreditam que a
nenhum lugar explicitamente se vale evidência que o próprio Platão fez tal
do argumento em seu favor que inferência é tão fraca que eles se
Aristóteles trata como canônico” recusam a atribuir-lhe uma doutrina
(Annas, 1975, p. 147). Este argumento dos “intermediários” ontológicos
é realmente um argumento a partir da matemáticos. De modo não
prática matemática embutido na surpreendente, o resultado é frequen-
citação anterior do quinto capítulo da temente uma interpretação
Metafísica I: os matemáticos não propriamente aristotélica da
fazem suas construções nem provam matemática em Platão: por exemplo,
seus teoremas sobre (coleções de) na avaliação de Pritchard,
objetos físicos, mas usam em suas
provas círculos, triângulos, parábolas, Nem Platão nem Aristóteles se
unidades e coleções de unidades comprometem com uma
“eternas e imutáveis”. Eles não fazem ontologia de objetos
apresenta a situação, o uso obstinado 30b) e pelo sucesso dos métodos dos
de Sócrates do método de questão-e- matemáticos de sua época que ele to-
resposta que chamamos “o elenchus” mou para superar as limitações do
mostrou que a capacidade humana método elêntico de Sócrates (Vlastos,
para alcançar a real sabedoria é 1991: cAp. 4) (ver o capítulo Platão e
extremamente limitada (ver o a Matemática) e, de outro lado pelo
fito do estatuto divino para os
capítulo O Elenchus Socrático) e deste iniciados (especialmente a imorta-
modo reafirma a insistência apolínea lidade), como expresso por algumas
no fato da fragilidade e ignorância formas recentes de religião pós-
humanas diante do divino. Assim, Hesiódica que entraram na Grécia.
embora uma dose parcial de Consequentemente, sua teologia
conhecimento moral é tornado filosófica oferece a esperança não
possível ao se manter numa vigilância socrática de um pós-morte de íntima
filosófica contínua por meio do exame contemplação das Formas no reino da
elêntico de si mesmo e dos outros, as divindade (Phd. 79c-84b; R. 490a-b;
perspectivas para a perfeição humana Phdr. 247d-e). No esquema de Platão,
– sobretudo se comparada à perfeição o autoconhecimento leva não tanto a
e felicidade divinas – se mostram uma apreciação dos limites, então,
muito pálidas. O “conhece-te a ti que à conscientização de que somos
mesmo” é, neste sentido, como divinos: intelectos imortais já têm
sempre foi para os companheiros dentro de si, se puDemos rememorá-
gregos de Sócrates, conhecer quão lo, todo o conhecimento que se pode
realmente ignorante se é e quão ter (Men. 81c-d; Phd. 72e-77e; Smp.
realmente longe do divino se está. 210a-211b). Neste esquema, há
pouco lugar para a piedade socrática,
Platão, todavia, se mostrou muito já que agora a tarefa principal da
mais filosoficamente ambicioso e existência humana se torna menos
otimista a respeito de nossas uma questão de assistir os deuses e
capacidades de conhecimento e mais uma questão de se tornar
sabedoria. A teologia filosófica de semelhantes a eles tanto quanto pos-
Platão foi influenciada, de um lado, sível (p. ex., Tht. 172b-177c). Este fato,
pela nova concepção intelectualista aliado à psicologia mais complexa que
de Sócrates da piedade como um Platão
“cuidado da alma” elêntico (Ap. 29d-
falsos em seus núcleos, Sócrates Ll: Deus não é a causa (aitia) de todas
provê os educadores de Calípolis com as coisas, mas somente das coisas
um “esboço de teologia” (tupoi boas; o que quer que cause coisas
theolo- gias: 379a5-6) em duas partes, más, a causa não é divina (380c6-10;
estabelecendo um par de Leis que 391el-2; ver Lg. 636c, 672b, 899b,
devem garantir uma imagem 900d, 941b).
razoavelmente acurada da divindade
(379a7-9) (Ll, L2a, L2b abaixo): O argumento para a conclusão 7
é uma inferência razoavelmente
1. Todos os deuses são seres cogente, mas devemos perguntar
[inteiramente] bons (379b 1-2). como Platão pode simplesmente
2. Nenhum ser [inteiramente] bom é pressupor a verdade da premissa
prejudicial (379b3-4).
3. Túdo o que não é prejudicial não não homérica 1, a qual, uma vez
causa dano (379b5-8). concedida, dirige o resto do
4. Túdo o que não causa dano não argumento (a premissa 2 também é
causa o mal e, então, não é causa questionável). Ele pode fazer isso,
do mal (379b9- 10). penso, por causa da piedade socrática
5. Seres bons trazem benefícios a que herdou: os deuses são bons
outras coisas e, então, são causas porque são sábios (ver também Lg.
do bem (379bll- 900d, 897b) e são sábios por causa de
sua própria natureza. Dito isso,
14). todavia, ficamos ainda pensando
como a nova poesia deverá
6. Assim, seres bons não são causas representar as causas do mal, o que
de todas as coisas, mas somente podem ser estas causas e como elas
das coisas boas e não das coisas podem coexistir dentro de um cosmos
más (379bl5-379cl). governado por deuses omnibene-
volentes. Sobre este ponto, Sócrates
7. Portanto, os deuses não são causa parece ficar em silêncio, enquanto as
de tudo – como a maioria das histórias tradicionais dos poetas eram
pessoas pensa – mas suas ações capazes de dar uma forma catártica
produzem as poucas coisas boas e aos temores de suas audiências (p.
nunca as muitas coisas más que ex., Od. 1.32-79; Hesíodo Op. 58- 128).
existem (379c2-8; 380b6-c3). O próprio Platão trata desta questão
c);
racional.
8. O cosmos é belo e seu Artesão é
madura de Platão desta ideia no bom.
Timeu e em outros diálogos é uma 9. Portanto, o cosmos “é a obra de
tentativa consciente de confutar os arte, modelada com base no que é
materialistas que negam a prioridade imutável e é apreendido por um
da alma sobre o corpo (27d-29b; ver discurso racional, isto é, pela
também Phlb. 30c-d; Lg. 889b-c, sabedoria” (29a6-bl).
891e-899d). O “discurso provável”
(29b-d) que Platão avança é, em A tese que o Artesão é bom na
breve, que: premissa (8) parece surgir das nuvens,
mas é talvez a ser inferido da beleza
1. O cosmo é algo perceptível e evidente e ordem do Cosmos e de seu
ordenado. desígnio providencial- mente
2. Todo perceptível ordenado é algo benéfico aos homens (ver Xenofonte,
que vem a ser. Mem. 1.4.10-19; ver também 4.3.2-
3. Assim, o cosmos não é eterno, 14). De qualquer modo, desta
mas veio a ser. bondade é então suposto se seguir
4. Todo ordenado que vem a ser tem que o Demiurgo não tinha nenhuma
um artesão como a causa de seu vir inveja antes da criação, donde ele
a ser. desejou que tudo existisse como ele
5. Assim, o cosmos tem um Artesão tanto quanto possível. Este desejo
como a causa de seu vir a ser. então levou o Demiurgo a pôr ordem
6. O Artesão-causa do cosmos no movimento desordenado
modelou o cosmos segundo um de recalcitrante da matéria visível
dois tipos de modelos: (a) um tornando-o inteligente tanto quanto
modelo imutável apreendido pelo possível (não pode ser tornado
entendimento racional ou (b) um perfeitamente bom porque sua
modelo mutável apreendido pela desordem natural é imune mesmo ao
opinião ligada à percepção enorme – embora não onipotente
sensível.
7. Se o cosmos é belo e seu artesão é - poder desse deus (ver n. 3)). Isso
bom, então seu artesão se serviu exigiu que ele pusesse inteligência na
de (a) um modelo imutável Alma-do-Mundo, colocando esta
apreendido pelo entendimento alma no corpo do Cosmos, criando
atenção é bem breve, tomando difícil mas sim outra coisa, às vezes a
dizer com confiança se a contestação ira, por vezes o prazer, outras
à leitura tradicional vinga. vezes a dor, outras vezes o
Consequentemente, toda amor, frequentemente o medo,
argumentação que pugne pela pensando simplesmente que o
compreensão de Aristóteles da conhecimento é chacoalhado
posição de Sócrates deverá fundar-se por todas estas coisas como se
na evidência obtida no Protágoras. fosse um escravo. (Prt. 352b4-
cl).
O ARGUMENTO DE
SÓCRATES CONTRA “A O fracasso do conhecimento em
MASSA” NO PROTÁGORAS sempre dirigir quem o possui,
aprendemos algumas linhas abaixo, se
No Protágoras 351b3, Sócrates deve ao fato que ele pode ser
abruptamente interrompe sua “vencido pelo prazer ou dor” (352e6-
investigação da relação entre a 353al).
sabedoria e a coragem para fazer
Convém fazer duas observações
de início. Primeiro, a referência ao
conhecimento sendo “chacoalhado
uma outra investigação. Ele agora se como um escravo” sugere fortemente
imagina questionando “a massa” (hoi que Aristóteles está pensando
polloí) sobre a posição dela que por justamente nesta passagem quando
vezes uma pessoa faz atribui a Sócrates a negação de AC.
voluntariamente o que é mau para Porém, em segundo lugar, a massa
ela, ainda que saiba que é um mal inicialmente formula sua posição em
para ela. A massa, segundo Sócrates, termos da insuficiência do
sustenta que o conhecimento conhecimento em resistir ao prazer. A
(epistêmê) massa começa caracterizando sua
posição em termos do que estamos
Não é um elemento forte, nem chamando “akrasia-conhecimento”
dirigente nem que comanda... ou ACo. A massa sustenta que ACo
mas frequentemente, quando o ocorre às vezes. Podemos agora
conhecimento está presente em formular a caracterização inicial de
uma pessoa, ele não a governa, Sócrates da posição da massa de um
modo algo mais formal como segue: riqueza” (354b2-5). Ademais, a massa
estima essas coisas como boas
(ACo) Por vezes uma pessoa, P, faz X, porque elas resultam em prazer (e
que sabe ser mau para ela, porque P é alívio da dor), o que faz valer a dor
vencido pelo prazer. que deve ser inicialmente suportada.
argumentam que Sócrates não adota que é melhor para si, obtemos “P é
em nenhum lugar o hedonismo (ver, vencido por um desejo do que é
por exemplo, Sullivan, 1961, melhor para si”. Porém, não faz
sentido dizer “P deixa
conscientemente de fazer o que é
melhor para si, isto é, P
p. 10-28; Vlastos, 1969, p. 71-88; Zeyl, conscientemente escolhe o que é pior
1980, p. 250-69). para si porque quer o que é melhor
para si”.
A esta altura, Sócrates anuncia,
de modo críptico, que é a adesão da Infelizmente, esta leitura
massa ao hedonismo que fará por fim distorce pesadamente a posição da
afundar ACo (355al-bl). Para ver o massa. Como 355a6-b3 mostra, a tese
problema, ele sugere que devemos da massa é que P é vencido não por
simplesmente substituir “prazer” por um desejo do que é em geral melhor
“bem” e “dor” por “mal” em AC para ele, mas pelo desejo de algum
(355a3-bl), obtendo AC’: prazer imediato, um prazer que pode
obter não fazendo o que sabe que é
(AC) Por vezes uma pessoa, P, faz X, melhor em geral para si. Escolhendo
que sabe ser mau para ela, porque ela X, diria a massa, P sabe perfeitamente
é “vencida pelo bem”. bem que não está fazendo o que em
geral é melhor para ele, mas seu
(AC), porém, é “absurdo” desejo pelo prazer à mão, isto é, o
(geloion, 355c8-d6), segundo bem à mão, o derrota e “chacoalha
Sócrates. Por quê? seu conhecimento como a um
escravo”. Se AC’ for absurdo, não é
Talvez seja tentador pensar que porque é autocontraditório.
AC’ é absurdo porque é auto-
contraditório. Este é o modo como Se a massa persistir em sua
Vlastos primeiramente entendeu o posição, ela deve estar preparada
problema com AC’ (Vlastos, 1956, p. para dizer que, quando P age
xxxix). De acordo com essa acraticamente, ele conscientemente
interpretação, quando substituímos renuncia a um pacote maior de bens
“prazer” por “bem” na explicação da porque há algo a respeito de um bem
massa de por que P não faz o que sabe que está imediatamente à mão que
A tese da estabilidade do
conhecimento não explica somente as
referências de Sócrates à força do e a crença são sempre suficientes
conhecimento em um modo que a para se fazer o que se toma como o
tese da suficiência do conhecimento melhor para si? Ao fazer esta tese,
ou crença não consegue: a tese da es- Sócrates está falando do estado de
tabilidade do conhecimento também mente do agente no momento da
atribui a Sócrates uma epistemologia ação e não há nada da tese da
moral muito mais interessante, que estabilidade do conhecimento que
permite explicar por que Sócrates entre em conflito com a convicção de
sustenta que o conhecimento “salva Sócrates de que todas as ações são
nossas vidas” (356e2). Segundo a tese motivadas pelo desejo racional. A
da suficiência do conhecimento ou tese da estabilidade do conhecimento
crença, P pode saber em ti queX é mau mantém somente que, se P tem um
para si e então em t2 sucumbir ao conhecimento moral, ele não vai
poder da aparência, abandonando balançar ao longo do tempo sobre o
seu conhecimento em prol de uma que é bom e mau para si. Se, porém,
crença falsa, talvez mesmo P possui uma mera crença, P pode
desastrosamente falsa. Porém, isso mudar sua posição à medida que
dificilmente é uma tese do circunstâncias diferentes surgem nas
conhecimento como um poder que quais X aparece mais prazeroso do
“salva nossas vidas”. A tese da que de fato é. A afirmação de Sócrates
alma? Sócrates pode pensar que a Sócrates diz que cometer uma ação
ação injusta, de algum modo, destrói injusta é a pior coisa que podemos
o poder da alma de realizar sua fazer para nós mesmos, pois, à medida
função. Para ver como que fortalece nossos apetites, destrói
nossa mais preciosa posse, que é a
capacidade da alma de se envolver na
atividade que nos dá uma vida
isso pode ocorrer, voltemos às propriamente humana (Brickhouse e
observações de Sócrates no Górgias Smith, 2002, p. 26-31). Embora a
acerca da importância dos apetites noção que ninguém comete uma
estarem ordenados e disciplinados se injustiça voluntariamente é altamente
queremos ser felizes. Lá Sócrates disse paradoxal, a aceitação destas teses
que nos é necessário impedir que nos- sobre o crescimento do apetite, o
sos apetites “se saciem por eles cometer uma injustiça e a destruição
próprios” porque, ao fazer isso, eles se de nossa capacidade de deliberar
tomam cada vez menos disciplinados. convencem Sócrates que ninguém
Como argumentamos na seção que compreende o que ele está fa-
anterior, podemos entender isso se zendo para si mesmo por meio da
Sócrates quiser dizer que os apetites injustiça faz o que é injusto
fortes são a causa da pessoa acreditar involuntariamente.
que um objeto do apetite é de fato
bom, quando não o é. Já que os SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES
objetos prazerosos sempre parecem
bons, se devemos encontrar o que é Platão e Aristóteles concordam com
realmente bom entre as aparências, é Sócrates que o conhecimento é
necessário ser capaz de deliberar bem suficiente para fazer o que é bom.
a respeito de as escolher. Porém, se o Porém, porque Sócrates crê que
apetite forte é de fato suficiente para nossas ações são sempre
se crer que o objeto deste apetite é empreendidas na busca do que
bom, um apetite forte é claramente tomamos como sendo um bem, sua
incompatível com todo tido de psicologia moral é de modo impor-
deliberação efetiva sobre nosso bem tante diferente da de Platão ou
(ver o capítulo O Conceito de Bem em Aristóteles.
Platão). Isso nos permite –
sustentamos nós – ver por que Muitos estudiosos sustentam que
suposições que incluem a Teoria das alma seja separável do corpo, ela
Formas e a identificação so- crática da pode perecer assim que sai do corpo.
virtude ao conhecimento. As de- Isso fornece a ocasião para uma série
finições da morte e da purificação de argumentos da parte de Sócrates
supõem ambas que cada pessoa tem que a alma é imortal e indestrutível.
uma alma, assim como um corpo,
cada um dos quais vindo a separar-se Em seu argumento do ciclo (Phd.
em si mesmo por si mesmo do outro. 70d-72e), Sócrates relembra uma
Se os interlocutores de Sócrates “história antiga” envolvendo a
tivessem posto em questão estas reencarnação: as almas dos mortos
suposições, teria sido difícil dar início vão para o mundo inferior e então
ao argumento (ver o capítulo retomam para renascerem. (Para
Problemas para as Formas). É de se outras referências à reencarnação,
observar também que a alma e o ver Phd. 107c-108a; Men. 81b; R.
corpo são aqui tratados em um X.615a-619e; Grg. 493a; Phdr. 248b-e,
mesmo nível, uma tese que será 250b-c; Ti. 44c, 89e-
refeita mais tarde. Visto que a
expressão “em si mesmo por si -90d.). O argumento do ciclo
mesmo” (auto kath’ hauto) é aqui apresentado como apoio a esse
aplicada tanto à alma quanto ao dogma religioso pode ser
corpo, Sócrates dá a entender que reconstruído do modo seguinte:
têm naturezas ou identidades
distintas. O argumento tampouco é 1 Se existe um processo de 01 a 02
claro sobre a natureza da alma. Ele também há um processo de 02 a Oi
associa desejos, prazeres e dores com (em que Oi e 02 são opostos). Por
o corpo, contudo indica que as almas exemplo, o aquecimento é um
frequentemente estão em uma processo do frio ao calor e
condição impura após a morte, isto é, resfriamento é um processo do
atadas a desejos, prazeres e dores. quente ao frio (71al2-b4).
Isso implica que a alma tem uma na- 2 Se coisas viessem a ser 02 a partir
tureza complexa, que envolve de 0lt mas não Ox a partir de 02,
capacidades conativas em acréscimos tudo terminaria tendo a mesma
às cognitivas. forma; por exemplo, tudo
terminaria sendo quente (72all-
Cébes objeta que, mesmo que a b5).
isto é, um objeto particular com uma (5.3) , a tese crucial que a alma é o
essência. Uma essência é uma princípio de animação? E como está
propriedade básica que define o que relacionado a outras indicações no
é a coisa e toma necessárias suas Fédon que a alma é sobretudo um
outras propriedades. Assim como o princípio racional? Para encontrar as
fogo é necessariamente quente e a respostas, é preciso voltar-se a outros
neve é necessariamente fria, a alma é diálogos.
necessariamente viva. Cada portador
especial porta suas propriedades A ALMA TRIPARTITE
necessárias a tudo o que ocupa e
exclui as propriedades opostas. Esta A teoria que a alma tem três partes é
interpretação requer que atribuamos desenvolvida na República, Fedro e
um conceito de essência a Platão (ver Timeu. A teoria é defendida mais
Silverman, 2003), bem como um sistematicamente na República, em
conceito apoio ao argumento de Sócrates que
uma pessoa justa vive melhor que
de substância que antecipa uma pessoa injusta. Para explicar a
Aristóteles (ver o capítulo natureza da justiça, Sócrates
Aprendendo sobre Platão com desenvolve uma analogia minuciosa
Aristóteles). Porém, tem a vantagem entre a alma e o Estado, ambos os
de evitar a falácia lógica antes quais têm três partes. A justiça se dá
mencionada. Mesmo assim, o último quando cada parte leva a cabo sua
passo permanece problemático. função própria e quando a parte que
Mesmo que a alma seja neces- naturalmente comanda é obedecida
sariamente viva (5.6), isso significa pelas outras partes. No caso de uma
somente que a alma está viva alma justa, a parte racional
enquanto existe. Não se segue que a (logistikon) naturalmente comanda e
alma sempre exista ou esteja viva é obedecida pelo impulso
(5.8). (Ver Frede 1978 e Weller 1995 (thumoeides) e apetite
para uma interpretação nesta linha.) (epithumêtikon) (ver o capítulo Platão
e a Justiça).
O argumento final deixa uma
outra questão sem resposta: qual é a Em seu argumento em prol da
base para alma tri- partite na República iy
Sócrates distingue as partes da alma
Tendo distinguido as partes da 7.1 Hido tem seu bem e seu mal
alma, Sócrates apresenta um natural.
princípio normativo, a regra da razão:
“não é apropriado à parte racional 7.2 Uma coisa só pode ser destruída
comandar, visto que é realmente pelo seu mal natural.
sábia e prevê em benefício de toda a
alma?” (441e4-5). A razão visa ao bem 7.3 O mal natural da alma é a injustiça
comum em que cada parte da alma e o vício.
tem seus próprios desejos e valores. A
parte apetitiva deseja comida, 7.4 A alma não pode ser destruída
bebida, sexo e, acima de tudo, di- pela injustiça e vício.
nheiro, que pode ser usado para
satisfazer outros apetites; a parte 7.5 Portanto, a alma é indestrutível e
Bobonich, C. (1994). Akrasia and Frede, D. (1978). The final proof of the
agency in Plato’s Laws and Republic. immortality of the soul in Plato’s
Archiv für Geschichte der Phi- losophie Phaedo 102a-107a. Phronesis 23, pp.
76, pp. 3-36. Reimp. em E. Wagner 27-41. Reimpr. em E. Wagner (ed.)
(ed.) (2001) Essays on Plato’s (2001) Essays on Plato’s Psychology
Psychology (pp. 203-37). Lanham, (pp. 281-96). Lanham, Md.: Lexington.
Md.: Lexington.
Gallop, D. (1982). Plato’s “cyclical”
Broadie, S. (2001). Soul and body in argument recycled. Phronesis 17, pp.
Plato and Descartes. Proceedings of 207-22. Reimpr. em E. Wagner (ed.)
the Aristotelian Sotiety 101, pp. 295- (2001) Essays on Plato’s Psychology
308. (pp. 263-80). Lanham, Md.: Lexington.
capaz de dizer e viver uma história (218b8-e5), pois Alcibíades não tenta
coerente, seu desejo, para falar de ganhar o amor de Sócrates
outro modo, de não continuamente empreendendo a difícil tarefa de
se frustrar e estar em conflito porque autotransformação que é necessária
está reiteradamen- te tentando viver para se tornar mais virtuoso e, assim,
uma história incoerente de amor. uma pessoa mais verdadeiramente
bela e amável. Ao invés disso, ele
Na história de amor de segue o caminho fácil e bem
Alcibíades, em particular, estes dois conhecido de oferecer os atrativos
desejos estão na cena de modo auto físicos que já possui, os que lhe
consciente: “Sócrates é o único fizeram ganhar a aprovação da massa.
homem no mundo que me fez sentir Quando estes fracassam, é à massa
vergonha... sei muito bem que não (na forma dos festivos báqui- cos que
posso provar que ele está errado encontramos no final do Banquete)
quando me diz o que deveria fazer: que ele retomará regredindo, nunca
todavia, assim que deixo de estar ao tendo realmente conseguido dar a
seu lado, volto aos meus modos guinada.
antigos: me afundo no meu desejo de
agradar a massa” (216c8-b5, trad. de Que nunca tenha dado a guinada
Nehamas e Woodruff). Mesmo esta é tornado ainda mais vivido em uma
consciência do conflito, tal como das passagens mais intrigantes do
manifestada aqui, não é, todavia, Banquete. Sócrates, diz Alcibíades, é
garantia de uma solução satisfatória,
pois o novo amor – o que parece dar irônico (eirôneuomenos) e passa
coerência, satisfação e alívio da a vida inteira se divertindo com
vergonha – pode se revelar como as pessoas. Porém, não sei se
sendo a antiga frustração disfarçada. alguém mais já viu as imagens
dentro dele (ta entos agalmatá)
A famosa tentativa fracassada de quando está sério e aberto, mas
Alcibíades em seduzir Sócrates mostra eu as vi uma vez e pensei que
que eram tão divinas e áureas, tão
magnificamente belas que eu
simplesmente tinha de fazer
tudo o que Sócrates me dizia.
isso ocorre também em seu caso (216e4-217a2)
Para os que pensam que Sócrates cujo objeto é a alma e cujo fim
é uma personagem profundamente consiste em instilar a virtude no
irônica, é um momento homem mais jovem, e o mau amor
surpreendente, no qual Sócrates é Pandêmio, cujo objeto é o corpo e
visto sem a máscara de sua burlesca cujo fim é o prazer sexual para o
modéstia. Infelizmente, como ocorre amante mais velho (180c3-e3). O que
muitas vezes nos casos de amor, causa a divisão é a necessidade que
estamos lidando com fantasia. O que sente o amor Pandêmio de se
Alcibíades pensa que vê em Sócrates mascarar como amor Urânio a fim de
são as virtudes embrionárias, que – preservar a ilusão que a participação
como espermatozóides na do jovem nele é compatível com sua
embriologia que o Banquete condição de um futuro cidadão. O
implicitamente adota quando fala do jovem não pode, então, estar
amante como prenhe e à busca de um motivado por um desejo repreensível
belo rapaz em quem gerar um rebento de adotar o papel passivo, servil,
– precisam somente ser ejaculadas no feminino de buscar prazer. Ao invés
receptáculo correto para se disso, um outro motivo tem de ser
desenvolver em suas formas maduras inventado para ele: a presteza em
(209a5-c2). Sexo pode levar à virtude, aceitar “a escravidão com vistas à
em outras palavras, sem a virtude” (184c2-3).
necessidade de trabalho duro. Assim
que a ilusão é desfrutada, portanto, O principal custo de preservar
ela dá à luz não a uma tentativa esta divisão, todavia, é que a relação
realista de adquirir a virtude, mas à sexual centrada no corpo do homem
fantasia de sedução sexual mais velho deve ser escamoteada em
mencionada antes. uma relação de um tipo mais
respeitável. A reminiscência-
As origens desta fantasia – descrição posterior que Alcibíades faz
embora, sem dúvida, em parte das imagens internas de Sócrates
pessoal – são predominantemente mostra um Alcibíades que sucumbe à
sociais. É a complexa ideologia da dupla visão que resulta
paiderastia ateniense que deu forma inevitavelmente:
aos desejos de Alcibíades, pois,
segundo ela, o amor é realmente Se você escutar seus
“duas coisas”: um bom amor Urânio, argumentos, eles vão primeiro
lhe parecer como totalmente ri- dito sobre o amor por Sócrates e
dículos; eles estão revestidos de pelos outros na casa de Agatão. Ele
palavras tão rudes como as escutou um relato confuso. Ele quer
peles usadas pelos mais agora que Apolodoro lhe diga o que
vulgares sátiros. Ele está sempre realmente foi dito. Apolodoro,
falando de burros de carga, porém, tampouco estava presente.
ferreiros, sapateiros ou Ele tem um relato de segunda-mão,
curtidores... Porém, se os por meio de Aristodemo. Todos estes
argumentos são abertos e se homens, que deveriam estar à caça de
olha para eles desde dentro, se rapazes, são apresentados como tão
verá primeiro que são os únicos absorvidos com Sócrates e suas
argumentos que têm algum conversas que um deles – Apolodoro
sentido e, depois, que contêm – faz questão de saber exatamente o
dentro de si multidões de que Sócrates faz e diz a cada dia
imagens de virtude (172c4-6), ao passo que outro –
[agalmat’aretês) Aristodemo – está tão avançado em
completamente divinas. (221el- sua paixão por Sócrates que anda de
222a4, parcialmente adaptado pés descalços, como seu amado
da tradução de Nehamas e (173bl-4). Uma razão para este
Woodruff) cenário complexo consiste em nos
fazer ver o impacto inversor de
Para Alcibíades, então, o corpo Sócrates, e portanto da filosofia, nas
de Sócrates é idêntico às suas normas da paide- rastia ateniense.
palavras; as Uma outra é mais sutil. O amor de
Alcibíades por Sócrates se centra nas
belas imagens de virtude que pensa
ver jazendo por baixo dessas
virtudes que estão nele estão nelas; “palavras tão rudes como as peles
falar de filosofia é ter relação sexual, usadas pelos mais vulgares sátiros”,
e vice-versa. que são o análogo para ele do corpo
de Sócrates, feio e similar ao de um
AMANDO SÓCRATES sátiro. (215b3-4). O amor de
Aristodemo por Sócrates, em
No início do Banquete, um homem contraste, parece centrar-se em seu
não identificado quer saber o que foi exterior rude, de modo que
uma ascensão anterior ao dar à luz, fim, contudo, o cavalo preto força o
feita em companhia de um deus (ver condutor e o cavalo branco “a se
o capítulo Platão e a Reminiscência). dirigir ao amado e a lhe mencionar as
delícias do sexo”
Do rico relato literário dessa
ascensão, temos de pinçar somente
uma ideia: as almas têm estruturas
psicológicas diferentes em função de (a5-7). Eles de novo se refreiam,
que deus seguiram; isso estabelece “indignados por serem forçados a
um limite superior sobre o quanto das fazer coisas terríveis e impróprias”
Formas elas veem e, assim, o quanto (bl). Porém, finalmente, “quando não
podem subsequentemente há mais limite à aflição deles, seguem
rememorar. Visto que ter acesso às a condução dele, cedendo e concor-
Formas alimenta e robuste- ce o dando em fazer o que ele lhes diz”
elemento racional na alma (248b5- (b2-3). Ao se aproximarem do amado,
c2), isso também ajuda a determinar todavia, para iniciar a relação, o brilho
sua estrutura motivacional: quanto do rosto do amado relembra ao
mais forte for a razão, mais provável condutor o Belo-em-si, de modo que
será que tenha sucesso em controlar sua memória “a vê novamente
os outros elementos na alma. figurando junto à temperança, em um
pedestal sagrado” (b5-7). Ele se
Os seguidores de Zeus, por assusta e “em súbita reverência cai de
exemplo, escolhem para amar alguém costas e é obrigado ao mesmo tempo
cuja alma se assemelhe à de seu deus a puxar as rédeas tão violentamente
condutor. Assim, buscam alguém que que os cavalos caem sobre suas coxas,
é “naturalmente disposto à filosofia e um de bom grado, por conta de sua
liderança e, quando o encontram e se falta de resistência a ele, mas o cavalo
apaixonam, fazem tudo para que se buliçoso de muito mau grado” (b7-
torne filosófico” (252el-5). Contudo, o c3). Por fim, “quando a mesma coisa
enamorar-se acarreta um enorme ocorre ao cavalo mau por muitas
distúrbio psicológico. O cavalo preto vezes, ele deixa que o condutor
do apetite imediatamente se lança à conduza com sua previdência” (e5-7).
relação sexual. O cavalo branco, Se esse controle do apetite pela razão
“constrangido, então, como sempre, e impulso continuar – mesmo quando
pela vergonha” (254a2), se afasta. Por o rapaz aceitou seu amante e o
abraça, beija e deita com ele – e os Donde eles não são punidos na vida
levar a “uma vida bem ordenada e à seguinte, mas ajudados no caminho à
filosofia”, eles serão ditosamente futura felicidade conjunta (c7-e2).
felizes aqui na Terra e, se viverem esta
vida por três reencamações, terão O amor que é uma loucura divina
suas asas crescidas novamente e é uma boa coisa, portanto,
retomarão ao convívio de seu deus especialmente quando,
(255e2-256b7). “acompanhado de discussões
filosóficas (erôta meta philosophôn
Quando os seguidores de Ares se logôn)” (257b6), leva ao Belo-em-si e
apaixonam, por outro lado, eles às outras Formas, que são o que –
“adotam um modo inferior de vida, identificadas acima de tudo com o
não filosófico, mas amante da honra” elemento racional em nossas almas –
(256b7-cl). Quando estão bebendo amamos e desejamos
juntos, por exemplo, ou estão em verdadeiramente. A questão é: o que
algum outro modo despreocupados, faz com que uma discussão seja
“os cavalos licenciosos em ambos filosófica? O que a torna como
tomam suas almas desguarnecidas” e, devendo ser incluída na verdadeira
visto que a reme- moração do homem arte de amar que o filósofo que ama o
da beleza é mais tênue e não é Belo-em-si pratica? A resposta agora
reavivada pela conversa filosófica, proposta é que deve ser uma technê
terminam por fazer sexo – algo que “a ou arte; portanto, deve ter as carac-
massa considera ser a mais feliz terísticas definidoras de uma arte.
escolha entre todas” (cl-5). Todavia, Aplicado ao amor, por exemplo, deve
não fazem sexo muito começar com uma definição do amor
frequentemente, pois “o que estão e obter suas conclusões mediante a
fazendo não é aprovado pela mente ordenação de sua discussão em
em seu todo” (c6-7). Assim, enquanto relação a ele (263d5-e3). Esta
o grau do amor e da felicidade deles é definição, por sua vez, deve ser
menor do que o do par filosófico, e, à estabelecida pelo que Sócrates se
sua morte, “deixam o corpo sem refere como uma reunião e divisão
asas”, mesmo assim têm um impulso, (266b3-4).
proveniente do amor, a tentar obtê-
las. A reunião é um processo de
“perceber e pôr juntos em uma forma
para sofrer ação e pelo quê”; se for não o é” (271bl-5). Maestria de tal
complexa, devemos contar suas sub- ciência, porém, requer uma coisa
Formas e considerar as mesmas coisas ainda: “o estudante deve observar as
a respeito delas como acerca das coisas como elas são na vida real, ser
simples (270d3-7). Que Sócrates, o posto de fato na prática e ser capaz de
caçador arquetípico de definições as seguir com arguta percepção” (d8-
explicativas (Euthphr. 6d9-e6), deva el). Em outras palavras, não basta
pronunciar-se como “um amante saber que tipos de discursos afetam
destas divisões e reuniões” não causa, que tipos de alma; o orador filosófico
portanto, nenhuma surpresa (266b3- deve também saber que este homem
4). à sua frente é de tal e tal tipo e ser
capaz de falar do modo que vai se
A filosofia visa a definições revelar convincente a ele (e2-272b2).
verdadeiras e a histórias verdadeiras
baseadas nelas (ver o capítulo ESCREVENDO SOBRE O AMOR
Definições Platônicas e Formas).
Porém, ela também visa à persuasão, Ao final do Banquete, Alcibíades foi
visto que o amante filosófico quer embora, presumivelmente na
persuadir seu rapaz a segui-lo no companhia dos festivos báquicos, que
caminho das Formas. Filosofia e aparecem na sua vida como
retórica devem, assim, andar juntas, o representantes de seu amor
que significa que a retórica, também, desbordante de aprovação e adulação
deve ser desenvolvida como uma da massa. Sócrates, Aristófanes e
technê. Ela deve, primeiro, distinguir e Agatão ficam discutindo tragédia e
dar definições comédia: “o principal ponto era que
Sócrates tentava provar-lhes que o
dos vários tipos de alma e tipos de mesmo homem sabe (epistasthai)
discursos, mostrando suas como escrever comédias e tragédias,
capacidades e suscetibilida- des que quem é com base na arte (technê)
respectivas e, segundo, “coordenar um poeta trágico é também um poeta
cada tipo de alma com o tipo de cômico” (223d2-6).
discurso apropriado a ela, explicando
por que um tipo de alma é As palavras-chave aqui, como
necessariamente convencido por um aprendemos no Íon, são epistathai e
tipo de discurso, ao passo que outro technê. Poetas comuns não
re-estabelecer depois que a “peça sá- pagando grandes somas para escutar
tira” de Alcibíades terminou e o o som da música ao invés de sua pró-
bando de festivos báquicos se retirou. pria fala” (347c4-d2). Este é o
elemento de peça satírica no
Diferentemente das Leis, todavia, Banquete: imagens sátiras são
o Banquete também é uma comédia, frequentes na fala de Alcibíades.2
já que
A ideia é a que foi mencionada
contém igualmente uma imitação do antes. Algumas histórias de amor – as
segundo melhor tipo de Banquete boas – são tragédias (no sentido
descrito no Protágoras. É aquele no especial do termo introduzido nas
qual poetas posam como Leis): envolvem o tipo de amor
autoridades, seja estando eles pró- encontrado no melhor tipo de vida,
prios presentes (como Aristófanes uma vida que chega tão próximo
está presente), seja sendo citados quanto possível do divino, no qual
pelos presentes, sem estarem lá para alcançamos a felicidade fazendo com
serem questionados (como Hesíodo e que as coisas boas nos pertençam
Homero estão presentes por meio de para sempre (205dl-206al2). Outras
Fedro) e no qual os participantes histórias de amor são comédias:
“argumentam sobre pontos que não envolvem um tipo inferior de amor.
podem ser estabelecidos com Outras ainda são peças satíricas:
nenhuma certeza” (347el-7). farsas genitais. Porém, a verdadeira
história de amor, a história que é o
Finalmente, Alcibíades chega – o próprio Banquete de Platão, é a
que é bem significativo – com uma história de todas essas histórias. No
flautista (212c5-e3; cf. 176e6-7). Banquete, toma a forma adequada ao
Embora ela não toque, sua chegada seu gênero e audiência. Porém, no
inaugura o declínio do Banquete em Fedro, aprendemos o caminho mais
algo ainda mais parecido com o tipo longo e mais técnico, que tomará no
de Banquete abominado no futuro, quando, secundado de uma
Protágoras como “um Banquete de psicologia e retórica científicas, se
companheiros ordinários, vulgares... toma um assunto de especialistas.
que, incapaz de se entreter uns com
os outros com sua própria conversa,
inflacionam o preço das flautistas,
metade do século vinte, algumas das questão para abordar meu foco prin-
principais questões foram se o cipal: as vantagens teóricas e práticas
Sócrates de Platão ou o próprio Platão que Platão viu na hipótese que o
foi um hedonista por um certo prazer é o bem humano, suas
período e, se não foi, se Platão objeções a esta tese e seus esforços
consegue avaliar e posicionar os para explicar de modo não hedonista
prazeres de modo não hedonista. Há o valor do prazer. Localizo as
estudiosos de ambos os lados: Gosling discussões de Platão sobre o prazer no
e Taylor (1982), Irwin (1995), contexto de sua principal questão
Rudebusch (1999), por exemplo, na ética, como devemos viver,
resposta afirmativa à primeira
questão; Vlastos (1991), Zeyl (1980), e suponho que seu principal interesse
na negativa; D. Frede (1992, 1993) na no hedonismo foi uma resposta a esta
resposta afirmativa à segunda questão.
questão.
OS ATRATIVOS DO HEDONISMO
Estes debates não decidiram as
questões, mas serviram para No Eutifro (7b6-dll), Platão faz
esclarecer a tese de Platão sobre a Sócrates observar que, quando
natureza do prazer, a compreender discordamos sobre o número,
melhor os principais argumentos que tamanho ou peso das coisas,
encontramos nos diálogos de Platão a podemos fazer apelo às artes da
favor e contra a hipótese que o prazer aritmética, geometria e da pesagem
é o bem humano, a ver mais para decidir a disputa; estas
claramente a tese mais sutil do valor discordâncias não nos tomam raivo-
do prazer que Platão terminou por sos e inimigos uns com os outros.
conceber quando discorda do Porém, quando discordamos sobre o
hedonismo. que é justo e injusto, o belo e o
vergonhoso, o bom e o mau, nós nos
Neste artigo, não estou muito tornamos raivosos e inimigos, sendo
preocupado em saber se Platão ou seu incapazes de obter um acordo de
Sócrates foi alguma vez um hedonista, modo similar; nem mesmo os deuses
mas tentarei me aproveitar dos não o conseguem fazer, segundo a
benefícios dos debates sobre esta crença popular. Isso pressupõe que as
ciências dos números, da medida e do
peso não têm aplicação ao bom, belo salvação para nossas vidas? Será
e justo. a arte da medida ou o poder da
aparência?... O que, então,
Porém, no Protágoras (356bl- salvará nossas vidas?
57a3), o Sócrates de Platão diz que, se Seguramente não outra coisa
o bem e o mal forem idênticos ao que o conhecimento,
prazer e dor, então podemos resolver especificamente um tipo de
as disputas sobre o bem e o mal, o medida. (Prt. 356bl-367a3, trad.
justo e o injusto, o belo e o vergonho- de Lombardo e Bell)
so, aparentemente porque as artes do
número, medição e pesagem podem Nestas passagens, vemos Platão
ser aplicadas ao prazer e dor. apresentando um problema
importante em ética e um sonho
O ato de pesar é uma boa ousado de solução. O problema é
analogia: você coloca os como resolver disputas e desacordos
prazeres juntos e as dores sobre o bem, o justo e o belo sem
juntas, tanto os remotos quanto entrar em guerra, em função do fato
os próximos, nos pratos da aparente que as ciências
balança e então diz qual dos dois matemáticas, que de fato nos per-
é o maior, pois, se você pesar mitem resolver desacordos
coisas prazerosas contra racionalmente, não parecem se
prazerosas, aplicar a estes conceitos e entidades
éticos. O sonho ousado é que, em uma
dada hipótese, podemos alojar a ética
não somente na província dos
deve-se sempre escolher a argumentos da razão, como Platão faz
maior e onde houver mais; se Sócrates tentar obter no Críton e no
forem coisas dolorosas contra resto do Eutifro, mas também na
dolorosas, onde houver menos província daquela parte da razão que
e a menor... Se, então, nosso criou a matemática e as artes de
bem-estar dependesse disso, contar, medir e pesar. A hipótese é o
fazendo e escolhendo coisas hedonismo, a ideia que o bem e o
maiores, evitando e não prazeroso são idênticos e que o
fazendo as coisas menores, o penoso e mal são idênticos (Prt.
que consideraríamos como a 355b5-9); temos vários termos, mas
conexões com o justo e o belo, seria possam ter prazer com coisas
suficiente para a virtude. O diferentes, não parece haver uma
conhecimento do prazer e dor seria ambigüidade similar no próprio
necessário e suficiente para a virtude. prazer. Que todos os homens desejam
o prazer parece tão evidente quanto
Por fim, o hedonismo parece ser todos os homens desejam a
uma teoria de direcionamento da felicidade, mas o prazer parece ser um
escolha mais guia para a escolha muito mais claro,
específico e determinado.
determinada que o eudemonismo,
seja o eu- demonismo psicológico (a Para resumir, os principais
ideia que todos desejamos a atrativos que Platão viu no prazer
felicidade como o fim ultimo de todas como o bem são a possibilidade de
as nossas escolhas) ou o eudemo- medir o valor e tornar a ética uma
nismo ético (a ideia que a felicidade é ciência, a possibilidade de pôr todos
o bem humano último e que todo os bens e todas as virtudes no interior
outro bem é bom enquanto um de uma teoria unificada do bem como
constituinte ou um meio a felicidade). um conceito que guia a escolha, uma
Porém, a felicidade e eudaimonia em base para a reivindicação da
grego parecem ser conceitos supremacia socrática do
equívocos. Os homens podem conhecimento na conduta humana e
concordar que o bem humano último os poderes motivacionais e guiadores
é a felicidade, mas, como observa de escolha do prazer e dor.
Aristóteles, isso é um acordo pu-
ramente verbal, já que diferentes Está correto, porém, dizer que
homens entendem a felicidade como Platão não desenvolveu o primeiro e
coisas diferentes, isto é, prazer, mais fundamental destes atrativos e
conhecimento, virtude, mesmo que deixou mais questões que
saúde, quando estão doentes, ou respostas. Para começar, como os
riqueza, quando pobres (EN 1.5). prazeres e dores devem ser medidos?
Pode-se imaginar quão diferentes Em que dimensões, em que escalas e
serão as escolhas quando estas por quais instrumentos? Bentham,
concepções tão diversas da felicidade que desdobrou o cálculo hedonista
são tidas como o fim último ou o bem cerca de vinte séculos mais tarde,
último. Porém, mesmo que as pessoas sustentava claramente que as
nomes, mas realmente somente duas Temos quatro termos e duas coisas; as
coisas e podemos substituir o termo duas coisas são prazer e dor.
“bom” por “prazeroso” e
inversamente, bem como podemos Em suma, no Protágoras, Platão
substituir o termo “dor” por “mau” e faz Protágoras apresentar uma
inversamente. Estas substituições objeção central ao hedonismo – que
permitem, então, que Sócrates há coisas prazerosas, mas más, e
argumente que a explicação da massa, penosas, porém boas – e faz Sócrates
que um homem pode conhecer o me- responder à objeção como respon-
lhor, porém fazer o pior porque foi deria um hedonista, satisfazendo
vencido pelo prazer, é absurda (Prt. aparentemente tanto Sócrates quanto
354b4-356c3). Protágoras.
prazeres que são eles próprios maus, 20b9), ele tenta decidir de um modo
distintos de exemplos de prazeres novo se “o prazer é o bem, ou a
vergonhosos e distintos de complexos sabedoria ou alguma terceira coisa”
que são prazerosos e maus. A nature- (14b4-6, 20b8-10); estes são os dois
za controversa desta premissa é candidatos a bem refutados
concedida no Filebo (13b-c), quando diferentemente em R. 505b6-d2.
Sócrates infere que há prazeres maus,
assim como prazeres bons, e Protarco O novo modo é um experimento-
responde: “o que você quer dizer, de-pensamento: “ponhamos em
Sócrates? Você supõe que quem afir- julgamento a vida do prazer e a vida
ma que o bem é prazer concederá ou do conhecimento e obtenhamos um
aceitará escutar você dizer que alguns veredito olhando a cada uma
prazeres são bons e outros maus?” separadamente... Façamos com que
não haja nenhum conhecimento na
Sócrates não tem uma resposta vida de prazer nem prazer algum na
direta a este respeito; é mesmo vida de conhecimento”. Protarco,
somente depois que Sócrates faz representando o hedonismo, é
outra objeção ao hedonismo e que instado a julgar se consideraríamos
Protarco abandona o hedonismo que aceitável viver “uma vida inteira no
Platão passa a distinguir entre gozo dos maiores prazeres” [porém,
prazeres bons e maus. A nova objeção sem nenhum conhecimento] (Phlb.
é um teste de isolamento de 20el-21a8, trad. Frede).
preferência que Sidgwick e Moore
repuseram em circulação, Sidgwick Antes de examinar a primeira
para defender o hedonismo resposta inteiramente afirmativa de
indiretamente (1981, p. 398-9), Protarco e sua súbita inversão ao final
Moore para o atacar, como fez Platão do argumento de Sócrates,
(1902, p. 88-96). observamos que, logo antes do
experimento-de-pensamento,
Após certa discussão (se há Sócrates propõe, e Protarco aceita,
diferentes tipos de prazeres e se que o bem – qualquer conteúdo que
alguns prazeres são contrários a tenha: prazer, sabedoria ou outra
outros prazeres), na qual Sócrates não coisa – tem três propriedades, que
consegue convencer Protarco que podem ser chamadas propriedades
alguns prazeres são maus (Phlb. 13b5- formais do bem, em que se considere
fisiológico restaurativo, Sócrates ob- sua vez, depende dos prazeres que ela
serva que a saciação de uma depleção nos faz gozar ou as dores que nos faz
pode ser apropriada ou não para a evitar, de modo que não se está
depleção, boa ou má para a pessoa avaliando em última instância os
que sente o vazio. Isso é certamente prazeres de modo não hedonista.
verdadeiro para comidas e bebidas; Porém, Platão pode estar aqui se
eles podem ser bons ou maus para baseando em seus argumentos contra
nossa saúde, excessivos ou em falta a identidade do bem e prazer, os
quanto à quantidade, frequentes quais, se bem-sucedidos, abrem um
demais ou pouco frequentes, e assim espaço para outras coisas serem o
por diante. A medicina da época bem em si além do prazer.
rotineiramente avaliava os prazeres
físicos em função da saúde e da A outra propriedade em que
doença; ter prazer nas comidas e Platão se baseia para avaliar os
bebidas que são boas para nós leva a prazeres na República (e no Filebo) é a
um bom prazer; ter prazer em verdade e a realidade. Esta tese pouco
comidas e bebidas danosas leva a um usual, difícil e obscura foi discutida
mau prazer. Algo similar, ensina extensivamente na bibliografia se-
Sócrates, pode ser verdadeiro da cundária (ver, por exemplo, Taylor,
repleção de um vazio de ignorância ou 1991; Frede, 1992, 1993) e podemos
loucura: a ignorância pode ser saciada abordá-la aqui somente brevemente.
com a opinião falsa, por exemplo, e Há pelo menos duas questões
mesmo que a pessoa tenha prazer diferentes.
com a opinião falsa, ele está em um
paraíso de loucos (R. 585e, 586e).
Presumivelmente, então, é com base
no ser bom ou mau do objeto que Primeiro, Platão sustenta que por
preenche o vazio que deve ser vezes nos enganamos ao tomar o
avaliado o prazer; Platão deve ter alívio da dor por um prazer. Ele pensa
pensado que aqui ele está avaliando o que, além dos dois estados de prazer
prazer de modo não hedonista, mas e dor, há um estado psicológico
por algo outro que o próprio prazer – intermediário que não é prazeroso
por exemplo, a saúde. O hedonista nem penoso: um ponto hedônico zero
pode replicar, para ecoar uma linha do ou neutro, por assim dizer. Quando
Protágoras, que o valor da saúde, por nossos corpos estão em depleção –
foco na fonte interna à alma de tal sustenta que há uma única fonte da
comportamento (ver, por exemplo, ação justa, corajosa, etc.: se as
La. 191e9-192cl; cf. Chrm. 160d5-e5). virtudes são idênticas umas às outras.
A virtude é o estado da alma, não o Vários dos argumentos de Sócrates no
comportamento que deriva e exprime Protágoras parecem apoiar a Tese da
esse estado. Assim, o que Sócrates Identidade. Por exemplo, no
queria dizer com a tese que a justiça é argumento em favor da unidade da
idêntica à coragem é que o estado da temperança e sabedoria, ele primeiro
alma que dá origem às ações justas é faz com que Protágoras concorde que
idêntico ao estado que dá origem às a loucura é o oposto tanto da
ações corajosas. E, segundo a Tese da temperança quanto da sabedoria, e
Identidade, Sócrates sustenta que há que uma coisa única tem um só
uma única forma de conhecimento (o oposto; ele então tira a conclusão
“conhecimento do bem e do mal”) seguinte.
que é a chave para a ação justa,
corajosa e virtuosa em geral. Esse [PI] Então, qual destas duas
conhecimento garante que o juízo de proposições devemos
alguém sobre como agir será correto, abandonar, Protágoras? A
bem como que se agirá de forma proposição que para uma coisa
há somente um oposto ou a que
correspondente, visto que o desejo do afirma que a sabedoria é
agente estará apropriadamente diferente da temperança e que
dirigido ao bem. Assim, mesmo que cada uma é uma parte da
ser corajoso, no sentido de agir de virtude...? Qual delas devemos
modo corajoso, não é obviamente o abandonar? As duas afirmações
mesmo que ser justo, no sentido de são dissonantes; não estão em
agir com justiça, pode ainda ser harmonia uma com a outra.
verdadeiro que a virtude da justiça Como poderiam estar, se há um
seja idêntica à virtude da coragem: e somente um oposto para cada
isto é, a fonte da ação justa e corajosa coisa única, ao passo que a
pode ser um e mesmo estado: o loucura, que é uma coisa única,
“conhecimento do bem e do mal”. tem evidentemente dois
opostos, sabedoria e
A próxima que devemos temperança? Não é assim que a
considerar, então, é se Sócrates situação está, Protágoras?
do bem e do mal à sabedoria. Esta uma unidade indivisível; não pode ser
identificação parece estar implicada dividido nas partes correspondentes
em sua explicação de como o às diferentes virtudes. O
conhecimento do bem e do mal é o conhecimento que é essencial para
“todo da virtude”; ele sustenta que à cada uma dessas partes é um e o
pessoa corajosa, que possui por mesmo, e seu nome é sabedoria. Se a
suposição esse conhecimento, “não coragem e as outras virtudes
faltaria” nenhuma das partes da requerem o conhecimento e se o
virtude, pois ele necessariamente conhecimento envolvido em cada
possuiria a temperança, a justiça e a uma dessas virtudes é o conheci-
piedade (199d4-el). A sabedoria não é mento do bem e do mal, parece claro
mencionada. Além disso, a sabedoria que as definições da coragem e das
está ausente da lista das partes da outras virtudes devem incluir uma
virtude no início do argumento final referência a este conhecimento. E,
(ver [Ll] acima eMen. 78d7-79a5). No dado que as virtudes são partes
Laques pelo menos, Sócrates distintas de um todo, cada uma deve
aparentemente toma a sabedoria ter um aspecto distintivo que a
como idêntica ao conhecimento do diferencia das outras, assim como do
bem e do mal, isto é, ao todo da todo. Já que o conhecimento
virtude (cf. Men. 87d2-89a3 com envolvido em cada uma das virtudes é
Chm. 174al0-175a8). o mesmo, o aspecto que distingue
cada virtude das outras deve ser algo
diferente do conhecimento envolvido.
Devemos considerar, então, se o
Se a sabedoria é o todo da virtude Laques fornece evidência para um
e as outras virtudes são suas partes, outro fator essencial à coragem que
como exatamente devemos entender seja distinto do conhecimento
essa relação parte-todo? Como envolvido.
observamos acima, o argumento final
de Sócrates aparentemente descarta Vários estudiosos observaram
a possibilidade que a coragem seja que há indicações na discussão de
uma espécie ou subdivisão da Sócrates com Laques que Sócrates se
sabedoria. O argumento sugere que a dispõe a incluir a qualidade da
sabedoria, entendida como o persistência na definição da coragem.
conhecimento do bem e do mal, é Por exemplo, na sua resposta à
definição de Laques da coragem como correta caso possa ser dada uma
persistência, Sócrates primeiro explicação clara da sabedoria da pes-
observa que a persistência é muito soa corajosa. Seu comentário final a
ampla. Visto que a coragem é suposta Laques indica sua aprovação quanto a
ser objeto de admiração e benéfica, incluir a persistência na definição da
não pode ser idêntica a uma qua- coragem.
lidade que pode ou não ser objeto de
admiração e benéfica; como Sócrates [L2] Porém, está você de acordo
observa, há algo como uma que concorDemos com nossa
persistência estúpida ou burra, que afirmação até certo ponto?
não é objeto de admiração nem
benéfica. Ele sugere, portanto, Até que ponto e com qual
corrigir a definição para “a coragem é afirmação?
uma persistência sábia” (192c2-dll).2
O próximo passo consiste em Com a que nos ordena a
esclarecer “em que tipos de coisas” o persistir. Se você estiver de
homem corajoso é sábio (192el). acordo, manteremos nossa
Sócrates busca e vamos persistir, de
modo que a própria coragem
infere que terão uma definição não se rirá de nós por não a
satisfatória da coragem se puderem termos procurado
especificar o tipo de conhecimento corajosamente – se a
envolvido. Todavia, a investigação persistência talvez deva afinal
começa a fracassar quando Sócrates ser a coragem. (193e8-194a5)
apresenta a Laques uma série de
exemplos destinada a esclarecer o Este comentário enfatiza a
tipo de conhecimento que é posição de Sócrates sobre a
característico da coragem, mas importância da persistência para uma
Laques é incapaz de ver o ponto compreensão da natureza da coragem
desses exemplos (192e2-193d9). Ao (ver também 191d6-e2; para uma
final da discussão com Laques, discussão mais completa, ver
Sócrates não rejeita a definição da Devereux, 1995). Sócrates também
coragem como uma persistência tornou claro que um certo tipo de
sábia. O tratamento que dá à conhecimento é essencial à coragem.
definição sugere que pode se revelar Assim, a definição correta da coragem
Por que, por exemplo, Platão faz com há sinais em Xenofonte e Aristóteles
que Sócrates argumente em favor de da tese do Laques que o
explicações conflitantes da coragem – conhecimento da pessoa corajosa é
e sua relação com o conhecimento – de fato o “conhecimento de todos os
em dois diálogos que se está bens e males”. Encontramos também
geralmente de acordo que foram em Xenofonte os mesmos “sinais
escritos no mesmo período? Embora mistos” sobre a unidade das virtudes
tenhamos visto que a Tese da que observamos no Protágoras: em
Identidade e a Tese da algumas passagens, as virtudes são
Inseparabilidade têm ambas ditas idênticas, mas em outras elas
dificuldades em explicar partes de recebem definições distintas (ver, por
cada diálogo, os proponentes dessas exemplo, Memória. III.9.4-6, IV6.1-6 e
teses podem alegar que su- IV6.11. Infelizmente, Aristóteles nada
perestimamos estas dificuldades. tem a dizer sobre a tese de Sócrates
Visto que é embaraçoso que Platão da unidade das virtudes.) Aqui no-
tenha defendido teses inconsistentes vamente, o Sócrates de Xenofonte
sobre a unidade das virtudes em está próximo do Sócrates do
obras escritas no mesmo período, há Protágoras e contrasta com o
boas razões para se olhar de novo Sócrates do Laques.
estes diálogos no intuito de ver se há
um modo de reconciliar suas teses Os relatos de Xenofonte e
aparentemente divergentes. Aristóteles sugerem que as teses e os
argumentos atribuídos a Sócrates no
Porém, talvez haja um outro Protágoras provêm do Sócrates
modo de explicar estas histórico (ver o capítulo O Problema
inconsistências. Nossas outras fontes Socrático). Se for isso, então a posição
principais para as teses de Sócrates, diferente do Laques sobre a unidade
Xenofonte e Aristóteles, lhe atribuem das virtudes e o argumento final que
ambas a tese da coragem que é refuta
adotada no argumento final do
Protágoras: “o conhecimento do que
deve e do que não deve ser temido”
(ver, por exemplo, Xenofonte, a definição (socrática) da coragem
Memória. K6.1-11; Aristóteles, EE ffl.l, defendida no Protágoras podem
1229al2-16 e EN III.8 1116b3-15). Não parecer como sendo inovações
Sócrates também sustenta que a Assim como a cidade é sabia por causa
opinião verdadeira, em contraste com da sabedoria de seus governantes,
o conhecimento, é inerentemente assim também a cidade é corajosa por
instável (97c4-98a8) e, assim, não é causa da coragem de seus soldados
claro como poderia servir de base (cf. 428e7-9 com 429a8-b3; 429b5-c3
para uma ação consistentemente claramente implica que os soldados
virtuosa. Caso se possa “estabilizar” a são corajosos).
opinião verdadeira sobre o que é o
bem e o mal, então seria possível Pode-se argumentar que, visto
possuir uma ou mais virtudes sem ser que a “coragem” dos soldados é
sábio. caracterizada como uma coragem
“política”, ela não conta como uma
Segundo o relato da República da coragem genuína ou acabada, porém
educação dos guardiães, um dos devemos notar que esta seção do livro
objetivos da “música” e da “ginástica” IV (429a8-430c2) fornece um relato
consiste em instilar crenças da
verdadeiras estáveis sobre valores e
como se deve viver (a estabilidade é
enfatizada em, por exemplo, 429c7-
430b9) (ver o capítulo Platão e as coragem da cidade; mais adiante
Artes). Os que foram selecionados neste livro, Sócrates dá uma breve
para serem governantes recebem descrição da coragem nos indivíduos
uma educação “superior”, a qual (442b5-c3). Visto que é a coragem de
envolve a aquisição do conhecimento seus soldados que é responsável pela
da Forma do Bem, a fundação e fonte coragem da cidade, é a coragem deles
de todo valor. Eles possuem a que é descrita na seção anterior. Essa
sabedoria, bem como a coragem, descrição especifica que a coragem é
temperança e justiça. Os guardiães a preservação das opiniões
que não se tomam governantes – os verdadeiras sobre o que deve ser
que se tomam soldados e defensores temido – opiniões inculcadas pelas
da cidade – não possuem sabedoria, Leis – diante de perigos, dores,
porém eles aparentemente possuem prazeres e desejos. A coragem dos
a coragem, visto que é a coragem governantes não se amolda a esta
deles, e não a dos governantes, que é descrição, já que está baseada antes
responsável pela cidade ser corajosa.
unidas em uns poucos indivíduos que ele não “corrige” sua posição em
afortunados (311a4-5); quanto aos outros lugares do diálogo. Ele pode
que são corajosos ou moderados, mas ainda sustentar que um certo tipo de
não os dois, o governante sábio conhecimento é suficiente para a
tentará engendrar harmonia e posse das outras virtudes, mas
concórdia entre eles instilando-lhes parece, na velhice, aceitar a tese
crenças partilhadas sobre o que é sustentada comumen- te, expressa
nobre, justo e bom (309cl-310a5). A por Protágoras, que as outras
parte mais importante da arte do
homem Político consiste em “tecer
juntos” estes dois tipos de caráter e
engendrar sua cooperação em virtudes podem existir à parte da
conduzir os assuntos da cidade para o sabedoria e que a coragem, pelo
bem da inteira comunidade (311a4- menos, pode existir à parte das outras
c7). Não há sugestão que a coragem virtudes (Prt. 349d6-8).
“verdadeira” ou que a temperança
“verdadeira” requer a posse das ou- O distanciamento de Platão da
tras virtudes. (Isso é contestado por tese socrática da inseparabilidade (se
outros estudiosos; ver, por exemplo, não identidade) das virtudes gera
Cooper, 1999a e Bobonich, 2002, p. questões acerca da unidade do
117-18; 413-16). conceito de virtude. Se a coragem ou
a temperança podem ser possuídas
Nas Leis, a última obra de Platão, por indivíduos que não são sábios ou
a coragem é vista como uma injustos e se essas qualidades fazem
qualidade que mesmo animais podem com que estas pessoas tenham mais
possuir e, assim, não parece requerer sucessos em seus empreendimentos
nem conhecimento nem opinião (ver Euthd. 281b4-el), então não
verdadeira (963e: o contraste entre podemos mais dizer que as virtudes
esta passagem e Laques 197a6-cl é são necessariamente benéficas (Men.
muito forte). As Leis também tratam a 88c4-5) e podemos nos perguntar o
coragem como compatível com a que teriam em comum a coragem, a
injustiça e a imoderação (661d6- temperança, a justiça e a sabedoria. O
662a3). Obviamente, Platão pode que subjaz ao fato que são todas elas
estar “conversando com o vulgo” ao chamadas “virtudes”? Podemos
dizer estas coisas, mas é interessante distinguir, como faz Aristóteles, entre
Blackwell.
dizendo que “as coisas que parecem Este condicional, vale a pena
justas e belas para cada polis são notar, exprime uma parte importante
assim enquanto forem mantidas por do argumento de Trasímaco que o
elas” (Tht. 167c4-5; ver também justo é a vantagem do mais forte (R.
172al-5) e sustenta que, “no tocante I.338d7-339a4). O segundo membro
às coisas justas e injustas, pias e da conjunção do antecedente, a
ímpias, [os seguidores de Protágoras] proposição (2), é difícil de ser negada,
estão prontos para insistir que pois está próximo de ser uma
nenhuma delas tem por natureza definição de um governante; assim,
(phusei) um ser (ousian) próprio, mas quem tiver alguma razão para negar o
sim que o que parece ser assim às pes- consequente, a proposição (3), tem
soas em comum é verdade, no alguma razão para rejeitar o primeiro
momento em que parece assim e pelo membro da conjunção do
tempo em que parecer assim” (Tht. antecedente, a proposição (1). Ora,
172b2-6). quem pensa que o que é imposto pela
força não é ipso facto justo tem uma
Como indica o Estrangeiro de tal razão.
Atenas, a doutrina que o justo é o que
está expresso nas Leis porta dentro de Se o justo não é o mesmo que o legal
si a doutrina pouco palatável que a – se a “lei justa” não é um pleonasmo
força faz a lei. Para conectar as duas, nem
tudo o que é preciso é a suposição
plausível que as Leis da polis estão nas
mãos do mais forte. Se
uma “lei injusta” um oxímoro
1. o justo em uma polis é o que é precisamos de um padrão de justiça
expresso nas suas Leis e se para além da lei. Platão encontra esse
2. os que fazem e aplicam as Leis da padrão, obviamente, em seu reino
polis – os governantes da polis – das Formas. No Parmênides, Sócrates
são os que monopolizam a força está seguro que há uma Forma da
coerciva na polis, como sustentam Justiça “em si mesma por si mesma”,
os sábios modernos, haja ou não Formas de coisas como
3. o que é justo e o que é homem, fogo, água, cabelo, lama ou
conquistado à força são o mesmo. sujeira (Prm. 130b7-d9); no grande
mito do Fedro, a alma desencarnada
a liberdade para viver como quiser (R. ser um fazendeiro” – o evidencia (ver
VIII.557b4-10). Porém, tal liberdade a este respeito Annas, 1981, p. 79).
seria vácua se a natureza humana tão Quanto à igualdade moral e política
rígida como o princípio platônico adorada pela democracia, vemos que
acarreta, se cada ser humano tem o o princípio de divisão natural do
potencial para somente uma vocação, trabalho, em conjunção com o mito
somente um modo de vida, ao invés dos metais, nega a ambas. A
de uma larga variedade. A liberdade igualdade moral dos seres humanos
democrática pressupõe, está em conflito com o fato do mito
contrariamente ao princípio da implicar que algumas almas valem
divisão natural do trabalho, que a mais que outras, assim como o ouro
natureza humana é suficientemente vale mais que a prata e a prata mais
plástica para dar lugar a escolhas reais que o bronze ou ferro. A igualdade
entre diferentes vidas. Esta política e a noção que a acompanha,
pressuposição de plasticidade que os cidadãos médios têm
humana também está por trás da inteligência suficiente para discutir e
alegre versatilidade de que se decidir sobre a política pública
orgulhavam os atenienses (Tücídides (Protágoras. 319b3-d7), estão em
11.41.1), a habilidade deles em mudar conflito com a ideia, acarretada pelo
com facilidade de um ofício a outro, princípio platônico em conjunção com
dos cuidados com uma o mito, que governar é uma arte que
requer conhecimento especializado,
que pode ser obtido somente por uns
poucos indivíduos naturalmente
fazenda a portar armas e a governar. dotados de intelectos excepcionais.
Os fundadores de Calípolis, por outro Sócrates afirma ambos os aspectos da
lado, estão tão convencidos que um desigualdade platônica de uma só vez
tal fazer muitas coisas quando assevera que, na Calípolis, “o
(polupragmosunê, R. IV434b7, 9) é melhor governa o inferior” (to
um óbice à competência – “João de ameinon tou cheironos archei) (R.
todos os ofícios, mestre em nenhum” IV431b6-7). A democracia, ele
– que estão prontos a manter seu lamenta, “distribui um tipo de
princípio de especialização pela força, igualdade entre iguais e desiguais” (R.
como a passagem citada acima – VIII.558c5-6). O rompimento total
“impedimos que um sapateiro tente com o princípio da divisão natural do
Quando estão organizados nas três uma psique, que ele conceba a razão,
classes e apropriadamente treinados o impulso e o apetite como três
e educados, a polis que eles pequenos homens ou homúnculos.
constituem é justa em virtude de cada Este antropomorfismo é explícito nos
um fazer o que lhe é próprio. A dois grandes símiles de Platão da
aplicação do princípio de isomorfismo alma, a criatura compósita (R.
é agora direta: IX.588blO-e2) e o condutor guiando
os dois cavalos (Phdr. 246a3-b4,
a) a polis e a psique têm, cada uma, 253c7-255al), em cada um dos quais a
três partes psique é representado como
b) dos mesmos três tipos, os quais consistindo em múltiplos centros de
c) fornecem a base para que cada um consciência, bem como está implícito
faça o que lhe é próprio e nas definições que Platão dá da justiça
d) uma polis é justa em virtude de e das outras virtudes. Uma polis e
cada parte fazer o que lhe é
próprio; donde
e) uma psique é justa se cada uma de
suas partes fizer o que lhe é uma psique são justas quando cada
próprio. parte da polis ou da psique realiza
(prattei) o que lhe é próprio (R.
O problema com este argumento IV441d5-e2). Porém, para fazer o que
não é o princípio de isomorfismo lhe é próprio, uma coisa deve agir
sobre o qual se baseia, mas a teoria (prattei) e não simplesmente mover
psicológica problemática que Platão (kinei), o que quer dizer que deve ser
deve adotar se o princípio tiver de ser um agente e não simplesmente uma
aplicado. Os amantes da sabedoria, os faculdade; ora, para agir um agente
amantes das honras e os amantes do deve ter cognição. O antro-
dinheiro, que compõem as partes da pomorfismo dos dois grandes símiles
polis, são agentes dotados do poderes não é simples metáfora.
cognitivos. Se uma psique deve ter
partes dos mesmos tipos, elas É importante ter em mente que,
também devem ser agentes dotados para que o princípio do isomorfismo
de poderes cognitivos. Assim, o se aplique, as definições que Platão
argumento de Platão parece requerer fornece da justiça e das outras
o antropomorfis- mo das partes de virtudes devem transportar palavra
por palavra da polis à psique. A justiça os dois que são governados creem em
política e psíquica não são para Platão comum (homodoxôsi) que o elemento
duas espécies ou dois tipos de justiça, racional deve governar e não se
mas duas aplicações do mesmo sublevam contra ele?” (R. IV442clO-
conceito: elas estão relacionadas dl). Porém, se as partes da psique
como o homem alto e baixo, não partilham as crenças, elas devem ter
como o animal de sangue quente e o poderes cognitivos. A definição que
animal de sangue frio. A definição que Platão dá da coragem tem a
Platão dá da temperança é muito clara
a este respeito: “devemos dizer com mesma implicação. A coragem de uma
correção que este estado de mesma polis é a capacidade (dunamis) que
opinião, esta concórdia entre o que é reside em uma parte da polis de
naturalmente inferior e o que é preservar uma crença verdadeira
naturalmente superior sobre qual dos (orthê doxa) sobre o que deve ser
dois deve governar tanto na polis temido (R. IV429b7-c2); a coragem de
quanto em cada indivíduo é a um indivíduo é a mesma capacidade
temperança” (R. IV432a6-9). Isso que reside no elemento impulsivo da
significa que o que for pressuposto psique (R. IV442bll-c3). Assim, o
por uma definição de uma virtude, elemento impulsivo da psique tem
quando a definição é aplicada à polis, crenças. Deve-se admitir que a
é também pressuposto quando a definição que Sócrates dá da coragem
definição é aplicada à psique. Dado no indivíduo, diferentemente de sua
que o estado de ter a mesma opinião definição da coragem na polis, não
(homonoia) e concórdia (sumphô- nia) menciona explicitamente a crença;
implicar o fato de partilhar uma porém, como acabamos de observar,
crença entre as partes de uma polis, as isso não é significativo, pois o
partes de uma psique também devem princípio de isomorfismo requer que
ter esta capacidade. De fato, quando as definições sejam idênticas.
Platão, ao discutir as virtudes em uma
psique, retorna ao conceito de Dos muitos problemas que deve
temperança, ele torna essa implicação enfrentar o tipo de psicologia a que
explícita: “alguém não é moderado”, Platão é levado por seu uso do
pergunta Sócrates, “por conta da princípio do isomorfismo, o mais
amizade e concórdia destes mesmos notável (e irônico) para um filosofia
elementos, quando o que governa e que insiste na importância da unidade
Visto que Platão está definindo não trairá seus amigos ou sua polis,
termos da linguagem corrente, suas não quebrará um juramento ou outra
definições não podem distanciar-se promessa, não cometerá adultério,
demasiadamente de seu uso não desrespeitará seus pais nem
cotidiano e serem ainda consideradas negligenciará os deuses (R. IV442dl0-
como definições corretas. Assim, é 443b3).
importante para ele testar suas
definições com o que é corrente ou Que uma pessoa com o estado
comum (ta phortika, R. IV442el). Ele interno da justiça não fará tais coisas
deve mostrar que um homem que é é, todavia, somente uma pura
justo, como ele define como “justiça”, afirmação da parte de Sócrates (R.
agirá, nas mais das vezes, IV443e2-444a2), com nada, pelo
ordinariamente como se espera que menos não no texto imediatamente
aja um homem justo. Ele precisa em volta, para fundamentá-la;
mostrar, em particular, que um ademais, está longe de ser claro como
homem platonicamente justo não as ações que Sócrates lista se
fará coisas que são, na maioria das coadunam à sua definição de “ato
vezes, consideradas injustas. injusto”, como roubar, trair os
Consequentemente, assim como amigos, cometer adultério e assim
buscou previamente conectar cada por diante destro- em o estado
cidadão fazendo o que lhe é próprio interno da justiça na alma de quem os
com a noção corrente de justiça pratica. Por vezes foi sugerido que
política, ele agora busca eliminar as Sócrates deixa sem explicação a
dúvidas sobre a transferência dessa conexão entre a ação e o estado
fórmula da polis ao indivíduo, interno porque nenhuma explicação é
sustentando disponível, que há um fosso em seu
argumento que não pode ser supe-
rado (Sachs, 1963). Por que, é
perguntado, deve minha conduta em
que um indivíduo, cujos elementos da relação a outrem afetar o estado
psique fazem cada um o que lhe é interno de minha alma? O que
próprio, agirá como se espera que aja impede que uma pessoa em cuja
uma pessoa justa: não se apoderará psique a razão governa e os outros
de um depósito de ouro e prata, não elementos psíquicos são mantidos em
saqueará um templo, não roubará, seu devido lugar se torne um ladrão
adultério. Um homem pode ser um 6). Somente a lei ideal, a lei que é reta
adúltero sem ser licencioso (ako- (orthos), segundo o padrão da
lastos): ele pode ter um apetite sexual natureza (Lg. I.627d3-4), é com-
moderado pela mulher errada. O que pletamente justa. Nas Leis, o
impede um homem platonicamente Estrangeiro de Atenas apela a um tal
justo de ser um adúltero moderado? padrão ao fazer juízos sobre os
Além do mais, o adultério envolve sistemas legais do mundo antigo. A lei
dano a outros, aos que são traídos. reta, sustenta ele, difere da lei falha
Esta consideração certamente deve em dois aspectos: ela visa ao bem
ter um papel no fato do homem comum antes que simplesmente à
platonicamente justo evitar o manutenção no poder da constituição
adultério. Finalmente, o adultério estabelecida e ela visa a inculcar todas
(moicheia) é um conceito legal que é as virtudes, não somente uma (Lg.
definido diferentemente em sistemas IV705d3-706a4, 714b3-715b6). As
legais diferentes. O adultério na Leis de Esparta e de Creta não se
Calípolis, onde as esposas são tidas elevam a este ideal ao visarem à
em comum (R. V457c7- vitória na guerra e à coragem de que
depende a vitória, ao passo que
ignoram as outras virtudes (Lg.
I.625c9-626c5, 631a3-8; IL666dll-
461e9), é diferente do adultério 667a7); a democracia, a oligarquia e a
na Atenas antiga, na qual a esposa tirania são deficientes por
tinha um único marido e devia ser negligenciarem inteiramente as
sexualmente fiel a ele (MacDowell, virtudes e porem o foco somente na
1978, p. 88, 124-5). A justiça psíquica manutenção de seus governantes no
deve ancorar-se de algum modo à lei poder (Lg.
positiva, a lei de fato existente em
uma polis, se um ateniense VIII.832blO-c7). As constituições
platonicamente justo deve ser mesmo mencionadas podem ser classificadas
capaz de reconhecer o que conta de acordo com o grau de correção
como um adultério. (orthotês) ou incorreção (hamartia)
de suas Leis; de fato, o declínio
A questão é complexa, pois na constitucional apresentado na
visão de Platão a lei positiva é República VIII reflete essa crescente
frequentemente injusta (Lg. IV715b2- incorreção. A ti- mocracia,
VII, é que o leitor é avisado que, no que fala sobre ele é feito de modo
esquema filosófico que a obra expõe, oblíquo. Se quisermos ler de modo
o conceito central não é o de justiça, inteligente a República, é sensato
mas o de bem. Na visão de Platão, é conectar suas indicações sobre o bem
somente ao entender o que é o bem com as ideias filosóficas que são
que nós, assim como os filósofos- usadas de fato nessa obra. Assim,
govemantes de sua cidade-Estado dado que a justiça provê a ocasião
ideal (polis), somos capazes de para discutir a justiça em primeiro
compreender a justiça, e mesmo lugar, devemos formular a questão:
todos os outros conceitos e que pontos que a República traz sobre
propriedades (estes dois sendo, para a justiça que requerem ou, pelo
Platão, em grande parte a mesma menos, fortemente recomendam
coisa) (ver o capítulo Platão e a levar adiante as questões sobre o bem
Justiça). que Platão de fato analisa? Sobre isso
penso que podemos avançar.
As análises de Platão dos dois
conceitos estão inteiramente Há uma grande diferença entre o que
interconectadas, assim como o bem (e supõe que os governantes sabem
a noção aparentada to kalon ou sobre o bem e o que nos é dito sobre
‘beleza”) está intimamente conectado ele. Platão nos diz explicitamente que
a outras virtudes em outras obras pla- os governantes-filósofos completam
tônicas. Não se pode compreender a sua educação somente quando
justiça sem apreender o bem, diz compreendem completamente o
Platão, mas seus pensamentos sobre conceito de bem. (Já que estou
o bem, especialmente na República, lidando com as teses de Platão, vou
são igualmente apresentados como usar “Platão” por conveniência, ao
partes de uma elucidação da justiça. passo que uma precisão literal
Os dois conceitos não podem ser requereria “Sócrates”.) Os
discutidos separadamente. governantes-filósofos o obtêm tendo
uma fórmula (logos) dele:
Podemos perguntar, porém, “por
que Platão põe tanta ênfase no bem Definir a Forma do Bem (tên tou
precisamente aga- thou idean) por meio de
uma fórmula (diorisasthai tô(i)
nesta obra?” A maior parte do logo(i)), separando-a das outras
Bem (não somente a Forma do Justo) Ficará logo claro que seu
para governar a cidade e torná-la argumento emprega premissas
justa (540a-b). A nós, leitores de importantes sobre que tipos de coisas
Platão, porém, não nos é dada a são boas, sem fundar estas premissas
fórmula (logos) do Bem que ele diz em uma definição. A suposição mais
que um governante deve ter – ou razoável é que ele não está seguro
mesmo qualquer outra fórmula. sobre como exatamente definir o
bem. Ele simplesmente dá por
A fórmula que os governantes suposto – e nos pede para dar por
possuirão tem as características que suposto em sua obra – suposições
Platão normalmente atribui a uma sobre o bem que lhe parecem plau-
definição. O termo é logos ou síveis. Elas nos são necessárias para
“fórmula” (frequentemente traduzido seguir sua identificação da justiça e
em muitos contextos por “definição”) para ver o que lhe dá apoio para
e é o resultado de diorizesthai, definir algumas de suas teses sobre ela. Estas
(ver o capítulo Definições Platônicas e suposições constituirão o principal
Formas). Ela precisa ser defendida dos foco aqui.
elenchoi ou “refutações”, assim como
os candidatos a definição nas obras Nossa principal tarefa consiste em ver
“socráticas” como o Eutifro e como Platão pensa que a apreensão
Carmides (ver o capítulo O Elenchus do bem é necessária para a
Socrático). Também serve para compreensão e para dar apoio às suas
distinguir o bem das outras coisas principais teses sobre a justiça. Para
Prima facie, portanto, Platão de fato alguns intérpretes, ele nunca tenta
alterou o sentido do termo “justiça” mostrar uma equivalência substancial
no meio entre a sua noção e a noção ordinária.
Ademais, em sua visão de como
compreenDemos nossos conceitos,
isso não faria sentido. Em acréscimo,
de seu argumento e, deste modo, não ele não considera o fracasso de sua
argumentou realmente contra o que explicação em se colar intimamente
Trasímaco tinha sustentado (ver às concepções ordinárias como um
Grote, 1988, p. 99- 106; ver também sinal de fraqueza. Antes, ele pensa
Sachs, 1963). que é exigida somente uma conexão
frouxa e que esperar mais seria um
Embora algumas discussões erro. Isso vale para suas explicações
sobre este tipo de objeção a Platão da justiça, bem e qualquer outro
tiveram por foco o termo “justiça”, a conceito.
mesma crítica pode também ser feita
ao seu tratamento de outros termos, Segundo um dito grego, a justiça
em particular o termo “bem”. Há tende ao que “é próprio a cada um”
ampla razão para que se pergunte se (ta hautou prattein, 443c-e, 496d
Platão também não alterou, e ainda etc.). Platão concorda em muito com
mais drasticamente, seu uso do termo isso. Ele pensa, porém, que precisa
“bem” no curso de seu argumento. ser concebido de um modo especial
Devemos manter em mente esta para que esteja correto. Segundo ele,
questão quando analisarmos sua o pensamento ordinário erradamente
ideia que uma apreensão do bem é trata a justiça como uma questão de
necessária para nos ajudar a se ocupar com coisas “externas”
compreender a justiça. pertencentes a cada um, ao passo que
ele crê que tem a ver com se ocupar
Platão parece estar inteiramente com “o que é mais verdadeiramente
consciente do tipo de crítica que próprio a cada um”, a saber, pôr
acabamos de descrever e fornece os ordem entre os constituintes da
materiais para sua resposta. Ele personalidade de cada um. Platão
abertamente reconhece que sua enfatiza que, ao dizer isso, ele está
explicação da justiça vai parecer deliberadamente olhando as coisas
surpreendente. Contrariamente a
sobre em que consiste apreender figura é circular pode ser difícil porque
conceitos (pondo de lado questões pode tender a ser elíptica, ser vista em
sobre sua condição metafísica), a má iluminação, ser observada de um
compreensão de um conceito ângulo oblíquo, porque não se pode
consiste na apreensão do que é para dizer de que ângulo se a está vendo e
um objeto exemplificar este conceito assim
idealmente. Exemplos geométricos,
como Platão reconheceu, são
particularmente aptos para pôr em
evidência este ponto. Compreender o por diante. Platão tende por vezes a
que significa “círculo” é compreender agrupar todas estas fontes de
o que é para uma coisa ser idealmente dificuldade de aplicação como sendo
circular, não granulosa ou deformada todas produtos do fato que objetos
de algum outro modo, como são os particulares estão embutidos em uma
círculos sensíveis. Usamos grosso múltiplo sensível. (No Parmênides e
modo essa noção quando dizemos outras obras tardias, todavia, ele
que um círculo, no sentido tenta dar uma resposta ao fato que
geométrico, é uma “idealização”. algo análogo é verdadeiro das
próprias Formas.)
A capacidade, então, de aplicar o
conceito de um círculo a um objeto Uma dificuldade particular que
particular é uma questão de ser capaz afeta a aplicação de conceitos a
de determinar o grau em que objetos particulares nasce do modo
(tomados juntos seus contextos e pelo qual Platão pensa que a
suas relações) se aproxima desta causalidade opera no mundo físico.
ideia. Isso é essencialmente a ideia da Ao longo de suas obras, Platão
explicação das Formas que Platão sustenta que, embora a causalidade
expõe no Fédon e no Político. Ele a esteja associada com a regularidade –
emprega ao longo de toda a República grosso modo, um princípio de “à
– sem tentar de algum modo resolver mesma causa o mesmo efeito” (Phd.
todas as dificuldades que ela provoca. lOOd-lOlc) –, as regularidades que são
ins- tanciadas pelos objetos físicos
A aplicação de conceitos a objetos sempre têm exceções. Isso torna
particulares é dificultada por vários difícil prever eventos com confiança.
fatores. Por exemplo, dizer se uma Como Platão declara de modo
sua articulação nas partes e, portanto Não é claro que estas duas
incluirá, também pode-se argu- interpretações sejam mutuamente
mentar, de igual modo uma excludentes. Talvez possam ser
apreensão das partes. combinadas. Outras ideias também,
certamente, podem ter um papel
Há um modo suplementar (como igualmente para engendrar a
Hare mostra) para explicar esta proposta de Platão que o bem deve
mesma tese platônica, que uma ser tomado como o conceito central
apreensão do Bem é necessária e para a compreensão de todos os
suficiente para a compreensão de outros. Porém, não devemos supor
outros conceitos. Tome novamente a em nenhum caso que, quando Platão
tese que compreender o conceito de escreveu a República, ele tinha uma
ser tal-e-qual consiste em narrativa completa para lhe dar
compreender o que é para um objeto apoio. Filósofos geralmente
ser tal-e-qual paradigmática ou trabalham com o sentido do melhor
idealmente. Observe, também, que tratamento em geral, sabendo que o
Platão dá sinais de assimilar o deverão elaborar mais
conceito de bem à noção expressa detalhadamente para lhe dar
aqui por “idealmente”. Parece seguir- embasamento.
se que a compreensão de todo
conceito requer a compreensão do Uma questão acerca do pensamento
bem. Ademais, pode-se sustentar de Platão que muitos comentadores
também tentaram com afinco responder, mas
à qual a República não dá nenhuma
resposta, é se devemos pensar o
oposto do bem, o mal (kakiá), como,
que se segue que uma compreensão por assim dizer, um estado “positivo”
do bem é suficiente para ou, como defende uma tradição
compreender todos os outros interpretativa, meramente como uma
conceitos, dada a suposição que a “deficiência” ou “ausência de bem”.
compreensão do Bem consiste Parte do que disse até agora pode
simplesmente em compreender o parecer coadunar-se com a última
modo pelo qual opera este conceito concepção. Se os objetos físicos são
para dar uma idealização dele, no menos bons que os paradigmas em
caso de cada conceito “tal-e-qual”. virtude de serem somente
É um fator substancialmente
contrário a esta interpretação o fato
que, no Livro VII, Platão em nenhum governantes é o bem da cidade, não a
lugar menciona estes argumentos sua própria felicidade.
ligados ao interesse próprio. Porém,
eles poderiam obviamente ser úteis à Como a linha de pensamento
sua argumentação e fáceis de serem anterior demonstra, a função dos
formulados, se ele o tivesse desejado. governantes no interior da cidade
ideal é dupla. É constituída de
fingidores, ele acaba de dizer, tentam legisladores que, embora não sejam
macaquear a prerrogativa do Político inteiramente competentes, mesmo
competente de dar diretivas sem assim são capazes de aprimorar a
estar limitado pelas Leis (301b-c). legislação existente. Se isso for
Assim, o Estrangeiro de Eleia está possível, então os que vivem sob Leis
falando de pessoas que tomam parte ruins talvez ainda sejam capazes de as
na vida política de constituições que aprimorar. É exatamente esta a
não respeitam a lei. Ele está possibilidade explorada e
reiterando seu aviso para que não se desenvolvida nas Leis.
deixe que os não competentes façam
exceções, revoguem ou corrijam as AS LEIS
Leis.
As Leis estão em harmonia com o
O argumento do Estrangeiro de Político quanto à importância do
Eleia, contudo, provoca o seguinte governo da lei (713b-714b, 856b,
dilema. Os não competentes são 874e-875d; cf. 684a-b, 762e), quanto
impedidos de legislar (com base no à inferioridade da lei à competência
fato que são embusteiros), mas se (875c-d) e quanto à perspectiva
está baldo de homens Políticos duvidosa que um dia a política
competentes (301d-e). Assim, não há humana se torne competente (675a-
uma perspectiva de saída da triste b, 968e-969c). Em forte contraste com
condição para os que vivem sob Leis o Político, todavia, as Leis dão espaço
ruins. É surpreendente, exclama o para a possibilidade de
Estrangeiro de Eleia, que as cidades aprimoramento das Leis mesmo na
tenham conseguido sobreviver ausência da competência política. Ao
(302a). Este resultado sombrio requer proceder assim, as Leis fornecem
que reconsideremos o dilema que lhe também um quadro mais amplo que o
deu origem. O primeiro lado deste que encontramos no Político quanto
dilema, em particular, é um convite ao às vantagens, pressuposta no Críton,
ceticismo. Não é possível que não se de se viver sob a guarda das Leis.
alcance a inteira competência do
politikos competente sem ser um O projeto dos três interlocutores
falsário? Platão parece estar do diálogo é duplo. Em primeiro lugar,
propondo que seus leitores levem em eles investigam “as constituições e as
consideração a possibilidade de haver Leis” (625a6-7, trad. Saunders), com o
Tampouco se deve esperar que Isso não quer dizer que estes
estes legisladores posteriores tenham legisladores não têm credenciais
o conhecimento preciso do homem epistemológicas. Além de terem um
Político competente ou do bom caráter, o Ateniense observa que
governante filósofo. No Livro VI, o eles devem também compreender os
Ateniense propõe selecionar a objetivos e princípios da legislação –
próxima geração de legisladores entre que ele passa então a delinear (770c-
os administradores do Estado e). Todo aquele que se envolve com a
previamente descritos como legislação deve ter em mente “que
“guardiães das Leis” (770a). Estes uma pessoa deve tornar-se boa tanto
guardiães das Leis estão entre os mais quanto possível e ter a virtude
importantes administradores no apropriada ao ser humano” (770c7-
Estado (752d-e) e servem como d2). Todo infortúnio, mesmo a
reserva para muitos órgãos adminis- destruição ou a escravização do
trativos e judiciais. Os procedimentos próprio Estado, é preferível a uma
para sua seleção, detalhados antes no mudança nas Leis que tornará os
Livro VI, visam a identificar os cidadãos piores (770e).
cidadãos que atingiram o mais alto
padrão de virtude, identificados pelos O conteúdo desta instrução, que
cidadãos que mais respeitam o Ateniense profere para uma
audiência hipotética de futuros
as Leis segundo o juízo de seus legisladores, não equivale à
concidadãos (753a-d; cf. 751c-d). Este competência política. Os três
alto padrão de caráter, porém, não legisladores originais, que sabemos
consiste nem implica que se requeira não possuir tal conhecimento, estão
que os guardiães terão um co- simplesmente legando aos seus
nhecimento especializado, pois o sucessores não mais que aquilo sobre
ficar apreensivo que eles não consi- (951a-952c, 961 a-b). Os nove
gam elevar-se acima de sua legisladores de Magnésia devem
parcialidade cultivada. Contudo, duas redigir “um código legal com base em
características deste momento Leis que achamos convenientes e
legislativo inaugural auguram o devem usar também as Leis
sucesso de suas deliberações. estrangeiras – o fato de não serem
Primeira entre todas, cada uma das cretenses não deve valer contra elas,
normas propostas é “representada” desde que sua qualidade pareça
por um legislador que, pelo fato de ter superior” (702c5-8, trad. Saunders).
sido moldado por ela, está em uma
boa posição para apreciar seus Uma desvantagem
méritos. epistemológica deste corpo legislativo
relativamente ao momento legislativo
inaugural é que os nove legisladores
de Magnésia pertencem a uma única
Segunda, todas as partes na cidade, Cnossos. Assim, falta-lhes o
deliberação têm um forte interesse recurso epistemológico de ter pessoas
em chegar a uma compreensão que deliberam com uma profunda
partilhada dos méritos relativos de apreciação das “Leis estrangeiras”
suas respectivas normas, pois, de que eles devem levar em conta. Este
outro modo, o projeto da polis, defeito é remediado pelo triun- virato
empreendido em prol do benefício de legisladores no diálogo As Leis, no
para os membros de todos os grupos, qual Clínias, de Cnossos, é
fracassará. Estas restrições práticas e acompanhado pelo espartano Megilo
de procedimento no momento legis- e pelo ateniense que não recebe
lativo inaugural, visto que dizem nome.
respeito aos méritos relativos de
diferentes grupos de normas, são de A conversa entre estes três
fato exercícios de política legisladores reproduz de muito perto
comparativa. Tais comparações as deliberações no momento
comparecem em todo momento legislativo inaugural. A sua discussão é
legislativo descrito ou realizado no uma investigação prolongada quanto
texto das Leis. O Conselho Noturno aos méritos relativos dos diferentes
conduzirá pesquisa sistemática nas sistemas de legislação, empreendida
Leis e nos anais dos outros Estados por representantes de sociedades que
sofisticada. Ele sustenta que encenar ele conserva? Quando Sócrates pede
uma passagem dramática fazendo-se para que Adimanto escolha entre três
passar por uma personagem faz com estilos de poesia, os comentadores
que se tome tal pessoa na vida real. por vezes pensaram que Platão estava
Deste argumento e de um anterior pensando na mesma divisão técnica
que todos os membros da tripartite que havia feito
comunidade ideal, e a fortiori seus anteriormente entre mimêsis,
guardiães, devem ser especialistas diêgêsis e um estilo que usa a ambas
que executam somente um papel, – ou que ele confunde sua nova
segue-se que a cidade produzirá distinção com aquela anterior (Annas,
guardiães melhores se restringir a 1981, p. 99). Platão, porém, é claro:
amplidão de sua permissão à seus guardiães terão a permissão de
encenação encenar a mimêsis das ações dos bons
indivíduos; sua preocupação é antes
com as motivações fundamentais ou
com os critérios de avaliação supostos
dramática. Os guardiães devem usar a pelos diferentes tipos de
mi- mêsis tão pouco quanto possível e empreendimento poético. Para quem
ficar restritos à encenação das partes que visa a produzir a maior
contendo indivíduos nobres, quantidade e diversidade possível, a
moderados e virtuosos, uma prática mimêsis é comandada pelo que excita
que os ajudará a assemelhar-se ao a audiência. Alguém cuja preocupação
tipo de ser humano que o estado é o bem pode incluir a mimêsis, mas
requer que eles sejam. somente a dos modelos retos. Um
estilo “misto”, nesta leitura, seria o de
Os artistas cujo objetivo principal um poeta que vacilaria entre os dois
é a produção da mimêsis são critérios de avaliação; isso, como diz
indivíduos engenhosos e versáteis, Platão, poderia dar ensejo a um estilo
que Platão pode mesmo denominar superior quanto à atração imediata,
“sagrados, maravilhosos e praze- mas estaria em falta quanto à
rosos” (III.398a4-5), mas o Estado integridade.
ideal não os tolerará. Platão nos dá
aqui sua primeira imagem da expulsão Uma objeção a Platão é que ele é
dos poetas. Porém, quem exatamente paternalista ao estender suas reservas
Platão expulsa e que estilo de poesia quanto ao consumo das artes à
realidade e que fazer tal imagem não O ponto deste pintor imaginário
requer um conhecimento genuíno: extremamente fora do padrão é que
não há nenhum conhecimento real se pode fazer uma imagem de alguém
das coisas com o qual se faria uma que conhece X sem que se seja
imagem. Platão está se dirigindo à sua conhecedor deX. (O exemplo do
conclusão decisiva que um poeta faz “pintor de uma cama” apoia o ponto
somente imagens e está distante do ligeiramente diferente que se pode
conhecimento: “todos os imitadores fazer uma imagem de X sem que se
poéticos, começando por Homero, saiba como fazer X.) Assim, o alvo real
imitam as imagens da virtude e de desta passagem é a falta de
todas as outras coisas sobre as quais conhecimento por parte do poeta do
escrevem, não tendo uma apreensão que sua personagem parece conhecer
da verdade” (X.600e4-6). Eles – verdades éticas.
produzem somente imagens da vida
humana e, para fazer isso, não é Para se ver a motivação por trás
requerido um conhecimento da desta analogia, devemos perguntar
verdade acerca do que é bom ou mau por que é problemático que a
na vida. A transição por meio da qual construção poética de imagens não
Platão faz a transição do pintor ao implique conhecimento genuíno.
poeta é um pouco forçada e por vezes
desconcertou os leitores. Platão ima- Para Platão, isso é problemático
gina um pintor que porque há quem sustente a tese
oposta:
pode pintar um sapateiro, um
carpinteiro ou outro artesão, Ouvimos pessoas dizer que os
embora nada saiba a respeito poetas conhecem todas as
destas artes. Contudo, se ele for artes, todos os assuntos
um bom pintor e colocar sua humanos que dizem respeito à
pintura de um carpinteiro a uma virtude e ao vício, bem como
distância, ele pode enganar as tudo sobre os deuses, pois eles
crianças e as pessoas ingênuas, dizem que, se um bom poeta
fazendo-as acreditar que se produz uma bela poesia, ele
trata realmente de um deve ter conhecimento das
carpinteiro. (X.598b9-c4, trad. coisas sobre as quais escreve; de
modificada) outro modo, não teria sido
rapsodo, alguém que recita a poesia tendem a ter a condição de technê re-
profissionalmente que se pretende cusada (Janaway, 1992). No Górgias,
especialista em Homero. Sócrates Platão argumenta que a retórica
empreende uma demolição da persuasiva, a tragédia e as atuações
alegação de Íon que ele tem sucesso musicais de coros ou
como ator e crítico porque tem instrumentalistas não são casos de
conhecimento. Um conceito technê, baseando-se em que seu
importante nesse diálogo é a technê: objetivo não consiste em tomar a
“arte”, “habilidade” ou audiência melhor, mas em lhes dar
“conhecimento especializado”. Platão prazer. Ele argumenta que não há
toma os doutores, generais e princípios que regem o que dá prazer
matemáticos como possuindo uma a uma audiência em massa e que é por
technê, querendo dizer que eles têm tentativa e erro que essas práticas
conhecimento sobre um assunto es- alcançam sucesso, não por um
pecífico, que podem transmitir seu princípio racional ou conhecimento. O
conhecimento pelo ensino, Íon segue uma linha parecida: o
compreender princípios ou regras rapsodo discerne o que é belo e
gerais que se aplicam a todos os casos agradável na poesia de Homero, mas,
em seu campo e que podem dar uma ao fazer isso,
explicação racional de por que sua
prática alcança sucesso. Outros a) ele não trabalha com princípios
critérios da technê, dados no Górgias, que podem ser generalizados,
são que ela visa ao bem e como fica evidenciado pela sua
incapacidade em discorrer de
modo convincente sobre outros
poetas, e
que tem uma base no conhecimento b) não há um assunto específico do
do bem (Grg. 463a-465a). qual ele seja um especialista
somente em virtude de ser um
Uma antiga tradução para technê rapsodo ou por estar familiarizado
é “arte” (por meio do latim ars), mas com a obra de arte de Homero.
um exame desse conceito não gerará
uma “filosofia da arte” em Platão, A alegação absurda de Íon que
principalmente porque as práticas ele é um especialista “em todas as
que consideramos como “artísticas” coisas” porque Homero escreve
O Fedro, uma obra posterior, ela Fedro diz respeito ao destino das
própria uma obra-prima literária que almas reencarnadas, que são or-
explora a natureza da retórica, a denadas. A alma superior, de maior
escrita, o amor, a beleza, as Formas e valor, é a de “um amante do saber ou
a vida filosófica, promete uma do belo... cultivado nas artes
explicação abertamente mais positiva (mousikos) e predisposto ao amor
da inspiração dos poetas. Sócrates erótico” (248d3-4). Na sexta posição,
elogia aqui a “loucura”, incluindo abaixo dos generais, homens
expressamente o estado mental no Políticos, atletas, doutores e profetas,
qual estão os bons poetas quando está o poeta ou outra forma de vida
compõem, um “frenesi báquico”, sem entre as que se dedicam à mimêsis
o qual não há verdadeira poesia: (248e2-3). O contraste, novamente, é
um desafio às intuições do leitor mo-
derno. O primeiro lugar deve, por
certo, ser atribuído ao artista
Se alguém chegar às portas da genuíno, enquanto um pobre amador
poesia e esperar tornar-se um sem inspiração é relegado à sexta
bom poeta adquirindo posição? Porém, não há aqui um ter-
conhecimento especializado mo para “arte”, como nos lembra
(technê)... não terá sucesso e Alexander Nehamas: “o
seus versos autocontrolados ‘músico’...não é o artista, mas quem
serão obnubilados pela poesia admoesta os artistas e sabe o que
de homens que foram tirados tirar deles” (1982, p. 60). A alma que
para fora de suas mentes. (Phdr. ocupa apri- meira posição é a alma do
245a4-7) filósofo e amante cultivado, com
quem os poetas, todos os poetas
Argumentou-se que o Fedro miméticos, inclusive o grande
marca a renúncia pública por parte de Homero, não podem competir. A
Platão da dura condenação da poesia avaliação comparativa da República
na República (Nussbaum, 1986, p. ecoa em um tom de voz muito
200-33). Contudo, outras passagens diferente, mas não é revertida.
no diálogo apontam a uma maior
continuidade com a posição da Alguns comentadores de Platão
República. Parte do mito pensaram que uma filosofia positiva
extravagante que Sócrates narra no da arte estava implícita nas passagens
Murdoch, I. (1977). The Fire and the poetry In K. Duncan-Jones and J. van
Sun: Why Plato Banished the Artists. Dorsten (eds.) Miscella- neous Prose
Oxford: Oxford University Press. of Sir Philip Sidney (pp. 73-121).
Oxford: Clarendon Press.
Nadaff, R. A. (2003). Exiling the Poets:
the Produc- tion of Censorship in Tate, J. (1928). Imitation in Plato’s
Plato’s “Republic.” Chicago: Republic. Classical Quarterly 22, pp.
University of Chicago Press. 16-23.
Aprendendo sobre Platão com humana. Ele honra Platão por sua con-
Aristóteles córdia perfeita entre mente e vida:
Platão, ele sustenta, mostra de modo
CHRISTOPHER SHIELDS único ou, pelo menos, a um grau
jamais alcançado por outro mortal,
Aristóteles veio a Atenas para estudar que a felicidade humana reside na
na Academia de Platão quando era um bondade da realização intelectual.
garoto de dezessete anos.
Evidentemente, ficou impressionado Mesmo assim, vemos que
com o que encontrou ao chegar: Aristóteles critica Platão, por vezes
entrou na Academia e ah ficou por em termos tão fortes a ponto de
vinte anos, primeiramente como um ocasionar sarcasmos da parte de seus
estudante e, depois, como um detratores na Antiguidade, que ti-
pesquisador em todos os assuntos de nham a tendência de o pôr no papel
filosofia, não saindo da Academia, de de um ingrato, um pupilo que, tendo
fato, até a morte de Platão. Neste sen- sido aceito
tido, quando vemos Aristóteles
criticando Platão, por vezes bem na Academia platônica e tirado
causticamente, devemos trazer à proveito das vantagens de pertencer a
mente a afeição evidente que exprime ela, preferiu desdenhar as convicções
quando o elogia como “um homem de seu líder como o faz um aluno
que é inaceitável que os mal- imaturo, por demais embevecido de si
intencionados louvem: ele mesmo para poder apreciar tudo o
unicamente, insuperável entre os que seu mestre fez por ele. Por
mortais, mostrou claramente por sua exemplo, o biógrafo da Antiguidade
própria vida e pelo empreendimento Diógenes Laércio conta a história,
de seus escritos que um homem se seguramente apócrifa, que Platão
torna feliz e bom ao mesmo tempo” uma vez se referiu a Aristóteles como
(frag. 650 R3, frag. 673 R3, “o potro que deu um coice na sua
Olimpiodoro, Commentarius in mãe” (DL v 2). Tampouco estas críticas
Gorgiam 41.9). Aristóteles elogia a Aristóteles se limitam à Antiguidade.
Platão não simplesmente por conta de Ao contrário, elas vêm até o tempo
seus feitos intelectuais, tampouco presente. Assim um eminente
somente por conta de sua bondade estudioso de Platão resume o nível de
entendimento da parte de Aristóteles
simplesmente que o atributo ser uma 5. Se (4), então F-dade: (a) não pode
árvore poderia vir a ser exemplificado depender dos objetos F para sua
mais uma vez naquela colina. existência e, assim, dever ser capaz
de existir sem eles, bem como (b)
Neste sentido, a suposição que deve ser eterno.
há um atributo aplicado a muitas 6. Assim, F-dade deve ser capaz de
árvores se mostra rico do ponto de existir sem os objetos F e ser
vista da economia e da justificação. eterno.
Esse atributo seria uma instância do
Um de Muitos. Generalizando, então, É surpreendente quão
para um grupo de objetos F, haveria rapidamente, com base somente na
um atributo F-dade que todos e simples suposição de haver um traço
somente os objetos F têm em comum. comum a muitos particulares, este
Um objeto, F-dade, se aplica sobre argumento nos leva às portas da
muitos objetos F. Procedendo de um concepção platônica das Formas. (6)
modo ligeiramente mais rigoroso, en- implica que há entidades distintas de
tão, vemos que Aristóteles atribui a todo particular material, capaz de
Platão um argumento do seguinte existir eternamente sem a menor
tipo: dependência deles para continuar a
ser. Podemos denominar estas
1. Sempre que muitos objetos são F, entidades “Formas”.
eles são F em vez de exibirem um
atributo comum, F-dade. Embora em certas direções
2. Não é possível supor que esse plenamente crítico desse argumento,
atributo seja ele próprio idêntico a Aristóteles se mostra em outras
(a) um dos objetos F ou (b) à inteira direções surpreendentemente
classe de objetos F. favorável a ele. Consideremos
3. Assim, esse atributo, F-dade, deve primeiro suas críticas. No Das Formas,
ser distinto dos objetos F e se Aristóteles primeiramente critica este
aplicar sobre eles. argumento por provar muito – se é
4. Ademais, essa F-dade, que é que prova alguma coisa. Se for válido,
distinta da classe de objetos F e sugere ele, o Argumento Um de
aplicado sobre eles, sublinha a Muitos geraria Formas indesejadas
possibilidade permanente de mesmo pelos platônicos, Formas
haver objetos F. correspondendo a negações e a coisas
estiver completa, dizem eles, estará Ora, Platão certamente por vezes fala
unificada. Segundo, para um exemplo nesta direção, como quando fala da
mais próximo da relação dialética “Ideia [= Forma] do Bem, da qual tudo
entre Platão e Aristóteles: considere a que é bom e certo recebe seu valor
amizade. Falamos para nós” (R. 505a2-4). A réplica de
Aristóteles é direta: “o bem não pode
ser algo universal, comum [a todos os
objetos bons] e único” (EN 1096a28).
que a amizade ocorre entre crianças e Se estivermos inclinados a supor que
entre adultos, entre aliados Políticos, as Formas são significados, a título de
entre negociantes que se associam e valores semânticos para termos
mesmo entre pessoas e classes gerais, então também podemos nos
abstratas: “ele sempre foi um amigo inclinar imediatamente a aceitar a
fiel ao homem trabalhador”. Existe crítica de Aristóteles. Dizemos de uma
uma relação, amizade, que todos grande quantidade de coisas
estes elementos têm entre si? Talvez diferentes que são boas: agentes
haja, mas isso não é óbvio. Mesmo morais, apresentações de ópera,
com base em uma inspeção rápida, sobremesas, sistemas econômicos,
descobrimos que, em alguns casos, a respostas, corações artificiais e
relação se mostra simétrica e, em períodos de tempo. Quando dizemos
outros, não simétrica. Os filósofos que o capitalismo é bom, certamente
que se ocupam com estas queremos dizer algo outro que uma
investigações podem e devem refletir piada é boa? Se alguém diz que o capi-
sobre as perspectivas de uma talismo é bom, quer dizer
univocidade em sua definição final. presumivelmente, inter alia, que é um
sistema eficiente e socio- Político
Aristóteles critica Platão por não justo; em contraste, quando dizemos
ter refletido adequadamente sobre as que uma piada é boa, queremos dizer
perspectivas de univocidade no caso que ela é engraçada. Obviamente, ser
de bem. De fato, Aristóteles pensa engraçado não é a mesma coisa que
que pode mostrar que o bem é ser um sistema eficiente e
positivamente não unívoco, de modo socioPolítico justo. Porque estas
que toda fala de uma Forma do Bem, paráfrases de “bom” são claramente
de uma única Forma para todos os diferentes quanto ao sentido,
objetos Bons já está mal concebida. podemos inferir que
o que é significado por “bom” nestas Socrática). Cada vez que vai além da
aplicações distintas deve também superfície, Mênon termina se
diferir em significado. Dado que estes contradizendo. Isso não o desqualifica
exemplos podem facümente ser para usar a palavra “virtude” em seus
multiplicados, o bem é não somente, assuntos quotidianos; revela, porém,
se concluiria, não unívoco, mas que ele é alguém que não tem uma
terrivelmente não unívoco. apreensão do significado projimdo ou
essência das palavras cujos
Platão não deve ser tão significados rasos ele apreendeu. Por
facilmente dissuadido de sua esta razão Platão pode resistir a toda
suposição de univocidade a propósito objeção quanto a ter suposto errada-
do bem. Já de início, estamos mente a univocidade do bem. Platão,
supondo algo que ele não precisa como Aristóteles, faz filosofia e não
supor, mesmo que não pretenda que lexicografia. Mesmo que os
suas Formas sejam valores significados rasos de “bem” diviijam
semânticos de termos gerais, a saber, em um número de aplicações, resta
que, correspondente a cada termo que é possível que haja uma essência
geral, há uma única Forma que única, não disjuntiva do bem
responde a todo significado raso ou subjacente a todos os significados
lexical. Platão claramente não pensa rasos corretos que o termo possa ter
assim. Quando, por exemplo, Mênon adquirido no discurso quotidiano. Na
declara, ao final de um elenchus verdade, pode-me mesmo sugerir
socrático, que ele não pode dizer o que deve haver tal noção subjacente,
que é a virtude, ainda que tenha, em que implicitamente controla o campo
sua avaliação, fornecido muitas belas aceitável de aplicações, de algum
falas sobre esse mesmo tema, ele não modo normativo quanto à sua
dá nenhuma indicação que nunca extensão.
soube o significado da palavra ade-
quado para fazer discursos (Men.
80a9-b4). Ao contrário, como ele diz,
ele não pode dizer o que é (80b4). O A objeção de Aristóteles à
que Mênon quer dizer e o que Platão suposição de univocidade por parte
o entende querer dizer é que ele não de Platão torna-se assim interessante
pode especificar a essência da virtude somente quando se mostra que ele
(ver o capítulo A Ignorância tem uma objeção puramente não
Platão pode muito bem se perguntar lexical, supõe-se que devemos aceitar
por que o bem deve ser unívoco se e que assim como o que é existir para
somente o ser o for. Vimos que Sócrates difere do que é existir para a
Aristóteles estabelece a comparação virtude e assim de novo para um vo-
sugerindo que ser e bem andam jun- lume médio, assim também há uma
tos na medida em que cada um deles diferença diretamente análoga entre
pode ser usado nas categorias o que é para Sócrates ser bom, para a
divergentes. Assim, para desdobrar virtude ser boa e para um volume
um exemplo somente parcial, médio ser bom. Em cada caso,
Aristóteles supõe que devemos evidentemente, é a definição analisa-
aceitar os seguintes pares: da, ou teoricamente embasada, que
está em questão.
Substância:
Se for isso, não estamos
Qualidade: minimamente em uma posição de
concordar com Platão ou Aristóteles
Ser até que tenhamos à nossa frente as
noções analisadas. Neste sentido, se
Sócrates estivermos inclinados, pelo menos
provisoriamente, a aceitar a
existe. suposição de univo- cidade para o
bem, não devemos desesperar de
A virtude nossas perspectivas de um sucesso ao
existe.
final em qualquer momento antes
Bem Sócrates é bom. que nossas análises finais estejam
completas. Neste aspecto, os ataques
A virtude é boa. de Aristóteles contra a univocidade
de Platão, embora possam encontrar
Quantidade: Um volume Um volume ressonância nos leitores contempo-
râneos enamorados do discurso
médio existe, médio é bom. inspirado em Wittgenstein das
semelhanças de família, são
O mesmo para as demais convincentes ao final em função das
categorias. Para além do significado análises que produzem Platão ou
Teofrasto, era seu rival mais antigo, 236) o exprime de modo agudo, “tudo
mas os estudantes de filosofia tinham o que o platonismo de Pólemon podia
agora muitas outras opções, inclusive, fazer, Zenão, ao que parece, podia
em especial, o Jardim epicureu e o fazer melhor”. A resposta de Arcesilau
estoicismo de Zenão. Eles também consistiu em assumir o tom dialético
podiam tornar-se discípulos de Pirro dos diálogos platônicos. Não se deve,
ou buscar os cínicos, ci- renaicos ou porém, julgar que, ao proceder assim,
dialéticos como Diodoro Crono. O que valia-se de um mero estratagema. As
estava em questão aqui não era sim- objeções que lançou contra a
ples ou principalmente uma epistemologia de Zenão tinham
competição por discípulos, mas antes grande força. Tudo o que sabemos
uma pletora de filosofias em sobre Arcesilau indica não somente
competição, cada uma reivindicando uma virtuosidade dialética, mas
seus predecessores e com suas também uma honestidade filosófica.
receitas próprias para se viver uma Temos de supor que sua defesa da
vida racional. Como devia Arcesilau, suspensão do julgamento estava
enquanto um platônico, posicionar a fundada na convicção sincera que,
si mesmo e a sua escola de longa
tradição?
Cratylus, phy-
causality. In J. Brunschwig e M.
Nussbaum (eds.) Passions and
Perceptions: Studies in Hellenistic 29
Philosophy of Mind (pp. 313-31).
Cambridge: Cambridge University A influência de Platão na filosofia
Press. judaica, cristã e islâmica