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Emilia Viotti da Costa* “Mai 68, on a refait le monde. Mai 86, on refait la cuisine”, 0 distico bem-humorado de um anincio publicado em maio de 1986 no jomal francés Le Monde, por uma companhia que vende cozinhas modernas aos consumidores franceses, captura um momento de transic¢éo da cultura engajada ao consumismo que, a primeira vista e a um observador incauto, parece, de fato, encontrar correspondéncia na transformagao da histo- riografia européia nos ultimos anos, transformagZo essa que, tendo em vista a nossa dependéncia em relagdo aos centros hegem6nicos da cultura, provoca inevitavelmente ecos na América Latina. E bem verdade que se pode questionar a radicalidade de Maio de 68 e duvidar que tenha de fato refeito o mundo (como sugere o antncio), mas nao se pode duvidar de que esta era a intengao de milhares de jovens (e alguns nao tao jovens) que se reuniram naquela ocasiao nas ruas de Paris e em outras capitais do mundo, Por outro lado, pode-se também duvidar de que a mentalidade consumista, individualista e fundamentalmente conservadora sugerida pelo antincio represente acuradamente o estado de espirito das novas geragées. E provavel que o antincio revele mais o desejo dos empresérios e vendedores do que 0 comportamento real dos consumidores. Nao h4 ddvida, no entanto, de que o antincio, posteriormente reproduzido na capa de um volume da Radical History Review, publicado nos Estados Unidos em 1987 ¢ dedicado ao estudo do impacto das novas formas de capitalismo consumista na cultura e na politica contemporanea, caracteriza bem 0 estado de espirito de muitos historiadores e militantes quando estes confrontam as novas tendéncias, seja no campo da politica, seja no campo da histéria. Preocupados com as novas tendéncias que deslocaram os estudos histéricos dos caminhos tradicionais ampliando enormemente as 4reas de interesse, questionando os métodos e as abordagens tradicionais, e fre- qilentemente se associando a propostas polfticas novas, alguns histo- riadores reagem como se de fato essas tendéncias representem uma ruptura perigosa e uma ameaga ao projeto de construgio de uma sociedade mais humana. Essa preocupagao é ainda mais visfvel entre os que se dedicam * Professora da Universidade de Yale. . Maid de 68, refez-se 0 mundo. Em Maio de 86, reforma-se a cozinha. ao estudo da histéria do trabalho, no passado, um campo preferido por militantes. Um grande ntimero de artigos ¢ resenhas publicados recen- temente, criticando a nova histéria social do trabalho, atesta essa preo- cupagdo e faz da histéria do trabalho um campo ideal para se estudar esse fenédmeno. O campo parece dividir-se em dois grupos. De um lado, estio os que encaram com suspeita € reserva as novas tendéncias ¢ continuam a reproduzir em seus trabalhos abordagens estruturalistas tfpicas dos anos 60, sem dar ouvidos As novas propostas. Do outro, estiio os que pros- seguem no trabalho de demoli¢go das posturas dos anos 60, convencidos da validade do novo, simplesmente porque € novo, sem se preocuparem em examinar as possiveis limitagdes ¢ implicagdes das novas abordagens. Tanto uma postura quanto outra me parecem igualmente equivo- cadas. Uma porque se recusa a integrar a teoria as transformag&es extraor- dinérias que ocorreram no mundo contemporaneo nos ultimos trinta anos, apegando-se a esquemas teéricos que dio no mais conta do real, perdendo assim a capacidade de recrutar seguidores entre as novas ge- rages; a outra porque, no scu afi de originalidade, ao inverter simples- mente os postulados da historiografia dos anos 60 em vez de integrd-los numa sintese mais rica, corre nfo s6 0 risco de recriar, sob aparéncia do novo, um tipo de histéria bastante tradicional, mas © que é mais sério, no afa de buscar novos temas pode deixar inteiramente de lado aspectos que so fundamentais para a compreensdo da vida do individuo em sociedade, deixando-o desprovido dos referenciais necessdrios para que cle possa situar-se no presente e projetar a construgdo de uma sociedade mais livre e mais justa. A historiografia transforma-se entéo num exercicio puramente estético € ret6rico, ou, o que é pior, num exercicio meramente académico que acaba por servir — a despeito da intencdo explicita dos autores em sentido contrério — a propésitos eminentemente conservadores. Nesse campo assim polarizado, parece-me que € de suma importancia nos deter- mos para refletir sobre essas tendéncias, nfo para retomar as abordagens € préticas que foram obviamente superadas pela propria historia contemporanea, nem para simplesmente celebrar as novas abordagens, mas com © objetivo de abrir caminhos para uma nova sintese mais fecunda. Para entender-se a ruptura epistemolégica que ocorreu na his- toriografia nos Ulimos trinta anos, é necessério examinar as profundas mudangas que afetaram a sociedade ¢, ao mesmo tempo, alteraram as con- digdes de produgao intelectual, Para isso é preciso lembrar, em primeiro lugar, que sinais das tensdes que vieram & tona nos dltimos anos podem ser tracados ja nos fins dos anos 50. As obras de Sartre, Critica da Razdo Dialética e de seu adversério Merleau Ponty, Humanismo e Terror e as Aventuras da Dialética, se bem que respondessem de maneira diversa aos 10 desafios de seu tempo, continham jé as perplexidades ¢ dividas que desembocaram no impasse te6rico com que se defrontam hoje os historiadores. Num ensaio publicado nos anos 60, Merleau-Ponty observava que a dialética também tem sua hist6ria. Depois de chamar atengdo para a tensio entre liberdade e necessidade que existe no interior da dialética ele observava que dependendo da praxis social dos varios momentos, 0 agentes hist6ricos sfio levados ora a enfatizar o papel do sujeito e, portanto, da sua subjetividade, da sua vontade ¢ da sua liber- dade, ora o das forgas hist6ricas. De fato, quando se examinam as mudan- gas que ocorreram na historiografia nos Ultimos trinta anos observa-se um deslizamento progressivo de um momento estruturalista que privilegiava a necessidade, para um momento anti-estruturalista que d4-enfase & liber- dade. De uma énfase no que se definia como “forgas histéricas obje- tivas", para uma énfase na “subjetividade” dos agentes hist6ricos. De uma preocupagio com o que nos anos 60 se conceituava como “infra estrutura”, para uma preocupagio com o que entdo se conceituava como “superestrutura”™. © que comegara como uma critica salutar e neceséria a mecanicis- mos ¢ reducionismos economicistas ¢ & separagao artificial entre infra ¢ superestrutura. — separagio essa habilmente criticada por Raymond Williams — assim como as criticas feitas por E. P, Thompson ao estru- turalismo de Althusser, acabaram, contrariamente as intengdes daqueles autores, numa total inversio da dialética. O cultural, 0 politico, a linguagem deixaram de ser determinados para serem determinantes, A consciéncia passou a determinar o ser social. Assim também a erftica bastante valida As nogdes essencialistas de classe ¢ As relagGes mecAnicas entre classe ¢ consciéncia de classe, corretamente problematizadas na importante obra de Goran Therborn, Ideologia e Poder ou 0 Poder da Ideologia? ¢ os novos caminhos que essa critica abriu para uma investigagio dos processos de construgdo das miltiplas e freqiientemente contraditérias identidades (étnicas, religiosas, de classe, de géncro, de nacionalidade), desembocaram em posigdes que levaram ao completo abandono do conceito de classe como categoria interpretativa. A vélida critica ao objetivismo positivista que postulava uma total autonomia do objeto em relagio ao sujeito e que confiava cegamente no cardter cientifico da hist6ria, ¢ 0 necessério reconhecimento de que o historiador constréi o seu pr6prio objeto, freqiientemente levaram a um total subjetivismo, a 2 Goran Therborn, The Ideology of Power and the Power of Ideology (Verso 1980). 2 negagdo da possibilidade de conhecimento, e até mesmo ao questiona- mento dos limites entre histéria e ficgao.? No meu entender, tanto as abordagens tradicionais hoje submetidas 4 critica quanto as novas posturas so profundamente antidialéticas. Elas nao s6 postulam uma separagao artificial entre objetividade ¢ subjetividade (ou liberdade ¢ necessidade) esquecendo que uma est4 implicada na outra, mas também ignoram um principio basico da dialética que afirma que siio os individuos (homens € mulheres) que fazem histéria, se bem que a fagam em condigdes que nao foram por eles escolhidas. O resultado desse movimento de uma postura tedrica para outra foi que se passou sim- plesmente de um tipo de reducionismo para outro. Ao reducionismo econémico substituin-se um novo tipo de reducionismo: cultural ou Ii gilfstico, tio insuficiente © equivocado quanto o anterior, apenas se inverteram os termos do discurso historiografico. A um tipo de reificagao op6s-se um outro. O que se assistiu foi uma mera inversdo de duas posturas igualmente insatisfat6rias, nenhuma das quais faz jus & complexidade da dialética e da teoria da praxis, No proceso de liquidagéo das abordagens tradicionais houve outras vitimas. Uma delas foi a nogdo de proceso histérico, Insatisfeitos (e com bastante razdo) com uma histéria teleoiégica que enxergava cada momento como uma etapa necesséria de um proceso histérico linear que automaticamente conduziria a um fio j4 explicitado de antemfo, um grande mimero de historiadores passou a negar que a histéria obedecesse a qualquer Igica. Ao mesmo tempo, abandonaram qualquer esforgo de totalizagao, Isso levou ao descrédito ¢ abandono de todos os modelos teéricos, fossem eles emanados das teorias de modernizagao, da teoria da dependéncia ou das teorias sobre os modos de produgao. Conseqtien- temente, as questdes tedricas que no passado freqiientemente se ressen- tiam da falta de embasamento empirico e se perdiam em debates esco- lésticos, estércis ¢ infrutiferos, passaram a um segundo plano, quando nao foram totalmente esquecidas. O empirismo virou moda novamente. Nao mais como um momento necessério da teoria, mas como um fim em si mesmo. Como se a histéria inocentemente se revelasse a quem quer que se debruce sobre os documentos. De um processo dedutivo, néio dialético, que demonstrava mais do que investigava, e que jé parecia saber a his- t6ria de antemfo, passou-se a um processo indutivo que jamais se alga a0 nivel te6rico, ¢ que quando muito se funda na esperanga de que a ° WHITE, Hayden. “The Value of Narrativity in the Representation of Reality", Critical Inquiry (Autumn, 1980), 6-27 e do mesmo autor “The Structure of Historical Narrative”, CLIO (1972), 5-20, e no mesmo volume “The Historical Text as Literary Artifact”, 41-62, 3 acumulagdo de dados ¢ monografias venha um dia a permitir a elaboragio de uma teoria. Passou-se também a privilegiar o acidental, o imprevistvel, © inesperado, 0 irracional, 0 espontineo, chegando-se ao ponto de se negar pura e simplesmente a existéncia de um processo hist6rico. A histéria tableau, as histérias da vida cotidiana, que pareciam ter sido de ha muito enterradas, foram ressuscitadas, sob uma nova roupagem termi- nologicamente mais sofisticada. Mas sob essa roupagem a velha histéria da vida cotidiana, tio em moda nos anos 50, volta a circular. Assim também a meméria, o depoimento tomaram cada vez mais o lugar ocupado pela histéria. Porque a historiografia tradicional negligenciara, erronea- mente, a subjetividade dos agentes hist6ricos, (wranformando-a num epifendmeno), a nova historiografia fez desta o centro de sua atengao. Fazer histéria do ponto de vista do participante passou a ser 0 novo lema. A histéria oral passou a ser um género favorito, Multiplicaram-se os estudos fundados exclusivamente cm memérias, depoimentos e entre- vistas, como se estes contivessem toda a hist6ria, ou, em outras palavras, como se a histéria se resumisse numa confusao de subjetividades, uma espécie de torre de babel, Os mais extremados chegaram a imaginar que a Ynica safda é permitir que cada um conte a sua verdade. O trabalho do historiador neste caso se limitaria a registrar as varias versdes. Simul- taneamente, a atengfo dos historiadores deslocou-se da preocupagéo com as estruturas globais de dominagio, os processos de acumulagio do capital, o papel do Estado e as relages entre as classes sociais, que haviam preocupado a historiografia tradicional, para as chamadas mi- crofisicas do poder.* Essa tendéncia que deve muito a Foucault representou uma extraordinéria expanséo das fronteiras da hist6ria: a loucura, a anorexia, a criminalidade, a prostituigéo, a homossexualidade, a feitigaria, o carnaval, © cheiro, as procissées, os mistérios ¢ os rituais, a teatralidade do poder, ‘os mitos, as lendas, as formas individuais e cotidianas de resisténcia, que no passado apenas marginalmente tinham interessado aos historiadores absorveram grande parte da energia dos jovens, No entanto, com raras € notdveis excegdes, os que em niimero crecente se devotaram a esses estudos raramente tentaram estabelecer uma conexao entre a micro ¢ a macroffsica do poder. Na historiografia em geral esses dois tipos de abordagens (com raras excegdes como por exemplo no livro de Carlo Guinzburg: The Cheese and the Worms or the Knight Battles ou de Natalie Davis a Volta de Martin Guerre, por exemplo), continuaram a correr para- 4 Para maiores detalhes, Emflia Viotti da Costa, “Structures Versus Experience: What Do We Gain, What Do We Loose?” International Labor and Working Class History, 36 (Fall 1989), 3-24. 4 Jelas sem jamais se tocarem. O resultado foi que apesar da extraordindria expansio das fronteiras da histéria e do enriquecimento inegdvel da nossa comprensio da multiplicidade da experiéncia humana através dos tempos, a macro-fisica do poder permaneceu na sombra. Quando o poder esté em toda a parte, acaba por nao estar em lugar algum. Além de que, 0 método de andlise derivado de uma leitura simplificada e seletiva da obra de Fou- cault embora tenha contribuido para esclarecer ¢ ampliar a compreensiio dos varios locais onde 0 poder se exerce, recusa-se a explicar como ¢ porque ele se constitui, se reproduz e se transforma. As conexdes entre © cotidiano e a macrofisica do poder sfo esquecidas. Contrariamente & intengao original de Foucault, as micro-histérias freqiientemente ficam como pegas coloridas de um caleidoscépio quebrado, sem se juntarem, sem se articularem num desenho, no passando de fragmentos de uma expe- riéncia sem sentido. As formas de contestagfo que no passado se baseavam na critica do estado ¢ das estruturas econémicas ¢ sociais nfo foram validadas pela nova pratica historiogrdfica, talvez melhor seria dizer que foram des- qualificadas. Outras prdticas encontraram justificativa nessa nova histéria que vé em cada gesto uma forma de resisténcia, celebra o espontaneismo, a resisténcia cotidiana, as armas dos fracos (weapons of the weak) no dizer de James Scott, e prega a subversao da linguagem.® No entanto, 0 que potencialmente pode significar emancipagao também pode facilmente se transformar num beco sem safda, pois € dificil posicionar-se numa histéria arbitrdria, cadtica, sem sentido nem diregdo. Nenhuma das tendéncias citadas até aqui, contribuiu tanto para a inverséo da dialética quanto a excessiva énfase no discurso, seja ele 0 discurso dos oprimidos ou dos opressores, dos reformistas ou dos con- servadores — tendéncia que levou ao que um autor chamiou de lingiiicismo grosseiro (vulgar linguicism).© Essa tendéncia bastante generalizada nos varios campos da histéria apareceu em toda sua plenitude em estudos que nasceram de preocupagées femininas. Brian Palmer em Descent into Discourse, depois de reconhecer enorme valor ¢ significado desses novos estudos chama atengdo para o fato de que embora muitos deles se utilizem da teoria do discurso, a grande maioria no fez sendo importar uma terminologia que serve apenas para enfeitar os textos de hist6ria social que continuam, no mais, a seguir metodologias bastante convencionais. 5 James C. Scott, Weapons of the Weak. Everyday Forms of Peasant Resistance (New Haven, 1985). ® Comentario de Myra Jehlen in Radical History Review Winter 1989, citado por Brian Palmer, “Descent into Discourse”, pp. 163-64. Is Discurso, linguagem, simbdlico, deconstrugao, passaram a ser expressées de uso corrente, se bem que freqiientemente mais como parte do voca- bulério, do que da teoria.” © passo seguinte foi a reificagdo da linguagem. Essa tendéncia aparece claramente nos estudos sobre a classe operaria.® Stedman Jones, por exemplo, autor de um controvertido estudo sobre 0 cartismo® depois de afirmar que nfo hé realidade social fora ou anterior & linguagem, conclui que a classe € construfda numa complexa ret6rica de associagées meta- foricas, inferéncias causais e construgdes imagindrias.1° Criticando Stedman Jones por ndo ir as dltimas conseqiiéncias dessa metodologia, Joan Scott! vai ainda mais longe propondo um método de anélise que mostre como idéias tais como classe convertem-se através da linguagem em realidades sociais (ideas such as class become through language, social realities). Segundo ela, a linguagem determina a forma das relagdes sociais em vez do reverso,2* Scott da prioridade ao conceit de classe sobre a experiéncia de classe ao afirmar que antes de que individuos possam-se identificar como membros de uma classe ¢ possam agir coletivamente como tal, cles precisam ter o conccito de classe — o que evidentemente representa uma inversio das posturas te6ricas tradicionais.! Com isso nfo quero dizer que a andlise do discurso nao seja uma técnica imprescindivel ao trabalho. do historiador, Ou que a retdrica ndo seja uma importante, ¢ mesmo fundamental, via de acesso 4 compreensio hist6ria. Mas reconhecer isto néo é 0 mesmo que dizer que a anélise do discurso é suficiente para a compreensio da hist6ria. E muito menos, co- mo querem alguns, que 0 que existe sio apenas textos sobre textos, € 7 Bryan D. Palmer, Descent into Discourse. The Reification of Language and the Writing of Social History (Philadelphia, 1990). ® GRAY, R. “The Desconstructing of the Working-Class” in Social History, XI (1986) and FOSTER, J. “The Declassing of Language”. New Left Review, 150 (1985) S JONES, G. Stedman, Languages of Class: Studies in English Working-Class History, 1832-1982 (Cambridge, 1983). 19 Leia a critica a Stedman Jones em Neville Kirk, “In Defence of Class. A Critique International Review of Social History, 37 (1987), 2-47. Ainda em P.A. Pickering, “Class Without Words: Symbolic Communication in the Chartist Movement”, in Past and Presens, 112 (1986) and J. Epstein, “Rethinking Categories of working- class History”, in Labour Le Travail, 18 (1986). “On language”, Gender, and “Working Class History”, International Labor and Working-Class History, 31, (Spring 1987):1-14. "2 Criticas a Joan Scott in Internation Working and Labor Class History, 31, Spring 1987, particularmente Christina Stansell pp. 24-30. 13 “concepts like class are required before individuals can identify themselves as members of such a group, before they can act colectively as such”, Scott, A Reply to Criticism, International Labor and Working-Class History, 32, Fall (1987):39-45. 16 que o trabalho do historiador € semelhante ao do eritico literario e nao passa de uma deconstrugao ad infinitum.'4 Descrevendo os sucessos de 68 ¢ a emergéncia do post-estrutu- ralismo, Terry Eagleton comenta com ironia que, incapaz de subverter as estruturas do poder do estado, a geragdo de 68 subverteu a linguagem. Numa resenha do livro de Furet sobre a Revolugio Francesa, Lyn Hunt comentava em 1981 que a histéria da Grande Revolugdo ha muito asso- ciada & violéncia, fome ¢ conflito de classes foi transformada num “evento semiolégico”. Ignorando as estruturas de poder e a maneira pela qual elas medeiam a linguagem e a ago humana, Furet construira uma nova meta- fisica® A historiografia contemporanea revela uma Ppreocupacao crescente com problemas epistemolégicos, com o discurso do proprio historiador. Essa tendéncia também nfo é nova. Em 1956, numa conferéncia pronunciada nos Estados Unidos, na universidade de Johns Hopkins, Derrida afirmava: “precisamos interpretar a interpretagéo mais do que interpretar as coisas”. Seu apelo encontraria um grande mimero de segui- dores que se ocuparam mais em discutir os limites da consciéncia hist6rica, do que a prépria histéria que, dessa forma, ficou cada vex miais inacessivel. © questionamento das categorias explicativas utilizadas pelo historiador levou a uma obsessiva indagaao sobre a validade de se apli- Car nossas categorias a outros espagos, outros tempos, outras culturas. Podem as categorias nascidas da experiéncia curopéia serem aplicadas ao Oriente?" Pode 0 colonizador falar sobre 0 colonizado? Poder os homens falar sobre a experiéncia das mulheres, ou brancos sobre negros? FE pos- sfvel escrever-se sobre a histéria das classes subalternas ou deverao os subalternos falar por si mesmos? Podem os subalternos falar?!” Serdo as teorias sobre a diviséo sexual do trabalho adequadas ao estudo das regides centrais do capitalismo aplicdveis as regiées periféricas?, indaga uma autora num ensaio recentemente publicado na Latin American Research Review.\® As diividas se multiplicam. Aqui também e mais uma ve2, 0 que pode ser uma reflexio salutar sobre as distorgdcs que 0 viés do historiador impde a construgao da histéria, pode também facilmente \'A anedota das tartarugas em Clifford Geertz: Thick Description in The Inter- pretation of Cultures, New York, Basic Books, 1973 © Brian Palmer, Descent into Discourse The Reification of Language and the Writing of Social History, (Temple University Press, 1990). \ Edward W. Said, Orientalism (New York, 1979). 7 Esse € 0 titulo de um ensaio de Gayatri Chakorvaorty Spivak, publicado em Dary Nelson and Lawrence Grossberg eds., Marxism and the Interpretation of Culture (Chicago, 1988), "Lynne Philips, Rural Women in Latin America: Directions for Future Research, Latin American Research Review 25, 3 (1990), 89-108. 17 levar a total negagdo da sua possibilidade. Estamos longe evidentemente, das muitas certezas que caracterizavam os anos 60. O que pode ser bom, mas também pode ser mau, Que a produgio historiogréfica derivada de uma certa leitura positivista dos autores classicos da dialética deixava muito a desejar é uma observagdo bem antiga. De certa forma, muito do que se caracteriza hoje como pés-moderno, pés-estruturalista, encontra suas raizes na obra de um filésofo francés que exerceu um fascfnio extraordindrio nos anos 60 mas que curiosamente foi colocado no ostracismo provavelmente pelas suas vinculagSes polfticas com 0 PCF. Talvez nao seja por acaso que enquanto o siléncio recaiu sobre a importante obra de Jean-Paul Sartre, quem tomou o seu lugar foi um seu adversdrio politico, o jornalista e panfletista Raymond Aron, cuja obra os intelectuais dos anos 60 desprezavam pela falta de profundidade de suas idéias, mas que desde entéio passou a ser o guru de uma nova geracdo. (Hé algum tempo, o New York Times dedicou uma pagina inteira a Raymond Aron, escrita por um conhecido intelectual de direita.) No entanto, qualquer um que se dé ao trabalho de ler a introdugao escrita por Sartre a Critica da Razdo Dialética (Jean-Paul Sartre, Critique de la Raison Dialectique, precede de Question de Methode (Paris, 1960). Encontraré ai uma critica perspicaz da historiagrafia marxista francesa do seu tempo, uma critica certamente mais rica e estimulante do que a feita muitos anos antes por Nietzsche & historiografia do scu préprio tempo. No entanto, foi este ¢ nao Sartre quem juntamente com Raymond Aron foi reciclado nos dltimos anos, nao obstante ter sido Nietzsche um dos idedlogos que serviu de inspiragio aos nazistas. Foi Sartre quem nos anos 60 criticou o intelectual marxista que acreditava servir seu partido violentando a experiéncia ¢ negligenciando detalhes, simplificando grosseiramente os dados e conceitualizando o evento antes mesmo de té-lo estudado.!® Sartre denunciou também a transformagdo de um método de investigagiio em metafisica. Os conceitos abertos, diria ele, se fecharam, nfo so mais chaves, esquemas inter- pretativos, eles se apresentam como saber jé totalizado. A pesquisa to- talizadora cedeu lugar a uma escoldstica da totalidade. O princfpio eu- ristico: buscar 0 todo através das partes foi transformado nessa pratica terrorista de liquidar a particularidade.”° Analisando a obra de Dabiel ‘pendant des anées V’intelectuel marxiste crut qu'il servait son parti, en violant Vexperience, en negligeant les détails genants en simplifiant grossitrement les données et surtout en conceptualisant I’évenement avant de l’avoir etudié.” % “Les concepts ouverts se sont fermés, ce ne sonplus des clés, des schemes interpretatifs, ils se posent pour eux memes comme savoir deja totalisé.” “La recherche totalisatrice a fait place a une scolastique de la totalité... Le principe euristique chercher le tout a travers le parties est deven» cette pratique terroriste liquider Ia particularité.” 18 Guerin intitulada La Lutte des Classes Sous la Premiere Republique, Sartre comentava: “Esse método nao nos satisfaz, ele é, a priori, nao tira seus conceitos da experiéncia que quer decifrar, est4 certo de sua verdade antes mesmo de comegar, (...) seu tinico objetivo é fazer entrar os aconteci- Mentos, as pessoas ¢ seus atos em moldes pré-fabricados.” Sartre criticava a redugao do polftico a0 social, assim como a incapacidade dos histo- tiadores de integrar na histéria a perspectiva dos agentes hist6ricos, criticava ainda a redugdo da ideologia aos interesses de classe. Acusava esse tipo de histéria de dissolver os homens reais num banho de 4cido sulfirico. Sartre questionava ainda as abordagens que estabeleciam uma relagdo mecanicista entre individuo ¢ classe social e entre classe social € consciéncia, entre préxis imagindria ¢ real. Ele insistia na importancia das mediagdes ¢ condenava o carter teleol6gico das explicagées. Numa famosa frase ele sintetizava toda a sua critica: “Valery € um intelectual Pequeno burgués, mas nem todo pequeno burgués intelectual é Valery” (p.44);. essa observagio, segundo Sartre, definia a insuficiéncia do marxismo de seu tempo. Foi Sartre também que denunciou a falta de estudos sobre a infancia: os historiadores, dizia ele, “agem como sé os homens experimentassem a alienacdo e a reificagéo primeiramente no tra- balho, quando de fato cada um vive a alienagdo primeiramente como crianga, no trabalho dos pais”.*! Foi Sartre quem chamou atengdo, para a importancia da histéria da sexualidade que na sua opinido nao era sendo uma maneira de viver num certo nivel, ¢ da perspectiva de uma certa aventura individual, a totalidade de nossa condiga0.2? Sartre criticou também as abordagens essencialistas, funcionalistas ¢ cstéticas que igno- ram 0 significado das contradigées e a importancia do processo hist6rico diacr6nico. J4 nos anos sessenta, Sartre Propunha-se a recuperar o homem no interior do marxismo. Foi esse projeto que ele tentou desenvolver no seu livro sobre Flaubert. Sua companheira Simone de Bovoir foi igualmente Pioneira, Foi ela quem nos anos 60 levantou a bandeira do novo feminismo, Portanto, no bojo dos anos 60 jf se podiam detectar as perplexidades ¢ as diretivas que desembocaram na historiografia contemporanea, via Barthes, Foucault, Lacan e Derrida.23 * “Le marxistes d'aujourd hui n'ont souci que les adultes on croirat a les lire que nous naisson a l'age ou nous gagnons notre premier salaries, ils ont oublié leur Propre enfance... comme si le hommes éprouvaient leur alienation et leur reification dans leur propre travail d’abord, alors que chacun la vit d’abord, comme enfant, dans le travail des ses parents.” 2 “Nvest qu'une manére de vivre a un certain niveau ct dans la perspective d'une certaine aventure individuelle In totalité de notre condition.” % No entanto, apesar da diferenca que existe entre eles, esses autores, com excegto de Sartre © Simone de Beauvoir, tendem a ser anti-bumanistas a-historicos. Veja. se sobre isso Kate Soper, Humanism and Anti-Humanism. problems in Modern European Thought (London, 1986). 19 A historiografia dos nossos dias ergueu-se contra os defeitos assinalados por Sartre se bem que ao tentar evitd-los nfo seguiu os ca- minhos por ele indicados. Foi Nietzche quem capturou a imaginagio da nova geragdo com seu esteticismo, Sua idéia de que ¢ apenas como fe- némeno estético que a cxisténcia e 0 mundo se justificam ¢ que os fatos ¢ as coisas sio criadas pelo préprio ato de interpretar pareceu mais atraen- tes do que a proposta sartreana que se mantinha ainda dentro dos limites do marxismo. A insurreigdo contra a historiografia tradicional.e seus métodos ¢ abordagens se evidencia de forma mais clara nos estudgs contempordneos sobre a histéria do trabalho. E af também que se dio os maiores con- frontos entre os representantes dos dois grupos; mesmo porque, neste caso, 0 que estd em questo nao é apenas qual’a melhor interpretagiio do passado, mas também qual a melhor estratégia no presente. Enquanto a historiografia dos anos 60 focalizava as macrofisicas do poder € se preocu- pava com as estruturas econémicas ¢ o papel do Estado ¢ das liderancas operdrias na formagio da classe operéria, privilegiando os momentos de conflita entre capital ¢ trabalho, a historiografia contemporanea focalizou os rituais, a linguagem as formas cotidianas de resisténcia ¢ de lazer. Enquanto a historiografia tradicional se preocupava em estudar o impacto que a tranformacio industrial e 0 Estado tiveram no movimento operério, a nova histéria inverteu a questo e passou a preocupar-se mais em ‘examinar 0 impacto que a mobilizagdo operdria teve tanto na economia quanto na organizagao do Estado. Enquanto a historiografia tradicional concentrava sua atencdo na classe operdria, A qual atribuia uma predisposi¢do revoluciondria, a nova historiografia problematizou € histo- ricizou a nog&o de classe, questionando tanto a visio essencialista da classe operéria caracteristica da historiografia tradicional como a inevita- bilidade previamente assumida da sua vocagio revolucionéria. Questionou também a existéncia de uma solidariedade natural da classe operéria expondo os conflitos internos entre varios tipos de identidade: politico- partidéria, nacional, religiosa, étnica, sexual, que na prética se articulam de vérias formas & identidade de classe, as vezes reforgando-a, as vezes enfra- quecendo-a, A nova historiografia repudiou também as aboradagens teleoldgicas que assumiam que a histéria caminhava inevitavelmente ¢ de forma unilinear para o socialismo ¢ que viam em cada momento hist6rico uma nova etapa nessa direcfio, O foco de atengio deslocou-se do movi- mento operdrio, dos partidos politicos ¢ dos sindicatos, para os operdrios; da classe operdria para os trabalhadores; da fébrica para a casa © a rua; do operério para a famflia operéria; do trabalho para as atividades recrea- tivas e para a cultura, A partir dessa reavaliago da experiéncia operdria reexaminaram-se as relagGes entre liderangas ¢ liderados, entre a elite sindical e os tra- 2 balhadores e entre as liderangas sindicais © os governos no perfodo po- Pulista. Questionaram-se as abordagens que assumiam uma conexdo automatica entre os tipos de atividades exercidas pelos operdrios e as formas de consciéncia, a0 mesmo tempo que se descartaram os conccitos de hegemonia e falsa consciéncia freqilentemente utilizados pela hitorio- grafia tradicional. A massa de trabalhadores urbanos néo-industriais que escassamente interessara a historiografia tradicional Ppassou a ser foco de novas pesquisas. Dessa forma, alargaram-se os horizontes da histo- riografia que passou a interessar-se pelos movimentos sociais, a incluir as mulheres ¢ a questionar a validade de uma historiografia que a0 conceituar a classe operdria em paises em que mulheres e grupos éticos diversos compunham a maioria dos operdrios, freqiientemente os ignorara em beneficio do trabalhador masculino e branco, uma historiografia que dei- xava de lado o papel importante desempenhado pela mulher na produgdo © reprodugéo da classe operdria, Nesse processo de revisio, alguns autores chegaram a sugerir uma reinterpretagao feminista da formagéo da classe operdria.24 A inverso da dialética tem provocado nos tltimos anos um grande nimero de debates e algumas reacdes negativas. Num ensaio cujo titulo revela as preocupagées do autor, “Em busca de um ‘Novo’ sujeito hist6rico: 9 fim da cultura operdria, do movimento operério e do proletariado,?5 Michael Schneider caracteriza esse conflito que tem lugar dentro dos debates sobre a Social Democracia e sua polftica na Alemanha pés-guerra. Dentro desse novo contexto, alguns escritores como André Gorz chegaram mesmo a argumentar que nesta era pés-industrial o proletariado desapareceu, tomou-se uma minoria privilegiada. Em seu lugar apareceram outros grupos. A partir dessa conjuntura, as formas tradicionais de consciéncia proletaria no tém condigdes de emergir, Esses autores chegam a vaticinar o fim do movimento operério © a emergéncia dos movimentos sociais tais como os movimentos em prol da paz (peace movements), os movimentos de moradores, os movimentos ecolégicos, os mavimentos de mulheres etc. Outros olham com nostalgia para um passado que eles descrevem como um momento em que a cultura operéria era integrativa radical ¢ culpam as priticas da Social Democracia pelo seu desa- % Para maiores detalhes, Emilia Vioti da Costa, “Estruturas versus experiéncia: novas tendéncias na histéria do movimentos operdrio e das classes trabalhadoras na América Latina. O que se perde ¢ o que se ganha", Boletim Informativo ¢ Bibliogrdfico de Ciéncias Sociais 29 (1990), 3-16. % Michael Schneider, in Search of a “New Historical Subject”: The end of working- class culture, the Labor Movement, and the Proletariat, ILWCH Fall 1987, pp. 46-58. 2 parecimento, Outros ainda, como Schneider, afirmam que a inclusio da Social Democracia © dos Sindicatos no periodo de pés-guerra no sistema politico democrético ¢ na economia de mercado, contribui para uma melhoria das condig6es de vida dos trabalhadores, 0 que, somada nova legislago sobre relagdes trabalhistas, levou 4 eroséo da consciéncia de classe.2° A medida que o reformismo social conseguiu uma maioria parlamentar, diminuiv a convicgio de que 0 proceso de emancipagio humana reside no proletariado. O declinio numérico do proletariado e as dificuldades, senio impossibilidade, de criar uma consciéncia de classe levaram A redefinigao das estratégias polfticas de transformagao social ¢ simultaneamente & busca de novos paradigmas historiogréficos orientados para o estudo da politica do cotidiano, o que deu margem ao florescimento da nova hist6ria social do trabalho. Analisando as conseqiiéncias dessas novas priticas politicas ¢ historiogréficas, Schneider observa que a solidariedade de pequenos grupos de trabalhadores ou de habitantes de uma parte da cidade (grupos de vizinhanga), sem diivida cria ilhas alternativas de cultura e reforma social, mas ndo podem substituir um programa politico mais inclusivo. Para ele, 0 projeto de estudar-se a vida cotidiana que tem por objetivo descobrir © potencial politico na vida do homem comum e que enfatiza apenas os aspectos negativos das organizagées classistas e politico-partidérias mais inclusivas, pode facilmente levar a um beco sem saida. Mesmo quando se refere ao movimento operdrio, a histéria que nao vai além da vida cotidiana valoriza os atos isolados de resisténcia, tem como resultado diminuigao a dimensio politica do movimento operério. Depois de apontar as deficién- cias metodoldgicas dessa nova histéria, Schneider conclui que muitos desses estudos locais € regionais que se justificam em nome de dar voz aos oprimidos ¢ preencher os pontos de siléncio do discurso oficial desembocam numa compilagao nao critica e assistemética de detalhes, cuja relevancia nunca é questionada, um cemitério de fontes, um repositério de curiosidades, Finalmente, diz Schneider, existe sempre o perigo de que os historiadores que cultivam esse tipo de histéria sejam eles préprios incapazes de avaliar criticamente a sua pr6pria situagdo ¢ sua propria vulnerabilidade.2” Essa crftica vinda de um historiador alemfo ao analisar as tendéncias da historiografia em seu pais merece atengéo, se bem que se % Processo andlogo foi registrado na Inglaterra nas duas décadas que se sucederam A Segunda Grande Guerra. In James Cronin ¢ Jonathan Schneer eds. Social conflict political crisis in Modern Britain. (New Brunswick, 1982) 2 Michael Schneider, In Search of a “New Historical Subject”: The end of work- ing-class culture, the Labor Movement, and the Proletariat, of 1.17, ILWCH Fall 1987, pp. 16-58, 2 Possa argumentar que 0 autor ndo parece visualizar um momento seguinte em que uma sintese mais rica seja possfvel parecendo escapar-Ihe que o que hoje Ihe parece derivative, é um momento necessério que a longo prazo pode ter como resultado a produgao de uma nova histéria ¢ uma nova pratica mais eficaz.6 Para que essa sintese seja possfvel, no entanto, é necessério dar ouvidos a essa critica que hoje se ergue contra as tendéncias da historiografia contempordnea. E preciso que se reconheca a necessidade de trabalharmos na diregSo de uma nova sintese. Isso parece tanto mais necessdrio quando se pensa do ponto de vista das sociedades latino- americanas, em que as modas historiogréficas européias ou americanas se reproduzem nao necessariamente como resultado das perplexidades nascidas das condigées estruturais internas, mas como produto de importagao de modas intelectuais nascidas de outras realidades, Esse fenémeno muitas vezes rotulado de dependéncia cultural tem apenas se acentuado num mundo em que nfo sé a economia como o préprio trabalho intelectual é cada vez mais internalizado e em que esse processo de internacionacionalizag4o continua em grande parte a passar pelos centros hegeménicos de produgao cultural. Nao quero com isso dizer que devemos isolar-nos ou interromper 0 diélogo fecundo que se estabelece com os intelectuais do mundo desen- volvido, Essa postura resultaria inevitavemente num empobrecimento. Mas € preciso que passemos da posigao de passivos consumidores de cate- gorias interpretativas para a de produtores ¢ para isso é necesséria uma avaliag&o critica do que € produzido em outras partes do mundo — tanto no centro como nas periferias, remetendo as categorias as circunstincias de sua criagdo, analisando as semelhangas e diferengas de processos historicos especificos para entio se indagar da validade da aplicagio dessas categorias a nossas realidades. Quando eu ougo Michelle Perrot, uma das histortidoras de vanguarda na Franca, dizer numa entrevistd que a sociedade pés-moderna € uma sociedade em que as possibilidades de expressividade individual se multiplicaram, que o impacto do sistema politico e os modelos culturais tém sido exagerados © que afinal de contas as pessoas ainda tém sua vida privada, que suas faculdades criticas sio cada vez mais desenvolvidas Porque um major niimero de pessoas sio educadas, eu me pergunto se de fato essa observacao se aplica as camadas populares tanto nos pafses % Alf Ludtke tenta estabelecer uma Ponte entre o novo e o velho em “The Historiography of Every Day Life: The personal and the political”, In Raphael Samuel and Gareth Stedman-Jones, Culture, Ideology and Politics, London, 1993, 38-54. 23 periféricos quanto fio centro. Mas quando Perrot afirma que a sociedad pés-moderna € uma sociedade em que as pessoas tm um respeito muito maior umas pelas outras, cu me pergunto em que mundo ela tem vivido. Racismo, torturas, massacres de liderangas, guerrilhas, esquadrao da morte, problemas de sobrevivéncia que afetam o dia-a-dia de homens e mulheres das periferias, a violencia do cotidiano, a manipulagdo da mfdia, esses © tantos outros problemas que so 0 dia-a-dia de milhares de pessoas nas periferias do mundo nao parecem ter entrado no universo de Michelle Perrot ¢ de muitos outros intelectuais de vanguarda dos pafses desen- volvidos.2° Visto da periferia, 0 narcisismo celebratério ¢ as formas de mi- litancia dessa nova vanguarda européia que ignora o que se passa nos confins de suas ex-colOnias parecem suspeitos ¢ isso me leva a indagar da validade de categorias interpretativas nascidas de uma experiéncia tao diversa e a perguntar-me até que ponto clas sao tteis para entender a nossa realidade. Com isso ndo quero dizer que se deva simplesmente des- carté-las, mas sim, que € necessério manter-se uma postura critica em rela- gio a clas. ‘As tendéncias historiogréficas européias ¢ americanas contempora- neas que tém encontrado receptividade crescente entre nés nasceram de situagSes bastante concretas, algumas semelhantes as nossas, outras, bastante diversas, o que é necessério ter em mente ao decidirmos do grau de credibilidade que merecem. Elas se relacionam diretamente a crise do sovietismo e por associagao, a crise de uma certa leitura do marxismo do perfodo de pés-guerra © a concomitante critica da organizacio ¢ estra- tégias dos partidos de esquerda comprometidos com a Unido Soviética. Nas periferias do mundo esse proceso de reviséo foi acelerado pelo clima repressivo desencadeado pela Guerra Fria, Os varios insucessos de regimes soi-disant socialistas no continente africano ¢ os acontecimentos na China geraram novas diividas ¢ muita perplexidade que nem a Revolugo cubana ov a nicaraguense conseguiram minimizar. Durante anos, a polarizagdo leste/oeste tornou dificil uma avaliagao critica das posigdes € contribuiu para a formagéo de uma ortodoxia disso- ciada das transformagées que ocorriam no mundo. E dentro desse contexto que as gerages mais novas buscaram novas formas de ago politica ¢ a historiografia européia buscou novos caminhos, repudiando as categorias tradicionais nascidas de uma realidade diversa. Mas esse € apenas um lado da histéria. O outro 6 muito mais dificil de se analisar e tem a ver com a 2 New Subjects, New Social Commitments: An Interview with Michelle Perrot by Laura Frader e Vitoria de Grazia, Essa entrevista foi conduzida por de Grazia in Paris em 20 de setembro, 1986, € publicada na Radical History Review, 37 (1987); 27-40. “4 internacionalizagéo da economia, a industrializacfo das periferias e o conseqllente processo de industrializago que ocorreu no centro; a adogdo de técnicas industriais novas que economizam mao-de-obra resultando na diminuigao do proletariado nos pafses centrais do mundo capitalista; o erescimento do tercidrio, a presenga de um nimero crescente de traba- Ihadores migrat6rios (italianos, portugueses ¢ espanhdis, por exemplo, na Franca e na Alemanha) e a melhoria das condigdes de vida de certos setores do proletariado a expensas de outros (brancos versus pretos, nos Estados Unidos, nacionais versus estrangeiros na Inglaterra, Franca ou Alemanha) ¢ a conseqtiente multiplicacdo de conflitos étnicos que dificul- tam a coesio de classe; a expansio do setor informal (no qual os traba- Ihadores nao tém nem poder nem direitos); 0 extraordinério aumento da participagao da mulher na forga de. trabalho (gerando novos problemas na esfera doméstica ¢ Icvando ao questionamento das nogées tradicionais sobre a classe operdria ¢ a rebeliio feminista); a adogao por parte dos industriais de novas técnicas de controle da mio-de-obra com a renovagio de putting out systems caracteristicos das primeiras fases do movimento industrial e 0 inevitavel isolamento das trabalhadoras; as transformagGes do padrao residencial com o desaparecimento de bairros exclusivamente operérios dificultando o desenvolvimento de uma consciéncia proletéria; as mudangas nas préticas de lazer, a crescente importancia da mfdia e 0 conseqiiente isolamento dos individuos; c, finalmente, a generalizagao do consumismo que intensifica a tensio entre privag’k: e desejo e enfatiza o individual as expensas do social, tudo isso tem forgado a redefinigio da prdtica e da teoria, da politica e da historiografia.®° B dentro desse quadro, extremamente complexo e que varia de uma sociedade para outra, que se constituiu a nova histéria. Para nés a questo que se coloca € simples: se a nova historio- grafia nasceu de condigées histéricas especificas, até que ponto é valida dentro do nosso contexto? (Como comparar, por exemplo, a situagio do trabalhador da América Latina com os trabalhadores europeus e ameri- canos, € a situagdo dos consumidores nas duas éreas? Como comparar os direitos do cidadao europeu ou americano com a suposta cidadania do homem comum na América Latina’). Nao hd diivida de que a simples reprodugio das interpretagdes tradicionais (e diga-se de passagem elas proprias também importadas de forma nio muito critica) originadas em experiéncias bastante diversas das atuais n&o é suficiente para dar conta desse real. Nesse sentido, 1968 foi realmente um divisor de 4guas, Mas o contraste inicialmente sugerido pelo ®© Sobre 0 impacto do consumismo, no volume 37 da Radical History Review, principalmente 29-93 y) distico em que comecei esta fala: Maio 1968 refez-se o mundo, Maio 1986 refaz-se a cozinha, militincia ¢ consumismo, pode ser mais aparente do que real e é certamente reversfvel. Os acontecimentos em curso na Europa ¢ a recorrente crise do mundo capitalista, sentida de forma particularmente aguda nas periferias, sugerem que estamos entrando num novo perfodo da histéria. O momento favorece uma nova sintese que evite todas as formas de reducionismo ¢ reificagiio, sejam eles econdmicos, linguisticos ou culturais, uma sintese que nao perca de vista a articulagdo entre micro- fisica e macro-fisica do poder, que reconhega que a subjetividade é ao mesmo tempo constitufda e constituinte, uma sintese enfim que seja centrada na teoria da praxis enriquecida pelas novas experiéncias e que leve a uma nova historiografia e uma nova estratégia (que permita coor denar os varios movimentos sociais sem retirar-Ihes a autonomia), ¢ que a partir de uma reflexdo sobre o passado e o presente prepare os caminhos do futuro. O momento convida a reflexo ¢ foi este o propésito desta falta.5? RESUMO A autora analisa as trans- formagdes da historiografia nos slti- mos trinta anos, relaciona-as as mu- dangas ocorridas na saciedade e nos processos de produg&o culural, Critica tanto os historiadores que perma- necem apegados aos métodos estrutu- ralistas dos anos 60 come os que rejeitam em bloco as ligdes do pas- sado e embarcam no pés-moderno sem qualquer critico. A autora conclui propondo uma stniese entre essax duas propostas, ABSTRACT The author analyzes _ the transformations in western historio- graphy during the past three decades, relating them to changes in society and in the processes of cultural produc- tion, She criticizes both those histo- rians who remain trapped in the struc- turalim of the 1960s, and those who reject entirely the lessons of the past and who embrace post-modernism un- critically. She concludes with a pro- posal for a synthesis of the two positions. 3) ADAMSON, Walter L. “Leftist Transformations: A Clash Between the Feasible and the Desirable”, Radical History Review 37, 94-100. 26

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