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HUGH H.

BENSON
e colaboradores

Platão

Tradução: Vera Porto Carrero

Introdução: Traduzida por Antonio Carlos Maia


1ª. Edição brasileira — 1993
© Copyright The University of Chicago» Chicago, Il, U.S.A.
CiP-Brasil, Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

D837m
Dreyfus, Hubert L.
Michel Foucault, uma trajetória filosófica; (para além do estruturalismo e da
hermenêutica)/ Hubert Dreyfus, Paul Rabinow; tradução de Vera Porto
Carreto. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 1995.
Tradução de: Michel Foucault beyond structuralism and hermeneutcs ISBN
85-218-0158-0
l. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Filosofia francesa.
I. Rabirow, Paul. II. Título. II. Série
95-1445 CDD194
CDU 1(44)

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deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico, inclusive
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(Lei no. 5.988 de 14.12.73).

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Editoração Eletrônica: Delta Line

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Largo de São Francisco,20 — 01005-010 São Paulo — SP — Tel.: (011) 604-2005

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

CHARLES M. YOUNG
Autores Professor de Filosofia da Universidade de
Claremont. Autor de vários artigos sobre
HUGH H. BENSON (ORG.) Platão e Aristóteles, está atualmente
Professor e Chefe do Departamento de preparando uma monografia sobre virtude e
Filosofia na Universidade de Oklahoma; foi virtudes em Aristóteles, bem como
Samuel Roberts Noble Presidential Professor trabalhando no módulo sobre o livro V da
de 2000 a 2004. E o editor de Ensaios sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles dentro do
Filosofia de Sócrates (1992) e autor de Projeto Archelogos.
Sabedoria Socrático (2000), bem como de
vários artigos sobre a filosofia de Sócrates, CHRISTOPHER JANAWAY
Platão e Aristóteles. Professor de Filosofia na Universidade de
Southampton. E autor de Imagens de
A. A. LONG Excelência: A Crítica de Platão às Artes e
Professor de Línguas Clássicas e Irving Stone publicou largamente na área de estética. Suas
Professor de Literatura na Universidade da outras publicações incluem Simesmo e
Califórnia, Berkeley. Suas obras mais recentes Mundo na Filosofia de Schopenhauer (1989),
incluem Estudos Estóicos (1996) e Epicteto: Schopenhauer: Uma introdução Muito breve
Um Guia Estóico e Socrático à Vida (2002). (2002) e Lendo Estética e Filosofia da Arte
Como editor e colaborador publicou O Guia (Blackwell, 2006).
de Cambridge à Primeira Filosofia Grega
(1999). CHRISTOPHER ROWE
Professor de Grego na Universidade de
C. D. C. REEVE Durham. Obteve um Cargo Professoral de
Professor de Filosofia com distinção Delta Pesquisa Pessoal do Fundo Leverhulme de
Kappa Epsilon na Universidade da Carolina do 1999 a 2004 e foi coeditor da Phronesis
Norte em Chapei Hill. E autor de Confusões de (Leiden) de 1997 a 2003. E autor de
Amor (2005) e Conhecimento Substancial: a comentários a vários diálogos de Platão e
Metafísica de Aristóteles (2000). Seu livro editou, com Malcolm Schofield, A História de
Reis-Filósofos: O Argumento da República de Cambridge do Pensamento Político Grego e
Platão será reimpresso em 2006. Romano (2000). Realizou a tradução de Ética
Nicomaqueia de Aristóteles (que deverá
CHARLES KAHN acompanhar um comentário filosófico por
Professor de Filosofia da Universidade da Sarah Broadie, 2001), editou Novas
Pennsylvania. E autor de Anaxlmenes e as Perspectivas sobre Platão com Julia Annas
Origens da Cosmologia Grega (1960), O Verbo (2002) e, com Terry Penner, escreveu uma
'Ser' em Grego Antigo (1973; reimpresso com monografia sobre o Lísis de Platão (2005).
nova introdução, 2003), A Arte e Pensamento
de Heráclito (1979), Platão e o Diálogo CHRISTOPHER SHIELDS
Socrático (1996) e Pitágoras e os Pitagóricos Membro Tutor da Lady Margaret Hall e Leitor
(2001). Universitário na Universidade de Oxford. E

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Benson Benson

autor de vários livros, incluindo Ordem na como pesquisador no Instituto de Pesquisa


Multiplicidade, Filosofia Clássica: Uma em Humanidades da Universidade de
Introdução Contemporânea (2003) e Wisconsin, no Centro para Estudos Helênicos
Aristóteles (no prelo), bem como coautor, em Washington (capital), no Instituto para
com Robert Pasnau, de A Filosofia de Thomas Estudos Avançados em Princeton e no Centro
de Aquino (2003). Atuou como editor do Guia de Filosofia e Política Social da Universidade
Blackwell à Filosofia Antiga (Blackwell, 2003) Estadual de Bowling Green. E autor de
e de O Manual de Oxford sobre Aristóteles (no Aristóteles: Política Ve VI (1999) e coeditor,
prelo). com Fred D. Miller Jr., do Guia à Leitura da
Política de Aristóteles (Blackwell, 1991).
CYNTHIA FREELAND
Professora e Chefe do Departamento de DAVI D SEDLEY
Filosofia na Universidade de Houston. Professor Laurence de Filosofia Antiga na
Escreveu artigos sobre a filosofia antiga e é Universidade de Cambridge. E autor, com A.
editora de Interpretações Feministas de A. Long, de Filósofos Helenísticos (1987),
Aristóteles (1998). Sua área de interesse Lucrécio e a Transformação da Sabedoria
também abrange estética; seus livros incluem Grega (1998), O Crátilo de Platão (2003) e A
Filosofia e Filme (coeditado com Thomas Maiêutica do Platonismo: Texto e Subtexto no
Wartenberg, 1995), O Nueo Morto-Vivo: 0 Teeteto de Platão, e editor de O Guia de
Mal e a Atração do Horror (1999) e Mas é Cambridge à Filosofia Grega e Romana
Arte? (2001). (2003). Ele foi Professor Sather na
Universidade da Califórnia em Berkeley em
DANIEL DEVEREUX 2004 e atualmente edita os Oxford Studies in
Professor de Filosofia na Universidade de Ancient Philosophy.
Virgínia. E autor de artigos sobre a filosofia de
Sócrates, ética e metafísica de Platão, ética e DEBORAH K. W. MODRAK
teoria da substância de Aristóteles. Professora de Filosofia na Universidade de
Contribuiu com o capítulo: “Platão: Rochester. E autora de dois livros, A Teoria da
Metafísica”, para o Guia Blackwell à Leitura Linguagem e do Significado de Aristóteles
da Filosofia Antiga (2003). Seu trabalho mais (2001) e Aristóteles: O Poder da Percepção
recente foca-se no desenvolvimento da ética (1987). Escreveu também numerosos artigos
de Platão. sobre temas da filosofia da mente, teorias de
cognição e linguagem e epistemologia grega
DAVI D KEYT antiga.
Foi por muitos anos Professor de Filosofia na
Universidade de Washington em Seattle. DEBRA NAILS
Também atuou como professor na Professora de Filosofia na Universidade
Universidade de Cornell, na Universidade de Estadual de Michigan. E autora de A Gente de
Hong Kong, na Universidade de Princeton e Platão: Uma Prosopografia de Platão e Outros
nos campi de Los Angeles e de Irvine da Socráticos (2002), Agora, Academia e a
Universidade da Califórnia, bem como atuou Conduta da Filosofia (1995), bem como de

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artigos sobre Sócrates e Platão em várias e Justiça: Platão, Aristóteles e os Modernos


revistas e coletâneas. Escreve também sobre (Blackwell, 2001; edição grega: 2006) e editor
Spinoza e mantém trabalho de investigação do Guia Blackwell à Leitura da República de
para o Comitê de Defesa dos Direitos Platão (Blackwell, 2006).
Profissionais dos Filósofos para a Associação
Americana de Filosofia e para a Associação MARK L. MCPHERRAN
Americana de Professores Universitários. Professor de Filosofia na Universidade do
Maine em Farmington. E autor de A Religião
FRED D. MILLER JR. de Sócrates (1996; ed. em brochura: 1999),
Professor de Filosofia e Diretor Executivo do editor de Sabedoria, Ignorância e Virtude:
Centro de Filosofia e Política Social na Novos Ensaios nos Estudos Socráticos (1997),
Universidade Estadual de Bowling Green. E Reconhecimento, Recordação e Realidade:
autor de Natureza, Justiça e Direitos na Novos Ensaios sobre a Epistemologia e
Política de Aristóteles (1995), coeditor, com Metafísica de Platão (1999) e numerosos
David Keyt, do Guia à Leitura da Política de artigos sobre Sócrates, Platão e o ceticismo
Aristóteles (Blackwell, 1991) e editor, em antigo.
associação com Carrie-Ann Khan, de Uma
História da Filosofia do Direito dos Gregos MARY LOUISE GILL
Antigos à Escolástica (2006). Publicou muitos Professora de Filosofia e Línguas Clássicas na
artigos sobre a filosofia antiga e sobre a Universidade Brown. Ela é autora de “Método
filosofia moral e política. Foi Presidente da e metafísica no Sofista e no Político de Platão”
Sociedade de Filosofia Grega Antiga de 1998 na Enciclopédia Stanford de Filosofia (2205),
até 2004. Aristóteles e a Substância: O Paradoxo da
Unidade (1989) e Platão: Parmêmides –
GARETH B. MATTHEWS introdução e cotradução (1996). Ela é
Professor Emérito de Filosofia na coeditora do Guia à Leitura da Filosofia
Universidade de Massachusetts em Amherst. Antiga (Blackwell, 2006).
Ensinou anteriormente na Universidade da
Virgínia e na Universidade de Minnesota. E MARY MARGARET MCCABE
autor de numerosos livros e artigos sobre Professora de Filosofia Antiga no King’s
filosofia antiga e medieval, incluindo College de Londres. E autora de Platão e a
Perplexidade Socrática e a Natureza da Punição (1981), Indivíduos em Platão (1994) e
Filosofia (1999) e Agostinho (Blackwell, 2005). Platão e seus Predecessores: A Dramatização
da Razão. E também a editora geral da série
GERASIMOS SANTAS Estudos nos Diálogos de Platão da Editora
Professor de Filosofia na Universidade da Universitária de Cambridge. Nos anos 2005-8
Califórnia em Irvine. E autor de Sócrates; foi membro pesquisadora principal do Fundo
Filosofia nos Primeiros Diálogos de Platão Leverhulme.
(1979; edição grega; 1997; edição italiana:
2003), Platão e Freud: Duas Teorias do Amor MICHAEL FEREJOHN
(Blackwell, 1988; edição italiana: 1990), Bem Professor Associado de Filosofia na

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Universidade Duke. Foi professor visitante da Universidades de Michigan e Utah. E autor de


Universidade de Pittsburgh e da Universidade Conhecimento e Realidade segundo Platão
de Tufts; foi membro da Faculdade de Mellon (1976), Um Guia à Leitura da República de
da Universidade de Harvard. Ferejohn é o Platão (1979) e Indivíduo e Conflito na Ética
autor de As Origens da Ciência Aristotélica Grega (2002).
(1991), bem como de numerosos artigos
sobre a primeira ética e metafísica platônicas, R. M. DANCY
a metafísica, a epistemologia e a filosofia da Professor de Filosofia na Universidade
ciência aristotélica. Atualmente, prepara um Estadual da Flórida. E autor de Sentido e
livro sobre o lugar da definição na Contradição: Um Estudo em Aristóteles
epistemologia antiga. (1975), Dois Estudos sobre a Primeira
Academia (1991), Platão e a Introdução das
MICHAEL J. WHITE Formas (2004) e editor de Kant e Crítica
Professor de Filosofia e Direito na (1993).
Universidade Estadual do Arizona. Seus livros
incluem Agência e Integralidade: Temas SARA AHBEL-RAPPE
Filosóficos nas Discussões Antigas sobre Professora Associada de Línguas Clássicas na
Determinismo e Responsabilidade (1985), O Universidade de Michigan. E autora de Lendo
Contínuo e o Discreto: Teorias Físicas Antigas o Neoplatonismo (2000) e co-editora do Guia
em uma Perspectiva Contemporânea (1992), Blackwell à Leitura de Sócrates (Blackwell,
Partidário ou Neutro? (1997) e Filosofia 2006).
Política: Uma Introdução Histórica (2003). SUSAN SAUVÉ MEYER
Colaborou recentemente com o Guia de Obteve o título de doutora em filosofia na
Cambridge de leitura dos Estóicos (2003). Universidade de Cornell em 1987; ensinou na
Universidade de Harvard antes de entrar na
NICHOLAS D. SMITH Faculdade de Filosofia da Universidade da
Professor James F. Miller de Humanidades, Pennsylvania em 1994, onde é agora
Chefe do Departamento de Filosofia e Diretor Professora Associada. Seu trabalho atual tem
dos Estudos Clássicos na Faculdade Lewis e por foco a ética grega e romana e está no
Clark em Portland, Oregon. Suas publicações momento finalizando um livro, Ética Antiga.
com Thomas C. Brickhouse incluem: Sócrates
no Julgamento (1989), O Sócrates de Platão TERRY PENNER
(1994), O Julgamento e Execução de Sócrates: Professor Emérito de Filosofia e foi Professor
Fontes e Controvérsias (2002) e O Manual Afiliado de Línguas Clássicas na Universidade
Filosófico da Routledge sobre Platão e o de Wisconsin – Madison. Na primavera de
Julgamento de Sócrates (2004). 2005 foi Pesquisador Visitante A. G. Leventis
de Grego na Universidade de Edinburgh.
NICHOLAS WHITE Escreveu numerosos artigos sobre Sócrates, a
Professor de Filosofia e Professor de Línguas psicologia da ação de Platão e sobre a teoria
Clássicas na Universidade da Califórnia em das formas de Platão, bem como o livro A
Irvine. Foi Professor de Filosofia nas Ascensão do Nominalismo (1987) e, com

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Christopher Rowe, o livro Lísis de Platão


(2005).

THOMAS C. BRICKHOUSE
Professor de Filosofia no Lynchburg College e
co-autor (com N. D. Smith) de quatro livros e
numerosos artigos sobre a filosofia de
Sócrates. Escreveu também sobre Platão e
Aristóteles.

WILLIAM J. PRIOR
Professor de Filosofia na Universidade de
Santa Clara. Obteve seu título de doutor na
Universidade do Texas em Austin em 1975. E
autor de Unidade e Desenvolvimento na
Metafísica de Platão (1985) e Virtude e
Conhecimento (1991), editor de Sócrates:
Avaliações Críticas (4 volumes, 1996) e de
numerosos artigos sobre filosofia grega. Está
atualmente trabalhando sobre o problema
socrático e sobre a cosmologia grega.

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Prefácio como um reflexo da profundidade dos


textos e doutrinas individuais
Os ensaios reunidos neste livro são platônicas e, consequentemente, dos
guiados por quatro objetivos. diversos modos de os abordar.
Primeiro, estão dirigidos a temas da
Segundo, esta obra tem por
filosofia platônica antes que a
objetivo apresentar uma variedade de
diálogos platônicos particulares. O
perspectivas sobre o
pressuposto desta obra é que se
desenvolvimento filosófico de Platão.
aborda com proveito Platão ao se
Por conta da abordagem orientada
considerar de que forma posições
por temas (oposta a uma orientação
defendidas em um diálogo podem ser
por diálogos), o debate acerca do
comparadas e contrastadas a posições
desenvolvimento filosófico de Platão
defendidas em outros diálogos. Cada
é particularmente saliente. Se Platão
autor teve a liberdade de pôr em
trata um tema em um diálogo (ou em
prática este pressuposto como achava
um grupo de diálogos)
apropriado. Alguns preferiram
diferentemente do que em outros, é
concentrar-se primordialmente em
natural perguntar-se se esta diferença
um diálogo, observando de passagem
deve ser explicada por uma mudança
como o tema é tratado em outros
de contexto, uma mudança de ênfase
diálogos (p. ex., N. White), enquanto
ou uma mudança na posição de
outros autores preferiram pôr um
Platão. Se a mudança de posição
foco mais abrangente em seus ensaios
parece ser a melhor explicação, é
(p. ex., McPherran). Contudo, um
então natural perguntar-se qual
pressuposto comum a todos os
posição Platão sustentou
ensaios é que é apropriado, e mesmo
primeiramente e, deste modo, indicar
necessário, perguntar-se se Platão
seu desenvolvimento filosófico sobre
trata o tema em questão de modo
este tema. Aqui nos vimos envolvidos
consistente ao longo de sua obra. Isso
no debate atual entre os estudiosos
ocasionou, inevitavelmente,
que veem os diálogos de Platão como
repetição e imbricação de um ensaio
refletindo seu desenvolvimento
em outro. O mesmo texto ou doutrina
filosófico e os que veem os diálogos
platônica por vezes é explorado em
como desenvolvendo aspectos,
função de temas diferentes. Tal
detalhes e matizes de uma posição
repetição, todavia, deve ser encarada
filosófica única ao longo de toda a

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obra. Nos ensaios que seguem, alguns relevância filosófica em oposição à


autores defendem um relevância histórica ou filológica. Esta
desenvolvimentismo assaz robusto (p. distinção é, obviamente, vaga e
ex., McPherran, Penner e Ferejohn), potencialmente enganadora, mas o
enquanto outros parecem defender foco foi filosofia – não história ou
uma versão mais moderada (p. ex., filologia. Consequentemente, estou
Rowe) e outros ainda parecem seguro de que os temas escolhidos
oferecer interpretações refletem os vieses de nossa época (e,
desenvolvimentistas e não sem dúvida, meus próprios vieses). Tal
desenvolvimentistas (p. ex., Modrack) reflexo é, a meu ver, inevitável.
ou parecem adotar uma interpretação Porém, ele também fará, espero, com
unitária (p. ex., McCabe, Janaway e que a coleção seja atraente a muitas
Long). Quando os autores se referem pessoas com interesses na filosofia
aos três grupos cronológicos nos quais atual.
frequentemente se pensou que os
diálogos de Platão se dividem, eles Quarto, foi pedido aos autores
tipicamente têm em mente os dos ensaios deste livro que
seguintes agrupamentos: diálogos escrevessem seus textos de modo
precoces (Apologia, Carmides, Críton, acessível ao leitor iniciante ou ao não
Eutidemo, Eutifro, Górgias, Hípias especializado; contudo, de um modo
Maior, Hípias Menor, Íon, Laques, que também fizesse avançar a
Lísis, Menexeno, Mênon, Protágoras), discussão especializada. Há sempre,
diálogos médios (Crátilo, Parmênides, suponho, uma tensão entre erudição
Fédon, Fedro, República, Banquete, séria e acessibilidade, mas os autores
Teeteto) e diálogos tardios (Crítias, devem ser elogiados por sua
Leis, Filebo, Político, Sofista, Timeu). habilidade em navegar em tais águas.
Porém, a obra como tal não Consequentemente, os ensaios
pressupõe que os diálogos são devem interessar tanto os leitores
corretamente vistos como tendo sido que leem Platão pela primeira vez
compostos nesta ordem nem sustenta como também aos estudiosos que
uma abordagem desenvolvimentista dedicaram uma boa parte de sua vida
ou unitária de Platão. adulta a pesquisar suas profundezas
internas. Para este fim, os próprios
Terceiro, os temas foram autores fizeram as traduções das
selecionados com uma atenção à passagens centrais ou usaram as

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traduções presentes em Plato: fazendo muito do trabalho pesado e


salvando-me de erros graves.
Complete Works, editado por J. M. Cooper Finalmente, não posso deixar de
(Indianápolis, Hackett 1997), que se tornaram
agradecer a Ann, Thomas e Michael
em nossa época as traduções de referência
para estudiosos e iniciantes. por me ajudarem a lembrar onde
estão as minhas prioridades.
Por fim, gostaria de exprimir
minha sincera estima pelos eminentes
estudiosos que contribuíram com os
ensaios que seguem. Eu tenho estima
por sua paciência com minhas
instruções por vezes confusas e por
meus frequentes atrasos, pela
generosidade ao aceitar escrever para
esta obra e deixar de lado a tentação
de notas numerosas, pela elegância
ao responder aos meus comentários
por vezes obtusos e, especialmente,
pela habilidade filosófica e erudita
para compor os ensaios que seguem.
Em um sentido muito literal, este livro
não é meu, mas deles. Gostaria de
agradecer especialmente a Mary
Louise Gill e M. M. McCabe pelo
encorajamento que me deram em
momentos de incerteza, desespero e
exasperação. Obrigado também a
Nick Bellorini, Jennifer Hunt, Gillian
Kane, Kelvin Matthews, Mary Dortch e
à equipe da Editora Blackwell pelo
apoio, conselho e paciência. Meus
alunos Elliot Welch e Rusty Jones
também contribuíram de modo
inestimável a este empreendimento,

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resposta ............................................... 79
Sumário
A aporia socrática ................................. 81
Autores ....................................................... 4 O paradoxo da escrita ........................... 82

Prefácio....................................................... 9 Drama e a dimensão ética ..................... 84


As limitações do ético ........................... 86
Sumário .................................................... 12
O diálogo silente da alma ...................... 89
1. A vida de Platão de Atenas .................... 14
A reflexão e seu conteúdo..................... 93
A juventude de Platão em Atenas ......... 15
Notas .................................................... 94
A primeira viagem de Platão à Sicília e a
fundação da Academia.......................... 20 Referências e leitura complementar ...... 95

As expedições de Platão na Sicília em 5. O Elenchus socrático.............................. 97


favor de Díon e da filosofia ................... 24 6. Definições platônicas e formas............. 118
Os últimos anos de Platão ..................... 30
7. O método da dialética de Platão .......... 140
Referências e leitura complementar...... 31
Parte II .................................................... 162
2. Interpretando Platão ............................. 33
8. A ignorância socrática .......................... 163
Referências e leitura complementar...... 52
9. Platão e a reminiscência ...................... 186
3. O problema Socrático ............................ 54
10. Platão: uma teoria da percepção ou um
A fidedignidade das fontes.................... 55
aceno à sensação?................................... 209
O que as fontes nos dizem a respeito de
Sócrates................................................ 60
O problema das doutrinas de Sócrates .. 63
Nota ..................................................... 70
Referências e leitura complementar...... 70
Parte I ....................................................... 72
O MÉTODO PLATÔNICO E A FORMA DE
DIÁLOGO ................................................... 72
4. A forma e os diálogos platônicos............ 73
Discussões diretas................................. 73
Quadros e encartes............................... 75
Ficção e relato ...................................... 77
Sócrates a propósito de questão e

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Abreviaturas usadas neste livro Ep. Cartas


Euthd. Eutidemo
Euthphr. Eutifro
ARISTÓTELES Grg. Górgias
APo Segundos Analíticos Hp.Ma. Hípias Maior
Cot. Categorias La. Laques
de An. De Anima Lg. Leis
EE Ética Eudêmia Men. Mênon
EN Ética Nicomaqueia Phd. Fédon
Int. Da Interpretação Phdr. Fedro
Metaph. Metafísica Phlb. Filebo
Ph. Física Plt. Político
Poet. Poética Prm. Parmênides
Pol. Política Prt. Protágoras
SE Refutações Sofisticas R. República
Top. Tópicos Smp. Banquete
Sph. Sofista
AGOSTINHO Tht. Teeteto
DCD A Cidade de Deus Ti. Timeu
VII Sétima Carta
DIÓGENES LAÉRCIO
DL Vidas dos Filósofos Eminentes PLUTARCO
Per. Péricles
DIONÍSIO (PSEUDO-DIONÍSIO)
CH Hierarquia Celeste PORFÍRIO
MT Teologia Mística Abst. Da Abstinência
VP Vida de Pitágoras
HESÍODO
Th. Teogonia PROCLO
Op. Os Trabalhos e os Dias In pr. Eucl. Comentário ao primeiro livro de Euclides
HOMERO SEXTO EMPÍRICO
II. Ilíada M. Contra os matemáticos
Od. Odisséia
XENOFONTE
JÂMBLICO Mem. Memorabilia
DM Sobre os Mistérios dos Egípcios HG História Grega
PÍNDARO
N. Odes Nemeias
O. Odes Olímpicas

PLATÃO
Ap. Apologia
Chrm. Carmides
Cro. Crátilo
Cri. Críton

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1. A vida de Platão de feita na medida do bibliotecário


alexandrino Apolodoro, que dividiu as
Atenas vidas dos antigos em quatro períodos
de vinte anos, com uma akmê na
DEBRA NAILS idade de 40 anos.2 Por este esquema,
Platão nasceu devidamente em 427,
Platão morreu no primeiro ano da encontra Sócrates quando tinha 20
centésima oitava Olimpíada, no anos (e Sócrates tinha 60), funda a
décimo terceiro ano do reinado de Academia aos 40, viaja para a Sicília
Filipe da Macedônia – 347 a.C. pela aos 60 e morre na idade de 80. Ampla
contagem contemporânea – e foi evidência refuta a bela cadência.
enterrado na Academia.1 A reputação
do filósofo era tão venerável e tão Platão de Colito, filho de Aríston
difundida que uma mitologia foi – pois este era o seu nome legal, com
inevitável e prolongada: Platão teve o qual tinha direito de cidadania
como genitor Apolo e nasceu da ateniense e que será escrito nas listas
virgem PerictÍone; nasceu no sétimo tribais – nasceu em 424/3, quarto
dia do mês de Targelião, no dia de filho de Aríston de Colito, filho de
aniversário de Apolo, e as abelhas do Arístocles, e de PerictÍone, filha de
Monte Himeto puseram mel na boca Gláucon; Aríston e PerictÍone haviam
no bebê recém-nascido. Platônicos na se casado em 432. Deixando de lado
Renascença celebravam o nascimento origens divinas remotas, ambos os
de Platão em 7 de novembro, no pais tinham ascendentes que os
mesmo dia em que sua morte era ligavam aos arcontes atenienses dos
lembrada. Em seu O Filho de Apolo, de séculos sétimo e sexto e, no caso de
1929, Woodbridge escreve no início: PerictÍone, a parentesco com Sólon, o
“a exigência da história para que sábio legislador (Ti. 20e1). Aríston e
sejamos precisos vem de encontro à sua jovem família provavelmente
exigência de admiração para que estavam entre os primeiros
sejamos justos. Presos entre as duas, colonizadores de Egina que
os biógrafos de Platão têm escrito não mantinham a cidadania ateniense,
a vida de um homem, mas tributos a quando Atenas expulsou os nativos de
um gênio”. Gênio certamente ele era, Egina em 431 (Tucídides 2.27).
mas ele merece mais do que um Quando Aríston faleceu, por volta do
tributo e mais do que uma vita padrão nascimento de Platão, a lei ateniense

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proibia a independência legal da A juventude de Platão em Atenas


mulher, de modo que PerictÍone foi
dada em casamento ao irmão de sua Quando Platão era um menino com
mãe, Pirilampo, um viúvo que tinha idade suficiente para prestar alguma
sido recentemente ferido na batalha atenção à vida política que afetava
de Délio. Casamentos entre tios e sua família, a cidade de Atenas estava
sobrinhas, assim como entre primos enredada na Guerra do Peloponeso,
de primeiro grau, eram comuns e provocando e sofrendo uma
úteis em Atenas, preservando antes sequência horripilante de desastres.
que dividindo as propriedades Em 416, quando Platão tinha cerca de
familiares. O pai adotivo de Platão, 8 anos e a Paz de Nícias, assinada
Pirilampo, tinha sido amigo íntimo de entre Atenas e Esparta em 421, tinha
Péricles (Plutarco, Per. 13.10) e várias fracassado completamente, Atenas
vezes embaixador na Pérsia (Chrm. comportou-se com uma crueldade
158a2-6); trouxe à família pelo menos desconhecida em relação a Melos,
um filho, Demos (Grg. 481d5, 513c7), servindo-se dos argumentos “o-
cujo nome significa “povo”: um poder-faz-o-direito” que terão eco no
tributo à democracia sob a égide da Trasímaco da República I (Tucídides
qual Pirilampo floresceu na vida 5.84-116). No ano seguinte, quando a
pública. Quando Pirilampo e cidade embarcou na catastrófica
PerictÍone tiveram outro filho, expedição à Sicília, um grupo político
fizeram o que havia de mais oligárquico destruiu, à noite, os
convencional, dando-lhe o nome de bustos da cidade, insultando o deus
seu avô, Antifonte (Prm. 126bl-9). da viagem e dando início a uma
Assim, Platão cresceu em uma família histeria supersticiosa que levou à
de pelo menos seis crianças, sendo execução sumária, prisão ou exílio de
ele o número cinco: um enteado, uma cidadãos acusados de sacrilégio,
irmã, dois irmãos e um meio-irmão. inclusive membros da família de
Pirilampo morreu por volta de 413, Platão. Um dos três comandantes da
mas o filho mais velho de Aríston, frota, o carismático Alcibíades, estava
Adimanto, já tinha então idade entre os acusados, e uma
suficiente, cerca de 19 anos, para consequência terrível da histeria em
tornar-se guardião (kurios) de sua massa de Atenas foi o abandono, por
mãe. parte de Alcibíades, da expedição e
sua traição à cidade. Com a derrota

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total de Atenas na Sicília em 413, enquanto as mulheres permaneciam


Esparta recomeçou a guerra. Platão discretamente no interior das casas.
devia ter 12 anos quando Atenas Na companhia de seus irmãos, Platão
perdeu seu império por causa da era então provavelmente uma jovem
revolta de seus aliados; 13 anos, criança quando conheceu Sócrates.
quando a democracia foi, por breve Tanto o Lísis, que se passa no início da
período, derrubada pela oligarquia primavera de 409, quando Platão
dos Quatrocentos e quando o teria 15 anos, quando o Eutidemo,
exército, ainda sob direção dos que se passa alguns anos mais tarde,
democratas, persuadiu Alcibíades a fornecem uma visão dos anos
retomar e a comandá-lo novamente; escolares de Platão, já que as
14 anos, quando a democracia foi personagens jovens destes diálogos
restaurada; 15 anos, quando seus eram exatos coetâneos de Platão na
irmãos mais velhos, Adimanto e vida real. Lísis de Exone, acerca de
Gláucon, lutaram bravamente na quem temos a sorte de possuir
batalha de Megara (R. 368a3). evidência contemporânea para
corroborar, independente dos
A despeito da guerra e das diálogos de Platão, provavelmente
turbulências, Platão e seus irmãos permaneceu um amigo íntimo do
teriam recebido uma educação filósofo, pois sabemos que chegou a
formal em ginástica e música, mas por ser avô, tendo pelo menos 60 anos
“música” devemos entender os quando morreu.
domínios de todas as Musas: não
somente dança, lírica, épica e música O diálogo Eutidemo, que se passa
instrumental, mas também leitura, no momento em que Platão estaria
escritura, aritmética, geometria, ele próprio pensando a respeito de
história, astronomia e mais ainda. A suas perspectivas de formação, ilustra
condução informal de um menino à a moda educacional da época: a
vida cívica ateniense era transferência pretendida da
responsabilidade fundamentalmente excelência (aretê, também traduzida
do irmão mais velho da família. Como por “virtude”) do professor ao
se vê no Laques e no Carmides, um estudante. A educação mais refinada
jovem era socializado por seu pai, por em Atenas no final do quinto século
seus irmãos mais velhos ou pelo tutor, era dominada por sofistas, residentes
os quais ele acompanhava na cidade – estrangeiros que obtiveram fama e

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riqueza professando técnicas de Estes eram os últimos anos antes


persuasão e exposição, platitudes da derrota de Atenas para Esparta em
revestidas de alto estilo retórico, o 404, quando a Assembleia prestava
tipo de habilidades que poderia cada vez menos atenção às leis
ajudar os jovens a se tornarem escritas e agia cada vez mais irracional
excelentes qua exitosos na vida e emocionalmente, e em busca de
pública por falar com eficácia na vingança. Um Platão mais velho
Assembleia ateniense (ekklêsia) e nos distinguirá entre democracia legal e
tribunais. Mesmo os mais respeitáveis ilegal (Pít. 302dl-303b5) com boa
dentre eles – Górgias de Leontino e razão. Contudo, as tradições eram
Protágoras de Abdera, que aparecem mantidas quanto aos distritos ou
em diálogos homônimos (ver a demos de votação, 139 dos quais
representação por Sócrates de estavam em Atenas. A cidadania era
Protágoras no Teeteto) – são passada estritamente de pai para
representados, contudo, como tendo filho, de modo que os filhos do
feito ofício pífio ao transferir qualquer falecido Aríston, quando chegam aos
excelência que tivessem, pois seus dezoito anos, são apresentados aos
estudantes parecem sempre ter cidadãos de Colito em cerimônias de
dificuldade em reter e defender o que dokimasia, após as quais estariam
seus professores professavam. No inteiramente emancipados. Foi no
Eutidemo, dois sofistas de caráter ano seguinte à dokimasia de Platão
questionável alegam ser capazes de que Sócrates tentou sem sucesso
tornar qualquer homem bom impedir que a Assembleia levasse a
chamando-o à filosofia e à excelência julgamento e condenasse
(274d7-275al), mas sua produção é inconstitucionalmente seis generais,
nada menos que um uso hilário de entre os quais o filho de Péricles e
falácias com vistas a enganar seus Aspásia, sob a acusação de não terem
respondentes. O final do diálogo (a assegurado o recolhimento dos
partir de 304b6) é uma lembrança corpos após a vitória na batalha naval
grave de que, no tempo do de Arginusa, em 406. Nos dois anos
amadurecimento de Platão, os seguintes à sua cerimônia, Platão terá
atenienses estavam cada vez mais atuado em companhia de seus
desconfiados dos sofistas, retóricos, camaradas de demo em uma milícia
oradores e filósofos, igualmente. da cidade, embora confinado ao
serviço dentro dos limites da Ática.

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Mais tarde, quando chamado, terá órbita de Sócrates, personagens dos


servido em outros lugares. Tanto pela diálogos Protágoras e Carmides, que
lei quanto pelo costume, era tiveram papel proeminente na vida
necessária maior maturidade para pública ateniense: Crítias, o primo
participar em vários outros aspectos mais velho de segundo grau de Platão
da vida cívica. Um cidadão deveria ter (o primo mais velho de PerictÍone) e
20 anos para entrar na vida pública Carmides (o irmão mais jovem de
sem se tornar objeto de derrisão, e 30 PerictÍone), que estava sob a tutela de
anos para que seu nome entrasse nas Crítias. Ambos estavam entre os
loterias que determinavam o cinquenta e um homens em quem
Conselho ateniense (boulê), os júris e Platão depositava grande esperança
os arcontes, e para que pudesse ser em 404, quando, depois dos fracassos
eleito general e se esperasse que se e dos excessos da democracia por
casasse. vezes ilegal, a derrota de Atenas para
Esparta levou à eleição dos Trinta,
Quando Platão chegou à encarregados de formular uma
maturidade, naturalmente imaginou constituição pós-democrática que
para si próprio uma vida nos assuntos faria a cidade retomar aos princípios
públicos, como diz em uma carta de governo da pátrios politeia, a
escrita em 354/3 (VII. 342b9). A constituição ancestral de Atenas.
autenticidade da carta foi por certo Crítias era um dos líderes dos Trinta e
tempo muito discutida, mas mesmo Carmides era um dos Dez chefes
seus detratores concedem que seu municipais do Pireu; os Onze chefes
autor, se não tiver sido Platão, era municipais da Atenas urbana
íntimo do filósofo, possuindo completavam o total de cinquenta e
conhecimento de primeira mão dos um. Embora Platão tenha sido
eventos relatados. Muitos dos imediatamente chamado para
detalhes da carta são esmiuçados e participar da administração, ele era
corroborados por historiadores ainda jovem (VII. 324d4) e postergou
contemporâneos da Grécia e da Sicília a decisão, participando de perto e
e seu estilo – diferentemente de esperando testemunhar o retomo de
outras carta desta série – é similar ao Atenas à justiça sob a nova liderança.
das Leis e Epínomis (Ledger 1989: 148-
51).3 A família de Platão em sentido Os Trinta o desapontaram
mais largo já incluía dois homens na amargamente; contudo, ao tentar

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implicar Sócrates na captura do acusação de terem apoiado a


general democrata Leon de Salâmis democracia (Xenofonte, HG 2.4.8-10;
para execução sumária. Platão diz Diodoro Sículo 14.32.5). O acordo
desta oligarquia que ela fez o governo teve vida curta: assim que os
da democracia anterior parecer, por espartanos tiveram sua atenção
comparação, uma época áurea desviada para uma guerra com Élis, os
(VII.324d6-325a5). Segundo oligarcas começaram a alugar
Xenofonte de Erquia, o projeto da mercenários; Atenas retaliou
constituição era continuamente anexando Elêusis e matando todos os
postergado (HG 2.3.11), e Isócrates de simpatizantes remanescentes da
Erquia descreve os Trinta como tendo oligarquia no início da primavera de
rapidamente caído em abusos e em 401.
excessos de autoridade, executando
sumariamente 1.500 cidadãos e Assim como em outras
levando outros 5.000 ao Pireu durante revoluções que saíram fora de
nove meses no poder (Aeropagiticus controle, o nível geral de desordem
67). Porém, os democratas no exílio tornou os atos de retaliação muito
puderam reagrupar-se em File, de fáceis de serem perpetrados e a
onde, em 403, voltaram a entrar no violência muito fácil de infligir sem
Pireu e enfrentaram as forças dos punição. Contudo, os democratas que
Trinta na batalha de Muniquia, onde retornaram, segundo o relato de
Crítias e Carmides foram mortos. Após Platão, mostraram aparente
meses de mais levantes, a democracia contenção durante este período de
foi restaurada. Apesar de uma anistia revoluções (VII. 325bl-5). E mesmo, se
negociada com arbitragem de Esparta os diálogos com datas de drama
em 403/2 para reduzir casos de variando entre 402 e 399
vingança na sequência imediata da (especialmente o Mênon, Teeteto,
guerra civil, a confusão continuou. Eutifro e Fédor) podem ser tomados
Uma cláusula do acordo de como fontes para os tipos de conversa
reconciliação dizia que todos os que Platão experimentou, quando
simpatizantes da oligarquia tinha pouco mais de 20 anos, na
remanescentes teriam seu próprio companhia de Sócrates, então pelo
governo em Elêusis, que eles teriam menos algumas coisas da vida
previamente assegurado para si ao ateniense tinham voltado ao normal.
pôr à morte a população sob a Talvez por isso Platão descreva como

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tendo sido “por sorte” (VII.325b5-6) Neste momento, ou logo depois,


que Anito e Lícon, cujo amigo Leon Platão determinou-se a fazer sua
Sócrates tinha anteriormente se contribuição à vida pública como um
recusado a entregar aos Trinta, educador. Ele devia, neste papel,
conseguiram montar um processo suplantar os sofistas e retóricos
contra Sócrates por impiedade e itinerantes, que estiveram por tanto
obtiveram ganho de causa em sua tempo à frente da alta educação
proposição de pena de morte. Para ateniense.
Platão, este evento devastador, bem
como sua opinião sobre que a ordem A primeira viagem de Platão à Sicília
ateniense estava deteriorando-se em e a fundação da Academia
um caos, puseram um fim ao desejo
de ser politicamente ativo que se Após a execução de Sócrates, Platão
reacendeu brevemente nele com a permaneceu em Atenas por talvez
restauração da democracia (VII. três anos. Durante este tempo, ele
325a7-bl). Embora continuasse a passou a conviver com Crátilo,
considerar como ainda poderia seguidor de Heráclito, e com
realizar uma melhora nas leis e na vida Hermógenes, meio-irmão bastardo
pública em geral, com o tempo ele se do célebre Cállias de Alopece, que
deu conta que todo Estado existente gastou uma fortuna com sofistas (veja
sofria de mau governo e de leis quase Cra., Prt. e Ap.). Então, com a idade de
insanáveis, tendo sido forçado, lá pela 28 anos em 396, Platão residiu por um
metade dos seus vinte anos, a admitir período em Megara, distante meio
que, sem “reta filosofia”, se é incapaz dia de caminhada de Atenas, em
de companhia de Euclides e de outros
socráticos, na busca de matemática e
Determinar o que é a justiça na polis ou filosofia (Hermodoro, citado em
no indivíduo. Os males sofridos pela Diógenes Laércio 3.6-2-6). Indicações
humanidade não cessarão até que ou
duvidosas de outras viagens
bem os filósofos genuínos e
verdadeiros governem a polis, ou bem aparecem somente em fontes tardias.
os governantes nas poleis, por alguma
graça divina, se tornem Quando alcança 30 anos em 394,
verdadeiramente filósofos. (VII.326a5- espera-se de Platão que se estabeleça
b4; cf. R. V 473cll-e2)
como proprietário e, embora não haja
nenhuma indicação neste sentido,

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que se case (apesar de Leis IV 721a-e muro da cidade, na margem oriental


e VI. 772d). Nunca esteve entre os do rio Cefiso. O sobrinho de Platão,
cidadãos mais ricos de Atenas, mas as Eurimédon, outro executor, possuía
rendas provenientes de suas as propriedades adjacentes ao norte e
propriedades agrícolas fora dos ao leste. Embora o demo de Platão
muros da cidade parecem ter sido fosse Colito, dentro dos muros da
adequadas para suas necessidades cidade havia três irmãos com os quais
pessoais e para obrigações familiares devia dividir a propriedade de Aríston,
como dotes e funerais. O e as leis de sucessão visavam a manter
financiamento da Academia, ainda a intactas as propriedades.
ser fundada, era provavelmente Normalmente, a ausência de um
complementado por doações; que as testamento requeria uma divisão dos
finanças da Academia eram distintas bens da propriedade (terras em
das contas pessoais de Platão é cultivo, estruturas, rebanhos, metais
atestado pela ausência de menção da preciosos, dinheiro, etc.) em partes
Academia no testamento de Platão. iguais; quando se estava de acordo
Platão tinha uma propriedade no que eram iguais, os irmãos podiam
demo dos Ifistíadas, cerca de 10 km sortear ou escolher a herança
ao norte-nordeste do antigo muro da (MacDowell, 1978, p. 93).
cidade e 2 km das margens do rio
Cefíso, uma propriedade que Mais ou menos na mesma época
provavelmente ele herdou (seu em que estava estabelecendo-se,
testamento não menciona nenhuma Platão e os matemáticos Teeteto de
soma paga por ela). A propriedade Sunio, então com 19 anos e que
pode ser localizada com precisão morrerá cinco anos mais tarde,
porque Platão a descreve como Árquitas de Tarento, um pitagórico,
limitada ao sul pelo templo de teórico da música e líder político
Hércules, tendo sido descoberto em esclarecido, que permanecerá
1926 um de seus marcos de pedra. próximo de Platão durante sua vida,
Platão viria a comprar outro terreno, Leodamas de Taso e talvez Neoclides
no demo dos Eresidas, de Calímaco, (Proclo, citado em Euclides,
um executor nomeado no seu Elementos 66.16) passaram a
testamento, de outro modo encontrar-se na parte nordeste
desconhecido; sua localização era urbana de Atenas no bosque do herói
aproximadamente 3 km ao norte do Hecademo, entre os rios Cefiso e

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Erídano, com vistas a continuar seus II-V do nosso texto atual da República
estudos. Espeusipo de Mirrino, filho – foi publicada antes de 391, quando
de Potone, irmã de Platão, uniu-se ao Ecclesiazusae, a ousada peça de
grupo por volta de 390. O número de Aristófanes, parodiou seus elementos
nomes de matemáticos presentes em centrais (Thesleff 1982: 102-10). A
uma lista originalmente compilada Apologia, uma primeira versão do
por Eudemo na última parte do século Górgias, e o que é agora República I,
quarto a.C. é uma forte indicação que estava provavelmente também entre
o grupo de estudiosos amigos cresceu os diálogos que foram publicados
firmemente nos primeiros anos. É neste primeiro grupo. De tempos em
somente quando Eudoxo de Cnido tempos, Fedro e Lísis foram
chega, no meio dos anos 380, que considerados como também aí
Eudemo reconhece formalmente uma figurando – sobretudo em tradições
Academia. O bosque que iria mais fora da filosofia analítica anglo-
tarde ser a Academia, todavia, tinha americana desde a década de 1950.
um ginásio e amplos espaços abertos Há evidência abundante de revisão
frequentados por jovens intelectuais em vários diálogos, um obstáculo
– e não salas de aula ou anfiteatros insuperável para uma análise
para conferência. computacional definitiva do estilo de
Platão e, portanto, para a certeza
Platão já gozava de celebridade acerca da ordem em que os diálogos
fora de Atenas por volta de 385, foram escritos, exceção feita as
quando foi convidado à corte do últimos (Ledger 1989: 148-51).
tirano de Sicília, Dionísio I, que Contudo, a impressão de três
convidava regularmente atenienses períodos maiores em sua produção,
célebres ao seu palácio real com limites cinzentos, persiste na
fortificado em Ortigia, a península maior parte das tradições de
que se lança no porto de Siracusa. Isto interpretação (Nails, 1995, p. 97-114).
é uma indicação cogente que, ao lado
de seus estudos matemáticos e Platão nos diz que tinha quase 40
filosóficos, Platão tinha começado a anos quando viajou para a Itália, onde
escrever diálogos que eram copiados provavelmente visitou Árquitas em
e difundidos. Há evidência substancial Tarento, e para a Sicília, onde foi
que uma proto-República – que hospedado por Dionísio I, tirano de
compreendia a maior parte dos livros Siracusa. A viagem foi memorável, a

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despeito do desgosto de Platão pela eram seus manuais, e os métodos


tirania e pela sensualidade decadente filosóficos exemplificados neles
que encontrou. Não tinha nenhuma constituem o brilhante legado de
intimidade com o tirano (muito Platão. Fundada após o retorno de
semelhante ao tirano da República Platão da Sicília em 383 e com uma
IX), mas encontrou Díon, o jovem sucessão contínua até 79 a.C., a
cunhado de Dionísio. Eis aqui um Academia é, por vezes, considerada a
jovem de 20 anos, admirável, ainda progenitora da universidade
que austero, pronto para aprender o moderna, embora Isócrates tivesse
que quer que Platão considerasse que estabelecido uma escola permanente
pudesse ajudá-lo a obter a “liberdade para retórica em Atenas em 390. O
sob as melhores leis” para o povo da programa da Academia, baseado na
Sicília (VII. 324b 1-2). Sua amizade – matemática e na busca do
renovada com as visitas de Díon à conhecimento científico – antes que
Grécia – durará trinta anos (VII. em seu fechamento – tornou-a a
324a5-7). Fontes tardias (Diodoro primeira em seu tipo. Porém, o que
Sículo, Plutarco, Diógenes Laércio) pode significar sua “fundação”?
nos dão diferentes detalhes a respeito Presumivelmente, a Academia tornou
do final da primeira viagem de Platão público seu interesse em receber
à Sicília, embora concordem todas estudantes, embora não houvesse
que a fala franca de Platão irritou a tal taxas. Membros que estudaram
ponto o tirano que ele foi posto de juntos por alguns anos estavam agora
volta em um navio e vendido como talvez prontos para partilhar o que
escravo. Quando foi comprado e haviam aprendido e aplicar seu
posto em liberdade por Aníceres de conhecimento em novas áreas. A
Cirene, no relato de Diógenes, os Academia continuou a atrair filhos de
amigos de Platão tentaram devolver o líderes políticos, que estavam mais
dinheiro, mas Aníceres o recusou e interessados em governar do que
comprou para Platão um jardim no estudar matemática, que era um pré-
bosque de Hecademo. requisito, mas todo início é turvo e é
difícil não importar de modo
A Academia – um centro anacrônico categorias atuais
ateniense para estudos avançados, (professor, aluno) – como, em outros
reunindo homens e mulheres de todo séculos, “mestre” e “discípulo” se
o mundo grego –, os diálogos, que impuseram. De qualquer modo,

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Platão parece ter passado o período Platão não desejava retornar


que vai de 383 a 366 em relativa quando chamado de volta a Siracusa
calma, estudando, discutindo, por Dionísio II em 366. O velho
escrevendo e contribuindo, de modo Dionísio morrera em 367, logo após
geral, para a educação na Academia. É ter sabido que sua peça, O Resgate de
a este período também que se atribui Heitor, tinha recebido o primeiro
a maior produção dos diálogos de prêmio no festival das Lenaias em
Platão e que os membros e as Atenas. Apesar de sua reputação
atividades da Academia começaram a como erudito e culto, ele não se
ser ridicularizados no teatro cômico preocupou com a educação de seu
de Atenas. Deve-se notar a chegada filho e herdeiro. Quando criança,
de Aristóteles de Estagira em 367; os DÍoniso II passou a maior parte do
fragmentos dos diálogos escritos por tempo sem contato com o pai,
Aristóteles sugerem que era típico dos ocupado em fabricar brinquedos de
membros da Academia exercitar-se madeira, mas, quando chamado à
em escritos deste gênero. presença dele, ele era inspecionado
em busca de armas escondidas como
As expedições de Platão na Sicília em todo aquele que tinha uma audiência
favor de Díon e da filosofia com o tirano. Adulto por volta dos 30
anos quando chamou Platão, o jovem
Na Carta VII, Platão descreve Dionísio tinha casado com a sua meia-
minuciosamente suas viagens irmã paterna, Sofrosine, com quem
subsequentes para a Sicília. O breve teve um filho, e que recentemente
sumário a seguir pode ser de interesse tinha recebido a cidadania honorária
tendo-se em mente a imagem do ateniense. Enquanto isso, Díon casou
filósofo do Teeteto, objeto de derrisão com sua sobrinha, Arete, filha do
por ser perfeitamente inapto em velho tirano, e tinha um filho de sete
assuntos práticos (172c3-177c2); anos, de modo que Díon era cunhado
Platão se mostra como inocente no e por vezes conselheiro do novo
exterior, manipulado em toda tirano.
ocasião, completamente
incompetente para ajudar seu amigo, Díon, a pedido de quem o
ainda mais para tornar o governante chamado tinha sido feito, teve
um filósofo. dificuldade para superar a relutância
de Platão em viajar para Siracusa. Ele

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insistiu com vários argumentos, débito em relação ao seu primeiro


inclusive com a paixão do jovem anfitrião pesava mais que suas
tirano pela filosofia e pela educação presentes responsabilidades na
em geral. Platão não menciona se Academia, uma dupla razão mostrou-
tinha lembrança do adolescente se finalmente decisiva: seria
Dionísio em sua primeira visita, vergonhoso aos olhos do próprio
declarando somente que as paixões Platão e uma traição à filosofia caso se
de um jovem podem mudar mostrasse, ao final, um homem de
radicalmente. Díon insistiu, exortando palavras que se acovardava diante dos
Platão a ajudá-lo a influenciar Dionísio atos. Platão por fim embarcou, no
II, argumentando inter alia que a início da estação de navegação de
morte do velho tirano poderia ser 366, para uma segunda viagem à
aquele “destino divino” necessário Sicília.
para que enfim se realizasse a
felicidade de um povo livre sob boas Facções dentro da corte real
leis, que havia algumas outras pessoas suspeitaram desde o início de Díon e
em Siracusa que esposavam opiniões Platão, imaginando que o objetivo
corretas, que seus jovens sobrinhos secreto deste era colocar a Sicília,
necessitavam igualmente de então em guerra contra Cartago, sob
treinamento em filosofia e que o novo o controle de Díon. No intuito de
tirano poderia ser levado à verdadeira testar a influência do filósofo, fizeram
filosofia por Díon com a ajuda de com que o hábil Filisto, um historiador
Platão, da mesma maneira como banido pelo antigo tirano, fosse
aquele fora levado à verdadeira chamado de volta do exílio. Após
filosofia por este, efetuando, deste alguns meses durante os quais Platão
modo, reformas e pondo fim aos e Díon tentaram incessantemente
males longamente sofridos pelo povo. tornar a vida de moderação e
Além disso, Díon acrescentou, se sabedoria atrativa a Dionísio, que eles
Platão não viesse, homens piores consideraram não sem habilidades
estavam ansiosos para realizarem a (VII. 338d7), Filisto convenceu
educação do jovem tirano. Confiando Dionísio que Díon estava
mais no caráter firme e nas intenções secretamente negociando a paz com
de Díon do que na esperança de ter Cartago. Díon foi deportado
sucesso com Dionísio, temendo pela sumariamente para a Itália, separado
segurança de Díon, sentindo que o de sua mulher, filho e parte de sua

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propriedade lhe foi retirada. Os Atenas, onde havia comprado uma


amigos de Díon temeram retaliação, propriedade; a cidade serviu-lhe de
mas o tirano – cioso de sua reputação base e lhe permitiu estudar na
no estrangeiro e da necessidade de Academia e fazer amizade com
aplacar os que apoiavam Díon – Espeusipo. Porém, ele viajou por toda
pretensamente pediu a Platão para a Grécia, tendo sido recebido
ficar, ao mesmo tempo em que se calorosamente em Corinto e em
assegurava que não fugiria, Esparta, onde recebeu a cidadania
instalando-o no interior de sua honorária. Quando Dionísio mandou
fortaleza (VII. 329dl-330a2). Platão chamar Platão – mas não Díon – em
insistiu no projeto de educação e até 361 e Díon implorou para que Platão
estabeleceu relações entre Dionísio e fosse, pois tinha escutado que
Árquitas e outros tarentinos. Dionísio, Dionísio tinha desenvolvido uma
porém, que se ligou a Platão, impressionante paixão pela filosofia
permaneceu invejoso da alta (VII. 338b6-7). Então Platão recusou,
consideração que Platão tinha por irritando a ambos ao alegar idade
Díon. Dionísio buscava provecta. Havia rumores
desesperadamente o elogio de provenientes da Sicília que Árquitas,
Platão, mas não trabalhava em busca certos amigos de Díon e muitos
da sabedoria, que era o único outros haviam dado a Dionísio o gosto
caminho para obtê-lo. Platão serviu- pelas discussões filosóficas. Quando
se de todas as ocasiões para persuadir uma segunda chamada chegou,
Dionísio a lhe permitir voltar para Platão percebeu nela a ambição
Atenas, o que resultou finalmente em zelosa (philotimos) de não ser trazida
um acordo: Platão prometeu que, à luz sua ignorância da filosofia; e
caso Dionísio o chamasse, assim como Platão recusou-se novamente a
a Díon, após ter-se assegurado da paz retornar à Sicília. Quando uma
com Cartago, ambos voltariam. terceira chamada chegou, trazida por
Nestes termos, Platão partiu de modo vários conhecidos sicilianos de Platão,
publicamente amigável e Dionísio entre os quais Arquedemo, ligado a
retirou as restrições postas quanto ao Árquitas, o siciliano Dionísio pensou
recebimento por parte de Díon de que Platão a teria em alta conta. Não
ganhos de sua propriedade. somente vieram com uma trirreme
para facilitar a viagem de Platão, mas
Díon, entretanto, viajou para também Dionísio escreveu uma longa

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carta, dizendo que os negócios de das propriedades de Díon; em


Díon, caso Platão viesse, seriam consequência, Platão anunciou,
determinados como Platão quisesse, irritado, que voltaria a Atenas, tendo
mas que, se não viesse, Platão não intenção de embarcar em qualquer
gostaria do desfecho a ser dado barco no porto. Dionísio, cioso de sua
quanto à propriedade e à pessoa de reputação, rogou-lhe que ficasse e,
Díon. Neste ínterim, os conhecidos vendo que não conseguiria persuadir
atenienses de Platão lhe pediam o irritado filósofo, ofereceu-se a
vivamente para que fosse cuidar ele próprio da passagem de
imediatamente e cartas chegavam da Platão. Contudo, ele encolerizou
Itália e da Sicília com novos Platão ainda mais no dia seguinte, ao
argumentos – Árquitas relatava que prometer que, se Platão ficasse
importantes assuntos de Estado entre durante o inverno, Díon receberia
Tarento e Sicília dependiam da volta excelentes propostas, que ele
de Platão. Como antes, a decisão de detalhou, na primavera. Platão, sem
Platão foi que seria uma traição a confiar nestas promessas, passou a
Díon e a seus anfitriões de Tarento se noite considerando várias
não fosse; quanto à traição à filosofia, alternativas e se deu conta que já
desta vez Platão considerou tinha levado um xeque-mate. Aceitou
(cegamente, como diria mais tarde: ficar sob uma condição: que Díon
VII. 340a2) que talvez Dionísio, tendo ficasse a par das propostas de modo
agora discorrido com tantos homens que o acordo pudesse ser feito. Não
acerca de temas filosóficos e tendo somente a estipulação não fui
ficado sob a influência deles, de fato honrada, como tampouco as
pudesse ter abraçado a melhor vida. propostas foram discriminadas: assim
Pelo menos, Platão iria descobrir a que o porto foi fechado e Platão não
verdade. podia mais escapar da ilha, Dionísio
vendeu as propriedades de Díon.
Ficou claro, após sua primeira
conversa, que Dionísio não tinha Em evento decisivo, porém,
nenhum interesse em discutir envolvendo Heraclides, amigo de
filosofia; na verdade, o tirano Díon e líder da facção democrática em
anunciou que ele já sabia o que Siracusa, tudo mudou. Ele foi acusado
importava saber. Ademais, ele de fracassar quanto ao pagamento de
cancelou o pagamento dos ganhos mercenários e fugiu para proteger sua

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Hugh H. PLATÃO
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vida, juntando-se a Díon. Uma desembarcou em Olímpia e se


inscrição do santuário de Asclépio em encontrou com Díon nos jogos,
Epidauro os honra juntamente relatando-lhe a notícia de mais uma
Inscriptiones Graecae IV2 95.39-40). intransigência do tirano: de fato,
Neste ínterim, Dionísio prometeu a Platão fracassara em realizar algo
outros líderes democratas excelentes digno de nota em favor de Díon ou da
condições para Heraclides, se voltasse filosofia durante os sete anos de
para ser julgado, e ocorreu que Platão desventura na Sicília (VIL 350d4-5). A
serviu de testemunha do juramento primeira reação de Díon foi clamar
quanto à promessa do tirano. por vingança, querendo que os
Quando, no dia seguinte, o tirano já amigos, a família de Platão e o próprio
parecia estar quebrando a palavra, velho filósofo se unissem a ele. Platão
Platão invocou prontamente a tinha vários argumentos para recusar
promessa que testemunhou na e ofereceu em troca seu auxílio no
véspera, a qual o tirano prontamente caso de Díon e Dionísio desejarem ser
negou, aguilhoando Platão amigos e fazer bem um ao outro. Isso
novamente. Tomando a ação de nunca ocorreu, embora as ações
Platão como um ato de preferir Díon posteriores de Díon mostrem que seu
contra ele próprio, Dionísio desejo de vingança tinha-se
transportou Platão para fora das extinguido antes da liberação de
muralhas, à casa de Arquedemo, na Siracusa, uma missão que ele
área da cidade em que ficavam os perseguiu “preferindo sofrer o que é
mercenários do tirano. ímpio a causá-lo” (VII. 351c6-7).

Se Platão tinha sido antes um Platão manteve-se informado das


prisioneiro virtual, ele agora estava tratativas de seu amigo e continuou a
em perigo: remadores mercenários fornecer-lhe conselho durante os três
atenienses contaram-lhe que alguns anos para angariar os fundos
deles estavam planejando matá-lo, de necessários e para alistar mercenários
modo que Platão passou a enviar secretamente até que Díon pôde,
desesperadamente pedidos de ajuda. finalmente, embarcar em 357,
Por meio da intercessão de Árquitas, deixando a Espeusipo sua
um barco tarentino foi enviado em propriedade em Atenas. Parece que
sua busca. Porém, Platão não membros da Academia tinham muita
retomou para Atenas. Ele esperança em um governante-

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Hugh H. PLATÃO
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filósofo: Platão os descreveu como entre seus respectivos seguidores.


“empurrando-o” a uma terceira Heraclides e Díon foram obrigados a
viagem (VII. 339d8-el), e pelo menos fazer repetidas tentativas de pôr seus
um membro, Timônides de Leucas, seguidores em uma mesma direção.
acompanhou a expedição no intuito Dois turbulentos anos se passaram
de fazer um relato para Espeusipo e até que Ortígia ficou finalmente
para a História. Heraclides ficou de aberta no verão de 354; a separação
trazer tropas adicionais e trirremes. A de onze anos entre Díon e sua família
expedição de Díon, incluindo trinta terminou e a assembleia dos cidadãos
sicilianos exilados, chegou quando o pôde debater temas internos:
exército estava fora da cidade, de redistribuição da terra e da
modo que Díon pôde entrar sem propriedade e se deveria haver ou não
encontrar resistência e foi aclamado um Conselho. No espaço de alguns
como o libertador dos gregos da meses, porém, Heraclides foi
Sicília. Foi eleito general e obteve o assassinado por seguidores de Díon,
apoio da Siracusa inteira – exceto da ele mesmo tendo sido assassinado por
fortaleza do tirano em Otígia, onde a um ateniense, Calipo, que o havia
esposa e o filho de Díon estavam recebido amigavelmente e o
retidos. hospedado em 366 e o acompanhara
à Sicília. Calipo, que não tinha, Platão
Dionísio simulou uma abdicação, insiste, nenhuma conexão com a
mas mandou seu exército atacar Academia, declarou-se
enquanto negociava os detalhes: imediatamente tirano. Platão,
houve outros engodos e escaramuças escrevendo seis anos após o encontro
militares que deram a Díon uma em Olímpia e algumas semanas ou
reputação de heroísmo. Quando meses após a morte de Díon, compara
Heraclides chegou com vinte seu amigo de trinta anos a um piloto
trirremes adicionais e com 1.500 que antecipa corretamente uma
mercenários, houve inicialmente uma tempestade, mas subestima sua força
cooperação. Contudo, a amizade se de destruição: “que eram perversos
deteriorou, em função da nomeação os homens que o puseram por terra,
oficial de Heraclides como general, ele sabia, mas não a extensão de sua
pela fuga pelo mar do tirano sob a ignorância, de sua depravação e
guarda deste e porque ele era mais avidez” (VII. 351d7-e2).
popular do que Díon, causando lutas

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Os últimos anos de Platão de tempos em tempos estabelecidas


durante os quase quarenta anos de
Após 360, Platão permaneceu em liderança de Platão. Além dos que já
Atenas, onde ocorreu um certo foram mencionados – Aristóteles,
número de mudanças em sua família Eudoxo, Timônides e Espeusipo – há
e na florescente Academia. Uma das duas mulheres entre os mais notáveis,
letras com menor credencial de Axioteia de Fliunte e Lastênia de
autenticidade menciona que duas Mantineia; o historiador Heraclides
sobrinhas morreram, levando Platão, de Ponto; o biógrafo Hermodoro de
por volta de 365, a aceitar a Siracusa; Filipe de Mende, também
responsabilidade parcial de quatro conhecido como Filipe de Opus,
sobrinhas-netas, de menos de um ano provável editor das últimas obras de
à idade de casamento – que em Platão; e Xenócrates de Calcedônia,
Atenas significava um ano após a que sucederá a Espeusipo.
puberdade. A mais velha estava para
se casar com Espeusipo, então no Devemos rejeitar a imagem
início dos quarenta anos e em vias de padrão do velho Platão consagrando
ser o segundo da Academia (XIII. seus anos tranquilos a burilar seu
361c7-e5). A mãe de Platão havia estilo no Timeu-Crítias, Sofista,
morrido algum tempo depois de 365, Político, Filebo, Leis e Carta VII, pois
mas sua irmã Potone e pelo menos esta imagem é tão irrealista quanto
um de seus irmãos tinham casado e desnecessária. Embora estas obras
tido filhos e netos. Um “menino” partilhem características estilísticas
Adimanto, provavelmente neto do incontroversas do ponto de vista
irmão de Platão de mesmo nome, estatístico que mostram que foram
teve como herança a propriedade de escritas ou editadas por uma única
Platão. O velho Platão estava pessoa, o Epínomis, que foi
secundado também por colegas na incontrovertidamente escrito e
Academia: muitos nomes de seus publicado após a morte de Platão,
associados nos foram transmitidos. possui, porém, a reconhecível prosa
Havia um registro detalhado na enfatuada daqueles outros, sugerindo
última década da vida de Platão e a que Platão se valeu do auxílio de um
sucessão dos líderes da Academia foi escriba, cuja responsabilidade
preservada; portanto, é razoável consistia em reformular as produções
supor que listas de estudantes eram da Academia no estilo adotado pela

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Hugh H. PLATÃO
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Academia. Diz-se “produções” porque da realidade e do conhecimento e


há boas razões para supor que a acerca do sentido de teses obscuras
Academia de Platão funcionava como feitas por personagens nos diálogos
as outras instituições antigas (p. ex., (Cherniss 1945). Devemos rejeitar
as escolas de Hipócrates e de estas imagens por conta de uma razão
Aristóteles, os pitagóricos epistemológica forte. Platão
helenísticos) ao elaborar projetos de
escrita em colaboração. As Leis são permanece sempre convencido que o
que é admitido por crença, de segunda
um diálogo quase que certamente
mão, seja de outros ou de livros, nunca
resultado de um esforço coletivo, com equivale a um estado cognitivo válido;
um argumento dialético contínuo o conhecimento deve ser obtido pelos
limitado fundamentalmente aos esforços da própria pessoa. Platão
livros I-II e deixado incompleto busca antes estimular o pensamento
que transmitir doutrinas. (Annas,
quando do falecimento de Platão
1996, p. 1.190)
(Nails e Thesleff 2003). Um pequeno
número de breves passagens da Referências e leitura complementar
República parece ter sido alterado
também pela mão do editor, Annas, J. (1996). Plato. In S. Hornblower and
sugerindo que este grande diálogo A. Spawforth (eds.) Oxford Classical
encontrou sua presente forma Dictionary (pp. 1190-3). Oxford: Oxford
somente muito tarde na vida de University Press.
Platão. Cherniss, H. F. (1945). The Riddle of the Early
Academy. Berkeley: University of Califórnia
Similarmente, devemos rejeitar a Press.
imagem de um Platão que educa Davies, J. K. (.1971). Athenian Propertied
iniciados oralmente ou que ministra Families 600-300 BC. Oxford: Clarendon
Press.
conferências doutrinais (embora
Aristoxeno atribua a Aristóteles uma Jacoby, F. (1902). Apollodors Chronik. Berlin:
anedota acerca da conferência sobre Weidmann.
o bem, Harmônica 30-1). Em Ledger, G. R. (1989). Re-Counting Plato: A
fragmentos que nos foram Computer Analysis of Plato’s Style. Oxford:
Oxford University Press.
transmitidos, os colegas de Platão não
apelam ao que o mestre disse, MacDowell, D. M. (1978). The Law in Classical
embora manifestem uma Athens. Ithaca, NY: Cornell University Press.
discordância sadia acerca da natureza Nails, D. (1995). Agora, Academy, and the

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Hugh H. PLATÃO
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Conduct of Philosophy. Dordrecht: Kluwer. 1. Muitos leitores resistem a serem


soterrados pelas exceções, qualificações,
______(2002). The People of Plato: A
citações e comentários laterais que são
Prosopography of Plato and Other Socratics.
necessários para um relato completo;
Indianapolis: Hackett.
para argumentos mais matizados e mais
Nails, D. e Thesleff, H. (2003). Early academic abrangentes, bem como para uma
editing: Plato’s Laws. In S. Scolnicov and L. avaliação das fontes, ver Nails (2002),
Brisson (eds.) Plato’s Laws: From Theory into incluindo os verbetes sobre Platão e
Practice (pp. 14-29). Sankt Augustin: todas as outras pessoas mencionadas
Academia. aqui.
2. O livro de Taylor, Plato the Man and his
Randall, J. H., Jr. (1970). Plato: Dramatist
Works, foi editado inicialmente em 1927
ofthe Life of Reason. New York: Columbia
e seguiu de perto o modelo alexandrino.
University Press.
Ryle (1966) e Randall (1970)
Riginos, A. S. (1976). Platônica: The questionaram a assim contada história de
Anecdotes Conceming the Life and Writings Apolodoro, mas não fizeram uma
of Plato. Leiden: Brill. reavaliação da evidência disponível.
3. A carta é endereçada à família e aos
Ryle, G. (1966). Plato’s Progress. Cambridge:
amigos de Díon. Somente no caso de
Cambridge University Press.
outras cartas, o testamento e alguns
Taylor, A. E. (1956). Plato: The Man and his poucos epigramas atribuídos a Platão
Work. Cleveland: World. serem autênticos é que haverá
informação autobiográfica suplementar a
Thesleff, H. (1967). Studies in the Styles of
Plato. Helsinki: Suomalaisen Kirjallisuuden respeito de Platão.
Kirjapaino.
______(1982). Studies in Platonic Chronology.
Helsinki: Societas Scientiarum Fennica.
Westlake, H. D. (1994). Dion and Timoleon. In
D. M. Lewis et al. (eds.) The Cambridge
Ancient History, vol. 6: The Fourth Century BC
(pp. 693-722). Cambridge: Cambridge
University Press.
Woodbridge, F. J. E. (1929). The Son of Apollo:
Themes of Plato. Boston: Houghton Mifflin.

NOTAS

Todas as traduções são do autor, a menos


que haja outra indicação.

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Hugh H. PLATÃO
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2. Interpretando Platão em Atenas.) Temos de nos perguntar


onde, se acaso em algum lugar,
CHRISTOPHER ROWE encontramos a autêntica voz do autor
– e esta é uma questão longe de ser
É um dado que Platão era um filósofo respondida facilmente, na medida em
e qualquer outra coisa que também que a personagem central na maioria
tenha sido: por exemplo, o maior dos diálogos, Sócrates, tipicamente
expoente da prosa escrita grega ou sugere que as ideias que defende vêm
um escritor de dramas de primeira propriamente de outras fontes:
ordem – um papel cuja importância meramente um “alguém disse” ou
para o presente contexto ficará algum indivíduo nomeado, como a
imediatamente visível. O trabalho de sacerdotisa Diotima no Banquete
interpretar qualquer (com raras (provavelmente ela mesma uma
exceções) outro filósofo é mais fácil ficção), ou ele sugere que são ideias
do que interpretar Platão. A principal somente provisórias. (Sobre este
razão disso – se for razoável supor tópico, veja, entre outros, Klagge e
também que ele está preocupado em Smith 1992; Press, 2000.) Acrescente-
comunicar-se com os outros e não se a isso que um número importante
está escrevendo meramente para si de diálogos termina, pelo menos
próprio – é que sempre se dirige a seu superficialmente, em aporia ou
leitor de um modo indireto: impasse, e não é difícil de ver por que
concebendo diálogos, isto é, alguns intérpretes, antigos e
conversas sob a forma de drama, nas modernos, propuseram que Platão
quais jamais aparece como uma não tinha propostas definitivas para
personagem. (Algumas cartas nos fazer, não tinha conclusões próprias
foram transmitidas sob seu nome, das para propor a seus leitores: ou bem,
quais uma somente – a sétima – tem como os céticos antigos platônicos
bastante chance de ser genuína. (acadêmicos) sugeriram, porque ele
Porém, mesmo que tenha sido escrita próprio era realmente um cético, cuja
por Platão, pouco nos ajudaria; não mensagem era que devíamos
teríamos nem mesmo sabido com procurar a verdade sem nenhuma
base nesta carta que Platão escreveu expectativa de encontrar algo melhor
diálogos, menos ainda como do que o meramente provável, ou
interpretá-lo.) (Ver 1: A Vida de Platão bem porque seu objetivo máximo ou
principal era o de nos encorajar a

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Hugh H. PLATÃO
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fazer filosofia e pensar coisas por nós somente como um termo útil para
mesmos antes que supor que contrastar com “cético”. Poucos
podemos encontrar o que precisamos leitores modernos tratariam Platão
em outros ou em livros. A última como de fato um “dogmático” por
perspectiva é a visão mais congênere conta das descrições explícitas do
aos naturais sucessores céticos processo filosófico que se encontra
modernos, os intérpretes educados nos diálogos.) O último tipo de leitura
na tradição analítica. é certamente atraente caso, por
exemplo, alguém se concentra nos
Contudo, se olharmos à inteira tipos de ideias que parecem ter sido
história da interpretação de Platão, os defendidas pelos sucessores
diálogos têm mais frequentemente imediatos de Platão na direção da
sido lidos como a fonte de um Academia, Espeusipo e Xenócrates. O
conjunto de teses altamente que poderia ser mais natural do que
significativas e conectadas acerca da supor que estavam seguindo os passos
existência e da natureza humana e de Platão e que suas perspectivas
acerca do mundo em geral, eram na realidade muito similares às
sustentadas com uma firmeza que de Platão, somente expressas de
cético algum poderia aceitar como modo mais explícito e direto, e não
justificada. Ou bem – assim mais escondidas por trás de diálogos
sustentaram seus leitores mais de ficção?
numerosos, na maior parte
“neoplatônicos” – estas teses estão lá Deve-se dizer de saída que a
em Platão para serem lidas, pelo balança de probabilidade parece
intérprete exímio, de cada e de todos estar do lado do tipo de interpretação
os diálogos, ou bem (em uma variante “dogmática” ou “doutrinal” antes que
relativamente recente deste mesmo do lado de sua contraparte “cética”.
modo “dogmático” de interpretação), Há simplesmente muitas ocasiões nos
elas se escondem por trás por diálogos em que mesmo Sócrates não
próprios diálogos, na forma do que somente parece comprometer-se
Aristóteles chamava “doutrinas não com ideias positivas (tanto quanto se
escritas”; para esta última compromete com algo), mas também
perspectiva, deve-se consultar, por não oferece razão para as rejeitar:
exemplo, Kramer, 1959; Szlezák, 1985; acerca da inconfiabilidade das
2004. (“Dogmático” é usado aqui avaliações ordinárias do que é bom e

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ruim; acerca da importância para menor apreensão dela.


todos os homens do conhecimento e
da “virtude”, isto é, as várias Todavia, interpretações
“virtudes” como justiça, coragem e “dogmáticas” não são certamente a
“moderação” ou “autocontrole” (isto única alternativa à leitura cética: e até
é, sôphrosunê, tradicionalmente parecerá a muitos, mesmo entre
traduzido, de modo pouco útil, por aqueles que não são eles próprios
“temperança”); acerca da leitores céticos, que tomam muita
necessidade que temos nós, homens, coisa por suposto. Primeiro, há
de nos assemelhar aos deuses, os aqueles, principalmente teóricos
quais Sócrates tipicamente toma por literários de tom pós-moderno, que
conhecedores ideais, e assim por protestarão que tal modo de tomar
diante. Embora não haja aqui muito Platão, se for avançado como o modo
que seja de fato incompatível com um certo de o tomar (como no presente
tipo moderado de ceticismo – contexto ele é certamente tomado),
Acadêmico? –, mesmo assim a leitura pressupõe ilegitimamente a
cética parecerá provavelmente à realização de um projeto que, por sua
maioria dos leitores como pondo a própria natureza, é irrealizável:
ênfase de modo muito errado. Ainda recuperar a verdade a respeito de
que sejam importantes as Platão, como se houvesse um modo
qualificações que se ligam aos (que único que Platão ou seus textos ou
parecem ser) resultados dos diálogos, qualquer coisa realmente são. Pouco
somos fortemente encorajados, pelo importa – devido especialmente a
modo como foram escritos os estes séculos de interpretação
diálogos, a supor que estes resultados “dogmática” – que o nome de Platão
importam mais ao autor – ou pelo tenha se tornado sinônimo deste tipo
menos à sua personagem Sócrates – de erro (chame-o de “essencialismo”
do que as qualificações a eles ligadas; e Platão será o essencialista por
se a verdade nos é, em última excelência), a ele também se deve
instância, inacessível, Platão todavia permitir ter muitas vozes. Isso não
continuamente sugere (de um modo depende tanto da dificuldade de
que um cético certamente não recuperar a intenção de um autor,
poderia fazer) que podemos nos que não somente está morto, mas que
aproximar em um maior ou menor parece ter deliberadamente evitado
grau da verdade, obter uma maior ou nos dizer o que pensava; é antes que

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textos em geral são assim. (Para uma mesmo grupo de interlocutores. O


versão mais sutil e matizada da Timeu e o Crítias fazem parte de um
abordagem que descrevo aqui, grosso grupo do mesmo modo que o grupo
modo, ver Blondell, 2002.) Teeteto-Sofista-Político e o Timeu
parece referir-se a uma conversa
Eis a fraqueza da objeção dos pós- ocorrida muito similar à representada
modernos: se estão em última na República, embora os
instância baseando-se na tese não interlocutores – Sócrates à parte –
demonstrada que nenhum texto é sejam diferentes. (O Timeu e o Crítias
unívoco, então, a menos que a tese foram evidentemente concebidos de
seja meramente trivial, eles estão modo a serem completados com um
pressupondo coisas demais. Talvez Hermócrates, ao passo que o Político
seja impossível esclarecer devia ser seguido por um Filósofo.)
inteiramente os textos literários e Estes, porém, são exceção: a regra
talvez não devamos querer esclarecê- geral, sobre os trinta (ou quase)
los inteiramente, mas por que não diálogos genuínos, é que cada um
poderia ser diferente com textos inicia de um ponto novo e usualmente
filosóficos – inclusive com textos com um interlocutor ou um conjunto
filosóficos altamente literários? de interlocutores diferente; por vezes
o próprio Sócrates é suplantado no
Muito mais ameaçadora para papel de principal locutor. Platão não
todo tipo de interpretação precisava escrever assim, já que a
“dogmática” é a acusação que ela princípio poderia ter escrito todos os
pressupõe que o intérprete está diálogos como uma série de
autorizado a ler cada diálogo à luz dos conversas conectadas entre o mesmo
outros, quando os diálogos (assim elenco ou similar, com referências
reza o argumento) raramente nos entre eles para trás e mesmo para
convidam a fazer tal coisa, visto que frente. É nosso dever – assim se pode
eles são na maioria dos casos dizer (ver especialmente Grote, 1865)
artefatos independentes. – reconhecer esta característica
Ocasionalmente, como com o fundamental da obra de Platão,
Teeteto, o Sofista ou o Político, os sobretudo porque ao desprezá-la
diálogos formam uma série, com cada abrimos o flanco à acusação de tomar
discussão sucessiva referindo-se partido na questão
explicitamente à anterior com o reconhecidamente controversa sobre

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se há ou não algo como um sistema abandonando o que veio a lhe parecer


unificado contido no interior dos como posições insustentáveis; em
diálogos. outros, refinando o que tinha sido
posto anteriormente de modo mais
Deve-se dizer, de todo modo, que cru, e assim por diante. Esta
a tentativa de aplicar uma abordagem abordagem “desenvolvimentista” à
consistentemente “unitária” às obras interpretação de Platão tornou-se
de Platão cai imediatamente em padrão desde a década de 1950 ou
dificuldades de monta. Intérpretes antes, pelo menos no mundo de
antigos, de todas as perspectivas, língua inglesa e se solidificou em uma
tendiam simplesmente a assumir que tese particular sobre a carreira
Platão estava sempre dizendo a intelectual de Platão. A tese é que ele
mesma coisa (o que quer que começou escrevendo diálogos
estivesse dizendo) e podiam manter “socráticos” (ou “primeiros”),
esta posição simplesmente por imitando os métodos e as
ignorar as partes que poderiam preocupações de seu mestre
parecer estar dizendo algo diferente Sócrates, das quais ele então se
para um tipo de leitor diferente e liberou, nos diálogos “médios”,
talvez mais exigente. Porém, o introduzindo algumas de suas ideias
problema é que Platão mais características, especialmente
frequentemente parece de fato dizer na metafísica (refiro-me aqui,
– faz sua(s) personagem(ns) sobretudo, obviamente à sua “teoria
principal(is) dizer – coisas diferentes das formas”); porém, em seu período
em lugares diferentes e, na verdade, “último”, ele finalmente tomou
não raramente parece se contradizer. distância de suas construções
Para lidar com este tipo de problema, “médias” otimistas em direção a um
uma das respostas modernas mais tipo de reflexão mais sóbria. Visto
comuns consiste em supor que o desta maneira,
pensamento de Platão passou por “desenvolvimentismo” é tanto uma
desenvolvimentos importantes: isto estratégia para manter um tipo de
é, que ele mudou de opinião a abordagem “unitária”, ou pelo menos
propósito de pontos-chave (e, na unificadora, quanto é uma alternativa
verdade, é a expectativa moderna de a ela. Isto é, “desenvolvimentismo”
um filósofo em contraste com a pressupõe a mesma licença para
antiga), em alguns casos interpretar um diálogo descolado de

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outro ou de outros, exceto que esta Ao mesmo tempo, a abordagem


licença ficou agora mais restrita ou “desenvolvimentista” – ou pelo
localizada (lendo entre os diálogos menos o tipo de versão padrão do
que ocorrem dentro de um período, “desenvolvimentismo” que se
mas em geral não entre diálogos que descreveu – tem suas próprias
caem em períodos diferentes). E fraquezas. Uma primeira objeção, e
assim como a leitura “dogmática” tem talvez a mais importante, é que
inicialmente maior plausibilidade do parece psicologicamente implausível
que a leitura “cética”, já porque temas que Platão dê as costas
e ideias positivos reaparecem em intelectualmente a Sócrates (isto é,
diferentes diálogos, assim também a nos diálogos “médios”) e mesmo
abordagem “desenvolvimentista” assim continue a usá-lo como sua
parece inicialmente mais plausível do principal personagem – para
que a pura abordagem “unitária”, introduzir precisamente as ideias que
simplesmente porque leva em conta o estão substituindo as suas (de
modo como a recorrência pode Sócrates). É possível encontrar vários
parecer vir de mãos dadas com a modos para atenuar este problema,
reformulação – e mesmo do modo mas ele permanece todavia um
como temas e ideias, ao invés de problema. Uma segunda objeção à
reaparecerem, podem de fato abordagem padrão
desaparecer de cena. (Para certos “desenvolvimentista” é que ela
gostos, o que estou dizendo agora enfatiza demasiadamente as
pode bem parecer levar pouco em diferenças entre os três grupos de
conta a forma dramática ou, mais diálogos; uma terceira é que a divisão
geralmente, literária: veja em grupos é ela própria incerta e
anteriormente. Junto com muitos sujeita a controvérsias.
intérpretes de Platão, no momento
fala-se como se o diálogo dramático Um exemplo da segunda objeção
fosse meramente outro modo de é Kahn 1996, que argumenta que os
fazer o que poderia ter sido feito “primeiros” diálogos são mais bem
mediante um monólogo. Estas lidos como preparando em algum
questões serão mais uma vez tratadas sentido o caminho e representando
em breve.) (Ver 4: A Forma e os parte do mesmo projeto que a
Diálogos Platônicos). República, por quintessência o diálogo
“médio” para aqueles que acreditam

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em um Platão “médio” e Ocorre que três diálogos nos


metafísicamente renovado. Mais quais as formas platônicas parecem
adiante se proporá uma leitura que é, figurar – Fédon, Banquete e Crátilo –
de certo modo, uma imagem pertencem de fato, segundo a melhor
especular da de Kahn, mas que tem o evidência estilométrica, ao primeiro
mesmo efeito de reduzir o fosso entre grupo de diálogos (este é o terceiro
os períodos “primeiro” e tipo de objeção à leitura padrão
(supostamente) “médio”. Quanto à “desenvolvimentista” dos diálogos, a
divisão entre “médio” e “último”, a saber, que ao final das contas não
maioria dos que trabalham sobre os temos boas razões para aceitar a
diálogos políticos de Platão divisão dos diálogos de que depende;
provavelmente concorda agora que a ver Kahn, 2002.) (“Estilometria” é o
República (“médio”) e as Leis estudo das marcas identificadoras do
(“último” e de fato último de todos os estilo de um autor, em especial de
diálogos) podem muito bem ter sido marcas das quais se pode presumir
escritos ao mesmo tempo em relação que era inconsciente; se tais marcas
a todo o “desenvolvimento” no variam entre obras ou grupos de
pensamento político que pode ser obras, uma explicação possível é que
identificado entre eles (ver Laks, as obras em questão foram escritas
1990). E está longe de ser claro o que em períodos diferentes. Pode-se
são as “formas” ou como exatamente comparar “períodos” diferentes na
sua introdução muda o cenário produção de um pintor ou um
filosófico (este ponto será retomado compositor.) Assim, se a estilometria
em seguida) (ver 12: As Formas e as tem algum valor e se diferenças
Ciências em Sócrates e Platão); estilísticas indicam aqui diálogos
contudo, de acordo com a versão da escritos em diferentes períodos,
hipótese “desenvolvimentista” em alguns dos supostos diálogos
questão, é provavelmente o marcador “médios” são “primeiros”.
individual mais importante da
mudança do período “primeiro” / Obviamente, mudanças
“socrático” para o “médio” (ver significativas no pensamento de
Vlastos, 1991 e mais adiante; para um Platão não precisam coincidir com
tratamento mais sutil: Fine, 2003, p. mudanças em seu estilo de escrever.
298; contra, Rowe, 2005). Contudo, os assim ditos diálogos
“médios” padrão, incluindo aqueles

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três estilisticamente mais recentes, produzem), esta diferença estilística


são, como um grupo, marcadamente maior deixa de ser apoio forte à
diferentes dos diálogos “primeiros” defesa “desenvolvimentista”, na
em termos de estrutura e, acima de medida em que esta defesa é
tudo, de ambição. Somente um dos concebida em termos de conteúdo.
diálogos que a visão Antes, a adesão de Platão à escala
“desenvolvimentista” padrão tende a maior (no caso da República, a uma
colocar antes do período “médio”, a escala monumental) pode sugerir
saber, o Górgias, está escrito no uma mudança em sua atitude face à
mesmo tipo de escala do que os audiência – e/ou em sua visão do tipo
grandes (assim ditos) “médios” de audiência a que deve se dirigir:
diálogos como a República – à qual o talvez uma audiência maior e menos
Górgias é comparável também em especializada, uma vez que as obras
outros aspectos, ainda que, maiores tendem a ser mais acessíveis
diferentemente da República, não e inteligíveis, pelo menos em certo
contenha nenhuma menção às nível, do que as mais curtas.
formas (supostamente do “período
médio”). Diálogos “primeiros”, A este ponto se retomará em
“socráticos” como o Eutifro, o breve. Pretende-se aqui meramente
Carmides ou o Lísis, em contraste, sugerir, sem argumentar em seu
tendem a ser curtos e a terminar em favor, uma versão alternativa e algo
impasse. Assim, alguma coisa a atenuada da abordagem
respeito do “estilo” de Platão nos “desenvolvimentista”: uma versão
(assim ditos) diálogos “médios” que é, na verdade, em alguns
parece ser diferente, embora não se aspectos, tão atenuada que pode
mostre no nível das análises parecer, ao final, dificilmente
microscópicas dos estilometristas. distinguível de uma visão “unitária”
Todavia, se o maior tipo de diferença moderada.
estilística em questão – o grande
tamanho das construções envolvidas A versão padrão do
– não corresponde a uma mudança “desenvolvimentismo” vê vários tipos
clara, e claramente relevante, em de mudança, nem sempre conectadas,
termos de conteúdo (aqui refere-se que ocorrem no pensamento que
novamente à questão acerca da Platão está pronto para pôr na boca de
diferença que as “formas” sua personagem Sócrates nos diálogos

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“médios” (ver especialmente Vlastos, imaginar a subsequente longa história


1991, cAp. 2); contudo, como se disse, do platonismo sem isso. Todavia, ao
é a mudança relativa às “formas” – mesmo tempo não é claro que
primeiramente introduzidas, depois diferença isso teria produzido no
(alegadamente) abandonadas ou projeto próprio a Sócrates; ele não
repensadas – que tende a ser parece ter-se preocupado com o
representada como a mudança mais status ontológico das coisas (o bem, o
significativa. Este modo de justo, o belo e assim por diante) que
compreender Platão, com efeito, ele considerava ser de compreensão
começou com Aristóteles, quem crucial, e é bem plausível supor que
primeiro identificou as formas – ou, teria reagido com equanimidade à
falando mais estritamente, a proposta de Platão de as tratar como
“separação” das formas – como o objetos independentes, se é isso em
ponto de ruptura decisivo entre Platão que consiste a “separação”. Que o
e Sócrates: Platão concebeu formas próprio Platão teria esperado uma tal
“separadas”, ao passo que Sócrates reação pode ser sugerido pelo fato
não. (Se “formas” forem universais, mesmo que ele faz Sócrates introduzir
que é o único meio que Aristóteles a “teoria das formas” como algo
tem de as tomar, a diferença familiar ao contexto de suas
consistiria em algo como Platão as discussões filosóficas (embora o
tratando como coisas reais, ao passo argumento até aqui tenha deixado um
que Sócrates as teria tratado como grande ponto de interrogação sobre a
existindo somente em nome ou questão de fazer Sócrates atuar como
somente nas coisas particulares.) proponente de ideias não socráticas:
Agora, já no início de seus escritos, veja-se anteriormente e mais
Aristóteles passou a objetar este lance adiante).
de Platão e obviamente o concebeu
como central: mas não precisamos O que realmente divide Platão de
segui-lo e fazer o mesmo (ver 27: Sócrates, segundo a versão não
Aprendendo sobre Platão com padrão de “desenvolvimentismo” que
Aristóteles). Pode ser que um aqui se advoga, é que Platão passou a
comprometimento com formas conceber os seres humanos como
separadas seja ou se torne um uma combinação permanente de
elemento indispensável no pensa- racional e irracional. A versão padrão
mento de Platão, e mesmo é difícil também reconhece a mesma

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mudança, mas a toma como uma nós e assim todo patamar de


dentre outras, que se deu separada e felicidade que estiver disponível a nós
independentemente à medida que em função das circunstâncias em que
Platão afirma sua independência das nos encontramos. O que nos
ideias e métodos de argumento distingue de cada outro não são
socráticos. A versão preferida, ao nossos caracteres, nossas disposições
invés desta, vê a introdução das ou desejos (pois nosso desejo, ou
partes irracionais da alma – aquele que nos impele quando
argumentadas especificamente no agimos, é sempre o mesmo: do que é
livro IV da República (ver 19: A Alma verdadeiramente bom), mas somente
Platônica, 23: Platão e a Justiça) – (a) o estado de nossas crenças. Erramos,
como a fonte de muitas outras Sócrates insiste, somente porque
mudanças (ver Rowe, 2003) e (b) somos ignorantes, a saber, do que é
como deixando outras partes da nosso verdadeiro bem. Assim, se
posição socrática, em uma extensão pudermos nos corrigir a este respeito,
surpreendente, intocadas. Sócrates iremos inevitavelmente “agir bem”,
manteve-se fiel à visão isto é, tanto ser feliz quanto – porque,
desconcertante, mas – como alguém como Sócrates mantém, agir com
poderia pensar dela – otimista justiça, com coragem e assim por
segundo a qual somos todos diante sempre se mostrará como
fundamentalmente racionais (ver 18: parte de nosso próprio bem – ser
Os Paradoxos Socráticos). (“Sócrates” justos, corajosos e assim por diante.
aqui não é meramente o Sócrates dos Este é o tipo de explicação da ação
diálogos de Platão, mas também, pelo humana extraordinariamente radical
menos em parte, o Sócrates histórico. que subjaz não somente aos assim
O testemunho de Aristóteles é aqui ditos diálogos “socráticos”, mas
importante; veja abaixo e o Capítulo também pelo menos um dos assim
3: O Problema Socrático.) Cada um de chamados diálogos “médios”: o
nós deseja seu próprio bem ou Banquete, no qual,
felicidade, cuja natureza – iniciando surpreendentemente, Sócrates
de onde estamos agora – pode em consegue dar uma extensa descrição
princípio ser descoberto mediante do que se poderia chamar de “amor
reflexão filosófica; isto é, esperamos romântico” sem introduzir uma só vez
determinar mediante reflexão o que é desejos irracionais. (“Amor
verdadeiramente bom e mau para romântico” ou erôs, de seu ponto de

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vista, será somente uma outra condição de seus intelectos:


expressão do desejo humano pelo correspondentemente, será exigido
bem: o que importa é que esteja mais do que argumentação para
dirigido aos objetos certos, isto é, mudar o comportamento dos que se
àqueles que são verdadeiramente comportam de modo não desejado,
belos e bons. Compare com a na medida em que é causado não por
explicação de erôs no Fedro, mera ignorância, mas pelas partes
evidentemente escrito após a irracionais que, por sua natureza, não
República, no qual a estória é estão abertas à razão. (Elas precisarão
dominada pela luta entre o cocheiro de condicionamento ou pelo menos
da razão e seu cavalo branco com o de alguma forma de treinamento do
cavalo negro do apetite e da luxúria.) tipo que é esboçado na República II-
(Ver 20: Eros e Amizade em Platão.) III.) Esta visão da natureza humana,
ou uma variante dela (isto é, uma
No livro IV da República, em visão da psicologia humana que
contraste, Sócrates argumenta pela concede – para usar termos
existência de três partes da alma, uma modernos – que a paixão possa
racional e duas irracionais, as últimas suplantar a razão), é a que opera não
sendo capazes não somente de evitar somente na República, mas também
que o agente leve adiante suas no Fedro, no Timeu, no Político, nas
decisões aparentemente feitas pela Leis – de fato, tanto quanto podemos
parte racional, mas também de dizer, todo diálogo provavelmente
distorcê-la de modo permanente, posterior à República. Em suma,
desviando-a assim de seus projetos Platão parece ter abandonado todo
naturais. Uma das duas partes comprometimento que pode ter tido
irracionais é associada à cólera ou com a visão socrática radical (que a
mais geralmente aos aspectos única causa de errarmos e fazer o que
competitivo-agressivos da existência nos causará dano é um erro
humana; a outra, com nossos intelectual) com a qual estava
impulsos de comida, bebida e sexo. satisfeito para trabalhar nos diálogos
Neste modelo, não vale mais que todo pré-República.
desejo – a saber, todo desejo que leva
à ação – buscar o bem (real), e os Porém, por que então (alguém
seres humanos não são mais poderia perguntar com razoabilidade)
diferenciados meramente pela esta versão da abordagem

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“desenvolvimentista” não é modo que exibe claramente um


vulnerável a exatamente o mesmo desejo de modificar seus leitores. Isto
tipo de objeção como a versão é, ele escreve com evidente
padrão? Como pode Platão fazer convicção. Não é pura elucubração
Sócrates – ainda a personagem acadêmica teórica. Mais ainda: o
principal na República e em forma testemunho de Aristóteles sugere,
inteiramente dominante – avançar sem ambiguidade, que a teoria da
posições que são diametralmente ação que atribui aos diálogos pré-
opostas àquelas que tinha defendido República de fato pertenceu ao
tão entusiasticamente antes, como se Sócrates histórico (que é,
nada tivesse mudado? Talvez, afinal, presumivelmente, pelo menos parte
Sócrates não seja mais do que uma da razão por que Platão faz com que a
marionete de Platão, a qual fará tudo personagem Sócrates perpetuamente
o que seu mestre quiser que ela faça: a sustente nesses diálogos; para
esse deveria ser o tipo de caso que Sócrates, de qualquer modo, não é
mostra por que não deveríamos somente uma opinião possível,
tentar encontrar as convicções de qualquer que seja a verdade sobre seu
Platão por trás do que ele faz suas autor).
personagens dizerem. A personagem
Sócrates – talvez devamos concluir é Assim, a objeção retoma: se o
suposta ser justamente o filósofo Platão da República está de fato
típico a explorar as opções. Neste rejeitando as ideias centrais de
caso, teremos voltado a uma Sócrates, aquelas que ele pôs em sua
variedade do que antes chamei um boca consistentemente nos primeiros
tipo “cético” de interpretação de diálogos, como pode ele continuar a
Platão, um tipo que o faz não se usar despreocupadamente esta
comprometer com nenhuma visão mesma personagem altamente
particular das coisas. peculiar: feio, erótico, sem dinheiro,
descalço (e assim por diante) – ao
Contudo, na República e nos limite de o fazer anunciar e defender
diálogos pós-República, tanto ou mais a rejeição de suas próprias ideias
que nos diálogos anteriores, Platão centrais? A objeção é potente, mas as
frequentemente escreve – faz com opções interpretativas alternativas
que suas personagens (e são tão limitadamente atraentes
especialmente Sócrates) falem de um (leituras “céticas”; pós-modernas ou

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puramente “literárias”, leituras que tem o papel do principal interlocutor


tomam os diálogos como textos – que ninguém faz o mal
essencialmente abertos; tomando os voluntariamente. Isso o incauto leitor
diálogos um por um, e assim por provavelmente não esperava; afinal
diante) que temos uma forte razão de contas, se o diagnóstico de Platão
para esperar poder evitá-la. do erro inclui agora a possibilidade (e
mesmo a probabilidade) que o agente
O ponto crucial, se a objeção foi “vencido pela paixão” ou que teve
deve ser enfrentada, é que Platão suas capacidades de reflexão
deve ter pensado a mudança menos pervertidas por impulsos irracionais,
significativa do que ela parece ser não é certo que tais erros devem ter
para nós. De um modo ou de outro, sido feitos de bom grado, isto é, são
devemos supor que Platão considerou voluntários? Assim, deveriam ser de
a introdução de partes irracionais, acordo com a análise aristotélica; não,
capazes de inverter e/ou perverter a ao que parece, de acordo com a
razão, como um aperfeiçoamento da análise de Platão. Em uma perspectiva
posição de Sócrates – uma posição aristotélica, tratar ações causadas –
que, deve-se dizer, provavelmente direta ou indiretamente – pelas
pareceu tão implausível para uma “paixões” como involuntárias é
audiência antiga como o é para uma simplesmente um erro: qualquer ação
moderna. (Aristóteles certamente a causada pelo que é interno ao agente
considerou como inaceitável.) À deve ter sido desejada pelo agente.
primeira vista isso parece improvável, Porém, a perspectiva de Platão
assim como a introdução de partes mostra-se diferente (que seu aluno
irracionais dificilmente parece deixar Aristóteles a venha ver como um erro
em pé alguma coisa da posição ou não). Para o Platão pós-República,
socrática original: agir do melhor ações feitas sob a influência das
modo não depende somente do partes irracionais e contrárias ao que
estado de nossas crenças; há algo ditaria a razão – em seu estado não
como o caráter; e assim por diante. pervertido – não são propriamente
Porém, isso não é de modo algum a desejadas pelo agente, não mais do
história inteira. Nas Leis, portanto que ações feitas como resultado
próximo do final de sua vida, Platão direto de um erro intelectual não são
ainda está propondo – por meio do desejadas. E isso já nos põe um bom
visitante de Atenas (em Creta) que caminho de volta à posição socrática,

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no centro da qual está precisamente a provindo de uma doença do corpo.


tese que nunca desejamos o que de Compare-se com a posição socrática,
fato não é bom para nós. (Podemos para a qual, como todo desejo que
pensar que o desejamos ou o leva à ação está dirigido ao bem real,
queremos, mas isso é uma outra é impossível que o desejo possa
questão.) distorcer algo: a razão erra por si
mesma ao, por exemplo, reagir com
Caso se aceite tudo isso, creio que demasia a desejos sentidos.) E esta
deixa de ser estranho que Platão faça diferença, sugiro, pareceu menos
Sócrates conduzir a introdução de importante a Platão do que reter
uma alma dividida entre as partes aquela ideia socrática básica segundo
racional e irracional, com a própria a qual estamos todos, como seres
parte irracional sendo capaz de racionais, orientados para o bem real:
estragar tudo. Fora casos de já porque a concepção de Platão do
“fraqueza da vontade” ou akrasia (isto bem real é também (sustento eu)
é, casos nos quais a paixão intervém e ainda idêntica à de Sócrates.
cancela de fato as decisões da razão –
como, alega-se, ocorre nos Esta abordagem tem
popularmente chamados “crimes de vantagens imediatas. Tome-se, por
paixão”), os quais são para Platão, exemplo, como o argumento procede
especula-se, provavelmente muito ao final do livro IV da República: assim
antes a exceção e não a regra, será como ações saudáveis produzem a
sempre o caso que tipicamente saúde no corpo, argumenta Sócrates,
fazemos o que nossa razão dita; a assim também ações justas
diferença efetiva com a posição promovem a justiça na alma. Deve-se
socrática será somente que, ao lado agora (diz ele) voltar à questão
do erro puro intelectual (o qual, no original: a de saber se o que vale a
novo modelo platônico, será visto pena é a justiça ou a injustiça. Porém,
como erros de cálculo meramente Gláucon, seu interlocutor neste
temporários e que mesmo se momento, declara que não é mais
autocorrigem imediatamente), preciso um argumento: claramente,
haverá também erros de raciocínio dado o que Sócrates tinha dito, é a
causados por desejos ou impulsos justiça que é preferível – e Sócrates
irracionais. (É assim que o Timeu pode concorda. Embora este argumento,
falar do erro intelectual como como ele o expõe, possa satisfazer a

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Gláucon, é difícil ver por que deveria alma “saudável” será obviamente
nos satisfazer e, de fado, muitos preferível a vir a ter uma alma “não
leitores modernos se sentiram saudável”.
ludibriados, assim como se sentiram
ludibriados pela afirmação de Visto que nada disso é exprimido,
Sócrates, algumas linhas antes, sobre é improvável que seja o que convence
que a pessoa cujas partes da alma Gláucon: sua adesão ao argumento
fazem, cada uma, o que incumbe a parece ser muito mais superficial
elas – a definição de justiça, neste (podemos supor, por exemplo, que
contexto, que o caracteriza, para não está atraído pela analogia entre
dizê-la peculiar – muito justiça e saúde, especialmente depois
provavelmente será o menos afeito que a injustiça na alma foi associada
do que qualquer outro a cometer ao desvio de bens, roubo de templos,
coisas normalmente consideradas traição, quebra de palavra, adultério e
injustas. A situação, porém, fica assim por diante). Neste caso, como
inteiramente diferente se lermos o em muitos outros, Platão parece
argumento com base no contexto do operar em níveis diferentes, fazendo
tipo de psicologia socrática corrigida Sócrates oferecer a seus
que se acaba de supor que Platão interlocutores e talvez aos seus
tinha em mente, pois a alma próprios leitores que estão no mesmo
“saudável”, nos termos desta nível que os interlocutores de
explicação da alma humana, será Sócrates, um nível – ou pelo menos
exatamente aquela em que um tipo – de argumento que não é o
mesmo que interessaria a ele ou a
a) a razão vê corretamente que a Sócrates. No caso particular em
coisa justa é a melhor coisa a fazer questão, Sócrates de fato tinha dito
e próximo ao início do livro II que ele
b) não há fatores em contraposição, próprio estava satisfeito com os
na forma das partes irracionais argumentos que já tinha desenvolvido
indisciplinadas, que interfiram com no livro I em favor da justiça, como
esta compreensão correta. resposta a Trasímaco, mas diz que,
obviamente, terá de se esforçar para
E, se o que todos os agentes persuadir Gláucon e seu irmão
querem é o máximo bem (para si Adimanto, que se puseram, no início
próprios), então ter e manter uma do livro II, a retomar a defesa da

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injustiça. Os livros II-IV em sua imaginado pensar) não funciona


totalidade são assim concebidos para assim: deve-se conceber as coisas por
convencer outros sobre o que si mesmas. Esta tese é correta até
Sócrates diz satisfatoriamente ter onde pode ir. Porém, ela deixa de lado
dado suficientes razões para um ponto crucial: que o pensamento
acreditar. E se olharmos atentamente platônico e socrático é
para os argumentos nos dois extraordinariamente radical – tão
contextos (livro I e livros II-IV), a radical que, se nos fosse apresentado
diferença que encontramos é que os simples e diretamente, nos pareceria,
argumentos no primeiro se baseiam como seguramente parece a muitos
em premissas socráticas familiares (p. leitores mesmo quando é
ex., que justiça é sabedoria), ao passo desenvolvido, como pura e
que os do segundo não procedem simplesmente falso, e tão obviamente
assim – ou, pelo menos, não na falso que não mereceria a pena de ser
superfície, pois, como se sugeriu, há discutido. Esta parece ser a reação de
razões para supor que aquelas Aristóteles à posição de Sócrates;
premissas socráticas estão aqui Aristóteles acomoda a posição de
escondidas embaixo da superfície, Platão unicamente ao preço de uma
fornecendo a real justificação para o completa revisão (veja
argumento tal como apresentado. anteriormente). Certamente importa
a Platão que se conceba as coisas
Qual é a razão para este tipo de antes que pensar que elas possam ser
estratégia (que penso ser dadas em uma bandeja. Porém, a
extremamente comum em Platão)? verdade é que, se elas fossem dadas
Isso nos conduz à difícil questão do diretamente, provavelmente não se
uso de parte de Platão do diálogo ou, quereria de forma alguma prová-las.
mais geralmente, da forma dramática. Que isto é assim é mostrado pela
Propõe-se frequentemente que uma vontade da maioria dos intérpretes de
das razões por que Platão escreve do supor que Platão se distanciou de
modo como faz, valendo-se do Sócrates (veja anteriormente). Ele fez
diálogo e do drama, é que quer evitar isso, de um modo, mas a tese do
simplesmente afirmar a verdade, presente capítulo é que, no fundo,
como se ela pudesse ser transportada Platão permanece um socrático. Ao
diretamente de uma mente a outra. O mesmo tempo, ele se dá conta da
progresso intelectual (assim é distância que provavelmente o

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separa, a ele e a seu Sócrates, de seu tentar distinguir entre várias coisas
público, e os diálogos tipicamente, se diferentes: Sócrates falando in própria
não exclusivamente, representam persona; Sócrates adotando ou
uma conversa entre duas posições parecendo adotar a posição de uma
bem diferentes: uma conversa ao outra pessoa e Sócrates parecendo
longo da qual o Sócrates de Platão adotar um ponto de vista estrangeiro,
frequentemente parecerá tomar a quando de fato – a se reconstruir o
coloração e as premissas dos outros, argumento – ele mantém o seu ponto
enquanto de fato procura trazê-los à de vista. Acima de tudo, deve-se
sua posição, tanto quanto é possível sempre lembrar que o Sócrates de
trazê-los à sua posição sem uma Platão tem um ponto de vista (ainda
completa mudança de perspectiva. A que sutilmente mude ao longo dos
nova perspectiva envolverá o uso da diálogos, especialmente em relação
mesma linguagem, mas de um modo ao que tem a dizer sobre a ação
bem diferente, de modo que – para humana) e que é sempre provável que
tomar o exemplo mais óbvio – um esteja em jogo – mesmo quando não
conjunto bem diferente de coisas será nos está falando sobre ele. É nosso
denominado “bem” (porque são fracasso em reconhecer isso que
bons, ao passo que o tipo de coisas frequentemente nos leva a supor que
normalmente bem será no máximo há lacunas ou falácias simples
nem bom nem mau). envolvidas em seus argumentos,
quando simplesmente
As variações com que Platão joga compreendemos erradamente as
nesta estratégia são quase tão premissas que está usando (porque
numerosas quanto seus diálogos e esperamos dele que as exprima
não podem ser descritas aqui. Porém, sempre e ele não faz isso).
há certos princípios de leitura que,
aqui se propõem, deverão sempre ser No presente contexto, dada a
mantidos em mente por quem quiser ausência de demonstrações extensas
ler Platão. Primeiro, deve-se sempre sobre a utilidade destas proposições e
estar preparado a seguir o Sócrates de de sua capacidade em iluminar o texto
Platão, ou seus outros interlocutores de Platão, devem ser tomadas como
principais, aonde levam, por mais não mais do que um conjunto de
paradoxais que pareçam seus sugestões para leitura. Ademais, está
resultados. Segundo, deve-se sempre suficientemente claro a partir das

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partes iniciais deste capítulo que ideias substantivas (como o fazem) e


serão profundamente controversas. A travando batalha contra os mesmos
mais controversa será a última tipos de oponentes (como também o
proposição, que o Sócrates de Platão fazem), tanto mais fica difícil deles
ou seus substitutos como principal descolar o autor. Naturalmente,
interlocutor (que falará no todo em poderia, por vezes, escrever, por
nome de Platão) se baseia exemplo, em tom irônico; que ele
tipicamente em um determinado possa adotar uma posição
conjunto de ideias – um “ponto de permanentemente irônica vai além do
vista”, como se chamou, e um que é que se pode crer.
altamente característico – que ele não
se sente obrigado a tomar explícito Propor, como se fez neste
mesmo quando está baseando-se capítulo, que, em essência (a despeito
nele. (Diz-se: “que falará no todo em de certa divergências importantes),
nome de Platão”. Há também aqui Platão permanece socrático o tempo
questões, obviamente. Não se pode todo dificilmente será mais bem
supor, mesmo na abordagem recebido do que a proposta que ele
proposta, que Sócrates ou qualquer tem sempre mais pano na manga do
outra personagem estará sempre que declara e está preparado para
exprimindo a mente do próprio usá-lo. A ideia que os assim ditos
Platão: não somente podem as diálogos “médios” – aquela alegada
personagens de Platão estar constelação de diálogos que anuncia a
argumentando ad hominem, mas “teoria das formas”, centrada na
também podem estar apresentando República – marca a ruptura de Platão
uma perspectiva estritamente com Sócrates está totalmente
limitada, talvez com vistas a um tipo ambientada em percepções
particular de público, e assim por modernas – de língua inglesa – do
diante.) Contudo, os principais corpus e em um sentido se combina
interlocutores – como está implicado bem com a versão do Platão
pela possibilidade mesma de se referir “dogmático”, elaborado com ardor
a eles como tais – nos diálogos pelos neoplatônicos, que predominou
platônicos sempre dominam a desde a morte do filósofo. A
discussão, em maior ou menor identificação de um período primeiro,
extensão, e quanto mais eles ficam socrático, e de um período posterior
mencionando os mesmos tipos de supostamente mais realista e analítico

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pode ser vista precisamente como um simplesmente parecem não fazer


refinamento moderno da abordagem sentido com base no que somente o
cruamente unitária – e texto forneceu; e, segundo, que há
insuficientemente analítica algumas ideias e argumentos que
neoplatônica. Contudo, esta visão insistem em ressurgir, em uma forma
moderna é e sempre foi vulnerável ou em outra.
pelas razões apresentadas; entre elas
se encontram as ambiguidades dos Platão nos é imediatamente
resultados obtidos pelos familiar, porque foi tão fundamental
estilometristas (os diálogos “médios” para o progresso da cultura ocidental,
não formam um grupo e totalmente estranho: quanto mais
estilisticamente unitário) e a falta de perto se olha para ele, tanto mais é
clareza persistente sobre o que se ele capaz de aparecer peculiar e
ganha exatamente, que ganhos Platão estranho. Talvez seja simplesmente
pensara ter feito e o que realmente foi impenetrável para nós. Todavia, as
alterado pela introdução das formas discussões nos diálogos
no (que se costuma chamar) “período frequentemente parecem quase tão
médio”. distantes de tudo com o qual mesmo
seus contemporâneos estavam
Diante de toda esta controvérsia, habituados; na verdade, quando ele
os leitores podem ficar tentados a nos dá um quadro de seus
abandonar qualquer tentativa de ler contemporâneos em confronto com
Platão e, ao invés disso, concentrar-se as suas ideias e as de Sócrates, nós os
somente nos diálogos individuais ou vemos frequentemente
mesmo selecionar passagens ou desconcertados, sem conseguir
contextos com muito jargão – seja compreender. Ou talvez Platão esteja
com vistas a se extasiar com a prosa brincando conosco, seu público; ou
de Platão, seja para analisar os talvez seja meramente extravagante e
argumentos, um por um. Porém, provocador (uma acusação
leitores inteligentes que se frequentemente feita contra seu
aproximam deste modo limitado, de Sócrates). Porém, isso é negado pela
maneira regular, a diferentes partes seriedade seguramente inconfundível
do corpus provavelmente logo – ainda que tipicamente enlaçada a
notarão duas coisas: primeiro, que há um espírito engenhoso – de que estão
muitas coisas no que estão lendo que imbuídos tantos contextos platônicos.

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(Anteriormente referiu-se a convicção Plato, Modem and Ancient (pp. 93-127).


por trás do texto de Platão.) Não há Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
outra opção senão continuar a Klagge, J. and Smith, N. (eds.) (1992).
tentativa de delinear os traços da Methods of Interpreting Plato and his
Dialogues. Oxford Studies in Ancient
mentalidade platônica, que isso
Philosophy, supplementary volume. Oxford:
venha a se mostrar como algo que Oxford University Press.
evoluiu no tempo ou, como agora se
Krãmer, H. J. (1959). Arete bei Platon und
prefere, que permaneceu nos Aristóteles. Heidelberg: C. Winter.
elementos mais fundamentais fiel às
Laks, A. (1990). Legislation and demiurgy: on
suas origens. No último caso, os the relationship between Plato’s Republic
neoplatônicos se mostrarão and Laws, Classical Antiquity 9, pp. 209-29.
novamente com razão, em um
Penner, T. and Rowe, C. (2005). Plato: Lysis.
sentido: há algo (mais ou menos) Cambridge: Cambridge University Press.
constante que pode justamente ser
Press, G. A. (ed.) (2000). Who Speaks for
denominado platônico, mesmo que Plato? Studies in Platonic Anonymity.
isso venha a ser antes direto e Lanham, Md.: Rowman and Littlefield.
devendo bem mais a Sócrates do que
Rowe, C. (2002). Comments on Penner (T.
eles pretendiam. Penner, The historical Sócrates and Plato’s
early dialogues: some philosophical
Referências e leitura complementar questions). In J. Armas and C. Rowe (eds.)
New Perspectives on Plato, Modem and
Blondell, R. (2002). The Play of Character in Ancient (pp. 213-25). Cambridge, Mass.:
Plato’s Dialogues. Cambridge: Cambridge Harvard University Press.
University Press. ______(2003). Plato, Sócrates and
Fine, G. (2003) [1984]. Separation. Reimpr. developmentalism. In N. Reshotko (ed.)
em Plato on Knowledge and Forms (cAp. 11). Desire, Identity and Existence: Studies in
Oxford: Oxford University Press. Honour of T. M. Penner (pp. 17-32). Kelowna,
BC, Canada: BPR Publishers.
Grote, G. (1865). Plato and the Other
Companions of Sócrates (3 vols.). London: ______(2005). What difference do forms
John Murray. make for Platonic epistemology? In C. Gill
(ed.) Virtue, Norms, and Objectivity (pp. 215-
Kahn, C. (1996). Plato and the Socratic 32). Oxford: Oxford University Press.
Dialogue: The Philosophical Use ofa Literary
Form. Cambridge: Cambridge University Szlezák, T. (1985). Platon und die
Press. Schriftlichkeit der Philosophie.
Interpretationen zu denfrühen und mittleren
______(2002). On Platonic chronology. In J. Dialogen. Berlin: de Gruyter.
Annas and C. Rowe (eds.) New Perspectives on

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Hugh H. PLATÃO
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______(2004). Das Bild des Dialektikers in


Platons spàten Dialogen (Platon und die
Schriftlichkeit der Philosophie, Teil 2). Berlin:
de Gruyter.
Vlastos, G. (1991). Sócrates: Ironist and Moral
Philosopher. Ithaca, NY: Cornell University
Press; Cambridge: Cambridge University
Press.

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3. O problema Socrático contemporâneo de Sócrates. Nascido


quinze anos após a morte de Sócrates,
WILLIAM J. PRIOR Aristóteles foi um membro da
Academia de Platão e estava
INTRODUÇÃO presumivelmente habituado com a
literatura antiga e com a tradição
Sócrates é uma das figuras mais acerca de Sócrates. Ele incluiu
famosas e influentes na tradição observações sobre este em seus
intelectual ocidental: mas quem era tratados sistemáticos sobre vários
ele? Entre seus discípulos aspectos da filosofia. O problema
encontravam-se os filósofos mais socrático surge, em parte, das
influentes de seu tempo, aos quais é questões acerca da fidedignidade
atribuída pelos historiadores da destas fontes.
filosofia a fundação de várias escolas;
mas o que ele os ensinou? Estas Vou argumentar a seguir que
questões constituem o “problema conhecemos muita coisa sobre a vida,
socrático”, a tentativa de descobrir o o caráter, os interesses filosóficos e o
indivíduo histórico por trás dos relatos método do Sócrates histórico.
antigos sobre Sócrates e sua filosofia. Infelizmente, esse conhecimento não
vai até o ponto de quais doutrinas, se
Sócrates não escreveu nada. Para alguma, ele professou, o que é
nossa informação, dependemos de justamente o que mais querem saber
quatro fontes principais. A fonte mais os filósofos contemporâneos. A
antiga é a comédia grega, incerteza acerca das doutrinas de
fundamentalmente As Nuvens de Sócrates pode ser rastreada pelas
Aristófanes, encenada em 423 a.C. nossas mais antigas fontes e, de fato,
Dois outros companheiros de pelo retrato de Sócrates em nossa
Sócrates, Platão e Xenofonte, fonte mais importante, Platão.
escreveram copiosamente sobre ele; Sócrates era aparentemente um
seus escritos nos foram transmitidos, mistério até mesmo para seus
ao contrário de tantos outros que companheiros mais íntimos. Vou
também escreveram obras socráticas. começar discutindo o problema da
Diferentemente destes três autores, fidedignidade de nossas fontes; em
uma quarta fonte, Aristóteles, não foi sequência, descreverei o que
podemos extrair com segurança sobre

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Sócrates destas fontes; concluirei com sobre Sócrates.


uma discussão do problema do
ensinamento de Sócrates. Por outro lado, a peça As Nuvens
nos dá informação importante sobre
A fidedignidade das fontes Sócrates. Ela nos diz que ele era uma
figura pública em Atenas e que
O problema socrático surge em parte Aristófanes pensou que o público não
do fato que nenhuma de nossas seria capaz de diferenciar as ideias
fontes tem crédito impecável como dele das dos sofistas e dos filósofos da
biógrafo. A fonte mais antiga de natureza, com os quais estava, na
informação sobre Sócrates é a visão do público, associado. Caso se
comédia grega. A única peça deva dar crédito neste ponto à
completa que possuímos Apologia de Platão, isso se mostra
apresentando Sócrates como um verdadeiro. Platão faz Sócrates citar
protagonista é As Nuvens de esta peça na Apologia (18dl-2.19c2-5)
Aristófanes, a única de nossas fontes como uma das principais fontes de
primárias que data do período em que preconceito contra ele. Aos olhos de
Sócrates vivia. Aristófanes retrata Platão, a peça As Nuvens é, se não um
Sócrates como um “novo intelectual”, retrato acurado de Sócrates, uma
descrente dos deuses da religião fonte importante para a compreensão
grega tradicional e um sofista que popular de Sócrates na parte final do
ensina “argumento injusto” a seus quinto século.
alunos. Estudiosos pensam ter razões
para ignorar ou minimizar a Xenofonte escreveu suas obras
importância do retrato de Sócrates socráticas em parte para defender
feito por Aristófanes. Comédia não é Sócrates das acusações de Aristófanes
biografia; a questão central não era: e outros. Ele escreveu quatro obras
“é verdade?” ou “é justo?”, mas sim: socráticas: Apologia, Memorabilia,
“é engraçado?” O retrato feito por Econômico e Banquete. Xenofonte foi
Aristófanes parece a muitos um companheiro de Sócrates por
estudiosos como um quadro certo tempo (não é claro por quanto
compósito de intelectuais atenienses tempo exatamente) ao longo da
da última parte do século quinto; em última década da vida de Sócrates.
consequência, rejeitaram a ideia que Uma anedota simpática proveniente
ele contenha informação precisa da Antiguidade tardia mostra Sócrates

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procurando-o, perguntando-lhe se práticos (veja, por exemplo, Mem.


sabe onde são encontrados vários II.7). Ele dá conselhos não somente
tipos de comida e terminando por para seus companheiros próximos,
perguntar onde os homens são mas virtualmente para todo aquele
tornados cavalheiros (kalos que encontra, inclusive comandantes
k’agathos, “belo e bom”). Ao ver que de cavalaria e cortesãos. Xenofonte
Xenofonte não pode responder à raramente mostra Sócrates envolvido
questão, Sócrates diz: “siga-me e com o tipo de confrontação
aprenda” (Dl 11.48). Seja ou não antagonista com um interlocutor que
histórica a anedota, ela reflete o é proeminente na obra de Platão.
interesse de Xenofonte em Sócrates: Todavia, ele mostra Sócrates em
ele via Sócrates como alguém que diálogo com sofistas (Antifonte e
tornava seus companheiros “belos e Hípias, em Mem. 1.6, IV4), em busca
bons”. Xenofonte não se associou a de definições (Mem. m.9, IV6) e como
Sócrates para se tornar um filósofo, um devoto de erôs (Banquete 6.8) –
mas para se tornar um cavalheiro. todos aspectos de Sócrates que
Diferentemente de Platão, ele Platão põe em relevo. O Sócrates de
aparentemente não via nenhuma Xenofonte não insiste em sua
dificuldade em se tornar um sem se ignorância, como o de Platão o faz,
tornar o outro. mas evidencia aos seus interlocutores
a ignorância deles como um estágio
Xenofonte queria ansiosamente preliminar de sua educação (Hípias
mostrar que Sócrates era inocente menciona a recusa de Sócrates em
das acusações oficiais apresentadas responder às questões que formula a
em seu julgamento: impiedade e outros em Mem. IV 4.9, mas em geral
corrupção de jovens. Ele dedicou o o Sócrates de Xenofonte está muito à
primeiro capítulo de seus vontade ao declarar sua posição).
Memorabilia para argumentar que
Sócrates era um crente do tipo mais O retrato de Sócrates por
pio e tradicional. Dedicou a maior Xenofonte é valioso por duas razões.
parte dos Memorabilia para mostrar Primeiro, ele corrobora vários
que Sócrates trazia benefícios a cada aspectos do retrato feito por Platão.
um que se associava a ele. O Sócrates Segundo, enfatiza um aspecto da vida
de Xenofonte é primeiramente de Sócrates sobre o qual Platão não se
alguém que fornece conselhos morais concentra: suas relações com os

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discípulos. Platão e Xenofonte ponto de dedicar uma porção


apresentam, ambos, Sócrates como considerável de sua produção literária
um homem que teve discípulos à sua defesa.
devotos e apaixonados; Xenofonte
oferece uma explicação mais extensa Inquestionavelmente, nossa
do que o faz Platão sobre como fonte principal de informação sobre
Sócrates pode ter gerado tal devoção. Sócrates é Platão. Platão tornou-se
Xenofonte escreveu com uma um seguidor de Sócrates e foi um de
intenção polêmica: queria mostrar seus companheiros mais íntimos.
que Sócrates era completamente Diferentemente de Xenofonte, Platão
inocente das acusações lançadas era um filósofo; suas obras enfatizam
contra ele por seus acusadores e pelo a atividade filosófica de Sócrates.
preconceito popular contrário a ele. Como Xenofonte, estava preocupado
Xenofonte foi criticado por ter feito em mostrar que Sócrates não era
Sócrates parecer insosso e não culpado das acusações feitas contra
controverso; Gregory Vastos declarou ele por seus acusadores;
que os atenienses nunca teriam diferentemente dele, ele não atenua
indiciado o Sócrates de Xenofonte os elementos controversos de seu
(Vlastos, 1971a: 3). Xenofonte caráter e método. O Sócrates de
também atribui a Sócrates interesses Platão era um questionador
que só adviriam do próprio infatigável, determinado a revelar
Xenofonte, como ciência militar e para o interlocutor sua ignorância. Ele
administração de propriedades. A também insiste em sua própria
duração e a intimidade de sua ignorância, frequentemente dada
associação com Sócrates foi como explicação de sua recusa a
questionada por estudiosos. Pelo fato responder as questões que formula. A
de não estar interessado despeito desta insistência, o Sócrates
primariamente na filosofia de de Platão sustenta, ocasionalmente,
Sócrates, ele não é nosso melhor posições filosóficas. Ao final do
testemunho sobre o conteúdo desta Górgias (523a-527c), por exemplo,
filosofia. Mesmo assim, considero ele apresenta um relato da
inegável que Xenofonte conhecia e se imortalidade da alma. No Críton (de
associou a Sócrates, que foi inspirado 47c até o final), ele apresenta tanto
por ele e que estava suficientemente uma teoria da ação moral quanto uma
preocupado com sua reputação a defesa da obediência à lei. É um

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problema para os estudiosos os diálogos do primeiro grupo


reconciliar a sustentação por parte de representam as posições do Sócrates
Sócrates destas teorias com sua histórico e não um primeiro estágio
profissão de ignorância (ver o capítulo do pensamento filosófico do próprio
A Ignorância Socrática). Platão (ver o capítulo Interpretando
Platão).
Platão foi um grande filósofo de
próprio punho, um pensador que Para resolver este problema, os
desenvolveu suas próprias respostas estudiosos voltaram-se às obras de
às questões que Sócrates formulava. nossa quarta fonte, Aristóteles. Como
Isso produz uma questão: onde, em foi notado acima, Aristóteles foi um
suas obras, Platão apresenta as membro da Academia durante os
posições de Sócrates e onde últimos vinte anos da vida de Platão.
apresenta as suas próprias? Os Ele deve ter tido a oportunidade de
estudiosos esperavam resolver esta discutir sobre Sócrates com Platão, se
questão dividindo os diálogos de tivesse desejado, e deve ter tido
Platão em três grupos: um primeiro acesso às obras socráticas de outros
grupo, contendo diálogos que (se filósofos que estão hoje perdidas.
argumenta) apresentam um quadro Embora não fosse nascido quando
fiel do Sócrates histórico; um grupo Sócrates morreu, se mundo
intermediário, contendo diálogos que intelectual estava muito mais
representam as posições filosóficas próximo do de Sócrates do que está o
do próprio Platão, e um grupo tardio, nosso. Contudo, os estudiosos
contendo um estágio ulterior do questionaram a fidedignidade geral
desenvolvimento de Platão. Esta de Aristóteles como um historiador
divisão tripartite, porém, foi criticada: da filosofia (para uma avaliação
tanto o fato de pertencer aos negativa, ver Kahn, 1966, p. 79-87;
respectivos grupos quanto a ordem para avaliações mais positivas, ver
dos diálogos em seu interior foram Guthrie, 1971, p. 35-9; Lacey, 1971, p.
questionados (Kahn, 2002). Mesmo 44-8). Pode, porém, ser injusto
que se aceite a agrupamento descrever Aristóteles como um
tripartite dos diálogos e o quadro historiador da filosofia e não como
desenvolvimentista geral que o um filósofo escrevendo sobre outros
acompanha, parece, todavia, que não filósofos. Seu interesse na filosofia era
há razão decisiva para acreditar que sistemático, mas, ao desenvolver suas

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próprias posições, ele fez referência à parte” como fez Platão (Metaph.
às de seus predecessores, inclusive a XIII.4,1078b29-30). Estudiosos
Sócrates. Seu interesse principal ao tomaram esta passagem para marcar
proceder assim era mostrar que, uma distinção crucial entre Platão,
embora pensadores anteriores com sua doutrina das formas
pudessem ter antecipado alguns separadas, e Sócrates. Serviram-se
aspectos de seu pensamento, não o desta distinção para dividir os
levaram à perfeição. Sua tendência de diálogos em estágios de
ver os pensadores anteriores como desenvolvimento: um grupo socrático
prenunciadores de sua própria que não contém a doutrina das
posição gerou questões sobre a formas separadas e um grupo
objetividade de seu relato histórico. platônico posterior que a contém.
Portanto, como no caso de Platão, Todavia, o testemunho de Aristóteles
surge a questão se Aristóteles está gera mais questões do que as
relatando o que Sócrates disse ou o responde. Não é claro o que está
que ele pensava que Sócrates queria atribuindo a Sócrates: uma teoria de
dizer. Finalmente, alguns críticos de universais não separados, como a sua
Aristóteles como uma fonte sobre doutrina (que seria difícil de ser
Sócrates questionaram se havia algo conluiada com a profissão socrática
em seu relato que não se possa traçar de ignorância) ou meramente um
aos diálogos de Platão (Burnet, 1912, interesse metodológico na definição
p. xxiv). universal (ver o capítulo Definições
Platônicas e Formas). O testemunho
Os comentários de Aristóteles de Aristóteles sobre a autoria da
sobre Sócrates se restringem à sua teoria das formas separadas contradiz
filosofia e ele nos fornece várias duas passagens nos diálogos de
informações muito importantes. Vou Platão, nas quais Sócrates reivindica
aqui enfatizar duas. Primeiro, ele ser o autor da teoria: Phd. 100b 1-7 e
confirma o retrato de Platão de Prm. 130b 1-9. Isso levou John Burnet
Sócrates como alguém que e A. E. Taylor, no início do século
professava ignorância (SE 183b6-7). passado, a rejeitar o testemunho de
Segundo, ele nos diz que, embora Aristóteles. A maioria dos estudiosos
Sócrates buscasse definições e ficou do lado de Aristóteles sobre esta
centrasse sua atenção nos universais, questão, mas a tensão entre o retrato
ele não “fez os universais... existirem de Platão de Sócrates e o testemunho

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de Aristóteles é significativa. O era talhador de pedra; Sócrates dizia


testemunho de Aristóteles sobre que sua mãe, Fenarete, era parteira.
Sócrates parece ser mais objetivo que Era casado com Xantipa e teve três
o de Platão e Xenofonte; porém, filhos. Tendo crescido durante a
reflete seus próprios interesses e, época dourada de Atenas, assistiu seu
como não estava baseado em declínio e queda desastrosos na
experiência própria, dependeu, Guerra do Peloponeso (431-404).
inevitavelmente, de fontes Durante esta guerra, serviu no
anteriores, especialmente de Platão. exército ateniense como hoplita
(soldado fortemente armado da
O que as fontes nos dizem a respeito infantaria), uma posição que sugere
de Sócrates certo nível de riqueza familiar. De
acordo com Alcibíades e Laques (tal
Apesar das diferenças de ênfase, como relatado por Platão), ele
nossas fontes são concordantes a demonstrou notável coragem nos
respeito de vários aspectos da vida, campos de batalha. Platão e
dos interesses filosóficos e do método Xenofonte relatam ambos dois
de Sócrates. Quando vão na mesma eventos que atestam a coragem de
direção, temos a melhor evidência Sócrates em outros contextos.
histórica que podemos ter de Primeiro, nos últimos períodos da
Sócrates. Se rejeitarmos esta guerra, quando os atenienses
evidência, não teremos nada em que quiseram julgar em bloco dez
basear nosso relato do Sócrates generais por terem abandonado os
histórico. Quando nossas fontes soldados mortos ou feridos depois da
divergem, talvez não consigamos batalha de Arginusa, Sócrates, que na
reconciliá-las, mas em alguns casos época fazia parte do Conselho, foi o
não precisamos disso: ambos os lados único a recusar a colocar em votação
podem representar aspectos de a moção, pelo motivo (correto) de ser
Sócrates que não devemos descartar. ilegal. Segundo, quando os Trinta
Tiranos, que governaram Atenas em
Nossas fontes nos falam bastante 403-402, ordenaram a Sócrates e a
a respeito da vida de Sócrates. Ele outros que prendessem Leon de
nasceu em Atenas por volta de 469 Salâmis, foi o único do grupo a
a.C. e era um cidadão da cidade, do recusar-se. Ambos os episódios
demo Alopece. Seu pai, Sofronisco, colocaram sua vida em considerável

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perigo. Os episódios mais conhecidos tradicionais atenienses, um “maluco”.


da vida de Sócrates ocorreram em sua A opinião pública o associava a
parte final. Em 399 Sócrates foi Alcibíades, a personagem mais visível
julgado, acusado de impiedade e de da vida pública ateniense na era da
corromper os jovens. Seus acusadores Guerra do Peloponeso, e com Crítias,
eram Meleto, Anito e Lícon. Foi líder dos Trinta desprezado por
declarado culpado e condenado à muitos. Para seus seguidores, era um
morte. Recusou-se a fugir da prisão e homem da mais alta qualidade moral,
morreu bebendo cicuta. Sócrates uma pessoa inspiradora. Platão e
declarava que possuía uma voz divina Xenofonte referem-se a ele como o
que por vezes lhe falava; de acordo homem mais justo de seu tempo.
com Platão, a voz só proibia ações (Platão, Ep. VII.324e e Phd. 118a;
com as quais estava envolvido. Xenofonte, Mem. W.8.)
Mostrou muito interesse e, de acordo
com Platão, tinha grande Esta controvérsia não pode ser
conhecimento da erótica (ver o resolvida apelando-se aos fatos
capítulo Eros e Amizade em Platão). aceitos da vida de Sócrates. Sócrates
era um excêntrico no contexto da vida
Alguns dados que forneci sobre a ateniense; seu manto desfiado e sua
vida de Sócrates, como os que dizem aparência descuidada forneciam
respeito ao seu serviço militar, são objeto para um tratamento cômico.
encontrados em somente uma fonte Mais importante, Crítias e Alcibíades
(no caso, em Platão), mas a maioria se eram seus companheiros; Xenofonte
encontra em mais de uma e Platão tiveram de argumentar que
(principalmente em Platão e ele não era responsável pela conduta
Xenofonte) e não é contradita por deles. Sócrates era associado a
nenhuma. Formam a base de nossa elementos oligárquicos pró-
compreensão histórica de Sócrates e espartanos da vida ateniense e era
são tão seguras quanto algo o pode crítico de pelo menos alguns aspectos
ser em relação a uma personagem da democracia ateniense, como a
histórica. Incerteza acerca de eleição de magistrados por sorteio;
Sócrates invade o quadro quando preferiu morrer a abandonar Atenas
consideramos seu caráter. Para a quando foi condenado. Se pudermos
antiga comédia, Sócrates era um confiar naqueles que melhor o
solapador excêntrico dos valores conheceram, a piedade pessoal de

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Sócrates era exemplar, mas sua Inquestionavelmente, os


disposição de questionar toda crença companheiros de Sócrates eram
tradicional deve ter encorajado atraídos a ele por conta do modo
aqueles que, como Crítias e como levava sua vida. Porém, que
Alcibíades, riam das crenças religiosas explicação teórica da virtude, se acaso
populares. Duas marcas do caráter de há alguma, está por trás de sua
Sócrates parecem fora de conduta? Tem Sócrates algo como
controvérsia e são amplamente uma filosofia moral?
atestadas por nossas fontes antigas:
sua coragem e sua integridade Nossas fontes são concordantes
pessoal. Sócrates demonstrou sua quanto ao fato de Sócrates estar
coragem na guerra e no julgamento e primariamente interessado em
mostrou sua integridade (o que questões morais. São discordantes
Xenofonte chama de liberdade) tanto somente se estava exclusivamente
por se recusar a ensinar em troca de interessado nelas. Aristófanes
dinheiro quanto pela recusa a apresenta Sócrates como um
comprometer seus padrões quando professor do “argumento justo e
sua vida estava em perigo. injusto”, visões rivais da conduta
humana, mas também como um
Sócrates era, sem dúvida, uma investigador científico. Xenofonte nos
pessoa complexa. Não teria podido dá um Sócrates interessado em uma
atrair seguidores do quilate de grande variedade de tópicos,
Xenofonte e Platão se não fosse um incluindo táticas militares e arte de
homem virtuoso, de profunda plantar, assim como a ética; parece
seriedade moral; não teria podido razoável supor, contudo, que os
atrair seguidores como Alcibíades se primeiros dois tópicos representam
não fosse um pouco iconoclasta. Além antes os interesses de Xenofonte que
disso, a virtude de Sócrates deve ter os de Sócrates. Platão e Aristóteles o
parecido algo enigmático mesmo a descrevem como primariamente um
seus admiradores. Era apresentada moralista, mas Aristóteles também
em ações, não em palavras; assim atribui a Sócrates um interesse
como Xenofonte faz Sócrates dizer a teórico na definição e no argumento
Hípias, “demonstro meu indutivo (Metaph. XIII.4, 1078b27-9),
conhecimento da justiça por meio de e Platão atribui a ele teses sobre a
minha conduta” (Mem. IV4.10). alma.

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Todas as nossas fontes ele não sabe, que está procurando


concordam novamente a respeito do tanto quanto seu interlocutor. Esta
método primário de investigação de reivindicação é endossada por
Sócrates: ele filosofava fazendo Aristóteles, mas Aristófanes não a
questões. Sem dúvida, parte da menciona e Xenofonte escreve como
controvérsia sobre as doutrinas de se não fosse verdadeira (embora
Sócrates deriva deste foto de seu tenha a observação de Hípias sobre a
método filosófico. Seja para refutar célebre recusa por parte de Sócrates
um suposto especialista, seja para de dar sua própria posição). É
oferecer um conselho moral a alguém, frequentemente fácil, mesmo quando
o método de Sócrates consistia em Sócrates declara não ter
extrair as teses do interlocutor por conhecimento das respostas a suas
meio de uma série de questões e questões, tratar essa declaração
então as examinar criticamente. como irônica. Esta é a resposta de
Aristófanes encena Sócrates Trasímaco em República I e está
questionando Estrepsíades (Nuvens diretamente ligada a algumas
636-99, 723-90); Aristóteles, como se observações de Alcibíades que vamos
notou anteriormente, diz que examinar a seguir. Assim, embora haja
Sócrates somente questionava os concordância de nossas fontes sobre
outros e se recusava a responder. Este o método de investigação de Sócrates,
método de questionar era tão não há acordo sobre a sinceridade de
característico de Sócrates que deu sua profissão de ignorância que (pelo
origem a um gênero literário, os menos no relato de Platão) está por
sôkratiikoi logoi ou “conversas trás dela.
socráticas” (ver Kahn 1996, p. 1-35). O
“método socrático” é derivado desta O problema das doutrinas de
fonte. Sócrates

É fácil imaginar, quando se está Isto nos leva à nossa questão final,
participando ou assistindo a um aquela que, mais do que qualquer
exame socrático, que Sócrates deve outra, deu origem ao problema
conhecer as respostas das questões socrático. Por mais que saibamos
que faz. Aqui novamente há acerca da vida de Sócrates, seu
desacordo entre as fontes. O Sócrates caráter, seus interesses e seu método,
de Platão insiste reiteradamente que os estudiosos ficarão insatisfeitos, a

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menos que possam determinar quais com os outros, purificando suas almas
– se há alguma – doutrinas filosóficas de modo a estarem prontos para
Sócrates manteve. Aqui novamente, receber o conhecimento (230b-d). A
nossas fontes divergem; mais ainda, descrição que o estrangeiro de Eleia
há conflito internamente à nossa faz é um resumo preciso da atividade
fonte mais significativa, Platão. Nossa de Sócrates tal como descrita nos
incapacidade em responder a esta diálogos primeiros “socráticos”. Nem
questão a respeito da doutrina – vou o estrangeiro de Eleia nem nenhuma
argumentar – deriva desse conflito. outra personagem diz que a pessoa
De nossas fontes, Platão nos oferece assim descrita é Sócrates, mas
o retrato filosoficamente mais rico de dificilmente poderia ser outra.
Sócrates. Não somente nos primeiros Sócrates, neste relato, não é o
diálogos, mas também nas obras proponente de uma doutrina, mas
médias e tardias, Platão retoma alguém que examina as posições dos
sempre e sempre à questão da outros. Se ele tem suas próprias
importância filosófica de Sócrates. crenças, elas não estão em questão,
Três dos retratos platônicos mais pois seu interesse está inteiramente
significativos sobre Sócrates ocorrem ligado à purificação dos outros. Se há
em diálogos geralmente não uma verdade filosófica a ser
considerados pelos estudiosos como aprendida, o Sócrates aqui se limita a
socráticos. preparar o terreno para ela.

O primeiro retrato que vou A grande vantagem deste retrato


considerar ocorre no Sofista, um é que ele é largamente fiel ao método
diálogo tardio. Em uma série de dos diálogos socráticos, se não a todo
tentativas de definir a natureza do o seu conteúdo. Se as doutrinas
sofista, uma personagem nomeada “o socráticas emergem nestes diálogos,
estrangeiro de Eleia” por fim sugere elas o fazem indiretamente, no
que um sofista é alguém que passa contexto do exame de Sócrates das
em exame seus interlocutores no outras pessoas. Uma segunda
intuito de remover deles a falsa vantagem é que dá sentido a um fato
crença que sabem de algo do qual, na histórico relativo aos discípulos de
verdade são ignorantes. Sua intenção Sócrates. Sócrates, como notamos
é fazer com os interlocutores fiquem anteriormente, estava circundado por
irritados com eles próprios e brandos vários filósofos que tinham posições

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muito diferentes. Aristipo propunha a explicação melhor, nesta perspectiva,


tese de que o prazer é o bem e foi o é a que Platão põe na boca de
fundador da escola cirenaica de Sócrates no Teeteto (149a-151d). De
filosofia. A filosofia de Antístenes era acordo com esta história, Sócrates é
o oposto polar da de Aristipo. Símias um parteiro intelectual, ao modo de
e Cebes eram pitagóricos; Euclides sua mãe Fenarete. Ele próprio é
era conhecido por conta de algumas infértil: “a crítica que me é
doutrinas lógicas pouco usuais. Havia comumente feita é que estou sempre
então Platão, com suas posições questionando outras pessoas, mas
construtivas bem demarcadas. Se nunca exprimo minhas próprias
Sócrates não expunha doutrinas, mas posições sobre nada porque não há
somente questionava os outros, é nada em mim”, diz ele, “e isso é bem
fácil entender como uma tal verdadeiro” (150c4-7). A despeito de
variedade de pensadores puderam sua infertilidade, Sócrates pode
decidir associar-se a ele e como eles auxiliar seus companheiros a darem
poderiam ter pensado que suas nascimento a suas ideias. Algumas
respostas às questões postas por ele delas são puro vento; não passam
eram as que teria aprovado. Se o pelo crivo de um exame. De outro
Sócrates histórico possuía e ensinava lado, alguns de seus companheiros
doutrinas positivas, fica menos fácil “descobrem dentro de si uma pletora
entender como pôde ter surgido tal de belas coisas, que eles trazem à luz”
constelação de discípulos. (150d7-8). Sócrates se queixa que
alguns que têm suas ideias expostas
Uma desvantagem do retrato de como puro vento ficam “literalmente
Sócrates como um dialético prontos a morder quando extraio
puramente crítico é que não explica alguma ideia insensata deles” (151c6-
muito bem sua atração exercida sobre 7). Eles não compreendem que sua
jovens como Xenofonte, que não motivação é benevolente. De outro
buscavam em Sócrates instrução lado,
filosófica, mas aconselhamento
prático, conselho sobre como tornar- Com aqueles que se tornam meus
se kalos k’agathos. Para tais jovens, a companheiros é diferente. No início,
alguns podem dar a impressão que são
repetição sem fim da técnica socrática ignorantes e estúpidos, mas, com o
de enrolar seus interlocutores em nós passar do tempo e continuando a me
teria logo perdido seu charme. Uma seguir, todos aqueles que o Deus

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permite fazem progressos – um questionamento de Sócrates, que é


progresso que é surpreendente para essencialmente crítico, pode fazer
outras pessoas e para eles próprios.
Contudo, é evidente que isso não é emergir a verdade da alma de outra
devido a nada que tenham aprendido pessoa. Outro problema é que quase
de mim. (Tht. 150d2-7) não vemos este processo em
operação nos diálogos de Platão. Os
A analogia com a parteira provê interlocutores nos primeiros diálogos,
uma explicação que a passagem do com exceção do escravo no Mênon,
Sofista não faz. Ela explica por que nunca produzem uma concepção que
algumas pessoas teriam de decidir ser sobreviva à crítica de Sócrates e,
companheiros de Sócrates por um quando vemos serem introduzidas
longo período de suas vidas. Sob sua posições filosóficas construtivas, elas
conduta, dão nascimento “a uma parecem todas provir de Sócrates.
pletora de belas coisas” (d7-8) que
descobriram dentro de si próprios. A Apesar da dificuldade de conciliar
linguagem da analogia com a parteira a analogia com a parteira com os
faz lembrar a doutrina da diálogos platônicos, ela forma, junto
reminiscência no Mênon. Nesta obra, com a descrição do “nobre sofista” no
Sócrates sustenta que todos temos a Sofista, um retrato consistente e
verdade dentro de nós mesmos e que altamente atraente do Sócrates
esta verdade pode vir à luz por meio histórico. Ambos os relatos mostram
de seu questionamento crítico (ver o um Sócrates que não dispõe de
capítulo Platão e a Reminiscência). doutrinas filosóficas, mas somente de
um método. Embora este método seja
O Teeteto mantém a visão da crítico em seu procedimento e seja
verdade latente dentro da alma, mas concebido para tornar as pessoas
com a seguinte variação: nem todos conscientes de sua própria ignorância,
estão “grávidos” da verdade. Alguns de acordo com a analogia com a
que o procuram não o estão e ele os parteira ele leva ao descobrimento de
envia a outros professores (151b). crenças verdadeiras, e mesmo de
Mais importante ainda, o próprio sabedoria, na alma de seus
Sócrates é infértil: ele não tem companheiros. Quando aplicamos
conhecimento em sua alma. Um esta analogia ao próprio Platão,
problema com essa analogia é que obtemos a seguinte análise: o método
não é claro exatamente como o refutativo dos primeiros diálogos é a

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contribuição de Sócrates, mas as leitores de Platão e Xenofonte têm,


doutrinas filosóficas positivas que inclusive eu: que sua atração única
podem ser ai encontradas, assim não deve ser explicada em termos de
como nos diálogos posteriores, suas doutrinas, mas em termos de seu
constituem a contribuição de Platão caráter e de seu espírito de pesquisa
(ver o capítulo O Método da Dialética que ele inquestionavelmente
de Platão). É Platão e não Sócrates manifestava. Ele mostra o que está
quem é responsável pela explicação errado com todas as tentativas, das
da natureza e da imortalidade da alma mais antigas às mais recentes, de
encontrada no Górgias e no Mênon, encartar Sócrates na forma
pela teoria que a virtude é “doxográfíca” da história da filosofia,
conhecimento, pela doutrina das a qual entende os filósofos em termos
formas (não separadas) que aparece de suas teorias.
no Eutifro e no Mênon e pela teoria da
obrigação moral e política encontrada Por que, então, não devemos
no Críton. Talvez se pudesse simplesmente declarar que o Sócrates
argumentar que, com a analogia com histórico foi encontrado, e
a parteira, Platão nos dá uma chave encontrado em seu autorretrato em
para a correta interpretação de seus nossa fonte antiga de maior
diálogos (ver Sedley, 2004, p. 37). autoridade, Platão? O problema é que
Platão nos dá um outro retrato, que é
Como disse, acho esse quadro abertamente inconsistente com este
uma explicação muito atraente do primeiro. De acordo com este outro
Sócrates histórico. Ele se acopla ao retrato, Sócrates é qualquer coisa
quadro do Sofista ao mesmo tempo salvo infértil. O retrato é feito por
em que vai além dele e oferece uma Alcibíades no Banquete e é um retrato
explicação do lado positivo da tão vivido e convincente como os
filosofia socrática. Explica este lado outros retratos que vimos. Tendo
positivo e a atração exercida por chegado atrasado na festa de Agatão
Sócrates em seus discípulos sem lhe e bastante embriagado, é pedido a
atribuir nenhuma teoria filosófica. Ele Alcibíades que faça o elogio de
nos mostra um Sócrates cujos Sócrates. Ele começa comparando
discípulos eram filosóficos com as Sócrates a um Sileno – a estátua de
mais divergentes posições. Ele um sátiro que, quando aberta, revela
fortalece uma intuição que muitos ter dentro imagens de deuses (215a-

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b). O significado da analogia com encômio:


Sileno é que a aparência externa de
Sócrates contrasta fortemente com a Até mesmo suas ideias e argumentos
são como as estátuas ocas de Sileno.
que existe dentro dele:
Se você escutar seus argumentos, no
início eles lhe darão a impressão de
Para começar, ele é louco por belos
serem totalmente ridículos; estão
garotos; ele os persegue revestidos de roupas tão rudes como
constantemente, perpetuamente as de pele usadas pelos sátiros mais
atordoado. Ele também gosta de dizer vulgares. Ele está sempre às voltas
que é ignorante e que não conhece com burros de carga, ferreiros,
nada. Não é isso exatamente como sapateiros ou coureiros; está sempre
Sileno? Claro que é! Mas tudo isso está
fazendo os mesmos surrados pontos
na superfície, como no exterior das
com as mesmas palavras surradas. Se
estátuas de Sileno. Pergunto-me,
você é bobo ou simplesmente não está
meus companheiros de copo, se vocês acostumado com eles, vai ser difícil
têm alguma ideia de quão sóbrio e não rir de seus argumentos. Porém, se
moderado ele se mostra quando visto os vir quando se abrem como as
do interior... Em público, digo a vocês, estátuas, se você for além da
toda a sua vida é um grande jogo – um
superfície, se dará conta que nenhum
jogo de ironia. Não sei se algum de outro argumento faz sentido. São
vocês já o viu quando está realmente
realmente dignos de um deus, repletos
sério. Uma vez o peguei quando estava de imagens de virtude dentro deles.
aberto como uma estátua de Sileno e São de grande – não, da maior
tive um vislumbre das imagens que ele importância para quem quiser se
guarda escondidas dentro de si; eram tornar verdadeiramente um homem
tão divinas – tão brilhantes e belas,
bom. (Smp. 221d7-222a6)
totalmente fascinantes – que não tive
outra alternativa: tinha somente de
fazer o que ele me dizia. (Smp. 216d2, A analogia com Sileno de
216e-217a2) Alcibíades é uma obra-prima da
descrição do poder de Sócrates, assim
Depois de uma longa e cômica como o era a analogia com a parteira.
descrição de suas tentativas Ela explica por que Sócrates pode
frustradas de seduzir Sócrates, aparecer como uma personagem
combinadas com histórias da digna de tratamento cômico e por
coragem de Sócrates nos campos de que pode ser desconsiderado por
batalha e de um seus lendários interlocutores de módica inteligência.
estados de transe, Alcibíades retoma Ela explica seu confesso interesse
a analogia com Sileno ao final de seu erótico em belos garotos

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adolescentes e ao mesmo tempo sua Sócrates parece ser estéril porque ele
profissão de ignorância, assim como encobre sua fertilidade com uma
casos de ironia (ver o capítulo A máscara de ironia.
Ignorância Socrática). Não tão longe a
ponto de apresentar Sócrates como o Não vejo como resolver este
proponente de doutrinas filosóficas, conflito. Talvez se pudesse
mas diz que ele contém dentro de si argumentar que as duas analogias são
argumentos divinos, de raríssima compatíveis, no sentido em que
sensatez, que são construtivos para o nenhuma nos obriga a atribuir teorias
caráter: conduzem a pessoa ao filosóficas particulares a Sócrates.
verdadeiro bem. “Se você olhar para Tudo o que a analogia com Sileno
dentro dos argumentos de Sócrates”, requer, alguém poderia dizer, é que
diz Alcibíades, “você os verá repletos Sócrates possua argumentos que
de imagens de virtude” e o mesmo é podem ser usados para testar ideias
verdade se você olhar para dentro do filosóficas avançadas por outros.
próprio Sócrates. Assim, a riqueza destes argumentos
reside unicamente no poder que têm
A analogia com a parteira e a com de levar o interlocutor à verdade.
Sileno são poderosas e convincentes, Infelizmente, penso que esta
além de serem encontradas em nossa tentativa malogra. Ela ignora o fato
fonte de maior autoridade sobre o que a analogia com a parteira deve
Sócrates histórico. Porém, não tomar a profissão de Sócrates de
poderiam ser mais inconciliáveis. Uma ignorância como sincera, ao passo que
nos diz que Sócrates é infértil, que faz a analogia com Sileno exige que a
emergir nos outros verdades que ele tomemos como irônica. Também
não possui. A outra nos diz que ele requer o fato que, de acordo com
está repleto de argumentos divinos e Alcibíades, Sócrates, assim como suas
imagens de virtude de um modo que ideias e argumentos, está repleto de
é único entre os homens. Cada imagens divinas de virtude.
imagem explica a característica
central da outra como um tipo de Estamos diante de um “problema
ilusão: de acordo com a analogia com socrático” ao final, porque Platão nos
a parteira, Sócrates parece ser fértil legou duas imagens irreconciliáveis da
porque faz surgir rebentos nos outros; filosofia de Sócrates, imagens que
de acordo com a analogia com Sileno, nossas fontes não nos permitem

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harmonizar. É possível que o Sócrates quais doutrinas filosóficas o Sócrates


histórico fosse o que a analogia com a histórico sustentou, pois, antes de
parteira nos diz que era: um expositor podermos responder a esta questão,
infértil da ignorância humana cujos devemos poder dizer, pelo menos
seguidores, contudo, progrediam em com um alto grau de plausibilidade,
direção à descoberta de verdades que ele sustentou doutrinas. E isso,
filosóficas. É também possível que por causa do conflito entre as
fosse o que a analogia com Sileno nos analogias com a parteira e com Sileno,
diz que era: um irônico contendo não estamos em posição de afirmar.
dentro de si argumentos construtivos
de rara potência e imagens de virtude. Nota
É finalmente possível que fosse uma
mistura inconsistente e paradoxal de As traduções de Platão foram retiradas de J.
M. Cooper (ed.) Plato: Complete Works
ambas (ver o capítulo Os Paradoxos
(Indianápolis: Hackett, 1997).
Socráticos). Não estamos em condição
de resolver este conflito. Nem, Referências e leitura complementar
aparentemente, estavam os
intérpretes antigos de Platão. A Bumet, J. (1912). Introduction. In Plato’s
Academia cética, sob a liderança de Phaedo (pp. ix-lix). Oxford: Clarendon Press.
Carneades e de Arcesilau, tomou o Guthrie, W. K. C. (1971). Sócrates. Cambridge:
Sócrates infértil como seu modelo Cambridge University Press.
filosófico. A Academia Média e os Kahn, C. (1996). Plato and the Socratic
intérpretes neoplatônicos de Platão Dialogue. Cambridge: Cambridge University
viram Sócrates como o filósofo Press.
construtivo descrito por Alcibíades. ______(2002). On Platonic chronology. In J.
Nossa incapacidade de resolver este Annas and C. Rowe (eds.) New Perspectives on
conflito não deve de modo algum Plato, Modem and Ancient (pp. 93-127).
solapar a confiança que temos em Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
nosso conhecimento da vida de Lacey, A. R. (1971). Our knowledge of
Sócrates, de seu caráter e de seus Sócrates. In G. Vlastos (ed.) The Philosophy of
Sócrates (pp. 22-49). Garden City, NY:
interesses filosóficos e método, como
Doubleday.
foi delineado na primeira parte deste
texto. Deve, todavia, dar uma pausa a Patzer, A (1987). Der Historische Sokrates.
Darmstadt: Wissenschaftliche
todos os intérpretes que estão Buchgesellschaft.
ansiosos para nos dizer exatamente

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Prior, W J. (1996). Sócrates: Critical


Assessments (4 vols.), vol. 1. London and New
York: Routledge.
Sedley, D. (2004). The Midwife of Platonism.
Oxford: Clarendon Press.
Vlastos, G. (1971a). The paradox of Sócrates.
In G. Vlastos (ed.) The Philosophy of Sócrates
(pp. 1-21). Garden City, NY: Doubleday.
______(ed.) (1971b). The Philosophy of
Sócrates. Garden City, NY: Doubleday.
(1991). Sócrates: Ironist and Moral
Philosopher. Ithaca, NY: Cornell University
Press; Cambridge: Cambridge University
Press.

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Parte I
O MÉTODO
PLATÔNICO E A
FORMA DE DIÁLOGO

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4. A forma e os diálogos mundo. O Mênon refere-se ao


encontro no Górgias e inicia sem
platônicos preâmbulo com um debate entre
Sócrates e Mênon – ele próprio um
MARY MARGARETH MCCABE seguidor de Górgias – sobre a
possibilidade de se ensinar a virtude.
Platão escreveu diálogos. Na verdade, No Eutifro, Sócrates e Eutifro
das obras que nos foram transmitidas, encontram-se bem em frente ao
quase todas dependem, de um modo tribunal, cada um indo para lá: Eutifro
ou de outro, da forma de diálogo. para dar entrada em um processo de
Contudo, pode bem ser o caso que impiedade contra seu pai; Sócrates,
não exista algo como uma única forma para defender-se contra a acusação
de diálogo; ao contrário, Platão usa o de corromper a juventude. O Críton se
diálogo em uma multiplicidade de passa na prisão depois de Sócrates ter
modos. Por que faz isso – inclusive nas sido condenado à morte;
ocasiões em que parece ser menos
bem-sucedido? Qual a relação – se há Sócrates e Críton discutem se ele
alguma – que a forma dos diálogos deveria tentar escapar antes que a
tem com seus objetivos filosóficos? sentença seja levada a termo. O
Crátilo e o Filebo começam ambos no
Discussões diretas meio de um debate acalorado. O
Fedro descreve um encontro entre
Muitos diálogos são discussões Sócrates e Fedro a beira de um regato,
diretas ocorridas em cenários quando debatem sobre o amor, sobre
detalhadamente descritos. No a retórica, sobre a escrita e sobre a
Górgias, Sócrates e Querefonte, vindo alma. (Hípias Maior, Hípias Menor,
do mercado, encontram Cálicles, que Laques, Menexeno, Íon e Alcibíades
acabara de escutar a apresentação são igualmente diretos.)
retórica feita por Górgias.
Desenvolve-se uma discussão em três Estes encontros fazem-se sob a
partes entre Sócrates e Górgias, forma de drama e seu protagonista é
depois entre Sócrates e Pólo e, Sócrates. Porém, o Sofista e o Político
finalmente, entre Sócrates e Cálicles; descrevem uma ocasião em que
o diálogo termina com um grande Sócrates encontrou um estrangeiro de
mito do destino da alma no outro Eleia. Este estrangeiro tem o papel

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condutor e seu interlocutor é, em ex., no sofistico Dissoi Logoi,


cada caso, um jovem e solícito “Argumentos Duplos”, parodiado nas
companheiro de Sócrates. Nuvem de Aristófanes). Platão pode
Similarmente, o papel central do se ter servido instrumentalmente dos
Timeu pertence não a Sócrates, mas diálogos, um modo de apresentar o
ao cosmologista Timeu; o Crítias é um argumento em um formato
discurso de Crítias sobre a história de dramático, apropriado aos
Atlântida. O diálogo As Leis deixa atenienses, entusiastas do teatro.
Sócrates totalmente de lado: é uma Assim, talvez a forma de diálogo seja
conversa entre Clínias, Megilo e o meramente o resultado de forças
Estrangeiro de Atenas, que toma a culturais e, como tal, somente uma
posição de protagonista. matriz na qual são postos alguns
argumentos filosóficos. Seu
À medida que Sócrates vai para propósito, nesta perspectiva, seria o
trás da cena, os próprios diálogos de acalentar o leitor, o de tornar
parecem perder seu caráter aceitável o argumento abstrato, o de
dramático. Eles foram escritos, como aplacar a aridez do discurso filosófico
muitos pensam, na parte final da puro (o que quer que isso seja).
carreira de Platão; talvez a forma de
diálogo se tenha tornado banal. No Esta explicação da relação entre
início, talvez Platão tenha somente filosofia e o modo como é escrita
seguido o exemplo de outros: parece sugere que não há uma função
ter havido uma indústria de escrever filosófica direta da forma de diálogo.
diálogos socráticos no período Porém, a caracterização da forma
seguinte à morte de Sócrates. Ou como correspondendo a um gênero
talvez ele tenha seguido uma tradição (“literário”, “oratório” e assim por
bem diversa, influenciado, sem diante) e do argumento como
dúvida, pelas instituições correspondendo a outro gênero
democráticas da Atenas clássica: a (“filosófico”, “lógico” e assim por
apresentação do pensamento diante) é tendenciosa. Mais ainda,
abstrato alterou-se de um verso parece empurrar Platão para sua
trabalhoso (à moda de Parmênides) própria armadilha, pois Sócrates
ou puro aforismo (à moda de frequentemente ataca a retórica por
Heráclito) em direção a uma substituir a razão em troca de
argumentação com adversários (p. acalanto e persuasão (Grg. 453al-

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461al). Se a forma de um diálogo visa frequentemente tomado como o


a persuadir, quando seus argumentos magnum opus de Platão, seu relato de
se dirigem à razão, toma a forma de muito daquilo tudo para o qual teria
diálogo a parte inaceitável do orador? dirigido sua atenção filosófica.
Toma ela o lado errado na antiga
disputa entre poesia e filosofia (R. Porém, por vezes esta suposição
607b5)? é atacada, na medida em que somos
forçados a reconhecer o modo como
Quadros e encartes o diálogo está composto e a prestar
atenção de modo crítico ao papel
Não tão rápido, porém, pois o uso que exato de Sócrates. Considere um
Platão faz da forma do diálogo é incidente no Protágoras. A maior
menos uniforme do que os exemplos parte do diálogo é narrada por
anteriores podem sugerir – menos Sócrates a um amigo não nomeado. O
uniforme e composto em modos ricos amigo lhe pede para descrever seu
e ressonantes. Considere um grupo encontro na véspera com o grande
diferente de diálogos, cujo cenário é sofista Protágoras. Sócrates aceita
mais complexo do que o anterior. prontamente e conta todo o
demorado encontro. Protágoras
Cinco diálogos (Carmides, Lísis, revela-se um interlocutor manhoso,
Protágoras, Eutidemo e República) relutante a abandonar seu hábito de
são narrados pelo próprio Sócrates; o fazer grandes discursos e comentários
diálogo é a história que ele conta. detalhistas. Sócrates, porém, insiste
Aqui, portanto, um dos protagonistas em uma discussão pautada por
(Sócrates) fala de suas próprias questões e respostas curtas.
contribuições na primeira pessoa. O Protágoras, notável por sua
engajamento com os interlocutores habilidade em dar respostas curtas
parece ainda mais imediato – e as (329b 1-5), aceita a condição de
posições de Sócrates parecem Sócrates, mas logo após recai em
privilegiadas em relação às das outras verborreia. Sócrates reclama:
personagens. Isso poderia tentar-nos
a supor que Sócrates representa Protágoras, tendo a ser um tipo de
Platão; por vezes é fácil supor que o pessoa que tem pouca memória e, se
alguém me fala longamente, tendo a
“eu” na República designa o próprio esquecer o assunto de sua fala. Agora,
autor, neste diálogo que é se eu tivesse dificuldade em escutar e

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você fosse conversar comigo, você como Sócrates. O que, então, fazer
pensaria que seria vantajoso falar mais com a rara referência ao próprio
alto para mim do que para os outros.
De mesmo modo, já que você tombou Platão, no início, quando Fédon,
com uma pessoa que tem pouca recontando a história ao seu amigo
memória, você terá de dar respostas Equecrates, lista os que estavam
curtas se eu devo seguir seu raciocínio. presentes? Muitos socráticos
(Prt. 334c8-d5; tradução de Lombardo eminentes são nomeados – então
e Bell)
Fédon diz: “mas Platão, penso, estava
doente” (59bl0). Ficamos
A observação de Sócrates vem ao
boquiabertos: se Platão estava
final de uma série de pontos acerca do
doente, como devemos tomar este
método e do procedimento, mas sua
relato do que ocorreu? Mas isso é
natureza extraordinária não nos deve
uma história premeditada, uma
passar despercebida: como poderia
elaboração, mesmo uma ficção, não
Sócrates, que pode nos dar um relato
um conjunto de minutas do encontro
aparentemente verbatim do inteiro
na prisão. E isso torna problemática a
encontro, alegar que tem pouca
relação de Platão com Sócrates se,
memória? Há por certo ironia aqui –
diferentemente dos outros socráticos,
mas por quê? A má concatenação
ele não escutou os argumentos finais
entre o relato de Sócrates sobre ele
de seu mestre. É a relação mais
próprio e sua habilidade em narrar a
complexa, menos direta, menos fácil a
história toda chama a atenção a como
ler do que a reprodução de doutrinas
o diálogo está sendo armado: por
escutadas da boca de seu mestre?
quê?
Uma outra característica do drama do
Fédon reitera a questão. O “quadro”
Outros diálogos são
do diálogo é o encontro direto entre
autoconscientes de modo similar.
Fédon e Equecrates, para quem Fédon
Pode-se tomar o Fédon como uma
narra os eventos na prisão. Porém,
tragédia, um relato emocionante do
por duas vezes o quadro interfere na
último dia de Sócrates, de seus
narração. Na primeira vez (88c8-
argumentos sobre a imortalidade da
89a9), o quadro reflete sobre o
alma e da devastação de seus amigos
argumento encartado, quando
no momento de sua morte. O diálogo
Equecrates comenta que ficou
tem um ar pietista e isso de novo pode
convencido por uma objeção à tese de
sugerir que Platão vê a si mesmo
Sócrates que a alma é imortal. Na

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segunda (102a3-bl), depois de uma argumento quanto ao próprio fato


passagem cheia de voltas (e que a discussão é narrada. Há nisto
ardorosamente disputada), um objetivo filosófico?
Equecrates subitamente se declara
satisfeito pela completa clareza do Ficção e relato
argumento de Sócrates. Bom para
Equecrates: porém, os leitores de Considere três casos mais
Platão podem ser menos otimistas – e complicados: Teeteto, Banquete e
a própria interrupção nos surpreende: Parmênides. O Teeteto é um diálogo
por que o quadro subitamente entre Euclides e Térpsion, antevendo
intervém nestes exatos momentos? a morte de Teeteto, ferido em
batalha. Euclides menciona o
As interrupções certamente encontro ocorrido há anos entre
chamam a atenção não somente a Teeteto, então jovem, e Sócrates logo
pontos individuais no argumento, mas antes de sua morte. O próprio
também ao modo no qual o diálogo Euclides não estava presente naquela
está escrito. O mesmo efeito ocorre ocasião, mas Sócrates lhe falou dela.
no Eutidemo, de novo um diálogo no Euclides confessa que, porque ele não
interior de um quadro externo. é capaz de reproduzir de cor a história
Sócrates conta a Críton um encontro de Sócrates (ao contrário de Sócrates,
que tivera na véspera com os irmãos então), ele tem um relato escrito, cuja
sofistas Eutidemo e Dionisodoro precisão ele confirmou com Sócrates.
(Críton estava presente, mas não Ele pôs a conversa em discurso direto
conseguiu escutar o que era dito). de modo a evitar acréscimos do tipo
Aqui, de novo, o quadro irrompe na “e então ele disse” e similares. Esta
discussão narrada (290el), assim que introdução extremamente detalhista
Críton comenta com incredulidade o põe em evidência não somente a
relato de Sócrates de como está reivindicação do diálogo de ser
procedendo o argumento encartado. verídico (Euclides se preocupa muito
Doravante o argumento é com a precisão de seu relato), mas
desenvolvido por um momento no também seu caráter ficcional, ao
quadro como uma discussão direta enfatizar a distância do leitor em
entre Sócrates e Críton. Mais uma vez, relação à ação.
a interrupção chama a atenção tanto
ao momento particular no próprio Compare com o início do

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Banquete e com o do Parmênides, ocorre quando uma história passa de


ambos os quais inserem o diálogo uma pessoa a outra, a não ser
central em uma narrativa detalhista. distorção, exagero e perda de
No Banquete, a história é contada por detalhes vitais?
Apolodoro a um ouvinte não
nomeado, no dia seguinte ao que a Em todos esses casos, se guarda
contou a Gláucon (que havia ouvido a história à distância; sua precisão e
falar dela por Fênix). Apolodoro a seu ponto estão sujeitos à dúvida.
escutou de Aristodemo, que havia Como consequência, a relação entre o
acompanhado Sócrates no banquete quadro e o que é encartado se torna
na casa de Agatão; como Euclides, cada vez mais problemática.
Apolodoro verificou depois os Surpreende ainda mais, então, que,
detalhes com Sócrates. O Parmênides quando cada um destes diálogos
é narrado por Céfalo (a um ouvinte termina, o quadro exterior tenha
não especificado – o leitor?), que foi a desaparecido. O Teeteto termina de
Atenas expressamente para saber a modo inquietante, pois Sócrates vai
respeito do encontro entre Sócrates e ver as acusações que o levarão à
os grandes filósofos eleatas, morte: o que se coaduna de modo
Parmênides e Zenão. Céfalo pergunta revelador com a morte iminente, no
a Adimanto e a Gláucon por quadro, de Teeteto, o promissor
Antifonte, meio-irmão deles, que jovem matemático que se assemelha
aparentemente escutou a história (e a a Sócrates. O Banquete se conclui
aprendeu de cor) de Pitodoro, um quando Sócrates fala para ninguém
amigo de Zenão. Eles vão em busca de mais da festa: eles estão dormindo e
Antifonte, que por fim relata a Sócrates vai embora para suas
história que Pitodoro lhe contara. Em ocupações usuais. O Parmênides –
ambos os diálogos parece que talvez o mais surpreendente de todos
escutamos uma história que está bem – conclui uma densa discussão entre
atestada: repetida, verificada, Parmênides e um jovem (que se
aprendida de cor – embora chama por acaso Aristóteles) com
enfaticamente distanciada de nós por uma contradição:
uma cadeia de narradores. Porém, a
narrativa também tem o efeito Parece que, que o um seja ou não seja,
tanto ele quanto os outros são e não
inverso, pois nos faz hesitar a respeito
são e parecem ser e não ser todo tipo
da verdade do relato. Afinal, o que

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de coisas em todos os modos, com pretendentes ao conhecimento:


respeito a eles próprios e um com o homens políticos (que mostraram que
outro. (JPrm 166c2-5)
nada sabiam), poetas (inspirados ao
dizer a verdade, mas incapazes de a
A isso, surpreendentemente,
explicar) e artesãos (que têm
Aristóteles responde: “pura verdade”.
conhecimento especializado, mas não
Devemos tomar isso como a
conseguem ver suas limitações). Ao
conclusão? E, se essa é a conclusão,
fazer questões a eles, Sócrates pedia
como Parmênides e Aristóteles nos
aos pretendentes para explicar suas
permitem alcançá-la? Como Sócrates,
reivindicações ao conhecimento e em
que está ali sentado, permite que isso
cada caso eles se mostraram
ocorra? Nenhum dos narradores viu
incapazes de dar uma explicação do
isso?
que se supunha que conheciam. Esta
incapacidade de dar uma explicação
Sócrates a propósito de questão e
constituía, aos olhos de Sócrates, um
resposta
fracasso de conhecimento, de modo
Se é difícil estabelecer a relação entre que suas pretensões a serem sábios
o quadro e o encartado, o que dizer fracassavam também. Sócrates
dos próprios diálogos encartados? concluiu que ele era de fato mais
Sócrates explica por que adota o sábio porque somente ele
diálogo no discurso que fez compreendeu que não era sábio.
supostamente em sua própria defesa,
Os pretendentes eram
a Apologia. Ele descreve aos jurados
questionados de modo a dar uma
como obteve a reputação de
explicação do que conheciam e o
sabedoria em Atenas e como as
fracasso deles ficava demonstrado
acusações vieram a ser feitas contra
pelo processo de questão e resposta
ele. Seu amigo Querefonte foi ao
com Sócrates. Sócrates toma o
oráculo de Delfos perguntar se havia
perguntar e responder a questões
alguém mais sábio que Sócrates. O
como de algum modo central à
oráculo respondeu que não havia;
explicação, ao conhecimento e à
Sócrates, ao ouvir este resultado,
sabedoria. Assim, a meio caminho de
ficou intrigado e buscou descobrir o
sua defesa (24c9), ele se imagina
que o oráculo queria dizer (21b3-9).
tendo uma conversa direta com um
Ele questionou vários grupos de
de seus acusadores – Meleto – e o

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exibe como incapaz de explicar com relação à tese original. Tal, na


coerência o que quer dizer ao acusar verdade, é o método com o qual
Sócrates de corromper a juventude. Sócrates é representado usando em
Há um paralelo entre os modos que muitos diálogos: é um modelo para
Sócrates buscava para examinar os um diálogo escrito. O interlocutor
pretendentes a conhecimento e o sugere uma posição sobre um tópico
diálogo direto que nos é pedido ou outro (frequentemente em
imaginar com seu acusador. Este resposta a uma questão feita por
modo de proceder, por sua vez, é Sócrates: “o que é a coragem?”, “o
reproduzido em outros diálogos, nos que é a piedade?”); Sócrates pede-lhe
quais a sequência de questão e uma explicação e eles procedem por
resposta está conectada a um pedido questão e resposta. Para o
de explicação e nos quais o interlocutor, infelizmente, a
interlocutor em diálogo é visto investigação sobre sua tese
fracassar em satisfazer esta exigência normalmente termina em
(p. ex., Euthphr. Ila5-bl; La. 193el-7) dificuldades e o próprio interlocutor
(vero capítulo Definições Platônicas e cai em embaraço, irritação, acusação
Formas). (p. ex., Chrm. 169c3-dl; Men. 70e7-
80b4; Grg. 505cl-d9). Pode-se ver
Perfeitamente justo: a facilmente como Meleto requererá a
investigação filosófica regularmente pena de morte.
busca a explicação perguntando “por
quê?” Similarmente, a sequência de Se é assim que Sócrates pensava
pensamento representada por uma que a filosofia deveria funcionar,
sequência de questões e respostas talvez Platão se sirva da forma de
pode muito bem estar estruturada diálogo para representar o modo
pela relação de explicação. Se um lado socrático de fazer filosofia. Se, porém,
sustenta uma tese e o outro lado a a forma de diálogo nos revela o
questiona, a resposta estará método socrático em operação, como
conectada à tese original como uma isto explica o Parmênides, no qual
explicação o está àquilo que explica. Sócrates é apresentado como jovem,
Se a explicação malogra (ou é em admiração a Parmênides e Zenão
incompleta), a próxima questão – e em silêncio durante a maior parte
ampliará o pedido por explicação e a da obra? Como explica os diálogos
resposta buscará provê-la, ainda em nos quais Sócrates é substituído por

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outros, como o estrangeiro de Eleia, terminavam. Mênon, ao final de uma


ou nos quais os interlocutores sequência de argumento deste tipo,
reclamam da aridez do método queixa-se que Sócrates anestesia as
socrático (sobretudo em Phlb. 20al- pessoas como uma raia (Men. 80a6).
8)? Como, em suma, explica os muitos Pior: impasse pode ser fatal para
modos nos quais os diálogos não qualquer tipo de progresso filosófico.
retratam uma interrogação concisa? Ele desafia Sócrates a mostrar como,
Ainda, é esse retratar tudo o que de uma posição de ignorância,
ocorre mesmo naqueles diálogos nos podemos investigar alguma coisa e
quais Sócrates de fato parece ser como, mesmo que o possamos,
“socrático”? alcançar o fim da investigação (ver o
capítulo A Ignorância Socrática). O
A aporia socrática paradoxo de Mênon sobre a
investigação pode fornecer o modelo
Em diálogos como o Eutifro, Carmides para dois modos bem diferentes de
e Laques, a discussão normalmente interpretar os modos nos quais os
termina em um impasse diálogos normalmente terminam.
argumentativo, em aporia: o
interlocutor (e frequentemente Se, de um lado, até mesmo
Sócrates também) vê-se Sócrates é incapaz de alcançar um fim
impossibilitado de decidir o que dizer para suas investigações, se seu
ou mesmo o que pensar, e a discussão método produz somente resultados
encontra seu término (ver o capítulo negativos, talvez haja um princípio
Interpretando Platão). E é contagioso: geral segundo o qual investigações só
se um dos interlocutores se vê preso, podem ser negativas. Então, o
frequentemente assim se vê também malogro destes diálogos em ir para
o outro (p. ex., Chrm. 169c3-4); além de um impasse pode implicar
Sócrates corretamente conclui que algum tipo de ceticismo: nada pode
ele também nada sabe. Se esses ser conhecido, talvez, ou que nada
diálogos são concebidos como pode ser demonstrado
representações de Sócrates e de seus definitivamente (ver o capítulo O
modos de fazer filosofia, então esses Elenchus Socrático). Se o ceticismo
impasses parecem essenciais a eles, deste tipo é verdadeiro, não pode ser
precisamente porque é neste ponto ele próprio demonstrado (fazer isso
que suas discussões sempre cai em petição de princípio). Ao invés

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disso, ele só pode ser exemplificado cética, supõe-se também que isso seja
no malogro repetido das passível de generalização: a atividade
investigações filosóficas serem da filosofia está constantemente em
conclusivas. E isso pode ser evolução; inconclusiva, talvez, mas
generalizado: não somente os mesmo assim “a vida que não passa
diálogos “socráticos”, mas também por exame não vale a pena ser vivida”.
outros diálogos também fracassam Isso, assim como a interpretação
em produzir conclusões que sejam cética, repousa sua generalidade no
absolutas ou decisivas. Devemos fato mesmo que os diálogos são
notar – tal interpretação argumenta – multiformes, diferentes, com focos
que cada diálogo, não importa quão que discrepam enormemente uns dos
diferente pode ser um do outro, outros. E trata as questões filosóficas
termina com uma nota de indecisão. discutidas no interior dos diálogos
O Teeteto, por exemplo, depois de como de um modo ou outro
uma investigação exaustiva, malogra secundárias em relação à natureza
em explicar o que é o conhecimento; aberta do fim do processo de as
o Filebo se conclui com o relato discutir. A forma de diálogo, nesta
inacabado da melhor vida; mesmo a interpretação, está no coração da
República assinala seu fracasso em explicação platônica da filosofia.
produzir uma demonstração apelando
ao final ao mito. A forma de diálogo, O paradoxo da escrita
segundo esta interpretação, dá-nos
testemunho de um Platão cético. A natureza aberta do fim nos dá uma
explicação, ademais, de como os
De outro lado, talvez o que é diálogos escritos devem ser lidos. Os
importante seja a própria diálogos, como vimos, não
investigação. Mesmo se o ceticismo reivindicam estar exprimindo as
extremo não for o ponto da forma de opiniões de Platão; ao contrário,
diálogo – afinal de contas, nem tudo exprimem as opiniões das
que é dito ou defendido em um personagens retratadas por Platão. O
diálogo é refutado ou conduzido a um que o leitor deve fazer com tudo isso?
impasse –, a prevalência da aporia A posição do leitor, na verdade, pode
pode sugerir que cada diálogo é de ficar profundamente problemática,
um modo ou de outro “de final não menos porque o que ele lê está
aberto”. Assim como a explicação fixado de modo intratável:

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Você poderia pensar que [as palavras provocar o leitor a pensar por si
escritas] estão falando como se mesmo. Todas as suas características
tivessem alguma compreensão, mas,
se você fez uma questão sobre algo peculiares e incongruências
que foi dito porque você quer ostensivas, então, devem ser
aprender mais, elas continuam a explicadas como armas do arsenal de
significar sempre exatamente a Platão para forçar a reflexão por parte
mesma coisa. Uma vez escrito, todo da pessoa que parece estar
discurso vai por todos os lugares,
atingindo indiscriminadamente os que
completamente fora da ação do
têm entendimento, não menos do que diálogo: aquele que o lê. Se a filosofia
os que não têm nenhum contato com exige discussão e diálogo, a filosofia
o entendimento, e não sabe a quem escrita pode afinal ligar-se a isso de
falar e a quem não falar. E quando é modo indireto – por meio da forma de
criticado e atacado injustamente,
sempre precisa do apoio de seu
diálogo.
gerador: ele sozinho não pode nem
defender-se nem vir em seu próprio Isto explica, então, por que Platão
apoio. (Phdr. 275d7-e5, tradução de não aparece nos diálogos: é para que
Nehamas e Woodruff) possa ganhar distância do que dizem
suas personagens e assim provocar de
As observações de Sócrates são melhor modo um diálogo com seu
paradoxais, obviamente, já que o leitor. Pode até explicar, como foi
ataque à palavra escrita é ele próprio sugerido, aquelas obras nas quais a
escrito em palavras. Porém, muitos forma de diálogo parece se ter
pensaram que o embaraço a respeito tornado uma formalidade vazia.
da escrita presta apoio às estratégias Platão pode fazer com que um diálogo
do autor Platão, à natureza proponha uma tese, mesmo uma tese
enigmática dos argumentos, aos que tem plausibilidade, quando o
encontros e às conclusões que Platão diálogo não ocorre mais (a explicação
apresenta, pois os diálogos, por mais da falsidade no Sofista, por exemplo),
complexos que sejam, exigem sem se comprometer absolutamente
reiteradamente uma interpretação; com sua verdade, sem declarar em
esta forma (esta forma somente?) sua própria voz que sabe que isso é
pode ser suficientemente flexível de verdadeiro. Esta distância que Platão
modo a proporcionar um embate toma das teses defendidas por suas
dialético com seus leitores. Assim, os personagens (lembre-se: no Fédon,
diálogos são inconclusos de modo a Platão estava doente) se ajusta bem

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com o fato de planejar os diálogos renega ele realmente a autoridade? E


com vistas a fazer o leitor pensar por mesmo se o faz, a ideia seguinte que
si próprio e pode salvar obras como o o diálogo tem um fim em aberto
Sofista ou o Político da acusação que explica por que há uma relação
Platão está simplesmente perdendo complexa entre o cenário do diálogo e
sua veia. seu conteúdo?

Mesmo assim, a tese geral que os Drama e a dimensão ética


diálogos têm um fim aberto somente
para provocar ou a tese mais No drama dos diálogos, as
específica que eles criam uma personalidades e os destinos de
distância entre seu autor e suas Sócrates e seus companheiros
conclusões explicam suficientemente ganham vida. Algumas são
a forma de diálogo? Explica o detalhe personagens de comédia – Pródico
intricado dos diálogos ou as emergindo dos lençóis (Prt. 316al-2);
diferenças evidentes na Aristófanes soluçando (Smp. 185c5-
apresentação? Até mesmo a negação 7); a chanchada erótica dos
de autoridade esmaece por vezes. admiradores de Carmides (.Chrm.
Considere, por exemplo, as primeiras 155cl-4). Algumas são personagens de
palavras da República: Sócrates diz tragédia: o julgamento e a morte de
que “desci ontem ao Pireu”. Banal, é Sócrates paira sobre muitos diálogos
claro, e dificilmente causa surpresa, (Apologia, Críton, Fédon, obviamente,
em uma primeira leitura. Porém, se mas também Eutifro, Mênon e
lermos e relermos a República – como mesmo Teeteto); o dúbio Alcibíades;
Platão estava certo em esperar –, nos Teeteto, o talento matemático que
damos conta que a história da descida morre cedo demais. O próprio
é pesadamente significativa. Com Sócrates sugere que há somente uma
efeito, são os filósofos que, tendo tênue distinção entre tragédia e
visto a verdade iluminada pelo bem, comédia (Smp. 223d3-5) e os diálogos
voltam à cidade e governam. Se lhe dão apoio. Estas personagens são
Sócrates está descendo (e se, na retratadas de modo vivido levando
continuação, ele se mostra cheio de um tipo de vida, trivializadas pela
convicções, embora sejam teses que busca de vitória no argumento (os
não podem ser inteiramente irmãos sofistas Eutidemo e
transmitidas aos seus companheiros), Dionisodoro da Eutidemo) ou pela

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atração irrefletida do prazer (Filebo), Isso redunda em uma tese


ou tornadas pensativas, como filosófica forte: o que poderíamos
Sócrates o é, pela filosofia. Se chamar “racionalismo ético”. Nesta
Sócrates estiver correto, é o exame perspectiva, o modo como alguém
representado nos diálogos que vive e sua personagem estão
transcende tragédia e comédia. O diretamente conectados às teses que
ponto, então, dos diálogos talvez seja esta pessoa de fato avança no
o de mostrar a infinita variedade de argumento, mesmo que estas teses se
personagens e o espectro de suas mostrem como não dando apoio à
diferentes respostas à filosofia, o de vida em questão. Esta conexão será
mostrar que a vida que não passa por total. Se a forma de diálogo
um exame não vale a pena ser vivida. representa esta personagem assim e
assado e como envolvida em um
Então, a forma de diálogo tem um argumento acerca, por exemplo, da
propósito ético. O relato apaixonado natureza das relações (p. ex., Phd.
que Platão faz da morte de Sócrates – 74a9-d7) ou na distinção entre
e a impassibilidade de Sócrates frente conhecimento e opinião (p. ex., Men.
à morte – é uma defesa da vida 97a6-98a8) ou no escopo da ontologia
filosófica. Em sentido inverso, as vidas (Prm. 130bl-135c2), a representação
dos que são levados pelo desejo de nega que haja linhas de demarcação
vencer no argumento, qualquer que entre uma parte e outra da filosofia.
seja a verdade da matéria, são de Se argumentos acerca da lógica,
certo modo vazias e sem valor metafísica ou epistemologia estão
(Cálicles, por exemplo, ou Eutidemo). localizados em um contexto que é
Platão os apresenta no intuito de manifestamente ético e se o contexto
insistir sobre a conexão entre como é filosoficamente relevante a estes
vivemos nossas vidas e como as argumentos, então Platão
justificamos, e os retrata em diálogo evidentemente nega que a metafísica
no intuito de perguntar como nossa nada tem a ver com a ética ou a ética
defesa de como vivemos suporta o com a lógica (ver o capítulo
exame por outros. O quadro dos Conhecimento e as Formas em
diálogos, então, é contínuo com o Platão). Esta integração, se puder ser
encartado, instanciando a relação defendida, entre o viver uma vida
entre a vida que é vivida e sua examinada e os argumentos e
justificabilidade. princípios exigidos para isso – entre os

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princípios da ética e os da metafísica, perguntam? São tornados piores


da epistemologia, da lógica – constitui pelas personagens que os
uma tese importante e notável acerca representam os princípios que Platão
da natureza sem fronteiras da já considera como perversos?
filosofia. Sabemos que um princípio é errado –
segundo diria esta perspectiva –
Podemos ver isso em operação somente porque podemos ver que
em algumas discussões, para o seu expoente é o vilão da peça. O
melhor e para o pior. Lísis desenvolve drama da personagem, então, traz
sua perspicácia filosófica de modo embutido os argumentos e suas
que terá importância para suas premissas, dispondo-nos a rejeitá-lo
relações com outros. Protarco no de imediato. A falta de fronteiras
Filebo é levado pelo argumento a ver entre ética, metafísica e o resto seria
que o hedonismo irrefletido, que então somente uma artimanha da
exclui argumento, é insustentável e retórica de Platão.
assim é levado a desistir do
hedonismo que inicialmente expõe. Duas ideias podem aumentar
No Eutidemo, Ctesipo, por demais este desconforto. Primeiro: o que
ansioso para imitar os sofistas, fazer com as personagens que não
termina não sendo senão o clone estão articuladas de um modo ético
deles. No Górgias, Cálicles é rico? A presente explicação nos diz
dominado por sua própria admiração pouco do estrangeiro de Eleia, menos
pelo uso da força, reduzido a uma ainda do jovem Sócrates; pouco do
presença cheia de ódio, em quem, cândido Aristóteles interlocutor de
como Sócrates prevê, Cálicles não Parmênides; pouco, na verdade, dos
concorda com Cálicles. Em casos próprios Zenão e Parmênides. Em
como esses, os diálogos nos mostram consequência, estamos em situação
vidas sendo vividas bem ou difícil para ver como a explicação da
parcamente em função dos princípios falsidade ou mesmo a teoria das
que as governam. Formas é relevante para como bem
viver. Devemos estabelecer algum
As limitações do ético tipo de linha divisória entre os
diálogos que são assim eticamente
Então, porém, estes exemplos não detalhistas e aqueles que não o são?
simplesmente supõem o que Qualquer que seja esta linha divisória,

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é melhor que não seja uma linha Dionisodoro não percebem ao longo
meramente cronológica: o Filebo, de todo o Eutidemo a insinuação de
comumente considerado como tendo Sócrates de que eles estão vazios
sido escrito na parte final da vida de daquilo a que deveríamos aspirar
Platão, é tão eticamente prenhe conhecer. Estes momentos irônicos
quanto se pode querer. não são diretamente representativos
porque eles operam ao
Segundo: esta ênfase no drama contrabalançar o que é representado
talvez não explique a relação entre o com aquilo que o leitor entende o que
quadro e o encartado. Pense na significa. Eles requerem interpretação
prática da ironia (socrática ou para além dos limites do próprio
platônica). Quando Sócrates é – ou é diálogo e fazem isso por meio do
acusado de ser – irônico, algo acerca quadro dramático.
do tom do que é dito ou alguma coisa
estranha no contexto indica que de Outro ponto de detalhe amplia o
algum modo Sócrates está escopo de um diálogo para além dos
escondendo de seu companheiro o confins da conversa representada: as
que realmente pensa (o que quer que conexões (frequentemente
se queira dizer ao afirmar que esta profundas e complexas) que são
personagem ficcional “realmente tecidas entre um diálogo e outro. Em
pensa” alguma coisa). Considere, por Phd. 72e3-73a3, por exemplo, Cebes
exemplo, este engano faz alusão à demonstração da
desconcertante do jovem Carmides reminiscência no Mênon (82b9-86b4).
levando-o a pensar que possui uma O cruzamento de referências serve
folha mágica que o livrará de sua dor não meramente como uma nota de
de cabeça: o leitor, mas não rodapé, mas a um objetivo filosófico
Carmides, pode pensar que talvez mais profundo. Com efeito, Sócrates
curar a dor de cabeça seja trivial em argumenta em seguida em favor da
comparação com a aquisição da teoria da reminiscência por meio de
virtude. Ou lembre-se das ocasiões uma discussão do fenômeno
quando Sócrates exprime surpresa cotidiano do ato de lembrar. Porém, o
extravagante quando alguém detalhamento deste fenômeno é
reivindica ter um saber especializado. imediato ao leitor somente se ele
Eutifro, por exemplo, fica surdo às lembrar a passagem do Mênon que
tiradas de Sócrates; Eutidemo e nos é pedido ter em mente e assim o

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próprio leitor instancia aquele mesmo Isto poderia reduzir a explicação


fenômeno. Na verdade, assim como a da forma de diálogo, contudo, mais
ironia opera nos diálogos uma vez a uma mera generalidade.
permanecendo não compreendida Todos estes estratagemas servem
por seu alvo, assim também estas somente para tornar o leitor um
conexões intertextuais não são para o filósofo ativo, o que quer que isso
interlocutor, mas para o leitor. As seja? São todos os diálogos iguais em
referências densas, por exemplo, à sua provocação de fim aberto, são
autobiografia de “Sócrates” (Phd. todos concebidos para somente nos
96a6-100a7) em uma passagem do pôr em dúvida e em inquietação
Filebo em que o interlocutor, acerca de problemas de cunho
Protarco, demonstra tendências filosófico? Os diálogos difeririam,
socráticas (llal-21d5) nos convida a portanto, de modo a assegurar que,
comparar e a contrastar as se uma dúvida não nos pega, uma
metodologias discutidas nestas duas outra nos pegará; a variedade dos
passagens assim trazidas a exame. O diálogos tem o “efeito metralhadora”
mesmo efeito é obtido pelas páginas de quem anuncia paradoxos
de abertura do Timeu, que ao mesmo insistentemente. Para este fim,
tempo se referem à República e se poderíamos objetar, o tamanho
furtam a uma conexão direta quando excessivo e a complexidade de alguns
o relato que Sócrates dá no Timeu do argumentos (para não mencionar sua
Estado ideal deixa notavelmente de pobreza) ficam gratuitos (por que não
lado a metafísica central da ir ao invés disso diretamente a um
República. As referências cruzadas bom paradoxo? “Estou mentindo”
são inexatas; sua intertextualidade sozinho pode talvez fazer todo o
tem, portanto, um papel trabalho de provocação feito por um
relevantemente crítico e diálogo inteiro). Esta ideia, por sua
comparativo. Ela tem este papel ao vez, serve para descolar toda conexão
transcender o diálogo em questão e direta entre as vidas e os argumentos
ao convidar o leitor a fazer todo o particulares em prol de gerar uma
trabalho duro. Seria um erro, então, dúvida que está em tudo. Pouco
ver o quadro como inerte, uma mera importará, nesta perspectiva, quais
decoração à filosofia representada questões nós formulamos, desde que
dentro dele. sejam filosoficamente perturbadoras,
suficientemente difíceis de serem

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tratadas de modo a nos manter em vista diferentes. A conversa é


pensamento. Há, então, algo a mais a imaginada ocorrer por meio de
ser dito acerca da conexão entre o pergunta e resposta e termina
quadro externo ético dos diálogos e quando a alma (a mente) diz “algo
as coleções variegadas de consistentemente” ou chega a um
argumentos, tópicos, dúvidas, ponto de vista unificado. Possuir um
dificuldades e contra-argumentos que juízo não é somente a escolha
são encontradas dentro do quadro? arbitrária de um ponto de vista: é
obtido por meio de uma interrogação
O diálogo silente da alma interna e por meio de pensar sobre
estes dois pontos de vista.
Se os diálogos são concebidos a nos
fazer pensar, o que isso implica? No Aristóteles retoma isso em sua
Teeteto (também no Phlb. 38c5-e7), descrição da dialética (Metaph.
Sócrates nos brinda com observações 995a24-b4). Aristóteles e Platão
gerais acerca da natureza e da pensam ambos que o jogo entre os
importância do diálogo ao sugerir que dois lados de um caso, entre os dois
pensar é como um diálogo interno pontos de vista, é essencial para fazer
silencioso: progredir nossa compreensão. Como
isso poderia ajudar em nossa
Uma conversa que a alma tem consigo compreensão do uso que Platão faz
mesma acerca dos objetos que está
da forma do diálogo? (Ver o capítulo
considerando... Tenho a impressão
que a alma, quando pensa, está O Método da Dialética de Platão.)
simplesmente desdobrando uma
discussão na qual pergunta a si própria Talvez (como foi sugerido) o elo
questões e as responde, afirma e nega. entre a forma de diálogo e o diálogo
E quando chega a algo definido, seja
silencioso seja psicológico: a forma de
por um processo gradual ou por um
súbito salto, quando ela afirma algo diálogo ecoa ou imita nossos próprios
consistentemente e sem conselho pensamentos, de modo que ao se ler
dividido, chamamos isso de juízo. (77it. algo como isso facilmente será
189e6-190a4, traduzido por Levett e produzido. Porém, explica isso
Burnyeat) completamente as características
prescritivas da conversa filosófica que
Pensar, nesta perspectiva, é uma
a forma de diálogo impõe na natureza
conversa interna entre dois pontos de
da dialética filosófica ali delineada?

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Sócrates regularmente (embora descreve uma conversa que teve, em


nem sempre) insiste na pergunta e outro lugar, com outro homem, que
resposta e ocasionalmente o fazem se revela ser como (ou ser) o próprio
seus interlocutores (Protarco em Sócrates. Assim, imaginamos Sócrates
Phlb. 24d8-e2); trata-se de uma conversando consigo mesmo e somos
característica proeminente do diálogo convidados a inspecionar seus
silencioso da alma. A parte formal do próprios fracassos consigo mesmo.
jogo de questão e reposta aparece em Similarmente, Sócrates adota um
grande medida no exame do escravo ponto de vista diferente como se
no Mênon, concebido para mostrar estivesse em diálogo com Meleto na
que o conhecimento é reminiscência. Ap. 24c9-26a7; com o homem que
No diálogo-quadro, Sócrates e Mênon tem opiniões em R. 476e4-480al3; ou
fazem comentários sobre o diálogo com “a turba” em Prt. 352d4-357e8.
entre Sócrates e o escravo. Sócrates Nestes diálogos dentro de diálogos, a
insiste que somente fez perguntas (e relação entre quadro e encartado
não introduziu conhecimento); no toma-se móvel, de modo que o
caminho, ele induz o menino a ver encartado se torna quadro. Quando
que ele não sabia o que pensava que isso acontece, o próprio quadro
sabia e então o induz a um estado de fornece um lugar para comentário e
estupefação, aporia. Quando, ao reflexão sobre o que ocorre no
final, o menino aporta a resposta diálogo encartado.
correta, Sócrates faz o seguinte
comentário a Mênon: Esta característica ocorre de
modo mais notável nos diálogos
Estas opiniões foram provocadas como (tardios?) cujo estilo convencional
um sonho, mas, se fosse parece ter-se tornado árido e
reiteradamente questionado sobre
estas mesmas questões de vários
expeditivo. Com efeito, eles ainda
modos, você sabe que ao final seu possuem alguns encontros
conhecimento sobre estas coisas seria imaginários vividos embutidos na
tão preciso quanto o de qualquer um. discussão principal: em particular,
(Men. 85c9-dl, traduzido por Grube) três discussões que são imaginadas
ter ocorrido com filósofos
Outras interrogações ocorrem predecessores de Platão, Protágoras,
embutidas em um quadro. No Hípias Heráclito e Parmênides. No Teeteto,
Maior, por exemplo, Sócrates Sócrates imagina Protágoras

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defendendo sua tese relativista Primeiro, é preciso haver um


extrema que “o homem é a medida de processo, uma sequência de respostas
todas as coisas” (152al-179dl) e a questões conectadas. Se o
posteriormente nos brinda com um interlocutor embirra, é muito tímido
encontro imaginário com Heráclito e para responder ou muito arrogante
os defensores do fluxo total (181b8- para prestar atenção, o processo
183b6). No Sofista (244b6-245e2), o quebra. Se o interlocutor mantém
estrangeiro de Eleia se retrata a si uma posição que impossibilita o
mesmo como cometendo o parricídio diálogo, o processo quebra: ele
de seu progenitor filosófico, precisa sustentar mais do que a
Parmênides, que sustentava que tudo primeira resposta à primeira questão.
o que existia era uma única coisa. Em Na verdade, o processo precisa ser de
cada uma destas conversas algum modo contínuo. Considere –
imaginadas, o argumento começa como os diálogos regularmente nos
como pretende continuar: por convidam a fazer – como as questões
pergunta e resposta. Porém, em cada podem estar relacionadas a suas
caso o interlocutor imaginado não respostas e como isso engendra a
consegue manter-se assim porque a pergunta seguinte. Isso ocorre
própria teoria que advoga torna reiteradamente simplesmente
impossíveis a sequência extensa de porque quem pergunta busca
pergunta e resposta e os diferentes entender a posição de quem
pontos de vista que tal sequência responde: as questões dominantes
requer. É para mostrar estas teorias são “o que isso significa?”, “o que
(relativismo, fluxo total, monismo você pensa que”, “o que se segue
forte) como incapazes de se disso?” ou “como isso se coaduna com
engajarem em uma troca dialética o que você disse antes?”
que elas são representadas dentro
dos diálogos em que aparecem; elas Segundo, o processo avança em
nos fornecem um caso paradigmático virtude de algum tipo de contraste
das exigências do diálogo filosófico. entre dois pontos de vista, entre
Ademais, ao serem embutidas em um asserção e negação. Por quê? As
diálogo que as encarta, elas exibem conversas externas esclarecem o
estas exigências à nossa reflexão, a ponto: enquanto o processo continua,
título de foco do comentário no um ponto de vista ainda não
próprio quadro. convenceu o outro; quem questiona

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continua a recusar sua concordância até ele (o diálogo silencioso


até que as respostas o satisfaçam notavelmente não descreve a mente
plenamente. O processo, então, como simplesmente tomando um ou
ocorre entre dois pontos de vista, e é outro lado dos pontos de vista
a sua diferença (devido ou ao fato que apresentados a ela).
as duas visões são diretamente
opostas ou visão não ser convencida Porém, então a correlação entre
pela outra) que fornece sua dinâmica. o diálogo silencioso e o processo
Por vezes, as duas visões ocorrem imaginado, representado,
dentro da conversa representada; por fracassando em ser representado,
vezes, estão embutidas nela; por repudiado, ridicularizado, mas nunca
vezes, ocorrem entre o argumento ignorado nos diálogos platônicos,
encartado e seu quadro, quando o revela-nos uma característica ulterior
próprio quadro faz perguntas sobre o do retrato do diálogo: que o diálogo
que foi dito em se interior (p. ex., retratado seja escrito, falado,
Euthd. 290el- 293a9). encenado ou imaginado, a forma de
diálogo reiteradamente convida a
As próprias exigências, terceiro, refletir sobre os argumentos em
revelam uma suposição subjacente questão. Isto é, os pontos de vista em
que emerge no episódio do escravo: jogo são vistos de dentro, como se
que a compreensão (seja do próprio ocupássemos um dos pontos de vista,
ponto de vista, seja do outro) é tuna mas também são vistos de fora, com a
questão de relacionar em conjunto opinião distanciada do observador, a
todas as coisas em que se acredita, pessoa que (como Sócrates) ainda não
conectando-as com suas razões e está convencida de nenhum ponto de
consequências. Isto é, a compreensão vista, mas reflete sobre seu embate,
ocorre em uma grande rede de crença seu poder explicativo e sua integração
e nunca de modo parcial. É assim que com outros princípios que
o diálogo silencioso culminará em manteríamos. Esta reflexão sobre os
uma única visão, mas somente após o argumentos é oferecida ao leitor de
processo de pergunta e resposta ter Platão mediante a complexidade de
sido levado a termo. Isso é um juízo seu uso da forma de diálogo,
simplesmente porque está baseado mediante a relação entre quadro e o
em razões e se coaduna com o que é encartado. É, ademais, tanto
processo de pensamento que levou uma característica formal da natureza

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da troca dialética quanto é particular Nestes dois casos, os princípios


aos argumentos e discussões sobre os da ética (como viver a melhor vida) se
quais opera a reflexão. conecta com os princípios da
metafísica e da lógica: no primeiro, o
A reflexão e seu conteúdo quadro faz exigências lógicas em uma
tese ética; no segundo, o quadro faz
Esta reflexão da forma de diálogo é exigências éticas e metafísicas em
determinada pelas exigências uma tese lógica. Porém, vemos isso
impostas a ela pelo quadro dos somente em função da distância
diálogos individuais e é, reflexiva entre o diálogo-quadro e o
consequentemente, ampla e variada que ele encarta. Filebo e Dionisodoro
em seu conteúdo. Considere dois tomam ambos posições que não são
exemplos nos quais a relação entre sustentáveis (hedonismo extremo, a
quadro e encartado é essencial para negação sofista da consistência). O
nossa compreensão dos argumentos. quadro, ao comparar a posição
Primeiro: Filebo, no diálogo de insustentável com sua negação em
mesmo nome, esposa uma vida de um embate dialético, mostra somente
extremo hedonismo, esvaziada de quais suposições à posição
razão e pensamento. Porém, uma tal insustentável nos forçará a abandonar
vida não consegue manter uma (identidade pessoal, consistência) e
conversa sobre si própria ou uma que impacto isso teria em nossos
reflexão sobre si. A posição de Filebo objetivos éticos. Isso pode funcionar
se refuta a si mesma se simplesmente em ambas as direções: por vezes, a
tentar falar e ele fica em silêncio antes posição ética é encartada e mostrada
que o diálogo chegue à sua metade no quadro como intolerável (como no
(28b6). Segundo: Dionisodoro Filebo); por vezes, é o quadro que
mantém que a consistência não oferece uma explicação ética do que
importa (Euthd. 287b2-5). Sócrates parece ser neutro no diálogo
não o pode refutar (pois tal refutação encartado (como no Eutidemo). Casos
assumiria que a consistência como esses são exemplos extremos
importa), mas o diálogo torna claro do modo como o racionalismo ético
que sem consistência não temos opera, supondo que os princípios de
nenhuma explicação coerente para lógica e de metafísica prestam apoio à
dar da identidade pessoal nem da vida ética (deve haver uma pessoa que
que uma pessoa deve viver. persiste para que ela tenha uma vida)

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Hugh H. PLATÃO
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e que os princípios de ética prestam drama dos diálogos – estas pessoas


apoio aos de lógica e de metafísica (a nesta situação, lá e naquele momento
consistência tem de ser importante, – torna claro que compreender o que
se queremos ter uma explicação importa em nossas vidas ou, se não
coerente da vida que levamos). É uma importa, o que deveria importar. Que
característica constante da forma de os diálogos reiteradamente malogram
diálogo tornar possível essa inter- faz parte de seu desafio – um desafio
relação dialética entre os princípios que o leitor é convidado a assumir.
fundadores da filosofia e o ato de os Porém, o desafio é formado de modo
trazer ao centro da reflexão. a nos mostrar em que consistiria
aceitá-lo: desenvolver, como o
A forma de diálogo em Platão não diálogo nos convida, um relato
é uniforme nem são seus propósitos sistemático e unificado do que
evidentes ou singulares. Porém, estas estamos tentando compreender – um
são suas virtudes, pois estes diálogos relato que integra os problemas de
nos provocam a refletir sobre o filosofia com a unidade de uma vida.
próprio diálogo: sobre como ele opera No jogo entre os diálogos
e como deveria operar. Ao ler, representados e sua apresentação em
ocupamos a posição de Mênon quadros, Platão formula um relato
observando o exame do escravo ou o sem fronteiras da reflexão que
de Teeteto escutando as conversas constitui a filosofia.
imaginárias de Sócrates com
Protágoras. Estamos fora da ação Notas
mesmo quando podemos concordar
com o que é dito e deste modo Todas as traduções são do próprio autor ou
foram tomadas de J. M. Cooper (ed.) Plato:
podemos pensar sobre como os
Complete Works (Indianápolis: Hackett,
argumentos funcionam. E um tal 1977).
diálogo pode refletir sobre os
princípios do próprio argumento, pois Gostaria de deixar registrado meu
por trás do interesse de Platão na agradecimento às pessoas com as quais tive
forma de diálogo estão sua conversas sobre a conversa platônica quando
estava escrevendo este artigo, especialmente
preocupação em explicar como a
David Galloway, Owen Gower, Verity Harte,
compreensão é formada e controlada, Alex Long, James Warren, bem como minha
bem como sua preocupação em gratidão pelas habilidades exemplares do
mostrar por que isso importa. O editor.

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Referências e leitura complementar Dialogue: The Philosophical Use of a Literary


Form. Cambridge: Cambridge University
Annas, J. e Rowe, C. (2002). New Perspectives Press.
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Mass.: Harvard University Press. Methods of Interpreting Plato and his
Benson, H. H. (1992). Essays on the Dialogues. Oxford Studies in Ancient
Philosophy of Sócrates. New York: Oxford Philosophy, supplementary volume. Oxford:
University Press. Oxford University Press.

Beversluis, J. (2000). Cross-examining McCabe, M. M. (2000). Plato and his


Sócrates: A Defense of the Interlocutors in Predecessors: The Dramatisation of Reason.
Plato’s Early Dialogues. Cambridge: Cambridge: Cambridge University Press.
Cambridge University Press. Nehamas, A. (1998). The Art of Living:
Blondell, R. (2002). The Play of Character in Socratic Reflections from Plato to Foucault.
Plato’s Dialogues. Cambridge: Cambridge Berkeley: University of Califórnia Press.
Univer- sity Press. Nightingale, A. (1995). Genres in Dialogue:
Burnyeat, M. (1985). Sphinx without a secret? Plato and the Construct of Philosophy.
New York Review of Books, May 30, pp. 30-6. Cambridge: Cambridge University Press.

Cossuta, F. e Narcy, M. (eds.) (2001). La forme Nussbaum, M. (1986). The Fragility of


dialogue chez Platon: évolution et receptions. Goodness: Luck and Ethics in Greek 7Yagedy
Grenoble: J. Millon. and Philosophy. Cambridge: Cambridge
University Press.
Ferrari, G. R. F. (1987). Listening to the
Cicadas: A Study of Plato’s Phaedrus. Press, G. A. (2000). Who Speaks for Plato?
Cambridge: Cambridge University Press. Studies in Platonic Anonymity. Lanham, Md.:
Rowman and Littlefield.
Gadamer, H. (1980). Dialogue and Dialectic:
Eight Hermeneutical Studies of Plato, trans. P Rutherford, R. (1995). The Art of Plato.
C. Smith. New Haven, Conn.: Yale University London: Harvard University Press.
Press. Sayre, K. (1995). Plato’s Literary Garden: How
Gill, C. e McCabe, M. M. (eds.) (1996). Form to Read a Platonic Dialogue. Notre Dame,
and Argument in Late Plato. Oxford: Oxford Ind.: University of Notre Dame Press.
University Press. Sedley, D. (2004). Plato’s Cratylus.
Griswold, C. L. (1988). Platonic Writings, Cambridge: Cambridge University Press.
Platonic Readings. New York: Routledge. Smiley, T. (1995). Philosophical Dialogues:
Hart, R. e Tejera, V (eds.) (1997). Plato’s Plato, Hume, Wittgenstein. Oxford: Oxford
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York: Edwin Mellen. Stokes, M. C. (1986). Plato’s Socratic
Kahn, C. H. (1996). Plato and the Socratic Conversa- tions. London: Johns Hopkins

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Reading Plato, trans. G. Zanker. London:
Taylor and Francis. (Publicação original: 1993)

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5. O Elenchus socrático Socráticos; Platão e o Prazer como o


Bem Humano). Daí ser nosso caminho
CHARLES M. YOUNG à felicidade a remoção da ignorância e
vício de nossas almas e sua
INTRODUÇÃO substituição pela virtude e
conhecimento (ver o capítulo A
Sócrates – se não a própria pessoa, Ignorância Socrática).
então a personagem na maioria dos
diálogos curtos de Platão e, talvez, Quase todos concordam com
também em alguns dos mais longos – esta caracterização da vida e do
estava fadado a algo especial. pensamento de Sócrates, ou com algo
Acreditando que estava agindo sob as similar a isso. Quase ninguém, porém,
instruções de Apoio, o deus do concorda sobre os detalhes. Por que
oráculo em Delfos, Sócrates passava exatamente Sócrates acredita que
seu tempo falando com as pessoas, está agindo sob ordens divinas? Por
tanto pessoas comuns quanto que acredita que Apoio o instruiu a
pensadores mais sofisticados, perguntar às pessoas questões sobre
fazendo-lhes questões sobre a vida como devemos viver nossas vidas? O
humana e como se deve viver. que é a felicidade para ele? O que é a
Quando seus interlocutores se alma para ele? Por que nossa
mostravam incapazes de defender felicidade depende da boa condição
suas opiniões sobre estas questões, dela? Por que ele pensa que as
Sócrates sugeria sua própria agenda virtudes do caráter têm a ver com a
positiva radical em seu lugar. Somos boa condição da alma? A agenda
felizes, pensava ele, quando nossa crítica de Sócrates ao questionar seus
alma está na melhor condição – companheiros está ligada à sua
quando, como acreditava, temos as agenda construtiva acerca das
virtudes do caráter: coragem, virtudes e felicidade? Não existe nada
temperança, piedade e, próximo a um consenso para as
especialmente, justiça. Já que respostas a qualquer uma destas
queremos todos ser felizes, faremos questões.
inevitavelmente o que é virtuoso
somente se soubermos o que é a Tampouco há um consenso
virtude (ver os capítulos Os Paradoxos acerca do que queria Sócrates ao
questionar os outros acerca das

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virtudes do caráter e de como carreira com o sentido de “vergonha”


devemos viver. Uma característica ou “desgraça”, do tipo que
central do exame de Sócrates é, tipicamente ocorre quando se
todavia, comumente identificada por fracassa em um teste atlético ou de
um nome particular hoje em dia: é guerra: “será, pois, uma desgraça
chamado elenchus socrático (elenchus) se Heitor do elmo brilhante
(“refutação”). Mas de novo, os capturar os navios” (.11. XI.314-15).
estudiosos discordam acerca dos Mais tarde, o sentido passou da ideia
detalhes; testemunho disso é uma de vergonha ou de desgraça por si à
coleção de artigos sobre o elenchus ideia dos testes nos quais se incorria
publicada em 2002 (Scott). Eles ou se evitava a vergonha e a desgraça:
discordam sobre o que exatamente “o arco não é um teste (elenchus) para
está envolvido nos argumentos que um homem: é uma arma de covarde”
empregam o elenchus e sobre quais (Eurípides, Hércules 162).
são suas características distintivas, se Subsequentemente, o sentido se
possuir de fato alguma. Discordam expandiu de modo a incluir testes ou
sobre quais passagens nos diálogos de competições outros que os de guerra
Platão envolvem o elenchus e sobre ou de estilo marcial: por exemplo, o
quais diálogos são relevantes para seu teste dos méritos de um poema pela
estudo. Discordam sobre se e como opinião pública (veja, por exemplo,
Sócrates pode obter conclusões Píndaro, N. VIII.20-1). Pela metade do
positivas por meio do elenchus. século V a.C., o termo começou a
Discordam até mesmo se Sócrates de designar comumente qualquer tipo de
fato tinha um método, isto é, se tinha exame da verdadeira natureza de uma
um modo característico de fazer pessoa particular ou de uma coisa
filosofia. E muitos outros pontos de (veja, por exemplo, Esquilo, As
discordância poderiam ser Suplicantes 993). Então a palavra
mencionados. passou a ser usada de modo mais
restrito para o exame do que uma
PRELIMINARES pessoa dizia de verdadeiro ou falso
(veja, por exemplo, Heródoto,
Será útil trazer à mesa parte da História 11.115) ou para o resultado
história do termo “elenchus” e de seu negativo de tal exame (veja, por
verbo cognato “elenchô” (seguindo exemplo, Grg. 473b9-10). Isso nos
Lesher 2002). “Elenchus” começa sua leva a Platão.

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É comum hoje negar que Sócrates elenchou) ao dos oradores forenses


tenha alguma coisa que possa ser (472c2-4). Duas personagens nos
chamado de método que vá além de diálogos fazem menção especial a
seus modos habituais autodeclarados aspectos da técnica argumentativa de
de investigação: pôr à prova Sócrates: Alcibíades (Smp. 221dl-
(exetazô), investigar (skopeô e seus 222a6) e, com desprezo, Cálicles (Grg.
cognatos), questionar (erôtô e seus 491al-3). Por fim, no Sofista, o
cogna- tos), procurar (zêtô e seus estrangeiro de Atenas chama a
cognatos), discorrer (dialegô) e às atenção à “nobre sofistica” que está
vezes examinar ou refutar (elenchô), ligada à “refutação (elenchus) da
etc. seus companheiros. Esta negação crença oca em sua própria sabedoria”
de um método para Sócrates pode (231b5-8); este tipo de sofistica é,
bem estar correta. Porém, os diálogos pelo menos, primo distante do que
socráticos e mesmo alguns outros Sócrates parece estar fazendo, o que
diálogos contêm várias passagens que quer que isso seja. Se então Sócrates
têm de ser levadas em conta quando tem ou não o que nos apressaríamos
se quer chegar a uma conclusão sobre a chamar um “método”, é claro pelos
esta e outras teses similares. Algumas diálogos socráticos que Platão vê a
destas passagens são as seguintes: em condução por parte de Sócrates de
suas observações iniciais na Apologia, seus exames dos outros como em
Sócrates contrasta seu modo de algum sentido especial.
defesa com o de seus acusadores e diz
que irá se servir do mesmo tipo de Uma ilustração relativamente
argumentos que costumava usar no simples de um elenchus ocorre no La.
mercado (17al-18a6). No Críton, 192b9-dll. Nesta passagem, Laques
Sócrates diz que é do tipo de pessoa avança sua definição de coragem:
que decide o que fazer por referência
ao “argumento” ou “princípio” (logos) A. A coragem é perseverança
que lhe parece melhor após (192b9). Sócrates então faz sair
ponderação (46b4-6) e as leis dele uma tese sobre a coragem:
personificadas de Atenas dão como B. A coragem está entre as coisas
razão para o pôr a exame o fato que que são admiráveis e muito belas
ele põe os outros a exame (50c8-9). (192c5-6). Ele também faz
No Górgias, Sócrates contrasta seu emergir duas teses sobre a
modo de argumentar (tropos perseverança:

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C. Perseverança com sabedoria é Sócrates então se assegura da


bela ou admirável e boa (192c9- concordância do interlocutor a outras
10). teses: de (B) até (E). Sócrates então
D. Perseverança com insanidade é infere, com a aceitação do
prejudicial e danosa (192dl-2). interlocutor, que a tese original é
Vem então uma verdade geral falsa: neste caso, (H). A tese original
sobre o que é prejudicial e pode, todavia, sobreviver em uma
danoso: forma qualificada, como aqui, em (I).
E. O tipo de coisa que é prejudicial e Em um elenchus “padrão”, a tese
danosa não é bela ou admirável original, de acordo com Vlastos, não
(192d4-5). Enfim, temos duas tem papel no argumento à parte o
inferências. Visto que: fato de prover Sócrates com um alvo.
F. Perseverança com loucura não é Isto contrasta com o elenchus
bela ou admirável (192d8) e “indireto”, no qual a tese original tem
G. A coragem é uma coisa bela e de fato um papel.
admirável (192d8), Sócrates e
Laques concluem primeiro que: A distinção de Vlastos entre estes
H. Perseverança com loucura não é dois modos de elenchus é espúria. Se
coragem (192d7) e, segundo, que, tivermos um conjunto de teses – R Q
“de acordo com o argumento [de e R, digamos – que implica a negação
Laques]”, de uma tese original do interlocutor,
I. Perseverança sábia é coragem pouco importa, de um ponto de vista
(192dl0- 11). lógico, se este conjunto inclui a tese
original ou não: se a implicação
Presumivelmente, (F) segue de ocorre, então não há nenhuma
(D) e (E); (G) segue de (B); (H), de (F) e situação em que p Q, R e C são todas
(G). Não é claro de onde vem (I). verdadeiras, seja C ou não uma das
teses R Q e R. Assim, seria melhor não
Este argumento exemplifica um distinguir entre dois modos de
padrão que Gregory Vlastos, em um elenchus, mas caracterizar o elenchus
artigo clássico sobre o elenchus simplesmente como um argumento
(Vlastos, 1983; ver também Vlastos, no qual uma tese original do
1994), chamou elenchus “padrão”. interlocutor é rejeitada quando se vê
Inicia com o interlocutor de Sócrates que é inconsistente com outras coisas
afirmando uma tese, aqui (A). nas quais crê o interlocutor.

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APOLOGIA 21B9-23CI: AS “sabedoria humana” vale “pouco ou


ARIGENS DO ELENCHUS nada” (23a6-7). A posse de Sócrates
SOCRÁTICO da “sabedoria humana”, contudo, deu
nascimento ao preconceito contra
O relato de Sócrates na Apologia das ele, assim como o fez parecer ao povo,
origens de sua missão filosófica é apesar de suas negativas, como se
familiar, mas vale a pena examinar realmente ele pensasse que conhecia
certos detalhes aqui. Sócrates inicia algo de importante.
sua defesa contra a acusação de
impiedade chamando a atenção de Sócrates passou a acreditar em sua
sua audiência a um conjunto de “sabedoria humana” por meio de
acusadores “mais antigos” e “mais várias discussões que teve com outras
perigosos”, cujas difamações contra pessoas em um esforço para
ele, Sócrates mantém, criaram uma compreender a afirmação do oráculo
atmosfera de preconceito contra ele de Delfos, segundo o qual ninguém
que seus acusadores atuais, era mais sábio que ele. Ele fez contato
“posteriores”, estão usando para com três diferentes grupos de
benefício próprio ao levantar pessoas: políticos, poetas e artesãos.
acusações contra ele (18a7-19d7). No Teve experiências diferentes com
coração do preconceito, diz-nos, está cada grupo. Suas discussões com os
sua posse do que chama sophia tis políticos revelaram que, embora se
(20d7). Aqui sophia tis deve ser “em pensassem a si mesmos e eram vistos
parte sabedoria”, não “um tipo de por outros como sábios, eles de fato
sabedoria” (como ocorre em, por não o eram (21b9-22a8). Os poetas
exemplo, La. 194d9) – não uma área apresentaram um caso mais
da sabedoria, mas uma compreensão complexo. Em seus poemas, Sócrates
que oferece parte do que oferece a concede, os poetas têm “muitas coisas
sabedoria, sem ser a verdadeira coisa. belas” para dizer, mas, porque não
Com efeito, Sócrates imediatamente conseguem explicá-las
(20d8) identifica sua “em parte adequadamente, Sócrates pensou que
sabedoria” à “sabedoria humana” eles não sabiam as coisas que diziam
(anthrôpinê sophia) e esta se mostra em seus poemas, mas compunham
consistir em saber que não se sabe suas obras por talento natural ou por
nada, em particular que não se sabe inspiração. Além do mais, por causa de
nada “belo e bom” (21d4). De fato, seus talentos poéticos, os poetas

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pensavam que conheciam outras como ele detectou estas diferenças.


coisas, mas de fato eles não as Ele não nos diz isso; portanto, teremos
conheciam (22a8-c8). Os artesãos, por que fazer algumas suposições. Uma
fim, de fato mostraram que sabiam suposição óbvia é que Sócrates
“muitas coisas belas”, mas, por causa submeteu membros dos três grupos
do que conheciam, pensavam que ao tipo de questionamento que nos é
também conheciam outras coisas familiar dos diálogos socráticos e que
importantes (22c8- e5). Como é bem estamos chamando “elenchus”. Esta
conhecido, Sócrates foi embora sugestão é alimentada pelo fato que,
convencido que era mais sábio do que na passagem em discussão, Sócrates
qualquer um com quem tinha usa toda a terminologia, mencionada
conversado. Era mais sábio, contudo, no capítulo precedente, que ele
não porque sabia coisas que eles não regularmente utiliza ao descrever suas
sabiam, mas porque eles pensavam atividades filosóficas; se esta sugestão
que sabiam coisas que de fato eles não estiver correta, então as similaridades
sabiam, ao passo que ele não tinha tal e diferenças que Sócrates observa
pensamento. É nisto que consiste sua devem refletir similaridades e
“sabedoria humana”. Como nos diz: diferenças no modo como seus
interlocutores se saíram quando
O que é provável, senhores, é que o postos a exame. Porém, um elenchus
deus de fato é sábio e que sua resposta
só pode ter dois resultados: ou a tese
no oráculo queria dizer que a sabedo-
ria humana vale pouco ou nada e que, inicial do interlocutor malogra ou ela
quando diz este homem, Sócrates, ele sobrevive. Ela malogra se Sócrates
está servindo-se de meu nome como pode mostrar que é inconsistente com
um exemplo, como se quisesse dizer: outras coisas em que o interlocutor
“o homem entre vocês, mortais, será o
acredita; ela sobrevive se não o puder
mais sábio quem, como Sócrates, com-
preender que sua sabedoria não tem fazer. Sócrates conclui que as pessoas
valor”. (23a5-b4, traduzido por Grube, em todos os três grupos pensam que
ligeiramente modificado) conhecem coisas acerca de certos
objetos que de fato eles não
O que precisamos compreender, conhecem. Já que Sócrates não
para os presentes objetivos, são as conhece nada a respeito destes
similaridades e diferenças epistêmicas objetos, não pode estar inferindo a
que Sócrates sustenta encontrar entre ignorância de seu interlocutor do fato
os três grupos que ele confrontou e que ele, Sócrates, sabe mais. Deve, ao

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contrário, tirar esta inferência do fato sobreviveram ao elenchus enquanto


que seus interlocutores não podem as questões de Sócrates portavam
consistentemente manter suas sobre suas áreas de competência.
alegações de conhecimento. Isto é Podemos ir mais longe: Sócrates
uma suposição razoável: se não posso negava que os poetas conheciam as
defender com consistência minhas coisas belas que diziam com base no
crenças em um domínio, Sócrates está fato que não conseguiam se explicar
correto em concluir que não sei sobre adequadamente. Presumivelmente
o que estou falando neste domínio, teria dito a mesma coisa dos artesãos
mesmo que tampouco ele saiba sobre se eles também fossem incapazes de
o que estou falando. se explicar adequadamente. Assim, é
uma inferência aceitável que os
Isto quanto às similaridades entre os artesãos eram capazes de se explicar
três grupos. E sobre as diferenças? adequadamente sobre questões
Sócrates diz que os poetas têm atinentes às suas áreas de
“muitas coisas belas” a dizer em suas competência. Podemos ir mais longe
composições, mas que eles não ainda: todos os três grupos não
podem explicá-las adequadamente e conseguiram sobreviver ao elenchus
que não conhecem as coisas belas que em certas áreas. Os artesãos passam
recitam. No caso dos artesãos, seu teste dentro de suas áreas de
Sócrates concede que eles conhecem competência. O que dizer dos poetas
as “muitas coisas belas” que têm a quando questionados sobre seus
dizer. É plausível supor que o que os poemas? Passaram a prova ou
artesãos conheciam eram coisas que fracassaram? Se fracassaram, não
entravam no âmbito de suas artes: é haveria diferença entre os poetas e os
isso o que sabem. Porém, Sócrates políticos; Sócrates poderia ter alegado
não teria concedido que os artesãos que os poetas não conheciam o que
conheciam as belas coisas que tinham diziam em suas composições por
a dizer se não tivessem sobrevivido ao conta disso, sem fazer apelo à
seu questionamento sobre estas inabilidade deles a se explicarem.
coisas: como vimos, Sócrates toma o Visto que não faz isso, não é
fracasso em sobreviver ao elenchus implausível supor que os poetas não
como uma prova de ignorância. fracassaram no teste elêntico quando
Portanto, podemos com falavam sobre suas composições.
plausibilidade supor que os artesãos Talvez não fossem capazes de se

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explicar, mas pelo menos não caíam ampará-las, como Grg. 464b2-465a7
em contradições. nos quer fazer acreditar, por exemplo,
acerca da alegação que, enquanto
Que tipo de explicação Sócrates doces são bons com leite e sonhos
pensa que um artesão pode dar e um com café, nenhum é gostoso com
poeta não pode? Seguindo uma pista uísque escocês. Ou pode ser que as
de Grg. 464b2- 465a7, podemos teses dos poetas podem ser
especular com plausibilidade que um adequadamente explicadas, mas não
médico do século quinto, por por seus proponentes, como um sábio
exemplo, tinha uma teoria acerca da idiota pode acreditar que
saúde humana que lhe fornecia 761.838.257.287 x 193.707.721 = 264 –
recursos conceituas para formular 1 sem ser capaz de realizar os cálculos
suas explicações. Poderia pesar, por necessários.
exemplo, que os corpos humanos são
feitos de terra, ar, fogo e água; que os A sugestão que isso é de fato a
seres humanos têm saúde quando o diferença que Sócrates vê entre os
calor, o frio, a umidade e a secura poetas e os artesãos se confirma pelo
associados a estes elementos estão fato que pensa que se deve dar uma
apropriadamente balanceados e explicação alternativa, em termos de
ficam doentes quando não há o talento natural ou inspiração, para a
balanceamento. Assim: “meu habilidade dos poetas em dizer
paciente está febril; isso deve “muitas coisas belas” em suas
significar que sofre de um excesso de composições. Esta é a prática padrão
calor; sangrá-lo retirará o excesso de de Sócrates nos casos em que alguém
calor e restaurará sua saúde”. A tem aparentemente o controle sobre
diferença entre os poetas e os algum assunto, mas não pode
artesãos, segundo esta sugestão, explicar-se adequadamente. Assim,
reside no fato que os artesãos no Górgias (464b2- 465a7), Sócrates
dispõem de uma teoria de amparo, ao alega que a arte de fazer doces não
passo que os poetas não. Por que passa pelo teste de explicação, visto
exatamente os poetas não dispõem que “não tem nenhum discurso sobre
de uma teoria de amparo não fica a natureza do que aplica pelo que
esclarecido. Pode ser que as “muitas aplica, de modo que é incapaz de
coisas belas” que os poetas dizem não exprimir a causa de cada coisa [que
são do tipo a terem uma teoria para faz]” (465a3-5, trad. Zeyl). Porém,

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está pronto, mesmo assim, a chamar Sócrates, não sendo um especialista


a arte de fazer doces uma na área em questão, não tem outra
“habilidade”, reconhecendo que alternativa senão aceitar minha
doceiros podem obter sucesso mais reivindicação de conhecimento.
ou menos regular. Similarmente,
Sócrates não desafia a habilidade de INCONSISTÊNCIA
Íon em dizer “muitas coisas belas”
sobre Homero (Íon 542a5), mas O elenchus, assim, visa a pôr em
questiona se esta habilidade pode ser evidência alegações falsas de
atribuída à posse de Íon de conhecimento ao denunciar os
conhecimento; quando Sócrates pretendentes a conhecimento de
estabelece que não pode ser manterem crenças inconsistentes.
atribuída, ele explica esta habilidade Inconsistência importa, de acordo
atribuindo a Íon um “dom divino” com muitas apresentações do
(542a4). No Mênon, Sócrates atribui a elenchus, porque parece que, se creio
habilidade dos Políticos, em A, B e C e então passo a crer que
adivinhadores, profetas e poetas em A, B e C são inconsistentes, então
acertarem sem terem conhecimento
a uma influência e possessão divina a) pelo menos uma de A, B e C deve
(99bll-100b5). ser falsa e
b) se quero manter minha crença em
Resumindo: Sócrates na Apologia A e minha crença em B, digamos,
distingue três níveis de envolvimento devo abandonar minha crença em
epistêmico. Se alego conhecimento C.
em alguma área, Sócrates alegará que
estou errado em dizer que sei se não Aqui (a) é verdadeiro, mas (b)
posso defender minhas crenças com não. Há pelo menos duas razões para
consistência nesta área. Alegará explicar isso.
também que estou errado em dizer
que sei, ainda que não possa me Em primeiro lugar, posso
acusar de inconsistência em alguma preservar minha crença que A e C são
área, se eu não puder explicar minhas cada uma verdadeira e abandonar
crenças na área de um certo modo. Se minha crença que A, B e C são
posso explicar minhas crenças do inconsistentes. Considere neste
modo correto, todavia, então sentido a refutação da primeira

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tentativa de Carmides em definir a F. Rapidez é mais bela ou mais


temperança em Chrm. 159b5-160d3. admirável do que a calma (160b4-
Carmides avança que: 5). E por vezes suas formulações
são simplesmente estranhas:
A. A temperança é quietude (159b5- G. Rapidez é mais moderada (!) do
6). Sócrates então se assegura do que a calma (159dl0-ll).
acordo de Carmides com: H. A vida calma (!) não é mais
B. A Temperança é uma coisa bela ou moderada do que a vida rápida
admirável (159cl). Sócrates então (160c7-dl). De qualquer modo, a
passa em revista um número de formulação com a qual Sócrates
casos nos quais: embala o argumento é:
C. Fazer coisas rapidamente é mais I. Coisas rápidas não são menos
belo ou mais admirável do que as belas ou admiráveis do que coisas
fazer com quietude (159c3-4, c8-9 calmas (160d2-3), sustentando
etc.). que de (I) e
J. A temperança é uma das coisas
Esta é uma tese que Sócrates belas ou admiráveis, se segue que
apresenta de diversos modos. Em (C) K. Temperança não é calma (160b 7).
Sócrates usa advérbios e adjetivos
comparativos. Em outro lugar, porém, E isto é a negação de (A), a
ele se vale de advérbios e adjetivos definição original de Carmides.
superlativos:
A tese de Sócrates que (I) e (B) são
D. Fazer coisas tão rápido quanto inconsistentes com a definição
possível, não as fazer tão original de Carmides, embora seja
calmamente quanto possível é o afirmada por Sócrates e aceita por
mais belo ou o mais admirável Carmides (160d4), claramente
(160a5-6). Por vezes, ele mistura depende de algo mais sofisticado do
adjetivos superlativos e que o modus ponens, e não é dada a
comparativos: Carmides nenhuma razão, menos
E. As coisas mais rápidas, não as ainda uma boa razão para aceitar a
mais calmas, são o mais belo ou inferência. Ele poderia manter com
mais admirável (159d4-5). Por razoabilidade sua crença que a
vezes, ele utiliza substantivos temperança é calma, mesmo
abstratos: aceitando (B) e (I), alegando que a

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Hugh H. PLATÃO
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inconsistência proposta por Sócrates D. Vai dar outra coisa que 1, 2, 3, 4, 5


não tem efeito ou, pelo menos, que ou 6,
não foi mostrada. Carmides não tem
de abandonar sua definição de e isso é impossível. Portanto, devo
temperança. aceitar todas as três A, B e C, ainda
que reconheça que não possam ser
De eu acreditar em A, B e C, dar- verdadeiras ao mesmo tempo. Para
me conta que A, B e C são dizer a verdade, deveria saber que
inconsistentes, não se segue que devo uma das A, B e C é falsa, mas não
abandonar minha crença em C, caso saberia qual. Então, este é um caso no
queira manter minha crença em A e B. qual aceito A e aceito B, e aceito que
Posso, ao invés disso, abandonar A, B e C são inconsistentes, mas não
minha crença que A, B e C são devo rejeitar C. Ao contrário, devo
inconsistentes. As coisas são de fato também aceitar C.
piores ainda: em certas
circunstâncias, posso crer em A, B e C, A possibilidade que acabo de
crer que A, B e C são inconsistentes e descrever não é, além disso, uma
mesmo assim manter minha crença possibilidade meramente lógica,
nos três A, B e C. Suponha, por especialmente em contextos
exemplo, que estou jogando um dado filosóficos, em que algo como certeza
não viciado. Considere as seguintes é difícil de obter. E mesmo Richard
três suposições: Kraut chamou a atenção há mais de
vinte anos ao fato que Sócrates (nos
A. Vai dar outra coisa que 1 ou 2. diálogos socráticos, incluindo o
B. Vai dar outra coisa que 3 ou 4. Protágoras, no que concerne a este
C. Vai dar outra coisa que 5 ou 6. ponto) acha que tem boas razões para
aceitar todas as seguintes três
Dado que as probabilidades de proposições:
cada uma delas é de 0,67, devo
pensar que é mais provável que cada A. A virtude não pode ser ensinada.
uma ocorra do que não ocorra. B. A virtude é conhecimento.
Porém, devo claramente rejeitar a C. Se a virtude é conhecimento,
conjunção de A, B e C, pois a então a virtude pode ser ensinada,
conjunção consiste no seguinte:
embora reconheça que (A), (B) e (C)

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são inconsistentes (ver Kraut, 1984, p. (C)a (I) são equivalentes entre si e ao
285-8). Mais uma vez, Sócrates sabe supor que (I) e (B) acarretam que a
que pelo menos uma de (A), (B) ou (C) temperança não é calma, sem dar a
deve ser falsa, mas não tem razão Carmides, ou a nós, nenhuma razão
para abandonar nenhuma delas em para aceitar estas suposições que não
particular. são nem um pouco triviais. E, como
muitos já observaram há anos, o ar-
SÓCRATES ESTÁ TRAPACEANDO? gumento de Sócrates se aproveita da
ideia que o contrário de calmo é
Sócrates sustenta conjuntos de rápido, e não, como certamente
crenças que ele próprio sabe que não pretendia Carmides, tumultuoso,
podem ser elas todas verdadeiras. excessivo ou algo similar. É difícil
Porém, ao conduzir o elenchus, ele imaginar que Platão não estava
insiste continuamente para que o consciente de ambos os pontos, é
interlocutor largue a suposição que difícil imaginar que ele não está
ele estava questionando assim que representando Sócrates como
aparecer que a suposição é trapaceando.
inconsistente com outras coisas nas
quais o interlocutor acredita. É isso Porém, por vezes o que é difícil
correto? É isso trapacear, para pôr a de acreditar é verdadeiro; permitam-
questão como veio a ser posta depois me tomar um par de exemplos do Íon
da publicação de Vlastos, 1991, que, penso, são mais claros. Neste
especialmente cAp. 5, “Sócrates diálogo, o rapsodo Íon se atribui duas
trapaceia?” Se trapacear consiste em competências interligadas, uma
oferecer argumentos que se performativa e uma crítica. Ele alega,
reconhece ter uma base questionável primeiro, que é capaz de recitar os
ou se consiste em encorajar seus poemas de Homero com força,
interlocutores a abandonar as sentimento e efeito (530d4-5; cf.
suposições quando não se pode exigir 535b2-3). E alega, em segundo lugar,
tal coisa, parece-me claro que que é capaz de compreender a
Sócrates de fato trapaceia. Ele substância do pensamento de
provavelmente trapaceou no Homero (530c5) e de oferecer
argumento que acabamos de discutir observações críticas pertinentes a
do Carmides, ao supor que as este pensamento (530dl). Íon
formulações de também aceita a sugestão de

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Sócrates que sua competência crítica da fenomenologia da experiência


está baseada no conhecimento poética (533c9-536b5). O símile e a
daquilo sobre o que fala Homero teoria são aceitáveis como explicação
(530c7) e é esta ideia que vira o alvo da competência performativa de Íon,
de Sócrates no elenchus que se segue. e são apresentados como tais por
No curso do argumento, Íon admite Sócrates (veja “recitar” em 535b4 e
que sua competência crítica se limita 536b6; “melodia” em b7) e aceitos
a Homero (532b6-c4). Embora, como por Íon (535a3-5, a8, alO, c4-dl, el-6).
ele próprio concede, outros poetas Porém, Sócrates continua, iniciando
falem das mesmas coisas sobre as em 536b6, fazendo passar sua
quais fala Homero (531cl-d2), ele, Íon, explicação da competência
nada tem a dizer sobre os outros performativa de Íon por uma
poetas (532b8-c2). Sócrates então explicação de sua competência
conclui que a competência crítica de crítica. A passagem se dá em uma
Íon com respeito a Homero não está única frase: “quando uma melodia
baseada na posse de um daquele poeta [a saber, Homero] é
conhecimento: “se você fosse capaz recitada, você imediatamente
de falar sobre Homero por conta de acorda... e você tem muito a dizer”
um conhecimento, você também (536b7- cl, grifo meu; trad. De
seria capaz de falar sobre todos os Woodruff). Sócrates então conclui:
outros poetas” (532c7-8). “não é porque você domina um
conhecimento sobre Homero que
Íon aceita isso (532cl0), porém você pode dizer o que diz [sobre ele],
insiste que sua competência crítica mas por conta de uma dádiva divina,
com relação a Homero, ainda que porque você está possuído” (536cl-2;
limitada, é, segundo a opinião trad. Woodruff). Isso não é justo da
comum, real e ele, neste sentido, parte de Sócrates e Íon
pede a Sócrates para que explique a compreensivelmente se refreia: “você
base de sua competência, dado que fala bem, Sócrates, mas me admiraria
ela não pode ser explicada pela posse se você for bom o suficiente para me
de conhecimento (532b8-c4). convencer que estou possuído ou
Sócrates responde, como ficou desvairado quando elogio Homero”
famoso, com o símile do ímã e a (536d4-6). Íon aceita a teoria de
doutrina da inspiração divina, Sócrates como uma explicação de sua
acompanhada de fatos provenientes competência performativa, mas a

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rejeita como uma explicação de sua saberá o que é adequado para os


competência crítica, e o diálogo artesãos dizer a respeito de seus
continua. Sócrates tentou trapacear, ofícios, e assim ele procede (540b8,
tentando fazer passar uma explicação c2-3, c6, dl). Porém, Sócrates então
plausível da competência lhe dá uma brecha: “um rap- sodo
performativa de Íon por uma saberá as coisas que um homem deve
explicação também de sua dizer, se for um general, para
competência crítica, e Íon recusou-se encorajar suas tropas?” (540dl-2). Íon
a deixá-lo levar a melhor assim. toma a oportunidade: “sim! Um
rapsodo saberá este tipo de coisas”
A segunda tentativa de Sócrates (540d2-3). Sócrates então diz que Íon
para a mesma conclusão também deve ser um general (540d4) e isto é
depende de uma trapaça – uma que, um gancho do qual ele não se livrará
desta vez, tem sucesso. O ponto mais para o resto do diálogo.
central do argumento começa em
540b3. Sócrates está tentando Isso é novamente trapaça. O que
determinar o que Íon, como um Íon está tentando dizer é que um
rapsodo, conhece. Íon avança que rapsodo conhece o caráter humano,
“ele saberá que coisas são adequadas que um rapsodo pode, digamos,
para um homem ou uma mulher dizer compor o discurso do Dia de São
– ou para um escravo ou um homem Crispin na peça Henrique V. Ele sabe o
livre, ou para um seguidor ou um tipo de discurso que um homem que
líder” (540b3-5). Sócrates supõe que aprendeu em sua juventude que seria
Íon está falando não sobre homens, o futuro rei da Inglaterra vai fazer,
escravos ou mulheres enquanto tais, agora que se tornou rei, diante de
mas sobre homens que são também uma batalha decisiva em uma guerra
navegadores em uma tempestade ou discutível ocorrida por sua iniciativa.
doutores tratando de doentes, ou de Porém, Sócrates não deixará que Íon
escravos que são também vaqueiros faça uma tal reivindicação. O único
que precisam acalmar o rebanho, ou tipo de pessoa que se pode ser,
mulheres que trabalham também o segundo a lógica do argumento de
algodão para tecer o fio – todos eles Sócrates, é um artesão, e, segundo o
artesãos trabalhando em seus ofícios argumento, um rapsodo não é capaz
(540b6-8, cl-2, c4-6, c6-dl). Íon deve, de escrever o discurso do Dia de São
obviamente, negar que um rapsodo Crispino sem ser capaz de vencer a

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Batalha de Agincourt. Não é dada uma tem a importância que usualmente


chance para que Íon diga o que lhe é atribuída e dado que Sócrates
entende por isso. regularmente trapaceia. Vou aqui
tentar explicar por que Platão permite
O Íon termina com mais uma que Sócrates trapaceie em tantas
trapaça e encerra tematizando o ocasiões, embora não pense saber em
trapacear. “Você está me cada caso por que ele assim o faz.
enganando”, Sócrates diz para Íon,
“se o que você diz é verdadeiro, que o Propus questões sobre sete
que permite você elogiar Homero é o passagens nos diálogos socráticos:
conhecimento... você está me
trapaceando” (541el-5). Porém, “se... a) Atese de Sócrates em La. 192b9-
você for possuído por uma dádiva dll que a dialética de sua refutação
divina... então não está me da definição de Laques da
enganando” (542a3-6). Sócrates coragem como persistência apoia
então dá a Íon a opção de ser a conclusão que a coragem é
considerado “como um homem que perseverança sábia.
engana ou como alguém divino” (a6- b) A suposição de Sócrates no
7; trad. Woodruff); sem surpresa, Íon argumento em Chrm. 159b5-
salta sobre a última opção. (bl-2). 160d3 que suas várias
Sócrates é famoso por sua indiferença formulações do princípio (I) (a
a o que os outros pensam sobre saber, que coisas rápidas não são
alguém em outros diálogos (veja, por menos belas ou admiráveis do que
exemplo, Cri. 48c2-6); aqui, ele coisas calmas) são equivalentes
constrange Íon a dizer algo em que entre si.
Íon não acredita por meio de um c) Sua crença, no mesmo
apelo ao que os outros podem pensar argumento, que, de (I) e a tese que
dele. a temperança está entre as coisas
belas e admiráveis, se segue que a
TENTATIVAS DE EXPLICAÇÃO temperança não é calma.
d) Seu tratamento, no mesmo
Fiz várias questões sobre o argumento, de “rápido” como o
elenchus, em particular sobre o que se oposto de “calmo”.
pode dizer que ele estabelece, dado e) Sócrates constrange Íon no Íon a
que a consistência em crenças não aceitar que a explicação plausível

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(de Sócrates) da competência “rápido” como contrários, sugiro que


performativa por meio da teoria Platão tem outros itens em sua
da inspiração divina se aplica agenda no Carmides (especialmente o
também à competência crítica de de distinguir Sócrates de Crítias, que
Íon. tem algumas opiniões que parecem
f) Sua recusa, igualmente no Íon, em similares, pelo menos verbalmente, a
permitir que Íon diga o que algumas das ideias do próprio
manifestamente está tentando Sócrates) e põe na boca de Sócrates o
dizer. argumento por falta de outro melhor.
g) Sua acusação que Íon o está Quanto ao fato de Sócrates assumir
trapaceando no final do Íon. sem argumento, no Íon, que a teoria
da inspiração divina, plausível como
Tenho pouco a dizer sobre (g) que uma explicação para a competência
não seja meramente especulação. performativa de Íon, mas não para sua
Talvez Platão esteja consciente que competência crítica, mas mesmo
está fazendo Sócrates trapacear e assim aplicá-lo a ambas, sugiro que
esteja preocupado com que seus Platão tinha concebido a teoria da
leitores percebam que uma trapaça inspiração divina para a composição e
esteja em andamento, e espera que performance poética, precisava de um
este sentimento seja colado a Íon, não lugar para discuti-la e não imaginou
a Sócrates. Talvez, alternativamente, uma jeito melhor para a introduzir no
seja o contrário: Platão quer que diálogo.
apreciemos que Sócrates está
trapaceando e espera que, se Sou mais esperançoso, penso, em
mencionar a questão de trapacear em relação a (f), a recusa de Sócrates em
conexão com Íon, nós a faremos nós permitir a Íon dizer o que pensa. Creio
mesmos em conexão com Sócrates. que Íon quer sustentar que ele – ou o
Ou talvez ele queira que distingamos poeta que ele representa – é um
claramente entre as duas especialista no caráter humano. Eis as
competências muito diferentes de Íon palavras de Íon novamente: “[um
e que pensemos seriamente acerca do rapsodo] saberá que coisas são
tema da poesia e do caráter humano. adequadas para um homem ou uma
mulher dizer – ou para um escravo ou
Tenho igualmente pouco a dizer um homem livre, ou para um seguidor
sobre (d) e (e). Ao tratar “calmo” e ou um líder” (540b3-5). Compare

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essas palavras com estas, tiradas da Porém, creio que, enquanto parte da
explicação que Aristóteles dá na agenda de Platão nos diálogos
Poética de sua tese que a poesia é socráticos consiste em explorar e
mais filosófica e séria do que a desenvolver várias ideias acerca da
história, já que está relacionada a explicação ou causalidade e abstração
universais, não a particulares: que impulsionam a dialética, ele evita,
com apenas algumas exceções (p. ex.,
“entendo por afirmação universal Euthphr. 5dl-5), dar uma
uma que dirá que coisa provável ou apresentação oficial destas ideias até
necessariamente fará um tipo de o Fédon. Por exemplo, em Chrm.
homem, o que é o alvo da poesia, 159b5- 160d3, como vimos, Sócrates
embora ela afixe nomes próprios aos supõe que:
seus personagens” (Poet. 9, 1451b8-
10; trad. Bywater ligeiramente I. Coisas rápidas não são menos
modificada). É a mesma ideia. Platão belas ou admiráveis do que coisas
retoma aos poetas em outro lugar, na calmas (160d2-3) e
República. Porém, ele reserva suas A. A temperança é uma das coisas
armas pesadas na “antiga batalha belas ou admiráveis (159cl).
entre poesia e filosofia” para o livro X, Implicam a falsidade da definição
depois de ter desenvolvido nos livros original de temperança de
IV e livros VIII-IX uma teoria do caráter Carmides:
humano que a torna província da B. Temperança é calma (159b5-6).
filosofia, não da poesia (ver o capítulo
Platão e as Artes). Ele não tem esta Por quê? (B) trata da temperança
teoria no Íon ou não pode, por alguma entendida como um estado do
razão, desenvolvê-la lá. Assim, a razão caráter: é pensada como algo que está
por que a Íon não é permitido dizer o (ou pode estar) em Carmides (veja,
que quer e reivindicar conhecimento por exemplo, 158e6- 159al). É claro a
do caráter humano é que Platão não partir dos argumentos de apoio a (I),
está em condições, no Íon, de em contraste, que é acerca de ações
responder a ele. rápidas e calmas. O que as conecta?
Se (I) e (B) devem ser de algum modo
Quanto a (a), (b) e (c), posso relevantes para a verdade de (A),
somente fazer sugestões (algumas temos de ler (I) como dizendo algo
das quais baseado em Johnson, 1977). acerca das ações que a temperança

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produz e não acerca do estado de C. Perseverança com sabedoria é


caráter que é a temperança. E bela ou admirável e boa (192c9-
teremos também de ler (B) e a 10).
definição original de Carmides:
Um modo de compreender o que
A. Temperança é calma (159b5-6) está ocorrendo aqui é o seguinte:
como implicando algo como: Laques definiu a coragem como
K. Ações calmas são mais belas ou perseverança. Sócrates argumentou
mais admiráveis do que ações que perseverança com sandice não é
rápidas. coragem. Tudo o que fica, então, para
assim dizer, da perseverança com a
Está muito longe de ser claro de qual Laques identificou a coragem é a
que princípios poderiam depender perseverança sábia. Donde Laques
tais leituras. tem alguma razão para acreditar que
a perseverança sábia é coragem.
Um segundo e mais impactante
exemplo é o argumento em La. Não nego que esta explicação
192b9-dll, que citamos no início. pode bem estar correta. Porém,
Lembre que Sócrates representa sua dispomos de uma explicação mais
refutação da definição de Laques da interessante. As teses relevantes são,
coragem como perseverança como novamente:
dando a Laques, pelo menos, razão
para acreditar que: B. A coragem está entre as coisas que
são admiráveis e muito belas
I. A perseverança sábia é coragem (192c5-6).
(192dl0- 11). C. Perseverança com sabedoria é
bela ou admirável e boa (192c9-
Porém, tudo o que temos no 10).
argumento que poderia ser suposto (B) presumivelmente significa ou pelo
como relevante para (I) são as duas menos implica:
teses: G. A coragem é uma coisa bela ou
admirável (192d8).
B. A coragem está entre as coisas
que são admiráveis e muito belas (G) e (C) podem receber uma
(192c5-6). leitura causai. Isto é, podemos ler (G)

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e (C) como dizendo que é a coragem para isso teremos de dedicar muito
nas ações corajosas que toma estas mais estudo do que até agora fizemos
ações belas ou admiráveis, e a à dialética dos diálogos socráticos.
perseverança em ações (Passos decisivos nesta direção são
perseverantes sábias é o que as toma feitos por Dancy, 2004. Ver também o
belas ou admiráveis, assim como capítulo Definições Platônicas e
lemos que “o amor é cego” (com Formas.)
desculpas a Jessica no Mercador de
Veneza II virtude 36-9) como dizendo CONCLUSÕES
que o amor nas pessoas que amam os
toma cegos aos erros daqueles que Do modo como descrevi o elenchus
eles amam. Se lermos (G) e (C) deste socrático, ele se vale de um exame
modo e se somos ligados à ideia que cruzado para extrair contradições dos
interlocutores no intuito de expor ao
H. Características similares devem conhecimento suas teses falsas.
ser explicadas por referência a
fatores explicativos similares (cf. Sócrates tinha interesse em expor
PhD. 97a2-b3), estaremos estas teses porque acreditava que
inclinados a concluir, com falsas convicções acerca de questões
Sócrates, que: importantes da vida humana
I. Perseverança sábia é coragem bloqueavam o caminho da felicidade
(192dl0- 11). das pessoas que tinham estas
convicções e que suas falsas
E se notássemos que ações convicções deviam ser removidas se
justas, ações temperantes, etc. são devessem ter chance à felicidade.
também belas ou admiráveis, nos Porém, a agenda dos diálogos
encontraríamos, dado socráticos de Platão vai bem além da
agenda crítica de Sócrates. Alguns de
(H), já a bom caminho da unidade das seus itens são: fazer homenagem a
virtudes na ação. Sócrates e compreender tanto o
homem quanto suas posições
Creio, então, que pode bem ser positivas; distinguir Sócrates de
possível encontrar racionalidade nas outros com os quais poderia ser
inferências nas passagens (a), (b) e (c) confundido (sofistas, erísticos, Crítias,
listadas no início desta seção. Porém, etc.); examinar as credenciais de

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diferentes pessoas que alegam saber REFERÊNCIAS E LEITURA


como devemos viver (políticos, COMPLEMENTAR
soldados, oradores, sofistas e poetas).
E, como sugeri, Platão tem uma Benson, H. H. (1987). The problem of the
elenchus reconsidered. Ancient Philosophy 7,
preocupação séria com a
pp. 67-85.
argumentação: como ela funciona,
quando tem sucesso, de que ______(1990). The priority of definition and
the Socratic elenchus. In Oxford Studies in
princípios depende, etc. Eles Ancient Philosophy, vol. 8 (pp. 19-65). Oxford:
constituem um largo leque de Oxford University Press.
preocupações que Platão tinha de pôr
______(1995). The dissolution of the problem
em harmonia ao compor seus of the elenchus. In Oxford Studies in Ancient
diálogos. Por vezes, como na Philosophy, vol. 13 (pp. 45-112). Oxford:
Apologia, Platão teve sucesso ao Oxford University Press.
tecer suas várias preocupações em ______(2000). Socratic Wisdom. New York
um único todo artístico e filosófico. and Oxford: Oxford University Press.
Outras vezes ele não teve tanto Brickhouse, T. C. e Smith, N. D. (1984). Vlastos
sucesso assim. Os que pensam que on the elenchus. In Oxford Studies in Ancient
podemos esperar que um pensador Philosophy, vol. 2 (pp. 185-96). Oxford:
com os dotes literários e filosóficos de Oxford University Press.
Platão que tenha sempre um (1991). Sócrates’ elenctic mission. In Oxford
completo sucesso a cada vez são Studies in Ancient Philosophy, vol. 9 (pp. 131-
pensadores fantasiosos; os 61). Oxford: Oxford University Press.
aconselharia a dar uma olhada em ______(1994). Plato’s Sócrates. New York:
Burke (1941) e pensar de novo. Platão Oxford University Press.
tem frequentemente de distorcer, Burke, K. (ed.) (1941). Antony on behalf of the
empurrar, impingir, martelar, esticar, play. In The Philosophy of Literary Form (pp.
esmaecer e desviar o olhar (para 279-90). New York: Vintage Books.
parafrasear Nozick, 1974: x), como Dancy, R. M. (2004).Plato’s Introduction of
todos nós, se estiver em um nível mais Forms. Cambridge: Cambridge University
Press.
alto.
Irwin, T. (1977). Plato’s Moral Theory: The
NOTA Early and Middle Dialogues. Oxford and New
York: Clarendon Press.
Todas as traduções são do autor, a menos Johnson, T. E. (1977). Forms, reasons, and
que haja indicação em contrário. predications in Plato’s Phaedo. Unpublished

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

PhD dissertation, Claremont Graduate


School, Clare- mont, Calif.
Kraut, R. (1983). Comments on Gregory
Vlastos, “The Socratic elenchus”. In Oxford
Studies in Ancient Philosophy, vol. 1 (pp. 59-
70). Oxford: Oxford University Press.
______(1984). Sócrates and the State.
Princeton, NJ: Princeton University Press.
Lesher, J. H. (2002). Parmenidean elenchos. In
G. A. Scott (ed.) Does Sócrates Have a
Method? Rethinking the Elenchus in Plato’s
Dialogues and Beyond (pp. 19-35). University
Park, Pa.: Pennsylvania State University Press.
Nozick, R. (1974). Anarchy, State, and Utopia.
New York: Basic Books.
Polansky, R. (1985). Professor Vlastos’
analysis of Socratic elenchus. In Oxford
Studies in Ancient Philosophy, vol. 3 (pp. 247-
60). Oxford: Oxford University Press.
Robinson, R. (1953). Plato’s Earlier Dialectic.
Oxford: Oxford University Press.
Scott, G. A. (ed.) (2002). Does Sócrates Have a
Method? Rethinking the Elenchus in Plato’s
Dialogues and Beyond. University Park, Pa.:
Pennsylvania State University Press.
Vlastos, G. (1983). The Socratic elenchus. In
Oxford Studies in Ancient Philosophy, vol. 1
(pp. 27-58). Oxford: Oxford University Press.
______(1991). Sócrates, Ironist and
MoralPhilosopher. Ithaca, NY: Comell
University Press.
______(1994). The Socratic elenchus: method
is ali. In M. F. Bumyeat (ed.) Socratic Studies
(pp. 1-28). Cambridge: Cambridge University
Press.

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6. Definições platônicas e socráticos de Platão.

formas Aristóteles nos diz, também, que


a adoção por parte de Platão da busca
R. M. DANCY por definições de Sócrates tomou um
rumo especial: Platão tornou os
Aristóteles nos diz (Metaph. objetos de definição, as “Formas”,
I.6.987a29- bl4, XIII.4.1078bl2-32 e distintos ou separados das coisas
9.1086a24-b4) que Sócrates se sensíveis. Veremos isso ocorrer não
preocupara com definições no nos diálogos socráticos, mas no Fédon
domínio dos “assuntos éticos” e na República. Eles pertencem ao
(compreendido largamente de modo grupo dos que são comumente
a incluir virtualmente todo assunto de referidos como diálogos “médios”.
avaliação) e que Platão herdou dele
esta preocupação. Muitos dos Os diálogos socráticos que serão
diálogos de Platão classificados como considerados aqui são: Carmides,
“jovens” ou “socráticos” mostram Eutifro, Hípias Maior, Laques, Lísis, o
uma preocupação constante com Protágoras e o livro I da República
assuntos de definição. Não vejo (sobre a controvérsia a respeito do
nenhuma boa razão para duvidar de Hípias Maior, Lísis e República I, ver as
Aristóteles (por outro lado, ver, por referências em Dancy, 2004, p. 7-9).
exemplo, Kahn, 1996) e estou Quem questiona a veracidade
fortemente inclinado a supor que os histórica destes diálogos tomará a
diálogos socráticos nos dão algo do reconstrução a seguir como
sabor de um discurso socrático. Em pertinente unicamente ao próprio
outras palavras, tomo estes diálogos Platão. Portanto, as ocorrências do
como uma ficção histórica, nome “Sócrates” devem ser tomadas
especialmente em conexão com as somente como se referindo à
definições. Até em Xenofonte personagem nos diálogos de Platão.
Sócrates demonstra uma predileção
por perseguir definições (ver, por Isso se aplica a fortiori ao uso do
exemplo, Mem. I.i. 16; IVvi), embora, nome “Sócrates” que ocorre na
quando tem de reconstruir a prática discussão abaixo dos diálogos médios,
de Sócrates, Xenofonte não nos dá Fédon, Banquete e República, bem
nada da ordem dos diálogos como do Mênon, que eu considero

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como um diálogo de transição. Em belas corriqueiras, sob a razão que


minha visão (que não é somente estas últimas são belas somente
minha), estes últimos diálogos relativamente, enquanto o Belo é
envolvem muito mais temas de Platão belo plenamente (ver o capítulo As
e menos de Sócrates do que o fazem Formas e as Ciências em Sócrates e
os diálogos socráticos; nesta Platão). Ele efetua este contraste do
perspectiva, o Sócrates dos diálogos seguinte modo (mais comentários a
socráticos tende a representar o seguir):
Sócrates histórico, ao passo que o
Sócrates dos outros diálogos tende a (ARE) Há algo como o Belo.
representar Platão, e há um (ARC) Uma [coisa: a língua grega não
desenvolvimento no tempo de um requer este termo] bela corriqueira é
grupo para outro (ver os capítulos também feia.
Interpretando Platão e O Problema (ARBelo) O Belo nunca é feio.
Socrático). ••• (ARCo) O Belo não é o mesmo que
uma [coisa] bela corriqueira.
Você não precisa aceitar
nenhuma destas posições para seguir Aqui (ARE) postula a Existência do
este capítulo. O desenvolvimento de Belo, (ARR) é uma premissa (a ser
que falo é, em primeira instância, um argumentada) segundo a qual coisas
desenvolvimento lógico: os belas Rotineiras são belas somente
argumentos de Sócrates nos diálogos relativamente, (ARB) é uma premissa
socráticos não o comprometem, tal sobre a Forma, o Belo, de acordo com
como vejo, com a posição metafísica a qual não é belo unicamente
comumente denominada “Teoria das relativamente, e (ARCo) é a
Formas”, mas seus argumentos nos Conclusão.
diálogos “médios” o comprometem.
Porém, estes últimos argumentos Este argumento não comparece
emergem dos primeiros. Em nos diálogos socráticos, ainda que
particular, um argumento crucial que haja uma clara antecipação dele no
emerge é o que chamarei “argumento Hípias Maior (ver infra). Comparece,
da relatividade” (AR). Nos diálogos contudo, nos diálogos médios. Este é
médios, este argumento contrasta a o principal desenvolvimento de que
Forma, digamos, o Belo, com seus estou falando, e está ali, qualquer que
participantes mundanos, as coisas seja a cronologia ou as pessoas

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envolvidas. alimentar a Teoria das Formas.


Contudo, elas não implicam esta
Vamos construir uma Teoria da teoria; quando Sócrates está às voltas
Definição para Sócrates. Esta teoria com definições, ele não está às voltas
não tem a pretensão de ser a Teoria de modo algum com metafísica
da Definição de Sócrates ou a de (contra isso veja, por exemplo, Allen,
Platão, já que não existe uma Teoria 1970). Veremos a virada à metafísica
da Definição explícita nestes diálogos, quando chegarmos ao Fédon.
em contraste com os diálogos tardios
Fedro, Sofista, Político e Filebo, nos UMA TEORIA SOCRÁTICA DA
quais há algo mais sob a forma de uma DEFINIÇÃO
teoria (por vezes referida como o
“Método do Agrupamento e Talvez a primeira coisa a observar é
Divisão”). A Teoria da Definição que Sócrates não dispõe de um termo
baseia-se antes na refutação por que signifique diretamente
parte de Sócrates de várias tentativas “definição”; um termo que ele usa
específicas para definir termos, que significa, em primeira instância,
em pronunciamentos de Sócrates “fronteira”, mas o peso primário de
sobre o que deve ser uma definição; suas discussões recai sobre a questão
perguntamos, no caso de cada uma “o que é...?”, “o que é o pio?”
das refutações, como (Eutifro), “temperança?” (.Carmides),
especificamente ela malogra e então “o belo?” (Hípias Maior), etc.
como deveria ser uma definição que
teria evitado tal fracasso. Antes de introduzir nossa teoria,
devemos considerar por que Sócrates
Esta Teoria da Definição conterá está à busca de definições, por que
uma condição de adequação para responde em primeiro lugar às suas
uma definição razoavelmente questões “O que é...?”
imediata, adiante denominada
“Requerimento de Substitutividade”, Em República I, ele pergunta o
uma outra mais difícil, o que é a justiça; ele espera com isso
“Requerimento de Explicação”, e uma tornar claro se pessoas justas são mais
terceira bem problemática, o felizes que pessoas injustas e, assim
“Requerimento de Paradigma”. Estas (352dl-7), nos ajudar a ver como
duas últimas vão especialmente devemos viver nossa vida. Este

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interesse prático é bem visível em Sócrates, assim, quer definições


outros diálogos nos quais definições porque pensa que elas são essenciais
são buscadas. Os dois primeiros terços para se conceber como viver
do Laques têm a ver com a questão de corretamente e muito
se aprender ou não a lutar com armas frequentemente nestes diálogos os
pesadas ajuda a constituir o caráter, “preliminares” que levam à questão
especialmente a coragem; a questão de definição ocupam mais espaço que
“o que é a coragem?” é feita em 190d a discussão desta questão.
para dirimir a questão. O Lísis trata da
questão sobre o que é um amigo Mesmo assim, a questão pela
(212a8-b2: para a expressão, ver definição tem claramente grande
223b7-8), após considerações sobre importância e Sócrates nos dá uma
como os amigos devem tratar um ao razão para insistir nela quando
outro (estas considerações ocupam estamos tentando determinar como
metade do diálogo). No Eutifro, a viver. Ele pressupõe (contra isso ver,
questão “o que é a piedade?” é por exemplo, Beverluis, 1987), como
introduzida em 5c-d (citada a seguir), afirma explicitamente, algo a que me
após Eutifro ter dito que estava referirei como a “Suposição
processando seu pai por assassinato Intelectualista” (frequentemente
com base em teses sobre o que é agir referida alhures como “Falácia
de modo pio. Talvez o diálogo que Socrática” ou “Princípio da Prioridade
cause mais impacto neste sentido seja da Definição”; ver especialmente
o Protágoras, que inicia formulando a Benson, 1990; 2000, p. 112- 63;
questão se estudar com um sofista Dancy, 2004, p. 35-64 para mais
como Protágoras conduzirá à virtude comentário e referências), que
ou excelência, examina um número podemos formular como:
impressionante de ramificações de
largo alcance e termina com Sócrates (SI) Para saber que... F –, deve-se ser
dizendo a todo mundo que toda a capaz de dizer o que F ou F-dade é.
dificuldade foi devido a fracasso deles
em responder à questão “o que é a Onde “...F é uma sentença
excelência”. Todo mundo se mostra declara- tiva que contém “F” (ou “F-
por demais ocupado para se ocupar dade” ou “o F); por exemplo, onde “F’
disso e o diálogo tem fim. é “pio”, “...F pode ser “esta ação é pia”
ou “piedade ~e uma boa coisa”. Dizer

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o que é F ou F-dade é o definir. Assim, adotar “forma”. Os termos em


por exemplo: para dizer se processar questão eram bem comuns em grego
o próprio pai por assassinato em como termos para características ou
circunstâncias como as de Eutifro é o qualidades das coisas (inicialmente,
que deve ser feito, deve-se definir o características ou qualidades visuais),
pio ou a piedade (ver Euthph. 4d9-e8, usados por pessoas sem nenhuma
5c8-d5, 6d6-e7,15cll-el); para dizer se ideia profunda acerca do status
algo é bom ou belo (traduções ontológico das características e
alternativas da mesma palavra em qualidades. Assim, falarei de “formas”
grego, kalon: vou manter “belo”), nos diálogos socráticos e de “Formas”
deve-se definir o belo (ver Hp. Ma. nos diálogos médios.
286c5-d2, 298bll-c2, 304d4-e3); para
dizer se pessoas justas são mais felizes Sócrates por vezes dá início à sua
que pessoas injustas, deve-se definir busca de definição verificando se ele
justiça (ver R. I, 354al2-c3). e seu interlocutor concordam em que
haja algo sobre o que falar. No Hípias
Até aqui tenho usado Maior (287c8- d2), ele pergunta se
minúsculas, como em “o belo”, para existe algo como o belo, e Hípias
mencionar o sujeito sobre o qual prontamente concede que sim. Tais
Sócrates pergunta “o que é”. Nos concessões, quando chegamos à
diálogos médios, o belo é reconstruí- Teoria das Formas, são concebidas
do como uma Forma, “o Belo”. Vou como suposições sobre as Formas, ao
adotar esta convenção: maiúsculas fato que há algo como o Belo, a
serão utilizadas quando estivermos Forma. Porém, quando Hípias faz sua
falando de Formas. pronta concessão, ele não pensa que
ela está carregada deste tipo de peso
A convenção aplica-se também metafísico. E Sócrates imediatamente
ao termo “forma”; nos diálogos tira proveito da concessão para o que
socráticos, Sócrates fala mais de uma quer: “diga-me então, meu caro, o
vez sobre o que está procurando que é o belo?” (287ed2-3). Ele não se
como uma “forma” (eidos) ou uma investe em uma elaboração do status
“ideia” (idea). Não há nenhuma força ontológico do belo. O diálogo está às
discernível entre estes dois termos, voltas com a definição, não com a
ambos derivados da raiz “id—” ontologia. Quando falamos de modo
associada a um verbo para ver: vou habitual sobre, digamos, animais e

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perguntamos o que distingue o leão  o Requerimento de Explicação: o


do tigre, usualmente não temos definiens deve explicar a aplicação
nenhum interesse na questão metafí- de seu definiendum.
sica se o leão é algo além dos leões
comuns. E Sócrates não parece O primeiro dos três
demonstrar nenhum interesse na requerimentos pode ser, com
questão paralela se o belo é algo além conveniência, partido em dois, com
das coisas belas – pelo menos, não base no esquema que o formaliza:
neste ponto. Do ponto de vista deste
capítulo, esta é a diferença entre os (RS) w = df abc -> (...w – <-> ... abc -)
diálogos socráticos e os da fase
média. entendendo “...w como antes com
“...F e lendo como “somente se” e
A Teoria da Definição que vamos como “se e somente se”. Então, (RS)
reconstruir parece o seguinte. pode ser entendido como a conjunção
Começamos com um candidato para de
definiens: uma expressão que
pretende definir adequadamente um (Nec) w = dfabc -» (...w—>... abc -),
termo, o definiendum. Os diálogos
socráticos requerem de uma que nos diz que o definiens “abc”
definição adequada que ela satisfaça: fornece uma condição necessária
para que algo satisfaça o definiendum
 o Requerimento de “w”, e
Substitutividade: o definiens deve
poder ser substituído por seu (Suf) w – dfabc (...w —>... abc -),
definiendum sem alterar a
verdade ou falsidade da sentença que nos diz que o definiens nos
que contém o definiens (salva fornece uma condição suficiente para
veritate); que algo satisfaça o definiendum. Por
 o Requerimento de Paradigma: o exemplo, se “égua” é corretamente
definiens deve fornecer um definida como “a fêmea do cavalo”,
paradigma ou padrão em então (Nec) nos diz que se Mimosa é
comparação com o qual casos de uma égua, ela é uma fêmea do cavalo,
seu definiendum podem ser e (Suf) nos diz que, se ela é uma fêmea
determinados; e do cavalo, ela é uma égua.

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Enunciar puramente os está nos dizendo também que, por


requerimentos malogra em espelhar contraposição, (Suf) é satisfeito
em um importante aspecto a prática também.
de Sócrates, pois Sócrates nem
sempre os trata como requerimentos Eutifro aceita isso e Sócrates o
isolados: antes, ele tende a menciona após Eutifro ter tentado
apresentar mais de um deles em definir o pio como “processar quem
conjunto. comete injustiça, seja a respeito de
assassinatos, roubos em templos, ou
Como um exemplo deste quem causa dano de algum outro
fenômeno, considere um par de modo, seja ele o pai, a mãe ou alguém
passagens do Eutifro. Primeiro, em outro, e não o processar é ímpio”
5c8-d5, Sócrates diz: (5d9-e2). Podemos formular isso
como:
Agora, por Zeus, diga-me o que acabou
de afirmar que conhece claramente: (Dipio) x é pio = df x é o caso de
que tipo de coisa você diz que o reve-
rente [isto é, o pio: veja 5d2 a seguir] e
processar quem causa dano de um
o irreverente [isto é, o ímpio] são, no modo ou de outro.
que toca tanto ao assassinato quanto a
outros [assuntos]? Antes de ir adiante, deve-se notar
que (Djpio) é totalmente típico de
Ou não é o pio ele próprio o mesmo todos os diálogos sob consideração
em cada ação, e o ímpio, novamente,
o contrário do pio em sua totalidade,
pelo fato que, apesar de gerações de
mas como ele próprio e tudo o que há comentário, os interlocutores de
de ser ímpio tem, com respeito à sua Sócrates, em suas primeiras tentativas
impiedade, uma ideia? de definição, não citam “particulares”
como opostos a “universais” (ver
(Quando, no início, Sócrates diz Nehamas, 1975/6. No caso de (D^io),
que Eutifro “acabou de” afirmar que processar pessoas más é um
sabia claramente o que o reverente é, “universal” perfeitamente bom,
faz alusão a 4d-e, passagem na qual a instanciado muitas vezes em cortes de
Suposição Intelectualista é justiça mesmo atualmente. Os
desdobrada.) Em meus termos, ele interlocutores de Sócrates sempre
está nos dizendo que (Nec) é satisfeito propõem universais, embora
e, se ler- mos “ímpio” como “não pio”, frequentemente, como neste caso,

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universais que não são alguém faz, direi que é pio, e o que
suficientemente universais, como quer que não seja tal, direi que não [é]
pio.
observa Sócrates. O que ele diz é (6d6-
8):
Aqui temos não somente
... Porém, Eutifro, você diria que Substitutividade, mas também o
muitas outras coisas são também pias. Requerimento de

Eutifro: Pois elas também são [pias]. Explicação (que “forma ela própria
pela qual todas as coisas pias são
Até aqui, tudo o que temos é pias”), bem como o Requerimento de
Substitutividade, em particular (Nec): Paradigma (“servindo-me dela como
há outras coisas pias além de um paradigma, o que quer que seja
processar malfeitores, de sorte que tal como ele é... direi que é pio, e o
não nos dá uma condição necessária que quer que não seja tal, direi que
para a piedade. não [é] pio”). Porém, tudo o que
Sócrates requer no argumento contra
O que Sócrates diz a seguir vai (D^io) é (Nec); ele não faz uso algum
além disso (6d9-e7): desses requerimentos adicionais. Fará
isso mais tarde, e eles terão um
Sócrates: Então, você lembra que eu emprego separado (ver a seguir).
não lhe disse para ensinar-me uma ou
duas das muitas coisas pias, mas
Em outros diálogos, o
aquela forma ela própria pela qual
todas as coisas pias são pias? Você, Requerimento de Substitutividade é
pois, disse, eu penso, que é graças a empregado sem menção aos outros.
uma ideia [= forma: veja No Laques, a primeira tentativa
anteriormente] que as coisas ímpias (190e5-6) de definir a coragem como
são ímpias e as coisas pias, pias; ou
“fincando o pé” fracassa porque há
você não lembra?
ações corajosas que não envolvem
Eutifro: Lembro-me, de fato. “fincar o pé”, mas, de fato, recuar
(191a5-c6); Sócrates quer, diz ele, “o
Sócrates: Então, ensina-me esta ideia, que é o mesmo em todos os casos”
o que é, de sorte que, olhando para ela (191el0-ll). Aqui o definiens não logra
e servindo-me dela como um a Substitutividade ao malograr em dar
paradigma, o que quer que seja tal uma condição necessária. A segunda
como ele é entre as coisas que você ou

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tentativa de Laques (192b9-cl) define somente um termo substituível


a coragem como perseverança; uniformemente pelo termo definido,
Sócrates objeta observando que há mas também deve explicar a aplicação
casos de perseverança que não con- do termo definido. Porém, isto é
tam como coragem (192c5-d9; o inicialmente plausível somente se
argumento de Sócrates é mais “explicar” é entendido de modo fraco.
complicado que isso, mas está é sua Talvez faça sentido dizer que o que
base). Aqui o definiens não logra a explica o fato que isto é uma égua é
Substitutividade porque não dá uma que se trata de uma fêmea do cavalo,
condição suficiente. Todas as outras mas esta explicação não é “causai” em
tentativas neste diálogo fracassam nenhum modo óbvio, ainda que
por uma ou outra destas duas razões, possamos reformular a alegação
sem o auxílio dos outros dizendo que isto é uma égua porque é
requerimentos. O mesmo vale para uma fêmea do cavalo: o que é
muitos outros casos em outros explicado é meramente o que
diálogos. entendemos ao chamá-la de “égua”;
estamos meramente explicando o
Com o Requerimento de conteúdo da alegação que “isto é uma
Explicação é uma outra história. égua”.
Consigo encontrar apenas um caso no
qual é usado em um contexto que não No único contexto em que o
menciona outros requerimentos. Requerimento de Explicação aparece
Porém, ele carrega o peso principal sozinho, o argumento complexo do
em mais de um dos argumentos de Euthphr. 9dl-llbl, ele é, no final, tudo o
Sócrates contra as definições que está em questão. A definição a ser
propostas; por vezes, embora os derrubada é:
outros requerimentos apareçam no
pano de fundo, eles são irrelevantes (Djpio) x é pio = dfxé amado por todos
para o curso real do argumento de os deuses (para (D2PÍ0), veja a seguir).
Sócrates. A tese decisiva que opera contra isto
é a concessão de Eutifro, segundo a
É útil considerar a plausibilidade qual (CE) o que é pio não é pio porque
inicial do Requerimento de é amado por todos os deuses; antes, é
Explicação. A ideia é que uma amado por todos os deuses porque é
definição adequada deve nos dar não pio.

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A contestação de Sócrates é que, “conF’: o que define “belo” não pode


se (D3pio) fosse correta, se seguiria conter nada de feio. Para o Sócrates
que o que é pio é tal porque é amado nos diálogos que estamos
por todos os deuses. Isto equivale a considerando, isto não é verdade para
dizer que, se (D3pio) fosse correto, se uma grande maioria de coisas que são
seguiria que o conteúdo da alegação belas; elas são feias em diferentes
que “isto é pio” poderia ser aspectos, em momentos diferentes,
desdobrado como “isto é amado por aos olhos de pessoas diferentes e
todos os deuses”: não há nada mais assim por diante. Elas são, neste
ocorrendo aqui do que estava no caso sentido, somente relativamente
da “égua” e “fêmea do cavalo”. De belas; elas são belas ou feias
qualquer modo, não há nenhuma relativamente a certos contextos de
sugestão que alguma entidade super- avaliação, e o belo não pode ser isso.
física etiquetada “o Amado por Todos
os Deuses” estaria causando várias Há um caso em que o
ações ou pessoas serem pias. Requerimento de Paradigma é
empregado virtualmente de modo
Uma comprovação completa isolado, mais uma vez no Eutifro (e, de
requereria uma análise detalhada do novo, o argumento é mais complexo
argumento real de Sócrates, que é que o que indicamos a seguir). Em
bem mais complexo do que indica o 6ell- 7al, Eutifro tenta definir o pio
esquema anteriormente exposto, mas como o que é amado pelos deuses,
não há espaço aqui para o fazer. isto é:

Frequentemente, o (D2PÍ0) x é pio = df x é amado pelos


Requerimento de Explicação surge em deuses.
conexão com o Requerimento de
Paradigma. Vejamo-lo, pois, É a revisão de Sócrates disto que
inicialmente. leva a (D3pio), que em acréscimo
requer unanimidade da parte dos
A ideia geral é que o que é citado deuses, e esta revisão é requerida
como definindo um termo “F” deve pelo argumento contra (D2pio). Com
ser um paradigma para “F’ no sentido efeito, este último gira em tomo da
em que não aceita nenhum crença de Eutifro (já registrada em
compromisso com o termo contrário 6b7-c7 e à qual Sócrates faz apelo em

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7b2-4, d9- e4) que os deuses belo ou qualquer outra coisa não
discordam entre si, e alguns aprovam relativamente, ao passo que qualquer
(o “amor) que outros desaprovam. ou todos os casos corriqueiros das
Sócrates generaliza isso, legitima- coisas pias e belas são meramente
mente ou não, na tese que as mesmas relativamente pias, este definiens não
coisas são todas amadas ou odiadas poderá ser substituído por “pio” ou
pelos deuses e conclui que as mesmas “belo” nos casos corriqueiros, pois
coisas são todas pias ou ímpias (7el0- este definiens não nos fornece um
8a9). Precisamos da Substitutividade termo coextensivo ao termo definido,
para isso, mas o que realmente solapa mas sim um termo que designa uma
(D2PÍ0) é isto (8al0-12): única instância do termo definido,
ainda que uma instância perfeita.
Sócrates: Você, então, não respondeu
ao que perguntei, surpreendente Uma das características do
amigo, pois não estava perguntando
por aquilo que é, enquanto é a mesma
discurso de Sócrates que tende a
[coisa], de fato pio e ímpio; porém, ao apoiar o Requerimento de Paradigma
que parece, o que é amado pelos é seu hábito não invariável, mas
deuses é também odiado pelos comum de se referir ao que quer
deuses. definir usando expressões nominais
genericamente abstratas como “o
A crítica não é que há uma pio” ou “o belo” no lugar de nomes
contradição na conclusão que as abstratos como “piedade” ou
mesmas coisas são pias e ímpias; “beleza”. (Por exemplo, o nome
antes, é que (D2pio) fracassa quanto abstrato “beleza” ocorre somente
ao Requerimento de Paradigma: o uma ou duas vezes no Hípias Maior
que é amado pelos deuses não é em 292d3 e provavelmente em uma
consistentemente pio, isto é, pio e citação de Heráclito em 289b5; em
sob nenhuma circunstância ímpio. todos os outros lugares neste diálogo,
ele emprega “o belo”.) Isto toma a
O Requerimento de Paradigma é
tese que o belo é belo parecer uma
problemático: não é em nada óbvio
tautologia; a tese que o belo é feio,
que uma definição possa ao mesmo
uma contradição. Assim, a
tempo satisfazer a ele e à
“Autopredicação” (esta expressão
Substitutividade. Claramente, se um
remonta a Vlastos, 1954) (ver
definiens nos fornece algo que é pio, também o capítulo Problemas para as

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Formas) /. (TT3) O F (ou F-dade) é ele próprio


sempre F.
(AP) OFéF
(TT1) é uma versão reescrita do
soa de modo mais natural que talvez Requerimento de Explicação, (TT3) é
devesse, assim como o faz sua forma (APf) e é tomada aqui como uma
robustecida (APf) O Fé sempreFe consequência de (TT1) em conjunção
nunca conF. com a nova tese (TT2); isto a faz uma
Teoria da Transmissão: o que quer
Sócrates compra ambas, bem que cause x ser F é ele próprio F por
como o fazem seus interlocutores transmitir Fax.
metafisicamente inocentes (p. ex.,
Eutifro em Euthphr. 6e4-9 e 8al0-b9 e Isto foi por séculos uma teoria
Protágoras em Prt. 330b7-e2, onde a popular da causalidade; pode ser
suposição é carregada com termos encontrada, por exemplo, em
abstratos como a forma F-dade). Anaxágoras, Aristóteles, na primeira
prova da existência de Deus em
De qualquer modo, é a (APf) que Tomás de Aquino e na Terceira
conecta o Requerimento de Meditação de Descartes. (Atualmente
Paradigma com o Requerimento de pode parecer difícil explicar sua
Explicação e começa a introduzir uma popularidade: muitas coisas causam
dose de metafísica (embora ainda não dor sem, infelizmente, estar elas
a Teoria das Formas), pois Sócrates próprias com dor.) Que é uma teoria
ocasionalmente opera com o que metafísica é inegável, já que é uma
chamarei “Teoria de Transmissão da teoria sobre a causalidade (ver
Causalidade” (a expressão provém de também o capítulo O Papel da
Lloyd, 1976), que possa ser Cosmologia na Filosofia de Platão).
apresentada como segue: Porém, o fato de ser aceita por todos
estes filósofos mostra que ainda não
(TT1) É o F (ou F-dade) pelo que algo é a Teoria das Formas, visto que
conta como um F. nenhum deles aceitou esta teoria.
Nos diálogos sob discussão aqui
(TT2) O que quer que seja pelo que apresentados, Sócrates não a conecta
algo conta como como F é ele próprio com nenhuma questão que tenha a
sempre F e nunca conF. ver com o status ontológico do F: é

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aceita por interlocutores que nunca observa que uma moça bela, ainda
refletiram sobre estas questões, que bela quando comparada a um
como (novamente) Protágoras no macaco, é feia quando comparada a
Protágoras (332b6-e2) ou, em um deus (289al-b7), e reformula isso
contextos de busca de definição, na seguinte objeção (289c3-d5,
Carmides e Hípias. omitindo algumas complicações):

Carmides tenta definir a quando perguntado pelo belo, você dá


temperança como modéstia (Chrm. como resposta, como você mesmo diz,
o que de fato não é mais belo que
160e3-5). Sócrates invoca contra isso feio?... Porém... se lhe tivesse
(161a8-9) a tese que o que toma bons perguntado já no início o que é belo e
os homens deve ele próprio ser bom feio e se você me tivesse dado como
e nunca mau. Isto é uma instância de resposta o que acabou de dizer, não
(TT2) e Carmides a aceita sem teria você respondido corretamente?
Porém, ainda lhe parece que o belo em
hesitação. Ele também concorda que si mesmo, por meio do qual todas as
a temperança torna bons os homens outras [coisas] são adornadas e se
e que a modéstia, por vezes, é ruim. mostram como belas quando esta
Portanto, temperança não é forma é acrescentada, é uma moça,
modéstia. (Isto sumaria um um cavalo ou uma lira?
argumento muito difícil, mas este é o
fio condutor.) Hípias continua, sem
comentários. Claramente, o que
Em Hp. Ma. 287e2-4, Hípias desqualifica “uma bela moça” como
define “o belo” como segue: um definiens para o belo é que não
pode explicar por que outras coisas
(Dbelo) x é belo = df x é uma moça são belas, e não pode fazer isso
bela, em que o que é significado é porque uma moça bela não é
qualquer moça bela. Sócrates inicia, somente bela, mas também feia (aqui
ignorando a óbvia objeção de em comparação a outras coisas). Isto
circularidade, com uma outra objeção enfim conecta o Requerimento de
óbvia: há muitas outras coisas belas, Explicação com o Requerimento de
como cavalos e jarros (288b8-e5), de Paradigma, em que é compreendido
modo que parece que ele se dirige à como incorporando (APf) e a Teoria
Substitutividade. Porém, ele não vai da Transmissão.
nesta direção. Ao contrário, ele

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Argumentos ulteriores no Hípias interesse de vasto alcance na


Maior (289d6-291c9,291dl-293c8) existência transcendental da Forma
têm essencialmente a mesma do Belo; ele está meramente
estrutura, ainda que mudem sobre os tentando refutar tentativas de definir
diferentes modos em que algo pode o belo.
ser somente relativamente belo: belo
em um contexto, feio em outro; belo O MÊNON: ENTRE DEFINIÇÕES E
aos olhos de alguns, feio aos olhos de FORMAS
outros.
No Mênon, há uma mudança
O argumento a que nos impressionante de marcha.
dirigimos, o “Argumento da
Relatividade”, está muito próximo no No início, não parece. O diálogo
Hípias Maior. O que temos, começa com um diálogo socrático
concentrando-nos na primeira das abreviado de definição sobre a
refutações, vai até isto: questão “o que é a excelência?” (ou “o
que é a virtude?”). A Suposição
(arE) Existe algo como o belo. Intelectualista é pesadamente
enfatizada: a questão inicial de
(arM) Toda moça bela é também Mênon é se a excelência pode ser
feia. (arbelo) O belo não pode ser ensinada e Sócrates se confessa
feio. incapaz mesmo a começar sobre isso,
visto que não saber sequer o que é a
.*. (arC) O belo não é o mesmo que excelência (70a5-71c4). Mênon faz
nenhuma das moças belas. três tentativas, todas postas por terra
por Sócrates, em muito do modo
Este não é exatamente o como passamos a esperar, embora
Argumento da Relatividade, pois com uma nova pitada: Sócrates insiste
requer uma generalização que que o definiens correto para a
Sócrates não nos fornece no Hípias excelência deve evidenciar a unidade
Maior, quanto ao fato que (arM) não que faz com que todas as várias
é somente verdadeiro de moças, excelências (justiça, temperança, etc.)
cavalos ou liras, mas de qualquer sejam uma. Nada mais é dito como
coisa bela mundana. E Sócrates nada elucidação, mas a ênfase é nova.
diz para indicar que possui um

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Porém, há mais novidade do que um período anterior a esta vida (ver o


isso. Mênon dá uma parada depois capítulo Platão e a Reminiscência). É
que sua terceira tentativa é jogada uma questão difícil se devemos dizer
janela fora e fica recalcitrante. Ele que este conhecimento foi adquirido
pergunta (80d5-9) como Sócrates antes do nascimento, em cujo caso
pensa que poderia dar uma resposta à houve um momento em que o
questão “o que é a excelência?” se ele aprendemos, ou se nossas almas são
realmente nada sabe. Como poderia constituídas de tal modo que sempre
ele reconhecer que uma resposta era tiveram este conhecimento: certas
a boa? Este problema é coisas que Sócrates declara vão em
frequentemente referido como o uma direção (81c5- e2) e outras, em
“paradoxo de Mênon”. outra (86a6-b4).

Muitos de nós quisemos já faz De qualquer modo, é este


bom momento perguntar exatamente conhecimento prévio que torna
isso. Na vida real, obtemos definições, possível lidar com as questões
quando conseguimos, com base em socráticas. Sócrates não deixa
um conhecimento anterior a respeito exatamente claro como precisamente
da aplicação do definien- dum. Se de o Paradoxo de Mênon tem sua
fato nada sabemos sobre resposta na Doutrina da
decacuminação ou esuriência, não há Reminiscência. Ele exemplifica a
nenhuma esperança que venhamos a doutrina em um subdiálogo (81e-86c)
defini-las. com um dos escravos de Mênon, a
quem é perguntado uma questão
Nestes casos, o antigo latim pode razoavelmente complexa: dado um
ajudar. E o que Sócrates oferece a quadrado com os lados de 2 pés, qual
Mênon é algo deste tipo. Ele introduz é o tamanho do lado de um quadrado
(81al0-b6) uma tese, a “Doutrina da que tenha o dobro de sua área?
Reminiscência”, segundo a qual nós Sócrates o dirige à resposta correta,
de fato jamais aprendemos as que é: a diagonal do quadrado
respostas às questões por definição original. Em sua explicação, ele dá
de Sócrates (ver sobre isso Scott, nascimento a esta resposta pelo
1995), pelo menos não nesta vida. O próprio escravo antes de sugeri-la ao
que fazemos é relembrar as respostas, mesmo. Há como duvidar disso, mas é
cujo conhecimento possuíamos em bem claro que Sócrates aponta ao que

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Hugh H. PLATÃO
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hoje se chama conhecimento a priori, responder adequadamente às


e houve muitos defensores além de questões “o que é?” de Sócrates, e se
Platão que há um tal conhecimento temos a expectativa de que a
(para a melhor exposição do Mênon Doutrina da Reminiscência tem
nesta perspectiva, ver Vlastos, 1965). alguma coisa a ver com a questão
sobre o que é a excelência, o que foi
O Paradoxo de Mênon e a objeto de reminiscência é a forma,
Doutrina da Reminiscência são excelência.
novidades no Mênon. A doutrina vai
reaparecer no Fédon (e no Fedro, É claro, isso é muito diferente de
mas, em minha opinião, em nenhum uma Teoria das Formas explícita; para
outro lugar). Ela é lá associada à isso, temos de esperar pelo Fédon.
Teoria das Formas. É ela assim Contudo, anda não terminamos com
associada aqui, no Mênon? Não há as novidades introduzidas no Mênon.
nenhuma menção desta teoria no Duas requerem agora atenção.
Mênon, mas há uma série de coisas
que sugerem que ela pode não estar Quanto à Doutrina da
muito longe. Há, primeiro, a ênfase Reminiscência tal como ilustrada pelo
mencionada anteriormente na ideia subdiálogo com o escravo, Mênon
que a coisa que está sendo definida é professa uma convicção parcial e,
de algum modo um, e talvez isto consequentemente, Sócrates o
sugira que o definiendum está sendo encoraja a voltar à questão sobre o
pensado como um objeto com que é a excelência (86b6-c6). Porém,
unidade própria. E, segundo, há o fato Mênon abruptamente retoma à
que, no diálogo preliminar sobre a questão de abertura, se a excelência
questão “o que é a excelência?”, pode ser ensinada, e Sócrates, com
Sócrates por duas vezes (em 72d8, e5) um ligeiro lamento, simplesmente
se refere ao que persegue como uma abandona a Suposição Intelectualista
“forma”. Isso conta pouco por si e concorda em perseguir esta questão
mesmo, já que o próprio Mênon usa o 86c7-el).
termo, de súbito, em 80a5, e nada
sugere que ele esteja com a Teoria Isso é surpreendente: em
das Formas. Porém, se perguntarmos: diálogos posteriores, a Suposição
o que é que o escravo rememora e o Intelectualista, como expressa
que é que rememoramos ao anteriormente, não tem mais nenhum

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papel. (Não é que não haja mais conhecimento é a única coisa boa que
pedidos de definição, mas é existe (87c5-89a7) (ver também o
abandonada a sugestão que, na capítulo O Método da Dialética de
ausência de uma definição, nada se Platão).
pode dizer a respeito.) E com isso é
abandonada a outra novidade a que Porém, ele então solapa seu
devemos prestar atenção: o próprio argumento ao sugerir que,
abandono da Suposição além do conhecimento, a crença
Intelectualista traz consigo um verdadeira também seria uma boa
método de lidar com questões não coisa (96d7-97cl0). Isso é atenuado
definicio- nais como a de saber se a pela sugestão ulterior que a crença
excelência pode ser ensinada, o verdadeira não é tão boa como o
“Método da Hipótese”, do qual conhecimento (97cll-98b6), mas,
Sócrates fornece agora uma descrição então, isso é, por sua vez, objeto de
sumária e bem obscura (86el-87b2). O retratação parcial (98b7-d3) e o
método certamente tem suas raízes diálogo termina, ao modo socrático,
na matemática, no Método de Análise sem conclusão.
da geometria empregado pelos
matemáticos gregos (para uma A Doutrina da Reminiscência, a
exposição, ver Menn, 2002). O retirada da Suposição Intelectualista e
método geométrico envolve iniciar o Método da Hipótese dificilmente
com uma questão cuja resposta é de são socráticos, caso tomarmos os
início desconhecida e funciona para diálogos discutidos anteriormente
trás, em direção às suposições que (se como a pedra de toque do
tudo funcionar corretamente) por fim socratismo. Assim, parece bem
são derivadas de coisas conhecidas, plausível que temos, no Mênon,
como os axiomas geométricos. Platão jogando sua cartada. Ele está,
Sócrates quer aplicar isso à questão de ao que parece, preparado agora a
Mênon sobre a excelência admitir que podemos usar termos
perguntando que suposições seriam sem uma definição explícita e que,
suficientes para nos dar a conclusão quando as definições são exigidas,
que a excelência pode ser ensinada nosso modo de as obter é devido à
(87b2- c3). Ele volta à suposição que a nossa apreensão pré-natal do que
excelência é um tipo de conhecimento deve ser definido.
e, daí, à suposição que o

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FORMAS argumento favorável à Doutrina da


Reminiscência (como um passo em
Se o Mênon mostra Platão saindo por direção ao estabelecimento da
detrás de sua personagem central imortalidade da alma), mas, inserido
Sócrates, o Fédon o faz surgir ainda nele e destacável dele, encontra-se o
mais longe, pois o Método da Argumento de Relatividade. O que
Hipótese vai aparecer de novo lá, e Sócrates quer mostrar é que nossa
agora ligado à Teoria das Formas. capacidade em responder a questões
“o que é?” do tipo que tinha
No Fédon, nos deparamos perguntado nos diálogos socráticos
primeiro com as Formas (enquanto depende de nossa familiaridade antes
opostas às formas) em 65a9-66al0, do nascimento com um reino especial
sem argumentação e sem mesmo o de objetos que não são encontrados
termo “forma”. Em 65d4, Sócrates pelos sentidos. Esses objetos são as
pergunta a seu interlocutor Símias se Formas e, ao se responder com
há “algo justo em si mesmo”, “algo sucesso às questões socráticas, somos
belo e bom”; ele logo (65dl2-13) levados a relembrar estes objetos por
acrescenta “largura, saúde, força”. coisas que encontramos
Até aqui, nada indica que fomos frequentemente na experiência
propulsados ao reino das Formas. sensível. O exemplo de Sócrates para
Símias, porém, aceita igualmente de uma Forma nesta passagem é o “igual
pronto que não tivemos contato com em si mesmo” (74al2 et passim); ele
essas coisas pelos sentidos, mas diz que este é um exemplo entre
somente mediante o “pensamento outros, entre os quais menciona “o
puro” (66al-2). Essas teses notáveis largo”, “o pequeno”, “o belo”, “o
são novas: não há nada de paralelo bom” e todas estas coisas sobre as
nos diálogos socráticos. São, porém, quais estamos sempre falando,
exatamente o que Aristóteles nos gerando questões sobre elas do tipo
tinha feito esperar; é isso que me “o que é?” (75c7-d5, 76d7-e7). Em
levar a pôr a maiúscula em “Forma”. outras palavras, “igual” está sendo
tratado aqui de algum modo paralelo
O argumento que falta em 65a9- a “belo” e isso, aos nossos ouvidos, é
66al0 aparece ao longo de Phd. 72ell- estranho, porque, com “isto é igual”
78a9. A tarefa geral desta passagem esperamos um complemento
consiste na apresentação de um novo desdobrando “igual a quê”, ao passo

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que não esperamos tal complemento contraste entre ele e “o belo” a este
com “isto é belo”. Talvez, porém, as respeito. E talvez isso tenha a ver com
coisas não tenham soado assim para a familiaridade prévia com o
Platão, pois, como já vimos em pitagórico Filolao (ver 61d6-e4); os
conexão com o Hípias Maior, teria pitagóricos se ocupavam muito da
exigido complementar “isto é belo” noção de igualdade. (Isso é,
com uma cláusula explicando obviamente, uma conjetura, mas não
relativamente a que era belo, em que é uma conjetura, por outro lado, o
contexto, aos olhos de quem e assim contraste entre o conhecimento que
por diante. Dito sumariamente: Símias tem da definição de “igual” e
tomamos “igual” como um termo de sua falta de conhecimento para a
relação; Platão tomou “belo” como definição de “belo”.)
também sendo um termo de relação.
De qualquer modo, em 74b4-c6,
Por que passar a “igual”? Por que tendo gerado em Símias a pretensão
não manter sempre “belo”? Aqui de saber o que é o igual, Sócrates
devemos prestar atenção ao que diz continua argumentando que o igual é
Símias. Em 74b2-3, ele diz que sabe o distinto de quaisquer pedaços de pau
que é igual; isso deve significar que corriqueiros, pedras ou o que quer
está em posição de dar uma definição que seja que nos leva à reminiscência
do termo (definição que, dele. O argumento é, para exprimi-lo
lamentavelmente, ele não formula; esquematicamente (os detalhes são
para uma possibilidade, ver Prm. bem complexos), o que foi dado
161d). Em 76b5-c5, ele dá expressão acima como um exemplo do
ao temor que, uma vez Sócrates Argumento da Relatividade, mas com
morto, não haverá mais ninguém que “igual” substituindo “belo”:
possa dar definições de termos como
“o belo” (mencionado junto com (ARE) Há algo como o Igual.
outros casos em 75cl0-d4). Sócrates,
como todos sabemos, vai morrer ao (ARC) Uma [coisa] igual corriqueira é
final do Fédon, mas Símias não. Assim, também desigual.
deve ser que ele não sabe o que
(digamos) é o belo e não pode defini- (ARIgual) O Igual nunca é desigual.
lo. E, então, deve ser que a razão para
pegar “o igual” é precisamente o .•. (ARC) O Igual não é o mesmo que

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uma [coisa] igual corriqueira. outro, por exemplo em um animal, na


terra, no céu ou em outra coisa, mas
ele mesmo por ele mesmo consigo
Aqui, (ARC) deve mesmo, sempre sendo singular na
presumivelmente apoiar-se no fato forma, ao passo que todas as outras
que o que conta como um pedaço de [coisas] belas partilham deste [belo] de
pau que é igual depende da situação modo que, enquanto os outros vêm e
na qual a comparação é feita. O ar- deixam de ser, este de modo algum
vem a ser maior, menor ou sofre o que
gumento passa mais facilmente com
quer que seja.
“belo”, e quando Diotima, no
Banquete, expressa seu resultado, ela Diotima está descrevendo aqui
o faz em termo de “belo”. Ela está longamente a Forma, o Belo. Pode-se
falando acerca de alguém que se está notar neste ponto que esta descrição
iniciando-se nos mistérios do amor, e concorda com duas das condições
isso envolve a contemplação de sua com que nos defrontamos ao
parte de coisas belas. Em 210e2- construir uma teoria da definição para
211b5, ela diz a Sócrates que, assim Sócrates: cobre todos os casos, no
que o iniciante avança o suficiente: sentido em que tudo o que é belo
participa dele (e, presumivelmente,
Ele subitamente discernirá algo belo,
maravilhoso em sua natureza, isto, nada que não é belo participa) e ele é
Sócrates, [que é] àquilo em vista do uma coisa paradigmaticamente bela.
qual todos os seus esforços giravam Assim, a Substitutividade e o
até então, o qual, primeiro, sempre é: Requerimento de Paradigma têm
nem vem a ser nem perece, nem
seus ecos na Teoria das Formas.
cresce nem diminui; então, também,
não [é] belo de um modo, feio de
outro, nem [belo] em um momento, E também o Requerimento de
mas não em outro, nem belo Explicação. Ele emerge no argumento
relativamente a algo, feio final da imortalidade no Fédon (99d4-
relativamente a outra coisa, nem belo 103c4). Ali, Sócrates constrói uma
em um lugar, feio em outro, como se
fosse belo para alguns e feio para teoria da causalidade por meio de
outros; nem, de novo, aparecerá o uma menção ao Método da Hipótese
belo para ele como uma face, mãos ou delineado no Mênon. Agora a
o que quer que participe do corpo, Hipótese se toma a própria Teoria das
nem como uma certa explicação ou Formas (100bl-9) e Sócrates a estende
certo conhecimento, nem como
estando em algum lugar em algo a uma teoria da causalidade quando

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Hugh H. PLATÃO
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diz (100c4-6, d3-8): Potencialmente tudo neste capítulo é


controverso; há indicações para onde ir em
Parece-me que, se há algo belo além relação às leituras divergentes, mas, para
do belo ele mesmo, não é belo por uma defesa detalhada e referências comple-
causa de qualquer outra [coisa] bela, mentares, ver Dancy, 2004 (em particular,
mas porque participa daquele belo... uma análise completa será encontrada aí para
mas simplesmente, sem rodeios, talvez todos os casos em que disse que o argumento
mesmo ingenuamente, tenho esta era mais complexo do que indica a presente
convicção íntima que nada o toma belo análise).
outro que a presença ou comunhão ou
de que modo e em qualquer modo que REFERÊNCIAS E LEITURA
entre em contato com aquele belo, COMPLEMENTAR
pois eu não faço nenhuma outra tese a
seu respeito, mas [de fato pretendo] Allen, R. E. (1970). Plato’s Eutifro and the
que [é] graças ao belo que todas [as Earlier Theory of Forms. London: Rouüedge
coisas] belas são belas. and Kegan Paul; New York: Humanities Press.
Benson, H. H. (1990). The priority of
Esta teoria “simples” necessita de
defmition and the Socratic elenchus. In
sofisticação para se transformar em Oxford Studies iti Antient Philosophy, vol. 8
um argumento em prol da (pp. 19-65). Oxford: Oxford University Press.
imortalidade, mas a sofisticação não ______(2000). Socratic Wisdom: The Model of
tem nenhum impacto real na Teoria Knowledge in Plato’s Early Dialogues. New
das Formas. York and Oxford: Oxford University Press.
Beversluis, J. (1987). Does Sócrates commit
Essa é a Teoria das Formas e seu the Socratic fallacy? American Philosophical
patrimônio é muito claramente a Quarterly 24, pp. 211-23. Repr. in H. H.
busca de Sócrates pelas definições. De Benson (ed.) Essays on the Philosophy of
Sócrates (pp. 107-22). New York and Oxford:
qualquer modo, “mas simplesmente,
Oxford University Press.
sem rodeios, talvez mesmo
ingenuamente, tenho esta convicção Dancy, R. M. (2004). Plato’s Introduction
ofForms. Cambridge: Cambridge University
íntima”, por mais controversa que Press.
seja.
Kahn, C. H. (1996).Plato and the Socratic
Dialogue: The Philosophical Use ofa Literary
NOTAS Form. Cambridge: Cambridge University
Press.
Todas as traduções são do autor, a menos que
haja indicação em contrário. Lloyd, A. C. (1976). The principie that the
cause is greater than its effect. Phronesis 21,

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

pp. 146-56. Menn, S. (2002). Plato and the


method of anaLísis. Phronesis 47, pp. 193-
223.
Nehamas, A. (1975/6). Confusing universais
and particulars in Plato’s early dialogues.
Review of Metaphysics 29, pp. 287-306. Repr.
in Virtues of Authenticity: Essays on Plato and
Sócrates (pp. 159-75). Princeton, NJ:
Princeton University Press.
Scott, D. (1995). Recollection and Experience:
Plato’s Theory ofUnderstanding and its
Successors. Cambridge: Cambridge University
Press.
Vlastos, G. (1954). The third man argument in
the Parmenides. Philosophical Review 63, pp.
319-49. Repr. in R. E. Allen (ed.) (1965)
Studies in Plato’s Metaphysics (pp. 231-63).
London: Rouüedge and KeganPaul; G. Vlastos
(1995) Studies in Greek Philosophy, vol. II:
Sócrates, Plato, and their Tradition, ed. D. W
Graham (pp. 166-90). Princeton, NJ:
Princeton University Press.
______(1965). Anamnesis in the Meno.
Dialogue 4, pp. 143-67. Repr. (1995) in Studies
in Greek Philosophy, vol. D: Sócrates, Plato,
and their Tradition, ed. D. W Graham (pp. 147-
65). Princeton, NJ: Princeton University Press.

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7. O método da dialética ameniza a distinção entre os dois


grupos de diálogos, mas a discussão
de Platão erudita do método platônico no
segundo grupo de diálogos continua a
HUGH H. BENSON ter mais como foco as propostas
explícitas de Platão do que sua prática
Richard Robinson, em sua obra efetiva nesses diálogos. Sem dúvida,
clássica Plato’s Earlier Dialectic (A parte da explicação desta tendência é
Primeira Dialética de Platão, 1953), a sugestão feita por Robinson,
descreve a seguinte diferença entre segundo a qual Platão, nos diálogos
os diálogos que ele toma como do segundo grupo, parece não
representando o “primeiro período” executar o que apregoa. O método
de Platão e os diálogos que ele toma filosófico que Platão faz com que
como representando o “período Sócrates recomende em diálogos
médio” de Platão: como o Mênon, o Fédon e a República
não é, aparentemente, o método que
Os primeiros dão proeminência ao
Platão faz Sócrates pôr em prática
método, mas não à metodologia, ao
passo que os médios dão nesses diálogos. Neste capítulo, vou
proeminência à metodologia, mas não resistir a uma tal concepção da
ao método. Em outras palavras, teorias dialética platônica. Começarei
do método são menos visíveis nos olhando rapidamente as
médios, mas exemplos dele são mais
recomendações explícitas de Platão
visíveis nos primeiros. Casos de
elenchus se seguem em rápida quanto ao método filosófico em três
sequência nas primeiras obras, mas, diálogos-chave médios: o Mênon, o
quando buscamos discussões sobre o Fédon e a República. Veremos que as
elenchus, encontramos poucas e não diferenças nos métodos
muito abstratas. Os diálogos médios,
recomendados nestes três diálogos
por outro lado, abundam em palavras
e propostas abstratas a respeito do são aparentes, enquanto alguns
método, mas não é de modo algum traços centrais permanecem
óbvio se estas propostas estão de fato invariantes. Esses traços centrais
sendo seguidas ou se algum método podem ser reduzidos a dois
está sendo de fato aplicado. (Robinson
processos: um processo de
1953: 61-2).
identificação e obtenção das
Na continuação, Robinson consequências das proposições,
conhecidas como hipóteses, no

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intuito de responder à questão em médios devemos olhar para as


discussão, e um processo de discussões explícitas de Sócrates
confirmação ou justificação destas acerca do método e para sua prática
hipóteses. Vou sustentar que, em três efetiva, no intuito de compreender a
passagens longas e decisivas nestes dialética. Em suma, devemos olhar
três diálogos, Platão faz Sócrates pôr tanto para sua “metodologia” quanto
em prática um ou outro destes para seu “método”, para usar os
processos do método que tinha feito termos de Robinson. Contudo,
Sócrates recomendar. Tal visão da veremos que o método filosófico que
dialética platônica tem duas surge destas duas fontes permanece,
consequências imediatas. Primeiro, à luz do próprio Platão, de certo modo
há maior continuidade e mais coisas inadequado. Concluirei sugerindo
em comum com a discussão do uma explicação desta aparente
método em Platão – sua inadequação – uma explicação que
“metodologia”, para usar o termo de aponta na direção de estudos mais
Robinson, do que normalmente se aprofundados.
suspeita. Os métodos da hipótese
introduzidos no Mênon e, de novo, no A DIALÉTICA COM UM “D”
Fédon, bem como o método da MINÚSCULO
dialética introduzido explicitamente
na República são versões de um único Comecemos com o termo “dialética”.
núcleo de método. Segundo, a fim de Robinson, mais uma vez, sustentou,
entender o método filosófico como é bem conhecido, que
recomendado por Platão nos assim
ditos diálogos médios, não devemos o termo “dialética” tinha uma forte
tendência em Platão de significar “o
restringir-nos às discussões explícitas método ideal, o que quer que isso
de Platão sobre este método. Assim seja”. Na medida em que era assim um
como, nos chamados diálogos título meramente honorífico, Platão o
primeiros, olhamos tanto para as aplicou em todo estágio de sua vida ao
discussões explícitas de Sócrates que lhe parecia no momento ser o
procedimento mais auspicioso... Este
acerca do método, como para sua uso, combinado com o fato que Platão
prática efetiva, no intuito de mudou uma vez de modo considerável
compreender o elenchus (ver o sua concepção do melhor método,
capítulo O Elenchus Socrático), assim tem como resultado que o significado
também nos chamados diálogos do termo “dialética” sofre uma

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alteração substancial ao longo de seus 448dl-449c8; ver Kahn, 1996, p. 303).


diálogos. (Robinson, 1953, p. 70) Na República, porém, Sócrates
contrasta o poder do to dialegesthai
Pode surpreender, contudo, que com um método aparentemente
o substantivo grego he dialektikê e empregado às vezes pelos
seus cognatos ocorrem somente 22 matemáticos, onde o contraste
vezes no corpus platônico e somente parece ser altamente técnico,
uma vez nos diálogos que Robinson fazendo uso de noções especializadas
considera como jovens (Euthd. como hipóteses, conclusões,
290c5). Além disso, mais de um terço primeiros princípios e outros (510b2-
destas ocorrências estão 511d5). Todavia, por meio desta ins-
concentradas em seis páginas tabilidade, um traço permanece
Stephani na República (531d9, 534b4, invariante: a preferência de Sócrates
533c7, 534b3, 534e3, 536d6, 537c6, pelo método que ele escolhe como to
537c7). O infinitivo substantivado to dialegesthai, dialektikê ou seus
dialegesthai ocorre de modo muito cognatos (Gill, 2002, p. 150).
mais frequente e pode, por vezes,
portar um sentido técnico em Ao discutir o método dialético de
contraste com seu uso corriqueiro, Platão, então, suponho estar
em que significa “conversar” ou discutindo o método filosófico
“discutir”. Porém, é muitas vezes preferido ou recomendado por
difícil determinar quando o sentido Platão, qualquer que ele seja. O
técnico está sendo usado. Mesmo método que ele recomenda e põe em
assim, quando o sentido técnico está prática nos chamados diálogos
plausivelmente em uso, Robinson primeiros já foi discutido em um
chama a atenção corretamente para capítulo anterior – o método do
sua instabilidade. Por exemplo, por elenchus. O método que Platão
duas vezes no Gorgias Sócrates introduz e aparentemente
parece estar fazendo um contraste recomenda no Mênon e no Fédon
quase técnico entre to dialegesthai e veio a ser conhecido como o método
a retórica, onde o contraste parece da hipótese. Nos livros centrais da
não ser mais do que uma preferência República (VI-VII), Platão recomenda
por uma questão e por respostas como ápice do processo de educação
curtas ao invés de longas exposições dos governantes-fílósofos um método
de proeza filosófica (Grg. 447b9-c4 e aparentemente distinto,

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frequentemente entendido como o terços do Mênon. Sócrates acabou de


método dialético dito estrito (ver responder ao paradoxo do Mênon,
República 531d-537c mencionado segundo o qual ou é impossível
anteriormente; “Dialética” com a ensinar ou é desnecessário tentar
maiúscula “D”). O método de metodicamente adquirir
agrupamento e divisão é introduzido conhecimento de algo. Ou bem
e recomendado no Fed.ro alguém fracassa em conhecer o que
aparentemente seguido no Sofista, no está tentando conhecer, caso no qual
Político e no Filebo. Enquanto o a tentativa não pode ser iniciada ou
método dialético de Platão (pelo concluída com sucesso; ou se conhece
menos “dialético” com um “d” o que se está tentando conhecer, caso
minúsculo) inclui todos estes no qual a tentativa é desnecessária. A
métodos, meu foco se centrará no resposta de Sócrates consiste,
método ou nos métodos discutidos e, primeiramente, em fazer apelo à
sustento, postos em prática no teoria de sacerdotes e sacerdotisas,
Mênon, Fédon e República. Conexões que veio a ser conhecida na literatura
com o elenchus de Platão e seu como a teoria da reminiscência (ver o
método de agrupamento e divisão capítulo Platão e a Reminiscência),
são numerosas e importantes, mas para então exemplificar esta teoria
não podem ser examinadas aqui. por meio de uma conversa com um
escravo a respeito de duplicar a área
PLATÃO E A DIALÉTICA NO MÊNON, de um quadrado originalmente com
FÉDON E REPÚBLICA área de quatro pés. Sócrates conclui
que, embora não forneça os detalhes
As questões deste capítulo são, de sua resposta, ele assegura que
então: qual é o método que Platão devemos buscar metodicamente o
recomenda nos diálogos centrais do conhecimento que nos falta ao invés
Mênon, do Fédon e da República, e: de aceitar que uma tal investigação é
põe ele em prática este método impossível. Tendo ficado
nestes diálogos? Considere, primeiro, aparentemente convencido, Mênon
a resposta de Sócrates ao desejo de exprime seu desejo de retomar à
Mênon em retomar à questão da questão com a qual o diálogo
ensinabilidade da virtude antes de começou, a ensinabilidade da virtude.
responder à questão da natureza da De modo surpreendente e a despeito
virtude, aproximadamente a dois de certa hesitação, Sócrates se dobra

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Hugh H. PLATÃO
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a este desejo, sob a condição que concentram em investigar se a


Mênon lhe permita perseguir a hipótese é verdadeira ou não. Aqui,
questão de acordo com o método dos então, temos Sócrates propondo um
geômetras, que ele imediatamente método que consiste em dois
explica com o seguinte exemplo: processos. Primeiro, consiste no
processo de identificar uma hipótese
Se lhes é perguntado se uma área tal que sua verdade é necessária e
específica pode ser inscrita na forma
suficiente para uma determinada
de um triângulo dentro de um dado
círculo, um deles poderia dizer: “ainda resposta à questão em consideração.
não sei se a área tem tal propriedade, No caso do exemplo geométrico, a
mas penso que tenho uma hipótese hipótese parece ser que a área é
que serve para o problema, a saber, “quando se a aplica como um
isto: se a área é tal que, quando se a
retângulo à linha reta no círculo, falta-
aplica como um retângulo à linha reta
no círculo, falta-lhe uma figura similar lhe uma figura similar à própria figura
à própria figura que é aplicada, então que é aplicada”, ao passo que, no caso
penso que resulta uma alternativa, ao da ensinabilidade da virtude, a
passo que a outra alternativa resulta se hipótese é que a virtude é um tipo de
for impossível que isto ocorra. Assim,
conhecimento (veja 87b5-c7). O
servindo-me desta hipótese, estou
pronto a dizer o que resulta quando a segundo processo consiste em
inscrevê-la no círculo – ou seja, se é determinar se a hipótese em questão
possível ou não”. (86e6-87b2) é verdadeira. Busca-se determinar se
a dada área é “tal que, quando se a
Embora os detalhes deste exemplo aplica como um retângulo à linha reta
sejam reconhecidamente obscuros e no círculo, falta-lhe uma figura similar
controversos, a ideia parece ser que o à própria figura que é aplicada” ou se
método dos geômetras deve primeiro a virtude é um tipo de conhecimento.
propor uma hipótese que atribui a O método em duas partes que Platão
uma dada área a propriedade tal que, faz com que Sócrates proponha aqui
se a área tiver tal propriedade, a no Mênon foi chamado de método da
inscrição pode ser feita, e, se não a hipótese. (Para discussões ulteriores
tiver, então a inscrição não pode ser do método proposto aqui no Mênon,
feita. Assim, se a hipótese for ver Robinson, 1953: cAp. 8; Bluck,
verdadeira, a inscrição pode ser feita; 1961; Bedu-Addo, 1984 e Benson,
se a hipótese for falsa, ela não pode 2003).
ser feita. Então, os geômetras se

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Este assim chamado método da método “sucedâneo”:


hipótese surge em um estágio similar
no Fédon. Sócrates sugeriu uma série Pensei que devia me refugiar em
discussões [tous logous] e investigar a
de três argumentos destinados a
verdade das coisas por meio das
estabelecer a imortalidade da alma, palavras... Comecei deste modo:
cada um dos quais tendo encontrado tomando como minha hipótese em
objeções poderosas (ver o capítulo A cada caso a teoria que me parecia a
Alma Platônica). Em resposta à última mais convincente, consideraria
verdadeiro, quanto à causa e tudo o
objeção ao terceiro argumento,
mais, tudo o que concordasse com ela,
Sócrates explica que uma resposta e como não verdadeiro tudo o que não
adequada requereria “uma concordasse. (99e4-100a7)
investigação completa da causa da
geração e da destruição” (95e9-96al) Sócrates explica em seguida que
e se propõe a relatar sua própria a hipótese que tem em mente no caso
investigação. Em sua juventude, nos presente é o que veio a ser chamado
diz ele, começou seguindo o método na literatura a sua Teoria das Formas:
dos cientistas naturais, mas “a existência de um Belo, em si por si
rapidamente se deu conta que, antes mesmo, de um Bem e Grande e todo
de adquirir o conhecimento que lhe o resto” (100b5-7) (ver também o
faltava, ele de fato perdeu parte do capítulo As Formas e as Ciências em
conhecimento que pensava antes ter Sócrates e Platão). Sócrates indica
(96c-97b). Em seguida, voltou-se ao que esta teoria acarreta que a causa
método de Anaxágoras (ver 97b3-7), o de uma coisa ter uma dada
qual consistia em tentar determinar o propriedade é a participação desta
que é melhor (97c-98b). Infelizmente, coisa na Forma em questão. Por
Sócrates tampouco foi capaz de obter exemplo, “é pela Beleza que as coisas
o conhecimento que lhe faltava por belas são tomadas belas” (100e2-3).
meio deste método, pois era incapaz Sócrates conclui sua discussão deste
de descobrir por si mesmo o que era método explicando como se deve
melhor ou de o aprender pelos reagir quando a hipótese é “posta em
escritos de Anaxágoras. questão” (echoito; ver Kahn, 1996:
Consequentemente, ele explica que 318 n. 35):
se pôs a adquirir o conhecimento da
causa da geração e destruição – que Você o ignorará e não responderá até
lhe faltava – por meio do seguinte ter examinado se as consequências

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que se seguem dela estão de acordo da hipótese original e testando a


entre si ou se contradizem. E, quando consistência das consequências desta
você tiver de justificar a sua própria
hipótese, você procederá do mesmo nova hipótese com as crenças e
modo: adotará uma outra hipótese, a informações disponíveis – até que se
que melhor lhe parecer das que estão alcance uma hipótese que é
acima, até você obter algo aceitável, “aceitável” (hikanon). (Para
mas não misturará as duas como discussões ulteriores do método
fazem os contendores, ao discutirem
ao mesmo tempo a hipótese e suas
proposto aqui no Fédon, ver
consequências, se você deseja Robinson, 1953: cAp. 9; Gallop, 1975;
descobrir a verdade. (101d3-e3) Bostock, 1986; Rowe, 1993a; van Eck,
1994 e Kanayama, 2000).
Novamente, em um estágio crucial do
argumento de um diálogo, Platão faz Por fim, nos livros centrais da
com que Sócrates proponha um República, Platão nos brinda com uma
método que empregue hipóteses de longa discussão do método filosófico
modo a continuar a investigação. De apropriado. Duas passagens são
novo, ele distingue dois especialmente importantes. Na
procedimentos do método. Ao primeira passagem, Platão faz com
descrever o primeiro procedimento, que Sócrates distinga dois métodos.
Sócrates enfatiza o processo de obter Um é praticado pelos matemáticos e
as consequências da hipótese no melhor dos casos pode levar
proposta no lugar do processo de alguém a obter somente pensamento
identificar a hipótese (100a3-7) e, ao (dianoia). O outro é o que ele
descrever o segundo processo, recomenda e que leva a pessoa à
Sócrates explica mais aquisição do conhecimento (epistêmê
detalhadamente como se deve levá-lo ou noêsis). No segundo, Platão leva
adiante. Primeiro, deve-se determinar Sócrates a descrever explicitamente a
se as consequências da hipótese são disciplina da dialética como o ponto
consistentes com outras crenças ou culminante da educação na vida
informações disponíveis a respeito do filosófica.
tópico em discussão. Segundo, deve-
se empregar o método da hipótese na Em 509c-511d, Sócrates pede
própria hipótese – identificando uma que interlocutores da República
hipótese ulterior cuja verdade é imaginem uma linha dividida em duas
necessária e suficiente para a verdade partes desiguais. A parte menor, diz

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ele, representa as coisas que próprias formas e fazendo sua


participam nas Formas; por exemplo, investigação através delas” (R. 510b6-
as coisas belas; a parte maior, as 9). Quatro condições da alma
próprias Formas; por exemplo, o Belo correspondem a estas quatro
em si. Cada uma destas duas partes é subseções da linha: imaginação
similarmente dividida em duas (eikasia), crença (pistis), pensamento
subseções desiguais. A porção que (dianoia) e compreensão ou
representa as coisas que participam conhecimento (noêsis).
nas Formas consiste em uma
subseção menor que representa as Observe que a descrição de Platão dos
imagens das coisas que participam dois métodos distinguidos nas duas
nas Formas – sombras, reflexos em subseções superiores faz apelo a três
poças de água, etc. –, ao passo que a características que parecem se
subseção maior representa os corresponder como segue: [Al] / [B3],
originais das coisas postas em imagem [A2] / [B2] e [A3] / [Bl]. Ou seja, tanto
na subseção menor. A porção que o método que leva à dianoia – o
representa as Formas, todavia, não é método dianoético – quanto o
dividida em função dos objetos, como método que leva ao conhecimento – o
com as duas subseções inferiores, mas método dialético – fazem uso de
em função dos métodos empregados hipóteses: [A2] e [B2]. Os dois
em cada subseção. De acordo com métodos se distinguem não pelo fato
Sócrates, na subseção menor da de empregar hipóteses, mas pelo
porção que representa as Formas [Al], modo como empregam as hipóteses.
a alma usa como imagens os originais O método dianoético usa os originais
da subseção precedente, [A2] é da seção precedente ao proceder de
compelida a investigar a partir de suas hipóteses [Al], mas não o método
hipóteses e [A3] vai em direção de dialético [B3], e o método dianoético
conclusões, não a um primeiro procede das hipóteses às conclusões e
princípio (510b4-6), enquanto, na não a primeiros princípios [A3],
subseção maior, a alma traça “[B1] enquanto o método dialético procede
seu caminho a um primeiro princípio das hipóteses aos primeiros princípios
que não é uma hipótese, [B2] [Bl]. O detalhamento subsequente de
procedendo a partir de uma hipótese, Sócrates destas características sugere
[B3] mas sem as imagens usadas na que a primeira diferença se resume a
subseção precedente, usando as uma diferença entre o uso da

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experiência sensível (pelo método de confirmar as hipóteses


dianoético: 510d5-511a2 e 511a6-8) empregadas até que se alcance “o
enquanto oposto a método a priori da primeiro princípio não hipotético de
dialética (511b7-c2), ao passo que a tudo” – são repetidas na última das
última diferença se resume a uma passagens que analisaremos, embora
distinção entre tratar as hipóteses a última característica seja o centro de
como se fossem confirmadas, mas atenção. Em R. 531d7-535a2 (que
não carecendo de uma justificação ou contém cinco das 22 ocorrências de
explicação (pelo método dianoético: hê dialektikê no corpus platônico),
510cl-d4 e 511a3-6) e tratar as Sócrates descreve a dialética como a
hipóteses como passos não completude de uma vida de educação
confirmados que requerem uma filosófica (531 d, 534e-535a). Ele diz
justificação ou explicação até que se que “a dialética (hê dialektikê) é a
alcance “o primeiro princípio não única investigação que trilha este
hipotético de tudo” (511b3-7), que é caminho, desfazendo-se das
identificado de modo plausível com a hipóteses (tos hupotheseis anairousa)
Forma do Bem. O que é importante e dirigindo-se ao próprio primeiro
notar para nossos presentes princípio, de modo a estar segura”
interesses é a continuidade entre os (533c7-dl). Enquanto a tese que a
métodos propostos no Mênon e no dialética se desfaz das hipóteses pode
Fédon e o método da dialética na ser entendida como indicando que
República. Todos os três consistem Platão está aqui fazendo uma
em dois processos fundamentais de, recomendação contrária ao uso das
de um lado, identificar e obter as hipóteses, é mais plausível supor
consequências das hipóteses e, de (sobretudo à luz das passagens que
outro lado, verificar ou confirmar a acabamos de examinar) que Platão
verdade das hipóteses. O fracasso do está recomendando o modo como
método dianoético reside – em devem ser usadas (ver, por exemplo,
grande parte – em seu fracasso de pôr Robinson, 1953, p. 161-2 e Gonzalez,
a atenção no último processo. 1998, p. 238-40). Elas devem ser
confirmadas, explicadas e justificadas
As três características da dialética no final das contas “dirigindo-se ao
especificadas aqui na República – o próprio primeiro princípio, de modo a
uso de hipóteses, a inapelabilidade à estarem seguras”. É este aspecto do
experiência sensível e a necessidade uso das hipóteses que é enfatizado ao

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longo de toda a discussão da dialética também dois procedimentos, mas


nesta passagem. Sócrates explica que põe o foco em obter as consequências
a dialética pode dar uma explicação mais do que em identificar as
(fio íogos) do que ela conhece (531d6- hipóteses, e fornece detalhes
e6, 534b e 534c), não desiste até adicionais sobre como se deve
apreender o primeiro princípio ou a determinar a verdade das hipóteses
Forma do Bem (532a-b, 534b-c) e (testando sua consistência com
consegue sobreviver a todas as outras crenças e informações
refutações (eíencfiôn) (534c). Porém, disponíveis e buscando confirmá-las
Sócrates também se refere à outra empregando o método nas próprias
característica do uso das hipóteses hipóteses). Por fim, a República
mencionada na passagem da linha acrescenta que o processo de
dividida: a inapelabilidade à determinar a verdade das hipóteses
experiência sensível. Ele explica que o deve ser independente da experiência
dialético “tenta descobrir o ser sensível e deve ser levado a termo até
próprio de cada coisa por meio de que se alcance o “primeiro princípio
argumento (tou logou) e à parte de não hipotético de tudo”. Tendo
toda percepção sensível” (532a6-7). descoberto as grandes linhas do
método que Platão faz com que
Nestes três diálogos-chave, Sócrates discuta e proponha no
então, vemos Platão fazendo com que Mênon, no Fédon e na República,
Sócrates descreva uma metodologia podemos agora ver se Platão faz com
que ele parece adotar. Todas as três que Sócrates pratique o que ele
passagens apresentam o uso de apregoa.
hipóteses, mas cada uma fornece
uma perspectiva própria. O Mênon A PRÁTICA DE PLATÃO DA
introduz o método em termos gerais, DIALÉTICA NO MÊNON, FÉDON E
descrevendo-o como um método REPÚBLICA
empregado por geômetras e
identificando seus dois Comecemos com o que é talvez o caso
procedimentos fundamentais mais simples. Logo após a introdução
(identificar as hipóteses necessárias e por Sócrates do método em Mênon
suficientes para solucionar a questão 86e6-87b2, Sócrates propõe
e determinar a verdade das “investigar se a virtude pode ou não
hipóteses). O Fédon reconhece ser ensinada por meio de uma

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hipótese” (87b3-5). Ele identifica Foi largamente reconhecido que


imediatamente uma hipótese tal que esta passagem do Mênon é uma
sua verdade é necessária e suficiente instância do método das hipóteses. A
para a ensinabilidade da virtude, a passagem, porém, é curta – apenas
saber, que a virtude é um tipo de um pouco mais do que duas páginas
conhecimento, e então se põe a Stephani – e se pensa com frequência
determinar a verdade desta hipótese. que o método é abandonado no resto
Ele o faz empregando o segundo dos do diálogo. Assim, Robinson supõe
dois procedimentos mencionados no que o método termina aqui em 89c
Fédon: empregar o método das (Robinson 1953: 117), confirmando
hipóteses na própria hipótese. sua opinião que Platão raramente
Primeiro, ele identifica outras apresenta Sócrates praticando o
hipóteses cuja verdade é necessária e método que discute nos chamados
suficiente para a verdade da hipótese diálogos médios. Porém, o método
que a virtude é um tipo de das hipóteses não é abandonado
conhecimento, a saber, que a virtude neste ponto do Mênon. Ao contrário,
é um bem (87d2-3) e que não há nada Sócrates segue o primeiro dos dois
de bom outro que o conhecimento procedimentos que o Fédon
(87d4-8). Ele justifica a primeira menciona para confirmar uma
alegando somente que ela hipótese: testar sua consistência com
“permanece” ou “fica firme em nós” outras crenças e informações
(meneí hêmin; 87d3). Ele sustenta a disponíveis. (Para uma defesa mais
última com base em um breve detalhada, ver Benson, 2003; ver
argumento (87e5-89al), após o qual também Kahn, 1996, p. 313.)
conclui que, dado que o
conhecimento é benéfico e que a Depois de concluir em 89c2-4 que
virtude é benéfica, “virtude, então, a resposta à questão de Mênon é que
como um todo ou em parte, é a virtude pode ser ensinada, baseado
conhecimento” (89a3-4). (Se não na hipótese que a virtude é
quisermos ter Sócrates aqui conhecimento, Sócrates exprime uma
responsável por uma conclusão sem dúvida, declarando:
relevância, devemos supor que está
usando “sabedoria” (sophia) e Não estou dizendo que é errado dizer
que a virtude pode ser ensinada se for
“conhecimento” (epistêmê)
conhecimento, mas veja se é razoável
intercambiavelmente.)

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de minha parte duvidar se é prática educacional dos sofistas e de


conhecimento. Diga-me isto: se não pessoas de Atenas que acarretam que
somente a virtude, mas uma outra
coisa qualquer pode ser ensinada, não não há professores nem estudantes
deveria necessariamente haver da virtude. Enquanto o segundo
pessoas que ensinam e pessoas que procedimento do Fédon tendia a
aprendem? (Men. 89d3-8) confirmar a verdade da hipótese que
a virtude é um tipo de conhecimento,
Observe que Sócrates aqui exprime o argumento de 89d3 a 96d4 revelou
uma dúvida acerca da hipótese – que que o primeiro procedimento do
virtude é um tipo de conhecimento – Fédon o contradisse.
a partir da qual a resposta positiva à
questão de Mênon foi inferida, Assim, contrariamente à
revelando que ele está operando sugestão segundo a qual Platão tende
ainda dentro dos limites do método a não representar Sócrates pondo em
da hipótese. Sua verdade está apoiada prática o método que propõe nos
pelo segundo dos dois procedimentos diálogos médios, aqui no Mênon
mencionados no Fédon, mas os temos Sócrates representado como
resultados do primeiro procedimento pondo em prática o método que
– testar sua consistência com crenças acabara de expor longamente (por
e informações disponíveis –, que está quase um terço do diálogo como um
para realizar, vai em direção oposta. todo e por mais do que três quartos
Uma consequência da hipótese que a do diálogo que se segue à introdução
virtude é conhecimento é que a do método). O que é único nesta parte
virtude pode ser ensinada (a resposta do Mênon – como logo veremos – não
positiva à questão de Mênon), mas é que somos brindados com uma
uma consequência disso (pelo menos instanciação longa do método que
em que pese a crença disponível Sócrates propõe, mas que somos
anteriormente expressa que, para brindados com a parte do método
tudo que pode ser ensinado, há destinada a determinar a verdade da
pessoas que ensinam e pessoas que hipótese. Na verdade, somos
aprendem) é que há professores e brindados com esta parte do método
estudantes da virtude. Porém, a que tem resultados conflitantes: o
discussão subsequente com Mênon e primeiro procedimento do Fédon
Anito, de 89e6 a 96d4, revela crenças contradiz a hipótese, o segundo
e informações disponíveis relativas à procedimento a confirma. Sócrates

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não fornece nenhuma indicação, nem discutem um método que consiste em


no Fédon nem na República, sobre dois processos distintos: o processo
como se deve proceder quando este de identificar hipóteses e obter suas
processo de duas partes tem consequências e o processo de
resultados conflitantes. Men. 96d5- verificar, confirmar ou determinar de
100b4 sugere que devemos revisar os outro modo a verdade das hipóteses.
argumentos apresentados em cada Vimos que, no Mênon, Platão
parte no intuito de determinar se apresenta Sócrates concentrado no
contêm algum erro. Sócrates propõe último processo: verificar ou
que o erro deve ser encontrado no confirmar as hipóteses, apresentando
argumento que reivindica que somente de modo breve a atenção de
nenhuma outra coisa é boa além do Sócrates ao primeiro processo (87b5-
conhecimento. Crença verdadeira, c7). O contrário é o caso no Fédon.
professa Sócrates, não é menos Apesar de nos dar mais detalhes a
benéfica que o conhecimento (97a9- respeito do processo de verificar as
d3 e 98b7-c3). Tomemos a sério ou hipóteses em 101d3-e3, Platão
não esta declaração, não devemos apresenta Sócrates concentrado no
concluir, porém, que Sócrates não põe processo de identificar as hipóteses e
em prática o método que propõe. obter suas consequências.

Como mencionei anteriormente, Após uma descrição geral do método


porém, o Mênon pode ser o caso mais em 99e4-100a7, Sócrates fornece um
simples a se conceber. Quase todo conteúdo voltando ao caso em
mundo aceitaria que Platão apresenta questão. Ele identifica a hipótese que
Sócrates pondo em prática o método as Formas existem (100b5-9) e infere
que propõe pelo menos disso, juntamente com várias
sumariamente no Mênon. Porém, e premissas subsidiárias a respeito da
no Fédon? Obviamente penso que a natureza da causa (talvez as três leis
resposta a esta questão é afirmativa, ou requerimentos de “causa”: ver
mas o modo pelo qual Sócrates põe Gallop, 1975, p. 186; Bostock, 1986, p.
em prática o método que propõe no 137 e Kanayama, 2000, p. 54), que
Fédon é diferente do modo em que o cada coisa vem a ser o que é ao
põe em prática no Mênon. Lembre--se participar de uma Forma. Por
que todos os três diálogos – o Mênon, exemplo, algo vem a ser belo porque
o Fédon e a República – propõem e participa da Forma da Beleza (100d4-

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8), algo vem a ser dois porque um exame mais aprofundado, ainda
participa da Forma da Díade (101cl-6) que as tomemos por convincentes. E
se você as analisar adequadamente,
e algo vem a ser grande porque seguirá, penso, o argumento tão longe
participa da Forma da Grandeza quanto o pode um homem e, se a con-
(100e5- 101a5). A partir deste clusão for clara, você não mais
princípio causai “seguro” (novamente inquirirá. (107b5-9).
presumivelmente com várias
premissas subsidiárias), Sócrates Esta última passagem torna
infere um princípio causai “mais sutil”, explícito que Sócrates supõe que está
de acordo com o qual uma coisa vem pondo em prática o tempo todo o
a ser o que é, digamos F, por possuir método que propõe. Ele pôs o foco, é
algo que implica F-dade. Por exemplo, verdade, no primeiro dos dois
três vem a ser ímpar por possuir processos que caracterizam o
Unidade que implica Imparidade, ou o método: o processo de identificar e
corpo vem a ser quente por possuir obter as consequências das hipóteses
fogo que implica Calor (105b5-c6). para a questão analisada, neste caso a
Neste ponto, Sócrates inicia seu imortalidade da alma. Porém, ele aqui
argumento final em prol da sustenta que o método não estará
imortalidade da alma, que pode ser completo até que se volte ao segundo
resumido como segue. O princípio processo de verificar e confirmar as
causai “mais sutil” implica que, se a hipóteses empregadas. Assim, aqui no
presença de uma coisa torna x F, Fédon, para o argumento final crucial
então esta coisa não pode ser não F. em prol da imortalidade da alma,
Por exemplo, se a presença de fogo na Platão parece estar apresentando
água torna a água quente, então o Sócrates pondo em prática o método
fogo não pode ser não quente. Dado que propõe, assim como no Mênon.
que a presença da alma torna o corpo
vivo, se segue que a alma não pode Obviamente, dito isso, o
ser não viva. Ela não pode morrer. Ela esquema deste argumento final em
é imortal. Depois de reconhecer que a prol da imortalidade da alma ignora
“hesitação privada” que permanece a um variegado de dificuldades em
Símias é aceitável, Sócrates conclui o torno do argumento e da
argumento do seguinte modo: interpretação do método proposto.
Por exemplo, talvez se objetasse que
Nossas primeiras hipóteses requerem não se pode derivar consequências

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interessantes ou substantivas de uma depois das afirmações explícitas de


única hipótese (como a descrição Sócrates. Para tentar compreender
geral em 99e4-100a7 pode sugerir seu método de elenchus, não se
que se possa) e, na verdade, se deveria – de fato, não se deve –
observará que, ao descrever o restringir-se às afirmações explícitas
argumento que segue como uma de Sócrates a seu respeito, mas se
instância do ato de derivar tais deve olhar para sua prática efetiva em
consequências, frequentemente diálogos como o Eutifro, Laques,
recorri a hipóteses adicionais e/ou a Carmides e Protágoras. De mesmo
premissas auxiliares. Além disso, modo, enquanto o último terço do
simplesmente supus sem argumentar Mênon deve ser visto como uma
que a noção de “concordância” evidência do que Sócrates tem em
(sumphônein) empregada na mente por verificar ou confirmar as
descrição geral é em linhas gerais a hipóteses, também o argumento final
noção de implicação lógica, a despeito em prol da imortalidade da alma no
de todas as dificuldades que Fédon deve ser visto como uma
circundam tal suposição (ver, por evidência do que Sócrates tem em
exemplo, Robinson, 1953, p. 126-8; mente por identificar as hipóteses e
Gentzler, 1991 e Kanayama, 2000, p. obter as suas consequências.
62-4). E, obviamente, enfim, não
ofereci nada que seja uma Um ponto similar aplica-se ao
interpretação definitiva isenta de método posto em prática na
problemas da estrutura do argumento República, embora nossa discussão
final de Platão no Fédon (para uma deva necessariamente ser mais
interpretação mais detalhada dele sumária. A República pode ser lida
ver, por exemplo, Kanayama, 2000). como um longo argumento que visa a
Contudo, na medida em que mostrar que a justiça é um bem
buscamos dar conta das dificuldades desejado por si mesmo, assim como
que circundam o método que por suas consequências (357al-
Sócrates propõe no Fédon, não 358a8). (Ver, por exemplo, White,
precisamos e, na verdade, não 1979; Annas, 1981; ver também o
devemos nos restringir às afirmações capítulo Platão e a justiça.) Para
explícitas de Sócrates a seu respeito. mostrar isso, Sócrates propõe-se,
Devemos olhar ao argumento final em primeiro, a determinar a natureza da
prol da imortalidade da alma que vem justiça e, imediatamente, a observar e

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constatar que a investigação que outros de algum modo quanto à


estão a ponto de iniciar não é fácil, natureza, um sendo afeito a uma
requerendo um “olhar apurado”. tarefa; um outro, a outra” (370a8-b2).
(Ver, por exemplo, White, 1979, p. 84-
Portanto, já que não somos pessoas 5; Annas, 1981, p. 73 e Pappas, 1995,
argutas, devemos adotar o método de
p. 61). Destas duas hipóteses e de nu-
investigação que usaríamos se, não
tendo um olhar apurado, nos fosse merosas premissas e argumentos
pedido ler letras pequenas à distância auxiliares Sócrates infere que a justiça
e então notássemos que as mesmas cívica consiste em cada classe da
letras existiam alhures em tamanho Kallipolis – a classe dos artesãos, a
maior e em uma superfície maior.
classe dos soldados e a classe dos
Consideraríamos, suponho, um dom
divino poder ler primeiro as letras governantes – realizar a tarefa para a
maiores para então examinar as qual é mais afeita (433e-434c, esp.
menores e ver se realmente são as 434c7-10). Em sequência, com base
mesmas. (368dl-7) na hipótese que “a mesma coisa não
quererá fazer ou sofrer os postos na
Como o geômetra no Mênon, mesma parte de si, em relação à
Sócrates propõe aqui reduzir a mesma coisa, ao mesmo tempo”
questão em pauta – a natureza da (436b8-9; ver também 436e8-437a2),
justiça individual – à questão que é juntamente com várias premissas
suposta ser mais fácil de se psicológicas, Sócrates infere que a
responder: a natureza da justiça alma também consiste em três partes
cívica. Ou seja, propõe identificar uma ordenadas como as partes da
hipótese a partir da qual possa inferir Kallipolis, e, assim, com base na
uma resposta à sua questão original. redução pressuposta com a qual o
Tal hipótese, todavia, não está à mão argumento inicia, a justiça individual é
e, assim, ele se volta a duas outras vista como sendo cada parte da alma
hipóteses a partir das quais pode – apetite, ardor e razão – realizando a
inferir tal hipótese. Sócrates propõe tarefa à qual é mais afeita. A partir
reconstruir a cidade ideal, ou desta explicação da natureza da
Kallipolis, com base em duas justiça, Sócrates se põe nos Livros VII
hipóteses: que “nenhum de nós é aX a mostrar que a justiça é um bem
autossuficiente, mas todos desejado por si mesmo e por suas
precisamos de muitas coisas” (369b6- consequências. Dada esta
7) e que “cada um de nós difere dos reconstrução confessadamente

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apressada e imperfeita do argumento que, em minha opinião, jamais


central da República, Platão pode ser teremos uma resposta precisa usando
os métodos atuais de argumentação –
visto como apresentando Sócrates todavia, há um outro caminho mais
pondo em prática o método que longo e mais completo que leva à
estava propondo. Sócrates procede resposta. Porém, talvez possamos
tentando identificar e obter as obter tuna resposta que esteja à altura
consequências das hipóteses no in- de nossas afirmações e investigações
precedentes. (R. 435c9-d5)
tuito de responder à questão em
discussão.
Platão aqui faz com que Sócrates
exprima uma hesitação acerca da
Mesmo que aceitemos esta
força do argumento neste momento.
reconstrução do argumento, deve-se
A resposta a que chegou parece de
admitir que a evidência que Platão
algum modo incerta. Conhecendo o
apresenta Sócrates pondo em prática
que sabemos acerca do método
o método dialético, como proposto no
dialético que Platão propõe no
Mênon, no Fédon e na República, no
Mênon, no Fédon e na República e sua
argumento central da República é no
diferença do método dianoético,
máximo circunstancial. De fato, talvez
poderíamos especular que a
se pense que qualquer argumento
dificuldade com o argumento é que
poderia ser visto como uma
empregou somente um dos processos
instanciação deste aspecto do
que constituem o método dialético.
método dialético – pelo menos na
Somente identificou e obteve as
medida em que o argumento central
consequências das hipóteses
da República o pode. Porém, a
necessárias e suficientes para
evidência se toma mais forte quando
responder à questão em jogo. Não
nos voltamos a duas passagens nas
buscou verificar ou confirmar a
quais Sócrates descreve o argumento
verdade destas hipóteses. O caminho
que apresentou.
mais longo seria empregar também
este processo – a caminho do
A primeira é uma curta passagem
“primeiro princípio não hipotético de
após a explicação da justiça cívica,
tudo”. Um longo caminho, sem
quando Sócrates se volta à questão da
dúvida! O que, porém, Platão parece
justiça individual. Ele diz:
estar indicando aqui é que Sócrates
Contudo, você deveria saber, Gláucon, não está pondo em prática o método

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

dianoético, mas o método dialético, satisfeito, Sócrates explica que os


embora de modo incompleto. futuros governantes, todavia,
Sócrates está ciente que suas
hipóteses necessitam de confirmação. Devem tomar o caminho mais longo e
devem se esforçar muito tanto na
Diferentemente do matemático
erudição quanto na parte física, pois,
dianoético, não toma suas conclusões de outro modo, como acabamos de di-
seguras enquanto estiverem baseadas zer, ele nunca alcançará o tópico mais
em hipóteses não confirmadas. importante e mais apropriado para ele
aprender. (504c9-d3)
Esta especulação é confirmada
quando Platão faz com que Sócrates É-nos dito aqui que o caminho
retorne à sua distinção entre um mais longo é o caminho que leva ao
caminho mais curto e um mais longo, tópico mais importante. Aprendemos
ao discutir a educação dos futuros em seguida que este tópico é o
governantes. Sócrates diz, referindo- conhecimento da Forma do Bem.
se à passagem que acabamos de Dada a identidade da Forma do Bem e
examinar: “o primeiro princípio não hipotético
de tudo”, nossa especulação se vê
Você se lembra quando distinguimos confirmada. O caminho mais curto
três partes na alma de modo a que é perseguido no argumento
descobrir o que é a justiça, a central da República é defeituoso
moderação, a coragem e a sabedoria?
porque deixou de empregar o
(...) Dissemos, penso, que, no processo de verificar as hipóteses
intuito de obter a mais fina visão sobre empregadas em direção ao “primeiro
estes temas, deveríamos tomar um princípio não hipotético de tudo”. O
caminho mais longo que as tornariam método que Sócrates emprega no
evidentes para quem o tomasse, mas
argumento central da República é
que era possível dar demonstrações do
que elas são que estaria à altura de metade do método dialético que ele
nossa argumentação precedente. E descreve no Mênon, no Fédon e na
você disse que isso seria satisfatório. República.
Assim, parece-me que nossa discussão
naquele momento não tinha exatidão, O MÉTODO SUCEDÂNEO
mas é você quem deve dizer se ela foi
satisfatória ou não. (504a4-b7)
Até aqui sustentei que é um erro
Depois que Gláucon se diz pensar que Sócrates malogra em pôr

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

em prática o método que Platão o faz Livros II a IV como tomando o


propor nos diálogos centrais do caminho mais curto, ao invés do mais
Mênon, do Fédon e da República. longo e superior. No Fédon, ele
Nestes diálogos, Sócrates propõe um descreve o método que propõe como,
método que consiste em dois de certo modo, um “sucedâneo”
processos: um processo de identificar (deuteros plous-, ver, por exemplo,
e obter as consequências das Gentzler, 1991, p. 266 n. 4; Rowe,
hipóteses necessárias e suficientes 1993b, p. 238-9 e 68-9; Gonzalez,
para resolver a questão em liça e um 1998, p. 192 e 351 n. 3; pace
processo de verificar ou confirmar tais Kanayama, 2000, p. 87-95). Aqui, no
hipóteses. O método passa por um Mênon, muitos consideram que
desenvolvimento e/ ou elaboração ao Sócrates propõe e emprega o método
longo destes três diálogos, mas estes somente por causa da recusa de
três processos fundamentais não Mênon em perseguir a natureza da
sofrem variação. No Mênon, Sócrates virtude antes que sua ensinabilidade
é apresentado empregando o (Brown, 1967, p. 63-5; Seeskin, 1993,
processo de verificar ou confirmar as p. 45-7 e Kahn, 1996, p. 318- 19).
hipóteses com um resultado Como explicar esta aparente
aparentemente insatisfatório. No relutância em adotar o método que
Fédon e na República, Sócrates é Platão fez Sócrates propor e
apresentado empregando o processo empregar?
de identificar e obter as
consequências das hipóteses Pode-se pensar que esta
necessárias e suficientes para relutância indica que, para Platão, o
determinar, de um lado, a método filosófico genuíno ou a
imortalidade da alma e, de outro, se a dialética genuína não pode ser
justiça é um bem desejado por si representado nos diálogos. Ele é em
mesmo assim como por suas algum modo inefável ou não
consequências. Todavia, ao longo discursivo. Deve ser posto em prática,
destas passagens, permanece algo não ser descrito ou representado. O
insatisfatório acerca do método que que Platão descreve ou apresenta é o
Sócrates é apresentado como método sucedâneo da hipótese. De
propondo e empregando. Acabamos fato, algo deste tipo pode encontrar
de ver que, na República, Sócrates apoio pelo aparente desprezo de PL
critica o método que empregou nos pela escrita como um modo de

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

praticar a filosofia no Fedro (275c5- método dialético quanto o método


277a4). Contudo, este mesmo diálogo dianoético da República empregam
oferece ainda uma outra explicação hipóteses. O que distingue estes dois
da natureza da dialética – desta vez métodos é o modo como empregam
caracterizada como o método de as hipóteses. O método dianoético
agrupamento e divisão (265d3-266cl), usa a experiência sensível ao lidar
que muitos pensam que Platão com as hipóteses e as trata como se
apresenta em certo detalhamento em estivessem confirmadas, ao passo
diálogos como o Sofista, o Político e o que o método dialético não usa a
Filebo. (Ver, por exemplo, Stenzel, experiência sensível e trata suas
1973: xliii e Kahn, 1966, p. 300.) Fica hipóteses como não confirmadas até
então difícil tomar Platão como atingir “o primeiro princípio não
sustentando a impossibilidade de hipotético de tudo” ou a Forma do
apresentar a dialética genuína como Bem. Não nos preocupamos com o
tal nos diálogos. uso da experiência sensível nos
métodos propostos no Mênon e no
Outros sugeriram que a Fédon e postos em prática nos três
relutância de Platão em adotar o diálogos. Porém, vimos que Sócrates
método empregado e proposto em não descreve o método que propõe
nossos três diálogos consiste no Mênon e no Fédon como
precisamente em distinguir este verificando ou confirmando suas
método do método adotado nos hipóteses até que se atinja “o
livros centrais da República (e primeiro princípio não hipotético de
empregado nos chamados diálogos tudo” nem o método que põe em
primeiros; ver Gonzalez, 1998). O mé- prática nestes três diálogos confirma
todo que Platão emprega e propõe suas hipóteses a este ponto. Na
antes dos livros centrais da República verdade, a descrição que Sócrates faz
é o método da hipótese e este de sua prática na República como o
método deve ser identificado com o caminho mais curto revela que não
método dianoético. Porém, a con- toma as suas hipóteses como
dição de sucedâneo do método confirmadas deste modo.
dianoético aos olhos de Platão é
imediata. Obviamente, sustentei que Talvez isto indique como
tal opinião do método da hipótese devemos entender a aparente
precisa ser reexaminada. Tanto o relutância de Platão em adotar o

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método que faz com que Sócrates entender um “primeiro princípio não
proponha e empregue nos livros hipotético de tudo” – algo diante do
centrais da República. O malogro de qual ele parece simplesmente fora de
Platão em apresentar Sócrates pondo propósito. Por agora, todavia,
em prática um método que confirme podemos concluir que um exame
suas hipóteses ao ponto do “primeiro completo do método da dialética em
princípio não hipotético de tudo” Platão não deve confinar-se às
justifica a condição de sucedâneo da afirmações explícitas de Sócrates a
prática de Sócrates nestes diálogos. O respeito do método nos diálogos
método se encontra em algum lugar centrais de Platão. Deve também
entre o método dianoético e o olhar para a prática de Sócrates nestes
dialético. Ele fracassa em confirmar diálogos. Para voltar à citação de
suas hipóteses ao ponto do “primeiro Robinson com a qual começamos este
princípio não hipotético de tudo”. capítulo, no Mênon, no Fédon e na
Porém, reconhece a necessidade de República Platão dá proeminência ao
fazer isso. Por que Platão prefere não método bem como à metodologia.
apresentar Sócrates confirmando
suas hipóteses até tal princípio, dado NOTA
que reconhece que precisa fazer isso,
exige uma resposta. Para dar início a As traduções de Platão foram tomadas de J.
M. Cooper (ed.) Plato: Complete Works
tal resposta é preciso um estudo
(Indianápolis: Hackett, 1997).
detalhado da explicação de Platão da
Forma do Bem, inclusive de por que REFERÊNCIAS E LEITURA
prefere discuti-la por meio de uma COMPLEMENTAR
analogia nos livros centrais da
República (ver o capítulo O Conceito Annas, J. (1981). An Introduction to Plato’s
de Bem em Platão). Também requer Republic. Oxford: Clarendon Press.
distinguir entre praticar filosofia como Bedu-Addo, J. D. (1984). Recollecdon and the
um método de descoberta filosófica e ar- gument from a hypothesis in Plato’s
praticar filosofia como um método de Meno. Journal ofHellenic Studies 104, pp. 1-
instrução filosófica, e considerar 14.
como escrever em filosofia (em forma Benson, H. H. (2003). The method of
de diálogo ou não) está relacionado a hypothesis in the Meno. Proceedings of the
ambos (ver o capítulo A Forma e os Boston Area Collo- quium in Ancient
Philosophy 18, pp. 95-126. Bluck, R. S. (1961).
Diálogos Platônicos). Por fim, requer

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Plato’s Meno. Phronesis 6, pp. 94—101. Cambridge: Cambridge University Press.


Bostock, D. (1986). Plato: Phaedo. Oxford: Seeskin, K. (1993). Vlastos on elenchus and
Oxford University Press. ma thematics. Ancient Philosophy 13, pp. 37-
54. Stenzel, J. (1973). Plato’s Method of
Brown, M. S. (1967). Plato disapproves of the
Dialectic, trans. D. J. Allen. New York: Amo
slavebo/s answer. Review of Metaphysics 20,
Press. van Eck, J. (1994). Skopein en logois: On
pp. 57-93.
Phaedo 99d-103c. Ancient Philosophy 14, pp.
Gallop, D. (1975). Plato: Phaedo. Oxford: 21-40. White, N. P (1979). A Companion to
Oxford University Press. Plato’s Republic. Indianapolis: Hackett.
Gentzler, J. (1991). Sumphonein in
Plato’sPhaedo. Phronesis 36, pp. 265-77.
Gill, C. (2002). Dialectic and the dialogue
form. In J. Annas and C. Rowe (eds.) New
Perspectives on Plato, Modem and Ancient
(pp. 145-71). Cambridge, Mass.: Harvard
University Press.
Gonzalez, F. J. (1998). Dialectic and Dialogue:
Plato’s Practice ofPhilosophical Inquiry.
Evanston, 111.: Northwestern University
Press.
Kahn, C. H. (1996). Plato and the Socratic
Dialogue. Cambridge: Cambridge University
Press.
Kanayama, Y. (2000). The methodology of the
second voyage and the proof of the soul’s
indes- tructibility in Plato’s Phaedo. In Oxford
Studies in Ancient Philosophy, vol. 18 (pp. 41-
100). Oxford: Oxford University Press.
Pappas, N. (1995). Plato and the Republic.
New York: Routledge.
Robinson, R. (1953). Plato’s Earlier Dialectic,
2nd edn. Oxford: Oxford University Press.
Rowe, C. (1993a). Explanation in Phaedo 99c6
-102a8. Oxford Studies in Ancient Philosophy,
vol. 11 (pp. 49-70). Oxford: Oxford University
Press.
______(ed.) (1993b). Plato: Phaedo.

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Parte II

A EPISTEMOLOGIA
PLATÔNICA

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8. A ignorância socrática Segundo a Apologia de Platão,


Sócrates passou a considerar a
GARETH B. MATTHEWS sabedoria de reconhecer sua própria
ignorância em resposta a uma
Segundo o quadro que temos de asserção do oráculo no Templo de
Sócrates com base nos primeiros Apoio em Delfos. De acordo com o
diálogos platônicos, ele acreditava oráculo, ninguém era mais sábio do
que reconhecer um tipo de que Sócrates (Ap. 21a). Quando
ignorância1 em si mesmo era uma Sócrates escutou de seu amigo
forma de sabedoria, na verdade uma Querefonte o que o oráculo tinha
forma de sabedoria que pessoas dito, pôs-se, nos diz, a determinar se
inteligentes em outros campos o que disse o oráculo poderia ser
pareciam não ter. Porém, que tipo de verdadeiro. Seu modo de determinar
ignorância? E que tipo de sabedoria? se poderia ser verdadeiro consistia
Como prova tão eloquente o em questionar atenienses
considerável comentário sobre a considerados por seus concidadãos
ignorância socrática, não é fácil ter como sábios. Ele tentaria descobrir se
clareza sobre estas pessoas de fato sabiam coisas
que ele próprio não sabia.
1. o que exatamente Sócrates
pensava que não sabia que, como Sócrates começou sua
ele diz, outras pessoas em seu investigação, nos diz ele, fazendo
entorno pensavam questões a uma figura pública
enganosamente que sabiam. E considerada por outros – e,
igualmente difícil ter clareza acerca acrescenta Sócrates, secretamente
de pela própria pessoa – como sábia.
2. por que Sócrates pensava que Sócrates rapidamente viu, diz ele, que
reconhecer em si mesmo é de fato este homem de fato não era nada
uma forma de sabedoria. sábio. Ele até tentou, sem sucesso,
convencer esta pessoa que ela não
É meu objetivo no que segue era sábia. Como se poderia prever,
ganhar um pouco de clareza acerca estes esforços só fizeram com que o
destes dois pontos. homem perdesse o apreço por
Sócrates. Assim, Sócrates encerrou
este encontro e fiz o seguinte bem

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conhecido julgamento: T2. Assim, continuo até hoje esta in-


vestigação que o deus me impôs – e me
Tl. Eu sou mais sábio do que este ponho a procurar alguém, cidadão de
homem; é provável que nenhum de Atenas ou estrangeiro, que eu pense
nós saiba algo que tenha valor, mas ele ser sábio. Então, se penso que ele não
pensa que sabe algo, quando nada é sábio, peço ajuda ao deus e mostro a
sabe, ao passo que eu não sei nem esta pessoa que ela não é sábia. (Ap.
penso que sei; assim, é provável que 23b4-7).
eu seja mais sábio nesta pequena
medida, que eu não penso que eu sei Deste modo, isto que Sócrates e
o que não sei. (Ap. 21d3-7). os que ele questiona não sabem
quando malogram em saber algo “que
Sócrates, como continua a nos tenha valor” é, como ele supõe, algo
relatar, não terminou sua que o deus pensa ser importante que
investigação com este primeiro eles se deem conta que não sabem. E
homem reputado como sábio, mas foi é algo que o fracasso em se dar conta
pôr em exame outras pessoas que não se tem conhecimento disso
também. Ele pôs em exame políticos, revela que não se é, por esta razão,
poetas, trágicos e, por fim, artesãos. sábio.
Descobriu, diz ele, que “os que tinha a
maior reputação eram os mais Há indicações tentadoras sobre o
deficientes, ao passo que os que eram que vem a ser conhecer algo “que
considerados inferiores tinham [na tenha valor”. Mas elas não são
verdade] muito mais conhecimento” suficientes por elas próprias para nos
(Ap. 22a3-6). dar uma concepção bem clara do que
Sócrates entenderia por um
A MISSÃO DIVINA conhecimento “que tenha valor”.

Convém manter em mente aqui que Neste ponto, conviria chamar a


Sócrates não concebe o processo de atenção para a expressão que o
exame que iniciou como uma tradutor de Tl, M. A. Grube, rendeu
competição entre ele e os outros como “que tenha valor”, kalon
atenienses para ver quem ganharia as k’agathon. Suspeito que, pelo menos
honras da sabedoria. Ao invés disso, neste contexto, “que tenha valor” é
ele o pensa como a realização de uma uma subtradução desta expressão. O
missão divina: primeiro termo da expressão, kalon,

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significa “nobre”, “belo” ou, mais CONHECENDO ALGO BELO E BOM


geralmente, “bom” <fine>. E a
segunda palavra é uma junção da Talvez o modo mais promissor para
palavra para “e” com a palavra para abordar esta questão seja considerar
“bom” <good>. Platão usa quais questões Sócrates perguntava
costumeiramente a expressão inteira, aos outros atenienses quando
especialmente no masculino, para tentava determinar se eles sabiam
uma pessoa que é nobre e boa, mas algo que ele alegava não saber.
idealmente para alguém belo e bom Temos uma boa ideia do que eram
(veja, por exemplo, Ly. 207a2-3), onde estas questões. Pelo menos, se
a mensagem parece ser que a nobreza pudermos aceitar que os primeiros
de caráter é também beleza de diálogos platônicos são um retrato
caráter, bem como beleza da pessoa razoavelmente fiel das pessoas que
(ver o capítulo Eros e Amizade em Sócrates interrogava e uma boa
Platão). Em seus diálogos, Platão representação do tipo de questões
frequentemente conecta o belo com o que ele lhes fazia. O que Sócrates
bom (ver, por exemplo, Smp. 201cl-2). pergunta aos seus interlocutores nos
Assim, sua justificação, na República, primeiros diálogos são questões
para incluir a música e a poesia no como estas: “o que é a piedade?”, “o
currículo dos futuros guardiães é que que é a coragem?, “o que é a
aprender a apreciar a beleza na arte e amizade?”, “o que é a beleza?”, “o
na natureza é uma parte essencial da que é a justiça?” e “o que é a
educação moral.2 Então, talvez temperança?”. E o que Platão
devamos entender a tese em Tl como apresenta Sócrates como não
a seguinte: sabendo nestes diálogos “de
definição” é como responder a estas
(A) Sócrates alega que não sabe nada questões do tipo “o que é F-dade?” de
que é belo e bom. um modo satisfatório, em que uma
resposta satisfatória aparentemente
Contudo, (A) não nos leva muito deve fornecer de modo informativo
adiante no esforço de determinar o condições necessárias e suficientes
que é que Sócrates insiste que não para x ser F (ver o capítulo Definições
sabe. O que Sócrates consideraria Platônicas e Formas).
como um caso de conhecimento de
algo belo e bom? Eutifro, por exemplo, pensa que sabe

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Hugh H. PLATÃO
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o que é a piedade. Sócrates não pensa Em ambos os casos, algo que


saber ele próprio. Uma coisa que o Sócrates aceita como verdadeiro teria
diálogo Eutifro toma claro é que sido dito. Porém, não se teria
Eutifro de fato não sabe o que a identificado a forma da piedade de
piedade é, não mais do que Sócrates. modo que se a pudesse usar para
Isto é, Eutifro não pode oferecer de determinar quais coisas são pias e
modo informativo condições quais coisas não o são, como estipula
satisfatórias para que uma ação ou T3. O “modelo” ou “padrão” que T3
uma pessoa possa contar como sendo requer deve ser algo que tome
pia. Estou acrescentando a cláusula aparente os critérios para que uma
que a resposta deve ser informativa ação ou pessoa conte como pias. E
porque Sócrates diz isto: nem

T3. Diga-me, então, o que é esta forma (1) nem (2) teriam um uso para
em si mesma, de modo que possa olhar determinar quais ações são pias e
para ela e, usando-a como um modelo
[molde ou padrão, paradeigmá], dizer quais não são. Assim, não podem ser
que toda ação sua ou de outra pessoa exemplos do que Sócrates está
que for deste tipo é pia e, se não for, procurando e ainda não encontrou. O
não é pia. (Euthphr. 6e3-6) que ele quer é algo que possa servir
como um “molde interno” para pôr os
Para compreender o que está candidatos a ações e pessoas pias
sendo introduzido pelo requerimento para ver se elas se qualificam como
expresso em T3, considere o que sendo pias.
ocorreria se alguém respondesse a
Sócrates dizendo: No diálogo Carmides, Sócrates
pergunta o que é sôphrosunê
1. Piedade é o que todas e somente (“temperança” ou “prudência”). Mais
as ações pias necessariamente têm adiante no diálogo, Crítias propõe o
em comum “autoconhecimento” como sua
resposta à questão “o que é
Ou dizendo: sôphrosunê?”. Ele desafia Sócrates:
“quero agora dar uma explicação
2. Piedade é o que justamente torna desta definição, a menos, é claro, que
pias as coisas pias. você já esteja de acordo que a
temperança seja conhecer a si

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mesmo” (165b). Sócrates replica: você diz, estaria fazendo isso por algu-
ma razão outra que a que daria para
T4. Mas Crítias... você me feia como se uma investigação completa de minhas
eu declarasse conhecer as respostas às próprias afirmações – o medo de pen-
minhas próprias questões e como se sar inconscientemente que eu sei algo
pudesse concordar com você se quando eu não sei. E é isso que preten-
realmente assim o desejasse. Não é do estar fazendo agora, examinando o
isso – antes, por causa de minha argumento primariamente para mim
ignorância, estou continuamente mesmo, mas talvez também para meus
investigando em sua companhia o que amigos. (166c7-d4)
for proposto. Todavia, se eu refletir
sobre isso, estarei pronto a dizer se Minha sugestão é que saber o que é a
concordo ou não. Espere somente que piedade ou a temperança, no sentido
eu reflita. (165b4-c2) de ser capaz de dar de modo
informativo condições necessárias e
No diálogo, Sócrates deixa claro suficientes para que um ato ou pessoa
que não pensa que saiba como conte como sendo pia ou temperante,
responder satisfatoriamente à seria, de acordo com Sócrates,
questão “o que é a sôphrosunê?”. conhecer algo belo e bom. Se esta
Contudo, e isto é um ponto resposta estiver na direção correta,
interessante que temos de ter em então as diferentes peças da história
mente, ele se apronta a dizer se do oráculo passam a se ajustar bem
concorda ou não com a sugestão de umas com as outras.
Crítias, isto é, se pensa que se trata de
uma explicação satisfatória do que a A história da filosofia
sôphrosunê é, assim que tiver tido a subsequente mostrou como é
oportunidade para penar sobre isso. irritantemente difícil chegar a uma
análise satisfatória de qualquer
Um pouco mais adiante no conceito filosoficamente
mesmo diálogo, Sócrates liga a busca interessante. Entre os conceitos
pelo que é a temperança à sua decisão filosoficamente interessantes
de não pensar que sabe o que ele não incluímos os éticos, como bravura,
sabe. Novamente ele está se dirigindo virtude, piedade e temperança, todos
a seu interlocutor Crítias: nos quais Sócrates estava
interessado. Porém, devemos
T5. Ah sim!... como você pode pensar
que, ainda que eu refute tudo o que também incluir noções metafísicas,

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Hugh H. PLATÃO
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como causa, tempo e número, para os Neste ponto, uma questão muito
quais filósofos posteriores tentaram importante surge. Se Sócrates não
encontrar, com grande engenho e de sabe o que a piedade é, a coragem ou
modo informativo, condições a temperança, pelo menos não no
necessárias e suficientes, bem como sentido forte de ser capaz de dar de
conceitos epistemológicos, como modo informativo um conjunto
verdade e o próprio conhecimento. satisfatório de condições necessárias
Ora, nenhum de seus esforços foi e suficientes para que uma pessoa ou
aceito universalmente. Não devemos, uma ação conte como pia, corajosa ou
portanto, nos surpreender que os temperante, como pode ele saber
cidadãos atenienses que Sócrates que tal pessoa ou tal ação é pia,
questiona não eram capazes de dar, corajosa ou temperante?
de modo informativo, as condições
necessárias e suficientes para que PRIORIDADE DO CONHECIMENTO
uma ação contasse como corajosa, DEFINICIONAL
pia ou justa. Por outro lado, não
devemos nos surpreender tampouco O próprio Sócrates se põe esta
de encontrar Sócrates pensando que questão em vários diálogos, inclusive
ser capaz de fornecer no Hípias Maior, onde a questão em
satisfatoriamente explicações deste discussão é “o que é to kalon.7” (isto
tipo para os conceitos morais em é, “o que é o belo, o bom ou o
particular seja tão importante para a nobre?”). Eis aqui parte da fala final
vida moral que nossa incapacidade de de Sócrates a Hípias:
fornecer tais condições é uma
ignorância fatal. Até mesmo T6. Se eu mostrar a vocês, homens
sábios, o quão sem saída [isto é, quão
reconhecer que não se é capaz de perplexo] estou, fico enlameado por
fornecer tais explicações para a suas falas quando o mostro. Vocês
virtude e para as virtudes individuais, todos disseram o que você acabou de
como coragem e piedade, poderia dizer, que estou perdendo tempo com
contar como uma forma de coisas que são triviais, pequenas e sem
valor. Mas quando sou convencido por
sabedoria. E seria plausível supor que vocês e digo o que vocês dizem, que a
“o deus” tenha dado a Sócrates a coisa mais excelente é ser capaz de
missão de gerar esta sabedoria nos apresentar um discurso bem e
outros. belamente e resolver as coisas em um
tribunal ou em uma reunião, escuto

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

todos os insultos daquele homem algo ou alguém seja kalon, então


(entre outros aqui em volta) que Sócrates não sabe se uma fala
sempre me refutou. Ele é um parente
próximo meu e mora na mesma casa. qualquer (por exemplo) é boa (bela
Assim, quando volto para casa, para ou nobre).
meu lugar, e ele me escuta dizer essas
coisas, ele me pergunta se não estou Benson e outros comentadores
envergonhado de ousar discutir coisas pensam que a Prioridade do
belas quando fui tão claramente refu-
Conhecimento Definicional vai
tado acerca do belo, e é claro que não
tenho a mínima ideia do que é aquilo mesmo além de (P). Eles pensam que
em si mesmo! “Olha”, ele dirá, “como inclui o que Benson formula do
você saberá qual fala ou uma outra seguinte modo:
ação está belamente apresentada,
quando você ignora o que é o belo? E,
(D) Se A não sabe o que é F-dade,
quando você está em tal estado, você
acha que é melhor para você viver do então A não sabe, para um dado G,
que morrer?” (302cl-e3) que F-dade é G. (Benson, 2000, p.
113).
Muitos comentadores pensam
que esta fala e outras similares De acordo com (D), se Sócrates
compromete Sócrates com o que não sabe o que é “o bom”, no sentido,
Hugh Benson chama “a prioridade do de novo, de não ser capaz de prover
conhecimento definicional”. Benson de modo informativo as condições
formula parte do Princípio de necessárias e suficientes para que
Prioridade do Conhecimento algo ou alguém seja bom, então
Definicional do seguinte modo: Sócrates nem mesmo sabe se a bon-
dade é uma virtude ou uma boa coisa
(P) Se A não sabe o que é F-dade, a possuir.
então A não sabe, para um dado x,
que x é F. (Benson, 2000, p. 113). Sobre a questão se Sócrates se
compromete com (D) em particular,
De acordo com (P), se Sócrates vale a penar observar como termina a
não sabe o que é to kalon (isto e, o fala final do Hípias Maior. Eis aqui o
que é o bom, o belo e o nobre), no que vem imediatamente após T6 e
sentido de não ser capaz de dar, de conclui o diálogo (Sócrates está
modo informativo, as condições falando):
necessárias e suficientes para que

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T7. É o que ganho, como disse. Insultos qualquer um em algo, seria nisto, que,
e reprovações da parte de vocês; in- como não tenho conhecimento
sultos da parte dele. Mas suponho que adequado das coisas no mundo
seja necessário suportar tudo isso. Não inferior, então eu não penso que
seria estranho caso seja bom para tenha. Porém, eu bem sei que é errado
mim. Eu penso de fato, Hípias, que me e vergonhoso fazer o mal,
ter associado a vocês dois me fez um desobedecer a seus superiores, seja
bem. O provérbio diz: “o que é belo é ele deus ou homem. (29bl-7)
difícil” – penso que eu sei isso. (304e3-
9) Esta passagem inclui uma
alegação qualificada de ignorância
Em uma leitura natural e, penso, (“não tenho conhecimento adequado
correta de T7, Sócrates diz aqui que das coisas no mundo inferior”), assim
ele pensa que sabe que o que é belo é como uma alegação clara, e mesmo
difícil (mais literalmente: que “coisas insistente, de conhecimento (“porém,
nobres são difíceis” – chalepa ta kalá). eu bem sei que é errado e vergonhoso
Assim, ele pensa que sabe algo sobre fazer o mal, desobedecer a seus
o bom ou o nobre, no caso, que coisas superiores, seja ele deus ou homem”).
boas ou nobres são difíceis. Porém, se Sócrates não explica por que seu
ele de fato sabe isso, ele rejeita (D). Já conhecimento do mundo inferior é
esta passagem deve fazer-nos hesitar “inadequado”. Podemos especular
em atribuir que seria inadequado simplesmente
porque, até aquele momento, ele não
(D)para Sócrates. teve nenhuma experiência do mundo
inferior. Mas o que fazer com sua
Na verdade, há outras passagens
alegação de conhecer “que é errado e
que devem nos fazer duvidar que
vergonhoso fazer o mal [e]
Sócrates esteja comprometido com
desobedecer a seus superiores?” Se
(P) ou (D), e mais ainda com a
isso é algo que Sócrates sabe, por que
conjunção de (P) e (D). Considere a
não deveria contar como algo “belo e
seguinte passagem da Apologia:
bom”? Ademais, por que não deveria
T8. Por certo é a mais censurável igno-
contar como um contra-exemplo claro
rância crer que se sabe o que não se a (P)?
sabe. É talvez neste ponto e a este
respeito, cidadãos, que sou diferente
da maioria dos homens e, se fosse
reivindicar ser mais sábio do que

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Sugiro que o “primeiro nível” que Assim, T8 parece renegar (P), assim
Sócrates alega ter aqui poderia ser como T7 parecia renegar (D).
sujeito ao mesmo tipo de
questionamento que ele põe a seus A LEITURA APORÉTICA
interlocutores nos diálogos
“definicionais” que estamos Haveria então um outro modo de ler
examinando. Ou seja, Sócrates estas passagens nas quais Sócrates
poderia perguntar “o que é errado?” parece comprometer-se com (P) e
ou “o que é vergonhoso?”. Se devesse (D)? Penso que sim. De fato, a leitura
responder estas questões a si próprio que tenho em mente é muito natural.
ou a outros, pode-se estar seguro que Podemos entender que Sócrates não
nem ele nem seus interlocutores está afirmando que o conhecimento
seriam capazes de apresentar, de definicional é anterior ao conheci-
modo informativo, as condições mento das instâncias e ao
necessárias e suficientes para que conhecimento das conexões
uma ação conte como errada ou como essenciais, mas somente perguntando
vergonhosa. Não possuindo esta como é possível saber, por exemplo,
compreensão, ele e seus que x é pio e y é justo, ou que piedade
interlocutores não possuiriam o tipo e justiça são virtudes, a menos que se
de conhecimento que ele admite não saiba já em um modo informativo, isto
possuir, e é sábio por admitir que não é, não trivial, o que são piedade e
possui, ao passo que outros nem justiça. Vou chamar esta leitura de tais
mesmo se dão conta que não o passagens uma “leitura aporética”.
possuem. Contudo, apesar disso tudo, Minha ideia é que Sócrates usa a
Sócrates claramente alega saber que é questão para exprimir uma
errado ou vergonhoso causar dano e perplexidade (aporia) sobre como se
desobedecer a seus superiores. pode ter conhecimento que x é F ou
que F-dade é G sem ter um
Assim, eis aqui um exemplo de conhecimento anterior do que é F-
Sócrates alegando conhecimento que dade.
uma ação é errada ou vergonhosa,
ainda que, como suspeitamos, tenha Vimos que Sócrates sente-se
de admitir que lhe falta o atraído pela ideia que reconhecemos
conhecimento (belo e bom) do que instâncias de F-dade fazendo apelo a
torna uma ação errada e vergonhosa. um paradigma ou modelo que temos

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em nossas mentes. Dado este modelo é, se não for capaz de prover, de modo
de reconhecimento das instâncias, há informativo, as condições necessárias
somente um pequeno passo para a e suficientes para que algo seja bom
conclusão que eu posso saber que x é [ou belo]. Porém, não precisa ser
F se e somente se compreendida deste modo. Pode ser
tomada como uma questão de fato,
1. tenho disponíveis para mim, uma questão que exprime uma
imediatamente, de um modo perplexidade ou aporia acerca de
informativo, condições necessárias como alguém poderia saber que x é
e suficientes para que algo ou uma instância de F-dade sem ter
alguém seja F e determinado que x satisfaz os critérios
2. creio corretamente que x satisfaz para ser F Assim, em minha leitura
estas condições necessárias e aporética, Sócrates não está
suficientes. afirmando que o conhecimento
definicional é anterior; ao invés disso,
É importante notar aqui que, ele está exprimindo perplexidade
caracteristicamente, estas passagens sobre como poderia ser de outro
nas quais Sócrates é suposto modo, ou seja, como alguém poderia
comprometer-se com a Prioridade do reconhecer instâncias sem um
Conhecimento Definicional têm a conhecimento anterior dos critérios
forma de uma questão. Assim, em T6, apropriados.
Sócrates diz que seu parente lhe
perguntará: Se dermos à Prioridade do Conhe-
cimento Definicional a leitura que
T9. Como você saberá qual fala ou uma proponho, então não precisamos nos
outra ação está bem [ou belamente]
surpreender de encontrar Sócrates
apresentada, quando você ignora o
que é o bem [isto é, o belo]? (Hp. Ma. por vezes renegando (P) ou (D), ou
304d8-e2) ambos, como em T8. Considere uma
outra passagem da Apologia. Ela
Comentadores tendem a tomar esta ocorre depois que o tribunal decidiu
questão como uma questão retórica. que Sócrates é culpado das acusações
Ou seja, tomam seu conteúdo como que lhe foram feitas. Para
sendo isto: você não pode saber qual compreender esta passagem,
fala ou outra ação é boa [ou bela] se devemos compreender uma
for ignorante do bem [ou do belo], isto característica do sistema ateniense de

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justiça (ver o capítulo Platão e a Lei). ainda que não possa dar, de modo
De acordo com este sistema, se o informativo, as condições necessárias
acusado é declarado culpado, a parte e suficientes para que algo seja um
que o acusou propõe uma pena e a mal. Assim, em minha leitura
parte declarada culpada propõe uma aporética do Princípio da Prioridade
pena alternativa. O tribunal tem então do Conhecimento Definicional,
de aceitar uma das duas propostas; Sócrates estaria autorizado a
ele não pode escolher uma punição de acompanhar a sua asserção em TIO
sua própria lavra. Meleto, o acusador com esta questão: “como posso saber
de Sócrates, propõe a pena de morte que a prisão seria um mal, se não
e Sócrates tem de propor uma pena posso dizer o que é ser um mal para
alternativa. Deve ele propor algum algo?” Porém, ele não estaria forçado,
período de prisão? O tribunal poderia sob pena de inconsistência, a negar
aceitar tal pena. Eis parte do que que tem tal conhecimento.
Sócrates diz:
DIZENDO UMA MENTIRA
TIO. Visto que estou convencido de não
ter causado dano a ninguém, não vou Meu modo favorito para ilustrar o uso
causar dano a mim mesmo dizendo
que mereço algum mal e fazer tal
aporético do Princípio de Prioridade
proposição contra mim mesmo. O que Definicional consiste em contar uma
devo temer? Que eu deva sofrer a história pessoal acerca de uma
punição que Meleto propôs contra tentativa de fornecer, de modo
mim, da qual digo que não sei se é boa informativo, as condições necessárias
ou má? Devo eu então escolher de
preferência a isso algo que eu bem sei
e suficientes para dizer uma mentira.
(eu oida) que é um mal e propor tal Em minha aula, meus estudantes e eu
punição? Prisão? Por que deveria viver propusemos o que chamo a “Análise
em prisão, sempre sujeito às ordens Padrão da Mentira” (APM), que é a
dos onze magistrados? (37b2-c2) seguinte:

Sócrates dá razões, ao final do (APM) Ao dizer para B que p, A diz uma


julgamento, para explicar sua mentira se e somente se (i) é falso que
incerteza se a morte é um bem ou um p;
mal. Contudo, ele pensa saber muito
bem que a prisão seria um mal. Ele (ii) A crê que é falso que p; e
deve pensar que pode saber isso, (iii) ao dizer para B que p, A pretender

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enganar B. amigo de James, se tinha visto James


fazer a arte ou não. “Não, não vi
Após minha turma e eu James fazer nada disso”.
concordarmos que esta é a melhor
análise que podemos dar do que é Eu e minha turma concordamos
dizer uma mentira, apresento a que, ao dizer isso, eu tinha mentido.
seguinte história. Porém, ao dizer isso, não tinha a
intenção de enganar o escoteiro
Quando estava em um chefe. Sabia que ele tinha evidência
acampamento de escoteiros em um fortíssima que James era o culpado.
verão, todos os oito escoteiros de Porém, também sabia que ele não
minha barraca ficaram amigos, exceto pensava que seriajusto punir James a
um, Delbert. Delbert não ficou amigo menos que uma testemunha ocular
de nenhum de nós. Nenhum de nós declarasse que James era o culpado.
gostava dele. Assim, eu disse que não tinha visto
James colocar a cobra na cama de
Numa noite, meu melhor amigo, Delbert simplesmente para protegê-
James, pôs uma falsa coral sob a lo de toda punição, não para enganar
coberta do colchão de Delbert. Eu o vi o escoteiro chefe se, de fato, James
fazer isso. Mais tarde, quando Delbert era o autor do feito. Assim, o que eu
se deitou e sentiu a cobra gosmenta, fíz não satisfaz a terceira condição de
deu um berro e saiu correndo da (APM). Tampouco minha classe ou eu
barraca. No dia seguinte, para a conseguimos melhorar (APM) de
alegria de seus companheiros de modo a acomodar o caso de Delbert.
barraca, Delbert telefonou para sua Assim, não podemos dizer o que torna
mãe e voltou para casa. este caso um caso de dizer uma
mentira. Contudo, eu tinha mentido.
O escoteiro chefe tinha todas as De fato, diria que sei que menti
razões para suspeitar que James, o Porém, como posso saber que menti
único aficionado por cobras do se não posso dar de modo
acampamento, tinha sido o autor do informativo as condições necessárias
feito. Porém, pensava que não po- e suficientes para dizer uma mentira?
deria punir James a menos que tivesse Não sei. Estou perplexo, estou em
uma testemunha ocular do feito. aporia.
Assim, ele perguntou a mim, o melhor

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Segundo minha interpretação Formas que Sócrates, nos primeiros


das negações socráticas de diálogos, tinha tentado fazer com que
conhecimento nos primeiros diálogos seus interlocutores o ajudem a
de Platão, o belo e bom “definir” (ver o capítulo Platão e a
conhecimento que Sócrates nega Reminiscência). No Phaedo, em lOOd,
possuir é o conhecimento do que Sócrates diz que não compreende
toma x um F – isto é, o que toma x pio, mais seus esforços no Hípias Maior de
temperante ou corajoso, ou o que encontrar de modo informativo as
estiver em discussão no diálogo. Dada condições necessárias e suficientes
a plausibilidade prima facie da para to kalon (beleza ou bondade). Ele
Prioridade do Conhecimento fica lá contente em dizer que é pela
Definicional, parece que não se beleza que as coisas belas são
poderia reconhecer instâncias de F- tomadas belas. Ele chama este estilo
dade ou fatos essenciais acerca de F- de explicação “seguro, mas bobo”.
dade sem ter à disposição o que falta Ademais, Platão faz com que Sócrates
a ele e a seus interlocutores nos avance em um outro estilo de
diálogos, ou seja, um conjunto explicação que, como o primeiro,
informativo das condições tampouco requer o conhecimento
necessárias e suficientes para que definicional.
alguém ou algo conte como um F
Contudo, parece que ele pode e de Muitos comentadores
fato reconhece instâncias, assim concordam que o Sócrates do Fédon é
como eu reconheci que o que tinha uma personagem bem diferente do
dito para o escoteiro chefe era uma Sócrates histórico (ver o capítulo
mentira, sem ser capaz de prover uma Interpretando Platão). A situação a
análise satisfatória do que é dizer uma respeito do diálogo Mênon é um
mentira. pouco mais complicada. Porém,
muitos comentadores, se não a
REMINISCÊNCIA maioria, consideram que é um diálogo
de transição, um diálogo que começa
Platão termina por fazer com que sua a abandonar a figura que aprendemos
figura literária, Sócrates, introduza, a conhecer na Apologia. De qualquer
no Mênon e no Fédon, a Doutrina da modo, a ideia de Reminiscência
Reminiscência, segundo a qual temos apresentada nestes dois diálogos
todos um conhecimento latente das abre a possibilidade para podermos,

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pelo menos de modo latente, co- de atividade analítica foi, penso,


nhecer o que são Igualdade, Beleza, genuinamente socrática. Como
Justiça e Piedade sem sermos capazes podemos realmente conhecer que
de oferecer, de modo informativo, as conhecemos algo a menos que
condições necessárias e suficientes possamos prover de modo
para que duas coisas contem como informativo as condições necessárias
iguais ou para que algo ou alguém e suficientes para uma crença contar
conte como belo, justo ou pio. como conhecimento? Contudo, a
resposta ao problema de Gettier
Os filósofos contemporâneos sugere fortemente que ninguém é
nossos que empreendem, hoje, capaz de fornecer as ansiadas
oferecer análises de conceitos condições necessárias e suficientes.
filosoficamente problemáticos estão
bem avisados a não aceitar a Por outro lado, é surpreendente
Prioridade do Conhecimento que as várias análises alternativas
Definicional. Considere, por exemplo, sugeridas para substituir a análise
as tentativas na parte final do século original CVJ do conhecimento tenham
XX de prover uma análise satisfatória sido todas rejeitadas com base em
do que é conhecer algo. Estas contra-exemplos; na verdade, contra-
tentativas continuam um projeto exemplos que quase todos os filósofos
iniciado por Platão. No Mênon e no parecem ter podido reconhecer como
Teeteto, Platão faz com que Sócrates
sugira que o conhecimento é uma 1. casos genuínos de conhecimento
crença verdadeira com explicação que não se ajustam à análise
(logos). O descendente moderno sugerida ou
desta sugestão platônica é a ideia que 2. casos que se ajustam à análise
o conhecimento é uma crença sugerida, mas que não são casos
verdadeira justificada (a “análise genuínos de conhecimento.
CVJ”). Depois que Edmund Gettier
publicou seu conhecido contra- É difícil entender esta situação
exemplo à análise CVJ do sem atribuir algum tipo de prioridade
conhecimento, muitos filósofos ao conhecimento não definicional do
propuseram correções ou substitutos que é o conhecimento. Do mesmo
para a análise original CVJ. A modo, é difícil entender as alegações
motivação por trás desta enxurrada de Sócrates de conhecer isto e aquilo

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sem supor que ele também atribui conhecimento, deve ser tomado ao pé
algum tipo de prioridade ao da letra: renunciou ao conhecimento e
contenta-se em reivindicar não mais
conhecimento não definicional. do que uma crença verdadeira.
(Vlastos, 1994, p. 34)
Volto-me, por fim, a uma breve
revista do que outros filósofos Após discutir estas duas
disseram recentemente acerca da alternativas
ignorância socrática. Início com a
posição sobre a ignorância socrática 1. Sócrates não está sendo sincero
pelo decano dos estudos socráticos de modo a puxar seu interlocutor à
do século XX, Gregory Vlastos. discussão e
2. Sócrates realmente quer dizer que
VLASTOS nada sabe –, Vlastos propõe uma
terceira alternativa.
Vlastos inicia seu artigo “A negação de
conhecimento por parte de Sócrates” Ele distingue dois sentidos dos verbos
estabelecendo duas posições opostas gregos relevantes para “saber”. No
sobre a questão de como devemos que poderíamos chamar “sentido
entender as alegações de Sócrates de forte” desses verbos, que Vlastos
ignorância. Ele escreve: marca com um “C” subscrito, só
sabemos aquilo de que estamos
Nos primeiros diálogos de Platão,
infalivelmente certos. No sentido
quando Sócrates diz que não tem
conhecimento, fala ou não fala fraco, que ele marca com um “E”
seriamente? A posição padrão é que subscrito, podemos saber tudo o que
não. O que pode ser dito em prol desta tiver sobrevivido ao exame elêntico.
posição está bem formulado em Gulley
(1968): a profissão de ignorância de De acordo com a proposta de
Sócrates é “um expediente para
encorajar seu interlocutor a buscar a
Vlastos, é do seguinte modo que
verdade, fazê-lo pensar que está se devemos entender as alegações de
juntando a Sócrates em uma viagem Sócrates de conhecimento e suas
de descoberta” (p. 69). Mais negações de conhecimento:
recentemente, a interpretação oposta
encontrou um advogado de grande Quando ele diz que conhece algo,
clareza: Terence Irwin. Em seu livro A refere-se ao conhecimentoE; quando
Teoria Moral de Platão, ele sustenta diz que não sabe nada –
que, quando Sócrates nega ter

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absolutamente nada, “grande ou Na primeira interpretação de


pequeno”... refere-se ao “conhecer”, (a) significa:
conhecimentoc; quando diz que não
tem conhecimento de um tópico
particular, pode estar dizendo ou que, a1) Nem Sócrates nem seu
neste caso, como em outros, não tem interlocutor estão infalivelmente
conhecimentoc e não busca nenhum certos de algo que tenha algum
ou que o que lhe falta no tópico é valor.
conhecimentoE, o qual, com boa sorte,
poderá ainda alcançar em uma
investigação ulterior. (Vlastos, 1994, p. Sem dúvida que Sócrates bem
58). que poderia concordar com (al).
Porém, como o próprio Vlastos toma
A sugestão de Vlastos de eliminar claro, o exame socrático dos
a ambiguidade tem apelo imediato. interlocutores não visa a determinar
Porém, contém várias dificuldades. se eles estão infalivelmente certos de
Em primeiro lugar, Sócrates nunca diz algo. Ao invés disso, visa a determinar
nos primeiros diálogos platônicos algo se alguma das crenças do interlocutor
que sugira que pense estar usando um pode sobreviver a um exame elêntico.
verbo para “conhecer” em dois Assim, (al) não apreende realmente
sentidos. Especificamente, nunca diz uma parte importante do resultado
algo como isto: “em um sentido eu sei, relatado em Tl.
mas, em outro, não sei”. Ademais,
nunca diz “eu sei e não sei”, o que A outra opção de desambiguação
seria um modo natural de assinalar que Vlastos sugere para entender
que está usando “conhecer” em dois “conhece” em (a) é apreendida nesta
diferentes sentidos. elucidação:

Mais uma dificuldade: a a2) Nem Sócrates nem seu


eliminação da ambiguidade de um interlocutor têm qualquer crença
sentido forte e de um sentido fraco de sobre algo que tenha sobrevivido
“conhecer” nos permite entender de ao exame elêntico.
dois modos esta implicação de Tl:
Desta vez, o problema é que, de
a) Nem Sócrates nem seu interlocutor acordo com Vlastos, (a2) não é uma
conhecem algo que tenha algum asserção verdadeira. De fato, seu
valor. esforço de resolver, como supõe o

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“paradoxo” das “negações de conhe- Conhecimento Definicional em sua


cimento” socráticas, reside em parte forma mais completa, ou seja, como a
em isolar um sentido fraco dos verbos conjunção não qualificada de CP) e
gregos para “conhecer” nos quais (D). Assim, em sua visão, Sócrates não
Sócrates conhece uma variedade de pode consistentemente alegar que
coisas, de fato todas as coisas que sabe de um dado caso,x, quexéFa
sobreviveram ao exame elêntico. menos que possa prover de modo
Assim, (a2), de acordo com Vlastos, informativo as condições necessárias
seria simplesmente falso. Ele insiste e suficientes para que algo ou alguém
que há muitas coisas que Sócrates conte como F Nem pode ele
pode admitir que conhece no sentido consistentemente alegar que conhece
fraco. alguma F-dade que é G, a menos, de
novo, que possa prover de modo
BENSON informativo as condições necessárias
e suficientes para ser F.
Hugh Benson, em seu estudo
importante da epistemologia A posição de Benson fica particu-
socrática, A Sabedoria Socrática, larmente clara no modo como ele
propõe uma posição clara e plausível trata a passagem na Apologia em que
sobre como entender as alegações Sócrates relata o exame que fez dos
socráticas de ignorância. “Sustento”, artesãos. Eis a passagem:
escreve ele, “que a profissão de
ignorância de Sócrates é de fato Tll. Por fim, fui ver os artesãos, pois
sincera e que, enquanto seu escopo é estava ciente que conhecia
praticamente nada e sabia que
bem largo, talvez mais largo do que descobriria que eles tinham
muitos estudiosos aceitariam, vejo conhecimento de muitas coisas belas.
pouca razão ou evidência para Nisso não estava enganado; co-
entender seu escopo como universal” nheciam coisas que eu não conhecia e,
(Benson, 2000, p. 168). Benson nesta medida, eram mais sábios do
que eu. Mas, senhores jurados, os
acrescenta que deixa indeterminado bons artesãos me pareceram cometer
“a natureza precisa do conhecimento o mesmo erro que os poetas: cada um,
que Sócrates nega”. por conta do sucesso em sua arte,
pensava a si mesmo como muito sábio
Como já vimos, Benson sustenta que em outras coisas de muita importância
e este erro de sua parte se sobrepunha
Sócrates aceita a Prioridade do

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à sabedoria que possuíam... (22c9-el) Thomas C. Brickhouse e Nicholas D.


Smith discutem longamente o que
E eis o núcleo da leitura que eles denominam o “paradoxo da
Benson faz de Tll: ignorância socrática”. Ao identificar
as alegações socráticas de ignorância
Novamente, o que distingue Sócrates
como “paradoxais”, Brickhouse e
dos artesãos... é sua avaliação correta
do que ele não sabe. Ele não é mais Smith dão peso ao que Sócrates alega
sábio do que eles porque conhece mais conhecer de fato e também ao que
do que eles... Antes, é mais sábio do age como se soubesse, assim como ao
que eles porque eles pensam que que nega conhecer. Como assinalam,
conhecem coisas, em particular,
“para alguém que alega ser ignorante,
“outras coisas de muita importância”...
que eles não conhecem, ao passo que Sócrates tem uma capacidade
Sócrates não pensa assim [isto é, não impressionante de discernir ig-
pensa que conhece estas coisas norância e confusão nos outros”
importantes]. (Benson, 2000, p. 170) (Brickhouse e Smith, 1994, p. 31-2).
Eles discutem também um bom
Na leitura de Benson, Sócrates é número de passagens nas quais
um cético, não no sentido de crer que Sócrates alega saber, muitas das quais
nada pode ser conhecido, mas no já discutimos aqui.
sentido que, como crê, ele quase nada
sabe e encontrou apenas alguns No lugar de supor, como fez
poucos que de fato sabem algo, ou Vlastos, que Platão usa os termos
seja, os artesãos. Eles sabem “muitas para “conhecer” em dois sentidos
coisas belas”; contudo, mesmo os diferentes, Brickhouse e Smith
artesãos têm, pensa Sócrates, menos sustentam que Sócrates reconhece
sabedoria do que ele, já que pensam dois tipos diferentes de
que conhecem muitas coisas que não conhecimento, “um que toma sábio
conhecem, ao passo que Sócrates não quem o possui e outro que não”
pensa que sabe o que, de fato, ele não (1994, p. 31). Em função do fato que
sabe. Sócrates de fato alega ter um tipo de
sabedoria, ainda que ela consista
BRICKHOUSE E SMITH somente em dar-se conta que não
sabe o que os outros pensam que
No belo estudo da filosofia de sabem, Brickhouse e Smith precisam
Sócrates, O Sócrates de Platão, também reconhecer dois tipos de

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sabedoria, a meramente humana e a que maneira definir “rapidez” (192a-


divina. Assim, na leitura deles, b) e, no Mênon, alegando saber de
quando Sócrates nega ter que maneira definir “figura” (76a).
conhecimento, o tipo de Porém, não pode fazer o mesmo com
conhecimento que nega ter é o tipo “virtude”.
que lhe daria um tipo superior de
sabedoria. O que ele admite que tem Quanto ao Princípio de
carrega consigo o reconhecimento Prioridade do Conhecimento
que lhe falta o tipo superior de Definicional, Brickhouse e Smith
conhecimento. negam que Sócrates esteja
comprometido com uma versão forte
Retomando a expressão grega de tal princípio. Eles escrevem:
para “como as coisas são”, que
Sócrates usa nos primeiros diálogos, Argumentamos que há um sentido em
que Sócrates não crê que se saiba algo
Brickhouse e Smith caracterizam o
da justiça a menos que se conheça a
conhecimento que Sócrates nega ter definição. Em sentido contrário, ele
como um conhecimento de “como pensa que se pode ter um tipo de
algo é”, isto é, o que toma algo ser o conhecimento – o tipo que não toma
caso (1994, p. 34-45). O que têm em alguém sábio – por meio de
adivinhação, por meio de exame
mente parece estar muito próximo do
elêntico e por meio da experiência
que chamamos “conhecimento cotidiana. (1994, p. 60)
definicional”. Assim, a ideia deles é
que Sócrates pode saber, talvez por CONCLUSÃO
adivinhação, por percepção ou talvez
de algum modo por meio de um Para concluir, gostaria de dizer algo a
exame elêntico, que algo é o caso sem respeito da relevância filosófica da
ter a sabedoria que viria com saber o ignorância socrática em cada uma das
que faz com que seja o caso. interpretações que discuti. Cada uma
delas, deve-se notar, toma as
Brickhouse e Smith põem outra alegações socráticas de ignorância
restrição ao tipo de conhecimento como sinceras. Muitos
que pensam que Sócrates nega ter. comentadores, todavia, dos tempos
De acordo com eles, é o antigos ao presente, supuseram que
conhecimento da virtude. Eles leem estas alegações ou não eram sinceras
Sócrates no Laques alegando saber de ou

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eram meramente irônicas. Assim, sabe. A sabedoria a que postula


Charles Kahn escreve de Sócrates: Sócrates, na leitura de Vlastos, é a
consciência que ele não sabe, no
Se ele examina com sucesso seus sentido forte de “saber”, o que os
concidadãos atenienses a respeito da
outros pensam saber.
virtude e do bem viver, Sócrates deve
saber algo a respeito da excelência
humana e, mais geralmente, algo A principal lição moral a ser
sobre o que é bom e o que é mau. Deve retirada da interpretação de Vlastos
possuir o tipo de conhecimento que é das várias alegações de ignorância
benéfico para os seres humanos e que socrática nasce da relevância
resulta em uma vida feliz. Na Apologia
[contudo], toda alegação de tal
filosófica de procurar mudanças de
conhecimento fica escondida por trás sentido. Se um filósofo usa uma
da máscara irônica de ignorância. expressão chave, como “conhecer”,
(Kahn, 1996, p. 201) em dois sentidos significativamente
diferentes, então é certamente
Embora este modo irônico de importante reconhecer esta
entender as alegações da Ignorância mudança.
Socrática seja digna de exame e
avaliação, não busquei fazer isso aqui. A principal importância filosófica da
ignorância socrática na interpretação
Das quatro interpretações da de Benson parece residir em um
alegação socrática de ignorância que reconhecimento que pode haver
discuti anteriormente, a sabedoria em compreender as
interpretação que Gregory Vlastos implicações céticas de se ater
propõe é, pode-se dizer, a mais firmemente à Prioridade de
deflacionária. É também a mais Definição. O Princípio da Prioridade
simples. De acordo com esta leitura, do Conhecimento Definicional pode
tudo o que Sócrates quer dizer inicialmente ser plausível, dado o
quando faz seus pronunciamentos de pensamento natural que não se con-
ignorância é que há um sentido de seguiria jamais novos casos de
“conhecer” veiculado por vários exemplos de, digamos, coragem ou
verbos gregos, para o qual nem ele piedade, a menos que se tenha em
nem seus interlocutores sabem algo mente, de modo informativo, as
belo ou bom. Neste sentido, é-se condições necessárias e suficientes
infalivelmente certo daquilo que se para que um ato ou uma pessoa conte

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

como corajoso ou pio. Por outro lado, Princípio da Prioridade da Definição é


a menos que se saiba primeiro que caracteristicamente posto como uma
certos atos ou pessoas sejam questão: “como pode você saber que
corajosos, é difícil ver como x é F, se você não sabe o que é F-
poderíamos vir a conhecer o que é a dade?” A perplexidade a que esta
coragem. Benson chama esta última questão pode dar expressão é algo
dificuldade “o problema da que motiva e infecta a análise
aquisição”. Na compreensão de filosófica. Motiva a análise ao
Benson da epistemologia socrática, encorajarmos a procurar uma
Sócrates mantém a Prioridade do validação epistêmica de ter de modo
Conhecimento Definicional e significativo as condições necessárias
encontra consolo no pronunciamento e suficientes para dizer que xéF.
do oráculo interpretando-o como Infecta a análise quando falhamos em
dizendo que pelo menos ele tem a nossas tentativas em apresentar tais
sabedoria de não pensar que conhece condições, sugerindo que, mesmo
algo importante. para o que pensamos ser um caso
padrão de um F, não sabemos
De acordo com Brickhouse e realmente o que o faz um F
Smith, a importância filosófica das
alegações de ignorância socrática Em meu exemplo, depois que
inclui a ênfase que ela põe para nós de minha turma e eu Demos o melhor
se dar conta que deve haver outros para sugerir de modo informativo as
caminhos para o conhecimento além condições necessárias e suficientes
de aplicar de modo informativo a para que algo conte como contar uma
novos casos as condições necessárias mentira, temos de conceder que
e suficientes para ser F. Eles encontramos um contra-exemplo.
mencionam especificamente que Neste caso, prefiro resistir ao
podemos receber o conhecimento ceticismo e dizer que sei que preguei
como uma dádiva dos deuses e que uma mentira, embora o que fiz não
podemos colher algum conhecimento contaria como uma mentira segundo
da experiência cotidiana. a minha melhor tentativa de oferecer
uma análise do que é mentir.
A interpretação aporética da
ignorância socrática que defendi aqui Minha situação com respeito a
inclui chamar atenção ao fato que o dizer uma mentira é, penso, típica do

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que ocorre na análise filosófica. Se NOTAS


investigo o assunto com suficiente
diligência, posso esperar encontrar As traduções de Platão foram retiradas de J.
M. Cooper (ed.) Plato: Complete Works
um ou outro contra-exemplo à minha
(Indianapolis: Hackett, 1997).
melhor tentativa de dizer o que é uma
causa, o que é livre-arbítrio, o que é 1. Neste ensaio, vou seguir a tradição do co-
justiça ou o que é F-dade, para toda F- mentário e usar “ignorância” para designar
dade filosoficamente interessante. simplesmente a falta de conhecimento.
Posso mesmo esperar estar Assim, mesmo de uma pessoa com
somente crenças verdadeiras pode ser dito
inteiramente confiante que sei que o
ignorante neste sentido.
contra-exemplo é um contra- 2. “... Porque quem tiver sido educado
exemplo. Profissões de ignorância corretamente na música e poesia terá um
socrática são importantes para sentimento agudo quando algo tiver sido
apontar para esta perplexidade: se omitido de algo e quando não for feito
belamente ou produzido belamente pela
não posso oferecer de modo
natureza. E, visto que ele tem o correto
informativo as condições necessárias desgosto, apreciará as coisas belas, irá
e suficientes para x ser F, como posso sentir-se agradado por elas, as receberá em
sua alma e, sendo alimentado por elas, se
1. saber que x é F ou tornará belo e bom. Ele objetará
corretamente ao que é vergonhoso,
2. saber que F-dade é G?
odiando-o quando ainda é jovem e incapaz
de apreender a razão, mas, tendo sido
Porém, também gera esta educado deste modo, acolherá a razão
perplexidade anexa: como posso quando ela vier e a reconhecerá facilmente
esperar encontrar de modo por conta de sua afinidade com ele” (R. III
informativo quais são as condições 401el-402a4).
necessárias e suficientes para ser F a
menos que já conheça pelo menos de REFERÊNCIAS E LEITURA
alguns casos, x,yez, que são eles todos COMPLEMENTAR
F e, de casos instrutivamente
Benson, H. (2000). Socratic Wisdom: The
similares u, v e w que eles são todos Model ofKnowledge in Plato’s Early
não F? Deste modo, a sabedoria Dialogues. New York: Oxford University Press.
socrática leva a uma forma do Brickhouse, T. C. e Smith, N. D. (1994). Plato’s
Paradoxo da Investigação (ver o Sócrates. New York: Oxford University Press.
capítulo O Conherímento e as Formas
Geach, PT. (1966). Plato’sEuthyphro: an
em Platão). analysis and commentary. The Monist 50, pp.

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

369-82.
Gulley, N. (1968). The Philosophy of Sócrates.
London: Macmillan.
Irwin, T. (1977). Plato’s Moral Theory: The
Early and Middle Dialogues. Oxford: Oxford
University Press.
Kahn, C. H. (1996). Plato and the Socratic
Dialogue. Cambridge: Cambridge University
Press.
Vlastos, G. (1994). Sócrates’ disavowal of
know- ledge. In M. Bumyeat (ed.) Socratic
Studies (pp. 39-66). Cambridge: Cambridge
University Press.

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Hugh H. PLATÃO
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9. Platão e a CDiscurso da Metafísica: 26). Mais


remotamente, a reminiscência é
reminiscência também um precedente para a
distinção kantiana entre o
CHARLES KAHN conhecimento a priori e a posteriori.
Em consequência destas influências
A doutrina da reminiscência tem um complexas, o legado da doutrina de
papel central em três diálogos Platão pode ser reconhecido hoje em
platônicos, Mênon, Fédon e Fedro; a duas áreas distintas da discussão
doutrina, porém, é formulada contemporânea: na epistemologia, na
diferentemente a cada vez e no questão do conhecimento a priori,
contexto de um problema diferente. que tem por foco o status cognitivo da
O intérprete deve decidir se Platão lógica e da matemática, e na
apresenta três doutrinas psicologia, em questões de inatismo,
essencialmente diferentes da por exemplo na aquisição da
reminiscência ou três apresentações linguagem. Estes dois problemas são
parciais de uma única teoria. Em inteiramente distintos, ainda que
ambas as posições, uma tarefa possa haver uma conexão importante
suplementar será a de conectar a entre eles. (Para uma sugestão
reminiscência, entendida de um interessante que o status a priori da
modo, às explicações dadas do matemática e da lógica pode ser
conhecimento em outros diálogos explicado em termos de um inatismo
platônicos, como a República e o psicológico, ver Horwich, 2000, p.
Teeteto. 168.) Como uma questão em
epistemologia, o a priori é um
Antes de tudo, uma palavra sobre problema da justificação ou de ter
a importância filosófica da doutrina. A direito a um tipo de reivindicação de
reminiscência platônica é o conhecimento: há proposições
antecessor da teoria das ideias inatas verdadeiras cuja verificação não
desenvolvida por Descartes e Leibniz depende de uma evidência empírica?
no século XVII, tendo ambos O inatismo, por outro lado, é um
reivindicado Platão como seu problema na psicologia: como se
predecessor. Assim, Leibniz declarou explica o comportamento complexo
que adotaria a doutrina do Mênon envolvido na aquisição de uma
“retirado o mito da pré-existência” língua? Qual é a capacidade cognitiva

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especificamente humana que explica ambas as questões modernas


o fato que bebês normalmente surgirão.
aprendem a língua falada na casa em
que crescem, ao passo que isso não A REMINISCÊNCIA NO MÊNON
ocorre com os filhotes de gatos e
cachorros? O problema do inatismo O tópico da reminiscência é
na psicologia é obviamente mais introduzido por primeira vez em
amplo do que a questão da aquisição resposta ao paradoxo de Mênon da
da linguagem, mas este exemplo investigação: como alguém procura
toma claro que estamos lidando com aquilo que não conhece? (A
uma questão empírica da psicologia prioridade do Mênon está indicada
cognitiva ou do desenvolvimento e por o que vale como uma referência a
não com a condição epistêmica da ele em Phd. 73a.) O desafio de Mênon
lógica e matemática. Temos de é feito no contexto da busca da
reconhecer não somente que estas definição da virtude, uma busca
duas questões são inteiramente governada pelo princípio da
distintas, mas também que a prioridade da definição – o princípio
distinção não foi feita nem no tempo que sustenta que não se pode
de Platão nem no séc. XVII. Foi Kant conhecer algo sobre X a menos que se
quem primeiro claramente distinguiu saiba o que é X (ver o capítulo A
o problema do conhecimento a priori Ignorância Socrática). Porém, a
das questões de psicologia empírica. discussão da reminiscência de fato
Temos de guardar na mente que segue a proposta de Mênon de deixar
Platão, ao propor estas questões pela para trás a questão de definir a
primeira vez, não pôde dar por virtude e voltar-se à questão mais
suposta esta distinção pós-kantiana ampla de aprender algo.
entre epistemologia e psicologia ou
entre filosofia e ciência natural. A exemplificação de Sócrates de
Portanto não podemos simplesmente uma reminiscência bem-sucedida diz
identificar a teoria de Platão com respeito a um problema em
questões de epistemologia ou com geometria: como duplicar a área de
questão da psicologia do desenvolvi- um quadrado qualquer. O aprendiz
mento. A discussão de Platão está (ou “reminiscente”) é um jovem
localizada em um território neutro, escravo sem formação. Os principais
fornecendo as sementes das quais estágios da reminiscência são os

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seguintes: no breve relato de Sócrates se ele tem


em mente um estágio de
1. o escravo falsamente crê que conhecimento para uma proposição
conhece a solução; particular independentemente da
2. o escravo reconhece que sua geometria como um todo.) Assim, o
crença é falsa e se dá conta de sua conhecimento científico,
ignorância; representado aqui pela geômetra, é
3. o escravo é levado a ver que certa tido como o objetivo final do
linha (a saber, a diagonal do processo. Porém, a única
quadrado original) resolve o reminiscência realmente
problema; ele agora tem a crença exemplificada é a aquisição da crença
verdadeira que o quadrado com verdadeira da solução de um
esta linha tem duas vezes a área do problema particular. Como devemos
primeiro quadrado. interpretar este exemplo? E qual é o
conteúdo “destas doxai verdadeiras
Isto é o que o exemplo faz, mas que estavam nele” (85c4)? Céticos
Sócrates oferece a possibilidade de alegaram que o escravo só está
um quarto estágio: usando os olhos para ver que o novo
quadrado é duas vezes maior. Vlastos
4. “se alguém o questionar fez a sugestão mais plausível que a
reiteradamente e em várias reminiscência significa aqui “todo
direções a respeito dos mesmos aumento de nosso conhecimento que
temas, terminará por ter um resulta da percepção de relações
conhecimento acurado dessas lógicas” (Vlastos, 1995, p. 157). Penso
coisas não inferior ao de que isto está correto em princípio,
ninguém” (Men. 85cl0). mas é muito limitado. Para cobrir o
que está ocorrendo na lição de
Assim, os estágios da reminiscência se geometria, a reminiscência deve
movem da crença falsa ao significar não somente a percepção de
reconhecimento da ignorância, daqui relações formais, mas também a
à crença verdadeira e (se levada capacidade de fazer julgamentos de
inteiramente a termo) da crença verdade e falsidade, de igualdade e
verdadeira ao conhecimento similaridade. São esses julgamentos
completo, no caso o conhecimento da que são “as doxai que estavam nele”
geometria dos planos. (Não fica claro e que foram trazidas à luz pelo

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questionamento de Sócrates. Mais níveis de aprendizagem: entre o


em geral, podemos dizer que a pensamento ordinário, realizado por
reminiscência está aqui pela qualquer um, e o conhecimento
racionalidade ou logos no sentido filosófico das Formas transcendentes.
aris- totélico, como a capacidade Scott quer restringir a reminiscência
distintivamente humana de ao ultimo, mas reconhece que o
compreender o discurso e de fazer um Mênon não é explícito sobre isso, já
uso racional da percepção sensível. O que não faz menção às Formas. Ele
que é requerido do escravo é corretamente reconhece que o texto
precisamente que ele entenda as do Mênon é “indeterminado”; o
questões de Sócrates e que responda diálogo contém somente “um esboço
fazendo julgamentos de igualdade e provisório da teoria” (Scott, 1995, p.
desigualdade com base no que vê. E é 340). O que é claro é que a escolha de
esta mesma capacidade que (como um escravo mostra que a capacidade
Sócrates sustenta) o permitia dominar em questão é bem comum e que a
a geometria se as lições reminiscência representada na lição
continuassem. Assim, se a de geometria obtém somente um
reminiscência é exemplificada na lição mero início de conhecimento
de geometria como interpretada por especializado. Se nosso objetivo
Sócrates, é um processo que inicia consiste em interpretar o Mênon de
com a capacidade de compreender um modo que é compatível com o
questões simples, fazer cálculos Fédon e com o Fedro, podemos tomar
numéricos simples e potencialmente a reminiscência nos três diálogos
terminar com a aquisição de um como uma teoria da racionalidade
conhecimento científico completo. humana, com a racionalidade
Além disso, a capacidade que torna entendida como articulada na clássica
este processo possível pertence em descrição dos três atos do intelecto:
geral a todo ser humano maduro,
como é demonstrado aqui pela 1. apreender conceitos;
escolha de um escravo sem formação. 2. formar juízos;
3. seguir inferências.
Em uma discussão que teve muita
influência, Dominic Scott propôs uma Todas estas três capacidades são
interpretação da reminiscência que implicadas pelo domínio de uma
traça uma forte distinção entre dois língua natural, como o grego, e todas

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Hugh H. PLATÃO
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as três estão exemplificadas nas reminiscência concebida de modo


respostas do escravo às questões de mais largo, como o Fédon mantém.
Sócrates. De um lado, este exemplo
não ilustra a aquisição dos conceitos Também ausente do Mênon é
por uma criança; por outro lado, não qualquer indicação de uma ontologia
apresenta a aquisição completa do para os objetos da reminiscência. O
conhecimento especializado. A lição texto diz somente que a alma, em
de Sócrates no Mênon representa um seus vários nascimentos, “viu todas as
estágio intermediário na realização da coisas, tanto as coisas daqui quanto as
capacidade cognitiva, após o domínio do Hades” (81c6) e que,
de uma linguagem e antes do domínio consequentemente, “possuímos a
da geometria. Porém, não há sugestão verdade das realidades (ta onta) em
no texto que a capacidade seria nossa alma” (86b 1). Que tipo de
diferente para estágios diferentes. realidades está disponível à alma
desencarnada? O Mênon nada nos
Platão não conecta a diz. Mas um pouco de reflexão
compreensão da linguagem com a mostrará que, para dar uma solução
reminiscência no Mênon; ele ao paradoxo de Mênon, esta visão
simplesmente observa que o pré-natal de todas as coisas deve ser
conhecimento do grego por parte do radicalmente diferente da
escravo é um pré-requisito (82b4). No aprendizagem ordinária que a
Fédon, por outro lado, compreender reminiscência deve explicar. (Se a
uma linguagem é dito ser um cognição pré-natal não for
elemento essencial na reminiscência radicalmente diferente, a
(249b7). Assim, encontramos aqui, reminiscência provê somente um
pela primeira vez, a necessidade de regresso, não uma explicação.) Assim,
escolher entre a hipótese de unidade o Mênon pressupõe algo como o
e a hipótese de desenvolvimento ao conhecimento direto por contato,
tratarmos de discrepâncias entre os algo que corresponde à visão das
diálogos (ver o capítulo Interpretando almas desencarnadas descritas no
Platão). O texto do Mênon não Fédon. O que o Mênon não nos diz é
permite decidir sobre este ponto. que esta cognição deve tomar como
Porém, o texto não contém nada que objetos Formas noéticas (ver o
desbanque a posição que a capítulo O Conhecimento e as Formas
compreensão da linguagem é parte da em Platão). Aqui novamente devemos

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escolher entre as suposições de seguir o raciocínio geométrico de


unidade ou de desenvolvimento. O Sócrates, corrigir seus próprios erros e
que Platão tem em mente quando, reconhecer a solução proposta.
mais adiante no Mênon, distingue o Obviamente a aprendizagem da
conhecimento da opinião verdadeira língua é pressuposta neste exemplo. A
por meio do “enlace” que consiste em teoria da reminiscência de Platão é
aitias logismos, o cálculo da causa? estendida à noção mais ampla de
Que tipo de explicação causai ou aitiai inatismo, incluindo a capacidade de
invoca Platão para separar o compreender a linguagem, somente
conhecimento da opinião verdadeira no Fédon. Por outro lado, todo elo
e para caracterizar o objetivo final da entre a reminiscência e a noção
reminiscência? (“Isto, a saber, o epistêmica de conhecimento a priori é
enlace de doxai pelo aitias logismos, é muito mais remota, visto não haver
a reminiscência, como concordamos”, nenhuma preocupação explícita aqui
98a4.) Podem o objetivo da com a justificação de teses sobre o
reminiscência e o critério do conhecimento. Todavia, deve-se
conhecimento ser simplesmente o observar que o exemplo da crença
logos lógico da definição, a explicação verdadeira (e potencialmente
da o-que-é-dade dada em questão e conhecimento) desenvolvido no
resposta, ao invés da Forma Mênon é uma importante proposição
ontológica correspondente? Aqui na matemática, a saber, uma instância
mais uma vez o texto é compatível fundamental do Teorema de
com ambas as suposições (ver o Pitágoras. Assim, o que o escravo
capítulo Definições Platônicas e “rememora” é de fato um item do
Formas). conhecimento a priori, embora tenha-
se dado conta dele somente no
Se perguntarmos agora como a âmbito da opinião verdadeira. Assim,
reminiscência no Mênon se relaciona podemos ver como questões do
com as duas questões modernas do a inatismo e do a priori estão presentes
priori e do inatismo, a conexão com o em germe na explicação da
inatismo é a mais clara das duas. É em reminiscência no Mênon, embora a
virtude de alguma capacidade noção de inatismo esteja mais
humana natural e universal – próxima das preocupações do texto.
independente de um aprendizado Há uma conjunção similar de questões
explícito – que o escravo está apto a de inatismo e de justificação não

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empírica na doutrina correspondente diagramas e de um questionamento


de Descartes: habilidoso que faz apelo à lição de
geometria do Mênon (73a7-b2).
“verdades matemáticas revelam-se a si Contudo, o argumento começa
próprias com tal evidência e
propriamente a partir de uma posição
concordam tão bem com minha
natureza que, quando começo a desconhecida ao Mênon, a saber, a
descobri-las, não me parece que estou existência de Formas e a discrepância
aprendendo algo novo, antes que entre as Formas e seus homônimos
estou lembrando o que já sabia, quero sensíveis. A doutrina das Formas está
dizer, que percebo coisas que já
por todo o diálogo; tinha sido
estavam em minha mente, embora
ainda não tivesse voltado meu implicada anteriormente na descrição
pensamento para elas” (Quinta do objetivo do filósofo como
Meditação). “contemplar as coisas mesmas com a
alma mesma” (Phd. 68e). As Formas
A REMINISCÊNCIA NO FÉDON são introduzidas desde o início em
termos epistêmicos, como realidades
No Mênon, a imortalidade e a pré- (ta ontá) cognoscíveis em
existência da alma foram dadas por pensamento e em reflexão antes que
supostas com base na autoridade dos por percepção sensível (65c-66a).
sábios sacerdotes e sacerdotisas. No (Esta distinção entre dois tipos de
Fédon, a imortalidade é uma questão cognição receberá sua formulação
e será sistematicamente padrão na República como a distinção
argumentada. Um argumento central entre sensação e intelecto, entre
tomará a reminiscência como aisthêsis e nous. A distinção é anterior
premissa: dado que nascemos com a Platão; ver Demócrito Bll DK.) É
certo conhecimento já presente na somente no argumento a partir da
alma, a alma deve ter adquirido este reminiscência que Sócrates começa a
conhecimento em uma existência especificar a distinção ontológica
prévia. (A questão explícita é, pois, o entre as Formas e o que participa
inatismo, mas o argumento pelo delas (74b-c). Esta discrepância no
inatismo está baseado em uma tese nível da realidade é crucial para a
do conhecimento.) concepção de uma psique implicada
no argumento da imortalidade (ver o
A discussão da reminiscência no capítulo A Alma Platônica). O
Fédon começa com a menção de semelhante conhece o semelhante e

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a transcendência da alma é implicada com o reconhecimento da deficiência


por este elo epistêmico, por meio da de pedras e pedaços de pau iguais em
reminiscência, à natureza das Formas. contraste com o Igual em si mesmo
Como insiste Sócrates, (74d-75b) (ver o capítulo As Formas e
“necessariamente, assim como estas as Ciências em Sócrates e Platão). Este
Formas existem, assim também nossa reconhecimento de uma disparidade
alma deve existir antes de termos entre as Formas e os sensíveis que
nascido” (76e2-4, repetido em 76e5, participam delas pertence somente
76e9-77a2 e de novo em 92d7). aos filósofos platônicos, já que a
Literalmente, então, o argumento a maioria das pessoas não tem nenhum
partir da reminiscência demonstra conhecimento explícito das Formas.
somente a pré-existência da alma, Se tal reconhecimento é requerido
que é requerida para o contexto para a reminiscência, a maioria dos
semimítico da reencamação. Porém, seres humanos não rememoraria. (O
o ponto filosófico é mais profundo. A escravo do Mênon certamente não o
função precípua aqui da teoria da poderia.) Por outro lado, o argumento
reminiscência (como o argumento a a partir da reminiscência visa
partir da afinidade em sequência) claramente a apoiar a tese da
consiste em estabelecer a condição imortalidade para as almas humanas
transcendental da alma por meio de em geral e não somente para os
seu elo cognitivo com o ser filósofos. Como devemos interpretar
transcendente das Formas. um argumento que começa com uma
premissa que se aplica somente aos
Até aqui está claro. Os problemas filósofos platônicos e termina com
surgem quando procuramos uma conclusão que diz respeito a
especificar precisamente como a todos os seres humanos? Está
reminiscência conecta a alma com as Sócrates aqui generalizando a partir
Formas. Está a reminiscência das de um grupo pequeno e privilegiado?1
Formas envolvida em atos ordinários Se for isso, o argumento parece
de pensamento e de juízo perceptivo? extraordinariamente fraco.
Ou somente em comparações
explícitas entre a Forma e as coisas Há algo claramente defeituoso
correspondentes que participam neste argumento, mas eu sugiro um
dela? É este último que é enfatizado diagnóstico diferente. Penso que
no texto do argumento, que começa Sócrates está pondo juntos duas teses

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que devem ser propriamente cuidadosamente preparada em 74a6,


distinguidas, uma a respeito da re- onde o juízo de deficiência é descrito
miniscência para filósofos e outra a como um passo adicional (pros-
respeito da cognição para todos os paschein) após o juízo de similaridade.
seres humanos. Somente filósofos No curso do argumento, contudo, a
sabem o que estão fazendo quando distinção esmaece. Sócrates começa
rememoram porque somente filóso- com o juízo de deficiência, já que isto
fos podem distinguir entre Formas e é essencial para estabelecer a
particulares e reconhecer a natureza transcendental das Formas
deficiência dos últimos. Porém, todos como objetos da reminiscência.
os seres humanos implicitamente se Porém, ele termina “referindo todos
referem às Formas em todo juízo os dados sensíveis às Formas” porque
perceptivo. Assim, eles é isto que todos os seres humanos
inconscientemente se referem ao devem fazer ao realizar juízos de
Igual em si mesmo ao julgar que percepção.
pedaços de pau e pedras são iguais. É
por isso que Sócrates pode concluir o Nesta leitura, o argumento está
argumento a partir da reminiscência ainda imperfeito, mas sua
afirmando que “referimos todos os generalidade é justificada pela visão
dados sensitivos (ta ek tôn aisthêtôn quase-kantiana da cognição humana
panta) ao ser das Formas” (76d9). Esta como envolvendo a aplicação de
referência às Formas envolve dois conceitos universais aos dados
reconhecimentos: sensíveis particulares. Este princípio é
muito mais claramente exposto na
1. que coisas sensíveis iguais querem explicação da reminiscência no Fedro,
todas ser como o Igual em si como veremos em breve. Porém,
mesmo; penso que a mesma noção de uma
2. mas elas não conseguem (75b5-8). referência implícita às Formas nos
juízos perceptuais corriqueiros está
O primeiro reconhecimento é também pressuposta no argumento
feito implicitamente por todos os do Fédon, e isto explica sua
homens; por exemplo, pelo escravo generalidade. É exatamente esta
ao fazer juízos de igualdade. O posição que está refletida na menção
segundo juízo é privilégio dos reiterada de referir (anoisein,
filósofos. A distinção é anapheromen) os dados dos sentidos

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às Formas (75b6. 76d9). E esta óbvio a Platão que ele nem sempre
posição também é sugerida pela cuida para que seja explícito (ver o
atenção às Formas de Igual, Maior e capítulo Aprendendo sobre Platão
Menor. No contexto da reminiscência, com Aristóteles).
a menção a estas Formas pode ser
vista como um comentário à lição de A REMINISCÊNCIA NO FEDRO
geometria do Mênon, onde são
precisamente os juízos de igualdade e A afirmação final da reminiscência no
desigualdade que são citados como Fedro é também a mais completa e a
evidência que o escravo está que é formulada de modo mais
rememorando “as opiniões (doxai) preciso. (O Fedro deve ser posterior
que estão nele”. Portanto, a discussão ao Mênon e ao Fédon, já que pertence
da reminiscência no Fédon, que é ao grupo de diálogos basicamente da
claramente introduzida como uma mesma época que a República –
continuação do tópico tratado no Grupo estilístico II, ao passo que o
Mênon, pode ser vista como uma Mênon e o Fédon pertencem ao grupo
expressão mais completa da doutrina pré-República – Grupo estilístico I. Ver
deste diálogo. A inovação crucial é a Kahn, 2002.) A doutrina é introduzida
conexão entre juízo de percepção, aqui não para explicar como ocorre a
como ilustrado no Mênon, e a aprendizagem (como no Mênon) nem
cognição implícita das Formas. Esta para provar a imortalidade da alma
referência implícita às Formas em (como no Fédon), mas antes para dar
todo juízo de percepção é o correlato uma explicação metafísica da
epistêmico da dependência experiência de amar (ver o capítulo
ontológica das qualidades sensíveis às Eros e Amizade em Platão). Esta
Formas correspondentes (Phd. lOOd: versão da teoria é a mais completa
“nada outro a torna bela senão a porque, de um lado, Sócrates oferece
presença ou participação ou outro uma explicação mítica da visão pré-
modo de conexão com o Belo em si natal das Formas que está de algum
mesmo”) (ver o capítulo O modo pressuposta no Mênon e no
Conhecimento e as Formas em Fédon, enquanto, de outro lado, este
Platão). Este paralelismo estrutural diálogo também contém uma
entre cognição e ontologia, entre afirmação explícita da noção de
referir-se às Formas e participar nas racionalidade humana que está,
Formas pareceu provavelmente tão sugiro, implicada pela explicação da

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reminiscência nos outros dois efeito da beleza visível servindo como


diálogos. Nesta perspectiva, o que é um lembrete inconsciente da Beleza
específico à alma humana é a transcendental que nossa alma
capacidade de compreender a contemplou uma vez em sua visão
linguagem conceituai e de fazer juízos pré-natal, “quando viajou com um
unificados com base na percepção deus” em uma magnífica viagem em
sensível. Somente uma alma que teve uma carruagem extracelestial.
a visão pré-natal das Formas pode
renascer em um corpo humano. Um Uma cognição pré-natal é
homem, pois, deve compreender o pressuposta pela própria noção de
que é dito por referência a uma forma reminiscência, mesmo no Mênon e no
Fédon, nos quais tal cognição não é
(kat’ eidos legomenon), partindo de descrita. Porém, uma explicação da
várias percepções sensíveis em experiência pré-natal só pode ser
direção a uma unidade posta junta
pela reflexão (logismos). Isto é a
dada em uma forma mítica, assim
reminiscência destas coisas que nossa como o mito é o único veículo para
alma viu quando estava viajando com descrever o destino das almas após a
um deus. (Phdr. 249b6-c3) morte. O mito da pré-existência no
Fedro responde, portanto, aos mitos
Isto é tão perto quanto Platão do julgamento no Fédon e na
pode chegar para antecipar a noção República. Assim como em outros
moderna de inatismo, especificando, casos, o esplendor imaginativo do
como uma necessidade da natureza quadro mítico é pago com o preço de
humana, a capacidade de aprender e certa inconsistência doutrinai. Por
de compreender a linguagem e de exemplo, se os cavalos no Fedro
levar a termo o pensamento representam os elementos irracionais
conceituai. A doutrina da na alma tripartite de Platão, como fica
reminiscência serve para ligar esta claramente implicado pela luta pela
capacidade epistêmica à metafísica castidade com a qual o relato termina,
de Platão ao representar a então não é claro por que eles
capacidade simbolicamente como a ocorrem na alma dos deuses ou
lembrança de uma visão mítica da mesmo nas almas humanas
realidade não sensível pelas almas desencarnadas. (Fica claro pelo Timeu
desencarnadas. Assim, o abalo de que somente a alma racional é imortal
passar a amar é explicado como o e o argumento a partir da

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

reminiscência no Fédon similarmente que a reminiscência das Formas é uma


se aplica somente à alma que conhece questão de graus. Todos os amantes
as Formas. A República é menos rememoram em algum nível, não
explícita sobre este ponto, mas ela somente os seguidores filosóficos de
aponta à mesma direção no Livro X, Zeus, mas também os seguidores de
quando a alma desfigurada pela Hera, Ares ou Apoio (242c-253b).
comunidade com o corpo é Porém, são os filósofos que usam
contrastada com a alma revelada na estas rememo- rações corretamente
atividade filosófica; é somente esta Çorthôs 249c7) e, por conseguinte, se
última que é “congênere ao divino, ao tomam amantes perfeitos.
imortal e ao ser que é eterno” (61 le).)
Portanto, se somente a alma racional Portanto, a tese do Fedro é, em
é imortal, então os cavalos não devem princípio, a mesma que a do Fédon,
pertencer à alma após a morte. segundo a leitura proposta
Porém, obviamente, os cavalos são anteriormente: há uma noção fraca de
necessários para a maquinaria mítica: reminiscência que se aplica a toda
de que outro modo poderia a alma cognição humana e uma noção mais
viajar com os deuses? forte que é distintiva dos filósofos.
Todos os homens com competência
Podemos detectar uma lingüística devem ser capazes de
inconsistência similar quanto à reconhecer os tipos gerais de coisas
reminiscência, que, de um lado, é significados pelas palavras e é isso o
atribuída a todos os seres humanos que permite que eles unifiquem sua
como uma condição necessária para experiência sensível sob conceitos. É
dar corpo à forma humana, ao passo digno de nota que eidos na passagem
que a frase seguinte poderia ser vista chave citada anteriormente (“um ser
como designando a reminiscência humano deve compreender o que é
como uma prerrogativa dos filósofos: dito de acordo com um eidos”) não é
“donde somente o pensamento de um um termo especial para Forma, mas
filósofo tem as boas asas, pois ele está um termo menos técnico para tipo ou
sempre conectado pela memória tão classe de coisa. (Assim, corretamente,
longe quanto possível com estas Bobonich, 2002, p. 313.) A referência
coisas em conexão com as quais um às Formas está implícita na cognição
deus é divino” (294c4).2 Se ordinária, que simplesmente
continuarmos a ler, todavia, vemos reconhece tipos de coisas, assim como

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uma referência ao Belo em si mesmo Sócrates. (Como Leibniz disse,


está implícito na explicação ordinária corrigindo a fórmula medieval: não há
de amar. Esta é a reminiscência no nada no intelecto que não estava
sentido fraco. A reminiscência no previamente nos sentidos – exceto o
sentido forte, por outro lado, exige próprio intelecto!) Para que os
filosofia. O filósofo é o amante homens façam juízos proposicionais,
perfeito porque somente ele tem ou devem ser capazes de organizar o
pode reaver uma memória múltiplo das percepções sensíveis em
suficientemente vivida da visão pré- unidades conceituais, os
natal para entender corretamente a componentes do logos interno que
dimensão metafísica de sua constituem o pensar. Esta tese é
experiência erótica. Sua situação é sistematicamente desenvolvida no
paralela à do filósofo no Fédon; Teeteto e no Sofista, no qual o
embora no sentido fraco todos os pensamento é interpretado como um
homens devam rememorar, somente logos silencioso e o logos é, por sua
um filósofo pode reconhecer a dis- vez, analisado em sujeito e predicado
crepância entre iguais sensíveis e a (onoma e rhêma, Sph. 262a-e).
Forma em si mesma. Porém, o gérmen desta tese está aqui,
na referência à linguagem e à unidade
Observe que a explicação da conceituai como um requerimento da
reminiscência fraca no Fedro (e alma humana (Phdr. 249b).
também no Fédon, se minha
interpretação estiver correta) implica Portanto, o Mênon, o Fédon e o
que Platão já tem a conclusão que Fedro, a despeito dos diferentes
está tão bem argumentada no problemas filosóficos que examinam,
Teeteto, a saber, que somente a podem ser vistos como estágios
percepção sensível não pode explicar sucessivos na exposição de uma
a crença ou o juízo de percepção doutrina única. O Mênon nos
(doxa), menos ainda o conhecimento. apresenta um caso de juízo de
A mente deve contribuir com algo de percepção ordinário em seu caminho
sua própria lavra. Este era o ponto da para tornar-se um conhecimento
reminiscência, desde o início: além do científico. As fontes pré-natais em
dado sensível, uma outra forma de que devem beber tal cognição não
cognição é necessária para que o são identificas no Mênon, além da
escravo siga a demonstração de alegação que “a verdade das

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realidades está presente na alma”. No A reminiscência domina a discussão


Fédon, as realidades em questão são do conhecimento no Mênon e no
identificadas às Formas, em particular Fédon; ela desaparece inteira na
as Formas do Igual, do Maior e do República, mas reaparece com um
Menor, que de algum modo deveriam papel central no Fedro. Não há
estar disponíveis para o escravo antes nenhuma referência explícita à
de seu nascimento humano. O Fedro reminiscência nem no Teeteto nem no
acrescenta um relato mítico do Timeu, embora possamos reconhecer
contato pré-natal da alma com tais ecos ou análogos da reminiscência em
Formas, juntamente com uma ambos os diálogos. Teria a teoria do
descrição mais precisa das conhecimento de Platão sofrido uma
capacidades cognitivas que tomam mudança fundamental ou encontrou
possível o juízo de percepção, a título ela uma nova expressão que é
de juízos fundados em conceitos de fundamentalmente a mesma
tipos de coisas. No Fédon e no Fedro, concepção? A escolha entre unidade e
a existência de Formas desenvolvimento, que tinha sido
transcendentais é dada por suposta e posta pela variação possível entre as
seus homônimos sensíveis são três versões da reminiscência, nos
concebidos como imagens confronta agora em uma escala maior
(homoiôma no Phdr. 240a6, eidôlon quanto à diversidade entre as várias
250d5) ou participantes (no Fédon). A discussões platônicas do
doutrina da reminiscência está assim conhecimento, com ou sem a
intimamente ligada à teoria das doutrina da reminiscência. Para
Formas em sua versão clássica.3 Pode, localizar o papel que a reminiscência
por conseguinte, parecer paradoxal tem na epistemologia de Platão,
que, na República, onde a teoria das devemos ver brevemente a explicação
Formas é mais integralmente do conhecimento nos outros diálogos,
apresentada, não haja menção à sobretudo na República e no Teeteto.
reminiscência. Voltaremos a este
ponto em breve. No Mênon, a opinião (doxa) e o
conhecimento foram reconhecidos
O LUGAR DA REMINISCÊNCIA NA como estágios distintos na
TEORIA GERAL PLATÔNICA DO reminiscência. Esta distinção é
CONHECIMENTO negligenciada no Fédon e no Fedro,
mas ela volta ao centro do palco no

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Livro V da República, onde (sem opinião, introduzida no Livro V da


referência à reminiscência) a distinção República, é desenvolvida e refinada
entre conhecimento e opinião serve na famosa Linha Dividida do Livro VI.
para introduzir a doutrina das Formas. Os dois tipos de objetos são agora
O conhecimento e a reta opinião distinguidos como o inteligível e o
foram distinguidos no Mênon por sensível, por referência a duas
meio de sua estabilidade relativa (a faculdades paralelas: intelecto (nous)
opinião tende a fugir) e pelo fato que e visão, com a visão funcionando
o conhecimento deve incluir um como uma representante da
relato (logos) de uma causa ou percepção sensível em geral (509d).
explicação (aitia). Esta última As Formas, identificadas no Livro V
condição será agora satisfeita pela como os objetos de conhecimento,
Teoria das Formas. Na República, a estão aqui localizadas na parte
opinião enquanto tal (não somente a superior da subdivisão da seção
reta opinião!) é distinguida inteligível da Linha; o domínio atribu-
primeiramente em termos de sua ído à doxa no Livro V é agora descrito
falibilidade (477e6) e então como coextensivo com a seção visível,
sistematicamente em termos de seu isto é, com o mundo sensível. Esta
objeto. Enquanto o conhecimento nova equação entre doxa e percepção
(gnôsis, epistêmê) tem por objeto o sensível explica por que a República
Ser eterno ou O-que-é (em outras abandonou a restrição do Mênon à
palavras, as Formas), a opinião é reta opinião. Também reflete o fato
cognição O-que-é-e-não é, isto é, o que, nos contextos epistêmicos antes
domínio da aparência sensível e do Teeteto, a discussão de Platão da
mudança (477a-479e), que também é aisthêsis geralmente diz respeito ao
caracterizado como Vir-a-ser (p. ex., juízo de percepção e não à simples
508d7). A dicotomia epistêmica do percepção.
Mênon recebe agora uma base
ontológica na discussão entre Formas Portanto, a Linha Dividida do
e as coisas que participam delas. Livro VI introduz um quadro mais
Nossa cognição das Formas, que, no complexo que a simples distinção
Fédon, envolve reminiscência, é entre conhecimento e opinião no
expressa na República em termos de Mênon e no Livro V A divisão mais
uma visão noética direta. Esta ampla entre intelecto e sentido
distinção entre conhecimento e permite que Platão distinga dois

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Hugh H. PLATÃO
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níveis de cognição noética, dos quais percepção, como “isto é um dedo”.


somente um deles contará por fim Portanto, seria uma correção
como conhecimento (epistêmê). É introduzida no Teeteto o fato de
somente o nível mais alto de reconhecer que uma aisthêsis não
conhecimento, usando o método assistida não pode fazer nenhum juízo
dialético para compreender as (onde um juízo significa algo que pode
Formas e sua fonte incondicional, que ser verdadeiro ou falso) (Sedley, 2004,
representa o conhecimento p. 113, ctando Bumyeat). Não penso
propriamente, ao passo que o nível que o texto da República VII preste
inferior de cognição noética, que está apoio a esta opinião. O contraste em
baseado no método matemático de 523a-525a se dá entre dois tipos de
dedução a partir de premissas atributos perceptuais ou predicados,
assumidas (hypotheses), é etiquetado os que põem e os que não põem
com o termo mais humilde de “arte” problemas conceituais (ao serem
ou “técnica” (technê) (511b2, 533b4). acompanhados de seus atributos
Portanto, enquanto a dicotomia opostos) e, portanto, apelam ou não à
primeira entre o inteligível e o noêsis para fazer questões sobre o
sensível está fundada em uma ser, questões do tipo “o que é A?”
distinção entre as faculdades de Não há nenhuma tese aqui que, nos
cognição, as subdivisões noéticas são casos não problemáticos, a sensação
distinguidas por seu método científico está operando sozinha, sem a
ou modo de investigação: a dialética é colaboração de qualquer outra
o método do segmento mais alto, a faculdade como a doxa. Como é
dedução a partir de hipóteses é o frequente, Platão usa aqui o termo
método do segundo nível inteligível aisthêsis de modo solto para juízo de
(ver o capítulo O Método da Dialética percepção. Adam observa (em seu
de Platão). comentário a 523c2) que é típico de
Platão nesta seção da República não
Por vezes é sustentado que, na fazer uma distinção rígida entre
curiosa passagem sobre a percepção aisthêsis e doxa; assim, “o tipo de
de um dedo que introduz o estudo da juízos contraditórios que são
matemática no Livro VII da República, atribuídos à... aisthêsis já tinha sido
Platão se compromete em assumir atribuído à doxa em [Livro V] 479b-
que os sentidos sozinhos, sem outro 479e”. Como Adam escreve, “a
auxílio, poderiam fazer juízos de consideração importante é que, em

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tais casos [como “isto é um dedo”], o alma percebe por meio de um


intelecto, de regra, não é excitado, e instrumento corpóreo, como o olho
isto é igualmente verdadeiro caso ou o ouvido, e os que ela considera
consideremos o juízo como o ato da por ela mesma, não por meio de um
aisthêsis somente ou como o produto instrumento corpóreo (185d-e). Os
associado de aisthêsis e mnêmê” últimos, designados como koina ou
(Adam 102, II: 109. Adam está comuns, incluem conceitos básicos
fazendo alusão à sugestão feita no como ser, mesmo e outro, números,
Phlb. 38bl2 que a doxa é derivada da assim como bem e mal, honrável e
sensação juntamente com a vergonhoso. O ponto decisivo aqui é
memória). que a percepção sensível por meio do
corpo não pode apreender o ser e,
A este respeito, um dos grandes por conseguinte, não pode apreender
resultados do Teeteto consiste em a verdade, e assim não pode ser
distinguir claramente entre a conhecimento (186c-d). Portanto,
ocorrência de uma afecção sensorial, devemos nos deslocar para a
por meio de uma modificação atividade racional da alma em si
corpórea, e o juízo perceptivo mesma, o que nos leva ao tema da
correspondente (ver o capítulo doxa ou juízo no resto do diálogo.
Platão: uma Teoria da Percepção ou
um Aceno à Sensação?). É aqui que, Esta distinção no Teeteto entre
por primeira vez, Platão distingue atributos sensíveis e não sensíveis
sistematicamente a doxa da aisthêsis. tem sido comparada à distinção entre
Na primeira parte do Teeteto, os o a priori e o empírico, visto que isola
interlocutores tentam definir o “um conjunto de predicados aos quais
conhecimento em termos de doxa, temos acesso independentemente do
juízo ou opinião. (O Teeteto tem, uso de nossos órgãos sensitivos”
assim, a estrutura de uma dupla (Sedley, 2004, p. 106). Se
redução, rejeitando primeiramente a interpretarmos a distinção do Teeteto
aisthêsis e então a doxa como ontologicamente, estes atributos que
candidatos a conhecimento.) A não são sensíveis correspondem às
refutação final da percepção sensível Formas, e os predicados sensíveis se
está baseada em uma distinção referem ao domínio fenomenal.
fundamental entre dois tipos de Assim, temos um tipo de análogo aqui
predicados ou atributos: os que a à reminiscência na capacidade da

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Hugh H. PLATÃO
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alma de considerar um certo campo República pela noção de visão


de conceitos sem a dependência noética. Talvez se pudesse mesmo
direta do corpo. Nos casos nos quais pensar que Platão, depois de se
(de acordo com o Teeteto) a alma se basear na noção de reminiscência
baseia somente em seus próprios para explicar nossa habilidade em
recursos, podemos pensá-lo como adquirir conhecimento que
independente do corpo e, portanto, transcende a experiência ordinária,
potencialmente desencarnado, como decidiu que havia um caminho melhor
no estado pré-natal suposto pela re- para explicar esta capacidade
miniscência. O Teeteto não faz uso da cognitiva. Donde (nesta perspectiva)
noção de reminiscência, mas, visto ele abandonou a noção semimítica do
que o contexto no Teeteto é conhecimento não adquirido em uma
explicitamente epistemológico (que existência prévia e adotou em seu
tipo de atividade cognitiva pode lugar o conceito mais racional de
contar como conhecimento?), esta intuição noética ou Wesenschau, um
passagem pode razoavelmente ser “ver” intelectual das Formas acessível
vista como a maior aproximação de àquelas mentes que foram
Platão ao conceito pós-kantiano preparadas propriamente pela
moderno de cognição a priori, como dialética. Poderíamos então
um tipo de reivindicação de interpretar a epistemologia da
conhecimento que é logicamente República, centrada na imagem da luz
independente da evidência empírica. e da visão em clímax das Formas,
como a sucessora e a substituição de
Se retornarmos agora ao tópico uma teoria inatista do Mênon e do
da reminiscência, sua ausência da Fédon.
República e de diálogos posteriores é
muito surpreendente. Como vimos, a Contudo, esta hipótese que
análise do conhecimento e da Platão, quando escreveu a República,
opinião, que começou no Mênon no tinha desistido da doutrina da
contexto da reminiscência, continua reminiscência em proveito da noção
sem este contexto no resto do corpus. de uma visão noética não pode ser
O que está ocorrendo? defendida em termos cronológicos,
pois não há nenhuma razão para
Uma sugestão seria que a supor que o Fedro venha antes da
reminiscência foi substituída na República e há razão para supor que

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Hugh H. PLATÃO
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seja posterior. (P ex., o relato da reencarnação posterior, mas a


dialética no Fedro está muito mais reminiscência não aparece em um
próximo da dialética do Sofista e do contexto epistemológico.) Não é
Político do que do da República.) porque Platão mudou de opinião a
Ademais, o Fedro mostra que a respeito do conhecimento. Ao
reminiscência e a visão noética contrário, a passagem da conversão
podem aparecer lado a lado; na da alma na Alegoria da Caverna foi
versão do Fedro, a reminiscência é a reiteradamente reconhecida como
consequência de uma visão direta das próxima no espírito à doutrina da
Formas. Tal visão também é sugerida reminiscência. Lá Sócrates nega que
em diálogos anteriores à República; se possa colocar conhecimento em
por exemplo, uma visão da Forma do uma alma que não o tem, “como se
Belo na fala de Sócrates no Banquete. alguém fosse pôr vista em um olho
No Fédon, similarmente, onde a cego”. Ao contrário, “esta capacidade
reminiscência tem um papel tão [de ver a verdade] e este instrumento
importante, Sócrates também sugere pelo qual se aprende estão presentes
a possibilidade de “contemplar as na alma de cada um”. Porém, a alma
coisas em si mesmas com a alma em inteira precisa ser convertida de modo
si mesma” (66d8). Nesta série de que o olho da alma seja dirigido à
diálogos do Mênon ao Fedro, não há realidade, em direção à claridade do
sinal nenhum de um desenvolvimento verdadeiro ser (VI.518c). Platão é aqui
linear, no qual uma epistemologia claramente um inatista: a virada do
substitui uma outra. Ocorre antes que olho da alma em direção à luz é um
concepções diferentes de análogo próximo do processo de
conhecimento são usadas em reminiscência. Por que então os
contextos diferentes com propósitos prisioneiros na Caverna não são ditos
diferentes. estarem rememorando uma
exposição pré-natal à luz do dia?
Por que, então, a reminiscência Minha explicação é que o obstáculo
não aparece na República? (De fato, não é conceituai, mas retórico.
algo similar à reminiscência é Estragaria o curso dramático e a
pressuposto no Mito de Er em 619bss. dificuldade da saída da Caverna, caso
e também na sugestão em 498d que Platão tivesse dado aos prisioneiros
Trasímaco poderá ao final beneficiar- um contato prévio com o mundo lá
se da discussão em curso em uma fora. Não há nenhuma razão filosófica

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para a omissão da reminiscência na aprendemos acerca da capacidade


República, mas há uma excelente chamada de nous é que ela não é a
razão artística. A reminiscência não se percepção sensível, mas envolve
enquadra no paralelo entre nous e linguagem (logos) e raciocínio ou
visão, entre conhecimento e luz, que cálculo (logismos). Além disso, temos
domina a imagem dos livros centrais a alegação, mas nenhum esquema da
desde a introdução das Formas no mente, na passagem citada acima do
Livro V à visão culminante do Bem ao Fedro: que a alma humana deve ser
final do livro VII (540a). capaz de derivar conceitos racionais
de muitas percepções sensíveis. A
É importante reconhecer que o reminiscência serve somente como
tema da visão noética permanece uma narrativa mítica para identificar
metafórico todo o tempo e nunca se uma fonte transcendental desta
fixa em uma doutrina rígida. A capacidade de transcender a
distinção de Platão entre o sentido e o experiência sensível. Se pusermos de
intelecto (na República VI e alhures) lado o mito da reencarnação, a tese
pode ser vista como o antecessor da prosaica da reminiscência se reduz à
teoria da faculdade da mente que vai formula do Mênon: a verdade dos
de Aristóteles a Kant; Platão, porém, seres está na alma. Este pensamento
não tem tal teoria. O termo nous serve é desenvolvido de modo mais
de nome para “a capacidade de toda completo na constituição da alma no
alma [de ver a verdade] e para o Timeu. Assim, em Ti. 35a, os
instrumento pelo qual todos ingredientes da alma do mundo
aprendemos”, mas Platão incluem as Formas básicas do Ser,
reiteradamente emprega outras Mesmo e Outro, junto com os tipos
expressões, mais perifrásticas, para correspondentes da substância
deixar clara a condição não técnica corpórea. A implicação é que o Timeu
deste conceito de nous: “ver o Belo nos dá um equivalente físico (ou
em si mesmo por aquilo ao qual ele é metafísico) da reminiscência: para
visível” (Smp. 212a3); “apreender a que o conhecimento seja possível, os
natureza de cada essência como a objetos de conhecimento devem
parte apropriada da alma” (R. estar já presentes na alma. Era isto
VI.490b3); “levar a coisa mais nobre que estava implicado pela
da alma à visão da melhor coisa entre reminiscência desde o início: “a
os seres” (R. VII.532c5). Tüdo o que verdade das realidades (ta onta) está

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em nossa alma” (Men. 86bl). não somente acessível, mas também


acessível precisamente porque já é
Por fim, então, a epistemologia nossa, porque a natureza intrínseca
de Platão funde-se com sua ontologia. de nossa mente está estruturada para
É porque a realidade tem uma refletir, donde se identificar com a
estrutura fixa que a alma tem de ter estrutura da própria realidade.
uma versão da mesma estrutura. Recebendo seu impulso pelo
Sugiro que esta noção de afinidade ou questionamento socrático (no
identidade formal entre a mente e o Mênon), pela reflexão sobre as
mundo, entre a alma e as Formas, é o deficiências da experiência sensível
sentido profundo da reminiscência (no Fédon) ou pelo amor (no Fedro), o
(ver também o capítulo Platão e a acordar-se da alma à compreensão da
Justiça). Não há nenhuma teoria forma noética é muito excitante
platônica do nous porque, para porque é um retomo ao nosso próprio
Platão, a mente não tem uma eu profundo, à natureza primordial da
estrutura independente: é alma.
simplesmente a capacidade de uma
alma humana ter cognição e assim se Contudo, nem a reminiscência
identificar com a estrutura do Ser nem a visão noética nos dão uma
objetivo. Para Platão, conhecimento e indicação confiável de como estas
compreensão são simplesmente Formas são. Seria um erro tomar a
reflexos psíquicos da natureza da metáfora da visão de modo
realidade. A epistemologia está demasiadamente literal e daqui
fundada em sua ontologia. A concluir que Platão está
reminiscência e a visão noética comprometido com uma ontologia
servem como concepções que pode fundar uma teoria da
alternativas do mesmo fenômeno, intuição intelectual. Filósofos de Ryle
nosso acesso ao espaço dos a Heidegger cometeram este erro e
conceitos, que é, para Platão, o alegaram que Platão deve ter
espaço do verdadeiro Ser e da Forma concebido as Formas como “simples
eterna. Porém, a noção da nomeáveis” (Ryle) ou “objetos”
reminiscência é filosoficamente mais quase-visíveis. Porém, o Fédon está
profunda, mais explicativa que a aqui (com outras passagens, incluindo
metáfora da visão. Ela sustenta que a muitas na República) para nos
estrutura objetiva da realidade nos é advertir contra este erro e nos

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lembrar que as Formas são diferentes”. Donde “a maioria das


primariamente concebidas como o pessoas, embora tenham o conhecimento
latente, não o manifestam”, isto é, não
tipo de realidade (ousia) “de cujo ser rememoram (p. 71). Para uma crítica da
(einai) damos e recebemos uma posição de Scott, ver Kahn, 2003.
fórmula (logos) ao questionar e 2. Para a tese que no Fedro somente os
responder” (Phd. 78dl) e cuja filósofos rememoram, ver Scott, 1995, p.
designação mais própria é “O X ele 74-80; para uma crítica, ver Bobonich,
2002, p. 554 n. 36.
mesmo, o que é” (auto to ho estin, 3. Não encontro evidências para o
74d6). Em outras palavras, a natureza abandono da teoria das Formas” que
das Formas deve ser entendida não Alexander Nehamas atribui à grande fala
da perspectiva da visão ou da reminis- de Sócrates (Nehamas, 1999, p. 352).
cência, mas da perspectiva do logos, Obviamente, o relato das Formas no
Fedro é vago, de acordo com o ambiente
onde logos é concebido como a busca mítico; porém, seria estranho, se (como
dialética da definição, a busca de Nehamas sugere) Platão estivesse
clareza e compreensão por meio de abandonando a assim dita falácia do para-
intercâmbio linguístico, por meio de digmatismo, que ele devesse basear sua
questão e resposta a respeito do que mais brilhante teoria do amor em um
exemplar estelar desta mesma falácia.
as coisas são e como elas são. É por
isto, a despeito de sua configuração
REFERÊNCIAS E LEITURA
alterada nas obras posteriores, que a
COMPLEMENTAR
dialética permanece a melhor
descrição – no Filebo, como também Adam, J. (1902). The Republic of Plato (2
no Fedro e na República – para a vols.). Cambridge: Cambridge University
forma mais alta de conhecimento, a Press. Bobonich, C. (2002). Plato’s Utopia
cognição do que é finalmente real. Recast: Flis Later Ethics and Politics. Oxford:
Oxford University Press.
NOTAS Diels, H. e Kranz, W. (DK) (1985). Die
Fragmente der Vorsokratiker. Zurich:
Todas as traduções são do autor. Weidmann.
Horwich, E (2000). Stipulation, meaning and
1. Esta é a sugestão de Scott (1995, p. 69). apriority. In P Boghossian and C. Peacocke
Platão generaliza a partir de um grupo (eds.) NewEssays in theAPriori (p. 168).
limitado “supondo que é mais plausível Oxford: Oxford University Fress.
que todos os seres humanos são
Kahn, C. H. (2002). On Platonic chronology. In
fundamentalmente do mesmo tipo do
J. Annas and C. Rowe (eds.) New Perspectives
que de dois tipos radicalmente
on Plato, Modem and Ancient (pp. 93-127).

Hugh H. Benson 207 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Cambridge, Mass.: Harvard University Eress.


______(2003). On the philosophical
autonomy of a Platonic dialogue: the case of
recollection. In A. N. Michelini (ed.) Plato
asAuthor (pp. 299-312). Leiden and Boston:
Brill.
Nehamas, A. (1995). Plato: Phaedrus, trans.
A. Nehamas and E Woodruff (pp. xlii-xlv).
Indiana- polis: Hackett.
______(1999). Virtues of Authenticity: Essays
on Plato and Sócrates. Princeton, NJ:
Princeton University Press.
Scott, D. (1995). Recollection and Experience:
Plato’s Theory ofLearning and its Successors.
Cambridge: Cambridge University Press.
Sedley, D. (2004). The Midwife ofPlatonism:
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Oxford: Oxford University Press.
Vlastos, G. (1995). Anamnesis in the Meno. In
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Philosophy, vol. 2 (pp. 147-65). Princeton, NJ:
Princeton University Press.

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

10. Platão: uma teoria Se nos voltarmos aos primeiros


diálogos socráticos para encontrar
da percepção ou um respostas a estas questões,
aceno à sensação? encontraremos muito pouca
discussão da percepção. Estes
DEBORAH K. W. MODRAK diálogos tendem a não se engajarem
em muita reflexão crítica acerca da
O desafio de escrever sobre a natureza da cognição humana.
percepção em Platão consiste em Sócrates tipicamente persegue, de
mostrar que Platão tem algo a dizer modo enérgico, questões sobre a
sobre este tema que seja ao mesmo natureza da virtude; ele defende
tempo interessante e construtivo. reiteradamente (ou parece defender)
Suas observações frequentemente várias teses sobre a sabedoria, que
negativas sobre os objetos ele relaciona à virtude (ver o capítulo
perceptíveis, particularmente nos A Unidade das Virtudes). Ele procura
diálogos do período médio, levaram o conhecimento que seria
muitos comentadores a concluir que constitutivo da virtude e mostra que
ele dá pouco ou nenhum papel muitos que alegam ter este
epistêmico à percepção na cognição e conhecimento não o possuem.
que seu único papel é o de contribuir Questões acerca da confiabilidade (ou
para opiniões ilusórias. Isso não quer de sua falta) da percepção
dizer que Platão rejeita o fenômeno simplesmente não surgem. A
da sensação, mas sim que ele rejeita percepção é somente mencionada de
toda noção de percepção como uma modo ocasional e, quando o é, não é
cognição completa que poderia o foco da discussão. A percepção é
constituir um conhecimento ou ser invocada para ilustrar certos pontos
um estado sobre o qual o em vários argumentos a respeito da
conhecimento pode basear-se. E esta virtude. No Carmides, ao contestar a
sua posição ou suas observações tese que a temperança é uma ciência
críticas escondem uma aceitação da da ciência, Sócrates concorda com a
percepção como uma fonte de tese que, se ouvir ouve a si mesmo,
crenças verdadeiras? ouvirá a si mesmo possuindo som
(168d2-el). Sócrates usa o exemplo do
OS DIÁLOGOS SOCRÁTICOS olho vendo a si mesmo no Alcibíades I
para ganhar clareza sobre como a

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Hugh H. PLATÃO
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alma poderia vir a conhecer a si dialético para descobrir a verdade é


mesma (132d2-133c6). No Laques, ele importante (ver o capítulo Platão e
argumenta que, para acrescentar Reminiscência), pois mostra como a
vista aos olhos para que vejam percepção em concerto com a
melhor, devemos saber o que é a reflexão pode ter um papel no
visão (190al-bl). No Lísis, ele faz reconhecimento da verdade. A
menção à diferença entre o cabelo discussão da reminiscência é seguida
que se mostra branco porque fica de uma discussão dos papéis
branco ao encanecer e seu mostrar-se respectivos da crença verdadeira e do
branco porque foi tingido de branco conhecimento na condução do
(217dl-e3). Em nenhum destes comportamento (97a3-99cl0). Ambos
contextos a percepção como tal é são igualmente válidos, mas o
objeto de escrutínio crítico e sua primeiro, ao contrário do último, não
confiabilidade em geral é dada por é estável. A pessoa que fez de fato a
suposta. viagem à Larissa é dita ter
conhecimento, ao passo que a pessoa
O Mênon, um diálogo de transição, a quem se disse o caminho tem, no
põe a questão: o que é a virtude? melhor caso, uma crença verdadeira
Porém, muito da discussão se dirige a (97a3-b3). Esta ilustração da diferença
uma questão diferente: pode a entre o conhecimento e a crença
virtude ser ensinada? Assim como à verdadeira privilegia implicitamente a
questão conexa: é a virtude percepção direta em relação à
conhecimento? A percepção não é informação adquirida por relatos orais
discutida explicitamente, mas (ver o capítulo O Conhecimento e as
suposições sobre sua veracidade Formas em Platão). A despeito das
aparecem nestes argumentos. diferenças de contexto, um diálogo
Sócrates se vale de um desenho na tardio, o Teeteto, também privilegia a
areia para retirar um escravo de suas experiência direta em relação ao juízo
crenças falsas sobre o quadrado de inferencial. Da testemunha ocular de
uma diagonal e o levar à sua crença um crime é dito ter conhecimento, ao
verdadeira inata (82b9-85dl). passo que os jurados têm, no melhor
Enquanto o escravo não aprende a dos casos, a crença verdadeira
resposta correta do diagrama, mas a baseada no relato da testemunha
rememora, o papel proeminente dado ocular (201a7-c2).
ao auxílio visual em um esforço

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Hugh H. PLATÃO
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Nos primeiros diálogos, então, percepção parece ser uma fonte de


Sócrates dá por suposta a informação sem valor, no melhor dos
confiabilidade da percepção, mas ele casos, a pouco participar da clareza ou
pouca atenção presta à percepção. precisão. Convém observar, todavia,
Questões sobre a natureza da que esta passagem ocorre no
percepção ou de suas limitações não contexto de um argumento para
são encontradas. No Mênon, a mostrar que o filósofo persegue um
percepção até tem um papel chave, objetivo ao longo de toda a sua vida –
mas não reconhecido ao se fundar a a separação da alma do corpo – que só
distinção entre conhecimento e pode ser obtido inteiramente com a
crença verdadeira. morte.

O FÉDON Em um argumento subsequente


em prol da existência de objetos ideais
Mais do qualquer outro diálogo, o como o Igual-em-si-mesmo, Sócrates
Fédon sustenta a separação da alma e parece tomar uma posição
seus poderes do corpo. Neste ligeiramente diferente sobre a
contexto, esperaríamos encontrar percepção. Quando a percepção
uma avaliação muito crítica da apreende que dois objetos são iguais,
percepção, e a encontramos. Sócrates ela o faz empregando um conceito de
defende a importância do intelecto igualdade que não pode ter surgido
separando a si mesmo do corpo para com base em percepções de objetos
apreender a verdade (65a9-66a8; cf. iguais (74d4-75b8). É revelador que,
99el-6). Para deixar claro em que neste contexto, Sócrates aceita a
consiste apreender as realidades que aplicação de conceitos na percepção
são inacessíveis aos sentidos, Sofista que não são adquiridos pela
pergunta retoricamente: “encontram percepção. Ele supõe que as coisas são
os homens alguma verdade na visão vistas e escutadas como iguais. Esta
ou na audição?” Ele e Símias suposição está ou parece estar em
concordam que a alma é enganada conflito com a tese anterior que os
sempre que examina algo a fazer com sentidos são totalmente não
o corpo. A descrição da percepção confiáveis. Assim como delineado na
parece deixar pouco espaço para que discussão da igualdade, quem percebe
um sentido tenha um papel percebe coisas iguais ao aplicar-lhes
construtivo na investigação. A um conceito de igualdade absoluta e,

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ao mesmo tempo, reconhece que da percepção sensível ou das crenças


iguais perceptíveis não elevam a com base empírica.
igualdade absoluta (74d3- e4). Que
alguém que tipicamente percebe Ao argumentar em prol da
reconheceria a diferença entre imortalidade da alma com base na
igualdade absoluta e as coisas iguais diferença entre o corpo e a alma,
que ele percebe é essencial ao Sócrates novamente enfatiza as
argumento segundo o qual o conceito diferenças entre os objetos físicos e os
de igualdade não é adquirido por ideais (78b4-81a2). Os primeiros
percepção. Para ter a força sofrem mudanças constantemente;
argumentativa requerida, a tese deve os últimos são imutáveis. Os primeiros
ser geral, isto é, que todo aquele que são apreendidos pelos sentidos; os
percebe com autorreflexão e de modo últimos, pela mente somente. A
razoavelmente astuto pode e re- natureza mutável dos objetos físicos é
conhecerá a diferença. Embora o tal que o intelecto termina por se
intelecto pudesse enganar-se se confundir quando faz uso do corpo.
confundisse os iguais perceptíveis Dado que os objetos que são
com a igualdade absoluta, não parece perceptíveis não são estáveis, a
haver o perigo que os confunda. A filosofia persuade a alma a abandonar
possibilidade de engano permanece, os sentidos (83al-c3). O fim da
mas não que certamente ocorrerá, filosofia consiste em apreender as
como foi sugerido na passagem verdades inalteráveis.
anterior. Uma aceitação similar das
crenças baseadas na percepção Mesmo quando dá voz a reservas
aparece na defesa de explicação acerca dos objetos perceptíveis e dos
teleológica (96a6-99d2). O fisicalismo poderes de percepção, o Fédon
pré-socrático é rejeitado com base no permite que a percepção tenha um
fato que as causas físicas não podem papel importante na cognição. A
explicar satisfatoriamente muitos percepção provê informação
fenômenos. A ordem cósmica e a ação confiável acerca do mundo físico. Um
deliberada só podem ser explicadas homem que percebe é mesmo capaz
adequadamente, argumenta Sócrates, de aplicar conceitos gerais como a
por um apelo a causas teleológicas. igualdade na percepção. As limitações
Em nenhum momento de sua crítica da percepção são um reflexo das
Sócrates põe em xeque a veracidade limitações dos objetos concretos em

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comparação com os objetos ideais. distinção sutil entre a apreensão de


perceptíveis genuínos e a apreensão
A REPÚBLICA de características mais gerais.

Em um contato inicial a respeito da Vou mostrar, então, se você puder


cognição, a República parece apreender isso, que algumas
percepções sensíveis não clamam para
funcionar em muito como o Fédon. que o entendimento olhe para elas,
Não parece ser um local provável para porque o juízo da experiência sensível
encontrar apoio à tese que a é adequado, ao passo que outras o
percepção apreende a verdade acerca encorajam de todos os modos a olhar
dos perceptíveis. Muitas passagens para elas, porque a percepção sensível
não parece produzir um resultado
bem conhecidas fazem um contraste fiável. (523al0-b4, trans. Grube)
entre as opiniões em que não se deve
confiar e o conhecimento seguro. Os Quando percebemos o mesmo dedo
objetos de opinião são acessíveis como grande em um contexto e
pelos sentidos. Amantes de visões e pequeno em outro, o intelecto é
sons são ditos estarem em atiçado pelo problema de pensar a
desvantagem em relação aos amantes natureza do grande e do pequeno
da verdade (474d3-480al3). Em uma (523bl0-525a2). Este caso é posto em
célebre exemplificação, Sócrates contraste com a percepção simples de
divide uma linha traçada na areia no um dedo. A visão é capaz de prover
intuito de apresentar a posição dos informação inteiramente adequada
poderes cognitivos e de seus objetos sobre a cor e a forma de seus objetos
(509dl-511e3). A principal divisão da e de aplicar certos conceitos não
linha ocorre entre o reino visível e o problemáticos como o de ser um
reino inteligível. A atividade da dedo. Algumas características gerais,
dialética, que não faz uso de perceptí- contudo, ser belo ou ser grande, por
veis, mas funciona por meio dos exemplo, são tais que são
inteligíveis somente, é louvada como apreendidas pela percepção em um
o poder cognitivo mais alto (511b3-cl; modo que é ambíguo. É sempre
533a8-534dl). possível perceber o mesmo objeto
como tendo características gerais que
Contudo, em uma leitura mais são opostas às características
cuidadosa deste e de passagens inicialmente percebidas. Por
correlatas, encontramos uma

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exemplo, um som que é belo em um posterior de identidade sobre o


contexto pode ser dissonante e feio objeto, isto é, que é a Beleza-em-si-
em outro. Um dedo que é grande em mesma. O amante de visões e sons
relação a outro dedo pode ser comete o erro que, por hipótese, o
pequeno em relação a um outro mesmo amante percebe no Fédon e
dedo. Em consequência, toda evita. Dado que o objeto de opinião é
tentativa de fazer teses gerais sobre um amálgama de uma similitude com
estas características com base a realidade, é dito estar a meio
somente nas percepções é caminho entre o que é e o que não é
problemática. (478d3).

Isto explica a diferença de tom O quadro dos poderes cognitivos


entre a passagem em 523al0-b4 e a humanos ilustrados pela linha
descrição dos amantes de visões e dividida é também uma evidência na
sons como vivendo em um estado de discussão da educação dos guardiães
sonho em 474d3-480al3. Aqui em República VII (ver o capítulo
também o papel da percepção é Platão e a Matemática). Sócrates
implicitamente um incitamento para distingue entre a astronomia tal como
mais filosofar; filósofos são é praticada por seus contemporâneos
apresentados como semelhantes aos e a verdadeira astronomia (528d5-
amantes de visões e sons (475e2) pelo 530cl). A primeira quer explicar os
fato de ambos os grupos serem movimentos dos corpos celestes
amantes da beleza. Infelizmente, precisamente como eles aparecem ao
todavia, os amantes de visões e sons observador. Isso significa que o
não se dão conta que as modelo incluirá movimentos
manifestações físicas da beleza que irregulares com órbitas imperfeitas. A
eles amam são somente similitudes última explica os movimentos
da beleza. Eles confundem a observados com base em um modelo
similitude com a própria coisa. Platão geométrico idealizado em termos de
não descreve sua condição cognitiva esferas perfeitas e movimentos
em termos de ter percepções falsas, regula- res. Uma discussão similar é
mas sim como um caso de opinião feita no caso da harmônica; a
falsa. O que toma a opinião verdadeira harmônica fornece um
problemática é a generalização da modelo matemático dos sons
percepção central a uma tese audíveis. Tanto quanto for possível

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compreender os objetos de qualidades como beleza e grandeza.


observação, é necessária uma No Banquete, embora o “discurso de
mudança mental abandonando os Diotima” sobre o amor relatado por
objetos visíveis e audíveis em prol dos Sócrates não mencione a percepção
puramente inteligíveis. O uso da visão como tal, é proposta a mesma
para apreender os movimentos progressão dos sensíveis aos
observáveis ou da audição para inteligíveis. O verdadeiro amante da
apreender as notas musicais audíveis beleza começa com a beleza de um
não é posta aqui em xeque; Platão único corpo masculino, vai para todos
antes enfatiza a importância de se ir os corpos belos e daqui à beleza como
além do que é observado. Uma manifestada nas Leis e costumes, para
compreensão genuína só pode ser finalmente chegar à Beleza-em-si-
adquirida pelo estudo dos problemas, mesma (210a4-211dll).
isto é, pela construção mental de
modelos que são puramente Na República. A percepção é o
matemáticos. ponto de início de um processo
cognitivo que, quando levado a bom
Os poderes da percepção usados em termo, termina na apreensão dos
relação a objetos apropriados são objetos ideais. A linha dividida provê
tratados com respeito na República. O um quadro vivido da diferença entre a
modelo da intelecção é a visão sob percepção e seus objetos e a
boas condições. Platão faz uma intelecção e seus objetos. Todavia, os
analogia entre o sol como a fonte da homens que põe a cognição em
luz e a Forma do Bem (508a4- 509a4). operação começam no mundo dos
A luz torna o que é potencialmente objetos físicos como apresentados e
visível atualmente visível; a Forma do conceptualizados pela percepção e,
Bem torna os objetos potencialmente com base nas questões incitadas
inteligíveis inteiramente inteligíveis. pelas percepções, a mente que
Mesmo as percepções que produzem investiga vai além dos objetos
confusão, como as da grandeza e da observáveis.
beleza, têm um papel importante na
cognição a título de estímulo a mais O TIMEU
reflexão (ver o capítulo O Método da
Dialética de Platão). A investigação No mito da criação que dá o quadro
filosófica começa com percepções de da discussão do Timeu dá lugar a uma

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descrição detalhada dos mecanismos dela um caso de contato. Um corpo é


da percepção, especialmente dos da formado que se estende pelo meio ao
visão (ver o capítulo O Papel da órgão e causa mudanças nele. A
Cosmologia na Filosofia de Platão). terminologia torna claro que
devemos entender o processo de
Quando a luz circunda o raio visual, percepção somente em termos de
então o semelhante toca o semelhante
causalidade física até o momento em
e eles se amalgamam, um corpo sendo
formado por afinidade na linha da que as mudanças no corpo de quem
visão, sempre que a luz que vem de percebe causam mudanças na alma.
dentro confronta firmemente um Um processo que começa nas
objeto externo que encontrou. E o raio mudanças físicas fora do corpo de
visual inteiro, sendo similarmente
quem percebe e termina nas
afetado, em virtude da similaridade
transmite os movimentos daquilo que mudanças na mente de quem
toca ou o que o toca por todo o corpo, percebe constitui a percepção. Todos
até atingir a alma, causando a os componentes do processo são
percepção que chamamos visão. necessários para que ocorra a
(45c2-d2) percepção.
A atenção ao detalhe é bem Segundo Timeu, os olhos foram
visível neste texto. Também torna os primeiros órgãos a serem feitos
claro que, para Platão, a percepção é pelos deuses (45b2-4). A visão traz
uma atividade psicofísica que inicia grande benefício aos seres humanos;
com uma série de mudanças sem ela, “nenhuma das nossas atuais
puramente físicas – no meio entre o afirmações sobre o universo poderia
órgão e o objeto e no órgão da ser feita” (47al-4). A investigação do
percepção. A audição e o paladar, universo levou os pensadores à
como a visão, são causados por filosofia (47a4-b2). Apesar da
mudanças em um meio; somente o importância da visão, Platão continua
órgão da visão interage com o meio a restringir o número de objetos que
para criar as condições necessárias de são acessíveis por meio da percepção.
modo que o ato de ver ocorra. A vista, A distinção familiar entre
o sentido que parece ser o mesmo entendimento e opinião verdadeira é
fácil de receber uma explicação em invocada a fim de estabelecer que as
termos de contato corpóreo, é Formas por si mesmas não são
descrita em termos que parece fazer objetos de percepção (51d2-52dl).

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Fosse a opinião verdadeira idêntica ao “A cor é uma chama que sai de


entendimento, argumenta-se, então corpos de todos os tipos, com suas
os objetos percebidos pelos nossos partes proporcionais à nossa visão de
sentidos seriam as coisas mais modo a produzir a percepção” (67c4-
estáveis que existem. Já que há uma dl). Timeu continua explicando que as
distinção, as Formas são mais estáveis diferenças em cores se devem às
que os objetos perceptíveis. diferenças em tamanho entre a
chama que emana dos corpos
Quando Timeu se volta às externos e a chama que emana do
propriedades dos corpos olho. Se não houver nenhuma
elementares, ele diz que será diferença entre as duas, o resultado é
necessário apelar à percepção o transparente. O branco dilata o raio
sensível em cada estágio da discussão da visão e o preto o contrai.
(61c3-dl). O fogo é quente porque sua Explicações similares são dadas para a
forma é tal que ele corta os corpos em clareza e outras cores, muitas das
pedaços pequenos; umidade é fria quais se devem à mistura de cores
porque comprime nossos corpos mais básicas. O verde, por exemplo, é
(61d5- 62b6). Aquilo a que nossa uma mistura de âmbar e preto.
carne cede é duro; o que cede à nossa
carne é mole (62b6-c2). Outras A descrição das qualidades
características perceptíveis são perceptíveis, como a descrição
explicadas em termos de qualidades anterior do raio visual, sublinha a
mais básicas. A aspereza é devida a importância dos mecanismos físicos
uma combinação de dureza e não envolvidos na percepção. O caráter de
uniformidade; a maciez é devida a uma simples percepção de um objeto
uma combinação de uniformidade e apropriado é inteiramente
densidade (63e8-64al). Visto que determinado pela interação física
estas características são uma entre o corpo de quem percebe e os
consequência das formas dos corpos corpos externos. O conteúdo da
elementares, as propriedades percepção é explicado em termos do
perceptíveis mencionadas têm uma ajuste ou da falta de ajuste entre as
base objetiva nas coisas que as características físicas relevantes de
causam. Uma explicação similar é um corpo externo e o órgão.
dada para os gostos, odores, sons e
para a cor (65cl-68b2). Quando Timeu volta sua atenção

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para situar a alma no corpo, ele coloca diversamente caracterizadas. Três


a alma imortal – a sede da diferentes explicações do que poderia
racionalidade – na cabeça, e a alma significar dizer que o conhecimento é
mortal no peito e no tronco. percepção são exploradas. Ao final,
Percepção sensível, prazer e dor, todas são declaradas insatisfatórias e
emoção e apetite são mencionados a tese que o conhecimento é
inicialmente em conexão com a alma percepção é posta de lado em 186e. O
mortal, mas então a percepção foco então se dirige às várias
sensível fica fora da exposição (69d4- tentativas de definir o conhecimento
6). As descrições já dadas de quatro em termos de opinião. Para nossos
dos cinco sentidos (visão, audição, propósitos, o Teeteto é uma obra
olfato e gosto) parecem localizá-los na muito importante, pois é o diálogo no
cabeça. A percepção, mesmo na qual a percepção é discutida
exposição de Timeu, põe em xeque extensamente por ela mesma a título
uma divisão estrita entre alma mortal de poder cognitivo.
e imortal. Embora um relato possa ser
dado sobre um órgão sensitivo central A tese que o conhecimento é
no peito ao qual estão ligados todos percepção recebe três interpretações
os órgãos sensitivos individuais, este diferentes e, em cada interpretação, a
relato não é feito por Platão. Ele nos tese é refutada. Na primeira
deixa com a omissão intrigante de interpretação, a tese é dita ser
uma faculdade que parece pôr em equivalente à tese protagórica que o
xeque a compartimentagem dos homem é a medida de todas as coisas.
diferentes tipos de alma, a despeito Na segunda interpretação, a tese é
de sua intensa discussão antes da explicada em termos de um mundo
compartimentagem. heraclíteo em que tudo e todos estão
em um constante estado de fluxo.
O TEETETO Nem a versão protagórica da tese nem
a heraclítea se mantém após
O tópico em discussão é o escrutínio. Contudo, Platão revisita a
conhecimento e Teeteto faz várias tese que o conhecimento é
tentativas para definir o percepção. A terceira referência, que
conhecimento identificando-o a ocorre em 184b4-186e7, visa a uma
outras faculdades cognitivas, a saber, versão depurada da tese tal como é
percepção e opinião. Elas são interpretada por Sócrates e Teeteto.

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Sócrates inicia a referência descobrir as razões que explicam por


distinguindo entre objetos que são que Teeteto prontamente concorda
percebidos por uma faculdade e os com esta restrição à percepção. Mais
que são comuns. importante, o diálogo dá alguma
justificação para esta posição?
Sócrates: Você concordará também
que, a respeito dos objetos que você A resposta (e a justificação da
premissa central) se encontra não no
percebe por uma faculdade, é argumento final em 184b4-186e7,
impossível percebê-los por uma outra
mas em um passo anterior do diálogo
– por exemplo, perceber os objetos da
audição por meio da visão ou os (Modrak 1981). Em 156al-157c2,
objetos da visão por meio da audição? Sócrates avança uma teoria da
percepção no contexto da doutrina
Teeteto: Por certo. heraclítea do fluxo. Tem sido objeto
de controvérsia saber se Platão aceita
Sócrates: Assim, se há algo que você esta teoria, chamada “doutrina
pensa a respeito deles, não pode ser
algo que você está percebendo a
secreta”. Todavia, convém notar que
respeito de ambos, seja por meio de o apoio decisivo à tese que cada
um ou de outro instrumento. (184e8- sentido está limitado ao seu próprio
185a6). objeto se encontra aqui. De acordo
com esta teoria, o objeto de
Teeteto e Sócrates concordam percepção depende do ato de
que, já que não existe um órgão que perceber e da estrutura do objeto
percebe as características comuns externo.
(semelhança, diferença e ser), estes
objetos são apreendidos diretamente Quando um olho e algo outro
pela mente. Já que o conhecimento comensurável a ele estão em um
mesmo campo, dão nascimento à
envolve a apreensão de
brancura juntamente com sua
características comuns, não pode ser percepção cognata, que não teria
percepção. Todo este argumento, ocorrido se um deles não tivesse
porém, depende da tese feita acima encontrado o outro (...) O olho, então,
que restringe cada sentido, e daqui a
percepção em geral, aos objetos que se toma preenchido de visão e
não são acessíveis por mais do que um agora vê, tornando-se não visão,
sentido. O desafio para nós é mas um olho que vê; ao passo

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que o outro pai da cor é quadro heraclíteo da segunda parte


preenchido de brancura e se do Teeteto (151d7-183a7), esta
torna não brancura, mas uma descrição da percepção tem por
coisa branca, seja um graveto, consequência que os objetos
uma pedra ou o que mais possa fenomenais são totalmente instáveis,
estar assim colorido. (156d3- pois ambos, o órgão e o objeto
e7). externo, estão constantemente
mudando em um universo heraclíteo.
O objeto de percepção é um Donde resulta que a coisa branca é
objeto fenomenal: ele é criado por totalmente efêmera. A mesma teoria
meio da interação do órgão de da percepção, todavia, em um
sensação e do objeto externo. Uma universo não heraclíteo, em que o
passagem posterior reafirma a identi- órgão e o objeto externo fossem
ficação de um sentido com a razoavelmente estáveis, produziria
capacidade de um órgão corpóreo objetos fenomenais que seriam
específico (185c3-el). Tomando também razoavelmente estáveis.
ambas as passagens em conjunto,
temos a justificação necessária para a A percepção é identificada pela
tese que nenhum sentido pode mente que apreende as
apreender o objeto de um outro características sensíveis por meio das
sentido. A interação que ocorre entre faculdades corpóreas em 184b8-
um órgão específico, por exemplo: 186el0. Incluída na percepção está
um olho, e um objeto externo, por não somente a recepção passiva dos
exemplo: uma pedra, devesse ela sensíveis, mas também a investigação
ocorrer em um órgão diferente por ativa das características sensíveis pela
meio de meios diferentes, seria uma mente. Quando perguntado sobre
interação diferente. De modo através de que a mente iria pensar a
decisivo, o produto da interação seria salinidade da cor e do som, Teeteto
um objeto fenomenal diferente, por responde que, caso fosse possível à
exemplo: uma coisa dura. As mente decidir a questão se uma cor
características de um objeto de ou um som é salgado, ela o faria
sensação refletem seu através da faculdade da língua. Juízos
“apadrinhamento”. simples da forma X é S, quando S é
uma característica sensível, por
Tal como é desenvolvida no exemplo: salinidade, são feitos pela

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percepção. Porém, qual é, então, a envolvido na percepção no Timeu. Ela


diferença entre os juízos desta forma também explica as reservas de Timeu
e o conhecimento? A diferença, quanto às teorias dos objetos físicos.
segundo Sócrates, é que o O objeto-como-percebido é acessível
conhecimento requer a apreensão de pela percepção, mas o objeto-como-
certas características comuns, a percebido é um produto da interação
saber: verdade e ousia (ser). A mente entre o sentido e o objeto ex- temo.
apreende estas características depois Não temos acesso direto aos objetos
de um longo e árduo esforço de físicos. No Timeu, as características
raciocínio sobre elas e ao pensar sensíveis dos objetos são analisadas
sobre elas sobre a relação de uma em termos de suas estruturas
com a outra durante o tempo (186b6- geométricas subjacentes. Porém,
d5). Apreender a ousia de X consiste Timeu é cauteloso ao apresentar suas
em apreender X incrustado no descobertas e lembra à sua audiência
contexto ontológico e causai maior que a exposição é somente provável.
que fornece uma compreensão O Teeteto nos dá uma exposição da
inteiramente adequada de X. O juízo percepção que permite que quem
de percepção simples, “isto é percebe apreenda os objetos
salgado”, não é conhecimento porque fenomenais de um modo que forneça
não tem por tema o caráter do item informação confiável sobre o mundo
salgado. Para o conhecimento, é como percebido, mas, mesmo assim,
exigida uma recognição não fica aquém do conhecimento.
perceptiva que o juízo de percepção é
a respeito de uma característica O SOFISTA
fenomenal. Diferentemente da
percepção de uma característica A percepção como tal apenas é
sensível, o conhecimento não mencionada no Sofista. Na batalha
permitiria que seu possuidor entre os amigos das Formas e os
confundisse o objeto fenomenal com Gigantes, os antagonistas demarcam
um objeto que tem estabilidade posições que incluem atitudes
intrínseca, a Forma. diametralmente opostas em relação
ao visível e ao tangível (246a7-249d4).
A exposição do Teeteto da Os amigos das Formas relegam as
percepção é compatível com a percepções ao domínio do vir-a-ser
descrição do processo causai em contraste com o do ser. Os

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Gigantes insistem que nada é a não como apreendido na percepção uma


ser o que possui tangibilidade. O legitimidade epistêmica. Esta
Estrangeiro argumenta que nenhuma possibilidade não é explorada no
das posições pode ser defendida e diálogo, mas, mesmo assim, é
que, além do ser, o filósofo deve importante. A explicação causai da
abarcar o imutável e o mutável percepção no Timeu faz do caráter da
(251d5-254d5). Já que a natureza percepção uma consequência das
mutável dos objetos físicos e formas elementares que a causam.
perceptíveis foi a razão precípua para Esta explicação poderia ser
rejeitar a evidência dos sentidos em desenvolvida à luz do Sofista de um
outros contextos, tornar a mudança modo que tornasse os conteúdos das
ontologicamente respeitável parece percepções semelhanças, antes que
fazer com que a percepção seja meras aparências. Sob estas
epistemicamente respeitável. condições, as percepções
forneceriam uma informação acurada
Ao longo de toda a discussão da sobre objetos estáveis, cujas
sofistica, as noções de semelhança e características seriam especulares às
de tornar-semelhante têm lugar realidades (Formas).
proeminente. Uma distinção
complementar é feita entre uma O FILEBO
semelhança (eikori) que mantém as
proporções verdadeiras e um outro O prazer, não a percepção, é o tópico
tipo de semelhança, uma aparência em análise no Filebo, mas bastante é
(phantasma), que não as mantém, e dito acerca da percepção ao longo da
entre tomar-semelhante e tornar- discussão (ver o capítulo Platão e o
aparente (235c8-236c7, 266d2-e4). Prazer como o Bem Humano).
Os elementos, os animais e outros Prazeres e dores têm conteúdo
coros naturais foram criados pela arte cognitivo; a percepção é a fonte deste
divina e são semelhanças. A sofistica conteúdo. Sócrates descreve um tipo
produz aparências em palavras. A de prazer que pertence à alma. Este
diferença entre a arte divina e a tipo de prazer depende da memória,
humana e a existência de cópias que que, por sua vez, é definida em
mantêm as proporções verdadeiras termos de percepção. A percepção é
de seus originais forneceriam uma o movimento que ocorre quando a
base para atribuir ao mundo físico alma e o corpo são afetados

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conjuntamente (34a3-5). A memória informação a que tem acesso quem


é a preservação da percepção. Em percebe para uso presente ou futuro.
ocasiões particulares, a memória e a Convém notar que este processo,
percepção inscrevem palavras quando tudo funciona bem, faz com
(logous) em nossa alma (39al-7). que a percepção seja uma fonte de
Ademais, as experiências perceptivas informação completamente
também frequentemente dão origem confiável.
a quadros que correspondem às
inscrições verbais. Sócrates explica No Filebo, a percepção é definida
como isso ocorre: “uma pessoa faz de um modo que cobre a consciência
seus juízos e asserções diretamente dos estados internos, bem como a
da vista ou de um outro sentido e percepção pelos sentidos. Não
então vê nele as imagens desses somente a alma tem consciência de
juízos e asserções” (39b9-c2; trad. seus próprios prazeres e dores, mas
Frede). As inscrições e os quadros ela é também consciente dos prazeres
associados são verdadeiros se dão e dores do corpo. Em consequência,
uma exposição correta; falsas, se não. uma pessoa por vezes experimenta
Esta é uma exposição complexa e um prazer psíquico que se opõe a uma
provocativa da vida cognitiva dor corpórea e uma dor psíquica que
humana. Ela entrevê a transformação se opõe a um prazer corpóreo (41dl-
da informação perceptiva em uma 3). Assim como a distância relativa
forma verbal, assim como a retenção dos objetos quanto aos olhos distorce
de características sensíveis. As nossa percepção de seu tamanho
últimas espelham as características da real, assim também a proximidade
percepção original. Um quadro mais relativa temporal dos prazeres e
simples não entreveria nem um dores distorce nossa percepção deles
escritor interno nem um pintor (41e2-42c2; cf. Prt. 356a3-357b2). Em
interno. A função do escritor e do ambos os casos, é possível, para quem
pintor consiste em transferir a percebe com atenção, distinguir entre
informação perceptiva que entra para aparência e realidade. O que
outros meios com vistas à sua distingue um falso prazer de um
conservação na alma. As percepções verdadeiro é uma percepção acurada
redundam espontaneamente em de seu conteúdo. Sócrates faz apelo a
juízos e imagens internas. Isto este quadro para argumentar contra a
maximiza as quantidades e os tipos de restrição de Protarco da verdade e

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falsidade à crença (doxa). Os prazeres um estado de ser capaz de discernir os


falsos são ditos ser imitações ridículas corpos (411c9); a percepção, como
dos prazeres verdadeiros (40c4-6). um movimento da alma pelo corpo
Aqui, a distinção platônica familiar (414c5-7). Em ambas as obras
entre aparência e realidade, que por encontramos a suposição que as
vezes parece separar a percepção da percepções são frequentemente
intelecção, é aplicada às percepções verídicas.
de prazeres e dores, bem como a
juízos. Algumas percepções são UMA VISÃO GERAL
corretas e nos dão informação acerca
das realidades; algumas não o são e Nosso exame dos diálogos revelou
nos apresentam somente aparências certos temas consistentes no modo
enganadoras. de Platão tratar a percepção, tanto
nas poucas discussões explícitas
A SÉTIMA CARTA E AS DEFINIÇÕES quanto nas suposições, implícitas e
explícitas, feitas sobre a percepção.
A autoria da Sétima Carta é objeto de Uma característica constante é a
disputa e as Definições são sem identificação da percepção com uma
dúvida um manual platônico que não atividade psíco-física na qual
foi escrito por Platão (ver o capítulo A alterações no corpo são comunicadas
Vida de Platão de Atenas). Contudo, já à alma. Esta atividade é o resultado do
que a percepção é discutida em impacto do mundo externo no corpo
ambas as obras, uma rápida olhada de vários modos. Em alguns casos, por
nestas passagens parece exemplo: audição, o corpo é
conveniente. O autor da Sétima Carta basicamente passivo enquanto sofre
defende a importância de uma a ação do mundo; em outros, o corpo
tradição oral, na qual o método contribui com as condições que
filosófico preferido é o da discussão tornam possível a percepção; por
dialética. É “somente quando nomes, exemplo: o raio visual enviado pelo
definições, percepções visuais e olho. Tipicamente, a sequência causai
outras são friccionadas umas às começa no mundo externo quando
outras” e postas a teste em discussão um objeto ou evento atua no órgão de
que a natureza de algo pode ser sentido e o movimento no órgão é
compreendida (344b 1-cl). Nas então comunicado à alma. Uma
Definições, a visão é definida como sequência similar de eventos ocorre

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internamente no caso da consciência que apenas ter recebido uma


das sensações corpóreas; por informação de outros acerca dos
exemplo: a consciência de uma dor de mesmos eventos e objetos. Perceber
dente ou de uma dor nas costas. o mundo diretamente pelos sentidos
é um pré-requisito para estar na
Outra característica comum é a melhor posição epistêmica que se
concepção de Platão de uma pode estar com relação aos objetos
faculdade cognitiva. Todas as físicos.
faculdades cognitivas, perceptivas e
intelectuais, são distinguidas por seus Outras características da
objetos (ver o capítulo A Alma percepção, todavia, parecem mudar
Platônica). A visão é distinta da de um diálogo para outro. Isto é
audição porque a cor é distinta do especialmente verdadeiro do valor
som. Os objetos que percebemos não atribuído às apreensões cognitivas
possuem a estabilidade inerente que dos objetos físicos por meio da
caracteriza os objetos de percepção e a questão conexa de
pensamento. Dado que o objeto- saber se a informação que é
como-percebido é uma consequência apresentada pela percepção pode ser-
de uma interação entre quem vir como base para as crenças
percebe e o objeto externo, o objeto- verdadeiras. A tese do Fédon que a
como-percebido partilha de muitas alma é sempre enganada quando se
características do objeto externo que baseia no corpo contrasta com a
causa a percepção. O objeto-como- aceitação do Filebo da percepção
percebido é tão estável ou instável como uma fonte da opinião
quanto sua causa. verdadeira.

Na República e em outros Há várias estratégias para resolver


diálogos do período médio, a estas tensões (ver o capítulo
apreensão direta de um objeto – Interpretando Platão). Em uma linha
como se dá na visão – é o modelo para plausível, as teses de Platão sobre a
a apreensão intelectual bem- percepção evoluem. Elas evoluem de
sucedida. Ademais, de acordo com uma aceitação bastante acrítica da
Platão, na aquisição da informação percepção sensível nos diálogos
sobre o mundo, é sempre melhor socráticos para um desencantamento
epistemicamente ter percebido do considerável com sua capacidade de

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fornecer algo com algum valor Platão se volta às condições do


epistêmico no início do período conhecimento, ele enfatiza a
médio, e daí a uma aceitação mais importância das apreensões que são
nuançada de sua capacidade crítica integradas em uma rede de crenças
nos últimos diálogos. Há também a verdadeiras consistentes. Desta
alternativa que não supõe nenhuma perspectiva, o conhecimento de
ordem dos diálogos, ao mesmo tempo perceptíveis é possível, embora as
em que atribui uma visão coerente a percepções ainda não sejam
Platão. Platão enfatiza diferentes instâncias de conhecimento. Em
aspectos de uma explicação matizada ambas as leituras, a opinião
da percepção em todos os seus verdadeira e mesmo a opinião
diálogos. Ele sempre quer atribuir um verdadeira justificada em nosso
papel para a percepção como uma sentido, mas não no sentido de Platão,
fonte confiável de informação sobre o pode basear-se na percepção e o é
mundo físico. Uma razão de por que frequentemente.
não se pode confiar nas percepções
para apreender firmemente verdades Uma questão intimamente ligada
inalteráveis é que os objetos a estas é a da diferença entre
apresentados na percepção são sem- percepção e conhecimento.
pre de um modo instáveis. Este pecha Percepções por vezes fornecem
se en- raíza na natureza dos corpos e informação enganadora; o
no mundo físico. O aparente ceticismo conhecimento nunca o faz, mas o que
de Platão acerca dos sentidos é distingue a percepção verdadeira de
comandado por seu ceticismo acerca um caso de conhecimento? Em muitas
dos objetos físicos. Não é que o passagens, o conhecimento é descrito
caráter dos sentidos é tal que não em termos de uma apreensão
podemos conhecer os objetos físicos imediata de um objeto. Assim
pelos sentidos; antes, é que o caráter descrito, o conhecimento é muito
dos objetos físicos é tal que não os parecido com uma instância de
podemos conhecer completamente. percepção de um tipo especial de
Assim, a fim de apreender objetos que objeto. O amante do Belo-em-si
são inteiramente inteligíveis, o parece estar na mesma relação
intelecto deve separar-se a si mesmo cognitiva ao Belo-em-si em que está o
da apresentação dos objetos físicos amante das coisas belas, quando ele
pela percepção. Quando a atenção de vislumbra um belo corpo. A diferença,

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como desenvolvida por Sócrates na estão além da apreensão da


República V (474d3-480al3) se dá percepção.
puramente em termos das
características do Belo-em-si, sua Pusemo-nos a investigar as teses
natureza imutável, seu ser de Platão sobre a natureza da
essencialmente belo em todos os percepção. Perguntamo-nos se Platão
aspectos. Contudo, como Sócrates se aceitava que a percepção tivesse um
apressa em tornar claro na discussão papel na aquisição das crenças
da linha dividida, os objetos do verdadeiras. Está agora claro que
conhecimento e as Formas estão chegou o momento para uma
interligados. Temos conhecimento resposta afirmativa a esta questão.
quando apreendemos uma inteira Platão aceita que percepções
rede conceituai e possuímos uma constituam crenças verdadeiras, mas
quantidade de proposições ele não permite que a percepção por
verdadeiras interconectadas. Esta si mesma redunde diretamente em
concepção do conhecimento e do juízos sobre a verdade destas crenças.
entendimento fica bem evidente nas Isto é uma posição matizada que não
obras posteriores, como o Teeteto e o se ajusta particularmente bem como
Sofista. Se o conhecimento não é o uso moderno padrão de
simplesmente a apreensão imediata, “verdadeiro”. Talvez o melhor modo
do tipo da percepção, de objetos de exprimir a posição de Platão em
independentes do tipo certo, a saber: termos familiares seja dizer que as
as Formas, então a percepção, ainda percepções podem constituir crenças
que seja imediata, fornece no melhor verídicas, que são verdadeiras no
dos casos um vislumbre acurado, mas sentido em que apreendem
sempre ficará aquém do corretamente o objeto percebido,
conhecimento. O conhecimento mas as crenças perceptivas
requer uma compreensão verdadeiras não satisfazem os
contextualizada, baseada na critérios de Platão para a justificação.
apreensão de todos os conceitos Uma crença verdadeira justificada, de
relevantes. A avaliação da verdade de acordo com Platão, requer um
um juízo de percepção requer que a entendimento completo do
mente coloque o juízo de percepção fenômeno em questão. Esta é a força
em uma rede de crenças, algumas das da afirmação no Teeteto que a
quais empregando conceitos que percepção não pode fazer juízos sobre

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a verdade (186b-d). Isto pode and knowledge: Theaetetus 184-186.


também explicar aquelas afirmações Phronesis 15, pp. 123-46.
ocasionais, espalhadas ao longo de Fine, G. (1990). Knowledge and belief in
todo o corpus platônico, que parecem Republic V-VII. In S. Everson (ed.) Companions
to Anríent Thought, vol. I: Epistemology (pp.
exprimir um forte ceticismo acerca da
85-115). Cambridge: Cambridge University
confiabilidade da percepção. Como Press.
vimos, mesmo nos diálogos nos quais
Frede, M. (1987). Observations on perception
se encontram estas afirmações, in Plato’s later dialogues. In Essays in Ancient
outras descrições da percepção traem Philosophy (pp. 3-8). Minneapolis: University
uma condenação forte da percepção e of Minneapolis.
sugerem que a percepção é confiável Holland, A. (1973). An argument in Plato’s
com respeito a um certo tipo de Theaetetus: 184-186. Philosophical Quarterly
objetos. A despeito de nossas 23, pp. 97-116.
inquietudes iniciais, como se mostra Kanayama, Y. (1987). Perceiving, considering,
agora, Platão tem de fato uma and attaining being (Theaetetus 184-186).
explicação interessante e coerente da Oxford Studies in Anríent Philosophy 5, pp. 29-
percepção como um poder cognitivo 82.
completo. Modrak, D. K. (1981). Perception
andjudgment in the Theaetetus. Phronesis 26,
pp. 35-54. Nakhnikian, G. (1955). Plato’s
NOTA
theoiy of sensation. Review of Metaphysics 9,
pp. 129-48, 306-27.
Todas as traduções são da autora, a menos
que haja indicação em contrário. Schipper, E. (1961). Perceptual judgments
and particulars in Plato’s later philosophy.
Phronesis 6, pp. 102-9.
REFERÊNCIAS E LEITURA
COMPLEMENTAR Hirnbull, R. (1978). The role of the “Special
Sensibles” in the perception theories of Plato
Bedu-Addo, J. (1991). Sense-experience and and Aristotle. In R Machamer and R. Tumbull
the argument for recoUection in Plato’s (eds.) Studies in Perception (pp. 3-26).
Phaedo. Phronesis 36, pp. 27-60. Columbus: Ohio State University Press.

Bondeson, W. (1969). Perception, true


opinion and knowledge in Plato’s Theaetetus.
Phronesis 14, pp. 111-22.
Bumyeat, M. (1976). Plato on the grammar of
perceiving. Classical Quarterly 70, pp. 29-51.
Cooper, J. (1970). Plato on sense-perception

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O conhecimento e as formas em entender o que é requerido para que


Platão um contexto se apresente como
propriamente epistemológico em
MICHAEL FEREJOHN caráter (ver Benson, 2000, p. 3-10
para uma excelente defesa de uma
GRAUS DE ENVOLVIMENTO resposta categórica afirmativa).
EPISTEMOLÓGICO Começando pela observação simples
que a epistemologia moderna tem seu
Historiadores da tradição filosófica nome proveniente do verbo grego
ocidental estão em geral de acordo antigo epistamai e do nome dele
que as raízes da epistemologia não derivado epistêmê, para estabelecer
vão para além dos diálogos um ponto de comparação devemos
platônicos. Isto, porém, dá origem à concordar que a competência lin-
questão mais precisa de quando güística básica no uso destas
exatamente e como este campo de expressões e de outras sinônimas não
estudo surgiu no interior deste grande faz por si mesma que alguém seja um
corpo de obras. Mais epistemólogo, assim como
especificamente, segundo a
interpretação “desenvolvimentista” que a habilidade em usar o termo
comum dos diálogos como “pássaro” de modo competente não
representando estágios progressivos torna alguém um omitólogo.
do pensamento de Platão, uma Devemos, portanto, isolar um
questão que naturalmente surge é se conjunto de aplicações que possam
os primeiros diálogos de Platão, ou ser denominadas “primordiais” ou
“socráticos”, contêm contextos que “refletidas” porque se apoiam em
podem ser tidos com plausibi- lidade razões que invocam condições
como epistemológicos à luz moderna supostamente necessárias no seu uso
(ver o capítulo Interpretando Platão). correto. Nesta concepção mínima, o
caráter de Sócrates nos primeiros
Como frequentemente ocorre diálogos de Platão seria classificado
com questões históricas de como o de um epistemólogo, visto
classificação deste tipo, a resposta que é muito comum nestas obras vê-
deve tomar a forma de um conjunto lo concluir que as outras pessoas ao
de condições especificando os dife- seu redor fracassam em certos testes
rentes modos possíveis de se da posse de conhecimento genuíno

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que ele aplica. desenvolver um conjunto de


condições necessárias e suficientes
Porém, obviamente, nem todas as ra- para a posse do conhecimento e,
zões que alguém oferece para aplicar assim, não se pode dizer que
ou recusar um termo não são contenham uma análise do conhe-
igualmente boas e, dado que a cimento (ver o capítulo Definições
epistemologia é essencialmente um Platônicas e Formas). Ademais, visto
empreendimento filosófico, seria que Sócrates não oferece nenhuma
talvez indevidamente generoso análise do conhecimento nos
admitir em seu domínio a invocação primeiros diálogos, ele não está em
de razões más ou irrelevantes, como posição de empreender o aspecto
as baseadas em reações subjetivas ou mais reconhecível da epistemologia
apelos à autoridade infundada. Para moderna, a avaliação comparativa de
os excluir, devemos fortalecer nossa análises diferentes em competição.
concepção de epistemologia exigindo Na seção seguinte, vou dar uma
que as razões dadas sejam as explicação de como, durante o curso
filosóficas que têm alguma conexão da carreira filosófica de Platão, as
objetiva com as condições que se atividades teóricas mais afeitas à
esperaria com razoabilidade que todo epistemologia moderna surgem a
aquele que possui um conhecimento partir de inícios socráticos
genuíno pudesse satisfazer. Como se relativamente modestos. Depois
verá, a concepção mais forte de disso, vou considerar como a
epistemologia gerada por esta epistemologia de Platão se
qualificação também é detectada nos desenvolveu subsequentemente e se
primeiros diálogos platônicos. Esta, alterou nos períodos médio e tardio.
porém, penso, é a concepção mais
forte que se pode encontrar nestas O PROGRAMA SOCRÁTICO
obras e está aquém da epistemologia DE CERTIFICAÇÃO
como é atualmente
Na maior parte dos comentários, as
discussões socráticas representadas
nos primeiros diálogos platônicos
praticada. Para começar, os primeiros dedicam-se quase inteiramente às
diálogos mostram que não há questões práticas éticas de iden-
nenhuma preocupação em tificar, adotar e promover a melhor

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forma possível de vida humana, isto é, assunto, nem grande nem pequeno”
a mais virtuosa. O problema, contudo, (21bl-5). Contudo, reconhecendo que
é que Sócrates reconhece que não os pronunciamentos do oráculo não
falta em Atenas quem, por si mesmo podem ser falsos, ele se põe a
ou por outros, pense que possui investigar este enigma procurando
competência suficiente para falar indivíduos na cidade reputados pela
com autoridade nestes assuntos. Seu sabedoria e os interrogando para
projeto principal, então, consiste em determinar se, per impossibile, eram
encontrar modos de distinguir com realmente sábios e o oráculo estava
eficiência entre a competência moral errado ou se não tinham a sabedoria
genuína – a pessoa autenticamente que pensavam possuir.
sábia, cujo conselho em matéria
prática deve ser seguido – e os vários Dada a infalibilidade
pretendentes a esta posição. inquestionável do oráculo, o
resultado da investigação de Sócrates
Ao se dedicar a esta tarefa, muito é inteiramente previsível: ele nos diz
naturalmente Sócrates se põe a que cada um dele se revelava, após o
formular condições necessárias, ou exame, não ser realmente sábio. Uma
testes, para a posse de competência das coisas mais importantes destas
genuína em qualquer campo. passagens, todavia, é o quão pouco
Todavia, em muitos casos os testes aprendemos por elas acerca das
empregados de fato neste “programa razões de Sócrates para estas
conclusões negativas. Para dar
de certificação” socrático ficam quase somente um exemplo representativo,
inteiramente sem relato. Talvez o no caso de um Político não nomeado
mais antigo texto relevante seja Ap. que ele interroga, Sócrates diz
20e8-21d7, uma passagem bem somente, em 21c5-8, que, após “ter
conhecida em que Sócrates descreve conversado com ele” (dialego- menos
sua reação ao lhe dizerem o pro- auto(i)), concluiu que este homem
nunciamento do oráculo de Delfos parecia sábio, mas não era realmente
que “ninguém é mais sábio que sábio (einai d’ ou). Sócrates, porém,
Sócrates”. De acordo com Sócrates, não nos diz o que aconteceu durante
ele fica inicialmente intrigado por esta “conversa” para lhe dar esta
este dito, visto que pensa que ele impressão. Assim, ainda que estas
próprio “não é sábio em nenhum passagens na Apologia tornem

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suficientemente claro que Sócrates pode autenticar sua pretensão de co-


está aplicando certos testes (e, nhecimento ao produzir o tipo
portanto, pressupondo certas apropriado de explicação (logos)
condições necessárias) para a posse pedida. Todavia, como aparece nos
do conhecimento e da sabedoria, elas primeiros diálogos, o requerimento é
simplesmente não contêm de fato bastante amorfo e é eviden-
informação suficiente sobre o que temente entendido por Sócrates e por
transparece nestas interrogações de seus interlocutores de modo muito
modo a revelar algo substancial diferente em diferentes contextos.
acerca da natureza ou do conteúdo
destes testes. Felizmente, passagens Para começar, o que chamarei
em alguns dos outros primeiros “requerimento de explicação” é por
diálogos fornecem vezes posto em operação em
consideravelmente mais informação passagens nas quais o projeto
sobre este sujeito. socrático de certificação ganha um
tom muito claramente ad hominem.
Nestes lugares, Sócrates parece estar
muito mais preocupado em tentar
O REQUERIMENTO DE determinar se alguém reputadamente
EXPLICAÇÃO GERAL sábia que está à sua frente é um
entendedor genuíno do que em deci-
Talvez o mais comum e mais dir diretamente sobre uma pretensão
conhecido dos testes de Sócrates seja particular de conhecimento que seu
um produto de sua tendência bem interlocutor faz durante o curso da
documentada de considerar as interrogação. (Talvez Sócrates pense
“artes” (technai), como medicina e que os pronunciamentos de um
navegação, como fornecendo os entendedor certificado possam em
exemplos mais claros de competência geral ser aceitos como confiáveis. Tal
genuína. Uma ramificação atitude autoritária em questões éticas
particularmente potente deste parece inteiramente não socrática,
“modelo-das-artes” de conhecimento mas talvez esteja sugerida em Cri.
é uma visão crucial que termina por ir 47al2-d5.) Uma descrição
no coração da epistemologia particularmente vivida disso é dada
platônica (e aristotélica) adentro, a em La. 187e6-188a2, quando Nícias
saber, que um entendedor de fato descreve o que ele pensa ser o efeito

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inevitável de uma exposição seu programa de certificação de um


prolongada ao questionamento modo muito mais “impessoal” e
socrático: parece perguntar que condições
qualquer um teria de satisfazer para
Quem quer que se aproxime de constar como alguém que conhece
Sócrates e converse com ele... um dado assunto. Isso é tipicamente
não será capaz de parar até ser feito por meio do uso de pronomes na
levado a dar uma explicação de primeira pessoa do plural. Por
si próprio, do modo como exemplo, quando Sócrates dá início
atualmente ao seu procedimento de certificação
em La. 186a2-b5, ele se inclui de
passa os dias e do tipo de vida modo aberto entre os que devem ser
que tem vivido. testados pela competência no tema
de identificar e aportar coragem –
Nesta e em outras passagens embora nunca tivesse reivindicado
similares, o procedimento de competência alguma neste campo.
certificação de Sócrates parece Similarmente, bem no final da
basear-se em uma ideia bastante sol- República I (que eu considero um
ta que um entendedor verdadeiro contexto “socrático”; ver Irwin, 1995,
deve ser capaz de responder inteira e p. 376 n. 1), em 354al2-c3, Sócrates
honestamente ao questionamento de apostrofa todos – novamente,
Sócrates sem cair em inconsistências incluindo-se a si mesmo – por
doutrinais ou em outros tipos de tentarem dizer coisas sobre a justiça
incongruências “práticas”. Porém, sem ter antes descoberto o que é a
estas passagens nada nos dizem justiça.
acerca da forma que deve tomar uma
tal “explicação de si mesmo” e, deste Penso que essa “despersonalização”
modo, não constituem muito avanço dos testes socráticos de competência
em relação às passagens da Apologia é um dos dois fatores cruciais que
discutidas antes. contribuem ao desenvolvimento da
epistemologia platônica posterior,
Além destes contextos ad pois, enquanto sugeri anteriormente
hominem, os primeiros diálogos que, em sua forma ad hominem, o
também possuem outras passagens requerimento de explicação no fundo
nas quais Sócrates parece conceber é um teste vago de “sobrevivência

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elêntica” (por um período de tempo plausivelmente ser pensado como


não especificado) nas idas e vindas da provindo do que se poderia razoa-
interrogação socrática, nos contextos velmente esperar de pessoas
“impessoais” ele adquire genuinamente competentes. Uma
destas variantes é que competentes
genuínos saberão – e serão capazes
de exprimir – o que é o tema de sua
formas comparativamente competência. No que descrevi como
específicas e precisas muito mais em contextos ad hominem, o
linha com o que pode razoavelmente requerimento talvez redunde em
ser visto como as condições pouco mais do que o truísmo que,
filosóficas plausíveis da posse de para falar com conhecimento, você
conhecimento genuíno (ver o deve conhecer aquilo sobre o qual
capítulo O Elenchus Socrático). está falando. Esta parece ser a atitude
de Sócrates em Euthphr. 4e3-8,
RELATOS DE DEFINIÇÃO E quando reage com incredulidade ao
RELATOS EXPLICATIVOS anúncio presunçoso de seu inter-
locutor que pretende acusar seu
Há, contudo, uma complicação próprio pai de assassinato com base
adicional que deve agora ser em dados factuais questionáveis:
acrescentada às atas. Nesta seção,
pretendo mostrar que, em diferentes Em nome de Zeus, Eutifro, você
contextos de certificação pensa que seu conhecimento
“impessoais” nos primeiros diálogos, das Leis divinas, da piedade e da
o requerimento de explicação geral impiedade é tão exato que, os
recebe duas especificações distintas. fatos sendo como você
Como veremos, elas passam a ter um descreve, não teme cometer
papel importante, tanto algo ímpio ao acusar seu pai de
individualmente quanto em assassinato?
combinação, na epistemologia
platônica posterior. Em contraste, no que chamo con-
textos “impessoais”, o requerimento
Cada um destes dois modos é
diferentes de compreender o
requerimento de explicação poderia aparentemente apresentado como

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um princípio metodológico que se associa naturalmente a uma


determina a ordem própria das competência genuína. Neste caso, a
investigações socráticas (ver Benson, ideia principal é que pessoas
2000, p. caps. 5-7). Este assim verdadeiramente competentes não
chamado princípio de “prioridade da fazem repousar suas crenças e
definição” está operando, por decisões meramente em sua
exemplo, em La. 190b7-c2, quando autoridade presumida; ao invés disso,
Sócrates insiste que não será possível elas estão prontas a apoiar seus juízos
falar com conhecimento acerca do com explicações de sua correção. Para
melhor modo de adquirir a virtude a dizer em termos aristotélicos
menos que primeiramente saibamos posteriores, pessoas verdadei-
“o que é a virtude” (ti estin pote areie) ramente competentes conhecem (e
(ver o capítulo A Ignorância podem mostrar) não somente que
Socrático). Similarmente, na certas coisas são assim, mas também
República I, em 354b 1-cl, ele declara por que elas são assim (Apo. I.2.71b9-
que foi um erro tentar descobrir fatos 16). Ocorre que a evidência textual
acerca da justiça antes de determinar para esta segunda variante do re-
“o que é a justiça” (to dikaion ho ti querimento de explicação é menos
pot’estiri). Porém, estas diferenças direta, já que Sócrates nunca a
postas de lado, é razoavelmente claro formula explicitamente nestas obras,
que em ambos os tipos de contextos mas creio que é decisiva. As
Sócrates compreende o passagens-chave são aquelas nas
requerimento de explicação como o quais Sócrates detalha seu pedido
pedido razoável de propor e defender para que pessoas reputadamente
uma resposta satisfatória à questão competentes proponham (e
“o que é X?” Nesta especificação, o defendam) relatos definicionais dos
tipo de explicação que Sócrates pede temas sobre os quais são tidos como
de alguém reputado competente é autoridades.
um relato definicional – isto é, uma
definição – do tema da alegada
competência.
Por exemplo, em Euthpht. 6d9-el, logo
A segunda variante do após ter pedido a Eutifro para lhe
requerimento de explicação socrático dizer “o que é a piedade”, Sócrates
provém também das capacidades que expande este pedido da seguinte

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maneira: “pedi-lhe para me dizer... “lógicas”.)


aquela forma essencial graças à qual
(hô(i)) todas as coisas pias são pias”. PERSPECTIVAS CRÔNICAS
E EPISÓDICAS SOBRE O
Ao usar uma linguagem causai CONHECIMENTO
aqui e em passagens paralelas (ver as
ocorrências de dia ao longo de Se, como acabei de argumentar,
Euthphr. 9e-llb e em Men. 72c8), Sócrates se baseia na variante
Sócrates não pode estar explicativa do requerimento de
comprometendo-se com a opinião explicação nos primeiros diálogos,
excêntrica que a “forma essencial” da pode-se perguntar por que ele nunca
piedade literalmente causa uma a formula explicitamente nestas
pessoa ou um ato ser pio. Em função obras, como o faz com a versão da
de seu interesse central na aquisição definição. A explicação, sugiro, é que
da virtude, ele está seguramente só no Mênon o programa socrático de
consciente que fatores como certificação passa por uma segunda
formação e treinamento são o que transformação-chave, que pode ser
têm estes papéis causais. A caridade vista como uma extensão natural da
interpretativa recomenda, portanto, “des- personalização” discutida
que interpretemos estas passagens anteriormente, sem a qual, porém, o
não como dizendo respeito à papel dos relatos
responsabilidade causai, mas à
prioridade explicativa, e que ele “explicativos” permanece
espera que a resposta correta à sua parcialmente obscurecido.
questão “o que é a piedade” explicará
por que certos atos ou pessoas são Em diálogos jovens como o Íon e
propriamente classificados como o Laques, Sócrates tinha explorado a
pios. Fornecerá, em outras palavras, questão de quais características
razões “logicamente suficientes”, mas permanentes uma pessoa
não que “necessitam cau- salmente”, supostamente competente devia
para que algo seja pio. (Observe que a possuir para ser considerada como
expressão “logicamente suficiente” é genuinamente competente. Em
usada aqui e infra no sentido largo de contraste, na última parte do Mênon,
incluir implicações “analíticas”, bem Sócrates começa a pôr o foco mais
como implicações estritamente estritamente na questão de que

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Hugh H. PLATÃO
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condições devem ocorrer para que permanecem (paramenei); ao


uma pessoa – em uma dada ocasião – contrário, tendem a “fugir”
seja dita possuir conhecimento, em (apodidraskei) e, portanto, “não são
oposição a meramente ter uma de muito valor” (ou pollou axiai eisiri).
crença verdadeira. Esta perspectiva Em contraste, declara ele, o
episódica aparece de súbito em 96d5- conhecimento genuíno seria análogo
97c2, quando Sócrates põe em dúvida a tal estátua que teria sido “amar-
sua conclusão anterior que a virtude – rada” e, portanto, não se mexe. Ele
considerada como uma condição então se alonga nesta “amarra”
psicológica crônica – deveria ser metafórica fazendo uma conexão
classificada como “um tipo de explícita entre o conhecimento e a
conhecimento” (88d2-3). Ele agora posse de relatos “explicativos”:
argumenta que, caso se esteja “[meras] crenças verdadeiras não
simplesmente interessado, em uma valem muito, até que se as amarrem
dada ocasião, em ir de um lugar a (dêsê(i)) com ‘explicações causais’
outro, não faria nenhuma diferença, (aitias logismô(i))” (98al-4).
de um ponto de vista puramente prá-
tico, se é consultado alguém que
realmente conhece o caminho ou
alguém que meramente tem uma Sócrates aqui está claramente
opinião mal fundamentada que lidando com as condições sob as quais
ocorre ser verdadeira. alguém (na verdade, qualquer um)
pode ser tido possuir conhecimento
Contudo, assim que conclui que em uma ocasião particular. Donde a
não há diferença prática entre o razão final para a diferença na
conhecimento e a mera crença visibilidade entre as duas
verdadeira, Sócrates imediatamente compreensões do requerimento de
faz de novo uma reviravolta ao sugerir explicação de Sócrates deve agora
uma distinção conceituai entre os estar clara. Diferentemente da
dois. Ele o faz invocando a imagem variante definicional, que se liga
das estátuas de Dédalo que se movem primariamente ao sujeito
a si mesmas, às quais assemelha a cognoscente como uma condição da
crença verdadeira com base em que, competência, a variante explicativa
na medida em que não estão “amar- constitui uma condição necessária
radas” (dedemena), elas não para a atribuição de conhecimento

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em uma ocasião particular. É por isso saliente mencionada em uma forma


que não é articulada até o Mênon, característica de explicação”.)
quando Platão começa a investigar a
natureza do conhecimento a partir da Como argumentei
perspectiva episódica. anteriormente, em Euthphr. 6d9-el,
quando Sócrates descreve a essência
A AITITA FORMAL da piedade como aquilo graças ao
qual as coisas pias são pias, ele não
Na última seção, distingui está sugerindo que a posse da
cuidadosamente entre as duas essência da piedade de algum modo
variantes socráticas do requerimento induz alguém a ser pio, mas somente
de explicação geral, mas não quis que algo que satisfaz a definição
sugerir que são inteiramente
desconecta- das. De fato, bem ao de piedade deveria explicar, de um
contrário, creio que são modo muito especial, por que esta
frequentemente postas juntas nos coisa deve ser classificada como pia. É
primeiros diálogos para formar um bem documentado que Sócrates
tipo muito especial de esquema nunca descobre a correta definição de
explicativo ao qual Aristóteles piedade ou de qualquer outra virtude
posteriormente se refere em Ph. ao longo dos primeiros diálogos e,
assim, estas obras não podem
II.3 (194b24-195a3) como a “aitia apresentar casos do tipo de
formal”. (Tradicionalmente, o termo explicação que tem em mente.
aitia é traduzido por “causa”, o que dá Contudo, se aceitarmos que XYZ
a impressão enganadora que está figuram como a correta definição
limitado à noção moderna de causa (desconhecida) de piedade e que A
“eficiente”. Visto que, para Platão e denota um ato pio, penso que o tipo
Aristóteles, as aitiai são os modos de explicação que Sócrates busca
últimos de explicação, algumas pode ser representado pelo seguinte
traduções recentes fazem um uso esquema silogístico:
selvagem da conjunção “porque”
para traduzir este substantivo. XYZ = d/
Provavelmente a tradução mais fiel, Piedade AéXYZ
mas dificilmente a mais elegante,
seria algo como “a entidade mais Portanto, A é pio.

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O ponto-chave a observar é que, opinião, Sócrates não somente


enquanto este silogismo como um aceitaria esta sugestão, mas muito
todo é um relato explicativo da possivelmente veria estas explicações
piedade de A, sua premissa menor é “formais” como o único tipo
ao mesmo tempo um relato admissível de
definicional (isto é, uma definição) da
própria piedade. Em outras palavras,
a conexão entre os dois diferentes
tipos de relatos anteriormente “explicação causai” capaz de
distinguidos é que relatos transformar a mera crença verdadeira
defínicionais podem funcionar como em conhecimento. Certamente, nem
princípios explicativos no interior de os primeiros diálogos nem o Mênon
um tipo muito especial de relato contêm o menor traço dos três outros
explicativo, a saber, o tipo que modos de explicação (aitiai) distin-
Aristóteles posteriormente descreve guidos posteriormente por Aristóteles
como a “aitia formal”. (Além dos tipos em Ph. II.3. Em contraste, veremos
“eficiente” e “formal” já referidos, que, assim que Platão vai além do
esta passagem também lista dois Mênon e ao longo de seu período
outros, as aitiai assim ditas “final” e médio, seu pensamento passa por
“material”.) dois desenvolvimentos importantes.
Por um lado, o alcance das formas
Segundo meu argumento anterior, legítimas de explicação que ele
Sócrates não está em posição de considera aumenta con-
formular explicitamente a variante sideravelmente. Mas de modo ainda
explicativa do requerimento de mais significativo, ele passa a ver uma
explicação nos primeiros diálogos necessidade de suplementar sua
porque lá ele ainda não começou a teoria do conhecimento com um
pensar sobre o conhecimento da embasamento metafísico (ver o
perspectiva episódica. Dito isso, vale a capítulo Aprendendo sobre Platão
pena considerar se, em sua posição no com Aristóteles).
Mênon (depois de ter feito este
passo), ele veria retrospectivamente METAFÍSICA E EPISTEMOLOGIA
estas explicações “formais” como NA REPÚBLICA
casos do que ele chama “explicações
causais” em Men. 98al-4. Em minha A República pode certamente figurar

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sozinha como um manual clássico em acredita que tal conhecimento é


epistemologia e metafísica. Mesmo possível e aceita a visão heraclítea que
assim, as investigações de Platão falta completamente ao mundo
nestes domínios nunca são sensível este tipo de entidade, ele é
empreendidas por si mesmas, pois, levado na República VI e VII a postular
mesmo que este diálogo notável a existência de tais entidades estáveis
tocasse em tópicos em quase todas as “alhures” – em um lugar “separado”
áreas da filosofia, todas as suas do mundo apresentado pelos
doutrinas são em última instância sentidos. Não é claro se as razões de
subservientes ao seu projeto ético Platão para pensar que os objetos
central. Em particular, a ética e a sensíveis não são objetos apropriados
teoria política de Platão requerem a de conhecimento provêm do fato que
possibilidade real de uma capacidade eles estão continuamente mudando
humana excepcionalmente confiável suas propriedades ao longo do tempo
de fazer juízos éticos corretos, que po- ou se provêm de uma consideração
dem então ser utilizados no tipo muito diferente, que foi denominada
próprio de governo de um Estado “copresença de opostos”, que se pode
Político que funciona bem ou de uma mostrar que todo predicado que se
pessoa ética bem desenvolvida (ver o aplica a eles também, com igual
capítulo As Formas e as Ciências em plausibili- dade, não se aplica. (Sobre
Sócrates e Platão). A ideia inovadora isso, ver Irwin, 1995: capacidade. 10.)
da República é que, se tais juízos Parece assim que a invenção filosófica
éticos não devem ser “fugidios” ao mais conhecida de Platão – a Teoria
modo das estátuas de Dédalo, devem das Formas – foi concebida espe-
ter como objetos entidades com cificamente para esta tarefa
naturezas que sejam suficientemente epistemológica (ver o capítulo
fixas, estáveis e determinadas. Problemas para as Formas).
(Observe que Platão pode estar
jogando com a distinção entre um Uma coisa que surpreende um
estado cognitivo que é ele próprio fixo leitor atento da República já
e estável no Mênon e um estado familiarizado com a obra anterior de
cognitivo que tem um objeto com Platão é a ausência virtual do
uma natureza fixa requerimento de explicação do
conhecimento que é tão proeminente
e estável na República.) Como Platão nos primeiros diálogos e na parte final

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do Mênon. Assim, por exemplo, ao respeito primariamente a como o


apresentar sua teoria por meio da geômetra descobre seus teoremas,
famosa Alegoria da Caverna na não como ele os justifica para outros.
República VII, Sócrates não mostra
nenhum interesse em determinar se A falta virtual de interesse no
seu protagonista (um filósofo que requerimento de explicação na
adquiriu conhecimento genuíno das República pode facilmente dar a
Formas e então retornou à caverna) impressão que Platão abandonou o
poderia passar no teste socrático do projeto do Mênon de fundamentar a
conhecimento fornecendo uma distinção entre conhecimento e
explicação – de qualquer tipo – para crença formulando uma condição
seus co-habitantes não iluminados. epistemológica – a habilidade a dar o
Ele meramente diz que o filósofo, tipo certo de explicação – e decidiu,
quando habituado à caverna, dis- em seu lugar, atingir este objetivo
cernirá “infinitamente melhor” o que propondo uma distinção metafísica
se apresenta lá (520c3-6) e, portanto, entre os objetos respectivos dos dois
será mais capaz de “agir com modos de cog- nição. Isso, penso, é
sabedoria em assuntos privados e uma impressão errada provocada
públicos” (517c4-5) porque viu “a pelos contextos dramáticos dife-
causa de tudo o que é correto e belo” rentes dos diálogos em questão (ver o
(a saber, a Forma do Bem). Na verda- capítulo A Forma e os Diálogos
de, ao descrever a seção superior Platônicos).
“inteligível” da Linha Dividida na
República VI, em 510b2-d3, Sócrates Os primeiros diálogos, bem como
fala de fato de geôme- tras que o Mênon foram escritos do que
raciocinam com base em primeiros podemos chamar perspectiva
“socrática”, isto é, do ponto de vista
de um inquiridor crítico que reco-
nhece que ele próprio não possui
princípios postulados para conhecimento genuíno e então se põe
estabelecer seus teoremas. Contudo, a descobrir se alguém em seu entorno
esta passagem está repleta do idioma está em melhor posição do que ele a
de investigação (p. ex., zêtein em este respeito. Deste ponto de vista,
510b5 e skepsin em 510d2), o que alguém que genuinamente possui
sugere que esta passagem diz conhecimento deve demonstrar este

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fato a Sócrates e o requerimento de Por contraste, o que chamo


explicação é uma proposta sobre que “perspectiva socrática”, e com ela o
forma tal demonstração deve tomar. requerimento de explicação do
Por contraste, na República a figura conhecimento, é muito evidente no
de Sócrates é um teórico engajado em Fédon, a outra obra do período médio
construir um sistema filosófico no qual a Teoria das Formas está
compreensivo que dará apoio a uma explicitamente formulada e
teoria objetiva da justiça. Porém, desenvolvida com intuitos
dado que, à medida que esta teoria é epistemológicos. O objetivo central
articulada, a operação de uma de Sócrates nesta obra consiste em
faculdade cognitiva altamente estabelecer a imortalidade da alma.
confiável (o conhecimento) é tida Para fazer isso, contudo, não seria
como necessária para a possibilidade suficiente para ele determinar (ao
da justiça, requer-se de Sócrates nos modo da República) que as almas vão
diálogos médios que providencie uma se mostrar imortais em sua teoria
teoria epistemológica suplementar na proposta. Antes, ele quer mostrar que
qual as diferenças de confiabilidade elas realmente são imortais.
dos diferentes tipos de cognição Consequentemente, ele deve
estejam em última instância fundadas argumentar com base em premissas
em diferenças ontológicas entre seus verdadeiras que estão ao seu alcance
respectivos objetos. Nesta linha geral e de seus interlocutores em sua
de interpretação, condição de insciência ou do que
chamei perspectiva “socrática”. Para
a República é escrita em uma dizer a verdade, elementos da Teoria
perspectiva teórica desvinculada. Por das Formas por vezes aparecem ao
esta razão, questões “socráticas” longo destes argumentos, mas,
como “de que maneira podem os diferentemente da República, onde a
outros prisioneiros determinar se o teoria é aparentemente oferecida
filósofo que retoma conhece como uma hipótese a ser explorada,
realmente o que alega saber?” ficam Sócrates, no Fédon, tenta dar razões
foram de sua alçada. filosóficas para pensar que a teoria é
de fato verdadeira (ver especialmente
AS AITIAI SIMPLES E 72e2- 76a7; ver também o capítulo O
SUTIS NO FÉDON Método da Dialética de Platão).

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A seção relevante do Fédon é a sendo algo bom. Ele conta, porém,


longa passagem “autobiográfica” que que suas grandes esperanças
começa quando Sócrates lamenta que esvaeceram depois de ler o tratado de
sua tentativa de determinar se a alma Anaxágoras e descobrir que havia
é indestrutível foi impedida por sua somente uma defesa vazia do nous
completa ignorância das aitiai, isto é, (ao conter frequentes ocorrências do
de por que (dia ti) algo é gerado termo), mas sem fazer um uso teórico
(gignetai), é destruído (apollutai) ou de fato deste conceito em nenhuma
existe (esti) (Phd. 96a6-10, com 97b3- forma que Sócrates reconhecia (a
7). Sócrates, pois, imediatamente saber, como o repositório de crenças,
após isso, empreende um exame desejos, etc.) (ver o capítulo A Alma
crítico de vários padrões de Platônica). Era como, lamenta
explicação, o que leva a uma Sócrates, se alguém tentasse explicar
investigação por que ele está atualmente na prisão
esperando ser executado referindo-se
à estrutura e aos movimentos de seus
“ossos e articulações” (97c6-7) e, ao
sistemática dos diferentes modos proceder assim, negligenciasse as
possíveis de interpretar a expressão “causas reais” (tas hôs alêthôs aitias,
“explicação causai” (aitias logismos), 98el) de sua situação: “que pareceu
que ocorre em Men. 98al-4. Como melhor aos atenienses me condenar e
veremos, um aspecto intrigante deste que, como resultado, me pareceu
exame é que ele toca em todas as melhor sentar aqui e submeter-me à
quatro aitiai distinguidas por punição que eles ordenaram” (98e2-
Aristóteles em Ph. H.3. 5).

Sócrates começa este exame em Sócrates está aqui exprimindo


Phd. 97b8-99c6 contando um uma preferência clara e categórica
encontro juvenil com as doutrinas de pelas explicações “teleológicas” (a
Anaxágoras. Ele conta que foi “causa final” aristotélica) em termos
inicialmente encorajado por um de objetivos, intenções e similares,
relato de segunda mão segundo o contra as que fazem referência
qual este filósofo da natureza fazia somente às causas “eficientes” (a
pesado uso do conceito de mente “causa motora” de Aristóteles). Neste
(nous), que Sócrates tomou como ponto, todavia, o relato de Sócrates

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dá uma guinada surpreendente. Em Parece-me que se algo é belo


99c6-dl, ele declara abruptamente além do Belo-em-si, [esta outra
que se deu conta, em um certo coisa] é bela por nenhuma outra
momento, que suas explicações razão do que porque (dioti)
teleológicas preferidas esta- vam participa do Belo-em-si, e isso se
indisponíveis e que, portanto, se aplica a [todas as outras] coisas.
tornou necessário para ele dar início Você concorda com esta causa
ao que chama uma “segunda (tê(i) toiade aitai(i)? (100c3-8)
navegação” (deuteron plouri), uma
busca por um modo de explicação Os termos de explicação nesta
passagem sugerem uma forma de
“sucedâneo” que pelo menos esteja a explicação à qual Sócrates se refere
seu alcance. (Presumivelmente em lOOel como a “aitia segura”.
Sócrates não está aqui revertendo seu Sendo A uma coisa particular bela
juízo anterior sobre as “causas reais” qualquer, a explicação “segura” de
de sua prisão. Talvez Platão pense que sua beleza seria a seguinte.
explicações teleológicas adequadas
de fenômenos físicos seriam cognoscí- TUdo o que participa da Forma da
veis somente para uma mente divina.) Beleza é belo.

No curso de sua descrição desta A participa da Forma do Belo.


“segunda viagem”, Sócrates introduz
as Formas platônicas pela primeira Assim, A é belo.
vez em seu exame dos tipos de
explicação. Em 100bl-9, ele põe Presumivelmente, Sócrates
temporariamente de lado o modo caracteriza esta explicação como
“autobiográfico” e pede a Cébes para “segura” com base no fato que,
que ele reafirme sua primeira defesa assumindo a verdade da teoria de
da existência das Formas. Depois de Sócrates, seu explanans proverá, sem
Cébes ter feito isso, Sócrates então nenhuma exceção, as condições
pede e recebe o acordo a respeito de necessárias e suficientes para a
um aspecto de sua teoria que não verdade de seu explanandum.
tinha vindo à luz anteriormente no Contudo, o reconhecimento da parte
diálogo. de Sócrates que não pode haver
contra-exemplos ao seu esquema

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explicativo não significa que ele o somente quando as condições


julga adequado. Ao contrário, sua responsáveis pelo seu ser belo
caracterização posterior estiverem satisfeitas. Porém,
claramente isso não é nenhuma
explicação.

dele em 105b8-cl como “simplório” Na medida em que a relação de


(ama- thes), juntamente com sua participação é a contraparte platônica
proposta do que descreve em 105c2 da condição aristotélica de uma coisa
como uma alternativa “mais sutil” satisfazer uma certa definição (ou ter
(kompsoteran), fortemente sugere uma certa essência), a aitia segura do
que tem sérias reservas a seu respei- Fédon contaria sem dúvida como uma
to. Infelizmente, Sócrates não diz por aitia “formal” segundo a classificação
que chama este modo de explicação aristotélica dos tipos de explicação
“seguro” “simplório”, mas muito em Ph. D.3. Todavia, não se segue que
provavelmente é porque pensa que é o descontentamento de Sócrates com
tão seguro que é vazio, isto é, a aitia “segura” se estenderia a todas
inteiramente desprovido de força ex- as explicações “formais” sem
plicativa. Aqui se deve ter em mente exceção, pois o problema da
que a existência das Formas, vacuidade observado acima surge não
juntamente com a relação de porque a relação entre explanans e
participação entre as Formas e os explanan- dum na aitia segura é de
sensíveis são condições teóricas suficiência “lógica” (mais do que
postas para explicar os fatos “causai”), mas porque as condições
observados acerca do mundo sensível postas no explanans não são
(p. ex., que um certo particular é uma conceitu- almente independentes dos
instância da beleza). Isto quer dizer fatos que devem explicar. (Na
que, pelo menos do que chamo verdade, a inobservância do fato que
perspectiva “socrática”, não há a suficiência “lógica” é consistente
acesso às formas exceto por meio do com a independência conceituai é o
contato com as coisas que participam que dá origem ao “paradoxo da
delas. Em função disso, a explicação análise” formulado, mas não
“segura” esboçada anteriormente na nomeado em Moore, 1933.) Porém,
verdade não diz nada mais do que isso não é uma característica
uma coisa será bela quando e universal das

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explicações “formais”. Por exemplo, como com sua primazia “segura”, as


no exemplo preferido de Aristóteles, Formas também têm um papel
o fato que os ângulos internos de uma principal neste tipo de explicação,
certa figura sejam iguais a dois retos é mas alguns elementos adicionais
explicado pela satisfação da definição também são introduzidos. Em 103d2-
do triângulo, mas ele seguramente 3, Sócrates pede agora a Cébes para
não pensa que conhecer a definição que reconheça a existência não
do triângulo por si mesmo toma fami- somente das Formas, mas também de
liar esta consequência. Não são itens como neve e fogo. Há certa
somente os exemplos aristotélicos da indeterminação sobre como
aitia “formal” que ficam isentos das exatamente Sócrates concebe estas
reservas de Platão quanto à aitia novas entidades, em particular se
segura, mas também os “socráticos”. postula Formas para estas coisas. Vou
Por exemplo, embora o Eutifro nunca seguir aqui uma linha plausível de
revele a correta definição desta interpretação, segundo a qual ele
virtude, é plausível inferir das pensa a neve e o fogo e assim por
definições propostas que Sócrates diante simplesmente como “estofo”
considera que ela não somente daria físico ou matérias. Em 105cl-2,
condições necessárias e suficientes Sócrates então indica como elas
para que algo seja pio, mas também figuram em seu estilo “mais sutil” de
se constituiria em uma análise da explicação,
piedade. Isso quer dizer que
empregaria conceitos que não são so- Se você me perguntar o que
mente independentes da piedade, causa que algo seja quente, não
mas que seriam também anteriores lhe darei aquela resposta
do ponto de vista explicativo a ela (ver [anterior] segura, mas sim-
o capítulo Definições Platônicas e plória, dizendo que é o calor
Formas). [isto é, o

De qualquer modo, parece que


tais hesitações a respeito da aitia
“segura” levam Sócrates a propor Fogo-em-si], mas posso lhe dar
uma forma de explicação final e agora uma resposta mais sutil e
presumivelmente melhor, que ele dizer que é o fogo.
denomina aitia “mais sutil”. Assim

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Esta parte da observação interpor entre as Formas e os


constitui uma clara rejeição da sensíveis que participam delas um
seguinte explicação “segura e tipo adicional de entidade – “formas-
simplória” de por que um certo corpo nas-coisas” – que possuem uma clara
-A-ê quente. semelhança com os chamados
“tropos” no início do século doze
O que quer que participa da Forma do (sobre isso, ver Moore, 1923 e Stout,
Calor é quente 1923). Com este acréscimo, a aitia
“sutil” adota, então, a seguinte e mais
A participa da Forma do Calor. complicada forma.

Portanto, A é quente. O que quer que contenha fogo


participa da Forma do Calor.
Neste lugar, Sócrates propõe
então sua alternativa “mais sutil” O que quer que participa da Forma do
baseando-se na ideia plausível de que Calor possui um tropo-de-calor.
há conexões conceituais entre a
participação em certas Formas (p. ex., O que quer que possua um tropo-de-
Calor) e a presença de certos calor é quente.
materiais, como fogo.
A contém fogo.
O que quer que contenha [muito] fogo
participa [grandemente] da Forma do Portanto, A é quente.
Calor.
(Isto pode ser uma tentativa de Platão
O que quer que participa de evitar os problemas do “um-de-
[grandemente] da Forma do Calor é muitos”
quente.
com a relação de participação,
A contém [muito] fogo. apontados pelo próprio Platão em
Prm. 132a-135c. Se for isso, o
Portanto, A é quente. estratagema não alcança sucesso,
pois ele desloca antes que evita estas
Para ser mais preciso, Sócrates dificuldades. Para uma discussão do
acrescenta uma dobra a mais ao estatuto ontológico dessas “formas-

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nas-coisas” e sua disfunção teórica no explicações “locais” de eventos e


Fédon, ver Silverman 2002: cAp. 3.) circunstâncias particulares. Assim,
por exemplo, a pseudo-explicação
Em termos aristotélicos, o que aventada em Phd. 98c2- d6 em
Sócrates está propondo aqui é uma termos de “ossos e articulações” não
forma “híbrida” de explicação que pretende somente explicar por que as
incorpora elementos das aitiai pessoas geralmente são postas na
“formal” e “material” dePh. II.3. A pri- prisão nem por que Sócrates foi posto
meira e mais importante coisa a na prisão em tal ou tal lugar ou em tal
observar é que evita o problema da ou tal momento; antes, pretende
vacuidade observado acima com a explicar como uma certa coleção
aitia “segura”, pois, enquanto as particular de ossos e articulações veio
Formas são entidades teóricas, coisas a estar em um certo lugar físico
como a neve e o fogo, na presente particular em um certo momento
interpretação, são materiais físicos particular no tempo. Esta é uma
cuja existência pode ser detectada por virtude da qual não participa a aitia
meio da percepção sensível (pelo “segura”, que é concebida
menos quando estão presentes em inteiramente dentro dos limites
quantidades suficientes). Donde, su- teóricos da Teoria das Formas, pois
giro, diferentemente da explicação não há recursos teóricos no interior
“segura” desenvolvida da metafísica simples das Formas e da
anteriormente, é realmente
explicativo raciocinar da presença
observável do fogo em um corpo à sua
participação teórica na Forma do participação para explicar como um
Calor e daqui ao fato observável que corpo particular vem a participar (ou
está quente. continua a participar) de uma certa
Forma em um lugar particular e em
Há também uma segunda vantagem, um momento particular. Em
intimamente ligada a esta forma contraste, caso, como sugeri, Platão
“híbrida” de explicação que talvez não conceba tais coisas como fogo e
seja tão óbvio. Quaisquer que sejam similares no Fédon como materiais
os defeitos que Sócrates percebeu físicos observáveis, é fácil ver como
nas teorias de Anaxágoras, eles pelo poderia pensar que uma instância
menos tinham a virtude de oferecer totalmente explícita de sua aitia

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“sutil” incluiria uma explicação local consistia em prover uma base


de como o fogo veio a ocorrer em um metafísica para distinguir o
certo lugar ou entrou em um corpo conhecimento da crença verdadeira e
particular, em um tempo particular e que esta estratégia era suposta
não em outro. suplementar, antes que substituir,
suas tentativas anteriores de fundar a
É por vezes um mistério que, a mesma distinção por meio do
despeito dos méritos aparentes que “requerimento de explicação” do
Platão vê em sua forma “híbrida” de conhecimento genuíno. A aitia
explicação, sua força de atração não “segura” do Fédon pode ser
parece ter durado, pois mesmo que interpretada como a tentativa inicial e
sua presença seja o ponto culminante ainda crua de Platão de unir estas
da “segunda navegação” no Fédon, o duas linhas de pensamento especifi-
que sugere que é a forma preferida cando um tipo muito especial de
disponível de explicação ali, não é “relato
nunca mencionada de novo nos
diálogos posteriores. Em seu lugar, explicativo” (logismô aitias) que é
parece que, em suas obras tardias, puramente “formal” porque envolve
Platão redireciona seus esforços com referência somente às Formas,
vistas a reabilitar o modo puramente particulares sensíveis e a relação de
“formal” de explicação que ele tinha participação. Como vimos, porém, o
criticado no Fédon. problema é que o único tipo de tal
relato explicativo “puramente
EXPLICAÇÕES FORMAIS formal” que pode ser construído com
“ANALÍTICAS” NOS os recursos metafísicos limitados da
DIÁLOGOS TARDIOS República e do Fédon é patentemente
vazio.
Um modo instrutivo de entender a
disposição de PL da aitia “segura” no Relembre agora que também
Fédon consiste em tomá-la como uma argumentei anteriormente que a aitia
consequência do fato de sua “segura” do Fédon não respeita nem
epistemologia sobrepor-se à sua mesmo o reconhecimento de Platão
metafísica. Argumentei anteriormen- nos primeiros diálogos que uma
te que uma das motivações principais definição adequada – e, portanto,
de Platão para a Teoria das Formas uma explicação “formal” adequada –

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

fornecerá uma análise de seu que figuram na análise correta da


definien- dum por meio de outros piedade, juntamente com tais
conceitos que são independentes princípios “analíticos”. Já que nunca
dele. Em minha visão, estes dois encontramos análises corretas nos
defeitos não estão desconectados. No diálogos platônicos, volto-me aqui a
fundo, o que toma a aitia “segura” um exemplo familiar neoaristotélico
“simplória” é que ela pretende para ilustrar esta versão analítica mais
explicar a posse de uma dada complexa da aitia “formal”.
propriedade inteiramente por re-
ferência à participação em uma única
Forma associada a esta propriedade.
Contudo, no Eutifro Platão já está O que quer que partícipe nas Formas
consciente que a definição correta de de Racional e Animal
piedade terá de explicar por que as necessariamente participa na Forma
coisas têm esta propriedade por de Humano.
referência a outras propriedades com
as quais está analiticamente O que quer que participe na Forma de
conectada. A solução desta Humano é humano.
dificuldade deve ser óbvia. Se, no
espírito original da aitia “segura”, a Sócrates participa nas Formas de
Teoria das Formas deve ainda Racional e Animal.
fornecer a fundamentação metafísica
para este tipo de explicação “formal” Portanto, Sócrates é humano.
mais sofisticado, deverá ser
aumentada com o acréscimo de Proponho que Platão sugere
princípios “analíticos” que ligam a essencialmente esta mesma solução
participação em certas Formas na época em que escreve o Sofista e o
necessariamente com a participação Político, em seu período tardio.
em certas outras. Neste esquema (Omito toda discussão aqui do
metafísico aumentado, a piedade de Teeteto, o único diálogo platônico
uma coisa não será então explicada consagrado inteiramente a uma
“com segurança” pela participação investigação da natureza do
somente na Forma da Piedade, mas conhecimento. A razão disso é que
antes pela participação em outras não aceito a visão muito influente de
Formas associadas às propriedades Comford (1957) que o diálogo

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Hugh H. PLATÃO
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apresenta uma série de dificuldades encontrar Platão expondo uma


epistemológicas que Platão pensa doutrina com tais tons “empíricos”
poder superar somente ao postular as (para não dizer “nominalistas”). É,
Formas e que o diálogo como um portanto, uma boa coisa que esta
todo, portanto, constitui um interpretação superficial seja obviada
argumento indireto para a existência por passagens no Sofista que
delas. Na interpretação que prefiro, as
Formas estão propriamente ausentes sugerem fortemente uma
do Teeteto porque Platão conduz ali interpretação “realista” mais
uma investigação metafísica não apropriada da divisão platônica.
previamente balizada sobre a
natureza do conhecimento que deixa O objetivo maior deste diálogo é
em aberto a questão de como seus posicionar o método da divisão para
resultados se põem de acordo com desenvolver uma definição da
suas teses ontológicas gerais.) sofistica, a nêmesis intelectual
principal de Platão em toda a sua
A peça central do Sofista e do carreira. Este procedimento é
Político é o método platônico de momentaneamente interrompido,
definir por “agrupamento e divisão”, porém, por uma longa digressão em
que é retomado por Aristóteles a 237-64, que visa a estabelecer a
título de definição por “gênero e possibilidade do juízo falso. Próximo
diferença”. Para ser franco, a do fim desta digressão, em 254d4-5, o
linguagem destas passagens em que Estrangeiro introduz um quinteto de
este método é executado dá a Formas que ele denomina “os
impressão superficial que Platão está gêneros supremos” (megista tôn
descrevendo um procedimento mais genôn) (a saber: Ser, Mesmo,
ou menos “empírico” de fazer divisões Diferença, Movimento e Repouso) e
naturais entre classes de objetos com descreve então um procedimento
base em suas características “dialético” que consiste em
observadas e que suas Formas não determinar qual destes gêneros pode
têm nenhum papel no método. Há “participar em”, “misturar-se com” ou
motivos para se duvidar desta “comunicar com” qual dos outros
interpretação mesmo antes de uma (251d4-5). Todavia, é claro pelo
consideração da evidência, pois seria contexto em tomo que Platão não
estranho, para dizer o mínimo, pretende que esse método “dialético”

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Hugh H. PLATÃO
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fique confinado a este universo princípios é precisamente o que é


platônico “simplificado” dos “gêneros necessário para converter as
supremos”, mas valha para todas as explicações “formais” “seguras” e
Formas. Ademais, na presente vazias em explicações mais
interpretação, esta dialética
generalizada, isto é, o mapeamento
das relações necessárias entre todas
as Formas, é o que em última complexas, do tipo “analítico”, que
instância dirige a “divisão dos constituem genuínas explicações.
gêneros” no Sofista e no Político por
trás de suas fachadas “empíricas”. Portanto, para retornar à questão
Além disso, estas relações necessárias clas- sificatória com a qual comecei, as
envolvem não somente inclusões preocupações centrais do Sofista
necessárias (p. ex., entre humano e dificilmente podem ser classificadas
animal), mas também exclusões como epistemológicas em natureza.
necessárias (p. ex., entre animal e Contudo, na linha geral de inter-
planta), o que dá às divisões pretação que desenvolvi aqui, este
platônicas (como também às diálogo ocupa um lugar central no
aristotélicas) sua estrutura arbórea desenvolvimento do pensamento de
característica. Platão neste domínio, pois, de acordo
com meus argumentos precedentes, o
Em uma perspectiva mais ampla, esta momento crucial deste desen-
seção do Sofista pode ser interpretada volvimento é a decisão de Platão em
como suprindo a peça final da seu período médio de desenvolver
reivindicação de Platão da aitia uma teoria metafísica para
“formal”, pois, ao discernir as relações fundamentar a distinção entre
necessárias que ocorrem entre as conhecimento e crença. Minha
Formas, o dialético do Sofista pode ao sugestão final é que sua concepção da
mesmo tempo ser visto como dialética no Sofista lhe permite refinar
reagrupando um conjunto e aumentar a teoria metafísica de
correspondente de princípios modo que finalmente ela se torna
“analíticos” que exprimem estas adequada para cumprir seu objetivo
relações necessárias. Porém, de epistemológico original.
acordo com meus argumentos
anteriores, o acréscimo de tais NOTA

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Todas as traduções são do autor. universal or particular? Proceedings


of the Aristotelian Society,
REFERÊNCIAS E LEITURA supplementary volume OI, pp. 114-
COMPLEMENTAR 22.

Benson, H. (2000). Socratic Wisdom. Vlastos, G. (1991). Sócrates: Ironist


Oxford: Oxford University Press. and Moral Philosopher. Cambridge:
Cambridge University Press.
Cornford, F. M. (1957). Plato’s Theory
ofKnowled- ge. New York: Macmillan.

Irwin, T. (1995). Plato’s Ethics. Oxford: PARTE III


Oxford University Press.
A METAFlSICA PLATÔNICA
Moore, G. E. (1923). Are the
characteristics of particular things
universal or particular? Proce- edings
of the Aristotelian Soríety, 12
supplementary volume III, pp. 95-113.
Repr. in G. E. Moore (1962) As formas e as ciências em
Philosophical Papers (pp. 17-32). New Sócrates e Platão
York: Collier Books.
TERRY PENNER
(1933). The justification of analysis.
Analy- A verdade acerca das Formas de
Platão é, penso, bem direta.
sis 1, pp. 28-30. Infelizmente, por falta de contexto
próprio na apresentação e certa
Silverman, A. (2002). The Dialectic of hostilidade a qualquer tintura de
Essence: A Study ofPlato’s metafísica – para não mencionar a
Metaphysics. Princeton, NJ: Prin- rejeição das Formas por Aristóteles –,
ceton University Press. ela tem, nos tempos modernos, uma
crosta de interpretações errôneas.
Stout, G. F. (1923). Are the Este artigo dá início a uma contex-
characteristics of particular things tualização profícua.

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

A QUESTÃO “O QUE É X?”, AS famoso, a questão “o que é X?” – uma


CIÊNCIAS, A VIRTUDE E AS FORMAS questão tida como anterior a
qualquer outra questão sobre X (p.
Como é extraordinário que o ex., se X tem uma certa propriedade
mundo deva conter – objetiva e ou atributo), pois Sócrates sustenta,
independentemente de nosso como é sabido, que não se pode
pensamento, linguagem e realmente conhecer a resposta à
cultura – não somente pessoas, questão do tipo “o que é X?” (“é X
animais, plantas, árvores, uma coisa Fédon?”) a menos que já se
edifícios, cadeiras e similares – saiba a resposta à questão “o que é
mas também objetos (abstratos X?” (ver os capítulos Definições
objetivos) que unificam e Platônicas e Formas e O
estruturam os indivíduos do Conhecimento e as Formas em
primeiro grupo em vários modos Platão.) A segunda pressuposição não
úteis cientificamente e que são, é de modo algum comumente aceita –
o que mais possam ser as ou nem mesmo considerada. É a de
Formas, objetos das ciências. que a importância da questão “o que
éX?” está intimamente conectada
Assim podemos imaginar Platão com a tese de Sócrates que
meditando ao considerar as entidades
que Sócrates pressupunha – VC Virtude é uma ciência
aparentemente sem admiração – (conhecimento ou competência:
como os objetos acerca dos quais também por vezes referida como uma
perguntava suas famosas questões “o arte ou técnica), isto é, a ciência do
que éX?”: o que é a coragem? O que é bem e do mal (a ciência dos bens e dos
a piedade? O que é a experiência dita males: também uma metrêtikê, uma
“ser vencido pelo prazer”? O que é a ciência de medir os bens e os males (e
virtude – e é [o tipo de coisa] que se mesmo dores e prazeres) uns com os
pode ensinar? outros, especialmente quando estão
em diferentes distâncias no tempo em
Estou pressupondo duas coisas relação ao presente).
aqui. A primeira é comumente aceita:
que a Teoria das Formas surge da Observe que a questão “é a
preocupação de Sócrates com o que virtude objeto de ensino?”, que
Richard Robinson chamou, como ficou formulei anteriormente como “é a

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Hugh H. PLATÃO
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virtude o tipo de coisa que técnica”. (Caso se trate somente de


devolver o que você deve a um amigo
sob a condição de que ao fazer isso
você beneficia e não causa dano ao
se pode ensinar?” (Men. 86d3-e4, seu amigo, quem, pergunta Sócrates,
87al-3, b2-c3), é realmente uma está na melhor posição para
variante da questão “o que é X?”, a beneficiar seus amigos em questões
saber, “é a virtude idêntica a (algum de saúde? Com se a questão fosse
tipo de) conhecimento ou ciência?” uma certa habilidade ou competência
(Men. 89a2-3: embora se possa antes que uma questão de, digamos,
também traduzir o grego por “o o que é certo ou correto!) Esta
conhecimento é uma parte da “analogia” que Sócrates tão
virtude”. O ponto é que a virtude é regularmente impõe a seus in-
uma das ciências, a saber, a ciência do terlocutores exprime a tese de
bem e do mal; para confirmação, ver Sócrates que os objetos sobre os
87c5, d6-7, e5, 88d2-3. O ponto não é quais está sempre questionando – o
que a virtude é parcialmente bem (humano), a coragem, a piedade,
conhecimento e parcialmente algo a virtude e similares – estão para a
outro, digamos, disposições de ciência da virtude como
caráter, como certamente o é em
Aristóteles.)  A saúde está para a ciência da
medicina;
Porém, qual é a conexão entre as  A cama, a mesa e a lançadeira (e
coisas mais importantes perguntadas vários tipos particulares de
nas questões “o que éX?” (coragem, lançadeira) estão para a
piedade, temperança, justiça, virtude carpintaria;
e similares) e a tese que a virtude é  A comida, a azeitona, a uva, o trigo
uma ciência? Para ver esta conexão, e similares estão para a
considere somente o modo extraordi- competência do fazendeiro;
nário que Sócrates impõe às  As ovelhas estão para o pastor, e
explicações de seus interlocutores de assim por diante.
coisas como coragem, piedade e
similares, o que costumava ser Isto é, Sócrates trata esta ciência
chamado “analogia das artes” e mais (conhecimento, competência) do
recentemente a “analogia da bem como uma ciência tanto quanto

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essas outras que usou como cavalo de ela própria conhecimento de um tipo
Troia para esta ciência. Meu particular (uma ciência, uma
argumento a seguir sugerirá que o competência). Isso deve ficar
principal objeto desta ciência suficientemente claro pelo modo no
aparecerá, na República, como a qual, na Apologia, Sócrates fala dos
Forma do Bem. artesãos (em contraste com os
Políticos e poetas) como finalmente
Observe aqui que a saúde em posse de algumas formas de
humana, como mesmo Sócrates terá conhecimento (algumas ciências,
pensado a seu respeito, é um objeto algumas competências) – embora
único – a exata mesma coisa que é não a ciência ou competência
estudada em todas as escolas de particular do bem que ele está
medicina, no intuito de lidar com uma buscando.
multiplicidade de pacientes em
qualquer lugar. A ciência da medicina Para resumir o ponto até aqui, as
não é acerca da minha saúde ou da coisas que são perguntadas nas
sua saúde, mas acerca da saúde em questões “o que é X?”, se existirem
geral – um objeto abstrato, um tais coisas a serem questionadas, se
“universal”, como diz Aristóteles revelam ser os objetos das ciências –
(usando um termo cunhado por ele). o bem sendo, no caso central, o
Assim, a virtude é um objeto único, e principal objeto do conhecimento,
também a justiça é um objeto único. É ciência ou competência que é a
porque estes objetos únicos não são virtude. Aristóteles certamente pensa
visíveis em todos os lugares ou não que Sócrates e Platão têm a mesma
são isolados espacialmente que eu os visão dos objetos das ciências, em-
digo objetos abstratos – mais uma bora Aristóteles também pense que
vez, mesmo para Sócrates (e para estes novos objetos das ciências em
Aristóteles). que Platão

Observe também que esta


“analogia da técnica” não é de fato
uma mera analogia. Para Sócrates, a acreditava foram erroneamente
virtude não é somente análoga ao identificados por ele a certas
conhecimento de outros tipos ou a entidades extraordinárias e mesmo
outras ciências ou competências: é absurdas – as Formas – ao passo que,

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continua Aristóteles, se evitarmos tal que deve enfrentar ao concordar com


reação excessiva, o que obtemos são Sócrates e Platão (tanto quanto
simplesmente aqueles objetos concorda) acerca das ciências e de
(abstratos), os universais, que são seus objetos. Graças ao comentador
precisamente o que devem ser os aris- totélico Alexandre de Afrodisia,
objetos das ciências. Aristóteles escrevendo mais de quatro séculos
aceita estes objetos (e pensa que foi depois, mas com uma cópia do
antecipado pelas tentativas de tratado de Aristóteles em sua mesa,
Sócrates de responder às questões “o temos uma longa paráfrase de três
que éX7”) (ver o capítulo Aprendendo versões que Aristóteles deu a este
sobre Platão com Aristóteles). argumento no tratado original. Pode-
se argumentar que todas elas
O “ARGUMENTO DAS CIÊNCIAS” DE procedem por meio da redução ao ab-
PLATÃO PARA A EXISTÊNCIA DAS surdo de uma certa explicação
FORMAS, COMO APARENTEMENTE reducionista natural do que é a saúde
REPRESENTADO POR ARISTÓTELES E (o principal objeto da ciência da
A CRÍTICA DE ARISTÓTELES A ESTE medicina). Eis aqui, por razões de
ARGUMENTO brevidade, minha própria paráfrase
mais curta deste argumento:
Estas similaridades e importantes
diferenças entre Platão e Aristóteles Suponha que a saúde (humana) se
podem talvez ser mais bem reduza a nada mais do que pessoas
apresentadas ao se olhar para um sãs, isto é, tudo o que existe quanto à
argumento em prol das Formas que é saúde são pessoas sãs. Então, ir de
atribuído a Platão no tratado MAnitowoc para Madison no intuito
(infelizmente perdido) Sobre as Ideias de estudar medicina, de modo a re-
(Formas) de Aristóteles, pois este tornar a MAnitowoc para praticar
argumento revela como Aristóteles medicina, é estudar os pacientes
entendia o que chamarei tese (atualmente) sãos (e doentes) em
parmenídica da existência, com a qual Madison de modo a praticar medicina
Platão opera, e também mostra (não em pacientes sãos (e doentes) em
deliberadamente), nos comentários MAnitowoc.
de Aristóteles sobre o que ele
apresenta como o “argumento das  Mas então como estes
ciências” de Platão, as dificuldades estudantes fariam progressos

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Hugh H. PLATÃO
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estudando um grupo de pessoas se o Esta sentença


que querem é tratar um outro grupo
de pessoas? a) é acerca do (ou se refere ao)
 Você não pegou o ponto. Eles objeto a que se refere o termo
estudam algo comum a ambos os “Sócrates”, isto é, Sócrates, e
grupos. b) predica de Sócrates a qualidade ou
 Precisamente: algo outro do atributo a que se refere o
que cada um destes dois grupos! Mas predicado “... é sábio”, isto é, a
então não pode ser que tudo o que sabedoria.
existe quanto à saúde são as pessoas
sãs. Há de existir, se deve haver uma A ideia de enunciar o predicado
coisa tal como a ciência da medicina, como simplesmente o resto da
uma coisa como saúde, que é o objeto sentença simples em questão e de
desta ciência. Na verdade, um objeto usar os pontos para
abstrato.

A respeito deste argumento diz


que ele de fato mostra que existe algo mostrar onde fica o termo sujeito não
além das pessoas sãs, mas não mostra é de Aristóteles, mas de Frege.
que este algo em questão é uma Porém, como observou Wilfrid
Forma. Pode ser um simples universal Sellars, é altamente sugestivo não
(como, segundo Aristóteles, ele e somente da visão de Frege de como
Sócrates pensavam). O problema é estes predicados “lacunares” se
que Aristóteles pensa que universais referem a sujeitos (e do modo
são tais e não istos (novamente, paralelo ao qual, no nível daquilo a
termos cunhados por Aristóteles). Ao que se referem as palavras, o conceito
pôr Sócrates em sua companhia, se refere ao sujeito), mas também da
Aristóteles implica – erroneamente – visão aristotélica de como os
que para Sócrates também os objetos atributos se relacionam com objetos
das ciências são (o que Aristóteles particulares.
denomina) tais.
O objeto Sócrates, referido pelo
O que são estes supostos tais e nome “Sócrates”, é um indivíduo
istos? Considere a sentença “Sócrates particular e assim um “isto” (o tipo de
é sábio” como Aristóteles a trataria. coisa ao qual você se referiria usando

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a palavra “isto”). O atributo de sabedoria). A doutrina das categorias


sabedoria, nos diz Aristóteles, não é de Aristóteles – substâncias,
um indivíduo particular; antes, é o qualidades, quantidades, relações,
tipo de coisa que pode ser predicado lugares, tempos e as outras – vai
de muitos indivíduos particulares ainda mais longe e afirma que estas
diferentes (de modo paralelo ao palavras têm diferentes sentidos em
modo no qual a expressão “... é sábio” cada categoria. Digo que Aristóteles
pode receber diferentes expressões- toma estas palavras como
sujeito na lacuna indicada pelos irremediavelmente ambíguas entre
pontos). Se “tal” é um termo que istos e tais (ou entre as categorias),
designa ou se refere a um tipo visto que Aristóteles também
relevante de indivíduos particulares
(os sábios, os malucos, os fortes, os sustenta que não há, além do sentido
sãos e assim por diante), então será em que qualidades existem e do
correto dizer, pensou Aristóteles, que sentido em que substâncias existem,
a sabedoria é um “tal” e não um um sentido ulterior unifícador no qual
“isto”. (O latim qual-itas – imitando o se possa dizer que “substâncias (p.
termo grego poio-tês, que Platão ex., Sócrates) e qualidades (p. ex.,
cunhou – é, em sua construção, sim- sabedoria) existem ambas” (de modo
plesmente tal-idade.) que cada uma seria uma e, tomadas
juntas, seriam duas e não a mesma
Até aqui, não há muito a criticar coisa que a outra), pois se Aristóteles
nesta distinção entre istos e tais. O admitisse a possibilidade de um
próprio Platão poderia quase propor sentido ulterior unifícador, ele
isso. O problema surge em certas solaparia sua própria crítica de Platão,
coisas ulteriores que Aristóteles diz que não teria visto que istos e tais não
acerca dos tais e istos – em particular, existem no mesmo sentido, isto é, em
que um grupo de palavras como nenhum sento único. Portanto, o
“existe”, “um”, “mesmo” (isto é, a ponto não é que Sócrates e a
mesma coisa), “diferente” (isto é, não sabedoria existem ambos em um
a mesma coisa) é irremediavelmente dado sentido, com, em acréscimo,
ambíguo. Isto é, estas palavras Sócrates sendo um particular e a
significam uma coisa para os istos (p. sabedoria sendo um atributo. O
ex., Sócrates) e uma outra coisa ponto é que não há nenhum sentido
(derivada) para os tais (p. ex., de “existe” no qual seria qualquer

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Hugh H. PLATÃO
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coisa menos um sem-sentido dizer pensa Aristóteles, faria com que


que “Sócrates e a sabedoria existem universais e particulares existissem
ambos”. Como diz Ryle, servindo-se no mesmo sentido – contrariamente
de sua brilhante síntese da metafísica aos resultados do parágrafo
aristotélica com a teoria dos tipos precedente. Aristóteles pensava que
lógicos de Russell e aplicando-a à este suposto erro faria com que o
filosofia moderna da mente: a mente “Argumento do Terceiro
existe e os corpos existem, mas é
(nem verdadeiro nem falso, e sim)
sem-sentido dizer que mentes e
corpos existem. Esta ideia de “tipos Homem” fosse fatal para as Formas,
lógicos” (sob diferentes nomes) foi (ver o capítulo Problemas para as
evidente por toda a história da Formas. Ver também Metaph.
filosofia, distintamente do uso de Ryle VII.13.1038b34-1039a3; SE
dos assim-ditos “erros categoriais”. 22.178b36-9, 179a8-9 e também Cat.
Ela já aparece, por exemplo, na 3bl0-21).
“analogia do ser” de Tomás de
Aquino. Em suma, quando Aristóteles
acusa Platão de “separar” os
Esta jogada a mais do lado de universais ou tais das substâncias
Aristóteles foi feita para opor-se à particulares ou istos e diz que
ideia, que ele acusa Platão de Sócrates não se comprometeu com
promover, de “separar” as Formas esta tese, ele implicitamente – e de
dos particulares. O conteúdo que modo indefensável – atribui a
Aristóteles atribui à “separação” é Sócrates a tese do próprio Aristóteles
assunto de disputa, mas tomo esta da existência. É como se Platão, não
acusação, uma vez posta na compreendendo o que é a existência,
linguagem inventada dos istos e tais, tivesse feito algo que o levou para
como equivalente à acusação de além da apreensão implícita de
tratar os tais como se fossem istos – Sócrates da enorme diferença entre
tratar universais como se fossem istos e tais. Tal acusação está errada,
ainda outros particulares (Metaph. como vou argumentar abertamente.
XIII.9.1086a32-3, Platão tinha uma ideia muito clara do
que é a existência – o que me referi
III. 6.1003a5-9). Isso, anteriormente como a tese

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Hugh H. PLATÃO
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parmenídica da existência. Tal tese terá de fazer, que “nada” é por dez
me parece ser não somente em muito vezes ambíguo – e irremediavelmente
superior à de Aristóteles, mas ambíguo? Se a sabedoria ou o número
também uma tese da qual o próprio 4 nada são, então cada um é um
Aristóteles não pode escapar. objeto. Daqui podemos mesmo
derivar um critério para que se possa
PLATÃO PARMENÍDICO declarar abertamente que algo não
existe (um critério negativo de
Para o Platão parmenídico (assim compromisso ontológico).
como também, sem dúvida, para
Sócrates) “existe” ou “ser” não é COMPONTNEG: Se você alega que um
ambíguo, significando coisas suposto objeto não existe, pare então
diferentes em diferentes categorias. de falar sobre ele, pois você não está
Antes, “existe” sempre se refere à se referindo a algo do qual você diz
mesma coisa. Comecemos com o que que nada é.
significa não existir. Platão sustentou,
seguindo Parmênides, que (Isso vai muito no espírito de
Parmênides e Platão.) Eis o critério
NEXNAD: Não existir é nada ser, de positivo correspondente para o
modo que, passando do negativo ao compromisso ontológico:
positivo, podemos atribuir também a COMPONTPOS: Se você vê que não
Platão a tese que EXOB: Existir é não pode evitar se referir a um suposto
ser nada, portanto ser algo (uma objeto, então seja franco e admita
certa coisa) – um objeto. que você pensa que ele existe.

Em Platão, não é requerido, por Assim, a menos que você esteja


exemplo, que, para que algo seja um preparado para negar que haja algo
objeto, não pode ser uma qualidade, em comum às pessoas sãs de Madison
um universal ou um número. (Se isso e às pessoas sãs de MAnitowoc, você
fosse requerido, se estaria fazendo de deve estar preparado para admitir
“objeto”, “um” e “existir” termos que pensa que existe, além das
irremediavelmente ambíguos. Deve pessoas sãs, uma coisa ulterior,
alguém realmente supor, como saúde. Estes modos parmenídico e
Aristóteles platônico de pensamento foram
brilhantemente reinventados pelo

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Hugh H. PLATÃO
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“Sobre o que há” de Quine, de 1948, sem incoerência, ser mantidos ambos
embora em Quine haja uma “virada por Aristóteles, pois (1) requer que
lingüística” totalmente não platônica saúde e pessoas são existam: a saúde
(reduzindo aquilo com o que você se é mais uma coisa no universo, e assim
compromete àquilo com o qual sua na há ambigüidade em “um”
linguagem compromete você). Os tampouco; porém, (2) nega isso.
modos platônico/parmenídico de
pensamento estão implícitos em Eis aqui uma dificuldade paralela:
Frege e em muitos dos pensadores para Aristóteles, não deve ser nem
dos fundamentos da matemática, verdadeiro nem falso, mas sem
muitos não supondo que iriam tão sentido que a saúde é mais uma coisa
longe quanto Quine ao relativizar a além (algo que não é a mesma coisa)
ontologia à linguagem. do que todas as coisas sãs. Porém,
certamente toda teoria que torna
Dada esta descrição da distinção sem sentido a tese obviamente
que Aristóteles tenta estabelecer verdadeira que Sócrates e a saúde são
entre universais e particulares, duas coisas diferentes não é sem
retornemos ao argumento das sentido! E certamente toda teoria que
ciências e à objeção contra ele por diz isso será, na melhor situação,
parte de Aristóteles. Aristóteles nos duvidosa. Assim, a antecipação de
diz que Aristóteles da teoria dos tipos lógicos
(Beth, 1965) e da distinção
1. Platão está correto em que existe conceito/objeto de Frege (Sellars,
algo – saúde – além de todas as 1963) é
pessoas sãs; há uma coisa a mais no
universo do que supõem os a) inconsistente com os métodos de
reducionistas; por outro lado, argumentação com os quais ele
próprio se compromete e é, de
qualquer modo,
b) metafisicamente na verdade
2. Platão está errado ao pensar que a muito duvidosa.
saúde existe no mesmo sentido em
que as muitas pessoas sãs existem. Se Aristóteles estiver errado
neste ponto, a questão ainda surge: o
De fato, (1) e (2), não podem, que nos diálogos de Platão (ou em

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Hugh H. PLATÃO
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algo que Aristóteles possa ter Platão do fluxo heraclíteo nos particu-
entendido de Platão em conversas lares sensíveis com o suposto erro de
com ele ao longo dos vinte anos da tratar os tais como istos. (Não há erro
permanência de Aristóteles na nesta identificação.)
Academia) leva Aristóteles a supor
que há uma diferença importante Duas coisas mostram que este
entre Sócrates e Platão sobre as uso do fluxo dos perceptíveis de fato
Formas? Uma outra passagem em representa um desenvolvimento das
Aristóteles (Metaph. XIII.9.1086a21- posições de Sócrates:
bl3) mostra que Aristóteles identifica
corretamente entre os diálogos a) pode argumentar que não há
jovens (excetuando o Banquete, o nenhuma menção do fluxo nas
Crátilo e o Fédon) e todos os outros partes socráticas dos primeiros
diálogos. A diferença é que Platão diálogos
argumentou em prol das Formas b) Aristóteles nos diz que Platão
alegando que os particulares per- estudou com Crátilo, discípulo de
ceptíveis estão em um fluxo Heráclito, o grande proponente da
constante, enquanto o conhecimento tese que o mundo perceptível está
requer universais (que não estão em em constante fluxo.
constante fluxo: ver o
Concluo que foi este contraste
capítulo Platão: uma Teoria da entre os perceptíveis em perpétuo
Percepção ou um Aceno à Sensação?). movimento no mundo do “vir-a-ser” e
Este contraste que envolve o fluxo, as Formas eternamente existentes no
sugiro, pode ser o que leva Aristóteles mundo do “ser” que foi a principal
– embora concorde que a ciência fonte para que Aristóteles enganasse
requeira universais – a pensar que a si próprio ao pensar que tinha
Platão está “separando” os universais ferrado Platão sugerindo que Platão
dos particulares (a36-b5) ou, como tinha erroneamente “separado” as
ele descreve em a32-4, a tomar os Formas dos particulares sensíveis.
universais como “separados, isto é
(fcat) como particulares”. Neste caso, Aristóteles pode também se ter
o erro de Aristóteles consiste em enganado pelo fato da ênfase de
identificar erradamente o uso de Sócrates recair sobre a objetividade
das ciências – como se poderia

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Hugh H. PLATÃO
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esperar do esforço para mostrar que lógicos e, assim, é sem sentido dizer
a virtude é uma ciência ou que a saúde e as pessoas sãs existem
competência –, ao passo que a ênfase cada uma e são uma em diferentes
de Platão, talvez porque tivesse sentidos.
sentido uma necessidade crescente
de defender as posições de Sócrates Eis um exemplo claro da aborda-
do contra-ataque sofistico, passou a gem parmenídica de Platão da
ser validar a objetividade das ciências existência: um pequeno argumento
por meio da validação dos objetos das importante em R. 475e-476e. Platão
ciências. Estas diferenças de ênfase, faz com que Sócrates dê a Gláucon um
juntamente com o uso por parte de argumento que pensa que muitos não
Platão do fluxo como um modo de aceitariam, mas Gláucon aceitará. É o
argumentar em prol das Formas seguinte:
levaram
Belo e feio são opostos.

Portanto, são dois.


Aristóteles a encontrar aqui –
erroneamente – diferenças Portanto, cada um é um.
fundamentais na crença metafísica.
O que é tão difícil aqui que muitos
O “argumento das ciências” e não compreenderão? Não cremos
este argumento do fluxo (que é em si todos que belo efeio são opostos e,
mesmo um apelo à existência de portanto, são dois, e então cada um é
objetos de conhecimento ou ciência) um? Resulta imediatamente que,
pressupõem o antirreducio- nismo reconheçam ou não, há certas
parmenídico/pla tônico característico. pessoas que não podem aceitar que o
Isto é, ambos argumentam contra a belo e o feio são opostos – não sem
posição segundo a qual não há nada incoerência em suas posições, pois os
mais de saúde que pessoas sãs, “amantes de visões e sons”, nos diz
argumentando que há uma coisa a Sócrates, são “sonhadores” – onde
mais no universo do que os re- sonhar é identificado a pensar
ducionistas supõem. A coisa “a mais” (acordado ou dormindo) que x – y
não pode ser compreendida em quando a verdade é que x meramente
termos da teoria aristotélica dos tipos se assemelha a y. (R ex., você pode

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sonhar que a sensação de queda que não poderia haver duas entidades a
você está tendo em sonho é uma mais, os opostos belo e feio, cada um
experiência real de queda.) sendo um, além das muitas visões e
sons belos? O que Platão faz Sócrates
Então, o que dizer do suposto observar aqui é que tais reducionistas
“sonho” feito pelos amantes de visões podem pensar que pode referir-se a
e sons? Aqui o texto nos diz que oyeor opostos, mas eles não podem: ver
são o belo em si e as visões e sons COMPONTNEG anteriormente.
belos. Porém, como podem pensar (Incidentalmente, este argumento
que também mostra que a Forma da
Beleza é o outro “belo”.)
O belo em si é idêntico às visões e sons
belos? A visão reducionista que Platão
combate aqui é uma posição cabeça-
Eles nem mesmo creem em dura, direta, próxima do nominalismo
Formas! A posição que Sócrates lhes e do materialismo – uma posição
atribui aqui só é certamente sustentada por intelectuais e por
compreensível se supusermos que pessoas bem não intelectuais, impa-
eles sustentam que o belo em si se cientes com certas posições de
reduz a nada mais do que as visões e intelectuais e religiosos, por exemplo
sons belos! a respeito de forças e deuses
invisíveis. Parece ser uma posição que
Suponho aqui que “crianças” ou vale a pena combater no tempo e
“templos” belos são supostos lugar de Platão, especialmente para
contrastar com “o belo em si” – “belo” quem que, como Sócrates e ele
somente por si mesmo, sem os próprio, esteja comprometido com a
complementos “crianças” ou existência de verdades reais que
“templos”. (Compare a expressão nosso próprio bem requer que
“crianças belas” com a primeira busquemos sistematicamente,
palavra desta expressão por si mesmo que com resultados limitados.
mesma.) Como veremos a seguir,
tomo “o Belo em si” como mera Mencionarei dois outros
abreviação do atributo “ser belo”. exemplos deste tipo de argumento
antirreducionista que surgem em
Como, então, para tais reduções, conexão com a questão “o que é X?”.

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Eles aparecem em duas das mais disciplinas seguidamente tidas por


célebres passagens da República: o ciências não são de fato ciências.
Símile da Linha Dividida e a Alegoria Sócrates enumera entre estas
da Caverna. (Sobre eles, ver Penner, pseudo-ciências (voltarei a elas) a
2006.) retórica à la Górgias, a sofistica, a
culinária, a cosmética e a
interpretação literária à la Íon.

CIÊNCIAS E PSEUDO-CIÊNCIAS Penso apresentar o aroma da


oposição de Sócrates a estas pseudo-
Falei acerca de uma diferença entre ciências mencionando aqui aquela
Sócrates e Platão na ênfase que Sócrates mais discute: a retórica.
correspondente dada às ciências e aos
objetos das ciências. (Isso não O que é a retórica, segundo seus
acarreta uma diferença de doutrina: a proponentes, é
objetividade das ciências é
interdependente com a de seus RET: uma ciência de grande poder na
objetos. É somente que Platão passa a vida pública, capacitando uma pessoa
procurar por argumentos para a a persuadir muita gente sobre
existência de objetos das ciências – qualquer assunto, sem que esta
uma necessidade que Sócrates pessoa tenha de adquirir qualquer
aparentemente não sentiu.) Se conhecimento sobre o assunto.
perguntarmos por que esta diferença
de ênfase ocorre, a resposta pode Parece estar implícito nisso a seguinte
lançar luz suplementar na importância explicação de “poder”:
das ciências e das Formas para ambos
os pensadores. POD: Poder consiste em ser capaz de
realizar o que se quer.
A tese de Sócrates que há
ciências objetivas não tem a intenção Claramente, universidades
simples de cobrir alguma velha modernas, bem como Aristóteles
disciplina ou competência que alguém antes delas, supõem que haja tais
decidiria chamar competência ou ciências (e seus correspondentes
ciência. Ao contrário, Sócrates tópicos), pois temos professores de
frequentemente insiste que certas retórica, fala, propaganda,

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comunicação e assim por diante. Mas que se quer é tido, de modo familiar,
não Sócrates – nem Platão. É verdade como idêntico ao que “se decide que
que Sócrates pensa que poderia se quer” ou “que se determina que se
quer”. Isso, como veremos, tem algo
haver pessoas que são competentes a ver com as razões de Sócrates para
em persuasão em um assunto negar que seja uma ciência.
particular, mas não antes de serem
também competentes (terem real Qual seria o objeto desta suposta
conhecimento) no assunto de que ciência da retórica? Sócrates sugere
estão persuadindo. Não é bem a ideia que seria “o que é persuasivo sobre
costumeira de retórica! Aqui Platão qualquer assunto” tomado como
está com Sócrates e contra estas “utilizável com sucesso mesmo por
ciências neutras como a retórica de aqueles que não têm conhecimento
Aristóteles. do assunto”. Isso sugere, naqueles
que (como os sofistas) veem esta
Na época de Platão e Aristóteles, suposta ciência como dando poder e
o tema da retórica, ensinada por obtendo o que se decide que se quer
professores itinerantes conhecidos na vida, certas linhas reducionistas de
como “sofistas”, era apresentado pensamento quase inteiramente
como um meio para adquirir muito novas para a cultura grega de seu
poder e para avançar na vida – es- tempo. Estas novas linhas de
pecialmente no interior das pensamento introduzem alternativas
democracias diretas, como a de sofísticas inovadoras às posições
Atenas, nas quais o sucesso dependia tradicionais do bem, justiça e
pesadamente de persuadir o Demos – similares, bem como sublinham a
os cidadãos. Aqui a persuasão é uma posição sofistica do que poderiam ser
persuasão que diz respeito a questões os objetos desta suposta ciência.
de justiça, sabedoria, guerra, vida
pública (e privada) e tem por desígnio Sof. 1: Todo o bem humano se resume
dar aos oradores (retóricos) o que no que você (decide que você) quer,
querem na vida – como implicado por de modo que todo o poder se resume
POD. na habilidade de fazer o que você
(decide que você) quer;
Um detalhe a mais deve ser
acrescentado aqui: para os sofistas, o

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Sof. 2: Toda a justiça se resume você quer,


naquilo que os que estão no poder
declaram que é “justo” (o que, é isto é, o que quer que você pense que
claro, eles fazem com vistas ao que é vantajoso para você, isto é, seu bem
supõem ser seu interesse próprio); aparente; de modo que a suposta
ciência que a educação sofistica pode
Sof. 3: Toda a justiça em seu caso se oferecer é a ciência de conseguir o
resume ao que você declara ser que quer que você determine como
“justo” (o que, é claro, você fará na sendo o que você quer.
crença que é seu interesse, que você
satisfaça ou não o interesse dos Aqui, os sofistas e os retóricos
outros); tratam as técnicas de persuasão
como a parte difícil; e tratam a parte
e, ligeiramente diferente, fácil, mesmo trivial, como consistindo
em decidir o que é que você quer.
Sof. 4: Toda a justiça nos assuntos Para Sócrates, bem como para Platão,
humanos, bem como no mundo isso é pôr “o carro antes dos bois”: a
animal, se resume simplesmente às parte difícil consiste em ver qual é o
decisões do mais forte impostas ao bem real que se quer. Ao opor-se a
mais fraco (com ou sem nenhuma tais sugestões “reducionistas” como
consideração pelos interesses do (Sofl)-(Sof4) e (SOF), Sócrates é mais
mais fraco) – a pleonexia que, no uma vez inspiração para Platão,
Górgias e na República, Sócrates constantemente discutindo com as
passa a ver como um sério desafio. pessoas, especialmente os jovens, em
conversas e argumento (“dialético”),
Isso nos leva à seguinte posição que visava aparentemente a fazer
sofistica (como sustentada por com que
Górgias e por Protágoras) tanto da
virtude como da ciência da retórica: seus interlocutores
confrontassem a possibilidade do que
SOF: A virtude ou o bem humano se é sabedoria, justiça ou bem humano
resumem a ser bom em obter o que não é questão do que as pessoas de-
você decide querer, cidem que querem ou declaram que é
bom, mas uma questão do que é tal
isto é, o que quer que você pense que objetivamente. Para Sócrates e

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Platão, quando não estão natureza real da lançadeira, assim


conversando com a plebe, o que se também existe uma natureza real do
quer é: bem.) Ele pressupõe também que a
natureza real em questão é sempre o
o que é bom objetivamente – mesmo que o desejo quer (exceção em
se isto for bem diferente do que as Platão: os desejos irracionais), mesmo
pessoas dizem (ou o que as quando não sabem o que é (ver o ca-
convenções de sua linguagem dizem) pítulo Os Paradoxos Socráticos; Grg.
ou o que um agente decide que é seu 466-8; R. 505e-506b, 504e-505b.)
bem próprio. Assim, quando um sofista ou um
orador se pavoneia de sua suposta
Questões do que é ciência como um meio de obter o que
objetivamente assim são questões de quer que se queira, a resposta
ciência ou competência objetiva, não socrática (e platônica) é que, sem uma
questões de opinião, definição, ciência do que é realmente bom (e é
decisão, do que alguém diz que quer o que a pessoa de fato quer, mesmo
ou do que o mais forte diz que quer. A que seja diferente do que ela pensa
pseudo – -ciência, por contraste, que ele é), uma ciência para o obter
fornece métodos para obter o que se por meio da descoberta dos bons
declara que se quer – sem a meios para buscar o que alguém
necessidade da ciência do bem ou de meramente pensa que
qualquer outra ciência. Com esta
indiferença oficial às ciências, pouca
dúvida pode haver (no mundo real)
que os sofistas, retóricos e os que são é o melhor será necessariamente
persuadidos por eles obterão não o incoerente – e desastrosa. Para quem
bem real, mas algo bem pior. Tal é o não tem conhecimento, não há um
argumento socrático/platônico objeto como
contra a retórica e a sofistica.
o que é o bem real, isto é, o que eu
Este argumento, obviamente, pressu- penso que o é o bem real
põe que existe um bem real, uma
natureza real do bem, como mesmo já que as duas partes da descrição
Aristóteles supõe. (Assim como existe estão em conflito. Portanto, não pode
uma natureza real da saúde e uma haver uma ciência de tal objeto.

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A conclusão de Sócrates aqui, em todas as questões que caem sob tal


sua oposição à retórica e à sofistica, ciência. O ponto acerca do interesse
está, de qualquer modo, mais de Sócrates na possibilidade pode ser
próxima da cultura religiosa expresso de um modo ligeiramente
tradicional do que da sofistica. Porém, como o seguinte. Pode ser razoável
na busca dialética/científica inces- supor que:
sante (e notavelmente não tradicional
e mesmo antitradicional) do 3. há uma ciência como a medicina
conhecimento desta natureza real por mesmo que ninguém atualmente
parte de Sócrates ele terminou por esteja em posse de tal ciência.
ser visto pelos tradicionalistas – de
modo compreensível e fatal, embora Porém, esta suposição implica
errôneo – como sendo ele próprio um que
sofista.
4. há uma natureza real da saúde e,
O quanto deveria Sócrates portanto, uma verdade objetiva
depender da objetividade das ciências acerca de todos os assuntos que
que encontrou em sua época e lugar? caem sob o domínio da ciência da
Certamente Sócrates não deve ter medicina, mesmo que ninguém
deixado de observar que então, assim atualmente esteja em posse do
como hoje, há muitas questões que, conhecimento destas verdades.
digamos, a medicina não pode
responder de modo convincente. A razão para pensar que a
Assim, com que direito diz ele que questão real acerca das ciências está
existem ciências como a medicina, a dado em (3) e (4) é que o ponto das
agricultura e assim por diante? Ou assim ditas “analogias” das ciências
não importa quão adequadas estão as particulares com o conhecimento do
ciências em seu estado no momento? bem consistia precisamente em trazer
O que é importante para Sócrates é o à luz a natureza de uma ciência do
ideal ou (visto de outro ângulo) a bem e do bem que é o objeto desta
possibilidade de uma ciência como a ciência. Pois,
medicina ser dominada pela pessoa
competente em questão, mesmo que 5. Sócrates pensava que há uma tal
ninguém na época tenha uma ciência objetiva a título da ciência
apreensão completa das respostas a do bem (humano), mesmo que

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ninguém atualmente a possua, e é razoável supor que a chance de


esta exatamente a condição alguém chegar perto destas
humana, já que Sócrates é a pessoa verdades objetivas reais é maior do
mais sábia que existe, mas não que se alguém as perseguisse
possui tal ciência. Ele também
pensava que há uma verdade
objetiva acerca de todos os temas
que caem sob o domínio da ciência todos os dias na convicção que uma
do bem, mesmo que ninguém vida sem exame não vale a pena ser
esteja em posse do conhecimento vivida.
de tais verdades.
Em algum lugar aqui, penso, está
Sócrates identifica esta ciência do a motivação do interesse de Sócrates
bem com a virtude (ou bem humano), pela ideia da existência das ciências (e
de modo que assim da possibilidade de um homem
competente ter a ciência em
6. ser um bom ser humano consiste questão). A teoria de Platão está
em possuir a ciência do bem. muito próxima disso, embora envolva
certa modificação, devido à crença de
A resposta à questão de por que Platão segundo a qual agimos por
Sócrates pesou que seria suficiente vezes de acordo com algo como os
para uma pessoa ser uma boa pessoa desejos brutos e irracionais.
que ela simplesmente possuísse o
conhecimento está fora de nossa O BEM E AS CIÊNCIAS
alçada aqui (ver o capítulo A Unidade
das Virtudes). Ela envolve o intelec- O objeto primeiro da ciência da
tualismo socrático (ver, por exemplo, medicina, a saber, a saúde, é também
Penner e Rowe, 2005: cAp. 10). A ideia o bem ou o fim da ciência da
é que medicina, sendo a função ou obra da
ciência gerar este estado nos
7. mesmo que nenhum homem pacientes, de sorte que um bom
jamais tenha tido a ciência do bem, doutor é aquele que cura seus
todavia a mera crença na pacientes. (Aristóteles diz que é a
existência de verdades objetivas mesma a ciência dos opostos, de sorte
(desconhecidas) faz com que seja que, como Sócrates diz, o doutor é

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não somente competente em teleo- lógica reaparece na teoria


produzir a saúde, mas também em socrática do desejo dos meios/fim, a
produzir a doença, caso ele, como qual Platão continua a sustentar
pessoa, queira produzi-la. Porém, somente para os desejos racionais.
presumivelmente, porque a função da Aristóteles não hesita em explorar
medicina é curar, a medicina é a este paralelo entre a hierarquia das
ciência da saúde e não da doença.) ciências, e a hierarquia dos meios e
Deste modo, o alimento (e a nutrição) fins é um no capítulo que abre a Ética
é o bem ou o fim da agricultura; a Nicomaqueia.
viagem marítima segura e eficiente, o
bem ou o fim das viagens marítimas; a De fato, todas as ciências, para
lançadeira, um dos bens da ciência da Sócrates e Platão, têm seu bem e fim
carpintaria. próprios, até mesmo, como mostra a
teleologia do Timeu, temas como
A partir do bem ou fim da biologia, química e física. Mostra isso
agricultura, podemos determinar que que o doutor só faz o bem? Não. Por
o bom agricultor é a pessoa que vezes, nos diz o Laques, não é melhor
encontra os bons meios para o fim de para o paciente viver ao invés de
sua competência; similarmente para morrer. Então, qual é a relação entre
os bons doutores, os bons o bem de uma dada ciência e o bem
carpinteiros e assim por diante. simpliciter (em Sócrates, o bem
Portanto, Sócrates frequentemente humano)? A resposta parece ser que
fala da função da medicina em termos temos ciências particulares porque
de saúde (o fim) e da função do descobrimos que há, objetivamente,
doutor em termos de curar (os meios modos de alcançar certas coisas que
para a saúde). são de um tipo usualmente ou
modelarmente bom para os homens –
Haverá também uma hierarquia por exemplo, saúde, riqueza, força e
tele- ológica das ciências e, portanto, assim por diante. Embora
dos bens: o bem da lançadeira é tecer, modelarmente bons, podem tomar-se
o bem de tecer é a roupa, o bem da muito ruins para os homens em
roupa é a proteção e assim por diante questão se usados de modo não sábio.
elevando-se, ao fim, ao (Não é de se admirar que “a vida sem
exame não vale a pena ser vivida”.)
bem do ser humano. Esta hierarquia Uma única coisa é incondicionalmente

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boa, ganhar o que, no meu caso, é Sócrates pressupõe que se possa ter
ganhar minha máxima felicidade para conhecimento autônomo de cada
o resto de minha vida, começando no uma das ciências, isto é,
ponto em que estou agora; no seu conhecimento de uma ciência sem ter
caso, sua máxima felicidade... e assim conhecimento do bem. Porém, tal
por diante para todos os outros. autonomia claramente não precisa
ser pressuposta se o propósito da
Tudo isso sugere que, para ter uma “analogia” consiste em trazer os
dada ciência e assim conhecer o bem interlocutores de Sócrates à ideia de
e o fim da ciência, deve-se conhecer uma ciência do bem.)
por que tal fim é um bem e isto vai
requerer conhecer o que é o bem A República torna claro que a
simpliciter. Assim é que Platão, no Forma do Bem é a peça central da
símile do Sol em R. 506e-509d, diz que Teoria das Formas. Mais ainda, a
nenhuma outra Forma pode ser Forma do Bem está intimamente
conhecida ou mesmo existir a menos conectada à ética da República (ver o
que se conheça a Forma do Bem capítulo O Conceito de Bem em
(assim como nenhum objeto Platão). Argumentei em outro lugar
perceptível pode existir no mundo do que uma compreensão apropriada da
vir-a-ser ou ser percebido sem o Sol divisão de Platão da alma em três
que o nutre e o revela à percepção). O partes, analogamente à sua divisão da
que é ser para uma lançadeira cidade ideal em governantes inte-
consiste em ser um certo bem padrão, lectuais, soldados (polícia) e
que está em uma relação apropriada trabalhadores, é suposta ser
com o bem simpliciter. Assim, a esclarecida por um “caminho mais
existência longo” (IV435c-d, VI.503e-504b) do
seguinte modo. A divisão da alma
serve para nos permitir dizer o que
são as virtudes: por exemplo, que a
e a cognoscibüidade do bem padrão justiça na alma individual é o fato que
(p. ex., a natureza real da lançadeira) cada uma das três partes cumpre sua
depende da existência e função própria. Porém, para entender
cognoscibüidade do bem sim- pliciter. então adequadamente esta
(Pode parecer que a “analogia das explicação, precisamos saber quais
artes” (“analogia da técnica”) de são as funções das partes,

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especialmente a função da parte ra- Porém, mesmo sem uma resposta


cional. Isso, aprendemos, consiste em completa a esta questão, é razoável
olhar à vantagem (ao bem) de cada supor que a melhor vida consiste em
parte e do todo (isto é, a alma inteira: dar andamento às investigações
o indivíduo). Assim, nossa história dialéticas quanto ao bem na
sobre a justiça está incompleta até o convicção de que há uma coisa como
momento em que descobrimos, por o que o bem realmente é, mesmo que
meio do “caminho mais longo” – e não corresponda a nenhuma de
tanto quanto pudermos – o que é a nossas convicções presentes.
Forma do Bem, isto é o mais
importante a conhecer. Perfazer o UMA PROPOSTA: AS FORMAS SÃO
caminho mais longo ocupa a maior ATRIBUTOS E NÃO HÁ ATRIBUTOS
parte dos livros VI e VII da República, QUE NÃO SEJAM FORMAS
o centro e o clímax, em toda
interpretação, da República. Sabemos pelo Lísis e pelo Banquete
que
Quanto ao que é a Forma do
Bem, isso será obviamente tão difícil 8. o atributo de ser belo é o atributo
de vir a conhecer (R. 506b-507a, Phd. de ser bom,
97b-100c) quanto é difícil, em
Sócrates, saber o que são a virtude ou bem como
o bem. Contudo, uma interpretação
9. o desejo pelo bem é erôs (amor
adequada do “caminho mais longo” erótico) pelo belo.
torna de fato claro que a Forma do
Bem é a Forma do Vantajoso ou Estas duas identidades podem
Benéfico; não é, como o é nas parecer estranhas ao extremo.
interpretações mais influentes desde Porém, Platão explica de modo
cerca de 1920, como as de Morris, razoavelmente claro o que pensa a
Irwin, Cooper e Annas, a Forma de um este respeito no Smp. 205a-d. Aqui
bem impessoal ou quase-moral. ele diz – sem dúvida por razões
históricas, incluindo o fato que tão
Dito isto, a questão obviamente poucas pessoas aceitam (até então)
permanece para Sócrates e Platão: “o estas identidades – que usamos erôs
que é vantagem (ou benefício)?” e “o belo” para situações nas quais o

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desejo sexual está envolvido e atributos que são os objetos das


“desejo” e “o bem” para desejos não ciências.
sexuais. Porém, isso não faz com que
erôs e “desejo do bem” sejam Assim, anteriormente, o
distintos. Trata-se somente de uma argumento em R. 475e-476e requer
questão de respeito decente pelo uso que o belo em si é somente o belo.
convencional das palavras. (Isso não deve surpreender alguém
(Similarmente, neste ponto da que, como eu, pensa que a Teoria das
história, apontamos à “estrela da ma- Formas é a primeira teoria sistemática
nhã” na manhã e à “estrela da noite” de objetos abstratos na história do
à noite, mesmo quando sabemos pensamento ocidental. Universais
perfeitamente que não são Fédon surgem mais
tarde, com Aristóteles.) Dizer isso é
dizer que, a despeito da acusação de
Aristóteles de uma massiva dupli-
que é um e mesmo corpo celeste, o cação, Platão não acredita que há
planeta Vênus, ao qual apontamos Formas e atributos. Vou mesmo mais
nas duas ocasiões. Portanto, assim longe e digo que Platão também
como Frege pede para que os pensa (como teria feito Sócrates) que
filósofos não confundam “referência”
com “significado”, Platão está aqui 11. Não há atributos que não
pedindo para que não confundamos a sejam Formas.
referência com as associações
históricas das palavras que usamos Assim, alguém poderia pensar
para designar estas referências em que há um atributo como “o interesse
contextos particulares.) do mais forte” como concebido por
Trasímaco, isto é, “o interesse do mais
Surge agora a questão sobre qual forte, a ser obtido pelo menos por
é a relação entre a Forma da Beleza e vezes pegando o bem do mais fraco”
a Forma do Bem. Minha análise – mesmo que Platão não aceitasse
anterior de como Platão argumenta que há tal Forma. Porém
em prol das Formas sugere que há (contrariamente a alguns estudiosos
toda razão para supor que que creem que, entre as muitas visões
e sons, se encontra este suposto
10. as Formas são somente os universal trasimáqueo), nego que

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teria aceito que existe uma tal que o próprio Aristóteles inventou.
entidade, um dos supostos objetos (Aristóteles, com efeito, sem dúvida
anotados anteriormente em (Sofl)- deve ter pensado que Platão tentou –
(Sof4) ou o suposto bem aparente em sem sucesso e muito
(SOF). Se for perguntado como ocorre assistematicamente – articular uma
que falamos sobre eles, a resposta é: ciência da lógica.) Aqui, a ideia é que,
no intuito ao predicar anthrôpos (homem, isto
é, o ser humano) ou “grandeza” de
de rejeitar estas criaturas cada coisa de uma multiplicidade, por
malformadas das imaginações exemplo, Alcibíades, Cálias e Aspásia,
sofísticas, “forçadas” com coisas estamos predicando algo em comum
como interesse, força e similares, que a eles três. Porém, este algo não é
de fato existem, mas somente fora idêntico a nenhum dos três. Portanto,
dessas combinações. Falar sobre tais esta coisa predicada em comum é
pseudoatributos é de fato não mais algo a mais: a Forma. Este argumento
do que falar de certas ilusões dos rapidamente geraria todo tipo de
sofistas, com os quais podemos predicado “forçado”, como o suposto
comparar ilusões mais familiares, universal trasimáqueo acima. (E
como o satanismo, o flogisto, a poderia usar este predicado em
bruxaria ou o Papai Noel. silogismos, como Sócrates o faz de
fato na República. Para Aristóteles, é
E AS OUTRAS RAZÕES DE PLATÃO suficiente torná-lo um universal.)
PARA ACREDITAR NAS FORMAS
(LÓGICAS OU MÍSTICO-METAFÍSICO- Porém, propõe Platão um argumento
TEOLÓGICAS)? E TAIS RAZÕES FARÃO deste tipo ou um argumento que o
DAS FORMAS ALGO MAIS DO QUE comprometa com atributos que
SIMPLES ATRIBUTOS? correspondam a tais predicados
“forçados”? Ou é o argumento um
No Das Ideias e em outros lugares, produto da extraordinária criatividade
Aristóteles também atribui a Platão de Aristóteles em oferecer
um Aristóteles “um-de-muitos”, o argumentos
qual, nos tempos modernos, poderia
ser referido como um argumento a
partir da predicação: um argumento
necessário, de fato, à ciência da lógica formais para posições que necessitam

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de explicações que nos digam de onde Formas são “au- topredicáveis”, de


elas vêm? Penso que é isso, mas, por sorte que a Forma do Bem é o melhor
razões de falta de espaço, terei de de todos os objetos; a Forma do Belo
defender esta tese em outro lugar. (frequentemente pesada como distin-
ta da Forma do Bem), o mais belo
Segundo, muitos estudiosos objeto; a Forma do Grande, o maior
pensam que Platão também tinha objeto; a Forma da Cama, a mais
razões místicas, metafísicas ou quase- perfeita e real cama. Nesta
teológicas para acreditar nas Formas. interpretação, as Formas constituem
Tenho de admitir aqui que no Mênon um tipo de museu celestial que
e no Fédon Platão de fato teve um contém todos os melhores exemplos
flerte com a reminiscência da vida de cada universal.
pregressa da alma como um modo de
adquirir conhecimento (ver o capítulo Os textos mais fortes
Platão e a reminiscência). Felizmente, normalmente citados em favor desta
tal fonte de conhecimento é ignorada interpretação são os que falam das
em todos os outros diálogos im- Formas como “paradigmas” (padrões,
portantes que discutem as Formas. (A modelos) que os particulares
reminiscência de uma vida pregressa perceptíveis “imitam”
da alma de fato aparece no mito do imperfeitamente, de modo que, se
Fedro, mas não como uma fonte de uma pessoa imita de modo imperfeito
conhecimento.) a Grandeza em si, então a Grandeza
em si deve ser ela própria um objeto
Ao mesmo tempo, muitas outras grande (muito grande).
coisas que Platão parece dizer dão a
impressão que o propósito das Este tipo de interpretação das
Formas deve ir além dos propósitos da Formas foi inventado – e, na minha
ciência ou da lógica. Agostinho e opinião, só poderia se ter originado –
Tomás de Aquino, por exemplo, em um período
tomaram a Forma do Bem nos Símiles
do Sol e da Linha, bem como na durante o qual os positivistas e
Alegoria da Caverna, como wittgenstei- nianos passavam muito
praticamente idêntica a Deus. Alguns de seu tempo não tanto examinando
intérpretes modernos propuseram teses metafísicas sobre a verdade,
que Platão estava nos dizendo que as existência e similares, quanto

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reduzindo-as a teses sobre do bem. Mas tenho de parar aqui.


observações científicas ou mais
ordinárias. (Para parafrasear OBJEÇÕES À TEORIA DAS FORMAS
Protágoras, “a observação é a medida
de todas as coisas”.) Ou isso, ou bem Vou examinar somente a mais famosa
estavam diagnosticando teses das objeções contra as Formas: o
supostamente incoerentes do ponto argumento que Aristóteles tomou do
de vista da observação como provindo próprio Platão e que chamou
da má compreensão da “lógica de “Argumento do Terceiro Homem” (ver
nossa linguagem”. o capítulo Problemas para as Formas).
Este argumento se desenvolve a partir
Bem mais plausível do que a do Argumento “Um-de-Muitos”, já
AutoPredicação é a tese que esta discutido antes, ao sugerir que, se
“imitação” de “paradigmas” é como a alguém acreditar na Forma da
imitação dos deuses, de modo que, Grandeza deste modo, a Forma ela
por exemplo, se estes quase-deuses – mesma terá de ser um objeto grande
os paradigmas – são justos e estão (autopredicação?). Então, porém, por
sempre em paz (R. 500b-d), os ho- igualdade de raciocínio, se todas as
mens buscam ser justos e estarem em múltiplas não Formas que são grandes
paz. Ademais, o quadro semimístico, necessitam da
semiteológi- co pode parecer estar
fortemente amparado pelo glorioso
mito da jornada da alma ao lugar das
Formas no Fedro – bem como em existência de uma Forma da Grandeza
outros mitos. De outro lado, não vejo para explicar o modo como
por que a Forma da Lançadeira, sendo predicamos atributos a objetos, esta
a verdadeira natureza da lançadeira, última terá de ser ela própria grande
que é ela própria o que ela é em (autopredicação?). E, então,
virtude da natureza real do ato de necessitaremos de uma outra Forma
tecer, a natureza real de vestir e assim para explicar por que as outras coisas
por diante, não poderia ser um grandes e a Forma da Grandeza são
paradigma muito adequado ao qual todas grandes. Isso nos embarca em
“olha” o carpinteiro. Por que deve ser um regresso ao infinito, o que sugere
uma lançadeira perfeita ou um quase- que a Forma não é mais uma só. Como
deus? O mesmo para a natureza real o vejo, ele é um de uma série de cinco

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argumentos, cada um dando uma Terceiro Homem a partir do


explicação diferente sobre qual é a Argumento do Um-de-Muitos, já
relação entre as Formas e os sugeri que Platão não teria aceitado
particulares. Platão fornece toda este último argumento da predicação.
indicação para pensar que todas as Que Platão introduza ele próprio
cinco explicações são inadequadas de dificuldades na suposta relação (de
modos diferentes, sem que ele predicação) entre as Formas e os
forneça uma explicação da relação particulares não me surpreende.
correta. Visto que ele vai adiante e
sugere que não podemos ficar sem as A TEORIA DAS FORMAS
Formas, é evidente que pensa que NOS DIÁLOGOS TARDIOS
deve haver tal explicação – embora
ainda não esteja em sua posse. A Teoria das Formas passa por
Similarmente, em Phd. lOOd, ele deixa desenvolvimentos importantes nos
completamente em aberto que últimos diálogos,
relação é essa. Para aqueles que
pensam que perDemos toda razão em como o Sofista, Político e Filebo. O
acreditar nas Formas se não podemos meio mais frequente pelo qual Platão
dar uma explicação da relação com os faz suas personagens afirmarem a
particulares, considere o que um existência das Formas na República,
filósofo analítico esperto poderia fa- Parmênides, Fédon e outros é em
zer com as relações entre as imagens termos de “cada coisa é um” e o
mentais e os objetos de que são intimamente ligado “cada coisa em
imagens. Estas dificuldades si”. (Incidentalmente, tomar o “cada
dificilmente mostrariam que as coisa é um” como suficiente para
imagens mentais não existem. Não, a trazer à tona em que consiste ser uma
principal questão é: as Formas Forma é seguramente sugerir que o
existem? E, se existem, como que está em questão é a existência de
certamente existem as imagens algo adicional aos particulares
mentais, então as relações em que perceptíveis e espaciais, como um
estão com os particulares serão as atributo genuíno. Certamente não
que têm de ser. sugere que existir uma Forma é existir
uma entidade mística, quase-
Quanto aos problemas com o teológica.)
desenvolvimento do Argumento do

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Porém, há um desenvolvimento flanco aos paradoxos da lógica,


posterior na ideia fundamental que semântica e teoria dos conjuntos do
“cada coisa é um”. Nos diálogos mesmo modo como a posição
tardios (e no Parmênides), temos a moderna sobre propriedades e
tendência de encontrar ao contrário a extensões.
insistência que cada coisa é um “e
muitos”. Um exemplo de ser um “e O que motiva este desenvolvimento
muitos” é o conhecimento (ciência) na Teoria das Formas? Uma
sendo um, mas, porque as ciências da possibilidade é que desde cedo Platão
matemática, da medicina e da enfaticamente distingue a Forma do
astronomia são distintas, o conhe- Belo em si das múltiplas coisas belas –
cimento é também muitos (até aqui especialmente no Fédon e na
três). Assim, a ideia que devemos República
também dizer que o conhecimento
(ciência) compreende, por exemplo,
estas três ciências nos aproxima da
ideia do “método da divisão”: dizer o com formas como “Belo” e “Feio”, que
que as coisas são (como o são também opostos. (Isso pode
conhecimento ou o prazer) buscando mesmo levar à ideia, como na
as divisões naturais em gêneros e passagem da reminiscência em Phd.
espécies. 72a-77a, que temos conhecimento
incorrigível de Formas simples e não
A necessidade por divisões estruturadas como a Igualdade e a
“naturais” conduz Platão à tese que Desigualdade. Essa incorrigibilidade,
não uma Forma “não bela”, por produzida pela ideia de conhecimento
exemplo, “não humana”, “não via reminiscência, recebe, penso,
guindaste” ou “não bárbara”, isto é, resistência em Tht. 189b-190e, 195e-
que não fala grego. A rejeição de 196c, esp. 196c7-8, junto com 187e-
Platão de tais pseudo-atributos 188c, 199c-d, 200a-c, 167a8.). A
também vai contra à posição moderna ênfase no contraste entre as Formas
que, se duas dadas propriedades ou serem uma e os perceptíveis serem
extensões existem, se segue que múltiplos poderia explicar por que
todas as combinações booleanas Platão, antes do Parmênides, presta
destas propriedades ou extensões pouca atenção teórica às relações
existem. A via de Platão não abre o entre as próprias Formas. Porém, ele

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não poderia ter deixado de notar já a existência é. Filósofos e lógicos, em


que teria por fim de detalhar estas um momento – compreensível – de
relações se devesse explicar assuntos zelo pela forma lógica e pela Lei do
centrais como as relações entre os Terceiro Excluído, insistem, em
bens padrão, como a natureza real da contraste, que, se a não existência
saúde e a natureza real da lançadeira, não é um atributo, então tampouco a
e a natureza real do Bem que é a existência pode ser um atributo. Não
Forma do Bem. O Método da Divisão, creio que este
então, ao fazer as Formas um e
múltiplas, dirigirão a atenção ao nicho zelo pela forma lógica e pela Lei do
de cada Forma no interior de estru- Terceiro Excluído seja uma boa
turas muito maiores. A ênfase nas justificação para esta posição
divisões “naturais” explicará também metafísica fundamental, a despeito de
a oposição de Platão a tratar quão necessário possa parecer resistir
“bárbaro” ou “não humano” como ao Argumento Ontológico.
objetos de ciência e a introdução da
Forma do Outro no Sofista para cobrir Como não tenho mais espaço
todos estes predicados negativos de para discutir a Teoria das Formas
uma tacada, sem nenhum dos tardia, permitam-me simplesmente
supostos pseudo-atributos concluir que hoje há ainda muito de
correspondentes. desafio filosófico na Teoria das
Formas.
Parte deste trabalho é ainda
relevante para a lógica e filosofia NOTA
moderna. Assim, em uma discussão
extremamente importante no Sofista, Gostaria de agradecer a Antonio Chu
Platão faz o Estrangeiro (um par- por seus valiosos comentários a uma
menídico!) argumentar que não há versão preliminar.
Forma do “não ser”, ainda que exista
uma Forma do Ser. Platão fica assim REFERÊNCIAS E LEITURA
em contradição com a doutrina COMPLEMENTAR
filosófica e lógica moderna que “a
existência não é um predicado”, isto Beth, E. W (1965). Foundations of
é, não é um atributo. Para Platão, a Mathematics. Amsterdam: North-
não existência não é um atributo, mas HoUand.

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Irwin, T. (1995). Plato’s Ethics. Oxford: the ethical programme of the


Oxford University Press. Republic. Part I: A question about the
plot of the Republic. In D. Cairns, F. G.
Morris, C. R. (1934-5). Plato’s theory Herrmann, and T. Penner (eds.) The
of the good maris motives. Good and the Form ofthe Good in
Proceedings of the Aristotelian So- Plato’s Republic (Proceedings of the
dety 34, pp. 129-42. fourth biennial Leventis conference).
Editor em vista: Edinburgh University
Penner, T. (1987). The Ascent from Press.
Nominalism. Dordrecht: Reidel.

(1988). Sócrates on the impossibility


of (forthcoming). The Good and the
Form of
belief-relative Sciences. Proceedings
of the Boston Area Colloquium in benefit or advantage in the Republic.
Ancient Philosophy III, pp. 263-325. In D. Cairns,

(1991). Desire and power in Sócrates: F.G. Herrmann, and T. Penner (eds.)
the The Good and the Form of the Good in
Plato’s Republic (Procee- dings of the
argument of Gorgias 466a-468e that fourth biennial Leventis conference).
orators and tyrants have no power in Editor em vista: Edinburgh University
the city. Apeiron 24, pp. 147-202. Press. Penner, T. e Rowe, C. J. (1994).
The desire for good: Is the Meno
(2006). Plato’s Theory of Forms in the consistent with the Górgias?
Phronesis 39, pp. 1-25.
Republic. In G. Santas (ed.) The
Blackwell Guide to Plato’s Republic e (2005). Plato’s Lysis. Cambridge:
(pp. 234-62). Malden, Mass. e Oxford:
Blackwell. Cambridge University Press.

(forthcoming). The Form of the Good: Prichard, H. R. (1968) [1928], Duty


and interest. In Moral Obligation, 2a
what it is, and how it fíinctions within ed. (cAp. 3). Oxford: Oxford University

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Hugh H. PLATÃO
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Press. natureza única que apreenDemos


com nossas mentes, não com nossos
Quine, W V O. (1948). On what there sentidos. Supõe-se que as Formas
is. In From a Logical Point of View (pp. expliquem as propriedades que as
1-19). Cambridge, Mass.: Harvard coisas têm em nosso mundo mutável.
University Press. Por exemplo, supõe-se que a Forma
da Beleza, que é eterna e sem
Robinson, R. (1953). Plato’s Earlier qualificação bela, explique a beleza
Dialectic. Oxford: Clarendon Press. das coisas que experimentamos no
mundo à nossa volta. Porém, obras
Ryle, G. (1949). The Concept of Mind. como o Fédon e a República, que
London: Hutchinson. fazem apelo às Formas, põem mais
questão do que respostas. Nenhuma
Sellars, W (1963). Grammar and delas fornece uma explicação
existence: a preface to ontology. In sistemática das Formas, mas
Science, Perception, and Reality (pp. simplesmente se referem a elas a
247-81). London: Routledge and tratarem de outros tópicos, como a
Kegan Paul. imortalidade da alma (Fédon) ou a
educação do rei-filósofo (República).
White, N. E (1970). A Companion to O Parmênides é o único diálogo que
Plato’s Republic. Cambridge, Mass.: expõe uma Teoria das Formas como o
Hackett. foco explícito de sua atenção.
Contudo, o objetivo deste diálogo é
mostrar os modos por causa dos quais
as Formas são problemáticas.
13
Na primeira parte do Parmênides,
Problemas para as formas Platão põe Sócrates, em sua
juventude, expor uma Teoria das
MARY LOUISE GILL Formas, que é então submetida a um
escrutínio intenso e contínuo pelo
A Teoria das Formas de Platão é sua filósofo-mestre Parmênides. As
mais famosa contribuição para a propostas de Sócrates parecem ir mal
filosofia. As Formas são eternas, quando postas a teste e, ao final do
objetos imutáveis, cada um com uma exame, podemos pensar que as

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Formas devem ser abandonadas. O Filosofia de Platão)? Ou devemos


que fazer deste aparente fracasso? As procurar suas respostas na longa
objeções podem ser respondidas e é segunda parte do próprio Parmênides,
Sócrates simplesmente pouco expe- em que Platão apresenta um exercício
riente para responder a elas? Ou filosófico minucioso? Estas questões
Platão via as objeções como fatais indicam por que o Parmênides é
para as suas posições central para a compreensão mais
geral da filosofia de Platão. O fato de
anteriores? Ou pensava ele que as não haver um acordo geral acerca das
objeções podiam ser respondidas, respostas é uma razão de por que o
mas somente por meio de uma diálogo continua a intrigar e fascinar
revisão substancial de suas posições? seus leitores.
O Parmênides marca uma virada na
filosofia de Platão, sendo a minuta de Neste capítulo, meu foco serão
um estágio crucial da reflexão e os principais problemas para as
autocrítica após sua confiante obra- Formas propostos na primeira parte
prima, a República? Se for isso, onde do Parmênides. Minha posição
devemos encontrar as revisões? pessoal, que não posso defender em
Devemos procurá-las em diálogos detalhes aqui, é que o Parmênides
como o Teeteto, Sofista, Político e como um
Filebo, que muitos estudiosos datam
após o Parmênides? E o que fazer com
o Timeu, que é tradicionalmente visto
como um diálogo tardio, que parece todo, inclusive o exercício filosófico,
ser consistente com o Fédon e a tem um único propósito geral:
República no tratamento dado às mostrar que deve haver Formas, ou
Formas? Ignora ele as objeções no objetos inteligíveis de algum tipo, se
Parmênides e indica assim que estas devemos explicar de alguma maneira
objeções não eram vistas como o mundo.1 Assim, as objeções às
sérias? Ou estão errados os Formas propostas na primeira parte
estudiosos que datam o Timeu depois do diálogo devem ser levadas muito a
do Parmênides? Alternativamente, o sério. A apresentação das Formas e de
Timeu de fato responde ao suas relações com as coisas sensíveis
Parmênides (sobre o Timeu, ver o nos diálogos tardios provavelmente,
capítulo O Papel da Cosmologia na portanto, diferirá em alguns aspectos

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importantes daquela em diálogos em coisas corriqueiras. Ele próprio


como o Fédon e a República. Este pode ser um e muitos (p. ex., uma
capítulo porá o foco não nestes pessoa entre as sete pessoas
desenvolvimentos posteriores, mas presentes, mas muitas partes) porque
em pinçar os principais problemas participa de duas Formas, a Forma do
para as Formas que Platão pensou Um e a Forma do Múltiplo.
que precisava enfrentar. Similarmente, pode ser como Símias
em um aspecto e diferente dele em
TEORIA E CRÍTICA DAS outro aspecto por participar das
FORMAS NO Formas de Semelhança e
PARMÊNIDES Dessemelhança. As Formas de
opostos devem explicar as
A principal discussão no Parmênides características opostas que possui
começa depois que Zenão, o jovem (chamaremos estas características
colega de Parmênides, terminou a
leitura de seu livro. O livro continha, “características imanentes”).
aparentemente, uma série de Segundo Sócrates, não surpreende
argumentos que visavam a defender a que um objeto sensível único tenha
tese de Parmênides, “tudo é um” características opostas. As Formas
(Prm. 128a8-bl), de críticos que explicam isso. Seria surpreendente,
acreditavam em uma pluralidade de porém, se essa copresença ocorresse
coisas. Os argumentos de Zenão nas próprias Formas. Obviamente, se
tinham provavelmente a seguinte as Formas devem explicar a
forma: se as coisas são múltiplas, copresença dos opostos nas coisas
devem ser F e não F (p. ex., igual e corriqueiras, elas não devem elas
desigual, limitado e ilimitado). Isso é próprias estar sujeitas ao mesmo
impossível porque as mesmas coisas problema. De outro modo, teríamos
não podem ter propriedades de apelar a outras entidades para
incompatíveis. explicar a copresença nelas e as
Formas originais deixariam de ser
Sócrates responde a Zenão em explicativas.
uma longa fala, argumentando que o
problema de Zenão pode ser Pode-se bem perguntar por que
resolvido: Sócrates tem uma teoria se deve pensar que necessitamos de
que explica a copresença de opostos uma teoria de Formas imateriais

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eternas para explicar a copresença de sentimento de paradoxo, do qual não


opostos. A mesma coisa pode, participamos.
obviamente, ser F e não F se for F em
um aspecto ou relação e não F em Um dos principais problemas para as
outro ou F em um momento e não F Formas, como Parmênides
em outro. Há um problema somente reiteradamente mostra no
se a mesma coisa for F e não F ao Parmênides, é que a Forma F é tanto F
mesmo tempo, sob o mesmo aspecto quanto não F – por exemplo, o Um é
e em relação à mesma coisa. Platão um e muitos. Este é um problema
regularmente menciona os sério, já
qualificativos; contudo, é um fato
interessante que os interlocutores em
seus diálogos mesmo assim acham
perturbador que a mesma coisa seja F que as Formas devem explicar a
e não F, mesmo que seja F e não F em copresença de opostos nas outras
diferentes aspectos, comparações, coisas. Como podem elas explicar se
etc. A razão para este desassossego estão elas próprias sujeitas ao mesmo
parece ser que, enquanto nós problema?
modernos tomamos os predicados
como “grande” e “pequeno”, “igual” e A crítica de Parmênides das
“desigual” como incompletos, Formas se divide em seis movimentos,
requerendo algo a mais para que etiquetarei por conveniência:
completar o sentido, Platão Escopo das Formas (130bl-e4), Dilema
considerava estes predicados como Todo-Parte (130e4- 131e7),
completos – como especificando Regressão da Grandeza (132al- b2),
propriedades genuínas que um objeto Formas são Pensamentos (132b3-cll),
tem. Por esta razão ele toma uma Regressão da Semelhança (132cl2-
frase como “Símias é grande (em 133a7) e o Argumento da Separação
comparação com Sócrates) e (133all-134- e8).2 Parmênides se
pequeno (em comparação com concentra em duas questões
Fédon)” como perturbadora como a fundamentais: primeiro (Escopo das
frase “o mesmo objeto é redondo e Formas): que Formas existem? Quais
quadrado”: as propriedades são vistas são as razões para postular Formas
como incompatíveis umas com as em algumas situações, mas não em
outras. As Formas devem remover o outras? São boas razões? Segundo

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(Dilema Todo-Parte e Regressão da das Formas, argumentou que os


Semelhança): qual é a natureza da objetos físicos têm as propriedades
relação entre os objetos físicos e as que possuem por participarem das
Formas – a relação conhecida como Formas. Agora parece que, se as
“participação”? Há uma outra questão Formas existem, mas não têm relação
conectada a esta segunda: que tipo de conosco, elas não explicam
entidades são as Formas? São elas
universais? Conteúdos imateriais? nada. Nem fundamentam nosso
Particulares perfeitos (paradigmas)? A conhecimento, já que na temos
incapacidade de Sócrates de explicar a acesso a elas. Então a questão que nos
participação gera também uma outra resta ao final da interrogação de
questão: com que base ele considera Parmênides (Prm. Parte I) é: por que
cada forma uma e é esta base postular as Formas?
aceitável (Regressão da Grandeza e
Formas são Pensamentos)? Vamos discutir aqui quatro
Parmênides revela a inadequação da objeções de Parmênides: Escopo das
posição de Sócrates ao mostrar Formas, Dilema Todo-Parte,
reiteradamente que as Formas não Regressão da Grandeza e Regressão
são um, mas muitos. da Semelhança.

Quando Sócrates finalmente ESCOPO DAS FORMAS


reconhece que lhe falta uma (PRM. I30BI-E4)
explicação adequada da participação,
Parmênides sugere, no movimento O questionamento de Parmênides
final (Argumento da Separação), que neste primeiro movimento se dá em
talvez não haja relação entre os quatro estágios e a questão
objetos físicos e as Formas. As condutora é: que Formas existem? A
entidades em cada grupo estão questão de fundo não expressa é: que
relacionadas somente com entidades base há para postular as Formas em
do mesmo grupo. Mas então, se nós, alguns casos, mas não em outros?
em nosso domínio, não temos relação Sócrates está bem seguro que há
com as Formas e elas, no domínio Formas dos tipos que Parmênides
delas, não têm relação conosco, que lista nos estágios (1) e (2), mas
importância podem elas ter para nós? começa a ter dúvidas acerca das
Sócrates, na sua apresentação inicial Formas mencionadas no estágio (3) e

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parece bem seguro que não há


formas dos tipos mencionados no
estágio (4), embora esteja confuso Aqui Parmênides faz com que
pela possibilidade de as razões para Sócrates confirme dois pontos que
postular as Formas nos outros casos não estavam explícitos em sua
possam também se aplicar aqui. apresentação. Primeiro, a separação
é uma relação simétrica. Sócrates
O estágio (1) questiona acerca disse em sua fala que as Formas se
das Formas de opostos, distinguem como separadas das
aparentemente em referência às que coisas que participam delas (129d6-
Sócrates mencionou em sua longa 8). Ele agora concorda que as coisas
fala: “igualdade e desigualdade, que participam das formas também
multiplicidade e unidade, repouso e são separadas delas. Segundo,
movimento e tudo o mais deste tipo” Sócrates concorda que a semelhança
(129d8-el). Parmênides abre o estágio em si é separada da semelhança que
(1) pedindo um esclarecimento não temos – a característica imanente que
somente sobre esta lista, mas uma Forma explica. Como veremos,
também sobre a relação entre as sua concordância nesse ponto será
Formas e as coisas que participam posteriormente uma fonte de
delas: turbulência para sua teoria.

 Diga-me, você distinguiu como Parmênides não pergunta ainda,


separadas, ao modo como você e assim ainda não sabemos, o que
menciona, certas formas em si e precisamente Sócrates entende por
também como separadas as “separação”. A expressão pode
coisas que participam delas? indicar meramente que as Formas são
Você pensa que a semelhança distintas das coisas que participam
em si é algo, separada da delas e de suas características
semelhança que temos? E o um imanentes e vice-versa (como
e muito, assim como todas as poderíamos dizer que todas duas
coisas sobre as quais Zenão entidades não idênticas são distintas
acabou de ler? uma da outra). Ou quer dizer algo
 Sim, respondeu Sócrates. mais forte, por exemplo, que as
(130bl-6) Formas existem separadamente das
coisas que participam delas e de suas

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características imanentes e vice-versa independentes das coisas que


(como poderíamos dizer de dois participam delas, mas as coisas que
objetos no espaço, como uma mesa e participam delas dependem das
uma cadeira que não está em contato Formas quanto ao que são. A noção
com ela, que elas estão de separação é importante no
espacialmente separadas, ou de dois Parmênides e seu sentido é deixado
eventos no tempo, como a redação vago neste estágio do argumento.
do Parmênides e o ato de esfaquear
Júlio César, que eles são Estão aparentemente incluídas
temporalmente separados). Dois no estágio (1) as Formas para todos os
objetos são separados desse modo se opostos mencionados nos
não tiverem partes em comum. argumentos de Zenão. Platão não nos
Alternativamente, a separação pode dá uma lista completa e somos
ser concebida como uma deixados a imaginar quão extensiva
independência ontológi- ca. Dois itens esta lista deve ser. No estágio (2)
são separados nesse sentido se a (130b7- 10), Parmênides pergunta se
natureza de um não envolve a Sócrates pensa que há Formas do
natureza do outro. Por exemplo, dois Justo, Belo, Bom e tudo o mais deste
elementos químicos – digamos cobre tipo. Conceitos morais e estéticos
e estanho – estão não somente constituíam o foco do interesse de
separados, mas também são onto- Sócrates nos primeiros diálogos e eles
logicamente independentes um do são regularmente citados como
outro. O bronze, por outro lado, é Formas no Fédon e na República. No
ontologicamente dependente de estágio (3) (130cl-4), Parmênides
ambos, já que sua natureza envolve as pergunta se há uma Forma de Ser
naturezas do cobre e do estanho. Esta Humano, separada de nós todos, e
terceira noção é pouco provável de Formas de Fogo e de Água.
ser o que Sócrates entende por
separação em sua fala. Se o for, ele faz Neste momento, Sócrates
um erro grave ao começa a hesitar. Se lembrarmos a
fala de Sócrates, a razão para sua
concordar com Parmênides que a hesitação pode não estar longe. Ele
separação entre as Formas e as coisas introduziu as Formas para explicar a
que participam delas é simétrica. As copresença dos opostos. Ele postulou
Formas podem ser ontologicamente as Formas de Semelhança e

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Dessemelhança para explicar como a dedo? A percepção de um dedo não


mesma coisa pode ser as obriga a fazer apelo ao intelecto. A
simultaneamente semelhante e situação é diferente com a grandeza e
dessemelhante. Conceitos morais e a pequenez, dureza e maciez e outras
estéticos podem dar ocasião para um características perceptivas, porque a
desconforto similar. A Fonte de visão nos diz, por exemplo, que o
Duchamp (um mictório) pode ser bela dedo anular é grande comparado com
para mim, mas feia para você. Um o mínimo, mas pequeno quando
ação considerada como justa em uma comparado com o médio. Aqui o dado
sociedade pode parecer injusta em visual parece inadequado, nos
outra sociedade. O predicado “ser dizendo que a mesma coisa é grande
humano” não dá ocasião para o e pequena. Somos assim provocados
mesmo incômodo como estes últimos a fazer apelo ao intelecto e perguntar:
nos estágios (1) e (2). o que é grandeza? O que é pequenez?

Na República VII (523al0-524d6), Esta passagem não diz que há


Sócrates diz que algumas de nossas uma Forma da Grandeza, mas não
percepções sensíveis provocam, ao uma Forma de Dedo, mas ela
passo que outras não provocam, corrobora a impressão, dada na sua
nosso pensamento à reflexão (ver o longa fala no Parmênides, que
capítulo Platão: Uma Teoria da Sócrates postula as Formas para
Percepção ou um Aceno à Sensação?). explicar a copresença de contrários.
As percepções que dão origem à No caso de objetos físicos como os
reflexão são as que causam uma seres humanos e coisas como o fogo e
percepção oposta ao a água, a percepção não causa um
problema imediato sobre o que são.
Ele, portanto, não sente uma necessi-
dade comparável para postular uma
mesmo tempo. Ele mostra três dedos Forma. Sócrates é representado no
– o mínimo, o anular e o médio – e Parmênides como jovem e
observa que todos eles parecem ser inexperiente. Ao final do primeiro
um dedo. Dado que a visão não gera movimento do exame (130el-4) e de
nenhuma impressão oposta, as novo na parte de transição à Parte II
pessoas comuns não se veem (135c8- d6), Parmênides atribui as
estimuladas a perguntar: o que é um dificuldades de Sócrates à sua

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juventude e falta de treinamento. (4), em que Sócrates titubeia quanto


Como um noviço, ele é provocado à à proposta de que pode haver Formas
reflexão pelos casos obviamente de coisas que parecem indignas ou
difíceis, como grandeza e pequenez, sem valor, como cabelo, lama e
sem compreender completamente sujeira (130c5-d9). Em 130el-4,
que a percepção por ela própria pode Parmênides diz que a relutância de
também ser inadequada nos casos Sócrates é um sinal de sua
que não envolvem um conflito inexperiência. Está ele sugerindo que
percep- tivo óbvio, como nos de ser há uma Forma de todo número de
humano, fogo e água. coisas que denominamos por um
mesmo nome e está ele dizendo que
No estágio (3), nós, como Sócrates por fim haverá de
leitores, somos convidados a reconhecer isso (ver R. 596a6-7; ver
perguntar por que as Formas são também o capítulo As Formas e as
postuladas em alguns casos, mas não Ciências em Sócrates e Platão)? No
em outros. Quais são as razões para Político, o Estrangeiro de Eleia, ao
postular Formas de objetos físicos e discutir o método da divisão, diz que
coisas (Phlb. 15a4-5 menciona uma as divisões devem ser feitas nas juntu-
Forma do Ser Humano e Ti. 51b8 ras apropriadas (Plt. 262a8-263al; cf.
menciona uma Forma do Phd. 265el-266bl). Por exemplo, é um
erro dividir a classe dos seres
Fogo)? O problema de Zenão – a humanos em gregos e bárbaros. O
copresença de opostos – infecta estes último não é um grupo próprio
casos também? É o problema de porque inclui todas as pessoas que
Zenão somente uma razão entre não são gregas. Embora exista um
outras para postular as Formas? nome comum – “bárbaro” – esta
Talvez mesmo seja a razão errada passagem sugere que seria
para as postular? Talvez Sócrates inapropriado postular uma Forma
deva voltar aos estágios (1) e (2) e correspondente. Ou está ele
reconsiderar sua justificação quanto a meramente chamando a atenção de
postular Formas nestes casos. Sócrates de que precisa de uma razão
para negar que haja Formas de
O mandato de considerar quando cabelo, lama e sujeira melhor do que
e por que as Formas são necessárias é o fato de parecerem vulgares e sem
repetido com maior força no estágio valor? Qual ou quais problemas as

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Formas devem resolver? Um partes? Se for isso, talvez deva haver


platônico precisa de uma Forma da Formas correspondentes a cada uma
Lama, por exemplo, se há Formas da das partes, de modo que uma
Terra e da Água (ver Tht. 147c4-6, explicação do todo possa ser dada
onde o termo aqui traduzido por pela enumeração das partes. Ou é o
“lama” é usualmente traduzido por todo diferente de todas as partes? Se
“barro” e definido como “terra for isso, que relevância as partes têm
misturada com um líquido”)? Se as para uma explicação do todo? Neste
Formas têm um papel explicativo, caso, talvez precisemos somente de
talvez misturas de materiais possam uma Forma do Todo. Ou é a relação
ser explicadas por referência às entre todo e partes de algum tipo
Formas das matérias que compõem a especial? Se for isso, isto também
mistura. E o que dizer das partes afetará nossa decisão sobre que
funcionais de uma coisa, por Formas existem (ver Harte, 2002; Tht.
exemplo: um 203c4-205e8; Bumyeat, 1990, p. 191-
209).

O DILEMA TODO-PARTE
dedo humano ou o cabelo humano? O (PRM. 130E4-131 E7)
platônico precisa de uma Forma do
Dedo ou do Cabelo, se houver uma Parmênides agora se volta à questão:
Forma do Ser Humano? Pode-se qual é a relação entre os objetos
explicar talvez o que é um dedo ou físicos e as Formas? As propostas de
cabelo caso se compreenda o que é Sócrates sobre isso e os argumentos
um ser humano (ver Ti. 76cl-d3 para que as acompanham, bem como as
uma explicação funcional do cabelo)? sugestões de Parmênides em bene-
fício de Sócrates também dizem
Este movimento provoca mais respeito a uma outra questão: que
questões: se uma entidade é tipo de entidades são as Formas?
composta de partes (como a lama é
composta de terra e água e um ser Parmênides inicia, como fizera no
humano é composto de várias partes início do primeiro movimento,
funcionais e não funcionais), qual é a aportando esclarecimentos sobre o
relação entre o todo e as partes? É o que pensa ser a posição de Sócrates e
todo o mesmo que o agregado das pedindo que Sócrates confirme:

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- Porém, diga-me isto: é sua tese vantagem ser lido à luz daquela
que, como você diz, há certas discussão. No Fédon, Sócrates fornece
formas, das quais estas outras o que ele denomina explicação
coisas, por meio da participação “segura” de por que as coisas belas
nelas, derivam seus nomes são belas. Ele sustenta que a beleza
delas não é explicada por sua cor
 como, por exemplo, se tomam brilhante, forma ou algo assim. Aquilo
semelhantes participando da sobre o que está seguro é que a Forma
semelhança, grandes do Belo as faz belas; isto é, ele é vago
participando da grandeza e acerca de qual é a relação entre a
justas e belas participando da Forma e as coisas cuja característica
justiça e da beleza? ela explica. Ele diz:
 É bem assim, respondeu
Sócrates. (130e4-131a3) Nada outro a faz bela a não ser a
presença, comunhão ou outro
Sócrates nada dissera modo de ocorrência daquele
expressamente a respeito de nomes belo. Vou me refrear de afirmar
em sua fala, mas a proposta de isso e afirmar somente que é
Parmênides desdobra a tese de pelo belo que todas as coisas são
Sócrates que as coisas que participam belas. (100d4-8)
da Grandeza se tornam grandes. Se
tijolos e pedras vêm a ser semelhantes Para compreender como o Belo
por participarem da Semelhança, torna as coisas belas, precisamos
então, por participarem da compreender a relação entre a Forma
Semelhança, podem ser chamadas e as coisas cuja característica ela
pelo nome “semelhante”, derivado do explica. A relação conversa, entre os
nome da Forma (ver o capítulo Platão objetos físicos e uma Forma, é co-
e a Linguagem). nhecida como “participação”. Em
nosso diálogo, Parmênides força
A frase inicial de Parmênides, com Sócrates a dar uma explicação da
sua referência a nomes, lembra em participação.
muito o lance de abertura no
argumento final da imortalidade da
alma no Fédon, sugerindo que nosso
argumento presente pode com Parmênides propõe duas

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alternativas e Sócrates concorda que coisas.


são exaustivas (Na Regressão da
Grandeza, Sócrates proporá uma Em que consiste exatamente esta
outra alternativa.). Uma coisa que proposta? O que Sócrates entende
participa de uma Forma participa da por “dia”? Entende ele um e mesmo
Forma inteira ou somente de uma período do dia: um período definido
parte dela?3 Reformulemos a questão entre o nascer e o pôr-do-sol, que está
em termos de características simultaneamente presente em Tebas
imanentes: quando algo participa de e Atenas? Ou uma e mesma luz do dia:
uma Forma, adquire ele sua uma matéria invisível, homogênea
característica imanente da Forma que cobre muitos lugares diferentes
inteira ou somente de uma parte ao mesmo tempo? Talvez Platão
dela? Por exemplo, quando Símias esteja nos incitando, como leitores, a
participa da Forma da Grandeza, é a considerar as implicações destas
grandeza nele o inteiro da Grandeza alternativas (ver o capítulo
ou meramente uma parte dela? Interpretando Platão). Uma questão
que podemos fazer é por que Sócrates
Tome a primeira parte do dilema: propõe uma analogia. Se tivesse
pode uma Forma inteira – uma coisa – nascido um século mais tarde e
estar em cada uma de numerosas seguido os cursos de Aristóteles no
coisas? Se sim, não estará a Forma Liceu, poderia ter replicado:
separada de si mesma ao estar, como
um todo, nas coisas que são “Parmênides, se você pensa que
separadas umas das outras (131a8- a forma está separada de si
b2)? mesma pelo fato de estar
simultaneamente em
Sócrates sugere que uma Forma numerosas coisas, você está
pode simultaneamente estar, como enganado quanto à natureza das
um todo, em cada uma das formas. As formas são
numerosas coisas, se for como um e
mesmo dia (131b3-6). Um e mesmo universais e a natureza de um
dia, diz ele, está em muitos lugares ao universal consiste justamente
mesmo tempo sem estar separado de em estar presente em muitos
si mesmo. Se a Forma for como isso, lugares ao mesmo tempo e ser
pode ser uma e a mesma em todas as predicado em comum de

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numerosas coisas. (Ver simultaneamente em muitos lugares,


Aristóteles Int. 7,17a39-40; ou como uma vela que cobre nume-
Metaph. VII.16,1040b25-6.) Os rosas pessoas, uma e mesma Forma
universais não estão por isso está em muitas coisas que participam
separados de si próprios”. dela.

Porém, a distinção de Aristóteles A analogia de Parmênides leva ao


entre universais e particulares ainda segundo lado do dilema. Se uma
não foi formulada e Sócrates pode Forma é como uma vela, não é uma
não dispor da distinção. Em uma parte dela que está sobre cada
interpretação da analogia, Sócrates pessoa? Quando Sócrates concede
parece conceber as Formas como os que diferentes partes da vela estão
abstratos; em uma outra, como sobre diferentes pessoas, Parmênides
materiais invisíveis homogêneos. observa que, neste caso, as Formas
são divisíveis e as coisas que
Leitores por vezes criticam participam delas participam de uma
Parmênides por não levar a sério a parte. Contrariamente ao que
proposta de Sócrates e por intimá-lo a pretendia Sócrates com sua analogia,
aceitar sua própria analogia menos somente parte da Forma está em cada
auspiciosa. Talvez Parmênides coisa. Neste caso, as Formas não são
reconheça que a analogia de Sócrates meramente divisíveis, mas de fato
pode ser interpretada de mais de um estão divididas em partes. Se uma
modo e proponha o seu modo para Forma está dividida em partes, é ela
ver se é o que Sócrates tem em ainda una?
mente. De qualquer modo,
Parmênides muda a analogia do dia
para a da vela (131b7-9) e Sócrates
aceita com hesitação a alteração. Se O Dilema Todo-Parte toma as
cobrirmos várias pessoas com uma Formas como se fossem quantidades
vela, podemos dizer que uma coisa de material das quais as coisas
está sobre muitas. Esta analogia, em- participam. A questão é se uma coisa
bora menos provocativa que a de que participa recebe todo o material
Sócrates, tem a vantagem de remover em sua participação ou se recebe
a ambigüidade anterior. Assim como somente uma parte dele. Se Símias
uma e mesma luz do dia, que está participa da Grandeza, é a grandeza

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que tem – o característica imanente Parmênides ironiza a tese que as


nele – a Grandeza como um todo ou Formas são análogas a quantidades de
uma parte da Grandeza? Pense em material trazendo sua atenção às
um material propriamente dito como Formas de quantidades. Ele formula
o ouro. Se concebermos o ouro como uma série de paradoxos que giram em
o elemento químico com o número tomo de duas concepções de Formas
atômico 79, podemos dizer que o e características imanentes que estão
ouro, como um todo, está em cada em conflito evidente nesses casos.
pepita porque a natureza do ouro está Primeiro, Parmênides e Sócrates
presente por inteiro em cada uma. parecem concordar que as Formas e
Assim, o ouro está separado de si as características imanentes têm a
mesmo ao estar, por inteiro, em mesma propriedade – a propriedade
coisas que estão separadas umas das cuja presença nas coisas a Forma é
outras (primeiro lado do dilema). Se, chamada a explicar – assim como a
por outro lado, concebermos o ouro, matéria ouro e porções de ouro são
como um todo, como a totalidade do ambas dourados. Assim, Grandeza em
ouro, ele é a soma de todas as si e grandeza em Símias são grandes.
instâncias de ouro no mundo, seja em Segundo, com base na
moedas, joias, pó, pepitas ou ainda na
terra. O ouro, como um todo, se concepção das Formas e das
divide em pedaços e está disperso nas características imanentes como todos
várias coisas douradas (segunda parte e partes, o todo é maior que cada uma
do dilema). Podemos aceitar ambas as de suas partes e cada parte é menor
alternativas no caso de coisas do que o todo. Dadas estas duas
materiais porque entendemos coisas concepções, há paradoxos no caso da
diferentes por “todo” nas duas Grandeza, Igualdade e Pequenez.
situações e ambas parecem ter
sentido. Porém, Sócrates acha que Tomemos o Pequeno. O
ambos os lados do dilema são resultado paradoxal no caso do
preocupantes. Como podem as Pequeno gira em torno da suposição
Formas, que ele toma cada uma sendo que a Forma de Pequenez é pequena:
uma, estar separadas de si mesmas ou o Pequeno é pequeno porque esta é
ser agregados de partes dispersas? sua característica própria, mas
também grande, porque é um todo,
Na seção seguinte (131cl2-e5), que é maior do que cada uma de suas

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partes. Parmênides também diz, a Sócrates, que a Forma é, ao final,


discutir a Grandeza, que as coisas são muitos.
grandes “por uma parte da grandeza
que é menor que a grandeza em si” A REGRESSÃO DA GRANDEZA
(131dl-2), o que claramente implica (PRM. I32AI-B2)
que a Grandeza é grande. A Grandeza
é grande por duas razões: no modo Desta vez, Parmênides não inicia seu
como a Pequenez é pequena, porque argumento fazendo um pedido de
esta é sua característica própria, e no esclarecimento. Ao propor uma razão
modo como a Pequenez é grande, de por que Sócrates
porque é um todo, que é maior do
que cada uma de suas partes. A
suposição que a Pequenez é pequena,
a Grandeza é grande e, em geral, que poderia pensar que cada Forma é um,
F-dade é F é conhecida como a ele vai além de tudo o que Sócrates
“Suposição de Autopredicação” (ver disse em sua fala. Eis o argumento:
Malcolm, 1991) e vai aparecer nos
dois argumentos de regresso a seguir. 1. Eu suponho que você pense
que cada forma é um com
Ao final do Dilema Todo-Parte, base no seguinte: sempre que
Parmênides pergunta: “Sócrates, de uma multiplicidade de coisas
que modo, então, as coisas parece a você ser grande, tal-
participam de suas formas, se não o vez pareça haver uma
podem fazer nem pelas partes nem característica, a mesma
pelos todos?” (131e3-5). Sócrates quando você olha para todas
admite que não tem resposta. No elas e daqui você conclui que
argumento seguinte, Parmênides o grande é um.
muda o foco do problema da
participação, com seu resultado É verdade, disse ele.
embaraçoso que cada Forma é
muitos, à razão de Sócrates para 2. E acerca do grande em si e
pensar que uma Forma é um. E, uma das outras coisas grandes? Se
vez estabelecida a razão de Sócrates, você olhar para elas do
ele se servirá desta razão para mesmo modo com o olho da
mostrar, para o desânimo de novo de mente, não parecerá de novo

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uma coisa grande graças à coisas grandes indica que ele supõe
qual todas estas coisas que Sócrates considera a Forma como
parecem grandes? um universal: uma coisa presente em
muitos lugares ao mesmo tempo.
Parece que sim.
Esta interpretação tem uma séria
3. Então uma outra forma de desvantagem. A passagem sugere que
grandeza fará sua aparição, Sócrates faz uma inferência. Ele deve
tendo surgido junto com a concluir que
grandeza em si e as coisas que
participam dela, e mais uma o Grande é um com base no que
vez uma outra junto com observa a respeito das múltiplas
todas estas, graças à qual coisas grandes. O que ele observou foi
todas elas parecem grandes. uma característica. Se uma
Cada uma de suas formas não característica que ele observou é a
será mais uma, mas ilimitada Forma, que inferência ele fez quando
em número. (132al-b2) conclui que a característica é um?

O que é proposto no estágio (1)? A Regressão da Grandeza deve


Diz Parmênides que sempre que ser examinada neste contexto, em
Sócrates olhar para uma quantidade sequência ao Dilema Todo-Parte. No
de coisas – templos e elefantes, Dilema Todo-Parte, Parmênides e
digamos –, todas as quais lhe parecem Sócrates supõem ambos que a Forma
grandes, ele observa que elas par- é um e Parmênides pergunta como
tilham uma característica comum, a uma Forma pode estar em muitas
grandeza, e disso conclui que o coisas (131a8-9). Ele argumentou
Grande é um? Está Parmênides que, se a Forma está em muitas
sugerindo que Sócrates toma como a coisas, então ela não pode ser um,
Forma a característica que ele observa mas está dividida em muitos (131c9-
nas várias coisas grandes? Se for isso, 10). Esta conclusão o leva agora a
então ele supõe que Sócrates identifi- perguntar: por que Sócrates supõe
ca a Forma com a característica que a Forma é um? São adequadas
imanente. Ao mesmo tempo, a tese suas razões para esta suposição?
de Parmênides que Sócrates observa Parmênides mostrará que as razões
uma característica exibida em muitas de Sócrates são inadequadas,

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argumentando mais uma vez que sua por que agora concorda em olhar para
Forma é muitas, desta vez por ela juntamente com suas instâncias?
reduplicação. Uma característica comum é o que
agora chamamos de universal. É a
Parmênides está provavelmente característica comum que
sugerindo o seguinte no estágio (1):
sempre que Sócrates olha para um
número de coisas que parecem todas
ser grandes, ele pensa que uma templos e elefantes partilham ela
característica (chame-a “o grande em própria grande? Exceto para certos
nós”) é a mesma em todos os casos e universais pouco usuais, como a
daqui ele infere que a Forma, que unidade e o ser, a maioria dos
corresponde a esta característica, é universais não são instâncias de si
um. No restante do argumento, próprios.
Parmênides mostra a inadequação
das razões de Sócrates para esta Vimos no Dilema Todo-Parte que
conclusão. Parmênides deriva os paradoxos no
caso do Grande, Igual e Pequeno
No estágio (2), o andamento fica pe- baseando-se em duas concepções das
culiar. Pergunta-se a Sócrates para Formas e das características
repetir o que fez no estágio (1), mas imanentes que entram em conflito no
desta vez com o olho da mente: assim caso das Formas das quantidades.
como olhou para as múltiplas coisas Uma delas era a Suposição de
grandes no início, ele deve olhar do Autopredicação: tanto a F-dade em si
mesmo modo (mas com o olho da quanto a F-dade em nós são F. Por
mente) para o Grande em si, jun- exemplo, a Grandeza em si e a
tamente com as outras coisas grandeza em Símias são grandes. Esta
grandes. Por que Parmênides propõe discussão, todavia, toma as Formas
isso como exequível e por que não como universais, mas como
Sócrates permite que ele derive as análogas a materiais. Não é estranho
consequências que propõe? Se, na pensar que a matéria ouro é ouro,
primeira parte, Sócrates tomou a mas é muito estranho pensar que o
Forma simplesmente como a universal ouro é dourado ou que o
característica comum (como na universal grandeza é grande. (Alega-
primeira interpretação do estágio (1)), se que a Autopredicação ocorre

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ocasionalmente nos diálogos: Prt. efeito e o apelo à Forma deve explicar


330c2-e2, Hp. Ma. 292e6-7, Phd. o efeito. Neste sentido, a Forma
100c4-6.)
pode ser vista como uma causa.
Se as Formas são universais, mas Observe que, no estágio (2),
au- topredicativas, talvez a relação Parmênides menciona uma coisa
entre sujeito e característica seja graças à qual o Grande em si e as
diferente da que ocorre em outras coisas grandes parecem
predicações normais. Por exemplo, grandes e, no estágio (3), ele fala de
talvez “a justiça é justa” não seja uma uma Grandeza graças à qual a
predi- cação, mas um juízo de coleção, Grandeza!, Grandeza2 e as
identidade, no qual o predicado outras coisas grandes são grandes.
reidentifíca o sujeito. Ou talvez seja Esta linguagem causai faz lembrar a
um atalho para “a justiça é tudo o que explicação “segura” de Sócrates no
é ser justo”, em que o que segue o “é” Fédon, antes discutida: “afirmo
(de identidade) pode ser substituído somente que é graças ao belo que
por uma definição, assim que a todas as coisas belas são belas”
tivermos (Nehamas, 1979). Porém, se (100d7-8).
temos de entender o “é” em “a
Grandeza é grande” como o “é” de Platão provavelmente atribui a
identidade, Sócrates não tem razão Sócrates a tese sobre causas que
em agrupar a Forma com as coisas Aristóteles vai mais tarde esposar:
grandes, pois, nesse caso, a Grandeza uma causa tem a característica que
não tem uma característica em um efeito tem em virtude dela. Platão
comum com elas. e Aristóteles provavelmente herda-
ram ambos esta ideia de seus
Sócrates de fato aceita fazer o predecessores. Considere esta
agrupamento, porém. A Forma da passagem no Fédon:
Grandeza é provavelmente vista nesta
passagem como uma causa, embora Parece-me que, se algo é belo
não uma causa no nosso sentido além do belo em si, é belo por
moderno. Uma Forma não é um nenhuma outra razão do que
evento nem a Forma faz algo para pelo fato de participar do belo; o
gerar um efeito. Ainda assim, a Forma mesmo vale para os todos os ca-
é de algum modo responsável pelo sos. Você aceita este tipo de

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explicação? (100c4-7) coisas passam a ser semelhantes e


ficam semelhantes participando dela.
Sócrates aqui parece estar Pensa ele que a Semelhança em si é
reivindicando que o Belo em si é belo semelhante por partilhar a
e que as outras coisas são belas Semelhança? Observe que Sócrates
porque participam dele. A Forma do diz que uma Forma é “em si por si
Belo, que é ela própria bela, explica a mesma”. Esta expressão pode ser
beleza das outras coisas. entendida em mais de uma maneira.
Em um sentido, ela significa
Se Sócrates pensa as Formas “separada”. Em outro, algo é em si por
como causas que têm a característica si mesmo se ele é ele próprio
de que são explicativas em outras responsável pelo seu próprio ser,
coisas, então deve estar preparado independentemente de outras coisas.
para ver (como o olho da mente) o Se Sócrates pensa que as Formas são
Grande em si juntamente com as causas, deve pensar que as Formas
outras coisas, já que ela partilha com são o que são por – em virtude de, por
eles uma característica comum. causa de – si mesmas, não por (ou por
causa) de algo outro que elas mesmas.
Porém, devemos agora nos perguntar Porém, se é isso o que pensa, por que
por que ele deixa Parmênides gerar em nosso argumento ele aceita a
uma regressão. Se Sócrates crê que regressão? Deveria objetar que as
uma Forma explica a característica outras coisas são grandes por causa
que as outras coisas têm, ele deveria da Grandeza, mas a Grandeza em si é
insistir que a Forma não precisa ela grande por causa de si mesma.
própria de mais explicação. De outra
forma, sua teoria ficará sujeita à re- Sócrates não recusa a regressão,
gressão que Parmênides descreve. Em todavia, aparentemente
sua longa fala, Sócrates mencionou concordando que o grande em si é
“uma forma, em si por si mesma, da grande por causa de algo outro do
semelhança” e disse que as outras que ele próprio. Estudiosos supu-
coisas partilham dela (128e6- 129a3). seram que ele está baseando-se em
É ao partilhar a Semelhança que as uma Suposição de Não Identidade
tácita, que formulam de vários modos
e talvez de modo mais profícuo como:
“nada é F em virtude de si mesmo

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(Petersen, 1973; Fine, 1993). (130d3-5). Esta reação sugere que, no


Obviamente ele precisa fundar-se em caso das Formas que ele aceita, ele as
tal suposição, já que aceita a vê como existindo à parte das coisas
regressão. A questão é por que faria de que são explicativas e não como
esta suposição, visto que ela rebate características que percebemos nelas.
tão obviamente a teoria explicativa
que defendera em sua longa fala. Se a existência separada é o que
Sócrates entende por separação,
Encontramos uma razão na parte então, ao assentir à segunda proposta
anterior do diálogo. Retome o pedido de Parmênides em 130b3-4 que a
inicial de esclarecimento de Semelhança em si é separada das
Parmênides feito no começo do coisas semelhantes que temos, ele
Escopo das Formas (130bl-5, citado concorda com uma premissa que
acima). Parmênides explicitou dois Parmênides pode usar na Regressão
pontos que não estavam explicitados da Grandeza. A Teoria das Formas
na longa fala de Sócrates: primeiro, a causai de Sócrates o faz ver a
separação entre Formas e coisas que Grandeza em si como grande (porque
participam delas é simétrica; ela explica esta característica em
segundo, as Formas são separadas outras coisas). Consequentemente, a
não somente das coisas que Grandeza em si pode ser acrescentada
participam delas, mas também da ao grupo de coisas que têm uma
característica imanente de que são característica imanente comum. Uma
explicativas. característica imanente não existe à
parte dos objetos de que é uma
A separação foi reiteradamente característica. Porém agora, já que
discutida no Escopo das Formas. Sócrates pensa que, dado que a
Enquanto Sócrates concordava nos Forma existe à parte da característica
estágios (1), (2) e (3) que as Formas de que é explicativa, a Forma não
mencionadas são pode explicar sua própria
característica imanente. Ele deve,
separadas das coisas, no estágio (4) então, postular mais uma Forma para
ele se refreia diante da ideia que as explicar a característica imanente que
Formas de materiais indignos são a primeira Forma partilha com coisas
separadas, dizendo que cabelo, lama que participam delas. A título de
e sujeira são aquilo só que vemos causa, a segunda Forma terá então a

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mesma característica, e então deve importante, pois é uma posição


haver uma terceira Forma, separada avançada em outros diálogos de
da segunda, que a explica. E assim Platão, inclusive no Timeu. Assim,
opera a regressão. As Formas geradas podemos presumir que é uma
pela regressão são qualitativamente concepção que o próprio Platão levou
idênticas, mas numericamente muito a sério. Sócrates diz que o que
distintas, porque cada uma existe lhe parece mais provável é que as
separadamente de seu predecessor. Formas sejam como paradigmas
(paradeigmatd). Participa das Formas,
Esta consequência indesejada resulta diz ele, é simplesmente ser modelado
do fato de Sócrates aceitar duas teses: com base nelas.
primeiro, a tese as Formas têm a
característica que as outras coisas têm A presente proposta sobre a
em virtude delas; segundo, a tese que participação é muito diferente
as Formas são separadas – existem à daquela considerada no Dilema Todo-
parte – da característica imanente de Parte. Naquela perspectiva, se algo
que são explicativas. Dadas estas duas participa de uma Forma, partilha dela
crenças, cada uma das Formas de como se a Forma fosse uma
Sócrates, que ele considerada como quantidade de material que é
um, se mostram não um, mas distribuída entre as várias coisas que
ilimitadas em participam dela. Na presente tese,
uma Forma é comparável ao modelo
de um artista e as coisas que
participam dela são comparáveis às
número. Desta vez a Forma é muitos, imagens que o artista produz. A
não por divisão, como no argumento participação na Forma F-dade, como
anterior, mas por reduplicação. Sócrates a descreve, é ser símile ou
cópia de F-dade. Observe que ser
A REGRESSÃO DA SEMELHANÇA símile a é uma relação assimétrica. Se
(PR/VI. I32CI2-I33A7) x tem uma semelhança, F-dade não é
um símile de x. Um retrato é um símile
Neste movimento, Sócrates faz uma de Símias; Símias não é um símile do
proposta que enfrenta diretamente o retrato. Parmênides gera dificuldades
problema da participação com uma a Sócrates argumentando que a
nova alternativa. Esta proposta é relação assimétrica está fundada em

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

uma relação simétrica, a relação de primeira Forma e pelas outras coisas


ser semelhante a. Se x é como F-dade, belas. E assim por diante. Há uma
F-dade é como x. Se um retrato de multiplicidade ilimitada de Formas
Símias é como Símias, Símias é como que são qualitativamente as mesmas,
o retrato. mas quantitativamente distintas.

Há dois modos de construir o O segundo modo de ler o


argumento que vem em seguida. Em argumento consiste em tomá-lo como
uma leitura, Parmênides gera uma dizendo respeito à Forma da
regressão em muito do mesmo modo Semelhança (ver Schofield, 1996;
como havia feito no argumento Allen, 1997). Lida deste modo, a
anterior sobre a Grandeza. Tome regressão fica bem diferente da
qualquer Forma, digamos a Forma da anterior. Sócrates cai em dificuldades
Beleza. De acordo com a proposta de por não reconhecer que a semelhança
é uma relação entre entidades, não
Sócrates, as múltiplas coisas belas são um item que está em uma outra
belas porque são semelhanças do relação com as entidades que ela põe
Belo em si. Parmênides então observa em relação. Iniciamos como antes
que, se as múltiplas coisas belas são com uma Forma, digamos a Forma da
semelhanças da Beleza, não somente Beleza. A Beleza e suas semelhanças
elas são como a Beleza, mas a Beleza são umas como as outras, portanto
é como elas. Já que são umas como as elas têm uma característica em
outras, a Beleza e suas Semelhanças comum, a saber (tanto beleza quanto)
têm uma característica em comum semelhança. Sócrates sustentou em
com base na qual são umas como as sua longa fala que as coisas são
outras, a saber, a beleza delas. (Desta semelhantes por partilharem da
vez, ao invés de supor a Semelhança. Portanto, ele acredita
autopredicação, Parmênides a deduz que, se a Forma da Beleza e as
da proposta de Sócrates.) Porém, já múltiplas coisas belas são umas como
que a Forma que explica esta as outras, elas são semelhantes por
característica é separada dela participarem da Semelhança. Se as
(Suposição da Separação), uma múltiplas coisas belas e o Belo em si
regressão se faz como antes. Outra participam todos da Semelhança,
Forma da Beleza fará sua aparição então, segundo a presente proposta,
para explicar a beleza partilhada pela eles são semelhanças da Semelhança.

Hugh H. Benson 304 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

A Forma da Semelhança, como um deriva uma regressão ao enfocar a


modelo, é como as coisas que são relação entre uma Forma de que as
como ela; assim, pode ser agrupada coisas participam, mostrando que, se
junto com elas com base em sua algo participa de uma Forma, ele
característica comum, a semelhança. participa de um número ilimitado. A
O que serve de liga a este novo grupo? Regressão da Semelhança deriva uma
regressão ao enfocar a relação entre
um objeto e a Forma de que participa,
tratando esta relação como estando
Não nenhuma razão lógica por que em uma relação análoga com seus
uma relação não deva pôr em relação relata. A cada passo, a relação que une
a si própria com outras coisas, mas, o grupo precedente deve ser unida
novamente, a adoção por parte de com ele. Deve então haver (dada a
Sócrates da Suposição da Separação o Suposição da Separação) uma relação
impede de reconhecer isso. Ele aceita a mais que as une, e assim
que, já que a Forma da Semelhança é indefinidamente. Deste modo, um
como as outras coisas, deve haver número ilimitado de relações é
uma Forma a mais, Semelhança2 que necessário para conectar um objeto e
põe em relação os membros desta sua característica. A regressão
nova coleção. E, dado que esta nova assemelha-se a uma feita por F. H.
Forma partilha tuna característica Bradley que ficou famosa (1897, p. 18;
com as coisas que participam dela – a cf. Ryle, 1939, p. 107).
semelhança – deve haver uma nova
Forma, Semelhança3, que as põe em CONCLUSÃO
reminiscência, e assim
indefinidamente. O argumento do Parmênides como um
todo mostra que um dos problemas
Há razões textuais para preferir mais sérios para as Formas é a
esta interpretação do argumento e suposição de Sócrates em sua longa
não a anterior (Schofield, 1996). Uma fala que as Formas não podem ser ao
vantagem desta interpretação é que a mesmo tempo F e não F, por exemplo,
Regressão da Semelhança não repete que o Um não é um e muitos. A
simplesmente a Regressão da segunda parte do diálogo sugere que
Grandeza, mas expõe um problema um modo de preservar
diferente. A Regressão da Grandeza

Hugh H. Benson 305 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

o poder explicativo das Formas, ainda Works (Indianápolis: Hackett,


que elas admitam seus opostos, 1997). As traduções de obras
consiste em distinguir o que a Forma é outras que o Parmênides são de
em virtude de si mesma e o que é em minha autoria.
virtude de algo outro que ela própria: 2. Desde Vlastos, 1954, a principal
por exemplo, o um é um em virtude de atração do Parmênides são os dois
si mesmo, mas muitos em virtude de argumentos de regressão, aos
sua participação na multiplicidade (ver quais Aristóteles mais tarde se
Meinwald, 1991). O problema da referirá com o título abrangente
participação não é resolvido tão de “Terceiro Homem” (nenhuma
facilmente, embora se possa versão do argumento de Platão diz
argumentar que, no Timeu, Platão respeito ao homem, mas a versão
introduz o Receptáculo (o meio de Aristóteles o faz).
espacial no qual as coisas sensíveis 3. Para uma interpretação do Fédon
vêm a ser e deixam de ser, mas no qual que encontra al o modelo de
as Formas não podem entrar) para participação criticado aqui, ver
salvar o modelo de participação Denyer, 1983.
paradigma-cópia (Gill, 2004). Porém,
isso não resolverá o problema da REFERÊNCIAS E LEITURA
participação entre as próprias formas. COMPLEMENTAR
Aristóteles reclamou que Platão não
resolveu o problema e ele próprio Allen, R. E. (1997). Plato’s
buscou um tipo diferente de resposta Parmenides, 2nd edn.
(ver o capítulo Aprendendo sobre
Platão com Aristóteles). New Haven, Conn.: Yale University
Press.
NOTAS
Bradley, F. H. (1897). Appearance and
1. Gill, 1996. Este capítulo é uma Reality, 2a.
adaptação de partes da primeira
metade desta obra mais longa. ed. Oxford: Clarendon Press.
Todas as traduções do Parmênides
provêm das traduções de Gill e
Ryan, 1996, reproduzidas em J. M.
Cooper (ed.) Plato: Complete Burnyeat, M. F. (1990). The

Hugh H. Benson 306 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Theaetetus of Plato. Indianapolis: (2004). Plato’s first principies. In A.


Hackett. Pierris

Cohen, S. M. (1971). The logic of the (ed.) Arístotle’s Criticisms of Plato:


third man. Philosophical Review 80, The Metaphy- sical Question (pp. 155-
pp. 448-75. Reimpr. Em 76). Patras: Institute for Philosophical
Research.
G.Fine (ed.) (1999) Plato, vol. 1:
Metaphysics and Epistemology (pp. Harte, V (2002). Plato on Parts and
275-97). Oxford: Oxford University Wholes. Oxford: Clarendon Press.
Press.
Malcolm, J. (1991). Plato on the Self-
Denyer, N. (1983). Plato’s theory of Predication ofForms. Oxford:
stuffs. Philosophy 58, pp. 315-27. Clarendon Press.

Devereux, D. (1994). Separation and Meinwald, C. (1991). Plato’s


immanence in Plato’s Theory of Parmenides. Oxford: Clarendon Press.
Fbrms. In Oxford Studies in Ancient
Philosophy, vol. 12 (pp. 63-90). Nehamas, A. (1979). Self-Predication
Oxford: Oxford University Press. and Plato’s Theory ofForms. American
Reimpr. em G. Fine (ed.) (1999) Plato, Philosophical Quarterly 16, pp. 93-
vol. 1: Metaphysics and Epistemology 103.
(pp. 192-214). Oxford: Oxford
University Press. Fine, G. (1986). Petersen, S. (1973).Areasonableself-
Immanence. In Oxford Studies in predication premise for the third man
Ancient Philosophy, vol. 4 (pp. 71-97). argument. Philosophical Review 82,
Oxford: Oxford University Press. pp. 451-70.

(1993). Onldeas. Oxford: Clarendon Ryle, G. (1939). Plato’s Parmenides.


Press. Mind 48, pp. 129-51. Reimpr. com
posfácio em R. E. Allen (ed.) (1965)
Glll, M. L. (1996). Introduction. In M. Studies inPlato’s Metaphysics (pp. 97-
L. Gill and E Ryan (eds.) Plato: 147). London: Routledge and Kegan
Parmenides (pp. 1-109). Indianapolis: Paul.
Hackett.

Hugh H. Benson 307 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Schofield, M. (1996). Likeness and É sempre escorregadio discernir a


likenesses in the Parmenides. In C. Gill opinião de Platão sobre um ponto
and M. M. McCabe (eds.) Form and específico, dada sua escolha pela
Arguments: Studies in Late Plato (pp. forma de diálogo, suas teses
49-77). Oxford: Clarendon Press. complexas sobre a fala e a escrita e
sua maestria na arte literária (ver o
Strang, C. (1963). Plato and the third capítulo Interpretando Platão). Um
man. Proce- edings of the Aristotelian outro problema ao se tentar dar uma
Society 37, pp. 147- 64. Reimpr. em G. visão da cosmologia de Platão é que
Vlastos (ed.) (1971). Plato: A todas as suas teses cosmoló- gicas são
Collection of Criticai Essays, vol. 1: todas dadas em passagens explici-
Metaphysics and Epistemology (pp. tamente descritas como “mitos” ou
184-200). Garden City, NY: Anchor estórias. Isso é verdade para as três
Books. apresentações mais importantes
destas posições: ao final do Fédon,
Vlastos, G. (1954). The third man quando Sócrates relata um mito sobre
argument in Plato’s Parmenides. o após a morte; no relato do Fedro das
Philosophical Review 63, pp. 319-49. vidas das almas antes do nascimento
Reimpr. com adendo em R. E. Allen e de sua entrada nos corpos; por fim,
(ed.) (1965). Studies in Plato’s no Timeu, no qual a cosmologia é
Metaphysics (pp. 231-63). London: apresentada sob o disfarce de um
Routledge and Kegan Paul. eikos muthos, uma “estória
verossímil”. É a cosmologia
Waterlow, S. (1982). The third man’s importante per se em Platão ou é
contribution to Plato’s somente um cenário para os relatos
paradigmatism. Mind 91, pp. 339-57. da alma, das Formas e do bem viver?
E qual foi a influência das investidas
cosmológicas de Platão nas
investigações posteriores e sérias
14 sobre a astronomia na Academia?

O papel da cosmologia na filosofia de Para começar a lidar com estas


Platão questões, precisamos inicialmente
esclarecer o que se entende por uma
CYNTHIA FREELAND “cosmologia”. Logos é um relato ou

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

uma sentença pensada sobre algo e a kosmos). Esta associação era comum
palavra grega “kosmos” tem como nas teorias dos primeiros pré-
sentido primeiro ordem ou socráticos da archê ou primeiro
ordenamento. Estudiosos princípio do universo, e veremos que
argumentaram que o termo também é verdadeiro em Platão.
“kosmos”, usado para descrever o
mundo no sentido do universo como Para os propósitos deste artigo,
um todo, deriva de um sentido vou deixar de lado algumas das
primeiro de “ordem” e questões mais disputadas sobre como
conceber as estratégias de redação de
que o primeiro uso de fato mais largo Platão. Vou apresentar, ao invés
foi desenvolvido por Platão disso, as teorias que se pode perceber
(Finkelberg, 1998). O narrador do nos diálogos relevantes, supondo que
Timeu, um astrônomo famoso, algo similar à posição mais
descreve nesse sentido amplo a desenvolvida presente neles, a do
ordem do kosmos quando se refere à Timeu, está próximo das crenças do
estrutura do céu (ouranos). Assim, o próprio Platão. Para avaliar as
uso do termo “kosmos” para designar contribuições de Platão à cosmologia
o mundo no sentido do universo
reflete uma mudança, primeiro, de
seu uso para descrever “ordem” no
sentido de “organização do universo” como uma disciplina, precisamos
e, segundo, para “ordem do mundo entender algo do cenário pré-
(ouranos ou céu) como um todo”. socrático destas teorias; ao final, vou
“Kosmos” é usado neste sentido nos também esboçar um pouco da
diálogos de Platão geralmente tidos influência subsequente destas
como tardios: além do Timeu (p. ex., posições (particularmente as do
em 28b3), também no Político Timeu) nos trabalhos posteriores na
(269d8) e no Filebo (29el, 59a3). Academia e para além dela.

A cosmologia nos tempos antigos AS COSMOLOGIAS PRÉ-


compreendia também tipicamente a SOCRÁTICAS E O FÉDON
cosmogonia ou um relato da origem:
um relato de como a ordem universal O Fédon é o relato do último dia da
foi criada e veio a existir (a genesis do vida de Sócrates, ao longo do qual ele

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Hugh H. PLATÃO
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discutiu a natureza da alma e a argumentar com muita potência que


questão de sua existência após a o não ser não poderia existir,
morte com amigos íntimos. Sócrates eliminando assim a possibilidade de
aqui nega ter muito interesse em mudança, que parece requerer em
cosmologia ou teoria física. algum sentido o não ser. Isto é,
Surpreende, então, ler que Sócrates quando algo muda, ela muda para o
diz ter tido interesse por estas ma- que não era antes, mas o não ser não
térias quando jovem. (É objeto de poderia existir. Este é um problema
debate se isso é verdadeiro para o que Sócrates não menciona em seu
Sócrates histórico, mas parece pouco relato como preocupante, mas
provável.) A maioria das cosmologias veremos que ele será central na
com as quais Sócrates se teria explicação do Timeu. Eis aqui uma
deparado, isto é, as dos pré-
socráticos, eram explicações forte razão para argumentar pelo
construídas sobre algum tipo de archê interesse independente de Platão em
ou primeiro princípio do universo. construir uma cosmologia adequada:
Costumeiramente a archê era descrita a fim de fornecer uma resposta
em termos que podemos supor que se metafísica coerente ao desafio de
referem a uma entidade material, Parmênides.
como água, ar, fogo, “sementes” ou
átomos. Contudo, esta matéria era As cosmologias pré-socráticas,
tipicamente concebida em um sentido segundo a apresentação que
ativo e não simplesmente um “ma- Aristóteles nos fornece delas na Física,
terial”. Era também tipicamente buscavam responder a várias
usada para explicar a natureza da questões fundamentais: de onde veio
alma. Assim, o ar de Anaxímenes, por nosso mundo? Como ele evoluiu? De
exemplo, era associado à respiração que é feio? Quais são os princípios
vital de uma pessoa e também mecânicos e físicos que estão por trás
entendido como a principal força ativa dos processos de mudança que
no universo, algo que podemos observamos, sobretudo os or-
conectar com o vento. Em alguns denados? Como podemos explicar a
poucos casos, a archê era algo mais natureza e os movimentos dos corpos
abstrato, como o “Ser Um” de celestes? E, após Parmênides, deve-se
Parmênides. Parmênides quase dar alguma explicação ou resposta ao
terminou com a cosmologia ao seu problema do não ser para tornar

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Hugh H. PLATÃO
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plausível uma ontologia da mudança. relativa, suas revoluções e tudo o mais


Talvez surpreendentemente, a que acontecia com eles, como é
cosmologia também incluía uma melhor que cada um aja e sofra uma
explicação da natureza da vida da ação” (98a2-6). Porém, Anaxágoras
alma. O cosmos era tipicamente visto não aportava nenhuma resposta.
como um ser vivo animado pelo
mesmo princípio ou substância que
deu vida aos animais que estão nele.
Isto é, o macrocosmo era um análogo Assim como as cosmologias pré-
do microcosmo. (Podemos ver este socráticas não atribuíam nenhum
mesmo princípio em operação na propósito no nível cósmico geral,
explicação estoica posterior do assim também ocorria com o nível
universo inteiro como um zôon ou microcósmico de uma pessoa
animal vivo). individual. Aqui, Sócrates dá como
exemplo seu próprio caso de estar na
No Fédon, Sócrates se queixa que prisão: uma teoria puramente física
suas primeiras investidas em não conseguia explicar por que seu
cosmologia o deixaram frustrado corpo ficava na prisão, quando isso de
porque os filósofos que haviam feito fato se devia às suas crenças morais
proposições relevantes negli- acerca do certo e do errado (98c8-
genciaram um elemento-chave: o “por 99a4).
que” ou a razão de vários processos
cosmológicos ocorrerem. Eles todos, O Fédon torna claro que um
disse Sócrates, enfocaram somente as critério central de sucesso em uma
razões físicas ou as causas mecânicas, teoria cosmológi- ca platônica é ser
sem dar explicação dos objetivos ou capaz de fornecer uma explicação
fins da natureza. Sócrates nos diz ter mediante fins, tanto para o cosmos
ficado particularmente frustrado como um todo, quanto para os
quando se deu conta que Anaxágoras, indivíduos em seu interior. É curioso,
que havia erigido a Mente como então, observar que a teoria
primeiro princípio, deixou de explicar metafísica que Sócrates se põe a
seus objetivos ou propósitos. Ele nos estabelecer no Fédon – a
diz que queria saber “do mesmo modo apresentação canônica da Teoria das
sobre o sol, a lua e os outros corpos Formas de Platão – não fornece
celestes, acerca de sua velocidade nenhuma explicação dos propósitos

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Hugh H. PLATÃO
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universais. Sócrates insiste, em sua Sócrates deve tomar a cicuta, ele


busca por razões, que a “aitia simples” parece sentir as dúvidas
ou a explicação de por que algo é belo
é a presença da Forma da Beleza. de seus amigos que pairam acerca de
Similarmente, uma coisa é fria por seus argumentos filosóficos em prol
causa do Frio ou doente por causa da da imortalidade da alma. Ele muda
Doença, mas isso em nada responde à então de atitude e lhes dá em troca
questão do “porquê” em cada caso. um tipo de conto de fadas ou história
reconfortante, apresentada na forma
Flá numerosos outros problemas de um relato elaborado do destino da
com a Teoria das Formas se a alma após a morte (107d-115a). A
olharmos como um esboço de um tipo alma de uma pessoa viaja em um pós-
de cosmologia. Em primeiro lugar, não morte físico em que é submetida a
é de modo algum claro pela julgamento e passa por um processo
apresentação do Fédon quantas de purificação. Este processo varia em
Formas há ou como elas se conectam. função dos diferentes tipos de crimes
Sócrates alude a que deve haver ou “pecados”. As almas devem passar
algum tipo de elo “essencial” entre um tempo no Hades, por vezes
Formas como Um e ímpar ou Neve e sofrendo por um longo período sendo
Frio, mas não é explicado em que esse lançadas em rios ígneos, mas algumas
elo consiste. A Teoria metafísica das almas podem alcançar um tipo mais
Formas no Fédon não fornece elevado de existência.
respostas para algumas das questões
mais fundamentais em cosmologia, Para entender esta existência
como sobre de que maneira o mais elevada, temos uma explicação
universo foi causado e criado, o que física razoavelmente complexa da
explica os corpos celestes e natureza de nosso mundo, a despeito
regularidade dos processos naturais, do fato de Sócrates dizer que não tem
bem como – o que é o mais a habilidade ou tempo para provar
importante, haja vista o próprio crité- que coisas são verdadeiras a respeito
rio fornecido por Sócrates – qual é o da Terra, sua natureza e tamanho
propósito de tudo isso. (108c6). Ele diz: “todavia, nada me
impede de lhes contar a minha
Perto do fim do Fédon, quando se convicção sobre a forma da Terra e
aproxima o momento em que quais são suas regiões” (108d9-e2). O

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

que se segue é uma explicação uma visão, audição e inteligência


bastante elaborada da Terra, descrita superiores. Na verdade, diz-se que
como uma esfera no centro do eles se comunicam diretamente com
universo, onde fica graças ao os deuses: “eles veem o sol, a lua e as
equilíbrio (ela “não precisa de ar ou estrelas como eles são e, nos outros
de alguma outra força para evitar que sentidos, a felicidade deles está em
caia” (109a2-3)). A Terra é muito consonância com isso” (lllcl-3).
grande e vivemos em uma pequena
parte dela, pois possui muitas O cosmos físico na fábula do
concavidades repletas de água, Fédon é um palco feito para o
neblina e ar. Estas concavidades estão julgamento das almas humanas
conectadas por túneis; em alguns (113d-114c). Sócrates aqui ensina a
deles, a água flui, mas, nos mais seus amigos que a virtude será recom-
profundos, há rios ígneos como a lava. pensada e o vício será punido. O conto
Os seres humanos vivem nestas é de natureza consequencialista,
concavidades (109c3-5), mas a sugerindo que devemos ser bons
superfície real da Terra se localiza no nesta vida em razão das preocupações
céu puro, junto com as estrelas (no com nosso destino no pós-morte. Os
éter, 109b-c), e, se pudéssemos que tiveram vidas excepcionalmente
elevar-nos a esta superfície e suportar pias ficam livres e se deslocam acima
a contemplação, então veríamos os para habitar a parte superior (114cl-
objetos no verdadeiro universo 2). Em duro contraste com a
(ouranos) (109e2-7). existência repleta de joias e cristalina
destas almas superiores está o terrível
A vida na verdadeira superfície da destino das almas que são pegas e
Terra é descrita como uma existência lançadas nos aterradores rios e
utópica. Vige um clima perfeito sem correntes de fogo que se vão
doenças. Há numerosos seres ameaçadoramente às profundezas
superiores que também vivem nesta nos buracos da Terra, na região
região, o éter sendo o elemento denominada de Tártaro (112e-113b).
Aqui há ventos terríveis e rios que
fazem voltas como as serpentes
(112d8). Uma alma pode ser torturada
natural deles como o ar é para nós deste modo por milhares de anos.
(llla8- bl). Esses seres superiores têm

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Hugh H. PLATÃO
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Na conclusão desta digressão Há numerosos problemas


bastante elaborada do pós-morte. filosóficos com o mito de Fédon se
Sócrates a resume do seguinte modo: tentarmos avaliá-lo como uma
“quem tiver purificado a si mesmo cosmologia séria. Em primeiro lugar,
suficientemente por meio da filosofia não é coerente de nenhum modo ób-
viverá no futuro sem nenhum corpo; vio com a Teoria das Formas. Onde
fará seu caminho para lugares ainda “esta- riam” as Formas no universo
mais belos, que são difíceis de físico descrito? Segundo, a
descrever com clareza, nem tenho eu possibilidade de escapar do ciclo de
tempo para fazer isso agora” (114c2- reencamação corpórea para algumas
6). almas não está em harmonia com
partes anteriores do Fédon, que
O que fazer com essa fábula? O parecem insistir que os opostos
próprio Platão a marca como algo sempre vêm e se transformam em
contado para confortar os ouvintes, seus opostos (71a6-7). Uma vida sem
como uma estória infantil para corpo sem fim não é compatível com
dormir. Em seus comentários mal a asserção de ciclos repetidos entre
disfarçados sobre esta fábula, Platão estados encarnados e desencarnados,
faz com que Sócrates observe que dado que antes nos é dito que a alma
nenhuma pessoa sensata acreditará deve vir de seu oposto, o estar morto
nela, porém “um homem deve repetir (77c9-d3) (ver o capítulo A Alma
coisas deste tipo para si mesmo como Platônica). Um terceiro problema de
se fossem uma encantação” (114d6- monta é metafísico: o mito não se
7), pois a crença nisso ou em algo interessa com o problema de explicar
similar é um “risco nobre” (114d6). a mudança, de modo que não
Podemos comparar responde ao desafio de Parmênides
sobre o não ser.
isso à discussão de Sócrates sobre a
“mentira nobre” na República e O quarto problema bem sério com o
também à narração mais curta de mito do Fédon, em função da queixa
Sócrates no Górgias da viagem da precedente de Sócrates em relação a
alma justa e pia no após-morte às Anaxágoras, é que o universo físico
Ilhas da Bem-Aventurança (523al- como um todo não é enquadrado em
524a7). nenhum contexto teleoló- gico. Não
nos é dada nenhuma explicação mais

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

geral da criação do universo e de sua finalidade, integrando a metafísica


constituição física que pudesse das Formas em um quadro geral.
explicar seus propósitos maiores. O
que o mito faz é fornecer um certo A ALMA E O UNIVERSO NO FEDRO
sentido de propósito para as vidas
humanas na medida em que as coloca Outra relação mítica elaborada da
em processos cosmológicos muito alma é apresentada no Fedro, que
vastos. Nesta fábula, embora as almas também põe em realce a vida moral
e seus destinos pareçam de fato da alma como um fator central na
centrais, vemos que os seres humanos estrutura do universo. Porém, o mito
não constituem seu objetivo central, do Fedro traz um avanço significativo
já que há várias criaturas “superiores” em relação ao Fédon: ele começa a
e “mais inteligentes”, a cujas integrar as Formas no relato. Sócrates
condições podemos somente aspirar. inicia a seção correspondente do
Se essas criaturas têm de certo modo diálogo descrevendo sua posição que
um papel maior na tele- ologia toda alma é imortal, em 245c5. Ele diz
cósmica – e mesmo o que elas são – que há um semovente ou uma fonte
não é explicado. Platão se serviu da de movimento, em cada alma, que
desculpa da morte iminente de não possui nenhuma fonte. Portanto,
Sócrates para reduzir a cosmologia a tampouco pode ser destruída. (Isso
um esboço aqui, um tipo de pode ser uma resposta a Parmênides,
fazendo toda alma “um ser”
completo, indestrutível, como o Um
de Parmênides.) De novo, como no
fábula narrada para encorajar um Fédon, Sócrates escamoteia a verdade
comportamento virtuoso em seus de sua narração quando observa que
ouvintes. Para uma tentativa séria de “descrever o que de fato é a alma
penar a cosmologia, ele precisa requereria uma explicação muito
fornecer uma teoria cosmológi- ca longa,... mas dizer a que se assemelha
mais complexa, coerente e é possível na escala humana e toma
abrangente, que fará todas as menos tempo” (246a3-6).
seguintes coisas: explicar o processo
de criação do universo, sua estrutura Neste momento, nos é dada a
física, seus processos ordenados de famosa metáfora da alma como um
mudança e seu propósito ou condutor de uma carruagem com dois

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Hugh H. PLATÃO
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cavalos alados. Sócrates sugere, em para o lugar de onde veio por dez mil
um tipo de ponto de início da criação anos... exceto a alma do homem que
física – ou, pelo menos, antes de cada pratica a filosofia ou ama
encarnação física da alma –, Zeus leva filosoficamente os jovens” (248e5-
sua carruagem alada à frente de uma 249a2). Se estas almas escolherem
grande procissão de todas as almas, este tipo de vida correta três vezes
“olhando para todas as coisas e pondo seguidas, “suas asas voltam a crescer
tudo em ordem” (246e5-6). Neste e elas partem no terceiro milênio”
ponto, os outros onze deuses (isto é, (249a4- 5). Somente a alma de um
todos, exceto Héstia) são postos em sábio e virtuoso filósofo terá de volta
formação. A forma do universo se estas preciosas asas (249c4-5). Como
parece com um teatro grego ou um vimos no mito do Fédon, há um
problema curioso a respeito da chan-
grande estádio aberto. As almas, ce de uma alma evitar a
todas em suas carruagens, fazem uma reencarnação, pois se pode supor
subida íngreme à lateral do teatro que, a menos que seja infinito o
para chegar à borda do universo, provimento de almas, acabaria por
“mas, quando as almas que dizemos não sobrar nenhuma, pondo fim a
imortais alcançam o topo, elas vão toda a vida mortal.
para fora e se põem no cume do céu,
de onde o movimento circular as leva O mito do Fedro complementa o do
em círculos enquanto lá ficarem a Fédon fornecendo uma explicação da
contemplar o que está na parte pré-existência da alma (algo
exterior do céu” (247b6-c2). pressuposto, mas não descrito, na
Teoria da Reminiscência no Fédon),
O Fedro, como o Fédon, descreve mas complementa o Fédon incluindo
a encarnação da alma em um corpo as Formas. Se devêssemos juntar o
como um tipo de queda – a perda das relato físico dos dois mitos,
asas da alma – e supõe que a maioria poderíamos imaginar que as almas
das almas passará por repetidas dos homens virtuosos, assim como as
reencamações. Todavia, também dos seres superiores que natural-
prevê um tempo durante o qual fica mente habitam a superfície da Terra,
sem corpo e, talvez, mesmo para uma são capazes de elevar-se ainda mais
libertação permanente. Platão alto, “voando” em um tipo de Céu
escreve que “nenhuma alma retorna Platônico em que podem ver as

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Formas. Esse processo dificilmente requerimentos chave de uma


pode ser um voo físico real nem é a cosmologia satisfatória não se
correspondente visão de um tipo real encontram no relato da alma
de visão. Sem ter um outro relato desencarnada no Fedro. Retomemos
convincente para dar, Platão os quatro problemas mencionados
tipicamente descreve o contato acima com o mito do Fédon. De novo,
não há uma explicação séria da
natureza e da estrutura da realidade
física; em particular, nenhuma
com as Formas como uma visão e se explicação de sua relação com o reino
vale de imagens visuais para dizer com das Formas, embora estas sejam mais
o que se parece. Por exemplo, no proeminentes aqui. Segundo, não há
Banquete, ele discute, como ficou explicação do que ocorre quando a
célebre, o ato de ver a verdadeira alma é encarnada, isto é, de como
Forma da Beleza e, na República, ele exatamente ela é hospedada “em” um
nos fala de ver de um modo novo à luz corpo e como o corpo físico é
da Forma do Bem sob a aparência de implicado em seus vários desejos
um sol (R. VI.508b-509d). No Fedro, (descritos aqui com vivacidade pela
assim como no Fédon, é dito que os metáfora erótica das asas que
sentidos físicos são tão nebulosos que incham). Terceiro, a teoria não
somente poucas pessoas aqui responde ao problema parmemdico
embaixo são capazes de perceber os da mudança. E, por fim, falta de novo
originais das cópias que vemos agora, a teleologia. Apesar da menção a Zeus
os originais encontrados antes de aqui, não há nenhum relato de
nossa encarnação da Justiça, criação. Deste modo, mais uma vez, a
Autocontrole, etc. A visão é nosso característica central de uma
sentido mais agudo, mas não vê a cosmologia adequada, pelo menos na
Sabedoria. Porém com a Beleza é visão de Sócrates, está faltando: a
diferente e é uma exceção. Ela gera explicação do “porquê” ou do
uma conexão mais forte como o “propósito”. Há talvez uma indicação
modelo: “mas agora somente a beleza no Fedro de que os processos cós-
tem esse privilégio, de ser o que é micos “visam a” uma jornada moral
mais visível e mais amado” (250d6-el). das almas, que são testadas pela
encarnação, talvez por fim ganhando
Assim como com o Fédon, certos sua entrada a uma espécie de

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“recompensa celeste”. Porém, por conflito. O primeiro interlocutor,


Crítias, responde esboçando a história
causa da menção aos deuses e à do povo de uma terra mítica –
realidade superior das Formas, Platão Atlântida – que era grande e
não pode ser plausivelmente visto poderosa, mas terminou derrotada
como entendendo que nós seres pelos antepassados dos atenienses. A
humanos somos a “razão” da criação história de Crítias é contada
do cosmos físico. Para uma meramente como uma antecipação
cosmologia mais completa que de fato de uma versão maior prevista, que
responde a todas as quatro questões, deve seguir a história do nascimento
temos de nos voltar ao Timeu. da humanidade, a ser narrada por
Timeu, um visitante nobre de Locres,
O TIMEU na Itália. Possuímos atualmente
somente uma parte do diálogo que
O Timeu é um diálogo particularmente por o nome de Crítias como título e
intrigante, por várias razões. Ele faz sua sequência prevista (uma história
parte de um grupo planejado de três das ações supostamente corajosas e
diálogos, do qual somente ele e o ousadas dos primeiros atenienses)
esboço de um outro existem. O Timeu não existe.
inicia com uma referência a uma
conversa ocorrida na véspera que ao O Timeu é em sua maior parte um
mesmo tempo soa e não soa como o monólogo do eminente astrônomo
diálogo da República. Sócrates a Timeu, que desenvolve uma
conduzira e produziu um “festim” cosmologia completa e complexa. Ele
para seus amigos discutindo o melhor inicia, após a invocação dos deuses,
Estado e suas classes: trabalhadores e distinguindo entre o que vem a ser
artesãos, bem como guardiães ou
governantes, que devem receber uma
educação filosófica que os prepare a
governar de modo harmonioso e e o que sempre é, argumentando que
virtuoso. Sócrates diz agora que está para cada categoria metafísica
insatisfeito com este quadro do corresponde um tipo de
Estado, pois é um belo quadro de um conhecimento. Isso soa como uma
animal que gostaria de ver animado – doutrina platônica familiar. Também
em particular, em situações de assim soa o próximo ponto,

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distinguindo tipos de cognição Formas no quadro de uma teoria física


humana em relação a seus objetos. Há geral. Podemos ver nesta obra
a Razão, que conhece o que é e deve importantes dívidas com as
ser, e que é também eterna; há a cosmologias pré-socráticas,
sensação ou opinião, que conhece as especialmente com a pitágorica – o
coisas que vêm a ser e é ela própria que não surpreende, haja vista a
mutável (27d5-28b2). O que vem a ser origem de Timeu em Locres, na Itália.
necessariamente tem uma causa, Ademais, o começo torna muito claro
argumenta Timeu. Porém, que tipo de que o relato vai explicar a estrutura
causa? Ele faz a hipótese que um mun- teleológica do universo.
do belo deve ter sido feito por um
criador benevolente e que é Outro desenvolvimento chave da
manifestamente verdadeiro que cosmologia do Timeu é o papel muito
nosso mundo é bem ordenado. maior que a matemática possui aqui,
“Permita-me dizer-lhes então por que em particular a geometria.
o criador fez o mundo da geração. Ele Obviamente, há muitos exemplos nos
é bom e quem é bom nunca pode diálogos anteriores nos quais Sócrates
torna-se invejoso de algo. Assim, apela à geometria para descrever a
estando isento de inveja, ele quis que ordem e o balanceamento, tanto de
tudo viesse a ser tão semelhante a ele uma pessoa quanto de um todo maior.
quanto possível” (29el-3; tradução No Grg. 508a, a tese de Sócrates é que
modificada). o fato que a

A estrutura inteira da cosmologia ordem do mundo é um kosmos é vista


no Timeu é semelhante a posições que pelos homens sábios como mostrando
encontramos antes em Platão. Vemos que a justiça e a igualdade
de novo analogias entre o proporcional têm maior poder do que
macrocosmo e o microcosmo. Porém, a injustiça e a pleonexia (apro-
este diálogo contém muitos mais ximativamente: ganhando mais do
detalhes sobre os movimentos dos que a sua parte). Na descrição da
corpos celestes, assim como sobre o República da educação dos filósofos, a
universo físico em geral e sobre a matemática e a geometria são
encarnação humana e animal, em incluídas para desenvolver um sentido
particular. Platão se esforça aqui de ordem ou harmonia e proporção
muito mais para integrar a Teoria das (Johansen, 2004).

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Mesmo assim, como notado mítica. Talvez em que pese o objetivo


anteriormente, a história que Timeu último Político-moral da trilogia
narra é protegida ao ser dita somente planejada, devemos conceber a
um “eikos muthos” ou “eikos logos”. história contada aqui como um
Aqui, “eikos” significa plausível ou exemplo do tipo de história que
provável. Cabe a nós decidir o quão Sócrates permite que seja contada ao
seriamente Platão entendeu a povo na República, isto é, uma “Nobre
cosmologia apresentada aqui e se é Mentira” (Morgan, 1998). Todavia,
de fato sua posição. Sobre a primeira pode-se também ver Platão como
questão, as opiniões dos especialistas criando um quadro detalhado ou
divergem. A. E. Taylor entende “mito” ekphrasis filosófica, uma ilustração
como o termo que contrasta com “ci- por palavras, do inteiro cosmos
ência” e sustenta que “seria um erro (Johansen, 2004). Defendi que o tipo
procurar no Timeu a revelação de de imagem desenvolvida pelo Timeu
doutrinas propriamente platônicas” representa
(1928, p. 11). Taylor crê que o diálogo
avança as opiniões de seu narrador,
Timeu, que conjuga opiniões biológi-
cas da Itália de Empédocles com de boa fé o conhecimento platônico
aspectos da teoria física pitagórica. que corresponde ao tipo de
Gregory Vlastos, por outro lado, conhecimento que ocupa a penúltima
sustenta que o Timeu foi seriamente seção da parte superior na famosa
concebido para mostrar as opiniões analogia da Linha Dividida na
de Platão. “Porém”, diz ele, República: uma forma de
“permanece um irredutível elemento conhecimento que se vale de
de poesia, que se recusa a ser imagens, como fazem os geôme- tras
traduzido na linguagem da prosa (Freeland, 2004).
científica” (1975, p. 22).
Minha exposição suporá que a
Muitas questões sutis podem ser tese do Timeu, ou algo próximo a isso,
feitas sobre a história de Timeu como é bem séria e é provavelmente a de
um mito (Wright, 2000; Rowe, 2003). Platão, pelo menos na época de sua
Em primeiro lugar, está dentro de um redação. Um bom número de
quadro de uma história política sobre contemporâneos e sucessores
a Atlântida, que parece ela própria ser imediatos de Platão, inclusive

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Aristóteles, o considerou como a reencarnação subsequente como


opinião de Platão. Ademais, ele animais ou como seres superiores).
resolve os quatro problemas listados
acima para as posições do Fédon e do Vamos primeiro considerar as
Fedro: integra as Formas no mundo ações criadoras do Demiurgo. Não é
material de um modo plausível, dito muita coisa deste agente ativo,
fornece uma explicação larga e coesa mas claramente a obra do Demiurgo
da teleologia, explica muitos detalhes não como a do Deus Judeo-Cristão
acerca da encarnação da alma e lida que cria do nada ou ex nihilo. O
com o difícil problema do não ser Demiurgo atua no interior de um
posto por Parmênides no intuito de quadro
explicar a realidade da mudança.
que já inclui as Formas e uma
Vejamos, então, a cosmologia realidade física informe denominada
desta obra. Podemos dividir a Receptáculo. A inteligência é
cosmologia do Timeu nos seguintes considerada obviamente como
tópicos com vistas a uma discussão superior ao que é desprovido de alma.
mais completa: O Demiurgo é um artesão que atua
pela razão (nous), olhando o modelo
1. o Demiurgo, a criação celeste e o das Formas. Este modelo deve ser
tempo; eterno e bom para o universo ser
2. a Alma do Mundo e a alma dos eterno e bom (29a2-3).
deuses;
3. a alma humana e sua localização Para começar, o Demiurgo cria o
inicial na cabeça; corpo mais perfeito, que deve ser
4. a organização do mundo material esférico e liso. É também vivo, embora
do Receptáculo, conhecido como o sem órgãos de sensação ou
Reino da Necessidade; locomoção, mas é autossufidente. É
5. a cooperação da Razão e da capaz de movimento e se move do
Necessidade, o que prepara o modo mais perfeito, girando em torno
caminho para uma explicação mais de si mesmo (34a2-3). Obviamente,
detalhada da encarnação humana além do movimento, este primeiro
com todas as suas vicissitudes deus feito pelo Demiurgo é um
(inclusive as escolhas entre o bem análogo próximo, se não um gêmeo,
viver e o vício, que leva à do Ser Um de Parmênides. Ele é

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descrito com muitos adjetivos e misturas separadas de suas versões


expressões similares: como um, único, permanentes ou menos permanentes
eterno e completo de todos os modos ou divinas, por exemplo: “o tipo
(30dl-31al); esférico e homogêneo indivisível de ser com o que foi
(33bl- 7); liso e plano, e um todo partilhado nos corpos”. As três
(34a8-b3). misturas resultantes são misturadas
juntas e então divididas como
O que é essa Alma do Mundo?
Não temos muitas explicações. Soa
muito à Primeira Causa de Aristóteles,
visto ser descrito como um ser que se dividiria uma bola de massa em
pensa e que é fonte de movimento, muitas partes específicas de acordo
porém tem também um aspecto com intervalos matemáticos. Estes
espacial, já que é descrito como es- são na verdade intervalos harmônicos
tando sentado no centro, embora que envolvem as proporções de 1, 2, 4
estendido por todo o inteiro corpo e 8, assim como, em uma segunda
esférico (34b4-5), expandindo-se “do sequência, também de 1, 3, 9 e 27
centro a toda direção para o limite (Vlastos, 1975). Cada bola separada é
último do universo [circunferência do tomada plana e então é feito um
céu]” (36el-3). Assim como círculo, com dois grandes grupos de
Aristóteles, podemos perguntar como círculos virados em diferentes pontos
algo supostamente imaterial pode e um grupo posto dentro do outro. Os
mover ou ser espacialmente extenso, dois grupos se encontram em um
mas não há resposta para estas cruzamento sob a forma de um “X”.
questões. Platão obviamente está pensando nos
anéis desta “matéria-alma” primeva
Como exatamente o Demiurgo como tendo algum tipo de existência
cria a alma de todo o cosmos? Isso material, já que um é dito estar dentro
requer uma mistura complicada das do outro. O modo como estes círculos
mais importantes Formas: Ser, funcionam pode ser compreendido
Igualdade e Diferença (as mesmas trazendo-se à mente as esferas
Formas que são centrais na discussão concêntricas que eram construídas
do Sofista da “mistura” das Formas). pelos antigos astrônomos como
Cada uma é misturada segundo uma modelos do universo. A esfera exterior
fórmula complexa que envolve move-se com o Movimento do

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Mesmo, ao passo que a esfera uma destruição deles” (38b6-7). É


interior, que é dividida em sete somente agora que o Demiurgo cria o
círculos, se move no interior do círculo sol, a lua e as estrelas que
do Diferente.
são atribuídas a cada planeta
Os corpos celestes mapeados (tratados como estrelas “errantes” ou
neste círculo interno movem-se em planetoi), colocando-os em seus
modos complexos, formando o respectivos lugares ou caminhos nos
caminho do sol, lua e os planetas círculos do céu.
Mercúrio, Vênus, Saturno, Marte e
Júpiter. A Terra é suposta estar e A fim de dar tanta eternidade
permanecer no centro. Os planetas se quanto possível ao mundo, o
movem na eclíptica. As taxas de Demiurgo o faz uma imagem movente
movimento são também objeto de da eternidade. Isso significa que
hipóteses e explicadas com base em precisa acrescentar mais coisas à
fórmulas geométricas complexas. A criação após terminar as estrelas e os
geometria desses círculos não é planetas, porque muito da realidade
precisa em relação aos movimentos continua informe, ainda não como
observados dos planetas, mesmo semelhança de um modelo eterno.
segundo o conhecimento disponível Assim, agora o Demiurgo se volta à
na época de Platão. Porém, esta obra criação dos seres vivos, almas animais
deu ensejo a outras tentativas de e humana, que requerem encarnação.
encontrar explicações teóricas Há quatro classes de seres vivos:
satisfatórias que coincidissem com as deuses, pássaros, espécies aquáticas e
observações empíricas. criaturas pedestres.

O Demiurgo não cria no tempo, já Como é um ser perfeito, o


que ele cria o próprio tempo. Isto é, o Demiurgo não pode criar seres de um
tempo não existe até o Demiurgo ter nível inferior (41c2-3), já que sempre
criado os corpos celestes através dos dará imortalidade ao que gera; assim,
quais ele é medido. “O tempo, então, ele primeiro cria deuses inferiores e os
veio a ser juntamente com o universo, instrui então a criar mais seres. Ele dá
de modo que, assim como vieram a aos deuses inferiores uma mistura
ser juntos, assim também podem ser feita de versões menos puras
desfeitos juntamente, caso ocorra daqueles mesmos elementos que

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foram misturados para criar as almas a visão e a audição. A cabeça é criada


dos seres superiores ou corpos como uma entidade circular ou
celestes. Em uma passagem conden- esférica para emu- lar a natureza
sada que evoca o Fedro, Timeu nos diz esférica do cosmos como um todo. Os
agora como cada alma foi designada a olhos são particularmente de grande
cada estrela e levada em uma valor e recebem a atenção mais
carruagem para contemplar os minuciosa a toda parte física ou
objetos superiores (41el-3). As almas corpórea nesta parte do diálogo.
então começam o processo de habitar “Nossa vista já se mostrou ser uma
ou migrar para os corpos físicos. fonte supremamente benéfica para
nós, no sentido em que nenhuma de
O primeiro estágio da criação da nossas atuais afirmações poderia ter
alma humana e de sua encarnação é sido feita se nunca tivéssemos visto as
apresentado na parte do diálogo estrelas, o sol ou o céu” (47al-4). A
dedicada quase inteiramente ao reino vista é de fato o sentido que nos leva
da razão e seus desígnios. As almas à atividade da filosofia, o melhor dom
dos homens precisam de sensação e dos deuses aos mortais (47a7-b2).
sentimentos ou emoções;
consequentemente, os deuses Timeu deve agora mudar seu foco
inferiores pegam os materiais mais para a construção material do
fundamentais disponíveis e os universo. Como ele diz, está passando
misturam, novamente seguindo uma do relato do reino governado pela
receita que se vale de proporções Razão ou Intelecto ao governado, ou
geométricas complexas do Mesmo e pelo menos posto em ativação pela
do Diferente (43d2-e8). Neste estágio Necessidade (47e3-5). Para que o
inicial, tudo o que é descrito é a en- universo fosse tangível e visível, eram
carnação delas na cabeça humana. A necessários corpos, especialmente o
cabeça é literal e fíguradamente a fogo. De fato, todos os quatro
parte superior do corpo, já que emula elementos fundamentais – terra, ar,
a natureza perfeita da esfera. fogo e água – eram necessários.
Igualmente, ele hospeda os sentidos Embora tenha sido o Demiurgo quem
mais refinados e “superiores”: em deu forma a estes elementos, Timeu
particular, fala deles, paradoxalmente, como se
existissem de algum modo antes da
criação do céu; isso, estritamente

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falando, significaria antes do início do não tem características, é uma mera


tempo. Ele titubeia quase deli- “base de cera” para óleos ou uma
beradamente ao tentar descrever matéria como ouro que se transforma
esses elementos, na medida em que em vários objetos. Outras partes ou
Platão enfatiza a óbvia dificuldade ou metáforas sugerem que o
impossibilidade de falar sobre eles em Receptáculo tem de fato certas
seu estado pré-racionalizado como qualidades, já que os quatro
simplesmente “poderes” no interior elementos parecem ocupar regiões
do Receptáculo informe (Rowe, nele e há também a metáfora de uma
2003). cesta-seletiva que sugere que o
Receptáculo é ativo ou movente
O que é o Receptáculo? Neste (52e5-53a2).
acréscimo muito importante à
metafísica da Teoria das Formas, O Receptáculo serve de fonte da
Timeu diz que a realidade física do necessidade física no reino dos seres
cosmos toma necessária a existência terrestres. Timeu o liga ao que chama
de um material de tipo espacial ou “causa errante”. Quando o Intelecto
útero, algo no qual as imitações das persuade a Necessidade, ao
Formas podem ser realizadas (48e2- coordenar materiais em algo construí-
52dl). Ele chama esse reino material o do para servir um propósito, então é
Receptáculo ou chora: um lugar descrito como “causa coadjuvante”
(topos) e uma sede Qiedra) para tudo (sunaitia) (Strange, 1985; Johansen,
o que vem a ser. Ele tem um papel no 2004). Uma causa coadjuvante é a
nível mais primitivo da realidade Necessidade enquanto persuadida
física, já que deve ser citado para pela Inteligência para operar pelo
resolver o problema de como os bem. Os materiais têm suas próprias
quatro corpos primários podem mu- naturezas, que determinam certos
dar um no outro (de fato, a teoria de comportamentos. Esses materiais
Timeu podem ser usados para construir
entidades mais complexas e com
não resolve completamente este propósitos, do modo como a madeira
problema, já que a terra é deixada é usada para construir uma casa, por
fora desse processo de exemplo; porém, as entidades
transmutação). Partes da discussão de resultantes podem ficar sujeitas a
Timeu implicam que o Receptáculo forças da Necessidade que trabalham

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contra o propósito, assim como tetraedro. A teoria física de Platão


quando uma casa de madeira pega associa propriedades qualitativas de
fogo ou é destruída por um furacão. materiais, em modos intuitivos, com
suas formas geométricas atômicas.
Para compreender as naturezas dos Por exemplo, o fogo tem a forma de
materiais, precisamos nos voltar aos um tetraedro, que pode cortar as
detalhes da teoria física de Platão dos coisas (isto é, queimá-las) e a terra
quatro elementos: fogo, ar, água e tem a forma do cubo, visto ser o ele-
terra. Ele identificou cada elemento mento mais instável ou que se move
com um sólido regular, mais lentamente que outros (Vlastos,
aparentemente aqui se fundando em 1975).
descobertas geométricas de seu
associado na Academia, Teeteto: o Depois de fornecer esta
fogo era associado como o tetraedro; explicação dos elementos primários,
o ar, com o octaedro; a água, com o Timeu se envolve em uma explicação
icosaedro; a terra, com o cubo. A complexa da encarnação, dando
construção das “moléculas” de cada explicações de uma porção de fenô-
elemento envolve a subdivisão menos que envolvem nossa existência
espacial/conceituai de cada face humana mortal: prazer e dor,
desses sólidos em triângulos sensação, comer, desejo,
elementares que têm duas naturezas temperança, carne e ossos, calor, ten-
ou formas diferentes, que ele dões e articulações, inspiração
considerava como as unidades básicas (respiração), alimentação, juventude
da matéria. (Os triângulos e saúde, doença e velhice,
inflamações e outras desordens do
corpo. Ele acrescenta a isso uma
descrição de outras criaturas mortais,
utilizam ou são organizados em torno que existem não somente porque são
do “espaço” do Receptáculo.) Por necessárias para preencher a ordem
meio da reorganização desses da criação, mas também porque
triângulos básicos ocorrem as servem de alimento para nós (77a-c).
transformações elementares. A água Ele faz um resumo dizendo como
pode ser decomposta em fogo e ar nosso corpo reflete as divisões do
quando sua molécula icosaédrica é cosmos como um todo, já que nossa
dividida em dois octaedros e um parte de cima ou superior é também a

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melhor, com um poder divino na incluiriam o vazio?


cabeça; então vem a parte emocional
e, por fim, a parte Uma questão pode ser feita sobre
nutritiva/reprodutiva (90a-d). Essas se a teoria geométrica “molecular”
divisões, que nos são familiares pela deste diálogo explica de modo
divisão tripartite da alma em Platão, adequado as propriedades físicas
são refinadas aqui mediante uma básicas da matéria. Como a estrutura
explicação física detalhada de sua geométrica de um elemento como o
associação com as partes do corpo. fogo está relacionada às Formas que
Além disso, nesta obra, Platão parece também exemplificar do
localizou a alma e o corpo humano melhor modo, como o Quente e o
dentro de uma teoria cosmológica Brilhante? A obra não dá explicações
ampla que incorpora tudo, desde os nem consegue ela explicar de modo
movimentos de seus elementos adequado as mudanças entre todos os
materiais fundamentais (os elementos primitivos, já que a terra,
triângulos) até a relação deles com os com sua construção cúbica peculiar,
movimentos mais vastos dos céus. foi explicitamente deixada de lado
(Vlastos, 1975; Johansen, 2004).
Porém, nem tudo está resolvido Ainda no tópico da teleo- logia,
no Timeu nem é sempre claro como embora o diálogo inclua um relato da
entender as teses desta obra. Muitas criação e descreva a motivação do
questões podem criador, podemos perguntar se Platão
de fato forneceu uma resposta à
ser feitas sobre a metafísica do questão desafiadora de Parmênides
Receptáculo. Ele é descrito por de por que um criador agiria em um
numerosas metáforas, mas nem todas momento do tempo e não em outro.
elas parecem consistentes; é “lugar”, Porém, a questão mais fundamental
que parece ser neutro, mas também é entre todas quanto ao Timeu diz
dito ser ativo, repleto de movimentos respeito à condição de nosso
desordenados (Rowe, 2003; conhecimento do inteiro relato,
Johansen, 2004). Qual é a exata questionável por ter a condição de
natureza do tipo de não ser que Platão uma história, mas proposto ao mesmo
introduz aqui? Pode um “espaço tempo seriamente como provável e o
vazio” conseguir passar pelas melhor de que dispomos. É, porém,
interdições de Parmênides, que também possível que Platão fez uma

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outra tentativa de teoria física em um escapam da reencar- nação, devemos


outro diálogo tardio, o Filebo, que se então esperar um fim, em algum dia,
vale da teoria numérica de Eudoxo para os seres vivos.
(referindo-se ao Ilimitado, Limite e à
Mistura) no lugar da teoria Integrada na biologia do Timeu
geométrica para sugerir uma está uma história moral/psicológica
explicação dos fenômenos físicos, que funciona de modo muito similar
inclusive a saúde, a música e as esta- às histórias teleo- lógicas examinadas
ções (Philb. 24a-26a). anteriormente no Fedro e no Fédon.
Isto é, a alma está no centro da
Platão explica o processo e a natureza criação cósmica e sua jornada é defini-
da encarnação da alma em um tivamente uma parte do núcleo
contexto de reencarnação que dá racional da criação. Ainda assim, não
lugar a uma possível saída final para concordo que isso torne a teleologia e
uma existência pura desencarnada à a ética o objetivo primário, sendo a
la Nirvana, quando uma cosmologia um medro cenário ou
enfeite de vitrine. A teoria física
sugerida aqui é construída de modo
tão elaborado e cuidadoso que parece
alma virtuosa é liberada dos ciclos de ser evidência por si mesmo da
reen- camação e voa para existir de seriedade da intenção de Platão de
algum modo em sua estrela original oferecer uma teoria física satisfatória
(Robinson, 1990; Mason, 1994). Assim que dê continuidade à sua explicação
como em suas obras anteriores, aqui metafísica de relação entre os reinos
a alma sábia e boa se alça a posições do Ser e do Vir-a-Ser.
superiores a cada período de vida, ao
passo que almas corruptas e más DESENVOLVIMENTOS POSTERIORES
caem a cada período em uma forma
de vida animal inferior, talvez por fim A mais óbvia influência do Timeu
virando uma serpente. Isso põe um ocorre na Academia. Embora não
problema similar aos que me referi fosse aceito como a posição literal de
antes: o universo supre um número Platão por sucessores como
infinito ou finito de almas? O material Espeusipo e Xenócrates, eles deram
usado para construir as almas parece ênfase aos seus componentes chave:
finito, mas, se algumas almas o deus-criador, a Alma-do-Mundo e as

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Formas. Obviamente, o Timeu (ver o capítulo Aprendendo sobre


também teve um impacto no pen- Platão com Aristóteles).
samento de Aristóteles, que o
considerava como a posição de Desenvolvimentos na astronomia
Platão. Ele claramente deve muito ao foram significativos na Academia
Timeu: sua distinção entre a depois da morte de Platão (Goldstein
necessidade hipotética e absoluta (em e Bowen, 1983). Eudoxo (390-337
particular na medida em que estas a.C.), a quem com frequência é
necessidades atribuída a transformação da astro-
nomia em ciência, inspirou-se sem
têm um papel na constituição do dúvida nas posições de Pitágoras e
corpo humano); o papel da forma e da Platão. Uma contribuição chave do
matéria na resposta ao problema de Timeu para a astronomia é sua ênfase
Parmênides quanto à mudança; a em dar explicações matemáticas
distinção entre vir-a-ser e alteração ordenadas de fenômenos observados.
como tipos fundamentalmente Esta abordagem é aplicada não
diferentes de mudança; os somente à análise dos elementos
movimentos cir- culares de um deus físicos, mas também aos movimentos
de tipo consciente como centrais e celestes e à composição das partes do
primeiros em relação aos outros corpo e da matéria. Porém, nem
movimentos celestes. Aristóteles, sempre esta influência foi benéfica. A
obviamente, altera a cosmologia de ideia que a estrutura dos corpos
muitos modos importantes, o mais celestes observados deve alçar-se a
importante sendo a rejeição da formas e figuras geométricas
história da criação e o abandono, idealizadas levará por mais de mil
assim, do Demiurgo. Porém, a anos e um tanto os astrônomos a
teleologia é embutida em todas as supor que os planetas devem seguir
substâncias naturais na teoria de caminhos que satisfazem critérios
Aristóteles. Ele também rejeita particulares, isto é, serem circulares e
inteiramente a explicação geométrica não elípticos.
de Platão dos elementos, mas talvez
tenha sido levado por ela a Além da astronomia, provavelmente
desenvolver sua própria “química”, a principal influência da cosmologia
que, por sua vez, torna possível uma de Platão, tanto do Timeu quanto de
teoria biológica bem mais elaborada obras anteriores, é a teoria geral do

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Hugh H. PLATÃO
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cosmos teleo- logicamente do “Logocentrismo” de Platão às


estruturado que fornece um pano-de- críticas feministas da misoginia de
fundo moral para a atividade e para Platão (Derrida, 1987; Freeman,
2004).

Havia literalmente dezenas de


o julgamento das almas humanas. O comentários antigos e medievais do
diálogo foi traduzido para o árabe e Timeu; é ele o livro que Platão tem em
referido com aprovação por al-Farabi, mãos no famoso quadro de Rafael, A
embora os filósofos árabes Escola de Atenas. Marsüio Ficino
tendessem a associar o Demiurgo (1433-99) também traduziu o Timeu
com o Deus de Aristóteles a título de para o latim e devotou boa
Causa Primeira (dAncona, 2003). A quantidade de trabalho para explorar
tradução que Cícero fez dele para o as implicações do diálogo para o
latim foi usada por Agostinho, e sua estudo científico do mundo físico.
influência é clara em algumas das Alguns estudiosos argumentaram que
reflexões destes dois homens sobre a Ficino e outros platônicos da
existência de Deus e o problema do Renascença prepararam o caminho
mal. Isso é particularmente evidente para a Revolução Copemicana (Allen,
no tratamento que Agostinho dá à 2003). Kepler citou explicitamente
matéria, quando argumenta que Deus Platão, junto com Pitágoras, como
não criou o mal, mas que é somente a seus reais mestres (Martens, 2003).
ausência de penetração da bondade Ele descreveu o Timeu como um
de Deus, assim como a escuridão é a comentário do primeiro capítulo do
ausência de luz. Junto com esta asso- Gênesis convertido em termos
ciação da divindade com a bondade e pitagóricos.
do Receptáculo com o mal, vem um
conjunto de elos conceituais ligando Um aspecto decisivo da
bondade e forma com o macho e teleologia do Timeu para filósofos e
corrupção e encarnação com a fêmea teólogos posteriores europeus
(Dean-Jones, 2000). Há muito em ocidentais foi a ideia de Platão que,
Platão um estado de outro-mundo porque o criador era bom, o mundo
que também está muito evidente aqui que resultou da criação tinha de ser
e que foi objeto de numerosos em um sentido importante
ataques que vão da crítica de Derrida “completo”. Encontramos

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Hugh H. PLATÃO
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antecedentes de um Princípio de REFERÊNCIAS E LEITURA


Plenitude em passagens nas quais o COMPLEMENTAR
Demiurgo diz aos deuses inferiores
para criarem criaturas mortais: Allen, M. J. B. (2003). The Ficinian
“enquanto não tiverem vindo a ser, o Timaeus and Renaissance Science. In
universo estará incompleto, pois ain- G. J. Reydam-Schils (ed.) Plato’s
da faltarão em seu interior todos os Timaeus as Cultural Icon (pp. 238-50).
tipos de seres vivos que deve ter se há No- tre Dame, Ind.: University of
de ficar adequadamente completo” Notre Dame Press. Ashbaugh, A. F.
(41b7-c2). A ideia de Platão do (1988). Plato’s Theory of Expla-
universo como um cosmos nation: A Study of the Cosmological
organizado de modo belo e Account in the Timaeus. Albany, NY:
construído propositalmente aparece, State University of New York Press.
reiteradas vezes, em filósofos
posteriores como os estoicos, Brisson, L. e Meyerstein, F. W (1995).
neoplatônicos, Leibniz, Hegel e Inventing the Universe: Plato’s
Whitehead. Este quadro do universo Timaeus, the BigBang, and the
como uma “grande cadeia do ser” foi Problem ofScientific Knowledge.
explorado, de modo célebre, em um Albany, NY: State University of New
livro de mesmo título por Arthur York Press.

O. Lovejoy, que escreveu que “as Cornford, F. M. (1975). Plato’s


concepções fundamentais do Timeu Cosmology, trans- lated with a
estavam fadadas a ficar axiomáticas running commentary. Indianapolis:
para grande parte da filosofia Bobbs-Merrill (Library of Liberal Arts).
medieval e moderna” (Lovejoy, 1974, dlAncona, C. (2003). The Timaeus’
p. 54). model for crea- tion and providence:
an example of continuity and
NOTA adaptation in early Arabic
philosophical literature.
As traduções de Platão foram
tomadas de J. M. Cooper (ed.) Plato:
Complete Works (Indianápolis:
Hackett, 1997). In G. J. Reydam-Schils (ed.) Plato’s
Timaeus as Cultural Icon (pp. 206-37).

Hugh H. Benson 331 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Notre Dame, Ind.: University of Notre Crítias. Cambridge: Cambridge


Dame Press. University Press.

Dean-Jones, L. (2000). Aristotle’s Lovejoy, A. O. (1974) [1936], The


understanding of Plato’s Receptacle Great Chain of Being: A Study ofthe
and its significance for Aristotle’s History ofan Idea. Cambridge, Mass.:
theory of familial resemblance. In M. Harvard University Press.
R. Wright (ed.) Reason andNecessity:
Essays onPlato’s Timaeus (pp. 101- Martens, R. (2003). A commentary on
12). London: Duckworth and the Genesis: Plato’s Timaeus and Keplerís
Classical Press of Wales. astronomy. In G. J.

Derrida, J. (1987). Chora. In Poikila: Reydam-Schils (ed.) Plato’s Timaeus


Études offertes à Jean-Pierre Vemant. as Cultural Icon (pp. 251-66). Notre
Paris: EHESS. Finkelberg, A. (1998). On Dame, Ind.: University of Notre Dame
the history of the Greek KOSMOS. Press.
Harvard Studies in Classical Philology
98, pp. 103-36. Mason, A. S. (1994). Immortaiity in
the Timaeus. Phronesis 39, pp. 90-7.
Freeland, C. (2004). Schemes and
scenes of reading the Timaeus. In L. Mohr, R. (1985). The Platonic
Alanen and C. Witt (eds.) Feminist Cosmology. Leiden: Brill.
Reflections on the History of Philo-
sophy (The New Synthese Historical Morgan, K. A. (1998). Designer
Library) (pp. 33-49). Boston: Kiuwer. history: Plato’s Atlantis story and
fourth-century ideology. Journal
Gill, M. L. (1987). Matter and flux in ofHellenic Studies 118, pp. 101-19.
Plato’s Timaeus. Phronesis 32, pp. 34-
53. Robinson, J. V (1990). The tripartite
soul in the Timaeus. Phronesis 35, pp.
Goldstein, B. R. and Bowen, A. C. 103-10.
(1983). A new view of Greek
astronomy. Isis 74, pp. 330-40. Rowe, C. (2003). The status of the
Johansen, T. K. (2004). Plato’s Natural “myth” in Plato’s Timaeus. In C. Natali
Philosophy: A Study of the Timaeus- e S. Maso (eds.) Plato Physicus:

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Cosmologia e antropologia nel Timeo De acordo com os princípios da


(pp. 21-31). Amsterdam: Adolf teleologia de Platão aplicados no
Hakkert. Timeu, para compreender a função de
algo você deve partir do mais alto
Sayre, K. (2003). The multilayered bem que ele engendra. A visão, por
incoherence of Timaeus’ Receptacle. exemplo, existe em última instância
In G. J. Reydam-Schils (ed.) Plato’s para nos permitir o estudo da
Timaeus as Cultural Icon (pp. 60-79). astronomia, um caminho dado pelos
Notre Dame, Ind.: University of Notre deuses para a compreensão filosófica
Dame Press. (Ti. 46e6-47c4). Deste mesmo ponto
de vista, qual é a função da
Strange, S. K. (1985). The double linguagem? A boca humana, nos é
explanation in the Timaeus. Ancient dito, foi criada com dois propósitos,
Philosophy 5, pp. 25-39. Taylor, A. E. influxo e efluxo. O influxo em questão
(1928). A Commentary on Plato’s diz respeito a meras necessidades, a
Timaeus. Oxford: Oxford University saber, comer e beber, mas o efluxo, o
Press. Vlastos, G. (1975). Plato’s da fala, é caracterizado como “o mais
Universe. Seattle: University of belo e melhor de todos os fluxos”
Washington Press. (75e4-5). Por que isso? Como Timeu
explicou anteriormente (47c4-7), a
Wright, M. R. (2000). Myth, Science voz e a escuta foram criadas em nós
and reason in the Timaeus. In M. R. como o principal meio para a filosofia,
Wright (ed.) Reason andNeces- sity: sobretudo pelo uso da fala. Ele sem
Essays onPlato’s Timaeus (pp. 1-22). dúvida está referindo-se ao principal
London: Duckworth and the Classical método filosófico de Platão, a
Press of Wales. dialética, o uso sistemático de
questão e resposta para eliminar o
que é falso e por fim chegar às
verdades. A visão do mundo de Platão
15 atribui assim uma importância central
ao dom da linguagem falada:
Platão e a linguagem enquanto base da dialética, é o meio
privilegiado à filosofia e, deste modo,
DAVI D SEDLEY à salvação da alma.

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Hugh H. PLATÃO
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A dialética costumeiramente questão de em qual linguagem a


aparece nos diálogos de Platão como Alma-do-Mundo pensa.
uma atividade interpessoal,
usualmente entre um interrogador Podemos assim já ter uma ideia
principal e um respondente mais ou de quão fundamental é a linguagem
menos brando. Por vezes, porém, para a filosofia de Platão. Antes de
Platão se refere a uma questão e ser, por exemplo, um código
resposta interna, não falada, conveniente em que podemos
conduzida por uma única pessoa, consignar e comunicar nossos
Sócrates (p. ex., Apologia. 21b2-7; pensamentos uns aos outros, é o
Chrm. 166c7-d6) e, em sua obra próprio estofo destes pensamentos.
tardia, ele desenvolve a ideia Isso significa, entre outras coisas, que
o problema filosófico posterior da
que esse processo, que reproduz de inacessibilidade a nós de outras
muito perto a sequência do diálogo mentes não surge em Platão. Se os
interpessoal vocalizado, é a estrutura pensamentos das outras pessoas são
do próprio pensamento (Tht. 189e4- seus pronunciamentos internos, estes
190a7; Sph. 263e3-264b5; Phlb. 38c2- estão inteiramente abertos à nossa
e8). Quando pensamos, o que es- inspeção mediante o processo
tamos fazendo é levantando e externo de questão e resposta; na
respondendo questão. Nossas verdade, os diálogos de Platão
crenças são as respostas que apresentam uma série de
articulamos para nós mesmos como interrogadores conduzindo justamen-
sentenças internas silenciosas. Isso te tais inspeções dos pensamentos de
tampouco é uma característica seus interlocutores.
contingente da psicologia humana,
pois mesmo o deus pensa de mesmo
modo: as crenças infalivelmente
verdadeiras da alma divina do mundo Porém, e o pensamento em seu
acerca de nosso mundo e seu mais alto nível? Pelo menos ele não
conhecimento do ser eterno tomam a transcende a linguagem aos olhos de
forma de “sentenças” silenciosas Platão? Isso foi por vezes sustentado,
Clogoi) que ela pronuncia mas a dura evidência não favorece
internamente para si mesma (Ti. esta ideia. Na República, o mais alto
37b3-c3). Platão não examina a objeto de tratamento filosófico é a

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Hugh H. PLATÃO
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Forma do Bem (ver o capítulo O propósitos do presente tópico, deve-


Conceito de Bem em Platão). Contudo, mos nos concentrar no núcleo
este objeto último é compreendido lingüístico do pensamento.
somente por aqueles que o podem
definir discursivamente e podem de- O que fazemos quando pensamos
fender sua definição contra todas as em sentenças? A gramática não era
refutações que vierem (534b3-d2). uma ciência desenvolvida no tempo
Assim, mesmo quando a personagem de Platão, e mesmo para duas ou mais
de Platão descreve metaforicamente gerações posteriores. Contudo, Platão
um salto de compreensão que soa tinha uma opinião sobre os
como uma intuição direta da verdade, rudimentos da estrutura de uma
sem referência a nenhuma mediação sentença e sua análise foi influente o
do pensamento discursivo (p. ex., R. suficiente para tomar-se uma base
518b7- 519a6, 532b6-dl; Smp. 210a4- para a teoria gramatical posterior. Ao
212a7), é mais seguro tomar isso não longo de seus escritos (ver Ap. 17b9-
como substituindo ou transcendendo c2; Smp. 198b4-5, 199b4-5, 221d7-
o modo lingüístico de pensamento, e4; Cra. 425al-5, 431b3-c2; R. 601a5-
mas como elucidando o tipo de 6; Tht. 206c7-d5; Sph. 261e4-262d7),
transformação intelectual que este Platão toma o discurso lingüístico
modo pode alcançar. completo como

Por outro lado, Platão composto de dois itens principais:


certamente nunca quis sugerir que, nomes (onomata) e descrições
quando você pensa, você está (rhêmata). Ele também (Cra. 439d8-ll)
meramente proferindo sentenças caracteriza a fala bem sucedida sobre
internas. Por exemplo, como o algo dizendo que, primeiro, você deve
formula no Filebo (38e9-39c6), se as dizer que é “isto” (ekeino), e então
sentenças que você profere para você dizer que “é de tal e tal tipo” (toiouto).
mesmo são vistas como a obra de um O ponto essencial desta análise ou foi
escriba interno, então as inscrições do ou terminou por ser o seguinte: para
escriba são elas próprias acom- pronunciar uma sentença completa
panhadas pela obra de um pintor (fogos), você deve primeiro nomear
interno. Isto é, o que você descreve seu objeto e então passar a descrevê-
para você mesmo em palavras, você lo. Isso é expresso formalmente no
também imagina. Porém, para os diálogo tardio de Platão Sofista e

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ilustrado aí com o caso mínimo de associar os dois termos menos com


sentença “homem aprende”, antes do nomes e verbos que com sujeitos e
que a personagem de Platão que é o predicados: para tornar uma sentença
Estrangeiro de Eleia observou que pôr completa, você deve primeiro
junta uma mera série de “descrições”, identificar um sujeito e então ligar um
como “caminha corre dorme”, ou de predicado a ele. Nesta perspectiva, a
“nomes”, como “leão cervo cavalo”, investida de Platão é menos na
ainda não consiste em construir uma gramática que nos rudimentos de
sentença (262a9-c7). lógica. Um ponto que tende a
confirmar o diagnóstico é que em
Nestes comentários, Platão não nenhum outro lugar Platão especifica
está longe da ideia que uma palavra é algo que se assemelhe a uma outra
classificável por sua função em uma categoria gramatical.
sentença como um todo, um passo na
direção geral da análise gramatical.
Ademais, seus termos para “nome” e
“descrição” tomaram-se em uso De fato, um outro tipo de palavra em
posterior (de fato começando já com que mostra interesse nesse mesmo
Aristóteles) termos semitécnicos contexto é o sinal de negação “não”
para, respectivamente, “nome” e (Sph. 257bl-258c6). Dificilmente
“verbo”. surpreendente em um diálogo como
o Sofista, cujo foco central de análise
O que é menos claro, por outro é a falsidade, que seu interesse
lado, é que a distinção de Platão entre consista na estrutura lógica
“nomes” e “descrições” visa a aplicar- subjacente das sentenças
se somente a termos isolados e não assertóricas.
também a expressões inteiras. Na
verdade, na tese (que se encontra Isso vale para enunciados
pelo menos no Crátilo em 431b3-c2) completos. Já que a verdade e a
que sentenças não consistem senão falsidade são propriedades deles,
em nomes e descrições, é difícil poderíamos esperar que os interesses
impedir a última extensão para além lingüísticos de Platão se concentrem
de nomes isolados. Esta é sem dúvida sobretudo neles. Na realidade,
uma das razões de por que há uma porém, os termos isolados
tendência entre os estudiosos de constituem muito mais

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frequentemente seu foco. Uma razão sobre estas questões, muito mais do
é sem dúvida que, desde seus que é geralmente reconhecido. Um
primeiros diálogos, Platão apresentou diálogo inteiro, o Crátilo, é dedicado a
seu principal interlocutor, decodificar as palavras individuais,
usualmente Sócrates, na busca de com um bom número de
definições sempre de termos especulações sobre o estado de
isolados. O que é necessário espírito e as suposições que levaram
preliminarmente para uma os primeiros inventores dessas
investigação filosófica sobre a justiça, palavras a conceber e as designar
a temperança ou a beleza consiste em como o fizeram.
descobrir precisamente o que é que o
termo designa (ver o capítulo Há especulação suficiente similar em
Definições Platônicas e Formas). outros diálogos (bem como nas obras
do mais famoso discípulo de Platão,
Por que isso? Um procedimento Aristóteles) para descartar como
preliminar desse tipo não implica, de improvável a suposição quase
modo questionável, que o nome do universal (não partilhada por leitores
definiendum em pauta já esteja, no na Antiguidade) que Platão não está
uso do grego, tão firmemente ligado a sendo sério nestas decodificações
um conceito ou entidade única etimológicas e que o Crátilo pode ser
corretamente demarcada que com segurança posto à margem, pelo
perguntar o que significa um termo é menos enquanto este tipo de exegese
um caminho apropriado para a lingüística estiver em questão.
descoberta deste conceito ou
entidade? E isso por sua vez provoca As principais teses de Platão são
mais questões: como o termo entrou as seguintes. (Muito do que se segue
por primeira vez em nosso está baseado em minha exposição
vocabulário e com base em que mais completa em Sedley, 2003.)
autoridade foi ele ligado ao conceito Tenham sido os termos introduzidos
que agora nomeia? pelos primeiros membros da raça
humana (a opinião privilegiada no
O CRÁTILO Crátilo), por uma fonte divina (ver,
por exemplo, Ti. 73c6-d2) ou por uma
Na verdade, Platão tem teses mistura dos dois, eles foram
razoavelmente bem desenvolvidas tentativas de encerrar as naturezas

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dos itens que eles nomeiam. A política na qual as Leis possuem o


concepção deles envolve a sutil papel de daimones, agindo como
compressão de uma inteira mediadores da inteligência divina (LG.
mensagem em somente algumas 713d5-e3).
sílabas e a consequente dificuldade
de decodificá-las foi ainda complicado
por alterações enganadoras de sons e
outras distorções ao longo das Esta dupla explicação da
épocas. Todavia, com competência eudaimonia não precisa ser vista
suficiente, elas podem ser como contendo etimologias
decodificadas. Com a ajuda de tal alternativas e rivais, porque, de acor-
técnica, podemos aspirar a recuperar do como o Crátilo, as palavras mais
os reais lampejos desvelando os bem construídas alcançam seu
sentidos escondidos das palavras. impacto precisamente ao combinar
um conjunto inteiro de mensagens
Tudo isso reflete o fato que a complementares. A palavra “sol”
etimologia era uma atividade (helios) conjuga não menos que três
florescente no tempo de Sócrates e sentidos (409al-6): é o que, por
Platão, uma atividade na qual muitos levantar-se, “reúne” (halizein) as
intelectuais professavam pessoas, “que sempre roda” (aei
competência. O próprio Platão, eilein ion) em tomo da Terra e que,
mesmo fora do Crátilo, por duas vezes por seu movimento, “toma
manifesta interesse na etimologia de variegadas” (aiollein) as coisas que
eudaimonia, “felicidade”. A palavra crescem da terra. Mesmo quando não
claramente vem de eu, “bem”, mais têm esta complexidade engenhosa,
daimôn, um termo para uma muitas das etimologias de Platão
divindade intermediária ou inferior. podem parecer implausíveis para
Quem cunhou esta palavra, então, leitor familiarizados com a moderna
evidentemente partilhava de dois ciência lingüística. Por exemplo,
lampejos platônicos: que a felicidade “homem”, anthrôpos, era nomeado,
pessoal consiste em ter sua divindade segundo Platão, de modo a ser a
pessoal – a faculdade racional imortal criatura que unicamente “revê – isto
sediada em sua cabeça – bem orde- é, reflete sobre – o que viu” (anathrôn
nada (Ti. 90b6-c6) e que a felicidade ha opôpe: 399cl-6). Porém, mesmo
política depende de uma constituição

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Hugh H. PLATÃO
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exemplos como esse estão perfeita- Muito importante, esta conclusão não
mente de acordo com a prática significa que
etimológica dos Antigos e não há boa
razão para pensar que Platão não a filosofia deve dispensar o uso da
estivesse falando seriamente a seu linguagem, mas somente que ela não
respeito enquanto decodificava as pa- deve basear-se na decodificação dos
lavras gregas em uso. nomes individuais como um guia para
a verdade.
Isso não quer obviamente dizer
que Platão está pronto para se basear No percurso para chegar à
na autoridade dos que cunharam as conclusão recém-exposta, o Sócrates
palavras. Na verdade, ele deixa claro de Platão mostra em muito como ele
que, embora muitas nomeações pensa que a linguagem opera. Um
revelem uma real fagulha, espe- nome (onoma, o equivalente aqui de
cialmente acerca da natureza da Platão mais próximo à “palavra”, mas
divindade, não se deve confiar nelas quase exclusivamente ilustrado por
com relação à maioria do vocabulário nomes e adjetivos) é um instrumento
ético grego. A nomenclatura grega com uma dupla função comunicativa
existente para isso revela (388bl3-cl): prover “instrução” e
incompreensões sistemáticas da “separar o ser”. A “instrução” em
parte de quem nomeia, atribuíveis pauta poderia ter sido imaginada
implicitamente à relutância deles em como o ato meramente mundano de
reconhecer a existência de valores transmitir informação, mas não é, de
estáveis. Seria um erro, conclui qualquer modo, como Platão a
Sócrates, buscar o conhecimento por apresenta. Antes, em linha com os
meio deste tipo de estudo princípios teleológicos com os quais
etimológico, precisamente porque abri este capítulo, ele localiza a função
não se pode necessariamente confiar de um nome no que for o mais alto
nas opiniões das pessoas que bem a que aspira gerar, e Platão
cunharam originalmente as palavras, identifica este bem implicitamente ao
ainda que possam ser recuperadas ensino das verdades filosóficas
com adequada habilidade. Temos, (donde, por exemplo, em 390c-d,
portanto, de estudar as próprias quem faz o uso apropriado dos nomes
coisas diretamente e não por meio de é identificado não ao falante ordinário
seus nomes (Cra. 438d2-439b9). da linguagem, mas ao dialético).

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Hugh H. PLATÃO
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Mesmo se poucos nomes de fato seu objeto de modo a separá-lo de


atingem este objetivo elevado, ele é, todas as outras coisas – isto é,
porém, o propósito último por distinguindo o que é a coisa nomeada.
referência ao qual todo grau de Porém, a noção de “ser” (ousid) tem
sucesso de todo nome deve ser um leque semântico considerável em
medido. Podemos, portanto, dizer Platão. Separar o ser de uma coisa
que, aos olhos de Platão, quando os pode variar de meramente indicar
nomes foram concebidos como a sobre o que você está falando até
condensação das naturezas das coisas, embutir a essência da coisa em uma
o propósito foi sempre o de transmitir definição. Donde a função ideal de um
estas essências das coisas. Se, quando nome enquanto “separa o ser” é
não conseguem alcançar este fim, os paradigmaticamente representado
nomes também são úteis para eti- pelo topo de um certo espectro, mas
quetar funções no discurso para baixo desse espectro os nomes
quotidiano, isto não é, em última cumprem sua função por meio de um
análise, sua finalidade. A linguagem, grau maior ou menor de aproximação
como vimos que foi confirmado pelo ao mesmo ideal.
Timeu no início, serve em última
instância à filosofia. Porém, está em De acordo com a teoria do
linha com o espírito da metafísica de Crátilo, toda sequência unifica de sons
Platão que pensemos o uso familiar que
dos nomes nos atos de comunicação
mundanos que alcançam a verdade a) foi atribuída a uma coisa e
como uma aproximação a este ideal e, b) descritivamente discrimina esta
portanto, como mais bem entendido coisa se projeta como o nome dela.
em termos dele.
Pode, portanto, haver dois ou
Quando à função segunda e mais nomes para uma e mesma coisa
intimamente ligada – “separar o ser” – – como de fato, pelo menos em
ela também é em última análise de diferentes línguas, inegavelmente há
natureza filosófica. vários. O que fazer com que eles todos
se projetem como nomes? A primeira
resposta de Platão será que todos eles
participam em uma e mesma Forma.
Um nome separa o “ser” ao descrever Ela, isso é importante, não é a Forma

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da coisa nomeada, mas a Forma de são eles próprios artefatos e que


seu nome. É preciso aqui uma quem os inventar e ter sucesso em os
explicação suplementar. colocar em circulação está praticando
uma competência específica, a de dar
Todo objeto manufaturado com nomes. A mesma metafísica que se
(digamos) uma superfície horizontal aplica ao carpinteiro também, mutatis
sobre a qual as coisas podem ser mutandis, ao artesão que fabrica os
postas acima do chão é uma mesa, nomes. Como a Forma da Mesa,
pouco importando qual madeira ou também há uma Forma do Nome,
outro material foi usado e uma Forma à qual quem fabrica
precisamente como está organizado. nomes tem acesso cognitivo. Essa
Todos estes objetos estão ligados por Forma faz sua entrada na matéria, se
sua participação em comum na Forma é que a faz, não em pedaços de
da Mesa – na função ideal de uma madeira e similares, mas no material
mesa, como poderíamos dizer. Na ver- apropriado aos nomes, que é o som
dade, não há somente uma Forma vocal. Cada língua se vale de um
única genérica da Mesa, mas sem sistema de som diferente, assim como
dúvida uma Forma específica da Mesa carpinteiros podem variar na madeira
de Jantar, outro da Mesa de Operação que usam. Contudo, assim como é
e assim por diante. (Platão faz este uma condição mínima para que um
ponto Formas de artefatos específicas produto seja uma mesa que ele em
e genéricas somente em relação às alguma medida cumpra a função que
Formas da Lançadeira e da Furadeira, a Forma da Mesa contém, assim
em Cra. 398b-d, mas o mesmo deve também é uma condição mínima para
em princípio aplicar-se a todos os que um nome seja um nome que ele
tipos de artefatos, inclusive a em alguma medida cumpra a função
que a Forma do Nome contém. E essa
Cama e a Mesa, duas Formas de função é, como já foi observado, a
artefatos introduzidas em uma dupla função de prover instrução e
famosa passagem da República, separar o ser. Todavia, assim como a
X.596al0-597d2.) Forma da Mesa genérica é analisá- vel
em suas várias espécies, assim
E se o objetivo do artesão não é o também a Forma do Nome genérica é
de fazer uma mesa real, mas um nome analisável em um grande número
para ela? Platão supõe que os nomes delas: a Forma do Nome de Homem, a

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Forma do Nome de Cavalo e assim por de razão recebeu um nome que


diante, ao que parece, para cada veicula criticamente “o que reflete
termo do léxico (Cra. 389d4-390d8). sobre o que vê”. Embora Platão não
discuta línguas estrangeiras em
Embora essa proliferação ontológi- ca nenhum detalhe, ele deixa claro que o
de Formas possa parecer ser de um item pode ser capturado
extravagante, podemos compreendê- com sucesso em mais de um modo e
la observando que, assim como todas é, portanto, inteiramente possível
as mesas do mundo são assim que os nomes para “homem” em
caracterizadas porque participam de outras línguas possam, além de usar
uma única Forma, a de Mesa, assim diferentes sistemas de som como seu
também todas as palavras do mundo material vocal, se valer desses
para mesa (“mesa”, “table”, “Tisch”, sistemas sonoros para indicar não a
etc.) participam de uma única Forma. racionalidade, mas a postura ereta, as
Há uma única função que elas todas capacidades políticas ou alguma outra
realizam, a saber, nos instruir sobre a característica igualmente distintiva da
Mesa separando seu ser – nos dizen- espécie. Na terminologia de Platão
do o que é. Ainda, não é suficiente (394c 1-9), todos esses nomes
para os poderiam, nesse caso, ter o mesmo
“poder” (dunamis) e tanto “indicar”
(dêloun) quanto “significar”
(sêmainein) a mesma coisa. Todas
artesãos de nomes estabelecer este estas locuções são seus modos
ato de nomeação perguntando a si variados de veicular a participação da
mesmos qual é a função genérica de mesma Forma-Nome específica.
um nome; a questão pertinente
seguinte para eles é: que tipo especí- Quanto aos meios pelos quais
fico de ser deve ser comunicado pelo esses e outros nomes têm sucesso ao
nome de homem, pelo nome de significarem seus objetos, Platão tem
cavalo, etc.? muito a nos dizer. Nomes são retratos
vocais e efetuam seu poder de
Já vimos que os produtores significação primariamente por meio
gregos de nomes escolheram um de uma semelhança com seus objetos
meio particular de capturar o ser do do tipo de um retrato. Se tentarmos
homem: a criatura dotada de visão e analisar um nome em seus

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

componentes, encontramos nomes atingiremos por fim os sons


inicialmente que essa retratação individuais dos quais são compostas
vocal opera por uma descrição as unidades semânticas mais simples.
lingüística, como não somente nos Eles, analogamente às cores na
exemplos anteriores de anthrô- pos pintura, manifestarão um tipo mais
(“homem”) e eudaimonia direto de semelhança do que a
(“felicidade”), mas em inumeráveis semelhança semântica que as descri-
outros que Platão examina ao longo ções comprimidas possuem. Assim
do diálogo. O gênio dos fazedores de como as cores são imitações diretas
nomes reside em comprimir cada das qualidades primárias visuais dos
descrição em um grupo breve e objetos, assim também os sons
pregnante de sílabas, capaz de primários em uma língua são
conseguir fluência entre os usuários imitações vocais das propriedades
da língua. Se tomarmos as palavras primárias como fluidez, estabilidade,
que compõem a descrição, vemos que dureza, grandeza, etc. Tanto na
cada uma delas é igualmente uma pintura quanto na linguagem, a
descrição imitação se mantém por tudo, mas a
natureza da imitação muda do nível
comprimida ou codificada de algum mais baixo ao da semelhança
modo. Assim, por exemplo, o imediata primitiva.
componente daimon de eudaimonia
foi escolhido como significando Um nome, como uma pintura, é
“conhecedor”, daêmôn (Cra. 398b5- uma semelhança deliberada.
c4). O análogo disso na retratação Enquanto a pintura é uma semelhança
visual consistirá em analisar um visível que visa a capturar as
retrato complexo em seus propriedades visuais do objeto, o
componentes (mãos, chapéu, olhos, nome é uma semelhança audível que
etc.) e cada um deles em seus visa a capturar o ser de seu objeto,
próprios componentes (dedos, isto é, discriminar o que o objeto é.
polegar, etc.; viseira, coroa, etc.; Em ambos os casos, Platão aceita
pupila, íris, etc.). Porém, ao final, no prontamente que a semelhança será
caso da retratação, a análise atingirá frequentemente imperfeita, mas está
o nível das pinceladas de cor de que igualmente confiante que a imitação
são compostas as partes mais permanece uma imitação daquele
simples. Igualmente, na análise dos objeto particular, sem que se

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Hugh H. PLATÃO
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considere se é uma semelhança com- tirada a foto, talvez ela exagere o


pleta e precisa ou parcial e tamanho de seu nariz, e, de todos
enganadora. Os critérios mínimos os modos, difere de você por ter
para que uma sequência de sons seja somente duas dimensões –, mas
o nome de algo parecem ser: deve haver alguma semelhança
saliente que faça com que seja
a) que o nome tenha sido reconhecida como designando
deliberadamente atribuído a este você em particular.
objeto específico por seu criador (o
verbo para “atribuir”, tithes- thai, Essa tese de semelhança aparece
tem um papel central na teoria do por primeiro na discussão do Crátilo
Crátilo) e sob a forma da tese naturalista –
levada a extremos fanáticos por um
interlocutor, Crátilo, o primeiro
mestre de Platão – segundo a qual o
b) que possua, senão uma nome de cada coisa pertence a ela
semelhança completamente “por natureza” (phusei). Aos olhos de
precisa do nome ao qual foi Crátilo, isso significa que o nome deve
atribuído, pelo menos um grau ter embutido de modo perfeitamente
significativo de semelhança. preciso a natureza da coisa ou deixa
de ser o seu nome. No começo do
É bastante fácil ver como o diálogo, o outro interlocutor,
modelo da retratação levou Platão a Hermógenes, sustenta, ao contrário, a
esta posição. Se a fotografia de seu opinião de bom senso segundo a qual
passaporte, por exemplo, de ser nada senão uma convenção arbitrária
reconhecida como sua foto determina que nome vale para que
coisa; poderíamos muito bem ter
a) tem de ter sido produzida como denominado o homem “cavalo” e o
foto sua e não simplesmente cavalo “homem” (385a6-bl), se a
escolhida posteriormente com convenção local assim o ditasse.
base em uma semelhança, e Sócrates, porta-voz de Platão, opõe-
b) pode representar mal sua se a Hermógenes, argumentando (em
aparência de vários modos – talvez parte pelas razões expostas acima)
seja de uma só cor, talvez você que os nomes são instrumentos com
tenha envelhecido desde que foi uma função instrutiva específica e,

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Hugh H. PLATÃO
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portanto, requerem uma constituição embaraçosas acerca da linguagem. De


especializada. Que o nome anthrôpos, qualquer modo, o Crátilo é um guia
“homem” se revele capturando bem muito melhor.
ou mal o ser distintivo da raça
Ao final do Crátilo, tudo o que
humana, assim que compreenDemos Sócrates concedeu a Hermógenes é
o que os que fizeram o nome estão que, em função da aproximação
tentando veicular acerca da variada com a qual os nomes
racionalidade humana por meio de representam os objetos, há lugar para
sua escolha desse nome, não certo elemento de convenção para
podemos mais entreter a ideia de ajudar a garantir a significação.
Hermógenes que esta mesma Leitores do Crátilo frequentemente
sequência de sons poderia de modo superestimaram o escopo dessa
igualmente apropriado ter sido concessão. Em somente dois casos es-
atribuída a uma criatura não racional pecíficos é dado um papel à
como o cavalo. convenção. Um concerne a palavras
que mostram que possuem um
Até o fim do diálogo, Sócrates número igual de sons apropriada e
continua a resistir a versão de inapropriadamente descritivos: o
Hermógenes do convencionalismo exemplo escolhido (434bl0-435b3) é
lingüístico (especialmente 433e2- sklêrotês, “dureza”, que contém um
434a3). Essa é uma razão para som que veicula dureza (K) e um que
desconsiderar a afirmação na Sétima veicula maciez (L) – os outros sons
Carta platônica, 343bl-2, que “nada sendo considerados simplesmente
impede que as coisas que são agora irrelevantes para os propósitos da
chamadas “redondas” sejam discussão. Aqui, concede Sócrates,
chamadas “retas” e vice-versa”, que somente a convenção pode quebrar o
parece estar baseada em facilmente impasse; assim como, se poderia
tresler o Crátilo como reivindicando a dizer, em casos nos quais seu retrato
posição original de Hermógenes. A se parece e não se parece com você
autenticidade dessa carta tem sido em graus idênticos, teremos de
frequentemente posta em dúvida, resolver nossa incerteza perguntando
com boas razões, e é por isso que, no
presente capítulo, não vou fazer uso
de suas observações frequentemente

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Hugh H. PLATÃO
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se é ou não seu retrato com base em mesmos adquirem sua significação


sua atribuição original, assim também imitando seus objetos de um modo
a significação de sklêrotês pode ser mais direto, mas, com base em seus
determinada e explicada somente princípios usuais, é pelo menos
descobrindo qual dos itens presentes possível que eles assim o façam.
foi atribuído a ela por seu criador. Que Onde, então, a convenção
esta ou qualquer palavra possa inevitavelmente entra no quadro,
consistir predominantemente de sons como Sócrates diz que ela deve fazer?
inapropriados e, por conseguinte, Ele aparentemente quer dizer que os
adquira sua significação puramente nomes dos números maiores não
por convenção – isto é, simplesmente podem, como os números primários,
por lhe ser atribuído o item em pauta, imitar diretamente seus objetos, se,
é uma possibilidade que Sócrates por exemplo, o nome para 1.000 tiver
nunca concedeu. de conter mil sons e que é o fato
mesmo que há infinitamente muitos
O segundo caso no qual se números que garante que, junto com
concede à convenção um papel é o a Base descritiva do sistema
dos nomes dos números (435b3-c2). numérico, um conjunto de regras
Sócrates aqui deixa claro que se deve ser estabelecido para assegurar
precisa da convenção, não para subs- o mapeamento sistemático dos
tituir a semelhança, mas nomes a seus objetos. A natureza
precisamente para permitir que a dessa concessão menor confirma,
semelhança faça seu trabalho. Não é antes que solapa, o compromisso de
difícil ver por quê. O sistema numérico Platão com a semelhança como a
é um notável propagandista do poder principal base de toda significação e o
dos nomes de significar por descrição. domínio em seu pensamento
Com base em um conjunto limitado semântico do modelo de retratação
de nomes como componentes (um, da significação das palavras.
dois, três, -tena, -iar, etc.), um número
infinito de outros nomes pode ser LINGUAGEM E DIALÉTICA
construído, cada um deles
individuando descritivamente seu Platão tem, então, pelo menos os
objeto ao se o analisar em seus rudimentos de uma teoria semântica:
componentes. Sócrates nem afirma especificamente, ele tem uma teoria
nem nega que os componentes eles desenvolvida sobre como a linguagem

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realiza seu poder de significar as [como Platão aqui e no Crátilo


coisas. Quais são suas implicações chama quem originalmente cria
para a dialética filosófica à qual a os nomes] atribuiu (tithesthai)
maioria de seus diálogos é dedicada? esse nome, “moderação”.
Já nos deparamos com uma conclusão
negativa: palavras não imitam seus Mesmo que façamos esta
objetos com um grau suficiente de modificação, a questão, porém,
fidedignidade que pudesse funcionar permanece: como pode nossa
como uma fonte de conhecimento discussão assegurar um foco intelec-
pelo estudo de sua etimologia. tual na coisa se o nome dela é nosso
Porém, e a respeito da natureza da instrumento indispensável para isso?
própria investigação definicional? Platão, com efeito, lembremo-nos,
Volto à minha questão anterior: como considera o pensamento em si
pode um dialético estar seguro que a mesmo como lingüístico em estrutura
palavra que está em pauta para e conteúdo.
definição já está, no uso do grego, tão
firmemente ligada a um conceito O primeiro ponto a enfatizar ao res-
único demarcado apropriadamente ponder a essa questão é que Platão
que definir a palavra levará a uma não está comprometido com a tese
compreensão do conceito? (Ver o que o uso
capítulo O Método da Dialética de
Platão.) Ou, de outro modo mais
preciso, podemos preferir pensar a
coisa, antes que o termo, como sendo convencional atual das palavras em
o que estamos tentando definir, pauta captura corretamente o
comparando, por exemplo, a significado ou a extensão delas.
formulação cuidadosa de Platão no ‘Justo”, por exemplo, o de- finiendum
Chrm. 175b2-4 quanto à sua busca de da República, é um termo popu-
uma definição para “moderação” larmente aplicado ao
Csôphrosunê): empreendimento de causar dano aos
inimigos, embora Sócrates se
A verdade é que somos vencidos proponha a mostrar que causar dano
de todos os lados e somos jamais poderia em qualquer
incapazes de encontrar o que circunstância ser justo (335b2-el). Na
era a coisa à qual o legislador verdade, quando Sócrates tiver

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terminado sua análise, esta palavra se a) ao serem atribuídas a elas


mostrará como tendo um significado primeiramente e
muito diferente daquele que o uso b) ao imitarem as propriedades delas
convencional lhe atribui (República em um certo grau.
IV) e como conotando um tipo de
relação harmoniosa entre as três Nenhuma destas condições
partes da cidade ou da alma. O requer que a palavra seja um retrato
resultado pode levar alguém a se perfeitamente preciso do objeto para
perguntar se Sócrates pode estar que adquira e retenha sua referência
seguro de que o que ele pinçou com a ele e, portanto, não estamos
sua definição é o mesmo item que obrigados a supor que ou os que
estava buscando quando se pôs a atribuíram originalmente os nomes
buscar a definição da justiça. Esta ou aqueles entre nós que usam a
questão é, na verdade, uma versão do palavra com sucesso têm a completa
paradoxo de Mênon (Men. 80d5-e5): compreensão de seu objeto que
se você já não sabe o que está
procurando, como você o reco- nos permitiria demarcá-lo com
nhecerá quando o encontrar? No perfeita precisão. A referência da
Mênon, Sócrates responde com a palavra ao seu objeto está, todavia,
teoria que você de fato o conhecia assegurada e pode em princípio nos
desde sempre, a saber, pelo levar a sua definição, assim como uma
conhecimento que sua alma possuía fotografia imperfeita de você pode
ativamente antes do nascimento, bem ser suficiente para levar um
esqueceu depois e pode aspirar a detetive à sua identificação.
recuperar ou “relembrar” no
processo de aprendizagem (ver o Fica a questão de por que o grupo de
capítulo Platão e a Reminiscência). palavras como “justo”, “corajoso”,
Contudo, deve-se assinalar que a “moderado”, “belo” e “bom”,
teoria semântica de Platão foi encontrado em uma língua natural
potencialmente a base para uma real como o grego, deve fornecer um
resposta alternativa ou esboço de mapa, mesmo que preli-
complementar. As palavras, assim minar, do terreno relevante, como a
como os retratos, ganham sua prática investigativa de Platão
apreensão das coisas regularmente supõe que faz. Como
correspondentes sabemos que a linguagem ordinária

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mapeia de algum modo a realidade? mapear sistematicamente certas


Alternativamente, por que devemos seções desse mesmo mapa pela
supor que nossa confiança bem divisão e subdivisão progressiva da
fundada que, por exemplo, os nomes realidade “em suas junturas naturais”
dos números mapeiam em uma (Phdr. 265el-3), pode ser visto como
relação unívoca os números reais, tendo muito de seu ímpeto do
pode ser aplicada de novo quando se vocabulário grego, mesmo que ache
trata dos nomes muito mais necessário, em função da
controversos das virtudes? A resposta
otimista de Platão estará, ao que
parece, mais bem servida pela inter-
pretação largamente adotada de sua precisão, expandir e refinar a
Teoria da Reminiscência, segundo a terminologia disponível.
qual possuímos um conhecimento
pré-natal adquirido das Formas – não Na verdade, a tese fundadora do
somente das Formas dos números e Crátilo, que um nome é um
coisas desse tipo, mas também das instrumento para separar o ser,
Formas das virtudes e dos conceitos atribui precisamente esta função às
de valor relacionados – de que nos palavras, a despeito de quão im-
esquecemos no nascimento, mas que preciso Platão possa considerar o
estão em certa medida sendo resultado nas línguas existentes. A
supostos e sendo recuperados em outra tese do mesmo diálogo que há,
maior ou menor grau ao longo de independentemente da cultura e
nossas vidas encarnadas, cada vez que crença locais, Formas-Nome objetivas
impomos ao mundo que percebemos que cada língua busca incorporar no
conceitos como grande, pequeno, som reflete e confirma a convicção de
igual, bom e justo (ver em particular Platão de que nossas línguas, longe de
Phd. 75b4-9). Nesta leitura aceita representarem nossas tentativas
como controversa, não somente provavelmente fracassadas de
nascemos com um mapa da realidade classificar a realidade, têm uma
já enterrado em nossas almas, mas estrutura determinada objetivamente
nossa aquisição de um vocabulário é que, desde o início, é isomórfica com
ela própria o início da redes- coberta a estrutura da realidade.
deste mapa. Quando, em suas obras
tardias, Platão se põe a tarefa de SINONÍMIA E EQUIVOCAÇÃO

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Hugh H. PLATÃO
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Uma objeção óbvia a esta convicção um dado contexto, o mapa lingüístico


está evidente na língua grega, cujo da realidade
vocabulário parece manifestar muito
pouca correspondência unívoca com não parece sofrer grande dano.
as coisas para fazer as divisões no Nenhum mapa fica comprometido se
interior da linguagem um guia um lugar se revela como tendo dois ou
plausível às divisões da própria mais nomes correferenciais, mesmos
realidade. O que fazer com os se estes nomes (p. ex., “Holanda” e
numerosos casos, que se diz já terem “Países Baixos”) estiverem longe de
sido evocados por Demócrito como ser idênticos quanto ao sentido. Isso
prova da correlação arbitrária da lin- pode ser uma justificação suficiente
guagem à realidade (B26 DK), em que do fato palpável que Platão em seus
uma coisa tem dois ou mais nomes ou escritos faz pouco esforço para reter
em que duas coisas têm o mesmo um termo único para os seus
nome? conceitos mais queridos, como as
“Formas”, “conhecimento” e
O primeiro caso, o de supostos “sabedoria”, pois ele seguidamente
sinônimos, não parece dar muita modifica a terminologia de cada um
preocupação a Platão. Ele deles.
regularmente o apresenta como o
interesse típico do sofista Pródico, um Por outro lado, as variações finas
declarado especialista na “correção de sentido de cuja detecção Pródico
dos nomes”. Nos diálogos de Platão, frequentemente se gaba, mascaram a
Pródico pode sempre ser chamado unidade essencial do conceito em
para uma distinção semântica fina pauta. No Protágoras, por exemplo,
entre dois supostos sinônimos. Sócrates defende, pelo menos em
Porém, o fato desta tarefa ser hipótese, a tese que todos os valores
regularmente delegada a um podem ser medidos na escala de
lexicógrafo virtual como Pródico é ele prazer e dor e aqui a probabilidade
próprio um sinal de sua marginalidade que Pródico insistirá nas distinções
aos olhos de Platão. semânticas entre “prazeroso”,
“agradável” e “álacre” é posta de lado
Por um lado, se duas palavras são como irrelevante, com o acordo
realmente sinônimos, correferenciais sorridente do próprio Pródico (358a5-
ou simplesmente intercambiáveis em b3). Na terminologia do Crátilo, a tese

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de Platão é provavelmente que, Isto não é, penso, acidental. Por vezes


mesmo que não sejam sinônimos, se pensou que Platão era surdo à
estes termos participam todos da equivocação, mas é mais correto dizer
mesma Forma-Nome específica e, que ele se opõe ideologicamente a
daqui, têm o mesmo “poder”, isto é, ela. (Há discussões proveitosas sobre
há um item único que todos ele, cada esta questão em Robinson, 1969 e
um de seu modo respectivo, conse- Blackson, 1991.)
guem designar.
Como mencionado
Onde se esperaria que Platão anteriormente, Platão pensa a
mostrasse mais interesse é o caso realidade como divisível em suas
contrário: uma única palavra com dois junturas naturais. Qualquer que seja a
ou mais significados. Aristóteles, que parte dessa realidade que você está
foi aluno de Platão por duas décadas, analisando, ela vai se ajustar em
mostra-se reiteradamente em suas algum lugar na árvore dos gêneros,
obras – incluindo os tratados espécies e subespécies. Quaisquer
geralmente tidos como tendo sido duas espécies coordenadas de um
escritos durante o primeiro período – dado gênero, por exemplo: dois tipos
sensível aos múltiplos sentidos das de loucura ou dois tipos de
palavras e à necessidade de distinguir competência, serão formalmente
entre eles no intuito de evitar o erro diferenciados um dom outro por suas
(ver o capítulo Aprendendo sobre definições e o mapear dessas inter-
Platão com Aristóteles). É difícil relações é a matéria mesma da
imaginar que este tópico da dialética filosófica. Porém, o fato que
multivocidade das palavras nunca a competência, por exemplo, é
tenha sido evocado pelo jovem divisível nessas e outras espécies de
Aristóteles em discussões na modo algum torna a palavra “com-
Academia. Porém, quando petência” ambígua, não mais que o
procuramos nos diálogos de Platão fato que há diferentes espécies de
por ecos destas conversas entre os animais toma ambíguo “animal”.
dois, elas se mostram muito difíceis de
serem detectadas. Esse modo de reclassificar
ambigüidades aparentes é
naturalmente favorecido pelas
tendências metafísicas de Platão. Em

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seus primeiros diálogos, as questões cada um de nós a tenha como


de Sócrates por definições (por uma posse privada. Para cada
exemplo, Euthphr. 6d-e) perguntam tópico, deve haver um acordo
pela forma comum única para todas sobre apropria coisa, por meio
as coisas que partilham o mesmo de discussão, e não somente o
nome. Nesta mesma base, na R. 596a, nome, sem discussão.
ele enuncia o princípio metafísico
mais claro do um-de-muitos: todo Neste importante manifesto
conjunto de coisas que partilham um metodológico, Platão implica, com
nome caem sob uma única Forma. razão, que diferentes falantes podem
Esta abordagem já parece em certas ocasiões entender coisas
comprometê-lo com a tese da diferentes pela mesma palavra, mas
univocidade: cada nome designa uma ele evita sugerir que o definiendum
realidade única em todas as suas possa portar dois ou mais sentidos
ocorrências, mesmo se esta realidade lexicais distintos. Seu ponto principal
é um gênero que contém diferencia- é, antes, a necessidade de não
ções específicas. somente partilhar uns com os outros
uma linguagem comum, mas
Embora Platão tenha muitas também, pelo uso da dialética, obter
oportunidades para discriminar entre uma compreensão comum dos
dois ou mais sentidos de uma mesma objetos que ela designa.
palavra, ele sistematicamente não o
faz. Ele parece chegar perto de fazer Em somente uma ocasião em
isso no início do Sofista, quando seu todo o corpus é explicitamente
interlocutor principal, o Estrangeiro sugerido que a solução ao problema
de Eleia, diz a seu jovem interlocutor possa residir no ato de revelar a
Teeteto sobre sua investigação ambigüidade de uma palavra. Isso
conjunta da definição de “sofista” ocorre no Eutidemo, quando o jovem
(218cl-5): Clínias se viu confrontado pelos
sofistas Eutidemo e DÍonisodoro com
No momento, a este respeito, um sofisma baseado no duplo sentido
eu e você temos como de manthanein: “aprender”, mas
propriedade comum unica- também por vezes “entender”. O
mente o nome. Quanto à coisa a conselho de Sócrates ao garoto inclui
que o aplicamos, pode ser que o seguinte (277e3-278a7):

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Primeiro, como diz Pródico, fora de sua metodologia


deve-se aprender a respeito da característica; para enfatizar o seu
correção dos nomes. Estes dois caráter estrangeiro, ele efetivamente
visitantes estão mostrando-lhe se desvincula desta abordagem ao
que você não se deu conta que atribuí-la à figura periférica de
as pessoas usam a palavra Pródico. Estas firulas verbais são
“aprender” (manthanein) para citadas apropriadamente aqui
quando alguém começa sem somente porque o sofisma que
conhecimento sobre algo e provocou a resposta não é mais do
então o adquire, mas também que um jogo de palavras – como
denominam pelo mesmo nome Sócrates de fato vai logo após tornar
quando alguém já tem o explícito (278b2-c5). Nos discursos
conhecimento e o usa para filosóficos sérios de Platão, o método
considerar este mesmo objeto para retirar a ambigüidade nunca
de ação ou discurso. As pessoas ocorre. Ao dizer isso, incluo mesmo o
o chamam “compreender” Sofista, no qual tentativas – na minha
(suneinai) antes que opinião sem sucesso – foram por
“aprender”, mas eles por vezes vezes feitas para encontrar Platão
o chamam também aprender. distinguindo diferentes sentidos do
Isso, como eles estão verbo “ser” (discussões proveitosas
mostrando, é algo de que você em Bostock, 1984; Brown, 1986 e
não se deu conta: que o mesmo 1994). A suposição que Platão está,
nome é usado pelas pessoas em neste ou naquele diálogo, buscando
condições chamar nossa atenção a alguma
equivocação é uma fonte comum de
interpretações errôneas.

opostas, a pessoa que conhece Uma estratégia platônica


e a pessoa que não conhece. eventual para responder às
equivocações aparentes consiste em
O fato desta passagem ser única insistir que, de um par de palavras em
no cor- pus deve fazer-nos pausar e uso, somente uma corresponde ao
tomar nota. Ao notar por uma vez a seu sentido real, a outra sendo um
ambigüidade de uma palavra, uso errôneo (Smp. 205b4-d9, Lg.
Sócrates está fazendo algo que cai 722d6-e4). Porém, sua atitude mais

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fundamental, e que constitui sua reality in Plato’s Cratylus. In Essays on


razão para evitar eliminar a ambi- Plato and Aristotle (pp. 33-52).
güidade sempre que possível, reside, Oxford: Oxford University Press.
sugiro, em uma suposição de sua
parte que casos aparentes de Bamey, R. (2001). Names and Nature
significação múltipla se revelarão, em in Plato’s Cratylus. New York and
uma investigação mais detalhada, ser London: Routledge. Baxter, T. M. S.
divisões tipo ramificação no interior (1992). The Cratylus: Plato’s Critique
de uma árvore gênero-espécie: os ofNaming. Leiden: Brill.
dois ou mais itens que partilham um
nome são membros de um único Blackson, T. A. (1991). Plato and the
gênero e partilham esse nome senses of words. Journal of the History
genericamente, do modo como of Philosophy 29, pp. 169-82.
“mamífero” é usado para gatos e
ratos sem por isso ser ambíguo. Bostock, D. (1984). Plato on “is not.”
Embora Platão nunca argumente em In Oxford Studies in Ancient
favor desse modo de análise em Philosophy, vol. 2 (pp. 89-120).
gênero-espécie como preferível ao da Oxford: Oxford University Press.
simples equivocação, ele está
predisposto sem dúvida a (1994). Plato on understanding
language.
ele pela posição geral que já
estudamos: que a estrutura de nossa In S. Everson (ed.) Language (pp. 10-
linguagem, por mais imperfeita que 27). Cambridge: Cambridge University
seja, reflete já a estrutura da Press.
realidade.
Brown, L. (1986). Being in the Sophist:
NOTA a syn- tactical enquiry. In Oxford
Studies in Ancient Philosophy, vol. 4
Todas as traduções são do autor. (pp. 49-70). Oxford: Oxford University
Press.
REFERÊNCIAS E LEITURA
COMPLEMENTAR (1994). The verb “to be” in Greek
philosophy: some remarks. In S.
Ackrill, J. L. (1997). Language and Everson (ed.) Language (pp. 212-36).

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Cambridge: Cambridge University Ketchum, R. J. (1979). Names, Forms


Press. and con- ventionalism: Cratylus 383-
395. Phronesis 24, pp. 133-47.
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correctness of names. American
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Philosophy. London: Routledge. Reeve, C. D. C. (1998). Plato, Cratylus:
translated with introduction and
Derbolav, J. (1972). Platons notes. Indianapolis and Cambridge:
Sprachphilosophie im Kratylos und in Hackett.
den spãteren Schriften. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft. Robinson, R. (1969). Plato’s
consciousness of fallacy. In Essays in
Diels, H. and Kranz, W. (DK) (1985) Die Greek Philosophy (pp. 16-38). Oxford:
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Cratylus: limning the world. Ancient que ele gastou na refutação dos
Philosophy 21, pp. 1-18. paralogismos geométricos de Hobbes
não teria sido perdido se Hobbes
tivesse mantido sua promessa de
“abandonar seu estudo
16 extremamente fracassado de toda a
geometria” (Huygens, Carta 149, em
Platão e a matemática Hobbes, 1994, vol. 2: 538).

MICHAEL J. WHITE É claro, houve filósofos com


sofisticação e competência
INTRODUÇÃO: matemática muito maior do que a de
Hobbes. Todavia, a atitude para com
MATEMÁTICA E FILÓSOFOS – a matemática da parte dos filósofos
PLATÃO EM PARTICULAR que podem ser descritos como
apaixonados pela matemática tende a
“Ageômetrêtos mêdeis eisitô” (“que ser ambivalente. De um lado, o
ninguém sem conhecimento de raciocínio matemático apresenta um
geometria entre”). Segundo a lenda, padrão virtualmente sem paralelo do
era esta a inscrição que Platão pôs no rigor e exatidão intelectuais. Mais
pórtico de sua escola, a Academia (ver particularmente, o paradigma da
Fowler, 1999). Assim começa (e talvez exposição matemática,
continue) a relação entre matemática
e filosofia que frequentemente foi o sistema axiomático-dedutivo ou
próxima, mas nem sempre pacata. A ordo ge- ometricus que foi bem cedo
figura do filósofo com “pretensões” (por volta de 300 a.C.) exemplificado
matemáticas – o filósofo como um nos Elementos de Euclides, teve uma
matemático amador, o filósofo que enorme influência epistemológica.
quer ensinar os matemáticos sobre os Por outro lado, uma convicção não
fundamentos de disciplina deles ou pouco comum destes filósofos
mesmo o filósofo como matemático apaixonados pela matemática (que
manque – não é raro na história da permaneceram filósofos) é que o
filosofia. Veja o exemplo notável de âmbito intelectual do “matemático
Thomas Hobbes: Christiaan Huygens profissional”, por mais intenso que
exprimiu a esperança que o tempo

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

seja, é estreito e restrito. Há mais coi- matemática


sas no céu e na Terra, segundo
acreditavam a maioria (mas não
todos) destes filósofos, do que
sonham os matemáticos com a sua é uma (talvez necessária) preparação
matemática. para a filosofia e para se obter
conhecimento do “que é realmente
Platão por certo está no início real” (to ontôs on), outros aspectos da
dessa tradição. Pertenciam ao círculo relação entre a matemática e o
de Platão matemáticos como Teodoro pensamento de Platão são menos
de Cirene (nascido na primeira seguros. O grau em que Platão (ou
metade do quinto século), que figura outros filósofos antigos como Zenão
como uma personagem no Teeteto de de Eleia e Aristóteles) influenciou a
Platão, juntamente com seu aluno e teoria e prática da matemática antiga
contemporâneo de Platão, o próprio é uma questão altamente disputada.
Teeteto (ca. 414-369 aC.) (ver o No coração do que é provavelmente a
capítulo A Vida de Platão de Atenas). posição dominante nesta questão é a
Outras figuras de importância suposição que o empreendimento de
matemática estavam associados à Platão e de outros filósofos de propor
Academia de Platão. Talvez o mais (e por vezes responder) questões
importante deles tenha sido Eudoxo fundamentais e conceituais
de Cnido, que era também um filósofo “profundas” deve ter tido influência
e importante astrônomo. Os irmãos signifícante no desenvolvimento e na
Menecmo e Dinostrato eram também prática da matemática grega. Em
matemáticos de alto nível conectados reação a isso, alguns historiadores
com a Academia na metade do quarto renomados, como o falecido Wilbur
século. Platão parece sempre ter-se Knorr, argumentaram que os “estudos
associado a matemáticos e até um matemáticos [gregos] eram au-
leitor casual de Platão se aperceberá tônomos, quase completamente, ao
que há numerosas referências passo que os debates filosóficos, se
matemáticas nos textos de seus desenvolvendo no interior de sua
diálogos. própria tradição, frequentemente
obtiveram apoio e clarificação da obra
Enquanto parece óbvio em seus matemática” (Knorr, 1982, p. 112).
textos que Platão defende que a Todavia, pode-se pôr em dúvida quão

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Hugh H. PLATÃO
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efetivo esse “apoio e clarificação “duplicar” o cubo ao de encontrar


[filosóficos obtidos] da obra duas médias proporcionais em
matemática” podem ter sido se a proporção contínua entre duas linhas
impressão de Knorr da competência retas. (Com a ajuda da álgebra, que os
matemática dos filósofos antigos for gregos não possuíam, a relação é
correta: “os filósofos da Antiguidade direta. A proporção contínua a:x =
eram, sem nenhuma exceção que eu x:y=y:b gera a equação y2 = bx e y =
saiba... inaptos no controle dos ab/x e, portanto, y3 = b2a. Donde, se a
argumentos matemáticos” (p. 114). = 2b, obtemos y3 = 2b3. Assim, o cubo
da proporcional média y é duas vezes
No presente capítulo, não irei o volume do cubo da linha b.) A
mais adiante neste debate do que já atribuição de uma solução a este
fiz alhures. Minha posição geral é que problema a Platão é tardia, ocorrendo
os textos de que dispomos sugerem no comentário de Eutócio (primeira
que Platão (bem como Aristóteles) metade do século sexto d.C.) ao
possuía um conhecimento con- segundo livro Da esfera e cilindro de
siderável dos desenvolvimentos Arquimedes, mas em nenhuma fonte
matemáticos sem os estabelecer nem anterior. O consenso dos estudiosos
ter o que chamei “prática criativa modernos é que a atribuição é falsa,
matemática” (White, 1992, p. 134-7). não somente por causa da falta de
É verdade que foi atribuído na referências anteriores, mas também
Antiguidade tardia a Platão por diversas outras razões. Entre estas
(diferentemente de Aristóteles) razões está o fato que a prova
certos resultados matemáticos atribuída a Platão se vale de um
significativos. O mais importante mecanismo mecânico (um tipo de
deles é uma solução para um dos esquadro de carpintaria com um lado
famosos problemas geométricos da reto que se desloca por um lado
Antiguidade: dado um cubo de um permanecendo perpendicular a este
volume determinado, encontrar o lado e paralelo ao outro lado); porém,
cubo que tem o dobro desse volume. Platão, segundo Plutarco, teria
De desaprovado o uso de instrumentos
mecânicos na geometria, sustentando
acordo com a tradição, Hipócrates de que “a parte boa da geometria é deste
Quio tinha “reduzido”, no quinto modo perdida e destruída, na medida
século a.C., este problema de em que é trazida de volta aos sentidos

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Hugh H. PLATÃO
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no lugar de ser dirigida para cima e segundo esta interpretação de Platão,


apreender as imagens eternas e ele sustenta que os objetos matemá-
incorpóreas” (Plutarco, Quaestiones ticos gozam de uma condição
conviviales 718e-f). ontológica intermediária entre o que
é realmente real (to ontôs on ou o
Qualquer que seja a extensão domínio das Formas) e a realidade
exata da competência técnica física sensível – assim como a reflexão
matemática de Platão, a importância matemática ocupa uma posição
primária da matemática com respeito intermediária entre a reflexão
a seu pensamento reside no que pode filosófica ou dialética, de um lado, e a
ser denominado sua filosofia da mate- reflexão sobre a realidade física
mática. De acordo com o que parece sensível, do outro lado. Porém,
com certeza ser a posição de Platão, a interpretações alternativas da
matemática é propedêutica à filosofia ontologia matemática de Platão têm
(dialética). Por que sustenta esta uma longa história: das inter-
posição? E como a matemática pode pretações antigas “pitagorizantes”,
realizar esse papel? Tem a que tendem a amalgamar os objetos
matemática algum valor intrínseco, matemáticos e as Formas (ou mesmo
segundo Platão? Ou tem somente “matematizar” as Formas) a
valor extrínseco, sendo uma disciplina interpretações contemporâneas que
mental útil ou necessária? questionam se Platão de fato
postulou um domínio de objetos
As últimas questões levam à matemáticos onto- logicamente
questão da ontologia matemática de “entre” as Formas e os objetos físicos
Platão. Uma sensíveis.

Não pretendo, no que resta deste


capítulo, catalogar as referências
posição muito comum é que matemáticas no texto de Platão ou
Platão foi um platônico matemático tentar discutir todos os usos que
no sentido contemporâneo da Platão faz da matemática. Tampouco
expressão, sustentando que há um vou descrever a história da relação
domínio de realidade matemática que entre a matemática e a Academia de
não é construído, mas descoberto Platão, no tempo de Platão ou depois.
pelos matemáticos. Ademais, Antes, vou discutir sumariamente

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duas questões conectadas, mas mas com vistas à guerra e à


distintas no pensamento de Platão: facilidade para volver a alma do
(a) a relação entre “fazer matemáti- vir-a-ser em direção à verdade e
ca” e “fazer filosofia” e (b) o lugar ao ser. (R. 525b9-c6)
ontológi- co dos objetos da
investigação matemática. Além da “aritmética e cálculo”
(ari- thmêtikê e logistikê), Sócrates
A MATEMÁTICA E O aconselha a praticar geometria,
TREINAMENTO DA ALMA também por uma outra razão que sua
utilidade prática. Antes, “a parte
Na República, a personagem Sócrates maior e mais avançada dela tende a
claramente apresenta o que é tornar mais fácil ver a forma do bem”
usualmente tomado como uma (R. 526b8-el). A geometria, diz ele, é o
explicação curta de Platão para a conhecimento (gnôsis) do que
função pedagógica atribuída à mate- sempre existe (R. 527b7-8);
mática na cidade ideal: é o estudo que consequentemente, ela “leva a alma à
“eleva a alma do reino de vir-a-ser ao verdade e produz o pensamento filo-
reino do que é” (R. 521d3-4). sófico (philosophou dianoias) ao
Desdobrando o ponto, Sócrates dirigir para cima o que erroneamente
sustenta que dirigimos para baixo” (R. 527b9-ll).

Seria apropriado... legislar sobre Sócrates acrescenta mais três


esse assunto para os que irão disciplinas matemáticas ao seu
participar dos cargos mais altos currículo matemático: estereometria
na cidade e persuadi-los a se (geometria sólida), astronomia e
dedicarem ao cálculo [assim harmônica. Mantendo a cronologia
com a outras áreas da da República, Sócrates se queixa da
matemática discutidas em dificuldade e falta de
sequência] e se ocupar dela não desenvolvimento teórico da
como amadores, mas ficando esteoronomia, sugerindo que os
com ela até alcançar o estudo “pesquisadores precisam de um
das naturezas dos números por diretor [como Platão?], pois, sem um
meio da própria reflexão, não diretor, eles não descobrirão nada”
como negociantes e vendedores (R. 528b7-8). Havia certamente
no intuito de vender e comprar, “resultados” conhecidos em es-

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Hugh H. PLATÃO
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tereonomia na parte final do século Sócrates advoga por uma “astro-


quinto e no início do quarto século. nomia pura” e por uma “harmônica
Atribui-se a Demócrito, por exemplo, pura”. Se estudada corretamente, a
a descoberta que o volume de uma astronomia, caracterizada como o
pirâmide é um terço do volume de um estudo dos corpos sólidos em
prisma de mesma base e altura. A movimento de rotação (en peri-
objeção de Platão parece ser que a phorai) (R. 528a9), investiga os
estereonomia não é “perseguida objetos que “devem ser apreendidos
consistente e vigorosamente” (R. pela razão e pensamento, não pela
528c2-4). Talvez ele tenha em mente vista” (R. 529d4-5). Se “devemos usar
algo como a construção teórica a parte inteligente da alma e não a
subsequente dos cinco sólidos regu- deixar sem uso”, Sócrates conclui,
lares com os métodos para os “devemos estudar a astronomia por
inscrever em meio de problemas, como fazemos na
geometria, e deixar de lado as coisas
no céu” (R. 530b6- cl). Similarmente,
Sócrates critica os que se dedicam de
uma esfera, trabalho que iria formar a modo prático à harmônica porque
base do décimo terceiro livro dos eles “buscam os números que devem
Elementos de Euclides. ser encontrados nas consonâncias
audíveis, mas não se elevam aos
As injunções de Sócrates problemas. Eles não investigam, por
relativamente à astronomia e à exemplo, quais números são
harmônica são um problema para a cônsonos e quais não são e qual é a
maioria dos comentadores, e explicação para cada um” (R. 531cl-4).
seguramente para os comentadores Seu ideal parece ser uma “harmônica
modernos. Por causa da história dos pura” no sentido de uma
desenvolvimentos científicos especificação teórico-numérica e de
ocidentais, não podemos deixar de uma teoria da consonância e da disso-
pensar estas disciplinas como áreas nância, a qual não está relacionada
da filosofia natural ou física, em que a com a experiência auditiva.
matemática aplicada é usada para
“salvar” (explicar) os fenômenos A concepção de Platão de uma
físicos observados. Todavia, parece astronomia e harmônica “puras” (que
que, no sétimo livro da República, aparentemente não seriam limitadas

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Hugh H. PLATÃO
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por dados físicos) está sem dúvida sugerido (mas não, em sua opinião,
intimamente relacionada a um ponto inteiramente realizado ou entendido)
que Platão reiteradamente enfatiza. pelo tipo de abstração que caracteriza
O estudo da matemática deve ter o a prática matemática grega. Falando
efeito de fazer voltar a alma do de sua “harmônica pura”, mas talvez
domínio mutável da sensação implicitamente também se referindo
(identificado, no melhor modo às outras áreas da matemática,
platônico, com o “vir-a-ser”) ao Sócrates diz que a disciplina, se
domínio imutável do pensamento buscada corretamente, é “útil na
(identificado com busca do belo e do bem. Porém, bus-
cada por qualquer outro propósito,
o “ser”). A aritmética ou teoria dos não tem utilidade” (R. 531c6-7). Ele
números grega e a geometria grega continua:
da época de Platão tinham
progredido até um certo ponto de Se a investigação de todos os
abstração. Um geômetra que fizesse a objetos que mencionamos [isto
prova do Teorema de Pitágoras não é, as disciplinas matemáticas]
concebia a si mesmo como provando traz à luz sua associação e
o teorema (somente) para um relação umas com as outras e
diagrama particular de um triângulo tira conclusões acerca de sua
reto. Um aritmético não se via, afinidade, contribui de fato em
quando investigava as propriedades algo a nosso objetivo e não é
dos números “quadrados” e trabalho em vão, mas... de outro
“retangulares”, como investigando modo é em vão. (R. 531c9-d4)
(somente) certos conjuntos de pedras
ou de outros marcadores dispostos Um pouco adiante no diálogo,
em configurações geométricas Sócrates legisla que, na idade de 20
quadradas ou retangulares (não anos, os jovens que são escolhidos
quadradas). A questão é o que Platão para seguir o caminho para tornarem-
fez com a tendência “natural” à se governantes serão ensinados de
abstração que ele encontrou na um modo mais sistemático (e
prática matemática grega. avançado) os “temas que aprenderam
sem nenhuma ordem particular
A resposta parece ser que ele quando crianças [e que] agora devem
encontrou um bom bocado que era agrupar para formar uma visão

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Hugh H. PLATÃO
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unificada de sua afinidade uns com os frutífero na matemática moderna e


outros e com a natureza do que é” (R. contemporânea. Todavia, um co-
537cl-3). É claro que os estudos mentador recente da matemática em
Platão, M. F. Burnyeat, encontra algo
mais profundo na defesa de Platão da
visão sinótica: “a matemática fomece
(;mathêmata) aos quais Sócrates se a articulação no nível mais inferior do
refere são as disciplinas matemáticas. valor objetivo” e “a matemática é o
Esta instrução matemática avançada caminho ao conhecimento do Bem
e sinótica, diz Sócrates, é o “maior porque ela é parte constitutiva da
teste de quem é naturalmente compreensão ética” (Burnyeat, 2000,
dialético e de quem não é, pois quem p. 45, 73).
pode alcançar uma visão unificada (é
sunoptikos) é dialético; quem não PITAGORIZAR OU
pode, não é” (R. 537c6-7). NÃO PITAGORIZAR

Está longe ser óbvio o que Nomeio tal interpretação de Platão


exatamente Platão entende por uma “pitago- rização” e em breve tentarei
“visão sinótica” da matemática. Ele explicar mais claramente o que
pode, em parte, estar apontando à entendo por esta caracterização.
relação entre sua “astronomia pura” e Penso que existe a Base para uma
a estereonomia e à relação entre sua posição como esta de Burnyeat nos
“harmonia pura” e a aritmética. Ele textos de Platão. Afinal, Platão
também pode estar fazendo alusão à considera que seus candidatos a
ordem de estudo própria das cinco governante devem passar dez anos
disciplinas matemáticas. Talvez tudo estudando matemática avançada (en-
o que entende seja a sistemati- zação tre 20 e 30 anos) antes de
de uma disciplina matemática empreenderem cinco anos de estudo
imposta pela formulação axiomático- da dialética (R. 539d-e), o que é
dedutiva do tipo que encontramos seguido por uma “descida à caverna”
em Eudides. Penso que seria de serviço administrativo e militar
apressado fazer a hipótese que Platão
antecipou o tipo de unificação e por quinze anos; aos 50 anos, os que
fertilização cruzada dos ramos da merecem “devem ser compelidos a
matemática que foi um elemento tão alçar a luz radiante de suas almas ao

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Hugh H. PLATÃO
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que fornece luz para tudo. E assim apreender e aprender mais fácil
que tiverem visto o bem em si e rapidamente os assuntos que
mesmo, devem, cada um em turno, são de maior importância e de
pôr a cidade, seus cidadãos e eles maior valor. Não penso, porém,
próprios em ordem, servindo-se dele que seja adequado aplicar o
como modelo” (R. 540a7-bl). termo “filosofia” a um
Contudo, dificilmente parece que dez treinamento que nada nos serve
anos de treinamento em matemática no presente para nossas falas ou
avançada seriam necessários se o ações, mas o chamaria antes
propósito desse treinamento ginástica da mente e uma
consistisse meramente em dar a preparação à filosofia.
disciplina mental para aprimorar o (Antidosis 265-6, em Isócrates,
intelecto à dialética ou para 1956, p. 333)
acostumar a alma a dar às costas ao
concreto e sensível em direção ao No que parece ser uma
abstrato e universal. Uma posição observação dirigida aos “matemáticos
“puramente instrumentalista” do va- profissionais”, Isócrates observa que
lor da matemática poria esse valor no
que Burnyeat chama “treinamento alguns dos que se tomaram tão
mental”: é uma posição que “implica completamente versados
que o conteúdo do currículo nesses estudos a ponto de
matemático é irrelevante ao seu ensinar outras pessoas não
objetivo” (Burnyeat, 2000, p. 3). conseguem usar o
conhecimento que possuem
Como Burnyeat observa, houve com oportunidade, ao passo
certamente representantes desta que nas
posição que eram contemporâneos
de Platão. Talvez o mais notável tenha
sido o retórico Isócrates, do quarto
século a.C. Ele sustenta que, por meio outras atividades da vida eles
do estudo da geometria e da as- são menos cultivados do que
tronomia (juntamente com o seus estudantes – hesito em
argumento “erístico”), dizer menos cultivados do que
seus servidores. (Panathenaicus
Ganhamos o poder... de 28-9, em Isócrates, 1956, p. 391)

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Isócrates é mais tolerante quanto 531c, 532c)” (Bumyeat, 2000, p. 5). De


à instrução matemática que os fato. Porém, a questão é se a mate-
sofistas Protágoras e Aristipo de mática provê (algum) conhecimento
Cirene. O primeiro é retratado por do Bem, se, para usar os termos de
Platão como evitando dar instrução Bumyeat, “o conteúdo da matemática
em aritmética, astronomia, geometria é uma parte constitutiva da
e harmônica, de modo que pode “ir compreensão ética” (p. 6). Interpretar
direto à caça” e instruir seus Platão como sustentando que o
estudantes em “deliberação segura, conteúdo da matemática, quando
tanto em assuntos domésticos... realizada de modo apropriado, é em
quanto em questões públicas – como algum grau constitutivo da
obter a máxima potência para sucesso “compreensão ética” (ou, mais
em um debate Político e na ação” largamente, constitutivo da compre-
(Platão, Protágoras. 318e-319a2). ensão do que é “realmente real”, in
Aristóteles nos diz que Aristipo toto) é, no meu entender, pitagorizar.
desconsiderou as disciplinas Como sugeri anteriormente, não
matemáticas porque “não produzem penso que as interpretações
nenhuma explicação (logon) a pitagorizantes de Propriedade não
respeito das coisas boas e más” têm fundamento. Não temos
(Aristóteles, Metaph. III.2.996a35-bl). somente a longa e densa formação
De fato, essa afirmação ocorre em em matemática que Platão
uma passagem na qual Aristóteles
alega que, na matemática, “nada é prevê para os governantes em
demonstrado por meio deste tipo de potencial. Temos também a clara
explicação [isto é, em termos de um indicação que o que impressiona
fim ou do que é bom] nem há Platão, em particular, acerca da
demonstração alguma (apodeixis) matemática é que ela é capaz de
com base em o que é melhor ou pior” providenciar um cão virtualmente
(Metaph. 996a29-31). sem paralelo de uma convicção de
verdade inabalável e sem
Porém, qual é a posição de ambigüidade. A respeito do ato de
Platão? Bumyeat observa que “o Sócrates fazer surgir do escravo no
objetivo do currículo matemático é Mênon (82b-85c) uma construção
reiteradamente dito [por Platão] ser o para a “duplicação do quadrado” (isto
conhecimento do Bem (526d-e, 530e, é, uma prova que a área do quadrado

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construída pela diagonal de um dado pode ser transformado em uma


quadrado é duas vezes a área deste experiência de “aha!” incondicional,
quadrado), Ian Hacking comenta: “absoluto”, caso a convicção
inabalável e a compreensão que a
o que impressiona Platão e o prova nos dá, relativamente a suas
que me impressiona é que, pela premissas, pode também se
conversa, ges- ticulação e estendida às premissas. Isto é, a prova
reflexão, podemos descobrir matemática pode servir como um
algo e ver por que o que caso sem comparação de compreen-
descobrimos é verdadeiro.... são/convicção inabalável da verdade,
caso essa compreensão e convicção
O fato que podemos ver não se apliquem às premissas e ao que é
somente que o teorema é deduzido destas premissas.
verdadeiro, mas também por
que ele deve ser verdadeiro, é o E é bastante fácil concluir que esse re-
fenômeno central de certas conhecimento é o que aRepública VI
provas, o sentimento puro de sublinha
ter “pegado”. Esse sentimento,
bem o sabemos, pode ser
ilusório. Todo candidato a
descobridor de prova teve na distinção interna à seção inteligível
muitas experiências de falsos “superior” da Linha Dividida. A parte
“aha!”. Platão não ignorava isso. inferior da seção inteligível
A reflexão firme e a habilidade representa o tipo matemático de
para recapitular de modo compreensão “aha!” (dianoid.) que se
inteligente o argumento eram vale de hipóteses e suposições, que
ingredientes fundamentais na “não tomam como devendo
apreensão de uma prova. necessariamente ser explicadas...
(Hacking, 2000, p. 94-5) nem para si próprios nem para os
outros, como se fossem claras para
É bastante fácil concluir que todos” (R. 510c6-dl). Porém, a parte
Platão reconhece que, em alguns superior da seção inteligível
casos de prova matemática, representa o tipo de compreensão
encontramos uma experiência de “aha!” incondicional (noê- sis) gerado
“aha!” genuíno, mas condicional, que pela dialética, quando “não se

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consideram estas hipóteses como que elas são “obtidas mediante a


primeiros princípios (archas), mas consideração de exemplos empíricos”
verdadeiramente como hipóteses – (p. 25) e, deste modo, não satisfazem
porém como degraus para as o teste do “aha!”. Tait sugere que,
abandonar, tornando possível pelo menos no caso da geometria, os
alcançar o primeiro princípio não primeiros princípios dos Elementos de
hipotético de tudo” (R. 511b5-7). Euclides são ao final (em muito) o que
se busca.
A dialética, então, representa o
tipo de entendimento compreensivo O problema com a posição de
no qual nada fica sem ter sido Tait é que, apesar do fato de
submetido e passado o texto do interpretar a dialética como uma
“aha!” (ver o capítulo O Método da questão de tentar estabelecer
Dialética de Platão). Tal fundamentos inabaláveis para as
caracterização obviamente não ciências
estabelece a identidade desta archê
última, o qual (dedutivamente?) fun- exatas (matemática), talvez não
da todo outro conhecimento e não pitagorize suficientemente.
carece ela própria de nenhum outro Considerações de valor, inclusive do
fundamento. Em termos históricos, “o valor ético, parecem ter desaparecido
Bem” é o candidato mais comum para da explicação de Tait. E Platão – com
esta archê (ver o capítulo O Conceito toda sua conversa sobre o Bem, etc. –
de Bem em Platão). Contudo, o certamente parece crer que as
eminente lógico-matemático W. W. considerações de valor são
Tait argumentou que Platão está aqui fundamentais para o tipo unificado
simplesmente buscando uma superior de compreensão, a noêsis,
fundação axiomática para a que deve ser obtida por meio da
matemática (representando as filosofia ou dialética.
“ciências exatas”), a título de um
conjunto de “verdades primárias, Diferentemente de Tait,
como representadas pelas Noções Burnyeat pita- goriza: “o conteúdo da
Comuns e Postulados dos Elementos matemática [é] uma parte
de Euclides” (Tait, 2002, p. 26). O constitutiva da compreensão ética” e
problema com as hipóteses no “a matemática fornece a articulação
estágio inferior da dia- noia, então, é do mundo tal como é em seu nível

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inferior, falando objetivamente” natureza” (Aristóteles, Metaph.


(2000, p. 6, 22). Não tenho espaço VII.2.1028b25-6). Um ressurgimento
para examinar a engenhosa posterior do platonismo
explicação de Burnyeat desse pitagorizante, começando com
fenômeno. Porém, em poucas Numênio e Nicômaco de Gerasa no
palavras, a explicação começa com a segundo século de nossa era, foi
observação que, para Platão, os examinado por Dominic OTVIeara.
conceitos matemáticos como Nos Theologoumena arithmeti- cae
“concórdia, harmonia, proporção, de Nicômaco (que nos foi transmitido
ordem e unidade... [são] valores
importantes” (p. 76) e, assim, centrais
à dimensão ética da realidade. Ele
então argumenta que quem estudou somente em uma paráfrase feita pelo
matemática profunda e corretamente patriarca bizantino Fócio, do século
(e por um longo tempo) se assimilou nono), as Formas platônicas se
assim ao “valor objetivo” e que tornam “propriedades ou
“quem cuja alma se assimilou ao ser ‘características’ (idiômata) dos
objetivo pode tomá-lo como modelo números” (0’Meara, 1989, p. 17).
para reorganizar o mundo social” (p. Nesse processo, as divindades são
72). Burnyeat nega que Platão assimiladas aos (primeiros dez)
sustente que a relação entre estes números, gerando a “teologia
conceitos em seus contextos numérica” de Nicômaco. A respeito
matemáticos e éticos é equívoca ou de Numênio, contemporâneo de
meramente metafórica. Na verdade, Nicômaco, 0’Meara se pergunta se
seu sentido ético é fixado por seu sua pitagorização não o levou
sentido matemático.
a ponto de flexibilizar as
Diferentes formas de pitagoriza- distinções que Platão faz aqui
ção estiveram provavelmente entre a matemática e seus
presentes na Academia desde seu objetos, de um lado, e o “estudo
início. Xenócrates (ca. 396-314 aC.), superior” (chamado “dialética”)
seu terceiro dirigente, pode ter sido a e seus objetos (puro ser ou as
quem Aristóteles se referia ao Formas e a fonte das Formas, o
escrever que “alguns dizem que as Bem), de outro. Seu programa
Formas e os números têm a mesma pitagórico o fez identificar a

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matemática com a dialética, os matemática e que o conhecimento de


números com as Formas? to ontôs on, as Formas e o Bem, é
(0’Meara, 1989, p. 14). diferente e superior ao conhecimento
matemático. Uma solução para os
Proponho que o ato de modernos que querem pitagorizar
pitagorizar tipicamente manifesta consiste
duas tendências. Como um estudioso
moderno, Burnyeat procura entender em apresentar a dialética como um
e interpretar as intenções de Platão. É tipo de metamatemática dotada de
assim difícil para ele aceitar o valores. De fato, encontramos
platonismo pitagorizante radical de Burnyeat caracterizando os estudos
certos neoplatôni- cos, que estavam que “alçam os filósofos em potencial
mais interessados no que viam como ao conhecimento do Bem” como
a verdade do platonismo que nas “matemáticos e dialética
intenções de Platão. Um estudioso metamatemática” (Burnyeat, 2000, p.
moderno como Burnyeat não pode 77) e afirmando que “a dialética é
simplesmente ignorar uma passagem descrita em termos que poderíamos
como a seguinte: denominar de investigação
metamatemática” (p. 46).
você não sabe que todos estes
temas [matemáticos] são Pode parecer para nós modernos
meramente prelúdios à canção improvável e estranho pensar que
(tou nomou) que deve ser “uma investigação metamatemática”,
aprendida? Você certamente no sentido de uma investigação dos
não pensa que as pessoas que “fundamentos” da matemática,
são inteligentes nesses assuntos epistemologia e ontologia ma-
são dialéticos. temáticas, possa ter alguma
relevância para os assuntos éticos ou,
Não, por deus, não penso, na verdade, relevância para qualquer
embora tenha encontrado coisa além do que supomos que a
algumas poucas exceções. (R. matemática engloba. Porém, há cer-
531d7-e3). tamente antecedentes antigos para
tal posição. Em seu Comentário ao
Tais passagens sugerem que há Primeiro Livros dos Elementos de
mais na dialética que somente Eculides, Proclo (412-85 dC.)

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

interpreta Platão como construindo a de cima para todo o resto abaixo no


alma a partir de formas matemáticas
e toma a função que ele chama
“matemática geral” (hê holê
mathêmatikê) como sendo a intelec- mundo sensível, onde toca na
ção dianoética Qn pr. Eucl. 16.22ss e natureza e coopera com a
18.10- 11, em Proclo 1967). A ciência natural (phu- siologia)
matemática geral é uma “ciência para estabelecer muitas de suas
única que engloba todos os tipos de proposições, assim como se
conhecimento matemático”. Seus eleva desde abaixo e quase se
princípios se aplicam aos números, junta ao conhecimento
grandezas, movimentos e, diz Proclo, intelectual ao apreender os
dizem respeito especialmente às primeiros princípios da
proporções, razões e aos teoremas contemplação (theôria). ([In pr.
gerias que tratam da igualdade e da Eucl. 19.20-4; trad. de Morrow
desigualdade. Porém, além de lidar alterada, em Proclo, 1970, p. 16-
com os métodos de síntese (dedução) 17).
e análise, também diz respeito à
beleza e ordem (to kallos kai tên taxis) Ele acrescenta que a “beleza e
Qn pr. Eucl. 7-8). A in- telecção ordem do discurso matemático, assim
dianoética da matemática consiste como o caráter permanente e seguro
em dois tipos de poder, segundo a de sua theôria nos põem em contato
interpretação de Platão por Proclo. com o mundo inteligível” (In pr. Eucl.
Seus poderes “inferiores” formam a 20.27-21.2, em Proclo 1970: 17).
base não somente das ramos da Assim, a ciência matemática, “dirigida
ciência matemática como Platão os para cima”, aporta contribuições da
distingue (aritmética ou teoria dos maior importância para a filosofia e
números, geometria e estereonomia, teologia; no reino do valor humano,
astronomia e harmônica), mas ela auxilia a filosofia política e “nos
também da matemática aplicada. A aperfeiçoa a respeito da filosofia
respeito de seus poderes superiores, moral (êthikên philisophian) aos
Proclo pitagoriza: instilar ordem e vida harmoniosa em
nossos caracteres” (In pr. Eucl. 21-
O alcance de seu pensamento se 25ss, 23.12ss e 24.4-6,
estende respectivamente).

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Proclo, como Bumyeat, lugar, por assim dizer, para a


manifesta uma característica saliente especialização matemática. Algum
de platonismo bem pitagorizante: a treino matemático (pode-se discutir
matemática “dirigida para cima” ou quanto à quantidade) dá à pessoa as
metamatemática no sentido “habilidades transferíveis” (Burnyeat,
pitagorizante de Proclo provê uma 2000, p. 19) necessárias para passar à
transição sem rugas à compreensão prática da dialética e alcançar a
noética da totalidade de to ontôs on, compreensão da realidade dotada de
o que é realmente real, com o Deus valor, to ontôs on. Porém, o objetivo
em seu ápice. Esta metamatemática deste treinamento não é a
dirigida para cima fornece assim a competência matemática
base objetiva essencial para todas as “profissional” ou uma preocupação
formas de valor, inclusive o valor exclusiva com a matemática que
Político e moral humano. Por outro poderia ou não ser interpretada como
lado, caso se “antipita- gorize”, um caso de desenvolvimento
parece difícil evitar a concepção iso- interrompido. Porém, caso se
crática da matemática como uma pitagorize, é bem mais difícil decidir o
“ginástica da mente e preparação à que fazer com a prática matemática
filosofia”, na qual a filosofia não técnica cada vez mais
somente se distingue do que faz o profissionalizada.
“matemático profissional”, mas tam-
bém tem um conteúdo que não é A matemática ou
essencialmente matemático. metamatemática pitagorizada dirigida
para cima nos alça a um reino
METAMATEMÁTICA rarefeito do ser universal, necessário
PITAGORIZADA E A PRÁTICA e estático (dotado de valor). Porém,
MATEMÁTICA ANTIGA como um bom número de
comentadores modernos observou, o
Parece que a especialização e reino platônico das Formas-
compartimen- talização da ordenadas-pelo-Bem parece ser um
matemática é um fenômeno domínio singularmente pouco
conveniente para a crescente prática
que começou a se manifestar já no da matemática técnica antiga. A
quarto século a.C. Caso se matemática antiga está intimamente
antipitagorize, é possível encontrar ligada a ações, construções e

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processos. Mesmo Sócrates, no quadrados na hipotenusa BC e nos


sétimo livro da República, se queixa da lados BA e AC, traçar uma linha pelo
oposição entre a ciência da geometria vértice do ângulo reto e paralela e um
e os “termos usados pelos que a dos lados do quadrado construído na
praticam”: hipotenusa BC, etc. Os problêmata
(construções a serem feitas) são tão
Eles dão explicações ridículas, essenciais à geometria euclidiana do
ainda que não o possam evitar, que os theôrêmata (proposições a
pois falam como homens de serem “vistas” ou compreendidas).
prática e todas as suas expli-
cações se referem a fazer coisas. Até na teoria das proporções
Falam de “pôr em um supostamente eudoxiana do livro V
quadrado”, “aplicar”, dos Elementos e a teoria dos números
“adicionar” e coisas assim, do livro VII, processos idealizados,
quando o tema inteiro é mas mesmo assim quase-físicos de
buscado com vistas ao manipulação ocupam uma posição
conhecimento... conhecer o que central. O conceito de uma grandeza
sempre é, não o que vem a ser e (megethos) ou número (arithmos)
deixa de ser. (R. 527a6-b6) “medindo” (katametrein) outra
grandeza/ número aparecem em
Platão está certamente correto muito nesses livros. A ideia é a de
ao sustentar que os geômetras que tomar a grandeza/número menor e
usam tal terminologia o fazem reiteradamente ou “repetidamente
“necessariamente” (anagkaiôs). produzi-la” até que ela “cubra” (seja-
Como o demonstra a prova de igual-sem-resto) a
Euclides do “Teorema de Pitágoras” (I. magnitude/número maior. No
47), algoritmo euclidiano para encontrar a
maior medida comum (m.d.c.) de dois
números que não são primos
(Euclides VII. 2), há o processo de
o apelo a uma suposta Forma do “retirar” repetidamente o menos dos
Quadrado ou o-quadrado-em-si, o- números maiores (representados por
triângulo-em-si, etc. não é de muita segmentos de linha) até que “um
ajuda. Antes, nos é dado um triângulo número ficará que medirá o que está
reto ABC, pedido para construir antes dele”. Como Paul Pritchard

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enfatiza, um número grego (arithmos) pelos que “dizem que os números são
deve ser uma pluralidade definida substâncias separadas e a primeira
(não infinita) de unidades (monades), causa das coisas” (Metaph.
em que a unidade é ou um (tipo de) XIII.6.1080al3-14), “depois de 1, [há]
objeto físico ou uma unidade um
“abstrata”; na verdade, até os
cálculos mais simples (adição, 2 distinto, que não inclui o primeiro 1,
subtração) baseia-se no tratamento e um
dos números como coleções de 3 que não inclui o 2, e os outros
unidades (Pritchard, 1995, p. 65, 123). números de modo similar” (1080a33-
Se (como Platão pode sugerir no 5). Há, portanto, um tipo de
Fédon 101b ss.) a causa de um grupo descontinuidade – uma “desco-
de cinco coisas ser cinco quanto ao nexão”, se você quiser – entre esses
número e um grupo de três coisas ser números “superiores” (Forma?) e os
três em número é a participação números encontrados na prática
destes grupos nas Formas não matemática real.
compostas, eternas, imutáveis do
cinco-em-si e do três-em-si, A evidência sugere que a metamate-
respectivamente, estas Formas não mática pitagorizante e dirigida para
vão ter muito uso no cálculo cima estava em grande parte
aritmético (ou na teoria numérica desligada da prática matemática
antiga). técnica real e tinha pouca influência
sobre ela. Quando tomamos em
Apesar do conteúdo da discussão consideração a matemática antiga
crítica de Aristóteles (que começa no que passou para o “cânone
sexto capítulo do livro XIII da matemático” ocidental – a de Eudoxo,
Metafísica) dos asumblêtoi arithmoi Menecmo e Euclides, a de
(números não comparáveis) ser Arquimedes e Eratóstenes, de
controverso, ele parece estar obser- Apolônio de Perga, de Diofanto e
vando que os “números Papus – as características
matemáticos” (isto é, os números de pitagorizantes não parecem ser
fato usados pelos matemáticos) essenciais às realizações matemáticas
devem ser constituídos por unidades técnicas. Um dos métodos de
comparáveis ou mônadas. Porém, a Menecmo para determinar duas
respeito dos números postulados proporções médias em uma

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Hugh H. PLATÃO
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proporção contínua entre as linhas a matemática dirigida para cima, como


e b certamente depende das Proclo parece sugerir.
propriedades derivarem da essência
da “parabolidade”, mas também A ONTOLOGIA MATEMÁTICA
depende da construção de duas pa-
rábolas com latera recta a e b É curioso que Aristóteles seja a fonte
dispostas de modo que seus eixos são do que é talvez a mais direta e antiga
perpendiculares e que partilham um evidência da existência do platonismo
vértice comum. Perceber a prova matemático no sentido
claramente requer a posse de uma contemporâneo (doravante somente
grande parte do que parece ser “platonismo”). Trata-se da doutrina
estritamente a inteligência segundo a qual a prática da
matemática, em particular a matemática reside na descoberta
imaginação espacial. Não requer, em (não na estipulação ou construção)
nenhum modo aparente, o das propriedades e relações dos
reconhecimento da beleza ou da objetos matemáticos – objetos que
nobreza das parábolas relativas a têm uma existência eterna e
outras seções cônicas. Não requer necessária que é independente do
que se reconheça aplicações morais mundo material físico. Para começar,
ou políticas das proporções médias Aristóteles dá apoio a um tipo de
determinadas pela platonismo operacional ou
metodológico: “cada coisa”, diz ele,
“é mais bem compreendida caso se
postule o que não é separado como
construção ou, mesmo, que se separado, como fazem o aritmético e
compreenda o lugar da matemática o geômetra” (Metaph. XIII.3.1078a21-
com respeito ao que é realmente, to 3). Parece que Aristóteles discerniu
ontôs on. Em uma palavra, a única aqui uma característica comum da
parte da matemática pitagorizante prática matemática, do “modo como
dirigida para cima que parece ter os matemáticos pensam”. Porém, ele
afinidade com a prática matemática afirma que Platão transforma o
antiga é a que diz respeito à platonismo operacional em uma
metodologia (p. ex., os métodos de doutrina ontológica:
síntese e análise) – se tais questões
metodológicas estiverem incluídas na Ademais, além dos objetos

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Hugh H. PLATÃO
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sensíveis e das Formas, ele diz suas construções e provam seu teo-
que existem os objetos remas sobre as Formas (que são
matemáticos (ta mathêmatiká), “únicas” e sui generis), mas,
que ocupam tuna posição tipicamente, usam múltiplas
intermediária, diferindo dos entidades do mesmo tipo – círculos,
objetos sensíveis por serem triângulos, parábolas, unidades,
eternos e imutáveis; das coleções de unidades – que são
Formas, por serem muitos, ao pensadas como sendo manipuladas
passo que a Forma em si mesma de vários modos nas construções e
é única em cada caso. (Metaph. provas.
I.5.987bl4-18, trad. W. D. Ross)
Aristóteles, obviamente, rejeita a
Penso que devemos aceitar a con- inferência do platonismo operacional
clusão de Julia Annas que, embora ao metafísico. Embora alguns dos
possa detalhes da doutrina do próprio
Aristóteles estejam longe de ser
haver referências a ta mathêmatika translúcidos, ele parece ter sus-
como ta metaxu (“intermediários” tentado um tipo de doutrina
ontológicos entre as Formas e os abstracionista-construtivista dos
objetos sensíveis) em vários lugares objetos das ciências matemáticas.
do corpus platônico, “Platão em Alguns estudiosos acreditam que a
nenhum lugar explicitamente se vale evidência que o próprio Platão fez tal
do argumento em seu favor que inferência é tão fraca que eles se
Aristóteles trata como canônico” recusam a atribuir-lhe uma doutrina
(Annas, 1975, p. 147). Este argumento dos “intermediários” ontológicos
é realmente um argumento a partir da matemáticos. De modo não
prática matemática embutido na surpreendente, o resultado é frequen-
citação anterior do quinto capítulo da temente uma interpretação
Metafísica I: os matemáticos não propriamente aristotélica da
fazem suas construções nem provam matemática em Platão: por exemplo,
seus teoremas sobre (coleções de) na avaliação de Pritchard,
objetos físicos, mas usam em suas
provas círculos, triângulos, parábolas, Nem Platão nem Aristóteles se
unidades e coleções de unidades comprometem com uma
“eternas e imutáveis”. Eles não fazem ontologia de objetos

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matemáticos que existem abstração da experiência sensível,


separadamente. A diferença mas pelas Formas apreendidas pelo
entre eles parece ser que nous:
Aristóteles está apto a dar uma
explicação mais detalhada [com O entendimento (dianoia)
a ajuda do “operador-qua”] da contém, pois, as ideias (tons
natureza da imaginação e da logous), mas, sendo incapaz de
abstração matemáticas. as ver quando estão compac-
(Pritchard, 1995, p. 111) tadas, as desdobra, as expõe e
as apresenta à imaginação ou,
com sua ajuda, explica seu
conhecimento delas, felizes de
Há também, penso, uma tensão sua separação dos objetos
entre o platonismo matemático e uma sensíveis e encontro na matéria
interpretação pitagorizante de Platão. da imaginação [a assim-dita
Postular um reino de “intermediários” “matéria inteligível”] um meio
ontológicos matemáticos apto a receber suas formas (rôn
simplesmente para acomodar a heautês eidôn).
prática matemática pareceria
introduzir um nível de ontologia de Pensar (noêsis), portanto, na
que se retirou valor e, nesse sentido, geometria ocorre com a ajuda
está em descontinuidade com o reino da imaginação. Suas sínteses e
das Formas portadoras de valor, divisões das figuras são
organizadas pelo Bem. Esta imaginárias e seu
descontinuidade ontológica torna conhecimento, embora no
ainda mais misterioso como a prática caminho para conhecer o ser,
técnica matemática pode contribuir ainda não o alcança. (In pr. Eucl.
substantivamente à matemática 54.27-55.10, em Proclo 1970:
pitagorizante dirigida para cima e 44)
portadora de valor. Proclo apresenta
uma tentativa neoplatônica para lidar Um pouco mais tarde, Proclo
com o problema ontológico. O aprova a tese dos “seguidores de
raciocínio matemático é a atividade Menecmo” que “a descoberta dos
construtiva da imaginação (phan- teoremas não ocorre sem recurso à
tasiá), que é compelida não pela matéria [literalmente, “proodou – a

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Hugh H. PLATÃO
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“processão” neoplatônica – à da Academia e contemporâneo ou


matéria], isto é, a matéria inteligível: quase contemporâneo de Platão.
dirigindo-se a esta matéria e lhe
dando forma, nossas ideias são ditas, CONCLUSÃO
com plausibilidade, serem semelhan-
tes aos atos de produção, pois o Em nossa época de especialização e
movimento com- partimentalização, há um
ceticismo difuso se o conhecimento
de nosso pensamento ao projetar “técnico”, por mais profundo e
suas próprias ideias é uma produção, sistemático, tenha algo a ver com a
dissemos, das figuras e de suas Sabedoria. A matemática começa a
características na nossa imaginação” ser desenvolvida pelos gregos como
(In pr. EucL 78.17-22, em Proclo 1970: uma disciplina intelectual técnica e
64). Proclo passa a mencionar a especializada pelo menos no quarto
prática matemática real: século a.C. Há, assim, uma certa ironia
no fato que Platão, neste mesmo
Porém, é em nossa imaginação momento, pareça estar
que as construções, comprometido com a crença que há
secionamentos, superposições, uma conexão profunda entre o
comparações, adições e subtra- conhecimento matemático e a
ções ocorrem, enquanto os Sabedoria. O platonismo
conteúdos de nossa pitagorizante evidentemente cedo se
compreensão são todos fixos, tomou, e permanece, um programa
sem geração ou mudança. (In pr. para garantir e explicar esta conexão.
Eucl. 78.25-79.2, em Proclo
1970: 64) É ele um programa plausível? Minha
opinião pessoal é que o
Fica claro que Proclo está desenvolvimento histórico da
tentando acomodar uma explicação matemática sugere que não é. Há
plausível da prática matemática à certamente uma dimensão estética
ontologia neoplatônica contínua, na do modo como muitos matemáticos,
qual os “níveis” estão ligados entre si em particular os que trabalham em
pela “processão” (proodos). E, porém, certas áreas da “matemática pura”,
interessante que ele conecte esta ten- conceitualizam sua
tativa com Menecmo, um associado

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pensamento grego antigo: logistikê


faz parte do ato de contar e dos
disciplina. Porém, estou inclinado a cálculos aritméticos “aplicados”
pensar que o valor estético que eles (que lidam com objetos sensíveis),
veem é muito específico à disciplina. ao passo que arithmêtikê é uma
Pode ser verdade que há um sentido teoria numérica mais teórica
em que um matemático como John ([Inpr. Eucl. 40.2-9, em Proclo
Nash tem “uma bela mente”. Porém, 1967). Todavia, como (Klein 1968:
segue daqui que sua mente é portanto cAp. 3) argumenta, as referências
kalos kai agathos, “nobre e boa”, no às duas ciências que encontramos
sentido platônico ou em um outro em Platão (p. ex., Grg. 451a-c,
sentido mais comum? O platônico Chrm. 165e-166b, Tht. 198a-b, R.
pitagorizante deve confrontar-se com 525c-d) não parecem se enquadrar
a resposta negativa que eu – e, penso, bem nesse quadro. Klein sustenta
a maioria de nós – estamos inclinados que, para Platão, arithmêtikê não é
a dar. uma “teoria dos números”, mas
“primeiro e sobretudo a arte de
NOTAS contar corretamente” (p. 19).
Logistikê faz parte mais das
As traduções de Platão foram operações com os números, as
tomadas de J. M. Cooper (ed.) Plato: “relações múltiplas que existem
Complete Works (Indianápolis: entre diferentes números” (p. 20).
Hackett, 1997). As traduções de Ambas as ciências podem ser
Aristóteles são do autor, exceto realizadas em um nível mais
quando houver nota em contrário, aplicado e um nível mais teórico.
quando então provêm de J. Barnes
(ed.) Complete Works ofAristotle 2. Proclo sustenta que “é necessário
(Princeton, NJ: Princeton University que os primeiros princípios
Press, 1984). As outras traduções são geométricos [archai: definições,
do autor, exceto quando houver nota postulados, axiomas, como quer
em contrário. que sejam distinguidos] diferem de
suas consequências por serem
1. Proclo explica a distinção entre simples, indemons-
logistikê (“cálculo”) e arithmêtikê
que se tomou comum no tráveis e evidentes por si mesmos”

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

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Hugh H. Benson 380 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Os diálogos de Platão – como o integral e que recebia sua forma da


mundo de Tales – estão repletos de missão filosófica que levava adiante
deuses, pois Platão consistentemente em prol de Apoio de Delfos (Ap. 20d-
invoca neles o reino da divindade 23c). Estas posições eram, porém, não
usando o vocabulário religioso de sua as de um politeísta de vilarejo, mas de
época e lugar. Por vezes estas alusões um reformador religioso sofisticado
são meramente fórmulas usuais (p. (verBeckman, 1979; McPherran,
ex., R. 578e), mas Platão tipicamente 1996). Deve-se ver, então, Platão
faz com que suas personagens falem como tendo seguido a trilha aberta
do divino de um modo por seu mestre
inconfundivelmente sério e positivo,
referindo-se a características da apropriando-se, reformulando e
religião oficial e dos cultos esotéricos estendendo – mas não rejeitando
a fim de fazer observações que são inteiramente – as convenções
simultaneamente de natureza religiosas de seu tempo com vistas a
filosófica e religiosa. Esta caracte- estabelecer o novo empreendimento
rística é tão proeminente na obra de da filosofia. Os resultados – em
Platão – e seu teísmo é tão claro – que particular, a concepção de Platão de
o mundo antigo supôs que o principal um Deus único que é a fonte de ordem
objetivo dos que seguem a linha e do bem no cosmos – foram de
platônica era “assemelhar-se ao deus grande alcance, tendo impacto em
tanto quanto possível” (Sedley, 1999, seus herdeiros intelectuais (p. ex.,
p. 309). Embora esse aspecto do pen- Aristóteles e Plotino) e, com eles, no
samento de Platão seja subestimado pensamento judeu, cristão e
nos estudos modernos, ele não deve muçulmano. (Ver os capítulos
nos surpreender: Platão nasceu em Aprendendo sobre Platão com
uma cultura que pressupunha a Aristóteles; Platão e a Filosofia
existência de divindades. Mais Helenística; A Influência de Platão na
importante ainda, ele era um discípu- Filosofia Judaica, Cristã e Islâmica.) No
lo atentivo de Sócrates, um pensador espaço disponível, vou delinear aqui
que era não somente um filósofo as principais linhas da dimensão
racionalista de primeiro grau, mas religiosa da filosofia de Platão.
também uma figura profundamente
religiosa, alguém que tomava suas A PIEDADE POPULAR,
posições religiosas como sendo parte

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SOCRÁTICA E PLATÔNICA Os fenômenos próprios que


designamos por termos como
Há razões para distinguir entre os “religião” e “o sagrado” estavam, para
primeiros diálogos, socráticos, e os Platão e seus contemporâneos,
que são considerados tipicamente das integrados sem rugas na vida
fases média e tardia, e supor que, em cotidiana: toda faceta da existência
suas primeiras obras, Platão está tinha o que podemos chamar de uma
filosofando à maneira de Sócrates (ver dimensão religiosa (assim, não há
o capítulo Interpretando Sócrates). Em nenhum termo grego para religião: a
sua obra média e tardia, Platão revela raiz “religio” vem do latim). Ademais,
teses próprias. Esta abordagem se nenhum texto antigo, como a Ilíada de
justifica pela evidência da tese Homero, gozada do estatuto de uma
segundo a qual ele desenvolveu uma Bíblia ou Alcorão, assim como não ha-
metafísica e epistemologia que foram via uma igreja organizada, um corpo
bem além das teses que podem ser clerical treinado ou um conjunto
atribuídas com plausibilidade ao seu sistemático de doutrinas impostas por
mestre (um mestre que era muito ela. O que caracterizava uma cidade
mais um filósofo moral que outra ou um indivíduo do século quinto a.C.
coisa: Aristóteles, Metaph. como pio (hosios, eusebês) – isto é,
XIII.1078b9-32); ela explica, também, como agindo de acordo com as
as normas que governavam as relações
entre os homens e os deuses – não
era, assim, primariamente uma
questão de crença, mas antes a obser-
importantes diferenças entre o modo vância correta da tradição ancestral. A
como a noção de piedade é tratada mais central destas atividades
nos diálogos socráticos como o consistia na realização de súplicas e
Eutidemo, opostos às obras mais sacrifícios em momentos adequados
construtivas, explicitamente portado- (ver, por exemplo, II. 1.446-58), com
ras de teoria como a República, Fedro, os sacrifícios indo da libação individual
Timeu e Leis (ver Vlastos, 1991, p. 49). de vinho aos grandes sacrifícios cívicos
Nesta seção, vou caracterizar de gado feitos na ocasião de um
brevemente estas diferenças e sua festival religioso, culminando em um
relação com a piedade popular Banquete comunitário que renovava
tradicional grega. os elos de cidadania com as

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Hugh H. PLATÃO
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divindades protetoras da cidade por tradicionais de uma nova função e


meio do mecanismo das refeições sentido” (ibid. 144). Assim, por
partilhadas (ver, por exemplo, Od. exemplo, os dramas de Esquilo e
3.418-72). Sófocles justapõem uma situação da
época com os eventos representados
Embora as concepções antigas da nos textos de Homero, estendendo a
divindade não fossem elaboradas ou mitologia ao mesmo tempo em que
impostas por um corpo teológico punham em questão alguma faceta
oficial, a educação religiosa não era da condição humana e da resposta
deixada ao acaso. As composições que a sociedade contemporânea lhe
atribuídas a Homero e Hesíodo faziam dava. Na época de Sócrates, parte
parte da educação de todos e ambos deste questionamento das histórias
os autores eram reconhecidos como tradicionais foi influenciada pelas
tendo estabelecido para os gregos um especulações e ceticismo dos
cânone de histórias sobre os grandes pensadores que trabalhavam
Poderes que os segundo as novas tradições
intelectuais da filosofia natural (p. ex.,
governam. Aqui, obviamente, Xenófanes) e da sofistica (p. ex.,
encontramos uma noção de divindade Protágoras). O resultado foi que, em
bem diferente das tradições obras de autores como Eurípides e
modernas, pois nas obras de Homero Tucídides, até mesmo posições
e Hesíodo encontramos deuses que fundamentais da religião popular
não criaram o cosmos, que sobre os deuses e a eficácia do sa-
frequentemente ganharam poder por crifício e imprecação se tornaram
meio da dissimulação e violência, que alvos de crítica. Sócrates deve ser
não são oniscientes nem onipotentes posto no interior deste movimento.
e que regularmente intervém nos
assuntos humanos para o melhor e Um texto-chave para determinar a di-
para o pior (infligindo, por exemplo, mensão religiosa da filosofia socrática
fome, guerra e peste; ver Zaidman e é o diálogo de Platão sobre a piedade,
Pantel, 1992: cAp. o Eutifro. Encontramos aqui Sócrates
sugerindo que a conexão tradicional
13). Escritores posteriores se valeram entre a justiça e a piedade deve ser
desse repertório poético, “ao mesmo interpretada de modo que a piedade
tempo em que dotavam [estes] mitos seja entendida como parte da justiça

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que é um serviço dos homens aos inconsistência de nossas crenças


deuses, assistindo os deuses – como morais e deflacionar nossas
assistentes de construtores de navios presunções de sabedoria divina (p.
assistem os construtores de navios – ex., Ap. 22d-23b), filosofar é uma
na sua tarefa primeira de produzir seu atividade proeminentemente pia. Na
mais belo produto (12e-14a) verdade, Sócrates pensa a si mesmo
(McPherran, 1996: cAp. 2.2). Visto como filosofando de acordo com a
que Sócrates rejeita a tradição poética injunção do Apoio de Delfos (Ap. 20e-
de deuses racionalmente imperfeitos 23b): o deus se serve dele como um
e belicosos e paradigma para difundir a mensagem
indutora de virtude que é sábia a
pessoa que – como Sócrates – se toma
maximamente cônscia por meio da
afirma em seu lugar que os deuses são filosofia de quão pouco conhecimento
inteiramente bons (porque são genuíno ela possui (Ap. 23b) (ver o
sábios; por exemplo, Hp. Ma. 298b) e capítulo A Ignorância Socrática). Este
que o único verdadeiro deus é a resultado, junto com a insistência de
virtude/sabedoria (p. ex., Euthd. Sócrates na perfeita bondade dos
281d-e), ele então verossimilmente deuses, todavia, tem a consequência
pensa que o único ou mais importante ameaçadora de tomar o sacrifício de
componente do principal produto dos queima e a prece imprecatória muito
deuses é a virtude/sabedoria (ver o menos central à piedade vivida na
capítulo A Unidade das Virtudes). vida de cada um (ver McPherran,
Assim, visto que a piedade como uma 1996: cAp. 3).
virtude deve ser um conhecimento-
arte de como produzir o bem (p. ex., Sócrates, então, deve ser visto
La. 194e-196e), nosso serviço como tendo-se apropriado dos
primário aos deuses parece ser princípios da religião tradicional
auxiliá-los a produzir o bem no apolínea que enfatizavam o hiato que
universo por meio do separa o humano do divino em termos
aperfeiçoamento da alma humana de sabedoria e poder, conectando
(Ap• 29d-30b). Dado que o au- esses princípios com o novo
toexame filosófico é para Sócrates a empreendimento de autoexame
atividade chave que ajuda a alcançar filosófico (ver, por exemplo, II. 5.440-
esse objetivo ao reduzir a 2). Do modo como a Apologia

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apresenta a situação, o uso obstinado 30b) e pelo sucesso dos métodos dos
de Sócrates do método de questão-e- matemáticos de sua época que ele to-
resposta que chamamos “o elenchus” mou para superar as limitações do
mostrou que a capacidade humana método elêntico de Sócrates (Vlastos,
para alcançar a real sabedoria é 1991: cAp. 4) (ver o capítulo Platão e
extremamente limitada (ver o a Matemática) e, de outro lado pelo
fito do estatuto divino para os
capítulo O Elenchus Socrático) e deste iniciados (especialmente a imorta-
modo reafirma a insistência apolínea lidade), como expresso por algumas
no fato da fragilidade e ignorância formas recentes de religião pós-
humanas diante do divino. Assim, Hesiódica que entraram na Grécia.
embora uma dose parcial de Consequentemente, sua teologia
conhecimento moral é tornado filosófica oferece a esperança não
possível ao se manter numa vigilância socrática de um pós-morte de íntima
filosófica contínua por meio do exame contemplação das Formas no reino da
elêntico de si mesmo e dos outros, as divindade (Phd. 79c-84b; R. 490a-b;
perspectivas para a perfeição humana Phdr. 247d-e). No esquema de Platão,
– sobretudo se comparada à perfeição o autoconhecimento leva não tanto a
e felicidade divinas – se mostram uma apreciação dos limites, então,
muito pálidas. O “conhece-te a ti que à conscientização de que somos
mesmo” é, neste sentido, como divinos: intelectos imortais já têm
sempre foi para os companheiros dentro de si, se puDemos rememorá-
gregos de Sócrates, conhecer quão lo, todo o conhecimento que se pode
realmente ignorante se é e quão ter (Men. 81c-d; Phd. 72e-77e; Smp.
realmente longe do divino se está. 210a-211b). Neste esquema, há
pouco lugar para a piedade socrática,
Platão, todavia, se mostrou muito já que agora a tarefa principal da
mais filosoficamente ambicioso e existência humana se torna menos
otimista a respeito de nossas uma questão de assistir os deuses e
capacidades de conhecimento e mais uma questão de se tornar
sabedoria. A teologia filosófica de semelhantes a eles tanto quanto pos-
Platão foi influenciada, de um lado, sível (p. ex., Tht. 172b-177c). Este fato,
pela nova concepção intelectualista aliado à psicologia mais complexa que
de Sócrates da piedade como um Platão
“cuidado da alma” elêntico (Ap. 29d-

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maior parte ocorrendo no quadro da


reforma educacional esboçada nos
desenvolve no Livro IV da República, Livros II e III. Os deuses tradicionais
pode explicar a decisão de Platão são por primeiro introduzidos no
nesse livro de não mais tomar a diálogo por Gláucon e seu irmão
piedade como uma virtude cardinal Adimanto sob a forma de quem faz
(427e-428a) (ver o capítulo A Alma cumprir a moralidade (357a-367e).
Platônica), pois parece que aí Platão Esses deuses, segundo os rumores,
passou a sustentar que há pouca castigam a injustiça com terríveis
diferença intema entre o punições após a morte, mas, de
conhecimento de como fazer o que é acordo com Adimanto, as pessoas
justo para com os deuses e o ambiciosas podem criar uma fachada
conhecimento de como fazer o que é enganosa de virtude que os permitirá
justo para com os mortais; o resultado manter vidas de vantagem aqui e no
é que a piedade como uma forma de pós-morte (364b-365a; cf. Lg. 909a-
virtude psíquica parece não ser outra b). Não precisamos, pois, temer as
coisa que a justiça simpliciter. Então, punições dos deuses se
embora, como veremos a seguir,
Platão continue a falar de ações pias a) os deuses não existirem ou
na República e depois, a piedade b) forem indiferentes quando à
como uma virtude encontra-se conduta humana.
subsumida à virtude da justiça (e c) Mesmo que se preocupem
sabedoria) como um todo conosco, dado “tudo o que
(McPherran, 2000b). sabemos sobre eles pelas Leis e
poetas” (365e2-3), eles podem ser
A RELIGIÃO DA PÓUS DE PLATÃO
persuadidos a não nos dar punições,
A afirmação mais explícita de Platão a mas bens (365c-366b, 399b; cf. Lg.
respeito do modo como pretende 885b).
reter e transformar as formas
religiosas tradicionais se encontra na Não surpreende, então, que, na
República e nas Leis (vou me visão da massa, “ninguém é justo de
concentrar na República). A República bom grado”, mas somente por causa
contém mais de uma centena de de alguma deficiência (366d) (ver o
referências a “deus” ou “deuses”, a capítulo Os Paradoxos Socráticos). O

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resultado é que o desafio que se aproximam mais do que outras da


Sócrates deve agora enfrentar ao verdade e algumas são mais
construir o Estado perfeitamente formadoras do bom caráter do que
justo de Calípolis consiste em outras (377a, 377d-e, 382c-d). Platão
demonstrar a superioridade da justiça supõe que as representações mais
independentemente de quaisquer acuradas dos deuses e heróis também
consequências externas (366d-369b) serão as mais benéficas (p. ex., por
(ver o capítulo Platão e a Justiça). sugerir modelos de bons papéis), mas
Então, quando por fim Calípolis é o inverso também é verdadeiro e –
fundada, ele deve fazer o esboço do como é bem conhecido – isso significa
sistema educacional necessário para que deverá haver uma supervisão
produzir os traços de caráter de que estrita dos poetas e narradores de
seus governantes vão precisar (374d- histórias em Calípolis. Ademais, muito
376c). da velha literatura terá de ser posta
de lado, por causa de sua falta de
Sócrates afirma que será difícil verossimilhança e seus efeitos
encontrar um sistema de educação debilitantes na formação do caráter
melhor que o sistema tradicional de (ver o capítulo Platão e as Artes).
oferecer treinamento para o corpo e
música e poesia para a alma, mas ele
rapidamente encontra defeitos em
sua substância. Expomos os jovens à A Teogonia de Hesíodo é a
musica e à poesia que empregam dois primeiras poesia a passar pela mesa
tipos de narrativa mítica, a verdadeira de corte, com sua falsa e danosa
e a fictícia (pseu- deis logoi); destas história de Cronos que castra Urano
duas, o melhor é começar com as sob as injunções vingativas de sua
ficções de diversão do tipo sugerido mãe Gaia, depois engolindo
por Homero e Hesíodo (376e-377b). injustamente seus próprios filhos para
Essa forma de educação molda o impedir que seja destronado por Zeus
caráter do jovem valendo-se de mitos (377e-378b). Mentiras poéticas deste
para dar forma às suas aspirações e tipo, que sugerem que os deuses ou
desejos em modos que se conformam heróis são injustos ou retaliam-se uns
ao desenvolvimento de sua inte- aos outros, devem ser suprimidas.
ligência racional. Porém, embora Para especificar com precisão quais
estas histórias sejam falsas, algumas mitos devem ser considerados como

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falsos em seus núcleos, Sócrates Ll: Deus não é a causa (aitia) de todas
provê os educadores de Calípolis com as coisas, mas somente das coisas
um “esboço de teologia” (tupoi boas; o que quer que cause coisas
theolo- gias: 379a5-6) em duas partes, más, a causa não é divina (380c6-10;
estabelecendo um par de Leis que 391el-2; ver Lg. 636c, 672b, 899b,
devem garantir uma imagem 900d, 941b).
razoavelmente acurada da divindade
(379a7-9) (Ll, L2a, L2b abaixo): O argumento para a conclusão 7
é uma inferência razoavelmente
1. Todos os deuses são seres cogente, mas devemos perguntar
[inteiramente] bons (379b 1-2). como Platão pode simplesmente
2. Nenhum ser [inteiramente] bom é pressupor a verdade da premissa
prejudicial (379b3-4).
3. Túdo o que não é prejudicial não não homérica 1, a qual, uma vez
causa dano (379b5-8). concedida, dirige o resto do
4. Túdo o que não causa dano não argumento (a premissa 2 também é
causa o mal e, então, não é causa questionável). Ele pode fazer isso,
do mal (379b9- 10). penso, por causa da piedade socrática
5. Seres bons trazem benefícios a que herdou: os deuses são bons
outras coisas e, então, são causas porque são sábios (ver também Lg.
do bem (379bll- 900d, 897b) e são sábios por causa de
sua própria natureza. Dito isso,
14). todavia, ficamos ainda pensando
como a nova poesia deverá
6. Assim, seres bons não são causas representar as causas do mal, o que
de todas as coisas, mas somente podem ser estas causas e como elas
das coisas boas e não das coisas podem coexistir dentro de um cosmos
más (379bl5-379cl). governado por deuses omnibene-
volentes. Sobre este ponto, Sócrates
7. Portanto, os deuses não são causa parece ficar em silêncio, enquanto as
de tudo – como a maioria das histórias tradicionais dos poetas eram
pessoas pensa – mas suas ações capazes de dar uma forma catártica
produzem as poucas coisas boas e aos temores de suas audiências (p.
nunca as muitas coisas más que ex., Od. 1.32-79; Hesíodo Op. 58- 128).
existem (379c2-8; 380b6-c3). O próprio Platão trata desta questão

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em sua obra posterior (ver a seguir). estão rebaixados à condição de fa-


Aqui, de qualquer modo, o resultado bricações prejudiciais (ver também as
prático de Ll é claro: as histórias das Leis: por exemplo, 636c, 672b, 941b).
injustiças dos deuses como as de ll. Embora a teologia revisionista daqui
4.73-126 e 24.527-32 devem ser resultante ponha
eliminadas. Se os poetas insistirem,
eles podem continuar a falar das
punições dos deuses, mas somente
enquanto deixarem claro – como o Platão em claro desalinhamento em
próprio Platão faz no Livro X (614- relação às atitudes de muitos de seus
621d) – que elas são ou merecidas ou concidadãos atenienses, não há nada
terapêuticas (380a-b; ver também nela que solape diretamente os três
Grg. 525b-c). axiomas da religião grega: os deuses
existem, eles se preocupam com os
Os próximos a serem eliminados assuntos humanos e há reciprocidade
são as histórias que retratam os de certo tipo entre os homens e os
deuses como mudando de forma ou deuses. Ademais, não deve ter sido
nos enganando de algum modo. Por um grande choque para a audiência
meio de dois outros argumentos, de Platão ver seu Sócrates rejeitar as
Sócrates estabelece uma lei com duas histórias dos poetas dos caprichos
partes: (L2a) nenhum deus se altera divinos, inimizade, imoralidade e
(381e8-9) e (L2b) os deuses não aceitação de sacrifícios motivados por
tentam nos enganar com falsidades má-fé. Como dito antes, já tinham
(383a2-6). Esta segunda lei fará com sido expostos a tais críticas por
que Calípolis seja purgada da pensadores como Xenófanes e
literatura tradicional de todo Eurípides, bem como o próprio
variegado de temas mitológicos, das Hesíodo admitiu que os poetas
travessuras de alteração de forma de contam mentiras (.Th. 26-8). Além
Proteu (381c-e) aos sonhos disso, outros poetas, como Píndaro,
enganadores enviados por Zeus (p. podiam falar abertamente das
ex., II. 2.1-34) (383a-b). O Livro III “mentiras de Homero” (N. 7.23) sem
continua com mais aplicações das Leis incorrer em sanções legais. Em todo
1 e 2 à poesia popular e, ao seu final – caso, os deuses que foram provi-
e sem que este fato seja abertamente dencialmente deixados para uso na
assinalado – os deuses da poesia literatura educacional da Calípolis

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ainda podem ser chamados por seus Apoio de


nomes cívicos e devem estar em
continuidade com os que são referi- Delfos (ver 427a-c). Platão atribui a
dos nos rituais religiosos. mesma função para Delfos nas Leis
(738b-d, 759a-e, 828a) e presta lá
Embora Platão, como Sócrates, mais atenção aos detalhes (p. ex.,
rejeite vigorosamente a ideia que os 759a-760a, 771a-772d, 778c-d, 799a-
deuses podem ser influenciados de 803b, 828a-829e). Estes detalhes são
modo mágico para nos beneficiar (R. convencionais, algo que deveríamos
363e-367a; cf. Lg. 885b-e, 888a-d, esperar, dado que o Estrangeiro de
905d-907b, 948b-c), é claro que ele Platão insiste que sua cidade cretense
preserva um papel para as práticas absorverá e preservará sem
religiosas de aparência tradicional mudanças os ritos dos habitantes de
(McPherran, 2000a). Ainda haverá Magnésia (848d). Contudo, é
sacrifícios (419a) e hinos aos deuses intrigante que, após ter declarado
(607a), junto com um tipo de religião que estes elementos educacionais são
cívica em que figuram templos, os mais importantes, Platão atribui
preces, festivais, sacerdotes e assim sua formulação não aos filósofos
por diante (427b-c). Platão também semidivinos de Calípolis, mas às reve-
espera que as crianças de Calípolis lações obscuras de um oráculo. Esta
sejam formadas “pelos ritos e preces escolha reflete o desejo de Platão de
que os sacerdotes, sacerdotisas e tomar assento no respeito que seus
toda a comunidade fazem em cada contemporâneos tinham pelo oráculo
festa de casamento” (461a6-8). A de Delfos, de que Platão claramente
República é lamentavelmente partilhava (ver Dodds, 1951, p. 222-3;
lacônica sobre os detalhes de tudo Morrow, 1960, p. 402-11). Tudo isso,
isso, mas isso é porque a personagem então, sugere que a vida ritual de
Sócrates não quer se dotar da Calípolis – com exceção de seu culto
autoridade de estabelecer estas aos reis-fílósofos mortos (540b-c) –
instituições aos seus guardiães ou à dificilmente se distingui- rá da de
razão especulativa (427b8-9). Antes, Atenas de Platão. Uma confirmação
as Leis fundadoras que governam disso ocorre quando nos é dito que os
estes assuntos serão introduzidas e cidadãos de Calípolis “se reunirão a
mantidas “pelo guia ancestral nesses todos os outros gregos em seus ritos
assuntos para todo o povo” (427c3-4): sagrados comuns” (470el0-ll; ver

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também Lg. 848d). Conhecimento e as Formas em


Platão). A educação dada a estes
Platão sustenta que a adoração é futuros reis-filósofos de Calípolis os
tuna forma de educação que deve levará então muito além das
começar na infância, quando pode limitações impostas pela teses
enraizar-se nos sentimentos; assim, antiorgulho da piedade socrática,
ele considera as histórias pois, ao terem o conhecimento da
comoventes, os festivais Forma suprema – o Bem-em-si – não
impressionantes, o ver os pais mais serão vistos como assistentes
fazendo preces e coisas assim como servis dos deuses, mas servirão
modos efetivos de imprimir nas Calípolis como os representantes
partes afetivas da alma um hábito de locais dos deuses (540a-b).
mente cuja confirmação racional só
pode ser obtida na maturidade (401d- A RELIGIÃO FILOSÓFICA DE PLATÃO:
402b; ver também Lg. 887d-888a). OS DEUSES E AS FORMAS
Muitos cidadãos de Calípolis,
contudo, serão não filósofos que não A esta altura deve estar claro que a
são capazes de obter esta vida religiosa interna dos filósofos de
confirmação, mas que mesmo assim Platão será em muito diferente da dos
se beneficiarão da prática habitual cidadãos ordinários de Calípolis.
desses ritos, na medida em que Devemos assim esperar com
promovem a adoção de seu tipo plausibilidade aprender mais acerca
próprio de justiça psíquica. Para os dos deuses purificados dos Livros II e
filósofos, porém, esta atividade pia é m da República no relato de sua
secundária em relação à atividade de morada celeste nos livros metafísicos
direção interna que ela favorece: a posteriores: o reino das Formas
busca da sabedoria – pela apreensão (Livros X VI, VII). Contudo, a despeito
direta das Formas –, uma atividade da discussão desta seção destes
que tem diretamente por foco fazer objetos imateriais e divinos do
com que “se conhecimento, os deuses mal
aparecem. Este fato, junto com as
confissões de Platão sobre a
dificuldade em conceber o
assemelhe ao deus tanto quanto deus/deuses (p. ex., Phdr. 246c), pode
possível” (613a-b) (ver o capítulo O dar a impressão que, embora Platão

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queira reter o discurso moralmente que encontramos no Fédon e na


formador dos deuses todos bons para República, com a clara implicação que
as crianças e os não filósofos de sua o reino das Formas é também a
Calípolis, quando ele se volta ao morada celeste dos deuses, que nos
trabalho sério de educar seus governam como os senhores
filósofos ele vê que as únicas governam os escravos e apreendem
verdadeiras divindades são as tudo das Formas, inclusive o
Formas. (A atribuição por parte de Conhecimento-em-si (em oposição às
Platão de ação e estados mentais aos instâncias de conhecimento que
seus deuses, por exemplo em 560b, possuímos, 134a-e). Esta breve visão
612e-613a, torna claro que as Formas dos deuses e Formas corresponde ao
não são deuses.) Todavia, os deuses relato dos deuses dado
que se encarregam da justiça rea- primeiramente no Fédon e, depois, no
parecem como figuras reais do quadro mais complexo do Fedro. No
cosmos no Livro X (612e; ver também curso do Argumento da Afinidade do
Lg. 901a). Em segundo lugar, Platão Fédon em prol da imortalidade da
frequentemente alude a deuses alma (78b-84b), por exemplo, nos é
genuínos nos diálogos contem- dito que nossas almas são em muito
porâneos e posteriores à República (p. como o divino – portanto, os deuses –
ex., Fedro, Parmênides, Leis). por serem imortais, inteligíveis e
seres invisíveis que tendem a
A expressão mais clara da relação governar os sujeitos mortais (p. ex.,
entre as Formas dos diálogos médios nossos corpos). Quando a alma purifi-
e os deuses cada filosoficamente abandona o
corpo, ela, então, se junta aos bons e
provavelmente ocorre na segunda sábios deuses – nossos senhores – e
metade da Grande Aporia do às Formas (80d-81a). Os tipos de
Parmênides (133a-134e), onde atividades que realizam em conjunto
encontramos um argumento que se não são esclarecidos, mas, como esta
propõe a estabelecer a impossibili- e outras seções são paralelas à
dade de que os deuses possam atribuição do Parmênides de um
conhecer ou governar particulares governo dos deuses (62c-63c, 84e-
sensíveis como nós (ver McPherran, 85e), podemos esperar que esses
1999). Este argumento está baseado deuses sejam de igual maneira
na explicação dos sensíveis e Formas capazes de governar sabiamente

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graças à apreensão das Formas. impulsiva e apeti- tiva da alma


descritas na República (Livro IV).1
O Fedro também apresenta Diferentemente da atrelagem com a
almas e deuses que conhecem as qual os condutores mortais devem
Formas e que têm a capacidade de lidar, todavia, as almas dos deuses e
governar; detalhando suas relações daimônes têm cavalos e condutores
em seu esboço da “vida dos deuses” que são inteiramente bons. O mais
(248al), Platão nos dá uma solução importante sobre esses deuses é que
parcial à identidade dos deuses da devem ser identificados com os doze
República e de outros diálogos deuses olímpicos tradicionais; o
médios. Como parte de sua palinódia “grande comandante” deles é Zeus,
(Phdr. 242b-257b), Sócrates pri- seguido por Hera, Posêidon, Deméter,
meiramente oferece uma prova que Apoio, Artêmis, Ares, Afrodite,
as almas semoventes dos deuses e Hermes, Atena e Hefaísto, enquanto
dos homens são imortais (245c-e) e, Héstia permanece na morada. Sendo
depois, se volta à descrição de suas inteiramente bons, estes deuses se
naturezas (246a-248a). deslocam pelos caminhos celestes,
guiando as almas, e então viajam para
a borda superior do céu (247a-e).
Dessas alturas cada condutor – cada
É, diz ele, uma tarefa muito longa Inteligência divina – se alimenta e se
descrever com precisão a estrutura da regozija ao olhar os objetos de
alma de um modo literal; um deus o conhecimento invisíveis,
poderia fazer, mas não um mortal; inteiramente reais aos quais cada um
podemos, porém, dizer pelo menos a é afim: Formas como a Justiça-em-si e
que ela se assemelha (246a3-6; ver a Beleza-em-si. Mesmo o
também 247c3-6). Rejeitando a Conhecimento-em-si está aqui, “não
concepção vulgar das divindades o conhecimento que pode sempre
olímpicas como compósitos de alma e mudar e que se toma diferente à
corpo (246c5-d5), Sócrates oferece medida que conhece as diferentes
seu famoso símile ao comparar cada coisas que consideramos reais lá
alma à união natural de dois cavalos embaixo”, mas “o conhecimento do
alados e um condutor (246a6-7), cuja que realmente é o que é” (247d7-e2).
parte governante é a Razão e cujos Este relato deve trazer à mente a
cavalos correspondem às partes caracterização do Parmênides dos

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dois tipos de conhecimento que estabelecimento dos templos e


existem – o Conhecimento-em-si que sacrifícios, portanto da en- tronização
os deuses que governam possuem e o das deidades específicas que a cidade
conhecimento-entre-nós que nós vai honrar na República 427b-c.
possuímos (ver Tht. 146e) – e a Assim, quando Sócrates dá seu
declaração da República em LI que os reconhecimento a Apoio de Delfos em
deuses são as causas somente do 427a-b e a Zeus em 583b e 391c e
bem. Ademais, este mito do Fedro defende as reputações de Hera, Ares,
reflete a epistemologia da República Afrodite, Hefaísto e Posêidon em
na medida em que a última alude ao 390c e 391c, ele está afirmando a
conhecimento possuído pelos existência de distintas deidades com
guardiães distintas funções às quais se pode ain-
da creditar distintas personalidades,
que estão habilitados a governar em cada uma assemelhando-se ao tipo de
virtude da sabedoria que passaram a alma humana que guiará ao
ter (428c-d), cujos intelectos são provimento do reino das Formas
alimentados e se regozijam do (248a-e). As séries de etimologias
contato com as Formas (490a-b). cosmológicas que dizem respeito aos
(Ambos os textos possuem nomes dos deuses, inclusive dos
psicologias e mitos escatológicos olímpicos, fornecidas pelo Crátilo
comparáveis que contêm (395e-410e) reforça este relato (ver
recompensas e castigos olímpicos Sedley, 2003, p. 39-41, 89-112).
após a morte (Phrd. 256a-c; R. 621c- Aprendemos aqui, por exemplo, que
d), bem como a reencamação em uma o nome “Zeus” significa de fato “a
variedade de vidas (.Phrd. 247c-249d; causa da vida sempre para todas as
R. 614b-621d).) coisas”; seu pai “Cronos” significa
“puro intelecto”; “Hades” é
Em que pese estes paralelismos, decodificado como “aquele que
é plausível supor que as deidades conhece todas as coisas belas” (395e-
sancionadas pelo Fedro (ou similares) 404b). Em quase todos os casos, é
sejam também as da República, e isso atribuída ao panteão “uma
parece especialmente verdadeiro nomenclatura que reconhece que o
quando consideramos o traço deus é a causa inteligente do bem no
conservador que Platão revela ao pôr mundo” (Sedley, 2003, p. 95). A
Apoio de Delfos no controle do estratégia de Platão parece aqui clara:

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

ele aceitará que os poetas deus de diferentes modos: o Bem é


diferenciaram e nomearam dito ser
corretamente os deuses – embora
como eles se chamam a si mesmos a) a archê – a causa do ser – das
esteja além de nosso conhecimento Formas (509b6-8) e de tudo o mais
(Cra. 400d) (511b, 517b-

c);

mas irá então insistir em que b) um governante do mundo


somente são corretamente referidos inteligível do modo como o sol, um
quando as referências aos seus deus, govema o mundo visível
supostos enganos, inimizades, (509b-d); e
ignorância e acatamento de cultos
indiferente à justiça forem omitidos e c) análogo ao criador (dêmiourgos)
forem compreendidos como de nossos sentidos (507c7), o sol,
intelectos que, conhecendo as um dos deuses celestes (508a-c (e
Formas, guiam as almas e ajudam a um filho do Bem, 508b; 506e-
governar o universo (alguns, talvez, 507a)). Esta identificação pode
servindo de juizes para o pós-morte; então
por exemplo, R. 614c-615c).
d) explicar a tese inusitada e única do
Qual é, então, a relação da Forma Livro X que a Forma da Cama é
su- praordenada, o Bem-em-si (R. criada por um deus artesão, o qual,
504d-534d) com esses deuses? Era um em um sentido, é o criador de todas
lugar-comum na Antiguidade que o as coisas (596a-598c).
Bem é Deus (p. ex., Sexto, M 11.70),
uma posição que ainda hoje encontra Finalmente, se o Bem não fosse
adeptos. Se isso for correto, podemos um deus, então
então postular que a imagem de Zeus
o Grande Comandante é um modo de (i) os deuses da República seriam
que dispõe Platão para conceptualizar aparentemente descendentes de
o Bem com vistas a tomá-lo objeto de um não Deus (o Bem),
rito honorífico. De fato, somos
encorajados a pensar o Bem como um (ii) o Bem estaria subordinado a

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Hugh H. PLATÃO
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estes deuses ou atribuição de estados mentais para


(iii) os deuses existiriam um ser além do ser ou sem explicar
independentemente do Bem; porém, como os deuses, enquanto conhe-
nenhuma destas cedores das Formas, são as causas
eficientes dos bons eventos e das
possibilidades parece fazer coisas boas. Porém, quando, nos
sentido à diálogos tardios seus interesses se
deslocam da ética para a cosmologia,
luz de (a) a (d). ele então se dá conta que precisa da
existência de uma deidade-criadora
Apesar disso tudo, a que pode funcionar como uma causa
caracterização do Bem como estando eficiente última, e é isso o que
além de todo ser em dignidade e encontramos no Deus-criador do
poder (509b8-10) significa que não Timeu (27a-92c) e Filebo (26e-30e)
pode ser uma mente, nous, que (ver Plt. 269c-274e; Lg. 983a-907b,
conhece tudo: antes, é o que torna o 967b; Cra. 399d-401a; Benitez 1995).
conhecimento possível (508b-509b).
Assim, já que para Platão uma O Deus-produtor, o Demiurgo,
condição necessária para que algo assinala um outro débito de Platão
seja um deus é que seja uma mente/ com seu mestre (ver o capítulo O
alma que possui inteligência, o Bem Problema Socrático). Nos
não pode ser um deus. Memorabilia de Xenofonte, pois,
vemos Sócrates argumentando que,
Um modo de resolver este já que os seres individuais no universo
problema consiste em supor que o são ou o produto de um desígnio
interesse central de Platão na inteligente ou mero acaso e já que os
República é de natureza ética, onde seres humanos são claramente o
Platão pretende que o Bem funcione produto de um desígnio inteligente,
como uma causa formal e final de devemos ficar persuadidos que existe
todos os seres. Dada esta ênfase, ele um deus de enorme conhecimento,
se dispõe a falar como se o Bem um deus que é, ademais, “um Criador
pudesse ser um Deus que chama- sábio e benévolo (dêmiourgos)”
ríamos o Grande Comandante Zeus (p. (1.4.2-7; ver também 4.3.1-18;
ex., em 596a-598c), mas sem McPherran, 1996: cAp. 5.2). A
desenvolver os problemas ligados à expressão

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racional.
8. O cosmos é belo e seu Artesão é
madura de Platão desta ideia no bom.
Timeu e em outros diálogos é uma 9. Portanto, o cosmos “é a obra de
tentativa consciente de confutar os arte, modelada com base no que é
materialistas que negam a prioridade imutável e é apreendido por um
da alma sobre o corpo (27d-29b; ver discurso racional, isto é, pela
também Phlb. 30c-d; Lg. 889b-c, sabedoria” (29a6-bl).
891e-899d). O “discurso provável”
(29b-d) que Platão avança é, em A tese que o Artesão é bom na
breve, que: premissa (8) parece surgir das nuvens,
mas é talvez a ser inferido da beleza
1. O cosmo é algo perceptível e evidente e ordem do Cosmos e de seu
ordenado. desígnio providencial- mente
2. Todo perceptível ordenado é algo benéfico aos homens (ver Xenofonte,
que vem a ser. Mem. 1.4.10-19; ver também 4.3.2-
3. Assim, o cosmos não é eterno, 14). De qualquer modo, desta
mas veio a ser. bondade é então suposto se seguir
4. Todo ordenado que vem a ser tem que o Demiurgo não tinha nenhuma
um artesão como a causa de seu vir inveja antes da criação, donde ele
a ser. desejou que tudo existisse como ele
5. Assim, o cosmos tem um Artesão tanto quanto possível. Este desejo
como a causa de seu vir a ser. então levou o Demiurgo a pôr ordem
6. O Artesão-causa do cosmos no movimento desordenado
modelou o cosmos segundo um de recalcitrante da matéria visível
dois tipos de modelos: (a) um tornando-o inteligente tanto quanto
modelo imutável apreendido pelo possível (não pode ser tornado
entendimento racional ou (b) um perfeitamente bom porque sua
modelo mutável apreendido pela desordem natural é imune mesmo ao
opinião ligada à percepção enorme – embora não onipotente
sensível.
7. Se o cosmos é belo e seu artesão é - poder desse deus (ver n. 3)). Isso
bom, então seu artesão se serviu exigiu que ele pusesse inteligência na
de (a) um modelo imutável Alma-do-Mundo, colocando esta
apreendido pelo entendimento alma no corpo do Cosmos, criando

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deste modo um ser vivo “dotado de se manifestarem nesses vários locais


alma e inteligência” (30b6-cl), que chamamos por nomes
modelando-o com base na Forma individuais.
genérica do Ser Vivo (29d-31a), uma
Forma que contém pelo menos todas Além do Demiurgo, do cosmos
as Formas dos seres vivos, se não criado e das estrelas, há pouca
contiver todas as Formas. menção das atividades dos outros
deuses mais tradicionais. Embora
Na explicação da mudança física esses deuses pareçam ser invocados
na fase média de Platão, no Fédon as genericamente no início da história da
Formas são tratadas como tendo a criação (Ti. 27c-d) e as Musas
capacidade de agir como causas recebam uma menção (47d-e), a
formal e eficiente para a posse das única outra menção significativa dos
propriedades por um objeto, de deuses parece derrocar que tenham
algum modo irradiando instâncias de uma existência genuína nesse es-
si mesmas aos indivíduos sensíveis quema, pois, quando chega o
(de modo que, digamos, Símias vem a momento de explicar a origem dos
ser alto por possuir uma instância deuses outros que os deuses-astros,
imanente da característica da Altura- nos é dito que
em-si, Phd. 100b-105c; cf. Prm. 130b,
133a-134e). O Timeu retém esta Vai além de nossa tarefa saber e
mesma ontologia de características dizer como vieram a ser.
imanente e Formas, embora sem Devemos aceitar com base na
fazer menção ao Bem-em-si da crença as asserções das figuras
República, e parece atribuir a função
de implantar as características ima-
nentes ao Deus (Ti. 48d-53c). Então,
no lugar da pluralidade de objetos do passado que alegaram
sensíveis da participação, Platão descender dos deuses. Eles
postula um único objeto particular, seguramente deviam estar bem
que é o Receptáculo, Ama-Seca e Mãe informados sobre seus próprios
de todo vir-a-ser (49b, 50d); como ancestrais. Assim, não podemos
uma substância plástica como o ouro deixar de acreditar nos filhos
(50a-c), ele provê um lugar ou Espaço dos deuses, muito embora seus
(52a-b) para as instâncias-de-Formas relatos careçam de provas

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plausíveis ou convincentes. fazem às crianças e aos não filósofos


Antes, devemos seguir os no intuito de treinar e conter suas
costumes e acreditar neles... almas irrequietas.
Neste sentido, vamos aceitar o
relato de como esses deuses Contudo, os deuses que portam
vieram a ser e declaremos o que os nomes olímpicos fazem uma
eles são. (Ti. 40d6- e4; ver entrada triunfante nas Leis desde seu
também Lg. 948b). início, e os interlocutores fazem sua
peregrinação de Cnossos ao lugar de
Parece que as figuras do passado nascimento de Zeus no Monte Ida
a que se refere a passagem são (625b). Há, por exemplo, cerca de
autores lendários e quase-divinos duzentas referências a deus e deuses
como Orfeu e Museu. Porém, o relato (Zeus, Hera, Apoio e Dionísio são
que Platão lhes atribui com esse ar- frequentemente referidos por seus
gumento inusitado parece incorporar nomes) e mesmo Zeus Xênios é men-
outros contadores de histórias como cionado em seu papel tradicional de
Hesíodo, pois a Terra e o Céu dão protetor dos estrangeiros (729e-
nascimento ao Oceano e Tétis, que 730a). Ademais, quando se dirige aos
então dão nascimento a Fórcis, habitantes de sua nova cidade
Cronos e Rea, “e a todos os deuses cretense, o Estrangeiro de Atenas lhes
daquela geração” (40e6-41al), com diz que eles devem “decidir pertencer
Cronos e Rea dando então
nascimento a Zeus, Hera e os outros àqueles que seguem na companhia do
deuses olímpicos (40e-41a). Em todo deus” (716b8-9) e assim modelar-se a
caso, o argumento aqui é tão si mesmos com base no deus. O modo
especioso e a recusa de base racional mais eficiente para fazer isso, ele lhes
tão enfática que parece que Platão diz, é fazer preces e sacrifícios aos
está recomendando aceitar de modo deuses, e isso significa os deuses do
tíbio, sem ter uma crença real, a mundo inferior, os do Olimpo, as
existência de seres que portam os deidades cívicas, os daimônes e os
nomes dos deuses olímpicos (ver heróis (716b-717b; ver Burkert 1985,
Phdr. 229c-230a). É difícil aqui resistir caps. 3.3.5 e 4). Mais tarde, quando
à impressão que os deuses antigos se combate o ateísmo, o Estrangeiro
tornaram um pouco mais do que torna claro que as lembranças suas e
mentiras nobres que os filósofos de seus companheiros vendo os pais

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se dirigindo aos deuses do Olimpo coisa, mas é uma confiança


com uma crença segura em sua ambivalente fundada em seu dilema
existência real não devem ser que a morte é ou como ser nada ou
minadas pelo ceticismo (887c-888a; como uma viagem daqui para outro
ver também 904e). Por fim, o lugar, onde nossas almas terão a
argumento da existência de um deus- felicidade suprema de filosofar com
Artesão do cosmos se refere à grandes juizes, poetas e heróis (40c-
existência de deuses menores 41c) (McPherran, 1996: cAp. 5.1).
mencionados no plural (893b-907b): Platão, todavia, dissolve o dilema em
este Criador ou Supervisor do favor em prol deste segundo lado
universo pôs estes deuses como otimista, defendendo uma variedade
governando sobre várias partes do de argumentos da imortalidade da
universo (903b-c). Encontramos alma: temos quatro
deuses similares no Fedro e estes
seres aparecem em outros lugares
(Plt. 271d, 272e; Timeu. 41a-d, 42d-e);
assim, parece que Platão con- no Fédon (o Argumento Cíclico, 69e-
sistentemente entendeu seu deus- 72e; o Argumento da Reminiscência,
Criador como uma deidade suprema 72e-77e; o Argumento da Afinidade,
que pode ser denominada Zeus (p. 78b-82c e o Argumento Final, 102a-
ex., Phlb. 30d; Phrd. 246e), que 107b), um outro na República (608d-
controla uma comunidade de 611c), mais um no Fedro (245c-246a).
deidades menores (Morrow, 1996, p. Não tenho espaço aqui para avaliar
131), que ainda podem ser chamados estes argumentos, mas é útil observar
pelos nomes dos deuses olímpicos como Platão se apropria da linguagem
(ver o capítulo O Papel da Cosmologia do mito tradicional e dos cultos
na Filosofia de Platão). religiosos dos mistérios (p. ex.,. Os
Mistérios de Elêusis) para criar um elo
A RELIGIÃO FILOSÓFICA DE entre nossa esperança humana
PLATÃO: IMORTALIDADE E natural pela felicidade post-mortem e
JULGAMENTO APÓS A o novo empreendimento intelectual
MORTE da filosofia, que vê o filósofo como
puxado por um desejo erótico ou um
Ao final da Apologia, Sócrates exala tipo de loucura para a união com as
confiança que a morte é uma boa Formas (p. ex., R. 490a-b; Phdr. 249c-

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253c; referências a Elêusis e sua corpo visível e em parte


purificação (katharsis), iniciação e mente/alma invisível (115c) – em
súbita revelação (epopteia) incluem que é a alma em contraste com o
R. 378a, 560e; referências aos corpo que apreende as Formas –,
Mistérios Báquicos incluem Smp. devemos concordar que
218b, Lg. 672b, Phdr. 250b-c, 265b;
referências coribânticas incluem Cri. 3. a alma é mais similar às Formas do
54d e Euthd. 277d. Motivos dos que às coisas sensíveis particulares
Mistérios de Elêusis também e, assim, deve
contribuem para o Mito da Caverna
no Livro VII da República, à Escala do ser posta na classe dos objetos
Amor do Banquete (209e-212c) e para invisíveis. Portanto,
o Mito da Alma no Fedro (244a-257b).
Ver Morgan, 1990: caps. 3-6; 20: 4. a alma é imutável, incompósita e,
Erose Amizade em Platão). por conseguinte, não está sujeita à
dissolução: ela viaja pelo Hades.
Considere, por exemplo, o
Argumento da Afinidade do Fédon (7 Todavia, ao longo deste
8b-82b). Aqui, Sócrates argumenta argumento, Platão enfatiza o
que, visto que requerimento que passar a conhecer
as Formas no Hades implica que a
1. há duas classes de coisas: alma se torne mais semelhante a elas
em termos da pureza delas, isto é, em
(i) objetos invisíveis, imutáveis, termos da ausência de características
in- compósitos, puros, não sensíveis neles. Donde isso significa,
sujeitos à dissolução, em para a alma, a liberdade dos elos com
particular Formas como a o corpo impuro e seus desejos de
Beleza-em-si, e prazer. Obter esta liberdade requer
(ii) coisas visíveis, mutáveis e que a alma seja purificada não pelos
compó- sitas, sujeitas à métodos religiosos tradicionais, mas
dissolução, em especial os por um treinamento filosófico da
particulares sensíveis; e visto razão de cada um, o qual – como em
que uma heróica “prática da morte” (81al,
89b-c, 94d-e, 95b) – libera a alma de
2. os seres humanos são em parte seus grilhões do desejo do corpo; sem

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isso, a alma ficará prisioneira nova-


mente em outro corpo (81a-e; cf. 66d-
67a, 67d). Por vezes esta purificação é outras Formas (210a-212b)
caracterizada como uma reviravolta (Morgan, 1990: cAp. 4).
da alma (p. ex., R. 518b-521c) ou algo
similar ao que passam os iniciados nos Em um número de passagens
Mistérios (p. ex., Phd. 81a) ou como a Platão busca caracterizar a
tentativa da alma de se tornar tão imortalidade da alma em termos de
semelhante ao deus quanto possível punições e recompensas pós-morte,
no que tange à justiça e à sabedoria seguidas de reencarnação (Phd. 107c-
(Smp. 207c-209e; Phd. 248a, 252c- 115a; cf. 63e-64a; R. 612c-621d; Phdr.
253c; R. 613a-b; Tht. 172b-177c; Ti. 246a-257b; Ti. 91d-92c; ver também
90a-d; Lg. 716c; Sedley, 1999). Aqui e Grg. 522b-527e). Estes relatos são
em outros lugares, Platão também feitos na linguagem da poesia,
assimila a tese pitagórica menos tradicionalmente portadora de
corrente, possivelmente órfica que o autoridade, e incorporam muitos dos
corpo é um tipo de prisão para a alma, motivos dos vários mitos tradicionais
que deve passar por vários de descida (katabasis), morte e
julgamentos de purificação julgamento (p. ex., 11. 23.65-107;
(katharsis) intelectual e iniciação Hesíodo, Opinião. 178- 94; Píndaro, O.
(teletê) para alcançar a libertação, 2.57-60, 63-73). A ideia de
uma volta ao lar cujas recompensas reencarnação é chamada por Sócrates
incluem uma visão reveladora final de uma “velha lenda” (Phd. 70c5-6);
(Phd. 62a-b, “9b-d, 79d, 82d; R. 533c; ela aparece antes de Platão nas obras
Phlb. 400b-c; Dodds 1957: cAp. 7; de Píndaro e Empédocles, tendo sido
Edmonds, 2004, p. 175-9). No supostamente introduzida na Grécia
Banquete, esta visão é apresentada por Pitágoras (Porfírio, VP 19). Somos
como se fosse a revelação (epopteia) também levados a crer que são
dos Mistérios revelados aos iniciados aproximações da verdade (Phd. 114d;
de Elêusis, mas o que é visto pelos R. 618b-d, 621b-d; ver também Grg.
iniciados nos mistérios da filosofia 523a), embora pouco nos seja dito
não são os objetos sagrados de para determinar quais elementos
Deméter, mas o mais perfeito e estão mais próximos da verdade que
sagrado objeto entre todos: a Beleza- outros (ver Edmonds 2004: cAp. 1).
em-si e todas as

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A República, por exemplo, se moralmente incurável (615c-616b;


conclui com uma consideração da ver também Grg. 525b-526b).
questão anteriormente deixada de Ademais, diferentemente das
lado das recompensas da justiça, escatologias do Fédon e do Fedro,
provando primeiro a imortalidade da Platão descarta que haja uma
alma (608c-612a) e então libertação final do ciclo de
argumentando em prol da encarnações (Annas, 1982, p. 136).
superioridade da vida justa em termos Fiel a Ll, contudo, Platão
consequencialistas. Platão primeiro explicitamente isenta os deuses de
assevera a história anterior de toda responsabilidade pelo
Adimanto (362d-363e), que os deuses sofrimento que experimentaremos
recompensem a pessoa justa e punem em nossa próxima encarnação, por
a injusta ao longo de suas vidas (612a- meio de uma loteria (617e, 619c).
614a), mas então apresenta o Mito de Como a concebe, a escolha da alma
Er para mostrar como eles também por uma vida feliz de justiça
fazem o mesmo no pós-morte (614a- dependerá da atribuição aleatória dos
621a). Essa história é similar aos destinos e da habilidade que a alma
principais outros mitos escatológicos tem de escolher sabiamente. Porém,
ao mostrar a vontade de se usar das não é claro se a loteria é adulterada
perspectivas de dor e prazer como pela Necessidade e o grau de
incentivos ao comportamento sabedoria prática de uma alma é de-
virtuoso para quem de nós que ainda terminado por suas experiências
não estiver pronto para seguir a anteriores, experiências que tinham
virtude por ela própria.2 Todavia, o sido por sua vez o resultado de
complexo retrato das recompensas a escolhas ignorantes anteriores. Isso
longo termo por buscar a justiça foi significa que quem viveu uma vida de
frequentemente sentido como justiça, por hábito e não por filosofia,
deprimente, não incentivador (p. e chega desse modo à loteria após ter
experimentado as recompensas da
ex., Annas, 1981, p. 350-3), pois vontade celeste, por terem esquecido
embora haja recompensas seus sofrimentos anteriores fazem
decuplicadas para o justo e punições más escolhas e sofrem adicionalmen-
decuplicadas para o injusto, hã te (617d-621b). Por fim, exceto pelo
também torturas eternas, que não trabalho aleatório da loteria, Platão
redimem para quem tiver se tomado nunca indica as muitas fontes do mal

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mencionadas no Livro n, contra as Sereias e a Necessidade é simbólica


quais mesmo os deuses são dos elementos metafísicos dos livros
impotentes.3 Assim, embora as centrais da República e visa assim a
últimas linhas da República imprimir em cada alma antes de sua
encorajem-nos a lutar pela justiça, de próxima escolha e de seu ato de beber
modo a poder receber as do Rio do Esquecimento (620e-621c)
recompensas olímpicas (621b-d), a mensagem destes livros: que a vida
apesar de sua incerteza e falta de mais feliz é a vida da Justiça e do Bem
finalidade, alguém achará os atalhos e deve assim ser escolhida por esta
de Trasímaco uma aposta melhor. única razão (Johnson, 1999).

Não há modo seguro para determinar A mensagem que é transmitida


como Platão queria que lêssemos este por todos os mitos escatológicos de
ou aquele mito: talvez os leitores Platão, todavia, é que nenhum deus
modernos estejam corretos em achar ou daimôn pode ser responsabilizado
que os detalhes de espirais e sorteios por qualquer situação difícil em que
são somente atração de vitrine, não possamos nos encontrar quando
devendo ser tomados como con- fechamos os textos de Platão.
tribuindo para uma escatologia Ademais, as muitas complicações
filosoficamente coerente (ver Annas, dessas histórias e do modo como elas
1981, p. 351-3). É poesia, afinal de colocam nosso julgamento futuro nas
tudo, e está composto no mãos dos deuses e do destino parece
destinada a minar que se use o estado
futuro como uma fonte de motivação
e de escolha do aqui e agora. Talvez
interior de um diálogo que estejamos sendo encorajados a
consistentemente desdenha a poesia. abandonar os incentivos baratos da
Por outro lado, pode-se ler a história cenoura e do bastão que impelem a
de Er da reencamação como aludindo massa vulgar, de modo que possamos
às iniciações oportunas de Elêusis, lembrar as aspirações
agora conectadas à verdadeira verdadeiramente pias da filosofia
iniciação e à conversão da alma feita desdobradas no corpo central do
pela dialética filosófica (Morgan, texto de Platão (ver Phd. 114d-115a;
1990, p. 150). Há também razões para Annas, 1982). Ao mesmo tempo,
supor que a apresentação de espirais, todavia, Platão parece estar usando

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“o material mítico tradicional... para abordagem em geral dos mitos da


fundar sua defesa da vida filosófica na religião grega: ele retém a
autoridade da tradição [mítica]” ambrosia e o néctar tradicionais
(Edmonds, 2004, p. 161), dando como comida e bebida para as
àquela vida substâncias motivacional partes da alma inferiores e ao
retratando de modo persuasivo o estilo de cavalos (247e), mas faz
reino noético invisível, que é o com que o Intelecto filosófico se
objetivo de todo filósofo verdadeiro. alimente da nova e verdadeira
Esses mitos, então, podem ser lidos ambrosia das Formas imortais.
como nos fazendo retomar ao 2. Embora seja difícil determinar
Sócrates sério do Livro I da República como ver esta ficção particular à
(e em outros lugares: por exemplo, luz do aviltamento categórico de
Cri. 48a-49e), que nos fomenta a toda escrita mimética feito
escolher o caminho da justiça anteriormente por Platão (R. 595a-
simpliciter, e o Sócrates esperançoso 608b). Ver Morrison (1955), para
do Fédon, que prevê um retomo às discussão do mito. Morgan (1990,
divindades p. 152) observa que, embora as
fontes precisas do mito “estejam
amigas e aos deleites celestes das fora de nosso alcance, há, sem
Formas (Phd. 63c, 81a; Phd. 247c). dúvida, elementos órfi- cos,
Mediante tudo isso e por mais ainda, pitagóricos e tradicionais”. Ver
Platão pôs as bases para o Edmonds, 2004: cAp. 4 eKingsley,
florescimento da teologia e do misti- 1995: caps. 6-12, para discussão do
cismo ocidentais. mito do Fédon.
3. O papel da sorte aqui, contudo,
NOTAS sugere que Platão pode ter tido a
posição posterior de seu Timeu das
As traduções de Platão foram causas do mal na mente, causas
retiradas de J. M. Cooper (educação.) que ele localiza nos movimentos
Plato: Complete Works (Indianapolis: desordenados da matéria (ver
Hackett, 1997). Chemiss, 1971; ver também Phdr.
248c-d; Plt. 273c-e). A República
1. A apropriação de Platão dos pelo menos deixa claro que o mal
cavalos imortais dos deuses (JL humano é uma consequência de
5.352-69) é típica de sua termos uma alma que é atrofiada

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Hugh H. PLATÃO
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por causa de sua associação “com Beckman, J. (1979). The Religious


o corpo e outros males” (611cl-2; Dimetision of Sócrates' Thought.
ver também 611b-d, 353e; Phd. Waterloo: Wilfrid Laurier Uni- versity
78b-84b; Tht. 176a-b; Lg. 896c- Press.
897c); por exemplo, nem mesmo
os governantes da República são Benitez, E. E. (1995). The good or the
infalíveis em seus julgamentos de demiurge: causation and the unity of
particulares e, assim, Calípolis vai good in Plato. Apeiron 28, pp. 113-40.
fracassar por causa da inabilidade
dos guardiães em realizar Burkert, W. (1985). Greek Religion.
casamentos infalivelmente bons Cambridge, Mass.: Harvard University
(dada a necessidade deles de se Press.
servirem da percepção; R. 546b-c).
Tal imperfeição é, todavia, uma Chemiss, H. (1971). The sources of
condição necessária do fato dos evil accor- ding to Plato. In G. Vlastos
seres humanos, em primeiro lugar, (ed.) Plato, vol. 2 (pp. 244-58).
terem sido criados, uma criação Garden City, NY: Anchor Books.
que Platão claramente pensava
como sendo, levando tudo em Dodds, E. R. (1951). The Greeks and
conta, uma boa coisa. the Irrational. Berkeley: University of
Califórnia Press. Edmonds, R. G.
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Hugh H. Benson 407 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

L. B. and Pantel, E S. (1992). Religion óbvio conflito com o senso comum


in the Ancient Greek City, trans. E nos permitirá compreender melhor
Cartledge. Cambridge: Cambridge uma série de questões no coração da
University Press. epistemologia e psicologia moral que
encontramos nos primeiros diálogos
de Platão, bem como aprofundar
nossa compreensão da filosofia que
PARTE IV Platão em geral atribuiu a Sócrates
(que, suspeitamos, por um momento
A PSICOLOGIA DE PLATÃO ele próprio adotou). (Por razões de
simplicidade, vamos nos referir
doravante simplesmente a estas
posições como as de “Sócrates”,
18 deixando de lado todas as questões
de suas conexões com a pessoa
Os paradoxos socráticos histórica que porta este nome ou com
Platão, quem nos apresentou estas
THOMAS C. BRICKHOUSE E NICHOLAS posições pondo-as na boca de uma
D. SMITH personagem nomeada Sócrates nos
primeiros diálogos.) Porque o
Das muitas posições paradoxais paradoxo moral depende
atribuídas a Sócrates nos primeiros crucialmente do paradoxo da
diálogos de Platão, duas são prudência e porque o paradoxo moral
provavelmente as mais intimamente supõe questões discutidas em detalhe
ligadas ao filósofo. Adotando as em outras partes deste livro,
etiquetas usadas por Santas (1979, p. discutiremos primeiramente o
183-94), vamos chamar o primeiro de paradoxo da prudência e de modo
“paradoxo da prudência”, que mais minucioso.
assevera que ninguém age contra o
seu conhecimento do que é melhor O PARADOXO DA PRUDÊNCIA
para si, e o segundo de “paradoxo
moral”, segundo o qual ninguém faz A atribuição mais conhecida do
voluntariamente o que é injusto. Ver paradoxo da prudência a Sócrates fora
por que Sócrates teria sustentado das páginas de Platão pode ser
estas posições a despeito de seu encontrada na Ética Nicomaqueia de

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Hugh H. PLATÃO
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Aristóteles, em 1145b23-7. De acordo que é melhor para si deve ser


com Aristóteles, Sócrates pensava ignorante no sentido que, no
que: momento em que age, ele não vê o
que é verdadeiramente seu interesse.
Seria estranho que, o
conhecimento estando
presente, uma outra coisa o
governe e o leve lá e cá como se O ARGUMENTO DO MÊNON
fosse um escravo. Sócrates, pois,
opunha-se vigorosamente a esta Depois de por duas vezes fracassar ao
posição, visto que não há uma definir a virtude, Mênon faz uma
coisa como a fraqueza (akrasia), terceira tentativa: “virtude”, diz ele,
pois ninguém age “é o desejo de coisas nobres
contrariamente ao que é o (epithumounta tôn kalôn) e o poder
melhor quando apreende que de as adquirir” (77b4-5). Depois que
está agindo assim. Antes, ele faz Sócrates obtém o esclarecimento
isso por conta da ignorância. inicial que “coisas nobres” são “coisas
boas”, ele imediatamente começa a
Aristóteles é frequentemente questionar a asserção de Mênon que
visto como afirmando que Sócrates há pessoas que não desejam coisas
rejeita a noção que alguém pudesse boas. Entre estas pessoas, alega
saber o que é o melhor para si e não o Mênon, podemos encontrar aquele
fazer porque sua crença sobre o que é que de fato deseja coisas más,
melhor para si é suficiente para tomando-as erradamente por boas,
produzir a ação em acordo com esta enquanto outros desejam
crença e, se a crença é suficiente para (epithumousiri) coisas más, sabendo
a ação correspondente, então o que elas são más (gignôskontes hoti
conhecimento, que implica crença, kaka estin, 77c3-7). Estudiosos são
deve também ser suficiente para a praticamente unânimes que a tese de
ação correspondente. Chamemos Mênon que pessoas por vezes
esta característica da posição de escolhem com consciência coisas más
Sócrates, seguindo Penner (Penner, é a proposição que Sócrates visa a
1996, p. 199-229 e 1997, p. 117-47) a rejeitar.
rejeição da “akrasia-crença” (ou AC).
Segue-se que quem deixa de fazer o A primeira investida de Sócrates

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consiste em assegurar-se que Mênon felicidade como o bem


realmente quer dizer que há pessoas
que desejam coisas más, ainda que supremo, tudo o mais que desejamos
saibam que coisas más prejudicam a nós o desejamos como um bem que
quem as possui (77dl-4). Mênon cremos que de algum modo –
concede que, se aqueles que constitutiva ou instrumen- talmente –
perseguem com consciência coisas promove nossa felicidade. Isso é por
más também sabem que são vezes conhecido como o
prejudicados por elas, eles sabem que compromisso de Sócrates com o
se tornam miseráveis (athlious) à intelectualismo no tocante à
medida que são prejudicados (78al- motivação. Se ele de fato for um
3). E, se são miseráveis, eles são intelectua- lista deste tipo e se Mênon
infelizes (kakodaimonas, a3). O que e Sócrates estiverem supondo esta
Mênon não pode aceitar, porém, é teoria da motivação neste
que possa haver alguém que quer argumento, não é difícil ver por que
(bouletai) se tornar miserável (a4-5) Mênon é derrotado. O fato de
e, assim, Mênon admite que “é ninguém desejar o que ele reconhece
provável que ninguém quer como um mal se segue diretamente
(boulesthai) coisas más” (78a9-b2). do tipo de intelectualismo acerca da
motivação que muitos estudiosos
O que sela a derrota, então, de afirmam que Sócrates adota. De
Mênon é sua admissão que ninguém acordo com este modo de construir o
quer ser miserável e infeliz. Porém, argumento, parece que Aristóteles
por que Mênon concede tão está correto a respeito da negação
prontamente este ponto? por parte de Sócrates da akrasia, pelo
Infelizmente, Platão não nos dá a menos tal como a encontramos no
resposta. Muitos estudiosos (p. ex., Mênon. Sócrates nega que se possa
Irwin, 1977, p. 78, 1995, p. 75-6; agir contrariamente ao conhecimento
Nehamas, 1999, p. 27-58; Penner do que é o melhor porque sua teoria
2000, p. 164) acreditam que Sócrates da motivação exclui a possibilidade de
aceita somente um tipo de AC e, visto que conhecimento implica
motivação, o desejo racional, isto é, crença, a ação contrária ao que se
um desejo do que tomamos como sabe que é o melhor caminho
sendo bom para nós. Se for isso, visto também deve ser impossível. De
que sempre desejamos nossa acordo com esta leitura, Sócrates

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rejeita o que Penner (Penner, 1996, Sócrates pergunta inicialmente se as


1997, p. 117- 49) nomeia “akrasia- pessoas desejam coisas más, ele usa o
conhecimento”, ou ACo, porque verbo “epithumein”. Porém, quando
rejeita a possibilidade de AC. pergunta se as pessoas querem ser
miseráveis e infelizes, ele muda para
Podemos nos perguntar, o verbo “bou- lesthai”. A língua grega
contudo, se este é realmente o modo comum permite que Sócrates use os
correto de entender o argumento. Em dois verbos um pelo outro. Como
primeiro lugar, mesmo que Sócrates Devereux observou (ver Devereux,
seja um intelectualista a respeito da 1995, p. 396-403), porém, Sócrates
motivação, por que Mênon o deveria pode estar usando os verbos nos
ser? Muitas pessoas diriam que tal sentidos técnicos que encontramos
intelectualismo é totalmente em outras passagens em Platão e
contraintuitivo e que é perfeito senso Aristóteles e, assim, pode estar
comum pensar que alguns desejos valendo-se deles para se referir a
são não racionais no sentido de diferentes tipos de desejo. Se for isso,
visarem a prazeres e à ausência de dor quando usa “epithumein”, ele está
independentemente de como são perguntando se alguém forma um
pensados de se ligarem às nossas desejo não racional do que sabe que
concepções do bem. Ademais, a é uma coisa má e, quando emprega
posição inicial de Mênon, que “boulesthai”, pergunta se alguém
algumas pessoas querem coisas más forma um desejo racional de ser
sabendo que são más, parece supor a miserável e infeliz. Não precisamos
falsidade da explicação intelectualista supor que Mênon consegue entender
da motivação. Por que Mênon deveria a distinção que Sócrates introduz
admitir a derrota se tudo o que foi deste modo. Sócrates busca obter o
mostrado é que sua posição está em acordo de Mênon que ninguém forma
conflito com uma teoria da motivação um desejo racional de ser miserável e,
que ele não aceita? daqui, obter seu acordo que ninguém
forma um desejo racional de coisas
más, isto é, de coisas que levam à
miséria. Isto é algo que se pode es-
Talvez, porém, Sócrates esteja se perar que Sócrates faça, na medida
baseando em um outro ponto. É em que disso se segue, como Sócrates
interessante observar que, quando observa, que todos temos um desejo

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racional de ser feliz e, conscientemente coisas más. Antes,


consequentemente, que todos temos porque a “epithumia” pode ser usada
uma desejo racional das coisas boas. em um sentido geral para referir-se a
Isso é importante porque Mênon, qualquer desejo ou para referir-se a
relembre, alegou que a virtude é, por um tipo específico de desejo, o desejo
definição, o desejo de coisas belas e a não racional, Sócrates quer saber qual
capacidade de as obter. Nesta dos dois Mênon tem em mente. Na
perspectiva, precisamente porque o verdade, Sócrates está pronto para
próprio Mênon ainda não conseguiu conceder, pelo menos em prol do
fazer a distinção entre desejos argumento, que alguém pode saber
racionais e não racionais e como os que algo é mau e ter um desejo não
objetos de desejo são representados racional por ele. O que Sócrates busca
nestes tipos diferentes de desejo, o é a concessão da parte de Mênon que
resultado deste argumento é que sua ninguém jamais tem um desejo
tentativa de definir a virtude parece- racional do que é mau, pois ele tem
lhe agora totalmente indefensável. assim um passo direto a uma crítica
Na conclusão do argumento que contundente da primeira parte da
estamos examinando, Mênon é definição de virtude proposta por
forçado a conceder que todos somos Mênon. Isso é importante porque
iguais com respeito ao desejo pelas mostra que esta passagem no Mênon
coisas belas (78b4-6). Contudo, não dá evidência, nem para o sim nem
obviamente nem todos são iguais para o não, para a negação de
com respeito à virtude. O primeiro Sócrates de AC, visto que, pelo menos
membro nesta passagem, Sócrates não está
interessado propriamente na
da conjunção da definição proposta possibilidade de agir contra a crença
por Mênon, então, mostrou-se que o agente tem do que é melhor.
ocioso.
Se este segundo modo de ler a
De acordo com este segundo passagem do Mênon for correto,
modo de construir o argumento, a perDemos o Mênon como uma
proposição em mira não é, evidência do modo como Aristóteles
contrariamente ao que usualmente os compreende a negação da akrasia por
estudiosos afirmam, a tese de Mênon parte de Sócrates. Infelizmente, a
que algumas pessoas desejam passagem do Mênon que atraiu tanta

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atenção é bem breve, tomando difícil mas sim outra coisa, às vezes a
dizer com confiança se a contestação ira, por vezes o prazer, outras
à leitura tradicional vinga. vezes a dor, outras vezes o
Consequentemente, toda amor, frequentemente o medo,
argumentação que pugne pela pensando simplesmente que o
compreensão de Aristóteles da conhecimento é chacoalhado
posição de Sócrates deverá fundar-se por todas estas coisas como se
na evidência obtida no Protágoras. fosse um escravo. (Prt. 352b4-
cl).
O ARGUMENTO DE
SÓCRATES CONTRA “A O fracasso do conhecimento em
MASSA” NO PROTÁGORAS sempre dirigir quem o possui,
aprendemos algumas linhas abaixo, se
No Protágoras 351b3, Sócrates deve ao fato que ele pode ser
abruptamente interrompe sua “vencido pelo prazer ou dor” (352e6-
investigação da relação entre a 353al).
sabedoria e a coragem para fazer
Convém fazer duas observações
de início. Primeiro, a referência ao
conhecimento sendo “chacoalhado
uma outra investigação. Ele agora se como um escravo” sugere fortemente
imagina questionando “a massa” (hoi que Aristóteles está pensando
polloí) sobre a posição dela que por justamente nesta passagem quando
vezes uma pessoa faz atribui a Sócrates a negação de AC.
voluntariamente o que é mau para Porém, em segundo lugar, a massa
ela, ainda que saiba que é um mal inicialmente formula sua posição em
para ela. A massa, segundo Sócrates, termos da insuficiência do
sustenta que o conhecimento conhecimento em resistir ao prazer. A
(epistêmê) massa começa caracterizando sua
posição em termos do que estamos
Não é um elemento forte, nem chamando “akrasia-conhecimento”
dirigente nem que comanda... ou ACo. A massa sustenta que ACo
mas frequentemente, quando o ocorre às vezes. Podemos agora
conhecimento está presente em formular a caracterização inicial de
uma pessoa, ele não a governa, Sócrates da posição da massa de um

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modo algo mais formal como segue: riqueza” (354b2-5). Ademais, a massa
estima essas coisas como boas
(ACo) Por vezes uma pessoa, P, faz X, porque elas resultam em prazer (e
que sabe ser mau para ela, porque P é alívio da dor), o que faz valer a dor
vencido pelo prazer. que deve ser inicialmente suportada.

O lance inicial de Sócrates Sócrates resume a posição da


consiste em esclarecer o que está em massa sobre a relação entre o bem e
jogo em “ser vencido pelo prazer” que o prazer, assim como sobre o mal e a
faz com que a massa diga que ser dor, do seguinte modo:
vencido é uma coisa má para
Consequentemente, você pensa
o agente. Coisas más são más não que a dor é má e o prazer é bom,
porque provocam prazer, Sócrates visto que você chama de mal o
afirma como advogado da massa, que lhe priva de prazeres
“mas por causa do que ocorre mais maiores ou provoca dores
tarde, doenças e coisas assim” maiores do que os prazeres que
(353el). Ser vencido pelo prazer, estão nele... e você chama o que
portanto, não é mau porque o agente é doloroso de bem sempre que
tira certo prazer de sua ação, mas ele troca dores maiores por as
porque o prazer que tira não vale as que estão nele ou proporciona
consequências más da escolha. Ser prazeres maiores que as dores
vencido pelo prazer, poderíamos que estão nele. (354c5-d7)
dizer, é, no cômputo geral, uma coisa
má para o agente que é vencido. Sócrates, assim, supõe que a
massa seja hedonista do tipo que
O mesmo se aplica, mutatis aceita uma substituição não
mutandis, às coisas boas. Embora qualificada de “prazer” por “bem” e
coisas boas como treinamento “dor” por “mal” (354c3-5, 355al-5). Se
atlético, militar e cirurgia sejam Sócrates adota ele próprio a
dolorosos, mesmo assim as julgamos perspectiva da massa é objeto de
ser boas “porque mais tarde elas controvérsia. Irwin e Dodds, por
provocam coisas como a saúde, a boa exemplo, afirmam que sim (ver
condição dos corpos, a preservação Dodds, 1959, p. 21-2; Irwin, 1995, p.
das cidades, poder sobre outros e 81-3, 1997, p. 102-14). Outros

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argumentam que Sócrates não adota que é melhor para si, obtemos “P é
em nenhum lugar o hedonismo (ver, vencido por um desejo do que é
por exemplo, Sullivan, 1961, melhor para si”. Porém, não faz
sentido dizer “P deixa
conscientemente de fazer o que é
melhor para si, isto é, P
p. 10-28; Vlastos, 1969, p. 71-88; Zeyl, conscientemente escolhe o que é pior
1980, p. 250-69). para si porque quer o que é melhor
para si”.
A esta altura, Sócrates anuncia,
de modo críptico, que é a adesão da Infelizmente, esta leitura
massa ao hedonismo que fará por fim distorce pesadamente a posição da
afundar ACo (355al-bl). Para ver o massa. Como 355a6-b3 mostra, a tese
problema, ele sugere que devemos da massa é que P é vencido não por
simplesmente substituir “prazer” por um desejo do que é em geral melhor
“bem” e “dor” por “mal” em AC para ele, mas pelo desejo de algum
(355a3-bl), obtendo AC’: prazer imediato, um prazer que pode
obter não fazendo o que sabe que é
(AC) Por vezes uma pessoa, P, faz X, melhor em geral para si. Escolhendo
que sabe ser mau para ela, porque ela X, diria a massa, P sabe perfeitamente
é “vencida pelo bem”. bem que não está fazendo o que em
geral é melhor para ele, mas seu
(AC), porém, é “absurdo” desejo pelo prazer à mão, isto é, o
(geloion, 355c8-d6), segundo bem à mão, o derrota e “chacoalha
Sócrates. Por quê? seu conhecimento como a um
escravo”. Se AC’ for absurdo, não é
Talvez seja tentador pensar que porque é autocontraditório.
AC’ é absurdo porque é auto-
contraditório. Este é o modo como Se a massa persistir em sua
Vlastos primeiramente entendeu o posição, ela deve estar preparada
problema com AC’ (Vlastos, 1956, p. para dizer que, quando P age
xxxix). De acordo com essa acraticamente, ele conscientemente
interpretação, quando substituímos renuncia a um pacote maior de bens
“prazer” por “bem” na explicação da porque há algo a respeito de um bem
massa de por que P não faz o que sabe que está imediatamente à mão que

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faz que seu tarde sua própria explicação de como


P faz a escolha errada, a saber, por
desejo por ele seja mais forte que seu causa da ignorância de P. Porém, se é
conhecimento do que é melhor. Não isso o que Sócrates tem em mente,
surpreende que o próximo passo de não há razão para que a massa
Sócrates consiste em argumentar que conceda a derrota, já que pode
tal coisa não é realmente possível. Ele perfeitamente observar que não
primeiramente observa que não há contradição em reivindicar, como faz,
nada a respeito de um prazer, consi- que P tem conhecimento e que P faz
derado como um prazer, que o faça um erro. Não é contraditório porque,
diferir de um prazer remoto, exceto a a massa pode dizer, não há conflito
quantidade (356a7-b3). Ele então entre dizer que, de um lado, P sabe o
observa que, “se você pesar prazeres que é melhor e como obter o que é
contra prazeres, você terá de tomar melhor e, de outro lado, que P erra
(lêptea) os maiores e mais abundan- porque foi impedido de agir com base
tes; se v pesar dores contra dores, em seu conhecimento.
você terá de tomas as menores e
menos abundantes” (356b3-5). Uma outra posição (ver, por
exemplo, Gallop, 1964, p. 125-9;
Em que sentido “devemos” Santas, 1971, p. 278-84, esp. pp. 280-
escolher os prazeres maiores e evitar 1 n. 21; Irwin, 1995, p. 83-4) sustenta
as dores maiores? Alguns estudiosos que , quando Sócrates diz que “se
(p. ex., Taylor, 1991, p. deve escolher” o prazer maior e a
menor dor, ele está atribuindo o
18990) argumentaram que Sócrates “hedonismo psicológico” à massa. Se
está aqui atribuindo à massa o que for isso, Sócrates pensa que a massa
poderíamos chamar “hedonismo acredita que, em função de uma
avaliativo”, segundo o qual “deve-se necessidade psicológica, sempre
escolher” os prazeres maiores e evitar agimos com vistas ao que ou
as dores maiores caso se queira al- acreditamos ou sabemos que nos dará
cançar o que é melhor. Nesta o maior prazer no
interpretação, Sócrates está
mostrando o que a massa deve
pensar que constitui a escolha
correta, de modo a poder dar mais todo e a menos dor no todo.

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Sócrates tem motivos para fazer essa ao poder do prazer e dor de


atribuição porque o hedonismo aparecerem maior (ou menor) do que
psicológico é uma consequência da eles de fato são.
concessão da massa que o fato de um
prazer ser imediato não lhe dá uma Se nosso bem agir dependesse
condição especial como objeto de disso, a saber, envolver-se e
desejo. Quando faz essa concessão, a tomar as coisas maiores e evitar
massa perde toda base a que poderia e não se envolver com as
aludir para alegar que um desejo de menores, o que seria nossa
um prazer imediato pode entrar em salvação na vida: a arte da
conflito (sincronicamente) com um medida (hê metrítikê techne) ou
desejo do que julgamos ser melhor. o poder da aparência (tou
Resulta disso que a massa deve phainomenou dunamis)? O
admitir que todos os pra- zeres são último não nos desencaminha
perseguidos como resultado de uma por tudo e não nos faz lamentar
decisão, isto é, como resultado de “so- o que fazemos em nossas ações
pesar” um prazer contra o outro e e escolhas do grande e do
escolher o que parece ter maior pequeno? A arte da medida, por
“peso”. outro lado, faz com que as
aparências percam seu poder ao
A questão é saber como dar conta nos mostrar a verdade, nos
do fenômeno que a massa chama aporta a paz de espírito que
akrasia, se os desejos não podem reside na verdade e salva nossas
entrar em conflito um com o outro. A vidas. (356c9-e2)
explicação, diz Sócrates, deriva do fato
que os prazeres e as dores, como os Sócrates está em posição de
objetos de percepção sensível, têm o explicar o que realmente ocorre
poder de parecer maiores (ou quando a massa diz
menores) do que de fato são (356c4-
8). Assim, sempre que P escolhe X, que que P é “vencido pelo prazer”. “Ser
é no cômputo geral ruim para ele, X vencido” é realmente ser guiado pelo
deve ter aparecido a P, no momento poder das aparências, pois caso
da seleção, “pesar” mais do que a tivesse P a arte da medida, P teria
alternativa. Felizmente, não estamos julgado corretamente os prazeres en-
necessariamente fadados a sucumbir volvidos na decisão. Já que a arte da

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medida é um conhecimento moral, ser p. 217-49), a negação da “akrasia


vencido é uma falta de conhecimento sincrônica” e a última de a negação da
(357d2-7). Ser vencido é realmente “akrasia diacrônica”. De acordo com
ignorância (357b6-e2). ambas as posições, Sócrates pensa
que, no momento em que uma ação é
CONHECIMENTO E CRENÇA realizada, o conhecimento não pode
ser vencido, mas, se ele aceitar a
Sócrates, assim, crê que, se P sabe o “akrasia diacrônica”, ele pensa que há
que é melhor para si, ele fará o que é um sentido em que o conhecimento
melhor para si porque pesa os pode sucumbir ao poder da aparência
prazeres e as dores corretamente. ao longo do tempo, ao passo que, se
Resta um ponto crucial para esclare- ele rejeitar a akrasia diacrônica, ele
cer, todavia. Está Sócrates somente nega que o conhecimento possa ser
sugerindo que ninguém age vencido por aparências mutáveis.
contrariamente ao seu conhecimento
do que é melhor no momento em que No modo como Aristóteles
age ou está ele sugerindo algo mais compreende a negação da akrasia da
forte, a saber, que, se P possui o parte de Sócrates, Sócrates nega
conhecimento moral, P nunca pode somente a “akrasia sincrônica”; nesse
enganar-se quanto ao prazer e dor? A ponto, os intérpretes
primeira tese deixa em aberto a
possibilidade que P pode saber em
um tempo ta queXé mau e mesmo
assim fazer X em um outro momento, modernos seguiram a trilha de
t2, a avaliação de P de X tendo sido Aristóteles (p. ex., Vlastos, 1956, p.
alterada por uma falha em conhecer xxxviii; Santas 1964, Taylor, 1991, p.
corretamente X em algum ponto 201-4). Chamemos isso “tese da
entre tx e t2. Se Sócrates sustenta a suficiência do conhecimento ou
última, ele pensa que não é possível crença”. Segundo esta posição, a ação
paraP saber em tj queX é mau e sempre reflete as crenças presentes
fazerXem t2, o conhecimento queXé do agente (que essas crenças sejam
mau tendo sido substituído por uma instâncias de conhecimento ou
crença falsa que X é bom. Chamemos “meras” crenças). Para dar base ao
a primeira tese, tomando emprestada ponto, os que adotam esta linha fa-
a terminologia de Penner (1996,1997, zem menção ao texto. Imediatamente

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após ter notado que a massa se contrariamente ao que se conhece ser


compromete com a identificação mau.
entre ser vencido pelo prazer e a
ignorância, Sócrates acrescenta a Em vários artigos importantes,
seguinte observação: Penner argumenta que a tese da
suficiência do conhecimento ou da
Se o prazer for o bem... ninguém crença é um erro (1991, p. 147-202;
que conhece ou crê (eidos oute 1996, p. 199-229; 1997, p. 217- 49).
oiomenos) que algo é melhor Segundo Penner, Sócrates está argu-
que o que está fazendo, algo mentando contra a possibilidade da
possível, ademais, continua akrasia diacrônica para quem possuir
fazendo o que está fazendo, conhecimento. Chamemos a posição
quando é possível fazer o que é de Penner de a tese da “estabilidade
melhor Nem é “ser vencido” do conhecimento”. Se Penner estiver
outra coisa que a ignorância, correto, quando Sócrates diz que ser
nem é controlar a si mesmo vencido é realmente somente
outra coisa que a sabedoria.
(358b6-c3; ver também 358c3- ignorância, Sócrates entende por
d4; 358e2-359al e 360a4-6) “ignorância” “não estar
reconhecendo com base no
Porém, se Sócrates quer negar conhecimento” de que o que se está
somente a akrasia sincrônica, por que fazendo é mau. Se for isso, Sócrates
começa ele sua discussão com a jamais desejou pôr em questão a
massa enfatizando que é o possibilidade de que em t2 P muda de
conhecimento que não pode ser posição acerca do valor de X. O que
vencido? Por que não teria dito que o Sócrates nega é que seja possível para
conhecimento ou a crença sobre o P em tx saber que X é mau e mesmo
que é bom não podem ser vencidos assim em t2 passar a crer que X é bom.
no momento em que se age? Os que Como evidência, Penner indica o fato
mantêm que Sócrates está negando que, quando Sócrates começa sua
somente a akrasia sincrônica têm discussão com a massa, ele
uma resposta pronta: visto que o claramente acredita que o conheci-
conhecimento implica a crença, mento pode ser elogiado por sua
então, se não se pode fazer o que se força. De fato, ele mesmo apoia a tese
crê ser mau, não se pode agir de Protágoras que “o conhecimento e

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a sabedoria... são os elementos mais estabilidade do conhecimento, então,


fortes das atividades humanas” nos permite ver por que o
(kratiston... einai tôn conhecimento faz com que a alma,
anthropeiônprag- matôn, 352dl-3). como diz Sócrates, “resida na
Porém, se Sócrates rejeita verdade”.
meramente a akrasia sincrônica, é
difícil ver por que a força do Porém, se Sócrates está negando a
conhecimento seria de alguma possibilidade que o conhecimento,
importância. A crença sozinha é mas não a crença, possa ser vencido
também proteção suficiente contra diacronicamente, como devemos
fazer algo que é mau no momento em compreender a afirmação de Sócrates
que a ação é realizada. em 358b6-cl que o conhecimento

A tese da estabilidade do
conhecimento não explica somente as
referências de Sócrates à força do e a crença são sempre suficientes
conhecimento em um modo que a para se fazer o que se toma como o
tese da suficiência do conhecimento melhor para si? Ao fazer esta tese,
ou crença não consegue: a tese da es- Sócrates está falando do estado de
tabilidade do conhecimento também mente do agente no momento da
atribui a Sócrates uma epistemologia ação e não há nada da tese da
moral muito mais interessante, que estabilidade do conhecimento que
permite explicar por que Sócrates entre em conflito com a convicção de
sustenta que o conhecimento “salva Sócrates de que todas as ações são
nossas vidas” (356e2). Segundo a tese motivadas pelo desejo racional. A
da suficiência do conhecimento ou tese da estabilidade do conhecimento
crença, P pode saber em ti queX é mau mantém somente que, se P tem um
para si e então em t2 sucumbir ao conhecimento moral, ele não vai
poder da aparência, abandonando balançar ao longo do tempo sobre o
seu conhecimento em prol de uma que é bom e mau para si. Se, porém,
crença falsa, talvez mesmo P possui uma mera crença, P pode
desastrosamente falsa. Porém, isso mudar sua posição à medida que
dificilmente é uma tese do circunstâncias diferentes surgem nas
conhecimento como um poder que quais X aparece mais prazeroso do
“salva nossas vidas”. A tese da que de fato é. A afirmação de Sócrates

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que o conhecimento nos salva das assim somente porque já temos um


aparências, então, parece favorecer a desejo racional pelas coisas desse tipo
tese da estabilidade do e formamos a crença que o objeto
conhecimento. particular que nos aparece como bom
é deste tipo.
O QUE DOTA UM OBJETO DO
PODER DA APARÊNCIA? Se perguntarmos agora por que
alguns objetos adquirem o poder da
Sob que condições um objeto adquire aparência, os proponentes da posição
o poder da aparência e como é que o tradicional podem responder
conhecimento, mas não a crença, somente que é sempre racional
impede esse poder quando possuído desejar o que traz mais prazer e
por um objeto? Talvez seja melhor menos dor no cômputo geral.
voltar primeiro à posição aceita da Obviamente, mudaremos de posição
tese de Sócrates da motivação antes e formaremos um desejo racional em
que abordar diretamente estas sentido contrário se passarmos a crer
questões. Não há discussão sobre a que um objeto Y não trará mais prazer
tese que Sócrates pensa que todas as que X. De acordo com a tese da
ações são motivadas pelo desejo estabilidade do conhecimento,
racional. A maioria dos estudiosos Sócrates dá um valor tão alto à arte da
abonaria o ponto adicional que, para medida porque ela sempre dá ao seu
Sócrates, os desejos racionais são não possuidor a reta razão a propósito de
somente as únicas forças motivado- se dever ou não perseguir um objeto
nais por trás das ações, mas o único que parece prazeroso.
tipo de condição psíquica que tem
consequêndas causais (ver, por Mesmo assim, como um objeto
exemplo, Irwin, 1977, p. 78, 1995, p. adquire o poder da aparência,
51-3, 75-6; Penner, 1991,1996, 1997, segundo a posição tradicional?
p. 117-49; Vlastos, 1991, p. 148-54; Supondo que Sócrates defenda a tese
Reshotko, 1992, p. 145-70; da estabilidade do conhecimento,
Brickhouse e Smith 1994, p. 91-101; considere novamente como Sócrates
Nehamas, 1999, p. 27-58). Assim, de pretende lidar com “ser vencido”. Em
acordo com a posição aceita do tj P crê queX é mau para si. Em t2, P
desejo na filosofia socrática, se algo crê queX é bom para si e busca X. Em
nos aparece como bom, ele aparece t3, P lamenta ter buscado X (Prt.

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356d6-7). Claramente, em t2X possui Sócrates


o poder da aparência e, em tx e t3, não
tem esse poder. Precisamos de uma
maneira de explicar a aquisição por X
do poder da aparência em t2. tem em mente. Seguramente o caso
Especificamente, o que os mais comum do fenômeno que
proponentes da explicação Sócrates está tentando explicar
tradicional devem fornecer é uma ocorre quando X esta à mão e assim
explicação de por que P passa a pode ser desfrutado imediatamente
acreditar queXé bom em t2. ou mais tarde. Quando X esta à mão
em t: e P julga-o, no cômputo total, ser
Tradicionalistas podem mau, o que explica a mudança de
argumentar que Sócrates explica a posição de P em t2 – quando a
mudança de posição entre tx e t2 em perspectiva de P sobre X não mudou –
termos de P ter mudado sua quando P busca X? Imaginemos uma
perspectiva sobre X. A menos que P pessoa tentando perder peso porque
tenha a arte da medida, a qual crê que seria bom para si e que tem
garante o juízo correto sobre os uma fatia de torta de chocolate posta
objetos de busca, à medida que P se diretamente à sua frente. Em um
aproxima de X, por exemplo, X ponto ela declina a oferta de a comer,
parecerá maior do que é. O que mencionando sua crença que seria
resulta que P julga que X é melhor do ruim para si. Mais tarde, com a torta
que é. É por isso que Sócrates ainda à sua frente, ele a come. Após
pergunta à massa: “as coisas de ter-se saciado, ela diz que lamenta ter
mesmo tamanho parecem maiores comido a torta. Claramente uma
quando estão próximas e menores perspectiva temporal ou espacial
quando vistas à distância ou não?” nada tem a ver com a mudança de
(365c5-6). Porque o desejo de P de avaliação por parte do agente.
buscar X em t2 é, segundo esta leitura,
sempre o produto da perspectiva Em nossa discussão do Mênon,
alterada de P, o que motiva a busca de mencionamos que Sócrates usa o
P em t2 é um desejo racional. termo “epithumia”, o termo escolhido
por Platão e Aristóteles para o desejo
Uma pequena reflexão, contudo, nos não racional, isto é, o desejo que visa
mostra que isso não pode ser o que

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a um fim não bom. Podemos, ob- desejos não racionais em sua


viamente, pensar que Sócrates está psicologia moral não entra em conflito
usando o termo em um sentido com sua tese, expressa no Protágoras,
frouxo, enquanto Platão e Aristóteles que todas as ações são guiadas por
o usam em um sentido estrito. Porém, uma cognição – conhecimento ou
como Devereux observou (1995, p. crença – do que é melhor para nós
400-1), há pelo menos uma passagem, (Prt. 358b6-cl)? No artigo que
Chrm. 167el-5, na qual Sócrates expli- acabamos de citar e ao qual muito
citamente distingue entre “querer” deve nossa posição, Devereux explica
(boulêsis), que ele diz que visa a um que as teses de Sócrates são
bem, e epithumia, que ele diz que visa consistentes se ele pensar que os
ao prazer. Não podemos descartar desejos não racionais podem causar
totalmente isso como um deslize da não ações, mas mudanças na crença
parte de Sócrates, pois mesmo na sobre o bem dos objetos pelos quais é
Apologia ele claramente pensa que as atraído (1995, p. 381- 408). Um desejo
paixões têm um papel na explicação não racional por um objeto pode nos
de algumas ações. Vemos isso, por advir e causar com que creiamos que
exemplo, na tese de Sócrates que ele o objeto que julgávamos previamente
não faz senão exortar as pessoas a como não sendo bom para nós
perseguir a virtude e os recriminar se realmente é bom para nós. Devereux
não o fazem (29e3- 30a3). Sua argumenta que a arte da medida é
discussão de como permaneceu no compatível com um desejo não
posto que lhe foi designado pelo deus racional forte e que o que é
a despeito da hostilidade que importante sobre o conhecimento
enfrentou claramente implica que ele para Sócrates é que o conhecimento é
pensa que, em algum sentido, o medo sempre mais forte do que qualquer
tem um papel em como os outros se desejo.
motivam a fazer coisas vergonhosas
(32bl-d4). Se for assim como funciona a tese
de Sócrates do desejo não racional, é
Porém, não mostram justamente correto denominar sua teoria da
estas considerações que a teoria da motivação de “in- telectualismo”, pois
motivação de ele permanece comprometido com a
noção de que ninguém age
Sócrates é incoerente? A admissão de contrariamente ao que sabe ou crê

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que é melhor para si no momento da Contudo, na Apologia ele também


ação. E, todavia, uma versão insiste com o júri, como o faz tão
modificada do intelectu- alismo, frequentemente com os in-
porque Sócrates reconhece o poder terlocutores de seus diálogos, que
causai dos desejos não racionais e não tem nenhuma sabedoria além do
pensa que ele podem vencer a crença, reconhecimento de sua própria
mas não o conhecimento. ignorância (ver o capítulo A
Ignorância Socrática).
TEM SÓCRATES A
METRÊTIKÊ TECHNÊ? Há boas razões, pensamos, para
ser cauteloso em atribuir sabedoria
Neste ponto, uma questão moral a Sócrates (Brickhouse e Smith,
interessante surge se Sócrates possui 1994, p. 3-55). Assim, ante de aceitar
a arte da medida (metrêtikê technê). a implicação que Sócrates enganaria o
Na Apologia (37a5-6), Sócrates júri a respeito de um questão tão
declara que “está convencido que não importante, vamos seguir
fez mal a ninguém”, inclusive brevemente uma outra possibilidade.
presumivelmente a si mesmo. Segue- Relembre que, se a psicologia moral
se que nenhum objeto jamais exerceu de Sócrates der lugar para os desejos
a dunamis touphaino- menou sobre não racionais, o poder deles deve ser
ele, pelo menos não a ponto de fazer localizado na influência que têm
com que cresse que um objeto era sobre nossas crenças sobre o bem dos
bom quando não era e assim agisse objetos de nossos desejos. No
com base em Górgias, a fala de Sócrates implica
que alguns desejos não racionais são
mais poderosos do que outros e que
um desejo não racional particular
uma crença falsa. É tentador concluir pode se tornar mais forte ou mais
que, a despeito de suas muitas fraco com o tempo. É isso o que
declarações em sentido contrário, parece estar por trás da observação
Sócrates deve possuir afinal de contas de Sócrates a Cálicles, no Górgias,
o conhecimento moral, visto que, no quando lhe diz que, se uma pessoa
Protágoras, ele sugere fortemente deve evitar se envolver com as piores
que somente a arte da medida pode atividades, “ela não deve deixar que
“nos salvar” do poder da aparência. seus apetites (epithumias) fiquem

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descontrolados e busquem se saciar que ele nunca tratou mal ninguém.


por si mesmos” (507el-3). Aqueles aos Sócrates tem razão em pensar que,
quais não se permite “se saciarem por embora a arte da medida seja o meio
si mesmos” permanecem, ao que mais confiável para vencer o poder da
parece, relativamente fracos. aparência, não é o único modo. Pode-
Sócrates nos aconselharia a manter os se vencer esse poder formidável
apetites fracos se pensa que os mediante uma deliberação
apetites fortes são perigosos porque cuidadosa, exatamente o tipo de coisa
impedem que a razão faça seu com a qual Sócrates declara sempre
trabalho como arte da medida estar envolvido (Cri. 46b4-6). Se for
inibindo a deliberação sobre qual é o isso e se ele foi capaz de manter seus
melhor curso de ação disponível para desejos não racionais fracos e
nós (ver Brickhouse e Smith, 2002, p. obedientes, insuficientes assim para
23-35). Embora esse modo de causar que ele acredite que algo que
compreender a posição de Sócrates parece prazeroso seja no cômputo
apresente uma alteração importante geral bom, ele conseguiu conduzir sua
da de Devereux, que argumenta que a vida pela razão, liberto do poder da
arte da medida é compatível com aparência. Sócrates ainda tem razão
em pensar que somente a arte da
um desejo não racional forte medida nos salva, porque somente a
(Devereux, 1995, p. 38-89), ele nos arte da medida garante que seu
permite ver por que Sócrates possuidor obtém o juízo correto sobre
conseguiu ao longo de sua vida nunca o que deve e não deve ser buscado.
sucumbir ao poder da aparência. Se Ainda que seus desejos não racionais
Sócrates conseguiu não inviabilizem seu poder de
escrupulosamente evitar que seus deliberar e decidir, por não ter
apetites “se saciem por si mesmos”, conhecimento Sócrates não pode
ele então evitou que interferissem em estar seguro que o resultado de sua
suas deliberações sobre o que é o deliberação é correto (Brickhouse e
melhor. Smith, 2000, p. 149-53). Sócrates
pode pensar, então, que mesmo os
Se isso estiver correto, podemos objetos de um apetite fraco pareçam
reconciliar a recusa de Sócrates que bons. O que lhes falta é o poder de
ele é em algum sentido importante forçar a crença que eles são bons. O
moralmente sábio e sua afirmação poder de forçar a crença é de domínio

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do apetite forte, caso no qual a O PARADOXO MORAL


ausência de um apetite forte é uma
condição necessária do No Górgias, Sócrates argumenta,
conhecimento moral. primeiramente contra Pólo e depois
contra Cálicles, que o tirano, a pessoa
Há ainda uma outra razão para mais imoral, não é realmente
pensar que a arte da medida requer poderoso. As linhas gerais do
apetites não racionais fracos. argumento de Sócrates para esta tese
Relembre que, no Protágoras, surpreendente não são difíceis de
Sócrates diz que a arte da medida discernir. O tirano tem a capacidade
“nos dá paz da mente” Qiêsuchian de causar dano injustamente aos
epoiêsan echein tên psuchên, 356el). outros, mas sua capacidade de fazer
Embora Sócrates não detalhe isso não é realmente um poder, se
exatamente o que entende por “paz pensarmos que o poder é uma coisa
de boa (468dl-e5). Se Sócrates estiver
correto, cometer uma injustiça nunca
é uma coisa boa, visto que gera
inevitavelmente o oposto do objetivo
espírito”, ele diz explicitamente a último do tirano, a felicidade. A
Cálicles, no Górgias, que a felicidade injustiça é, como Sócrates diz a
requer que nossos apetites estejam Cálicles, “a pior coisa para quem a
“ordenados” e que apetites comete” (509bl-5). A razão,
ordenados são os que não nos fazem obviamente, é que, ao cometer uma
inclinar a agir contrariamente ao juízo injustiça, o tirano está de fato
sobre o que deve ser buscado (507b4- causando grande dano à sua própria
6). Se, como parece razoável, a “paz alma, seu bem mais precioso.
de espírito” à qual Sócrates se refere
no Protágoras implica que a alma não Em um sentido importante,
é puxada em direções diferentes ao Sócrates vê o tirano e todos os que se
mesmo tempo, então é difícil ver envolvem em imoralidade como
como o conhecimento moral poderia agindo involuntariamente porque
ser compatível com os apetites que se estão agindo com base em uma
opõem fortemente aos juízos sobre o ignorância factual do que estão
que é melhor. fazendo. Para falar a verdade, o tirano
que destrói todo um vilarejo em um

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ato de represália sabe que será 5). Surpreendentemente, em nenhum


odiado pelo que fez, que deve sempre lugar Sócrates nos diz explicitamente
cuidar de sua segurança, que seus por que essa tese é verdadeira.
filhos estarão em perigo e assim por Podemos montar uma resposta
diante. Porém, ele julga que o bem plausível se revisarmos brevemente
que ele ganha para si vale o perigo várias teses socráticas sobre a alma e
potencial que provoca para si e para sobre qual é a sua boa condição. Na
sua família. O erro do tirano, Apologia, Sócrates diz ao júri que não
fez outra coisa na vida que andar
que toma suas ações involuntárias, é exortando seus concidadãos a cuidar
o erro fatual de não apreender que da “sabedoria, da verdade e da
qualquer que seja o dano que cause melhor condição de suas almas”
aos outros, maior dano ele causa para (29el-2). Esta “melhor condição da
si. Dada a tese básica ao paradoxo alma” é subsequentemente
prudencial que toda ação má é o identificada por ele como a virtude,
resultado de uma crença falsa, se aretê (30b2-4). Há várias passagens
segue que, se toda ação imoral é que sugerem fortemente que
prejudicial ao agente, toda ação Sócrates acredita que a virtude que
imoral deve ser produto de uma procura é nada menos que o
crença falsa. Assim, não somente é a conhecimento (ver o capítulo A
ação que termina por prejudicar o Unidades das Virtudes). Porém, na
próprio agente produto de República I, Sócrates explicitamente
ignorância, mas também o é cada declara que a função característica da
ação que prejudica outra pessoa. alma consiste em “tomar conta das
coisas, governar, deliberar e todas
O Górgias não é o único diálogo estas coisas” (R. 353d4-6). Já que a
socrá- tico no qual Sócrates sustenta aretê é a condição de tudo que tem
que a alma imoral é prejudicial à alma. uma função que permite com que
No Críton, ele diz longamente ter realize bem sua função, Sócrates tira a
acreditado que se deve seguir a conclusão que o poder “de tomar
opinião de quem tem conhecimento conta das coisas, governar e
em matéria moral por medo que se deliberar” bem é a virtude da alma
“corrompa e destrua o que se toma (353e4-5).
melhor pelo que é justo, mas que é
destruído pelo que é injusto” (47d3- Assim, como a ação injusta destrói a

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alma? Sócrates pode pensar que a Sócrates diz que cometer uma ação
ação injusta, de algum modo, destrói injusta é a pior coisa que podemos
o poder da alma de realizar sua fazer para nós mesmos, pois, à medida
função. Para ver como que fortalece nossos apetites, destrói
nossa mais preciosa posse, que é a
capacidade da alma de se envolver na
atividade que nos dá uma vida
isso pode ocorrer, voltemos às propriamente humana (Brickhouse e
observações de Sócrates no Górgias Smith, 2002, p. 26-31). Embora a
acerca da importância dos apetites noção que ninguém comete uma
estarem ordenados e disciplinados se injustiça voluntariamente é altamente
queremos ser felizes. Lá Sócrates disse paradoxal, a aceitação destas teses
que nos é necessário impedir que nos- sobre o crescimento do apetite, o
sos apetites “se saciem por eles cometer uma injustiça e a destruição
próprios” porque, ao fazer isso, eles se de nossa capacidade de deliberar
tomam cada vez menos disciplinados. convencem Sócrates que ninguém
Como argumentamos na seção que compreende o que ele está fa-
anterior, podemos entender isso se zendo para si mesmo por meio da
Sócrates quiser dizer que os apetites injustiça faz o que é injusto
fortes são a causa da pessoa acreditar involuntariamente.
que um objeto do apetite é de fato
bom, quando não o é. Já que os SÓCRATES, PLATÃO E ARISTÓTELES
objetos prazerosos sempre parecem
bons, se devemos encontrar o que é Platão e Aristóteles concordam com
realmente bom entre as aparências, é Sócrates que o conhecimento é
necessário ser capaz de deliberar bem suficiente para fazer o que é bom.
a respeito de as escolher. Porém, se o Porém, porque Sócrates crê que
apetite forte é de fato suficiente para nossas ações são sempre
se crer que o objeto deste apetite é empreendidas na busca do que
bom, um apetite forte é claramente tomamos como sendo um bem, sua
incompatível com todo tido de psicologia moral é de modo impor-
deliberação efetiva sobre nosso bem tante diferente da de Platão ou
(ver o capítulo O Conceito de Bem em Aristóteles.
Platão). Isso nos permite –
sustentamos nós – ver por que Muitos estudiosos sustentam que

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Sócrates difere de Platão e Aristóteles Platão e Aristóteles sustentam, esse


neste ponto porque, como vimos, impulso é suficientemente forte. Em
muitos estudiosos pensam que contraste, Sócrates – assim argu-
Sócrates rejeita a noção que há mentamos – vê o desejo não racional
desejos não racionais. como operando não como uma
Argumentamos, contudo, seguindo motivação independente a agir, mas
Devereux, que há boas razões para como uma causa da crença sobre o
pensar que Sócrates concorda com que é bom.
Platão e Aristóteles que há desejos
não racionais que têm poderes Argumentamos também que a
causais. força do desejo não racional explica
seu poder de alterar a crença sobre o
Porém, mesmo se as três maiores que é bom. Se o desejo não racional é
figuras da filosofia grega concordem forte o suficiente, ele impede nossa
que há desejos não racionais e que o alma de realizar sua função natural de
conhecimento é sempre invulnerável deliberar sobre nosso bem e isso é a
a qualquer inclinação a agir de outro causa do nosso ver o objeto prazeroso
modo do que ele prescreve, Sócrates como um bem (contra Devereux,
mesmo assim discorda de Platão e 1995, p. 404-8).
Aristóteles sobre como o desejo não
racional opera na alma. De acordo Sem dúvida, Platão e Aristóteles
com Platão e Aristóteles, pode sentir posteriormente discordaram de
o impulso a se mover a um prazer Sócrates, pelo menos em parte,
mesmo após ter deliberado e porque a tese de Sócrates do desejo
decidido que o que desejamos não é leva aos paradoxos que exploramos.
bom para nós. Ademais, se esse Para Platão e Aristóteles, um
impulso é suficientemente forte, ele paradoxo é algo que a filosofia deve
pode motivar em direção contrária ao desfazer; Sócrates vê o paradoxo
que cremos ser bom. Para algumas como algo que a filosofia pode adotar
pessoas, Platão e Aristóteles e explicar. Sobre este ponto preciso
concordam, o impulso motivacional a
agir contrariamente a seu juízo sobre
o que é bom não é suficiente para
fazer como que façam o que pensam a respeito da tarefa filosófica,
que não devem fazer. Para outras, podemos somente observar aqui

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quão longe Sócrates estava de seus 381-408.


mais famosos sucessores em Atenas
e, na verdade, da maioria dos pensa- Dodds, E. R. (1959). Plato: Górgias.
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NOTA Frede, M. (1991). Introduction.


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alma era assim central para a missão
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Moral Philo- psuchê, traduzido usualmente por
“alma”, corresponde frequentemente

Hugh H. Benson 432 de 711


Hugh H. PLATÃO
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de modo próximo ao termo moderno 1969). Há também a questão perene


“mente” e seus diálogos examinam se seria possível para a alma
questões similares às discutidas por sobreviver à destruição do corpo e, no
filósofos da mente modernos. Um caso positivo, que tipo de existência
conjunto de questões diz respeito a ela poderia levar em um estado
como a alma está relacionada com o desencarnado.
corpo. Platão argumenta que o corpo
e a alma são entidades distintas com O tratamento que Platão dá à
naturezas diferentes – material e alma difere do da filosofia moderna
imaterial. Esta posição é da mente, contudo, em perspectivas
frequentemente denominada importantes. Primeiramente, o
“dualismo platônico”. O dualista se vocabulário de PL apresenta
depara com uma outra questão a problemas para os tradutores mo-
propósito da causalidade: como a dernos. O termo “mente” não
alma interage com o corpo? Platão corresponde exatamente à psuchê de
parece concordar com o dualista Platão, visto que todo ser vivo,
moderno René Descartes (1596- mesmo uma planta, tem uma psuchê
1650), que argumenta que a mente é (ver Ti. 77a-b). Admite-se também
não meramente dependente do que “alma” é inexato, mas é menos
corpo, mas pode agir por si mesma e enganador pelo menos porque ficou
mesmo causar alterações no corpo. fora de moda como termo filosófico.
(Broadie, 2001, porém, relata Igualmente, “inteligência”, “razão”,
importantes diferenças entre Platão e “ímpeto”, “apetite” e assim por
Descartes.) Uma outra questão é se a diante são somente traduções aproxi-
alma é simples ou se tem partes e, se mativas dos termos platônicos nous,
tiver partes, que tipo de logos, thumos, epithumia e outros,
aos quais não há correspondentes
partes possui. Na República, Platão estritos modernos. O vocabulário de
argumenta que a alma tem três Platão apresenta, na verdade, um
partes: razão, ímpeto e apetite. A mapeamento alternativo do território
alma tripartite para um precursor psicológico (ver o capítulo
óbvio da personalidade tripartite Interpretanto Platão).
defendida por Sigmund Freud (1856-
1939), que também distinguiu entre o Além disso, as doutrinas psicológicas
id, o ego e o superego (ver Kenny, paradoxais atribuídas a Sócrates

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frequentemente fornecem o pano de morte, em outros corpos, não


fundo para os argumentos de Platão: humanos como humanos (ver o
que todos buscamos sempre o que é capítulo A Religião Platônica). Ele
melhor para cada um e que apresenta mitos multifacetados que
descrevem o destino dos humanos
antes do nascimento e depois da
morte no Górgias, Fédon, República e
a virtude é o que é melhor para cada Fedro, bem como alude a estas
um, de modo que o vício é sempre histórias em outros lugares. Os mitos
involuntário e a incontinência por vezes complementam os
(akrasia, escolher o mal contra o bem argumentos filosóficos em prol da
conscientemente) é impossível (ver o imortalidade da alma e são
capítulo Os Paradoxos Socráticos). Os tipicamente introduzidos com uma
agentes são virtuosos, segundo linguagem contida. Embora os mitos
Sócrates, se e somente se possuírem o difiram em vários aspectos, eles
conhecimento moral. Este concordam em que as almas virtuosas
“intelectualismo socrático” é muito são recompensadas e as viciosas
diferente da posição de David Hume punidas após a morte, assim como em
(1711-76), segundo a qual “a razão é e que a filosofia é indispensável para a
deve ser escrava das paixões”. beatitude após a morte. (Partenie,
2004, apresenta uma valiosa seleção.)
Ademais, enquanto os filósofos
modernos estão especialmente As dificuldades interpretativas
interessados na relação da comuns aos textos de Platão ficam
consciência com entidades des- extremamente agudas quando a alma
cobertas pela ciência moderna (p. ex., está em questão. Platão por vezes
neurônios e sinapses no cérebro), parece esforçar-se para criar uma
Platão está preocupado com outros “distância” entre si e seus diálogos
tipos de questões metafísicas, como a sobre a alma (ver o capítulo O
relação entre as Formas e os objetos Problema Socrático). Por exemplo, o
particulares. Fédon apresenta uma conversa com
Sócrates, como é recon- tada por
Finalmente, Platão, não poucas Fédon, que menciona a ausência de
vezes se refere à crença religiosa da Platão como tendo sido devida a
transmigração das almas, após a doença. Textos importantes de

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psicologia são unidade simples (como no Fédon) ou


composta de partes (como na
também atribuídos a outras pessoas. República, Fedro e Timeu)? E são
No Fedro, Sócrates recita todas as três partes imortais (como no
propositalmente uma fala de Fedro) ou somente a parte racional
Estesícoro, um poeta lírico do início do (como no Timeu)? Há três linhas
séc. sexto. Timeu, no diálogo homôni- principais de interpretação. A
mo, narra uma “história provável” abordagem particularista consiste em
acerca da criação do cosmos, um interpretar os diálogos
cosmos que inclui a alma. Um separadamente. Isso, obviamente,
estrangeiro de Atenas não nomeado deixa em aberto a questão de saber se
também discute as almas como é expressa uma psicologia coerente
agentes divinos nas Leis. Isso põe o no corpus platonicum. Segundo a
problema de saber se as várias abordagem unitária, as diferentes
personagens de Platão estão falando passagens são concordantes em um
por elas mesmas (como em um drama nível profundo; supostas
grego) ou se ele tem um porta-voz inconsistências são meramente
identificável. Na primeira opção, a aparentes ou superficiais. Segundo a
“alma platônica” é um nome abordagem desenvolvimentista, as
enganador, já que os diálogos inconsistências são reais, porque as
apresentam posições das persona- teorias de Platão evoluíram
gens de Platão que são incompatíveis. gradualmente à medida que escreveu
sucessivos diálogos. Isso supõe que
Se, por outro lado, Platão está podemos determinar a ordem na qual
apresentando suas próprias posições Platão escreveu seus diálogos.
por meio de suas personagens, como Embora seja controverso, é
muitos, se não a maioria dos geralmente sustentado que os
comentadores acredita, deve-se diálogos mais importantes que tratam
ainda ser cauteloso em atribuir a da alma são, do mais novo ao mais
Platão toda doutrina expressa em seu tardio, o Fédon, a República, o Fedro,
texto, especialmente a título de seu o Timeu e as Leis.
juízo refletido. Isso se toma aparente
quando se tenta conciliar teses
incompatíveis feitas em diversos diá-
logos. Por exemplo, é a alma uma Assim, os diálogos de Platão

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lidam com várias questões a respeito A ALMA COMO PRINCÍPIO


da alma em uma variedade de modos. DE ANIMAÇÃO
Porém, ele frequentemente faz apelo
ao dito socrático que devemos tentar O Fédon de Platão (ou Da Alma) relata
entender o que uma coisa é antes de o último dia da vida de Sócrates.
tentar saber se ela possui um Antes de beber a cicuta, Sócrates
atributo: por exemplo, podemos conversa com Símias e Cébes,
saber se a virtude pode ser ensinada defendendo sua posição, segundo a
somente se soubermos o que é a qual quem pratica a filosofia do modo
virtude (Men. 71b3-4). Em geral, para correto está mais bem preparado à
entender o que X é, devemos morte. Ele dá uma série de
encontrar a definição que exprime argumentos em prol da imortalidade
sua essência (ousia), isto é, a forma da alma e conclui com um mito a res-
(eidos, ideá) comum a todo Tf peito da existência das almas após a
(Euthphr.: 5dl-5,11a; Men. 72bl-2, c7- morte.
8; Hp.Ma. 300a9-b2) (ver os capítulos
Definições Platônicas e Formas; A No primeiro argumento, Sócrates
Ignorância Socrática). Supondo que sustenta que um filósofo está mais
esse princípio se aplica à alma, Platão bem preparado para a morte por
aconselharia a começar tentando vir a meio de duas linhas: pelo
saber o que é a alma. Os diálogos de conhecimento (64c-67b) e pela purifi-
Platão contêm três teorias principais cação (67c-69d). Primeiramente, ele
acerca da natureza da alma: que a explica a morte como segue: “o corpo
alma é um princípio de animação, que passa a estar separado por si mesmo
ela tem três partes e que ela é capaz à parte da alma e a
de mover a si mesma. Estas doutrinas
surgem no interior de vários alma passa a estar separada por si
argumentos concernentes à natureza mesma à parte do corpo” (64c5-8). O
e destino da alma. Muitos ar- nó górdio é que o filósofo, mais do
gumentos parecem depender ou que ninguém, liberta sua alma do
modificar outros argumentos. corpo, porque seu corpo não tem uso
Portanto, o resto deste capítulo e é mesmo um obstáculo para sua
discutirá estas três teorias no interior busca do conhecimento. O principal
do contexto dos argumentos de ponto é que o conhecimento se aplica
Platão. às Formas – por exemplo, o Justo-em-

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Hugh H. PLATÃO
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si, o Belo-em-si e o Bem-em-si – e esse “separar a alma tão longe quanto


conhecimento é adquirido puramente possível do corpo e acostumá-la... a
não pela percepção sensível, mas residir por si mesma tanto quanto
somente pelo pensamento (dianoia) e puder libertar-se, por assim dizer, dos
separadamente de nossos órgãos grilhões do corpo” (67c5-d2).
sensíveis tanto quanto possível (ver Sócrates identifica a pureza com a
os capítulos O Conhecimento e as virtude moral, que é erroneamente
Formas em Platão; As Formas e as apreendida pela massa inculta. A
Ciências em Sócrates e Platão). O massa pensa que a coragem, por
corpo somente confunde a alma, pois exemplo, é a disposição de correr o
os sentidos não são claros nem risco de dor física a fim de evitar um
precisos (65a-66a). Ademais, os mal maior, que ela erroneamente
desejos do corpo nos distraem e nos iguala a mais dor. Porém, temos
tronam por demais atarefados para virtude genuína somente se tivermos
praticar filosofia (66b-d). Assim, a sabedoria e soubermos que unica-
podemos atingir o conhecimento mente os estados da alma
puro somente à medida que verdadeiramente têm valor. Donde, a
mantivermos nossas almas moderação, a coragem e a justiça são
independentes de nossos corpos. uma “purgação” de todas as
Portanto, enquanto estivermos vivos,
chegaremos o mais próximo do
conhecimento se, como filósofos,
tivermos o menos possível a ver com preocupações com o corpo e a
o corpo e não nos infectamos a nós sabedoria é um tipo de “purificação”
mesmos com sua natureza, mas (69b-c). Sócrates compara a prática
permanecemos puros dela; deste da filosofia à iniciação aos rituais
modo estaremos mais bem populares dos mistérios que são
preparados para apreender tudo o supostos fazer com que os iniciados
que é puro – isto é, a verdade – após residam com os deuses após a morte
a morte (66d-67b). (ver 81a-b). Somente a filosofia
purifica a alma e prepara quem a
Isto serve de transição ao pratica à morte (69d).
argumento pela purificação (67c-
69d). Sócrates explica a purificação Esta abertura é propriamente
(katharsis) do seguinte modo: progra- mática, esboçando

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suposições que incluem a Teoria das alma seja separável do corpo, ela
Formas e a identificação so- crática da pode perecer assim que sai do corpo.
virtude ao conhecimento. As de- Isso fornece a ocasião para uma série
finições da morte e da purificação de argumentos da parte de Sócrates
supõem ambas que cada pessoa tem que a alma é imortal e indestrutível.
uma alma, assim como um corpo,
cada um dos quais vindo a separar-se Em seu argumento do ciclo (Phd.
em si mesmo por si mesmo do outro. 70d-72e), Sócrates relembra uma
Se os interlocutores de Sócrates “história antiga” envolvendo a
tivessem posto em questão estas reencarnação: as almas dos mortos
suposições, teria sido difícil dar início vão para o mundo inferior e então
ao argumento (ver o capítulo retomam para renascerem. (Para
Problemas para as Formas). É de se outras referências à reencarnação,
observar também que a alma e o ver Phd. 107c-108a; Men. 81b; R.
corpo são aqui tratados em um X.615a-619e; Grg. 493a; Phdr. 248b-e,
mesmo nível, uma tese que será 250b-c; Ti. 44c, 89e-
refeita mais tarde. Visto que a
expressão “em si mesmo por si -90d.). O argumento do ciclo
mesmo” (auto kath’ hauto) é aqui apresentado como apoio a esse
aplicada tanto à alma quanto ao dogma religioso pode ser
corpo, Sócrates dá a entender que reconstruído do modo seguinte:
têm naturezas ou identidades
distintas. O argumento tampouco é 1 Se existe um processo de 01 a 02
claro sobre a natureza da alma. Ele também há um processo de 02 a Oi
associa desejos, prazeres e dores com (em que Oi e 02 são opostos). Por
o corpo, contudo indica que as almas exemplo, o aquecimento é um
frequentemente estão em uma processo do frio ao calor e
condição impura após a morte, isto é, resfriamento é um processo do
atadas a desejos, prazeres e dores. quente ao frio (71al2-b4).
Isso implica que a alma tem uma na- 2 Se coisas viessem a ser 02 a partir
tureza complexa, que envolve de 0lt mas não Ox a partir de 02,
capacidades conativas em acréscimos tudo terminaria tendo a mesma
às cognitivas. forma; por exemplo, tudo
terminaria sendo quente (72all-
Cébes objeta que, mesmo que a b5).

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3 Hido não terminará tendo a b) Se coisas vão de Oj para 02, as


mesma forma.] (Premissa tácita) mesmas coisas vão de 02 para Oi.
4 Portanto, se coisas vêm a ser 02 a
partir de Oi, elas também vêm a Somente (a), a leitura mais fraca,
ser Oj a partir de 02. se segue das premissas anteriores;
5 A vida e a morte são opostos (71cl- porém, a leitura mais forte (b) é
5). necessária para
6 As almas vêm a morrer a partir de
estarem vivas (71dl0-ll).
7 Portanto, as almas vêm a estar
vivas a partir de estarem mortas estabelecer que as mesmas almas que
(71dl4-15). retornam à visão são as que
previamente se apartaram da vida. De
Este argumento apresenta várias qualquer modo, o argumento, do
dificuldades. Primeiro, ele é inválido, modo como está, parece estar em
a menos que se acrescente (1.3) como conflito com o mito final, que implica
uma premissa tácita. Porém, não é que se pode escapar do ciclo de
óbvio que (1.3) é verdadeiro. É nascimentos: “os que se purificaram a
impossível para o universo tornar-se si mesmos suficientemente pela
completamente quente ou com- filosofia, vivem em um futuro
pletamente frio? De acordo com a inteiramente sem um corpo” (114c2-
segunda lei da termodinâmica, 4).
sempre que dois sistemas entram em
contato, a energia calórica é sempre O argumento seguinte, o
transferida do sistema com a maior argumento da reminiscência (72e-
temperatura para o que tem 77d), supõe que nossa consciência das
temperatura menor. Parece possível Formas é uma consequência da
que esta lei se aplique ao universo reminiscência (anamnêsis) baseada
como um todo. Igualmente, na experiência sensível. Por exemplo,
rememoramos a Forma da Igualdade
(1.4) é ambíguo, permitindo pelo ao percebermos gravetos e pedras
menos duas leituras: iguais (ver o capítulo Platão e a
Reminiscência). Com base nessa
a) Se coisas vão de Ox para 02, teoria, Sócrates argumenta que a
algumas coisas vão de 02 para Ox. alma existe antes do nascimento (76a-

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c): pode ser convertido em


conhecimento explícito por meio de
2.1 Visto que rememoramos as uma reflexão racional (ver Men. 86a).
Formas ao vermos os objetos O processo é similar à reminiscência,
particulares, então ou nascemos por exemplo, quando vagamente se
com o conhecimento delas ou o reconhece um antigo conhecido em
adquirimos em uma existência uma reunião de
prévia e o perDemos ao nascer.
escola, que exige, porém, um esforço
2.2 Não adquirimos o conhecimento mental considerável para conectar o
das Formas no nascimento ou rosto com o nome e outros detalhes.
depois dele, pois não podemos Um problema com este argumento,
fornecer uma explicação (logos) porém, é que (2.1) supõe que nosso
delas. conhecimento implícito agora é o
resultado do conhecimento explícito
2.3 Portanto, adquirimos o que tivemos das Formas antes de
conhecimento das Formas em nascer. Ainda que tenhamos agora um
uma existência prévia e o conhecimento implícito inato (p. ex.,
perDemos ao nascer. da matemática, lógica ou de
estruturas sintáticas), não se segue
A teoria da reminiscência, na qual que o obtivemos mediante a
este argumento está baseado, implica contemplação das Formas antes de
uma ideia que alguns filósofos ainda nascer. Poderia, por exemplo, ter sido
acham atraente. Quando “incutido” em nós de algum tipo de
reconhecemos certas verdades sobre processo evolucionário.
particulares sensíveis,
frequentemente aplicamos um tipo O Argumento da Afinidade de
peculiar de conhecimento; é o Sócrates (77e-84b) envolve a ideia
conhecimento abstrato ou conceituai, que a alma é muito similar às Formas,
implícito ou tácito, já que não somos ao passo que o corpo é minimamente
então capazes de o fundamentar por similar a elas. Há duas premissas
meio de uma explicação, isto é, por principais:
meio de uma demonstração
satisfatória ou definição. Esse conhe- 3.1 Porque o semelhante é conhecido
cimento é inato, segundo Platão, mas pelo semelhante e a alma conhece

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as Formas por si mesma, a alma inicial de Sócrates, que tratava a alma


deve maximamente assemelhar- e o corpo
se às Formas, que são puras,
imortais e imutáveis.

3.2 Porque o divino govema o mortal em um mesmo nível. Porém, (3.3)


e a alma naturalmente governa o somente sustenta que a alma é
corpo, a alma deve maximamente semelhante às Formas, não que ela é
assemelhar-se às Formas, que são uma Forma, e Sócrates acrescenta
divinas. que a alma alcançará o reino divino
depois da morte somente se for
3.3 Assim, porque a alma se purificada ou purgada da “confusão,
assemelha maximamente às ignorância, medo, desejos violentos e
Formas, que são divinas, imortais, outras moléstias humanas” (81a6-8).
inteligíveis e uniformes, a alma,
diferentemente do corpo, é Símias objeta (85e-86e) que,
completa ou quase totalmente mesmo que a alma seja invisível,
indissolúvel. incorpórea e divina, poderia ser como
a afinação ou harmonia de um
A premissa (3.1) se baseia no princípio instrumento musical, isto é, uma lira.
que o semelhante é conhecido pelo A afinação sobrevêm ao instrumento
semelhante, largamente aceito pelos quando suas partes estão ordenadas
pre- decessores de Platão, embora corretamente e na devida medida.
alguns, como Anaxágoras, o tenham Similarmente, a alma sobrevêm ao
rejeitado (ver Aristóteles, de corpo quando suas partes estão
Analogia. III.4.429b22-4). A premissa combinadas do modo correto. Das
(3.2) depende do princípio que o três respostas de Sócrates, a seguinte
divino naturalmente comanda o (92e-95a) é particularmente
mortal. Sócrates não explica aqui interessante:
como as Formas poderiam ser ditas
“governar” algo, embora mais adiante 4.1 A alma comanda o corpo opondo-
discuta seu papel como causas. A tese se aos seus desejos; por exemplo,
que a alma comanda o corpo também quando alguém tem sede, a alma
será em breve explicada. A conclusão leva a pessoa à direção contrária
(3.3) parece desviar-se do argumento de não beber (94b7- cl).

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4.2 Uma afinação não pode agir ou meramente um subproduto do corpo:


sofrer uma ação a não ser nas ela exerce um tipo de causa “de cima
partes de seu instrumento nem para baixo” (ver Taylor, 1983 e
pode opor-se às partes de Wagner, 2000).
nenhum modo (94c3-7).
Cébes faz mais uma objeção (87a-
4.3 Portanto, a alma não pode ser 88b): mesmo que a alma possa
uma afinação (94c8-95cl). sobreviver à morte do corpo, isso não
mostra que é imortal. A alma pode
A teoria da alma de Símias como estar para o corpo como o tecelão está
afinação assemelha-se a uma teoria para o manto, que tece vários mantos,
moderna bem difundida, a saber, que mas por fim perece também. Para
os estados mentais diferem, mas são enfrentar esta objeção, Sócrates deve
supervenientes aos estados físicos. provar que a alma é necessariamente
Segundo a posição da afinação, que a imortal e indestrutível. Isso “requer
lira esteja afinada depende de suas uma investigação completa da causa
cordas estarem corretamente da geração e destruição” (95e9-96al).
esticadas e, igualmente, que o corpo
tenha uma alma depende de suas O argumento final de Sócrates em prol
partes estarem corretamente ordena- da imortalidade (95e-106e) é
das. Similarmente, segundo a complicado e difícil de interpretar. Ele
moderna teoria da superveniência, os pressupõe que uma explicação causai
estados mentais dependem de causas adequada deve referir-se às Formas.
físicas que lhes servem de base; por Sócrates inicia criticando certos
exemplo, os eventos nas células do filósofos anteriores por terem tratado
cérebro. Sócrates ataca a teoria da “o ar, éter, água e muitas outras
afinação fazendo apelo à tese coisas estranhas” como causas de
mencionada acima fenômenos naturais. Eles
erroneamente supuseram que se
(3.2) que a alma comanda podia explicar um fenômeno natural
naturalmente o corpo. Por exemplo, a indicando o objeto natural que
alma retém o corpo quando este está supostamente o causou. Sócrates dá
sedento e faminto. Assim, um exemplo: por que Sócrates está
sentado agora na prisão? Um filósofo
de acordo com Sócrates, a alma não é pré-socrático tentaria explicar que o

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corpo de Sócrates contém ossos e Método da Dialética de Platão).


tendões, que têm o tipo de
características físicas que o permitem O primeiro problema é que
permanecer sentado com seus Símias pode ser maior do que
membros dobrados. Sócrates objeta Sócrates, mas menor do que Fédon,
que é absurdo tomar seus ossos e de modo que Símias é ao mesmo
tendões como a causa de ele estar lá, tempo alto e pequeno. Porém, como
já que poderia ter escolhido fugir e podem Formas opostas coexistir em
estar em outro lugar, ossos, tendões e um mesmo objeto particular? Para
tudo o mais. Os ossos e tendões não resolver este problema, Sócrates
são uma causa real, mas “aquilo sem distingue entre dois tipos de Formas:
o qual a causa não seria capaz de agir Formas transcendentes (p. ex., “a
como uma causa” (eles são o que hoje altura na natureza”) e Formas
é chamado uma “condição imanentes (p. ex., “a altura em nós”).
necessária”). O ponto de Sócrates é (Ver 102d6-7, 103b5; os termos
que a causa real garante que o efeito “transcendente” e “imanente”
se produz (deve ser o que hoje é provêm dos comentadores.) Em geral,
chamado uma “condição suficiente”) se um objeto particular participa de
e que tal causa deve envolver as uma Forma transcendente, ele deve
Formas. Neste sentido, ele propõe também ter uma Forma imanente
duas hipóteses: primeiro, que as nele. O primeiro problema é resolvido
Formas existem, por exemplo: o Belo- porque a Forma imanente da Altura-
em-si, e, segundo, que as outras em-relação-a-Sócrates de Símias é
coisas são F porque participam das compatível com a Forma da
Formas, por exemplo: as coisas belas Pequenez-em-relação-a-Fédon.
são belas porque Contudo, a Forma imanente da
Altura-em-relação-a-Sócrates não
pode coexistir com a Forma imanente
da Pequenez-em-relação-a-Sócrates.
participam do Belo-em-si (ver 100b3- Caso Sócrates sofra um súbito
e3). Por exemplo, se Helena de Troia crescimento e fique mais alto que
participa da Forma da Beleza, isso Símias, então a Forma imanente de
garante que ela seja bela. Esta teoria Símias da Altura-em-relação-a-
aparentemente simples contém Sócrates “se retira ou é destruída”
várias dificuldades (ver o capítulo O (102el-2). Esta solução também

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permite a Sócrates esclarecer o é 01 e traz Ordade a tudo que


sentido do passo (1.4) do argumento ocupa. Por exemplo, o fogo é
do ciclo. Quando disse que “se coisas quente e traz calor a tudo que
vêm a ser 02 a partir de Oj, elas ocupa (104el0).
também vêm a ser Oj a partir de 02”,
ele estava falando de objetos 5.2 O que traz Ordade a tudo o que
particulares como Símias, que passam ocupa nunca admitirá seu oposto,
de pequeno a grande (103b2-c2). 02-dade. Por exemplo, o que traz
calor nunca admitirá frio (105al-
O segundo problema é que as 5).
explicações causais propostas por
Sócrates parecem pouco informativas 5.3 A alma é uma portadora especial
e mesmo vácuas. Sócrates se protege de Vida (105d3-4).
desta dificuldade distinguindo entre
dois tipos de explicação causai. A 5.4 Vida e Morte são opostos (105d6-
explicação “segura e ignorante” é, por 9). (Comparar com (1.5) acima.)
exemplo, que algo está quente
porque está ocupado pelo calor. A 5.5 Portanto, a alma não admitirá
explicação “sofisticada” é que está Morte (105e4-5).
quente porque tem dentro de si algo
outro, a saber, o fogo, que o torna 5.6 Portanto, a alma é sem morte
(athanatos) (105e6).
quente (105b5-c7). Além da Forma,
“há algo a mais que não é a Forma, 5.7 O que é sem morte é imperecível
mas tem sua característica sempre (106b2).
que existe” e “carrega” o oposto (isto
é, o calor) a tudo que ocupa (103e2-5, 5.8 Portanto, a alma é imperecível
104el0). Por conveniência, chamemos (106b2-
este “algo outro” de um portador es-
pecial da Forma. 3).

Baseando-se nessa teoria, Para interpretar e avaliar este


Sócrates apresenta sua prova final: argumento, é necessário esclarecer a
difícil noção que chamamos
5.1 Um portador especial de 01-dade “portador especial”. Há evidência que

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o portador especial tem uma Forma seja indestrutível porque a Forma


peculiar. Sócrates se refere à “Forma oposta nesse caso é a Morte (106a3-
do Três”, que é o portador especial do c7; cf. 102el-2). Se a alma for como
ímpar, e diz que o três tem “sua uma Forma imanente, contudo, a
própria Forma”, bem como a “Forma inferência de (5.5) a (5.6) parece
do oposto”, isto é, ímpar (104dl-7). falaciosa. Dizer que a alma “não
Isso sugere que o portador especial admite” morte é afirmar uma relação
tem duas Formas: por exemplo, o de incompatibilidade entre as Formas
fogo tem as Formas do Fogo e do da Alma e da Morte. Do fato que a
Calor. No que Sócrates chama de uma presença da alma (entendida como
explicação causai “sofisticada”, então, uma Forma imanente) acarrete a
porque o portador especial fogo traz ausência da morte (entendida como
uma Forma (isto é, Fogo), ele uma Forma imanente) não se segue
necessariamente traz a outra Forma que a própria alma participe da vida
(isto é, Calor). no sentido de ser uma coisa “viva”
como uma planta ou um animal. A
Porém, onde este misterioso inferência de (5.8) introduz mais uma
portador especial – e em particular a falácia de equivo- cação. Mesmo que
alma – se encaixa na ontologia de a alma seja “sem morte” no sentido
Platão? Há três de estar “viva”, não se seguiria que é
sem morte no sentido de ser
“imortal”, como requerido por (5.8).
(Ver Keyt 1963 para uma
possibilidades: Forma transcendente, interpretação nesta linha.)
Forma imanente ou objeto particular.
Claramente não é o primeiro, pois De modo alternativo, outros
então Sócrates e Fédon teriam almas comentadores veem o portador
idênticas. Os comentadores estão em especial como um objeto particular
desacordo quanto à alma ser mais de um tipo especial. Ele obviamente
como uma Forma imanente ou mais não pode ser um particular como um
como um objeto particular. Sócrates corpo que pode participar sucessi-
descreve a alma em termos similares vamente das Formas de Calor e Frio.
a uma Forma imanente que “se retira Nesta interpretação, o portador
ou é destruída” com a aproximação especial é como o que Aristóteles
de uma Forma oposta, embora a alma chama de uma “substância” (ousia),

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isto é, um objeto particular com uma (5.3) , a tese crucial que a alma é o
essência. Uma essência é uma princípio de animação? E como está
propriedade básica que define o que relacionado a outras indicações no
é a coisa e toma necessárias suas Fédon que a alma é sobretudo um
outras propriedades. Assim como o princípio racional? Para encontrar as
fogo é necessariamente quente e a respostas, é preciso voltar-se a outros
neve é necessariamente fria, a alma é diálogos.
necessariamente viva. Cada portador
especial porta suas propriedades A ALMA TRIPARTITE
necessárias a tudo o que ocupa e
exclui as propriedades opostas. Esta A teoria que a alma tem três partes é
interpretação requer que atribuamos desenvolvida na República, Fedro e
um conceito de essência a Platão (ver Timeu. A teoria é defendida mais
Silverman, 2003), bem como um sistematicamente na República, em
conceito apoio ao argumento de Sócrates que
uma pessoa justa vive melhor que
de substância que antecipa uma pessoa injusta. Para explicar a
Aristóteles (ver o capítulo natureza da justiça, Sócrates
Aprendendo sobre Platão com desenvolve uma analogia minuciosa
Aristóteles). Porém, tem a vantagem entre a alma e o Estado, ambos os
de evitar a falácia lógica antes quais têm três partes. A justiça se dá
mencionada. Mesmo assim, o último quando cada parte leva a cabo sua
passo permanece problemático. função própria e quando a parte que
Mesmo que a alma seja neces- naturalmente comanda é obedecida
sariamente viva (5.6), isso significa pelas outras partes. No caso de uma
somente que a alma está viva alma justa, a parte racional
enquanto existe. Não se segue que a (logistikon) naturalmente comanda e
alma sempre exista ou esteja viva é obedecida pelo impulso
(5.8). (Ver Frede 1978 e Weller 1995 (thumoeides) e apetite
para uma interpretação nesta linha.) (epithumêtikon) (ver o capítulo Platão
e a Justiça).
O argumento final deixa uma
outra questão sem resposta: qual é a Em seu argumento em prol da
base para alma tri- partite na República iy
Sócrates distingue as partes da alma

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fazendo apelo a casos familiares de 9).


conflito mental. A razão difere do
apetite porque uma pessoa que 6.2 Donde, se há ações opostas em X,
deseja beber pode deixar de o fazer as ações se devem a diferentes
por reflexão (presumivelmente sobre partes deX (436b9-cl).
a saúde) (439c5-d2). O apetite difere
do impulso porque o desejo de 6.3 Desejar A e querer não fazer A são
Leôncio de olhar os cadáveres venceu ações opostas (437bl-c6).
seu sentido de vergonha (439e6-
440a3). 6.4 Algumas pessoas querem beber,
mas também querem não beber
(439c2-3).

O impulso difere da razão porque 6.5 Portanto, a parte nelas (isto é, o


Ulisses enraivecido quis matar seus apetite) que quer beber é
servidores desleais, mas se controlou diferente da parte (isto é, a razão)
a si mesmo após refletir que seria que quer não beber (439d4-8).
ruim cometer um tal ato
autodestruidor (441b2-c2). É A premissa (6.1), que pode ser
interessante que o caso da bebida e o denominada de “o princípio de não
exemplo de Ulisses são usados ambos oposição”, é um truísmo lógico, um
no Fédon para apoiar a premissa (4.2) corolário do princípio de não
na refutação da teoria da alma como contradição. (Prova: se 01 e 02 são
afinação. No Fédon, todavia, a alma opostos, então uma coisa é 01
monádica opõe-se ao corpo e seus de- somente se não for 02. Porém, uma
sejos. Na República, o exemplo é coisa não pode ser 02 e não 02 (não
usado para ilustrar o conflito intemo à contradição). Donde uma coisa não
alma. A estrutura lógica do argumento pode ser Oj e 02.) Sócrates ilustra (6.2)
é ilustrada no caso da razão e do com uma pessoa que está em
apetite: movimento e parada ao mesmo
tempo, porque suas mãos estão
6.1 A mesma coisa não pode fazer ou movendo-se, ao passo que seus pés
sofrer coisas opostas no mesmo não (436c8-d2). Um problema
aspecto em relação ao mesmo aparente do argumento é que (6.3) é
objeto ao mesmo tempo (436b8- falso: querer beber e querer não

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beber não são opostos no sentido impulsiva valoriza a honra e a vitória;


requerido pelo argumento. Este a parte racional, o aprendizado e a
argumento parece confundir dois verdade (IX.581a3-blO, 586d-587a).
princípios distintos: uma pessoa não Platão compara a alma humana a um
pode ter e não ter uma pró-atitude à apinhado armento contendo um “ser
mesma coisa e uma pessoa não pode humano dentro de um ser humano”:
ter uma pró-atitude e uma contra- “uma fera de muitas cabeças”, com
atitude à mesma coisa. Por algumas cabeças mansas e outras
selvagens, e um leão, um aliado
que não pode quem segue uma dieta natural do homem (588e3-589b6).
ter uma pró-atitude e uma contra- Comentadores discordam sobre quão
atitude em relação a um doce? profundas vão as divisões no interior
Porém, Platão pode ter pensado que da alma tripartite. (Bobonich, 1994 e
(6.3) é verdadeiro, pois ele comparou Shields, 2001 sugerem interpretações
desejos e aversões a movimentos contrastantes.)
físicos, como puxar e empurrar (ver
437bl- c6). Se as volições podem ser Partindo da ideia que a virtude
entendidas deste modo, é mais envolve a harmonia das partes da
plausível ver o desejo e a aversão alma, Sócrates oferece uma prova da
como opostos genuínos (ver Stalley, imortalidade pelo mal natural na R.
1975 e Miller, 1995). X.608c-611a:

Tendo distinguido as partes da 7.1 Hido tem seu bem e seu mal
alma, Sócrates apresenta um natural.
princípio normativo, a regra da razão:
“não é apropriado à parte racional 7.2 Uma coisa só pode ser destruída
comandar, visto que é realmente pelo seu mal natural.
sábia e prevê em benefício de toda a
alma?” (441e4-5). A razão visa ao bem 7.3 O mal natural da alma é a injustiça
comum em que cada parte da alma e o vício.
tem seus próprios desejos e valores. A
parte apetitiva deseja comida, 7.4 A alma não pode ser destruída
bebida, sexo e, acima de tudo, di- pela injustiça e vício.
nheiro, que pode ser usado para
satisfazer outros apetites; a parte 7.5 Portanto, a alma é indestrutível e

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assim imortal. Pode haver um jeito, porém, de


reconciliar o argumento que a alma
A premissa (7.1) pressupõe que tem partes na República W com o
tudo tem uma função natural ou fim, argumento que a alma é imortal na
em termos República X. Dependerá do que se
entende ao dizer que a alma tem
“partes”. Há diferentes sentidos em
que uma coisa pode ser a parte de
da qual seu bem e mal natural podem outra: uma parte agregada (como um
ser definidos.Porém, mesmo que isso tijolo é uma parte de um muro de
venha a ser verdadeiro, por que supor tijolos) é diferente de uma parte
que (7.2) é verdadeiro? Parece que conceituai (como um arco é parte de
uma coisa pode ser destruída por um círculo). Em contraste com uma
outros agentes que seu mal natural. parte agregada, uma parte conceituai
Por exemplo, uma árvore pode ser depende do todo para suas condições
destruída não somente por de identidade e o todo não pode ser
envelhecimento, mas também pelo dissolvido em suas partes conceituais.
fogo, por insetos, lenhadores e assim De modo significativo, um dos
por diante. Muitos comentadores exemplos de Sócrates envolve partes
consideram este ar como um dos mais conceituais: um pião que gira se move
fracos em Platão (mas ver Brown, em relação à sua circunferência, mas
1997, para uma defesa). está parado em relação ao seu eixo
(436d4-e6). Se as três partes da alma
Pode também ser objetado que a são meramente partes conceituais, a
tese que a alma é imortal é alma tripartite pode ser imortal no
incompatível com a tese que ela tem sentido defendido na República X.
uma estrutura tripartite. O próprio (Shields, 2001 defende esta
Sócrates afiança que “não é fácil para interpretação.)
algo composto de muitas partes ser
imortal caso não tenha sido composto Sócrates sugere que a alma
do melhor modo, contudo é assim tripartite reflete o que é a alma
como agora a alma nos apareceu ser” quando está “corrompida pela
(611b5-7). O problema é que, se uma associação com o corpo” e não como
coisa tem partes, o que impede que ela é “em verdade” e em seu “estado
ela se desfaça? puro”. Ele apresenta o símile do deus

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marítimo Gláucon, cuja natureza carruagem é precedido de um aviso:


primária não pode mais ser “descrever o que a alma realmente é
discernida, dado que partes de seu requer uma explicação muito longa,
corpo quebraram ou foram cor- uma tarefa para um deus somente,
rompidas, estando ele repleto de mas dizer como se parece é possível
conchas, algas e pedras incrustadas na escala humana e toma menos
(611b9-d8). A República não resolve o tempo” (246a4-6). O símile, assim,
problema da verdadeira natureza da requer uma interpretação cuidadosa,
alma, “se ela tem muitas partes ou mas o ponto parece ser que “como se
uma somente e se e de que modo são parece a alma” consiste em ser de
postas juntas” (612a3-5). algum modo tripartite.

A questão é difícil de ser resolvida O Timeu, em contraste, distingue en-


mesmo quando se olha para outros tre uma parte imortal da alma, a
diálogos que mencionam a alma razão, que está localizada na alma, e
tripartite. No Fedro, a alma imortal as duas almas mortais, o impulso e o
parece ser essencialmente tripartite apetite, que estão localizadas no
quando é comparada à união natural peito e no abdômen, respec-
dos cavalos alados e seu condutor. Os tivamente (69a-70b). A parte
deuses também têm condutores e apetitiva é totalmente vácua de
cavalos, mas ambos os cavalos dos razão, embora participe da sensação,
deuses são bons, ao passo que os prazer, dor e desejos (77b5-6). A
homens têm um cavalo nobre (o parte racional é vista como divina.
impulso) e um que é o oposto “Na media em que a natureza
(apetite) (246a6-b4). As almas humana pode participar da
humanas são originalmente capazes imortalidade, não [se] pode de modo
de apreender a Realidade (isto é, as algum malograr em alcançar isso: cui-
Formas), mas, por algum acidente, dando constantemente de sua parte
elas tomam o fardo do esquecimento divina,
e imoralidade, perdem suas asas e
caem à Terra, onde se ligam a corpos
e formam os seres vivos (248c5-8; cf.
246b7-c6). No mito do Fedro, a alma é mantendo bem ordenado o impulso
tripartite antes de cair do céu e entrar que vive dentro dele, ele deve ser
no corpo. De fato, o símile da supremamente feliz” (90c2-6). A

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implicação parece ser que a alma (245c5-246a2) que a alma é imortal.


imortal é monádica e as partes (A reconstrução a seguir deve em
mortais são acréscimos que resultam muito a Robinson, 1971 e Bett, 1986.)
da encarnação da razão. Isso põe
questões: pode a explicação da alma 8.1 O que sempre está em
no Timeu ser reconciliado com a do movimento é imortal.
Fedro? Se não for possível, é um deles
mais defensável ou mais 8.2 Somente o que se move a si
provavelmente preferido por Platão? mesmo nunca cessa de se
(ver Guthrie, 1957 para a discussão). movimentar, visto não deixar de
ser o que é.
A ALMA COMO
PRINCÍPIO SEMOVENTE 8.3 Um semovente é a fonte de
movimento em tudo.
A concepção da alma como
semovente aparece no Fedro e é um 8.4 Portanto, uma fonte semovente
tema importante nos diálogos tardios não é gerada.
como o Timeu e as Leis. A alma é
caracterizada como semovente e tri- 8.5 Já que um semovente não é
partite no Fedro e no Timeu, mas nas gerado, não pode ser destruído.
Leis a alma tripartite é posta de lado,
se é que não é inteiramente 8.6 Portanto, um semovente é
suprimida. O Timeu e as Leis também indestrutível.
introduzem a noção de uma Alma-do-
Mundo semovente, que ocupa um 8.7 O que se move a si mesmo é
papel central nas suas teorias essencialmente uma alma.
cosmológicas.
8.8 Portanto, uma alma é
Sócrates menciona um necessariamente não gerada e
argumento do automovimento no imortal.
Fedro. Aqui, “o que se move a si
mesmo” é dito ser a essência (ou- sia), A conclusão intermediária (8.6)
definição (logos) e natureza (phusis) está evidentemente baseada em dois
da alma. Esta definição aparece ao subargu- mentos distintos. O primeiro
final de uma prova compacta e difícil subargumen- to, usando (8.1) e (8.2)

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como premissas, envolve a ideia que, 8.5 Portanto, já que um semovente


porque um semovente está não é gerado, ele não pode ser
essencialmente em movimento, destruído.
nunca pode cessar de estar em
movimento; donde ele se move para Observe a similaridade entre (8.54) e
sempre. Isso parece vulnerável a uma (1.3), a premissa tácita do argumento
objeção semelhante àquela contra o do dclo no Fédon. (8.54) é uma tese
argumento final do Fédon. Se algo é empírica não defendida que o cosmos
essencialmente um semovente, então como um todo nunca virá a estar
necessariamente se segue que ele parado. Outro problema é que (8.53)
está “sempre em movimento” será falso se um outro semovente
somente no sentido em que está se estiver disponível para manter as
movendo toda vez que existir, não no coisas em movimento. Um modo de
sentido em que sempre existe. O evitar esta dificuldade consiste em
segundo subargumento se baseia em negar que a conclusão é que todo
(8.3) a (8.5). A premissa crucial (8.5) é semovente é indestrutível. Esta é uma
um lema para o qual uma prova interpretação possível porque o
separada (245d3-e2) é fornecida: argumento é precedido de uma
declaração, “toda alma é imortal”
8.51 l\ido tem seu início em uma (245c5), que não tem artigo definido
fonte. antes de psuchê em grego, permitindo

8.52 Se um semovente fosse


destruído, nada poderia fazê-lo
recomeçar [já que não é gerado pelo menos duas leituras: “toda alma
por nada mais]. (sentido coletivo) é imortal” ou “cada
alma (sentido distributivo) é imortal”.
8.53 Se esse semovente não puder Contudo, a primeira leitura tomaria a
recomeçar, o universo pararia de conclusão final (8.8) menos
estar em movimento e nunca interessante. Não estabeleceria que
recomeçaria. cada alma individual (p. ex., a de
Sócrates) é imortal, mas somente que
8.54 [O universo não vai parar de a alma, em um sentido coletivo, é
estar em movimento e não imortal.
recomeçar.] (premissa tácita)

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Apesar dos problemas com a coisas, mas não a si mesmo, e


prova, a definição da alma como outro tipo tem a capacidade de
semovente é uma contribuição movimento a si mesmo e as outras
significativa (ver Skemp, 1967 e coisas (894b8-cl).
Demos, 1978). Um ser vivo é uma
combinação de um corpo com uma 9.3 Em uma série na qual uma coisa
alma. É graças a esta última que o move uma outra, que por sua vez
animal parece mover a si mesmo. A move uma outra e assim por
presença da alma como um poder de diante, a série inteira deve ter uma
automovimento explica como os seres fonte que só pode ter movimento
vivos diferem dos corpos inanimados autogerado (894e4-895a3).
(246c4-6). O Fedro lança assim valiosa
luz no portador especial de vida do 9.4 Se de algum modo o universo
Fédon. inteiro viesse a estar em repouso,
o automovimento é o único tipo
As Leis contêm também um de movimento que poderia ser
argumento que a alma é anterior ao primeiro nele (895a6-b3).
corpo. O Estrangeiro de Atenas se dá
por tarefa refutar as pessoas não 9.5 Portanto, o movimento
religiosas que minam a lei e a autogerado é a fonte original de
moralidade ao defenderem que os todos os outros movimentos
deuses não existem ou, se existirem, (895b3-7).
não se preocupam com os problemas
humanos ou são facilmente 9.6 Um objeto que move a si mesmo
influenciáveis por ritos e sacrifícios. tem vida (895c7-8).
Ele avança no seguinte argumento em
prol da existência dos deuses, que são 9.7 Um objeto com alma tem vida
identificados a almas que controlam o (895cll- 12).
cosmos.
9.8 A alma é definida como “um movi-
9.1 Algumas coisas se movem, outras mento capaz de mover a si
são sem movimento (893cl). mesmo” (896a3-4).

9.2 Um tipo de movimento tem a 9.9 Portanto, a alma é a fonte original


capacidade de mover outras da geração e movimento de todas

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as coisas passadas, presentes e Quanto à prova que a alma é


futuras, bem como de seus anterior ao corpo, os passos (9.6)-
contrários (896a5-8). (9.8) explicitam a sugestão do Fedro
que o que torna a alma um portador
9.10Portanto, a alma é anterior especial é sua capacidade de
(causalmen- te) ao corpo, isto é, a automovimento. O ponto de (9.8) é
alma comanda naturalmente e o que (9.7) explica (9.6). As premissas
corpo é naturalmente sujeito (9.3) e
(896bl0-c3).
(9.4) oferecem razões
O Estrangeiro de Atenas continua independentes para
declarando que a alma comanda tudo,
inclu- sivo o céu, por meio de seus (9.5) , que um semovente é a
movimentos próprios, que são primeira causa de todo movimento.
“querer, reflexão, diligência, (9.3) argumenta que cada sequência
conselho, opinião falsa e verdadeira, de movimentos tem uma primeira
alegria e pesar, júbilo e medo, amor e causa, a saber, um semovente. Uma
ódio” (896e8-897a3). Usando estes e objeção óbvia é que pode não haver
os movimentos secundários dos um primeiro movimento; cada
corpos, a alma é capaz de aliar-se à movimento
inteligência divina (nous) e produzir
um resultado com sucesso, ou aliar-se
à ignorância (anoia) e produzir o
oposto. Que o movimento seja na série é causado por um movimento
ordenado (isto é, circular) ou anterior ad infinitum. O argumento
desordenado depende se é a alma supõe que não pode haver um
racional ou não racional que está no regresso causai infinito, uma
comando (897a-898c). O Estrangeiro suposição que precisa ser provada. E
de Atenas não fornece propriamente mesmo que um regresso infinito seja
um argumento para estas últimas descartado, por que a primeira causa
teses. Ele parece tomar por suposto tem de ser um semovente? A
que as almas cósmicas realizarão os premissa (9.2) menciona somente
mesmos tipos de ação e têm os duas opções, com o semovente como
mesmos tipos de atributos que as a única escolha razoável. Porém, pode
almas humanas. haver outras possibilidades; por

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exemplo, um motor imóvel, como das almas humanas, suas operações e


Aristóteles posteriormente sua relação com o corpo, bem como
argumentou. Objeções similares oferece também uma tentativa
podem ser feitas para (9.4). Se engenhosa, mas causadora de
aceitarmos o experimento mental que perplexidade, para explicar a
o universo pode de um certo modo vir capacidade racional em termos de
a ficar em repouso, é um semovente a automovimento (36c-37d).
única coisa que pode o repor em
movimento? Poderia um motor Porém, o Timeu contém também
imóvel fazer o trabalho, ou poderiam teses questionáveis, que são difíceis
as coisas simplesmente começar a de conciliar com os outros diálogos.
mover-se espontaneamente? Especialmente problemática é a
declaração que as almas foram feitas
O Timeu argumenta de modo pelo Demiurgo, o que entra em confli-
similar. Timeu relata uma “história to com a tese do Fédon e do Fedro que
provável” sobre como o cosmos foi a alma
criado por um deus inteligente, o
Demiurgo, que se serviu das Formas não é gerada. O Demiurgo do Timeu
como modelo (paradeigma) (ver o modela a Alma-do-Mundo e as outras
capítulo O Papel da Cosmologia na almas como uma mistura de Ser
Filosofia de Platão). Ele criou também divisível e indivisível, Igualdade e
uma Alma-do-Mundo, porque “no Diferença (34c-37c). As partes
reino das coisas naturalmente visíveis diferentes das almas humanas são
nenhuma coisa não inteligente mesmo devidas a produtores
poderia em geral ser melhor do que diferentes: a parte racional somente é
algo que possui inteligência em geral” feita pelo Demiurgo, as duas partes
e “é impossível que algo possua não racionais são deixadas para os
inteligência à parte da alma. Guiado deuses inferiores (41c-d). Isso está em
por esta reflexão, ele pôs inteligência disparidade com a descrição do Fedro
na alma e a alma no corpo, da alma como tripartite antes que caia
construindo deste modo o universo” na Terra e seja encarnada. Também
(30bl-5; cf. 34b3-4). Timeu descreve difícil é a declaração no Timeu que o
também a alma como semovente Demiurgo “pegou tudo o que era
(37b5, 46d5-e2, 89al-3). O Timeu visível – não em repouso, mas em
fornece detalhes interessantes acerca movimento discordante e

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desordenado – e os trouxe de um questões importantes permanecem.


estado de desordem a um de ordem” Podem as várias perspectivas dos
(30a3-5; cf. 47e-53c). Essa indicação diferentes diálogos ser costurados
que o movimento desordenado juntos em uma psicologia coerente?
existia antes que entrasse em cena o Podem os argumentos de Platão a
Demiurgo, similar a uma alma, parece respeito da natureza e da
estar em conflito com os argumentos imortalidade da alma ser defendidos
das Leis e do Fedro que todo contra o tipo de objeções antes
movimento é devido à alma. Um
modo de evitar este problema
consistiria em responsabilizar uma
alma irracional, em oposição ao mencionado? Quão confiáveis são os
Demiurgo racional, pelo movimento vários mitos platônicos,
desordenado e pelo mal. Todavia, não especialmente quando sugerem
parece haver nenhuma evidência para sobrevivência pessoal à morte e
esta interpretação no Timeu e muito reencamação? É o mito um
pouco em outros lugares. É difícil suplemento indispensável para a
reconciliar o Timeu com os outros filosofia ou podem as histórias ser
diálogos neste ponto. (Ver Mohr, substituídas por argumentos
1980 para maior discussão.) Estas racionais? Qual é a resposta final de
dificuldades estão ligadas a um Platão acerca da natureza e estrutura
problema mais geral de como da alma? A alma semovente é uma
interpretar o Timeu: deve a “história importante invenção conceituai, mas
provável” da geração do cosmos ser é sua palavra final? Aceitando que o
entendida literal ou automovimento seja uma capacidade
metaforicamente? O Timeu parece da alma, que tipo de entidade é ela
contradizer os outros diálogos mais que tem essa capacidade? Alguns dos
flagrantemente caso suas teses seguidores de Platão pensaram ter
devam ser vistas como literalmente encontrado a resposta – a alma é um
verdadeiras. número semovente –, mas Aristóteles
se queixou que esta teoria é
CONCLUSÃO incoerente (.de An. I.4.408b32-3). Se
essa não é a palavra final de Platão,
Os contornos da alma platônica estão qual ela é?
surgindo à vista. Porém, muitas

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NOTA Wagner (ed.) (2001) Essays on Plato’s


Psychology (pp. 297-322). Lanham,
As traduções de Platão foram Md.: Lexington.
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REFERÊNCIAS E LEITURA Reimp. em E. Wagner (ed.) (2001)
COMPLEMENTAR Essays

Bett, R. (1986). The argument for onPlato’sPsychology (pp. 91-114).


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Repr. in E. Wagner (ed.) (2001) Essays the psyche as a self-moving motion.
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Lanham, Md.: Lexing- ton. pp. 133-45.

Bobonich, C. (1994). Akrasia and Frede, D. (1978). The final proof of the
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Hugh H. Benson 458 de 711


Hugh H. PLATÃO
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Ancient Greek Philosophy, vol. 2 (pp. embora o Fedro também contribua de


217-32). Albany, NY: State University modo significativo às suas teses. Em
of New York Press. Reimpr. em E. ambas as obras, Sócrates está de dois
Wagner (ed.) (2001) Essays on modos no centro da cena como o
filósofo por excelência: primeiro,
Plato’s Psychology (pp. 51-67). como um amante da sabedoria
Lanham, Md.: Lexington. (sophia) e discussão (logos); segundo,
como ele próprio, um inversor e
Wagner, E. (2000). Supervenience and perturbador das normas eróticas. As
the thesis that the soul is a Harmonia. teses de Platão sobre o amor são uma
Southwest Philosophy Review 16, pp. meditação sobre Sócrates e sobre o
1-20. Reimpr. em E. Wagner (ed.) poder que suas discussões filosóficas
(2001) Essays on Plato’s Psychology possuem de arrebatar, obcecar e
(pp. 69-88). Lanham, Md.: Lexington. educar.

Weller, C. (1995). Fallacies in the Este capítulo contém seis seções:


Phaedo again. Archivfür Geschichte Sócrates e a Arte do Amor; Sócrates e
derPhilosophie 77, pp. 121-34. Reimpr a Paiderastia Ateniense; Amando
em E. Wagner (ed.) (2001) Essays on Sócrates; O Amor e a Ascensão ao
Plato’s Psychology (pp. 35-49). Belo; A Arte e a Psicologia do Amor
Lanham, Md.: Lexington. Explicadas; Escrevendo sobre o Amor.

A primeira seção trata do Lísis e


do Banquete; as três seguintes têm
somente o Banquete como base
primeira. A quinta seção lida com o
20 Fedro; a última, com a parte final do
Banquete e com partes do Íon,
Eros e amizade em Platão Protágoras e Leis. As seções não são,
porém, estanques e devem ser lidas
C. D. C. REEVE em sequência. Muitos estudiosos
concordam que a ordem de
Platão discute o amor (erôs) e a composição dos diálogos “eróticos” é
amizade (philia) principalmente em o Lísis, Banquete, Fedro, embora
dois diálogos, o Lísis e o Banquete, alguns coloquem o Fedro antes do

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Banquete. Porém, ele não conhece a arte do


amor e, assim, não sabe como falar
SÓCRATES E A ARTE DO AMOR com Lísis, o rapaz de quem está
enamorado. O que Hipotales faz é
“A única coisa que digo que sei”, nos declamar elogios a Lísis e isso,
diz Sócrates no Banquete, “é a arte do argumenta Sócrates, jamais faria um
amor (ta amante experiente, pois, se seu
galanteio tem sucesso, “tudo o que
erôtika)” (177d7-8). Tomada você disse e declamou passa a ser um
literalmente, essa é uma tese elogio a você mesmo como vitorioso
inacreditável. Devemos realmente ao ter conquistado o namorado”;
acreditar que quem declara no jul- porém, se fracassa, então “quanto
gamento que decide sobre sua vida mais você elogiar sua beleza e a
que sabe que não é sábio “nem de um bondade, tanto mais você parecerá
modo grande nem pequeno” (Ap. ter perdido e tanto mais você será
21b4-5) conhece a arte do amor? (ver ridicularizado”. Consequentemente,
o capítulo A Ignorância Socrático). De “quem é sábio na arte do amor (ta
fato, a tese é um jogo de palavras não erôtika.) não elogia seu amado até o
trivial facilitado pelo fato que o ter: ele teme
substantivo erôs (“amor”) e o verbo
erôtan (“perguntar”) parecem estar
conectados etimologicamente, uma
conexão explicitamente explorada no como o futuro se apresentará”
Crátilo (398c5-e5). Sócrates conhece (205e2- 206a2). Convencido,
a arte do amor na medida em que – Hipotales pede a Sócrates que lhe
mas somente na medida em que – diga “o que se deve dizer ou fazer
sabe como fazer questões, como para fazer com que seu namorado em
conversar elenticamente (ver o vista o ame” (206cl-3). Como no
capítulo O Elenchus Socrático). Banquete, Sócrates é
surpreendentemente direto: “se você
Quão longe isso vai, descobrimos aceitar que ele converse comigo, po-
no Lísis, onde Sócrates sustenta uma derei fazer-lhe uma demonstração de
tese similar. Hipotales, como como levar adiante uma conversa
Sócrates, ama os belos rapazes e as com ele” (c4-6, adaptado da tradução
discussões filosóficas (203b6- 204a3). de Lombardo). O que se segue é um

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exame elêntico de Lísis. As lições de Assim, mostrando a Lísis que ele


Sócrates sobre o amor, podemos in- ainda não é sábio, levando-o a
ferir, são lições elênticas: lições sobre reconhecer que ele não sabe,
como perguntar e responder Sócrates o põe no caminho da fi-
questões. losofia (cf. Sph. 231b3-8).

Ao final do exame, Sócrates O elenchus é, então, importante


qualifica o que realizou: “é assim que para o amor porque cria uma fome
você deve falar com seus namorados, pela sabedoria, uma fome que ele
Hipotales, tornando-os humildes e próprio não pode satisfazer. Assim,
contendo suas velas, ao invés de mesmo que Lísis seja já em parte
envaidecê-los e mimá-los, como você filósofo quando encontra Sócrates e
faz” (210e2-5). Soa como simples recebe dele um raro louvor – “era um
reprimenda, dito deste modo, mas, prazer seu amor da sabedoria
no contexto geral do Lísis, em que o (philosophia)’’ (213d6)
amor é um desejo e o desejo é um
vazio, é mais do que isso. É um passo -, ele, também, fica em estado de
em direção à criação do amante perplexidade (aporia). Ele está
canônico, o filósofo: consciente de seu desejo graças a
Sócrates, mas o desejo ele próprio
Os que já são sábios não mais permanece insatisfeito. Sócrates
amam o saber (philosophein), pode ser o mestre dos preliminares,
sejam eles deuses ou homens. de excitar o desejo e pode nesta
Nem o fazem aqueles que são medida ser um mestre da arte do
tão ignorantes que são maus, amor, mas quando se trata de
pois nenhuma pessoa má e satisfazer o desejo, ele é um fracasso.
estúpida ama a sabedoria. No Clitofonte – talvez espúrio, mas
Sobram somente os que têm podendo ser de Platão esta crítica é
esta coisa ruim, a ignorância, lançada no rosto de Sócrates e fica
mas que ainda não se tornaram sem resposta. Se ainda não
ignorantes e estúpidos por estivermos persuadidos a perseguir a
causa dela. Eles estão virtude, Clitofonte alega, Sócrates
conscientes de não saber o que “nos acordará de nosso sono” (408c3-
não sabem. (218a2-bl, adaptado 4); porém, se estivermos persuadidos
da tradução de Lombardo) e quisermos saber agora o que é a

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virtude e, em particular, que benefício qual este último deveria aprender a


ela aporta a quem a possui, ele “é virtude. E este conflito potencial,
bem um estorvo para alcançar a como sabemos, redundou em trágicas
completa virtude e se tornar feliz” consequências. Em 399 a.C. Sócrates
(410e7-8). foi considerado culpado de cor-
romper os jovens de Atenas e
A conexão, que redunda em uma condenado
identificação, entre a arte da
discussão e a arte de amar rapazes
explorada no Lísis nos permite ver por
que as explorações do próprio Platão à morte (ver o capítulo A Vida de
sobre o amor invariavelmente envol- Platão de Atenas). O efeito em Platão
vem também uma exploração da é palpável em suas obras,
discussão: fala sobre o amor no Lísis, transformando muitas delas em
elaboração de discursos e drama defesas – nem sempre não críticas –
simpósicos no Banquete, oratória e de Sócrates e do que ele representava
retórica no Fedro. Amar corretamente para os jovens com quem conviveu.
os rapazes consiste, afinal, em – ou Seu relato no Banquete de uma
pelo em parte – simplesmente saber destas relações, a relação com o
como falar com eles, como persuadi- brilhante e belo Alcibíades, é um caso
los a amá-lo em troca. iluminador.

SÓCRATES E A Alcibíades estava tão enamorado


PAIDERASTIA de Sócrates – “era evidente”, nos diz
ATENIENSE o Banquete (222cl-3) – que, quando
instado a falar sobre o amor, ele falou
Como um homem que ama rapazes de seu amado. Nada de teorias gerais
em um modo idiossincrático, porque sobre o amor para ele, somente a
elêntico, Sócrates está em conflito história vividamente rememorada
potencial com as normas de uma dos tempos que passou com um
instituição social ateniense peculiar, a homem tão extraordinário que jamais
da paiderastia: a relação socialmente houve alguém como ele: um homem
regulamentada entre um ateniense tão poderosamente erótico que virou
masculino mais velho (erastês) e um o mundo convencional do amor de
jovem (erômenos, pais), por meio da cabeça para baixo ao “parecer ser um

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amante (erastês), quando realmente do amor de engendrar imagens


se punha ao invés como o amado ilusórias do belo é tanto parte
(pais)” (222b34). daquela

As histórias de todos os outros verdade sobre o amor quanto o é


membros do Banquete são também seu poder de levar ao Belo-em-si.
histórias de seus amores particulares Adiante, aprenderemos por quê.
escamoteadas como histórias do
amor, histórias sobre o que eles Histórias de amor, por mais
acham belo escamoteadas como inadequadas que sejam como teorias
histórias sobre o que é belo. Para do amor, são mesmo assim histórias,
Fedro e Pausânias, a imagem logoi, itens que admitem análise.
canônica do verdadeiro amor – a Porém, porque são manifestações de
história de amor quintessencial – nossos amores, não meras peças frias
apresenta o tipo correto de amante de teorização, nos investimos –
masculino mais velho e o tipo correto nossos mais profundos sentimentos –
de rapaz amado. Para Erixímaco, a nelas. Elas são portanto perfeitas,
imagem do verdadeiro amor está pelo menos de um modo, para
pintada nas linguagens de sua amada satisfazer a condição da sinceridade
medicina e de todas as outras artes e socrática, o requerimento que você
ciências; para Aristófanes, está pinta- diga aquilo em que acredita (Cri. 49cll-
da na linguagem da comédia; para d2; Prt. 331c4-dl). Sob o olhar frio do
Agatão, nos tons mais elevados da olho elêntico, passam pelo teste da
tragédia. Em um modo de que estes consistência com outras crenças que
homens não estão conscientes, mas jazem logo ao lado do âmbito
que Platão conhece, suas histórias de controlador e frequentemente de-
amor são elas próprias manifestações turpador do amor. Sob tal teste, um
de seus amores e das inversões ou amante pode ser forçado a dizer, com
perversões nelas expressas. Pensam Agatão, que “não sabia sobre o que
que suas histórias são a verdade estava falando naquela história”
sobre o amor, mas são realmente (201bll-12). O amor que se exprimiu
ilusões do amor, “imagens”, como em sua história de amor encontra
mais tarde Diotima as denominará. então um outro amor: seu desejo
Como tais, todavia, são partes racional pela consistência e
essenciais da verdade, pois o poder inteligibilidade, seu desejo de ser

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capaz de dizer e viver uma história (218b8-e5), pois Alcibíades não tenta
coerente, seu desejo, para falar de ganhar o amor de Sócrates
outro modo, de não continuamente empreendendo a difícil tarefa de
se frustrar e estar em conflito porque autotransformação que é necessária
está reiteradamen- te tentando viver para se tornar mais virtuoso e, assim,
uma história incoerente de amor. uma pessoa mais verdadeiramente
bela e amável. Ao invés disso, ele
Na história de amor de segue o caminho fácil e bem
Alcibíades, em particular, estes dois conhecido de oferecer os atrativos
desejos estão na cena de modo auto físicos que já possui, os que lhe
consciente: “Sócrates é o único fizeram ganhar a aprovação da massa.
homem no mundo que me fez sentir Quando estes fracassam, é à massa
vergonha... sei muito bem que não (na forma dos festivos báqui- cos que
posso provar que ele está errado encontramos no final do Banquete)
quando me diz o que deveria fazer: que ele retomará regredindo, nunca
todavia, assim que deixo de estar ao tendo realmente conseguido dar a
seu lado, volto aos meus modos guinada.
antigos: me afundo no meu desejo de
agradar a massa” (216c8-b5, trad. de Que nunca tenha dado a guinada
Nehamas e Woodruff). Mesmo esta é tornado ainda mais vivido em uma
consciência do conflito, tal como das passagens mais intrigantes do
manifestada aqui, não é, todavia, Banquete. Sócrates, diz Alcibíades, é
garantia de uma solução satisfatória,
pois o novo amor – o que parece dar irônico (eirôneuomenos) e passa
coerência, satisfação e alívio da a vida inteira se divertindo com
vergonha – pode se revelar como as pessoas. Porém, não sei se
sendo a antiga frustração disfarçada. alguém mais já viu as imagens
dentro dele (ta entos agalmatá)
A famosa tentativa fracassada de quando está sério e aberto, mas
Alcibíades em seduzir Sócrates mostra eu as vi uma vez e pensei que
que eram tão divinas e áureas, tão
magnificamente belas que eu
simplesmente tinha de fazer
tudo o que Sócrates me dizia.
isso ocorre também em seu caso (216e4-217a2)

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Para os que pensam que Sócrates cujo objeto é a alma e cujo fim
é uma personagem profundamente consiste em instilar a virtude no
irônica, é um momento homem mais jovem, e o mau amor
surpreendente, no qual Sócrates é Pandêmio, cujo objeto é o corpo e
visto sem a máscara de sua burlesca cujo fim é o prazer sexual para o
modéstia. Infelizmente, como ocorre amante mais velho (180c3-e3). O que
muitas vezes nos casos de amor, causa a divisão é a necessidade que
estamos lidando com fantasia. O que sente o amor Pandêmio de se
Alcibíades pensa que vê em Sócrates mascarar como amor Urânio a fim de
são as virtudes embrionárias, que – preservar a ilusão que a participação
como espermatozóides na do jovem nele é compatível com sua
embriologia que o Banquete condição de um futuro cidadão. O
implicitamente adota quando fala do jovem não pode, então, estar
amante como prenhe e à busca de um motivado por um desejo repreensível
belo rapaz em quem gerar um rebento de adotar o papel passivo, servil,
– precisam somente ser ejaculadas no feminino de buscar prazer. Ao invés
receptáculo correto para se disso, um outro motivo tem de ser
desenvolver em suas formas maduras inventado para ele: a presteza em
(209a5-c2). Sexo pode levar à virtude, aceitar “a escravidão com vistas à
em outras palavras, sem a virtude” (184c2-3).
necessidade de trabalho duro. Assim
que a ilusão é desfrutada, portanto, O principal custo de preservar
ela dá à luz não a uma tentativa esta divisão, todavia, é que a relação
realista de adquirir a virtude, mas à sexual centrada no corpo do homem
fantasia de sedução sexual mais velho deve ser escamoteada em
mencionada antes. uma relação de um tipo mais
respeitável. A reminiscência-
As origens desta fantasia – descrição posterior que Alcibíades faz
embora, sem dúvida, em parte das imagens internas de Sócrates
pessoal – são predominantemente mostra um Alcibíades que sucumbe à
sociais. É a complexa ideologia da dupla visão que resulta
paiderastia ateniense que deu forma inevitavelmente:
aos desejos de Alcibíades, pois,
segundo ela, o amor é realmente Se você escutar seus
“duas coisas”: um bom amor Urânio, argumentos, eles vão primeiro

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lhe parecer como totalmente ri- dito sobre o amor por Sócrates e
dículos; eles estão revestidos de pelos outros na casa de Agatão. Ele
palavras tão rudes como as escutou um relato confuso. Ele quer
peles usadas pelos mais agora que Apolodoro lhe diga o que
vulgares sátiros. Ele está sempre realmente foi dito. Apolodoro,
falando de burros de carga, porém, tampouco estava presente.
ferreiros, sapateiros ou Ele tem um relato de segunda-mão,
curtidores... Porém, se os por meio de Aristodemo. Todos estes
argumentos são abertos e se homens, que deveriam estar à caça de
olha para eles desde dentro, se rapazes, são apresentados como tão
verá primeiro que são os únicos absorvidos com Sócrates e suas
argumentos que têm algum conversas que um deles – Apolodoro
sentido e, depois, que contêm – faz questão de saber exatamente o
dentro de si multidões de que Sócrates faz e diz a cada dia
imagens de virtude (172c4-6), ao passo que outro –
[agalmat’aretês) Aristodemo – está tão avançado em
completamente divinas. (221el- sua paixão por Sócrates que anda de
222a4, parcialmente adaptado pés descalços, como seu amado
da tradução de Nehamas e (173bl-4). Uma razão para este
Woodruff) cenário complexo consiste em nos
fazer ver o impacto inversor de
Para Alcibíades, então, o corpo Sócrates, e portanto da filosofia, nas
de Sócrates é idêntico às suas normas da paide- rastia ateniense.
palavras; as Uma outra é mais sutil. O amor de
Alcibíades por Sócrates se centra nas
belas imagens de virtude que pensa
ver jazendo por baixo dessas
virtudes que estão nele estão nelas; “palavras tão rudes como as peles
falar de filosofia é ter relação sexual, usadas pelos mais vulgares sátiros”,
e vice-versa. que são o análogo para ele do corpo
de Sócrates, feio e similar ao de um
AMANDO SÓCRATES sátiro. (215b3-4). O amor de
Aristodemo por Sócrates, em
No início do Banquete, um homem contraste, parece centrar-se em seu
não identificado quer saber o que foi exterior rude, de modo que

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Aristodemo é um Alcibíades invertido, agora tornou a complexidade de


cujo nome mesmo o associa com a Sócrates – seu interior belo e seu
deusa do amor de Pausânias ligada ao exterior feio ou vice-versa – tão
corpo, Pandêmos. Amar Sócrates, dramaticamente presentes ao nosso
podemos inferir, é uma tarefa olhar quanto para o olhar de Agatão e
complexa, já que o que cada um ama de seus outros convivas.
ao amá-lo está ligado aos seus desejos
peculiares e aos limites que eles Sócrates foi convidado ao
impõem sobre quão similar a Sócrates Banquete de Agatão (do “Bom”:
pode ele se tomar. ‘Agathon” significa bom em grego).
Ele pensa, erroneamente, que
Nas próximas cenas do diálogo, Aristodemo não foi convidado, mas se
este ponto é trabalhado. Quando oferece a levá-lo consigo. A resposta
Aristodemo o encontra, Sócrates de Aristodemo – “farei o que você
acabou de ter tomado um banho e disser” (174b2) – o conecta
posto suas sandálias de passeio, novamente a Alcibíades:
“ambos acontecimentos pouco “simplesmente tinha de fazer tudo o
usuais” (174a3-4). Aristodemo que Sócrates me dizia” (217al-2).
observa isso porque “Venha então comigo”, responde
Sócrates, “e mostraremos que o
é naturalmente sensível a estes provérbio está errado: a verdade é
aspectos de Sócrates que ele, talvez que bons homens vão sem convite ao
por causa de seu tamanho e Banquete do Bom” (174b4-5, trad. de
aparência (173b2), escolheu imitar. A Nehamas e Woodruff).1 Aristodemo
razão de abandonar seus hábitos não está convencido. “Sócrates, temo
costumeiros, explica Sócrates, é que que... meu caso é o de um homem
está indo ao Banquete de Agatão e inferior chegando sem convite à mesa
quer “a beleza indo à beleza” (174a9). de um homem sábio” (174c5-7). A
Estranhamente, isso não o impede de conhecida triunidade socrática – bom,
levar Aristodemo – sem banho, sem belo, sábio – está agora em cena.
sandálias, sem beleza. Porém, o que é
estranho do ponto de vista das moti- A despeito destes pudores,
vações autoatribuídas de Sócrates Aristodemo aceita acompanhar
não é de modo algum estranho do Sócrates, mas com uma ressalva
ponto de vista das de Platão. Ele importante: “pense na defesa que

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você fará (apologêsê(i)) por me trazer discurso de defesa na Apologia. Lá ele


junto, pois não admitirei ter vindo está “surpreso (ethaumasay’ pelo que
sem convite, direi que você me dizem seus acusadores (Ap. 17a4-5);
trouxe!” (174c7-dl). É esta ressalva aqui, a fala de Agatão é
que dá inicio ao próximo in- “surpreendente (thaumasta)” (Smp.
compreensível episódio. Ele começa 198b4). Lá, ele não é um orador hábil
quando Sócrates responde citando (deinos), a menos que a habilidade
em parte Homero: “nos decidiremos consista em dizer a verdade (Ap. 17a4-
sobre o que dizer ‘quando dois fazem b6). Aqui, ele não é hábil na arte de
juntos o caminho’” (174d2-3). O que amar, a menos que encômios a Erôs
ele não diz é o que ocorre quando impliquem dizer a verdade sobre ele
duas pessoas de fato fazem juntas o (Smp. 198c5-199a6). Lá, “o que os
caminho, a saber, “um dos dois sabe à jurados escutarão será dito intem-
frente do pestivamente (epituchousin) nas
palavras que vierem à mente” (Ap.
17cl-2); aqui, os membros do
Banquete virão a “escutar a verdade
outro” (R. X.24). À supressão desta dita sobre Erôs em termos e ordem
sentença corresponde a supressão de como vierem intempestivamente a
uma sentença do próprio Platão, pois mim (tuchê(i) epelthousa)” (Smp.
o que ocorreu no caminho à casa de 199b3-5). O que ocupa Sócrates ao
Agatão é que “Sócrates começou a longo do caminho à casa de Agatão,
pensar sobre algo, perdeu-se a si podemos inferir, não culmina no
mesmo em pensamentos e passou a conhecimento de que Homero é tão
ficar para trás” (174d4-7, trad. de confiante que ele ou Aristodemo
Nehamas e Woodruff). Contudo, terão, mas na consciência aporética
nunca nos é dito sobre o que pensava: da ausência de conhecimento que
o que era que um sabia à frente do distingue a “sabedoria humana” de
outro. Sócrates da “sabedoria mais do que
humana” reivindicada pelos sofistas
Que a correspondência entre (Ap. 20c4-e8).
estas duas elisões é significativa fica
evidente pelos paralelos entre o O resultado de Sócrates perder-
preâmbulo da fala de Sócrates em se em pensamentos no caminho e
elogio a Erôs e o que faz ao seu terminar barrado no portal do vizinho

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de Agatão é que Aristodemo, como prêmio à sua tragédia (175e4-7).


um bom paracleto socrá- tico, chega
bem antes de Sócrates à casa de O AMOR E A ASCENSÃO AO BELO
Agatão. Quando Sócrates finalmente
chega própria persona, Agatão diz: Sócrates é hábil em certas partes da
“Sócrates, venha reclinar-se ao meu arte de amar, mas não consegue levar
lado. Quem sabe, se tocar em você, seus amados até o fim. Ele claramente
posso pegar um pouco da sabedoria necessita de mais instrução na arte de
que lhe foi dada no portal de amar. No Banquete, isso lhe é trazido
por Diotima, que ele descreve como
meu vizinho” (175c7-dl, trad. “quem me ensinou a arte de amar”
Nehamas e Woodruff). Sócrates (201d5). E o que ela lhe ensina, em
responde com um símile de suma, é o platonismo. Em outras
conotação obviamente sexual, o que palavras, o que o elenchus precisa, se
reconhece, de modo a, mais tarde, deve satisfazer antes que frustrar o
novamente inverter as normas amor, é da teoria das Formas
pederásticas: “se somente a platônicas. O que Sócrates precisa, e
sabedoria fosse como a água que deve assim amar, é Platão! A história
sempre flui de uma taça cheia para do amor platônico é, se poderia dizer,
uma vazia quando as conectamos com a história da Platonização de Sócrates.
um fio. Se a sabedoria fosse assim
também, tenho grande interesse no Se o que Sócrates aprendeu de
lugar ao seu lado, pois acho que vou Diotima foi sobre todo amor, porém,
ser completado por você com sabe- isso seria refutado pelo simples fato
doria de grande beleza” (175d4-e2, de Alcibíades, cujo amor por Sócrates
parcialmente adaptado da tradução não o levou a amar o Belo-em-si. Seria
de Nehamas e Woodruff). O que igualmente refutado, na verdade, por
realmente ocorre, porém, é o exato todos os outros membros do
inverso. Sócrates responde ao dis- Banquete, nenhum dos quais foi
curso inventivo de Agatão sobre o levado para lá por seu amor. Porém, a
amor com um elenchus, de modo que história de amor de Diotima não é tão
seu vazio, sua falta de conhecimento geral. Ela se autoanun- cia como uma
escorre para Agatão, destruindo a história sobre “amar corretamente os
sabedoria de grande beleza que tinha jovens” (to orthôs paiderastein)”
dado no dia anterior o primeiro

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Hugh H. PLATÃO
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Platão e o Prazer como o Bem


Humano; O Conceito de Bem em
(211b5-6): como uma lição sobre “o Platão). Porém, porque somos
modo correto de levar ou ser levado mortais, o mais próximo que
por outra pessoa à arte do amor” podemos chegar para satisfazer este
(221b7-cl). Para dizer a verdade, isso desejo consiste em iniciar um ciclo
não nos fornece explicitamente uma sem fím de reprodução, no qual cada
história sobre como Erôs pode atuar nova geração tem boas coisas.
como uma força que retarda o Alcançamos isso, em uma expressão
desenvolvimento. Porém, não é célebre, ao “dar à luz na beleza”
porque Platão pensava que Erôs não (tokos en kalô(i))” (206b7-8, e5). O
pudesse atuar como tal força que isso significa? Como a paiderastia
ateniense, Diotima reconhece dois
 veja Alcibíades. Antes, é porque a tipos fundamentalmente diferentes
história de Diotima é uma história de amor, duas variedades
acerca do amor correto ou bem- fundamentalmente diferentes do
sucedido. desejo de dar à luz na beleza. No caso
dos amantes heterossexuais, que
A credibilidade da história de estão “prenhes no corpo”, este dar à
amor de Diotima é um outro assunto, luz consiste em produzir crianças que
obviamente. Para muitos, pareceu se assemelham e assim participam da
incrível e de mau gosto, pois parece beleza de seus pais (208el-3). Com os
dizer que os indivíduos belos têm amantes homossexuais, porém, é
valor unicamente instrumental. outra história. A que dão à luz é “a
Quando se sobe a escada, da qual eles sabedoria e o resto da virtude”
são somente o primeiro degrau, deve- (209a3-4). Quando um homem que
se jogá-la está prenhe na alma encontra um
belo jovem, diz Diotima, isso “faz com
 e a eles – fora. Porém, é realmente que fique instantaneamente repleto
esta a mensagem de Diotima? de discursos de virtude” (209b8) ou
de “belos discursos” (210a8). Dar à luz
O que todos amamos, segundo à virtude e dar à luz a discursos sobre
Diotima, é o bem; quer dizer, a virtude são evidentemente
queremos que as boas coisas sejam
para sempre nossas (ver os capítulos diferentes, mas algumas das outras

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Hugh H. PLATÃO
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expressões que Diotima usa nos frequentemente ocasionado,


mostra como atenuar a diferença. O infelizmente, por um fim infeliz). É ao
que, pois, os amantes homossexuais contrário o projeto da filosofia, assim
querem é dar à luz a discursos de como Platão a concebe. É por isso que
virtude de um tipo particular, discur- culmina em “dar à luz a muitos
sos que possam ser usados no discursos e teorias gloriosamente
“ordenamento apropriado de cidades belos em um amor incondicional da
e lares” (209a6-7) e, assim, possam sabedoria (philosophia) (210d5-6).
“tornar melhores os jovens” (210cl-3). Contudo, o grandioso projeto se cruza
com o projeto do analisando e com o
Se os discursos do amante devem nosso, de um modo interessante. Os
alcançar este fim, todavia, não devem termos ou conceitos que usamos para
ser produtos da imaginação contar nossas histórias de amor
deturpadora, como Nietzsche pensa devem eles próprios ser coerentes,
que são muitos dos nossos conceitos caso as histórias que contamos por
morais e como algumas feministas meio deles devam ver passíveis de ser
pensam que é o nosso conceito de vividas coerentemente.
amor romântico. O que é visto como
garantindo que não o serão é sua Na visão de Platão, isso significa
abertura à realidade, uma abertura que devem ser conceitos que o
assegurada pelo fato que, na sua verdadeiro amante usa assim que
ascensão, o amante deve estudar a tiver visto o Belo-em-si: os conceitos
beleza dos modos de vida e Leis cujos correlatos ontológicos são as
(210c3-5) e a beleza das ciências (c6- Formas. Se não o forem, serão
7). O que ele ganha desses estudos são incoerentes e o amante que os
os recursos conceituais necessários empregar se verá enredado
para ver o mundo corretamente,
inclusive o mundo humano – obter
conhecimento sobre ele. Esse não é o
projeto que um analisando assume na em uma história de amor que não
psicanálise. Nem é o que compreende, uma história de amor
empreenDemos menos formalmente cuja incoerência o elenchus, a
quando refletimos sobre nossas psicanálise ou simples exame crítico
histórias de amor com a esperança de revelará. É essa incoerência, na ver-
as compreender (um projeto dade, encontrada nos estágios

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inferiores da ascensão, que leva o Condutor conduz corretamente, ele


amante correto, sob a pressão de seu deve amar um corpo e gerar aí belos
desejo racional pela verdade e discursos” (210a6-8). Nesse estágio, o
consistência e da dor da que o rapaz faz acender no amante é
inconsistência, a subir ao estágio seu desejo sexual pela beleza física,
seguinte. embora seja um que, firmemente
mantendo as normas da paiderastia
Podemos ver Diotima, então, ateniense, é supostamente inibidor do
como não somente revelando os fim: no lugar da relação sexual, leva a
outros amores mais abstratos que um uma discussão sobre a beleza e aos
verdadeiro amante de rapazes deve discursos sobre ela. A beleza aqui em
ter, mas também explorando as questão é, em primeira instância, o
condições que os conceitos devem rapaz que representa a Beleza-em-si
satisfazer para figurar em histórias para o amante. É por isso que, quando
genuinamente coerentes de amor. o amante finalmente passa a ver o
Sua história não é a respeito de um Belo-em-si, “a beleza não mais lhe
amante que abandona os rapazes que parecerá medida pelo ouro,
ama, mas sobre alguém que passa a vestimenta, belos rapazes ou
amar sucessivamente os rapazes ao vir juventude, que você agora olha
a amar também algo outro. estarrecido” (211d3-5). Um efeito de
gerar discursos dessa beleza, porém, é
Como a própria Diotima, que o amante passa a ver o belo corpo
estivemos nos concentrando em que de seu
outras coisas o amante é levado a
amar por meio de seu amor pelo rapaz amado como um entre muitos: se for
amado. Nada dissemos sobre as belo, assim também o são os outros
alterações que as explorações nesse corpos que os discursos cobrem. Essa
campo erótico alargado ocasionam descoberta inicialmente cognitiva leva
nos desejos e sentimentos do próprio a uma mudança cona- tiva: “ao se dar
amante. Estes, porém, nos ajudam conta disso, ele se põe como um
também a ver o que ocorre no seu amante de todos os corpos belos e di-
amor pelo rapaz no curso de suas minui essa preocupação excessiva
explorações. O que fisga o amante, com um, pensando menos nele e o
para começar, é o amor por um rapaz tomando como um assunto menor”
em particular: “primeiro, se o (210b4-6).

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É importante, ao lermos a vão aperfeiçoar as almas e tornar


descrição que Diotima faz desta melhores os jovens. Novamente, este
mudança, que a vejamos como resultado cognitivo é acompanhado
comparativa e contrastiva: o amante por um resultado conativo. Quando a
costumava sobrevalorizar seu amado amante vê que todas estas coisas
(211d5-8); agora, ele o valoriza belas são de algum modo concordes
apropriadamente. Porém, valorizar na beleza, passa a pensar que “a
apropriadamente ainda é valorizar. O beleza corpórea é algo pequeno”
rapaz ainda está incluído no conjunto (210c5-6) e, assim, como antes, fica
dos belos corpos que o amante agora menos obcecado por ela.
ama. É também importante observar
que as mudanças cognitivas e No topo da escala amoris está o
conativas vão juntas. Para reconhecer Belo-em-si, o primeiro objeto amado,
que seu amado é um dentre outros, o que – como o “objeto primeiro de
amor do amante por ele tem de amor” (próton philori) no Lísis (219d2-
mudar. Isso significa que recursos e4) – não se esva- eceu de modo
psicológicos no interior do amante, algum. Aqui, parece, por fim
para além de sua resposta sexual à
beleza física, passam a atuar. Mais
partes do amante estão agora
envolvidas em seu amor. De onde o o amante encontra algo digno da
que se pode pensar que seu amado atenção obsessiva que antes
perde quanto à exclusividade, ele prodigava ao seu belo rapaz (211d8-
ganha na riqueza e, sem dúvida, na 212a7). Contudo, a obsessão está fora
persistência e confiabilidade da de lugar mesmo aqui, pois o Belo-em-
resposta. Quando a flor física fenece, si não pode satisfazer os desejos de
ele ainda será agora amado. seu amante em comer e beber mais
do que pode o seu amado. Aqui, como
Porém, o amor que há de escapar ali, o que ele deveria fazer, se fosse
da frustração não pode parar nos possível, não deve ser confundido
corpos. A tentativa de formular um com o que pode fazer e faz. Afinal de
discurso do amor isento de dúvidas e contas, o amante não pode tomar-se
imune à refutação elên- tica deve imortal, exceto dando à luz na beleza
levar dos belos corpos às almas belas que por fim encontrou. Ele faz isso,
e, assim, às belas Leis e práticas que todavia, precisamente ao dispor com

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que seu amado cresça, se torne comando”, possuímos a moderação


verdadeiramente virtuoso e esteja (sôphrosunê) (237e2-3). Porém,
com ele na contemplação – e, na me- quando “o apetite nos empurra
dida em que isso é possível, na posse irracionalmente aos prazeres e
– da verdadeira beleza. comanda em nós, seu comando é
denominado excesso (hubris)” (238al-
A ARTE E A PSICOLOGIA 2). Desse excesso, a gula é uma
DO AMOR EXPLICADAS espécie e o amor erótico é outra
(238b7-c4). Este é o
No Fedro, encontramos um discurso
mais detalhado da psicologia e arte do tipo mau de amor – Pandêmio no
amor do que no Banquete. Focaremos Banquete – que Lísias corretamente
exclusivamente neste discurso. A destrata no discurso que Fedro
alma, divina ou humana, sustenta admira e lê para Sócrates (230e6-
Sócrates, é como “a união natural de 234c5).
uma dupla de cavalos alados e um
condutor” (246a6-7). Porém, Na visão de Sócrates, todavia, há
enquanto na alma divina todos os três também um outro tipo de amor, a
elementos “são bons e vêm de uma saber, “a loucura de um homem que,
boa linhagem”, na alma humana o tendo visto a beleza aqui na Terra e
cavalo branco (velho conhecido da rememorando a verdadeira beleza, se
República IV como o elemento toma alado e agita suas asas com
impetuoso que ama a honra) é “belo, ardor para voar, mas, incapaz de
bom e de linhagem similar”, ao passo alçar-se do solo, olha para cima como
que o cavalo preto (o elemento um pássaro e não presta atenção às
apetitivo da República) é “o oposto e coisas daqui – e é isso que o faz ser
de linhagem oposta”, de modo que “a tomado por louco” (249d5-el). Este
condução no nosso caso é homem louco é o filósofo do
necessariamente difícil e trabalhosa” Banquete, aquele que, quando se
(a7-b4). Quando o impulso aliado ao apaixona por um rapaz, é levado por
condutor (o elemento racional da seu amor a ascender por estágios à
República, aí também identificado ao Forma do Belo. O que toma sua
que é realmente humano antes que loucura uma dádiva divina, contudo, é
animal em nós (588bl0-589a4)) “nos que a ascensão é agora revelada
leva ao que é melhor e está no como envolvendo a reminiscência de

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uma ascensão anterior ao dar à luz, fim, contudo, o cavalo preto força o
feita em companhia de um deus (ver condutor e o cavalo branco “a se
o capítulo Platão e a Reminiscência). dirigir ao amado e a lhe mencionar as
delícias do sexo”
Do rico relato literário dessa
ascensão, temos de pinçar somente
uma ideia: as almas têm estruturas
psicológicas diferentes em função de (a5-7). Eles de novo se refreiam,
que deus seguiram; isso estabelece “indignados por serem forçados a
um limite superior sobre o quanto das fazer coisas terríveis e impróprias”
Formas elas veem e, assim, o quanto (bl). Porém, finalmente, “quando não
podem subsequentemente há mais limite à aflição deles, seguem
rememorar. Visto que ter acesso às a condução dele, cedendo e concor-
Formas alimenta e robuste- ce o dando em fazer o que ele lhes diz”
elemento racional na alma (248b5- (b2-3). Ao se aproximarem do amado,
c2), isso também ajuda a determinar todavia, para iniciar a relação, o brilho
sua estrutura motivacional: quanto do rosto do amado relembra ao
mais forte for a razão, mais provável condutor o Belo-em-si, de modo que
será que tenha sucesso em controlar sua memória “a vê novamente
os outros elementos na alma. figurando junto à temperança, em um
pedestal sagrado” (b5-7). Ele se
Os seguidores de Zeus, por assusta e “em súbita reverência cai de
exemplo, escolhem para amar alguém costas e é obrigado ao mesmo tempo
cuja alma se assemelhe à de seu deus a puxar as rédeas tão violentamente
condutor. Assim, buscam alguém que que os cavalos caem sobre suas coxas,
é “naturalmente disposto à filosofia e um de bom grado, por conta de sua
liderança e, quando o encontram e se falta de resistência a ele, mas o cavalo
apaixonam, fazem tudo para que se buliçoso de muito mau grado” (b7-
torne filosófico” (252el-5). Contudo, o c3). Por fim, “quando a mesma coisa
enamorar-se acarreta um enorme ocorre ao cavalo mau por muitas
distúrbio psicológico. O cavalo preto vezes, ele deixa que o condutor
do apetite imediatamente se lança à conduza com sua previdência” (e5-7).
relação sexual. O cavalo branco, Se esse controle do apetite pela razão
“constrangido, então, como sempre, e impulso continuar – mesmo quando
pela vergonha” (254a2), se afasta. Por o rapaz aceitou seu amante e o

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abraça, beija e deita com ele – e os Donde eles não são punidos na vida
levar a “uma vida bem ordenada e à seguinte, mas ajudados no caminho à
filosofia”, eles serão ditosamente futura felicidade conjunta (c7-e2).
felizes aqui na Terra e, se viverem esta
vida por três reencamações, terão O amor que é uma loucura divina
suas asas crescidas novamente e é uma boa coisa, portanto,
retomarão ao convívio de seu deus especialmente quando,
(255e2-256b7). “acompanhado de discussões
filosóficas (erôta meta philosophôn
Quando os seguidores de Ares se logôn)” (257b6), leva ao Belo-em-si e
apaixonam, por outro lado, eles às outras Formas, que são o que –
“adotam um modo inferior de vida, identificadas acima de tudo com o
não filosófico, mas amante da honra” elemento racional em nossas almas –
(256b7-cl). Quando estão bebendo amamos e desejamos
juntos, por exemplo, ou estão em verdadeiramente. A questão é: o que
algum outro modo despreocupados, faz com que uma discussão seja
“os cavalos licenciosos em ambos filosófica? O que a torna como
tomam suas almas desguarnecidas” e, devendo ser incluída na verdadeira
visto que a reme- moração do homem arte de amar que o filósofo que ama o
da beleza é mais tênue e não é Belo-em-si pratica? A resposta agora
reavivada pela conversa filosófica, proposta é que deve ser uma technê
terminam por fazer sexo – algo que “a ou arte; portanto, deve ter as carac-
massa considera ser a mais feliz terísticas definidoras de uma arte.
escolha entre todas” (cl-5). Todavia, Aplicado ao amor, por exemplo, deve
não fazem sexo muito começar com uma definição do amor
frequentemente, pois “o que estão e obter suas conclusões mediante a
fazendo não é aprovado pela mente ordenação de sua discussão em
em seu todo” (c6-7). Assim, enquanto relação a ele (263d5-e3). Esta
o grau do amor e da felicidade deles é definição, por sua vez, deve ser
menor do que o do par filosófico, e, à estabelecida pelo que Sócrates se
sua morte, “deixam o corpo sem refere como uma reunião e divisão
asas”, mesmo assim têm um impulso, (266b3-4).
proveniente do amor, a tentar obtê-
las. A reunião é um processo de
“perceber e pôr juntos em uma forma

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itens que estão espalhados em muitos portando o mesmo nome e


lugares” (265d3-4). É um processo respectivamente denominados
que, diferentemente dos outros esquerda e direita, assim
animais, somos capazes de realizar, também os dois discursos
pois nossas almas incluem um consideraram a loucura como
elemento racional que tem contato naturalmente uma única forma
prévio com as Formas: “uma alma que em nós. Um [a versão refeita por
nunca viu [antes do nascimento] o Sócrates do ataque de Lísias ao
que é verdadeiro não pode adotar amor] cortou a parte da esquer-
uma forma humana, visto que um ser da, então a cortou de novo, não
humano deve compreender o que é desistindo até ter encontrado
dito em relação a uma forma que é entre suas partes um amor que
obtida por meio de muitas é, como dizemos, “sinistro”, e
percepções sensíveis reunidas em abusou dele com toda justiça,
uma unidade pela reflexão” (249b5- ao passo que o outro discurso [a
cl) (ver os capítulos As Formas e as defesa do próprio Sócrates do
Ciências em Sócrates e Platão; amor] nos levou às partes da
Aprendendo sobre Platão com loucura do lado direito e,
Aristóteles). (É proveitoso comparar descobrindo e exibindo um
esta descrição com a dada por amor que partilha o mesmo
Aristóteles, APo. 11.19.) nome que o outro, que é,
porém, divino, o elogiou como
Quando uma Forma foi obtida uma causa de nossos maiores
deste modo, a divisão começa. É uma bens. (265e4-266bl)
questão de “cortar de novo a forma
em relação a [sub] formas, em relação Assim, enquanto cada discurso
às suas junturas naturais” (265el-2). relata somente metade da história, os
Como um exemplo, Sócrates cita o dois juntos mostram como deve
caso do amor: proceder a correta divisão. O objetivo,
porém, não é somente a verdade ou
correção, mas a adequação ex-
plicativa. Assim, se a Forma em
assim como um corpo único tem questão “é simples, devemos
suas partes em pares, com considerar... que capacidade natural
ambos os membros de cada par ela tem para atuar e sobre o quê, ou

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para sofrer ação e pelo quê”; se for não o é” (271bl-5). Maestria de tal
complexa, devemos contar suas sub- ciência, porém, requer uma coisa
Formas e considerar as mesmas coisas ainda: “o estudante deve observar as
a respeito delas como acerca das coisas como elas são na vida real, ser
simples (270d3-7). Que Sócrates, o posto de fato na prática e ser capaz de
caçador arquetípico de definições as seguir com arguta percepção” (d8-
explicativas (Euthphr. 6d9-e6), deva el). Em outras palavras, não basta
pronunciar-se como “um amante saber que tipos de discursos afetam
destas divisões e reuniões” não causa, que tipos de alma; o orador filosófico
portanto, nenhuma surpresa (266b3- deve também saber que este homem
4). à sua frente é de tal e tal tipo e ser
capaz de falar do modo que vai se
A filosofia visa a definições revelar convincente a ele (e2-272b2).
verdadeiras e a histórias verdadeiras
baseadas nelas (ver o capítulo ESCREVENDO SOBRE O AMOR
Definições Platônicas e Formas).
Porém, ela também visa à persuasão, Ao final do Banquete, Alcibíades foi
visto que o amante filosófico quer embora, presumivelmente na
persuadir seu rapaz a segui-lo no companhia dos festivos báquicos, que
caminho das Formas. Filosofia e aparecem na sua vida como
retórica devem, assim, andar juntas, o representantes de seu amor
que significa que a retórica, também, desbordante de aprovação e adulação
deve ser desenvolvida como uma da massa. Sócrates, Aristófanes e
technê. Ela deve, primeiro, distinguir e Agatão ficam discutindo tragédia e
dar definições comédia: “o principal ponto era que
Sócrates tentava provar-lhes que o
dos vários tipos de alma e tipos de mesmo homem sabe (epistasthai)
discursos, mostrando suas como escrever comédias e tragédias,
capacidades e suscetibilida- des que quem é com base na arte (technê)
respectivas e, segundo, “coordenar um poeta trágico é também um poeta
cada tipo de alma com o tipo de cômico” (223d2-6).
discurso apropriado a ela, explicando
por que um tipo de alma é As palavras-chave aqui, como
necessariamente convencido por um aprendemos no Íon, são epistathai e
tipo de discurso, ao passo que outro technê. Poetas comuns não

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conseguem escrever comédias e comédia, comporta mesmo assim um


tragédias porque não escrevem conhecimento da comédia:
fundados no conhecimento e na arte
(technê), mas graças à inspiração Quem está adquirindo
divina (Íon 534c5-6). Se escrevessem sabedoria prática não pode
com base na arte e no conhecimento, aprender assuntos sérios sem
se fossem poetas com arte, seriam ca- aprender os ridículos ou alguma
pazes de escrever comédias e coisa, neste ponto, sem seu
tragédias, pois os opostos são sempre oposto. Porém, se pretenDemos
investigados pela mesma arte. Assim, adquirir a virtude, mesmo em
a arte da comédia e a arte da tragédia um pequeno grau, não podemos
têm de ser uma e a mesma, assim ser sérios e também cômicos, e
como uma e a mesma arte, a medici- é precisamente por isso que
na, trata da saúde e da doença. devemos aprender a reconhecer
o que é ridículo, para evitar cair
na cilada de nossa ignorância e
fazer ou dizer o que é ridículo,
Sócrates nos diz que um poeta quando não nos é necessário.
com arte seria capaz de escrever; ele (816d5-e5).
não diz que ele escreveria. Outros
porta-vozes platônicos são de certo As Leis são uma tragédia, então,
modo mais diretos. “Nós somos porque é uma “imitação do mais belo
poetas”, diz o Estrangeiro de Atenas e melhor modo de vida”. O Banquete
nas Leis, “que criamos uma tragédia, é uma tragédia por uma razão
do melhor modo que podíamos, que é análoga: ele contém uma imitação de
a mais bela e melhor; de qualquer uma parte de tal vida, a saber, o que
modo, toda a nossa constituição está o Protágoras denomina um
construída como uma imitação do “Banquete de belos e bons homens”
mais belo e melhor modo de vida – que “testam a fibra de cada um em
exatamente isto que sustentamos ser acordo mútuo” perguntando e
a mais verdadeira tragédia” (817bl-5). respondendo a questões (347d3-
Um pouco antes, nesta mesma 348a3). É assim que Sócrates
discussão, o Estrangeiro é igualmente responde à fala de Agatão. E como
explícito que esta mesma cons- Diotima conversa com Sócrates. É o
tituição, embora não seja uma tipo de Banquete que Sócrates tenta

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re-estabelecer depois que a “peça sá- pagando grandes somas para escutar
tira” de Alcibíades terminou e o o som da música ao invés de sua pró-
bando de festivos báquicos se retirou. pria fala” (347c4-d2). Este é o
elemento de peça satírica no
Diferentemente das Leis, todavia, Banquete: imagens sátiras são
o Banquete também é uma comédia, frequentes na fala de Alcibíades.2
já que
A ideia é a que foi mencionada
contém igualmente uma imitação do antes. Algumas histórias de amor – as
segundo melhor tipo de Banquete boas – são tragédias (no sentido
descrito no Protágoras. É aquele no especial do termo introduzido nas
qual poetas posam como Leis): envolvem o tipo de amor
autoridades, seja estando eles pró- encontrado no melhor tipo de vida,
prios presentes (como Aristófanes uma vida que chega tão próximo
está presente), seja sendo citados quanto possível do divino, no qual
pelos presentes, sem estarem lá para alcançamos a felicidade fazendo com
serem questionados (como Hesíodo e que as coisas boas nos pertençam
Homero estão presentes por meio de para sempre (205dl-206al2). Outras
Fedro) e no qual os participantes histórias de amor são comédias:
“argumentam sobre pontos que não envolvem um tipo inferior de amor.
podem ser estabelecidos com Outras ainda são peças satíricas:
nenhuma certeza” (347el-7). farsas genitais. Porém, a verdadeira
história de amor, a história que é o
Finalmente, Alcibíades chega – o próprio Banquete de Platão, é a
que é bem significativo – com uma história de todas essas histórias. No
flautista (212c5-e3; cf. 176e6-7). Banquete, toma a forma adequada ao
Embora ela não toque, sua chegada seu gênero e audiência. Porém, no
inaugura o declínio do Banquete em Fedro, aprendemos o caminho mais
algo ainda mais parecido com o tipo longo e mais técnico, que tomará no
de Banquete abominado no futuro, quando, secundado de uma
Protágoras como “um Banquete de psicologia e retórica científicas, se
companheiros ordinários, vulgares... toma um assunto de especialistas.
que, incapaz de se entreter uns com
os outros com sua própria conversa,
inflacionam o preço das flautistas,

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NOTAS ofClassicalAthens. London: St Martirfs


Press.
Todas as traduções são do autor,
salvo se assinalado em contrário. Dover, K. J. (1978). Greek
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frag. 289). Cambridge:
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As teses de Platão sobre a natureza do
Nussbaum,M. C. (1986). prazer e sua atitude em relação ao
TheFragilityofGoodness. Cambridge: prazer foram objeto de um aceso
Cambridge University Press. debate por um longo tempo. Desde a

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

metade do século vinte, algumas das questão para abordar meu foco prin-
principais questões foram se o cipal: as vantagens teóricas e práticas
Sócrates de Platão ou o próprio Platão que Platão viu na hipótese que o
foi um hedonista por um certo prazer é o bem humano, suas
período e, se não foi, se Platão objeções a esta tese e seus esforços
consegue avaliar e posicionar os para explicar de modo não hedonista
prazeres de modo não hedonista. Há o valor do prazer. Localizo as
estudiosos de ambos os lados: Gosling discussões de Platão sobre o prazer no
e Taylor (1982), Irwin (1995), contexto de sua principal questão
Rudebusch (1999), por exemplo, na ética, como devemos viver,
resposta afirmativa à primeira
questão; Vlastos (1991), Zeyl (1980), e suponho que seu principal interesse
na negativa; D. Frede (1992, 1993) na no hedonismo foi uma resposta a esta
resposta afirmativa à segunda questão.
questão.
OS ATRATIVOS DO HEDONISMO
Estes debates não decidiram as
questões, mas serviram para No Eutifro (7b6-dll), Platão faz
esclarecer a tese de Platão sobre a Sócrates observar que, quando
natureza do prazer, a compreender discordamos sobre o número,
melhor os principais argumentos que tamanho ou peso das coisas,
encontramos nos diálogos de Platão a podemos fazer apelo às artes da
favor e contra a hipótese que o prazer aritmética, geometria e da pesagem
é o bem humano, a ver mais para decidir a disputa; estas
claramente a tese mais sutil do valor discordâncias não nos tomam raivo-
do prazer que Platão terminou por sos e inimigos uns com os outros.
conceber quando discorda do Porém, quando discordamos sobre o
hedonismo. que é justo e injusto, o belo e o
vergonhoso, o bom e o mau, nós nos
Neste artigo, não estou muito tornamos raivosos e inimigos, sendo
preocupado em saber se Platão ou seu incapazes de obter um acordo de
Sócrates foi alguma vez um hedonista, modo similar; nem mesmo os deuses
mas tentarei me aproveitar dos não o conseguem fazer, segundo a
benefícios dos debates sobre esta crença popular. Isso pressupõe que as
ciências dos números, da medida e do

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Hugh H. PLATÃO
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peso não têm aplicação ao bom, belo salvação para nossas vidas? Será
e justo. a arte da medida ou o poder da
aparência?... O que, então,
Porém, no Protágoras (356bl- salvará nossas vidas?
57a3), o Sócrates de Platão diz que, se Seguramente não outra coisa
o bem e o mal forem idênticos ao que o conhecimento,
prazer e dor, então podemos resolver especificamente um tipo de
as disputas sobre o bem e o mal, o medida. (Prt. 356bl-367a3, trad.
justo e o injusto, o belo e o vergonho- de Lombardo e Bell)
so, aparentemente porque as artes do
número, medição e pesagem podem Nestas passagens, vemos Platão
ser aplicadas ao prazer e dor. apresentando um problema
importante em ética e um sonho
O ato de pesar é uma boa ousado de solução. O problema é
analogia: você coloca os como resolver disputas e desacordos
prazeres juntos e as dores sobre o bem, o justo e o belo sem
juntas, tanto os remotos quanto entrar em guerra, em função do fato
os próximos, nos pratos da aparente que as ciências
balança e então diz qual dos dois matemáticas, que de fato nos per-
é o maior, pois, se você pesar mitem resolver desacordos
coisas prazerosas contra racionalmente, não parecem se
prazerosas, aplicar a estes conceitos e entidades
éticos. O sonho ousado é que, em uma
dada hipótese, podemos alojar a ética
não somente na província dos
deve-se sempre escolher a argumentos da razão, como Platão faz
maior e onde houver mais; se Sócrates tentar obter no Críton e no
forem coisas dolorosas contra resto do Eutifro, mas também na
dolorosas, onde houver menos província daquela parte da razão que
e a menor... Se, então, nosso criou a matemática e as artes de
bem-estar dependesse disso, contar, medir e pesar. A hipótese é o
fazendo e escolhendo coisas hedonismo, a ideia que o bem e o
maiores, evitando e não prazeroso são idênticos e que o
fazendo as coisas menores, o penoso e mal são idênticos (Prt.
que consideraríamos como a 355b5-9); temos vários termos, mas

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somente duas entidades. de modo menos ambicioso.


Aparentemente, é dado como
suposto que prazer e dor são Para Platão, o sonho deve ter tido
suscetíveis a cair sob as artes do enormes atrativos teoréticos e
número, medida e pesagem. Se for práticos: transformar a ética em uma
assim, o bem e o mal podem ser ciência e ser capaz de decidir as
contados, medidos e pesados; e se for disputas sobre o bem, o justo e o belo,
isso, o justo e o injusto, o belo e o não ao modo do Protágoras (no qual
vergonhoso, sendo dependentes do as coisas nos aparecem como elas
bem e do mal, são também trazidos realmente são), nem pela espada do
ao domínio das artes de medida. (Ver mais forte (o modo de Trasímaco),
Rudebusch, 1999: cAp. 7, para a mas do modo em que podemos
alternativa, claramente expressa, que decidir as disputas a respeito do
Platão está usando a medida como tamanho de Atenas, a extensão da
uma metáfora; é somente a compa- estrada ao Pireu ou o peso da estátua
rabilidade que está em questão e as de Atenas. A glória da razão se alçaria
escalas em questão não são escalas de acima mesmo do método socrático,
intervalos, mas escalas ordinárias, que um método de pensar em ética que
não requerem não se vale da arte de medir e que é
completo.
unidades; contra isso, ver Taylor,
1991, p. Platão, sem dúvida, encontrou
outros atrativos no hedonismo. Se os
190200; para outras teses prazeres e penas são comensuráveis e
hedonistas, ver Bentham, 1789: cAp. se o prazer é idêntico ao bem e a dor
4; Sidgwick, 1981, p. 123-50.) ao mal, então todos os bens e males
são comensuráveis, podendo ser
De fato foi um sonho ousado, posicionados, não somente ordinal e
como se pode ver em discussão cerca intuitivamente, mas também os
de vinte e quatro séculos depois em medindo e deduzindo a colocação
Mirrlees (1982) e John Broome com base em seus valores cardinais. O
(1996): o primeiro autor sustenta que hedonismo parece tornar possível
o Hedonismo não passou no teste da uma teoria do bem universalmente
medida e o segundo tenta pesar os aplicável, unificada e completa como
bens sem a suposição do hedonismo e o conceito-guia de escolha

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fundamental. O prazer é a moeda de necessário para se fazer escolhas


valor comum, por assim dizer, pelo racionais, escolher do maior bem ou
qual todos os bens podem ser do menor mal. Mais do que isso, como
medidos. Assim como a riqueza pode a passagem do Protágoras claramente
ser definida como algo que pode ser mostra, Platão pensou que seria agora
medido pelo dinheiro, assim também possível mostrar que tal
o bem pode ser definido como algo conhecimento é também suficiente
que pode ser medido pelo prazer. E se para escolher o maior bem ou o
o justo e o belo podem ser derivados menor mal – mostrar que não uma
do bem, então toda a ética pode ser coisa como conhecer o melhor e fazer
baseada em uma teoria da escolha o pior, pelo menos quando se pode
completa, unificada e universalmente fazer o melhor, pois, nesta questão, o
aplicável. Teoricamente, estaríamos hedonismo ético tem um grande
aptos a colocar aliado, o hedonismo psicológico: que
em geral e acima de tudo os homens
desejam o prazer e procuram evitar a
dor. Este fato psicológico geral parece
opções de vidas inteiras nos pratos, as fornecer a motivação necessária para
pesar e fazer uma escolha racional, que o conhecimento das medidas dos
isto é, escolher a vida que nos dá a prazeres e dores sejam razão ou causa
maior quantidade final de prazeres suficiente para fazer o melhor e evitar
contra as dores. o pior. A hipótese do hedonismo, as
suposições de mensurabüidade e
Ademais, se o prazer e o bem são conhecimento-mensurabilidade de
o mesmo e se os prazeres e dores prazeres e dores, a distinção entre
podem ser contados, medidos e tamanhos reais e aparentes dos
pesados, a supremacia socrática do prazeres e dores e o hedonismo
conhecimento pode ser reivindicada, psicológico – todos eles conspiram
com base na suposição que poucos, se para tornar o prazer de uma meretriz
alguém, disputariam: que as artes da para o mal a um motivador ao bem. E
medida são ramos do conhecimento se o justo e o belo podem ser trazidos
humano. Com base nessas premissas, para o interior do escopo da ciência da
o conhecimento que estas artes medida, ao se supor que derivam do
providenciariam quando aplicadas bem, então de fato o conhecimento
aos prazeres e dores seria claramente dos prazeres e dores, junto com suas

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conexões com o justo e o belo, seria possam ter prazer com coisas
suficiente para a virtude. O diferentes, não parece haver uma
conhecimento do prazer e dor seria ambigüidade similar no próprio
necessário e suficiente para a virtude. prazer. Que todos os homens desejam
o prazer parece tão evidente quanto
Por fim, o hedonismo parece ser todos os homens desejam a
uma teoria de direcionamento da felicidade, mas o prazer parece ser um
escolha mais guia para a escolha muito mais claro,
específico e determinado.
determinada que o eudemonismo,
seja o eu- demonismo psicológico (a Para resumir, os principais
ideia que todos desejamos a atrativos que Platão viu no prazer
felicidade como o fim ultimo de todas como o bem são a possibilidade de
as nossas escolhas) ou o eudemo- medir o valor e tornar a ética uma
nismo ético (a ideia que a felicidade é ciência, a possibilidade de pôr todos
o bem humano último e que todo os bens e todas as virtudes no interior
outro bem é bom enquanto um de uma teoria unificada do bem como
constituinte ou um meio a felicidade). um conceito que guia a escolha, uma
Porém, a felicidade e eudaimonia em base para a reivindicação da
grego parecem ser conceitos supremacia socrática do
equívocos. Os homens podem conhecimento na conduta humana e
concordar que o bem humano último os poderes motivacionais e guiadores
é a felicidade, mas, como observa de escolha do prazer e dor.
Aristóteles, isso é um acordo pu-
ramente verbal, já que diferentes Está correto, porém, dizer que
homens entendem a felicidade como Platão não desenvolveu o primeiro e
coisas diferentes, isto é, prazer, mais fundamental destes atrativos e
conhecimento, virtude, mesmo que deixou mais questões que
saúde, quando estão doentes, ou respostas. Para começar, como os
riqueza, quando pobres (EN 1.5). prazeres e dores devem ser medidos?
Pode-se imaginar quão diferentes Em que dimensões, em que escalas e
serão as escolhas quando estas por quais instrumentos? Bentham,
concepções tão diversas da felicidade que desdobrou o cálculo hedonista
são tidas como o fim último ou o bem cerca de vinte séculos mais tarde,
último. Porém, mesmo que as pessoas sustentava claramente que as

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dimensões mensuráveis primárias dos contrabalanceada com a duração,


prazeres e dores são a duração e a algo que precisamos saber, já que
intensidade, podemos claramente ter escolhas
entre prazeres mais intensos, porém
curtos, e prazeres mais longos, mas
menos intensos (ver Rawls 1971: 554-
embora haja outras propriedades, 60). Tampouco Platão nos diz como os
como a certeza e a proximidade, que prazeres são comensuráveis com as
também devem ser levadas em conta. dores, para tornar possível somar
Prazeres e dores se expandem no prazeres e somar dores e subtrair a
tempo, de modo que a duração é uma menor soma da maior deles, de modo
dimensão óbvia para a medida e tudo a determinar o resultado final entre
o que mede o tempo pode ser usado prazer contra dor ou dor contra
para medir o prazer, até mesmo os prazer.
instrumentos antigos rudes como
relógios de sol e ampulhetas. Platão No Protágoras (356a5-e3), Platão
frequentemente fala das grandes discute um problema importante na
imensidades dos desejos e prazeres escolha hedonista que a medição vem
corpóreos; seu Sócrates no a resolver. Ele faz duas observações
Protágoras presumivelmente fundamentais. Primeiro, Sócrates
concordaria que esta é uma outra observa que o tamanho ou magnitude
dimensão que em princípio é men- (presumivelmente da duração, da
surável. Aristóteles menciona ambas intensidade ou de ambos?) dos
as dimensões e se inquieta com a prazeres (e dores) aparece diferente
interferência de um e outro na para nós em distâncias
posição dos prazeres (EA 1169al7-26). (presumivelmente temporais)
diferentes, embora sua magnitude
Porém, como a intensidade deve real seja a mesma; de modo similar, o
ser medida? Mesmo hoje, com todas tamanho dos objetos visíveis (mesmo
as nossas ciências e tecnologias, de sons, poderíamos acrescentar)
dificilmente poderíamos ser postos a aparecem diferentes em distâncias
indicar como se mediriam prazeres e espaciais diferentes, embora seus
dores (ver Savage, 1972 e Sidgwick tamanhos reais permaneçam o
1981, p. 176-95). Ademais, Platão não mesmo.
nos diz como a intensidade deve ser

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Assim, podemos falar de magnitudes com a distância, desconsiderar a


aparentes e reais dos prazeres (e proximidade consiste de fato em
dores), assim como falamos de desconsiderar a aparência. Bentham
tamanhos aparentes e reais de aparentemente discorda, visto que
objetos visíveis (p. ex., o tamanho sustenta que a proximidade, assim
aparente e real do sol). Segundo, a como a certeza devem ser levadas em
discrepância entre as magnitudes conta pelo agente que escolhe
aparente e real é a razão pela qual (Bentham, 1789: cAp.
precisamos da ciência da medida,
visto que, presumivelmente, quere- 4). Sidgwick (1981, 124, n. 1)
mos fazer escolhas hedonistas com aparentemente concorda
base nas magnitudes reais e parcialmente com Platão e
verdadeiras dos prazeres (e dores) parcialmente com Bentham:
esperados, antes que na base de
magnitudes aparentes e falsas. O Uma... proximidade é uma
prazer pode não somente ser uma propriedade que é razoável
meretriz sedutora, mas também um desconsiderar, exceto na
charlatão de primeira. A arte da medida em que diminui a
medida pode desmascarar o engano e certeza, pois meus sentimentos
reduzir a tentação. daqui a um ano poderão ser tão
importantes para mim como
Na discussão das magnitudes meus sentimentos no próximo
aparentes e reais dos prazeres, Platão segundo, se somente eu
faz Sócrates sustentar que a arte da pudesse fazer uma previsão
medida desconsiderará a proximidade igualmente segura a respeito
dos prazeres e dores, suas distâncias deles.
variáveis do agente que faz a escolha.
Os prazeres próximos e remotos, A teoria modema da decisão leva
sustenta, diferem somente em que em conta a certeza ou probabilidade,
são mais ou menos; colocaríamos os a qual
prazeres nos pratos da balança, que
desconsideram diferenças na
distância e decidem somente qual
prazer é maior. Visto que as magnitu- Platão ignora no Protágoras, e pela
des aparentes dos prazeres diferem porta dos fundos, por assim dizer, a

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probabilidade introduz a AS OBJEÇÕES DE PLATÃO


proximidade. AO HEDONISMO

Por fim, pode-se duvidar que a hi- Há duas objeções interligadas ao


pótese do hedonismo permita a hedonismo que Platão faz em diversos
Sócrates ter sucesso em mostrar a diálogos: que algumas coisas
supremacia do conhecimento. A prazerosas são más ou que alguns
própria distinção entre magnitudes prazeres eles próprios são maus.
reais e aparentes tende a minar seus
esforços. Ainda que desconsideremos A primeira objeção é dita por
a proximidade nos cálculos para as Protágoras quando Sócrates tenta
escolhas hedonistas racionais, é de se promover a hipótese do hedonismo:
conceder que a proximidade afeta as “então, viver com praze é bom e com
magnitudes aparentes dos prazeres e desprazer, mau? Sim, na medida em
dores e estas aparências podem que viver gozando de prazeres em
causalmente afetar os desejos pelos coisas honráveis”. Sócrates tenta
prazeres. Se o fazem, Sócrates não colocá-lo de seu lado perguntando:
pode dar por suposto que a eficácia “não é uma coisa prazerosa, boa, na
causai das aparências estará em medida em que for prazerosa?”
perfeita correlação com a escolha Porém, Protágoras protesta
racional feita com base nas medidas novamente: “há coisas prazerosas que
verdadeiras e lógica correta. Posso não são boas... há coisas dolorosas
julgar corretamente que um prazer que não são más... e uma terceira
distante é maior que um imediato, classe que é
mas as diferenças nos modos como
estes dois prazeres aparecem a mim neutra – nem boa nem má”. Sócrates
me levam a abandonar o prazer tenta de novo, tornando mais clara
distante em favor do que está aqui sua questão: “chama você de
agora. Posso saber ou crer prazerosas as coisas que partilham do
corretamente que o prazer distante é prazer ou provocam prazer?
maior que o imediato, mas posso “Certamente”, diz ele. “Então minha
mesmo assim ter um desejo mais questão é esta: é na medida em que
intenso pelo prazer mais próximo por elas são prazerosas que elas são boas?
causa da eficácia causai das Estou perguntando: não é um bem o
aparências. próprio prazer” (Prt. 351cl-e7, trad.

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Lombardo e Bell). Porém, Protágoras causa do prazer que está presente


é ainda cauteloso, respondendo que nela ou por causa das coisas más que
deveriam examinar o assunto para ver resultariam dela posteriormente,
se o prazer e o bem são o mesmo ou como doença e miséria. Afirmando o
não. último em nome da massa, ele
pergunta então se a massa não
Até aqui Sócrates tratou uma concordaria que essas coisas más que
ação prazerosa como algo complexo, resultam posteriormente dela são más
distinguiu o prazer de seus outros por não outra razão que o fato que
elementos (p. ex., o prazer de comer terminam em dores ou nos privam de
doces das causas do prazer ou dos outro prazer (Prt. 353dl-354c9). A
resultados subsequentes da ação) e massa concordaria, alega Sócrates, e
perguntou se o próprio prazer não é fornece respostas análogas para ações
uma boa coisa. Mesmo que uma que são boas e más (exercício físico,
resposta afirmativa tivesse serviço militar e tratamento médico) e
comprometido Protágoras a não mais agora pensa que tem todos os dados
que uma tese geral que o prazer é necessários para responder às
uma das coisas que são boas, Platão o
faz, ao contrário, pôr a questão se o
prazeroso e o bom são o mesmo.
Sócrates muda o tema para a questão objeções ao hedonismo que
da supremacia do conhecimento, mas Protágoras ou ele próprio haviam feito
logo retorna à hipótese do (ações prazerosas, porém
hedonismo, mas com uma mudança vergonhosas e ações penosas, mas
no drama que faz com que Sócrates e boas ou nobres) e sentir-se livre para
Protágoras respondam as questões usar a hipótese do hedonismo.
em nome da massa, a mesma massa
que alega que se pode conhecer o me- Em suma, ações prazerosas, mas
lhor, mas fazer o pior porque se é más são más não por causa do prazer,
vencido pelo prazer. mas porque resultam em dores
posteriores que excedem o prazer ou
Tendo distinguido entre o prazer de nos privam de prazeres posteriores,
uma ação prazerosa, mas má, e seus mas maiores; de modo análogo para
outros elementos, Sócrates pergunta ações penosas, mas boas. O bom e o
se a massa diria que a ação é má por prazeroso são o mesmo; há quatro

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nomes, mas realmente somente duas Temos quatro termos e duas coisas; as
coisas e podemos substituir o termo duas coisas são prazer e dor.
“bom” por “prazeroso” e
inversamente, bem como podemos Em suma, no Protágoras, Platão
substituir o termo “dor” por “mau” e faz Protágoras apresentar uma
inversamente. Estas substituições objeção central ao hedonismo – que
permitem, então, que Sócrates há coisas prazerosas, mas más, e
argumente que a explicação da massa, penosas, porém boas – e faz Sócrates
que um homem pode conhecer o me- responder à objeção como respon-
lhor, porém fazer o pior porque foi deria um hedonista, satisfazendo
vencido pelo prazer, é absurda (Prt. aparentemente tanto Sócrates quanto
354b4-356c3). Protágoras.

Deve-se observar que, embora Porém, no Górgias (495a2-7),


Sócrates termine equacionando o Platão faz Cálicles expor o que parece
prazeroso e o bom (e o penoso e o ser o
mau), é o prazer que tem a primazia
explicativa em seu argumento: o mal hedonismo do Protágoras (a mesma
das ações prazerosas que são más é terminologia é usada para exprimir a
explicado pelas dores resultantes ou tese em ambos os diálogos: “o bom e
pelas privações posteriores de o prazeroso são o mesmo”, Gosling e
prazeres maiores; o bem de ações Taylor, 1982, p. 69-70) e, então, Platão
penosas, mas boas é explicado pelos faz com que Sócrates ataque e tente
prazeres resultantes ou pelo fato de refutar o hedonismo de Cálicles. Os
evitar dores maiores. Assim, o bem é intérpretes que pensam que Sócrates
explicado pelo prazer, não vice-versa, é o porta-voz de Platão e que
e o mal é explicado pela dor, não vice- acreditam que o Sócrates dos
versa. Isso, obviamente, é o que primeiros diálogos tem uma tese ética
permitiria à ética, a disciplina do bem unificada tentam evitar esta con-
e do mal, do justo e do injusto, do tradição aparente distinguindo
vergonhoso e do nobre, tornar-se uma diferentes tipos de hedonismo:
ciência por meio da mensuração; são hedonismo a longo-termo no
os prazeres e dores que são Protágoras (Gosling e Taylor 1982) e o
mensuráveis e são o prazer e a dor que hedonismo de Cálicles confinado a
explicar cabalmente o bem e o mal. prazeres corpóreos a curto-termo; um

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hedonismo de magnitudes reais de A República confirma que Platão


prazeres (e dores) e um hedonismo de considerou a objeção que alguns
magnitudes aparentes de prazeres prazeres são eles próprios maus, não
(Rudebusch, 1999: cAp. 3). Estes meramente que algumas coisas
autores sustentam que, assim que prazerosas são más, como decisiva:
fizermos uma destas distinções, o
conflito aparente entre estes dois O que dizer dos que definem o bem
diálogos desaparece; pensam que o
hedonismo a longo-termo ou o como prazer? Não estão eles não
hedonismo de magnitudes reais dos menos
prazeres é a boa teoria e ambos
pensam que Sócrates acreditava
verdadeiramente no hedonismo que
expõe e usa no Protágoras, que ele era confusos que os outros? Não
um hedonista a longo-termo (Gosling são também eles forçados a
e Taylor) ou um hedonista modal admitir que há prazeres maus?
(Rudebusch). Seguramente. Então, penso,
eles têm de concordar que as
Porém, o Górgias propõe um mesmas coisas são boas e más,
segundo desafio a esta interpretação. não é verdade? Obviamente. (R.
No Protágoras, Platão explica bem de 505c5-d2, trad. Grube e Reeve)
que forma um hedonista responderia
à objeção que algumas coisas Em suma, pelo menos e de modo
prazerosas são más, mas evita abor- consistente com todos os três
dar a objeção que alguns prazeres são diálogos, podemos dizer que Platão
eles próprios maus ou vergonhosos. acreditava que, enquanto a existência
No Górgias, porém, Platão faz com de complexos prazerosos, porém
que Cálicles admita, após dois maus pode ser explicada por um
argumentos inconclusivos da parte de hedonista, a existência de alguns
Sócrates, que alguns prazeres são prazeres eles próprios maus não o
maus e Sócrates trata esta admissão pode.
como mostrando que Cálicles rejeitou
seu hedonismo (Grg. 499bl-d2, 500d8- Permanece uma questão aberta,
10). porém, saber se Platão consegue dar
exemplos claros e convincentes de

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prazeres que são eles próprios maus, 20b9), ele tenta decidir de um modo
distintos de exemplos de prazeres novo se “o prazer é o bem, ou a
vergonhosos e distintos de complexos sabedoria ou alguma terceira coisa”
que são prazerosos e maus. A nature- (14b4-6, 20b8-10); estes são os dois
za controversa desta premissa é candidatos a bem refutados
concedida no Filebo (13b-c), quando diferentemente em R. 505b6-d2.
Sócrates infere que há prazeres maus,
assim como prazeres bons, e Protarco O novo modo é um experimento-
responde: “o que você quer dizer, de-pensamento: “ponhamos em
Sócrates? Você supõe que quem afir- julgamento a vida do prazer e a vida
ma que o bem é prazer concederá ou do conhecimento e obtenhamos um
aceitará escutar você dizer que alguns veredito olhando a cada uma
prazeres são bons e outros maus?” separadamente... Façamos com que
não haja nenhum conhecimento na
Sócrates não tem uma resposta vida de prazer nem prazer algum na
direta a este respeito; é mesmo vida de conhecimento”. Protarco,
somente depois que Sócrates faz representando o hedonismo, é
outra objeção ao hedonismo e que instado a julgar se consideraríamos
Protarco abandona o hedonismo que aceitável viver “uma vida inteira no
Platão passa a distinguir entre gozo dos maiores prazeres” [porém,
prazeres bons e maus. A nova objeção sem nenhum conhecimento] (Phlb.
é um teste de isolamento de 20el-21a8, trad. Frede).
preferência que Sidgwick e Moore
repuseram em circulação, Sidgwick Antes de examinar a primeira
para defender o hedonismo resposta inteiramente afirmativa de
indiretamente (1981, p. 398-9), Protarco e sua súbita inversão ao final
Moore para o atacar, como fez Platão do argumento de Sócrates,
(1902, p. 88-96). observamos que, logo antes do
experimento-de-pensamento,
Após certa discussão (se há Sócrates propõe, e Protarco aceita,
diferentes tipos de prazeres e se que o bem – qualquer conteúdo que
alguns prazeres são contrários a tenha: prazer, sabedoria ou outra
outros prazeres), na qual Sócrates não coisa – tem três propriedades, que
consegue convencer Protarco que podem ser chamadas propriedades
alguns prazeres são maus (Phlb. 13b5- formais do bem, em que se considere

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a sua independência quanto ao


conteúdo. O bem é completo (ou
perfeito), suficiente e todo ser que o que está gozando quando está
conhece o persegue, o deseja e “não gozando... você não poderia calcular
tem nenhum interesse no que o bem que você vai gozar no futuro... sua
não esteja incluído”. Embora essas vida não seria a de um homem, mas a
propriedades não sejam explicadas, é de um molusco ou de outro tipo de
evidente que a comple- tude ou concha... é uma vida assim digna de
suficiência são supostas implicar que escolha?” A guinada de Protarco é
“se um deles [prazer ou sabedoria] for surpreendente: “este argumento,
o bem, não pode precisar de nada Sócrates, me fez ficar sem voz no
outro; caso se mostre em carência de momento” (Phlb. 21d5-6).
algo, não podemos mais o considerar
como nosso bem real” (Phlb. 20e6-8). Em uma breve passagem em
Isso, por sua vez, faz com que Sócrates sequência, eles prontamente
pergunte a Protarco se ele pensa que concordam que uma vida de
precisaria de algo mais, caso vivesse sabedoria, mente, conhecimento e
sua inteira vida “no gozo dos maiores memória, mas “sem parte no prazer,
prazeres”. De absolutamente nada, grande ou pequeno” (Phlb. 21d5-6)
responde Protarco. Sócrates lhe não seria digna de escolha. Ademais,
pergunta por uma terceira vez, agora eles concordam que todos prefeririam
mais especificamente, se ele não teria uma vida mista de sabedoria e prazer
“alguma necessidade de sabedoria, a qualquer um deles à parte do outro.
mente, poder de calcular e coisas
assim”. “Por quê? Se tenho o gozo, Pelo estado sem fala de Protarco
tenho tudo”, responde Protarco Platão pode estar indicando a
(21b3-4). originalidade e a natureza singular do
experimento-de-pensamento de
Sócrates agora lhe adverte que, Sócrates. É de se duvidar que todo
se não tivesse “memória, hedonista, alguém que fez do prazer o
conhecimento ou opinião verdadeira, fim último de sua vida e escolhe tudo
você não saberia se estaria gozando o mais com vistas a ele, pense que
ou não... você não poderia lembrar esteja por isso comprometido com
que você gozou... você não poderia uma preferência ou escolha de uma
pensar vida de gozo sem nenhuma cognição,

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

passada, presente ou futura, desse mesmo a simples consciência dos


gozo. Quando o argumento prazeres – da vida de gozo.
aparentemente desvela esse
comprometimento, Protarco su- O teste é irreal não somente por
bitamente recua – ele jamais pensou ser um experimento-de-pensamento,
nisso! O resultado da separação do mas por ser um experimento que
prazer da sabedoria é tão radical que nunca poderia ocorrer na realidade,
Sócrates vem com a vida de um mesmo com a tecnologia mais
molusco como um exemplo do que avançada imaginável, mesmo uma
estaria escolhendo um hedonista! tecnologia que torne possível um
Não somente uma má escolha, mas cérebro em uma cuba. Como os
uma escolha irreal, uma escolha experimentadores poderiam saber
impossível. que o sujeito estava gozando dos
maiores prazeres, mesmo quando o
No Filebo, o teste é visto como próprio sujeito não estava consciente
decisivo contra o hedonismo, visto deles?
que o resto do diálogo considera que
o hedonismo foi derrotado por ele e a Platão pode ter pensado que o
questão que permanece é se o hedonismo, a tese que o bem é
conhecimento ou o prazer tem o idêntico ao prazer, compromete o
segundo lugar na vida mista, com o hedonista com a ideia que ficaria
prazer terminando derrotado em satisfeito se tivesse os maiores
segundo, terceiro e mesmo quarto prazeres, ainda que não tivesse nada
lugar. mais. A segunda resposta de Protarco
à questão se necessitaria de
Os comentadores observam que sabedoria, mente ou poder para
leitores objetaram que o teste de calcular parece sugerir essa ideia: “Por
Sócrates é irreal (Hackforth, 1972, p. quê? Se tenho o[s maiores] gozo[s],
32), desleal (Frede, 1993, p. xxxii) ou tenho tudo”. E esta é uma resposta
ambos. O lugar para ambas as plausível, caso não esteja contando
objeções é o mesmo: a abstração ou com a separação do prazer da
separação feita por Sócrates de todo consciência do prazer. Se estiver
gozando dos maiores prazeres, uma
conhecimento, memória, crença ou ideia que usualmente é acompanhada
cálculo acerca dos prazeres futuros – da consciência que está gozando dos

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maiores prazeres, por que possibilidade de uma vida inteira


necessitaria ele dos poderes do sentindo prazeres sem estar
cálculo, por exemplo? Este poder é consciente ou saber que tem tais
somente um meio para obter prazeres prazeres corre o perigo de ser uma
futuros, mas, se ele tem todos os vida indistinguível de uma com zero
prazeres – por hipótese –, então a prazer. De qualquer modo, se Platão
falta do poder não lhe retira nenhum supôs que o hedonista estava
prazer. Assim, um hedonista que comprometido deste modo, podemos
responda ao experimento-de- entender por que tratou o argumento
pensamento poderia mesmo estar como decisivo no diálogo.
satisfeito se tivesse todos os prazeres
sem os meios causais para eles, caso No Filebo, Platão está tentando
esses meios possam ser separados descobrir, primeiro, o que é o bem no
dos prazeres. Porém, não estar nem inteiro cosmos, não somente na vida
mesmo consciente dos prazeres é humana; depois disso, ele tenta
demais para que Protarco aceite; esta descobrir o que é o bem
separação o faz sobressaltar e o deixa relativamente aos seres humanos, o
sem fala. bem humano. O experimento-de-
pensamento serve para revelar que
Porém, pode-se supor a possibilidade uma vida de prazeres sem nenhuma
de tal separação? Posso estar cognição pode ser boa para um
gozando sem estar consciente que animal inferior, mas não para um ser
estou gozando? Moore pensava que humano, ao passo que a vida de
isso poderia ser de fato comum, conhecimento sem alegria ou pesar
embora ele mesmo assim tivesse seria boa para um deus, mas não para
sentido a necessidade de argumentar um ser humano. Para um ser humano,
que um hedonismo se compromete uma mistura de conhecimento e
com a possibilidade prazer será o bem. E no resto do di-
álogo, tentando descobrir o que
ocupará na vida mista o primeiro, o
segundo, o terceiro lugar e assim por
desta separação (1903, p. 89). Porém, diante, Platão está tentando elaborar
posso eu sentir prazer sem estar uma teoria do bem humano que
consciente que sinto prazer? Esta servirá de guia de escolha sobre as
parece ser uma questão difícil. E a opções no contexto de uma vida

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humana. antes de fazer suas próprias avalia-


ções dos prazeres. Porém, tampouco
A TESE DE PLATÃO SOBRA pensa ele que nenhum prazer de
O VALOR DO PRAZER nenhum tipo tem valor na vida
humana. Ele pensa que alguns
Todos os hedonistas nos diálogos de prazeres são melhores que outros e
Platão, a massa no Protágoras, que algumas vidas se saem melhor ou
Cálicles no Górgias e Protarco no são mais felizes que outras na medida
Filebo, têm em comum algumas em que contêm os melhores prazeres.
suposições. Todos eles, obviamente, É isso o que argumenta no nono livro
sustentam que o prazer em si é a da República, aparentemente como
única coisa que é boa em si (ou boa parte de seu argumento maior que o
como um fim último); todas as outras homem justo é mais feliz que o
coisas que são boas são boas como injusto: a vida do homem justo que é
um meio ou fonte de prazer; eles guiado pela razão e que busca o
supõem, aparentemente, uma conhecimento como seu fim último é
possível separação entre os prazeres mais feliz que a vida do homem
em si e estas outras coisas. Eles não injusto que é governado pelo impulso
admitem que um prazer em si seja e persegue a honra, e esta última é,
mau. Eles avaliam e posicionam os por sua vez, mais feliz que a vida do
prazeres somente com base na homem mais injusto que é governado
magnitude. Eles supõem todos que pelo apetite e que persegue a riqueza
uma como o fim último de sua vida. E isso
é, em parte, porque a primeira vida
pessoa que sente prazer conhece ou é contém mais prazeres de valor (os
o juiz último sobre se sente prazer. prazeres de obter conhecimento) que
Platão não é um hedonista; suas a segunda, cujos prazeres de vitória e
avaliações e classificações dos honras têm, por sua vez, mais valor
prazeres no livro IX da República que os de satisfação de riqueza ou
pressupõem sua prova anterior nesta apetite (R. 580d2-587c4).
obra que o bem não é idêntico ao
prazer e, como vimos, ele, no Filebo, Isso pressupõe que os prazeres
explicitamente refuta de um modo têm certo valor e que alguns prazeres
novo a hipótese que o prazer é o bem têm mais valor que outros. Platão,
porém, avalia e posiciona os prazeres

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diferentemente do que faz o mistura com dor e a verdade ou rea-


hedonista. Ele não concorda que o lidade de um prazer enquanto distinta
valor dos prazeres depende da falsidade ou aparência de um
inteiramente de sua magnitude, como prazer. Ele discute também a natureza
os hedonistas do Protágoras supõem, do prazer ou o que pensa que é o
e ele não concorda que um homem prazer – algo que, pare ele, é
que pensa que tem prazer não pode necessário fazer antes de posicionar
estar errado a respeito disso, como ou avaliar os prazeres. Seu
supõem todos os hedonistas, embora argumento, então, busca mostrar que
possam conceder que um homem a vida do homem de conhecimento é
pode estar errado quanto à mag- a mais prazerosa mostrando que os
nitude dos prazeres imaginados em prazeres de comer, beber e fazer sexo
perspectiva ou quanto à magnitude (os principais prazeres da parte apeti-
de prazeres relembrados (Protágoras, tiva da alma e do homem de riqueza)
Filebo). É tarefa de Platão, então, e os prazeres de vitória e honras (os
explicar que outras bases há para se prazeres da parte impulsiva da alma)
avaliar os prazeres e como um não são nem puros nem verdadeiros
(reais), ao passo que os prazeres do
homem de conhecimento são
verdadeiros e puros, tanto quanto
homem pode enganar-se ao pensar isso for humanamente possível.
que sente prazer. Vou aqui considerar
como ele leva adiante este projeto Pode-se pensar que a pureza é
sobretudo na República; embora compatível com a base que tem o
venha a me referir ao Filebo, a ava- hedonista para avaliar e posicionar os
liação dos prazeres aí presente é prazeres. De fato, Bentham a leva em
muito mais complexa e remetemos o conta, embora observe que a pureza
leitor à excelente discussão de D. não é, estritamente falando, uma
Frede (1992). propriedade de um prazer em si, mas
antes uma propriedade do ato que
Na República (583c2-587c4), produz o prazer; todos os prazeres em
Platão propõe dois critérios para si são puros, mas alguns podem ser
avaliar e posicionar os prazeres: produzidos de um modo que há “uma
pureza de um prazer ou sua não chance” que o prazer seja
acompanhado de dor, e estes são os

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Hugh H. PLATÃO
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prazeres impuros (Bentham, 1789: sem pureza maior ou frequentemente


cAp. 4). Além do mais, um hedonista repetido”. Não somente mais belo,
posicionaria os prazeres puros e mas mesmo mais “prazeroso”,
impuros somente pela magnitude, o embora aqui, aparentemente, mais
resultado final da balança dos prazeroso não signifique que é de
prazeres contra as dores. Assim, um maior intensidade, duração ou
prazer impuro pode ter mais valor ou frequência?
estar mais bem posicionado que um
prazer puro, caso o resultado final da No Górgias (491e5-494dl), já
balança do prazer contra a dor no possuímos um quadro do que é uma
prazer misto seja maior que no do grande classe de prazeres impuros.
prazer puro. Cálicles pensa o prazer como a
satisfação de um apetite corpó- reo,
Platão, todavia, não parece estar admite que o próprio apetite causa
pensando na pureza segundo o dor e pensa que a intensidade de um
modelo do prazer é diretamente proporcional à
intensidade do apetite que ele
hedonista. Primeiro, ele tem uma satisfaz. Ele pensa primariamente em
teoria do que são alguns prazeres, de apetites e prazeres corpóreos e
onde se segue que esses prazeres são parece aceitar um modelo fisiológico
sempre mistos ou, pelo menos, que as do apetite e prazer: o apetite ocorre
dores são condições necessárias dos quando o corpo está esvaziado ou
prazeres, não somente um efeito deficiente de algo (p. ex., se está
provável dos atos que os produzem. E, sedento ou faminto) e o prazer ocorre
segundo, ele parece pensar que os quando o corpo está repleto e o
prazeres puros têm sempre mais valor desejo (p. ex., pela bebida ou comida)
que os prazeres mistos, pouco está saciado – um modelo que parece
importando, aparentemente, quais funcionar bem com a fome, a sede e
sejam as relações quantitativas entre talvez com uma atração sexual.
eles; de fato, ele nos diz isso Parece que, então, todos os prazeres
explicitamente no Filebo (53bl0-c3): de Cálicles são mistos ou impuros.
“todo prazer, por menor ou
infrequente que seja, se for sem Na República (585d8-586c7), o
contaminação com a dor, é mais próprio Sócrates propõe um modelo
prazeroso e mais belo que um prazer similar de desejo e prazer, mas o

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modifica de dois modos significativos. depleção/repleção. Ele explicita-


Primeiro, ele aplica o modelo da mente menciona os prazeres do olfato
depleção – repleção não somente aos como prazeres puros que podem ser
desejos e prazeres que nascem na muito intensos (R. 584b6-9) e, no
alma por meio do corpo, mas também Filebo (51d7-10), ele acrescenta que
para alguns dos desejos e prazeres da os prazeres de escutar (digamos,
própria alma: “e não é a ignorância e escutar música) e ver (p. ex., contem-
loucura, por sua vez, um tipo de vazio plar um pôr-do-sol ou ver uma bela
na condição da alma? Sim. E quem pintura) – na verdade, todos os
tem parte na alimentação e prazeres “estéticos”, literalmente os
prazeres da percepção sensível –
podem ser deste tipo. Eles não são
precedidos de uma deficiência no
sabedoria preenche o vazio e é corpo ou na alma, embora, em um
repleto?” (R. 585b3-7). Se a sentido muito geral, por vezes
ignorância e a loucura são sentidas sentimos sua falta (ou, simplesmente,
como penosas e um desejo surge de não os temos) e, assim, podemos
preencher esse vazio com a desejá-los.
sabedoria, então a obtenção da
sabedoria será prazerosa e esse No Filebo, o modelo é estendido
prazer não será puro. Porém, talvez, para além de sua dimensão de
diferentemente da forme, sede e restauração ou reparação (talvez por
atração sexual, a loucura e a comparação aos deuses, uma
ignorância não são sempre sentidas comparação que tínhamos visto antes
como penosas, que não seja por outra no experimento-de-pensamento de
razão que a pessoa pode não estar Sócrates). Podemos pensar o corpo
consciente de sua ignorância ou humano com saúde ou doente; alguns
loucura, como é frequentemente prazeres corpóreos ocorrem, então,
demonstrado nos primeiros diálogos quando a saúde é restaurada ou a
de Platão. deficiência é reparada. De modo
similar, podemos pensar a alma como
Segundo, Platão não pensa que tendo saúde ou vigor da alma, como a
todos os prazeres que nascem na alma virtude ou conhecimento, ou como
por meio do corpo devam ser corrompida pelo vício e ignorância;
entendidos segundo o modelo em tais casos, novamente, podemos

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Hugh H. PLATÃO
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pensar o prazer como ocorrendo prazeres mistos exceda a soma total


quando a virtude é restaurada ou o dos prazeres na vida dos prazeres
conhecimento é obtido. Porém, tam- puros. A aversão que se tem da dor
bém podemos pensar os seres pode ser considerável ou a tolerância
humanos não como sendo deficientes que se tem à dor pode ser quase nula;
enquanto seres humanos, mas como em tais circunstâncias, a escolha de
sendo seres imperfeitos uma vida de prazeres puros contra
uma vida de prazeres mistos pode
em comparação aos deuses. Há coisas muito bem ser racional para tal pes-
que não temos, embora estas faltas soa, supondo que seja possível.
não sejam deficiências: vir a conhecer Porém, não há evidência em nossos
uma prova matemática elegante, a textos que Platão pensou este assunto
contemplação de uma cena serena desta maneira.
nas margens do Céfiso, o odor de uma
gardênia, escutar a quadragésima Antes, ele parece querer avaliar
sinfonia de Mozart – alguém pode não os prazeres com base em coisas
ter tudo isso e ter o gozo em parte outras que os próprios prazeres ou
porque ainda não as tinha, embora suas propriedades intrínsecas, do
não sejam a restauração da saúde ou modo como normalmente avaliamos
o ato de reparar alguma deficiência um outro fenômeno psíquico, o
psíquica. desejo: avaliamos e posicionamos
usualmente nossos desejos avaliando
Agora, por que os prazeres puros e posicionando os objetos de nossos
devem sempre ser posicionados desejos. Avaliamos o desejo por uma
acima dos prazeres mistos, como certa comida ou bebida, por exemplo,
Platão sustenta no Filebo, descobrindo se esta comida ou bebida
independentemente das quantidades é boa para nós; se for, o desejo é um
que esses prazeres e dores são? Ele bom desejo; se não, não. E é assim
poderia ter pensado, talvez, que uma como Platão avalia o desejo em geral,
vida de prazeres e nenhuma dor – como faz, por exemplo, na sua
uma vida somente de puros prazeres distinção entre apetites necessários e
– é racionalmente preferível a uma não necessários (R. 558d5- 559d2).
vida com alguns prazeres e algumas Agora, o que toma possível avaliar
dores, mesmo que o resultado final do deste modo os desejos é que os
prazer contra a dor na vida dos desejos chegam, como se estivessem

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prontos, com Para determinar que objetos são


melhores ou piores, Platão se funda
em sua metafísica: as Formas são
melhores que os objetos sensíveis que
uma certa estrutura: um desejo deve participam delas, que, por sua vez, são
ser um desejo por algo, deve ter um melhores que as imagens dos objetos
objeto. De fato, é teoria padrão sensíveis que participam das Formas –
platônica (p. ex., Smp. 199e6-200b5) a metafísica (e epistemologia) da
que o desejo é sempre de algo. Esta Linha Dividida da República. Assim, o
estrutura nos dá uma base para prazer de aprender ou conhecer as
avaliar nossos desejos. Porém, o Formas platônicas é puro porque as
prazer não parece ter nenhuma tal Formas platônicas são puras,
estrutura. Pode ter causas e exemplares sem falhas de seu tipo, ao
condições sob as quais nasce, mas não passo que os objetos sensíveis que
parece ter, como parte de sua participam delas têm falhas de algum
natureza, um objeto, ou pelo menos modo ou outro; assim, os prazeres de
não tão evidentemente como o conhecer as Formas estarão acima
desejo. O pensamento essencial de mesmo dos puros prazeres estéticos
Platão, na República e no Filebo, é que cujos objetos são, digamos, cores ou
o prazer de fato tem um objeto e que sons – os prazeres de ver belas pin-
deve ser avaliado avaliando-se este turas ou escutar música.
objeto. Não é mais apropriado avaliar
e posicionar os prazeres por sua Sócrates encontra uma base para
intensidade, como faz o hedonista, avaliação e classificação, mesmo para
que avaliar os desejos por suas prazeres mistos, que vem de fora dos
intensidades, ou avaliar ambos por próprios prazeres (isto é, outra que
suas in- tensidades, como Cálicles o suas propriedades intrínsecas de
faz no Górgias. Pureza é de fato uma intensidade e duração), mas desta vez
base para avaliar um prazer, mas a não se funda pesadamente
pureza de um prazer é devida à pureza
de seu objeto: é porque o objeto de na metafísica platônica, mas na
um prazer puro é melhor que o objeto medicina de sua época e de seus
de um prazer impuro que os prazeres análogos psíquicos. Usando o modelo
puros devem ser posicionados acima de prazer depleção/reple- ção ou
dos prazeres impuros.

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fisiológico restaurativo, Sócrates ob- sua vez, depende dos prazeres que ela
serva que a saciação de uma depleção nos faz gozar ou as dores que nos faz
pode ser apropriada ou não para a evitar, de modo que não se está
depleção, boa ou má para a pessoa avaliando em última instância os
que sente o vazio. Isso é certamente prazeres de modo não hedonista.
verdadeiro para comidas e bebidas; Porém, Platão pode estar aqui se
eles podem ser bons ou maus para baseando em seus argumentos contra
nossa saúde, excessivos ou em falta a identidade do bem e prazer, os
quanto à quantidade, frequentes quais, se bem-sucedidos, abrem um
demais ou pouco frequentes, e assim espaço para outras coisas serem o
por diante. A medicina da época bem em si além do prazer.
rotineiramente avaliava os prazeres
físicos em função da saúde e da A outra propriedade em que
doença; ter prazer nas comidas e Platão se baseia para avaliar os
bebidas que são boas para nós leva a prazeres na República (e no Filebo) é a
um bom prazer; ter prazer em verdade e a realidade. Esta tese pouco
comidas e bebidas danosas leva a um usual, difícil e obscura foi discutida
mau prazer. Algo similar, ensina extensivamente na bibliografia se-
Sócrates, pode ser verdadeiro da cundária (ver, por exemplo, Taylor,
repleção de um vazio de ignorância ou 1991; Frede, 1992, 1993) e podemos
loucura: a ignorância pode ser saciada abordá-la aqui somente brevemente.
com a opinião falsa, por exemplo, e Há pelo menos duas questões
mesmo que a pessoa tenha prazer diferentes.
com a opinião falsa, ele está em um
paraíso de loucos (R. 585e, 586e).
Presumivelmente, então, é com base
no ser bom ou mau do objeto que Primeiro, Platão sustenta que por
preenche o vazio que deve ser vezes nos enganamos ao tomar o
avaliado o prazer; Platão deve ter alívio da dor por um prazer. Ele pensa
pensado que aqui ele está avaliando o que, além dos dois estados de prazer
prazer de modo não hedonista, mas e dor, há um estado psicológico
por algo outro que o próprio prazer – intermediário que não é prazeroso
por exemplo, a saúde. O hedonista nem penoso: um ponto hedônico zero
pode replicar, para ecoar uma linha do ou neutro, por assim dizer. Quando
Protágoras, que o valor da saúde, por nossos corpos estão em depleção –

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digamos desidratados –, podemos dor.


sentir a depleção como uma dor; isso
é como um movimento para baixo a Uma segunda questão é a
partir do zero e isso é uma dor real ou aparente aplicação por parte de
verdadeira; quando nosso corpo está Platão da verdade e falsidade ao
saciado, estamos nos movendo da dor prazer e dor. Especialmente desde
para o zero, mas, por causa do Hume, os modernos pensam que ver-
contraste com a dor que nos está dade e falsidade podem ser aplicadas
abandonando, tomamos erronea- a estados psíquicos que representam
mente esse alívio da dor por um algo, como as crenças, expectativas e
prazer. É como o caso em que não memórias; eles podem ser falsos ou
sabemos onde estamos em um prédio verdadeiros em comparação com a
e tomamos erroneamente o realidade que representam. Porém,
movimento do porão ao térreo como dizem eles, o prazer e a dor não são
um movimento do nível da calçada ao entidades psíquicas
topo do prédio. Porém, este alívio das representacionais; eles não
dores não é um prazer, mas somente representam nada em comparação ao
um reflexo dos verdadeiros prazeres, qual possam ser verdadeiros ou
diz ele (R. 586b7-9); aparentemente, falsos. O
ele pensa que o alívio da dor é similar
ao prazer, como o reflexo é similar ao humeano e o hedonista podem
seu objeto, e erramos ao tomar esta conceder, obviamente, que uma
similaridade como uma identidade. O expectativa de prazer pode ser falsa,
prazer real ou verdadeiro é sentido bem como a memória de um prazer
quando há um movimento para cima também pode ser falsa; isso, porém, é
a partir do zero, como quando não um outro assunto. Estes casos não
estamos nem com prazer nem com mostram que os prazeres podem eles
dor e então sentimos o perfume de mesmos ser falsos, mas somente que
uma rosa, a exibição de uma prova esses prazeres de fato não ocorreram.
matemática elegante ou a
contemplação da Beleza-em-si. Há Não é claro quão estritamente
prazeres verdadeiros ou reais, podemos tomar a aplicação por parte
sustenta Platão, e eles devem sempre de Platão dos termos gregos para
ser posicionados acima dos prazeres verdade e falsidade ao prazer; por
falsos ou aparentes, que são alívio da vezes, as mesmas palavras podem

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significar real e aparente e, embora se seguido de dor. Apesar de sua tese


possa disputar que a distinção entre talvez mais moderada dos prazeres
real e aparente possa ser aplicada a falsos no Filebo, o ar de um paradoxo
prazeres, é um tipo diferente de persiste aqui também. De qualquer
disputa e não necessariamente uma modo, é suficientemente claro que a
confusão e mesmo um erro ca- pureza e verdade dos prazeres não
tegorial. De qualquer modo, esta são, para Platão, critérios
disputa, se verdade e falsidade podem quantitativos, de modo que não
ser aplicados aos prazeres, pode não somente ele não é um hedonista, mas
afetar a tese de Platão que por vezes mesmo ao avaliar o prazer como uma
podemos tomar erroneamente o das boas coisas na vida, ele o quer
alívio da dor por um prazer. Mesmo fazer antes de modo qualitativo que
que prazer e dor não sejam entidades por magnitude e número. Ele fez
psíquicas representacionais, como
não parecem ser, mesmo assim
podemos tomar erroneamente o
alívio de um como sendo o outro. um longo caminho desde o
Platão fala de tais enganos na Hedonismo do Protágoras.
República e no Teeteto; podemos
erroneamente tomar uma cor ou som NOTA
belo pela Beleza-em-si, por conta de
sua similaridade: tomamos errone- Todas as traduções são do autor, a
amente a similaridade pela menos que haja observação em
identidade. contrário.

Fica talvez um ar de paradoxo REFERÊNCIAS E LEITURA


sobre a avaliação e classificação da COMPLEMENTAR
parte de Platão dos prazeres pela
pureza e verdade. Vimos que ele não Bentham, J. (1789). The Principies of
usa a pureza do modo como o Morais and Legislation. London.
hedonista a usa, levando-a em conta
nos cálculos do resultado final do Broome, J. (1996). Weighing Goods.
prazer sobre a dor. Nele a concebe ele Oxford: Oxford University Press.
como o hedonista a concebe, por se,
ou não, um prazer é precedido ou Frede, D. (1992). Disintegration and

Hugh H. Benson 506 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

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Plato’s Philebus. In R. Kraut (ed.) The Cambridge, Mass.: Harvard University
Cambridge Companion to Plato (cAp. Press.
14). Cambridge: Cambridge University
Press. Rudebusch, G. (1999). Sócrates,
Pleasure, and Value. Oxford: Oxford
____ (trad.) (1993). Philebus. University Press.
Indianapolis:
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Berkeley: University of Califórnia
Gosling, G. C. B. and Taylor, C. C. W Press. Sidgwick, H. (1981). The
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Oxford: Clarendon Press. Indianapolis: Hackett.

Hackforth, R. (1972). Plato’s Philebus. Taylor, C. C. W (1991). Plato:


Cambridge: Cambridge University Protagoras, rev. edn. Oxford: Oxford
Press. University Press.

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Oxford University Press. and Moral Philo- sopher. Cambridge:
Cambridge University Press. Zeyl, D.
Mirrlees, J. (1982). The economic uses (1980). Sócrates and hedonism:
of Utili- tarianism. In A. Sen and B. Protagoras 351b-358d. Phronesis 25,
Williams (eds.) Uti- litarianism and pp. 250-69.
Beyond (pp. 63-84). Cambridge:
Cambridge University Press.

Moore, G. E. (1903). Principia Ethica. PARTE V


Cambridge: Cambridge University
Press. A ÉTICA, A POLÍTICA E A ESTÉTICA
PLATÔNICAS
Penner, T. (1971). False anticipatory
pleasures: Philebus, 36a3-41a6.
Phronesis 15, pp. 166-78. Rawls, J.

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22 outras. Algumas passagens parecem


comprometê-lo com a tese que há
A unidade das virtudes realmente somente uma virtude com
cinco diferentes nomes, enquanto
DANIEL DEVEREUX outras apontam para uma tese
segundo a qual cada virtude tem sua
A doutrina da unidade das virtudes foi própria essência e definição distinta.
defendida de um modo ou outro pela Por conveniência, podemos
maioria dos filósofos antigos, mas ela denominar a tese mais forte (que há
é associada principalmente a quem somente uma virtude com cinco
lhe deu origem, Sócrates. Ele nomes) a Tese da Identidade; a tese
sustentava que todas as virtudes são mais fraca (que as virtudes são distin-
um de certo modo e ligava isso à sua tas em sua essência e definição, mas
tese que as virtudes consistem em um insepa- ravelmente ligadas umas às
tipo de conhecimento. Porém, outras), a Tese da Inseparabilidade.
exatamente o que entendia pela tese
que “as virtudes são uma” deixou Ambas as teses são paradoxais no
gerações de estudiosos perplexos. sentido em que esbarram de frente
Nossas fontes primárias para a tese de com nossas concepções ordinárias das
Sócrates sobre este tema são dois virtudes. É uma crença comum que
curtos diálogos “socráticos” de Platão algumas pessoas, que são corajosas,
– o Protágoras e o Laques – e não são muito sábias ou prudentes, e
infelizmente estes diálogos não nos que, por exemplo, uma pessoa deso-
dão uma explicação clara e não ambí- nesta pode ser muito prudente e
gua de como as virtudes devem moderada ao levar adiante suas
formar uma unidade. As virtudes que trapaças. Os contemporâneos de
Sócrates discute nesses diálogos são a Sócrates também consideraram estas
justiça, a coragem, a temperança, a teses como paradoxais: Protágoras
piedade e a sabedoria. Ele claramente exprime a tese comum quando diz
defende que essas virtudes formam que “muitos são corajosos, mas
uma unidade no sentido em que não injustos, e muitos ainda são justos,
se pode ter uma delas sem ter todo o mas não sábios” (Prt. 329e5-6).
resto, mas não é claro que se quer Protágoras também afirma, com a
sustentar a tese mais forte que todas aprovação de Sócrates, que as
as virtudes são idênticas umas às virtudes são partes distintas de um

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todo e que elas diferem umas das República e do Político, no intuito de


outras do modo como as partes de um ver como as teses de Platão sobre a
rosto diferem umas das outras unidade das virtudes pode ter diferido
(329c2- 330b6). Em resposta a estas das de Sócrates.
teses, Sócrates não defende sua tese
própria da unidade das virtudes; ele UNIDADE COMO IDENTIDADE
não dá nem mesmo uma expressão
clara de sua posição. No lugar disso, A maioria dos estudiosos hoje
em bom modo “socrático”, ele tenta compreende a doutrina da unidade de
refutar a posição de Protágoras Sócrates como uma tese que as
examinando as relações entre as virtudes são idênticas umas às outras.
virtudes particulares. Assim, uma Nossa primeira reação a esta tese é
razão para a falta de clareza da provavelmente a de pasmo. O que
posição de Sócrates é que seu pode querer significar o proponente
objetivo não é tanto explicar e da identidade pela tese que não há
defender sua própria tese, mas diferença, por exemplo, entre ser
refutar a tese de seu interlocutor. justo e ser corajoso? Estas virtudes
Contudo, seus argumentos nos dão não são obviamente idênticas uma à
algumas indicações de como se outra (ou às outras virtudes). É
posiciona; os estudiosos acreditam importante observar, porém, que
geralmente que podemos montar as Sócrates distingue entre uma virtude
peças de um quadro claro de sua como a justiça e as ações ou o
posição com base nesses argumentos comportamento associado a ela. A
(ver o capítulo O Elenchus Socrático). virtude da justiça é um estado interno
Na discussão a seguir, explorarei e da alma que é expresso ou
avaliarei as diferentes interpretações “exercitado” nas ações justas. Os
da posição de Sócrates sobre interlocutores de Sócrates, quando
lhes é pedido a dar uma definição de
uma virtude, frequentemente dão
uma explicação em termos de um
a unidade das virtudes, assim como certo tipo de comportamento, como
tentarei compreender o que pode o “a justiça consiste em dizer a verdade
ter levado a esta tese paradoxal. e pagar suas contas” (R. 331bl- c2);
Próximo do fim, discutirei Sócrates, então, tipicamente, os
brevemente porções relevantes da conduz a uma explicação que põe o

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foco na fonte interna à alma de tal sustenta que há uma única fonte da
comportamento (ver, por exemplo, ação justa, corajosa, etc.: se as
La. 191e9-192cl; cf. Chrm. 160d5-e5). virtudes são idênticas umas às outras.
A virtude é o estado da alma, não o Vários dos argumentos de Sócrates no
comportamento que deriva e exprime Protágoras parecem apoiar a Tese da
esse estado. Assim, o que Sócrates Identidade. Por exemplo, no
queria dizer com a tese que a justiça é argumento em favor da unidade da
idêntica à coragem é que o estado da temperança e sabedoria, ele primeiro
alma que dá origem às ações justas é faz com que Protágoras concorde que
idêntico ao estado que dá origem às a loucura é o oposto tanto da
ações corajosas. E, segundo a Tese da temperança quanto da sabedoria, e
Identidade, Sócrates sustenta que há que uma coisa única tem um só
uma única forma de conhecimento (o oposto; ele então tira a conclusão
“conhecimento do bem e do mal”) seguinte.
que é a chave para a ação justa,
corajosa e virtuosa em geral. Esse [PI] Então, qual destas duas
conhecimento garante que o juízo de proposições devemos
alguém sobre como agir será correto, abandonar, Protágoras? A
bem como que se agirá de forma proposição que para uma coisa
há somente um oposto ou a que
correspondente, visto que o desejo do afirma que a sabedoria é
agente estará apropriadamente diferente da temperança e que
dirigido ao bem. Assim, mesmo que cada uma é uma parte da
ser corajoso, no sentido de agir de virtude...? Qual delas devemos
modo corajoso, não é obviamente o abandonar? As duas afirmações
mesmo que ser justo, no sentido de são dissonantes; não estão em
agir com justiça, pode ainda ser harmonia uma com a outra.
verdadeiro que a virtude da justiça Como poderiam estar, se há um
seja idêntica à virtude da coragem: e somente um oposto para cada
isto é, a fonte da ação justa e corajosa coisa única, ao passo que a
pode ser um e mesmo estado: o loucura, que é uma coisa única,
“conhecimento do bem e do mal”. tem evidentemente dois
opostos, sabedoria e
A próxima que devemos temperança? Não é assim que a
considerar, então, é se Sócrates situação está, Protágoras?

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Ele concordou, embora a coragem, a justiça e a piedade


contragosto, e eu continuei: – são elas cinco nomes para a
mesma coisa ou
Não tomaria isso a sabedoria b) a cada uma há subjacente
e a temperança uma só coisa? uma coisa única, uma coisa
(333al-b5) com seu próprio poder ou
função, cada uma diferente da
Aqui, em [Pl], Sócrates conclui que a outra? Você disse que não são
sabedoria e a temperança são uma e nomes para a mesma coisa,
a mesma coisa. (Observe, para futura mas que cada um destes
referência, que Sócrates toma a nomes se refere a uma coisa
conclusão “temperança e sabedoria única e que elas são todas
são uma só coisa” como incompatível partes da virtude, não como
com a tese que cada uma é uma parte as partes do ouro, que são
da virtude.) O que quer que pensemos similares umas às outras e ao
todo de que são partes, mas
como as partes de um rosto,
dessemelhantes do todo de
deste argumento, parece claro que ele que são partes e de cada uma,
pensa ter estabelecido a identidade cada uma tendo seu próprio
entre temperança e sabedoria. poder e função. Se esta ainda
é sua tese, diga que sim; se
Uma outra passagem que apoia a mudou em algum sentido,
Tese da Identidade é a seguinte: exponha claramente sua nova
posição. (349a6-c7)
[P2] Quero que você me lembre
agora algumas das questões que Sócrates distingue duas posições,
fiz antes, começando pelo início; (a) e (b), e, então, observa que
quero, então, continuar em sua Protágoras originalmente rejeitou (a)
companhia para dar uma boa e optou por (b). Visto que Sócrates
olhada em algumas outras argumenta contra (b), parece que
questões. Penso que a primeira deve aceitar (a); (a) é claramente a
questão era esta: tese segundo a qual há somente uma
virtude com cinco nomes diferentes,
a) a sabedoria, a temperança, a isto é, a Tese da Identidade (ver

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também 349el-350c5, esp. 350c4-5). deve ser temido ao conhecimento de


bem e do mal e, como evidência, ci-
Assim, há várias passagens no tam o argumento final do Laques (ver,
Protágoras que dão forte apoio à Tese por exemplo, Penner, 1999, p. 98-
da Identidade. Porém, pelo menos um 100). Nesse argumento, Sócrates
dos argumentos de Sócrates põe um parece rejeitar a definição proposta
problema para esta tese. Relembre por Nícias da coragem como o
que a Tese da Identidade sustenta que conhecimento do que deve e não
as várias virtudes são todas idênticas deve ser temido (a mesma definição
a uma forma única de conhecimento, pela qual argumenta no Protágoras!).
um conhecimento geral do É conveniente fazer uma
apresentação esquemática do
valor ou “conhecimento do bem e do argumento (que se encontra em
mal”. Agora, no argumento final do 197el0-199ell).
diálogo, a coragem é identificada não
com um conhecimento geral do valor, 1. A coragem é uma parte da
mas com o “conhecimento do que virtude.
deve e não deve ser temido” (360d4- 2. Coragem = conhecimento do que
5). Esta definição parece claramente deve e não deve ser temido
feita à medida para a coragem: pense (definição proposta por Nícias).
em quão estranho seria propor o 3. Coisas que devem e não devem
“conhecimento do que deve e não ser temidas são males e bens
deve ser temido” como uma definição futuros.
da justiça ou temperança. Contudo, se 4. Portanto, a coragem =
a coragem é idêntica à justiça e à conhecimento de bens e males
temperança, a mesma definição deve futuros.
também se aplicar a elas. Esse 5. O conhecimento de bens e males
argumento, assim, parece tratar a futuros = conhecimento de todos
coragem como diferente em natureza os bens e males.
das outras virtudes. 6. Donde a coragem = conhecimento
de todos os bens e males.
Os proponentes da Tese da 7. Conhecimento de todos os bens e
Identidade têm uma resposta: eles males = “virtude como um todo”.
sustentam que Sócrates identifica o 8. A coragem não é, portanto, uma
conhecimento do que deve e não parte da virtude; ela é o todo da

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virtude. argumento final do Protágoras.


9. Porém, foi inicialmente dito que
(1) a coragem é [somente] uma Uma coisa que deve nos fazer ir
parte da virtude. com calma em relação a este modo de
compreender o propósito do
argumento final do Laques é a
conclusão que Sócrates tira. Ele
10. Assim, parece que a definição da parece rejeitar a identificação da
coragem em (2) não pode estar coragem ao conhecimento do bem e
certa. do mal, visto que isso entra em
conflito com a suposição inicial (1) que
Como observa o proponente da a coragem é [somente] uma parte da
identidade, Sócrates parece virtude. Os proponentes da identi-
argumentar que o conhecimento do dade argumentam que Sócrates está
que deve e não deve ser temido é de fato nos apresentando uma
idêntico ao “conhecimento de todos escolha entre (1) e (2): devemos ou
os bens e males”. Devemos, portanto, abandonar a tese que a coragem é
concluir que a definição da coragem uma parte da virtude ou abandonar a
dada no Protágoras é enganadora, na definição da coragem como o
medida em que parece implicar que a conhecimento do que deve e não
coragem não é idêntica ao deve ser temido. E é claro que
conhecimento geral de todos os bens Sócrates quer que abandonemos (1) e
e males. O Laques aporta um esclare- não (2), visto que ele argumenta em
cimento ao mostrar que o favor de (2) no Protágoras e, como
conhecimento do que deve e não vimos em [Pl], também parece rejeitar
deve ser temido é realmente a mesma (1).
coisa que o conhecimento de todos os
bens e males. Visto que o Se isto é um modo plausível de
conhecimento é a base não somente compreender o resultado do
da ação corajosa, mas também da argumento final do Laques, a Tese da
ação sábia, moderada, justa e pia Identidade parece fornecer uma
(194d4-el), ele é a entidade única à explicação satisfatória de todos os
qual são idênticas as várias virtudes. O argumentos de Sócrates em prol da
argumento final do Laques unidade das virtudes no Protágoras.
complementa e esclarece, assim, o Embora pareça haver uma gritante

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contradição entre os dois diálogos – a (1)na passagem que abre o caminho


definição da coragem em favor para o argumento final.

da qual Sócrates argumenta no [LI] E você, Nícias, diga-me de


Protágoras parece ser rejeitada no novo desde o início – você sabe
Laques –, a Tese da Identidade que, quando investigávamos a
fornece um belo modo de as har- coragem no início do
monizar. O argumento do Laques não argumento, a investigávamos
rejeita a definição da coragem do como uma parte da virtude?
Protágoras, mas mostra que é
equivalente ao “conhecimento do Sim, fazíamos isso.
bem e do mal” e esta fórmula pode
também servir como definição de E não deu você sua resposta
cada uma das outras virtudes. supondo que era uma parte e,
como tal, uma entre outras
PROBLEMAS COM A partes, todas as quais tomadas
TESE DA IDENTIDADE conjuntamente chamamos
virtude?
Segundo a Tese da Identidade, o
argumento final do Laques visa a Sim, como não?
mostrar que a coragem não é uma
parte da virtude, mas antes é idêntica E você fala também das
ao “todo da virtude”. Contudo, é mesmas partes que eu? Além da
difícil fazer concordar a conclusão do coragem, chamo a temperança,
argumento com essa tese: Sócrates a justiça e tudo o mais deste tipo
diz que, já que a coragem é uma parte partes da virtude. Você não faz
e não o todo da virtude, devemos o mesmo?
rejeitar a definição proposta por
Nícias (199e3-ll). Não parece que nos Sim, de fato.
seja dada uma escolha entre (1) e (2),
como sugere a Tese da Identidade: Pare aí. Estamos de acordo
Sócrates claramente indica que (2) sobre estes pontos. (197el0-
deve ser rejeitada porque está em 198b2)
conflito com (1). Ademais, ele parece
enfatizar sua adoção de

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Sócrates quer estar seguro desde estamos diante de uma contradição


o início que ele e Nícias concordam gritante entre o argumento final do
sobre a coragem como uma parte da Laques e o argumento final do
virtude. Ele indica claramente sua Protágoras, no qual Sócrates dá seu
adoção da tese quando diz que endosso a esta mesma definição.
“chamo a temperança, a justiça [e a
coragem]... partes da virtude”. UNIDADE COMO INSEPARABILIDADE
Chamemos isso Doutrina das Partes.
No Laques, Sócrates se compromete Um modo de resolver as discrepâncias
com a Doutrina das Partes e o que ele entre o Laques e o Protágoras foi
entende por isso é que cada virtude é sugerido por Gregory Vlastos em um
distinta defínicionalmente do todo da influente artigo publicado nos anos
virtude e das outras partes. Segundo o 70. Vlastos sustenta que é “doutrina
argumento do Laques, então, as socrática padrão” que as virtudes
virtudes não são idênticas umas às sejam partes distintas de um todo,
outras. São elas inseparáveis ou se citando, como apoio, o Laques e o
pode ter uma das virtudes sem ter as Mênon. Ele, assim, rejeita a Tese da
outras? Sócrates sugere que elas são Identidade e argumenta a favor da
inseparáveis, quando diz que o Tese da Inseparabilidade. O que ele
conhecimento de todos os bens e faz, então, com as passagens no
males garante a posse de todas as Protágoras que parecem fornecer
partes da virtude (ver 199d4-el). claro apoio à Tese da Identidade, isto
é, o argumento em favor da tese que
Vimos que o Protágoras fornece “a temperança e a sabedoria são
forte evidência em favor da Tese da um”? A fim de ver como Vlastos
Identidade, ao passo que o Laques interpreta
parece estar comprometido com a
Tese da Inseparabilidade, isto é, a tese estas passagens, será proveitoso
segundo a qual as virtudes têm considerar o primeiro argumento de
definições distintas, mas estão Sócrates em favor da unidade no
inseparavel- mente ligadas umas às Protágoras (330b7-331b8). Nesse
outras. Além disso, se a definição argumento, que segue imediatamen-
proposta por Nícias no Laques é te a tese de Protágoras que nenhuma
rejeitada porque entra em conflito das virtudes é como as outras,
com a Doutrina das Partes, então Sócrates põe o foco na relação entre a

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justiça e a piedade. Seu objetivo é premissas a título de predicações


claramente refutar a tese de “paulinas” (Vlastos, 1981, p. 252-9).
Protágoras no caso dessas duas Isto é, no lugar de entender “a justiça
virtudes, isto é, mostrar que essas é justa” como uma predicação
duas virtudes “são muito similares ordinária, na qual atribuímos a
uma à outra” (ver 330e3- 331a5). propriedade de ser justo a si mesma,
Porém, seu argumento é perturbador ele nos sugere entender esta
em mais de um aspecto. Ele começa predicação na direção da afirmação
obtendo o acordo de Protágoras às de São Paulo que “a caridade é capaz
seguintes afirmações, de sofrer longamente e gentil”; o que
São Paulo claramente queria dizer é
1. “a justiça é justa”, que aqueles que são caridosos são
2. “a justiça é pia”, também capazes de sofrer longa e
3. “a piedade é pia” e gentilmente. Na leitura paulina, as
4. “a piedade é justa”, afirmações “a justiça é justa” e “a
justiça é pia” significariam que a
concluindo então que, visto que a justiça é tal que todas as suas
justiça e a piedade têm em comum instâncias são
duas propriedades (as propriedades
de ser justo e ser pio), elas devem ser
“muito similares” uma à outra.
Protágoras objeta plausivelmente que justas e pias. Dando um passo a mais,
ser similar em um par de aspectos não se as predicações paulinas “a justiça é
significa que elas sejam “muito pia” e “a piedade é justa” são ambas
similares” (331dl- e4). Porém, o que é verdadeiras, isso pode ser expresso ao
mais perturbador quanto ao modo paulino como “a justiça é pia”
argumento são as premissas. O que ou “a justiça e a piedade são um”.
Sócrates entende exatamente por Entendidas deste modo, as
esta tese, por exemplo, que a justiça é afirmações não implicam que as
justa? Falamos de ações como justas, virtudes são idênticas umas às outras,
bem como de Leis e indivíduos, mas mas somente que
como uma propriedade como a justiça
ser justa (ou pia)? a) a justiça é tal que todas as suas
instâncias (todos os indivíduos
Vlastos nos sugere tomar estas justos) são pias, bem como

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b) a piedade é tal que todas as suas Protágoras com os do Laques, há


instâncias são justas; isto é, estas algumas fortes razões contra
duas virtudes são inseparáveis. compreender (l)-(4) como predica-
ções paulinas. Como acabamos de ver,
A sugestão de Vlastos não na leitura paulina de Vlastos, se a
somente dá apoio à Tese da justiça é pia e a piedade é justa, segue-
Inseparabilidade, mas tem a se imediatamente que a justiça é
vantagem suplementar de dar sentido piedade (ou que a justiça e a piedade
às afirmações intrigantes (l)-(4) de são um). Porém, Protágoras tendo
Sócrates. Segundo esta interpretação,
os argumentos do Protágoras não aceito que a justiça é pia e que a
estão em conflito com a adoção de piedade é justa, Sócrates não conclui
Sócrates da Doutrina das Partes na a questão a justiça é piedade (ou a
Laques. No Protágoras, também, cada justiça e a piedade são um): ele tira
virtude é tomada como tendo sua conclusão mais fraca que elas são
própria essência e definição distinta muito similares (331b5-6). E, ao final
(p. ex., a coragem = o conhecimento de seu argumento em prol da unidade
do que deve e não deve ser temido); a da temperança e sabedoria, ele diz
tese de Sócrates que “a temperança e que estas duas virtudes “são um”,
a sabedoria são um” não nega que quando tinha sido mostrado antes
tenham definições distintas: ela que a justiça e a piedade são “quase o
afirma que todos os que são sábios mesmo” (333b5-6). Se Sócrates
são moderados e todos os que são entende estas afirmações como
moderados são sábios, isto é, ela predicações paulinas, não haveria
afirma a inseparabilidade da tem- razão para ele distinguir as conclusões
perança e sabedoria. dos dois argumentos do modo como
faz e nenhuma razão para evitar a
PROBLEMAS COM A TESE conclusão que a justiça é a piedade.
DA INSEPARABILIDADE
Outra dificuldade para a leitura
Embora seja verdadeiro que as paulina tem a ver com a gama de
leituras propostas por Vlastos dão instâncias da justiça, piedade e as
sentido às afirmações intrigantes de outras virtudes. Segundo a explicação
Sócrates e fornecem um modo de de Vlastos, devemos entender a
harmonizar os argumentos do afirmação “a justiça é pia” como

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equivalente a: “a justiça é tal que,


necessariamente, todas as suas
instâncias são pias”. Se tomarmos as Finalmente, devemos lembrar
instâncias da justiça como restritas a que, em [Pl], Sócrates considera que a
pessoas, a tese é que todos os conclusão “a temperança e a
indivíduos justos são pios – uma tese sabedoria são um” é incompatível
que Sócrates aceitaria. Porém, com a tese que as virtudes são partes
obviamente o conjunto de instâncias de um todo; assim, fazer apelo à
da justiça inclui as ações (bem como noção de predicação paulina para
Leis e instituições), assim como tornar esta conclusão compatível com
pessoas. Falando estritamente, a Doutrina das Partes está mal dirigido
então, “a justiça é pia” deve ser desde o início. Parece que, neste e em
entendida como a tese que todos os outros argumentos no Protágoras,
indivíduos são justos e que todas as Sócrates está defendendo uma
ações justas são pias, mas há boas posição que ele considera ser
razões para se duvidar que Sócrates incompatível com as virtudes serem
aceitaria esta tese. Na discussão da partes de um todo.1
piedade no Eutifro, Sócrates sugere
que “o pio” é uma parte ou subclasse UNIDADE POR MEIO DA
de “o justo”; em outras palavras, tudo SABEDORIA NO LAQUES
o que é pio é justo, mas nem tudo o
que é justo é pio (lle4- 12d4). Embora Os resultados de nossa investigação
não identifique que coisas são justas, até aqui podem ser sintetizados do
mas não pias, ele esta presumi- modo seguinte:
velmente pensando em ações; a tese
que algumas pessoas justas não são 1.
pias estaria em conflito com a tese de AmaioriadosargumentosdeSócrate
Sócrates que a posse de uma virtude sno Protágoras apoia a Tese da
acarreta a posse de todas as outras. Identidade, mas o argumento final
Assim, parece claro que Sócrates não parece estar mais de acordo com a
aceitaria a tese que a justiça é pia, se Tese da Inseparabilidade. O
isso for entendido como uma pre- Protágoras, assim, nos dá “sinais
dicação paulina. (Para outro modo de mistos” sobre a posição de Sócrates
compreender essas predicações, ver a respeito da unidade das virtudes.
Devereux, 2003, p. 78-9). 2. No Laques, por outro lado, a

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posição de Sócrates parece clara e b) Uma segunda dificuldade tem a ver


consistente: ele adota a Doutrina com a tese de Sócrates que o
das Partes e seus argumentos conhecimento do bem e do mal é o
apoiam a Tese da Inseparabilidade. “todo da virtude”. Se esse
3. Enquanto Sócrates considera as conhecimento é um “todo” e a
virtudes como partes do “todo da coragem é uma de suas partes,
virtude” no Laques, ele parece óbvio que a coragem deva
aparentemente não as vê como consistir em uma espécie ou
espécies ou subdivisões de um subdivisão do conhecimento geral
conhecimento geral do bem e do do bem e do mal.
mal.
Contudo, Sócrates parece negar
O argumento final do Laques nos isso. Como, então, pode a coragem
brinda com um par de dificuldades. ser uma “parte” do conhecimento do
bem e do mal sem ser uma subdivisão
a) Como vimos, Sócrates afirma que a dela?
coragem é uma parte distinta da
virtude e se refere ao AborDemos estas dificuldades
conhecimento do bem e do mal observando, primeiro, uma diferença
como o “todo da virtude”. importante entre o Laques e o
Observamos também que o que Protágoras quanto ao tratamento da
distingue a coragem das outras “sabedoria”. No Protágoras, quando
virtudes não é uma espécie Sócrates apresenta a tese que a vir-
particular ou subdivisão do tude é um todo constituído de partes,
conhecimento do bem e do mal. O ele toma a sabedoria como uma de
conhecimento que parecia ser suas partes, junto com a temperança,
distintivo da coragem – o a justiça, a piedade e a coragem (ver
349bl-c5,359a4-7). No Laques,
conhecimento do que deve e do que todavia, a sabedoria não parece ser
não deve ser temido – se mostrou tratada como uma parte da virtude;
idêntico ao conhecimento geral do no argumento final, o conhecimento
bem e do mal. O que é, então, que de bem e do mal é caracterizado
distingue a coragem das outras como o “todo da virtude” e há acordo
virtudes? geral entre os comentadores que
Sócrates identifica o conhecimento

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do bem e do mal à sabedoria. Esta uma unidade indivisível; não pode ser
identificação parece estar implicada dividido nas partes correspondentes
em sua explicação de como o às diferentes virtudes. O
conhecimento do bem e do mal é o conhecimento que é essencial para
“todo da virtude”; ele sustenta que à cada uma dessas partes é um e o
pessoa corajosa, que possui por mesmo, e seu nome é sabedoria. Se a
suposição esse conhecimento, “não coragem e as outras virtudes
faltaria” nenhuma das partes da requerem o conhecimento e se o
virtude, pois ele necessariamente conhecimento envolvido em cada
possuiria a temperança, a justiça e a uma dessas virtudes é o conheci-
piedade (199d4-el). A sabedoria não é mento do bem e do mal, parece claro
mencionada. Além disso, a sabedoria que as definições da coragem e das
está ausente da lista das partes da outras virtudes devem incluir uma
virtude no início do argumento final referência a este conhecimento. E,
(ver [Ll] acima eMen. 78d7-79a5). No dado que as virtudes são partes
Laques pelo menos, Sócrates distintas de um todo, cada uma deve
aparentemente toma a sabedoria ter um aspecto distintivo que a
como idêntica ao conhecimento do diferencia das outras, assim como do
bem e do mal, isto é, ao todo da todo. Já que o conhecimento
virtude (cf. Men. 87d2-89a3 com envolvido em cada uma das virtudes é
Chm. 174al0-175a8). o mesmo, o aspecto que distingue
cada virtude das outras deve ser algo
diferente do conhecimento envolvido.
Devemos considerar, então, se o
Se a sabedoria é o todo da virtude Laques fornece evidência para um
e as outras virtudes são suas partes, outro fator essencial à coragem que
como exatamente devemos entender seja distinto do conhecimento
essa relação parte-todo? Como envolvido.
observamos acima, o argumento final
de Sócrates aparentemente descarta Vários estudiosos observaram
a possibilidade que a coragem seja que há indicações na discussão de
uma espécie ou subdivisão da Sócrates com Laques que Sócrates se
sabedoria. O argumento sugere que a dispõe a incluir a qualidade da
sabedoria, entendida como o persistência na definição da coragem.
conhecimento do bem e do mal, é Por exemplo, na sua resposta à

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definição de Laques da coragem como correta caso possa ser dada uma
persistência, Sócrates primeiro explicação clara da sabedoria da pes-
observa que a persistência é muito soa corajosa. Seu comentário final a
ampla. Visto que a coragem é suposta Laques indica sua aprovação quanto a
ser objeto de admiração e benéfica, incluir a persistência na definição da
não pode ser idêntica a uma qua- coragem.
lidade que pode ou não ser objeto de
admiração e benéfica; como Sócrates [L2] Porém, está você de acordo
observa, há algo como uma que concorDemos com nossa
persistência estúpida ou burra, que afirmação até certo ponto?
não é objeto de admiração nem
benéfica. Ele sugere, portanto, Até que ponto e com qual
corrigir a definição para “a coragem é afirmação?
uma persistência sábia” (192c2-dll).2
O próximo passo consiste em Com a que nos ordena a
esclarecer “em que tipos de coisas” o persistir. Se você estiver de
homem corajoso é sábio (192el). acordo, manteremos nossa
Sócrates busca e vamos persistir, de
modo que a própria coragem
infere que terão uma definição não se rirá de nós por não a
satisfatória da coragem se puderem termos procurado
especificar o tipo de conhecimento corajosamente – se a
envolvido. Todavia, a investigação persistência talvez deva afinal
começa a fracassar quando Sócrates ser a coragem. (193e8-194a5)
apresenta a Laques uma série de
exemplos destinada a esclarecer o Este comentário enfatiza a
tipo de conhecimento que é posição de Sócrates sobre a
característico da coragem, mas importância da persistência para uma
Laques é incapaz de ver o ponto compreensão da natureza da coragem
desses exemplos (192e2-193d9). Ao (ver também 191d6-e2; para uma
final da discussão com Laques, discussão mais completa, ver
Sócrates não rejeita a definição da Devereux, 1995). Sócrates também
coragem como uma persistência tornou claro que um certo tipo de
sábia. O tratamento que dá à conhecimento é essencial à coragem.
definição sugere que pode se revelar Assim, a definição correta da coragem

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deve incluir menção a dois fatores, flanco à objeção que a coragem se


persistência e sabedoria. O que está revela como sendo não uma parte,
faltando no final da discussão com mas o todo da virtude, pois a inclusão
Laques é uma explicação positiva da da persistência fornece um modo de
sabedoria da pessoa corajosa. O distinguir a coragem das outras
próximo estágio da discussão vai na partes, bem como do todo da virtude.
direção de suprir esta falta quando
Nícias argumenta, de modo Estas indicações na discussão
persuasivo, que o conhecimento com Laques mostram que Sócrates
envolvido na coragem não é o considera a persistência como um
conhecimento do que é provável que componente essencial da coragem
ocorra no futuro ou o conhecimento que deve ser incluído na sua definição.
de habilidades particulares, mas antes A definição então incluiria dois
um conhecimento fatores: a persistência e o
conhecimento do bem e do mal; o
fator de conhecimento a unifica com
as outras virtudes, ao passo que a
geral do que é bom e mau para os persistência a distingue delas. As
seres humanos (195b2-197cl). Porém, partes da virtude são diferentes umas
Nícias ignora o conselho de Sócrates das outras não porque cada uma é
para não deixar fora de sua definição uma espécie ou subdivisão do
a persistência. Se tivesse incluído a conhecimento do bem e do mal, mas
persistência, sua definição teria sido: porque cada uma é caracterizada por
“a coragem é a persistência um aspecto distintivo separado do
combinada com o conhecimento do conhecimento do bem e do mal.3
que deve e do que não deve ser
temido”. O argumento final de Porém, como devemos entender
Sócrates que o conhecimento do que a tese que a coragem é uma “parte”
deve e do que não deve ser temido é do conhecimento do bem e do mal, se
a mesma questão que o ele não é uma subdivisão dele? No
conhecimento do bem e do mal teria, argumento final, Sócrates explica
então, levado ao resultado que: “a como o conhecimento do bem e do
coragem é a persistência combinada mal é o todo da virtude observando
com o conhecimento do bem e do que quem possui tal conhecimento
mal”. E esta definição não abriria o não “estaria em nenhuma falta com” a

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

temperança, justiça, piedade ou medida em que estão baseadas no


coragem (194d4-el). Em outras conhecimento do bem e do mal. Para
palavras, a sabedoria é o “todo da resumir: há duas razões para a tese de
virtude” no sentido em que sua posse Sócrates que a sabedoria, entendida
garante a posse de todas as suas como o conhecimento do bem e do
partes (como no caso de qualquer mal, é o todo da virtude:
todo). Todavia, nesta perspectiva,
parece que a posse da coragem a) como os outros todos em relação
também garantiria a posse às suas partes, a posse da
sabedoria garante a posse das
das outras virtudes: se a coragem outras virtudes;
requer a sabedoria e a sabedoria b) enquanto as outras virtudes se
garante a posse das outras virtudes, manifestam em algumas, mas não
então a coragem também garante a em todas as ações virtuosas, a
posse das outras virtudes. Porém, a sabedoria se manifesta em todas
explicação de Sócrates implica que é as ações virtuosas.
por meio da sabedoria que as outras
virtudes são possuídas: a pessoa UNIDADE NO
corajosa deve ser justa porque a PROTÁGORAS E NO
coragem requer a sabedoria e quem é LAQUES
sábio não pode deixar de possuir a
justiça e as outras virtudes (não Até aqui, nossa discussão trouxe à luz
explicamos como a sabedoria implica várias inconsistências de monta entre
a justiça fazendo apelo a uma outra o Protágoras e o Laques.
virtude). As outras virtudes estão
inseparavelmente conectadas entre si 1. Observamos que, no Laques,
por meio da sabedoria. Ademais, Sócrates considera todas as
somente a sabedoria parece se virtudes, exceto a sabedoria, como
manifestar em todas as ações partes distintas de um todo; ele
virtuosas. Algumas ações podem ser caracteriza a sabedoria ou o
justas e corajosas, mas a maioria das conhecimento do bem e do mal
ações corajosas não serão casos de como o “todo da virtude” porque
justiça e muitas ações justas não serão ela garante a posse das outras
casos de coragem. Contudo, todas as virtudes. A sabedoria é
ações virtuosas serão sábias na

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Hugh H. PLATÃO
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estabelecer que a coragem é


idêntica ao conhecimento do que
a chave para a unidade das virtudes, deve e do que não deve ser temido,
pois é por meio da sabedoria que e isso sugere que Sócrates
as outras virtudes estão considera a coragem como
inseparavelmente conectadas definidonalmente distinta das
entre si. Esta tese razoavelmente outras virtudes (visto que a
complexa da unidade das virtudes definição parece feita para se
por meio da sabedoria não ajustar à coragem, mas não às
encontra paralelo no Protágoras. outras virtudes); os argumentos no
Como vimos, a maioria dos Laques, por outro lado, geram uma
argumentos de Sócrates no posição consistente da unidade das
Protágoras visa a estabelecer a virtudes: a virtude é um todo
identidade das virtudes, o que está constituído de partes e cada parte
claramente em conflito com a tese é definidonalmente distinta das
do Laques que as virtudes são outras partes e do todo; todos os
distintas umas das outras. argumentos apontam à Tese da
Inseparabilidade.
2. Igualmente, quando Sócrates
desdobra a tese que as virtudes são 4. Por fim, a inconsistência de mais
partes distintas de um todo no monta entre os dois diálogos se
Protágoras, ele inclui a sabedoria encontra em seus argumentos
como uma de suas partes, junto finais: no Protágoras, Sócrates
com a justiça, a piedade, a argumenta que a coragem deve ser
temperança e a coragem; não há definida como o conhecimento do
sugestão no Protágoras que a que deve e do que não deve ser
sabedoria seja o todo da virtude. temido, mas, no Laques, ele
argumenta contra esta mesma
3. Observamos, além disso, que o definição quando ela é proposta
Protágoras nos dá “sinais mistos” a por Nícias.
respeito da tese de Sócrates da
unidade das virtudes. Enquanto a Como devemos entender as incon-
maioria dos argumentos visa a sistências entre o Protágoras e o
mostrar a identidade das virtudes, Laques?
o argumento final busca

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Hugh H. PLATÃO
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Por que, por exemplo, Platão faz com há sinais em Xenofonte e Aristóteles
que Sócrates argumente em favor de da tese do Laques que o
explicações conflitantes da coragem – conhecimento da pessoa corajosa é
e sua relação com o conhecimento – de fato o “conhecimento de todos os
em dois diálogos que se está bens e males”. Encontramos também
geralmente de acordo que foram em Xenofonte os mesmos “sinais
escritos no mesmo período? Embora mistos” sobre a unidade das virtudes
tenhamos visto que a Tese da que observamos no Protágoras: em
Identidade e a Tese da algumas passagens, as virtudes são
Inseparabilidade têm ambas ditas idênticas, mas em outras elas
dificuldades em explicar partes de recebem definições distintas (ver, por
cada diálogo, os proponentes dessas exemplo, Memória. III.9.4-6, IV6.1-6 e
teses podem alegar que su- IV6.11. Infelizmente, Aristóteles nada
perestimamos estas dificuldades. tem a dizer sobre a tese de Sócrates
Visto que é embaraçoso que Platão da unidade das virtudes.) Aqui no-
tenha defendido teses inconsistentes vamente, o Sócrates de Xenofonte
sobre a unidade das virtudes em está próximo do Sócrates do
obras escritas no mesmo período, há Protágoras e contrasta com o
boas razões para se olhar de novo Sócrates do Laques.
estes diálogos no intuito de ver se há
um modo de reconciliar suas teses Os relatos de Xenofonte e
aparentemente divergentes. Aristóteles sugerem que as teses e os
argumentos atribuídos a Sócrates no
Porém, talvez haja um outro Protágoras provêm do Sócrates
modo de explicar estas histórico (ver o capítulo O Problema
inconsistências. Nossas outras fontes Socrático). Se for isso, então a posição
principais para as teses de Sócrates, diferente do Laques sobre a unidade
Xenofonte e Aristóteles, lhe atribuem das virtudes e o argumento final que
ambas a tese da coragem que é refuta
adotada no argumento final do
Protágoras: “o conhecimento do que
deve e do que não deve ser temido”
(ver, por exemplo, Xenofonte, a definição (socrática) da coragem
Memória. K6.1-11; Aristóteles, EE ffl.l, defendida no Protágoras podem
1229al2-16 e EN III.8 1116b3-15). Não parecer como sendo inovações

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Hugh H. PLATÃO
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platônicas. Os relatos de Xenofonte e NOS DIÁLOGOS TARDIOS


Aristóteles sugerem, assim, a se-
guinte explicação das inconsistências Na República, Platão discute em
entre os dois diálogos. Ao escrever o detalhes a natureza da coragem,
Protágoras, Platão se pôs como tarefa temperança, justiça e sabedoria, mas
formular as várias teses e argumentos ele não aborda diretamente a
do Sócrates histórico a respeito das questão de sua unidade. Contudo,
inter-relações entre as virtudes. parece claro que ele não cauciona
Ocorre que havia tensões não nem a Tese da Identidade nem a Tese
resolvidas nas teses de Sócrates e elas da Inseparabilidade. Já que as
estão preservadas no quadro que virtudes têm definições diferentes,
Platão faz do grande debate de seu elas não podem ser idênticas (ver o
mentor com Protágoras. Então, no capítulo Definições Platônicas e
Laques, Platão soluciona estas Formas). No caso da coragem, e talvez
tensões e articula uma doutrina mais também da temperança e da justiça,
consistente; de um lado, ele Platão parece sustentar que ela (elas)
abandona a tese que as virtudes são pode(m) existir à parte da sabedoria.
idênticas; de outro, ele desenvolve e Um novo e importante fator na
refina a ideia que as virtudes são discussão das virtudes é a distinção
partes distintas de um todo e que a entre o conhecimento e a opinião
sabedoria é a chave de sua unidade. verdadeira. No Protágoras e Laques,
Seu objetivo não é o de rejeitar a tese Sócrates sustenta que as virtudes
de Sócrates sobre a unidade das vir-
tudes, mas de a fortalecer, tomando- requerem (se não forem idênticas a)
a mais consistente e defensável. Esta um certo tipo de conhecimento ou
é uma explicação pelo menos possível sabedoria. No Mênon, porém, ele
das inconsistências entre o distingue entre conhecimento e
Protágoras e o Laques. Porém, é opinião verdadeira, sugerindo que
também plausível, como mencionado algumas pessoas podem ser virtuosas
antes, buscar uma interpretação dos sem possuir a sabedoria ou
dois diálogos que resolva suas conhecimento. A virtude delas, isto é,
inconsistências no lugar de as deixar a coragem, temperança, justiça e
vigorando. piedade, estaria baseada na opinião
verdadeira antes que no conhe-
UNIDADE NA REPÚBLICA E cimento (96el-100a7). Todavia,

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Hugh H. PLATÃO
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Sócrates também sustenta que a Assim como a cidade é sabia por causa
opinião verdadeira, em contraste com da sabedoria de seus governantes,
o conhecimento, é inerentemente assim também a cidade é corajosa por
instável (97c4-98a8) e, assim, não é causa da coragem de seus soldados
claro como poderia servir de base (cf. 428e7-9 com 429a8-b3; 429b5-c3
para uma ação consistentemente claramente implica que os soldados
virtuosa. Caso se possa “estabilizar” a são corajosos).
opinião verdadeira sobre o que é o
bem e o mal, então seria possível Pode-se argumentar que, visto
possuir uma ou mais virtudes sem ser que a “coragem” dos soldados é
sábio. caracterizada como uma coragem
“política”, ela não conta como uma
Segundo o relato da República da coragem genuína ou acabada, porém
educação dos guardiães, um dos devemos notar que esta seção do livro
objetivos da “música” e da “ginástica” IV (429a8-430c2) fornece um relato
consiste em instilar crenças da
verdadeiras estáveis sobre valores e
como se deve viver (a estabilidade é
enfatizada em, por exemplo, 429c7-
430b9) (ver o capítulo Platão e as coragem da cidade; mais adiante
Artes). Os que foram selecionados neste livro, Sócrates dá uma breve
para serem governantes recebem descrição da coragem nos indivíduos
uma educação “superior”, a qual (442b5-c3). Visto que é a coragem de
envolve a aquisição do conhecimento seus soldados que é responsável pela
da Forma do Bem, a fundação e fonte coragem da cidade, é a coragem deles
de todo valor. Eles possuem a que é descrita na seção anterior. Essa
sabedoria, bem como a coragem, descrição especifica que a coragem é
temperança e justiça. Os guardiães a preservação das opiniões
que não se tomam governantes – os verdadeiras sobre o que deve ser
que se tomam soldados e defensores temido – opiniões inculcadas pelas
da cidade – não possuem sabedoria, Leis – diante de perigos, dores,
porém eles aparentemente possuem prazeres e desejos. A coragem dos
a coragem, visto que é a coragem governantes não se amolda a esta
deles, e não a dos governantes, que é descrição, já que está baseada antes
responsável pela cidade ser corajosa.

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Hugh H. PLATÃO
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no conhecimento que na opinião ver- A República também preserva a


dadeira. A descrição de Sócrates da tese do Laques que a posse da
coragem no indivíduo é neutra em sabedoria garante a posse das outras
relação à opinião verdadeira e ao virtudes, pois Platão parece sustentar
conhecimento (442bll-c3), o que que se deve primeiro adquirir os
sugere que não sustenta que somente hábitos e disposições das virtudes
a coragem baseada no conhecimento éticas antes que se possa alcançar o
conta como verdadeira coragem. A conhecimento da Forma do Bem – o
referência à coragem “política” (em ponto culminante da sabedoria dos
430c3-4) serve para indicar que a governantes (518c4-519b5). Segundo
coragem descrita é a da cidade, não a a República, então, pelo menos al-
individual; ela não quer sugerir que a gumas das outras virtudes são
coragem dos soldados é inferior à co- separáveis da
ragem genuína.
sabedoria, mas a sabedoria não é
Na República, então, Platão separável delas; isto é, os indivíduos
abandona a tese de Sócrates que as podem possuir algumas virtudes sem
virtudes são inseparáveis; pelo menos possuir a sabedoria, mas quem é sábio
uma das virtudes, a coragem, pode ser possuirá necessariamente as outras
possuída sem que se seja sábio. virtudes.
Contudo, ele não adota a tese co-
mum, expressa por Protágoras, que se Em dois dos diálogos tardios de
poderia ser corajoso e ao mesmo Platão, o Político e as Leis,
tempo injusto, imoderado e néscio percebemos um afrouxamento a mais
(cf. Prt. 349d2-8). Ele preserva a da unidade das virtudes. No Político,
noção que a pessoa corajosa fará Platão sustenta não somente que a
juízos corretos sobre o que vale a coragem e a temperança podem
pena arriscar, com vista a quê, e agirá existir à parte uma da outra (e da
de modo confiável com base nesses sabedoria), mas que elas são
juízos. Embora não seja claro no relato naturalmente opostas uma à outra: os
de Platão na República se a coragem que são corajosos, mas não
implica a posse da temperança e da moderados, tendem a ser hostis em
justiça, é claro que é incompatível relação aos que são moderados, e
com a imoderação, injustiça e vice-versa (307d6-308b8; cf. 306a8-
estultícia. c5). As duas virtudes encontram-se

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Hugh H. PLATÃO
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unidas em uns poucos indivíduos que ele não “corrige” sua posição em
afortunados (311a4-5); quanto aos outros lugares do diálogo. Ele pode
que são corajosos ou moderados, mas ainda sustentar que um certo tipo de
não os dois, o governante sábio conhecimento é suficiente para a
tentará engendrar harmonia e posse das outras virtudes, mas
concórdia entre eles instilando-lhes parece, na velhice, aceitar a tese
crenças partilhadas sobre o que é sustentada comumen- te, expressa
nobre, justo e bom (309cl-310a5). A por Protágoras, que as outras
parte mais importante da arte do
homem Político consiste em “tecer
juntos” estes dois tipos de caráter e
engendrar sua cooperação em virtudes podem existir à parte da
conduzir os assuntos da cidade para o sabedoria e que a coragem, pelo
bem da inteira comunidade (311a4- menos, pode existir à parte das outras
c7). Não há sugestão que a coragem virtudes (Prt. 349d6-8).
“verdadeira” ou que a temperança
“verdadeira” requer a posse das ou- O distanciamento de Platão da
tras virtudes. (Isso é contestado por tese socrática da inseparabilidade (se
outros estudiosos; ver, por exemplo, não identidade) das virtudes gera
Cooper, 1999a e Bobonich, 2002, p. questões acerca da unidade do
117-18; 413-16). conceito de virtude. Se a coragem ou
a temperança podem ser possuídas
Nas Leis, a última obra de Platão, por indivíduos que não são sábios ou
a coragem é vista como uma injustos e se essas qualidades fazem
qualidade que mesmo animais podem com que estas pessoas tenham mais
possuir e, assim, não parece requerer sucessos em seus empreendimentos
nem conhecimento nem opinião (ver Euthd. 281b4-el), então não
verdadeira (963e: o contraste entre podemos mais dizer que as virtudes
esta passagem e Laques 197a6-cl é são necessariamente benéficas (Men.
muito forte). As Leis também tratam a 88c4-5) e podemos nos perguntar o
coragem como compatível com a que teriam em comum a coragem, a
injustiça e a imoderação (661d6- temperança, a justiça e a sabedoria. O
662a3). Obviamente, Platão pode que subjaz ao fato que são todas elas
estar “conversando com o vulgo” ao chamadas “virtudes”? Podemos
dizer estas coisas, mas é interessante distinguir, como faz Aristóteles, entre

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Hugh H. PLATÃO
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a coragem e a temperança como “vir- chamar a ambas do termo único


tudes no sentido estrito”, de um lado, “virtude”, no próximo instante
e como tendências naturais ao falamos delas como duas, co-
comportamento corajoso e ragem e sabedoria?” Digo-lhes
moderado, de outro; as primeiras por quê.
pressupõem a posse da sabedoria e
são sempre benéficas, mas as últimas Uma delas, a coragem, lida com
podem ser danosas por falta de juízo o medo e é encontrada em
ponderado (EN animais selvagens, bem como
em seres humanos... A alma,
VI.13 1144bl-1145a2). Platão, vocês sabem, pode tornar-se
porém, não parece seguir esta via. E, corajosa mediante um processo
assim, é para ele uma dificuldade real, puramente natural, sem o
como talvez para nós, explicar a auxílio da razão, mas, na falta da
unidade no interior do conceito de razão, uma alma sábia e sensata
virtude. É a esta dificuldade que ele jamais veio a ser nem virá a ser –
faz alusão em uma interessante pois são coisas distintas.
passagem próxima do fim das Leis. O
porta-voz de Platão, o Estrangeiro de É verdade.
Atenas, relembra a seus in-
terlocutores que o único fim da Assim, eis aqui a explicação
legislação deles é a virtude e então para vocês de como diferem e
observa que, já que há quatro por que são duas. Agora, vocês
virtudes – coragem, temperança, devem explicar-me como elas
justiça e sabedoria –, será necessário são uma e a mesma. A tarefa de
identificar o fio único que as une. É vocês, compreendam, consiste
fácil, diz ele, explicar como elas são em me dizer por que as quatro
distintas umas das outras; o problema virtudes formam mesmo assim
real consiste em explicar o que as uma unidade. (963el-964a4,
unifica (963d4-7). Para ilustrar o que tradução ligeiramente
tem em mente, ele seleciona duas modificada; cf. 965c9-e4).
virtudes, a coragem e a sabedoria.
Sem surpresas, esta tarefa não é
Eis a questão que vocês devem levada a cabo nas Leis. Dada a
fazer-me: “por que é que, após concepção da coragem do Estrangeiro

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de Atenas, não é claro por que deveria atração pela doutrina da


contar como uma virtude e não como
um poder moralmente neutro, como
a astúcia, que pode ser usada para fins
bons e maus. Parece que Platão, até o unidade, pois ele claramente
final de sua vida, estava ainda pensava que toda qualidade que
perplexo com a natureza da virtude merecesse ser chamada virtude
por causa do que via como a falta de tinha de ser objeto de admiração e
unidade e heterogeneidade das benéfica (para seu possuidor, bem
virtudes individuais. como para os outros; ver Men.
87cll-e4). Alguém pode ter grande
NOTAS persistência ou ser muito
destemido, mas, se essas
As traduções de Platão foram qualidades não forem “guiadas”
tomadas de J. M. Cooper (ed.) Plato: pela sabedoria, elas por vezes
Complete Works (Indianápolis: resultarão em ações que são
Hackett, 1997). danosas e não admiráveis. Assim, a
virtude da coragem deve estar
1. Alguns comentadores tentaram fundada na sabedoria e o mesmo
encontrar um terreno raciocínio pode ser também
intermediário entre a Tese da aplicado às outras virtudes: a
Identidade e a Tese da justiça, a temperança e a piedade
Inseparabilidade, uma tese devem estar fundadas na sabedoria.
segundo a qual as virtudes podem Porém, se alguém possui a
ser partes de um todo e, ao mesmo sabedoria, ele verá o valor de cada
tempo, idênticas umas às outras; uma das outras virtudes e fará todo
ver, por exemplo, Ferejohn, 1982; esforço para ter inteira posse delas.
Brickhouse e Smith, 2000, p. 169- Assim, não se pode ter uma virtude
73. Contudo, como vimos em [Pl] e sem possuir a sabedoria e, quando
[P2], Sócrates considera a tese que se possui a sabedoria, também se
as virtudes são partes incompatível terá as outras virtudes (ver La.
com a tese que elas são idênticas 1994d4-el).
entre si; ver La. 199e3-9.
2. Esta parte do argumento de 3. O teórico da identidade poderia
Sócrates indica uma razão de sua objetar que, visto que Sócrates

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Hugh H. PLATÃO
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sustenta que a sabedoria ou o Recast: His La- terEthics and Politics.


conhecimento do bem e do mal é Oxford: Clarendon Press. Brickhouse,
necessário para o conhecimento e T. C. and Smith, N. D. (2000). The Phi-
também suficiente (ver 199d4-el), losophy of Sócrates (verpp. 158-73
não há necessidade para incluir a sobre a unidade das virtudes).
persistência na definição. Contudo, Boulder, Colo.: Westview Press.
a sabedoria é a fonte de todas as Cooper, J. M. (1999a). Plato’s
ações virtuosas, não somente das Statesman and politics. In J. M.
ações corajosas. Se houver uma Cooper (ed.) Reason and Emotion:
outra qualidade da alma tal que a Essays on Ancient Moral Psychology
combinação da sabedoria com esta and Ethical Theory (pp. 165-91).
qualidade está manifestada em Princeton, NJ: Princeton University
todas e somente nas ações Press.
corajosas, isso nos permitirá
distinguir a coragem das outras (1999b). The unity of virtue. In J. M.
partes da virtude e do todo (e esta Cooper (ed.) Reason and Emotion:
distinção é exigida por conta da Essays on Ancient Moral Psychology
afirmação de Sócrates que a and Ethical Theory (pp. 76-117).
coragem é uma parte da virtude). A Princeton, NJ: Princeton University
persistência parece dar conta do Press. Devereux, D. (1992). The unity
recado. Se a persistência é um of the virtues in Plato’s Protagoras
concomitante necessário da and Laches. Philosophical Review 101,
sabedoria, então não há conflito pp. 765-89.
entre as teses
(1995). Sócrates’ Kantian conception
a) que a sabedoria é necessária e of
suficiente para a coragem e
b) que a persistência é uma virtue. Journal of the History of
característica distintiva da Philosophy 33, pp. 381-408.
coragem (ver Devereux, 1992).
(2003). Plato: metaphysics. In C.
REFERÊNCIAS E LEITURA Shields
COMPLEMENTAR
(ed.) The Blackwell Guide to Ancient
Bobonich, C. (2002). Plato’s Utopia Philosophy (pp. 75-99). Oxford:

Hugh H. Benson 532 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Blackwell.

Ferejohn, M. (1982). The unity of 23


virtue and the objects of Socratic
inquiry. Journal of the History of Platão e a justiça
Philosophy 20, pp. 1-21.
DAVID KEYT
___ (1984).Socratic thought-
experiments INTRODUÇÃO

and the unity of virtue paradox. A justiça é um dos temas mais


Phronesis 29, pp. 105-22. frequentes nos diálogos de Platão,
superado em importância somente
Irwin, T. (1995). Plato’s Ethics (ver pp. pela razão. Ela é discutida em algum
79-85, 223-39 sobre a unidade das nível em quase todos os principais
virtudes). Oxford: Oxford University diálogos, mesmo no Parmênides
Press. (130b7-9, 130e5-131a2, 135c8-dl) e
Timeu (41c6-8, 42b21-2), mas é
Penner, T. (1992). What Laches and somente naRepública que o conceito
Nicias miss – and whether Sócrates é definido e a definição é argumen-
thinks courage is merely a part of tada. Consequentemente, toda
virtue. Ancient Philosophy 12, pp. 1- análise da teoria da justiça de Platão
27. deve concentrar-se nesse diálogo.

(1999). The unity of virtue. In G. Fine A busca de uma definição de


(ed.) “justiça” faz parte do projeto maior da
República de responder ao desafio
Plato 2: Ethics, Politics, Religion, and proposto por Gláucon e Adimanto.
the Soul (pp. 78-104). Oxford: Oxford Tomando a posição de advogado do
University Press. Vlastos, G. (1981). diabo, Gláucon classifica a justiça
Platonic Studies (ver pp. 221-69, 418- entre os bens que são escolhidos não
23 sobre a unidade das virtudes). por si mesmos, mas pelos resultados
Princeton, NJ: Princeton University que produzem. As pessoas, alega ele,
Press. não querem algemas em seus desejos
por mais e mais de tudo, somente

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

concordando em agir com justiça em justiça e a felicidade (ver o capítulo O


relação aos outros para evitar que Conceito de Bem em Platão).
sejam eles próprios tratados
injustamente. Que ninguém é justo de O ônus que tem quem expõe a
bom grado é mostrado, diz ele, pela teoria da justiça de Platão está em
história do anel de Giges, um anel que preencher os numerosos vazios em
torna invisível quem o possui; seu argumento, em aportar as
ninguém que possuísse tal anel premissas que faltam. Quanto mais
resistiria à tentação de se tornar longe tiver de ir o intérprete para
“como um deus entre os homens”, encontrar premissas adequadas,
servindo-se dele para satisfazer seus tanto menos credível será sua
desejos não limitados pela justiça (R. atribuição a Platão. Neste capítulo,
nunca olho para fora dos diálogos de
II.357al-360d7). Sócrates se põe a Platão e somente em um ou dois
mostrar, contrariamente a este momentos decisivos olho para fora da
portentoso desafio, que a justiça é própria República. Não faço nunca
boa em si mesma e pelo que resulta apelo a outros filósofos gregos
dela, e que a injustiça, mesmo quando antigos ou à imaginação filosófica.
passa despercebida, é prejudicial à Isso não quer dizer que meu caminho
pessoa é o único ou o melhor para completar
o argumento de Platão (ver o capítulo
injusta. O primeiro passo para Interpretando Platão). Há outras
enfrentar o desafio, um grande passo, alternativas (p. ex., Dahl, 1991); para
consiste em compreender o que é a a estratégia interpretativa adotada
justiça. Somente quando neste artigo e suas ramificações, ver
compreenDemos o que ela é, Cohen e Keyt, 1992).
Sócrates alega com razão (R. I.354cl-
3), estaremos aptos a determinar se a Eu tomo por suposto que
justiça é boa em si mesma ou boa Sócrates é o porta-voz de Platão na
somente por conta do que provém República e que os Estrangeiros de
dela. Este capítulo está inteiramente Eleia e de Atenas falam em nome de
dedicado a este primeiro passo – a Platão no Político e nas Leis,
definição da justiça por Platão – e não respectivamente.
discute o tipo de bem que é o elo que
Platão se dedica a construir entre a

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

PHUSIS E NOMOS as coisas justas existem pela arte


(technê(i)) e pelas Leis (nomois), mas
Nas Leis, o Estrangeiro de Atenas de modo algum pela natureza
toma para consideração duas ideias (phusei) explora uma antítese
conexas sobre a justiça que são privilegiada da filosofia grega dos
avançadas por alguns poetas e séculos quinto e quarto, a antítese
escritores em prosa identificados entre nomos (lei ou convenção) e
somente como certos “homens sábios phusis (natureza) (ver sobre isso Prt.
modernos” (Lg. X.886d2-3). Essas 337c6-d3 e Grg. 482e2-484c3, 488d5-
ideias são que a justiça é um artefato 489b6). Nesta antítese, nomos está
instável do engenho humano e que a associado à artificialidade,
força faz a lei. Segundo os sábios diversidade e variabilidade; phusis, à
modernos: verdade, uniformidade e
invariabilidade (ver em particular
[A]s coisas justas não o são por Aristóteles, SE 12.173a7-18 e EN
natureza (phusei), mas as I.3.1094bl4-16). Sustentar que a
pessoas continuamente estão distinção entre o que é justo e o que
em disputa umas com as outras é injusto existe somente por nomos e
a respeito delas e as estão de modo algum pela phusis é
sempre mudando, e todas as sustentar que não possui uma base
mudanças que fazem em um mais firme na realidade do que,
momento portam, cada uma, digamos, a distinção entre gregos e
autoridade, tendo vindo a ser bárbaros (sobre isso, ver Plt. 262cl0-
pela arte (technê(i)) e pelas Leis d6).
(nomois), mas de modo algum
pela natureza. Todas estas Esta tese leva, na visão de Platão,
coisas... são o tema de homens ao relativismo moral protagórico. Se o
considerados sábios pelas justo é
pessoas jovens – poetas e
escritores em prosa que simplesmente o expresso nas Leis e as
mantêm que o que é justo é o Leis estão sempre sendo mudadas,
que alguém pode ganhar com a então o que é justo é relativo não
força. (Lg. X.889e6-890a5) somente a cada polis, mas a cada
momento do tempo em cada polis. No
A tese dos sábios modernos que Teeteto, Sócrates imagina Protágoras

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dizendo que “as coisas que parecem Este condicional, vale a pena
justas e belas para cada polis são notar, exprime uma parte importante
assim enquanto forem mantidas por do argumento de Trasímaco que o
elas” (Tht. 167c4-5; ver também justo é a vantagem do mais forte (R.
172al-5) e sustenta que, “no tocante I.338d7-339a4). O segundo membro
às coisas justas e injustas, pias e da conjunção do antecedente, a
ímpias, [os seguidores de Protágoras] proposição (2), é difícil de ser negada,
estão prontos para insistir que pois está próximo de ser uma
nenhuma delas tem por natureza definição de um governante; assim,
(phusei) um ser (ousian) próprio, mas quem tiver alguma razão para negar o
sim que o que parece ser assim às pes- consequente, a proposição (3), tem
soas em comum é verdade, no alguma razão para rejeitar o primeiro
momento em que parece assim e pelo membro da conjunção do
tempo em que parecer assim” (Tht. antecedente, a proposição (1). Ora,
172b2-6). quem pensa que o que é imposto pela
força não é ipso facto justo tem uma
Como indica o Estrangeiro de tal razão.
Atenas, a doutrina que o justo é o que
está expresso nas Leis porta dentro de Se o justo não é o mesmo que o legal
si a doutrina pouco palatável que a – se a “lei justa” não é um pleonasmo
força faz a lei. Para conectar as duas, nem
tudo o que é preciso é a suposição
plausível que as Leis da polis estão nas
mãos do mais forte. Se
uma “lei injusta” um oxímoro
1. o justo em uma polis é o que é precisamos de um padrão de justiça
expresso nas suas Leis e se para além da lei. Platão encontra esse
2. os que fazem e aplicam as Leis da padrão, obviamente, em seu reino
polis – os governantes da polis – das Formas. No Parmênides, Sócrates
são os que monopolizam a força está seguro que há uma Forma da
coerciva na polis, como sustentam Justiça “em si mesma por si mesma”,
os sábios modernos, haja ou não Formas de coisas como
3. o que é justo e o que é homem, fogo, água, cabelo, lama ou
conquistado à força são o mesmo. sujeira (Prm. 130b7-d9); no grande
mito do Fedro, a alma desencarnada

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contempla a Justiça-em-si no espaço A questão se desloca agora para


além do céu (Phdr. 247c6-7) e, na o conteúdo da Forma da Justiça. O
República, a Forma da Justiça é um que apreende aquele que apreende a
dos primeiros exemplos que Sócrates Forma da Justiça? Platão dá início à
dá de uma Forma (R. 476a4-5) e é a sua complexa resposta a esta questão
única Forma, além da Forma do Bem, examinando a justiça de um polis: a
mencionada especificamente na justiça política.
Alegoria da Caverna (R. 517el-2).
Platão concebe as Formas como JUSTIÇA POLÍTICA
entidades incorpóreas (.Phd. 65d4-
66al0; Sph. 246b8), sem cor, forma ou O fim último dos Livros II a IV da
solidez (Phdr. 247c6-7), existindo fora República consiste em o que é a
do tempo e do espaço (Ti. 37c6-38c3, justiça em uma alma ou psique
51e6-52b2). Tendo as características (psuchê) individual, antes que o que
da verdade, uniformidade e
invariabilidade (R. V476a4-7, 478e7- ela é em uma cidade ou polis. A
479a5, 479e7-8), ficam do lado definição da justiça política é
daphusis na antítese phusis/nomos. ostensivamente somente uma
Platão pode assim referir-se à Forma estação intermediária no caminho da
da justiça como “o justo por natureza” definição da justiça psíquica, embora
(to phusei dikaion, R. VI.501b2) e, em na estrutura total do diálogo a
geral, pode identificar seu mundo das estação intermediária ameaça
Formas com o reino da natureza (Phd. ofuscar a estação final. Sócrates
103b5; R. X.597b5-7, c2, 598al-3; Prm. sustenta que a justiça em uma polis
132d2). Procedendo deste modo, deve ser mais fácil de se apreender
Platão abre o caminho, a todo aquele porque, uma polis sendo maior que
que adotar as Formas, para um apelo um indivíduo, a justiça deve ser mais
à natureza para além da lei. Algumas avultada (pleiôn) nela (R.
Leis serão justas por natureza,
algumas não o serão. (Para Leis justas II.368e). Platão não pode querer dizer
e injustas, ver Lg. IV715b2-6 e que a justiça política é mais fácil de ser
VII.807c4; para o conceito de percebida que a justiça psíquica, como
natureza em Platão, verMorrow, as letras grandes são mais fácil de
1948). serem visualizadas que as letras

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pequenas, pois a justiça, diferen- certas “excelências”. Filosoficamente,


temente da beleza, não é uma o passo é maior e mais problemático,
propriedade sensível (Phdr. 250bl-el). pois Sócrates não diz como as virtudes
O que ele deve querer dizer é que a ou excelências de uma polis – sua
justiça política é mais fácil de sabedoria, coragem, temperança e
compreender que a justiça psíquica. justiça – estão conectadas ao seu ser
Isso se revela ser o caso para a justiça bom.
como Platão a concebe, pois a divisão
tripartite de uma polis que subjaz à Porém, ele nos dá uma pista no
sua definição de justiça política é argumento da função, em R. I.352d8-
muito mais fácil de compreender que 354al2. A
a divisão correspondente da psique
que subjaz sua definição da justiça
psíquica (R. IV435b4-d9).
importância desta passagem para
Na busca de uma definição da compreender a maior parte de
justiça política, Platão põe o foco no República II-IV foi demonstrada por
que Sócrates descreve como “a bela Gerasimos Santas (Santas, 1985 e
polis” (hê kallipolis: R. VII.527c2), que 2001). O argumento da função na
chamaremos “Calípolis”. Sócrates passagem citada é uma aplicação do
espera encontrar a justiça na Calípolis que Santas chama “a teoria funcional
porque Calípolis é inteiramente boa do bem”. Esta teoria consiste em três
(teleôs agathê): “penso que nossa po- definições.
lis, se ela foi fundada do modo
correto, é inteiramente boa... 1. A função ou ergon de cada coisa
Claramente, então, ela é sábia, que tem uma função é
corajosa, moderada e justa” (R.
IV427e6-ll). Sabedoria, coragem, a) o que unicamente ela pode
temperança e justiça são virtudes ou fazer ou
excelências (aretai). Sócrates deduz b) o que ela pode fazer melhor que
que Calípolis tem certas aretai porque todas as outras coisas (R.
é agathê. O passo é, verbalmente, I.353al0-ll). A função dos olhos
pequeno, do adjetivo (agathê) ao consiste em ver; a função de
substantivo correspondente (aretê). uma faca é cortar. Santas chama
Calípolis, sendo “excelente”, tem uma função de tipo (a) uma

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função “exclusiva” e uma função 3. Que qualidades a fazem funcionar


de tipo (b) uma função bem?
“máxima”. Os olhos são
definidos mediante sua função O primeiro passo, então, consiste
exclusiva, pois um animal não em determinar a função de uma polis.
pode ver por outro órgão; um O que é que unicamente uma polis
podão, por outro lado, é pode fazer ou que
definido por sua função máxima,
visto que outros tipos de faca pode fazer melhor do que tudo o
podem ser usados, mas não tão mais? Platão nunca aborda esta
eficientemente, para podar. questão diretamente. Sem dúvida é
isso que dá margem à controvérsia
2. Uma coisa que tem uma função é generalizada entre os estudiosos
boa ou agathos se ela realiza bem sobre o que é o bem da polis ideal de
sua função (ver R. I.353e4-5). Bons Platão. Julia Annas atribui seu bem à
olhos veem bem; boas facas cortam sua organização (Annas, 1981, p. 110);
bem. David Reeve sustenta que ela é
inteiramente boa porque seus
3. A virtude ou aretê de algo que tem cidadãos são maximamente felizes
uma função é aquilo pelo qual ela (Reeve, 1988, p. 84) e Nicholas White,
realiza bem sua função (R. I.353c5- negando veementemente que a
7; ver também X.601d4-6). felicidade ou o ser bom de seus cida-
dãos tenha algo a ver com o assunto,
As virtudes de uma lâmina de encontra seu bem em sua coesão e
uma faca são as qualidades que a resistência à destruição (White, 1979,
fazem cortar bem, como estar afiada p. 39,114).
e ser dura. A teoria funcional do bem
nos permite, então, pôr uma ponte no Talvez possamos resolver esta
fosso entre o bem de uma cidade e disputa indo para fora da República e
suas virtudes. Para aplicar a teoria, considerando algumas das
temos de responde a três questões; observações de Platão sobre a arte
política (politikê technê).
1. qual é a função de uma polis? Encontramos uma lista das funções da
2. O que é para uma polis funcionar arte política no Eutidemo:
bem?

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Então, as outras funções (erga)


que alguém poderia dizer que
pertencem à arte política – Que estamos no caminho certo –
talvez elas sejam muitas, como que esta é, de fato, a noção implícita
tomar os cidadãos ricos, livres e de Platão da função de uma polis –
sem facções –, todas elas se encontra apoio em sua descrição de
mostraram nem boas nem más, sua polis ideal, pois as instituições
mas [a arte política] teria de sociais, econômicas e políticas da
tomar [os cidadãos] sábios e Calípolis se dirigem exatamente a
fazê-los participar do estas necessidades. Liderança com
conhecimento, se devesse ser a sabedoria é fornecida por seus
[arte] que os beneficia e os governantes; a liberdade da cidade é
torna felizes. (Euthd. 292b4-cl) protegida por seus guardiães e a
necessidade de comida, abrigo e de
Segundo esta passagem, a função outros bens materiais é defrontada
de um homem Político consiste em por seus trabalhadores. A
promover o bem-estar, liberdade, comunidade de mulheres e crianças,
tranquilidade doméstica, sabedoria e bem como a ausência de propriedade
felicidade dos cidadãos de sua cidade, privada entre os governantes e
bem como salvá-los da pobreza, da guardiães visam a prevenir facções ou
escravidão, da facção (stasis), da stasis (R. IV422e3-423d6, 461e5-
parvoíce e da miséria. Parece 465c7). Uma necessidade que não é
plausível supor que a função de um afrontada diretamente é a
verdadeiro homem Político (politikos) necessidade de felicidade. Porém,
consiste em promover o bom Platão não parece conceber a felici-
funcionamento de seu Estado (polis). dade como um bem distinto além dos
Combinando esta ideia com a tese de outros bens, mas antes como um
Sócrates que as poLeis são criadas produto natural desses bens. Pelo
pelas necessidades humanas (chreia) menos, uma das observações de
(R. II.369c9- 10), parece seguir-se que Sócrates pode ser interpretada nesta
a função de uma polis consiste em linha. Respondendo à objeção que, ao
satisfazer as necessidades de seus privar os guardiães e os governantes
cidadãos em relação aos cinco bens de Calípolis de ouro, prata e de
especificados e os resguardar dos propriedade privada, ele também os
cinco correspondentes males. está privando de felicidade, Sócrates

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responde que eles, juntamente com princípio produz a estrutura tripartite


os outros cidadãos, devem ser social e política da Calípolis, na qual
persuadidos e compelidos a “serem cada cidadão tem um lugar do qual
os melhores artesãos possíveis em não deve se evadir. Almas de ouro
seu ofício” e que, “deste modo, na governam; almas de prata defendem;
medida em que a polis inteira cresce e almas de ferro e bronze trabalham, e
é bem governada, deve-se deixar a é posto em realce o adágio que o
natureza (hê phusis) dar a cada grupo sapateiro deve se aferrar à sua forma:
sua parte na felicidade” (R. VI.421b3-
c6). Porém, impedimos que um
sapateiro tente ser um
O terreno está agora pronto para fazendeiro, um tecelão ou um
a questão (2) a respeito do bom construtor ao mesmo tempo, e
funcionamento de um polis. Na visão o ordenamos a permanecer um
de Platão, Calípolis funciona bem sapateiro, para que o trabalho
porque está organizada com base em de produção de calçados fosse
um princípio de eficiência e qua- bem feito; de modo similar,
lidade, nomeado (por Nicholas White) designamos a cada um dos
o princípio da “divisão natural do outros uma ocupação, para a
trabalho”: “mais coisas e mais belas qual era naturalmente apto e na
são produzidas mais facilmente qual, estando livre das outras
quando cada homem faz uma coisa ocupações, tem de trabalhar
para a qual é naturalmente apto, no durante toda a sua vida, não
momento certo, ficando livre das deixando escapar os momentos
outras ocupações” (R. II.370c3-5). certos para fazer bem o
Este princípio ajusta as carreiras e trabalho. (R. II.374b6-c2)
vocações ao talento e habilidade
naturais apropriadamente treinados O princípio da divisão natural do
ou educados. Platão pensa que há trabalho, deve-se notar, é a raiz da
rejeição por parte de Platão dos dois
uma hierarquia natural de tal talento aspectos definidores da democracia
e habilidade, simbolizada no mito dos (ateniense e moderna): liberdade e
metais pelo ouro, prata, ferro e igualdade (R. VIII.557a4, b4, 562b9-
bronze (R. 111.415al-7). Quando c2, 563b8). A liberdade ansiada pelo
aplicado a esta hierarquia natural, o democrata, como Platão reconhece, é

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a liberdade para viver como quiser (R. ser um fazendeiro” – o evidencia (ver
VIII.557b4-10). Porém, tal liberdade a este respeito Annas, 1981, p. 79).
seria vácua se a natureza humana tão Quanto à igualdade moral e política
rígida como o princípio platônico adorada pela democracia, vemos que
acarreta, se cada ser humano tem o o princípio de divisão natural do
potencial para somente uma vocação, trabalho, em conjunção com o mito
somente um modo de vida, ao invés dos metais, nega a ambas. A
de uma larga variedade. A liberdade igualdade moral dos seres humanos
democrática pressupõe, está em conflito com o fato do mito
contrariamente ao princípio da implicar que algumas almas valem
divisão natural do trabalho, que a mais que outras, assim como o ouro
natureza humana é suficientemente vale mais que a prata e a prata mais
plástica para dar lugar a escolhas reais que o bronze ou ferro. A igualdade
entre diferentes vidas. Esta política e a noção que a acompanha,
pressuposição de plasticidade que os cidadãos médios têm
humana também está por trás da inteligência suficiente para discutir e
alegre versatilidade de que se decidir sobre a política pública
orgulhavam os atenienses (Tücídides (Protágoras. 319b3-d7), estão em
11.41.1), a habilidade deles em mudar conflito com a ideia, acarretada pelo
com facilidade de um ofício a outro, princípio platônico em conjunção com
dos cuidados com uma o mito, que governar é uma arte que
requer conhecimento especializado,
que pode ser obtido somente por uns
poucos indivíduos naturalmente
fazenda a portar armas e a governar. dotados de intelectos excepcionais.
Os fundadores de Calípolis, por outro Sócrates afirma ambos os aspectos da
lado, estão tão convencidos que um desigualdade platônica de uma só vez
tal fazer muitas coisas quando assevera que, na Calípolis, “o
(polupragmosunê, R. IV434b7, 9) é melhor governa o inferior” (to
um óbice à competência – “João de ameinon tou cheironos archei) (R.
todos os ofícios, mestre em nenhum” IV431b6-7). A democracia, ele
– que estão prontos a manter seu lamenta, “distribui um tipo de
princípio de especialização pela força, igualdade entre iguais e desiguais” (R.
como a passagem citada acima – VIII.558c5-6). O rompimento total
“impedimos que um sapateiro tente com o princípio da divisão natural do

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trabalho em uma democracia produz, governantes, fornece uma política


na visão de Platão, um tipo de sábia; sua coragem, residindo em
anarquia (R. VIIL562e3-5) que está seus guerreiros, preserva sua
acima somente da escravidão da liberdade; sua temperança – seu “ser-
tirania (R. VIII.564a6-8). da-mesma-opinião” (homonoia) ou
“concórdia” (sumphônia) do que é
Passamos agora à questão (3) a naturalmente superior e inferior
respeito das virtudes de uma polis. quanto a qual dos dois deve
Segundo a reconstrução que estou comandar (R. IV432a6-9) – evita a
fazendo do argumento de Platão, as facção ou stasis (ver R. IV442clO-dl e,
virtudes de uma polis, as qualidades para astasis como o oposto da
que a fazem funcionar bem homonoia, ver I.352a7 e
correspondem às suas várias
subfunções. É esta correspondência VIII.545d2); sua justiça – cada
da virtude à sua função subordinada cidadão fazendo o que lhe é próprio –
que explica o que seria, de assegura, entre outras coisas, que os
trabalhadores, ao se aferrarem a seus
outro modo, um mistério: por que ofícios e não se meterem na guerra ou
Platão supõe, sem argumento, que há na política, produzem a riqueza de
exatamente as quatro virtudes da que precisa uma cidade.
sabedoria, coragem, temperança e
justiça. A função de uma polis, deve- “Fazer o que lhe é próprio”, como
se lembrar, consiste em responder às observa Sócrates, é somente uma
necessidades de seus cidadãos outra expressão do princípio da
quanto à sabedoria, liberdade, divisão natural do trabalho (R.
tranquilidade doméstica e riqueza – a IV432b2-433b4). Não deve causar
felicidade decorrendo naturalmente surpresa que esse princípio, sendo a
da satisfação dessas necessidades. principal condição do bom
Platão pensa que a Calípolis funciona funcionamento da Calípolis, deve
bem (é completamente boa) porque comparecer como uma das virtudes.
pensa que essas necessidades são O que é problemático é que essa
satisfeitas total e eficientemente virtude deva ser identificada à justiça.
pelos dotes naturais cultivados e Sócrates é consciente desse problema
canalizados de seus cidadãos. Sua e fornece quatro argumentos em
sabedoria, residindo em seus apoio a esta identificação. O primeiro,

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o argumento do que resta, é que fazer A primeira questão sobre estes


o que lhe é próprio é a virtude que argumentos é se estabelecem que
permite com que a sabedoria, a fazer o que lhe é próprio é algo que
coragem e a temperança criem raízes pode ser reconhecido por nós ou
em uma cidade, de onde se segue que pelos contemporâneos de Platão
deve ser uma virtude distinta e, como sendo a justiça. O segundo e
portanto, idêntica a única que sobrou, quarto argumentos pouco ajudam
a saber, a justiça (R. IV433b7-c3). O neste sentido, pois não fazem
segundo, ou o argumento da nenhuma conexão conceituai entre
comparabilidade, é que fazer o que fazer o que lhe é próprio e a justiça. O
lhe argumento do tribunal é melhor, ao
fazer apelo ao uso da “justiça” em um
sistema legal, conectando assim o
fazer o que lhe é próprio à justiça
é próprio rivaliza com a sabedoria, a corretiva ou penal. Foi objetado que
coragem e a temperança em sua nenhum jurado grego antigo co-
contribuição à virtude de uma cidade nectaria ter o que lhe é próprio a fazer
e nenhuma virtude além da justiça faz o que lhe é próprio ou tentaria
tal coisa (R. IV433c4- e2). O terceiro, assegurar o primeiro requerendo o
ou o argumento do tribunal, sustenta último (Santas, 2001, p. 1991). Porém,
que os jurados em um tribunal, ao o argumento do tribunal, assim como
visarem à justiça, visam a que os outros três argumentos, não se
“nenhum litigante deva ter o que é de aplica a jurados históricos gregos, mas
outrem nem ser privado do que é seu” a jurados na Calípolis (R. I11.408c5-
e conecta este ter o que é seu com o 410al0) e, como Julia Annas nos faz
fazer o que lhe é próprio (R. IV433e3- lembrar, na Calípolis ter o que lhe é
434a2). O quarto é um argumento próprio e fazer o que lhe é próprio vão
pelos opostos: a interferência e troca juntos: “todos têm o que lhes é
entre as três classes, sendo o maior próprio (isto é, posição, riqueza e
mal que pode acometer uma polis, é honra distribuídas correta e
injustiça; portanto, fazer o que lhe é assegurada- mente) simplesmente
próprio, o oposto a esta interferência porque todos fazem o que lhes é
e troca, é idêntico ao oposto de próprio (isto é, a base de sua
injustiça (R. IV434a3-dl). sociedade reflete as diferenças
naturais de aptidão” (Annas, 1981, p.

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Hugh H. PLATÃO
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120; ver também Vlastos, 1973, p. aristocrática (EN V3; Polis.


119-23 e 1995, p. 70-8). IY8.1294a9-ll; Keyt 1991). Uma
virtude da interpretação deste
Assim como o argumento do argumento é que ela explica por que
tribunal fornece uma razão do ponto Platão acha natural chamar Calípolis
de vista da justiça legal para de “aristocrática” (R. IY445d6;
identificar fazer o que VIII.544e7, 545c9, 547c6).

lhe é próprio com a justiça, o Se a concepção platônica ou


argumento do que resta fornece uma aristocrática da justiça distributiva
razão do ponto de vista da justiça está correta é um problema à parte,
distributiva, uma razão, além do mais, dependente de estar correta a
que seria prontamente aceita pelo concepção platônica de uma boa
contemporâneo mais jovem de polis, e isso, obviamente, será
Platão, Aristóteles. De acordo com o contestado pelos democratas
argumento do que resta, fazer o que atenienses, bem como pelos
lhe é próprio permite com que a democratas modernos, que apreciam
sabedoria, a coragem e a temperança a liberdade e a igualdade e rejeitam o
finquem raízes em uma cidade. O princípio da divisão natural do
modo pelo qual faz isso é por meio da trabalho, sobre o qual está baseada a
atribuição das tarefas de governar e Calípolis.
portar armas aos que são mais
qualificados para realizá-las. De uma JUSTIÇA PSÍQUICA
perspectiva aristotélica, ele distribui o
mais valioso dos bens que pode ser Platão agora se desloca da polis à
distribuído, a função política, entre os psique e argumenta que a fórmula
cidadãos de Calípolis conforme o pa- que define a justiça em uma polis
drão de sabedoria. (Os outros também define a justiça em uma
padrões são riqueza e prestígio.) psique: uma psique, como uma polis,
Porém, se é nisso que consiste fazer o é justa quando cada uma de suas
que lhe é próprio, então, segundo a partes faz o que lhe é próprio (ver o
teoria da justiça de Aristóteles, “fazer capítulo A Alma Platônica). A
o que lhe é próprio” é a expressão de passagem que justifica a transferência
uma concepção (entre outras) da da fórmula de uma esfera à outra
justiça distributiva: a justiça

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que mereça devidamente os


mesmos nomes que a polis.
foi interpretada de modos diferentes, Necessariamente, disse ele. (R.
de maneira que convém citá-la por IV435a5-c3)
inteiro:
Pondo o foco em (1) e (2) acima,
Então, disse, [1] quando se pode-se pensar que Platão adota um
chama uma coisa maior e princípio de univocalidade, que ele
menor a mesma coisa, são elas acredita que uma fórmula que define
dessemelhantes ou um termo em uma aplicação o define
semelhantes quanto ao aspecto em todas as aplicações (ver o capítulo
em relação ao qual são ditas a Aprendendo sobre Platão com
mesma? A mesma, ele disse. Aristóteles). O problema em ler a
passagem deste modo é que Platão
[2] E um homem justo não traz um contra-exemplo a tal princípio
diferirá em nada de uma polis algumas páginas adiante, na
justa com respeito à forma República IV Segundo sua teoria, a
mesma de justiça, mas será fórmula que define “justo” quando o
como ela. Como ela, ele disse. termo é aplicado a poLeis e a psiques
[3] Agora, uma polis foi não define o termo “justo” quando
considerada justa quando cada aplicado a ações. Uma ação justa é
um de seus três tipos (gene) caracterizada como uma ação que
naturais internos fazia o que lhe produz e preserva, no agente, a
era próprio, e temperante, psique na qual cada parte faz o que
corajosa e sábia com base em lhe é próprio (R. IV443e5-6, 444cl0-
certas outras afecções e estados dl). Conforme esta caracterização, a
(pathê te kai hexeis) destes fórmula que define uma psique justa
mesmos tipos (genôn). É é uma parte e, portanto, é distinta da
verdade, disse ele. [4] fórmula que define uma ação justa.
Consequentemente, meu
amigo, a quem tem estas A parte restante da passagem
mesmas formas (eidê) em sua anteriormente citada e o argumento
psique [5] vamos assim esperar, subsequente na República TV
com base em afecções (pathê), sugerem um princípio mais
que são as mesmas que àquelas,

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sutil. Platão não argumenta é que a polis e a psique têm os


diretamente sobre o uso do mesmo mesmos tipos de partes. Usando a
termo à aplicabilidade da mesma linguagem das partes e tipos, temos
fórmula; é somente após ter mos- dois sistemas tripartites e três tipos
trado que a polis e a psique têm o diferentes. Uma parte da cada
mesmo tipo e número de partes que sistema pertence a cada tipo. Assim,
ele define uma psique justa como cada parte de um sistema tem uma
uma psique na qual cada parte faz o contraparte no outro, parte e
que lhe é próprio. Seu procedimento contraparte sendo as partes que par-
indica que está pressupondo não um tilham o mesmo tipo. O princípio geral
princípio de univocalidade, mas um sobre o qual se funda Platão pode
princípio de similaridade ou, mais agora ser formulado como segue: se
precisamente, um princípio de
isomorfismo: se uma fórmula define a) dois sistemas têm o mesmo
um termo em uma aplicação, ela o número de partes, se
define em todas as aplicações que são b) as partes de um sistema estão em
relevantemente similares, uma relação unívoca com as partes
similaridade sendo entendida como do outro sistema com base nos
igualdade de estrutura. tipos aos quais as partes
pertencem, se
Podemos extrair de (3), (4) e (5) o c) estes tipos de partes são a sede de
princípio geral do qual depende seu certas afecções (pathê) e se
argumento, assim que tivermos d) um sistema tem a mesma
compreendido o que Sócrates quer qualidade em virtude de suas
dizer quando afirma que uma psique partes terem tal afecção, então
contém os mesmos tipos naturais
(gene) ou formas (eidê) que uma polis.
Tipos ou formas são presumivelmente
diferentes de partes (merê), pois a e) o outro sistema tem a mesma
polis e a psique não partilham suas qualidade se suas partes tiverem a
partes. (Para a linguagem de partes, mesma afecção.
ver R. IV428e7; 429b2, 8; 442bll, c5.)
O que Sócrates deve querer dizer Uma afecção ou pathos, no
quando afirma dos mesmos tipos contexto do argumento, é
naturais estando na polis e na psique aparentemente uma propriedade,

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

atributo ou característica (para este supor, a transcrição for mais fácil de


uso do termo, ver Prm. 158e6-159a7). ser obtida e de ser lida que o original.

Este princípio de isomorfismo é O isomorfismo da polis e da


utilizado todos os dias na epigrafia. psique é semelhante ao da inscrição e
Suponha que um epigrafista da transcrição (ver R. II.368dl-7).
transcreva uma transcrição grega Dado que está longe de ser óbvio que
letra por letra de uma tabuleta de uma psique tenha partes, menos
pedra para uma folha de papel e ainda o mesmo número e tipos de
suponha que ele transcreva a partes que uma polis, Platão monta
sequência ininterrupta de maiúsculas um longo e elaborado argumento
do original por uma sequência para mostrar “que há os mesmos
ininterrupta de letras gregas tipos (genê) [naturais], em número
minúsculas. Dado que cada letra do igual, na polis e na psique de cada
alfabeto grego pode ser escrita em indivíduo” (R. IV435c4-441c7). Estes
maiúscula ou minúscula, os tipos naturais partilhados pela polis e
caracteres correspondentes da psique, por vezes chamados “formas
inscrição e da transcrição pertencem e características” (eidê te kai êthê) (R.
ao mesmo tipo: tanto “A” e “a” são IV435e2; ver também
alfas, tanto “B” e “b” são betas, tanto
“G” e “g” são gamas, e assim por dian- VIII.544d6-e2), são três tipos de
te. Muitas coisas serão verdadeiras da amor: amor por aprender (to
transcrição que não são verdadeiras philomathes), amor
da inscrição: está escrita em um papel
e não inscrita em uma pedra, foi feita da honra (to philotimon) e amor do
recentemente e não faz muito tempo, dinheiro (to philochrêmaton) (R.
está escrita com minúsculas e não IV435el-436a3 junto com VIII.553cl).
com maiúsculas, e assim por diante. Na alma, a razão naturalmente ama
Contudo, toda sequência de letras aprender; o impulso, a honra; o
que forma uma palavra na transcrição apetite, o dinheiro (R. IX.580c9-
forma a mesma palavra na inscrição, 581bll). Na polis, os que naturalmente
de modo que uma tradução para o amam aprender, a honra ou o
inglês da transcrição será também dinheiro são, respectivamente,
uma tradução da inscrição. Este é um candidatos a governantes, soldados
fato importante se, como podemos ou trabalhadores (R. II.374d8- 376c6).

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Quando estão organizados nas três uma psique, que ele conceba a razão,
classes e apropriadamente treinados o impulso e o apetite como três
e educados, a polis que eles pequenos homens ou homúnculos.
constituem é justa em virtude de cada Este antropomorfismo é explícito nos
um fazer o que lhe é próprio. A dois grandes símiles de Platão da
aplicação do princípio de isomorfismo alma, a criatura compósita (R.
é agora direta: IX.588blO-e2) e o condutor guiando
os dois cavalos (Phdr. 246a3-b4,
a) a polis e a psique têm, cada uma, 253c7-255al), em cada um dos quais a
três partes psique é representado como
b) dos mesmos três tipos, os quais consistindo em múltiplos centros de
c) fornecem a base para que cada um consciência, bem como está implícito
faça o que lhe é próprio e nas definições que Platão dá da justiça
d) uma polis é justa em virtude de e das outras virtudes. Uma polis e
cada parte fazer o que lhe é
próprio; donde
e) uma psique é justa se cada uma de
suas partes fizer o que lhe é uma psique são justas quando cada
próprio. parte da polis ou da psique realiza
(prattei) o que lhe é próprio (R.
O problema com este argumento IV441d5-e2). Porém, para fazer o que
não é o princípio de isomorfismo lhe é próprio, uma coisa deve agir
sobre o qual se baseia, mas a teoria (prattei) e não simplesmente mover
psicológica problemática que Platão (kinei), o que quer dizer que deve ser
deve adotar se o princípio tiver de ser um agente e não simplesmente uma
aplicado. Os amantes da sabedoria, os faculdade; ora, para agir um agente
amantes das honras e os amantes do deve ter cognição. O antro-
dinheiro, que compõem as partes da pomorfismo dos dois grandes símiles
polis, são agentes dotados do poderes não é simples metáfora.
cognitivos. Se uma psique deve ter
partes dos mesmos tipos, elas É importante ter em mente que,
também devem ser agentes dotados para que o princípio do isomorfismo
de poderes cognitivos. Assim, o se aplique, as definições que Platão
argumento de Platão parece requerer fornece da justiça e das outras
o antropomorfis- mo das partes de virtudes devem transportar palavra

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Hugh H. PLATÃO
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por palavra da polis à psique. A justiça os dois que são governados creem em
política e psíquica não são para Platão comum (homodoxôsi) que o elemento
duas espécies ou dois tipos de justiça, racional deve governar e não se
mas duas aplicações do mesmo sublevam contra ele?” (R. IV442clO-
conceito: elas estão relacionadas dl). Porém, se as partes da psique
como o homem alto e baixo, não partilham as crenças, elas devem ter
como o animal de sangue quente e o poderes cognitivos. A definição que
animal de sangue frio. A definição que Platão dá da coragem tem a
Platão dá da temperança é muito clara
a este respeito: “devemos dizer com mesma implicação. A coragem de uma
correção que este estado de mesma polis é a capacidade (dunamis) que
opinião, esta concórdia entre o que é reside em uma parte da polis de
naturalmente inferior e o que é preservar uma crença verdadeira
naturalmente superior sobre qual dos (orthê doxa) sobre o que deve ser
dois deve governar tanto na polis temido (R. IV429b7-c2); a coragem de
quanto em cada indivíduo é a um indivíduo é a mesma capacidade
temperança” (R. IV432a6-9). Isso que reside no elemento impulsivo da
significa que o que for pressuposto psique (R. IV442bll-c3). Assim, o
por uma definição de uma virtude, elemento impulsivo da psique tem
quando a definição é aplicada à polis, crenças. Deve-se admitir que a
é também pressuposto quando a definição que Sócrates dá da coragem
definição é aplicada à psique. Dado no indivíduo, diferentemente de sua
que o estado de ter a mesma opinião definição da coragem na polis, não
(homonoia) e concórdia (sumphô- nia) menciona explicitamente a crença;
implicar o fato de partilhar uma porém, como acabamos de observar,
crença entre as partes de uma polis, as isso não é significativo, pois o
partes de uma psique também devem princípio de isomorfismo requer que
ter esta capacidade. De fato, quando as definições sejam idênticas.
Platão, ao discutir as virtudes em uma
psique, retorna ao conceito de Dos muitos problemas que deve
temperança, ele torna essa implicação enfrentar o tipo de psicologia a que
explícita: “alguém não é moderado”, Platão é levado por seu uso do
pergunta Sócrates, “por conta da princípio do isomorfismo, o mais
amizade e concórdia destes mesmos notável (e irônico) para um filosofia
elementos, quando o que governa e que insiste na importância da unidade

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Hugh H. PLATÃO
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política é o problema da unidade da homem [interno] e o tomar


consciência. A psique, como Platão a fraco, de modo que é levado
concebe, não tem um centro de
consciência; é um comitê harmônico
ou desarmônico de três elementos.
Ela precisa de um elemento que para onde um dos outros dois o
conheça de modo sinótico as ações e levar, e
cognições de suas três partes, que as
traga a um ponto de foco e aja em [3] ao não acostumar uma
nome da psique como um todo. A [criatura] à outra ou as fazer
razão não pode realizar este papel, amigas, mas antes as deixar
visto que, na psique platônica, a razão morder, brigar e devorar uma à
nem sempre está com o poder. outra. (R. IX.588e3-589a4).

Platão implicitamente reconhece O “homem” a que se faz


a necessidade de tal elemento referência no início da frase é a
quando descreve o tumulto interno criatura compósita em seu disfarce (a
gerado pela ação injusta. Ele sugere imagem de uma alma residindo em
que uma alma encarnada se um corpo humano). O que é notável é
assemelha a uma criatura compósita que o agir desta criatura disfarçada
(um homem, um leão e uma fera de não pode ser reduzido ao agir de sua
muitas cabeças) disfarçada de um três partes internas: alimentar o leão
homem, e então continua do seguinte e a fera de muitas cabeças, bem como
modo: privar de alimento o homem interno
não são ações do leão, da besta ou do
Diremos a quem afirma que este homem interno. Nem é este agir
homem ganha em agir devido ao disfarce da criatura, o
injustamente, mas que não símbolo do corpo humano. De acordo
ganha ao fazer coisas justas, que com os princípios platônicos, os
ele não afirma outra coisa senão corpos são totalmente inertes e,
que ele ganha [1] ao tomar a portanto, incapazes de dar início à
fera de muitas faces forte ação. Todo movimento e, a fortiori,
alimentando-a, bem como o toda ação tem início, de acordo com
leão e as coisas ligadas ao leão, Platão, na alma CPhdr. 245c2-246a2,
[2] ao privar de alimento o Lg. X.894b8-896b8). A descrição de

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Hugh H. PLATÃO
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Platão tacitamente postula um argumento, que se estende por três


guardião do zoológico que se ocupa livros da República; é revolucionária
do homem, do leão e da fera de ao inverter uma ideia que parecia
muitas cabeças. O análogo do então pertencer ao senso comum, e
guardião do zoológico deve ser um que ainda hoje parece assim, sobre a
elemento psíquico distinto da razão, prioridade conceituai ou definicional
impulso e apetite. Sugiro que esse da ação justa e do homem justo. A
elemento seja o conhecedor sinótico ideia comum, tacitamente
ou o centro da consciência, que a pressuposta por Polemarco em sua
psicologia de Platão parece requerer conversa com Sócrates na República I,
do ponto de vista teórico. é que o ato justo é conceitualmente
anterior ao homem justo. Polemarco
Minha conclusão, então, é que o sustenta que a justiça consiste em dar
argumento que Platão fornece para a cada um o que lhe é devido
sua definição da justiça psíquica tem (R..331e3-4) e Sócrates toma esta
sucesso somente ao preço de uma tese como implicando que o homem
psicologia de homúnculos justo é o homem que dá a cada o que
desconectados. lhe é devido (R. I.335el-4). Como a
conversa deixa claro, Polemarco está
A AÇÃO JUSTA pressupondo tacitamente que o “ato
justo” é definido primeiro e que um
Sócrates diz que a justiça se “homem justo” é quem pratica atos
assemelha ao princípio da divisão justos. Sócrates pensa que a
natural do trabalho, “contudo não no prioridade conceituai ou definicional
tocante ao fazer externo de si mesmo, vai na outra direção; ele define um
mas quanto ao que é interno, quanto “homem justo” como um homem cuja
ao que se é verdadeiramente e a si razão, impulso e apetite fazem cada
mesmo” (R. IV443c9-dl). Esta ideia, um o que lhe é próprio e então define
que a justiça é um estado interno um “ato justo” como um ato que
antes que um modo de ação, é a ideia produz ou preserva, em quem pratica
revolucionária e apoteótica de Platão a ação, este estado interno (R.
sobre o que é ser justo IV441dl2-e2, 443e4-444a2, 444cl0-
dl). Um ato injusto, nesta teoria, é um
para um indivíduo. É uma apoteose ao ato que destrói esse estado interno.
ser a conclusão de um longo

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Hugh H. PLATÃO
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Visto que Platão está definindo não trairá seus amigos ou sua polis,
termos da linguagem corrente, suas não quebrará um juramento ou outra
definições não podem distanciar-se promessa, não cometerá adultério,
demasiadamente de seu uso não desrespeitará seus pais nem
cotidiano e serem ainda consideradas negligenciará os deuses (R. IV442dl0-
como definições corretas. Assim, é 443b3).
importante para ele testar suas
definições com o que é corrente ou Que uma pessoa com o estado
comum (ta phortika, R. IV442el). Ele interno da justiça não fará tais coisas
deve mostrar que um homem que é é, todavia, somente uma pura
justo, como ele define como “justiça”, afirmação da parte de Sócrates (R.
agirá, nas mais das vezes, IV443e2-444a2), com nada, pelo
ordinariamente como se espera que menos não no texto imediatamente
aja um homem justo. Ele precisa em volta, para fundamentá-la;
mostrar, em particular, que um ademais, está longe de ser claro como
homem platonicamente justo não as ações que Sócrates lista se
fará coisas que são, na maioria das coadunam à sua definição de “ato
vezes, consideradas injustas. injusto”, como roubar, trair os
Consequentemente, assim como amigos, cometer adultério e assim
buscou previamente conectar cada por diante destro- em o estado
cidadão fazendo o que lhe é próprio interno da justiça na alma de quem os
com a noção corrente de justiça pratica. Por vezes foi sugerido que
política, ele agora busca eliminar as Sócrates deixa sem explicação a
dúvidas sobre a transferência dessa conexão entre a ação e o estado
fórmula da polis ao indivíduo, interno porque nenhuma explicação é
sustentando disponível, que há um fosso em seu
argumento que não pode ser supe-
rado (Sachs, 1963). Por que, é
perguntado, deve minha conduta em
que um indivíduo, cujos elementos da relação a outrem afetar o estado
psique fazem cada um o que lhe é interno de minha alma? O que
próprio, agirá como se espera que aja impede que uma pessoa em cuja
uma pessoa justa: não se apoderará psique a razão governa e os outros
de um depósito de ouro e prata, não elementos psíquicos são mantidos em
saqueará um templo, não roubará, seu devido lugar se torne um ladrão

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Hugh H. PLATÃO
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ou um adúltero? Nenhum ladrão ou Platão, o estado da psique de alguém


adúltero pode gozar de saúde psí- que está sob o domínio da pleonexia
quica? (Para a injustiça como uma é como o estado da criatura compósi-
doença psíquica, ver R. IV445a5-b4.) ta descrita na passagem citada ao
final da seção anterior; ao alimentar o
Um leitor com caridade leão e a fera de muitas cabeças e
interpretativa deve buscar as privar de alimento o homem interno,
respostas a estas questões e tentar o guardião do zoológico gera desejos
preencher o fosso no argumento de insaciáveis nas partes sub-humanas
Platão. A distância que terá de percor- da criatura. O análogo de uma psique
rer para executar esta tarefa justa é uma criatura compósita na
determinará a plausibilidade de qual o homem interno é a parte mais
atribuir esse preenchimento a Platão forte; ele (o homem interno) concita
antes que à livre imaginação do as cabeças domesticadas da fera de
intérprete. Felizmente, no presente muitas cabeças, ao mesmo tempo em
caso o intérprete não precisa ir além que curva suas cabeças selvagens,
dos diálogos de Platão. A maior parte pondo o leão como seu aliado (R.
da resposta pode ser encontrada na IX.589a6-b6). De modo similar, em
própria República. uma psique justa, a razão é a parte
mais forte; com o impulso como seu
Podemos começar com a ideia de aliado, ela concita os apetites
Platão que a fonte da maioria dos atos necessários e sujeita os não
injustos é a pleonexia, o desejo de necessários, purgando deste modo a
mais e mais, alma da pleonexia e removendo o
motivo comum para roubo, adultério
especialmente de mais e mais e outros crimes análogos. (Para a
dinheiro e de mais e mais poder. A distinção entre apetites necessários e
natureza e o escopo da pleonexia não necessários, ver R. VIII.558d8-
podem ser vislumbrados no encômio 559d3.)
de Trasímaco ao tirano pleonético (R.
I.343e7-344c8). A história de Gláucon A análise psicológica é somente o
sobre a pleonexia sem limite de Giges início da solução do problema; ela não
(R. II. 359b6-360b2) e na crítica de preenche inteiramente o fosso entre
Sócrates à vida pleonética e bovina da uma psique justa e o evitar os atos da
massa (R. IX.586a 1- b6). Na visão de lista de Sócrates. Consideremos o

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Hugh H. PLATÃO
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adultério. Um homem pode ser um 6). Somente a lei ideal, a lei que é reta
adúltero sem ser licencioso (ako- (orthos), segundo o padrão da
lastos): ele pode ter um apetite sexual natureza (Lg. I.627d3-4), é com-
moderado pela mulher errada. O que pletamente justa. Nas Leis, o
impede um homem platonicamente Estrangeiro de Atenas apela a um tal
justo de ser um adúltero moderado? padrão ao fazer juízos sobre os
Além do mais, o adultério envolve sistemas legais do mundo antigo. A lei
dano a outros, aos que são traídos. reta, sustenta ele, difere da lei falha
Esta consideração certamente deve em dois aspectos: ela visa ao bem
ter um papel no fato do homem comum antes que simplesmente à
platonicamente justo evitar o manutenção no poder da constituição
adultério. Finalmente, o adultério estabelecida e ela visa a inculcar todas
(moicheia) é um conceito legal que é as virtudes, não somente uma (Lg.
definido diferentemente em sistemas IV705d3-706a4, 714b3-715b6). As
legais diferentes. O adultério na Leis de Esparta e de Creta não se
Calípolis, onde as esposas são tidas elevam a este ideal ao visarem à
em comum (R. V457c7- vitória na guerra e à coragem de que
depende a vitória, ao passo que
ignoram as outras virtudes (Lg.
I.625c9-626c5, 631a3-8; IL666dll-
461e9), é diferente do adultério 667a7); a democracia, a oligarquia e a
na Atenas antiga, na qual a esposa tirania são deficientes por
tinha um único marido e devia ser negligenciarem inteiramente as
sexualmente fiel a ele (MacDowell, virtudes e porem o foco somente na
1978, p. 88, 124-5). A justiça psíquica manutenção de seus governantes no
deve ancorar-se de algum modo à lei poder (Lg.
positiva, a lei de fato existente em
uma polis, se um ateniense VIII.832blO-c7). As constituições
platonicamente justo deve ser mesmo mencionadas podem ser classificadas
capaz de reconhecer o que conta de acordo com o grau de correção
como um adultério. (orthotês) ou incorreção (hamartia)
de suas Leis; de fato, o declínio
A questão é complexa, pois na constitucional apresentado na
visão de Platão a lei positiva é República VIII reflete essa crescente
frequentemente injusta (Lg. IV715b2- incorreção. A ti- mocracia,

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Hugh H. PLATÃO
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identificada ao regime espartano (R. o Estrangeiro de Atenas nos ordena a


VÜI.545a2-3), é a primeira a vir depois obedecer ao elemento imortal dentro
da constituição ideal; a oligarquia de nós, “dando à distribuição de razão
precede a democracia, pois a avareza (nous) o nome de lei” (Lg. IV714al-2)
de seus governantes leva a um modo e, no primeiro, o Estrangeiro de Eleia
desviante de temperança, ao passo sustenta que as Leis são imitações
que mesmo essa caricatura de virtude (mimêmata) melhores ou piores da
faz falta na democracia (R. VIII.554b3- verdade (P/t. 300bl-301a5). Embora o
e6, 560c5-561a5); a tirania está em tema não seja tão proeminente na
último por causa do desrespeito do República, ele está presente nela
tirano pela lei (R. EX.574dl-575a7). mesmo assim. Sócrates fala do tirano
fugindo da lei e da razão (logos) (R.
Há dois pontos acerca da
concepção que Platão tem da lei reta IX. 587c2), declara que a razão e a
que têm a ver lei aconselham a pessoa a resistir à
dor da perda (R.
com a observância por parte do
homem platonicamente justo da lei X. 604al0-bl), adverte que o
relativa ao adultério. O primeiro é que prazer e a dor serão reis no lugar da
a lei reta, ao visar a inculcar todas as lei e da razão se a Musa prazerosa da
virtudes, é, na visão de Platão, uma lírica ou da poesia épica for admitida
forma de educação moral (R. em Calípolis (R. X.607a5-8) e sustenta
que o que está mais distante da razão
IX. 590c2-591a3, está mais distante da lei e da ordem
especialmente 590el-2; Lg. IX.857e4- (R.
5). Assim, a obediência à lei reta
produz e preserva a justiça psíquica. IX.587alO-ll).
Ora, toda ação que faz isso é, na visão
de Platão, justa (R. IV443e4-444a2, A conexão da razão com a lei é
444cl0- dl; ver 25: Platão e a Lei). compreensível. Os seres humanos são
almas encarnadas. É por isso que a
O segundo ponto é que a lei reta psique tem duas partes inferiores, o
é uma expressão da razão. A conexão impulso e o apetite (Ti. 69c3-72d8). A
entre lei e razão é um tema central no título de almas encarnadas, os seres
Político e nas Leis. No último diálogo, humanos não são autossu- ficientes e

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suas necessidades naturais os levam a ela? É importante distinguir aqui


cooperar entre si e a criar poLeis (R. entre as Leis individuais e observar
IV441e4-5). Assim, se a razão deve que as ações criminais que Sócrates
exercer previsão em benefício da sustenta que um homem
alma inteira (R. IV441e4-5), ela deve psiquicamente justo não cometerá
lidar com estas necessidades naturais serão proibidas por todo código legal
– os desejos apetitivos da alma carnal (Santas, 2001, p. 61) e, portanto, pelo
– no interior de um quadro social e código ideal. (Para a lei de adultério
Político. Reconhecendo o papel da lei na Magnésia, a polis imaginária das
e do comum (koinon) para unir uma Leis, ver Lg. VI.784el-7.) Ao não
polis (Lg. IX.874e7-875bl; ver também sucumbir ao adultério, está-se
Grg. obedecendo à lei reta, qualquer que
seja a constituição sob a qual se vive.
O fosso no argumento de Platão pode
ser superado. O ateniense
507e6-508a4), a razão quer que a platonicamente justo não será um
alma de que é parte possa viver em ladrão, um traidor ou um adúltero.
uma polis na qual a lei é respeitada e
em que exista a amizade (philià) e um Um problema persiste: a pessoa
senso de comunidade (koinônia) ao platonicamente justa obedecerá a
invés de facção (Lg. III. 695d2-3, Leis falhas, particularmente quando
697c9-dl). Assim, se a lei for reta e sua obediência fará com que outrem
promover o que é comum, a pessoa seja tratado de modo injusto? Por
em quem a razão governa tem um exemplo, uma pessoa platonicamente
forte motivo para a aprovar e, já que justa, atuando em um posto oficial,
não tem nenhum motivo pleonético porá em execução uma lei injusta ou
para violar a lei, não tem nenhum porá em execução uma aplicação
motivo para ser (como Giges) um livre injusta de uma lei justa?
corredor que se beneficia do fato que Consideremos o carcereiro de
os outros observam a lei, ao passo que Sócrates. A condenação de Sócrates,
ele a viola secretamente. podemos concordar, é injusta (Cri.
54b8-cl). Um carcereiro
Porém, a lei ateniense é eivada platonicamente justo administraria a
de falhas. Um homem platonicamente cicuta? Este problema do executor
justo tem um motivo para obedecer a justo é sério para Platão, pois ele

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Hugh H. PLATÃO
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parece subscrever a três princípios Gerasimos Santas e à minha esposa,


que estão potencialmente em Christine Keyt, pelos profícuos
conflito: comentários a versões preliminares
deste artigo.
1. que algumas Leis são injustas (Lg.
IV 715b2-6), REFERÊNCIAS E LEITURA
2. que se deve obedecer COMPLEMENTAR
estritamente à lei (PZt. 297dl0-e2,
300ell-301a3) e Armas, J. (1981). An Introduction to
3. que não se deve nunca cometer Plato’s Repu- blic. Oxford: Clarendon
uma injustiça (Cri. 49a4-e3). Press.

Ele lida com um problema deste Cohen, S. M. e Keyt, D. (1992).


tipo no Críton, o problema de saber se Analysing Plato’s arguments: Plato
uma pessoa justa deve tentar evadir- and Platonism. In J. C. Klagge e N. D.
se de um veredicto injusto de um Smith (eds.) Methods of Interpreting
tribunal legalmente constituído. Plato and his Dialogues (pp. 173-200).
Porém, este problema é mais fácil, Oxford Studies in Ancient Philosophy,
pelo menos de um ponto de vista volume suplementar. Oxford:
filosófico, pelo que Sócrates pode Clarendon Press.
evitar fazer algo injusto ao aceitar a
condenação à morte. O problema Dahl, N. O. (1991). Plato’s defense of
mais difícil é o que leva Sócrates a justice. Philosophy and
dizer que uma pessoa de razão (ho Phenomenological Research 51, pp.
noun echôn) não participará da 809-34.
política em nenhuma cidade, exceto
na cidade ideal (R. IX.591cl, 592a5-bl; Keyt, D. (1991). Aristotle’s theory of
ver também Ap. 31c4-32el). distributive justice. In D. Keyt e F. D.
Miller, Jr. (eds.) A Com- panion to
NOTAS Aristotle’s Politics (pp. 238-78).
Oxford: Blackwell.
Todas as traduções foram feitas pelo
autor. MacDowell, D. (1978). TheLaw in
ClassicalAthens. Ithaca, NY: Comell
Agradeço a Hugh Benson, University Press.

Hugh H. Benson 558 de 711


Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

Morrow, G. R. (1948). Plato and the the


law of nature. In M. R. Konvitz and A.
E. Murphy (eds.) Essays in polis in Plato’s Republic. In Studies in
Greek Philosophy, vol. D: Sócrates,
Plato, and their Tradition (pp. 69-103).
Princeton, NJ: Princeton University
Political Theory (pp. 17-44). Ithaca, Press.
NY: Cornell University Press.
White, N. R (1979). A Companion to
Reeve, C. D. C. (1988). Philosopher Plato’s Republic. Indianapolis:
Kings: TheAr- gumentofPlato’s Hackett.
Republic. Princeton, NJ: Princeton
University Press.

Sachs, D. (1963). A fallacy in Plato’s 24


Republic. Philosophical Review 72, pp.
141-58. O conceito de bem em Platão

Santas, G. (1985). Two theories of NICHOLAS WHITE


good in Plato’s Republic. Archivfür
Geschichte der Philosophie 67, pp. Uma análise das teses de Platão sobre
223-45. o bem deve começar com a República.
Esta obra contém a exposição mais
(2001). Goodness and Justice: Plato, explícita e enfática de Platão, da
Aristo- relação do bem com outros conceitos
e propriedades, bem como do papel
tle, and the Modems. Oxford: central e essencial do bem no
Blackwell. conhecimento humano.

Vlastos, G. (1973). Justice and Contudo, o início da República


happiness in the Republic. In Platonic apresenta esta obra como um exame
Studies (pp. 111-39). Princeton, NJ: da justiça. (O termo de Platão é
Princeton University Press. dikaion, que pode também ser
traduzido por “certo” ou “reto”.)
(1995). The theory of social justice in Somente mais tarde, ao final do Livro

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VII, é que o leitor é avisado que, no que fala sobre ele é feito de modo
esquema filosófico que a obra expõe, oblíquo. Se quisermos ler de modo
o conceito central não é o de justiça, inteligente a República, é sensato
mas o de bem. Na visão de Platão, é conectar suas indicações sobre o bem
somente ao entender o que é o bem com as ideias filosóficas que são
que nós, assim como os filósofos- usadas de fato nessa obra. Assim,
govemantes de sua cidade-Estado dado que a justiça provê a ocasião
ideal (polis), somos capazes de para discutir a justiça em primeiro
compreender a justiça, e mesmo lugar, devemos formular a questão:
todos os outros conceitos e que pontos que a República traz sobre
propriedades (estes dois sendo, para a justiça que requerem ou, pelo
Platão, em grande parte a mesma menos, fortemente recomendam
coisa) (ver o capítulo Platão e a levar adiante as questões sobre o bem
Justiça). que Platão de fato analisa? Sobre isso
penso que podemos avançar.
As análises de Platão dos dois
conceitos estão inteiramente Há uma grande diferença entre o que
interconectadas, assim como o bem (e supõe que os governantes sabem
a noção aparentada to kalon ou sobre o bem e o que nos é dito sobre
‘beleza”) está intimamente conectado ele. Platão nos diz explicitamente que
a outras virtudes em outras obras pla- os governantes-filósofos completam
tônicas. Não se pode compreender a sua educação somente quando
justiça sem apreender o bem, diz compreendem completamente o
Platão, mas seus pensamentos sobre conceito de bem. (Já que estou
o bem, especialmente na República, lidando com as teses de Platão, vou
são igualmente apresentados como usar “Platão” por conveniência, ao
partes de uma elucidação da justiça. passo que uma precisão literal
Os dois conceitos não podem ser requereria “Sócrates”.) Os
discutidos separadamente. governantes-filósofos o obtêm tendo
uma fórmula (logos) dele:
Podemos perguntar, porém, “por
que Platão põe tanta ênfase no bem Definir a Forma do Bem (tên tou
precisamente aga- thou idean) por meio de
uma fórmula (diorisasthai tô(i)
nesta obra?” A maior parte do logo(i)), separando-a das outras

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coisas e passando por todos os com as quais poderia ser confundido.


testes (dia pantôn elenchôn)...
sem cair em nenhum momento Este fato me parece aportar uma
em erro... (534b8-c3) razão decisiva para negar (o que
alguns intérpretes supuseram) que,
Somente então eles sabem por segundo Platão, o bem não pode ser
que a justiça é um bem. Em definido. O fato de ele não dar uma
sequência, eles podem usar seu definição não significa que ele está re-
conhecimento da Forma do tendo alguma coisa. E não há
nenhuma boa razão para pensar que
ele esteja.

Bem (não somente a Forma do Justo) Ficará logo claro que seu
para governar a cidade e torná-la argumento emprega premissas
justa (540a-b). A nós, leitores de importantes sobre que tipos de coisas
Platão, porém, não nos é dada a são boas, sem fundar estas premissas
fórmula (logos) do Bem que ele diz em uma definição. A suposição mais
que um governante deve ter – ou razoável é que ele não está seguro
mesmo qualquer outra fórmula. sobre como exatamente definir o
bem. Ele simplesmente dá por
A fórmula que os governantes suposto – e nos pede para dar por
possuirão tem as características que suposto em sua obra – suposições
Platão normalmente atribui a uma sobre o bem que lhe parecem plau-
definição. O termo é logos ou síveis. Elas nos são necessárias para
“fórmula” (frequentemente traduzido seguir sua identificação da justiça e
em muitos contextos por “definição”) para ver o que lhe dá apoio para
e é o resultado de diorizesthai, definir algumas de suas teses sobre ela. Estas
(ver o capítulo Definições Platônicas e suposições constituirão o principal
Formas). Ela precisa ser defendida dos foco aqui.
elenchoi ou “refutações”, assim como
os candidatos a definição nas obras Nossa principal tarefa consiste em ver
“socráticas” como o Eutifro e como Platão pensa que a apreensão
Carmides (ver o capítulo O Elenchus do bem é necessária para a
Socrático). Também serve para compreensão e para dar apoio às suas
distinguir o bem das outras coisas principais teses sobre a justiça. Para

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ver isso, precisaremos compreender não. Trasímaco tem em mente que


ao mesmo tempo seu modo de uma pessoa que comete o que
investigar os conceitos em geral. ordinariamente chamamos “faltas”
ou “injustiças” pode evitar a punição
Em particular, temos de lidar com por ser “completamente injusto”, isto
o fato que, segundo Platão, a fórmula é, continuar a cometer ainda mais fal-
correta tas, como mentir sobre o que fez e,
assim, terminar tendo em geral
de um conceito pode distanciar- vantagem.
se bem substancialmente da sua
compreensão quotidiana ou No Livro IX, por outro lado – no
ordinária. Vou retomar este ponto qual Platão finalmente sustenta ter
mais adiante, mas precisa ser trazido demonstrado que a justiça traz
à atenção já no início. A elucidação de benefícios para a pessoa que a possui
um conceito não é, no modo de –, a justiça em questão parece muito
pensar de Platão, simplesmente um distante da noção ordinária. Platão
modo de explicar ou racionalizar o nos diz aqui que uma pessoa se
uso ordinário. Por conseguinte, ele beneficia ao ter uma personalidade
não pensa que está obrigado a aderir que está em “harmonia”, no sentido
aos juízos ordinários ou pré-reflexivos em que seus vários objetivos não
contidos neste ou em qualquer outro estão em conflito. Era isso o que o
uso atual. Livro IV havia declarado que era a
justiça: uma harmonia entre os
Este ponto está ligado a uma componentes da personalidade ou
objeção que persiste faz muito que os alma (ambos os termos traduzem
críticos fazem contra o argumento de psychê, o termo de Platão) (ver o
Platão. A objeção está baseada nos capítulo A Alma Platônica) ou entre os
seguintes fatos bem conhecidos. grupos em uma cidade-Estado (polis)
ou constituição (politeia). Nesta
No Livro I, Sócrates, a harmonia, cada parte obedece ao
personagem de Platão, envolve-se em Princípio de Atribuição das Funções
uma altercação com a personagem Naturais (assim o podemos chamar):
Trasímaco sobre a questão se uma cada parte deve realizar sua função
pessoa justa tem vantagem em ser internamente à entidade em questão.
justa. Sócrates diz que sim; Trasímaco,

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Prima facie, portanto, Platão de fato alguns intérpretes, ele nunca tenta
alterou o sentido do termo “justiça” mostrar uma equivalência substancial
no meio entre a sua noção e a noção ordinária.
Ademais, em sua visão de como
compreenDemos nossos conceitos,
isso não faria sentido. Em acréscimo,
de seu argumento e, deste modo, não ele não considera o fracasso de sua
argumentou realmente contra o que explicação em se colar intimamente
Trasímaco tinha sustentado (ver às concepções ordinárias como um
Grote, 1988, p. 99- 106; ver também sinal de fraqueza. Antes, ele pensa
Sachs, 1963). que é exigida somente uma conexão
frouxa e que esperar mais seria um
Embora algumas discussões erro. Isso vale para suas explicações
sobre este tipo de objeção a Platão da justiça, bem e qualquer outro
tiveram por foco o termo “justiça”, a conceito.
mesma crítica pode também ser feita
ao seu tratamento de outros termos, Segundo um dito grego, a justiça
em particular o termo “bem”. Há tende ao que “é próprio a cada um”
ampla razão para que se pergunte se (ta hautou prattein, 443c-e, 496d
Platão também não alterou, e ainda etc.). Platão concorda em muito com
mais drasticamente, seu uso do termo isso. Ele pensa, porém, que precisa
“bem” no curso de seu argumento. ser concebido de um modo especial
Devemos manter em mente esta para que esteja correto. Segundo ele,
questão quando analisarmos sua o pensamento ordinário erradamente
ideia que uma apreensão do bem é trata a justiça como uma questão de
necessária para nos ajudar a se ocupar com coisas “externas”
compreender a justiça. pertencentes a cada um, ao passo que
ele crê que tem a ver com se ocupar
Platão parece estar inteiramente com “o que é mais verdadeiramente
consciente do tipo de crítica que próprio a cada um”, a saber, pôr
acabamos de descrever e fornece os ordem entre os constituintes da
materiais para sua resposta. Ele personalidade de cada um. Platão
abertamente reconhece que sua enfatiza que, ao dizer isso, ele está
explicação da justiça vai parecer deliberadamente olhando as coisas
surpreendente. Contrariamente a

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de um modo que não é usual (443c). características do esquema social de


Porém, ele sempre reivindica estar Platão que escandaliza seus
mostrando o que a justiça realmente interlocutores (449a-450c).
é.
Quão longe pode Platão
Em particular, ele está bem sustentar a divergência – sem
consciente que alguém que adote sua simplesmente estar construindo seus
visão da justiça aplicará o termo próprios significados arbitrários para
“justo” a outras coisas e ações do que ligar às palavras? Se ele não
aquelas às quais aplicará quem usa o argumenta que suas noções de justiça
termo em um modo ordinário. Ele e bem são equivalentes às mais
pensa que as crenças ordinárias estão usuais, como as primeiras estão
simplesmente erradas acerca de que enlaçadas às últimas? Há um modo
coisas são justas. Porém, essa fundado em princípios para que ele
discrepância entre aplicações sustente esta divergência da
ordinárias – as quais Trasímaco aceita conceitualização ordinária? Pode ele
como padrão – e as aplicações de justificar sua tese que sua explicação
Platão não lhe causa nenhuma apreende o que a “justiça” ou toda
decepção. outra palavra “realmente” significa?

De fato, há certa imbricação Contudo, o que está ocorrendo do


entre os dois tipos de aplicação. Por Livro I ao Livro IV é menos uma
exemplo, ambos os usos chamam o alteração de uma noção a outra que
saque de templos e o furto de uma mudança geral da abordagem do
injustos. Porém, também há muitas que é apreender um conceito. O
dis- crepâncias. Por exemplo, Platão conceito de bem é central para essa
afirma que os governantes justos em mudança.
sua cidade-Estado justa farão coisas
que não são consideradas de modo No Livro I, os interlocutores de Platão
algum corretas, tais como manter as tentam definir a justiça como uma
mulheres e crianças em comum e propriedade de ações: ações
abolir a propriedade privada. Isso individuais especificadas
certamente não é se ocupar das
próprias coisas em um sentido
ordinário. Além disso, é uma das

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individualmente ou mediante tipos As tentativas socas fracassam


sob os quais caem que são dados por todas. A principal razão é que cada
nosso vocabulário normal. Candidatos definição proposta está sujeita a
a definição são: dizer a verdade, pagar contra-exemplos. Os contra-exemplos
o que se deve, ajudar os amigos e são ações ou classes de ações que, de
causar dano aos inimigos, fazer o que comum acordo, estão no campo do
está no interesse dos mais fortes ou conceito a ser definido, mas que não
dos governantes. Todos estes se coadunam à definição, ou que se
candidatos caem diante das objeções. coadunam à definição, mas, de
comum acordo, não estão no campo
Neste sentido, estes candidatos do conceito. Isso ocorre na República
são como todos os candidatos a I; por exemplo, devolver o que você
definição dos outros conceitos éticos deve não é justo quando se deve uma
sugeridos nos primeiros diálogos arma a uma pessoa insana (331c-d).
“socráticos” de Platão. Entre eles Tais conceitos, quando aplicados a
estão a piedade (Eutifro), a coragem ações, são refratários à definição
(Laques) e a temperança (Carmides). mediante tais especificações.
Em cada uma desta obras, uma
definição deve ser em parte uma Contudo, eles não são refratários
especificação que nos permitirá completamente a toda especificação.
determinar as ações que devemos re- Platão nos fornece um na República
alizar mediante a especificação de que IV: devemos chamar de justas as
ações estão cobertas por um termo ações, diz ele, que preservam ou
que designa uma virtude. Todas estas ajudam a produzir a condição justa da
tentativas também malogram. alma; de injustas, as ações que a
Devemos conceber a República I como dissolvem (443e-444a). Isso é uma
reproduzindo o fracasso dos diálogos especificação (em um
socráticos de modo a estabelecer o
cenário para um modo mais sentido largo) causai das ações justas
satisfatório de compreender os e injustas. Ações justas são
conceitos e sobre como os aplicar. É determinadas por quais condições
uma outra questão saber se estes elas “geram ou mantêm” (443e), a
diálogos refletem a visão do Sócrates saber, a condição justa da
histórico (ver o capítulo O Problema personalidade e constituição. Esta
Socrático). condição de uma personalidade é

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justa de modo primário. O termo ações – manter as promessas,


enquanto aplicado à ação é, assim – devolver o que se deve, ajudar os
recebe um uso derivado – secundário. amigos, etc. – e dizer que estas são as
ações que são justas. Tais definições
Observe agora que essa divisão são todas suscetíveis de exceções que
das aplicações de “justiça” – em uso geram contra-exemplos.
primário e secundário, com o
secundário se aplicando a coisas que Assim, se não pudermos
levam causalmente a coisas às quais o especificar a justiça fornecendo tipos
uso primário se aplica – assemelha-se ordinários de ações, como a
ao que Platão diz a respeito do bem poderemos especificar? A resposta do
no início do Livro II (357b-358a). Aí, Livro IV é que devemos dar um tipo di-
Platão distingue entre as coisas que ferente de especificação. É aqui o
são boas em si, as que não são boas ponto em que a explicação da justiça
em si, mas são boas por suas se toma explicitamente dependente
consequências e as coisas que são da noção de bem.
boas em si e por suas consequências.
O tratamento do bem no Livro II Os casos centrais de justiça no Livro IV
prepara o caminho para o tratamento são, obviamente, uma personalidade
fortemente similar da justiça no Livro justa e uma constituição justa. Como
IV explicarei em breve, eles também são
uma boa personalidade e uma boa
Este procedimento mostra-nos constituição. Ações justas,
como Platão vê a tarefa de
compreender certos conceitos, em
especial os de bem e justiça. Temos
casos centrais e também temos apli- repetindo, são as ações que
cações a coisas que produzem os produzem ou mantêm a justiça na
casos centrais. Ações justas alma de um indivíduo (ou, infere
pertencem a esta última classe, a de Platão, também na cidade, quando ela
causas de coisas que pertencem à já está em uma boa condição).
classe central. Todavia, a tentativa no
Livro I de definir diretamente as ações Como Platão as analisa,
justas malogra. Não podemos personalidades e constituições justas
especificar certos tipos ordinários de e boas são, em contraste com as

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ações, tipos bem definidos de coisas. finalmente, a justiça (432b-434c); de


Elas são estruturas. Justiça e bem, mesmo modo para a personalidade
ademais, são ambos propriedades individual (todas elas descritas de
estruturais. Uma cidade justa, por modo análogo em 441c-442d).
exemplo, é uma cidade em que cada
parte que tem uma função a realiza Nos casos tanto da cidade quanto
bem e não se apossa das funções das da alma, a atribuição do bem à sua
outras partes (432b-434c). A justiça estrutura é um componente
de uma tal estrutura é um aspecto de indispensável da argumentação de
seu bem. Platão e conduz à identificação da
justiça da estrutura como a
Ademais – e este ponto é característica que acabamos de
especialmente importante –, é mencionar, a saber, o fato que cada
mediante a atribuição do bem a uma parte realiza sua função própria e
estrutura bem ordenada que Platão nenhuma outra.
chega no Livro IV à sua identificação
da justiça tanto para a alma quanto Em poucas palavras, Platão cita
para a cidade. Estas duas atribuições em cada caso a estabilidade (443e; cf.
do bem são completamente explícitas 412e-414b, 423d-425b), coerência e
e são premissas no argumento que unidade (422e-423d; cf. 461e-462e) e
conduz às identificações da justiça. a capacidade
Platão obtém concordância que a
cidade que está a descrever é uma de trabalhar para satisfazer as
boa cidade (427e-428a; cf. 433a, necessidades da cidade e da própria
434d-e, 449a) e que as pessoas que alma (369b-d, 373d-374e). Estas
ele propõe pôr em seu comando características estruturais de uma
também são boas (434d-e, 444b, entidade composta agem no sentido
449a). contrário à tendência à corrupção e à
luta interna, que são os fatores
Ele então pergunta o que as torna destruidores que ele menciona
boas. Quatro fatores – as tradicionais (462a9-b2):
quatro virtudes – são mencionados
(427e). Para a cidade, são a sabedoria Há mal maior para uma Cidade-
(428e-429a), a coragem (429a-430c), Estado do que o que a divide e a
a temperança (430c-432a) e, toma muitas em vez de uma, ou

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bem maior do que o que a e a liberdade de conflito – para


mantém unida e a toma uma? recomendar a cidade e a alma que ele
chama de boa.
Estas características, então,
constituem a base para denominar de Se esta linha de argumentação
bem tais estruturas. deve ter alguma força, Platão deve ter
pensado que temos uma apreensão
A justiça é um constituinte ou suficiente do que é o bem para
aspecto deste tipo de bem. Quando estarmos em uma posição razoável
uma coisa composta de um certo tipo para aceitar estas atribuições e para
é estável e está livre do conflito fundar sobre elas a identificação da
interno, isso só pode ser, pensa justiça e das outras três virtudes.
Platão, porque inter alia todos os seus
componentes realizam suas funções. Observe quão restritas são as noções
de bem e justiça que estão em jogo
Embora as características aqui. A
consideradas produtoras de bem da
estabilidade e consistência sejam
mencionadas enfaticamente, elas não
são postas em nenhum argumento justiça é explicada somente como
sistemático da atribuição de bem à aplicada a dois tipos de estruturas,
cidade e aos seus governantes. A constituições e personalidades, não
condição das atribuições como como aplicada a outra coisa. É por isso
premissas não é enfatizada. Nenhuma que Platão não diz aqui que está
definição do bem é dada e, como foi dando uma “definição” da justiça; a
observada, nenhuma o será. Os linguagem do logos e o resto que
governantes-filósofos, os quais, como recebe ênfase na passagem sobre os
vimos, se espera que disponham de governantes citada do Livro VII está
uma definição, estariam ausente aqui. Além disso, Platão não
presumivelmente em situação de dar faz mais que indicar como estender
apoio às atribuições de bem mais sis- nossa compreensão do bem para
tematicamente. Nós leitores temos além destes dois casos. A capacidade
menos para continuar: simplesmente de continuar a generalizar estas
estas características que Platão noções simplesmente não é exercida
menciona – sobretudo a estabilidade ou pressuposta pela linha de

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argumentação que Platão apresenta. porque ela sugere o quadro


geométrico que foi tão influente no
O modo de Platão tratar o bem é parte pensamento de Platão e a noção mais
de sua tese geral metafísica da geral de estrutura que ele de-
compreensão conceituai e senvolveu a partir disso. A tarefa dos
conhecimento, a qual recebe muito governantes na cidade de Platão, diz
bem a etiqueta de “paradigmatismo”. ele, consiste em “apreender o bem e
Esta posição inclui teses sobre em que servir-se dele como um paradigma
consiste apreender um conceito, o (paradeigma) para pôr em ordem
que é um conceito (e como está ligado correta o Estado, os cidadãos e eles
a uma propriedade correspondente) e próprios” (540a9-bl).
como os conceitos são aplicados aos
objetos particulares. O espaço aqui É claro que, na visão de Platão,
permite somente dar as grandes esse negócio de “pôr em ordem
linhas da tese de Platão, mas expor – correta” envolve uma questão de
ainda que de modo simples – os fatos graus. Cidades reais – ele torna este
básicos acerca da noção de bem de ponto especialmente claro nas
Platão requer que se forneçam estas descrições das constituições nos
grandes linhas. Livros VIII-IX – podem aproximar-se
de um paradigma de um modo
A apresentação tradicional da próximo ou muito distante. É tarefa
assim chamada Teoria das Formas de dos govemantes-filósofos manter a
Platão diz que as Formas (eidê or cidade aproximando-se do bem e,
ideai) são paradigmas, modelos consequentemente, da justiça e das
(paradeigmata) ou ideais de que os outras virtudes, tão perto quanto
objetos particulares sensíveis são de possível. Platão não tenta esconder o
certo modo cópias ou aproximações fato que essas noções de participação
(mimêmata) que participam e aproximação são problemáticas.
(metechein) neles ou os imitam (ver os (Isso também fica claro, por exemplo,
capítulos O Conhecimento e as Formas no Phd. lOOd e Prm. 130a-136a.)
em Platão; As Formas e as Ciências em Contudo, ele pensa que elas são
Sócrates e Platão; Problemas para as suficientemente claras para que ele
Formas). Prefiro usar principalmente opere com elas.
a linguagem do ideal e da
aproximação, em grande parte Segundo a posição de Platão

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sobre em que consiste apreender figura é circular pode ser difícil porque
conceitos (pondo de lado questões pode tender a ser elíptica, ser vista em
sobre sua condição metafísica), a má iluminação, ser observada de um
compreensão de um conceito ângulo oblíquo, porque não se pode
consiste na apreensão do que é para dizer de que ângulo se a está vendo e
um objeto exemplificar este conceito assim
idealmente. Exemplos geométricos,
como Platão reconheceu, são
particularmente aptos para pôr em
evidência este ponto. Compreender o por diante. Platão tende por vezes a
que significa “círculo” é compreender agrupar todas estas fontes de
o que é para uma coisa ser idealmente dificuldade de aplicação como sendo
circular, não granulosa ou deformada todas produtos do fato que objetos
de algum outro modo, como são os particulares estão embutidos em uma
círculos sensíveis. Usamos grosso múltiplo sensível. (No Parmênides e
modo essa noção quando dizemos outras obras tardias, todavia, ele
que um círculo, no sentido tenta dar uma resposta ao fato que
geométrico, é uma “idealização”. algo análogo é verdadeiro das
próprias Formas.)
A capacidade, então, de aplicar o
conceito de um círculo a um objeto Uma dificuldade particular que
particular é uma questão de ser capaz afeta a aplicação de conceitos a
de determinar o grau em que objetos particulares nasce do modo
(tomados juntos seus contextos e pelo qual Platão pensa que a
suas relações) se aproxima desta causalidade opera no mundo físico.
ideia. Isso é essencialmente a ideia da Ao longo de suas obras, Platão
explicação das Formas que Platão sustenta que, embora a causalidade
expõe no Fédon e no Político. Ele a esteja associada com a regularidade –
emprega ao longo de toda a República grosso modo, um princípio de “à
– sem tentar de algum modo resolver mesma causa o mesmo efeito” (Phd.
todas as dificuldades que ela provoca. lOOd-lOlc) –, as regularidades que são
ins- tanciadas pelos objetos físicos
A aplicação de conceitos a objetos sempre têm exceções. Isso torna
particulares é dificultada por vários difícil prever eventos com confiança.
fatores. Por exemplo, dizer se uma Como Platão declara de modo

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enfático, os esforços dos governantes confiar que a educação dos


para manter a cidade bem organizada governantes lhes permite
irão inevitavelmente falhar por causa
da impossibilidade de fazer predições fazer essas conjeturas do melhor
das quais dependem seu esquema modo possível. A ideia básica, que ele
eugênico (546a-d). toma como evidente, é que, quanto
mais claramente eles
Este fato provoca uma dificuldade compreenderem os casos ideais,
óbvia para a explicação de Platão da tanto mais serão capazes de julgar e
justiça como aplicada a ações. Se uma deste modo ter sucesso em suas
ação justa é uma ação que “preserva aproximações.
ou ajuda a produzir a condição justa
da alma” (443e) e se os governantes Considere agora o papel que o bem
podem realizar sua função somente tem no paradigmatismo de Platão.
determinando fazer as ações que têm Platão apresenta a base de seu modo
esses efeitos, o trabalho deles fica de pensar de um modo mais
problemático – assim como Platão diz sistemático (embora ainda esquemá-
– pelo fato do mundo físico fracassar tico) no Timeu, fazendo igualmente
em sua previsibilidade. Simplesmente uso do bem. Não somente são os
não será possível dizer quais ações ou objetos físicos particulares
quais tipos de ações irão de fato se individualmente aproximações de
revelar justos. certas Formas, mas o mundo físico
como um todo é uma cópia
Tudo o que os governantes aproximada da estrutura global das
podem fazer é chegar aos melhores Formas, e esse todo é bom (30a-d). O
juízos que podem ser feitos a respeito assim chamado Demiurgo, que dá for-
das aproximações. Isto é, mediante o ma ao mundo físico, tenta fazê-lo tão
conhecimento das regularidades que bom quanto possível e, portanto,
ocorreriam se as relações entre as tenta fazê-lo tanto quanto possível
Formas se dessem perfeitamente no semelhante à estrutura global das
mundo físico (Platão pensa que isso é Formas (ver o capítulo O Papel da
um a priori), os govemantes-fílósofos Cosmologia na Filosofia de Platão).
fazem as melhores conjeturas
disponíveis acerca dos eventos A fim de ver por que Platão pensa
futuros. Ele pensa que se tem de que, ao compreender toda esta

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estrutura, os govemantes-fílósofos fazer para de fato fazer com que a


estarão mais bem aptos a organizar cidade se conforme ao paradigma do
uma cidade física – e, portanto, bem, não é nem um conhecimento
suscetível de mudança – e impedir sua empírico nem uma informação
corrupção, é preciso ter claro o proveniente da observação empírica.
quanto a própria estrutura das É por isso que os governantes estão
Formas está envolvida. inteiramente prontos para governar a
cidade tão logo tenham terminado
Não é uma estmtura estática; seu período de filosofar (519d, 539e),
Platão não faz tanto apelo assim ao sem nenhum período de prática em
modelo geométrico. O modelo é, trazer seu conhecimento definicional
antes, dinâmico. Vê-se isso, por do bem à efetivação.
exemplo, na descrição, na República
529c-530c, da cinemática e O Fédon é geralmente
astronomia ideais que Platão considerado como mostrando (96a-
prescreve como parte da educação 99d) que Platão não pensa a
dos governantes. Movimentos, em causalidade como descoberta empi-
outras palavras, exibem padrões ricamente, mas antes como a priori.
ideais, assim como o fazem as figuras Assim, conexões causais – padrões
estáticas, e os governantes devem dinâmicos ocorrendo em mudanças –
apreender os conceitos necessários são parte integral da estrutura das
para os descrever. Formas e dos conceitos a que
correspondem. Isso significa que uma
Além disso, já que estes padrões di- estrutura idealmente boa, com base
nâmicos que envolvem as Formas na qual o Timeu declara que o
exibem uma regularidade (Phd. 103c- Demiurgo dá forma ao mundo físico,
105c), eles devem (como acabamos inclui conexões causais dinâmicas.
de observar) exibir o que Platão pensa Portanto, apreender o bem dessa
da causalidade. O que torna os estrutura ideal que pode ser
governantes melhores do que poderia entendida a priori inclui a apreensão
ser qualquer outro governante, isto é, de conexões causais. (Isso significa
o que os torna melhores em perceber que o que é apreendido a priori está,
o que na visão de Platão, montado, por
assim dizer, para ser instanciado em
um mundo físico.)

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Repetindo, estas regularidades também, ao que parece, suficiente


não são exemplificadas pelos objetos para compreender todas as outras
físicos com total precisão ou, Formas (509d-511e, 514a-517c).
portanto, confiabilidade. Platão
acentua o fato que elas têm falhas Os pontos importantes do Timeu
imprevisíveis. Nesse sentido, o mun- são que a estrutura global das Formas
do físico é, no todo ou em parte, é boa e que o mundo físico se
deficiente em comparação com – e aproxima dela. Estes pontos podem
nesse sentido menos bom – a ser tomados como implicando que,
estrutura ideal das Formas. Mesmo em cada estrutura suficientemente
assim, na perspectiva de Platão, é a bem organizada, uma parte é boa
compreensão que os governantes contri- butivamente. O que é bom
têm das regularidades ideais – sobre relativamente a cada parte é que ela
o que conduz a quê – que os permite contribui para o bem da estrutura
governar tão bem quando possível, total ao guardar seu lugar nesta
isto é, os permite determinar como estrutura. Compreender, então, o
educar os futuros governantes e se bem de cada parte, pode-se
envolver em atividades administrati- argumentar, seria necessário para
vas. Assim, quanto melhor se compreender o bem da estrutura
compreender a geometria, tanto mais total.
capaz se será de se envolver na
mensuração física do mestre-de- Ademais, uma apreensão do Bem
obras ou do comandante militar pode ser tida como suficiente para a
(521e-522d). É este o modelo com o compreensão de cada parte de tal
qual Platão trabalha (alargado, estrutura. Suponha, de acordo com o
obviamente, de modo a incluir os paradigmatismo, que apreender o
padrões dinâmicos). conceito de bem equivale a apreender
o que é para uma coisa exemplificar
Como já indicamos, o quadro idealmente o bem. Então, uma
apresentado no Timeu sugere um apreensão do Bem seria uma
modo de compreender a tese de apreensão da estrutura do cosmos
Platão na República que inquietou físico, na medida em que o último está
profundamente muitos pa- radigmaticamente estruturado.
comentadores, a tese que o Porém, esta apreensão da estrutura
conhecimento do Bem é necessário e total, pode-se argumentar, incluirá

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

sua articulação nas partes e, portanto Não é claro que estas duas
incluirá, também pode-se argu- interpretações sejam mutuamente
mentar, de igual modo uma excludentes. Talvez possam ser
apreensão das partes. combinadas. Outras ideias também,
certamente, podem ter um papel
Há um modo suplementar (como igualmente para engendrar a
Hare mostra) para explicar esta proposta de Platão que o bem deve
mesma tese platônica, que uma ser tomado como o conceito central
apreensão do Bem é necessária e para a compreensão de todos os
suficiente para a compreensão de outros. Porém, não devemos supor
outros conceitos. Tome novamente a em nenhum caso que, quando Platão
tese que compreender o conceito de escreveu a República, ele tinha uma
ser tal-e-qual consiste em narrativa completa para lhe dar
compreender o que é para um objeto apoio. Filósofos geralmente
ser tal-e-qual paradigmática ou trabalham com o sentido do melhor
idealmente. Observe, também, que tratamento em geral, sabendo que o
Platão dá sinais de assimilar o deverão elaborar mais
conceito de bem à noção expressa detalhadamente para lhe dar
aqui por “idealmente”. Parece seguir- embasamento.
se que a compreensão de todo
conceito requer a compreensão do Uma questão acerca do pensamento
bem. Ademais, pode-se sustentar de Platão que muitos comentadores
também tentaram com afinco responder, mas
à qual a República não dá nenhuma
resposta, é se devemos pensar o
oposto do bem, o mal (kakiá), como,
que se segue que uma compreensão por assim dizer, um estado “positivo”
do bem é suficiente para ou, como defende uma tradição
compreender todos os outros interpretativa, meramente como uma
conceitos, dada a suposição que a “deficiência” ou “ausência de bem”.
compreensão do Bem consiste Parte do que disse até agora pode
simplesmente em compreender o parecer coadunar-se com a última
modo pelo qual opera este conceito concepção. Se os objetos físicos são
para dar uma idealização dele, no menos bons que os paradigmas em
caso de cada conceito “tal-e-qual”. virtude de serem somente

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Hugh H. PLATÃO
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aproximações a eles, se poderia supor O Demiurgo, no Timeu, embora


que o mal em si é um tipo de queira fazer o mundo físico tão bom
deficiência que consiste em uma quanto possível, não é apresentado
aproximação imperfeita. nem como onipotente nem como
totalmente benevolente.
Por outro lado, é
frequentemente dito que Platão De fato, a República não se
parece nomear “o mal” como uma compromete com nenhuma das
Forma e, tanto quanto se pode dizer, posições quanto a esta questão. Ela
em um mesmo nível que o bem (479a- não tem nenhuma posição clara
b), o que poderia parecer apontar ao acerca da relação precisa dos concei-
primeiro modo de o considerar (ver tos opostos. Ela menciona tais pares
Vlastos). Não me parece, a mim, que (479a-b), mas não indica se um deles
Platão espose abertamente, na é positivo e o outro é “meramente”
República, uma ou outra destas negativo. O Sofista tampouco toma
interpretações. partido nesta questão, embora
examine a negação, a falsidade e a
As motivações que muitos contrariedade, o que poderia ter dado
intérpretes tiveram para adotar esta ocasião a um exame da questão – o
última posição, que não ocorreu. Platão não precisa
tratar desta questão e não a examina.
porém, não têm um papel no
pensamento de Platão. Pensadores O propósito expresso para introduzir
cristãos, como Agostinho e Leibniz, o bem é o de elucidar a justiça (veja a
defenderam a ideia de um deus primeira seção). O motivo para fazer
onipotente e totalmente bene- isso é o de convencer as pessoas a
volente. Eles sentiram serem justas: isto é, convencer os
(justificadamente ou não) que seria leitores de Platão e também indicar,
mais fácil explicar a aparente de um modo mais inteiramente ar-
presença da maldade no mundo se ticulado, como os govemantes-
pudessem dizer que era somente uma fílósofos devem ser convencidos.
ausência de bem. Isso levou pessoas a
interpretar Platão nesta mesma linha. Em ambos os casos, a convicção
Porém, nenhuma motivação teológica deve ser produzida (pelo menos ao
desta natureza tem apelo para Platão. longo do Livro IX) por um argumento

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Hugh H. PLATÃO
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racional. Esta afirmação não é trivial arbitrárias, estabelecidas por


para Platão. Ele pensa que, ao lado do convenções ou pelo poder dos
desejo do Bem, também existem as governantes. Platão o nega. Ele tenta,
motivações não racionais – inclusive portanto, mostrar que estas normas
meras ânsias. Elas não envolvem têm um tipo de condição não
tomar algo como bom e não encerram arbitrária.
este conceito (437b-439b). Ele não
aceita a tese que tudo o que é O argumento dos Livros II-IV se
buscado é buscado sub specie boni, vale da noção de bem de dois modos.
isto é, como sendo bom. Se ele Primeiro, as cidades não surgem
pensasse que havia uma ânsia de arbitrariamente. Elas surgem porque
justiça que não envolvesse pensá-la indivíduos não são autossu- ficientes
como um bem (um tipo e as cidades têm a função de prover
suas necessidades, bem como de
tomar possível o viver bem. Estas
características juntas são tidas como
de ressentimento, talvez em uma levando à conclusão que a cidade de
perspectiva nietzscheana, que só Platão é boa (427e, 433e-434e).
poderia ser aplacada pela correção), Platão sempre diz que uma
ele teria usado este desejo não personalidade com uma estrutura
dirigido-ao-bem como um motivador análoga é boa (434d-e, 444b, 449a). O
para que as pessoas sejam justas. principal fator responsável pelo fato
Todavia, como vemos, ele pensa que das cidades serem boas deste modo é
convencer as pessoas a serem justas sua justiça, isto é, sua conformidade
requer mostrar-lhes que é bom ser ao Princípio de Atribuição das
justo. A questão é, porém: “bom de Funções Naturais.
que modo?”
Portanto, Platão considera esta
Um aspecto aqui do esforço de característica estrutural – ser guiado
Platão consiste em argumentar que a pelo Princípio – como uma razão
justiça é “objetiva” de um modo que suficiente para dizer que algo é bom.
seus oponentes sustentam que ela Assim, sabemos isso sobre sua
não o é. A maioria de seus concepção do bem: o bem em uma
interlocutores em República I-II adere cidade é implicado pelo fato da cidade
à ideia que as normas de justiça são ter esta característica estrutural. Isso

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Hugh H. PLATÃO
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não é uma definição do bem, por Isso é algo surpreendente para


certo; se aplica somente a dois tipos muitos atualmente, que tendem a
de coisas e não pretende dar uma pensar que a objetividade do bem é
condição necessária do bem nem um tão suspeita quanto a de outras
conjunto completo de condições noções de apreciação. Todavia, que
suficientes. Porém, certamente nos Platão adota esta posição é
diz algo – algo que o argumento de confirmado por uma passagem no
Platão não pode deixar de ter. Teeteto, em que se vale de uma
afirmação sobre o bem objetivo para
Ademais, Platão pensa que esta construir um de seus argumentos
condição estrutural de uma contra o relativismo de Protágoras
constituição ou (172a-177e).

personalidade é um bem em um Segundo: Platão faz


sentido não arbitrário e, nesta considerações matemáticas para
perspectiva, objetivo. Duas mostrar que a presença, a um certo
considerações parecem trazer apoio a grau, das condições estruturais pode
esta ideia. ser um fato objetivo. Uma figura física
pode ser apenas aproximadamente
Primeiro: Platão pensa que as um círculo, mas é um fato que a figura
pessoas comuns consideram é assim e também que ser circular
irrefletidamente o bem – consiste em satisfazer uma certa
diferentemente da justiça e algumas condição não aproxidamente.
outras coisas – como objetivo:
Dados estes fatos, pode-se ver
No caso do justo e do belo que Platão tenta fundar seu
(kala), muitos prefeririam fazer, argumento em prol da justiça objetiva
possuir ou crer na aparência da cidade em sua crença na
sem a realidade. Contudo, objetividade do bem. Dado que a
quando se trata do bem, não cidade é objetivamente boa e que a
basta a alguém possuir a justiça é um aspecto de seu ser bom,
aparência, mas todos buscam a ele pensa que se segue que a cidade é
realidade, a mera opinião não justa também objetivamente. Isso,
mais satisfazendo ninguém espera ele (em vão, como
aqui. (505d5-9) demonstram os mais de dois milênios

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Hugh H. PLATÃO
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de história da filosofia desde então), de ser justo. Esse modo envolve


dará um fim à ideia que as normas de pensar a justiça como um bem de um
justiça são meramente arbitrárias. modo que não é ligado ao bem-viver
de cada um, mas de um modo que é
Platão apela ao conceito de bem para apreensível e que tem força
convencer as pessoas a serem justas motivante independentemente do
mediante bem-viver de cada um. Esta linha de
pensamento se constitui pela ideia
que a instanciação da justiça no
mundo e na personalidade de cada
um argumento racional. um é boa por si mesma. Essa ideia não
Compreender a República requer inclui uma consideração sobre a
compreender este apelo. felicidade de cada um. Ademais, estas
duas considerações estão separadas
Pensa-se comumente que Platão de um modo que torna possível, sob
baseia seu apelo inteiramente na condições especiais especificadas
argumentação que ser justo é bom pelos governantes-filósofos, que
para a pessoa justa, isto é, que as estas duas razões para ser justo
pessoas que são justas e somente elas entrem em conflito. Isso pode ocorrer
são felizes ou desfrutam do bem- precisamente por causa da apreensão
viver. Inquestionavelmente faz parte completa por parte dos governantes
do argumento de Platão que isso é do conceito de bem.
assim. Ele crê que os justos são muito
mais felizes que os injustos. Ele A situação e o pensamento dos
também crê que isso é uma boa razão governantes são revelados no Livro
para ser justo. Ele não tem a crença de VII, quando terminam o último
Kant (na Fundamentação para uma estágio filosófico de sua educação e
Metafísica dos Costumes, pelo são obrigados a “retomar à caverna”
menos) que fazer a coisa correta com no intuito de governar a cidade que os
vistas à própria felicidade é um educou. Platão diz que eles
motivo corrompido. certamente se porão a governar
“como algo que deve (dei) ser feito”
Contudo, Platão tem um modo (521b4). (Ver também katabateon em
suplementar para desenvolver sua 520cl e anankaseis em 521b7.) O
noção de bem no argumento em prol “deve” aqui está ligado

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Hugh H. PLATÃO
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explicitamente à justiça: “devemos Ademais, os governantes-


dar ordens justas para homens justos filósofos fazem suas escolhas
[os arquitetos da Cidade-Estado ide- sabendo de que se trata. Eles
al]” (520el). Também é posto em conhecem... uma vida melhor que a
contraste política (521b8-10), que é uma vida
que é “melhor que governar para os
com o que é bom ou melhor para eles: futuros governantes” (520e4-521al).
estamos “fazendo com que vivam Além disso, os governantes obtiveram
uma vida inferior, quando poderiam este conhecimento de sua educação
ter uma vida melhor” (519d8-9), já filosófica, de modo que Platão não
que conhecem “... uma vida melhor pode estar sugerindo que esse
que a política” (521bl-2). Por “conhecimento” não é acurado e
“melhor” Platão quer dizer aqui conceitualmente correto.
“melhor para eles”. Pode-se ver isso
por sua insistência que toda esta A consideração decisiva para a
organização para a cidade depende escolha dos governantes não é o que
de haver “um modo de vida que é é bom para eles, mas o que é bom
melhor que governar para os futuros para a cidade. A busca do bem da
governantes” (520e4-521a2, ameinô cidade, por sua vez, resulta do fato de
tou archein tois mellousin arxeiri). terem tomado o Bem em si como
modelo (540a-b). Uma deliberação
Estas passagens mostram que filosoficamente informada sobre o
Platão faz uma distinção entre o que que fazer não consiste simplesmente
é “melhor para os governantes” e, de em um tipo de contribuição à
outro lado, o que é “justo” e que, felicidade pessoal. Se consistisse
portanto, os governantes “devem” somente nisso, os governantes
fazer. Visto que a compreensão do poderiam, sob condições favoráveis,
que é justo é caucionada pela escolher filosofar e tentar serem os
apreensão do bem, temos uma filósofos que, nas cidades reais, se
distinção conceituai entre o que retiram da vida pública (496a-497a,
“deve” ser feito porque é ‘justo”, as- 520b).
sim como, correspondentemente,
“bom” em uma perspectiva não Os governantes são levados,
egoísta, e o que é “bom para” si assim, tanto pela consideração do
mesmo. bem ou felicidade de si próprios,

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Hugh H. PLATÃO
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como também pela cidades ao invés de filosofar.


Parecem-me antes a mim o produto
da arte dos intérpretes (ver o capítulo
Interpretando Platão). Segundo: este
consideração do que é bom para a argumento não apresenta de fato a
cidade. Quando elas entram em razão dos governantes para
conflito, a última vence. O bem mais governarem como baseada
amplo é o que é a instan- cialização fundamentalmente em sua própria
mais extensiva da estrutura que é o felicidade. Afinal, de acordo com
bem paradigmático (ver 604b-c). estas interpretações, o bem da cidade
é tomado como sendo valioso, digno
Alguns intérpretes sugerem que, ou bom de um modo que é
segundo Platão, os governantes independente do fato que é
perseguem o bem da cidade porque (supostamente) parte da felicidade
esse bem está “incluído” na sua dos governantes.
felicidade, porque perseguir o bem da
cidade é uma “parte” importante de Ainda, e mais crucialmente, o
seu próprio futuro, é um bem ou valor juízo que o governo dos filósofos da
que eles estão tentando “criar” ou cidade é uma “parte” da felicidade
“difundir” ou envolve estar em uma dos governantes parece abertamente
relação própria às Formas, que são – segundo todas estas interpretações
elas próprias boas (ver Kraut, 1993, p. que foram sugeridas – estar baseado
328-30 e Irwin, 1995, p. 192-3, 311- na tese que esse governo e seus re-
13). Deste modo, dizem eles, Platão sultados são bons. Ademais, os
apresenta a razão dos governantes governantes são certamente
para governar como provindo supostos ver isso. Eles não refletiriam
fundamentalmente da consideração assim: “a condição de uma cidade que
de sua própria felicidade. governarei é parte de minha felici-
dade; portanto, é boa”. Ao contrário,
Dois fatos me parecem lutar eles refletem assim: “a condição de
decisivamente contra esta sugestão. uma cidade
Primeiro: esta linha de argumento e a
linguagem que a acompanha não como a governarei é boa; portanto, é
aparecem na discussão de Platão das parte de minha felicidade”.
razões dos governantes governarem a

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Hugh H. PLATÃO
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De fato, todavia, as passagens Um ponto ainda mais significativo


citadas mostram que, segundo Platão, contra esta interpretação vem à luz
os governantes simplesmente quando perguntamos por que a
argumentam que seu governo é bom decisão de um governante de não
para a cidade. Que conduza à sua governar romperia a harmonia de sua
felicidade não é introduzido como alma. Seria o erro de não pagar uma
uma razão para que governem. Ao dívida, diz Platão, que o governante
contrário, tanto quanto a teve ao ser educado pela cidade
consideração do que é melhor para os (520b-c). Todavia, não pode ser o
governantes é levada em conta, ela mero fato de não pagar uma dívida
pesa para o outro lado, em favor de que engendra a injustiça. No Livro I
filosofar contra governar. (331c-d), Platão refuta de vez a tese
que é sempre injusto não pagar uma
Outra razão para dizer que a dívida. O que mostra que a decisão de
prontidão dos governantes a governar um governante de filosofar seria
deve estar baseada em seu próprio injusta é isto: romperia com a ordem
bem-estar é por vezes vista surgir do e, por isso, com a justiça da cidade.
perigo, se eles não governarem, que a Porém, para explicar por que isso seria
cidade se arrume e suas chances de uma razão decisiva contra essa ação e
filosofar estariam alijadas ou seria assim vista pelo governante, não
arruinadas. Uma razão diferente é há outra coisa a apelar senão ao fato
que, se eles fizerem uma ação injusta, que o bem da cidade é valioso e que o
eles romperiam por isso a harmonia governante assim o considera.
de suas personalidades e, portanto, se Novamente, a base última da escolha
tornariam menos felizes. dos

É um fator substancialmente
contrário a esta interpretação o fato
que, no Livro VII, Platão em nenhum governantes é o bem da cidade, não a
lugar menciona estes argumentos sua própria felicidade.
ligados ao interesse próprio. Porém,
eles poderiam obviamente ser úteis à Como a linha de pensamento
sua argumentação e fáceis de serem anterior demonstra, a função dos
formulados, se ele o tivesse desejado. governantes no interior da cidade
ideal é dupla. É constituída de

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filosofar e governar. Nenhum outro Portanto, o conflito que os


grupo dentro da cidade tem uma governantes devem gerir é gestado
função dupla. Isto é porque Platão diretamente pela compreensão que
pensa que as duas funções estão Platão tem do bem da própria cidade,
jungidas de um modo em que nenhum concebido como a conformidade ao
outro par de funções o está. Por esta Princípio de Atribuição das Funções
razão, o caso da conformidade dos Naturais, que dá à cidade sua
governantes ao Princípio de estrutura paradigmática. Não parece
Atribuição das Funções Naturais tem haver um modo de obviar o fato que a
de ser mais complexo que qualquer consideração do que é bom para a
outro caso. cidade pode ter seu próprio peso,
separável das considerações do que é
Os governantes têm a função de bom para si mesmo.
governar e preservar a cidade. Para
fazer isso, eles precisam compreender Esta linha de argumentação não
a justiça e o bem. Para isso, pensa aparece do nada no Livro VII. Ela está
Platão, eles devem ter a função de operando ao longo de toda a obra. O
filosofar e filosofar antes de governar. caminho é preparado para ela nos
Porém, ao filosofarem, eles Livros I e iy que assim prove- em um
descobrem duas coisas. Primeiro: exemplo adicional do modo como
filosofar é a atividade mais prazerosa Platão emprega o conceito de bem,
– muito mais que governar – e os fará antes
mais felizes. Segundo: a despeito dis-
so, fazer com que a cidade instancie o mesmo que seja enfatizado nos Livros
Bem os obriga a governar, em parte VI e
para pagar a dívida contraída porque
a cidade os educou de modo a VII. O tema aparece por primeiro no
filosofarem (520a-c). Assim, se devem Livro I, em 347a-e e 345e-346a:
governar, devem filosofar e, se eles
filosofam, devem estar conscientes Em uma cidade de homens bons,
que devem interromper o filosofar e se houver tal, eles
governar, ainda que filosofar seja provavelmente entrariam em
melhor para eles que governar. Eis o competição uns com os outros
conflito. para não governar e não, como
agora, para governar. Aí ficaria

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muito claro que a natureza do Livro VIL


verdadeiro governante não é
buscar seu próprio benefício, O Livro VII revela, todavia, que o
mas o de seus súditos, e todos, fato de conduzir a deliberação pelo
sabedores disso, passariam a que é bom para a cidade, que se
preferir receber benefícios no distingue da noção do que é bom para
lugar de se inquietarem em si próprio, é essencial para o esquema
beneficiar os outros. (347d2-8, Político de Platão. No livro VII,
grifo meu) retomando o tema que acabamos de
citar do Livro I, Platão diz que “se você
Ele volta a aparecer novamente descobrir um modo de vida que é
no Livro iy em 420b-c e 421b-c: melhor que governar para quem
governa, uma cidade bem organizada
Devemos investigar, então, com se toma possível, pois somente em
isso à mente, se nosso objetivo uma cidade assim...” (520e3-521a2).
ao constituir nossos guardiães é
que devam ter a maior Os governantes não fazem somente a
felicidade ou se nossos objetivos distinção entre a vida que é melhor
dizem respeito à cidade inteira e para eles
como sua máxima felicidade
pode ser obtida. Devemos
obrigar e persuadir os auxi-
liares e os guardiães a ser e a que é melhor para a cidade; além
excelentes realizadores de suas disso, eles fazerem esta distinção é
tarefas, bem como em relação necessário para que a cidade seja bem
com todos os outros. Assim, à governada. Platão contradiz a ideia,
medida que a cidade inteira que alguns lhe atribuem (com base
cresce e é bem governada, em 412d-e), que os governantes
devemos deixar à natureza de identificam a si mesmos e seu bem à
dar a cada grupo sua parte na cidade e ao bem dela. Ao contrário, a
felicidade. (421b3-c6, grifo meu) coisa essencial para uma boa
sociedade é que seus governantes
Portanto, Platão está operando sejam capazes de distinguir entre o
com a mesma distinção conceituai que é bom para eles e o que é bom
que ele atribui aos governantes no para a cidade, deliberando com base

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nesta última consideração. tralidade não ao bem, mas à


obrigação e ao dever. Esta afirmação
O conceito de um bem que não é conduz facilmente ao pensamento
simplesmente bom para alguém é de que, enquanto a ética moderna é
um outro modo também essencial dominada pelo pensamento de
para o argumento de Platão. Como mandamentos (inclusive os provindos
observamos acima, a argumentação de Deus) e de deveres, a ética antiga
que leva Platão à identificação da é caracterizada, por sua vez, por uma
justiça no Livro IV depende da ideia do que é atraente ou belo. Neste
atribuição do bem à sua cidade ideal quadro, a noção de dever estaria fora
e aos seus governantes. A noção de do conteúdo principal e também do
bem que é usada aqui não é uma tom da ética antiga. Este pensamento
noção de bem para si próprio ou para se coaduna com a ideia que, na ética
alguém em particular, seja ele justo antiga, incluindo Platão, o objetivo de
ou não. O bem da cidade, em alguém
particular, nasce do fato de servir às
necessidades de seus habitantes e de é sempre sua própria felicidade e que
o fazer em um modo harmonioso. não existe nenhum fim que possa
Pode-se ver aqui uma analogia com o entrar racionalmente em conflito com
fim do Demiurgo no Timeu. Ele tenta ela.
fazer o cosmos físico ser bom. Seu fim
não é o bem para si mesmo ou para Contudo, se a justiça é um
alguém nem deriva de uma tal noção. aspecto do bem e se fazer o que é
justo pode em uma situação
Deste uso de bem da parte de Platão distanciar-se da felicidade própria –
segue-se um outro ponto, que não se como ocorre quando os governantes
enquadra inteiramente com o quadro devem governar em vez de continuar
comum e tentador de seu a filosofar –, este quadro precisa ser
pensamento. revisto. Com efeito, temos de admitir
que Platão tem uma noção de bem
Platão atribui ao conceito de bem que (na terminologia de Sidgwick) não
o papel central em seu esquema. é puramente “atraente”, mas é,
Comentadores frequentemente antes, parcialmente “imperativa”.
declaram que, em contraste, a ética Chamar algo de bom pode, no
moderna atribui esta mesma cen- pensamento de Platão, indicar não

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Hugh H. PLATÃO
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que ele exerce simplesmente uma ed. Londres: Wes, Richard.


atração na pessoa que o persegue,
mas, neste caso englobando os Hare, R. M. (1965). Plato and the
governantes, um sentido de ser mathematicians. In R. Bambrough
obrigado a fazer algo que não é o (ed.) Studies in Plato’s Metaphysics
melhor para a sua própria condição. (pp. 21-38). New York: Humanities
Press. Irwin, T. (1995). Plato’s Ethics.
Este sentido pode também ser Oxford: Oxford University Press.
ligado à palavra inglesa good – “bom”.
Por exemplo, “é bom” pode ser
equivalente a “deve existir”, em que
“deve” tem algo de seu sabor Kraut, R. (1993). The defense of
imperativo costumeiro, sugerindo justice in Plato’s Republic. In R. Kraut
que há a violação de uma norma se (ed.) The Cambridge Compa- nion
algo bom não existir. O conceito toPlato (pp. 311-37). Cambridge:
platônico de bem cobre, assim, o que Cambridge Press.
se aceita sem reservas racionalmente,
como parte do bem-estar pessoal, e Sachs, D. (1963). A fallacy in Plato’s
também o que é obrigatório apesar Republic. Philosophical Review 72, pp.
de ir em alguma medida contra este 141-58.
bem-estar.
Shorey, E (trans.) (1935, 1937). Plato’s
NOTA Republic (2 vols.), ed. Rev. com
comentário. Londres: Heinemann.
Todas as traduções são do autor.
Sidgwick, H. (1907). TheMethods
REFERÊNCIAS E LEITURA ofEthics, 7a. ed. Londres: MacmiUan.
COMPLEMENTAR
Vlastos, G. (1965). Degrees of reality
Bambrough, R. (ed.) (1965). Studies in in Plato. In R. Bambrough (ed.) Studies
Plato’s Metaphysics. New York: in Plato’s Metaphysics (pp. 1-20). New
Humanities Press. York: Humanities Press.

Grote, G. (1988). Plato and the Other White, N. (1979). A Companion


Compa- nions of Sócrates, vol. IV nova toPlato’s Republic. Indianapolis:

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Hugh H. PLATÃO
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Hackett. últimas são os resultados da legislação


(681c-d; 683c). Assim, uma
(2002). Individual and Conflict in investigação da origem das Leis é uma
Greek investigação do início da legislação
(680a). Tipicamente, as Leis são
Ethics. Oxford: Oxford University redigidas, que de novo as distingue de
Press. meros costumes e usos (Lg. 680a,
793b-c; Plt. 292a; 293a, 298e, 300b-c).
Na verdade, elas são frequentemente
referidas nos diálogos de Platão
25 simplesmente como “o que está
redigido” (ta gegram- mena; por
Platão e a lei exemplo: Plt. 293b4, 297d6, 300a3-5).

SUSAN SAUVÉ MEYER A última e mais longa obra de


Platão, as Leis, é uma investigação dos
Nosso tema é a doutrina de Platão objetivos e métodos próprios da
sobre a lei. “Lei”, no presente legislação. Os interlocutores
contexto, traduz o substantivo plural discorrem sobre os métodos de di-
“nomoi” (Leis). Os no- moi que nos ferentes tipos de constituições
interessam são os produtos da políticas e se lançam no projeto de
legislação com vistas a governar a vida detalhar a legislação constitucional e
de uma polis. Governo pela lei é estatutária de uma colônia cretense a
distinguido do governo por uma ser em breve fundada. A República
pessoa (Pít. 294a). Leis se distinguem também contém um grande e
de mecanismos regula- tórios detalhado
aparentados como os costumes (no-
mima), o uso (êthê, epitêdeumatá) ou projeto legislativo, no qual
“lei” ancestral (patroious nomous) (Lg. Sócrates delineia as nomoi que vão
680a, 681b-c; 793a-d; 808a; Plt. 298e; estruturar a cidade ideal (425e, 452c).
R. 425a-b). Embora estes últimos Ele e seus interlocutores referem-se
sejam por vezes referidos como regularmente a si mesmos como se
“nomoi” (Lg. 687b7), a característica envolvendo em um projeto de
crucial que os distingue das Leis que legislação (p. ex., 425b, 427a-b, 456c,
nos interessam neste estudo é que as 457a) e se referem aos governantes-

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filósofos como “guardiães das Leis” de Platão dos princípios próprios da


(421a; cf. 484b-c, 504c), um termo prática legislativa.
usado para o cargo Político mais
importante nas Leis (752d-e). Visto
que, contudo, a lei não é um tópico
explícito de reflexão na República, não O CRÍTON
discutiremos esse diálogo
diretamente (ver os capítulos Platão e Sócrates está na prisão aguardando
a Justiça; O Conceito de Bem em sua execução; Críton o exorta a fugir.
Platão; Platão e as Artes). A posição de Críton, em poucas
palavras, é que o veredito do tribunal
O mais jovem diálogo que foi injusto. Sócrates foi erradamente
examina a lei é o Críton, no qual as Leis condenado e sentenciado à morte;
personificadas de Atenas caso seja executado, terá sido
argumentam que Sócrates tem um executado injustamente. Cabe a seus
dever absoluto de obediência a elas. O amigos ajudá-lo a escapar desta
Político, um diálogo muito mais injustiça (44b-c, 45e-46a) e, de fato,
tardio, inclui uma discussão longa e ele deve isso a si mesmo (45c-d).
detalhada do papel da lei nas Sócrates não contesta a tese de Críton
constituições corretas e incorretas e que ele foi injustamente condenado à
faz o que se pode mostrar como uma morte; na verdade, ele apoia quase
defesa muito mais forte que a feita inteiramente a tese mais de uma vez
pelas Leis no Críton: que mesmo onde (49b-c, 50c, 51e-52a; cf. 54b-c).
as Leis de uma polis são inteiramente Tampouco contesta ele a suposição
más e foram obtidas pelos piores de Críton que se deve ajudar aos
meios, é ainda imperativo que os amigos para que escapem da
cidadãos obedeçam a elas (298a- injustiça. Contudo, ele se recusa a
300a). A compreensão da lei no cooperar na fuga que Críton planejou
Político tem muito em comum o das e financiou, com base em que isso se-
Leis, embora haja diferenças cruciais ria uma injustiça. O que Crítion
entre os dois diálogos. O exame concebe, no pior dos casos, como um
destas diferenças nos permitirá não crime sem vítima constituiria, ao
somente apreender a inteira força das contrário, uma grave injustiça à
razões que dão apoio à tese no Críton, cidade de Atenas e às suas Leis (51e).
mas também entender a concepção

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O resto do diálogo é dedicado ao implausível que a fuga de Sócrates


argumento de Sócrates que seria uma sozinho solaparia as Leis e destruiria a
injustiça que ele fuja da prisão (50a- cidade. Estas terríveis consequências
54d). Ele apresenta este argumento só ocorreriam se o descaso com a lei
como um discurso das Leis se tornasse uma prática generalizada
personificadas de Atenas porque elas entre a população, como alega a
seriam a parte que seria lesada se ele segunda frase (cf. R. 557e, 558a,
fugisse. Sócrates não está fazendo 563d-e; Lg. 701a-d). Antes, a tese das
apelo à noção simples que as Leis Leis da lesão, na primeira frase, é
definem a justiça e, portanto, que ir qualificada apropriadamente pelo
contra a lei é agir injustamente. acusativo adverbial: “no que toca a
Antes, ele pensa que é necessário um você” (to son meros, 50b2); isto é,
argumento (logos, 46b-47a) para Sócrates estaria fazendo a sua parte
mostrar que se esquivar da lei seria de destruir a cidade. Isso não é acusar
agir injustamente. Donde sua Sócrates de conspiração ou predizer
invocação da parte lesada. más consequências por causa de sua
fuga. Não é às consequências da ação
As Leis se dirigem a Sócrates de Sócrates, mas à atitude que ela
como se ele tivesse a intenção de expressa que as Leis objetam. Fugir
fugir. A tese delas de lesão é imediata: seria uma afronta às Leis, mesmo que
de fato não lhes cause dano.
Por esta ação que você está
empreendendo, não está você As Leis fornecem dois grupos de
tentando nos destruir, as Leis, e razões por que seria errado para
mesmo a cidade inteira, no que Sócrates “fazer sua parte” de lhes
toca a você? Ou você pensa que causar dano. Em primeiro lugar,
é possível para uma cidade não dizem elas, Sócrates tem uma relação
ser destruída se os vereditos de filial com elas. Já que eles governaram
seus tribunais não têm força, o casamento de seus pais e sua
são anulados e postos abaixo própria educação, elas sustentam que
pelos indivíduos? (Oi. 50a9-b5; “geraram”, “criaram” Sócrates e lhe
cf. 50dl, trad. Grube) deram todos os bens (50d-e; repetido
em 51c-d). Assim, ele é seu filho e
Observe que as Leis não estão servidor (doulos, 50e; cf. Lg. 919d-e),
fazendo a alegação altamente uma noção muito usada nas Leis:

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698b, 700a, 715d, 762e. Um filho não a concordância implícita de Sócrates é


está “em pé de igualdade” com seu justa (49e-50a). O ponto das Leis não
pai e, assim, não deve tentar lesá-lo, é que, porque Sócrates concordou em
mesmo que o pai o tenha lesado (Cri. obedecer a elas, é injusto de sua parte
50e-51c; cf. Lg. 717d). Portanto, renegar este acordo. Antes, elas
Sócrates não deve tentar destruir as argumentam que, já que era um
Leis, mesmo que elas estejam acordo justo de obedecer, ele está
tentando destruí-lo. obrigado a obedecer. O que toma o
acordo um acordo justo? Além de não
Em segundo lugar, argumentam ser compelido e de estar livre da
as Leis, Sócrates concordou pressão do tempo, este acordo deve
implicitamente em obedecer a elas envolver uma troca justa de bens.
(51d-52d). Em contraste com uma Uma troca significativa de benefícios
relação filial com os pais biológicos, a deve estar por trás do contrato social
relação filial que se tem com as Leis é hipotético. Que benefício Sócrates
revogável. O cidadão de uma polis, ganha das Leis?
após ter atingido a maturidade, pode
abandonar a cidade e evitar a As Leis, em sua diatribe, não são
jurisdição de suas Leis. Não há específicas sobre o benefício, mas
nenhuma penalidade por abandoná- deixam claro que Sócrates está
la e nenhuma pressa de tempo para consciente dele (52b-c, 53a) e que ele
tomar a decisão: durante toda a sua é considerável. Nenhuma cidade que
vida de adulto lhe está garantido o respeita as Leis o receberá se ele fugir,
direito de partir (52e). Ficar é elas o advertem (53b-c). Enquanto fu-
concordar em adotar as Leis e as gitivo, ele terá de viver em uma
comunidade sem Leis ou em
nenhuma comunidade – o que ele
claramente toma como sendo um
instituições da cidade, junto com seus grande custo. Não valerá a pena viver
defeitos. Isso inclui as decisões de em tais circunstâncias (53c-d).
seus tribunais, por mais injustas que
sejam (50c). Os benefícios que as Leis trazem
aos cidadãos não são apresentados
Uma tese importante no em mais detalhes no Críton. O Político
argumento das Leis é a suposição que e as Leis nos dão um relato mais

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completo deste benefício. põe a considerar os méritos da


reivindicação do sofista ao título de
O POLÍTICO politikos (291a-303d), a personagem
mais presente de Platão, o
O Político investiga a natureza da Estrangeiro de Eleia que não é
competência política (politikê nomeado, dá uma ênfase especial ao
epistêmê), que é o conhecimento ponto que a política é um tipo de
característico do politikos ou “homem conhecimento (292b=-c).
Político” referido no título do diálogo Sumariamente, ele argumenta que o
(258b). Entre outras coisas, o diálogo sofista, que somente finge que tem
procura distinguir o verdadeiro esse conhecimento, mas não o tem,
Político do sofista (cuja natureza é o não é um politikos. Na verdade,
tema de investigação do diálogo que argumenta o Estrangeiro de Eleia,
o acompanha, o Sofista). Um sofista é quem participa da política com so-
um professor, como Protágoras, que mente as qualificações de um sofista
se oferece para ensinar, por um é o oposto de um politikos: é um
preço, tudo o que uma pessoa stasiastikos ou “especialista em
ambiciosa precisa aprender para se facções” (Plt. 303c). É na cadeia
tomar alguém respeitável e bem tortuosa da argumentação entre esta
formado que participa premissa e a conclusão que o
Estrangeiro de Eleia evoca o tema do
da vida política de sua cidade papel da legislação no governo
(Protágoras. 319a). Isto é, um sofista competente.
oferece-se para treinar alguém em ser
politikos. No quadro desenhado pelos O Estrangeiro de Eleia inicia
diálogos de Platão, o sofista, porém, é invocando o que era na época uma
somente alguém que pretende ter classificação padrão das constituições
conhecimento (Sph. 233c-236d). O políticas (politeiai), em função dos
que se aprende de um sofista ou de governantes serem um, poucos ou
seu primo-irmão, o orador, é como muitos, serem ricos ou pobres,
adular e manipular os cidadãos ao governarem de acordo com as Leis ou
invés de os comandar com justiça não, ou terem súditos de bom grado
(Grg. 464b-465). ou não (291d-292a). Em oposição à
prática de definir a melhor politeia
Quando a discussão no Político se por referência a esses critérios, o

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Estrangeiro de Eleia insiste em um que não está limitado pelas Leis


único critério para a retidão de uma (294a), o Estrangeiro de Eleia explica
politeia: que os governantes tenham que, visto que as Leis são princípios ou
conhecimento. Se esse critério for regras gerais, elas são no máximo
satisfeito, não importa se os go- aproximações ao conhecimento do
vernantes são ricos ou pobres, se Político competente. O conhecimento
governam súbitos de bom grado ou do homem Político diz respeito ao que
não, e mesmo se governam de acordo é justo e benéfico aos cidadãos
com as Leis ou não (Plt. 292a, 293a-e; (297b); porém,
cf. 296c-297b).
a lei não pode nunca abraçar
Este último ponto provoca uma rea- com precisão o que é melhor e
ção aguda do interlocutor do mais justo para todos ao mesmo
Estrangeiro de Eleia que é tempo e, deste modo,
normalmente complacente, o qual se prescrever o que é melhor, pois
declara chocado ao ouvi-lo negar que as dis- similaridades entre os
seres humanos e suas ações,
bem como o fato que prati-
camente nada nos negócios
o govemo da lei é uma característica humanos permanece estável
da melhor constituição (293e). impedem que algum tipo de
Especificamente, a questão diz competência consiga fazer com
respeito a se os governantes devem que uma decisão simples em
ser limitados pelas Leis. O Estrangeiro qualquer esfera cubra todos os
de Eleia atacou a convicção, casos e dure para sempre.
largamente presente em sua (294al0-b6, trad. Rowe)
audiência (297d-e), que o governo
pelas Leis é superior ao governo dos Esta característica é comum a
homens (294a). Platão introduz assim todas as artes, diz aqui o Estrangeiro
um tema maior deste diálogo, de Eleia, dando eco a uma tese
examinado minuciosamente e mesmo prevalente no quarto século que é, de
claramente em 294a-303d, da relação modo célebre, adotada por
da competência com a lei. Em defesa Aristóteles na Ética Nicomaqueia
da tese que a melhor constituição é (1094bl4- 22; ver Hutchinson, 1988).
dirigida por um homem competente

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Dada a falta de precisão das 295a9-b5, trad. Rowe)


regras gerais em assuntos práticos,
seguir rigidamente tais regras leva Assim, as Leis são necessárias
inevitavelmente a cometer erros. Seja mesmo para a constituição correta
o empreendimento a arte de fazer (cf. LG. 713e2). O que distingue a
calçados ou a política, não se constituição correta de todas as
conseguirá agir de uma maneira outras, a cujos governantes falta a
totalmente competente. Mas competência, é que o governante não
circunstâncias nas quais a competên- está limitado pelas Leis.
cia lhe diz que as regras não dão as
direções corretas ou melhores, o Por essas razões, explica o
homem competente fará com Estrangeiro de Eleia, o Princípio do
propriedade exceções às regras, as Govemo da Lei não se aplica a uma
politeia com governantes
suspenderá ou as ajustará. Assim, competentes. O princípio se aplica,
explica o Estrangeiro de Eleia, em antes, somente ao cenário que serve
assuntos práticos o princípio do de sucedâneo, no qual não há um
govemo da lei é incompatível com a governante competente. Na falta de
prática da competência. um governante competente (o que se
deve esperar, 301d-e), o melhor
Isso não quer dizer, todavia, que caminho para imitar a constituição
o homem Político competente (ou correta consiste em subordinar os
outro artesão) não fará uso das Leis governantes à lei (293e, 297d-e).
ou regras. Na verdade, ele o fará
como uma necessidade prática, pois O princípio se aplica não somente
lhe é impossível aplicar diretamente quando as Leis que constituem a
sua competência a toda ação de todas politeia são tão boas quanto as que
as pessoas: teria concebido um homem Político
competente (Plt. 297d). Os
Como, pois, alguém seria capaz, governantes devem sujeitar-se às Leis
Sócrates, de perpetuamente mesmo quando as Leis são em muito
estar sentado ao lado de cada inferiores às da melhor politeia. É este
indivíduo ao longo de toda a sua o caso na constituição democrática
vida e prescrever com precisão que o Estrangeiro de Eleia passa a
o que lhe é apropriado? (Plt. discutir em seguida (298a-299e). O

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processo democrático de legislação método de procedimento que


não reconhece a existência da serve de sucedâneo aos que
competência política (299c-d). A estabelecem as Leis e regras es-
opinião de um é tão boa quanto a de critas sobre o que quer que seja
outro, de modo que as Leis devem ser consiste em jamais permitir que
adotadas somente se alguém ou que a massa faça algo
contrário a elas – o que quer que
seja. (Plt. 300b8-c2, trad. Rowe;
cf. 300ell-301a3).
uma maioria as considerar como
passíveis de acordo (298c-e, 300b). O O princípio está articulado aqui
Estrangeiro de Eleia torna bem clara a para ser aplicado não somente aos
mensagem que tal método para governantes, mas também aos
estabelecer as regras está em cidadãos privados (como Sócrates no
oposição à competência. As Leis que Críton). Para uma constituição “não
se pode esperar que suijam deste permitir” que um indivíduo faça algo
processo serão em muito inferiores às contrário às Leis consiste
que seriam redigidas por um homem simplesmente em aplicar uma
Político competente. Na verdade, ele penalidade a toda ação que vá contra
consiste em uma legislação que a lei. É porque fugir da prisão subver-
provém antes da ignorância do que do teria esse processo corretivo que
conhecimento ou competência (299e, Sócrates o considera ter tão graves
302a). Por mais ignaras que sejam implicações políticas no Críton (cf. R.
estas Leis e por mais inferiores que 58a). Tal não é o caso da
sejam aquelas empregadas por um desobediência civil que ele promete
governante competente, o realizar na Apologia se o tribunal
Estrangeiro de Eleia insiste mesmo ordenar-lhe desistir da filosofia sob a
assim que seria “muitas vezes pior” se pena de morte (29c-d). Ele aí promete
os governantes não estivessem desobedecer qualquer injunção deste
limitados pelas Leis (300a-b). Assim, o tipo, mas não fugir da punição pela
Estrangeiro de Eleia abona o governo desobediência. (Temos, assim, um
da lei para toda constituição sem meio para resolver a controvérsia há
competência: muito persistente se a promessa da
parte de Sócrates de desobedecer na
Por essas razões, então, o Apologia

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é consistente com seu argumento 4. Democracia “sem lei” (muitos


contra a fuga no Críton. Enquanto governantes, não limitados pelas
aceitar a punição legal pela Leis).
desobediência que ele promete re- 5. Oligarquia (poucos governantes,
alizar na Apologia, ele não está aí não limitados pelas Leis).
rejeitando o princípio do governo da 6. Tirania (um único governante, não
lei e, assim, sua posição aí é limitado pelas Leis).
consistente com seu argumento
contra a fuga no Críton.) Segundo esta ordenação, as cons-
tituições que respeitam as Leis são
Não levando em consideração as todas melhores que suas
implicações do princípio para a contrapartes, nas quais o governo da
conduta dos cidadãos individuais, lei está ausente. Entre as
naqueles raros casos nos quais um constituições que respeitam as Leis, a
cidadão individual tem o poder de que possui um único governante é a
evitar a punição por ter infringido a melhor; a pior é a que é governada
lei, sua mensagem primeira consiste por muitos. O Estrangeiro de Eleia não
em insistir que os que exercem a oferece uma explicação, no contexto
autoridade política em uma imediato desta ordenação das
instituição devem estar limitados pe- constituições que respeitam as Leis.
las Leis. A vida, que há é “difícil de (Talvez ele esteja baseando-se em um
suportar” em uma constituição não princípio epistemológico próximo da
competente (302b; cf. 299e-300a), se sua tese reiterada no contexto
tornará ainda pior sem o governo da precedente que a competência é uma
lei. Mais precisamente, o Estrangeiro propriedade de muito
de Eleia ordena as constituições não
competentes da melhor à pior como
segue (302b-303b):
poucos, nunca da massa (292e, 297b-
1. Monarquia (um único governante, c; cf. 302el0-12). Isto é, ele pode estar
limitado pelas Leis). supondo que, quanto mais pessoas
2. Aristocracia (poucos governantes, estiverem envolvidas em uma
limitados pelas Leis). investigação, tanto menos
3. Democracia legal (muitos competente será o resultado. Em tal
governantes, limitados pelas Leis). linha de argumentação, a democracia,

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que tem o maior número de Por que o Estrangeiro de Eleia


legisladores, terá as piores Leis. Isso pensa que a democracia não é capaz
explicaria por que o Estrangeiro de de produzir nada de bom ou mau de
Eleia coloca a democracia como a pior alguma importância? Sua
entre as constituições que respeitam incapacidade de fazer o bem
as Leis.) De qualquer modo, a carac- presumivelmente está relacionada
terística importante desta ordenação, com sua incapacidade para uma
para nossos propósitos presentes, é legislação inteligente. Como vimos,
que todas as constituições que ele pensa que, quanto mais pessoas
desprezam as Leis estão abaixo das estiverem envolvidas em uma deli-
que respeitam as Leis. beração, menos competente será o
resultado (292e, 297b-c). É por isso
Relembre que o argumento no que as Leis democráticas são as piores
Críton supõe que há uma vantagem entre as três. Porém, em que consiste
substancial em viver sob as Leis, a incapacidade da democracia de
mesmo sob más Leis. provocar o mal? Nossa passagem
Compreenderemos (pelo menos em explica que a distribuição larga de
parte) o que se supõe ser essa cargos também dilui maximamente a
vantagem se pudermos identificar a capacidade
razão de colocar a democracia que
respeita as Leis (3) acima de sua dos governantes democráticos em
contraparte “sem lei” (4). O fazer o mal quando não governam
Estrangeiro de Eleia explica: pelas Leis. A suposição não expressa
aqui é tornada explícita quando o
Podemos supor, por sua vez, Estrangeiro de Eleia descreve por
que [o governo da] massa primeira vez a versão não respeitosa
(plêthos) é fraco em todos os das Leis da democracia. O governante
aspectos e capaz de nada que ou quem ocupa o cargo que não acata
tenha alguma importância, para as Leis é um embusteiro que busca
o bem ou para o mal, enquanto seu ganho pessoal ou o interesse de
julgado em relação às outras, sua facção. Tal pessoa não toma
pois sob ele os cargos são “ciência do que está redigido no
distribuídos em pequenas intuito de ter vantagem de algum
porções entre muitas pessoas. modo ou de fazer um favor pessoal”
(302a3-6, trad. Rowe). (300a6-7, trad. Rowe). Assim, o

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Estrangeiro de Eleia aceita (pelo do sofista ao título de “politikos”:


menos no contexto dos governantes
não competentes) a razão popular do Os que tomam parte em todas
Princípio do Governo da Lei. Os que estas constituições, com
insistem no governo da lei o fazem exceção da que está baseada no
tipicamente porque “pensam que conhecimento, [não são]
uma pessoa em tal posição sempre Políticos, mas competentes em
mutila, mata e geralmente maltrata facções (stasiastikous);
quem quer de nós que ele deseje” devemos dizer que, como
(301d2-4, trad. Rowe; cf. 298a-b; cf. presidindo imagens sem
Lg. 714a, 716a-b). substância, em uma escala
maior, eles são da mesma
Assim, a suposição por trás da categoria e... se revelam
tese que as constituições que
infringem a lei são de muito inferiores
às suas contrapartes legais é que os
que exercem o poder Político sem ser os maiores sofistas entre os
limites pelas Leis são embusteiros que sofistas.
se servirão do poder para seus
próprios fins. A distinção passível de (303b9-c5, trad. Rowe)
dúvida da democracia que não
respeita a lei é que tantas pessoas Por “os que tomam parte” nas
participam do poder Político que os constituições não competentes,
efeitos perversos da sua falta de dificilmente o Estrangeiro de Eleia
escrúpulos tendem a anular uns aos está designando os que têm cargos
outros. À medida que o número de nas constituições que acatam as Leis.
detentores de cargo ou governantes Em outros contextos, ele usa termos
diminui, como no caso da oligarquia e como “stasiastikous” (que alastram
da tirania, a sua capacidade de facções) para se referir aos que
prejudicar os súditos aumenta. exercem a autoridade política em
proveito de seu interesse mesquinho
Devemos manter em mente esta ao invés do bem comum (Lg. 715a-b,
explicação para compreender a tese 832c). Ele se serve aqui do termo para
final do Estrangeiro de Eleia, quando se referir aos sofistas, isto é, aos que
ele conclui sua discussão da alegação fingem ter competência política. Tais

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fingidores, ele acaba de dizer, tentam legisladores que, embora não sejam
macaquear a prerrogativa do Político inteiramente competentes, mesmo
competente de dar diretivas sem assim são capazes de aprimorar a
estar limitado pelas Leis (301b-c). legislação existente. Se isso for
Assim, o Estrangeiro de Eleia está possível, então os que vivem sob Leis
falando de pessoas que tomam parte ruins talvez ainda sejam capazes de as
na vida política de constituições que aprimorar. É exatamente esta a
não respeitam a lei. Ele está possibilidade explorada e
reiterando seu aviso para que não se desenvolvida nas Leis.
deixe que os não competentes façam
exceções, revoguem ou corrijam as AS LEIS
Leis.
As Leis estão em harmonia com o
O argumento do Estrangeiro de Político quanto à importância do
Eleia, contudo, provoca o seguinte governo da lei (713b-714b, 856b,
dilema. Os não competentes são 874e-875d; cf. 684a-b, 762e), quanto
impedidos de legislar (com base no à inferioridade da lei à competência
fato que são embusteiros), mas se (875c-d) e quanto à perspectiva
está baldo de homens Políticos duvidosa que um dia a política
competentes (301d-e). Assim, não há humana se torne competente (675a-
uma perspectiva de saída da triste b, 968e-969c). Em forte contraste com
condição para os que vivem sob Leis o Político, todavia, as Leis dão espaço
ruins. É surpreendente, exclama o para a possibilidade de
Estrangeiro de Eleia, que as cidades aprimoramento das Leis mesmo na
tenham conseguido sobreviver ausência da competência política. Ao
(302a). Este resultado sombrio requer proceder assim, as Leis fornecem
que reconsideremos o dilema que lhe também um quadro mais amplo que o
deu origem. O primeiro lado deste que encontramos no Político quanto
dilema, em particular, é um convite ao às vantagens, pressuposta no Críton,
ceticismo. Não é possível que não se de se viver sob a guarda das Leis.
alcance a inteira competência do
politikos competente sem ser um O projeto dos três interlocutores
falsário? Platão parece estar do diálogo é duplo. Em primeiro lugar,
propondo que seus leitores levem em eles investigam “as constituições e as
consideração a possibilidade de haver Leis” (625a6-7, trad. Saunders), com o

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foco nos princípios da legislação somente um deus poderia possuir tal


prática apropriada (630e-631a). Este conhecimento (657a-b) – que é
projeto teórico ocupa os Livros I-IV A presumivelmente a moral do mito no
segunda tarefa é prática: conceber Político (269c-274e; cf. Lg. 713c-
uma legislação que governará uma 714a). Mesmo assim, ele não pensa
cidade a ser fundada. Como que não têm qualificação para o cargo
descobrimos ao final do Livro III, um de legislador. De fato, ele sustenta
certo número de cidades cretenses que é inevitável que o trabalho dos
estão no processo de fundar uma legisladores seja imperfeito e que
colônia e um comitê de nove cidadãos necessite de correção pelos
da cidade de Cnossos foi encarregado legisladores posteriores. A legislação
de redigir a legislação para a nova é vista como um processo contínuo na
cidade, a ser chamada “Magnésia” história de todo Estado. No Livro VI,
(702b-d). Os outros interlocutores, ele compara uma legislação a uma
um espartano de nome Megilo e um estátua ou a uma outra obra de arte
ateniense que não é nomeado (o que está exposta às intempéries
interlocutor dominante do diálogo), (769c-770a).
aceitam empreender este projeto de
legislação a título de um exercício Um pintor que quer pintar “o
intelectual (702d-e). Depois de mais belo quadro no mundo, que
concluírem suas discussões meto- jamais se estragaria, mas que sempre
dológicas no Livro iy eles se dedicam se aprimoraria em suas mãos ao
nos oito restantes livros a detalhar a passar dos anos” (769cl-3, tradição.
legislação para a nova colônia. Saunders) sabe que sua obra precisará
de uma manutenção regular para
LEGISLANDO SEM COMPETÊNCIA reparar a usura do tempo e melhorar
suas próprias deficiências na arte
O Ateniense torna muito claro que (769c3-8). De modo similar, o
nem ele nem seus dois companheiros legislador deve “estar consciente que
na legislação possuem conhecimento seu código tem muitas deficiências
Político competente (632d, 859c). Ele inevitáveis, que devem ser corrigidas
sugere mesmo que por seu sucessor, se o Estado que ele
fundou houver de gozar um
aprimoramento contínuo em sua
ordem (kosmos) e administração, ao

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invés de sofrer um declínio” (796d6- Ateniense enfatiza que pelo menos


e2, trad. Saunders). Os legisladores, alguns guardiães das Leis terão
assim como os pintores, não são somente uma opinião verdadeira
imortais; por conseguinte, eles (632c). Na verdade, (653a) sugere que
precisarão de sucessores para aprimo- uma crença verdadeira estável alça-se
rar e reparar as deficiências da a conhecimento para os seres
legislação original (769c-770a). humanos (688b; cf. Plt. 309c).

Tampouco se deve esperar que Isso não quer dizer que estes
estes legisladores posteriores tenham legisladores não têm credenciais
o conhecimento preciso do homem epistemológicas. Além de terem um
Político competente ou do bom caráter, o Ateniense observa que
governante filósofo. No Livro VI, o eles devem também compreender os
Ateniense propõe selecionar a objetivos e princípios da legislação –
próxima geração de legisladores entre que ele passa então a delinear (770c-
os administradores do Estado e). Todo aquele que se envolve com a
previamente descritos como legislação deve ter em mente “que
“guardiães das Leis” (770a). Estes uma pessoa deve tornar-se boa tanto
guardiães das Leis estão entre os mais quanto possível e ter a virtude
importantes administradores no apropriada ao ser humano” (770c7-
Estado (752d-e) e servem como d2). Todo infortúnio, mesmo a
reserva para muitos órgãos adminis- destruição ou a escravização do
trativos e judiciais. Os procedimentos próprio Estado, é preferível a uma
para sua seleção, detalhados antes no mudança nas Leis que tornará os
Livro VI, visam a identificar os cidadãos piores (770e).
cidadãos que atingiram o mais alto
padrão de virtude, identificados pelos O conteúdo desta instrução, que
cidadãos que mais respeitam o Ateniense profere para uma
audiência hipotética de futuros
as Leis segundo o juízo de seus legisladores, não equivale à
concidadãos (753a-d; cf. 751c-d). Este competência política. Os três
alto padrão de caráter, porém, não legisladores originais, que sabemos
consiste nem implica que se requeira não possuir tal conhecimento, estão
que os guardiães terão um co- simplesmente legando aos seus
nhecimento especializado, pois o sucessores não mais que aquilo sobre

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

o qual concordam (770cl-3: cf. 631b- legisladores.


632d). A expectativa do Ateniense a
respeito do que os legisladores O Conselho, referido inicialmente
posteriores podem aprender sobre em 951d-952a e descrito novamente
este tema de seus predecessores é em 961a-c, deve ser constituído pelos
também explicitamente bastante guardiães das Leis mais experientes e
baixa. A questão consiste em con- pelo ministro da educação (cujas
ceber um mecanismo, “seja um credenciais quanto ao caráter são
argumento (ilogos) ou exemplo ainda mais altas que as deles, 756d-
(ergon)” para fazer com que os 766b). Nestes aspectos, as
próximos legisladores “tenham uma qualificações dos membros do
compreensão (ennoia), maior ou conselho não diferem das credenciais
menor, de como conservar as Leis em exigidas dos legisladores articuladas
bom estado” (769e5-8). no Livro VI. Contudo, o Ateniense logo
torna claro que, para que os membros
Podemos ver o quão longe está do Conselho tenham sucesso em
esta instrução de infundir garantir a imortalidade para sua “obra
competência política contrastando-a de arte”, eles precisarão de
com os objetivos epistemoló- gicos conhecimento especializado (961e-
muito mais altos articulados no Livro 962c), especificamente o conheci-
XII para o Conselho Noturno (assim mento do politikos (936b). Além de
chamado porque seu período oficial conhecer que a virtude é o objetivo
de encontro é próprio da legislação (o conteúdo da
instrução dada aos legisladores no
Livro VI), eles também devem
compreender “o que é a virtude” e
antes da aurora, 951d, 961b). Aqui, ao como as várias virtudes estão
final das Leis, o Ateniense volta à relacionadas umas às outras (963c-
questão do estado futuro e da 964b, 965b-966b). Isto é, eles devem
manutenção das Leis de Magnésia, ser capazes de responder a uma
que ele concebe, assim como no Livro questão que Sócrates, nos diálogos
VI, como sendo um projeto contínuo como o Eutifro, Laques, Carmides e
ao longo da vida da instituição (960e- República I, nunca consegue
969d). Os membros do Conselho responder (ver o capítulo Definições
Noturno serão os futuros Platônicas e Formas).

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Conhecer a resposta a esta membros do Conselho nunca


questão não consiste simplesmente obtenham este conhecimento
em ser capaz de discriminar entre as filosófico, eles ainda se envolverão
alternativas virtuosas e viciosas nas nas atividades de manutenção e
circunstâncias particulares. Antes, reparo legislativo (951e-952c; cf.
trata-se de um conhecimento esotéri- 961a) por meio de estudos
co que vai além desta competência complementares que lhes serão
prática. Ele engloba compreender o designados. Suas credenciais para isso
logos (definição) da virtude (964a-b; não são, assim, diferentes das
cf. 966b), assim como do bem esboçadas para o futuro legislador no
(agathon) e do belo (kalon) (962b- Livro VI. Voltemos, portanto, a
963a). Isso por sua vez requer o examinar estas credenciais, junto com
domínio de assuntos esotéricos como as observações suplementares acerca
a astronomia teológica (966c-968a). da prática legislativa apropriada
Uma vez dotado deste conhecimento, delineada pelo Ateniense. Veremos
as decisões legislativas do Conselho que, mesmo que eles não tenham o
serão sempre corretas e, como conhecimento esotérico que
resultado, a constituição magnésia garantirá sua infalibilidade, as
estará deliberações desses legisladores
humanos são muito respeitáveis do
segura diante da possibilidade de ponto de vista epistemológico.
declínio e ruína (960d-e, 961c-962c;
965a, 968a). Vimos que, embora as
credenciais para os legisladores
O Ateniense, contudo, se articuladas nas Leis não incluam a
pergunta se acaso os membros do competência política, elas incluem o
Conselho de fato conseguirão adquirir bom caráter. Assim, o Ateniense nas
este conhecimento esotérico (ver Leis localiza o legislador humano
965e-966a). Eles devem “fazer todos apropriadamente qualificado na
os esforços” para o obter (963c). A es- região entre os dois extremos
perança que eles o obterão é uma apresentados no Político: o homem
aposta da qual depende a Político competente e o embusteiro
sobrevivência a longo termo do ignorante. O Ateniense concorda com
Estado (968e-969b). É importante o Estrangeiro de Eleia que um
observar, todavia, que, mesmo que os indivíduo que exerce a autoridade

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política sem estar limitado pelas Leis Leis”. Na verdade, a credencial de


será corrompido, dada a fragilidade caráter para os guardiães das Leis e,
da natureza humana (692a-c, 713c-e, daqui, para os legisladores, põe em
875b-c), mas ele tem uma solução relevo um outro importante modo
institucional para o problema. A pelo qual os legisladores ficarão
constituição de Magnésia será um presos às Leis, pois as Leis, como
híbrido de monarquia e democracia veremos adiante, estão internalizadas
(693b-e, 756e; cf. 691b-692c). nos caracteres dos que são educados
Nenhum indivíduo terá uma sob seu govemo. A prática legislativa
autoridade política sem controle. apropriada, na visão elaborada pelo
Neste sentido, nenhum guardião das Ateniense, ocorre no contexto de
Leis (ou membro do Conselho normas existentes e é conduzida por
Noturno) agirá isoladamente dos aqueles que foram moldados por
outros e há múltiplos mecanismos estas Leis.
para avaliar a conduta dos detentores
de cargos, bem como controles O relato, em Leis III, das origens
da legislação toma isso claro (676b-
681d). Ele começa no momento em
que as sociedades humanas já
da autoridade de cada pessoa. De existem de um modo rudimentar, em
fato, os mecanismos institucionais formas pré-políticas de organização.
adotados pelo Ateniense para o Uma enchente ou outra catástrofe
controle da conduta das autoridades eliminou todas as formas de vida
públicas de Magnésia coincidem política, assim como as lembranças
quase completamente com os dessa vida (678a). Os homens vivem
articulados para a democracia que em pequenos grupos isolados no alto
respeita a lei no Político (298e-299a). das montanhas sem nenhum meio de
comunicação entre si (678c-e). A
Assim, os legisladores unidade da organização social é a
posteriores de Magnésia, ainda que família ou o clã, governado pela
tenham o poder de mudar a lei, estão pessoa mais idosa e seguindo suas
mesmo assim sob os limites das Leis. próprias práticas, ritos e costumes,
Diferentemente dos falsos embus- que foram transmitidos de geração
teiros de competência política no em geração (681a-b). Estas normas
Político, eles não agem “acima das não escritas dão forma à vida, às

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práticas e às disposições dos assim como uma politeia genuína se


membros da comunidade. desenvolve a partir de uma dunasteia
anterior pré-política (681d4-5). A
O impulso para uma legislação alteração crucial é marcada pelo
escrita surge quando tais grupos surgimento da legislação.
ancestrais homogêneos se juntam
para formar uma comunidade maior, A legislação, neste relato, surge
uma mudança que é ocasionada pela de um processo deliberativo à luz das
necessidade de segurança quanto aos normas e regras existentes. O
animais selvagens e pelas vantagens Ateniense observa que os legisladores
da cooperação na agricultura (680e- dos diferentes grupos estarão
681a). O problema, para o qual a inevitavelmente inclinados a tomar
legislação é a solução, suas próprias nomima como as mais
aptas (681c). Isso supõe que eles
surge do fato que os costumes foram bem formados sob estas
ancestrais dos vários grupos instituições e, assim, satisfazem as
ancestrais que querem unir suas credenciais de caráter para os
forças são muito diferentes entre si e legisladores antes discutidas. Na
em alguns aspectos antagônicos medida em que têm um bom caráter,
(681b). assim compreendido, esses le-
gisladores não estão agindo fora do
Os que por primeiro portam o escopo dessas normas – em forte
título de “legislador” (nomothetês) contraste com os legisladores
são representantes dos diferentes embusteiros do Político.
grupos que se juntaram para formar
uma comunidade (681c). Eles passam De fato, o processo deliberativo
em revista as regras e os costumes dos posto em obra por esses legisladores
grupos originais e propõem aos no momento legislativo inaugural
líderes as regras que “se recomendam requer que os representantes
por si mesmas para o uso comum” legisladores tomem uma perspectiva
(681c7-dl, trad. Saunders). Os líderes mais distanciada de suas próprias
dos clãs que, subsequentemente, regras que a cultivada por sua
partilham o poder de acordo com experiência como um produto das
estas Leis instanciam uma forma instituições da comunidade. Pode-se
rudimentar de aristocracia (68 ld). É

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ficar apreensivo que eles não consi- (951a-952c, 961 a-b). Os nove
gam elevar-se acima de sua legisladores de Magnésia devem
parcialidade cultivada. Contudo, duas redigir “um código legal com base em
características deste momento Leis que achamos convenientes e
legislativo inaugural auguram o devem usar também as Leis
sucesso de suas deliberações. estrangeiras – o fato de não serem
Primeira entre todas, cada uma das cretenses não deve valer contra elas,
normas propostas é “representada” desde que sua qualidade pareça
por um legislador que, pelo fato de ter superior” (702c5-8, trad. Saunders).
sido moldado por ela, está em uma
boa posição para apreciar seus Uma desvantagem
méritos. epistemológica deste corpo legislativo
relativamente ao momento legislativo
inaugural é que os nove legisladores
de Magnésia pertencem a uma única
Segunda, todas as partes na cidade, Cnossos. Assim, falta-lhes o
deliberação têm um forte interesse recurso epistemológico de ter pessoas
em chegar a uma compreensão que deliberam com uma profunda
partilhada dos méritos relativos de apreciação das “Leis estrangeiras”
suas respectivas normas, pois, de que eles devem levar em conta. Este
outro modo, o projeto da polis, defeito é remediado pelo triun- virato
empreendido em prol do benefício de legisladores no diálogo As Leis, no
para os membros de todos os grupos, qual Clínias, de Cnossos, é
fracassará. Estas restrições práticas e acompanhado pelo espartano Megilo
de procedimento no momento legis- e pelo ateniense que não recebe
lativo inaugural, visto que dizem nome.
respeito aos méritos relativos de
diferentes grupos de normas, são de A conversa entre estes três
fato exercícios de política legisladores reproduz de muito perto
comparativa. Tais comparações as deliberações no momento
comparecem em todo momento legislativo inaugural. A sua discussão é
legislativo descrito ou realizado no uma investigação prolongada quanto
texto das Leis. O Conselho Noturno aos méritos relativos dos diferentes
conduzirá pesquisa sistemática nas sistemas de legislação, empreendida
Leis e nos anais dos outros Estados por representantes de sociedades que

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cultivam as mesmas disposições “em ateniense, bem como o da persa.


oposição” que ocorrem no momento Quais constituições sobreviveram,
legislativo inaugural: as disposições quais pereceram e por quais razões
“ponderadas” (kosmios) e agressivas (693a-b)? Reflexões sobre estas
(andreios) (681b). A disposição questões empíricas, históricas e
agressiva ou bélica é sustentada pelas causais são elas todas abertas aos que
instituições típicas de sociedades se dedicam ao projeto legislativo
dóricas (625c-626c, 633a-c), ao passo contínuo das sociedades humanas.
que a disposição ponderada Platão mostra assim, aos leitores das
Leis, que a comparação entre Leis
ou moderada (sôphrôn) é sustentada alternativas à luz da história está bem
pelas instituições caracteristicamente dentro do escopo epistêmico dos
atenienses (635e-642a; cf. 666e- legisladores que não têm o
667a). Estas são as duas tendências conhecimento esotérico da
naturais básicas do caráter, sustenta o competência política.
Estrangeiro de Eleia, com base nas
quais o homem Político deve “tecer” a LEI E RAZÃO
polis (Plt. 306a-309c) e, segundo o
Ateniense, ambas as disposições Embora os legisladores não precisem
devem ser cultivadas a fim de obter a de conhecimento esotérico para
virtude genuína (Lg. 649b-c). As legislar propriamente, o Ateniense
instituições dóricas e atenienses que insiste em que as Leis que eles
enfatizam estas tendências são objeto produzem exemplificam a excelência
de uma crítica considerável nos Livros da razão. Visto que a sabedoria
I-IV das Leis, a legislação resultante (phronesis ou nous) dá forma a todas
para Magnésia incorporando o as virtudes (631c-d), o legislador que
melhor de cada uma. é suposto tornar virtuosos os cidadãos
deve inculcar neles algum tipo de
Este exercício de política sabedoria (687d-688d, 701d). Embora
comparativa se apoia fortemente nas ele conceda explicitamente que a
lições da história. O Livro III continua “sabedoria” assim inculcada está
a história da legislação após o abaixo dos padrões da sabedoria
momento legislativo inaugural no filosófica (e pode consistir sim-
intuito de analisar o desenvolvimento plesmente em uma opinião
histórico das constituições dórica e verdadeira estável sobre que ações ou

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buscas são boas ou más, 688b; cf. comportamos sabiamente, estamos


653a; Plt. 309c), o Ateniense seguindo o elemento divino que se
encontra em nós (cf. R. 590e-591a).

O próprio aspecto pelo qual a Leis


mesmo assim insiste em caracterizá-la ficam aquém da competência política
como uma excelência da razão. Isso se serve para explicar por que mesmo as
dá porque, em sua visão, a lei, em sua Leis que ficam muito aquém das
própria essência, é uma expressão da melhores ainda contam como
razão. expressões da razão. A regularidade
sem exceção da lei encarna a ordem
Embora as Leis sejam somente (taxis – 673e4, 688a2, 875d4 – um
aproximações imperfeitas da ponto obscu- recido pela tradução de
competência política (857e), viver de Saunders). A ordem é a característica
acordo com as Leis é viver “em definidora da realidade inteligível
obediência à pequena centelha de máxima que, na visão de Platão,
imortalidade que reside em nós” (Lg. governa o cosmos (Lg. 966e-967c; Ti.
713e8, trad. Saunders; cf. 762e). Esta 30a-b, 47b-c). Esta inteligência está
“centelha de imortalidade” é a razão expressa nos movimentos regulares
ou inteligência (nous), que das esferas celestes, também
“dignificamos com o nome de lei chamadas thaumata ou “maravilhas”
(rtomos)” (714al-2, trad. Saunders; cf. em 967a8-10 (ver Laks, 2000). Toda
957c). As Leis, nesta visão, são contenção do desejo pela lei (nomos)
expressões (ainda que imperfeitas) da introduz uma ordem (taxis) similar na
razão divina. Elas são também alma da pessoa (Lg. 653e, 783a; cf. Ti.
expressões da razão humana: a 47d; Grg. 503em 504d, 506d-e).
capacidade de discriminar entre os Tomar a alma ordenada a assemelha,
objetos melhores e piores de busca assim, ao divino (cf. Lg. 716c-d), isto é,
(644d), o que, “quando se torna o à razão.
dogma comum da cidade, é chamado
de lei (nomos)” (644d2-3). É por esta Identificamos aqui uma segunda
razão que o Ateniense propõe que um vantagem que se recebe ao se viver
ser humano é uma “marionete sob as Leis,
(thauma) dos deuses” (644d6-7; cf.
803c-804b). Na medida em que nos em acréscimo à proteção que elas

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garantem contra as injustiças dos estabelecer um diálogo com ele para


governantes. Presumivelmente esta é convencê-lo da adequação do
a vantagem mais importante que remédio à sua doença (720c) ou
Sócrates tem em mente no Crítion, mesmo para lhe dar informação
quando supõe que os benefícios que suficiente para que aplique ele
recebe do fato de viver em uma próprio a diretiva (cf. 719e).
sociedade governada pelas Leis
tomam seu contrato implícito de O legislador próprio, em contraste,
obedecer às Leis um acordo justo. modela as Leis ao modo de um
“doutor livre”, administrando a
PRELÚDIOS E PERSUASÃO medicina a um paciente livre (720d-e;
cf. 822d-823a). O doutor, que
À luz de sua visão que as Leis são a conhece o corpo e suas doenças, bem
razão “escrita em letra garrafal”, o como tem uma compreensão de
Ateniense advoga uma mudança na quando diversos tratamentos são
prática legislativa. A característica apropriados e como eles funcionam, é
distintiva da influência da razão, capaz de entrar em um diálogo com o
sustenta ele, é que ela é “gentil, não é paciente para persuadi-lo a tomar o
violenta” (645a6). Neste sentido, as remédio que ele lhe prescreve. O
Leis devem empregar a persuasão legislador próprio é suposto ser
(720a). Na prática efetiva dos similarmente “gentil” (720a) em suas
legisladores, contudo, as Leis são prescrições para os cidadãos. Além de
simplesmente coercivas. Elas pres- dar diretivas simples apoiadas em
crevem ordens aos cidadãos e sanções coercitivas (o aspecto
delineiam as punições quanto à não
observância (722d-e). A legislação
deste tipo é como um tratamento
médico administrado por médicos coercitivo da lei, que o Ateniense
escravos para pacientes escravos reconhece como essencial), sua
(720a-c). Em tal “medicina escrava”, legislação deve também incluir
que a pratica não tem ele próprio o prelúdios explicativos ou exortativos.
conhecimento da natureza Estes prelúdios vão se dirigir aos
subjacente do corpo ou das causas da próprios cidadãos e buscam persuadi-
doença e simplesmente prescreve os los a aceitar as diretivas (720d-e). As
remédios a um paciente sem Leis contêm um número considerável

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de prelúdios. Eles variam “fáceis de persuadir (eupeithestatous)


consideravelmente em forma e nas trilhas da virtude” (718c8-9, trad.
conteúdo. Alguns são teóricos e de Saunders). Mesmo que o prelúdio não
tom didático, como no caso do longo tenha “grande efeito, mas somente
prelúdio no início do Livro y que busca torne seu ouvinte mais favora-
convencer os cidadãos a valorizar a velmente inclinado (eumenesteron) e,
virtude do caráter acima de todo assim, mais suscetível ao ensino
outro bem, (726a-730a). O prelúdio (eumathesteron,), o legislador deve
tem muito em comum com a teoria ficar contente” (718d4-7, trad.
dos bens aceita pelo legislador no Saunders; cf. 723a, 730b).
Livro I (631b-d), que se supõe que os
legisladores a expliquem a seus Este modo de caracterizar os
cidadãos (631d). Outros prelúdios, to- objetivos dos prelúdios legislativos é
davia, são em grande parte retóricos e fortemente remi- niscente dos
exortativos, como, por exemplo, o objetivos da paideia (educação
prelúdio à lei do casamento, que é cultural) delineada nos Livros I-II. Por
apresentado como um prelúdio meio de estórias, poesia, música,
paradigmático (721b-d). canto e dança, junto com literatura
mais séria, a paideia cultiva de uma
A condição retórica, todavia, é pessoa “os sentimentos de prazer e
perfeitamente consistente com o afeição, dor e ódio” (653b2-3, trad.
projeto de persuasão dos prelúdios.
Afinal de contas, a retórica é a arte da Saunders), de modo que eles são
persuasão (Grg. 456b-d) e deve ser “canalizados nas direções corretas,
usada em propósitos legítimos em antes que ele compreenda as razões
uma cidade bem governada (Plt. 304c- do porquê disso (lo- gos)” (ibid.). Este
d). As expectativas que o Ateniense cultivo preliminar de seus
exprime acerca dos efeitos do sentimentos, que “nos faz odiar o que
prelúdio são, além disso, devemos odiar do início ao fim e amar
perfeitamente consistentes com os o que devemos amar” (653b6-c3,
métodos retóricos de persuasão. Os trad. Saunders) é a paideia.
prelúdios devem trazer paramuthia:
encorajamento (720al). Os Os objetos próprios do amor e do
legisladores devem ficar satisfeitos se ódio inculcados pela paideia são, de
fizerem com que os cidadãos sejam um lado, o belo (kalon) e o bem; de

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outro, o vergonhoso (aischrori) e o marca da politeia verdadeira, observa


mal (654c-d, 655d-656a). De modo o Ateniense no Livro VIII, que os que
similar, supõe-se que o legislador, em estão sujeitos às Leis devem segui-las
seus prelúdios, “aconselhe sobre o de bom grado (hekontes, 832c).
que é belo, bom e justo” (858d7; cf.
858e, 822e-823a). Dado o comentário Esta tese do Ateniense está em
posterior do Ateniense que legislar uma contradição superficial com a
usando prelúdios é de fato engajar-se tese do Estrangeiro de Eleia, no
na paideia (85 7e), não devemos nos Político, que o estar de bom grado dos
surpreender de encontrar os súditos é irrelevante quanto à
prelúdios fazendo apelo aos cidadãos correção de uma constituição (293a-
em termos tanto retóricos quanto d, 296a-d; cf. 276e). Porém, o
teóricos. Estrangeiro de Eleia está operando
com uma interpretação do critério de
O Ateniense assimila a legislação estar de bom grado diferente
sem prelúdios às diretivas de um
tirano ou déspota (720c, 722e),
mesmo quando as diretivas são boas
para os cidadãos. Isso ocorre porque da que o Ateniense está usando
frequentemente desejamos coisas nestes contextos. O Estrangeiro de
que não são boas para nós e uma lei Eleia rejeita o critério no contexto de
própria não nos permitirá satisfazer sua rejeição da condição democrática
tais desejos (68 7e). Assim, a menos que todas as mudanças das Leis
que o legislador cultive os desejos e as devem ser aprovadas pelos cidadãos
emoções dos cidadãos de modo a (Plt. 296a). Nesta visão democrática,
alinhá-los com suas diretivas, os que o Ateniense também rejeita (Lg.
cidadãos que obedecem o farão a 684c), as Leis devem fazer apelo aos
contragosto. Eles responderão ao desejos e sensibilidades preexistentes
incentivo coercitivo da punição sem do povo que elas devem governar. Na
apreciar a sabedoria da regra. Tais interpretação que o Ateniense aceita,
Leis, portanto, não conseguem em contraste, não são as Leis que de-
alcançar o objetivo do legislador de vem amoldar-se ao povo, mas o povo
produzir cidadãos que são “servidores que deve ser amoldado pelas Leis.
das Leis de bom grado (hekontes)”
(700a4-5; cf. 698b, 832c). É uma NOTA

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As traduções são da autora ou, se in Plato’s Sta- tesman. Cambridge:


houver observação em outro sentido, Cambridge University Press. Menn, S.
provêm de J. M. Cooper (educação.) (forthcoming). On Plato’s Politeia. In J.
Plato: Complete Works (Indianápolis: J. Cleary and G. Gurtler (eds.)
Hackett, 1997). Proceedings of the Boston Area
Colloquium in Ancient Philosophy, vol.
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Hutchinson, D. S. (1988). Doctrines of (1995b). Reading the Statesman:


the mean and the debate concerning Proceedings of the Third International
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rhetoric and ethics. Apeiron 21, pp. Augustin: Academia.
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Stalley, R. E (1983). An Introduction to
Kraut, R. (1984). Sócrates and the Plato’s Laws. Indianapolis: Hackett.
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Cambridge History of Greek and Epinomis, por L. Brisson. International
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Cambridge: Cambridge University Academia.
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Lane, M. (1998). Method and Politics

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Hugh H. PLATÃO
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26 poesia, mas a quem falta uma


apreensão da distinção entre o que é
Platão e as artes verdadeiramente bom ou benéfico e o
que é belo porque dá prazer. Sem o
CHRISTOPHER JANAWAY rigor do pensamento filosófico, falta a
esta cultura a distância necessária
De um ponto de vista moderno, é para avaliar o verdadeiro valor das
surpreendente que Platão se recuse a artes.
atribuir um valor autônomo ao que
chamamos de arte. Para ele, é tarefa Contudo, a resposta de Platão
da filosofia descobrir, por meio do não é meramente o resultado de uma
pensamento racional, uma ordem confrontação dialética direta. Ele sabe
ética e metafísica do mundo, as artes que a alma que ama a arte e que busca
só podendo ter valor verdadeiro se os prazeres em todos nós deve ser
representarem corretamente esta seduzida e atraída para a vida
ordem ou se nos auxiliarem a nos filosófica. Na República (608a4), ele
alinhar a ela. Assim, embora Platão fala de seu argumento como um
venha a elogiar algumas obras de arte “encantamento”
por sua beleza, ele não aceitará que o
fato delas darem prazer é per se uma que vai contra nosso amor à
defesa de seu valor para a vida poesia, profundamente enraizado,
humana. Poetas que compõem com mas “infantil”. Porém, seu
uma invenção inspirada que conduz a empreendimento de convencer o
belas obras que não podemos deixar leitor da primazia do argumento
de admirar não devem ser aceitos racional não se baseia somente no uso
como estabelecendo padrões de do argumento racional. Para
valor. A tarefa de Platão consiste em suplantar a tragédia e Homero, ele se
estabelecer a filosofia em oposição à serve da retórica, do mito, do jogo de
cultura prevalente, a qual cultua as palavras, da metáfora poética e da
artes de modo não crítico ou adota caracterização dramática. Sócrates,
certas visões teóricas pensadas nos diálogos, é uma imagem ou
insatisfatoriamente a respeito de seu invenção de Platão, que põe em cena
valor. É a cultura dos sofistas, para nós a vida e o estilo do pensador
retóricos, artistas e aficionados, que filosófico ideal. Se Platão é “de todos
advogam o valor educacional da os filósofos o mais poético” (Sidney,

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1973, p. 107), ele o é na ação de nos As análises de Platão mais


conduzir, por meio da persuasão da proeminentes e mais agudamente
poesia, à filosofia, um lugar de onde críticas das artes ocorrem na
podemos começar a compreender e a República, diálogo no qual podemos
avaliar a poesia e todas as artes. O ver de um modo especialmente claro
interesse permanente de Platão ao os critérios de valor de que se serve.
longo da história da filosofia da arte se Ele primeiro considera o papel das
deve em certa medida ao fato que a artes na educação. Os jovens
famosa “que- rela entre filosofia e guardiães, que serão responsáveis
arte” ocorre no interior das próprias pelo bem-estar da cidade, recebem
obras de Platão (R. X.607b6-7). Houve uma educação que amolda
numerosas tentativas de responder a apropriadamente seus caracteres. Na
Platão em seu próprio terreno, visão de Platão, a alma jovem é
sustentando que a arte nos põe em impressionável e apta a ser amoldada
contato com o eterno e o absoluto ou por qualquer material que ela
que ela nos provê de uma forma encontra. Daqui os que praticam as
privilegiada de conhecimento. Outros artes e técnicas produtivas em sua
tentaram rejeitar os critérios de cidade ideal têm de ser regulados de
avaliação de Platão como errados e modo a perseguirem
buscaram respostas estéticas de
vários tipos para assegurar um valor o que é belo e gracioso em suas
autônomo para a arte. Alguns combi- obras, de modo que as pessoas
naram ambas as estratégias jovens viverão em um lugar
(Schopenhauer, 1969, p. 169-267). sadio e serão beneficiadas de
Porém, os escritos de Platão não nos todos os lados, de modo que
dão nenhuma destas soluções e por algo destas obras belas tocará
esta razão continuam a ser um seus olhos como uma brisa que
estímulo único do questionamento traz saúde de um bom lugar,
profundo sobre a arte, a filosofia e as conduzindo-as, sem que o
relações entre elas. saibam, desde a infância, à
semelhança, amizade e
harmonia com a beleza da razão.
(R.
AS ARTES E A EDUCAÇÃO
NA REPÚBLICA II E III III.401c4-d2)

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Esta ênfase na harmonia e no bons dos tempos passados, de


estar-bem-formado (euschêmosunê) modo que a criança fica
dá às artes um papel nobre e excelso inspirada a imitá-los e a se
e fornece as bases para um tipo de tornar como eles. (Prt. 325e5-
estética platônica positiva. Contudo, 326a3)
as artes podem realizar seu papel
educativo somente após uma Porém, para Platão não é
completa reforma tanto de seu suficiente que os jovens leiam as
conteúdo quanto de sua forma, até obras dos “bons poetas”. A discussão
com a imposição de regulamentos posterior do Protágoras das in-
minuciosos a respeito de quais instru- terpretações dos versos de Simônides
mentos e de quais modos musicais acerca da dificuldade em ser bom
podem ser praticados. Sem estar pode ser tomada com üustrando a
regulamentada, não se pode confiar dificuldade envolvida em se basear na
nas artes para que imprimam a forma poesia para a educação moral.
correta na alma ou para que estejam Quaisquer linhas de poesia podem ser
em harmonia com a razão e com o ambíguas e contradizer outras
bem. afirmações do poeta, levando a um
debate sem solução nem fim sobre
Muito dos Livros II e III diz seu sentido (Prt. 339al-347a4).
respeito às cenas e personagens que a
poesia contém. Platão supõe que Uma fonte similar de desconforto
histórias fictícias e representações – talvez menos observada do que
poéticas terão um papel dominante deveria pelos comentadores – é
na educação – uma suposição sugerida pela argumentação contra a
injustiça elaborada por Gláucon e
convencional, como vemos pelas Adimanto na primeira parte da
observações no Protágoras: República

eles têm as obras dos bons II.Eles defendem seu ponto


poetas em suas mesas e devem refazendo um mito narrativo
aprendê-las de cor, obras que imaginário sobre o anel de Giges e
contêm inúmeras exortações, citando Homero e Hesíodo quanto ao
muitas passagens descrevendo fato da injustiça ser uma tarefa árdua
em termos brilhantes homens e sem recompensa. Adimanto

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pergunta: daqui para lá lembra a do Íon


(discutida a seguir) e a doçura do mel
Quando todos estes ditos sobre é uma metáfora adequada, já que
as atitudes dos deuses e para Platão a coleção de imagens
humanos quanto à virtude e ao poéticas é uma atividade que aporta
vício são tão frequentemente intenso prazer para quem tem talento
repetidos, Sócrates, que efeito – daqui sua preocupação
você supõe que eles têm nas especialmente com a melhor poesia,
almas das pessoas jovens? cujo valor parece assegurado pelo
Quero dizer aqueles que são critério do prazer, ainda que inculque
inteligentes e capazes de passar opiniões falsas, ambíguas ou
de um destes ditos ao outro, por contraditórias sobre as virtudes.
assim dizer, e tirar deles uma
impressão do tipo de pessoa Platão supõe ainda que uma
que ele deve ser e de que grande parte da educação de seus
melhor modo deve fazer seu guardiães jovens consistirá de
caminho na vida. Ele mousikê, que abarca não somente a
certamente se perguntará a música, mas também a poesia, drama
questão de Píndaro, “devo eu e a narração de história em sentido
subir este alto muro pela justiça amplo. Contudo, a ficção, a encenação
ou pelo engano vil...?” E imaginativa e a música serão úteis
responderá: “os diversos ditos para os fins da cidade somente se
sugerem que não há vantagem estiverem sujeitas às condições
em que rigorosas de valor que vêm de fora
destas mesmas atividades. Assim,
embora Platão elogie
constantemente Homero como um
eu seja justo se as pessoas não bom poeta, ele propõe, na República,
pensarem também que sou uma impiedosa censura das obras de
justo, ao passo que as Homero com base em que certos tipos
dificuldades e as punições por de conteúdo corrompem a mente
ser justo são aparentes”. jovem. Os deuses e heróis não devem
(II.365a4-b6) ser representados como covardes,
desesperados, enganadores, do-
A imagem de uma abelha que vai minados pelos apetites ou cometendo

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crimes; daqui a excisão de muitas necessário para seus futuros


cenas bem conhecidas da Ilíada e da guardiães.
Odisséia. Uma boa ficção é aquela que
(ainda que falsa ou inventada) O outro tópico central para discussão
representa corretamente a realidade na República II e III é o modo
e imprime um bom caráter em sua adequado de discurso (lexis) para a
audiência. Há uma dificuldade poesia em seu papel educativo. Platão
potencial aqui, com a qual Platão está preocupado em particular com a
caracteristicamente não se preocupa. mimêsis, que aqui deve ser tomada
Uma representação precisa do modo como uma caracterização dramática
como os homens se comportam nas ou encenada, uma espécie do “tomar
batalhas ou no amor não fracassariam a si mesmo como outra pessoa na voz
em imprimir o que Platão considera ou na aparência” (III.393c4-5). Há dois
como o melhor caráter em seus modos do discurso poético: um, no
ouvintes? Se for assim, o critério qual o poeta fala em sua própria voz;
superior do que é aceitável e do que o outro (mimêsis), no qual se esconde
deve ser suprimido é a representação por trás e torna sua linguagem tão
veraz ou o efeito ético? A despeito de similar quanto possível à da pessoa
toda a sua defesa da veracidade, que ele nos diz que vai representar e
Platão – no início da Ilíada – “tenta... nos
fazer pensar que quem fala não é
em um momento sugere que é o Homero, mas o próprio adivinho – um
último: algumas lendas míticas homem velho” (393a9-bl). Platão
violentas, como a da castração de apresenta sua divisão entre a narrati-
Ouranos, não são verdadeiras e não va direta (diêgêsis) e a mimêsis sob a
devem ser contadas aos jovens ainda forma de uma descoberta teórica
que fossem verdadeiras (II.378al-3). nova e ressalta que a poesia pode ser
Por outro lado, a representação que classificada como narrativa inteira,
ele busca é a que é fiel a um ideal: o mimética inteira ou uma mistura dos
ideal do indivíduo nobre e virtuoso, dois modos de discurso, como no caso
guiado pela razão. Mostrar Aquiles dos poemas homéricos. “Esconder-se
vencido pela dor pode ser representar a si mesmo” por trás de uma
um tipo de verdade, mas Platão busca personagem fictícia é implicitamente
a representação verdadeira somente enganador e duvidoso. A objeção de
do tipo de caráter paradigmático Platão à mimêsis, porém, é mais

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sofisticada. Ele sustenta que encenar ele conserva? Quando Sócrates pede
uma passagem dramática fazendo-se para que Adimanto escolha entre três
passar por uma personagem faz com estilos de poesia, os comentadores
que se tome tal pessoa na vida real. por vezes pensaram que Platão estava
Deste argumento e de um anterior pensando na mesma divisão técnica
que todos os membros da tripartite que havia feito
comunidade ideal, e a fortiori seus anteriormente entre mimêsis,
guardiães, devem ser especialistas diêgêsis e um estilo que usa a ambas
que executam somente um papel, – ou que ele confunde sua nova
segue-se que a cidade produzirá distinção com aquela anterior (Annas,
guardiães melhores se restringir a 1981, p. 99). Platão, porém, é claro:
amplidão de sua permissão à seus guardiães terão a permissão de
encenação encenar a mimêsis das ações dos bons
indivíduos; sua preocupação é antes
com as motivações fundamentais ou
com os critérios de avaliação supostos
dramática. Os guardiães devem usar a pelos diferentes tipos de
mi- mêsis tão pouco quanto possível e empreendimento poético. Para quem
ficar restritos à encenação das partes que visa a produzir a maior
contendo indivíduos nobres, quantidade e diversidade possível, a
moderados e virtuosos, uma prática mimêsis é comandada pelo que excita
que os ajudará a assemelhar-se ao a audiência. Alguém cuja preocupação
tipo de ser humano que o estado é o bem pode incluir a mimêsis, mas
requer que eles sejam. somente a dos modelos retos. Um
estilo “misto”, nesta leitura, seria o de
Os artistas cujo objetivo principal um poeta que vacilaria entre os dois
é a produção da mimêsis são critérios de avaliação; isso, como diz
indivíduos engenhosos e versáteis, Platão, poderia dar ensejo a um estilo
que Platão pode mesmo denominar superior quanto à atração imediata,
“sagrados, maravilhosos e praze- mas estaria em falta quanto à
rosos” (III.398a4-5), mas o Estado integridade.
ideal não os tolerará. Platão nos dá
aqui sua primeira imagem da expulsão Uma objeção a Platão é que ele é
dos poetas. Porém, quem exatamente paternalista ao estender suas reservas
Platão expulsa e que estilo de poesia quanto ao consumo das artes à

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população adulta, tratando-a como se mimêsis neste sentido e é tentador


não fosse diferente das crianças, cujas ver esta passagem, unindo diferentes
almas ele se põe de início a proteger. formas de arte sob um único conceito,
Platão, porém, terá uma resposta a como oferecendo pelo menos os
esta objeção, assim que tiver inícios de uma “teoria da arte”.
argumentado, mais adiante na Escritores modernos de estética por
República, em defesa da vezes atribuem tal teoria a Platão,
complexidade da alma humana e tiver embora seja anacrônico traduzir
qualquer um dos termos de Platão
sustentado que a poesia faz apelo à mediante o termo
parte verdadeiramente infantil, caracteristicamente moderno de
emotiva e desi- derativa interna a “arte” ou mesmo encontrar uma
cada indivíduo. Por mais governada posição avaliativa relativamente às
racionalmente e por maior que seja o artes em seus escritos. O objetivo da
controle da distinção entre a realida- discussão na República X consiste em
de e a ficção artística, uma parte de justificar a expulsão da poesia
cada um de nós mesmo assim é mimética da cidade ideal. Platão
sedenta de expressão emocional e nunca fala de banir os pintores ou
compraz-se em se deixar levar em outra pessoa que possa contar como
uma enxurrada de imagens de um artista mimético. As razões para
impacto. banir a poesia mimética são que ela
está muito afastada da verdade,
A ACUSAÇÃO CONTRA A POESIA embora seja facilmente tomada por
MIMÉTICA NA REPÚBLICA X uma obra de alguém com
conhecimento, e que faz apelo a uma
A República X contém as mais parte inferior da alma e por isso ajuda
veementes e mais discutidas críticas a subverter o comando do intelecto e
das artes. A mimêsis é o tópico da razão. Em outras palavras, a poesia
central, mas agora devemos entender é duplamente nefasta: enquanto
este termo em um sentido diferente, promete falsamente que trará um
como gerador de imagens: fazendo ganho cognitivo, ela traz somente
algo que não é uma coisa real, mas dano psicológico e ético ao indivíduo
meramente a imagem de uma coisa e à comunidade.
de um certo tipo. Tanto os poetas
quanto os artistas visuais praticam a Platão inicia perguntando pela

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natureza da mimêsis como tal, usando embora em outros lugares elas


o exemplo da existam eternamente e ninguém as
cria. As Formas são reiteradamente
pensadas como paradigmas que
existem na natureza, o que talvez
pintura como ilustração. Julgando torne problemático como poderia
com base nesse exemplo, a mimêsis haver Formas de objetos feitos pelo
ocorre quando alguém produz uma homem, como a cama (em oposição
imagem do modo como um tipo de às Formas da Justiça, Beleza,
coisa aparece ao invés de fazer a coisa Grandeza, Igualdade e similares,
real. Uma pintura de uma casa é uma mencionadas em outras passagens).
mimêsis na medida em que o que é Por fim, as Formas, na parte central
feito não é uma cama real, mas uma da República, são o objeto de conhe-
imagem de uma cama, e uma imagem cimento dos filósofos, o que parece
que tenta mostrar um modo no qual ser um papel diferente do de prover
uma cama poderia se dar. Platão modelos com base nos quais os
tenta localizar esta tese bem simples artesãos podem construir objetos
da representação artística no interior como as camas (ver os capítulos As
de sua Teoria das Formas metafísica, Formas e as Ciências em Sócrates e
produzindo uma hierarquia de três Platão; Problemas para as Formas).
tipos de objeto, a Fédon da Cama, Para quem busca uma interpretação
uma cama e uma pintura de uma coerente da filosofia de Platão, esta
cama, bem como, acompanhando-a, passagem do livro X pode ocasionar
uma hierarquia de três artesãos e mais dificuldades que soluções,
tipos de fabricação, um deus que faz embora se possa argumentar que os
as Formas, um carpinteiro que faz as pontos principais que Platão quer
camas e um pintor que, “de certo fazer acerca da deficiência cognitiva
modo” (X.596el0), faz algo. O ponto, da poesia e dos poetas ficam
porém, é que o que o pintor faz não é relativamente não afetados por estas
uma coisa real, mas somente uma dificuldades. Como se exprimiu
imagem. Stephen Halliwell, basta para Platão
“se o argumento
O uso aqui da Teoria das Formas
é em certos aspectos anômalo. Platão transmite a ideia que há critérios de
faz com um deus produza as Formas, verdade que transcendem o mundo

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material... e se a arte mimética é melhor poesia de que tem


condenada a ser limitada... a este conhecimento – Homero e os trágicos.
mundo inferior” (1988, p. 110). De Ele nunca se cansa de elogiar a
modo similar, a hierarquia dos três fa- grandeza de Homero e pensa que por
bricantes e tipos de produção parece esta razão é supremamente
visar primariamente a dar peso à importante entender quão distante
insinuação que a atividade mimética é Homero está da verdade e do
um tipo inusitado e sem valor de conhecimento.
produção.
Platão deprecia a mimêsis nas artes vi-
Dois pontos ainda devem ser suais comparando-a a entreter um
mencionados aqui a respeito das espelho no qual o mundo
Formas e a mimêsis. Primeiro: não mecanicamente se reproduz. Com um
devemos supor que a relação da espelho, “você pode rapidamente
pintura à cama é a mesma que a da fazer o sol, os corpos no céu, a Terra,
cama à Forma. A última é a vexata você mesmo, os outros animais,
relação de participação, instanciação artefatos, plantas e tudo o mais”
ou do modo como deve ser chamada (X.596el-3). O ponto da comparação,
com exatidão; a primeira é pode-se argumentar, é somente que o
simplesmente o contraste entre uma pintor não faz uma coisa real,
imagem de uma coisa de um certo tipo somente uma imagem. Não se precisa
e a coisa real deste tipo. Platão nunca atribuir a Platão o pensamento tosco
diz que a pintura é uma “imitação da que toda pintura é sem espírito, é
imitação” (Nehamas, 1982, p. 60). uma duplicação mecânica de algum
Segundo: devemos resistir à leitura objeto material particular. Não é
otimista que já foi popular: que Platão preciso haver uma cama
pensa que somente a “má arte” é uma
mimêsis das aparências, deixando im-
plicitamente aberto um espaço para a
“boa arte”, que imita os paradigmas particular para que se faça a pintura
verdadeiros das Formas (Tate, 1928). de uma cama. O ponto de Platão é que
Não há nenhuma evidência que Platão o produto do pintor é uma imagem, a
quer que se compreenda este qual, quando comparada com uma
contraste aqui e, além disso, suas cama real e com a Forma da Cama,
críticas mais agudas concernem à está duplamente afastada da

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realidade e que fazer tal imagem não O ponto deste pintor imaginário
requer um conhecimento genuíno: extremamente fora do padrão é que
não há nenhum conhecimento real se pode fazer uma imagem de alguém
das coisas com o qual se faria uma que conhece X sem que se seja
imagem. Platão está se dirigindo à sua conhecedor deX. (O exemplo do
conclusão decisiva que um poeta faz “pintor de uma cama” apoia o ponto
somente imagens e está distante do ligeiramente diferente que se pode
conhecimento: “todos os imitadores fazer uma imagem de X sem que se
poéticos, começando por Homero, saiba como fazer X.) Assim, o alvo real
imitam as imagens da virtude e de desta passagem é a falta de
todas as outras coisas sobre as quais conhecimento por parte do poeta do
escrevem, não tendo uma apreensão que sua personagem parece conhecer
da verdade” (X.600e4-6). Eles – verdades éticas.
produzem somente imagens da vida
humana e, para fazer isso, não é Para se ver a motivação por trás
requerido um conhecimento da desta analogia, devemos perguntar
verdade acerca do que é bom ou mau por que é problemático que a
na vida. A transição por meio da qual construção poética de imagens não
Platão faz a transição do pintor ao implique conhecimento genuíno.
poeta é um pouco forçada e por vezes
desconcertou os leitores. Platão ima- Para Platão, isso é problemático
gina um pintor que porque há quem sustente a tese
oposta:
pode pintar um sapateiro, um
carpinteiro ou outro artesão, Ouvimos pessoas dizer que os
embora nada saiba a respeito poetas conhecem todas as
destas artes. Contudo, se ele for artes, todos os assuntos
um bom pintor e colocar sua humanos que dizem respeito à
pintura de um carpinteiro a uma virtude e ao vício, bem como
distância, ele pode enganar as tudo sobre os deuses, pois eles
crianças e as pessoas ingênuas, dizem que, se um bom poeta
fazendo-as acreditar que se produz uma bela poesia, ele
trata realmente de um deve ter conhecimento das
carpinteiro. (X.598b9-c4, trad. coisas sobre as quais escreve; de
modificada) outro modo, não teria sido

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capaz de produzi-la. (X.598el-4) em um domínio útil do conhecimento


supõe que todos concordam que
Platão quer refutar estas teses. A escrever poesia é uma atividade de
poesia é uma espécie de produção de baixo valor, mas isso é precisamente
imagens pressupor o que deve ser mostrado.

 ela “imita” os seres humanos agindo Platão também se propõe a


de todos os modos, comportando-se mostrar (a partir de 602c) a que parte
bem ou mal e experimentando prazer da psique humana faz apelo a poesia
ou dor (603c5-6) mimética. Ele se refere à sua divisão
 e o fato de ser desta natureza é da alma feita na República iy onde foi
compatível com a ignorância do poeta argumentado que a alma frequen-
das verdades sobre o que é real. É temente contém atitudes conflitantes
este o principal desafio de Platão à em
poesia e sugere muitas questões di-
fíceis para os filósofos da arte: quais
são os critérios para que algo seja um
belo poema? Julgamos a qualidade de relação aos mesmos objetos, o que
um poema com base nas verdades deve ser explicado por meio da
que ele transmite? Pode uma obra de atribuição das atitudes a “partes”
arte ter sucesso em apresentar uma distintas no interior da alma (R. 603d
imagem convincente e prazerosa da e 439c e sg.) (ver o capítulo A Alma
vida humana, com seus bens e males, Platônica). No Livro X, Platão não se
sem que seu produtor tenha qualquer apega à clara divisão tripartite do
conhecimento especial ou distintivo? Livro iy embora retenha a ideia de
Em 599a-600e, Platão procura uma parte superior da alma, que usa
reforçar sua acusação afirmando que a razão e busca o que é em nome do
não há evidência de nenhum bom bem geral, e a ideia de sofrer a
poeta manifestar competência ética oposição das outras partes. As
ou política, mas estes parecem ser imagens da poesia mimética, ele
argumentos especialmente fracos. agora argumenta, são gratificantes
Argumentar que ninguém gostaria de para uma parte nossa “inferior”, que
escrever poesia ou ser autorizado por é infantil, incontrolável e emotiva,
sua comunidade a escrever poesia se que reage de um modo desmesu-
tivesse também competência genuína rado a eventos na vida real e na

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ficção. Por exemplo, quando alguém platônico e é governado pela parte da


próximo a nós falece, uma parte de alma nobre, racional e que busca o
nós leva em conta o que é melhor e bem é poderosamente afetado pela
deseja conter-se nas emoções e no experiência de escutar
comportamento exterior. Ao mesmo
tempo, uma outra parte tende a se Homero ou outro trágico
deixar ir em uma lamentação sem imitando um dos heróis em
limites. Há um conflito de atitudes pesar e fazendo um grande
quanto ao mesmo objeto, análogo ao discurso de lamentação ou
fenômeno da ilusão visual, no qual cantando
parte da mente calcula que o canudo
na água é reto, ao passo que outra e batendo contra seu peito...
parte persiste em o ver curvado. A nós temos prazer com isso e nos
poesia nos afeta emocionalmente pomos a segui-lo, a simpatizar
abaixo do nível do desejo e juízo com o herói, a considerar
racionais. Os tipos de evento que seriamente seus sofrimentos e a
fornecem o conteúdo de maior elogiar como um bom poeta
sucesso para a poesia mimética (e, quem mais nos afeta deste
especialmente, para a tragédia) modo. (605c9-d3).
envolvem emoções extremas e ações
comandadas pelas emoções. Assim, a A distância criada pelo contexto
poesia mimética naturalmente se artístico converte-se insidiosamente
dirige e gratifica a parte em nós em uma avaliação positiva das
inferior e lamentadora, alimentando- respostas que deveríamos evitar na
a aos custos da parte racional, que vida real. Baixamos a guarda e
busca o bem e que deveria governar permitimos que o governo da parte
em uma alma sadia. racional esmoreça:

O “ataque mais sério” de Platão Poucos somente são capazes de


contra a poesia mimética (605c4) pensar que o prazer com os
também diz respeito aos seus efeitos sofrimentos das outras pessoas
sobre a psique. É que, “com raras é necessariamente transferido
exceções, ela é capaz de corromper para o nosso próprio e que a
mesmo as pessoas decentes”. Mesmo parte que se apieda, se ela é
o indivíduo que alcança o ideal alimentada e fortalecida com os

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sofrimentos dos outros, não humanos como um modo de aprender


será facilmente controlada (Aristóteles, 1987, p. 34). Pode-se
quando nós mesmos estivermos
sofrendo. (605b5-9)

A avaliação positiva de nossos dizer que Aristóteles tem confiança na


sentimentos favoráveis aos disposição inata da mente humana de
sofrimentos do herói baseia-se no lidar com a distinção entre a realidade
fato que ver esses sofrimentos nos dá e a representação, de modo a tirar
prazer. Assim, ao invés de considerar benefício disso, em um modo que
como importante o que julgamos ser Platão não confia. A campanha de
o melhor, passamos a dar valor às Platão em mostrar as atividades
respostas que nos aprazem e, miméti- cas como estranhas e
argumenta Platão, este hábito pode duvidosas é corrigida aqui de modo
corroer nossa ligação com o racional e importante. Contudo, Platão parece
como o bem na vida real. mais sensível à forte atração sub-
racional exercida sobre nós pela
Platão supõe muita coisa aqui, mimêsis e está, pode-se argumentar,
mas talvez o que seja mais notável é correto em deixar em aberto a
que supõe algo que comparece em questão se ela é sempre saudável para
debates recentes acerca dos efeitos a alma.
psicológicos da televisão e dos filmes:
que, se temos prazer em ver a imagem Como ponto culminante de seu
de algo sendo representado em uma argumento na República X, Platão
narrativa dramática, isso nos causa expulsa a poesia de sua cidade ideal,
uma disposição crescente de agir ou como base em que ela se mascara
reagir de modo similar na vida real. É falsamente como conhecimento e é
como se a mimêsis fosse transparente prejudicial para a mente humana.
em um modo particular: apreciar ou Podemos nos perguntar quanto da
aprovar uma imagem poética de X não poesia é afetado por isso. No início da
é realmente diferente de apreciar ou discussão, deve ser excluída “a poesia
aprovar o próprio X. Vale a penar pôr que é miméti- ca”, mas, ao final,
em questão esta suposição. Já parece que é visada toda poesia e o
Aristóteles observa, na Poética, que o argumento que se intercala parece
prazer da mimêsis é natural nos seres nos dizer que na verdade toda poesia

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é mimética, embora Homero e os a poesia se defenda por si própria


poetas trágicos (vistos como uma revelam um Platão menos autoritário
única tradição) forneçam o alvo do que frequentemente aparece na
preferencial. Platão propõe preservar República. Ele reconhece o poder da
uma poesia, a saber: “hinos aos poesia sobre a alma humana e dá a
deuses e elogios às boas pessoas” entender que tem total conhecimento
(607a3). Em face dos comentários de seus prazeres. Não é por causa de
anteriores acerca da beleza e da uma insensibilidade que Platão rejeita
graça, não se precisa conceber estas a busca dos prazeres da imaginação
obras como tediosas e educativas, poética. É porque ele tem uma
mas Platão claramente as prefere acusação refletida que mostra que
porque possuem uma visão ética devemos resistir a esses prazeres, a
correta do mundo e são um meio de menos que a poesia e seus amantes
instilar o caráter correto nos cidadãos. atuem no terreno filosófico e
apresentem um bom contra-
Em suas observações à guisa de argumento.
conclusão, Platão menciona a “antiga
quere- la entre a poesia e a filosofia” INSPIRAÇÃO E BELEZA
(607b4). A poesia (do tipo excluído)
visa ao prazer e à mimêsis, mas, caso Duas fontes de complicação na
puder dar satisfação à filosofia recepção moderna das teses de Platão
produzindo um argumento que seja sobre as artes são suas observações
benéfico para a comunidade e para a aqui e ali sobre a inspiração e sua
vida humana, então ela pode preocupação ainda mais constante
reivindicar um lugar. Se os filósofos com a beleza ou to kalon. Os leitores
não ouvirem tal justificação, então se modernos nem sempre viram que,
valerão do argumento da República X para Platão, a inspiração não é uma
“como uma encarnação para nos fonte suprema de valor para a poesia
preservar de resvalar de volta na pai- e que, para ele, a beleza não se liga
xão infantil da poesia” (608a2-3). É primaria ou distintivamente às artes.
como ficar longe de quem se ama, No curto diálogo Íon, da primeira fase,
mas com quem Platão faz com que Sócrates diga que
os poetas são inspirados pela
a união não é vantajosa. Esta imagem divindade ao produzirem suas belas
e o convite que a acompanha para que obras. A personagem Íon é um

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rapsodo, alguém que recita a poesia tendem a ter a condição de technê re-
profissionalmente que se pretende cusada (Janaway, 1992). No Górgias,
especialista em Homero. Sócrates Platão argumenta que a retórica
empreende uma demolição da persuasiva, a tragédia e as atuações
alegação de Íon que ele tem sucesso musicais de coros ou
como ator e crítico porque tem instrumentalistas não são casos de
conhecimento. Um conceito technê, baseando-se em que seu
importante nesse diálogo é a technê: objetivo não consiste em tomar a
“arte”, “habilidade” ou audiência melhor, mas em lhes dar
“conhecimento especializado”. Platão prazer. Ele argumenta que não há
toma os doutores, generais e princípios que regem o que dá prazer
matemáticos como possuindo uma a uma audiência em massa e que é por
technê, querendo dizer que eles têm tentativa e erro que essas práticas
conhecimento sobre um assunto es- alcançam sucesso, não por um
pecífico, que podem transmitir seu princípio racional ou conhecimento. O
conhecimento pelo ensino, Íon segue uma linha parecida: o
compreender princípios ou regras rapsodo discerne o que é belo e
gerais que se aplicam a todos os casos agradável na poesia de Homero, mas,
em seu campo e que podem dar uma ao fazer isso,
explicação racional de por que sua
prática alcança sucesso. Outros a) ele não trabalha com princípios
critérios da technê, dados no Górgias, que podem ser generalizados,
são que ela visa ao bem e como fica evidenciado pela sua
incapacidade em discorrer de
modo convincente sobre outros
poetas, e
que tem uma base no conhecimento b) não há um assunto específico do
do bem (Grg. 463a-465a). qual ele seja um especialista
somente em virtude de ser um
Uma antiga tradução para technê rapsodo ou por estar familiarizado
é “arte” (por meio do latim ars), mas com a obra de arte de Homero.
um exame desse conceito não gerará
uma “filosofia da arte” em Platão, A alegação absurda de Íon que
principalmente porque as práticas ele é um especialista “em todas as
que consideramos como “artísticas” coisas” porque Homero escreve

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

belamente sobre tudo prefigura a tese audiência. Em nenhum momento, po-


superficialmente mais plausível, rém, o pensamento racional ou o
rejeitada na República, sobre o supos- conhecimento especializado explica o
to conhecimento abrangente dos sucesso das atuações. Parece haver
próprios poetas. aqui uma mensagem mista: Íon é
elogiado como admirável e mesmo
Como é, então, pergunta (ainda que ironicamente) “divino” por
Sócrates, que Íon consegue discernir a conta da beleza de suas atuações,
beleza na poesia de Homero e a recita porém nenhum crédito lhe é dado
tão brilhantemente para o prazer de pelo seu sucesso artístico, pois ele
suas platéias? Sua resposta é ela está “fora de sua mente”. Não
própria poética ou, talvez, um chiste somente ele não pode dar uma expli-
poético: cação racional de por que ele tem
sucesso; ele também é, supõe Platão,
os poetas nos dizem que colhem irracional ao responder
as canções em fontes de mel, emocionalmente à cena dramática
das clareiras e jardins das que representa, a despeito de estar
Musas, e que ele nos trazem consciente da irrealidade dessa cena.
Embora o Íon dê lugar às
as canções como as abelhas características consideradas na era
carregam o mel, voando como moderna como caracteristicamente
abelhas. E o que dizem é “artísticas” – Shelley, por exemplo,
verdadeiro, pois um poeta é algo traduziu o diálogo e, em sua própria
aéreo, alado e divino; ele não é defesa da poesia, faz eco à oposição
capaz de fazer a poesia até que entre o que é realmente artístico e as
se tome inspirado, saia de seu produções do pensamento racional
mente e seu intelecto não esteja sereno –, esse diálogo, no entanto,
mais nele. (Íon 534bl-6) menospreza essas características ou,
no máximo, as qualifica
O poder da poesia é divino: a ambiguamente. Devemos, pois,
Musa atrai o poeta, que se torna resistir à tentação de usar o quadro da
então o porta-voz pelo qual se inspiração do Íon para atribuir a
exprime o divino. O ator sucumbe à Platão uma análise decisivamente
mesma atração e a transmite à sua positiva da arte.

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O Fedro, uma obra posterior, ela Fedro diz respeito ao destino das
própria uma obra-prima literária que almas reencarnadas, que são or-
explora a natureza da retórica, a denadas. A alma superior, de maior
escrita, o amor, a beleza, as Formas e valor, é a de “um amante do saber ou
a vida filosófica, promete uma do belo... cultivado nas artes
explicação abertamente mais positiva (mousikos) e predisposto ao amor
da inspiração dos poetas. Sócrates erótico” (248d3-4). Na sexta posição,
elogia aqui a “loucura”, incluindo abaixo dos generais, homens
expressamente o estado mental no Políticos, atletas, doutores e profetas,
qual estão os bons poetas quando está o poeta ou outra forma de vida
compõem, um “frenesi báquico”, sem entre as que se dedicam à mimêsis
o qual não há verdadeira poesia: (248e2-3). O contraste, novamente, é
um desafio às intuições do leitor mo-
derno. O primeiro lugar deve, por
certo, ser atribuído ao artista
Se alguém chegar às portas da genuíno, enquanto um pobre amador
poesia e esperar tornar-se um sem inspiração é relegado à sexta
bom poeta adquirindo posição? Porém, não há aqui um ter-
conhecimento especializado mo para “arte”, como nos lembra
(technê)... não terá sucesso e Alexander Nehamas: “o
seus versos autocontrolados ‘músico’...não é o artista, mas quem
serão obnubilados pela poesia admoesta os artistas e sabe o que
de homens que foram tirados tirar deles” (1982, p. 60). A alma que
para fora de suas mentes. (Phdr. ocupa apri- meira posição é a alma do
245a4-7) filósofo e amante cultivado, com
quem os poetas, todos os poetas
Argumentou-se que o Fedro miméticos, inclusive o grande
marca a renúncia pública por parte de Homero, não podem competir. A
Platão da dura condenação da poesia avaliação comparativa da República
na República (Nussbaum, 1986, p. ecoa em um tom de voz muito
200-33). Contudo, outras passagens diferente, mas não é revertida.
no diálogo apontam a uma maior
continuidade com a posição da Alguns comentadores de Platão
República. Parte do mito pensaram que uma filosofia positiva
extravagante que Sócrates narra no da arte estava implícita nas passagens

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que evocam o amor do belo como um tudo que é decorativo, pinturas


valor absoluto. íris Murdoch, porém, e esculturas –, eles todos nos
está mais próxima da verdade quando aprazem quando os vemos, se
escreve que “Platão quer apartar a forem bons. Bons sons e toda
arte do belo porque considera o belo música, assim como falas e
como um assunto demasiadamente narrativas têm o mesmo efeito.
sério para serem confiscadas pela (Hp.Ma. 298al-3).
arte” (1977, p.
Isso na verdade parece uma
17). O conceito de Platão do belo é, definição rudimentar do que apraz
pode-se argumentar, muito diferente esteticamente na arte. No diálogo,
do conceito estético moderno, essa definição não consegue definir to
independente de qual conceito kalon como um todo por conta de um
exatamente. Traduzimos o termo de ponto técnico lógico. Ademais, não
Platão kalon por “belo”, mas uma abrange todo o domínio do kalon nem
tradução a preferir em muitos empresta às artes um valor que as
contextos é “bom” <fine>. Definições salve da crítica da República, já que
e exemplos provenientes do Hípias Platão nunca põe em dúvida aí o ser
Maior lançam uma luz na aplicação bom e as qualidades que dão prazer
abrangente de kalon: uma boa das obras que estava propondo
menina é boa, assim como o é algo censurar e banir.
feito de ouro, assim como viver uma
vida rica e saudável, bem como dar a Platão apresenta os não filósofos,
seus pais um enterro decente. Aqui como o sofista Hípias, como incapazes
mesmo os dois primeiros podem não de apreender que existe uma Forma
ser casos de beleza no que da Beleza inva- riante única. Hípias
poderíamos chamar de um sentido identifica a beleza com uma menina
puramente estético: ser objeto de bela e, logo após, com a propriedade
desejo e valor de troca têm um papel de ser feito de ouro. Porém, uma
em seu ser bom. Outro aspecto do ser menina é bela em uma relação (a
bom é “o que apraz por meio da vista outras meninas), mas não em outra
e do ouvido”: (em relação às deusas); ser feito de
ouro faz com que algumas coisas
Homens, quando eles são de sejam belas, mas não outras: os olhos
algum modo bons – assim como de uma estátua, por exemplo, seriam

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ou relatividade: algo é belo em um


momento, não em outro; em um
repulsivos se feitos em ouro. Tem-se aspecto ou relação, não em outro;
assim a impressão, segundo Platão, para um observador, não para outro.
que nenhum objeto ou propriedade O Belo em si não possui tal
acessível aos sentidos pode ser o que variabilidade, ele “sempre é, não vem
constitui a beleza como tal. Uma a ser nem deixa de ser, não aumenta
distinção similar ocorre na República, nem diminui” (211al-2). Pode-se
quando Platão deprecia “os amantes tomar esta passagem como
das visões e dos sons” (475d-476b) implicando que a Forma da Beleza é
que vão excitados aos festivais de arte ela própria bela. Esta leitura dá
e pensam que há “muitas coisas sentido ao fato da Beleza ser um
belas”, mas nenhuma Forma da objeto de amor em uma relação de
Beleza que os filósofos reconhecem. continuidade com outros objetos de
mesmo tipo; um debate entre os
A beleza tem seu tratamento estudiosos, porém, mostrou que é
mais importante no Banquete, na fala pouco seguro supor que Platão pensa
de Sócrates, que ele apresenta como a Beleza como “sendo bela” do
o ensinamento da sábia mulher mesmo modo como um menino ou
Diotima. A despeito desta dupla uma menina são belos (Vlastos, 1981;
estrutura de narradores, a fala é usu- Meinwald, 1992).
almente vista como reveladora das
teses filosóficas do próprio Platão. O No Banquete, o amante ideal é
diálogo inteiro diz respeito à natureza apresentado como uma ascensão em
do amor, cujo objeto supremo é a uma hierarquia de objetos de amor –
beleza. Para a apreender, devemos primeiro, o corpo belo de um homem
distinguir, de um lado, a beleza das particular amado; depois, todos os
coisas e as propriedades como corpos belos; depois, a beleza das
ocorrem no mundo sensível e, de almas, depois a das Leis, costumes e
outro lado, o Belo em si (auto to ideias – terminando como amante da
kalon), a Forma da Beleza eterna,
imutável e divina, acessível não aos sabedoria ou filósofo. No ponto
sentidos, mas somente ao intelecto culminante deste progresso, o
(Smp. 211dl). Casos de beleza no amante filosófico “terá a visão de algo
mundo sensível exibem variabilidade soberbamente belo na natureza... a

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razão de todos os seus esforços o próprio gênio literário de Platão


anteriores” (210e8-9), a saber, a está integralmente manifesto nesta
Forma da Beleza em si. (“Bondade” passagem extraordinária e tocante e
dificilmente transmitiria o fervor em porque imaginamos que ele deve
questão.) Todo amor deseja algum encontrar um lugar para algo como a
tipo de progênie. O tipo supremo de arte em sua hierarquia de belezas ou,
amor toca em um objeto superior e pelo menos, pensar que a arte
produz uma progênie superior: capacita seu autor a produzir algo
imortal e universal. “Estranhamente”,
se alguém alcança ver a Beleza escreveu um conhecido historiador
em si, absoluta, pura, não da estética, “Diotima e Sócrates não
misturada, não poluída pela atribuem um papel às artes nesse pro-
carne humana, pelas cores ou cesso de redespertar para a Beleza,
por qualquer outra grande tolice ainda que baste somente dar um
da mortalidade... somente pequeno passo para tanto”
então lhe será possível dar (Beardsley, 1966, p. 41). Trata-se,
nascimento não a imagens da porém, de uma reação anacrônica. Se
virtude (pois ele não está em há algo como o “próximo passo” de
contato com imagens), mas à Platão, são os argumentos da
verdadeira virtude (pois ele está República, provavelmente escrito
em contato com a verdadeira logo após, nos quais, como vimos, a
Beleza). (211el-212a7) beleza admitida das produções de
arte não
Se lembrarmos que, na República,
Platão emprega a expressão “imagens
da virtude” aos poetas, um contraste
particular se apresenta por si mesmo. as salva da crítica baseada em
Enquanto o poeta faz somente critérios que, para ele, devem ser
imagens e compreende somente sempre superiores.
imagens, o filósofo, que busca e
encontra a Beleza eterna imutável, NOTA
pode gerar bens genuínos no mundo
porque compreende o que é a As traduções de Platão foram tiradas
virtude. Pode ser difícil para o leitor de J. M. Cooper (ed.) Plato: Complete
moderno aceitar este contraste, pois Works (Indianapolis: Hackett, 1977).

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Hugh H. PLATÃO
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Hugh H. PLATÃO
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Aprendendo sobre Platão com humana. Ele honra Platão por sua con-
Aristóteles córdia perfeita entre mente e vida:
Platão, ele sustenta, mostra de modo
CHRISTOPHER SHIELDS único ou, pelo menos, a um grau
jamais alcançado por outro mortal,
Aristóteles veio a Atenas para estudar que a felicidade humana reside na
na Academia de Platão quando era um bondade da realização intelectual.
garoto de dezessete anos.
Evidentemente, ficou impressionado Mesmo assim, vemos que
com o que encontrou ao chegar: Aristóteles critica Platão, por vezes
entrou na Academia e ah ficou por em termos tão fortes a ponto de
vinte anos, primeiramente como um ocasionar sarcasmos da parte de seus
estudante e, depois, como um detratores na Antiguidade, que ti-
pesquisador em todos os assuntos de nham a tendência de o pôr no papel
filosofia, não saindo da Academia, de de um ingrato, um pupilo que, tendo
fato, até a morte de Platão. Neste sen- sido aceito
tido, quando vemos Aristóteles
criticando Platão, por vezes bem na Academia platônica e tirado
causticamente, devemos trazer à proveito das vantagens de pertencer a
mente a afeição evidente que exprime ela, preferiu desdenhar as convicções
quando o elogia como “um homem de seu líder como o faz um aluno
que é inaceitável que os mal- imaturo, por demais embevecido de si
intencionados louvem: ele mesmo para poder apreciar tudo o
unicamente, insuperável entre os que seu mestre fez por ele. Por
mortais, mostrou claramente por sua exemplo, o biógrafo da Antiguidade
própria vida e pelo empreendimento Diógenes Laércio conta a história,
de seus escritos que um homem se seguramente apócrifa, que Platão
torna feliz e bom ao mesmo tempo” uma vez se referiu a Aristóteles como
(frag. 650 R3, frag. 673 R3, “o potro que deu um coice na sua
Olimpiodoro, Commentarius in mãe” (DL v 2). Tampouco estas críticas
Gorgiam 41.9). Aristóteles elogia a Aristóteles se limitam à Antiguidade.
Platão não simplesmente por conta de Ao contrário, elas vêm até o tempo
seus feitos intelectuais, tampouco presente. Assim um eminente
somente por conta de sua bondade estudioso de Platão resume o nível de
entendimento da parte de Aristóteles

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em um tom de litígio: “em primeiro Estas questões são delicadas e


lugar, é seguro que ele nunca difíceis, mas vale a pena persegui-las.
compreendeu o ensinamento do líder Como uma propedêutica para
da Academia” (Burnet, 1928, p. 56). abordá-las em toda sua
Embora estas disputas sejam complexidade, será útil reconsiderar e
inutilmente monodimensionais, os avaliar algumas das críticas de
detratores de Aristóteles põem Aristóteles mais ferozes. Poremos o
questões que não se pode esquivar foco em dois grupos de questões que
acerca da interação de Platão e giram em tomo
Aristóteles na Academia. Embora
tenha permanecido na Academia por a) da Teoria das Formas e
duas décadas, Aristóteles indica em b) da natureza do bem.
várias passagens que ele não tem
simpatia por algumas das teses mais Um terceiro grupo de questões
centrais e filosoficamente carac- can- dentes diz respeito às atitudes
terísticas de Platão. Como, então, ele divergentes de Platão e Aristóteles a
o critica? E por quê? propósito da autoridade do Estado,
que deve ser explicadas em certa
Podemos nos perguntar também medida, mas somente em certa
como as críticas de Aristóteles medida, com base no desacordo
afetaram, se é que afetaram, e deram anterior a respeito da natureza do
forma à filosofia de Platão. Podemos, bem. Uma atenção cautelosa ao
por exemplo, detectar os tipos de tratamento de Platão nessas áreas
críticas antiplatônicas feitas por revela que o mestre e o aluno não
Aristóteles refletidas nos diálogos de estão tão diametralmente opostos
como a tradição com frequência os
quis apresentar. Isso dito, qualquer
que seja o modo como vemos as
Platão? Devemos compreender, mais direções da influência mútua ou da
espe- culativamente, as evidentes superioridade dialética entre estes
alterações no pensamento de Platão, dois pensadores, nossa avaliação final
especialmente a respeito das Formas, das posições filosóficas primárias de
como reações aos tipos de crítica que Platão ficará ricamente informada ao
vemos articuladas nos escritos de se considerar as reações críticas do
Aristóteles? seu primeiro e altamente arguto

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oponente, Aristóteles. elas podem ser iguais em peso, mas


não em tamanho ou cor e, mesmo
A ANÁLISE DE ARISTÓTELES DA assim, elas podem ser iguais em
TEORIA DAS FORMAS DE PLATÃO: tamanho apenas aproximadamente.
UM INTERCÂMBIO CARACTERÍSTICO Isto é, embora quando os pesamos
vemos que cada um pesa 0,6 kg, mas,
Suponha que estejamos tentados a após um exame mais rigoroso, um
acreditar que as Formas existem (ver pesa 0,61 kg e o outro 0.62 kg, ou, se
o capítulo As Formas e as Ciências em cada um pesa 0,61 kg, quando os
Sócrates e Platão). Somos então fazemos passar por testes mais
evidentemente tentados a acreditar – precisos, vemos que o primeiro pesa
ainda que o tema seja sujeito à 0,611 e o outro 0,612, e assim por
disputa – que existem entidades diante. Assim, podemos dizer que,
independentes da mente e da mesmo quanto ao aspecto do peso,
linguagem questão são perfeitas e elas são e não são iguais, dependendo
imutáveis, puramente o que são, do contexto de nossa avaliação. Neste
caso, as pensaremos como outras que
jamais sujeitas ao fluxo e são assim perfeitamente iguais e, portanto,
idealmente aptas a ser objetos de como outras que a Igualdade-em-si,
conhecimento. Acreditamos também, que jamais se mostrará, em um
ao que parece, que, enquanto contexto, como desigual. Estas
perfeitas, essas Formas podem características se baseiam em passa-
funcionar como paradigmas, gens presentes em todo o corpus,
primeiramente para o artesão divino, incluindo Phd. 76d-e; 100a; Phdr.
que as contemplou como modelos 247c; R. 477a-480e, 523a-e, 597d;
quando estava criando o universo, e, Smp. 210e-211e; Ti. 27d-28a, 52a-b;
segundo, e em outro sentido, como as Prm. 126a-135d.
instâncias paradigmáticas de F-dade a
partir das quais as instâncias não Visto que Platão parece fornecer
paradigmáticas são nomeadas. Neste diferentes tipos de considerações
último ponto, se pensamos que duas para acreditar nas Formas nesses
varetas são iguais, então podemos diferentes contextos e mesmo sugere
pensar que nenhuma delas é âmbitos diferentes e incompatíveis
completa ou puramente igual ou igual das Formas em diferentes diálogos, é
em um aspecto imiscível ou perfeito: salutar para nossos presentes

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propósitos perguntar como objetos de conhecimento não


Aristóteles concebe a motivação sensíveis, objetos que são
dominante de Platão. Uma de suas perfeitamente estáveis e que nunca
apresentações mais claras e diretas mudam. Eles são as Formas.
da motivação de Platão ocorre no Tomando-o junto, o argumento de
início da Metafísica, em I.6.987a29- Aristóteles em prol das Formas
987b24, quando está engajado em platônicas é:
recapitular as perspectivas de seus
predecessores como preliminar à 1. os objetos de percepção estão
para sempre em um fluxo;
2. o que está em um fluxo não pode
ser conhecido; assim,
introdução de suas próprias ideias. Ele 3. os objetos de percepção não
atribui aqui a Platão uma motivação podem ser objetos de
inteiramente epistemológica. Ele conhecimento – se houver
sustenta que Platão foi fortemente conhecimento;
influenciado por Heráclito, que, tendo 4. há objetos de conhecimento, já
se familiarizado com sua concepção que de fato conhecemos algumas
do fluxo quando era jovem, Platão coisas; donde
continuou a adotar suas teses mesmo 5. os objetos de nosso conhecimento
quando idoso, ainda que com uma devem ser não sensíveis e nunca
diferença central. Platão, nos diz estão em fluxo.
Aristóteles, restringiu a tese de
Heráclito ao mundo sensível, Denomine tais objetos de
argumentando que não poderia haver Formas.
conhecimento se houvesse somente
entidades sensíveis em um eterno Há vários pontos que se pode pôr
fluxo. Como Aristóteles sugere em um em dúvida neste argumento. Nem
contexto similar em outro lugar, ten- Platão nem Aristóteles, todavia, têm
tar conhecer o que está sempre muita simpatia pelo pensamento que
mudando é como “correr atrás de (4) seja falsa, já que sua negação iria
pássaros” (Metaph. 1009b38-1010al). requerer um ceticismo global
Assim, se supusermos que há incompatível com nosso o fato de
conhecimento – por exemplo, sabe- conhecermos mesmo as verdades
mos que 2 + 2 = 4-, então deve haver necessárias mais modestas. Isso

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parece radical. Neste sentido, é intrínsecas das coisas (Metaph.


interessante perguntar qual de (1) ou 991bl);
(2) Aristóteles rejeita, pois ele deve 6. em geral, as Formas, uma vez
rejeitar ou uma ou a outra, em que separadas, em nada contribuem
pese as suas aos particulares, e
7. de seu modo mais cáustico,
reiteradas declarações sobre a Aristóteles aconselha “dar adeus às
insustentabili- dade da Teoria das Formas”, já que “elas são um ‘trá-
Formas de Platão. Vemos isso ao lá-lá’ e, mesmo que existam, são
longo de toda a obra de Aristóteles, totalmente irrelevantes” (APo.
embora frequentemente 83a32-4).
apresentado sem o amparo dos
argumentos completos que estão por Algumas destas críticas são
trás deles. Suas críticas são várias. acompanhadas de apoio, ainda que
Aristóteles sustenta, por exemplo, em alguns casos fortemente
que: truncado, ao passo que outras são
aventadas sem nenhuma argumenta-
1. as Formas são causalmente inertes ção. Consequentemente, com
e, assim, não podem explicar a respeito pelo menos a algumas destas
mudança ou geração (Metaph. críticas, toda tentativa de
991a8, 1033b26-8); reconstrução dos argumentos que
2. postular as Formas é contrário à movem Aristóteles é uma tarefa
economia teórica (P/t. 259a8); altamente conjetural.

3 as Formas, mesmo se existissem, Por essa razão, é uma sorte que o


seriam ociosas comentador aristotélico Alexandre de
epistemologicamente (Metaph. Afrodisia, que viveu cerca de cinco
991al2-14); séculos após Aristóteles, tivesse à sua
disposição um manuscrito de um
4. introduzir as Formas como curto tratado intitulado Das Formas.
paradigmas é uma metáfora vazia Esta obra, citada ou parafraseada de
(Metaph. 991a20-3); modo preciso em largas partes por
5. as Formas não podem ser Alexandre em seu comentário da
essências se forem separadas, pois Metafísica de Aristóteles, parece ter
as essências são características sido escrita por Aristóteles, talvez em

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um período próximo particular, fica complicada pelo fato


que não há razão para supor que a
teoria de Platão tenha sido feita em
um lance só e tenha permanecido
do final de sua permanência na inalterada ao longo de sua longa e rica
Academia. O Das Formas apresenta carreira (ver o capítulo Interpretando
uma série de argumentos que visam a Platão). Assim, no intuito de
refutar a Teoria das Formas. Alguns determinar a questão da
de seus argumentos têm suas vulnerabilidade, é necessário também
contrapartes nas obras de Aristóteles determinar qual das características
que nos foram transmitidas, alterá- veis por Platão das Formas
especialmente na Metaph. X.9, e Aristóteles pode ter em vista em uma
alguns são próximos aos tipos de dada crítica. Ainda, podemos, sem
argumentos que o próprio Platão le- indevida violência com Platão,
vou em conta no Parmênides (ver o perguntar simplesmente como o
capítulo Problemas para as Formas). autor do Das Formas parece estar
Assim, parece plausível que os concebendo as Formas que ele
argumentos avançados no Das rejeita, deixando em suspenso a
Formas reflitam em grau considerável questão mais complicada de saber se
os tipos de crítica correntes na a Teoria das Formas que ele rejeita
Academia na época de sua redação. corresponde a alguma expressão
razoavelmente clara em um diálogo
No intuito de determinar se as que temos de Platão. Procedendo
críticas de Aristóteles se justificam – deste modo, podemos aprender um
isto é, se devemos acompanhá-lo na pouco sobre as teorias que circulavam
rejeição das Formas de Platão –, na Academia, mesmo que essas
precisamos primeiro entender as teorias não tenham encontrado
críticas e, então, decidir se Platão é expressão nos diálogos publicados de
vulnerável a elas, para então verificar Platão.
se é o caso que pequenas
modificações possam renovar com Entre os muitos argumentos
uma teoria platônica que seja imune avançados, há um que parece
dos tipos de críticas que Aristóteles atraente e especialmente
considera fatais. Cada uma destas
tarefas é trabalhosa. A segunda, em apto a ser considerado por tocar no

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Hugh H. PLATÃO
Benson Benson

nervo de um impulso platônico se todas as árvores específicas deste


profundo. É o argumento que veio a lado da montanha fossem destruídas
ser chamado “Um de Muitos”. pelo fogo. Afinal de contas,
permaneceria então a possibilidade
No Argumento Um de Muitos, de haver muitas árvores, talvez
vemos Aristóteles criticando Platão cinquenta e cinco, exatamente
pelo fato deste último acreditar que naquela colina. Assim, poderíamos
uma Forma corresponde a todo estar inclinados a concluir que ser
termo geral. Em uma primeira uma árvore nomeia um atributo, um
aproximação, suponha que haja atributo distinto de todo grupo
cinquenta e cinco pés de oliveira em particular de árvores reais ou mesmo
um bosque ao lado de uma possíveis. Esse atributo poderia então
montanha. Embora difiram de cumprir vários papéis. Poderia ser o
incontáveis modos umas das outras, significado de nosso termo “árvore”,
as árvores serão também em alguns e poderia ser um significado que
sentidos exatamente as mesmas; existiria mesmo que não existisse no
para iniciar, cada uma e todas elas é presente nenhuma árvore. Além
uma árvore. Assim, poderíamos dizer, disso, ele poderia ser este mesmo
exprimindo-se de um modo ligei- atributo, ser uma árvore, que todas e
ramente estranho, que cada uma somente as árvores têm em comum.
delas tem um atributo em comum, a Por fim, este atributo poderia
saber: ser uma árvore. Embora umas assegurar a possibilidade de árvores
sejam maiores e outras, menores, quando não existisse nenhuma
umas deem mais frutos e outras, árvore. Isso só tornaria verdadeira a
menos, o atributo ser uma árvore sentença “poderia haver árvores
pertence a todas elas e a nenhuma nesta colina” quando não há
delas mais ou menos que às outras. nenhuma pelo
Talvez se pudesse então ficar tentado
a dizer, como Aristóteles relata que
Platão estava de fato disposto a decla-
rar, que todas estas árvores têm um fato de terem sido destruídas pelo
traço em comum, um traço que é fogo. Não teríamos que fazer apelo a
distinto de cada árvore algo tão estranho como a existência
individualmente, algo que se poderia de árvores possivelmente-mas-não
mesmo pensar que permanece ainda atualmente. Ao invés disso, diríamos

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Hugh H. PLATÃO
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simplesmente que o atributo ser uma 5. Se (4), então F-dade: (a) não pode
árvore poderia vir a ser exemplificado depender dos objetos F para sua
mais uma vez naquela colina. existência e, assim, dever ser capaz
de existir sem eles, bem como (b)
Neste sentido, a suposição que deve ser eterno.
há um atributo aplicado a muitas 6. Assim, F-dade deve ser capaz de
árvores se mostra rico do ponto de existir sem os objetos F e ser
vista da economia e da justificação. eterno.
Esse atributo seria uma instância do
Um de Muitos. Generalizando, então, É surpreendente quão
para um grupo de objetos F, haveria rapidamente, com base somente na
um atributo F-dade que todos e simples suposição de haver um traço
somente os objetos F têm em comum. comum a muitos particulares, este
Um objeto, F-dade, se aplica sobre argumento nos leva às portas da
muitos objetos F. Procedendo de um concepção platônica das Formas. (6)
modo ligeiramente mais rigoroso, en- implica que há entidades distintas de
tão, vemos que Aristóteles atribui a todo particular material, capaz de
Platão um argumento do seguinte existir eternamente sem a menor
tipo: dependência deles para continuar a
ser. Podemos denominar estas
1. Sempre que muitos objetos são F, entidades “Formas”.
eles são F em vez de exibirem um
atributo comum, F-dade. Embora em certas direções
2. Não é possível supor que esse plenamente crítico desse argumento,
atributo seja ele próprio idêntico a Aristóteles se mostra em outras
(a) um dos objetos F ou (b) à inteira direções surpreendentemente
classe de objetos F. favorável a ele. Consideremos
3. Assim, esse atributo, F-dade, deve primeiro suas críticas. No Das Formas,
ser distinto dos objetos F e se Aristóteles primeiramente critica este
aplicar sobre eles. argumento por provar muito – se é
4. Ademais, essa F-dade, que é que prova alguma coisa. Se for válido,
distinta da classe de objetos F e sugere ele, o Argumento Um de
aplicado sobre eles, sublinha a Muitos geraria Formas indesejadas
possibilidade permanente de mesmo pelos platônicos, Formas
haver objetos F. correspondendo a negações e a coisas

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Hugh H. PLATÃO
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que não existem. Concentrando-se objetos com absolutamente nada de


nas negações, argumenta Aristóteles, positivo em comum.
podemos ver que, assim como
predicar ser um homem a qualquer Refletindo sobre esse argumento,
grupo arbitrário de homens, de modo podemos nos perguntar se ele nos
que haverá um sobre muitos, assim obriga a tanto mesmo em seus
também podemos predicar não ser próprios termos; e podemos também
um homem a um grupo selecionado inquirir sobre o assunto intricado de
arbitrariamente de objetos que não saber se Aristóteles está justificado
são homens, digamos: uma árvore, em tentar atribuir a Platão estas
um cavalo e o cotovelo de uma pressuposições. Ao avaliarmos a
menininha. Devemos dizer que há justificabilidade das atribuições de
algo, não ser um homem, ou pior, ser Aristóteles, ficamos dolorosamente
um não homem, aplicado sobre todos limitados em nossos recursos. De um
estes muitos objetos que não são
homens? Certamente que seria
absurdo. De início, haveria um
número incontável de Formas lado, Aristóteles faz alusão, ainda que
negativas. Ademais, estas Formas se uma única vez, às “doutrinas não
aplicariam sobre coleções escritas” de Platão (Ph. 209bl4),
indiscriminadas de objetos que nada evidentemente, todavia, unicamente
têm em comum uns com os outros em conexão com questões que dizem
exceto que não são isto ou aquilo, por respeito à relação entre a matéria e o
exemplo, não são um homem. Esta espaço antes que sobre as Formas
segunda crítica parece especialmente como tais. Mesmo assim, a alusão
aguda se tivermos assumido no início toma vivido algo que não pode
do argumento, na premissa (1), que sensatamente ser negado, embora
precisávamos postular um atributo de tenha sido negado de fato nos tempos
algum tipo para explicar os traços modernos por Cherniss (1944: 72), a
comuns que observamos no mundo. saber, que Aristóteles tinha uma
Agora se revela, se esta crítica for interação regular com Platão ao longo
justa, que precisamos postular as das duas décadas que conviveu com
Formas pela razão precisamente ele e que, sem dúvida, ele se baseou
oposta: temos de pôr Formas sobre nessa interação quando descreveu e
coleções aleatórias e disparatadas de reformulou as posições de Platão para

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Hugh H. PLATÃO
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as avaliar. (Evidência no corpus uma questão mais nuançada de saber


aristotélico em que parecemos vê-lo se o próprio Platão, tendo
aludir a tal base pode ser encontrada considerado suas consequências
em Metaph. 992a20-22, 1019al, problemáticas, não a teria revisado ou
1070al8, 1083a32; EN 1095a32; GC corrigido de um modo ou outro. Isto
330bl3.) é, se nos preparamos a obter dados
acerca das doutrinas de Platão com
Assim, há uma questão legítima base nos relatos de Aristóteles a seu
de saber se, quando vemos respeito, que não estão atestados por
Aristóteles atribuir uma posição de
outro modo não atestada nos escritos outras fontes, então devemos
que possuímos de Platão, devemos igualmente nos preparar, indo para a
simplesmente supor que ela corres- outra direção, a supor que Platão
ponde a algo que Platão de fato pode ter oferecido réplicas a
sustentou, algo que Aristóteles Aristóteles que não foram relatadas
naturalmente sabe que ele sustentou nas apresentações feitas por
com base em suas interações Aristóteles. Por estas e outras razões,
pessoais. Embora seja razoável supor devemos agir com leveza
que tal prática seja perfeitamente relativamente aos relatos não ates-
sensata, dois fatores militam contra tados de Aristóteles, pondo antes o
tratá-la como praticável facilmente foco, tanto quanto nos for possível, na
ou de modo não controverso. evidência que de fato encontramos
Primeiro: Aristóteles atribui por vezes nos escritos que nos foram
a Platão uma tese que é transmitidos de Platão. No tema aqui
patentemente problemática; assim, sob investigação, o Argumento Um de
se quisermos tratar Platão com Muitos, de fato encontramos certo
caridade, devemos fazer uma pausa e reconhecimento de suas premissas
nos perguntar se a tese em questão é centrais refletido nos diálogos de
autenticamente dele ou, de modo Platão, embora seja um re-
mais neutro, se a tese relatada está conhecimento que por vezes é
formulada em termos que ele cauteloso. De um lado, Platão diz uma
consideraria aceitáveis. Segundo: vez na República: “estamos
quando encontramos algo a que se acostumados a postular em todos os
pode objetar em uma tese atribuída a lugares uma única Forma para cada
Platão por Aristóteles, podemos pôr uma das multiplicidades às quais

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aplicamos o mesmo nome” (596a6-7). possam estar apartadas uma da


Isso parece, na superfície, adotar a outra, não é preciso que
suposição central do Argumento Um
de Muitos de um modo par-
ticularmente notável, pois podemos
ver (1), a premissa segundo a qual, o estejam, como por vezes se supõe,
sempre que muitas coisas são F, elas porque Platão pode estar supondo
são F em virtude de exibirem um que o que exprimimos, o significado
mesmo atributo comum, F-dade, em de um termo, é simplesmente o
um dos dois modos não atributo partilhado por todas as
necessariamente excludentes: coisas F. Com efeito, é isso o que
supus em minha apresentação inicial
a) metafisicamente, de modo que, do Argumento Um de Muitos, quando
sempre que vemos muitas coisas o elogiei como uma hipótese
que são F, somos levados a altamente econômica. De qualquer
postular um atributo F-dade sobre modo, em sua superfície, a
eles; ou observação de Platão na R. 596a6-7
b) semanticamente, de modo que, parece ter pelo menos uma intenção
sempre que usamos o predicado semântica, se não for também
“F-dade”, no mesmo sentido, para metafísica.
diferentes objetos, pensamos que
há um significado, F-dade, que está Dito isso, não seria sensato
expresso pelo predicado “ser-F’. basear-se somente nesta passagem
para tentar determinar se Platão
A ideia por trás da leitura adotou algum tipo de Suposição Um
metafísica da observação de Platão é de Muitos (cf. também, em todo caso,
que, que alguém se preocupe ou não R. 523-5 e Plt. 262a-e; e também, de
se preocupe em se dar conta disso, modo mais tateante, Euthphr. 5dl-5;
quando muitas coisas são F, elas têm Men. 72c7; Chrm. 158e7, 159al-2).
um atributo comum, F-dade; na Primeiro: mesmo que a tivesse
leitura semântica, o atributo em adotado, ele poderia mesmo assim
questão é um significado, algo ter mudado de opinião ao longo de
expresso por nossos enunciados sua evolução como pensador. Mais
lingüísticos quando dizemos que isto importante, a Suposição Um de
ou aquilo é F. Embora estas teses Muitos indiscutivelmente aparece em

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Platão, porém em uma passagem que o argumento, tal como


muito carregada, na qual ele reporta, formulado, implica que existam
em própria persona ou não, uma série Formas para as negações. Em um
de argumentos críticos agudos, alguns modo não favorável, ao que parece,
dos quais pelo menos tendo uma ele levaria a isso. Se pensarmos que a
forte semelhança de família com os noção de um “atributo comum” em
argumentos do Das Formas de (1) abrange todo que é verdadeiro
Aristóteles. No Parmênides, Platão de que podemos afirmar de um grupo
fato se serve de uma Suposição Um de heteróclito de objetos, inclusive que,
Muitos para criticar a teoria, sugerin- se nenhum deles é F, eles são não F,
do que esta suposição, junto com certamente a implicação vale. Ainda
várias outras suposições, causa à assim, é perfeitamente apropriado a
Teoria das Formas um regresso infeliz Platão ou a quem quer que seja
que mostra que ela é insustentável responder que há um número de
(ver esp. Prm. 132al-4). concepções mais restritas de ter um
atributo em comum a que poderia
Por estas razões, devemos ter fazer apelo o argumento de modo
muita prudência quanto a qualquer sensato, começando com a ideia que
adoção fácil da sugestão não os objetos em questão devem ter um
verificada que Platão se funda – ou se atributo positivo ou que o atributo
funda de modo irrefletido, ou se tido em comum deve ser de um modo
funda ao longo de sua carreira – em ou outro natural. Embora esta
algum tipo de Suposição Um de resposta coloque o ônus de
Muitos, entendida metafísica ou especificar o que é entendido por
semanticamente. Mesmo assim, “positivo” ou “natural” nesta
podemos por entre parênteses a concepção nos ombros de quem
questão da legitimidade da atribuição responde, parece sensato supor que
por parte de Aristóteles e discutir uma quem adotar alguma forma da
questão puramente filosófica, que Suposição Um de Muitos estará
podemos resolver: a Suposição Um de pensando nesta direção. Isto é, pode-
Muitos tem as consequências se esperar que quem responde diga
indesejadas que Aristóteles joga em se, por exemplo, ser mortal é positivo
sua soleira? A resposta dependerá ou negativo, ou se, por exemplo, ser
um país, oposto a ter um encargo
em parte em por que devemos pensar positivo, é, no sentido exigido,

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natural. Mesmo assim, não há razão prontamente imaginar a vida na


para avançar a suposição que nenhu- Academia.
ma justificação poderá ser oferecida.
Mais direto ao ponto, não há nada na Na verdade, se prestarmos
objeção de Aristóteles ao Argumento atenção à apresentação do
Um de Muitos que sugira que tais argumento de Aristóteles feita por
explicações não possam ser Alexandre de Afrodísia, vemos algo
oferecidas. que se destaca ainda mais: Aristóteles
não pensa que os argumentos
Em função destes tipos de reação, destroem todos os aspectos da Teoria
que, afinal, não são difíceis de serem das Formas. Segundo Alexandre (Das
pensados como provenientes do Formas, 81.8-11) pelo menos,
próprio Platão (já que, de fato, algo Aristóteles não pensa que o
que se aproxima a isso já está argumento estabelece a existência de
sugerido no Político, em 262a-e), a algo distinto dos particulares, menos
força do argumento de Aristóteles é, ainda a existência das Formas. Ele
no melhor dos casos, condicional. Não supõe que o argumento mostra que
podemos tomar sua crítica como há “coisas em comum” ou “parti-
devastadora para a Teoria das lhadas” (koiná) que existem e que,
Formas; porém, também ela é inócua. embora não sejam capazes de existir
Ela formula uma questão que Platão, independente ou eternamente, são,
ou um platônico, precisa enfrentar. contudo, distintas dos particulares. Se
Concedido isso, o Argumento Um de isso estiver correto, então
Muitos não fornece ele próprio encontramos algo bem interessante
nenhuma razão para supor que suas sobre o argumento, o fato que
alegações sejam inatacáveis. Se isso Aristóteles é favorável pelo menos
estiver aos seus primeiros três passos, já que
é somente depois deles que Platão é
apresentado como argumentando
que as Formas podem existir eterna e
correto, então o argumento não é independentemente dos objetos
nem devastador nem mal dirigido. Ao particulares. Qualquer simpatia
contrário, é uma objeção fecunda em complica imediatamente nossa
uma contínua disputa dialética. É atitude em relação à crítica de
justamente assim que se pode Aristóteles: sustentar que o

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argumento gera Formas para as contundente contra seu autor. No


negações parece atacar o argumento caso em questão, se Platão tem algo a
imediatamente, em sua primeira aprender com Aristóteles, então
premissa, que contém a Suposição igualmente Aristóteles tem algo a
Um de Muitos. Isso deve ser visto aprender com Platão.
como surpreendente, pois, se o
argumento realmente gera Formas O BEM E OS BENS
que não são desejadas por Platão, as
Formas que correspondem às Um intercâmbio igualmente
negações, então também deve gerar complexo e cativante entre Platão e
coisas em comum não desejadas, já Aristóteles diz respeito à natureza do
que, se é verdade para Platão que Bem. Em uma passagem memorável
cavalos, árvores e o cotovelo de uma da Ética Nicomaqueia, encontramos
menina são em comum não homem, Aristóteles falando de um modo
então isso também é verdade para bastante amistoso de Platão, não por
Aristóteles. Indo mais ao ponto, se o nome, mas por implicação. No meio
argumento leva à existência de coisas de sua própria explicação positiva do
em comum, então as coisas em bem humano, Aristóteles faz uma
comum que ele gera devem ser pausa e observa:
comuns tanto para Platão quanto
para Aristóteles. Assim, Aristóteles Convém provavelmente
pode restringir o domínio das coisas examinar o bem universal e
em comum abrangidas pela passar pelas dificuldades
relativas ao que se entende por
primeira premissa se – e somente se – ele, ainda que este tipo de
Platão o puder. investigação seja penoso para
nós pelo fato que os que
O resultado é que, então, a introduziram as Formas são
interação dialética em jogo no nossos amigos. Mesmo assim, é
Argumento Um de Muitos é menos preferível, e é mesmo nosso
transparente do que parece. Neste dever, destruir o que está
sentido, não devemos esperar que próximo a nós com vistas a
Platão se curve diante desta objeção, preservar a verdade,
especialmente quando a objeção – se especialmente se formos filó-
contundente – parece igualmente ser sofos, pois, ambos sendo caros a

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nós, a piedade requer com que suposição de univo- cidade. Para se


honremos a verdade acima dos compreender o que está em jogo
amigos. nesta crítica, devemos voltar a uma
passagem de Platão que já foi
Na República, Platão tinha dado, discutida: “estamos acostumados a
de modo célebre em vista de sua postular em todos os lugares uma
proeminência relativa às outras única Forma para cada uma das
Formas, o lugar de honra à Forma do multiplicidades às quais aplicamos o
Bem (R. 504e7-509c4) (ver o capítulo mesmo nome” (596a6-7). Até agora
O Conceito de Bem em Platão). colocamos o foco nas questões para
Aristóteles tem certas suspeitas a saber se esta tese é mais bem
respeito da concepção de Platão do entendida semantica ou metafísi-
Bem que o induz a destruir – ou a camente (ou de ambos os modos) e
tentar destruir – uma característica se, de qualquer modo que seja
central desta Forma, ainda que, tomada, compromete Platão com a
Suposição Um de Muitos. Contudo,
podemos agora pôr o foco em outra
característica da sugestão de Platão:
assim procedendo, fique em ele parece supor que há uma e
desalinho com um dos ensinamentos somente uma Forma associada a cada
mais profundos de alguém que ele termo geral, inclusive, então, com
tanto preza. Este é o preço, pondera cada termo chave filosófico geral. A
ele, do dever do filósofo. Este de fato ideia é que, se começamos a analisar
é o preço do dever do filósofo – de uma dada noção filosófica – digamos:
todo amante do saber, como significa justiça, piedade, conhecimento,
o termo “filósofo”. Se um físico causalidade ou consciência –,
brilhante detecta um erro no podemos continuar com segurança
resultado mais importante de seu com a suposição que há somente um
diretor de tese, seu dever, por mais objeto que queremos analisar.
ligado que se sinta a seu diretor, é de Podemos supor, a saber, que, se
trazer este erro à luz do dia. analisarmos, por exemplo, com
sucesso a justiça, ao final teremos
O erro principal que Aristóteles obtido uma definição que exibe a
diz ter detectado na concepção de essência, a qual apreende a natureza
Platão do bem universal diz respeito à da justiça de modo que a definição é

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única e não disjuntiva (ver o capítulo suposição em relação à qual há uma


Definições Platônicas e Formas). A propriedade tida em comum por
definição bem-sucedida será única no todas e somente pelas coisas boas e
sentido em que exibirá somente uma que a natureza do bem pode ser
essência e será não disjuntiva no apreendida como algo simples e não
sentido em que não fará apelo a disjuntivo.
disjunções para ser completa. Como
ilustração, suponha que O interesse dessa crítica reside em
consideremos como uma definição do parte no fato que, quando passamos
que é ser uma pessoa de sucesso o de casos triviais para casos de
seguinte: interesse filosófico, é
frequentemente difícil determinar se
X é uma pessoa de sucesso =df (a) x a univocidade está ou não está
ganhou muito dinheiro ou (b) x é feliz. suposta com razoabilidade. Dois
exemplos simples podem mostrar
Em um sentido, temos diante de este ponto. Primeiro: suponha que
nós uma definição única. Em outro queiramos fornecer uma definição de
sentido, todavia, fica claro que duas consciência. Na medida em que
coisas bem diferentes estão sendo avançamos, podemos ou não estar
afirmadas: muitas pessoas que justificados em supor que há uma
ganharam muito dinheiro são infelizes propriedade comum tida por todos e
e muitas pessoas que são felizes não somente pelos seres conscientes
ganharam muito dinheiro. Assim, enquanto são seres conscientes.
mesmo que a definição seja aceitável Alguns filósofos sustentam que o que
por outros motivos, não terá torna um ser consciente não é de
apreendido um traço único que todos modo algum uma certa característica;
e somente as pessoas de sucesso têm é, antes, um conjunto de ca-
em comum. Por esta razão, definições racterísticas fortemente relacionadas
com disjunções são vistas como entre si, a presença de algum
violando a suposição de univocidade. subconjunto delas sendo suficiente
para que seja consciente. Outros
A crítica de Aristóteles quanto à replicam que os que alegam ter
concepção do Bem de seus amigos é, isolado traços discretos de
então, que eles, sem base, adotaram consciência simplesmente não
a suposição de univocidade, uma chegaram ao fim: quando a análise

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estiver completa, dizem eles, estará Ora, Platão certamente por vezes fala
unificada. Segundo, para um exemplo nesta direção, como quando fala da
mais próximo da relação dialética “Ideia [= Forma] do Bem, da qual tudo
entre Platão e Aristóteles: considere a que é bom e certo recebe seu valor
amizade. Falamos para nós” (R. 505a2-4). A réplica de
Aristóteles é direta: “o bem não pode
ser algo universal, comum [a todos os
objetos bons] e único” (EN 1096a28).
que a amizade ocorre entre crianças e Se estivermos inclinados a supor que
entre adultos, entre aliados Políticos, as Formas são significados, a título de
entre negociantes que se associam e valores semânticos para termos
mesmo entre pessoas e classes gerais, então também podemos nos
abstratas: “ele sempre foi um amigo inclinar imediatamente a aceitar a
fiel ao homem trabalhador”. Existe crítica de Aristóteles. Dizemos de uma
uma relação, amizade, que todos grande quantidade de coisas
estes elementos têm entre si? Talvez diferentes que são boas: agentes
haja, mas isso não é óbvio. Mesmo morais, apresentações de ópera,
com base em uma inspeção rápida, sobremesas, sistemas econômicos,
descobrimos que, em alguns casos, a respostas, corações artificiais e
relação se mostra simétrica e, em períodos de tempo. Quando dizemos
outros, não simétrica. Os filósofos que o capitalismo é bom, certamente
que se ocupam com estas queremos dizer algo outro que uma
investigações podem e devem refletir piada é boa? Se alguém diz que o capi-
sobre as perspectivas de uma talismo é bom, quer dizer
univocidade em sua definição final. presumivelmente, inter alia, que é um
sistema eficiente e socio- Político
Aristóteles critica Platão por não justo; em contraste, quando dizemos
ter refletido adequadamente sobre as que uma piada é boa, queremos dizer
perspectivas de univocidade no caso que ela é engraçada. Obviamente, ser
de bem. De fato, Aristóteles pensa engraçado não é a mesma coisa que
que pode mostrar que o bem é ser um sistema eficiente e
positivamente não unívoco, de modo socioPolítico justo. Porque estas
que toda fala de uma Forma do Bem, paráfrases de “bom” são claramente
de uma única Forma para todos os diferentes quanto ao sentido,
objetos Bons já está mal concebida. podemos inferir que

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o que é significado por “bom” nestas Socrática). Cada vez que vai além da
aplicações distintas deve também superfície, Mênon termina se
diferir em significado. Dado que estes contradizendo. Isso não o desqualifica
exemplos podem facümente ser para usar a palavra “virtude” em seus
multiplicados, o bem é não somente, assuntos quotidianos; revela, porém,
se concluiria, não unívoco, mas que ele é alguém que não tem uma
terrivelmente não unívoco. apreensão do significado projimdo ou
essência das palavras cujos
Platão não deve ser tão significados rasos ele apreendeu. Por
facilmente dissuadido de sua esta razão Platão pode resistir a toda
suposição de univocidade a propósito objeção quanto a ter suposto errada-
do bem. Já de início, estamos mente a univocidade do bem. Platão,
supondo algo que ele não precisa como Aristóteles, faz filosofia e não
supor, mesmo que não pretenda que lexicografia. Mesmo que os
suas Formas sejam valores significados rasos de “bem” diviijam
semânticos de termos gerais, a saber, em um número de aplicações, resta
que, correspondente a cada termo que é possível que haja uma essência
geral, há uma única Forma que única, não disjuntiva do bem
responde a todo significado raso ou subjacente a todos os significados
lexical. Platão claramente não pensa rasos corretos que o termo possa ter
assim. Quando, por exemplo, Mênon adquirido no discurso quotidiano. Na
declara, ao final de um elenchus verdade, pode-me mesmo sugerir
socrático, que ele não pode dizer o que deve haver tal noção subjacente,
que é a virtude, ainda que tenha, em que implicitamente controla o campo
sua avaliação, fornecido muitas belas aceitável de aplicações, de algum
falas sobre esse mesmo tema, ele não modo normativo quanto à sua
dá nenhuma indicação que nunca extensão.
soube o significado da palavra ade-
quado para fazer discursos (Men.
80a9-b4). Ao contrário, como ele diz,
ele não pode dizer o que é (80b4). O A objeção de Aristóteles à
que Mênon quer dizer e o que Platão suposição de univocidade por parte
o entende querer dizer é que ele não de Platão torna-se assim interessante
pode especificar a essência da virtude somente quando se mostra que ele
(ver o capítulo A Ignorância tem uma objeção puramente não

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lexical, enraizada não na linguagem suposição de univocidade de Platão


ordinária, mas em supostos fatos recorrendo meramente a significados
acerca da teoria das categorias de lexicais disjuntivos. Ao contrário,
Aristóteles. De fato, Aristóteles alinha Aristóteles pensa que deve recorrer a
a não univocidade do bem à tese um aparato técnico altamente técnico
altamente técnica que lhe é própria, a de sua própria lavra para apoiar seu
saber, que o ser é não unívoco. Ele ponto.
argumenta que o bem é unívoco se e
somente se o ser for unívoco; porém, Este aparato é sua teoria das
já que, mantém ele, o ser é não categorias. Aristóteles sustenta que
unívoco, tampouco o é o bem. Eis há tipos irre- dutivelmente distintos
como argumenta: de seres, incluindo as substâncias (p.
ex., Sócrates ou seu cavalo),
Já que o bem é dito de tantos qualidades (p. ex., ser pálido ou ser
modos como o ser – pois ele é rápido), quantidades (p. ex., pesar 80
dito na categoria da substância, quilos ou ter um metro e meio). De
por exemplo: deus e mente; na modo crucial, Aristóteles sustenta
qual, as virtudes; na quantidade, que o que é existir para cada uma
o volume médio; no relativo, o destas categorias irredutivelmente
útil; no tempo, o momento distintas também é distinto. Isto é,
propício; no lugar, a localização; não somente é o caso que o que é ser
e, em outras categorias, outras uma quantidade difere
coisas deste tipo –, é claro que o
bem não pode ser algo de o que é ser uma qualidade, pois
universal, comum a todas as isso não é objeto de controvérsias,
coisas boas e único; pois, caso o mas também, o que, por contraste,
fosse, não seria dito em todas as certamente objeto de controvérsias,
categorias, mas somente em que o que é existir para uma
uma. (EN 1096a23-9) qualidade difere do que é existir para
uma quantidade. Presumivelmente,
Qualquer que seja nossa Aristóteles sustenta que, se fôssemos
avaliação do sucesso ou fracasso final analisar a noção de existência
da objeção de Aristóteles, deve ficar enquanto se liga a cada uma das
imediatamente claro que Aristóteles categorias, descobriríamos diferentes
não supõe que pode refutar a propriedades ou atributos e não uma

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característica que todas e somente as 1. O Bem é unívoco se e somente se


coisas que existem possuem. Por o ser for unívoco.
vezes Aristóteles calca esta tese 2. Se a teoria das categorias estiver
sustentando que o ser não é um correta, o ser é não unívoco.
gênero (p. ex., APo. 92bl4; Top. 3. A teoria das categorias está
121al6- 19, b7-9; Metaph. 998bl7-28). correta.
O que quer que pensemos sobre esta 4. Donde o ser é não unívoco.
sugestão, devemos concordar que 5. Donde o bem é não unívoco.
Aristóteles não procede supondo que
simplesmente podemos ver, com Agora, vê-se que a objeção de
base em nossa competência Aristóteles a Platão é altamente
lingüística, que o ser ou o bem são técnica, pois ela requer para sua
não unívocos. Neste sentido, avaliação última aceitar pelo menos
novamente, não devemos esperar algumas das características
que Platão seja retirado de sua rudimentares da teoria das categorias
suposição de univocidade por dados de Aristóteles.
lingüísticos rasos. (Para uma
introdução mais completa à teoria das
categorias de Aristóteles, ver Shields,
2003, Ela também é, nesta medida, menos
geral em escopo e também menos
p. 111-16.) imediatamente devastadora do que
podem supor alguns detratores de
Se deve haver uma objeção forte Platão.
contra a suposição de univocidade de
Platão, ela deverá derivar de questões De qualquer modo, ao arguir
teóricas mais profundas proveniente como o faz, Aristóteles permite a
da teoria das categorias de Aristóteles Platão pelo menos dois caminhos
(ver o capítulo O Conhecimento e as para a resposta. Primeiro: ele pode
Formas em Platão). Embora o papel questionar o agrupamento de ser e
que as categorias têm no argumento bem: por que aceitar (1). Segundo:
antiplatônico de Aristóteles tenha mesmo aceitando (1), Platão pode
sido objeto de discussão, a estrutura atacar (2) e (3) conjuntamente.
básica parece clara:
Pensando primeiro sobre (1),

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Platão pode muito bem se perguntar lexical, supõe-se que devemos aceitar
por que o bem deve ser unívoco se e que assim como o que é existir para
somente o ser o for. Vimos que Sócrates difere do que é existir para a
Aristóteles estabelece a comparação virtude e assim de novo para um vo-
sugerindo que ser e bem andam jun- lume médio, assim também há uma
tos na medida em que cada um deles diferença diretamente análoga entre
pode ser usado nas categorias o que é para Sócrates ser bom, para a
divergentes. Assim, para desdobrar virtude ser boa e para um volume
um exemplo somente parcial, médio ser bom. Em cada caso,
Aristóteles supõe que devemos evidentemente, é a definição analisa-
aceitar os seguintes pares: da, ou teoricamente embasada, que
está em questão.
Substância:
Se for isso, não estamos
Qualidade: minimamente em uma posição de
concordar com Platão ou Aristóteles
Ser até que tenhamos à nossa frente as
noções analisadas. Neste sentido, se
Sócrates estivermos inclinados, pelo menos
provisoriamente, a aceitar a
existe. suposição de univo- cidade para o
bem, não devemos desesperar de
A virtude nossas perspectivas de um sucesso ao
existe.
final em qualquer momento antes
Bem Sócrates é bom. que nossas análises finais estejam
completas. Neste aspecto, os ataques
A virtude é boa. de Aristóteles contra a univocidade
de Platão, embora possam encontrar
Quantidade: Um volume Um volume ressonância nos leitores contempo-
râneos enamorados do discurso
médio existe, médio é bom. inspirado em Wittgenstein das
semelhanças de família, são
O mesmo para as demais convincentes ao final em função das
categorias. Para além do significado análises que produzem Platão ou

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Aristóteles (ou seus defensores uma dada Forma existe e que é um


contemporâneos). Por esta razão, certo tipo de qualidade,
agora talvez de modo não independente da mente e da
surpreendente, vemos que os linguagem e que existe sem ser
ataques de Aristóteles contra a instan- ciado. Aristóteles, podemos
univocidade de Platão são imaginar, nega a existência deste tipo
simultaneamente mais complexos e de qualidade. Ainda assim, Platão e
menos imediatamente cogentes do Aristóteles concordam ambos,
que podem parecer inicialmente, pois digamos, que Sócrates existe. Platão,
o início do ar de Aristóteles, (1): o bem ou um platônico, poderia agora
é unívoco se e somente se o ser é insistir que o que Aristóteles aceita
unívoco, é o início de um diálogo para Sócrates, ele nega para as
antes que uma conclusão Formas platônicas, a saber, a
estabelecida. (Para mais a respeito existência. Se fosse algo outro que o
dos modos possíveis de desdobrar o mesmo atributo que Sócrates
argumento de Aristóteles contra a manifesta, então Aristóteles deveria
univocidade do bem, ver Shields, presumivelmente aceitar também
1999, p. 194-216). que a sentença “Sócrates existe,

Na verdade, podemos muito bem ten-


tar, neste momento, virar a premissa
(1) de Aristóteles contra ele, não mas as Formas não existem” é de fato
objetando a ela, mas antes a equívoca, indo na direção, embora
aceitando e então rejeitando a talvez não de modo tão aberto, de “o
combinação de (2) e (3). Suponha que rei carregou um saco de grãos e as
concedamos (1), mas insista então, esperanças da nação em seus
tanto quanto pode ser defendido o ombros” ou “as aspirações de Lady
esquema categorial de Aristóteles, ele Elizabeth foram destruídas e assim foi
o é somente porque todos os tipos seu melhor cristal”. Novamente,
últimos que ele identifica são talvez Aristóteles se mostre vitorioso
precisamente tipos de coisas ao argumentar em prol de uma não
existentes, de modo que o ser é dito univocidade enrustida da existência,
univocamente. Há um ponto neste mas não é de modo algum óbvio que
tipo de defesa. Suponha, por ele prevalecerá. Ao contrário, o
exemplo, que Platão argumente que platônico tem razão em insistir que

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toda fala de sentidos diferentes da refutações ligeiras.


existência os mostrará muito tênue
para serem discernidos e ficarão es- CONCLUSÕES
tabelecidos, se o forem, somente com
base em teorias que se mostrarão elas Platão e Aristóteles passaram duas
próprias abertas a uma objeção décadas, com encontros e
independente. (Para mais a respeito desencontros, em mútua companhia.
das perspectivas de estabelecer a não Não eram, obviamente, os únicos
univocidade do ser, ver Shields, 1999, membros da Academia e toda história
p. 217-66.) exaustiva desta escola que tenha se

Agora, de acordo com esta linha centrado exclusivamente nos dois


de resposta, se o ser realmente está, membros que a posteridade
como afirma (1), precisamente na favoreceu ficaria terrivelmente
mesma situação que o bem quanto à incompleta, por mais plausível que
univocidade, então se verá, contra seja o julgamento da história de sua
Aristóteles e a favor de Platão, que o proemi- nência. Contudo, fica claro a
bem também é unívoco. Aqui tam- partir de seus escritos que nos foram
bém, então, não temos uma refutação transmitidos que as interações entre
de Platão nem mesmo um empate Platão e Aristóteles tiveram fortes
entre Platão e Aristóteles, mas sim o consequências para ambos. Suas críti-
início de uma contínua investigação cas não são somente de grande
profunda e decididamente difícil alcance, mas também sem dúvida
sobre as naturezas do ser e do bem e mutuamente edificantes. Quando
da relação, se houver alguma, entre tomamos somente duas fontes de
eles. É correto dizer que Aristóteles desacordo – as Suposições de Platão
apresenta um desafio importante a do Um de Muitos e da Univocidade –,
uma tese central de Platão vemos diretamente que Aristóteles
relativamente à natureza do bem, pôs seu dedo em algo profundo e
mas é igualmente correto observar decisivo na metafísica platônica, bem
que Platão não precisa ser esmagado como vemos, ao mesmo tempo que
pelo desafio. Ao invés disso, como Platão não precisa meramente ceder
bem se pode imaginar, seus pontos de às objeções de Aristóteles contra ele.
vistas opostos neste tópico se Ao contrário, as críticas de Aristóteles,
mostram resistentes a primeiras embora por vezes contundentes,

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mostram-se menos imediatamente


decisivas do que alguns supuseram,
mesmo quando põem desafios Cherniss, H. (1944). Aristotle’s
profundos e inteligentes a algumas Criticisms of Plato and the Academy.
das teses de Platão mais Baltimore: Johns Hopkins Uni- versity
características e veneradas. Press.
Consequentemente, se os que
seguem Platão tiverem dificuldade Düring, I. (1957).Aristotle in the
para enfrentar todas as objeções de Ancient Biographi- cal Tradition.
Aristóteles, os que acham que as Stockholm: Amqvist and Wiksell.
observações frequentemente argutas Düring, I. and Owen, G. E. L. (1960).
de Aristóteles são imediatamente Aristotle and Plato in the Mid-Fourth
decisivas ficarão desagradavelmente Century. Stockholm: Almqvist and
surpresos, se fracassarem ao dar a Wiksell.
Platão o que lhe é devido.
Fine, G. (1980). The one over many.
Aprendemos um bom bocado Philosophical Review 89, pp. 197-240.
sobre Platão com Aristóteles e um
bom bocado sobre Aristóteles com (1993). On Ideas: Aristotle’s Criticisms
Platão. De ambos, individualmente e of
então novamente em comum,
aprendemos como a filosofia pode ser Plato’s Theory ofForms. Oxford:
feita em seu mais vivido zênite Oxford University Press.
dialético.
(2003). Plato and Aristotle on form
NOTA and

Todas as traduções são do autor. substance. In G. Fine (ed.) Plato on


Knowledge
REFERÊNCIAS E LEITURA
COMPLEMENTAR and Forms (pp. 397-425). Oxford:
Oxford University Press.
Bumet, J. (1928). Platonism. Berkeley:
University of Califórnia Press. Guthrie, W K. C. (1981). Aristotle: an
encounter. InA History ofGreek

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Philosophy, vol. 6 (pp. 4-26). destes três séculos? Quais de suas


Cambridge: Cambridge University obras volumosas eram estudadas com
Press. mais afinco e quais de suas
metodologias e teorias tiveram uma
Owen, G. E. L. (1968). Dialectic and sobrevida mais forte nessa época? A
eristic in the treatment of the forms. fim de abordar estas grandes
In G. E. L. Owen (ed.) Aristotle on questões, precisamos começar com
Dialectic: The Topics (pp. 103-25). um esboço da história interna da
Oxford: Oxford University Press. Academia pós-Platônica e de sua
relação com os novos
Shields, C. (1999). Order in desenvolvimentos na filosofia
Multiplicity: Ho- monymy in the constituída pelo primeiro pirronismo,
Philosophy of Aristotle. Oxford: Oxford epicu- rismo e estoicismo.
University Press.
No momento de sua morte, no
(2003). Classical Philosophy: A ano de 347, o legado filosófico de
Contem- Platão consistia na maior parte dos
diálogos que foram transmitidos sob
porary Introduction (ver caps. 2 e 3). seu nome e incluía também o
New York: Routledge. ensinamento oral que ele conduziu
com seus associados na Academia. A
fecundida- de desse legado era
enorme, mas ainda não fornecia uma
28 sinopse sistemática e clara de algo
suficientemente unificado para ser
Platão e a filosofia helenística chamado de platonismo. Platão não
havia identificado suas teses próprias
A. LONG em seus diálogos e seu ensinamento
oral foi provavelmente mais
Como Platão foi interpretado e especulativo que firmemente doutri-
utilizado pelos filósofos da época nai. Até cerca 274 a.C., seus
helenística, isto é, no período da sucessores na Academia dedicaram-
cultura grega que vai de cerca de 322 se principalmente a codificar um
a.C 31 a.C.? Quem eram seus ad- conjunto de posições que tomaram
miradores e seus detratores ao longo como platônicas ou como doutrinas

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platonizantes, um projeto que lemsticos. Todavia, antes de instigar


também podemos observar que um desenvolvimento contínuo do
Aristóteles o conduzia no interior de platonismo doutrinai, ela foi
sua própria escola (ver o capítulo interrompida dentro da própria
Aprendendo sobre Platão com Academia pela virada dramática da
Aristóteles). Os temas principais desse escola, sob a liderança de Arcesilau,
interesse exegético na direção de interpretar a mensagem
filosófica de Platão como uma
eram a metafísica e a cosmologia, dialética inteiramente exploratória,
sendo que a obra platônica que da qual não se podiam afirmar
recebia mais atenção, sem surpresas, doutrinas substantivas. Nos próximos
era o Timeu, pois, aqui, se em algum dois séculos, os filósofos acadêmicos
lugar, os estudiosos de Platão pa- seriam caracterizados como “os que
reciam ter um relato abrangente da suspendem o julgamento sobre tudo”
estrutura do mundo e da condição ou, em outra linguagem, como
humana na pena de seu mestre. O céticos.
Timeu foi o tema de um comentário
pelo filósofo da Academia Crântor, Veremos mais adiante as
que escreveu no final do quarto motivações que levaram a essa
século (ver Dillon, 2003). Ao longo de notável mudança. O que se deve
todo o período helenístico, o discurso enfatizar pelo momento é que o
que Platão põe na voz do astrônomo
(provavelmente fictício) Timeu, a
despeito de sua dificuldade e de não
reivindicar exatidão, se mostraria ceticismo acadêmico, apesar de sua
como a principal fonte para os relatos reverência oficial a Platão, foi um
em compêndio do pensamento de desenvolvimento inovador na
Platão. filosofia antes da continuação da
exegese acadêmica que havia
A primeira codificação feita pela começado antes do período que nós
Academia da filosofia de Platão, modernos denominamos
executada principalmente por “helenismo”.
Espeusipo e Xenócrates, estava
provavelmente disponível sob a forma Basicamente, as questões com
de um livro para todos os filósofos he- que comecei este capítulo são sobre

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como Platão foi visto pelos membros se concentrava na identificação da


dos quatro movimentos filosóficos doutrina sistemática interna aos
que são frequentemente referidos diálogos, dando origem aos
conjuntamente como a filosofia movimentos que chamamos de
helenística: primeiro pirronismo, platonismo médio e neoplatonismo.
epicurismo, estoicismo e a Academia
cética. Todos estes movimentos Meu foco neste capítulo, assim,
devem sua origem a professores caris- restringe-se grandemente ao período
máticos e próximos dos no qual Platão não era estudado
contemporâneos: Pirro, Epicuro, sistematicamente pelos filósofos,
Zenão – os fundadores do estoicismo nem mesmo internamente à própria
– e Arcesilau. Somente o último Academia. Platão tem uma presença
destes quatro reivindicava afinidade relevante na filosofia helemstica, mas
com Platão; porém, enquanto o de modo a gerar uma grande sombra
primeiro pirronismo e o epicurismo sem ser visível frontalmente em sua
são marcadamente anti-platônicos inteira identidade. Esta obscuridade
em suas respectivas visões de mundo relativa – o que não é a mesma coisa
e metodologias, Zenão, embora hostil que o fato de seu
à metafísica de Platão, fez do estoi-
cismo uma filosofia que apreendia renome nunca ser questionado – é
bastante do legado de Platão, com o devida não somente ao domínio das
passar dos anos, a ponto que Antíoco, novas filosofias helemsticas, mas
um acadêmico eminente do tempo de também ao estado altamente
Cícero, ter afirmado que as principais fragmentário de nossa evidência (ver
diferenças entre a Academia e o o capítulo Interpretando Platão).
estoicismo eram terminológicas e não Podemos inferir um recurso positivo
substantivas (ver Cícero, De legibus ou negativo aos conceitos platônicos
1.54-5). Nesta época, a fase com mais frequência do que podemos
rigorosamente cética da Academia atribuir reconhecimento explícito a
tinha em grande parte perdido o eles, bem como os principais céticos
fôlego. A partir de então, na medida acadêmicos (Arcesilau e Carneades)
em que a época helemstica era evitaram publicar, provavelmente em
substituída pelo período imperial imitação a Sócrates. O que todos os
romano, a maioria dos platônicos filósofos neste período fizeram com
retomou a um estudo de Platão que Platão não é diferente do modo como

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nós mesmos usamos um pensador procederem assim incluía claramente


importante do passado. Embora os um forte desejo de recuperar a
céticos acadêmicos fossem grande figura de Sócrates das mãos
certamente sinceros ao se dos estoicos e o situar exclusivamente
reivindicarem como os verdadeiros na Academia. No epicurismo, por
herdeiros de Platão, eles tinham a sua outro lado, Sócrates era o alvo de uma
própria e complexa agenda. Quanto crítica inexorável, bem como o
às outras escolas, elas criticaram e se divulgador de Pirro – Timon –
basearam em Platão sempre que ironizava-o em seus versos satíricos,
Platão tinha algo a dizer que era em conformidade com seu projeto de
relevante para as questões internas
aos seus próprios pensamentos e não
por um interesse em o interpretar por
ele próprio. solapar todo outro filósofo exceto o
próprio Pirro.
A condição de Platão na filosofia
helemstica complica-se também Embora os filósofos helemsticos
pelas posições que as novas escolas retirassem a maior parte de suas
adotaram em referência a Sócrates. reflexões sobre Sócrates de Platão,
Juntamente com Xenofonte, mas em eles identificavam principalmente seu
muito maior medida, Platão era a pensamento e metodologia, como
principal fonte para a vida e a filosofia Aristóteles já o fizera, com referência
de Sócrates. Ao longo de toda a sua ao Sócrates que Platão apresenta em
história, o estoicismo considerou a si seus diálogos que tomamos como
mesmo como “socrático” como precedendo a República e outras
distinto de ser confessa- damente obras, Platão se servindo nestas
“platônico”, mas Sócrates, em sua últimas de Sócrates para apresentar
figura declarada como alguém que suas próprias teorias. Porque os
nada sabia e que se dedicava ao filósofos helemsticos separaram
exame crítico das opiniões das outras fortemente Sócrates de Platão (vou
pessoas, também era a principal seguir isso), mas não quero por isso
inspiração dos céticos acadêmicos. De dar a entender que este
fato, estes filósofos, a começar com procedimento tem forte base no que
Arcesilau, tinham como principal alvo tange ao Sócrates histórico, pois
os es- toicos. A motivação deles para duvido fortemente que o que Platão

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atribuiu a Sócrates possa ser inteira- ênfase que Arcesilau “possuía os


mente desconectado do Platão autor livros de Platão” (DL 4.33), o que
e de suas intenções filosóficas. talvez signifique não simplesmente
que ele tinha uma edição completa de
Havia, obviamente, uma Platão, mas que tinha adquirido sua
presença maior de Platão na cultura biblioteca pessoal, algo
helenística do que pode ser
vislumbrado pelo estudo dos docu- que estaria inteiramente de acordo
mentos fragmentários dos filósofos com sua condição de líder da
deste período. Como homem ele era Academia.
um tema óbvio para os biógrafos e
seus diálogos parecem ter adquirido PLATÃO NO ESTOICISMO
instantaneamente a condição de
clássicos (ver o capítulo A Vida de Quando Zenão Cipriota chegou a
Platão de Atenas). O corpus deles que Atenas por volta de 310 a.C., ele foi
possuímos estava presumivelmente inicialmente atraído aos cínicos, que
disponível no comércio de livros em se referiam a Sócrates e ao seu
uma data bem antiga. Por volta de seguidor Antístenes, bem como a
300 a.C. provavelmente já incluía Diógenes em seu ascetismo e
muitas das obras espúrias que os desprezo pelos valores puramente
editores antigos transmitiram sob o convencionais. Diógenes e Platão,
nome de Platão, a maior das quais foi segundo nossas fontes, nutriam uma
provavelmente escrita dentro da antipatia mútua, o que ajuda a
Academia, talvez como exercícios dos explicar o fato que a mais famosa e
estudantes. A atual divisão dos provavelmente mais antiga obra de
diálogos em tetralogias foi obra de Zenão, a República, parece ser de
Trasilo, escritor do início do Império influência cínica, consistindo em uma
romano, mas Aristófanes de Bizâncio réplica utópica radical à obra de
já os havia classificado, para a famosa Platão de mesmo nome.
Biblioteca de Alexandria, em quinze
trilogias (Diógenes Laércio [DL] 3.62). Temos somente um esboço
Membros da Academia podem ainda sumário do conteúdo da República de
ter feito classificações mais antigas. A Zenão, mas o que resta dela é
Vida de Arcesilau composta por suficiente para mostrar a relação
Diógenes de Laércio reporta com crítica da obra com o original

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platônico (ver Long e Sedley, 1987:


cAp. 67). Zenão aceitava o objetivo de
Platão de uma comunidade significativos. Eles reduziram as
completamente em concórdia, mas Formas platônicas a meras
foi muito além de Platão em suas concepções; negaram a existência do
propostas para obter a unificação incorpóreo e rejeitaram a
cívica. Ele eliminou a estrutura imortalidade da alma, ao mesmo
tripartite de classes, imaginando uma tempo em que aceitavam que as
cidadania masculina e feminina que almas virtuosas têm uma duração
seria totalmente sábia e virtuosa, sem limitada post-mortem. Se tomarmos o
requerer estatutos legais e que estaria platonismo como representando uma
cimentando pelo amor homoerótico e visão do mundo físico como a cópia
heterossexual. Ele estendeu a imperfeita de um original ideal, um
abolição de Platão da família nuclear e mundo de parecer antes que de
do uso da moeda para todos no completamente ser, objeto de opinião
Estado, defendendo uma antes que cognoscí- vel, com um autor
indumentária única combinada com divino transcendente, o estoicismo se
uma nudez parcial. A razão por trás da apresenta como uma filosofia
República de Zenão era que o firmemente fisicalista e deste mundo.
conhecimento moral é suficiente para Há certamente diferenças profundas,
igualar todas as outras diferenças mas que não são suficientes para
entre as pessoas e para lhes prover excluir do estoicismo outras áreas de
tudo o que precisam de modo a forte débito e afinidade com Platão.
florescer como indivíduos e como Para identificar estes empréstimos
comunidades. criativos, devemos começar revendo
as influências formativas que os
As duas Repúblicas, com sua estoicos derivaram de suas reflexões
aprovação implícita de muitas sobre os diálogos socráticos de Platão.
práticas espartanas, não divergem o
suficiente para fazer da obra de Zenão Foi provavelmente a fidelidade
um ataque massivo a Platão. Contudo, de Zenão a Sócrates que o levou a
Zenão e a tradição estoica a que ele inscrever-se como estudante de
deu início deixaram marcadas suas Pólemon, líder da Academia por volta
diferenças com Platão de muitos de 314 a 276. O pouco que sabemos
outros modos sobre Pólemon sugere que seus

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interesses principais eram teoria e também veneravam, os diálogos


prática ética, antes que metafísica, socráticos de Platão exibem Sócrates
embora seu predecessor Xenócrates argumentando em prol de
não tenha negligenciado a ética. Se, proposições idênticas a muito que é
como parece provável, Pólemon se atribuído a Antístenes, inclusive,
distinguia entre os primeiros sobretudo, a tese que a virtude é
acadêmicos por ter começado a suficiente para a felicidade.
enfatizar os elementos socráticos nos Consequentemente, há toda razão
diálogos de Platão, a rigorosa adoção para pensar que os diálogos
por parte de Arcesilau desta posição platônicos que acabei de mencionar
perde um pouco de sua ruptura eram centrais à filosofia estoica em
abrupta com a obra imediatamente seus anos de formação.
precedente da Academia.
As doutrinas mais fundamentais
Muito da ética estoica é uma da ética estoica eram:
formalização criativa das posições em
prol das quais argumenta o Sócrates 1. a restrição sem qualificação do
de Platão em diálogos como a bem à excelência moral;
Apologia, Górgias, Protágoras e, es- 2. como um corolário de (1), a
pecialmente, o Eutidemo. Isso não indiferença da felicidade a todas as
quer dizer que Zenão e seus vantagens ou desvantagens
seguidores retiraram o tom socrático corpóreas ou externas
de sua ética somente de Platão e (consideradas convencionalmente
Pólemon (sobre a provável influência como boas ou más,
de Pólemon, ver Dillon, 2003: cAp. 4). respectivamente);
O que sabemos de Antístenes, por 3. a necessidade e suficiência da
mais exíguo que seja, prenuncia de excelência ética para a felicidade;
modo notável a doutrina estoica, 4. a concepção da excelência ética
especialmente em seu foco na como um tipo de conhecimento ou
técnica.
autossuficiência completa e na
invulnerabilidade que a virtude e a Não pode haver dúvida que, ao
sabedoria engendram (DL 6.10-13). defender estas doutrinas, os estoicos
Porém, embora Antístenes tenha sido se acreditavam autenticamente
um predecessor que os estoicos socráticos, bem como pouca dúvida

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que, ao proceder assim, eles se Este argumento forneceu a Zenão


baseavam especialmente no principal não somente a autoridade socrática
argumento de Sócrates no Eutidemo para as doutrinas que delineei acima;
de Platão 278e-281e (ver Long e mais especificamente, deu-lhe apoio
Sedley, 1996, p. 23- 32 e Striker, para seu conceito essencial de coisas
1996). “intermediárias” ou “indiferentes”,
nem boas nem más em si mesmas,
Aí, Sócrates tenta convencer seu mas materiais que a sabedoria ou o
interlocutor que o fundamento da conhecimento ético usa bem.
felicidade é simples e exclusivamente Ademais, é altamente provável que
o conhecimento ou a sabedoria. uma ambigüidade crucial ou
Todos os outros assim chamados equivocação no argumento ajudou a
bens, como a riqueza, a saúde e a alimentar uma grande discordância
honra, são benéficos e superiores aos entre Zenão e seu discípulo principal
seus opostos se e somente se forem Aristo.
corretamente usados, isto é
sabiamente e com conhecimento (ver De acordo com Zenão, embora
o capítulo Os Paradoxos Socráticos). somente a excelência moral seja
De outro modo, são mais danosos que estritamente boa e constitutiva da
seus opostos. Tampouco a riqueza e felicidade e somente falhas morais
similares, por si só, têm qualquer sejam estritamente más e constituti-
valor positivo, como tampouco a vas da miséria, coisas indiferentes
pobreza e similares, por si só, têm como a saúde e a riqueza têm um
qualquer valor negativo. Sócrates valor positivo e seus opostos têm um
conclui: valor negativo. Aristo discordava. Ele
rejeitou as categorias de Zenão das
coisas indiferentes “preferíveis” e
“não preferíveis”, sustentando que as
Das outras coisas [isto é, tudo razões para selecionar um em lugar do
exceto sabedoria e ignorância], outro não era em nada intrínseco ao
nenhum é bom ou mau, mas valor dos próprios itens, mas
destas duas coisas, uma – a unicamente uma decisão sábia ou
sabedoria – é boa e a outra – a com conhecimento. A posição de
ignorância-é má. (Euthd. 281e3- Aristo era heterodoxa (como também
5) o era sua restrição da filosofia estoica

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à ética, em imitação a Sócrates). porque ele mostra que os estoicos


Contudo, ele podia dizer que era eram criativos, bem como imitativos
perfeitamente fiel à letra do em sua apropriação do Sócrates de
argumento de Sócrates no Eutidemo, Platão.
no qual nenhum valor intrínseco é
atribuído a coisas como a riqueza e Como mencionei, o Timeu era a
nenhum valor negativo intrínseco a obra de Platão mais em evidência para
coisas como a pobreza. Zenão, por seus sucessores na Academia. Ela
outro lado, podia dizer que, a despeito também forneceu aos estoicos,
da afirmação de Sócrates a este embora não exclusiva ou talvez
efeito, Sócrates também argumentou diretamente, muitas de suas ideias
que a riqueza e similares usados com principais na cosmologia e na
sabedoria eram bens superiores a teologia. Para entrar nesse assunto
seus opostos (ver o capítulo O complexo, cito o seguinte relato:
Conceito de Bem em Platão). Tal como
está formulado, o argumento de Os estoicos afirmam que o fogo
Sócrates é equívoco entre a posição é o elemento das coisas que
que a saúde e similares não têm valor existem, assim como Heráclito o
intrínseco (a doutrina de Aristo) e a diz, e seus princípios são a
posição que eles são bens maiores matéria e deus, como afirma
que seus Platão. Zenão, porém, afirma
que ambos são corpos, tanto o
opostos se forem bem usados. A que atua quanto aquilo que
solução de Zenão à equivocidade sofre o ato, ao passo que Platão
consistiu em negar que eles fossem afirma que a causa primária
um bem, mas atribui-lhes um “valor ativa é incorpórea. (Aristócles,
preferencial”. citado por Eusébio, Praeparatio
Evangeica 15, 816d = Stoicorum
Há outros contextos socráticos Veterum Fragmenta 1.98, ed.
em Platão em que se basearam os von Amim)
estoicos para elaborar suas próprias
ética e psicologia moral (ver Sedley, O apelo dos estoicos a Heráclito como
1993; Strfkere, 1996 e Vander Waert, um precursor da cosmologia deles
1994). Em razão da brevidade, vou dar está bem atestado e é história padrão,
este único exemplo, escolhendo-o mas é apenas recentemente que os

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estudiosos reconheceram, de modo chegado a esta interpretação


adequado, a dívida estoica com o altamente revisionista
Timeu ou, para ser mais preciso, aos simplesmente por sua própria
modos pelos quais este texto era leitura do Timeu. Ele
explicado no primeiro período certamente deve estar dando
helenístico (ver Reydams-Schils, 1999: eco a um modo pelo qual o texto
cAp. 1). Platão, obviamente, não era apresentado na época na
afirma literalmente que o mundo con- escola de Platão – uma hipótese
siste em princípios ativo e passivo, a que explicaria também,
saber: deus e matéria, confortavelmente, como a dou-
respectivamente. Esta é uma trina da matéria – deus passou
descrição exata da posição estoica. no devido momento ao
Contudo, em um compêndio estoicismo de Zenão, pupilo de
provavelmente helenístico das Pólemon. (1998, p. 349)
doutrinas de Platão, deus e matéria
Os intérpretes do Timeu
enfrentavam muitos problemas. A
cosmologia que Timeu elabora inclui
são nomeados como seus princípios, uma tríade de princípios:
com o último sendo caracterizado,
como no es- toicismo, como “sem 1. o Demiurgo divino e benevolente;
forma” e o primeiro como “mente” ou 2. a Forma do Ser Vivo, que o
“causa” (DL 3.69). É isso uma projeção Demiurgo toma como seu modelo
do estoicismo em Platão? ideal para criar a Alma-do-Mundo e
Dificilmente, porque Teofrasto, o Corpo-do-Mundo, e
contemporâneo mais idoso de Zenão 3. o misterioso Receptáculo, no qual
no Liceu, já havia dado uma paráfrase o Demiurgo constrói os Elementos
virtualmente idêntica do Timeu e com forma geométrica a partir dos
afirmado também que Platão liga o traços físicos presentes antes do
princípio causai ativo ao “poder do cosmos ter sido criado.
deus e do bem” (ver Teofrasto fr. 230,
em Fortenbaugh et al. 1992). Como O ato divino de criação deve ser
observa Sedley, entendido literalmente ou apenas
metaforicamente? Qual era a relação
É difícil crer que Teofrasto tenha do Demiurgo com a Forma do Bem ou

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com a Mente cósmica e a Alma-do- esquema, modificado de modo a aco-


Mundo sobre a qual Platão escreve modar o postulado estoico básico,
em outros diálogos tardios? Como segundo o qual somente os corpos
deve ser posto em conceitos o miste- podem entrar em uma interação
rioso Receptáculo? (ver o capítulo O causai. Tomando uma indicação de
Papel da Cosmologia na Filosofia de Heráclito, os estoicos identificaram
Platão). seu princípio causai divino com o que
chamavam “fogo designador”. Ao agir
Não podemos dizer como Platão sobre a matéria, este princípio gera os
teria reagido à redução deste quatro elementos e opera no interior
esquema complexo do cosmos como a Alma-do-Mundo.
Como tal, ele se difunde por toda a
aos princípios gêmeos – deus e matéria do mundo, organizando tudo
matéria –, mas foi uma brilhante de acordo com o que os estoicos cha-
jogada como exercício exegético. Ela mavam “princípios seminais”
permitiu identificar o Demiurgo com a (spermatikoi logoi). (Para a evidência
Forma do Bem, a Alma-do-Mundo e a básica, ver Long e Sedley, 1987: caps.
Mente ou Causa cósmica, enquanto o 44-7.) Vemos aqui como os estoicos
Receptáculo pode ser interpretado de incorporaram as Formas de Platão,
modo mais palatável como a matéria sob a interpretação de pensamentos
puramente plástica sobre a qual age a do deus, à sua cosmologia.
causalidade divina. Quanto às Formas
que o Demiurgo toma como seu Era um dado básico estoico que o
modelo, alguns platônicos as princípio causai divino é totalmente
interpretaram como os pensamentos providencial, organizando o mundo
do deus e esta interpretação pode como uma cidade cósmica para o
recuar até o tempo de Pólemon (ver benefício de seus habitantes divinos e
Dillon, 1977, p. 95). humanos (Ário Dídimo, citado por
Eusébio, Praeparatio Evangãica
O que temos na cosmologia e 15.15.3-5 = Long e Sedley, 1987, p. 67
teologia estoicas (pondo de lado suas L). Platão, no Timeu (30a), atribui ao
noções de conflagração periódica do Demiurgo uma benevolência
mundo e o eterno retorno) é uma irrestrita, e a Alma-do-Mundo
adaptação muito próxima deste racional que ele postula nas Leis
(X.897b) organiza tudo com vistas ao

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melhor. Contudo, Platão não é tão A partir de Zenão, como vimos,


explícito como os estoicos quanto às os estoicos se basearam crítica e
motivações antropocêntricas com as construtivamente em certas obras de
quais ele dota seu Platão: a República, o Eutidemo e
outros diálogos socráticos, o Timeu e
a cosmologia exposta no Livro X das
Leis. De fato, contudo, esta lista
princípio divino. O precursor aqui fornece somente uma impressão
mais óbvio dos estoicos era seletiva da atenção dada ao corpus
Xenofonte (Mem. 4.3), que atribui a platônico. Há boa razão para pensar
Sócrates uma teologia antro- que Zenão estudou atentamente o
pocêntrica direta. Como evidência Teeteto ao desenvolver sua célebre
para isso, Sócrates menciona a teoria da impressão catalética, o
organização das estações, os recursos estado cognitivo que garante uma
da Terra, a inteligência e a linguagem representação perfeitamente
humanas, bem como a provisão de acurada de seu objeto (ver Long,
animais inteiramente para o uso 2002). Sócrates, neste diálogo,
humano. O texto de Xenofonte avançou o modelo da mente como
certamente tinha uma importância uma tabuleta de cera, que retém
capital para os estoicos (ver Sexto impressões de memória de seus obje-
Empírico, M. 9.92-103). Ele também tos de percepção. Zenão retomou
ajuda a explicar como podiam manter este modelo e o adaptou à sua própria
sua professada veneração por teoria das impressões que imprimem
Sócrates ao mesmo tempo em que se com precisão seu objeto fonte na
baseavam tão pesadamente no Timeu mente.
de Platão. Eles sabiam que Sócrates
tinha negado ter ele próprio interesse Um outro diálogo platônico de
na especulação cosmológica, mas eles que podemos estar seguros que os
podiam justificar o apelo deles à cos- estoicos estudaram é o Crátilo. Eles
mologia platônica observando que tinham um intenso interesse nas
Sócrates é ele próprio um ouvinte do origens e estrutura da linguagem,
discurso de Timeu e aprova inclusive, como propuseram, em suas
inteiramente o preâmbulo de seu raízes etimológicas em uma relação
discurso, incentivando-o a continuar mimética entre sons e significações.
(Ti. 29d). Algumas das

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etimologias que eles esboçaram são A psicologia revisionista é um outro


idênticas às que Sócrates avança exemplo forte da permanência de
nesse diálogo e, se estou correto, eles Platão na filosofia helenística. Assim
também se viam como aprimorando como os estoicos em geral conheciam
as teorias da significação que o Crátilo e rejeitaram a teoria das Formas,
explora (ver Long, 2005). também Crisipo não somente
conhecia o modelo tripartite da alma
Ainda mais central ao lance geral em Platão, mas ele fez com ele o que
da filosofia estoica foi a reação crítica bons filósofos em todos os tempos
que Crisipo adotou em relação ao fazem com uma importante teoria
modelo tripar- tite da alma segundo controversa de um prede- cessor: ele
Platão. Ao invés de dividir a alma em a estudou e, tendo-a considerado
uma mente racional e duas faculdades falha, propôs sua alternativa
não racionais, ambição e apetite, altamente criativa como uma
como Platão faz na República, Fedro e admiração às avessas de seu alvo.
Timeu, Crisipo argumentou que uma Tampouco a questão parou aqui. O
alma humana madura é racional de estoico Posidônio, contemporâneo
ponta a ponta, pelo que entendia que mais idoso de Cícero, criticou Crisipo
toda ação e emoção é motivada por por ele ter fracassado em explicar
um juízo de valor (ver Long e Sedley, adequadamente, com sua psicologia
1987: cAp. 65). Ele não negava que unitária, o comportamento irracional.
podia haver conflitos na mente dos Então, Posidônio propôs uma tri-
seres humanos, que podiam agir partição das faculdades da alma,
irracionalmente ou que podiam ser claramente inspirada nas explicações
vencidos pelas paixões. Em tais casos, de Platão. Para os estoicos
o que ocorre, segundo Crisipo, não é posteriores, a teoria de Crisipo con-
uma luta pelo domínio entre as dife- tinuou a ser influente. O ponto que
rentes partes da alma, como Platão importa
propusera; antes, a mente, embora
uma unidade, é capaz de fazer erros
de juízo, casos nos quais, embora seja
racional, ele age contrariamente à para o tema deste capítulo é que
razão normativa e, portanto, ir- virtualmente todos os diálogos de
racionalmente como um todo. Platão foram textos que os estoicos
reconheceram que tinham de estudar

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e de se posicionar diante deles.  embora fosse absolutamente


socrática
Nos primeiros momentos do  de não indicar sua própria
estoicis- mo, o recurso deles a Platão opinião, mas de falar contra o
era provavelmente mais pontual e que alguém afirmava como
polêmico, posta de lado a apropriação sendo sua [isto é, do
cara a eles da personagem de interlocutor] opinião. (De
Sócrates. Para Panécio e Posidônio, oratore 3.67)
bem como, no estoicismo romano,
para Sêneca, Epicteto e Marco Ao invés de buscar nos diálogos
Aurélio, Platão, assim como Sócrates, de Platão uma fonte de filosofia
tinha se tornado uma autoridade doutrinai, a Academia helenística
virtualmente estoica. enfatizou a representação da dialética
crítica dessas obras, nas quais
PLATÃO NO CETICISMO ACADÊMICO Sócrates se põe a questionar e a
refutar seus interlocutores
Enquanto muito das doutrinas obstinados em suas opiniões. Quanto
platônicas encontraram acolhida nos a Platão, defenderam sua postura
círculos estoicos, a Academia cética afirmando que “em suas obras
helenística, como já vimos, atribuía nada é afirmado e há muito argumen-
suas surpreendentes credenciais céti- to a favor e contra, tudo sendo
cas ao próprio Platão. Cícero, falando investigado e nada sendo afirmado
como um acadêmico, assim delineia a como certo” (Cícero, Acadêmica
posição de Arcesilau: 1.46).

Arcesilau, o pupilo de Pólemon, Antes de examinar o que se pode


foi o primeiro a derivar este fazer com esta leitura de Platão,
ponto principal dos vários livros precisamos rever o contexto filosófico
de Platão e dos discursos em que se encontrava Arcesilau como
socráticos – que não há nada o chefe da Academia. A Academia era
que os sentidos ou a mente a primeira escola de filosofia de
possa apreender... Diz-se que Atenas, mas, no início do terceiro
ele depreciava todo critério da século a.C., sua posição como tal
mente e dos sentidos, tendo estava sob considerável ataque. O
iniciado a prática Liceu aristotélico, sob a direção de

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Teofrasto, era seu rival mais antigo, 236) o exprime de modo agudo, “tudo
mas os estudantes de filosofia tinham o que o platonismo de Pólemon podia
agora muitas outras opções, inclusive, fazer, Zenão, ao que parece, podia
em especial, o Jardim epicureu e o fazer melhor”. A resposta de Arcesilau
estoicismo de Zenão. Eles também consistiu em assumir o tom dialético
podiam tornar-se discípulos de Pirro dos diálogos platônicos. Não se deve,
ou buscar os cínicos, ci- renaicos ou porém, julgar que, ao proceder assim,
dialéticos como Diodoro Crono. O que valia-se de um mero estratagema. As
estava em questão aqui não era sim- objeções que lançou contra a
ples ou principalmente uma epistemologia de Zenão tinham
competição por discípulos, mas antes grande força. Tudo o que sabemos
uma pletora de filosofias em sobre Arcesilau indica não somente
competição, cada uma reivindicando uma virtuosidade dialética, mas
seus predecessores e com suas também uma honestidade filosófica.
receitas próprias para se viver uma Temos de supor que sua defesa da
vida racional. Como devia Arcesilau, suspensão do julgamento estava
enquanto um platônico, posicionar a fundada na convicção sincera que,
si mesmo e a sua escola de longa
tradição?

Um dos fatos mais bem atestados até então, todas as alegações de


sobre Arcesilau é sua controvérsia certeza filosófica (especialmente as
com Zenão, contemporâneo e mais avançadas pelos es- toicos) não
velho, sobre a reivindicação estoica estavam asseguradas. Segundo
de ter identificado um critério nossas fontes, ele retirou grande
infalível da verdade. Zenão, como apoio para sua posição não somente
vimos, estava longe de ser um da profissão de ignorância de
membro de cartei- rinha do Sócrates e do estilo refutati- vo de
platonismo, mas, como Arcesilau, argumentar, mas também invocando
tinha estudado com Pólemon e Demócrito e outros filósofos
incorporado ao seu sistema estoico anteriores que supostamente
não somente o principal teor da ética negaram a possibilidade de
socrática de Platão, mas também uma conhecimento (Cícero, Acadêmica
cosmologia fortemente influenciada 1.44).
pelo Timeu. Como Dillon (2003, p.

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A identidade filosófica que compreenda a questão como se


Arcesilau adotou e legou a seus referindo à acuidade interpretativa ao
sucessores, em particular a se fazer de Sócrates ou Platão um
Carneades, era cética no sentido precursor preciso do ceticismo
grego original desta palavra, que acadêmico, a resposta é claramente
significa investigação ou exploração. negativa. Os diálogos platônicos não
Os acadêmicos não se denominavam prenunciam a argumentação
a si mesmos céticos – esta acadêmica pro e contra com vistas a
autodescrição pertence aos inculcar a suspensão do juízo.
pirrônicos tardios – e sairia fora dos Tampouco o Sócrates de Platão
limites deste capítulo explorar em mascara consistentemente suas
que medida eles se comprometeram opiniões ou põe em dúvida, em geral,
com a tese que nada pode ser a possibilidade do conhecimento.
conhecido com segurança. Minha Nem Sócrates nem Platão foram
opinião é que a defesa deles da céticos. Porém, é um erro supor que
suspensão do juízo não era vista como Arcesilau reivindicava precisamente
uma posição dogmática, mas como a isso. O
única resposta racional às posições
filosóficas que pode opor-se com ar- que precisamos, ao contrário, é uma
gumentos tão fortes quantos os interpretação de sua posição que
usados em suas defesas. navegue um caminho intermediário,
nem atribuindo erroneamente a
Antigos e modernos se Sócrates e a Platão uma identidade
perguntaram com frequência se cética total nem impondo-lhes uma
Arcesilau estava justificado em relação inautêntica a seus próprios
reivindicar uma linhagem socrática e métodos e perspectiva.
platônica para seu ceticismo (ver
Annas, 1994 e Cooper, 2004). Já Nos diálogos socráticos de
observamos as referências de Cícero, Platão, Sócrates frequentemente se
em defesa de Arcesilau, à prática envolve em uma argumentação ad
dialética de Sócrates (pondo à prova hominem, submete as opiniões de
as opiniões de seus interlocutores e seus interlocutores a exame e as
suspendendo a sua), bem como aos mostra como respostas inadequadas
resultados inconclusivos a que às suas questões “o que é XI” (ver o
chegam os diálogos de Platão. Caso se capítulo O Elenchus Socrático).

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Diálogos como o Eutifro ou o Laques puramente aporético.


levam à conclusão que os
interlocutores de Sócrates não Não é difícil identificar outros
conhecem o que alegam conhecer. diálogos platônicos que poderiam
Arcesilau estava claramente apoiar a avaliação de Arcesilau dos
autorizado a tomar tal material para procedimentos e orientação quase-
exibir um Sócrates que poderia figurar céticos de Platão. O Parmênides
como um modelo para sua própria inclui-se entre eles com sua crítica
prática dialética com as filosofias sem remorsos da Teoria das Formas e
doutrinais, bem como ele era quase com suas antinomias na conclusão
certamente inovador ao fazer da que continuam a intrigar os leitores
profissão de ignorância por parte de de Platão. Muito provavelmente ele
Sócrates uma característica básica da acenava também para a República e
filosofia socrática, tal como para o
apresentada por Platão – uma
característica em relação à qual deve
se posicionar todo intérprete desta
personagem (verLong, 1996, p. 11- Fédon, nos quais a falibilidade dos
16). sentidos é enfatizada com força. Ele
também deve ter tido, enquanto um
Devemos supor que Arcesilau platônico, boa razão para insistir
considerava o Teeteto uma exibição nestas passagens como uma arma
exemplar da posição de Sócrates que contra os epicuristas e estoicos com
nada-sei e dialética exploratória, bem suas doutrinas respectivas de um
como, também, uma firme indicação critério perceptivo da verdade.
da reticência epistêmica do próprio
Platão. Os fracassos repetidos desse Não podemos dizer como ele
diálogo em encontrar uma definição teria respondido à óbvia objeção que
satisfatória do conhecimento será Platão, por meio de seus porta-vozes
sempre um desafio para os centrais, dá frequentemente voz a
intérpretes de Platão. Se, como ideias que bem substantivas e
penso, Zenão retirava do Teeteto uma mutuamente consistentes para serem
doutrina positiva, Arcesilau terá tido consideradas como temas de fala com
uma razão suplementar para ler este os quais o autor não se compromete
diálogo como um exercício de modo algum. Ao final, a profissão

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de Arcesilau de ser um platônico da filosofia helemstica de Platão.


genuíno deve ser vista como uma Como Sócrates e Arcesilau, Pirro não
leitura seletiva e unilateral dos teve nenhuma obra publicada de seu
diálogos. Este juízo, todavia, é uma pensamento. O que sabemos provém
representação da filosofia de Platão mais diretamente da obra
não menos acurada do que sua fragmentária de Timon,
redução a um corpo codificado
doutrinário. Arcesilau era descrito na seu principal seguidor (ver Long
Antiguidade como “sendo o primeiro 1978). Não há como dizer se Pirro
a perturbar o discurso transmitido por discutiu Platão. Timon, todavia, deu
Platão e, por meio de questão e proeminência a Platão e a Arcesilau
resposta, a o tornar mais polêmico” em sua sátira intitulada Silloi (versos
(DL 4.28). Há um modo muito mais ferinos). O propósito desta poesia
caritativo e útil para fazer este ponto: notável era fazer o elogio de Pirro, dar
Arcesilau foi o primeiro pensador a uma aprovação parcial aos poucos
compreender inteiramente o filósofos que já mostraram tendências
resultado supremo de Platão como o céticas e desmascarar todos os
autor de obras que exibem a prática outros.
de se envolver na discussão filosófica
no mais alto nível. Ao pôr o foco nos O núcleo do pensamento de Pirro
diálogos platônicos como demonstra- é um assunto controverso que não
ções de como perguntar e responder precisamos discutir aqui. Da
a questões filosóficas, Arcesilau se perspectiva de Timon, Pirro alcançou
revela como um pioneiro genuíno do um tipo de vida que era único por sua
filosofar moderno; e é isso, antes que tranquilidade e libertação do que ele
seu ceticismo, que lhe dá a condição chama “paixões, opinião e legislação
de ser um platônico autêntico. fútíl” (fr. 9).1 Pirro, ao que parece,
abandonou completamente a
PLATÃO NO PRIMEIRO PIRRONISMO “investigação” (o objetivo tradicional
da filosofia antiga) por conta da
A tradição antiga considerou Pirro, convicção que a natureza objetiva das
não Arcesilau, o criador do ceticismo coisas é completamente
grego. Volto-me somente agora para indeterminável. Podemos inferir que
Pirro porque sua relevância a este todo interesse que teve por Platão,
capítulo é menos central à recepção seja como fonte de doutrina seja

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como encorajamento à especulação,


foi inteiramente negativo.
seus interesses à ética, ao passo que
Como divulgador de Pirro, Timon Platão o representa como
serviu-se da sátira e da paródia para discorrendo também sobre tópicos de
enfatizar a pretensão e a futüidade lógica e física.
dos filósofos doutrinários. As quatro
passagens que mencionam Platão Não devemos supor que Timon
especificamente são interessantes tenha sido original por aferrar-se à
pelo que revelam por meio de uma metodologia dialógica e à
lereia altamente literária e historicidade de suas personagens.
inteligente. Timon apresenta Platão Suas observações nos fornecem uma
como um “peixe grande” (jogando janela sobre os interesses e as
com seu nome), líder da Academia, percepções de alguns leitores de
com uma voz doce e um modo de Platão no primeiro período
escrever que imita as cigarras (fr. 30). helenístico. Isso também fica
Esta avaliação do estilo de Platão é evidente em sua quarta menção a
uma alusão sutil ao Fedro (258e- Platão: “você tinha tamanha paixão
259d), onde Sócrates invoca um coro por aprender que pagou muito
de cigarras para supervisionar a dinheiro por um pequeno livro e,
discussão do diálogo sobre o falar e o tendo-o como começo, você ensinou
escrever bem. Em uma outra linha a você mesmo ‘escrever um Timeu”’
que joga com o nome de Platão (fr. (fr. 54).
19), Timon acusa-o de dar corpo a
“falsificações fantásticas” Como vimos, o Timeu era o
(peplasmena). Uma das fontes para diálogo de Platão mais
esta linha a cita como apoio ao relato insistentemente estudado. Aqui,
que Górgias e Fédon, ao lerem os Timon se baseia em histórias falsas
diálogos que portam seus nomes, que Platão roubou as ideias do Timeu
negaram que tivessem dito ou de fontes pitagóricas ou de uma obra
escutado o que Platão lhes atribuía. pitagórica composta por Timeu.
Quanto ao Sócrates de Platão, esta
personagem, segundo Timon (fr. 62), Em alguns dos silloi que nos
é um enfeite fictício porque o foram transmitidos, Timon ironiza os
Sócrates histórico limitou filósofos em modos que aludem

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satiricamente a características Se a filosofia de Platão e o platonismo


substantivas de seus pensamentos. não eram os alvos primeiros do
Ele pode ter feito isso também no pirronismo antigo, eles certamente
caso de Platão, mas não temos ocupavam esta posição na tradição
evidência para dizer se fez isso. Sua epicurista. Há evidência direta e
apresentação de Sócrates (fr. 25) indireta para este fato. Epicuro
parece depender em grande medida criticou explicitamente a teoria dos
de Platão, enfatizando “as asserções elementos atômicos avançada no
finamente dirigidas, o escárnio e a Timeu, provavelmente como parte de
ironia”. Ele não chama nem Sócrates um ataque geral contra a teologia e a
nem Arcesilau de cético, pois esta cosmologia platônicas (ver Clay, 1983,
condição pertence, nos Silloi, ex- p. 156-8). A primeira geração de seus
clusivamente a Pirro, mas Timon seguidores escreveu livros contra
estava suficientemente informado da alguns dos diálogos socráticos de
posição cética de Arcesilau para fazê- Platão (ver Long, 1996, p. 9-11).
lo dizer: “vou nadar” Embora suas motivações possam ter
(presumivelmente como um peixe sido mais antissocráticas do que
acadêmico) “em direção a Pirro ou ao especificamente dirigidas contra
torto Diodoro” (fr. 32)2. Platão, o epicurista Colotes também
atacou o Mito de Er no Livro X da
O que parece emergir do República de Platão, sem dúvida
material tan- talizante de Timon é seu porque esse livro aceitava a existência
reconhecimento que os diálogos de post-mortem da alma (ver Einarson e
Platão, em sua época, tinham uma De Lacy, 1967, p. 154-5).
leitura larga e crítica para além de
suas contribuições à filosofia técnica. A evidência indireta da
Como um escritor brilhante que era, hostilidade epicurista a Platão nos
Timon evidentemente apreciava a leva bem mais longe. Como Sedley
virtuosidade literária de Platão e deve (1976, p. 133) corretamente afirma,
ter-se contentado em centrar sua “poucas de suas [de Epicuro] doutri-
sátira no Platão autor mais do que nas maduras não podem ser
tentar uma denúncia explícita do explicadas em algum sentido como
Platão filósofo. reações contra o pla- tonismo”. Entre
estas estão teses epicuristas básicas
PLATÃO NO EPICURISMO como as seguintes: o prazer é o único

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bem intrínseco, o valor da virtude 1.72), Epicuro foi apresentado ao


para a vida feliz é inteiramente platonismo já em tema idade. Ele o
instrumental, a justiça não tem rejeitou, mas o platonismo lhe
realidade independente das normas forneceu o estímulo para desenvolver
contingentes de uma sociedade, to- uma filosofia que, para o resto da
das as percepções são verdadeiras, as Antiguidade, se apresentaria como
coisas primárias que existem são o uma alternativa radical não somente
corpo e o vazio e a alma é um ao platonismo, mas também à visão
composto perecível de átomos (ver o de mundo com propósitos divinos e
capítulo Platão e o Prazer como o Bem fundada na mente avançada por
Humano). O hedonismo, o fisicalismo Aristóteles e pelos estoicos. De uma
e o empiricismo epicuristas são perspectiva geral, estas duas escolas,
inteiramente antitéticos à ética, assim como o platonismo, eram
metafísica, epistemologia e psicologia frequentemente percebidas (e com
que Platão parece aprovar nos razão) como gerando uma frente
diálogos que aparentemente contêm unida contra o materialismo
sua filosofia mais matura. hedonista dos epicuristas.

O fato que Epicuro discorde funda- Embora a oposição de Epicuro a


mentalmente de Platão não implica, Platão esteja implícita em quase todas
obviamente, que ele não estude as partes de sua filosofia, vou
cuidadosamente os diálogos e restringir-me aqui à posição que ele
aprenda com eles. O tratamento que adotou em relação à cosmologia e à
dá ao prazer, por exemplo, trai a teologia do Timeu, pois o epicurismo
influência do Filebo, bem como sua diverge de modo mais notável do
teoria platonismo em sua insistência que os
seres humanos vivem em um universo
puramente mecânico que nada tem a
ver com o desígnio inteligente e a
da justiça implica sua rejeição providência divina. Graças a Lucrécio,
refletida da concepção platônica de podemos inferir que o próprio Epicuro
uma Forma ideal que existe deu início a um ataque geral ao Timeu
objetivamente. Por meio do en- e, deste modo, aumentou sua crítica
sinamento de Panfilo, um filósofo atestada do atomismo geométrico de
platônico (Cícero, De natura deorum Platão (que é tudo o que ficou como

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seu foco em Platão nos fragmentos (referindo-se às Formas de Platão) e


que nos foram transmitidos de sua destinado a perdurar para sempre,
grande série de livros Da Natureza). graças à bondade de seu criador. Em
contraste, Lucrécio argumenta
Lucrécio nunca se refere a Platão, longamente que:
mas a seus erros cosmológicos que ele
quer expor em seu De rerum natura 1. o mundo não é divino nem eterno;
batem tão exatamente com as 2. os deuses não têm motivação ou
doutrinas do Timeu que sua polêmica modelo para a criação;
era quase certamente dirigida contra 3. ele é por demais intratável e
“um modo de o ler muito frequente na inóspito para ter sido fabricado
época”, se não o for contra o próprio com benevolência para o usufruto
texto de Platão (ver Sedley, 1998, p. humano.
349). Já que Lucrécio é um expositor
notavelmente fidedigno e preciso do Embora, como observei antes,
epicurismo, temos boas razões para Platão não tenha explicitamente
supor que ele é um porta-voz veraz do afirmado o oposto da terceira réplica
próprio Epicuro. de Lucrécio, esta leitura
antropocêntrica do Timeu pode muito
Como mostrou Sedley (1998), os bem ter sido familiar a Epicuro e assim
tópicos que Lucrécio examina em seu ter passado a Lucrécio.
tratamento da cosmologia epicurista
estão CONCLUSÃO

fortemente modelados no Fica evidente nesta análise que o


procedimento do próprio Epicuro, o papel de Platão na filosofia
que, por sua vez, pode ser helemstica estava completamente
interpretado com plausibilidade como implicado nas posições e me-
uma réplica poderosa às fundações todologias que as escolas em
que Timeu estabelece para sua competição adotaram em resposta
história cosmo- lógica. Segundo este umas às outras. No início do período
relato, o mundo é o produto excelente helenístico, filósofos de dentro da
de um criador divino e benevolente, Academia continuaram o processo de
um ser vivo dotado de uma alma, identificar um conjunto positivo de
modelado com base no Ser Vivo ideal doutrinas platônicas ou

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supostamente platônicas, mas esta contundentes foram os primeiros


atitude foi cedo suplantada por pirrônicos e, de modo muito mais
Arcesilau, cujo ceticismo incluía persistente e proeminente, os
elementos pró-socráticos e epicuristas, cuja cosmologia
antiestoicos. Um comentário antiteleológica opunha-se
sistemático dos diálogos não foi diretamente ao modelo platônico de
provavelmente empreendido por um mundo que se conforma a um
ninguém após Crântor, pelo menos desígnio inteligente. No estoicismo,
em uma forma publicada, ou antes de as apreciações de Platão eram mais
cerca de 100 a.C.; porém, é altamente complexas e sujeitas a modificações
provável que Arcesilau e seus com o passar do tempo. De Zenão a e
seguidores se referiam frequen- incluindo Crisipo, os estoicos
temente aos diálogos de Platão em tenderam a enfatizar suas diferenças
seus com Platão, mas eles se basearam
pesadamente em seus diálogos
socráticos para a sua apropriação de
Sócrates e incorporaram muito que
ensinamentos orais. À medida que o parece platônico em sua cosmologia e
ceticismo duro da Academia teologia. Por volta da metade do
arrefecia, com Fílon e Antíoco segundo século a.C., Antipater, como
disputando a correta interpretação chefe da escola estoica, alegava que
dos compromissos doutrinais de Platão e os estoicos concordavam
Platão, um novo ímpeto deve ter sido sobre a maior parte dos temas
dado ao estudo dos diálogos de Platão (Stoicorum Veterum Fragmenta II
pelos próprios diálogos, como Antipater 56) e os estoicos
podemos observar que assim fazia o posteriores Panécio e Posidônio pare-
acadêmico Cícero ao final da época cem não se sentirem afetados pela
helenística. acusação de serem criptoplatônicos.
O abandono final da Academia cética
Fora da Academia, Platão é provavelmente em grande parte
(inclusive o Sócrates platônico) atribuível ao fato que Platão,
permaneceu uma presença cuja tomando os diálogos como um todo,
influência e importância, seja ela vista passou a parecer mais em casa com os
negativa ou positivamente, permane- estoicos do que na Academia.
ceu crucial. Seus críticos mais

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Hugh H. PLATÃO
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Comecei este capítulo passivo e ativo, à metafísica e à


perguntando-me sobre os semiótica (ver Brunschwig 1994: cAp.
admiradores e os detratores 6). Investigação ulterior é requerida
helenísticos de Platão, sobre a quanto a outras possíveis marcas do
sobrevida de suas metodologias e legado de Platão ao primeiro
teorias e sobre os diálogos que eram estoicismo.
vistos como seu principal legado. Foi
já dito o suficiente em relação à O que pode ser dito de modo
primeira questão. Quanto à terceira, cabal é que o Platão metafísico e
embora o Timeu claramente ocupasse místico adotado pelo neoplatonismo
o centro do palco, observamos que há não está vivo no período helemstico.
referências A exegese acadêmica inicial, com seus
interesses na numerologia, gradações
suficientes a outros diálogos para hierárquicas da realidade e no Um,
pensar que pouco ou nada do corpus ajudou a preparar o caminho para o
platônico foi completamente Platão dos platônicos. Não há
ignorado durante este período. Uma nenhum sinal que o ceticismo
resposta inteiramente adequada à acadêmico ou os estoicos fossem
minha segunda questão requereria simpáticos a este modo de interpretar
um estudo de maior fôlego. Sublinhei a filosofia de Platão.
o interesse do ceticismo acadêmico
na metodologia dialética de Platão e NOTAS
chamei atenção às respostas positivas
e negativas à cosmologia platônica e Todas as traduções são do autor, a
ao recurso dos estoicos a diálogos menos que seja indicado
como a República, Eutidemo, Crátilo e diferentemente.
Teeteto, o que mostra a vitalidade das
contribuições de Platão à teoria Gostaria de agradecer a David
social, ética, lingüística, Sedley por seus comentários valiosos
epistemologia e psicologia. Esta, a uma primeira versão deste texto.
porém, é somente uma lista seletiva.
Por razões de espaço, deixei de lado o 1. Minhas referências a Timon estão
Sofista, que provavelmente auxiliou a baseadas na edição de di Marco,
dar forma ao pensamento estoico de 1989.
sobre os princípios cosmológicos 2. Tímon claramente se baseia no

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Hugh H. PLATÃO
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famoso sarcasmo do estoico Aristo the


sobre Arcesilau, que parodia a
descrição de Homero da quimera OldAcademy (347-274 BC). Oxford:
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4.33). di Marco, M. (ed.) (1989). Timone
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Hugh H. PLATÃO
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INTRODUÇÃO: PLATÃO NA filósofo, por elas próprias, os


ANTIGUIDADE TARDIA instrumentos de que necessitava para
praticar com sucesso sua disciplina. O
Para se compreender a influência de objetivo do platônico antigo era a vida
Platão na formação da filosofia contemplativa; tal vida, que com-
judaica, cristã e islâmica, é útil preendia a união com o divino, não
distinguir entre Platão e os poderia ser o fruto da razão sozinha.
platonismos. Filósofos como Fílon de Ao contrário,
Alexandria ou al-Farabi leram os
diálogos através das duplas lentes das muitos pensadores judeus, cristãos e
tradições exegéticas (p. ex., pitagórica islâmicos viam o platonismo como
ou neoplatô- nica) já estabelecidas, subscrevendo a um misticismo
bem como através dos contextos presente nos diálogos, mas que
religiosos em que realizam suas necessariamente se furtava de uma
próprias e novas exegeses. Para os descrição direta ou explícita.
objetivos deste capítulo, terá
somente menor relevância que Este misticismo ia junto com a
nossas noções de Platão e de sua suposição comum dos platônicos da
filosofia possam ou não coincidir com Antiguidade tardia que, na raiz do que
as dos leitores cristãos, judaicos e is- Platão se referia como o reino do vir-
lâmicos antigos dos diálogos. Por a-ser (Ti. 28a), há uma unidade
exemplo, os platônicos da transcendental que opera como a
Antiguidade tardia não leram os causa de todas as formas inferiores de
diálogos como defendendo posições realidade e como telos (fim) a que
puramente teóricas ou como uma toda sabedoria humana deve aspirar.
série de dificuldades intelectuais. Este primeiro princípio ou Um original
Para eles, os diálogos continham pode ser associado às doutrinas Não
doutrinas definitivamente positivas escritas, os ensinamentos pitagóricos
que serviam a guiar o leitor na busca que Platão esposou evidentemente e
da vida da filosofia (ver os capítulos que foram desenvolvidos pelos seus
Interpretando Platão; A Forma e os herdeiros imediatos, Espeusipo e
Diálogos Platônicos). Porém, Xenócrates (Dillon, 2002, p. 107-29).
enquanto a razão e a racionalidade Para os platônicos que atuavam no
eram centralmente importantes para interior de tradições monoteístas,
tal vida, elas não forneciam ao porém, a relação entre o Um,

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concebido como absoluto ou não Judeu, o filósofo e estadista


dual, e a multiplicidade de que ele é a alexandrino do primeiro século AD,
causa tornou-se problemática. O que empreendeu uma vasta defesa da
impulso em direção à unidade religião judaica (nos restaram 48
absoluta dominou os platonismos obras, a maioria em grego, mas um
politeístas (os assim chamados médio grupo significativo existe somente em
platonismo e neoplatonismo) e armênio); está na forma de um
monoteístas (cristão, judaico, comentário que se alastra sobre os
islâmico), mas esse impulso cinco Livros de Moisés. Füon
encontrou frequente resistência nas pertencia à elite da sociedade judia
religiões associadas a revelações alexandrina. Seu sobrinho se tornou
monoteístas: aí, a distinção mantida prefeito de Alexandria e sabemos que
estritamente entre o criador e a foi sua condição social proeminente
criatura – Deus e a Alma – tinha de ser que lhe permitiu tomar parte na em-
repensada pelos pensadores que, baixada a Gaio César em 38, cujos
todavia, aceitavam suas implicações. resultados insatisfatórios são
Além desta orientação mística, os relatados por Füon em sua Legatio ad
principais temas Gaium. Fílon escreveu esse ensaio
Político na sequência de uma ação
simüar a um pogrom que resultou no
massacre de incontáveis judeus que
do platonismo, seja ele politeísta, viviam em Alexandria (Gruen, 2002, p.
cristão, judeu ou islâmico, eram a 60-5).
distinção entre os mundos corpóreo e
inteligível, a assimilação da alma Podemos entender melhor Füon
humana à divina, as Ideias ou Formas se tivermos em mente que ele
como aspectos de Deus e as concep- acredita que Moisés compôs
ções utópicas ou teocráticas da literalmente o inteiro Pentateuco, os
sociedade humana enquanto primeiros cinco livros da Escritura
relacionadas com a noção platônica Judaica. Segundo Füon, Moisés, como
de Bem (0’Meara, 2003). o próprio Füon, recebeu uma educa-
ção “grega” completa, em ciência e
PLATONISMOS MÉDIOS filosofia, na corte do faraó do Egito.
Esta educação no currículo grego foi
Nossa história começa como Fílon possível porque Pitágoras (certas

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linhas do platonismo faziam provir eles falam de modo a dividi-la


suas linhagens até Pitágoras) trouxe a em duas, de modo que uma era
tradição helênica ao Egito em suas ativa, a outra à disposição desta,
viagens. Assim, as duas tradições, a por assim dizer, sobre a qual
helênica e a judaica, são ramos do aquela atuava de algum modo.
mesmo tronco primordial de Na ativa, eles sustentavam que
sabedoria. Exploraremos este aspecto havia um poder; na que sofria a
pitagórico do platonismo mais cui- ação, somente um tipo de
dadosamente adiante. matéria. (Acadêmica 1.24, 1-5,
trad. Sedley)
Seu De opificio mundi, de fato um
comentário do Gênesis, dá eco a Moisés, porém, que tinha
outras anteriormente alcançado os
cimos da filosofia e que tinha
interpretações platônicas do Timeu, aprendido dos Oráculos de Deus
segundo as quais dois princípios os mais importantes e
constitutivos, um ativo ou causa numerosos princípios da
divina e um passivo ou substrato natureza, bem sabia que é
material, estão completamente fu- indispensável que em todas as
sionados e presente em cada coisa em coisas existentes deve haver
toda a natureza (cf. Cícero, uma causa ativa e um sujeito
Acadêmica 1.24, com Sedley, 2002, p. passivo, bem como que a causa
48-50). Para ver de quão perto Füon ativa é o intelecto... (De opificio
reflete o platonismo contemporâneo mundi 8.1-5, trad. Younge)
de Antíoco, o último líder da assim
chamada Nova Academia, podemos Füon toma o aspecto estoico
comparar os seguintes excertos do De desta interpretação, o qual postula
opificio mundi de Füon com o sumário uma explicação panteísta ou
da física de Antíoco que se encontra imanente da deidade face ao mundo
nos Acadêmica de Cícero, sua história e a insere em um platonismo médio-
da Academia durante os reinados de judeu recontando a história do
Füon de Larissa e, mais tarde, Antíoco Demiurgo. As Formas fornecem um
de Áscalon: plano para o aspecto criador de Deus,
nosso arquiteto divino, que se serve
Quando se trata da natureza... do plano para dar um modelo ao

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mundo temporal: um mundo espiritual.

Como a cidade, portanto, Para Fílon, Deus traz a ordem


quando previamente projetada inteligível, o plano, à realidade no
na mente do homem de primeiro dia da criação. De onde,
habüidade arquitetônica, não embora seja inteligível e deve ser, em
possui espaço externo, mas termos estritamente platônicos, um
estava estampada aspecto do ser eterno, de fato Fílon
acha que Moisés pensa que o plano
(isto é, as Formas) ocupa realmente
um espaço na gênese – o mundo do
somente na mente do artesão, vir-a-ser (ver o capítulo Problemas
assim, de mesmo modo, o para as Formas). Este exemplo nos
mundo que existia nas ideias mostra que Füon se serve das
não tem nenhuma outra posição concepções platônicas com vistas a
local exceto a razão divina que penetrar sob a superfície do texto de
as possui. CDe opificio mundi Moisés e descobrir uma doutrina
8.20, trad. Younge) teológica que sugere que Deus é ao
mesmo tempo o criador do universo,
As Formas de Platão, aqui, se mas também transcende totalmente
tornam os pensamentos da qualquer natureza criada. Mais ainda,
divindade, uma característica que a atividade de Deus como criador é
está ausente do texto de Platão, mas somente um aspecto da deidade, um
que caracteriza em geral as leituras do dos sete poderes, como Füon os
platonismo médio do Timeu. denomina, que comunica, mas não
Intérpretes judeus, cristãos e exaure a substância divina (Runia,
islâmicos tendem a entender as 2002, p. 304-6).
Formas não somente (como os vimos
aqui) como o conteúdo do No De opificio mundi de Füon,
pensamento divino, mas de fato testemunhamos uma transformação
como aspectos da mais alta deidade e típica do platonismo médio do
como nomes ou véus de Deus. A obra Demiurgo e Alma-do-Mundo de
de Füon sobre as Formas nesta passa- Platão em duas funções da deidade:
gem antecipa uma longa tradição de uma transcósmica, a própria natureza
as re- localizar dentro do domínio de de Deus que não se manifesta e que

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não muda; a outra, cósmica, outra fonte [do que Pitágoras].


manifestando a natureza divina nas Porém, Platão não [ensinou] do
propriedades do universo – que é modo costumeiro nem [revelou
eterno. suas doutrinas pitagóricas]
abertamente. (Numênio, Sobre
No intuito de ler o texto de a divergência da Academia com
Moisés como uma compilação do Platão, fr: 24.53-60, trad. des
platonismo médio, Fílon se baseia em Places, com omissões)
uma transformação do significado do
platonismo, que, para Füon, Numênio Parece obviamente estranho falar de
e outros contemporâneos, era mais três deuses de Sócrates; sabemos que
bem entendido como um ramo da Numênio toma aqui Sócrates como o
tradição pitagórica. De fato, autor da doutrina platônica como
platônicos como Numênio e aparece, por exemplo, no Filebo (16c
Moderato pensavam que o que tinha ss.), em que Platão faz menção a uma
de valor em Platão já tinha sido tradição antiga que esposava três
ensinado por Pitágoras. Na medida princípios na raiz de todas as coisas:
em que Platão era um pensador limite, ilimitado e a mistura destes
original, ele só podia ser visto como dois. Intérpretes pitagóricos
um pitagórico renegado. Era bem configuraram estes princípios-raiz de
melhor considerar Platão como não vários modos, não sendo fácü traçar
sendo original e como um seguidor de todos eles por causa da natureza
uma trilha mais antiga. O médio- fragmentária da evidência. Se
platônico/ pitagórico Numênio pudermos confiar no filósofo tardio
escreveu uma história da Academia antigo Proclo, então os três deuses de
que enfatizava suas raízes pitagóricas: Numênio, “Pai, Criador e Criação”, em
que o primeiro transcende a atividade
Sócrates sustentou a existência criadora dos dois outros, são na
de três deuses e filosofou sobre verdade surpreendentemente como a
eles em expressões adaptadas a explicação da criação por Füon no De
cada ouvinte... opificio

Platão, que seguiu Pitágoras,


sabia que Sócrates tinha tirado
seus ensinamentos de nenhuma mundi. Füon e Numênio, de certo

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modo, interpretam o Demiurgo / de Füon emprega este tema como um


Criador como incluindo um aspecto meio para üustrar os vários estágios
dinâmico que infunde a matéria com da ascensão da alma ao Bem que,
a forma e um aspecto mais passivo para Füon e para a tradição platônica
que é imanente no interior da subsequente, consiste no co-
matéria. nhecimento ou na assimüação a Deus.
Fílon inicia esse tratado citando
Para retornar a Fílon, vemos que Gênesis 12: 1, “abandona tua terra”,
sua obra sobre o Timeu se mostra interpretando o verso como uma
convencional dentro do ambiente do exortação de Deus à alma para que
platonismo médio, mas seu projeto, ela “saia da região do corpo” e como
como Jaap Mansfeld o nomeou, da o acordar de um impulso à
“filosofia a serviço da Escritura” üuminação. O país original de Abraão
(1988), pôs as fundações para uma é tudo o que pertence ao seu eu
tradição exegética cristã que inferior, corpo, mente, sentidos e fala,
elaborou a teologia do Logos que tudo o que deve sujeitar-se ao
vemos em ação em Füon; para Füon, princípio superior dentro da pessoa
a deidade imanente responsável pela humana, o intelecto, o único aspecto
comunicação do ser ao mundo do ser humano que goza de uma
manifesto é exatamente o Logos. afinidade inata com o Bem.
Porém, igualmente importante para o
desenvolvimento do platonismo de Um lugar no qual vemos um
Füon é sua interpretação mística do desenvolvimento do método de Füon
Pentateuco como uma alegoria da de ler a Bíblia está na obra de
saída da alma de sua ordem material Orígenes, o exegeta alexandrino do
inferior para o conhecimento divino. terceiro século e contemporâneo
A obra exegética de Füon dá início à mais velho de Plotino, um homem
tradição de ler as histórias bíblicas em profundamente influenciado pelas
termos de um misticismo espe- interpretações
cificamente platônico, que enfatiza o
tipo de abordagem dualista que alegóricas de Füon do Pentateuco.
encontramos no Fédon, por exemplo, Nascido em 185, Orígenes era um
com sua insistência na separação da adolescente em Alexandria quando
alma do corpo (ver o capítulo A Alma irrompeu a persecu- ção no início do
Platônica). O Da Migração de Abraão terceiro século. O pai de Orígenes foi

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preso e martirizado, enquanto o platônicas à narrativa bíblica. Pelos


governo imperial confiscou todas as fragmentos do original grego, parece
propriedades da família, forçando que a discussão de Orígenes das
Orígenes a trabalhar como professor. diferenças entre a primeira e a
Ele ensinou com sucesso por vários segunda pessoas da Trindade
anos, mas em certo momento decidiu envolvia a terminologia pita- górica: o
voltar ao estudo da filosofia. Pai é autoagathon (Bem em si); o
Füho é a dunamis (poder ou
A relação de Orígenes com o manifestação) do pai e é também a
platonismo é um tópico controverso e imagem da natureza divina indefinida
o foi pelo menos desde o quinto (fr. 34-6 dos De principiis, Gõgemanns
século, quando o Panarion, o enorme e Karpp). Para Orígenes, Deus em si
tratado de Epifânio destinado a expor mesmo é uma mônada, ao passo que
as origens de todas as heresias como o Filho ou Logos é o princípio que
próprias do pensamento da Grécia introduz a diversidade, funcionando
antiga, pôs grande ira contra Orígenes como a díade da especulação
por causa de seus supostos pitagórica.
ensinamentos pagãos (Panarion
64.65.5-6, 64.72.8). Orígenes foi Vimos antes Füon usando o
excomungado em 553 em um concilio Timeu de Platão em seu comentário
conclamado pelo imperador do Gênesis, mas transformando o que
Justiniano; ele foi assim a primeira era, afinal, um mito platônico, por
pessoa a ser julgada após a morte (em meio de uma interpretação
254) por manter crenças heréticas. O
Concilio listou 15 proposições, muitas
das quais tem um tom decididamente
platônico, embora tenha sido judaica do logos estoico, em seu Peri
calorosamente disputado se Orígenes Archon. Podemos ver Orígenes
de fato as sustentou pelo tradutor usando o que era talvez uma variante
latino de Orígenes do século sexto, gnóstica do mito do Fedro no intuito
Rufino. É sua tradução latina do Peri de explicar os diversos tipos de
Archon (o original grego foi destruído encarnação de que gozam os seres
por Justiniano (Edwards, 2002, p. 4- racionais. O tópico de Orígenes no
9)) que nos permite compreender Peri Archon
como Orígenes aplicou as ideias

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1.6 é a resolução de toda a separação é somente temporária,


diversidade na unidade do Deus. Esta pelo menos no caso da alma humana,
análise da realidade em dois aspectos, a quem fica aberto vir a restaurar-se à
unidade e multiplicidade, já nos condição original da perfeição após
coloca em vista das tradições platô- um período de aprendizagem de cura
nicas pitagóricas. De fato, é que constitui a vida encarnada: “não
precisamente esta tendência a apagar é uma separação absoluta, mas
a distância entre a divindade e a permanece possível à alma retornar à
criatura que é denunciado no édito de sua origem e ser restabelecida em sua
553 (Artigo 14: se alguém disser que condição original” (Peri Archon 1.3.8).
todos os seres racionais serão um dia Examinaremos a seguir mais
unificados em um... seja ele um atentamente a relação entre a alma e
anátema (citado em Edwards, 2002, Deus, segundo Orígenes.
p. 9)).
Mencionei quão controverso tem
A história de como cada alma sido atribuir a etiqueta de platônico a
recebe seu corpo apropriado faz eco Orígenes. As tensões entre as duas
ao mito que Platão conta no Fedro tendências são antigas, voltando até o
248c. Aí, as almas, falhando em sua Contra Celsum do próprio Orígenes,
visão das Formas devido ao conflito uma refutação em regra
motivacional, voltam à Terra, onde
cada uma é ordenada em função de do filósofo platônico Celso, que havia
sua re- memoração das Formas, escrito um libelo anticristão cerca de
desde as almas nos postos mais altos, setenta anos antes (Frede, 1997). O
os filósofos, até os sofistas inferiores. platonismo de Celso faz objeções a
Na narrativa de Orígenes, as almas concepções-chave cristãs como a
negligenciam e sentem aversão à sua encarnação do Logos divino e a
participação no divino e, por sua doutrina da ressurreição do corpo. Em
própria falta, vivenciam diferentes sua resposta, Orígenes se serve de um
graus de distância de sua condição outro desenvolvimento do
original no divino e se tomam, assim, platonismo médio quanto ao Fedro, a
respectivamente, anjos, prin- doutrina do veículo da alma. O corpo
cipalidades, virtudes e os diversos etéreo, ou corpo leve, adquire con-
tipos de seres racionais, humanos e siderável importância no
não humanos. A condição de desenvolvimento ritual do

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neoplatonismo patrocinado por publicadas por Porfírio, discípulo de


Jâmblico (um filósofo sírio do terceiro Plotino, quem inspirou e forneceu os
século e aluno de Porfírio). Para fundamentos para a obra de
Jâmblico e para aqueles cuja tradição neoplatônicos posteriores como
ele segue, o corpo etéreo é um Jâmblico (ativo em 245 AD) e Proclo
envelope psíquico que é formado dos (412-85). Na Enéada VI, Plotino usa as
acréscimos do mundo material assim três hipóteses iniciais da segunda
que a alma é encarnada. Esta metade do Parmênides de Platão no
condição de acobertamento da alma intuito de fazer um esboço de sua
humana é objeto de purificação ritual própria
nos ritos neoplatônicos conhecidos
como teurgia (ver a seguir), mas está
sempre ligada à alma individual como
um tipo de corpo compensatório que doutrina metafísica, segundo a qual a
marca especificamente o lugar da realidade tem três hipóstases ou
alma dentro da ordem cósmica. ordens primárias diferentes: o Um, o
Orígenes parece também aceitar esta Intelecto e a Alma. Plotino refere a
ideia do veículo da alma, um veículo primeira hipótese (“se o um é”,
que ajuda a alma humana, em parti- Parmênides 137c4) ao Um além do
cular, a gerir sua condição como ser, a fonte transcendente de tudo. A
membro de uma ordem espiritual e segunda hipótese se refere a um
como um ser encarnado. É esse estágio subsequente da realidade que
corpo, e não o corpo material da vida se dá quando a sabedoria inerente ao
ordinária, a que faz alusão Orígenes Um dá as costas ao Um, dando origem
quando responde ao ataque de Celso ao Ser/Intelecto, o mundo inteligível
contra a ideia cristã de ressurreição que consiste em intelectos, cada um
(ver também Peri Archon 11.10-11). contemplando todos os outros
intelectos, como um salão de
NEOPLATONISMO espelhos. Esta ordem de realidade
representa a transformação de
Antes de deixar Orígenes e continuar Plotino das Formas platônicas por
nossa história, é necessário situar sua meio de uma concepção aristotélica
obra dentro do mundo do platonismo do pensamento divino eternamente
do terceiro século. Foi Plotino quem, contemplando a si mesmo. Os seres
como está nas Enéadas, editadas e transitórios se originam na terceira

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hipóstase, no nível da Alma, que está logos e da divindade com os princípios


presente em um nível cósmico como básicos neoplatônicos. Vimos antes
zelando por tudo o que não tem alma que as almas racionais passam pela
e como o indivíduo encarnado cujo encarnação quando falham em seu ar-
destino é retomar à sua origem dor pela natureza divina. Orígenes
recuperando sua unidade perdida compara
com o Um.
esta falha a alguém que tem uma
Há também um aspecto dinâmico habilidade ou conhecimento, mas
da filosofia que é mais bem entendido lentamente negligencia seu cultivo e
como um circuito espiritual. Na sua prática (Peri Archon
Enéada VI, Plotino se vale dos símiles
físicos do perfume, da neve e da luz do I.3). Plotino alude a esta queda do Um
sol para descrever o processo eterno na Enéada VI.1, quando se refere à
da emanação, a radiação de todos os razão da separação da alma da
seres a partir do Um. A respiração unidade do Um como um desejo de
cósmica ou o pulso universal que ser independente, até como
constantemente faz sair os seres do “ousadia”. Porém, ele também insiste
Um a um estado de manifestação que a alma nunca está de fato
provém da natureza autodoadora da separada da natureza divina do
realidade. Todavia, a alma pode Intelecto e que ela não cai
começar a se recuperar de sua inteiramente, mas permanece como
aparente separação e somente parte do universo inteligível (IV8.8).
descobre sua completude nativa De um modo similar, Orígenes ensina
quando empreende sua missão que todas as almas humanas estão
cósmica de retomar da multiplicidade inicialmente unidas ao divino por
de volta à sua fonte. Mais uma vez, meio da participação pelo amor e
vemos no circuito espiritual um conhecimento na divindade e que
aspecto crucial do platonismo antigo cada alma participa da Palavra de
tardio, a assimilação da alma a Deus. Deus, que está diretamente presente
Isso também é central na narrativa de como o aspecto inteligível da alma
Orígenes. (Peri Archon 1.3, 5). Ademais, a na-
tureza da alma que pertence a Cristo
Podemos agora comparar a é exatamente a mesma natureza que
discussão de Orígenes da alma, do a de todas as outras almas racionais:

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naturam quidem animae illius hanc causa ativa, responsável pelas


fuisse, quae est omnium animarum, mudanças
non potest dubitari (“pois não se pode
duvidar que a natureza de sua alma
[do Cristo] é a natureza de todas as
almas”, temporais que ocorrem no mundo
II.6.5). Finalmente, a alma passa a se dos particulares em um modo que o
identificar com o seu aspecto mais aspecto supremo da deidade nunca
perfeito, isto é, torna-se espírito (ou poderia ser. Contudo, de novo,
intelecto, para usar a linguagem sabemos que, como resultado da rea-
platônica) quando retorna à sua valiação nos séculos quarto, quinto e
condição original. sexto de sua ortodoxia à luz do
Concilio de Niceia, Orígenes passou a
Este aspecto do ensinamento de ser associado a formas de Arianismo
Orígenes, mais tarde denominado (a heresia que sustentava a su-
“isocris- to” ou equalização da alma bordinação de Cristo ou do Logos à
racional com o Logos, deu origem, divindade ou Pai). O Concilio de
dentro da Igreja, a uma série de Niceia, reunido por Constantino em
disputas doutrinais conhecidas como 325, usou uma fórmula destinada a
a “Controvérsia de Orígenes” (Clark, rejeitar toda ideia de subordinação
1992). Na discussão de Orígenes do entre as três pessoas.
Logos, ele se serve de uma série de
descritores, epi- noiai, para Porém, devemos aqui por fim
representar a relação da segunda cessar as comparações e embarcar
pessoa com a primeira pessoa da em uma série de contrastes. Orígenes
Trindade. Como vimos, sua diminui o aspecto criador da alma,
linguagem, especialmente quando como vimos, simplesmente porque
chama o Logos a “imagem” de Deus, todas as almas estão contidas na
sugere que há uma subordinação, completude do pleroma divino ou
antes que uma equalização, entre os mundo espiritual que veio a ser, na
dois primeiros membros da Trindade. obra de Orígenes, uma outra
Esta linguagem é perfeitamente interpretação das Formas de Platão.
natural em um contexto médio- Contudo, para outros pensadores
platônico, onde a segunda mente é cristãos, há uma cisão muito mais
um princípio ativo, mais como uma aguda entre o mundo que Deus criou

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do nada (e a na- didade contingente relatam as experiências místicas pós-


de todas estas criaturas, inclusive das platônicas, mas pré-cristãs que
almas humanas) e o Criador ou Deus ocorreram em seu jardim em Milão.
como Trindade. A evolução de uma Uma discussão erudita de longa
metafísica especificamente cristã duração gira em tomo de saber se o
chegou às fundações da obra de platonismo de Agostinho estava
Orígenes, mas enfatizou a cisão, embebido das traduções de Porfino
presente em formas anteriores do para o latim por Mário Vitorino ou se
platonismo, entre o mundo espiritual pelas traduções do próprio Plotino
e o mundo material. O nada da (Courcelle 1950). Agostinho discute
criação cristã toma o lugar da matéria estas experiências logo após relatar
dos dualistas como Plutarco ou Albino que conseguiu adquirir alguns livros
(Dillon 1997). Contudo, o nada da dos platônicos: procurasti... quosdam
criatura em si mesma abre a porta à platonico- rum libros exgraeca lingua
questão da condição do ser humano in latinam versos, et ibi legi (“obtive
como a imagem de Deus. Plotino não uns livros dos platônicos traduzidos
mede esforços para tomar claro, da língua grega ao latim, e lá os li”). As
como o faz de modo decisivo na Confissões 7.10.16 e 10.7.17 se cons-
Enéada IV8.8, que a alma nunca está tróem em torno de dois momentos do
realmente separada da natureza que os antigos platônicos teriam
divina do Intelecto e que ela não cai compreendido como ascensão
inteiramente, mas permanece parte espiritual: “com o olho de minha alma
do universo inteligível. Como então a (tal como era) acima do mesmo olho
cristandade pensa a restauração da de minha alma, acima de minha men-
alma a Deus e de que modo está esta te, a Luz Imutável”. Agostinho aqui
volta em linha com o platonismo? navega entre as hipóstases da alma e
do Intelecto. Courcelle cita a Enéada
Para buscar traços do misticismo 1.6.9 em conexão com este capítulo
plo- tiniano nos primeiros pais da nas Confissões:
Igreja, é costumeiro voltar-se aos
escritos místicos de quando você está autorreunido
na pureza de seu ser, nada agora
S. Agostinho, em particular às restando que possa perturbar
Confissões 7.10.16, 7.17.23 (com 7.18 esta unidade interna, nada de
e 7.20), que fora se grudando ao homem

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autêntico, quando você se en- quando traduzida em certos


contra inteiramente verdadeiro contextos cristãos. De qualquer
à sua natureza essencial, modo, podemos estar certos que os
inteiramente aquela única Luz vários encontros de Agostinho com o
verdadeira que não é medida platonismo marcam seu desenvolvi-
pelo espaço. (Enéada 1.6.9.15- mento intelectual neste momento de
20, trad. Mackenna) sua vida (na verdade, foi sugerido que
o Livro VII marca a experiência de
Todavia, a orientação de Agostinho é conversão de Agostinho como mais
marcadamente diferente da de platônica que cristã), assim como, em
Plotino, na medida em que o último sua juventude, ele tinha sido seduzido
sugere que se é fundamentalmente pelos argumentos dos acadêmicos
idêntico à luz do intelecto e não, quanto a não ser possível a certeza
afinal, de fato uma alma, ao passo que (Contra acadêmicos).
ao longo de todo o capítulo 10,
Agostinho insiste na sua diferença Esta breve discussão do
com o intelecto. É assim que devemos platonismo de Agostinho nas
interpretar a expressão de Agostinho, Confissões deve ser complementada
et nondum me esse qui vide- rem ou por outro texto importante, no qual
“eu não era tal que fosse alguém que Agostinho revela sua afinidade com
visse” (7.10.16), isto é, em um sentido Porfírio. Na Cidade de Deus,
ontológico, indicando a convicção de Agostinho dedica um livro ao exame
Agostinho que a alma humana é por da Filosofia dos Oráculos de Porfírio.
natureza e mesmo genericamente um Ele reconhece em Porfírio um grande
tipo diferente de ser, não filósofo que procurou e proclamou a
possibilidade de um caminho
universal para a liberação (DVD X).
Neste sentido, Agostinho se apropria
um membro do mundo inteligível em favor do cristianismo de uma
(Finan, 1991, p. 83). Esta diferença longa tradição platônica, já encon-
confirma o que vimos no caso dos trada no Da Verdadeira Doutrina de
detratores de Orígenes, que a ênfase Celso, onde Celso aparentemente
doutrinai na unidade ou assimilação adaptou certas doutrinas estoicas a
entre a alma e Deus, tão característica respeito da revelação natural fundada
do platonismo, encontrou resistência na razão para sugerir que havia uma

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tradição de sabedoria primordial e de libertar-se do que lhe prende ao


universal. Esta doutrina verdadeira mundo do nascimento e morte. O
está atestada pelas civilizações mais filósofo neoplatônico sírio Jâmblico
veneráveis e antigas, inclusive o Egito, discute a teurgia em sua obra Dos
Assíria, Pérsia, índia e várias outras Mbtérios dos Egípcios. Jâmblico adota
tribos (Contra Cebum 1.6). Agostinho a figura de um profeta egípcio que
também aprova a rejeição por parte busca responder às objeções de
de Porfírio do ritualismo em favor da Porfírio quanto à eficácia ritual de
purificação que vem à alma por meio certos símbolos no propósito de unir a
unicamente do conhecimento, isto é, alma individual com os deuses.
pelo conhecimento dos princípios Jâmblico insiste que o conhecimento
supremos: não liberta a alma das limitações da
encarnação. Para completar sua
Você diz, na verdade, que a tarefa cósmica, a alma deve sobrepu-
ignorância e os inumeráveis jar a inteira cadeia de ser que liga o
vícios resultantes dela não nosso mundo ordinário aos princípios
podem ser removidos pelos últimos da realidade. “Pensar não
mistérios, mas somente pelo conecta os teurgistas com os seres
Patrikos Nous, isto é, a mente ou divinos... Ao contrário... é o poder dos
intelecto do Pai símbolos inefáveis compreendidos
somente pelos deuses que estabelece
consciente da vontade do Pai. a união teúrgica” (DM 96). Oferendas
Porém, você não crê que Cristo podem ser feitas para os deuses
seja esta mente. (DCD X26) superiores ou inferiores; os deuses
superiores só podem ser cultuados
A fim de apreciar a denúncia por por presentes “intelectuais”. Para
parte de Porfírio do que Agostinho este tipo de devoção, a sabedoria é o
chama aqui “mistérios”, será sacrifício ou oferenda verdadeira. Na
necessário dizer algumas palavras Abst. ii 34, Porfírio distingue entre
sobre o principal tema de ataque no diferentes níveis de sacrifício. Na
Livro X do De civitate dei, que é a teur- ordem suprema, diz Porfírio, “o
gia: a palavra “teurgia” significa sacrifício sagrado” é feito consistindo
literalmente “atividade associada aos em sabedoria. Um leitor do livro X da
deuses” e se refere ao uso de ritual Cidade de Deus obterá uma
em conjunção com o esforço da alma apreciação de como a concepção de

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Porfírio da sabedoria como uma Proclo elabora o que, por


oferenda sagrada influenciou comparação, é a visão austera de
Agostinho. A formulação deste último Plotino do mundo invisível (Um,
do modo de libertação consiste no Intelecto, Alma) em uma série
conhecimento de Deus, ainda que, complexa e intricada de tríades. Elas
para ele, este conhecimento é são caracterizadas de diversos modos,
garantido unicamente pela graça de entre as quais as principais são a
Deus. Pode-se perguntar quão tríade inteligível (limite, ilimitado e
diferente é a concepção da graça de misturado, com o misturado, ou Ser,
Agostinho da confiança neoplatônica sendo ele próprio o termo de uma
no poder dos deuses em elevar tríade que consiste em Ser, Vida e
Intelecto) e também a tríade dinâmica
do processo, permanência e reversão.
Estes três tipos de realidades que
a alma para além de seus próprios habitam este mundo, que provêm do
limites, (ver o capítulo A Religião Um ou Bem, são hênades ou deuses,
Platônica). inteligências e almas. Em um sentido,
Proclo reinveste no aspecto cultural
O NEOPLATONISMO do paganismo, traduzindo a
ATENIENSE TARDIO valorização jâmblica do ritual pagão
em um vórtice espiritual de infinita
Nosso último capítulo sobre o possibilidade. Contudo, no coração do
neoplatonis- mo retoma a Atenas, que pode com justiça ser descrito
onde a Academia ateniense floresceu como o sistema de Proclo, repousa o
novamente, sob a direção de Proclo e Um em sua função de causa e fonte,
Damácio, para então fechar suas para onde estão destinadas a voltar
portas em 529 no remado de todas as formas inferiores de
Justiniano. Proclo Diádoco é mais realidade. Este Um funda a metafísica
conhecido pelos seus Elementos de de Proclo no que pagãos e cristãos
Teologia, uma obra aforista que viam como um caminho da negação,
expõe os princípios básicos da alcançando Deus mediante a negação
metafísica ne- oplatônica em uma de todo atributo ou qualidade. Este
apresentação sistemática tendo por modo de negação ou teologia
modelo os Elementos de Euclides (ver apofática ressoa fortemente por toda
o capítulo Platão e a Matemática). a filosofia antiga tardia, aparecendo

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em escritores cristãos como Gregório de Atenas, encontra São Paulo e


de Nissa ou Evágrio Pôntico. Para converte-se imediatamente. Embora
Proclo, qualquer nome aplicado ao tenha escrito por volta de 520 (uma
Um já é uma limitação e apresenta o data deduzida combase na primeira
Um de acordo menção à sua obra feita por Severo de
Antioquia), sua condição quase-
com certo aspecto ou poder. Porque apostólica deu ao seu ensinamento
as atividades manifestam suas causas, uma proteção da política da regula
elas imediatamente delimitam a fidei. Assim, a despeito de seu
natureza de suas causas e, ao mesmo estonteante platonismo, como
tempo, as distorcem ou as veremos, ele forneceu uma
comprometem. Assim, os nomes “o compreensão profundamente
Um” e “o Bem” põem um véu no filosófica do ritual ortodoxo que foi
primeiro deus sob dois diferentes importante para a Igreja Oriental, ao
aspectos, o da unidade e o da criação. passo que sua teologia negativa
Damácio, o último escolarca inspirou centenas de pensadores
platônico, foi longe a ponto de sugerir místicos, inclusive Eriúgena. Seu
que o princípio supremo só poderia editor, João de Citópolis, participou
ser referido como “o Inefável” e que em certa medida na perpetuação da
estava inteiramente fora do alcance autenticidade de seus escritos,
de qualquer metafísica ou teologia sustentando em seus escólios ao
determinar sua natureza (Peri Archon corpus de Dionísio (composto por
1.1). volta de 530) que os escritores pagãos
(João os chama “externos” ou
Tendo visto os desenvolvimentos “intrusos”), “especialmente Proclo,
no neoplatonismo ateniense, empregam frequentemente as
podemos agora apreciar a realização doutrinas do Abençoado Dionísio, e
de Pseudo-Dionísio. Extremamente [fazem plágio] literal de suas
influente entre os teólogos palavras” (escólio I, Patrologia
platonizantes, ele deve seu sucesso Graeca, vol. 4, col. 21d-24; Saffrey
em parte à sua apropriação da 1990: 240).
identidade de Dionísio o Areopagita,
que é mencionado nos Atos 17:34. O mundo de Dionísio consiste em três
Nesta passagem, Dionísio, um mem- tríades: a triarquia ou Trindade,
bro do Areópago, o conselho jurídico seguida da hierarquia celestial, a

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ordem dos seres díade – que governam a inteira ordem


de manifestação.

Dionísio é mais famoso por sua


inteligentes, e a hierarquia Teologia Mística, uma obra
eclesiástica, a forma ideal da Igreja contemplativa que inspirou místicos
como veículo de iluminação, cristãos como São João da Cruz e
operando no interior da ordem Nicolau de Cusa (autor de De docta
humana. Cada uma destas estruturas ignorantiá), entre muitos outros
é encarregada pelo bem supremo de autores. A obra de Dionísio dá
promover homoiosis theô(i) ou seguimento aos Nomes Divinos no
“assimilação a Deus” (Tht. 164d3; CH sentido que, enquanto a primeira
III.1). Para Dionísio, a inteira ordem da trabalhava dentro da estrutura das
realidade reflete os três momentos restrições de Proclo nos Elementos de
que vimos operar no neoplato- nismo, Teologia, afirmando, como vimos, que
na medida em que “cada processão da tudo deriva de uma única causa, a
luz se difunde generosamente em Teologia Mística enfatiza muito mais o
nossa direção e, em seu poder de lado Inefável do Um, evitando a
unidade, nos incita elevando-nos. Ela metafísica em favor de uma askêsis
nos leva de volta à unidade e à (exercício, prática) contemplativa. No
simplicidade deificante do pai” (CH caso desta obra, somos lembrados
1.1). Os Nomes Divinos de Dionísio, muito fortemente de um
uma obra que se assemelha em muito neoplatonista aproximadamente
à Teologia Platônica de Proclo (que contemporâneo, Damácio: ele esboça
buscou isolar as características do uma abordagem do Um que repousa
Bem supremo em cada um dos precisamente na mesma prática de
diálogos de Platão), é de fato um desconhecer, isto é, de abandono de
esboço do ciclo inteiro de processão e todos os estados condicionados da
reversão, que progride por uma série mente e do ser, deixando esvair-se
de nomes que pertencem à Palavra de todo pensamento conceituai e
Deus sob seu aspecto de abandonando mesmo o conteúdo de
diferenciação ou Unidade. Os leitores nossas intuições
de Proclo hão de se lembrar mais uma
vez dos princípios neoplatônicos – mais fortes. Comparemos este breve
limite e ilimitado ou a mônada e a excur- so sobre o método para

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conhecer o Um no Dos Primeiros desconhecer Aqui, renunciando


Princípios de Damácio com o primeiro a tudo o que a mente pode
parágrafo da Teologia Mística de conceber, envolto inteiramente
Dionísio: pelo intangível e invisível, ele
pertence inteiramente a quem
Primeiramente, Damácio (seção está além de tudo. Aqui, não
10.10 Ruelle): sendo nem si mesmo nem
outro, está-se supremamente
Conhecimento demanda unido por uma inatividade
separação, como disse completamente
anteriormente, mas a sepa- desconhecedora de todo
ração, assim que se aproxima do conhecimento e se conhece
Um, se desfaz em unidade, de além da mente nada
modo que o conhecimento conhecendo.
desaparece em desconhecido.
Talvez seja isso o que Platão Damácio e Dionísio, obviamente,
entende por sua analogia. podem fundar suas metodologias no
Tentamos olhar para o sol pela que tomavam como sendo a doutrina
primeira vez e conseguimos padrão platônica, em particular na
porque estamos muito medida em que a descobriam na
distantes. Porém, quanto mais Carta VII (Damácio cita 342a7-343c6
próximos chegarmos, menos o logo antes desta passagem). Porém,
vemos. Por fim, nem vemos [o temos aqui de reconhecer que, nesta
sol] nem as outras coisas, já que época, o apofaticismo e a via negativa
nos tornamos completamente a tinham atingido o cimo de sua
própria luz, ao invés de um olho influência nas escolas platonizantes e
iluminado. que foi este zênite da teologia
negativa contemplativa que pôs
Agora Dionísio (MT 1.3; 1001a,
trad. Luibheid):

Porém, então ele [Moisés] se lenha na fogueira do misticismo na


liberta deles, livre do que vê e é Idade Média e posteriormente. Parte
visto, e se joga na obscuridade deste misticismo era igual e
verdadeiramente misteriosa do ardentemente platoni- zante

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(Eriúgena, Nicolau de Cusa). Temos de Aristóteles, e é ademais evidenciada


concluir aqui nossa análise, ainda que pelo fato que o próprio Porfírio
tenha sido sumária, do platonismo escreveu pelo menos seis comentá-
cristão na Antiguidade tardia. rios às obras de Aristóteles, inclusive
Passamos agora a examinar o seu famoso Isagoge ou Introdução às
desenvolvimento do platonismo Categorias. Assim, enquanto o
islâmico. neoplatonismo era a escola
intelectual dominante do Império
A HARMONIA DE Romano, talvez o maior resultado
PLATÃO E ARISTÓTELES literário do neoplatonismo antigo
tardio toma a forma de comentários
Já vimos que é difícil separar as aos tratados aristotéli- cos
expressões de platonismo que (Commentaria in Aristotelem Graecá).
atuavam no interior das tradições A tradição do comentador,
religiosas dos desenvolvimentos começando com Alexandre de
infraplatônicos. Em particular, vimos Afrodisia no segundo século, se
anteriormente que o lugar do ritual estende a Porfírio (232-309); seu
no platonismo antigo tardio discípulo, Jâmblico (ca. 240 -ca. 325);
ressonava nos pensadores cristãos, Plutarco de Atenas (morto em 423),
enquanto a adoção radical da seus discípulos Siriano (morto em
Academia do século quinto do 437) e Hierócles; Amônio
apofaticismo ajudou a expandir o
pensamento místico cristão. Um (534-617), aluno de Proclo e professor
aspecto do pla- tonismo que é central por sua vez de Simplício e Filopono;
para a última parte de nossa história, bem como inclui muitos outros
o platonismo islâmico, é antes de fato filósofos. Como resume Sorabji (1990,
um desenvolvimento no interior da p. 3), Porfírio resolveu o conflito entre
filosofia aristotélica: o surgimento da a teoria categorial aristotélica e o
tradição do comentador junto com platonismo por meio de um compro-
seu dogma central, a harmonia entre misso que – falando em termos gerais
Platão e Aristóteles. Esta doutrina – via Aristóteles como dando
pode ser rastreada a duas obras resultados válidos para o mundo
perdidas de Porfírio, Sobre a Escola de sensível e o platonismo como
Platão e Aristóteles sendo Uma só e relevante para a compreensão do
Da Diferença entre Platão e mundo inteligível. Comentadores

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posteriores forjaram uma aliança que envolviam verter os textos


ainda mais favorável entre os dois filosóficos gregos em árabe. De
filósofos clássicos. As opiniões de primeira importância foi a tradução
Amônio são particularmente do inteiro Organon aristotélico, in-
importantes para o mundo árabe na cluindo o Isagoge de Porfírio, bem
medida em que era capaz de como as obras completadas pelo
sintetizar uma cosmologia aristotélica filósofo e tradutor al-Kindi e seu
que via Deus como a causa eficiente círculo. Esse notável corpus de
do mundo por meio da traduções diretamente do grego
instrumentalidade das ideias na incluía a Metafísica de Aristóteles, o
mente divina. As opiniões de Amônio De caelo, paráfrases de diálogos de
se refletem na obra de al-Farabi, A Platão, uma obra conhecida como a
Harmonia de Platão e Aristóteles. É a Teologia de Aristóteles (de fato uma
al-Farabi, o primeiro neoplatônico paráfrase de Enéadas IV-VI) e um
árabe, que nos voltamos agora.

Uma rápida visão do movimento de


tradução do século nono AD nos tratado intitulado O Bem Puro (uma
auxiliará a compreender como essa coleção de proposições extraídas dos
doutrina da harmonia está por trás do Elementos de Teologia de Proclo).
desenvolvimento do platonismo Estas últimas obras, circulando
islâmico. Esta escola de pensamento profusamente nos círculos filosóficos,
verdadeiramente unificou as promoviam as tendências de
filosofias de Platão e Aristóteles em harmonização de al-Farabi, Ibn Sina
uma visão sincrética da realidade que (Avicena), Ibn Rushd (Averroes) e,
se fundava igualmente na mente mais tarde, do filósofo judeu
divina de Aristóteles e no emanatismo Maimônides.
de Plotino; ela durou até o século
doze e o advento de al-Suhrawardi, o Al-Farabi talvez seja mais
fundador do Iluminacionismo ou conhecido por seus Princípios das
escola de Ishraqui. O primeiro Opiniões das Pessoas do Melhor
governante abás sida, al-Ma’mum, e Estado (Mabadi’ ara’ al-madina al-
seu sucessor, al-Mu’tasim (reinou de fadila), uma obra que, como a
833 a 842), financiaram várias República de Platão, é um tratado
traduções complexas (Gutas, 1998), Político fundado em uma grelha

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metafísica (ver os capítulos Platão e a primeiro existente/mente dá então


Justiça; O Conceito de Bem em origem a um segundo intelecto e
Platão). O tratado começa com uma assim o fluxo de existência
discussão do primeiro princípio como descendente da série de intelectos
um ser único e necessário, a causa de marca os níveis das várias estações da
todos os outros seres. Este Um se vida inteligente. Os anjos povoam os
enquadra em um esquema causai que reinos intermediários, com a alma
parece provir de Proclo, mas que ao humana estacionada no mundo
mesmo tempo funciona como o sublunar, mas sendo capaz de atingir
Primeiro Motor de Aristóteles, na um tipo de
medida em que é um intelecto que
realiza a auto- consciência. Uma curta autotranscendência, conhecida como
citação do capítulo 1.1 do Madira, atualização, por meio da qual o
como vou me referir a ele, lembra a intelecto humano se toma de fato um
primeira Proposição dos Elementos de com o intelecto divino ou primeiro
Teologia de Proclo: princípio (Madina, seção X cAp. 13).
Leitores das Enéadas verão imediata-
O Primeiro Existente é a mente que al-Farabi se preocupa
Primeira Causa da existência de menos com as implicações da
todos os outros existentes. Está multiplicidade no interior do primeiro
isento de todo tipo de princípio no que esse princípio é ativo
deficiência, enquanto deve ou atualiza a si mesmo através de seu
haver em tudo mais algum tipo próprio autoconhecimento. Na
de deficiência, ou uma ou mais verdade, os aspectos transcendentais
de uma; o primeiro, porém, está e causais do Um já estavam em
isento de todas as deficiências. conflito na época de Plotino e foram
Sua existência, assim, é afastados na obra de Damácio, como
suprema e precede todo outro vimos. No neoplatonismo islâmico
tipo de existência. Nenhuma tardio, as tensões entre a
existência pode ser mais transcendência do Um contra sua
excelente ou anterior à sua atividade causai continuaram a
existência, (trad. Walzer) ocorrer em Ibn Sina, o brilhante
sucessor de al-Farabi. Wisnovsky
A atividade de argumentou (2003) que a
autocontemplação da parte do compreensão neoplatônica do Um ou

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Deus como causa eficiente do compreende as causas do universo


universo, a fonte de processão e sede como um todo e o florescimento
da emanação no mundo do vir-a-ser, humano em particular. Somente a
acoplada à compreensão neo- cidade fundada por um tal legislador,
platônica do Deus ou do Um como a a
causa final do Universo, o fim
transcendente em que se resolve por
fim toda a multiplicidade, gerava nos
teólogos islâmicos um dualismo quem al-Farabi se refere pelo termo
inaceitável. Ibn Sina abordou este árabe ra’islâmico (algo como
problema com sua distinção “presidente”), assim como pelo termo
metafísica original entre existência e árabe “Imã” (V 11 e 12), é capaz de
essência. A definição de Deus final de guiar a cidade no uso da religião como
Ibn Sina é ligeiramente diferente da o ponto central de seu edifício
de seu predecessor. Ele chega Político. Este homem perfeito, o
finalmente à sua definição de um ser governante que atualizou seu
cuja existência não é causada e é intelecto, mas que também se apoia
necessária em si mesma, sem relação em dotes visionários e proféticos, se
ou referência aos seus efeitos subse- esforçará para estabelecer um regime
quentes (Wisnovsky, 2003, p. 13). no qual a pessoa ordinária, aquela
cujo intelecto não pode ser
Para voltar à Madina: para nossos atualizado, será mesmo assim capaz
propósitos, é especialmente de se beneficiar das vantagens de
importante ver como essa estrutura viver em uma sociedade justa, na qual
básica dá suporte ao tratado como as virtudes que são praticadas tornam
um exercício em ciência política. possível a vida contemplativa para os
Obviamente, como os reis-fílósofos que são capazes. Ademais, o Estado
de Platão, o governante da Madrina como um todo imitará as obras do
terá uma visão do Bem e, nos termos próprio cosmos, cooperando sobre-
da teoria do conhecimento de al- tudo com o governante para
Farabi, terá seu intelecto atualizado conformar-se ao padrão divino (V 15,
ou adquirirá o intelecto supremo que 4). Donde, sobre tudo o mais, ele
entra na mente vindo de fora (em deverá reconhecer a autoridade do
grego: nous epiktêtos; em árabe: al- legislador, ao passo que o legislador,
‘aql al mustafad), de modo que por sua vez, terá de amoldar a

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vontade do cidadão ordinário em obra terminou por atrair uma leitura


aquiescência. O instrumento desse mais cristã que judaica.
condicionamento será a retórica e o
veículo para sua disseminação será a Um post-scriptum moderno ao
religião. Os mestres da retórica (khu- platônico árabe al-Farabi diz respeito
tabaV 15,6) se servirão de seus dotes à sua influência direta na
para convencer as mentes não interpretação contemporânea de
filosóficas de uma forma inferior de Platão associada a Leo Strauss. Não
verdade (a religião, enquanto oposta somente é de interesse que al-Farabi
à pura filosofia, que repousa tenha apresentado um ar puramente
principalmente na razão) (al-Farabi: secular em prol do Imã, o líder da
438). comunidade do justo, mas também é
interessante que ele vê a religião
AL-FARABI REDIVIVUS: LEO STRAUSS como subordinada à filosofia. Essa
luta para promover a causa da razão
Fora do Islã, o impacto do platonismo sobre as reivindicações da revelação e
islâmico na filosofia medieval judaica para subordinar a religião sancionada
é enorme. Um destes filósofos é o pelo Estado às conclusões racionais do
fundador do neo- platonismo judaico filósofo não somente reflete o
na Espanha, Salomão ben Judah ibn desacordo doutrinai de al-Farabi com
Gabirol, cujo principal tratado, escrito a Mutakallimun, mas também tem re-
em árabe, as Fons Vitae, nos foi verberações históricas no mundo
transmitido sob o nome de Avicebron. islâmico, na medida em que a luta
Ibn Gabirol bateu-se, como o fizera entre filosofia e fé se desenrolou em
Füon antes dele, para exprimir a uma série de ataques e contra-
relação entre a divindade absoluta e a ataques.
criação por meio de um princípio
intermediário, a Vontade Divina. O mais famoso dos ataques à
Assim como os exegetas cristãos se filosofia no mundo muçulmano é o
viram atraídos pela concepção de Tahafut al-falasifah do filósofo al-
Füon do Logos, assim também a Gazhali, do século onze. Al-Gazhali
Vontade de Gabirol podia ser centrou seu ataque em três doutrinas
adaptada aos esquemas trinitários. que apareceram no neopla- tonismo
Sua islâmico e iniciou uma disputa que
continua a ecoar no mundo islâmico,

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como veremos. Ele criticou como Strauss. Maimônides declara sua


herética a tese de Ibn Sina que Deus adesão à distinção de al-Farabi entre
não conhece os particulares, a tese os dois tipos de audiência, os que são
aristotélica que o mundo é eterno e a capazes de desenvolver racional-
posição em geral platônica que a alma mente a verdade e os que devem
não passa por uma ressurreição do valer-se de sua imaginação para
corpo (al-Gazhali, 1928, p. 6-7). Na compreender a imagem dela. Assim,
verdade, para al-Gazhali, todo o as posições finais de Maimônides a
paradigma da emanação, na medida respeito da criação do mundo estão
em que é processual, não vem de um escondidas no tratado, enquanto seu
Fiat de uma vontade divina, mas maneirismo de redação obscura, sua
ocorre sem volição, porque é da pró- inconsistência deliberada e seu ato
pria natureza das coisas estar em autoral de desviar estão motivados
conflito com a revelação do Alcorão. por sua distinção autoimposta entre a
As objeções do Tahafut receberão escrita esotérica e exo- térica, isto é,
uma réplica magistral no tratado de entre uma obra que visa a uma
Ibn Rushd, o Tahafut al-tahafut ou audiência capaz de investigação
Incoerência da Incoerência. Este livro, racional e a que visa a ouvintes cujas
juntamente com as obras de al-Farabi, imaginações têm de ser tocadas pela
criaram a base para a obra do filósofo retórica da religião. Em sua A Cidade e
judeu do século doze e treze, Moisés o Homem – A Filosofia Política
Maimônides. Em seu Guia dos Platônica e no Argumento das Leis de
Perplexos, ele também buscou Platão, Strauss, correta ou
conciliar os relatos bíblicos da criação incorretamente, lê estas mesmas
com a filosofia racional legada a ele técnicas na obra de Platão. Ele
pelos neopla- tônicos muçulmanos. É descobre então a cautela de al-Farabi
costume considerar e de Maimônides por trás das
cláusulas políticas de Platão, a cautela
do filósofo diante da religião de
Estado. Na Estrutura do Guia dos
Maimônides como o ponto Perplexos, Strauss (1952, p. 180)
culminante do movimento escreve:
aristotélico judeu, mas ele é relevante
para nosso tópico devido a sua influ- O Deus cujo ser é provado na
ência no filósofo do século vinte Leo suposição da eternidade é o

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Primeiro Motor, pensamento durante toda a duração do movi-


que pensa somente a si mesmo mento platônico árabe.
e que, como tal, é a forma ou a
vida do mundo. O Deus cujo ser Esta breve menção ao Platão de
é provado na suposição da Strauss traz à mente o tema central
criação é o Deus bíblico, que é deste capítulo, que é o de demonstrar
caracterizado como Vontade e o papel que os platônicos da
cujo conhecimento tem Antiguidade tardia tiveram na vida
somente o nome em comum intelectual dos pensadores judeus,
com o nosso conhecimento. cristãos e muçulmanos. Com o
platonismo complexo que emergiu
Strauss lega ao mundo moderno, como straussiano, os caminhos
por sua vez, uma leitura sofisticada e entrelaçados dos desenvolvimentos
sutil dos diálogos: eles pressupõem a platônicos nos primeiros cinco
relutância do filósofo em falar séculos de nossa era voltam a agitar o
abertamente diante dos que não são leitor moderno. O Deus dos filósofos
qualificados pela disposição e treino de Strauss é o Primeiro Motor
filosófico a aceitar as demonstrações aristotélico; seu rei-fílósofo vive em
da razão, mas, ao invés disso, têm de um Estado teocrático em que a
ser condicionados pela retórica a religião é um discurso Político que
aceitar versões inferiores da verdade. mascara as visões da vida
Neste sentido, ele estira as diferenças contemplativa, a única fonte
postuladas por al-Farabi autêntica de conhecimento e guia
para a felicidade humana. Neste
e Maimônides entre o ensinamento ínterim, o próprio mundo emana
esotérico e exotérico, desenvolvendo eternamente da auto-contemplação
uma inteira metodologia de ler os desse Primeiro Motor.
diálogos de Platão com base nesta
distinção. Como leitores de Platão, EPÍLOGO: O RETORNO A PLATÃO
fazemos bem em apreciar a etiologia DE AL-SUHRAWARDI
da leitura de Strauss, a saber, que está
enraizada no conflito entre razão e A filosofia islâmica não estagnou ou
revelação, entre falasafah e cristalizou com a síntese de
Mutakallimun, que gerou agitação Aristóteles e Platão proposta por al-
Farabi. Mesmo dentro do Islã, a

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fortuna de Aristóteles aumentou e própria essência por meio do fato


diminuiu de modo variado. Um dos autoevidente da autoiluminação.
críticos mais severos do essencialismo Como ele diz, “você nunca está
aristotélico foi o fundador da escola inconsciente de sua essência ou de
de filosofia Ishraqui (ou sua apreensão de sua essência”
Iluminicionista), al-Suhrawardi, no (1999, p. 80). Esta teoria do
século doze. Sua grande obra árabe, A conhecimento por meio da
Filosofia da Iluminação, recomenda autoevidência está fortemente
uma abordagem visionária à questão relacionada com as ideias
do conhecimento, muito como vimos neoplatônicas da conversão da alma
no caso de Plotino ou Agostinho, uma em si mesma, como a encontramos
abordagem que al-Suhrawardi em Proclo. Em al-Suhrawardi,
distingue fortemente da noção contudo, voltamos à insistência
aristotélica de definição e associa platônica radical que tudo, inclusive a
antes com o que ele entende como o própria alma humana, deve voltar ao
toque pitagórico absoluto, o primeiro princípio que
constitui a natureza original de todo
ser inteligente. Para al-Suhrawardi, o
primeiro princípio simplesmente é luz
em Platão. Com al-Suhrawardi (1999, incorpórea. Ele conclui assim sua
p. 4) diz em sua Introdução, “quem seção sobre o autoco- nhecimento
quer que queira aprender somente a afirmando a não separação do
filosofia discursiva, que siga o método primeiro princípio e da alma humana.
dos peripatéticos”. A primeira parte “Ela [a autoconsciência de cada um] é
do tratado inclui uma crítica da simplesmente o próprio autoevidente
definição aristotélica personagem – nada mais. Portanto, é em si mesma
genus et differentiam: se o ouvinte as luz e é, assim, pura luz” (1999, p. 81).
conhece, ele já conhece a definição; Talvez não possa haver um melhor
porém, se não as conhece, a definição sumário da mensagem do platonismo
não conseguirá aportar a essência da na Antiguidade que a doutrina de al-
coisa (1999, p. 10). A filosofia Suhrawardi tal como expressa aqui:
visionária de al-Suhrawardi está que a luz da inteligência é a natureza
baseada no caráter imediato da essencial do eu humano, bem como o
consciência e na capacidade da princípio superior da realidade. Os
natureza imaterial em apreender sua leitores de Platão terão de julgar por

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Hugh H. PLATÃO
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si mesmos se podem encontrar uma Great Tradition, Variorum Collected


tal doutrina nos diálogos de Platão. Studies Series. Aldershot: Ashgate.

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Todas as traduções são do autor, a
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