Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
” OVSVWHOJS
”(I época (la Reno/"Mo Industrial. coulmslumlo-u (70m
sociec/(u/Ps "primilims" (I "(Inuit-as". em uma (Hui/isv
calupw'aliva qua eufizlim 0 curd/(’1' singular 0 (/(’Sll'lllil'()
(la.moderna ecououlia (le mercmlu.
_ aAnt‘ropologg ____
Talialho'fizagwtral
(-
5 - 3 5 2 -9805
{MW|||||
535 205335 .
, (2
”in
Tradugéo
Fanny Wrobel
Reviséo Técnica
Ricardo Benzaquen de Arafiio
CPDOC/FGV e PUC/RJ
i=d—
1 1':u
ml bm
As origens da nossa época
—
4.u.».:4..-..
Karl Polanyi
Associacéo Brasileira paxa
......
a Protecéo dos Direitos
Edltorlais e Autorais
RESPEITE o AUTOR '
ma?
NAo FAcA COPIA
. . . - . . . . - . . . . ,. . . _
Editora Campus.
21
f
i
.3
Do original
The Great Transformation
Kori PoIanyi
Troduqéo aulorixada do idiomo inglés do odiqio publicuda por Rinohod A Company
Copyrighi O 1944 Karl PoIanyi,
Copyrigh 0 1972 Mario Polanyi
man-I
EdiIoragéo Elohonioo
Fqra
Revisoo Grdfica
Ana Paula Lasso
SandroPossoro
.
Proielo Gréfico
Edibro Campus Lida.
A Qualidodo do Informfio
Run Sate do Solombra. 1 - 16' ondor
20050—002 Rio do Janoiro KI Braail
Telefone: (21) 3970-9300 FAX (21) 2507-1991
E-mail: info@oompus.com.br
ISBN 85-352-0595-5 '
(Edigéo original: ISBN 0-374-96513-7
.r-:...-.:. :l . ~ . . w
findioa’o Nacional dos E “on: do livm, RI
.._:-m
2. ed. A orando Iransiormogao: as origons do now Opoou/
. - . m . : : . . . . u :;:¢. -». ~
Tradu 0 do: The great IronsformaIIOn
ISBN 5-352-0598-5
00-0425 CDD330.9
CDU338(091)
03040506 121110987
...;.:~:.s.1.'.'.;~mao.~:'tuna-Logan“
“
‘-'.- ......
f-‘-,.:.:\.:I.'m
AG RADECIMENTOS
..
Este livro foi escrito na América do Norte durante a Segunda Guerra
Mundial. Na verdade, porém, ele comegou e terminou na Inglaterra, onde
:”.a. _” ._ : . . - l
o autor foi Professor-Conferencista da Extramural Delegacy da Universi-
dade de Oxford e das instituigoes correspondentes da Universidade de Londresf
Sua tese principal foi desenvolvida durante o ano académico 1939-1940, em
, . .. - .
conjunto com seu trabalho nos Cursos Tutoriais organizados pela Asso-
.—
ciagio Educacional dos Trabalhadores, no Morley College, Londres, em
Canterbury e em Bexhill.
:. .a n : w m u m m v m x w m w . m t . r . -
A histéria deste livro é a historia de arnizades generosas. E grandea divida
para com os amigos ingleses do autor, principalmente Irene Grant, a aijo grupo
esteve associado. Estudos em comum ligaram—no a Felix Schafer; de Viena, um
economista atualmente em Wellington, Nova candia. Na América do Norte,
John A. Kouwenhoven ajudou-o como verdadeiro amigo, através da leitura e
edigio do original; muitas das suas sugestoes foram inc'orporadas ao texto. Entte
outros amigos que ajudaram contam—se os colegas do autor em Bennington,
_ Horst Mendershausen e Peter F. Drucker. Este ultimo e sua mulher foram uma
fonte constante de encorajamento, nao obstante seu completo desacordo oom as
conclusoes do autor. A simpatja total do primeiro muito acrescentou a seus fiteis
conselhos. O autor também deve agradecimentos a Hans Zeisel, da Rutgers
University, por uma leitura cuidadosa. A edig‘io deste livro ficou inteiramente a
.
cargo de Kouwenhoven, com a ajuda de Drucker e Mendershausen, e o autor se
sente profundamente grato por este fato de amizade.
Tem também uma divida de gratidéo com a Fundagéo Rockefeller pela
bolsa de doi anos, 1941-1943, que lhe foi concedida e que lhe permitiu com-
plementar o livro no Bennington College, Vermont, em seguida a um convite .-
que lhe foi feito por Robert D. Leigh, entio presidente daquele colégio. Os
planos para esta obra foram feitos numa série de conferéncias pfiblicas e num
seminério ocorrido durante o ano académico 1940-1941. As facilidades de
pesquisa foram gentilm‘ente cedidas pela Biblioteca do Congresso em
Washington, D . C., assim como pela Biblioteca da Universidade de
Cohimbia, Nova York. A todos eles devemos os nossos agradecimentos.
KP.
Shorenham, Sevenoaks, Kent
ml“
APRESENTACAO
.zv .
:.
Este é um'livro que torna todos os outIos jé editados sobre o assunto
r:
sio da forma e do significado dos assuntos humanos. 0 Sr. Polanyi n50
se propée a escrever a Histéria - ele a esta reescrevendo. Ele n50 acende
uma vela para iluminar um dos seus cantos escuros e nem se dispée,
possivelmente, a torna-la a escritura pfiblica da sua fé pessoal. A0 con-
tra’u'io, com uma visdo apurada e com conhecimento, aprescnta um
novo enfoquc sobre os processos e as rcvolugées detoda uma era dc
mudanga jamais vista
0 objetivo imedjato do Sr. Polanyi é ressaltar, o que faz com notével
disoernimento, as implicagoes sociais de um sistema economico particu-
a»: u. w..--.o-z-a.
lar, a economia dc mercado que atingiu a sua plenitude no século XIX.
Chegou a hora em que a sabedoria retrospectiva pode avalié—la inteira-
mente pois, como disse Aristételes, $6 podemos comprecndcr a natureza
0 Sr. Polanyi n50 teve a oportunidade de dar os retoquec finais no de qualquer coisa quando ela alcanga — e supera - a sua mamragio.
seu manuscrito antes de voltar a Inglaterra; em época de guerra dispée- Acontecimentos e processos, teorias e a§6es surgem sob uma nova pers-
se de muito pouco tempo em relagio as datas de viagem e, quando essa pectiva. Muito do quc parece meramente episodico aoescritor comum
data 6 fixada, n50 se pode adia-la a bel—prazer. Também n50 foi possi- da Histéria se investe de um significado mais profundo; muito do que
vel a0 editor, ou aos amigos do autor quc supervisionaram a edigéio do pareoe apenas bizarro mercce uma avaliagéo mais justa. A redugéo do
livro, consulté—lo devidamente através de correspondéncia ou telegra- homem a mdo-de-obra e da natureza a tetra, sob o impulso da economia
ma, pelos mesmos motivos de demoras e extravios em tempo de guer- de mercado, transforma a I-Iistéria em um drama profundo no qual a
ra. 'I'1vemos, portanto, quc fazer um certo nfimero de modificagées e sociedade, a protagonista acorrenmda, finalmente, rompe seus grilhées.
supressées nas anomgées, e algumas no texto, sem a orienmgdo ou a Esta nova orientagio, sugetida em outras obras mas ainda n50
permisséo do autor. Apesar de a maioria delas terem sido feitas com a desenvolvida, dd novas proporgées a homens e idéias. Tomemos, por
convicgao racional da sua necessiddde, lamentamos djzer quc algumas exemplo, 'o Movimento Cartista e o espirito profético dc Robert
o foram '5 base dd mtulgao Owen. Ou tomemos a famosa recomendagio de Speenhamland — como
0 Sr. Polanyi mergulha muito mais profundamente no seu signifimdo
J.A. K. histérico! Quéo inteligl’vcl se torna o quadro dos juizes senhoriais
:7
. .;-.-.-._-.ni..‘.'.mm. Aisha.“
ditando principios dc gabinete a uma forga que nem eles, nem os mais Entretanto, ao apresentar este argumento, 0 Sr. Polanyi nao esté
esclarecidos da sua época podiam ainda compreender. Testemu— langando olhares saudosos a algum passado mais feliz; ele nao esta
nhamos, com uma nova compreensao, a batalha das ideologias em defendendo a causa da reacao. N50 ha urn caminho de volta e nenhu-
torno da economia que crescia inexoravelmente, alguns se opondo ma solugao podera surgir na busca dc tal caminho. O que a nossa
cegamente, outros procurando retardar seus golpes mais impiedosos época precisa é a reafirmacao, pelas suas préprias condigées e pela
1.
contra o tecido social; outros, ainda, aplaudindo cada um dos seus suas préprias necessidades, dos valores essenciais da vida humana. A
:V:;-r..:'.‘.ww-.m
mistas ortodoxos que conseguiam explicar tudo. Entretanto,‘ a frente . da Historia esconda de nos o s seus males; temos que reconstruir a
dc batalha avanga e deixa ruinas no seu caminho, e as defesas apressa-
{
|i' i
sociedade para nos mesmos, aprendend o com o passado todas as
damente levantadas ruem perantc cla. Vemos como de uma nova liber-
:.L‘-
l ligées e adverténcias que formos capazes dc aprender. Fazendo isto,
E
tagao surge uma nova servidao, e podemos medir o desafio que enfren-
2‘
i talvez possamos ter em mente, também, que a causa de todos os
e
ta a nossa prépria época. '
assuntos humanos esté profundamentc cnvolvida para ser totalmente
0 Sr. Polanyi deixa muito atrés tanto os dogmatidos dc Karl Marx
desenrolada pelas mentes mais sabias. Ha semprc um ponto no qual
como os apélogos da reagao. Ele se preocupa com o processo econo-
temos que confiar em nossos valores atuantcs, dc forma que as forgas
mico na civiliza'gao moderna mas nao oferece qualqucr doutrina dc
iminentes do mundo atual possam se libertar em novas diregoes, para
determinismo economico. Ao contrario, ele nos oferece a analise pene-
trante de uma transformagao histérica particular, na. qual. a supressao novos objetivos.
de um sistema economico por outro desempenha um papel decisivo. Um livro tao estimulante e tao profundo deve excitar controvérsias
Isto aconteceu nao porque a relagao economica é sempre basica mas e ser questionado em varios pontos. Alguns podem duvidar se 0 papel
porque, neste caso e apenas neste caso, o “sistema ideal” na nova eco- da economia dc mercado foi tao absoluto, se a logica do sistema foi téo
nomia exigia uma abnegagao impiedosa do status social do ser huma- rigorosa e constrangedora pct Si mesma. Eles podem nao desejar ir tao
no. Habilmente, ele menciona a situagao colonial e as sociedades de longe quanto o autor quando, num determinado ponto, ele observa
povos primitivos invadidas industrialmente a fim dc mostrar, nao o que que “as nagées 6 0s povos eram apenas bonecos numa exibigao inteira-
esse “sistema ideal” significava para elas mas, principalmente, o que ele mente além do seu controle”. Alguns poderao querer atribuir valora-
também importava para nos. Os “moinhos satanicos” descartavam goes diferentes as diferentes formas de “protegao” contra o mercado
todas as necessidades humanas, menos uma: inexoravelmente, eles auto—regulavel e podem se sentir contrafeitos quando o ordenador das
, » -.
‘ - «v'~.‘.)~v.-'V".EJ-
comegaram a trirurar a prépria sociedade cm seus atomos. Assim, os tarifas e o legislador social parecem surgir como irmaos em armas. E
homcns tiveram que descobrir a sociedade. Para 0 SrfPolanyi, a ultima assim por diante. Todavia, todos teréo que reconhecer , seguramen te, a
..-..s.r:-;-
palavra é a sociedade. O principal espectador da tragédia da Revolugéo data irrefutabilidadc do arguménto total‘.’ Estamos agora num novo
Industrial foi convocado nao pela insensibilidadc e ganancia dos capita- . .:2" ponto vantajoso, olhando para baixo, apés o terremoto, para os tem-
listas em busca dc lucro — embora isto registrasse uma grande desuma- plos arruinados dos nossos deuses queridos. Vemos a fraqucza das fun-
nidade — mas pela devastagao social de um sistema incontrolado, a eco- dagées expostas — talvez possamos aprender agora, e de que maneira, a
nomia de mercado. Os homens nao puderam compreender o que signi- reconstruir o tecido institucional de forma que ele possa suportar
ficava a coesao da sociedade. O sacrario mais intimo da vida humana melhor os choques da mudanca.
foi despojado e violado. N50 36 apreciou em todo o seu' potencial 0 E de primordial importfincia, hoje, a ligao que ele transmite aqueles
problema do controle social ,de uma mudanga revolucionaria; filosofias que elaborarao a préxima organizagao internacional. Pelo menos ele
otimistas o obscureccram, filantropos semvisfio conspiraram com inte- mostra que formulas liberais, tais como “paz mundial por mcio do
resses. poderososparacscOndé—lo e a 'sabedoria da época ainda nao comércio mundial” , n50 sao suficientes. Se nos contentam os com tais
havia nascido. formulas, somos as vitimas de uma simplificagao perigosa e iluséria.
Nenhum sistema nacional ou internacional pode depender de regula-
dores automaticos. Orgamentos equilibrados, livre empresa, comércio
mundial, camaras internacionais de compensacéo e moedas a0 par nao
-garantirao uma ordem internacional. $6 a sociedade podera garanti-la;
uma sociedade internacional também tem que ser descoberta. E aqui
também o tecido institucional devera manter e controlar o esquema
SUMARIO
economico das coisas.
Assim, a mensagem deste livro nao é' apenas para o economista,
embora lhe transmita uma mensagem poderosa, nem apenas para 0 his-
toriador, embora abra novas perspectivas; nem apenas para o
sociologo, embora lhe transmita um sentido mais profundo do que sig-
Primeira Parte — O sistema internacional 15
nifica a sociedade; nem apenas para o cientista politico, embora o
ajude a reexpor antigas questées e avaliar antigas doutrinas - ela se Gapftulo 1 Gem anos de paz 1 7
destina a cada homem inteligente que se preocupa em se aprimorar 'Capftulo 2 A década de 1920 conservadora
além do seu estagio atual de educagao social, a cada homem que se A de’cada de 1930 revolucionaria 3 6
preocupa em conhecer a sociedade em que vive, a crise por que passou
e as crises que ora se avolumam. Aqui ele podera adquirir novos lam- Segunda Parte — Ascensao e queda da economia de mercado 49
peios de uma fé mais profunda. Aqui ele podera aprender a olhar além
I. O moinho satanico 49
das alternativas inadequadas que lhe sao oferecidas, habitualmente, a
d o liberalismo que s é vai até o ponto atual, a do coletivismo, total on
.
Capitulo 3 “Habitagao versus progresso” 51
.
nenhum, a da simples negagao do individualismo, pois todas elas ten.- Sociedades e sistemas econémicos 62
-'—.-'1rr-m”:'\ . .6
Capitulo 4
dem a fazer de algum sistema economico desideratum basico, e somen- Capitulo 5 Evolugao do padrao de mercado 76
te quando descobrimos o primado da sociedade, a unidade coerente Capitulo 6 O mercado auto-regulavel e as mercadorias ficu’cias:
inclusive da interdependencia humana, é que podemos esperar trans- trabalho, terra e dinheiro 8 9
cender as perplexidades e as contradigoes de nossos tempos. Capitulo 7 Speenhamland, 1795 9 9
Capitulo 8 Antecedentes e conseqiiéncias 1 0 9
R . M . MacIver Capitulo 9 Pauperismo e utopia 128
Capitulo 10 A economia politica e a descoberta da sociedade 137
4w rm.“— ~ .
:1: 4. Os balangos do péndulo apés a Primeira Guerra
.351;
rj Mundial 308 ,
5. Finangas e pal 303 : O SISTEMA INTERNACIONAL
i 6. Referéncias selecionadas a “sociedades e sistemas
{.3} economicos” 309
”i I 7. Referéncias selecionadas é “evolugio do padrfio
mercado” 313
“.5; 8. Literatura sobre Speenhamland 317
f} 9. Speenhamland e Viena 322
10. Per que néo o Whitbread’s Bill? 323 .
11. As “duas nagées” de Disraeli e o problema das ragas
de cor 324
12. Nota adicional: Poor Law e a organizagéo do
trabalho 327
O Autor 3 3 7
lndice 339
1
CEM ANOS DE PAZ
cor-u,
entre as Grandes Poténcias. A segunda era 0 padrao internacional do
ouro que simbolizava uma organizagao finica na economia mundial. A
.m.
terceira era 0 mercado auto-regulével, que produziu um bem-estar
material sem precedentes. A quarta era 0 estado liberal. Classificadas
de um certo modo, duas dessas instituigées eram econérnicas, duas,
politicas. Classificadas de outra maneira, duas delas eram nacionais,
duas, internacionais. Entre si elas determinavam os contornos caracte-
risticos da histéria de nossa civilizagao.
Dentre essas instituigées o padrao-ouro provou ser crucial: sua
queda revelou-se a causa mais agroximada da catastrofe. Por ocasiéo
da sua derrocada, a maior partefdas outras instituigoes tinham sido
sacrificadas, num vao esforgo para salvé-la.
Todavia, a fonte e matriz do sistema foi o mercado auto-regulével.
.r .
m-..1m~.....4
unico objetivo de langar luz sobre assuntos do presente; faremos anali—
quer tempo sem aniquilar a substfincia humana e natural da sociedade; ses detalhadas dc periodos criticos e abandonaremos quase que por
ela teria destruido fisicamente o homem e transformado seu ambiente completo os periodos de tempo que os ligaram; invadiremos o campo
num deserto. Inevitavelmente, a sociedade teria que tomar medidas de diversas disciplinas perseguindo este simples objetivo.
para se proteger, mas, quaisquer que tenham sido essas medidas elas Trataremos, primeiro, do colapso do sistema internacional. Tenta-
- prejudicariam a auto-regulagao do mercado, desorganizariam a vida remos mostrar que o sistema de equilibrio de poder nao poderia asse-
industrial e, assim, ameagariam a sociedade em mais de uma maneira. gurar a paz, uma vez fracassada a economia mundial sobre a qual
Foi esse dile'ma'que forgou o desénifolvimento do sistema de mercado repousava. Isto responde pela forma abrupta com que a ruptura ocor-
numa trilha definida e, finalmente, rompeu a organizagao social que reu, a inconcebivel rapidez da dissolugao.
nela se baseava. Entretanto, se a queda da nossa civilizacao foi regulada pelo fracas-
Uma tal explicagao de uma das crises mais profundas na histéria do so da economia mundial, ela certamente nao foi causada por ela. Suas
homem pode parecer demasiado simples. Nada pareceria mais inepto origens estao ha mais de cem anos atras, na convulsao social 6 tecnolé-
. . : . 1 _ . . m . . . - . 1. 1 - . . - n . - . . -
do que tentar reduzir uma civilizagao, sua substancia e ethos, a um gica a partir da qual surgiu na Europa Ocidental a idéia de um merca-
nfimero rigido de instituigées, selecionaf uma delas como fundamental do auto-regulavel. O fim dessa aventura ocorreu em nossa época — ela
e paSsar a argumentar sobre a inevitavel autodestruigao da civilizagao encerra um estagio na histéria da civilizagao industrial.
em conseqiiéncia de alguma qualidade técnica de sua organizagao eco- Na parte final do livro trataremos do mecanismo que governou a
nomica. As civilizagoes, como a prépria Vida, resultam da interagao de mudanga social'e nacional em nossa época. De um modo mais amplo,
um grande numero de fatores independentes, os quais, como regra, acreditamos que a condigao atual do homem pode ser definida em ter-
-.
nao se reduzem a instituigoes circunscritas. Na verdade, procurar tra- mos das origens institucionais da crise.
gar o mecanismo institucional da queda de uma civilizagao pode pare: O século XIX produziu um fenomeno sem precedentes nos anais
..
cer uma tarefa irrealizavel. da civilizagao ocidental, a saber, uma paz que durou cem anos — 1815-
Todavia, é isto o que estamos nos propondo. Ao fazé-lo, estamos 1914. Além da Guerra da Criméia — um acontecimento mais ou menos
conscientemente ajustando nosso objetivo a extrema singularidade do
manna-.4
colonial — a Inglaterra, a Franga, a Prussia, a Austria, a Italia e a Russia
assunto. A civilizagao do século XIX foi unica, de fato, precisarnente estiveram em guerra uns com os outros apenas durante dezoito meses.
porque ela se centralizou num mecanismo institucional definido. Computando as cifras comparativas dos dois séculos anteriores, temos
Nenhuma explicagao podera satisfazer SC 11510 levar em conta a uma media de sessenta a setenta anos de grandes guerras para cada um.
rapidez do cataclisma. Como se as forgas da mudanga estivessem sendo Entretanto, mesmo a mais violenta dentre as conflagragées do século,
contidas durante um século, uma torrente de acontecimentos se preci- XIX, a Guerra Franco-Prussiana, de 1870-1871, terminou em menos
pita sobre a humanidade. Uma transformagao social de alcance plane- de um ano, e a nagao derrotada teve condigoes de pagar uma soma
tario é coroada po'rsguerras de um tipo sem precedente, nas quais uma sem precedentes como indenizagio de guerra, sem que isto incidisse
série de estados entra em colapso e 03 contornos de novos impérios se em qualquer perturbagao para as moedas existentes.
delineiam num mar de-sangue. Entretanto, esse fato de violéncia demo- Esse triunfo de um pacifismo pragmatico certamente nao foi o
niaca é apenas sobreposto numa corrente rapida e silenciosa de mudan- resultado de uma auséncia de causas graves'do conflito. Alteragoes
ga que:engole o passado muitas vezes sem sequer uma marola na super- quase que continuas nas condigoes internas e externas de nagoes pode—
ficie! Uma analise racional da catastrofe deve levar em conta tanto a rosas e grandes impérios acompanharam esse cortejo conciliador.
agao tempestuosa como a tranquila dissolugao. Durante a primeira parte do século, guerras civis, intervengées revolu-
:Este--_nao .é _._1'1m trabalho histérico; o gq-ue estamos buscando nao 6 cionarias e anti-revolucionarias estavam na ordem do dia. Na Espanha,
"A
111113. sequenCIa convincente d8 acontec1mentos importantes; mas uma
milhares de tropas sob a diregao do Duque d’Angouléme invadiram
18 explicagao da sua orientagao em termos de instituigoes humanas. Sen- Cadiz; na Hungria, a revolugio magiar ameagou derrotar o préprio 1 9
imperador numa batalha regular e s6 foi vencida finalmente por um esfera da histéria universal, o equilibrio de poder se preocupava com.
exército russo que lutou em solo hungaro. Intervengoes armadas nas os estados cuja independéncia lhe convinha manter. Entretanto, esse
regiées germanicas, na Bélgica, Polénia, Suica, Dinamarca e Veneza objetivo so era atingido por guerras continuas entre socios mutéveis. A
marcaram a onipresenga da Santa Alianga. pratica dos antigos gregos ou das cidades-estado da Italia do norte
Durante a segunda metade do século, foi instaurada a dinamica do constituem um bom exemplo; foram as guerras entre grupos mutaveis
progresso; o império otomano, o egipcio e o xerifado ruiram ou foram de combatentes que mantiveram a independéncia desses estados duran—
desmembrados; a China foi forcada a abrir suas portas a0 estrangeiro te longos periodos. O mesmo principio resguardou por mais de duzen-
por exércitos invasores e, num assalto gigantesco, o continente da Africa tos anos a soberania dos estados que formaram a Europa a época do
foi partilhado. Simultaneamente, duas poténcias assumem importancia Tratado de Mfinster, e de Westphalia (1648). Quando, setenta e cinco
mundial: os Estados Unidos e 3 Russia. A unidade nacional foi alcanga- anos mais tarde, pelo Tratado de Utrecht, os signatarios declararam sua
da na Alemanha e na Italia; Bélgica, Grécia, Rumania, Bulgaria, Sérvia e adesao formal a esse principio, eles o incorporaram a um sistema, esta-
Hungria assumiram, ou reassumiram, seus lugares de estados soberanos belecendo, assim, garantias mfituas de sobrevivéncia, tanto para o forte
no mapa da Europa. Uma série quase incessante de guerras abertas como para o fraco, por meio de guerra. O fato de que, no século XIX,
acompanharam o trajeto da civilizagao industrial nos dominios das cul- o mesmo mecanismo tenha resultado em paz, ao invés de guerra, é um
turas ultrapassadas ou dos povos primitivos. As conquistas militares da problema que desafia o historiador.
Russia na Asia Central, as imimeras guerras da Inglaterra na India e na O fator inteiramente novo, calculamos, foi a emergéncia de um
Africa, as exploracoes da Franca no Egito, Argélia, Tunis, Siria, forte interesse pela paz. Tradicionalmente, tal interesse era visto como
Madagascar, Indochina e Siio levantaram entre as Poténcias questoes extemo ao escopo do sistema estatal. A paz, com os seus corolarios de
que, normalmente, s6 seriam arbitradas pela forga. Entretanto, cada um artes e engenhos, fazia parte dos simples adornos da vida. A Igreja
desses conflitos em particular foi circunscrito e numerosas outras situa- podia orar tanto pela paz como por uma colheita abundante mas, na
coes de mudanca violenta foram' resolvidas pela agio conjunta ou amor-. esfera de atuacao do estado, ela iria defender uma intervencao armada.
tecidas num compromisso tacito entre as Grandes Poténcias. O resulta- Os governos subordinavam a paz a seguranga e soberania, isto é, a in-
do era 0 mesmo, independendo da mudanca dos métodos. Enquanto na tentos que nao podiam ser alcangados a mic ser recorrendo-se a meios
primeira parte do século 0 constitucionalismo foi banido e a Santa drasticos. Poucas coisas eram vistas como mais prejudiciais a uma co-
Alianga suprimiu a liberdade em nome da paz, durante a outra metade - munidade do que a existéncia, em seu meio, de um interesse organiza-
e novamente em nome da paz — as constituigoes foram impingidas a do pela paz. Ainda na segunda metade do século XVIII, J. J. Rousseau
déspotas turbulentos por banqueiros de visao comercial. Assim, sob as denunciava as corporagoes de oficio por falta de patriotismo, sob sus-
formas variadas e ideologias mutaveis - as vezes em nome do progresso peita de que elas preferiam a paz a liberdade.
e da liberdade, as vezes pela autoridade do trono e do altar, as vezes gra- Apés 1815, a mudanga é sfibita e completa. A repercussao da Revo-
gas as bolsas de valores e aos livros de cheque, as vezes por corrupgao e lucao Francesa reforgou a maré "'montante da Revolucao Industrial,
suborno, as vezes por argumentos morais e apelos iluminisms, is vezes a estabelecendo os negocios pacificos como um interesse universal.
custa de bordoadas e de baionetas — o resultado conseguido era sempre Metternich proclamava que o que os povos da Europa desejavam n50
o mesmo, e a paz foi preservada. era a liberdade mas a paz. Gentz chamava os patriotas de novos barba-
Esse acontecimento quase miraculoso foi conseqiiéncia do equili- ros. A Igreja e o trono iniciaram a desnacionalizacao da Europa. Seus
- brio do poder que, aqui, atingiu um resultado normalmente estranho a argumentos encontravam apoio tanto na ferocidade das recentes for-
ele. Pela sua natureza, esse equilibrio geralmente resulta em algo intei- mas populares de revolta como no realce tremendo do valor da paz
rainente diferente, isto é, sobrevivéncia das unidades de poder envolvi- sob a economia nascente.
da's.De :fato,e-le apenas posnila que t'rés' bu mais unidades capa'zes de Os que apoiavam o novo “interesse pela paz” cram, como dc habi-
=exe'rceri poder atuarao sempre de'fOrma a combinar o poder das unida— to, aqueles que mais se beneficiavam corn ela, isto é, aquele cartel de
~20 des; mais fracas Contra 'qu'alquer mcremento de poder do mais forte. Na dinastias e feudalistas cujas posicécs patrimoniais cram ameacadas pela 21
Algumas vezes evitavam-se as guerras removendo deliberadamente
onda revolucionaria de patriotismo que avas_sala o continente. Desta
forma, por um periodo aproximado de u m tergo de século, a Santa
as suas causas, se isto envolvia apenas o destino de poténcias peque-
Alianga forneceu a forga coerciva e o impeto ideologico necessario a
nas. Controlavam-se as pequenas nagoes e impedia-se que perturbas-
uma politica de paz atuante; seus exércitos percorriam a Europa em
sem 0 status quo de qualquer forma que pudesse precipitar uma guer-
todas as diregées, esmagando minorias e reprimindo maiorias. D e
ra. A invasao holandesa da Bélgica, em 1831, levou a neutralizagao
1846 ate cerca de 1871 — “um dos quartos de século mais confusos e daquele pa1’s na ocasiao. Em 1855 a Noruega também foi neutraliza-
atravancados da historia européia”1 — a paz foi estabelecida com menos da. Em 1867 o Luxemburgo foi vendido a Franga pela Holanda; a
Alemanha protestou_e.0 Luxemburgo foisneutralizado. Em 1856, a
seguranga, enquanto a forga declinante da reagao enfrentava a crescen-
te forga da industrializagao. No quarto de século que se segue a Guerra
integridade do Impéri‘o Otomano foi declarada essencial para o equili—
Franco-Prussiana, encontramos redivivo o interesse pela paz represen—
brio da Europa e o Concerto da Europa procurou sustentar aquele
tado por aquela nova e poderosa entidade, o Concerto da Europa. império; apos 1878, quando sua desintegragao foi considerada essen—
Entretanto, os interesses, como as intengoes, permanecem necessa- cial para aquele equilibrio, promoveu-se o seu desmembramento da
riamente platénicos a menos que sejam transladados para a politica por mesma maneira ordenada, embora em ambos os casos a decisao signi—
ficasse Vida e morte para inumeros pequenos povos. Entre 1 8 5 2 e
meio de algum instrumental social. Aparentemente faltava um tal vei-
culo de realizagao; tanto a Santa Alianga como o Concerto da Europa
1863 foi a Dinamarca, e entre 1851 e 1856 foram as Alemanhas que
eram, na verdade, meros agrupamentos de estados soberanos indepen— ameagaram perturbar o equilibrio, 6 cm cada um dos casos os peque—
dentes e, portanto, sujeitos ao equilfbrio-de—poder e seu mecanismo de nos estados foram forgados a se conformar pelas Grandes Poténcias.
guerra. Como foi mantida a paz entao? Nesses exemplos, a liberdade de agao a elas oferecida pelo sistema foi
E verdade que qualquer sistema de equih’brio-de-poder procurara usada pelas Poténcias para alcangar um interesse conjunto — que acon-—
impedir guerras como as que ocorrem quando uma nagao deixa de pre- teceu ser a paz.
ver 0 realinhamento de poderes que resultara da sua tentativa de alte—‘ Mas existe uma diferenga muito grande entre evitar ocasionalmen—
rar 0 status quo. Foram exemplos famosos a tentativa de dissuasao de te as guerras, quer pelo esclarecimento oportuno da situagao de poder,
Bismarck na campanha da imprensa contra a Franga, em 1875, quanto quer pela coagao aos pequenos estados, e o fato concreto da Paz dos
a intervengao russa e britanica (o auxilio da Austria a Franga era conta- Cem Anos. O desequili’brio internacional pode ocorrer por inumeras
do como certo). Nesta ocasiao o Concerto da Europa agiu contra a razoes — desde um romance dinastico até o aterro d e um estuario,
Alemanha, que se viu isolada. Em 1877-1878 a Alemanha foi incapaz desde uma controvérsia teologica a uma invengao tecnologica. 0 sim-
de impedir a Guerra Russo-Turca, mas teve sucesso em Circunscrevé—la ples crescimento da riqueza e da populagao, ou, eventualmente, o seu
apoiando o Ciume da Inglaterra quanto a movimentagao russa em dire- decréscimo, pode por as forgaspoliticas em movimento e o equilfbrio
gao aos Dardanelos; a Alemanha e a Inglaterra apoiaram a Turquia externo refletira o interno, invariavelmente. Mesmo um sistema orga-
contra a Russia — e assim salvaram a paz. No Congresso de Berlim foi nizado de equilfbrio-de—poder so ‘pode assegurar a paz, sem a ameaga
elaborado um plano, a longo prazo, para a liquidagao das possessoes permanente da guerra, se puder atuar diretamente sobre esses fatores
européias do Império Otomano; isto resultou no impedimento de internos e impedir o desequill’brio in status nascendi. Uma vez que esse
guerras entre as Grandes Poténcias, a despeito de todas as mudangas desequili’brio tome impulso, so a forga podera endireita—lo. E apenas
subsequentes no status quo, uma vez que todas as partes envolvidas senso comum afirmar que para se garantir a paz deve-se eliminar as cau-
podiam estar certas, antecipadamente, das forgas com as quais iriam se sas da guerra; entretanto, nem sempre se compreende que, para faze-
defrontar numa batalha. Nestes exemplos, a paz era um subproduto lo, 0 fluxo da Vida tem que ser controlado na sua fonte.
bem-Vindo do sistema de equilfbrio—de—poder. A Santa Alianga conseguir realizar isto c o m a ajuda de instrumentos
peculiares a ela. Os reis e as aristocracias da Europa formaram uma inter-
nacional de parentesco, e a Igreja Catolica forneceu—lhes um servigo civil
22 1 Sontag, _R. J., European Diplomatic History, 1 8 71-1 932, 1933. voluntario que ia do nivel mais alto até o mais bajxo na escala social da 23
Europa do Sul e Central. As hierarquias de sangue e de direito divino se tico. Independente de governos particulares, 'mesmo os mais podero-
fundiram num instrumento de governo localmente efetivo, que precisava sos, estava e m contato corn todos; independente dos bancos centrais,
apenas ser suplementado pela forga para garantir a paz continental. mesmo do Banco da Inglaterra, estava estreitamente ligada a eles.
' Entretanto, o Concerto da Europa, que a substituiu, nao dispunha Havia u m contato intimo entre a finanga e a diplomacia; nenhuma
dos tentaculos feudais e clericais; quando muito, chegava a ser uma delas levava em consideragao planos a longo prazo, tanto de paz como
federagao frouxa que nao se comparava, em coeréncia, a obra-prima de guerra, sem ter a certeza da boa vontade do outro. Todavia, o segre-
de 'Metternich. Uma reuniao das Poténcias so podia ser organizada em do do sucesso na manutengao de uma paz geral repousava, sem dfivida,
raras ocasiées, e seus- Ciumes davam grande margem a intrjgas, a con- na posigao, organizagao e técnicas de finanga internacional.
tradigoes e a sabotagem diplomaticai uma atuagao militar conjunta pas- Tanto o pessoal como as motivagées desse organismo singular inves-
sou a ser rara. E, no entanto, o que a Santa Alianga, como toda a sua tiam-no' de u m status cujas raizes estavam seguramente cravadas na
unidade de pensarnento e propositos, so conseguiu alcangar na Europa esfera privada do interesse estritamente comercial. Os Rothschilds nao -
com a ajuda de freqiientes intervengoes armadas, foi alcangadoaqui estavam submetidos a nenham governo; como familia, eles incorpora-
em escala mundial por uma entidade difusa chamada Concerto da Eu- vam o principio abstrato do internacionalismo; sua lealdade era para
ropa, com a ajuda muito menosfreqiiente e opressiva do uso da Iforga. com uma firma, cujo crédito se tornara o unico elo supranacional entre
Para tentar explicar este feito surpreendente, temos que procurar al- o governo politico e o esforgo industrial numa economia mundial em
gurn poderoso instrumental social ainda nao descoberto, atuante nesse rapido crescimento. Em ultima instancia, sua independéncia se origina-
novo ambiente, e que podia desempenhar o papel anterior das dinas- va das necessidades da época, que exigia um agente soberano, digno da
tias e dos episcopados e tornar efetivo o interesse pela paz Esse fator confianga tanto dos estadistas nacionais como do investidor internacio-
anénimo foi a baute finance. nal. Para esta necessidade vital, a extraterritorialidade metafisica de
Ainda nao foi levada a efeito qualquer pesquisa mais ampla sobre a uma dinastia de banqueiros judeus domiciliada nas capitals da Europa
natureza do banco* internacional no século XIX; essa instituigao mis- oferecia uma solugao quase perfeita. Eles nao eram realmente pacifis-
teriosa emergiu pouco no Chiaroscuro da mitologia politico-economica.2 tas; haviam feito sua fortuna financiando guerras; eram impermeaveis
Alguns alegaram que ela era apenas a ferramenta dos governos; outros, a qualquer consideragao moral; nao faziam objegao a qualquer nfimero
que os governos eram os instrumentos da sua inesgotavel sede de de guerras, pequenas, breves ou localizadas. Entretanto, seu negécio
lucros; outros, ainda, que se tratava da semente da discordia interna- seria prejudicado se uma guerra generalizada entre as Grandes Potén-
cional; outros, que era 0 veiculo de um cosmopolitismo efeminado que cias interferisse com as fundagoes monetérias do sistema. Pela logica
minava a forga das nagoes viris. Nenhum desses argumentos 6 total- dos fatos, coube a eles manter os requisitos da paz geral em meio a
mente erradoQA haute finance, uma instituigao sui generis, peculiar ao transformagao revolucionaria a que foram submetidos os povos do
ultimo tergo do século XIX e ao primeiro tergo do século XX, funcio— planeta.
nou nesse periodo como o elo principal entre a organizagao politica e a Organizacionalmente, a haute finance foi o nficleo de uma das mais
econémica do mundo. Ela forneceu os instrumentos para um sistema complexas instituigées que a historia do homem 1a produziu. Apesar de
internacional de paz, que foi elaborado com a ajuda das Poténcias, mas transitéria, ela so é c'omparavel, em universalidade e pela profusao de
que essas mesmas poténcias nao poderiam ter estabelecido ou mantido. formas e instrumentos, corn 0 montante das atividades humanas na
Enquanto o Concerto da Europa atuava apenas durante intervalos, a indfistria e no comércio do qual se tornou,‘ de'alguma forma, o espelho
[mute finance funcionava como agéncia permanente, do tipo mais elas- e o reverso. Além do centro internacional, a baute finance propriamen-
te dita, havia uma meia dfizia de centros nacionais gravitando em torno
dos seus bancos de emissoes e bolsas de valores. Os banqueiros interna-
ng’lés, “banking”V,' 66m 0 senfido Id'e' '“négodo-s'baficarios'. (N. do R.) cionais nao se limitavam a financiar governos, suas aventuras de guerra
'2 Feis, H., Europe, the World 5 Banker,1870—1914,1930,uma obra que seguimos textual- e paz; faziam investimentos externos na indt’rstria, nos servigos publicos
24
meme mum‘s vezes' e bancos, bem como empréstimos a longo prazo a corporagoes.pl’lblicas 25
e particulates fora do pais. A finanga nacional, por sua vez, era um N50 uma paz a qualquer prego, nem sequer uma paz ao preco de qual-
microcosmo. 86 a Inglaterra contava com meia centena de tipos dife- quer ingrediente da independéncia, soberania, gléria adquirida ou aspi-
rentes de bancos; a organizagao bancaria da Franga e da Alemanha ragées futuras dos poderes envolvidos, mas simplesmente a paz, se
'também era especifica. Em cada um desses paises, as praticas do seu fosse possivel atingi—la sem um tal sacrificio.
Tesouro e suas relagées com a finanga particular variavam nas forgas E nao podia ser de outra maneira. O poder tinha precedéncia sobre
mais marcantes e, muitas vezes, as mais sutis no que se referia aos deta- o lucro. Por mais estreitamente que seus dominios se interpenetrassem,
lhes. O mercado de dinheiro lidava com uma quantidadc de contas era sempre a guerra que estabelecia as leis dos negécios. Desde 1870,
comerciais, aceitescstrangeiros, dogurnentos financeiros propriamente por exemplo, a Franga e a Alemanha eram inimigas. Isto nao impedia
ditos, bem como titulos nominais e outras facilidades nas bolsas dc transagées sem compromisso entre elas. Ocasionalmente, formavam—se
valores. O padrao era controlado por uma variedade infinita de grupos sindicatos bancarios para fins dc transagao; havia uma participagao pri-
nacionais e personalidades, cada um deles corn seu tipo peculiar dc vada de bancos de investimento alemaes em empresas além-fronteira,
prestigio e destaque, autoridade e lealdade, sua capacidade de dinheiro que nao apareciam nas folhas de balango; no mercado financeiro de
e contato, dc pattonato e de aura social. empréstimos a curto prazo ocorria o desconto de letras de cambio e a
A baute finance n50 foi instituida como instrumento de-paz; essa garantia de empréstimos a curto prazo sobre papéis colaterais e comer-
fungao lhe foi atribuida por acidente, como diriam os historiadores, ciais por parte de bancos francescs. Havia o investimento dircto, como
cnquanto os sociélogos talvez preferissem chama-la lei da disponibili- no caso da uniao entre o ferro e o coque, ou da fabrica Thyssen na
dade. O objetivo da baute finance era 0 lucro; para atingi-lo era neces- Normandia, porém tais investimentos se restringiam a areas definidas
sério- um_bom relacionamento com os governos cujo objetivo era 0 na Franga e estavam sob o fogo permanente da critica tanto de nacio-
poder e a conquista. Podemos deixar de lado, neste estagio e com bas- nalistas como de socialistas. O inveStimento direto era mais freqiiente
tante seguranga, a distingao entre poder politico e econémico, entre nas colénias, como se exemplifica pelos esforgos tenazes dos alernaes
objetivos economicos e politicos por parte dos governos. Com efeito, em garantir minérios de teor elevado na Argélia, ou pela estéria com-
era uma caracteristica dos estados--na§ao desse periodo que havia plicada das participagées no Marrocos. Todavia, permanece, ainda,
muito pouca realidade numa tal distingao pois, quaisquer que fossern como fato concreto que, depois de 1870, c m nenhum momento foi
0s seus objetivos, os governos procuravam atingi--los através da utiliza- levantada a interdigao oficial, embora tacim, sobre os titulos alemaes na
gao e do incremento do poder nacional. A organizagao da haute finan- Bolsa de Paris A Franga simplesmente‘‘escolheu nao correr o risco de
ce, por sua vez, era internacional, entretanto, nao podia se considerar ter a forga do capital emprestado”3 voltada contra ela. A Austria tam-
inteiramente independente da organizagao nacional. A baute finance, bém era suspeita; na crise do Marrocos de 1905--1906, a interdigao foi
como centro atuante de participagao bancaria nos sindicatos e consor- estendida a Hungria. Os circulos financeiros de Paris pediram a admis-
cios, nos grupos de investimento, de empréstimos estrangeiros ou sao dos titulos hfingaros, mas os circulos industriais apoiaram' o gover-
outras transagées de escopo ambicioso, tinha que procurar a coopera- no na sua solida oposigao a qualquer concessao a um possivel antago-
rcontinuava
gao dos bancos nacionais, do capital nacional, da finanga nacional. nista militar. A rivalidade politico-diplomética inquebranta-
Embora a-finanga nacional, como regra, fosse menos subserviente ao vel. Qualquer atuagao que pudesse aumentar o presumivel potencial
governo do que a indfistria nacional, ela o era 0 suficiente para fazer inimigo era vetada pelos governos. Superficialmente, mais de uma vez
com que a finanga internacional tivesse interesse em manter contato pareceu que o conflito foi dominado, porém os circulos internos esta-
com os préprios governos. Todavia, na medida em que — em virtude da vam convictos de que ele havia sido apenas empurrado para lugares
sua posigao e dos seus membros, da sua fortuna particular e de suas mais profundos sob a superficie de amabilidade.
filiagoes — cla era realmente independente de- qualquer .govcrno parti-
-cular .podia serma :um nova interesse q.u.e nao possuia qualquer orgao
_-e_sp.cc'ifico' proprio, 'a cujo scrvigo nao havia qualquer outra instituigao e
2'6 q-ue‘-; no cntanto, era de-vital importancia para a comunidade — a paz. 3 Feis, H., op. cit, p. 201. 27
To'memos, por exemplo, as ambigées da Alemanha quanto' a0 govemos dependiam da sua cooperag‘io em mais de um sentido. Em
Leste. Aqui também a politica e a finanga se misturavam, no entanto a conseql'iéncia, nunca houve época em que o interesse pela paz nao esti-
politica prevaleceu. Apés um quarto de século de disputas perigosas, vesse representado nos conselhos do Concerto da Europa. Se a isto
a Alemanha e a Inglaterra assinaram um acordo razoavel sobre a ferro- acrescentamos o crescente interesse pela paz dentro de cada nagio
via de Bagda, em junho dc 1914 — tardc demais para impedir a grande onde o habito do investimento havia deitado raizes, comegaremos a
Guerra, dizem muitas vezes. Outros argumentaram, pelo contrério, ver por que pode ocorrer a surpreendente ino'vagéo de uma paz arma-
que a assinatura do acordo provou, de forma concreta, que a guerra da de duzias de estados praticamente mobilizados na Europa de 1871
entre Inglaterra e Alemanha na'o foi causada por um confronto dc até 1914, semchegarem a0 ponto de uma conflagragao esmagadora.
expansionismo economico. Nenhuma dessas opiniées se baseia em A finanga —-um dos seus canals de influéncia'— agia como poderoso
fatos. Na verdade, o acordo deixou sem resolugao o tema mais relevan- moderadOr nos conselhos e na politica de uma série de pequenos esta-
te. A ferrovia alcma n50 podia prosseguir além de Basra sem o consen- dos soberanos. Os empréstimos e a renovagéo dos empréstimos se arti-
timcnto do governo britanico, e as zonas economicas do tratado cedo culavam com o crédito e este dependia do born comportamento. Uma
ou tarde levariarn a uma colisao frontal. Enquanto isto, as Poténcias vez que, sob um governo constitucional (e 03 governos inconstitucio-
continuavam a preparar—se para 0 Dia D, que estava mais préximo do nais nao cram vistos com bons olhos), o comportamento se reflete no
que elas mesmas imaginavam.4 orgamento e o valor cxterno da moeda nio pode ser isolado da aprecia-
A finanga internacional rinha que enfrentar as ambigées-conflimn- gao do orgamento, os governos em débito eram aconselhados a vigiar
res e as intrigas das grandes e pequenas poténcias. Seus planos cram cuidadosamente seu cambio e evitar politicas que pudessem se refletir
subvertidos pelas manobras diplomaticas, seus investimentos a longo na solidez da posigéo orgamentéria. Essa méxima bastante fitil tornava-
prazo eram-comprometidos e seus esforgos construtivos prejudicados se uma regra de conduta convincente, uma vez que o pafs adotasse 0 pa-
pela sabotagem politica e as obstrugées em surdina. As organizagoes drao-ouro que limitava ao minimo as flutuagoes permitidas. O padrao-
bancarias nacionais, sem as quais ela era impotente, agiarn muitas vezes ouro e o constitucionalismo cram os instrumentos que tornaram
como cfimplices de seus respectivos governos e nao se considerava conhecida a voz da City de Londres em muitos dos pafses menores que
seguro qualquer plano que n50 levasse em conta, antecipadamente, os adotaram esses simbolos de adesao 5 nova ordem internacional.’ As
despojos de cada participante. Entretanto, o poder finanCeiro muitas vezes a Pax Britannica mantinha esse equill’brio através dos canhoes dos
vezes nao era vitima mas o beneficiario da diplomacia do délar, a qual seus navios, entretanto, mais freqfientemcnte, ela prevalecia puxando
fornecia o aguilhao dc ago para a luva dc veludo da finanga. O sucesso os cordéis da rede monetéria internacional.
nos negécios sempre envolvia o uso impiedoso da forga comra os pai- A haute finance assegurava a sua influéncia, ainda, através da adminis-
ses mais fracos, a corrupgao desenfreada nos escaloes administrativos e tragao nao—oficial das finangas dc vastas rcgiécs semicoloniais do mundo,
o uso de quaisquer meios para atingir os fins familiares a selva colonial inclusive os impérios decadentes do Isla na zona altamente inflamével do
e semicolonial. E no entanto, por determinagao funcional, coube a Oriente Proximo e do Norte da Africa. Era justamente aqui que 0 dia de
haute finance impedir as guerras mais generalizadas. A grande maioria trabalho dos financistas tocava os fatores sutis dos subterraneos da
dos portadores dc titulos governamentais, assim como outros investi- ordem internacional, c fornecia uma administragao de facto para essas
dorese negociantes, seriam os primeiros perdedores oom tais guerras, regioes conflituosas onde a paz era mais vulnerével. Foi assim que se
principalmente se as moedas fosséin afetadas. A influéncia que» a haute pode garantir os numerosos pré-requisitos de investimentos de capital a
finance exercia sobre as Poténcias era sempre favoravel a uma paz longo prazo nessas areas, a despeito de obstéculos quase intransponfveis.
\-\.
européia. Essa influéncia foi atuante na medida e‘m que os pré‘prios A épica historia da construgéo de ferrovias nos Balcis, Anatolia, Siria,
'1'uv'
guerra — nao uma guerra entre pequenos paises (que podia ser facilmente Acostumamo-nos demasiado a pensar na difusio do capitalismo
circunscrita), nem a guerra de uma Grande Poténcia contra um pequeno como um processo que pode ser tudo menos pacifico, e no capital
pais (uma ocorréncia bastante comum, e freqfientemente conveniente) financeiro como o principal instigador de inumeraveis crimes coloniais
- mas uma guerra generalizada entre as préprias Grandes Poténcias. A e agressoes expansionistas. A associagao desse capital com as indl’lstrias
Europa nao era um continente vazio e sim o lar de milhoes de povos, pesadas levou Lenin a afirmar que 0 capital financeiro era responsavel
velhos e novos; cada nova ferrovia tinha que abrir seu caminho através pelo imperialismo, principalmente na luta por esferas de influéncia,
de fronteira de solidez variavel, e que podiam ser fatalmente enfraqueci— concessoes, direitos extraterritoriais e as inumeraveis formas de que se
das ou vitalmente reforgadas com o contato. Somente o punhode ago da valeram-as Poténcias Ocidentais nas regiées atrasadas, a fim de investir
finanga sobre os fracos governos das regioes atrasadas podia impedir a . em ferrovias, servigos pfiblicos, portos e outros setores permanentes
catastrofe. Quando a Turquia fugiu as suas obrigagées financeiras, em nos quais as suas indfistrias pesadas poderiam auferir lucros. E verdade
1875, imediatamente romperam conflagragées militares que duraram de que os negocios e as finangas foram-responsaveis por muitas guerras
. 1 8 7 6 até 1878, quando da assinatura do Tratado de Berlim. A paz foi coloniais, mas eles também foram responsaveis pelo fato de ter sido
mantida durante trinta e seis anos, a partir dai. Essa paz assombrosa evitada uma grande conflagragao. A sua associagao com a indfistria
foi implementada pelo Decreto de Muharrem, de 1881, que estabeleceu pesada, embora muito estreita apenasna Alemanha, é responsavel por
a “Dette Ottomane” em Constantinopla. Os representantes da [mute ambas, a guerra e a paz. 0 capital financeiro, como organizagao-chave
finance se encarregaram da administragao do grosso das finangas turcas. da indfistria pesada, associava—se aos Varios ramos da indl’istria de
Em numerosos casos eles arquitetaram compromissos entre as Poténcias; forma muito entrelagada para permitir que um finico grupo determi-
em outros, eles impediram a Turquia de criar dificuldades por sua pro- nasse a sua politica. A cada interesse favorecido pela guerra correspon-
Veles
pria conta; em outros, ainda, atuaram simplesmente como agentes diam dezenas de outros que poderiam ser afetados de forma adversa.
politicos das Poténcias — de um modo geral, serviram aos interesses 0 capital internacional seria certamente o perdedor, em caso de guer-
monetarios dos credores e, se assim se pode dizer, dos capitalisms que ra, porém mesmo a finanga nacional so poderia lucrar excepcional-
tentavam auferir lucros naquele pafs. Essa tarefa se complicou muito com mente, embora auferisse o suficiente, freqfientemente, para financiar as
o fato de a Comissao de divida nao ser um organismo representativo dos dezenas de guerras coloniais enquanto permanecessem circunscritas.
credores privados, mas um orgao da lei pfiblica européia, no qual a haute Quase todas as guerras foram organizadas pelos financistas, mas eles
finance so tinha representagao nao-oficial. Mas foi justamente nessa também organizaram a paz.
capacidade ambigua que ela se tornou capaz de estreitar o abismo exis- A natureza precisa desse sistema estritamente pragmatico, que se
tente entre as organizagoes politica e economica da época. resguardava com extremo rigor contra uma guerra generalizada en-
O-comércio se unira definitivamente a paz. No passado, a organiza- quanto oferecia negécios pacificos em meio a uma seqiiéncia intermi-
gao do comércio fora militar e guerreira; era um conjunto de piratas e navel de .pequenas guerras, fica mais bem demonstrada’pelas modifica-
bucaneiros, era a caravana armada, o cagador e o que colocava armadi- coes que ele introduziu na lei intérnacional. Enquanto o nacionalismo
lhas, o mercador com a espada, a burguesia armada das cidades, os e a indfistria tendiam a tornar as guerras mais ferozes e totais, foram
aventureiros e 03 exploradores, os plantadores 6 OS conquistadores, 03 ca- criadas salvaguardas efetivas para a continuidade do comércio pacifico
gadores dc homens e 03 comerciantes de escravos, os exércitos coloniais em tempo de guerra. Frederico o Grande, se notabilizou por ter recu-
e 03 navios fretados. Tudo isto ja havia sido esquecido. O comércio sado, “em represalia”, em 1752, honrar o empréstimo silesiano devido
dependia agora de um sistema monetario internacional que nao podia aos sfiditos britanicos.5 “Nao foi feita qualquer outra tentativa dessa
funcionar numa guerra generalizada. Ele exigia a paz e as Grandes espécie desde entao”, disse Hershey. “As guerras da Revolugao Francesa
Poténcias se esforgavam por manté-la. Todavia, o sistema de equih’bro- nos fornecem os filtimos exemplos importantes de confisco de proprie-
dé;pod‘er, como vimos, nao podiagarantir a' pazpor si meSmo.“Isto foi
'cionseguido pela finanga internacional, cuja 'propria existéncia incorpo-
'30 rava o principio 'de uma nova dependéncia do comércio a'paz. 5 Hershey, A. 5., Essentials of International Public Law and O1ganization, 1927, pp. 5 65-69. 31
dade privada de suditos inimigos encontrados em territorio beligerante dos casos a paz se manteve nao apenas através das chancelarias das
quando do rompimento das hostilidades.” Quando irrompeu a Guerra Grandes Poténcias mas com a ajuda de agéncias concretamente organi-
' d a Criméia, permitiu—se aos comerciantes inimigos abandonar o porto,
zadas, que agiam a servico de interesses generalizados. Em outras pala-
uma pratica a qual aderiram Prussia, Franca, Russia, Turquia, Espanha, vras, o sistema de equilibrio-de-poder so pode evitar uma conflagragao
Japao e 05 Estados Unidos durante os cinqfienta anos seguintes. Desde generalizada com o pano de fundo de uma nova economia. Mas a faca-
o inicio dessa guerra usou-se de grande indulgéncia no comércio entre nha do Concerto da Europa foi incomparavelmente maior do que a da
os' beligerantes. Assim, na Guerra Hispano-Americana, navios neutros Santa Alianca. Esta filtima so manteve a paz numa regiao limitada, num
‘c'om carregamentos'de‘propriedade americ-ana, e que nao eram_contra- continente irnutavel, enquanto a primeira realizou a mesma tarefa em
bando de guerra, destinavam—se a portos espanhois. A opiniao de que escala mundial enquanto o progresso social 6 economico revolucionava
as guerras do século XVIII foram menos destrutivas do que as do sécu- o mapa do globo. Esse grande feito politico resultou da emergéncia de
lo XIX em todos os aspectos é um simples preconceito. No que diz res- uma entidade especifica, a baute finance, que foi o elo entre a organi-
peito ao status de estrangeiros inimigos, o servigo de empréstimos zagao politica e a economica da vida internacional.
mantidos por cidadaos inimigos, a propriedade inimiga ou o direito de Neste ponto, deve ficar claro que a organizacéo da paz-repousava
comerciantes inimigos deixarem os portos, o século XIX revelou uma sobre a organizacio economica. Todavia, as duas eram de consisténcia
mudanga decisiva em favor de medidas para salvaguardar o sistema muito diferente. 86 se pode falar de uma organizagao de paz politica -
economico em tempo de guerra. Foi no século XX que se reverteu essa mundial no sentido mais amplo do termo, pois o Concerto da Europa,
tendéncia. em sua esséncia, nao era um sistema de paz, mas apenas dc soberanias
Assim, a nova organizagao da Vida economica forneceu o pano de independentes protegidas pelo mecanismo da guerra. O oposto é verda—
fundo para a Paz dos Cem Anos. No primeiro periodo, as classes deiro em relagao a organizagao economica do mundo. A menos que nos
médias nascentes cram principalmente uma forga revolucionaria que submetamos a pratica nao-critica de restringir o termo “organizacao”a
ameagava a paz, como testemunhamos no levante napoleonico. Foi jus- organismos dirigidos de forma centralizada, que atuam através de fun-
tamente contra este novo fato de perturbacao nacional que a Santa cionarios préprios, temos que concordar que nada poderia ser mais
Alianga organizou a sua paz reacionéria; No segundo periodo, a nova definido do que os principios universalmente aceitos sobre os quais essa
econornia estava vitoriosa. As classes médias eram agora, elas mesmas, organizacao repousa, e nada mais concreto do que seus elementos fac—
o sustentaculo do interesse na paz, muito mais poderoso do que 0 de tuais. Orgamentos e armamentos, comércio exterior e matérias-primas,
seus predecessores reacionarios, e alimentado pelo carater nacional- independencia nacional e soberania eram, agora, funcoes da moeda e
internacional da nova economia. Entretanto, em ambos o s casos o inte- do crédito. ]a no ultimo quarto do século XIX, os precos mundiais das
resse pela paz s6 se tornou efetivo porque foi capaz de fazer o sistema mercadorias constituiam a realidade principal das vidas de milhées de
de equilibrio-de-poder servir a sua causa, fornecendo aquele sistema os camponeses continentais; as flutuacoes do mercado monetario de
orgaos sociais capazes de lidarem diretamente com as forgas internas Londres eram anotadas diariamente pelos negociantes de todo o
ativas na area da paz. Sob a Santa Alianga esses orgaos eram o feudalis- mundo, C 0s governos discutiam os planos para o futuro a luz da situa-
mo e as casas .reinantes, apoiados pelo poder espiritual e material da gao dos mercados de capitais mundiais. 56 um louco duvidaria de que o
Igreja; sob o Concerto da Europa, eles foram a finanga internacional e sistema econornico internacional era 0 eixo da existéncia material da
o sistema bancario nacional a ela aliados. Nao ha necessidade de exage- raga humana. Como o sistema precisava de paz para funcionar, o equili-
rar esta distingao. Durante a Paz dos Trinta Anos, 1816-1846, a Gra- brio-de—poder era organizado para servi—loLSe se retirasse esse sistema
Bretanha ja pressionava pela paz e pelos negécios, e mesmo a Santa economico, o interesse pela paz desapareceria da politica. Além disso,
Alianca nao desdenhava aiajuda ’dos Rothschilds.-Sob o Concerto da nao havia causa suficiente para esse interesse nem a possibilidade de sal-
Eur0pa, pOr Sua vez, a finanga internacional teve‘que recorrer, muitas vaguarda—lo, mesmo que existisse. O sucesso do Concerto da Europa
vezes, a seus asSociados idinasticos
e aristocraticos. Todavia, tais fatos surgiu da necessidade da nova organizacao internacional da economia e
32 apenas servem 'para fortalecer nosso argumento de que em cada urn terminaria, inevitavelmente, com a sua dissolugao. 33
A era de Bismarck (1861-1890) viu o Concerto da Europa na sua a Pérsia, e estava formada a contra—alianga. O Concerto da Europa,
melhor forma. Nas duas décadas que se seguiram imediatamente a essa federacao frouxa de poténcias-independentes, foi finalmente subs-
ascensao da Alemanha a categoria de Grande Poténcia, ela foi a princi- titufdo por dois agrupamentos de poder hostis; o equilibrio—de-poder,
' pal beneficiaria do interesse pela paz. Ela forcara seu caminho até as como sistema, chegar'a a seu final. Com apenas dois grupos de poder
primeira fileiras a custa da Austria e da Franga; era vantajoso para ela em competigao, seu mecanismo deixara de funcionar. Nao havia mais
manter 0 status quo e evitar a guerra, que poderia ser apenas uma um terceiro grupo que se unisse a um ou outro para frear aquele que
guerra de retaliacao contra ela mesma. Bismarck patrocinou delibera— buscasse aumentar o seu poder. Praticame nte na mesma época, 0s sin-
damente a nogao dc paz como elaboragao conjunta das Poténcias e evi— tomas de dissolucao das formas existentes de economia mundial — riva- - ' '
tava compromissos que pudessem forcar a Alemanha para fora da sua lidade colonial e competicao por mercados exéticos — tornaram-se agu-
posigio de poder de paz. Ele se opos a ambicées expansionistas nos dos. A habilidade da haute finance em contornar a disseminagao das
Balcas e no além-mar; utilizou, de modo consistente, a arma do livre guerras diminuia rapidamente. A paz_ ainda se arrastou durante os sete
comércio contra a Austria, e até mesmo contra a Franga; frustrou as anos seguintes, mas era apenas uma questao dc tempo para que a disso-
ambigoes da Russia 6 da Austria nos Balcas com o auxflio do jogo de lucao da organizagao economica do século XIX terminass e com a Paz
equilibrio-de—poder, mantendo a harmonia com aliados em potencial e dos gem Anos.
evitando situagoes que poderiam envolver a Alemanha numa guerra. O A luz desse reconhecimento, a verdadeira natureza da organiiacao
agressor astuto de 1863-1870 transformou-se no correto honesto de economica altamente artificial sobre a qual repousava a paz assume um
1878 e no depreciador das aventuras coloniais. Conscienciosamente, significado maior para o historiador.
ele passou a liderar o que 'considerava ser a tendéncia pacifica da
época, a fim de servir os interesses nacionais da Alemanha.
Entretanto, no final da década de 1870, o episodic do livre comér—
cio (1846-79) estava no final; a utilizacao do padrao-ouro pela Ale-
manha marcou o inicio de uma era de protecionismo e expansao colo-
nial.6 A Alemanha passava agora a reforgar sua posigao através de uma
alianca precipitada com a Austria-Hungria e a Itélia; um pouco mais
tarde Bismarck perdeu o controle da politica do Reich. A partir daf, a
Gra—Bretanha passou a ser 0 lider do interesse pela paz numa Europa
que ainda permanecia um grupo de estados soberanos independentes e,
portanto, sujeitos ao equili‘brio-de-poder. Na década de 1890, a haute
finance estava no seu apogeu e a paz patecia mais segura do que nunca.
Os interesses britanicos e franceses diferiam na Africa; os britanicos 6
0s russos competiam uns com os outros na Asia, 0 Concerto, embora
capengando, continuava a funcionar. A despeito da Triplice Alianca,
ainda havia mais de duas poténcias independentes para vigiar uma a
outra ciumentamente. Mas isto n50 durou muito tempo. Em 1904, a
Gra-Bretanha fez um acordo espetacular com a Franga sobre Marrocos
e. o n i t o ; lalguns anos mais tarde entrou em acordo com a Russia sobre
6_Eulei_1burg,
F. -“Aussenhandel und Aussenhandels‘polifilgem Gmndn'ss der Sozialfikonomik,
34 voLVlII, 1929, p. 209.
35
A transformagao chegou ainda mais abruptamente do que se pode-
ria imaginar. A Primeira Guerra Mundial e as revolugées de pos-guerra
ainda faziam parte do século XIX. O conflito de 1914-1918 apenas pre-
cipitou e agravou desmesuradamente uma crise que ele nao havia cria-
do. Mas o ccrne do dilema ainda nao havia sido descoberto nessa épo-
2 ca, c 03 horrores e as devastagoes da guerra pareceram aos sobreviven—
tee a fonte obvia dos obstaculos a uma organizagao internacional que
. h'avia emergido. 1:510 inesperadamente. De repente, nomosi stema eco-
A DECADA DE 1920 CONSERVADQRA nomico, nem o sistema politico mundial pareciam funcionar, e a expli-
A DECADA DE 1930 REVOLUCIONARIA cagéo parecia estar nos terriveis sofrimentos infligidos a substancia da
raga humana pela Primeira Guerra Mundial. Na realidade, os obstacu-
10s a paz e a estabilidade no pos-guerra derivavam das mesmas fontes
da qual brotara a propria guerra. A dissolugao do sistema economico
mundial que se processava desde 1900, foi responsavel peLa tensao
politica que explodiu em 1914; a guerra e 05 tramdos posteriores dimi-
nuiram superficialmente a tensao eliminando a competi gio alema,
O colapso do padrao-ouro internacional foi 0 e10 invisivel entre'a embora agravassem as causas da tensao e aumentassem, ainda mais
desintegragio da economia mundial na virada do século e a transfor- acentuadamente, os obstaculos politicos e economicos para a paz.
magao de toda uma civilizagio na década de 1930. Enquanto nao se Do ponto de vista polftico, os tratados incluiam uma contradigao
avaliar devidamente a importanoia vital deste fator, nao é possfvel fatal. Com 0 desarmamento unilateral das nagées derrotad as, eles
apreciar corretamente tanto o mecanismo que conduziu a Europa ao impediam qualquer r'econstrugao do sistema de equilibrio-de—poder,
seu destino como as circunstfincias responsaveis pelo fato estarrecedor uma vez que o poder é requisito indispensavel para um tal sistema.
das formas e contefidos de uma civilizagao repousarem sobre aliccrces Genebra procurou e m v50 a restaurag ao d e u m tal sistema nesse
tao precarios. Concerto da Europa mais amplo e aperfeigoado que se chamou a Liga
Nao se percebeu a verdadeira natureza do sistema internacional da Nagocs. Foram v55 as facilidades de consulta e de agao conjunta ofe-
sob o qual viviamos senao quando ele entrou em colapso. Quase nin- recidas no Pacto da Liga - faltava a precondigao essencial das unidades
guém compreendeu a fungao politica do sistema monetério internac10-‘ dc poder independentes. A Liga nunca chegou a ser realmente institui—
nal, e a terrivel rapidez da transformagéo tomou o mundo completa- da; nem o Artigo 16, sobre o cumprimento dos tratados, nem o Artigo
mente de surpresa. E, no entanto, o padrao-ouro era 0 finico pilar 19, sobre a sua revisao pacifica, chegaram a entrar em vigof. A (mica
remanescente da economia mundial tradicional; quando ele ruiu, o solugao viével para o incandescente problema da paz — a restauragao
resultado teria que ser imediato. Para os economistas liberais, 0 pa- do sistema de equilibrio-de—poder — estava, assim, completamente fora
drao-ouro era uma instituigao puramente economic-a; eles se recusa- do alcance, e tanto isto 6 real que o verdadeiro objetivo dos estadistas
vam a vé-lo, sequer, como parte do mecanismo social. Os pafses demo- mais construtivos da década de 1920 11510 foi sequer compreendido
créticos foram, assim, os filtimos a compreender a verdadeira natureza pelo pfiblico, que continuava num estado quase indescritiv el de confu-
da catéstrofe, 6 cs mais demorados no combate ao seus efeitos. O cata- sao. Ante o fato estarrecedor do desarmamento de um grupo de na-
clisma ja desabava sobre eles e seus'lideres ainda nao conseguiam goes, enquanto o outro continuava armado -— uma situagéo que impos-
entender que, por trés do colapso do sistema internacional, existia um sibilitava qualquer passo construtivo para a organizag‘io da-paz — pre-
longo desenvolvimento no interior dos paisos mais avangadosque tor- valeceu a atitude emocional de set a Liga, dc alguma forma misterio'sa,
nava anacrénico um tal sistema. Em outras palavras, a faléncia da pro- a precursora de uma era de paz que necessitava apenas de freqiientes
35 priareconomia de mercado ainda lhes escapava.. encorajam entos verbais para se tornar permanen te. Na América do 37
Norte se difundiu amplamente a idéia de que se a América tivesse feito de que somente com o restabelecimento do sistema pré-1914, “agora
Aparte
da Liga as coisas seriam totalmente diferentes. Nao existe melhor sobre fundagoes solidas”, poder-se-ia restaurar a paz e a prosperidade.
prova do que esta para a falta de compreensao das fraquezas organicas Na verdade, foi justamente pelo fracasso desse esforgo de volta ao pas-
' do assim chamado sistema do pés-guerra — assim Chamado porque, se sado que surgiu a transformagao da década de 1930. Embora as revo-
as palavras tém algum sentido, a Europa nao tinha, entao, qualquer sis: lugoes e contra-revolugées dos pés—guerra 'fossem espetaculares, elas
tema politico'. Um simples status quo como esse so pode durar enquan- apenas representavam reagées mecanicas a derrota militar ou, no maxi-
to dura a exaustao fisica das partes envolvidas; nao é de admirar, por- mo, uma reencenagao do usual drama liberal e constitucionalista de
ranto, que a volta ao sistema do século XIX parecesse o unico.,carr1inho civilizagao ocidental no cenario__da Europa Central e Oriental. Foi
a seguir. Enquanto isto, o Conselho da Liga poderia ter funcionado ao somente na'década de 1930 que elementos inteiramente novos pene-
menos como uma espécie de diretério europeu, semelhant e ao traram no padrio da histéria ocidental. .
Concerto da Europa no seu apogeu, n50 fosse a regra fatal da unanimi- Os levantes e os contralevantes da Europa Central 6 Oriental na
dade que indicou o pequeno Estado obstinado como arbitro da paz década de 1917 a 1920, a despeito do seu cenério, foram apenas cami-
mundial. O projeto absurdo do desarmamento permanente dos paises nhos obliquos para reerguer regimes que haviam sucumbido nos cam-
derrotados impossibilitava qualquer solugio construtiva. A (mica alter- pos de batalha. Quando se dissolveu a fumaga da contra-revolugio, 0s
nativa para essa situagao desastrosa era estabelecer uma ordem interna- sistema politicos de Budapeste, Viena e Berlim nao eram muito diferen-
cional imbuida de um poder organizado que transcendesse a soberania tes do que tinham sido antes da guerra. O mesmo ocorreu com a
nacional. Uma tal perspectiva, porém, estava inteiramente fora de cogi- Finléndia, os Estados Bélticos, Polonia, Austria, Hungria, Bulgaria e até
tagao naquela época. Nenhum pais da Europa, para nao mencionar os mesmo a Itélia e a Alemanha até meados da década de 1920. Em alguns
Estados Unidos, submeter-se-ia a um tal sistema. _ paises ocorreu um grande progresso em relagio a liberdade nacional e a
Do ponto de vista economico, a politica de Genebra era muito mais reforma agraria — realizagées bastante comuns ja na Europa Ocidental
consistente quando pressionava pela restauragéo da economia mundial desde 1789. Nesse sentido, a Russia 1150 constitui excegao. A tendéncia
como segunda linha de defesa da paz. Mesmo um sistema de equili— da época era simplesmente estabelecer (ou restabelecer) o sistema comu-
brio'-de-poder restabelecido com sucesso so trabalharia pela paz se mente associado com os ideais das revolugées inglesa, americana e fran-
fosse restaurado o sistema monetario internacional. Na falta de cam- ' cesa. N50 apenas I-Iindenburg C Wilson, mas também Lenin e Trotski
bios estéveis e liberdade de comércio, os governos das varias nagoes, estavam, nesse sentido amplo, na linha da tradigao ocidental.
como no passado, veriam a paz como um interesse menor, pelo qual No inicio da década de 1930, a mudanga surgiu abrupta. Seus mar-
lutariam apenas enquanto ela n50 interferisse com seus interesses maio- cos foram o abandono do padrao-ouro pela Gra-Bretanha, os Planos
res. Woodrow Wilson foi o primeiro, entre os estadistas da época, que Qiiinqiienais na Russia, 0 langamento d o N e w Deal, a Revolugao
parece ter compreendido a interdependéncia entre a paz e o comércio, Nacional-Socialista na Alemanha, o colapso da Liga em favor de impé- .
nao apenas como garantia do comércio, mas também da paz. Nao rios autarquicos. Enquanto no final'z'da guerra os ideais do século XIX
admira, pois, que a Liga lutasse persistentem ente para reconstruir a cram predominantes e sua influéncia dominou a década seguinte, ja em
moeda internacional e a organizagéo do crédito como a (mica salva- 1940 havia desaparecido qualquer vestigio do sistema internacional e,
guarda possivel da paz entre os estados soberanos, e que o mundo 21 parte enclaves, as nagées viviam uma conjuntura internacional intei-
dependesse, como nunca antes, da haute finance. J. P. Morgan havia ramente nova. ' '
Substiruido N. M. Rothschild como o demiurgo do século XIX rejuve- A causa primordial da crise, calculamos, foi o trégico colapso do
nescido. sistema economico internacional. ‘ D e s d e a virada do século ele vinha
De. acordo com os padroes daquele século, a primeira década do funcionando precariamente, e a guerra e 05 Tratados finalmente des-
pos-guerra surgiu como era revolucionaria; a luz da nossa, experiéncia truiram-no. Isto tornou-se aparente na década de 1920, quando dificil-
.atual mente uma crise interna na Europa nao alcangava seu climax em ter—
ocorreu precisamente o contrério, -A intengéo daquela épom era
33 prOfundamente conservadora, e expressava a convicgéo quase universal mos de economia externa. Os estudantes de politica agrupavam, entao, 39
os varios paises nao em termos de continentes, mas de acordo com o liberais na Franga, e m 1925 e novamente e m 1938, b e m como no
grau de aderéncia deles a uma moeda estavel. A Russia havia assombra— desenvolvimento do movimento fascista na Alemanha em 1930.
do 0 mundo com a destruigao do rublo, cujo valor havia sido reduzido A moeda tornou-se o pivo da politica nacional. Sob uma economia
'a zero através, simplesmente, da inflagao. A Alemanha repetira esse monetaria moderna, ninguém podia deixar de experimentar, diaria—
gesto desesperado de enganar o Tratado; a expropriagao da classe dos mente, o encolhimento on a expansao do bastao financeiro; as popula—
arrendatarios, que ocorreu na sua esteira, colocou as fundagées para a goes tornaram-se conscientes de que significava o dinheiro; o efeito da
revolugao nazista. O prestigio de Genebra deveu—se ao seu sucesso em inflacao na renda real era descontado adiantadarnente pela massas; em
ajudar a Austria e a Hungria a restaurarem suas moedas, e V1ena tor- todos os lugares, homens e mulheres pareciam ver 0 dinheiro estavel
nou-se a Meca dos economistas liberajs em virtude de uma operagao como a necessidade suprema da sociedade humana. Todavia, essa cons-
brilhantemente bem-sucedida no Krone austriaco, a qual o paciente, cientizagao era inseparavel do reconhecimento de que os alicerces da
infelizmente, nao sobreviveu. Na Bulgaria, Grécia, Finlandia, Letonia, moeda podiam depender de fatores politicos fora das fronteiras nacio—
Lituania, Estonia, Polonia e Rumania, a restauragao da moeda deu con- nais. Assim, o bouleversement social, que abalou a confianga na estabi-
digées a contra-revolugao de exigir uma participagao no poder. Na lidade inerente ao meio monetario, abalou também o conceito ingénuo
Bélgica, Franga e Inglaterra, a esquerda foi alijada em nome dos da soberania financeira numa economia interdependente. Da1’ em dian—
padrées de seguranga da moeda. Uma seqiiéncia quase ininterrupta de te, as crises internas associadas a moeda tenderiam a levantar graves
crises monetarias ligava os indigentes Balcas aos afluentes Estados problemas externos. '
Unidos, através da conexao elastica de um sistema internacional de cré- A crenca no padréo-ouro tornou-se a religiao daquele tempo. Para
dito que transmitiu a tensao de moedas imperfeitamente restauradas alguns ela representava um credo ingénuo, para outros, uma crenga cri-
primeiro da Europa Oriental para a Europa Ocidental, dcpois da tica, para outros, ainda, um credo satanico que implicava a aceitagao
Europa Ocidental para os Estados Unidos, Finalmente, os préprios da came e na rejeigao do espfrito. E no entanto, a crenga e m si e r a a
Estados Unidos foram engolfados pelos efeitos de uma estabilizagao mesma, isto é, de que as notas bancarias tinham valor porque elas
prematura das moedas européias. Comegara o colapso final. representavam o ouro. Nao fazia diferenca, entao, se 0 préprio ouro
0 primeiro choque ocorreu dentro de esferas nacionais. Algumas tinha valor pelo fato de incorporar trabalho, como diziam os socialis-
moedas, como a russa, a alema, a austriaca, a hungara, desaparece- tas, ou pelo fato de ser fitil e escasso, como afirmava a doutrina orto-
ram no espago de um ano. A parte uma taxa sem precedente de cam- doxa. A guerra entre o céu e o inferno ignorava o tema dinheiro, dei-
bio no valor das moedas, ocorreu a circunstancia de que esse cambio xando milagrosamente unidos capitalistas e socialistas. Onde Ricardo e
tinha lugar numa economia completamente monetarizada. Havia Marx tinham a mesma opiniao, o século XIX n50 conheceu a dfivida.
sido introduzido um processo celular na sociedade humana cujos Bismarck e Lassalle, John Stuart Mill e Henry George, Philip Snowden
efeitos estavam fora do alcanc‘e da experiéncia. Tanto interna como e Calvin Coolidge, Mises e Trotski aceitaram igualmente essa fé. Karl
externamente, moedas de valor minguante significavam uma ruptura. Marx usou de grande empenho para demonstrar que os talées dc tra-
As nagées se viam separadas de seus vizinhos, como por um abismo, balho utopicos de Proudhon (que deveriam substituir a moeda) eram
enquanto, ao mesmo tempo, os vérios estratos da populagio eram baseados numa auto-ilusao, e 0 Das Kapital apresentou a teoria da
afetados de modos inteiramente diferentes e muitas vezes opostos. A mercadoria-dinheiro na sua forma ricardiana. O russo bolchevista
classe média intelectual foi literalmente pauperizada; os tubaroes Sokolnikoff foi o primeiro estadista pés-guerra a restaurar o valor da
financeiros acumulavam fortunas chocantes. Entrara em cena um moeda do seu pais em termos de ouro; o social-democrata alemao
fator de uma forga incalculavel, simultaneamente integradora e de- Hilferding p65 seu partido em perigo ao defender ardorosamente os
s1ntegradora. principios da moeda estével; o social-democrata austriaco Otto Bauer
Ar“fuga do capital? era11m nomm; Nem em 1848, nem em 1866, e apoiou os principios monetarios subjacentes a restauragao do Krone
nem mesmosem:1821,»_registrou:se um tal acontecimento. No entanto, ten‘tada peloseu implacavel adversario Seipel; o socialista inglés Philip
4o ficou patenteo papel vital _que ele desempenhou 11a queda dos governos Snowden voltou-se contra o trabalhismo acreditando que a libra ester- 41
lina n50 estava a salvo nas suas macs; e o Duce manteve o valor—ouro o ‘padrao-ouro e m 1933, desaparecendo, assim, o ultimo vestigio da
da llra em 90 gravado em pedra e afirmOu que morreria em sua defesa. economia mundial tradicional. Embora muito pouca gente pudecse dis-
Sena d1fic11encontrar qualquer divergéncia a esse respeito entre os cernir naquela época o significado mais profundo do acontecimento, a
pronunciamentos de Hoover e Lenin, Churchill e Mussolini. Na verda- histéria irnediatamente reverteu a sua tendéncia.
de, a essencialidade do padrao-ouro para o funcionamento do sistema Durante mais de uma década, a restauragao do padrio-ouro havia
economico internacional da época era 0 dogma primeiro e unico . sido o simbolo da solidariedade mundial. Realizaram-se inumeras reu-
comum aos homens de todas as nagées, de todas as clases, de todas as niées, de Bruxelas a Spa e Genebra, de Londres a Locarno e Lausanne,
religioes e filosofias sociais. Era a (mica realidade invisivel a qual podia para atingir as precondigoes politicas necessérias a moedas estaveis. A
prépria Liga da Nagées foi acrescida da uma Organizagao Interna-
bragos, ela mesma, com a tarefa de restaurar sua existéncia em franga- cional do Trabalho, em parte para uniformizar as condigées de compe-
lhos. tigao entre as nagoes dc tal forma que o comércio pudeSse ser liberado
O esforgo, que fracassou, foi o mais compreensivo a que o mundo1a sem perigo para os padroes de vida. A moeda estava no cerne das cam-
assistiu. A estabilizagao dc moedas praticamcnte arrasadas na Austria, panhas langadas por Wall Street para superar o problema das transfe-
I-Iungria, Bulgaria, Finlandia, Rumania ou Grécia nao foi apenas um ato réncias e para, primeiro, comercializar e, depois, mobilizar as repara-
de fé por parte desses paises pequenos e fracos, que literalmente passa- cées. Genebra atuou como o patrocinador de um processo de reabili- '
ram fome para alcangar as margens do ouro, mas foi também uma apro- tagio no qual a pressao conjunta da City dc Londres e dos puristas
vagéo severa para seus poderosos e ricos patrocinadores — os vitoriosos monetarios neoclassicos de Viena foi posta a servigo do padrao-ouro.
da Europa OcidentaL Enquanto as moedas dos vitoriosos flutuavam, a Todd 0 esforgo internacional foi dirigido a esse objetivo, finalmente,
pressao nao se tornou aparente; eles continuavam a fazer empréstimo enquanto os governos nacionais, como regra, acomodavam suas politi—
externos como antes da guerra e, assirn, ajudavam a manter as econo- cas a necessidade de salvaguardar a moeda, particularmente aquelas
, mias das nagoes derrotadas. Entretanto, quando a Gré—Bretanha e ‘a politicasque se preocupavam com o comércio exterior, empréstimos,
Franga reverteram ao ouro‘, a carga dos seus cimbios estabilizados pas- assuntos bancérios e cfimbio. Embora todos concordassem que as moe-
sou a contar. Eventualmente, uma preocupagao silenciosa quanto a das 'estéveis dependiam, e m ultima instancia, do comércio exterior,
seguranga da libra passou a ser marcante no principal pais do ouro, os todos, a 1150 ser os adeptos dogmaticos do livre comércio, sabiam tam-
Estados Unidos. Essa preocupagao, que atravessou o Atlantico, acabou bém que deveriam ser tomadas medidas imediatas, as quais iriam res-
| trazendo a America, inesperadamente, para a zona de perigo. O ponto tringir, inevitavelmente, o comércio exterior e os pagamentos externos
i
l1 parece apenas técnico, porém deve ser entendido claramentc. O apoio na maioria dos paises. Desenvolveram-se cotas de importagao, morato-
l
|1 americano a libra esterlina em 1927 significava baixas taxas de juros em rias e acordos imobilizados, sistemas de compensagao e tratados
|
Nova York, a fim de impedir grandes movimentos de capital de Londres comerciais bilaterais, acordos de permuta, embargos de exportagoes de
para Nova York. 0 Federal Reserve Board assumiu um compromisso capital, controles do comércio exterior e equalizagées dos fundos cam-
com 0 Banco da Inglaterra para manter baixos os seus juros. Mas che- biais para fazer face ao mesmo conjunto de lciréunstancias. O incubus
gou o momento em que a prépria America precisou dc 'juros altos, pois da auto-suficiéncia, no entanto, perseguia as medidas tomadas para a
o seu préprio sistema de pregos comegou a ser perigosarnente inflacio- protegao da moeda. Embora a intengao fosse a liberdade de comércio,
nado (esse fato foi obscurecido pela existéncia de um nivel dc pregos o resultado foi seu estrangulamento. Ao invés de ganhar acesso aos
estével, mantido a despeito de custos tremendamente diminuidos). mermdos do mundo, os governos, por seus proprios atos, estavam bar-
Quando o balango habitual do péndulo, apos sete anos d_e prosperidade, rando seus paises de qualquer nexo internacional, e sacrificios cada vez
resultou no crack de 1929, ja longamente retardado, as coisas se agrava— maiores passaram a ser exigidos para manter pelo menos um fluxo
ram intensamente pelo estado =vigente; de criptoinflagio. Os devedores, minimo de comércio. Os esforgos frenéticos para proteger o valor
eXtenuados pela deflagao, puderam ver 0 colapso do credor inflado. Foi externo da moeda como meio de comércio exterior levaram os povos,
42 um-portento. A America, num gesto instintivo de libertagéo, abandonou mesmo contra a sua vontade, a uma economia autérquica. Todo o arse- 43
nal de medidas restritivas, que se constituia num afastamento radical da Nao foi por acidente que a transformacio se fez acompanhar de
economia tradicional, foi na verdade o resultado dos propésitos con- guerras numa escala sem precedentes. A hist6ria estava acionada para
servadores do livre comércio. uma mudanca social; 0 destino das nagées estava ligado a seu papel
Essa tendéncia reverteu abruptamente com a queda final d o numa transformagao institucional. Uma tal simbiose mac 6 excepcional
padrao-ouro. Os sacrificios feitos para restaura-lo tinham que ser feitos na histéria; embora os grupos nacionais e as instituigoes sociais tenham
novamente para que pudéssemos viver sem ele. As mesmas instituigées origens préprias, eles tendem a se acoplarem uns aos outros na sua luta
que haviam sido destinadas a reprimir a Vida e o comércio para manter pela sobrevivéncia. Um exemplo famoso de uma tal simbiose uniu o
um sistema de moedas estaveis eram agora utilizadas para ajusmr a vida- ' capitalismo e as nagoes maritimas do Atlantico. A Revolugao Comer-
industrial 5. auséncia permanente de um tal sistema. Talvez seja por isto- , cial, tao estreitamente ligada a ascensao do capitalismo," tornou-se o
que a estrutura mecanica e tecnologica da indfistria moderna tenha veiculo-de-poder para Portugal, Espanha, Holanda, Franga, Inglaterra
sobrevivido ao impacto do colapso do padrao-ouro. Assim, na luta e Estados Unidos, e cada uma delas se beneficiou das'oportunidades
para preserva-lo, o mundo vinha se preparando inconscientemente oferecidas por aquele movimento amplo e bem arraigado enquanto, de
para o tipo de esforgo e o tipo de organizagao necessarios para se adap- outro lado, o préprio capitalismo se expandia pelo planeta através da
tar a sua perda. Entretanto, a intengao agora era inteiramente oposm; instrumentalidade dessas Poténcias ascendentes.
nos paises que mais sofreram durante a prolongada luta pelo inatingi- A lei se aplica também a0 seu reverso. Uma nagao pode ser prejudi-
vel,- forcas titanicas se desprenderam como reagio.’ Nem a Liga das cada na sua luta pela sobrevivéncia pelo fato de suas instituicées, ou
Nacées, nem a baute finance internacional sobreviveram ao padrio— algumas delas, pertencerem a um tipo que pode estar em declinio — o
ouro; com o seu desaparecimento, tanto o interesse organizado pela padrao-ouro na Segunda Guerra Mundial foi um exemplo .de um tal
paz, representado pela Liga, como os seus instrumentos principais de organismo antiquado. Por outro lado, pafses que, por razées proprias,
atuagao — os Rothschilds e 03 Morgans —- desapareceram da politica. A se op6em ao status quo, podem descobrir rapidamente as fraquezas da
ruptura do fio de ouro foi o sinal de uma revolucao mundial. ordem institucional vigente e antecipar a criacao de instituigées mais
Entretanto, a-quebra do padrao-ouro nada mais fez do que esta- bem adaptadas a seus interesses. Tais grupos estariam empurrando
belecer a data de um acontecimento demasiado grande para ser cau- aquilo que esté caindo e se apoiando naquilo que vem chegando com
sado por ele. Nada menos do que uma destruigao completa das insti- as suas préprias forgas. Poderia parecer, entao, que eles teriam dado
tuigées da sociedadc do século XIX acompanhou a crise em grande origem a0 processo de mudanga social quando, na verdade, eles foram
parte do mundo, e em todos os lugares essas instituigoes fOram modi- apenas 0s seus beneficiaries, e poderiam até estar desviando a tendén—
ficadas e reformuladas além de todo o reconhecimento. Em muitos cia para servir a seus préprios objetivos.
paises o estado liberal foi substituido por dit'aduras totalitarias e a Assim a Alemanha, uma vez derrotada, estava em posicao de reco-
instituigao central do século — producao baseada em mercados livres nhecer as falhas ocultas na ordem do século XIX, e empregar esse
— foi substituida por novas fOrmas de economia. Enquanto grandcs conhecimento para apressar a destruigao de tal ordem. Pode-se atribuir
nacoes reconstruiram o proprio molde do seu pensamento e se lanca- até uma espécie de superioridade intelectual sinistra aqueles dentre 0s
vam a guerra para escravizar o mundo em nome de 'concepgoes até seus estadistas da década de 1930 que se voltaram para essa tarefa de
entao desconhecidas sobre a natureza d o universo, nagoes ainda destruicao, e essa tarefa algumas vezes abrangeu o desenvolvimento de .
maiores corriam em defesa da liberdade, que passou a adquirir em novos métodos de financas, comércio, guerra e organizagao social, no
suas maos um significado igualmente ainda nao-conhecido. O fracas- decurso da sua tentativa de forcar as coisas a ingressarem no caminho
so do sistema internacional, embora tivesse acionado a transforma- da sua politica. Todavia, esses problemas definitivamente n50 foram
cao, certainente nao poderia ter 'sido responsive] pela sua profundi- criados pelos governos que os encamparam como vantagens; eles eram.
dade=e2._<_:onte1’1do.r.Embora-possamos compreender por que tudo reais — dados objetivamente — e permanecerao conosco qualquer que
‘ aconteceu subitaniente, ainda estamos no escuro quanto ao que mod- seja o destino dos paises individuais. Mais uma vez, torna-se aparenté a
44, vou tudo’isto.- distinca’io entre as Primeira e Segunda Guerras Mundiais: a primeira 45
ainda era fiel ao tipo do século XIX — um simples conflito de poderes, Todos os tipos de sociedades sio limitados por fatores economicos.
~acionado pelo colapso do sistema de equilibrio-de-poder. A ultima ja Somente a civilizagéo do século XIX foi economical em urn sentido
diferente e distinto, pois ela escolheu basear—se num motivo muito
—-
que maneira a Alemanha e a Russia, a Gré-Bretanha e 05 Estados Unidos, agao e comportamento na Vida cotidiana, a saber, o lucro. O sistema de
como unidades de poder, foram ajudados ou estorvados pela sua relagéo mercado auto-regulével derivou unicamente desse principio.
com o processo social subjacente. O mesmo,é_yerdadeiro também quan- O mecanismo posto em movimento com a motivagao do lucro foi
I'ICOmparavel,
to ac proprio processo social:'0 fascismo e o socialismo encontr‘araln um em eficiéncia, apenas a mais violenta irrupga‘o de fervor reli- -
veiculo na ascensao de Poténcias individuais que ajudaram a difundir o gioso na historia. No prazo de uma geragao, toda a humanidade estava
sujeita a sua influéncia integral. Como é do conhecimento de todos, ele
-;
Os papéis que a Alemanha ou a Rfissia, a Itélia ou o Japao, a Gra- nativas similares modelaram os acontecimentos diarios em um padrao
Bretanha ou os Estados UnidOs estéo dcsempenhando na Segunda cujos tragos principals cram idénticos em todos os paises de civilizagéo
_ | 4 9. 4r ;-
Guerra Mundial, embora formem parte 'da histéria universal, néo $50 a
preocupagio direta deste livro. O fascismo e o socialismo, porém, para a ascensao e queda da economia dc cercado.
foram forgas vivas na transformagéo institucional que é o seu tema A sociedade de mercados nasceu na Inglaterra - porém foi no con-
; ‘ as", ‘-
principal. O élan vital que produziu o impeto inescrutével dos povés tinente que a sua fraqueza engendrou as mais tragicas complicacées.
_-__'_:,
alemao e russo em reclamar uma parcela maior no registro da raga Para podermos comprecnder o fascismo alemao, temos que reverter a
Inglaterra ricardiana. Nunca é demais enfatizar que o século dezenove
,_—_-,_.-:_r.__._
estabelecer um sistema de mercado auto-regulavel. Uma tese como esta 0 acontecimento foi simplesmentc mais politico e mais dramatico.
parece investir esse sistema de poderes quase Irn’sticos; implica, nem _Entretanto, qualquer que seja o cenério e a temperatura dos episédios
.analise,
mais nem menos, que o equilibrio-de—poder, o padréo—ouro c o estado finais, os fatores que, em filtima destruiram essa civilizagéo
liberal, esses elementos fundamentais da civilizacao do século XIX, em devem ser estudados no berco da-Revolugao Industrial, a Inglaterra.
filtima analise, foram todos eles modelados por uma matriz comum, o
mercado auto—regulavel.
A afirmativa parece extrema, ou pelo menos chocante em seu
materialismo crasso. Todavia, a peculiaridade da civilizagfio cujo colap-
so testemunhamos foi, precisamente, o fato dela se basear em funda-
mentos econérnicos. Sem dfivida, outras sociedades e outras civiliza-
gées também foram limitadas pelas condigoes materials da sua existen-
cia‘— este- é um traco comum a toda Vida humana, na verdade a toda a
46 Vida, 'quer religiosa ou nao-religiosa, materialista ou espiritualista. 47
SEGUNDA PARTE
ASCENSAO E QUEDA
DA ECONOMIA DE MERCADO
I. o MOINHO SATANICO
3
”HABITAn VERSUS PROCRESSO”
tUm-colégio 75
74 de Oxford. (N. do R.)
subordinado numa sociedade na qual os outros princfpios e'stio em
ascendéncia.
Em alguns outros sentidos, porém, o princfpio da permuta n50 esté
em paridade estrita com os trés outros principios. O padrao de merca-
do, com 0 qual ele esta associado, é mais especifico do que a simetria, a
5 centralidade on a autarquia - os quais, em contraste com o padrao dc
mercado, sao meros “tracos” e nao criam instituicées designadas para
uma funcao apenas. A simetria nada mais é do que um arranjo sociolo-
EVO'LUCAO DO P‘ADRAO DE MERCADO gico que nao dé origem a instituigoes isoladas, mas apenas padroniza as
jé existentes (se uma tribo ou uma aldeia é on 11510 simetricamente
padronizada, isto nao envolve qualquer instituigao distinta). A centrali-
dade, embora crie freqiientemente instituigées distintas, nao implica
motivagio que particularizaria a instituigao resultante para uma fungao
especifica finica (o chefe de uma aldeia ou qualquer outta autoridade
central pode assumir, por exemplo, uma série dc fungoes politica, mili-
do século tar, religiosa ou economica, indiscriminadamente). Finalmente, a autar-
Se queremos deixar de lado as superstigoes economicas quia economica é apenas um trago acessério de um' grupo fechado
nalec onomia
XIX,1 a parte dominante desempenhada pelos mercados existente.
rpio de per-
capitalism, juntamente com o significado bésmo. do prmc _ Por outro lado, o padrao de mercado, relacionando—se a um moti-
dosa da natu-
muta ou troca nessa economia, exige uma pesqulsa cuida vo peculiar préprio, o motivo da barganha on da permuta, é capaz dc
reza e origem dos mercados. . ' ’ .
prmc1 p10 de com- criar uma instituigao especifica, a saber, o mercado. Em filtima instan-
A permuta, a barganha e a troca constituem um cia, é por isto que o controle do sistema economico pelo mercado é
do para sua
portamento economico que depende do padrao de merca conseql'iéncia fundamental para toda a organizagao da sociedade: signi-
a finalidade da
efetivagao. Um mercado e um local de encontro para fica, nada menos, dirigir a sociedade como se fosse um acessorio do
s que este padra o esteja pre-
permuta ou da compra e venda. A meno mercado. Em vez de a economia estar embutida nas relagées sociais,
ta nao tera escopo
sente, pelo menos em parte, a prbpensao a permu $50 as relagoes sociais que estao embutidas no sistema economico. A
a rec1p roc1da-
suficiente: ela nao podera produzir precos.2 Assim como importancia vital do fator economico para a existéncia da sociedade
a redistribui-
de 6 auxiliada por um padrao simétrico de organizagao, antecede qualquer outro resultado. Desta vez, o sistema econémico é
centralizaca o, e a,dom est1c1dade
95.0 6 facilitada por alguma medida de organizado em instituigoes separadas,'baseado em motivos especificos
m o prmc rplo da permu-
tem que ser baseada na autarquia, assim també e concedendo um status especial. A’sociedade tem que ser modelada de
o'dav1a, da
ta depende, para sua efetivacao, do padrao de mercado._T maneira tal a permitir que o sistema funcione de acordo com as suas
ribuigao, ou a
mesma forma como tanto a reciprocidade como a redist proprias leis. Este é o significado da afirmagao familiar de queuma
ocupar um lu-
domesticidade, podem ocorrer numa sociedade sem nela economia de mercado s6 pode funcionar numa sociedade dc mercado.
m pode ocupa r um lugar
'gar primordial, o principio da permuta també Na verdade, foi crucial o passo que transformou mercados isolados
numa economica de mercado, mercados regulaveis num mercado auto-
regulavel. O século XIX — aclamando o fato como o apice da civilizagao
1 Cf. Notas sobre alontes. ., _. “ ‘ _ , ’ _. . ,. ou deplorando-o como um crescimento canceroso — imaginava ingenua-
p. 13. A aphcag ao prauca do prmcip ro
2 Hawtrey, G. R., The Economic Problem, 1925,
se
mente que um tal deSenvolvimento era 0 resultado natural da difusio
d3 t‘roca.”lEntretanto,
do individualismo depend e inteiram ente da préu'ca
‘Havitrey
e sunples mente a pranca da
dos mercados. N50 se compreendeu que a engrenagem de mercados ,
engano u e m presum ir que a existéncia de mercad os segmu-s
num sistema auto-regulavel de tremendopoder nao foi o resultado de 77
76 trees.
r
l‘.
os em diregao a excrescenua,
. _, ‘
I
qua lque r tendénc ia
.
mer ente aos mer cad doutrina classica. O ensino ortodoxo partiu da propensao do individuo
ciais admirustrados ao corpo
i - sim o efeito de estimulantes altamente artifi a permuta; deduziu dai a necessidade de mercados locais, bem como a
agao criada pelo fenomeno nao
social, a fim de fazer frente a uma situ
1 divisao do trabalho; inferiu, finalmente, a necessidade do comércio,
reconhecida a natureza lnmtada e,
' menos artificial da méquina. Nao foi eventualmente do comércio exterior, incluindo até mesmo o comércio de
o tal; e, no entanto, e este o
[150 expansiva do padrao de mercado com longa distancia. A luz do nosso conhecimento atual, podiamos quase
erna pesquisa.
fato que emerge com toda clareza da mod reverter a seqiiéncia do argumento: o verdadeiro ponto de partida é o.
todos os lugares, a sua
“Os mercados nao sao enc ontr ado em s
encxa a
comércio de longa distancia, um resultado da localizagao geografica
get-to, isolamento e uma tend
' ausé ncia , emb ora- -ind ican do um das mercadorias, e da “divisao do trabalho” dada pela localizagao. O
nvolvim’ento parucular, le 0
reclusao, nao esta associada a qualquer dese comércio de longa distancia muitas vezes engendra mercados, uma ins-
presenga: Essa frase mcoapé,
mesmo também pode ser auferido da sua 3 de Thu rnw , tituigao que envolve atos de permuta e, se 0 dinheiro é utilizado, de
Com mun ities
tran scri ta do Eco nom ics in Prim itive 3581:]: compra e venda. Eventualmente, porém nao necessariamente, isto ofe-
erna pesquisa sobr<i1o
resume os resultados significativos da mod rece a alguns individuos a oportunidade de utilizar a sua alegada pro-
ao dmheiro, 0 Que T urdrlirxfil ._
to. Um out ro autor repete, em relagao e1- pensao para a barganha e o regateio.
fato de uma tribo usa;
diz a respeito dos mercados: “O simples e gust s O aspecto dominante desta doutrina é a origem do comércio numa
de VlSta eeonomieo,
ro idiferencia-se muito pouco, do ponto esfera externa, nao relacionada com a organizagao interna da econo-
ural que nao o-utiliza'm.’ ao
quer outras tribos do mesmo nivel cult mia: “A aplicagao dos principios observados na caga para obter bens
das implicagoes mais impor
precisamos mais do que salientar algumas .
encontrados fora dos limites do distrito levou a certas formas de troca
. .
sas afirmativas. que nos pareceram, mais tarde, como comércio”.3 Procurando as ori-
de dinheiro nao aeta
tam:
ssenga ou a auséncia de mercados ou gens do comércio, nosso ponto de partida deveria set a obtengao de
uma soc1edade prmutn'la. sto
necessariamente o sistema economico de o enjo bens distantes, como numa caga. “ O s Dieri da Australia Central, todos
eiro £01 uma invznga
refuta o mito do século XIX de que o dinh SWISS]: 6,5222; os anos, em julho ou agosto, fazem uma expedigao ao sul para conse—
ente' uma
aparecimento transformava inevitavelm guir o ocre vermelho que eles usam para pintar seus corpos... Seus vizi-
o ritm o da div‘isao de tra a 0, com
criagao de mercadds, forgando nhos, os Yantruwunta, organizam empreendimentos semelhantes para
uta, a barganha e troca. tiva
do a propensao natural do homem a perm conseguir o ocre vermelho e blocos de arenito, para moer sementes,
se baseou num a perspc
efeito, a historia economica orto dox a em Flinders Hills, distante oitocentos quilometros. Em ambos os casos
mercados, como’tars: _ m
imensamente exagerada do significado dos era as vezes necessario lutar pelos artigos desejados, quando o povo
dénC Ia a recl usao e o umz o
“cer to isol ame nto” o u talv ez uma “ten .e local oferecia resisténcia a sua remogao.” Esta espécie de requisigao ou
trago economico que pode ser indeferido eorretamente da ausenc1a caga ao tesouro é claramente tao semelhante ao roubo e a pirataria quan<
eao mtema de umahefc ononua,
mercados; no que diz'respeito a orgamza r
erefzfi a: to aquilo que costumamos ver como comércio — basicamente é um
iamente qual tlue
sua presenga ou auséncia nao faz necessar negécio unilateral. Ele se torna bilateral, i.e., “uma certa forma de
nao sao msutlngoes qtlie ’ cic-
As razoes sao simples. Os mercados troca” apenas através da chantagem praticada pelos poderes locais; ou
nam principalrnente dentro deum economla, mas fora dela. E cs saodo também auavés de acordos de reciprocidade, como no anel Kula, nas
longaAdismncra. Os merca os
cais de encontro para um comércio de cerimonias de visita dos Pengwe, da Africa Ocidental, on com os
rtanaa. Alem (113503331108
locals, propriamente ditos, sao de pouca nnpo elle, onde o chefe monopoliza o comércio exterior insistindo em
locals sao essenel ente
mercados de longa distancia, nem os mercado e p012?a:
entreter todos os hospedes. E verdade que tais visitas 11510 5:10 aciden-
num como nou trm
competitivos. Conseqiientemente, tanto 0 meatl _
tais, e Sim —— em nossos termos, nao deles — genuinas viagens de nego-
n ch
pressao
gpara
secriar um comércio territorial, oassu .choca -secpm
afirma vas gum
intefho ou hacional.-3Cadaumardessas
1cos, entretanto e as seguem
pressuposto. aXiOI‘nétiCO‘dOS economistas class 3 Thurnwald, R.C. Economics in Primitive Communities, 1932, p.147. 79
luz da pecquisa moderna.
73 niuito de perto Os fatos que aparecem a
cios; a troca de bens, porém, é sempre feita sob o disfarce de presentes Além das trocas complementares, ele inclui um nfimero muito maior
reciprocos e sob a forma, ainda, de retribuigao de visitas. de trocas nas quais mercadorias similares, de fontes diferentes, sao ofe-
Chegamos a conclusfio, assim, de que embora as comunidades recidas em competigao umas com as outras. Assim, somente com a
' humanas nunca tenham deixado de lado, inteiramente, o comércio emergencia do comércio interno ou naciona l é que a compet igao tende
exterior, esse comércio nem sempre envolvia mercados, necessariamen- a ser aceita como principio geral de comércio.
te. Originalmente, o comércio exterior sempre esteve mais ligado a Esses trés tipos de comércio, 0s quais diferem acentuadamente na
aventura, exploragao, caga, pirataria e guerra do que a permuta. Ele sua fungao economica, também sao distintos na sua origem. Ja falamos
pode implicar tanto em paz como em bilateralidade, porém, mesmo sobre 0 comego d0" comércio externo. A partir dele, os mercados se
quando implica ambos, ele é baseado, habitualmente, no principio da desenvolveram naturalmente em todos os lugares onde os transportado-
reciprocidade, e nao da permuta. res tinham que parar, nos vaus, portos maritimos, cabeceiras de rios ou
A transigio para a permuta pacifica pode se orientar em duas dire- onde as rotas das expedigées se encontravam. Os “portos” se desenvol-
gées, a saber, na da troca 6 na da paz. Como acima indicado, uma veram nos locais de transbordo.4 O breve florescimento das famosas fei-
expedigao tribal pode ter que cumprir as condigées estabelecidas pelos ras da Europa constitui um outro exemplo de um tipo definido de mer-
poderes locais, os quais podem exigir dos estrangeiros um tipo de con- cado produzid o pelo comércio de longa distancia. Os emporios da
trapartida. Esse tipo de relacionamento, embora n50 inteiramente paci- Inglaterra 550 um outro exemplo. Entretanto, enquanto as feiras e os
fico, pode dar origem a permuta - uma transagao unilateral seré trans- empérios desapareceram de forma abrupta, desconcertando o .evolucio-
formada em bilateral. O outro tipo de desenvolvimento é 0 de “comér- nista dogmatico, o portus desempenhou urn papel importantfssimo no
cio silencioso”, que ocorre nas selvas afr‘icanas, onde se evita o risco do estabelecimento de cidades na Europa Ocidental. Entretanto, mesmo
combate através de uma combinagao organizada com o qual se intro- nos locais em que as cidades foram fundadas em sitios de mercados
duz napropria transagao, com a devida circunspecgéo, um elemento de externos, os mercados locais freqiientemente permaneceram separados
paz, aceitagao e confianga.‘ . nao apenas em relagao a sua fungao, mas também a sua organizagao.
Como sabemos, num estégio posterior os mercados se tornaram Nem o porto, nem a feira, nem o empério foi o pai dos mercados inter-
predominantes na 'organizagao do comércio exterior. Entretanto, do nos ou nacionais. Onde, entao, poderemos procurar a sua origem? '
ponto de vista economico, os mercados extemos sao algo inteiramente Poderia parecer natural presumir, que em fungao dos atos indivi- .
diferente, tanto dos mercados locais quanto dos mercados internos. duais de permuta, os mercados locais se desenvolveriam no correr do
Eles nao diferem apenas em tamanho; s50 instituigées de fungao e ori- tempo e que tais mercados , uma vez existindo , levariam naturalmente
gem diferentes. O mercado externo é uma transagéo; a questio é a ao estabelec imento de mercado s internos ou nacionais . Entretant o,
auséncia de alguns tipos de mercadorias naquela regiéo. A troca de las nem um nem outro aconteceu. Atos individuais de permuta ou troca —
inglesas'por vinhos portugueses constitui um exemplo. O comércio esta é a verdade —- nao levam, como regra, ao estabelecimento de mer-
local 6 limitado as mercadorias da regiao, as quais ndo compensa trans- cadosem sociedades onde predominam outros principios de compor-
portar porque sao demasiado pesadas, volumosas ou pereciveis. Assim, tamento economico. Tais atos sao comuns em quase todos os tipos de
tanto o comércio exterior quanto 0 local sao relativos a distancia geo- sociedades primitivas, porém sao considerados incidentais uma vez que
grafica, sendo um confinado as mercadorias que n50 podem supera-la n50 preenchem as necessidades da Vida. Nos amplos sistemas antigos
e o outro as que podem fazé-lo. Um comércio desse tipo é descrito cor- de redistribuigao, os atos de permuta e os mercados locais cram uma
retamente como complementar. A troca local ente cidade e campo e o constante, porém apenas em caréter subordinado. O mesmo se aplica
comércio exterior entre diferentes zonas climaticas baseiam—se neste onde a reciprocidade é a regra: aqui, os atos de permuta sao geralmen-
principio. Um tal.comércio n50 implica competigao necessariamente, e te inseridos em relagées de longo alcance que implicam aceitagéo 'e
se a competigao levasse a desorganizacao do comércio n50 haveria con—
tradigao em elimina-la. Em contraste com o comércio externo c 0
so local, 0 comércio interno, por seu lado, é essencialmente competitivo. 4 Pirenne, H., Medieval Cities, 1925, p.148 (note. 12).
81
confianga , uma situagao que tende a obliterar o carater bilateral d a O s dois significados da palavra “conter” talvez expressem melhor esta
transagao. Os fatores limitantes surgem de todos os pontos do compas- dupla fungao das cidades e m relagao aos mercados, q u e elas tanto
so sociologico: o costume e a lei, a religiao e a magla contrlbuem 1gual- envolviam como impediam de se desenvolver.
- mente para o resultado, que é restringir os atos de troca em relagao a Se a permuta era cercada de tabus, destinados a impedir que esse
pessoas e objetos, tempo e ocasiao. Como regra, aquele que permuta tipo de relagao humana abusasse das fungoes da organizagao economi-
apenas entra e m um tipo de transagao ja determina do, no qual tanto os ca propriamente dita, a disciplina do mercado era ainda mais restrita.
objetos como as quantias a eles equivalentes ja 5510 dados. Utu, na lin— Eis aqui um exemplo do pais Chaga: “O mercado deve se Visitado
guagem dos Tikopia,5 denota tal equivalente tradicional como parte da regularmente nos dias de mercado, Se qualquer _ocor_réncia impedir a
troca reciproca. Aquilo que parece como o aspecto essencial da troca abertura do mercado por alguns dias, os negocios nao serao retomados
para o pensamen to do século XVIII, o elemento voluntario da barga- até que a praga do mercado tenha sido purificada. Qualquer ocorréncia
nha e do regateio, tao expressivo como motivagao presumida da per- na praga do mercado que envolva derramamento de sangue exige a
muta, tem realmente um objetivo muito limitado na verdadeira transa- imediata expiagao. A partir desse momento nao é permitido a qualquer
gao. Mesmo que seu motivo fosse subjacente ao ato, raramente se lhe mulher abandonar a praca do mercado, e nenhuma mercadoria pode
permite atingir a superficie. ser tocada; tudo tem que ser muito bem limpo antes de ser levado para
A forma costumeira de comportamento, ao contrario, é dar oportu- fora e usado como alimento. Pelo menos um bode tern que ser sacrifi-
nidade a uma motivagao oposta. O doador pode simplesmente largar o cado imediatamente. Se uma mulher der a luz ou abortar na praga do
objeto no chao e 0 receptor fingira apanha—lo acidentalmente, ou deixara mercado, é necessaria uma expiacao mais séria e mais dispendiosa.
que um dos seus seguidores o fagapor ele. Nada pode ser mais contrario Nesse caso é necessario o sacrificio de um animal leiteiro. Além disso,
ao comportam ento aceito do que examinar a contraparti da recebida. o ambiente doméstico do chefe tern que ser purificado com o sangue
Como temos toda a razao para crer que esta atitude sofisticada nao é o do sacrificio de uma vaca leiteira. Todas as mulheres do campo tém
resultado de uma falta genuina de interesse pelo lado material da transa— que ser aspergidas, distrito por distrito”.6 Regras como estas nao torna-
gao, podemos descrever a etiqueta da permuta como um desenvolvimen— riam mais facil a difusao dos mercados.
to contraditério , destinado a limitar o escopo da transagao. O mercado local tipico, no qual as donas de casa Vao comprar algtl-
l Com efeito, em face da evidéncia, seria audacioso afirmar que os mas de suas necessidades domésticas diarias e nos quais os agricultores
l
i
mercados locais se desenvolveram a partir de atos individuais de per- de cereais ou verduras, assim como os artesaos locais, oferecem seus
I
I muta. Embora seja muito obscuro o inicio do mercado local, podemos artigos a venda, revelam u m a impressionante indiferenga quanto a
?
afirmar com seguranga que, desde o principio, essa instituigao foi cer- tempo e lugar. Reunioes desse tipo sao nao so bastante generalizadas
cada por uma série de' salvaguarda s destinadas a proteger a organizagao nas sociedades primitivas como também permanecem praticamente
economica Vigente na sociedade de interferénci a por parte das praticas imutaveis até meados do século XVIII nos paises mais adiantados da
de mercado. A paz do mercado era garantida ao prego de rituais e ceri- Europa Ocidental. Elas constituem'um acessério da existéncia local e
monias que restringiam seu objetivo, enquanto assegurava m sua capaci— diferem muito pouco, quer fagam parte da Vida tribal centro-africana,
dade de funcionar dentro dos estreitos limites dados. O resultado mais que de uma cité da Franga merovingia, ou de uma aldeia escocesa da
significativo dos mercados — o nascimento de cidades e a civilizagao época de -Adam Smith. O que é verdadeiro e m relagao a aldeia é tam-
urbana — foi, de fato, o produto de um desenvolvim ento paradoxal. As bém verdadeiro em relagao a cidade. Os mercados locais sao, essencial—
cidades, as crias dos mercados, nao eram apenas as suas protetoras, mente, mercados de Vizinhanga e, embora importantes para a Vida das
mas também um meio de impedi—los de se expandirem pelo campo e, comunidades, em nenhum lugar revelam indicios de reduzir o sistema
assim, incrustarem—se na organizagao economica corrente da sociedade. econémico Vigente a seus padroes. Eles nao foram pontos de partida
do comércio interno ou nacional. '
8 2 I 5 Firth, R . , Primitive Polynesian Economics, 1 9 3 9 , p . 3 4 7 . 6 Thurnwald, R.C., op. cit, pp. 162-164 83
Na Europa Ocidental o comércio interno foi criado, na verdade, Essa separagao foi, na verdade, o cerne da instituigao dos centros
por intervengao do estado. Até a época da Revolugao Comercial, o que urbanos medievais.7 A cidade era uma organizagao de burgueses. Sé
pode nos parecer comb comércio nacional nao era nacional, e sim eles tinham direito a cidadania e o sistema repousava na distingao entre
municipal. Os hanseaticos nao eram mercadores germanicos; eles eram burgueses e 11:10 burgueses. Nem os camponeses, nem os mercadores
uma corporagio de oligarcas comerciais, sediados em diversas cidades de outras cidades eram burgueses, naturalmente. Entretanto, enquanto
do Mar do Norte e do Baltico. Longe de “nacionalizarem” a vida eco- a influéncia militar e politica da cidade tornava possivel lidar com os
nomica germanica, a Hansa deliberadamente isolava 0 interior do camponeses das redondezas, tal autoridade nao podia ser exercida em
comércio. O comércio da Antuérpia o u Hamburgo, Veneza ou I__.yon relagao ao mercador estrangeiro. Em conseqiiéncia, os burgueses se
nao era, de forma alguma, holandés ou germanico, italiano ou francés. encontravam numa posigao inteiramente diferente em relagao ao
Londres nao era excegao: ela era tao pouco “inglesa” como Luebeck comércio local e ao comércio a longa distancia.
era “germanica”. O mapa comercial da Europa nesse periodo mostra- No que se refere ao suprimento de alimentos, a regulamentagao
ria corretamente apenas cidades, deixando em branco o campo — este envolvia a aplicagao de métodos tais Como a publicidade obrigatoria
pareceria nao existir n o que concerne a o comércio organizado. As
das transagées e a exclusao de intermediérios, a fim de controlar o
comércio e impedir a elevagao dos pregos. Tal regulamentagao, porém,
assim chamadas nagoes eram apenas unidades politicas, na verdade
s6 era efetiva no comércio que era levado a efeito entre a cidade e suas
bastante frouxas, e que consistiam, economicamente, de inumeros
cercanias. A situagao era inteiramente diferente no comércio de longa .
ambientes domésticos auto-suficientes, maiores ou menores, e insignifi-
distancia. As especiarias, o peixe salgado ou o vinho tinham que ser
cantes mercados locais nas aldeias. O comércio limitava-se a distritos
transportados de longa distancia, e constituiam, assim, o dominio do
organizados que o praticavam localmente, como comércio de vizinhan- mercador estrangeiro e dos seus métodos de comércio atacadista capi-
ca, ou como comércio de longa distancia — os dois cram estritamente talista. Esse tipo de comércio fugia a regulamentagao local. A proibigao
separados e a nenhum deles era permitido infiltrar-se no campo indis- total da venda a varejo pelos mercadores estrangeiros se destinava a
criminadamente. ‘ alcangar essa finalidade. A medida que crescia 0 volume do comércio
Um separagao tao constante entre o comércio local e de.longa distan- atacadista capitalista, mais estrita se tornava a sua exclusao dos merca—
cia dentro da organizagao da cidade deve parecer mais um choque para o dos locais, reforgado ainda no que concernia as importagées.
evolucionista, para quem as coisas sempre parecem se imiscuir facilmente No que diz respeito aos artefatos industriais, a separagao entre o
umas nas outras. E, no entanto, este fato peculiar constitui a chave da comércio local e 0 de longa distancia era ainda mais profunda, pois
historia social da vida urbana na Europa Ocidental. Isto comprova Clara- neste caso toda a organizagao de produgao para exportagao era afetada.
mente nossa afirmativa a respeito da origem dos mercados, que inferi- A razao disto estava 11a prépria natureza das guildas e corporagoes arte-
mos a partir das condigoes existentes nas economias primitivas. A acen- sanais, nas quais se organizava a produgao industrial. No mercado local,
tuada distingao entre o comércio local 6 dc longa distancia pode parecer a produgao era regulada de acordo com as necessidades dos produtores,
demasiado rigida, especialmente porque ela nos leva a conclusao, um restringindo a produgao a um nivel riamunerativo. Este principio nao se
tanto surpreendente, de que nem o comércio de longa distancia, nem o aplicava, naturalmente, as exportagoes, onde os interesses dos produto:
comércio local, foi o pai do comércio interno dos tempos 'modernos
— res nao estabeleciam limites a produgao . Em conseqiiéncia, enquanto o
nao nos deixando, aparentemente, outra alternativa senao voltarmo-nos, comércio local era estritamente regulado, a produgao para exportagao
a titulo de explicagao, para o deus ex machina da intervengao estatal. da época era apenas formalmente controlada pelas corporagées de arte-
Veremos, em seguida, que outras investigagoes recentes apoiam nossas saos. A indfistria de exportagao da época, o comércio de tecidos, era
conclusées a esse raspeito. Todavia, queremos fazer primeiro um rapido organizada, na verdade, na base capitalista do trabalho assalariado.
esbogo da historia da civilizagao urbana conforme foi modelada pela A separagao crescentemente estrita entre o comércio local e 0 de
separagao peculiar entre o comércio e a longa distancia, dentro dos limi- exportagao foi a reagao da vida urbana a ameaga do capital movel de
84 : tes da cidade medieval. 7 Nossa formulacio segue as obras bem conhecidas de H. Pirenne. 85
n50 tentou Franga, onde as corporagoes artesanais tendiam a se tornar orgaos do
desintegrar as instituigées da cidade. A cidade rnedieval tipica
10ml contro lavel e estado, o sistema de guildas foi simplesmente ampliado para todo o ter-
evitar o perigo diminuindo o abismo entre o mercado
mas, ao ritorio do pais. Na Inglaterra, onde a decadéncia das cidades fortificadas
as incertezas do um comércio de longa distanCIa mcontrolavel,
aquela havia enfraquecido fatalmente aquele sistema, o campo foi industrializa-'
'contrario, enfrentou o perigo reforgando com o maXJmo rigor
ration ale da sua ex1ste nc1a. , do sem a supervisao dc guildas, enquanto em ambos os paises os nego-
politica de exclusao e protegao que era 0
todos os obsta- cios e o comércio se espalhavam por todo o territério da nagao e se tor-
Na pratica, isto significa que as cidades levantaram
pelo navam a forma dominante da atividade economica. Nesm situagao resi-
culos possiveis a formagao daquele mercado nac10nal ou intemo
pio de um de a origem da politica cornercial interna do mercantilismo.
qualpressionava o atacadista capitalista. Mantendo o princi
comércio local nao-competitivo e um comér cio a longa distan cia igual— A intervengao estatal, que havia liberado o comércio dos limites da
a os burgue- cidade privilegiada, era agora chamada a lidar com dois perigos estreita—
mente nae-competitivo, levado a efeito de cidade .cidade,
ao do campo mente ligados, os quais a cidade havia contornado corn sucesso, a saber,
ses dificultararn, por todos os meios a seu dispor, a inclus
do o monopolio e a competigao. Ja se compreendia, naquela época, que a
no compasso do comércio e a abertura de um comércro indiscrimma
o,
entre as cidades e o campo. Foi esse desenvolvimento que forgou
competigao levaria, em ultima instancia, ao monopolio, mas o monopo-
da “nac1 0naliz agao lio era ainda mais temido do que posteriormente, pois ele muitas vezes
estado gerritorial a se projetar como instrumento
. _ . . estava ligado as necessidades da Vida, e, portanto, podja tornar-se facil—
do mercado e criador do comércio interno.
o s1s- mcnte um perigo para a comunidade. O remédio encontrado foi a total '
A agao deliberada do estado nos séculos XV e XVI impinglu
munic ipalid ades ferren hamen te prote— regulamentagéo da vida economica, so que agora em escala nacional e
tema mercantil as cidades e as
co- n50 mais apenas municipal. O que para a mente moderna pode facilmen-
cionistas. O mercantilisrno destruiu o particularismo desgastado do
ando as barrei ras que te pareccr como uma imprevidente exclusao da competigao, foi, na reali-
mércio local 6 intermunicipal, elimin lseparav arn
"nao-com pefitivo
e, assim, abrlnd o cann- dade, um meio de salvaguardar o funcionamento dos mercados, naquelas
esses dois tipos de comér cio
vez mais,-a circunstz’incias. Qualquer intrusao temporaria de compradores ou vende-
nho para u m merca do nacion al que passou a ignorar, cada
as dores no mercado poderia destruir o equilibrio e decepcionar os compra—
distingao entre cidade e campo, assim como as que cxrstiam entre
. dores e vendedores regulates, e o resultado seria a cessagao do funciona-
varias cidades e provincias.
O sistema mercantil foi, na verdadc, uma respos'ta a vérios desafios. mento do mercado. Os fornecedores antigos deixaram de oferecer suas
o, mercadorias por nao terem uma garantia de prego e o mercado, sem
Do ponto de vista politico, o estado centralizado era uma nova criaga
que mudar a o centro de gravid a- suprimentos suficientes, tornar-se—ia uma presa do monopélio.
estimulada pela Revolugao Comercial
Numa escala menor, o mesmo perigo estava presente no lado da
dc do mundo ocidental do'Mediterraneo para as costas do Atlantlco,
se demanda, onde uma queda rapida poderia ser scguida por um mono-
compelindo, assim, os povos atrasados de grandes’paises agrarios a
o esta- pélio da demanda. Cada passo que o estado tomava para livrar o mer-
organiz'arem para o comércio e 05 negécios. Na politica externa,
cado de restrigoes particularistas, tr'ibutos e proibigoes, punha em peri-
belecimento de um poder soberano era a necessidade do (ha; a nova
go o sistema organizado de produgao e distribuigao, o qual se via agora
politica estatal mercantilista envolvia a disciplina dos recursos de todo
Na ameagado por uma competigao nao rcgulada e pela intrusao dc aventu-
territorio nacional para os objetos de poder nos assuntos cxtcrnos:
o reiros qué “esvaziavam” o mercado mas nao ofereciam nenhuma
politica interna, a unificagao de paiscs fragmentados pelo partlcularism
sn— Ocorreu assim que, embora os novos merca-
feudal e municipal foi o subproduto necessario a urn tal ernpreendlm
garantia dc permanéncia.
o instrumento de umficagao for 0 dos nacionais até certo ponto fossem competitivos, inevitavelmente, o
to. D o ' p o n t o de vista economico,
ro que prevalecia era 0 aspecto tradicional da r'egulamentagao 6 mac 0
capital, i.e., os recursos privados disponivois sob a forma de dlnhel
n- novo elemento de competigzio.8 A domesticidade auto-suficiente do
acumulado, e portanto, peculiarmcnte adequado para .o descnvolvune
t9 ‘d' .;cqmérci0,'.FiQaln1cntqa may; adfiinistrarivasubjacente a politi-
e-
ca econonlica do goVCrno central foi fornecida pela amphagao dos1st 8 Montesquieu, L’esprit des Lois, 1748: “O inglés restringe o mercador, mas é em favor do
ma inunicipal tradicional ao territério mais amplo do estado. Na
ls‘sh comércio.” 87
campo nés que trabalhava para sua subsis téncia co'ntin uou sendo a base
s
mais ampla do sistema economico que agora se Integrava em grande
do mtern o. Este mer-
unidades nacionais através da formagao do merca
' cado nacional assumiu o seu lugar a0 lado dos mercados local 6 estran-
geiro, as vezes sobrepujando-os em parte. , . '
A agricultura era suplementada , agora, pelo comer c10 interno — nm 6
sistema de mercados relativamente isolados, inteira mente compativel
com o principio da domesticidade ainda dominante no campo. o MERCA-DO AUTO-REGULAVEL
da
Isto conclui nossa sinopse da histéria do mercado até a época
Revolugao Industrial. 0 estagio seguinte na historia da humamdade, E AS MERCADORIAS FICTlCIAS:
mer-
corno sabem os, acarre tou uma tentati va de estabe lecer urn grande TRABALHO, TERRA E DINHEIRO
cado auto-regulével. Nada no mercantilismo, essa politica distmt'a do
singu-
estado-nagao ocidental, deixava prever um desenvolv1mento. tlao
o ape-
lax. A “libertagao” do comércio levada a efeito pelo mercantlllsm
nas liberou o comér cio do particularismo, porém , ao mesrno tempo ,
ampliou o escopo da regulamentagao. O sistema economico estava
s um
submerso em relagées sociais gerais; os mercados cram apena
da, O rapido esbogo dos sistemas economicos e dos mercados, tomad'os
aspecto acessorio de uma estrutura institucional controlada e regula
mais do que nunca, pela autorid ade social. em separado, mostra que até a nossa época os mercados nada mais cram
do que acessorios da Vida economica. Como regra, o sistema econémico
era absorvido pelo sistema social e, qualquer que fosse o principio de
comportamento predominante na economia, a presenga do padrao de
mercado sern'prc era compativel corn ele. O principio da permuta ou
troca subjacente a esse padrao nao revelava qualquer tendéncia de
expandir—se as expensas do resto do sistema. Mesmo quando os merca—
dos se desenvolveram muito, como ocorreu sob o sistema mercantil,
eles tiverarn que lutar sob o controle de uma administragao centralizada
que patrocinava a autarquia tanto no ambiente doméstico do campesi—
nato como em relagao a Vida nacional. De fato, as regulame'ntacoes e 05 ’
mercados cresceram juntos. O mercado auto-regulavel era desconhecido
e a emergéncia da idéia da auto-regulagao se constituiu numa inverséo
completa datendéncia do desenvolvimento. Assim, somente a luz desses
fatos é que podem ser inteiramente compreendidos os extraordinarios
pressupostos subjacentes a economia de mercado.
Um economia dc mercado é um sistema economico controlado,
regulado e dirigido apenas por mercados; a ordem na produgao 6 dis-
tribuigao dos bens é confiada a esse mecanismo auto-regulavel, Uma
economia desse tipo se origina da expectativa de que os seres humanos
se comportem de maneira tal a atingir o maximo de ganhosmoneté-
rios. Ela pressupoe mercados nos quais o fornecimento dos bens dispo— 89
niveis (incluindo servi9os) a um p1e9o definido igualar5o a demanda a nem a demanda devem ser fixados ou regulados; s6 ter5o validades as
esse mesmo pre9o. Pressupée também a presen9a do dinheiro, que fun- politicas e as medidas que aiudem a assegurar a auto-regula950 do mer-
ciona como poder de compra nas m5os de seus possuidores. A produ- cado, criando condi950 para fazer do mercado o finico poder organiza-
950 sera, ent50, controlada pelos pre9os, pois os lucros daqueles que dor na esfera economica.
dirigem a produ950 depender5o dos pre9os, pois estes formarn rendi- Para compreender inteiramente o que isto significa, vamos voltar
mentos, e 6 com a ajuda desses rendimentos que os bens produzidos por um momento ao sistema mercantil e aos mercados nacionais que
s50 distribuidos entre os membros da sociedade. Partindo desses pres- ele tanto concorreu para desenvolver. Sob o feudalismo e o sistema de
supostos, a ordem na produ950 e na distribui950'de bens é assegurada . guildas, a terra e_ o trabalho formavam parte da propria organiza950
apenas pelos pre9os. social (0 dinheiro ainda n50 se tinha desenvolvido no elemento princi-
A auto-regula95o significa que rods. 5 produ950 6 para venda no pal da indfistria). A terra, o elemento crucial da ordem feudal, era a
mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas. Por con- base do sistema militar, juridico, administrativo e pol1tico; seu status e
seguinte, h5 mercados para todos os componentes da indfistria, n50 fun950 cram determinados por regras legais e costumeiras. Se a sua
apenas para os bens (sempre incluindo servi9os), mas também para o posse era transferivel on n50 e, em caso afirmativo, a quem e sob quais
trabalho, a term e o dinheiro, sendo seus pre9os chamados, respectiva- restri96es; em que implicavam os direitos de propriedade; de que
l
mente, pre9os de mercadorias, salarios, aluguel e juros. Os préprios forma podiam ser utilizados alguns tipos de terra — todas essas questoes
.i
termos indicam que os pre9os formam rendas: juro é o pre9o para o ficavam 1 parte da organiza950 decompra e venda, e suieitas a um con-
11 uso do dinheiro e constitui a renda daqueles que dst50 em posi950 de junto inteiramente diferente de regulamenta96es institucionais.
fornecé-lo. Aluguel é o pre9o para o uso da terra e constitui a renda O mesmo também se aplicava 5 01911122950 do trabalho. Sob o siste-
daqueles que a fornecem. Salarios s50 os pre9os para o uso da for9a de ma de guildas, como sob qualquer outro sistema economico na historia
trabalho, que constitui a renda daqueles que a vendem. Finalmente, os anterior, as motiva96es e as circunsténcias das atividades produtivas esmvam
pre9os das mercadorias contribuem para a renda daqueles que vendem inseridas na organiza950 geral das sociedadds. As rela96es do mestre, do
seus servi9os empresariais, sendo a renda chamada de lucro, na verda- jornaleiro e do aprendiz; as condi96es do artesanato; o m’unero de apren-
de, a diferen9a entre dois coniuntos de pre9os, o pre9o dos bens produ- dizes; os salérios dos trabalhadores, tudo era regulamentado pelo costume
zidos e seus custos, i.e., o pre9o dos bens necessarios para produzi-los. e pelas regras d2 guilda e da cidade. O que o sistema mercanu'l fez foi ape-
Se essas condi96es s50 preenchidas, todas as rendas derivar5o das ven- nas unificar essas condi9oes, quer através de estatutos, como na Inglaterra,
das no mercado, e as rendas ser5o apenas suficientes para comprar quer através de “nacionalizag50” das guildas,‘como na Franga. Quanto 5
todos os bens produzidos. tetra, seu status- feudal so foi abolido naquilo que estava ligado aos privilé-
Segue-se um outro conjunto de pressupostos em 1e1a950 ao estado gios provinciais - no restante, a terra permaneceu extra commercium,
- e a sua politica. A forma950 dos mercados n50 sera inibida por nada, e tanto na Inglate'rra como na Fran9a. Até a época d2 Grande Revolugfio de
os rendimentos n50 poder5o ser formados de outra maneira a n50 ser 1789, a propriedade fundiéria continuou sendo fonte de privilégios
através das vendas. N50 deve existir, ainda, qualquer interferéncia no sociais na Fran9a e, mesmo depois ddssa época, a lei comum sobre a.terra,
ajustamento dos pre9os 53 mudan9as das condi96es do mercado — quer na Inglaterra, era basidamente medieval. O merddnfilismo, com toda a sua
sejam pre9os de bens, trabalho, terra ou dinheiro. Assim, é preciso que tendéncia em dire950 5 comercializ‘5950, jamais atacou as salvaguardas
cxistam n50 apenas mercados para todos os elementos da indi’istria,1 que protegiam estes dois elementos basicos da produ950 — trabalho e terra
como também n50 deve ser adotada qualquer medida ou politica que —- e o s impedia de se tornarem objetos de comércio. =Na Inglaterra; a
rpor
possa influenciar a a950 desses mercados. Nem o pre9o, nem a oferta, “nacionaliza950” da"legisla950 do trabalho,- meio do Statute of
'-
Artificers (Estatuto dos Artificas — 1563) e da P001 Law (Lei'dos Pobres
1 Heridér'sdh,‘l-L-'13;, Supply and Demand; 1922’. A pritidd do mercado é dupla: 2 dimo 1'601‘),' retirou' o trabalho da zona de‘perigo, e a politica anticercamento
Aprotesto
de' £21019 entre: os diferenws 1130s e 2 0191111290. das for9s que influenciam 0 forneci- dOS Tudors:e dos primeiros Stuartsffoi um concreto contra o _
90. memo agregado de fatprwm principio do uso lucrativo da propriedade fundiéria. 91
O mercantilismo, por mais que tivesse insistido enfaticamente na havia um sistema economico separado na sociedade, seja sob condigoes
comercializacao como politica nacional, pensava a respeito dos merca— tribais, feudais o u mercantis. A sociedade do século XIX revelou-se, de
dos de maneira exatamente contraria a economia de mercado, o que fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade economica foi
fica bem demonstrado pela amplitude da intervengao estatal na indus- isolada e imputada a uma motivacao economica distinta.
tria. Neste ponto nao havia diferenga entre mercantilistas e feudalistas, Um tal padrao institucional nao poderia funcionar a menos que a
entre planejadores coroados e interesses investidos, entre burocratas sociedade fosse subordinada, de alguma forma, as suas exigéncias. Uma
centralizadores e particularistas conservadores. Eles discordavam ape— economia d e mercado so pode existir numa sociedade d e mercado.
nas quanto aos métodos de .regulamentacao: as guildas, as cidades e as Chegamos a esta conclusao, de uma maneira geral, em nossa anélise do
l prov1ncias apelavam para a forga dos costumes e da tradicao, enquanto padrao de mercado. Podemos especificar agora as razoes desta nossa afir-
l
i
1 a nova autoridade estatal favorecia o estatuto e as leis. Todos eles, mativa. Uma'economia de mercado deve compreender todos os compo-
porém, eram igualmente avessos a ide’ia da comercializagao do trabalho nentes da industrial, incluindo trabalho, terra e dinheiro. (Numa economia
e da terra — a precondigao da economia de mercado. de mercado, este ultimo é também um elementO' essencial da vida indus—
As guildas artesanais e os privilégios feudais so foram abolidos na trial, e a sua inclusao no mecanismo de mercado acarretou, como vere—
Franga em 1790; na Inglaterra, o nStatute of Artificers so foi revogado mos adiante, conseqiiéncias institucionais de grande alcance.) Acontece,
entre 1813 e 1814 e a Poor Law elisabetana, em 1834. O estabeleci— porém, que o trabalho e a terra nada mais sao do que os proprios seres
mento d o mercado livre d e trabalho nao foi sequer discutido, e m humanos nos quais cons1stem todas as sociedades, e o ambiente natural
ambos os paises, antes da filtima década do século XVIII, e a idéia da no qual elas existem. Inclui-los no mecanismo de mercado significa subor-
auto-regulacao da Vida economica estava inteiramente fora de cogita— dinar a substancia da prépria sociedade as leis do mercado.
gao nesse periodo. O mercantilismo se preocupava cOm o desenvolvi— Estamos agora e m posigao de desenvolver, numa forma mais con-
mento dos recursos do pafs, inclusive 0 pleno emprego, através dos creta, a natureza institucional de uma economia de mercado, e os peri-
negocios e do comércio -— e levava em conta, como um dado certo, a gos que ela acarreta para a sociedade. Em primeiro lugar, procurare-
organizagao tradicional da terra e do trabalho. Neste ponto ele estava mos descrever os métodos através dos quais o mecanismo de mercado
tao afastado dos conceitos modernos como do campo da politica, onde fica capacitado a controlar e dirigir os elementos reais da vida indus-
a sua crenga nos poderes absolutos de um déspota esclarecido nao con- trial; em seguida, tentaremos avaliar a natureza dos efeitos de um tal
tinha quaisquer laivos de democracia. A transigao para um sistema mecanismo sobre a sociedade que esta sujeita a sua agao.
democratico e uma politica representativa significou a total reversao da E com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo do
tendéncia da época, e da mesma forma a mudanga de mercados regula- mercado se engrena aos varios elementos da vida industrial. As merca-
mentados para auto-regulaveis, ao final do se’culo XVIII, representou dorias sao aqui definidas, empiricamente, como objetos produzidos
uma transformagao completa na e'strutura da sociedade. para a venda no mercado; por outro lado, os mercados sao definidos
Um mercado auto-regulavel exige, n o minimo, a separagao institu- empiricamente como contatos reais entre compradores e vendedores.
cional da sociedade em esferas economica e politica. Do ponto de vista Assim, cada componente da industria aparece como algo produzido
da sociedade como um todo, uma tal dicotomia 6, com efeito, apenas para a venda, pois so entao pode estar sujeito ao mecanismo da oferta
um reforgo da existéncia de um mercado auto-regulavel. Pode-se argu- e procura, com a intermediagao do prego. Na pratica, isto significa que
mentar que a separagao dessas duas esferas ocorra em todos os tipos de deve haver mercado para cada um dos elementos da indfistria; que nes-
sociedade, em todos os tempos. Um tal inferéncia, porém, seria basea- ses mercados cada um desses elementos é organizado num grupo de
da numa falacia. E verdade que nenhuma sociedade pode existir sem oferta e procura. Esses mercados -— e eles sao numerosos — sao interliga-
algum tipo _de sistema que assegure a ordem na produgao e distribuigao dos e constituem Um Grande Mercado.2
de hens. Entretanto,‘-isto nao.1_r'nplica a existéncia de mstituigoes econo-
'micas.separadas.=:Normalmente a .ordem economica é apenas uma fun- 2 Hawtrey, G. R. op. cit. Hawtrey vé a sua fungao tornando “mutuamente consistente os
da social, -na qual ela esta inserida. Como ja demonstramos, nao valores relauvos de mercado de todas as mercadorias”. ' 93
92. 950
O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro sao elemen- nadamente, ou até mesmo nao-utilizada, sem afetar também o indivi-
tos essenciais da indfistria. Eles também tém que ser organizados em duo humano que acontece ser 0 portador dessa mercadoria peculiar.
mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente A0 dispor da forga de trabalho de um homem, o sistema disporia tam-
‘ vital do sistema economico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro bém, incidentalmente, da entidade fisica, psicolégica e moral do
obviamente 1150 s50 mercadorias. O postulado de que tudo o que é “homem” ligado a essa etiqueta. Despojados da cobertura protetora
comprado e vendido tem que ser produzido para venda é enfaticamen- das instituigoes culturais, os seres humanos sucumbiriam sob os efeitos
te irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com do abandono social; morreriam vitimas de um agudo transtorno social,
a definigao empfrica de uma mercadoria, eles nao sao mercadorias. através do vfcio, da perversao, do crime e da fome. A natureza seria
Tr'abalho é apenas um outro nome para atividade humana que acompa- reduzida a seus elementos minimos, conspurcadas as paisagens e os
nha a propria vida que, por sua vez, nao é produzida para venda mas arredores, pOIuidos os rios, a seguranga militar ameagada e destruido o
por razées inteiramente diversas, e essa atividade n50 pode ser destaca- poder de produzir alimentos e matérias—primas. Finalmente, a adminis-
da do resto da vida, nao pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é tragao do poder de compra por parte do mercado liquidaria empresas
apenas outro nome para a natureza, que nao é produzida pelo homem. periodicamente, pois as faltas e os excessos de dinheiro seriam tao
Finalmente, o dinheiro é apenas um sfmbolo do poder de compra e, desastrosos para os negécios como as enchentes e as secas nas socieda-
como regra, ele r1210 6 produzido mas adquire vida através do mecanis- des primitivas. O s mercados de trabalho, terra e dinheiro sdo, sem
mo dos bancos e das finangas estatais. Nenhum deles é produzido para dfivida, essenciais para uma economia de mercado. Entretanto, nenhu-
a venda. A descricao do trabalho, da terra e do dinheiro como merca— ma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras fic-
dorias é inteiramente ficticia. goes, mesmo por um periodo de tempo muito curto, a menos que a sua
Nao obstante, é com a ajuda dessa ficcao que sao organizados os substancia humana natural, assim como a sua organizacao de negocios,
mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro.3 Esses elementos fosse protegida contra os assaltos desse moinho saténico.
s50, na verdade, comprados e vendidos no mercado; sua oferta e pro- A extrema artificialidade da economia de mercado esta enraizada no
cura sio magnitudes reais, e quaisquer medidas ou politicas que pos- fato de 0 proprio processo de producio ser aqui gozado sob a forma de
sam inibir a formagao de tais mercados poriam em perigo, ipso facto, a de compra e venda.4 Numa sociedade comercial, nao é possivel outra
auto-regulacao do sistema. A ficgao da mercadoria, portanto, oferece forma de organizar a produgao para o mercado. Durante a Idade
um principio de organizagao vital em relacéo a sociedade como um Média, a produgao industrial para exportacao foi organizada por bur—
todo, afetando praticamente todas as suas instituicoes, nas formas mais gueses ricos e levada a efeito sob sua supervisao direta, em sua cidade
variadas. Isto significa o principio de acordo com o qual nao se pode natal. Mais tarde, na sociedade mercantil, a producéo foi organizada
permitir qualquer entendimento o u comportamento que venha a impe- por mercadores e nao se restringia mais as cidades. Esta foi a época dos
dir o funcionamento real do mecanismo de mercado nas linhas de fic- deslocamentos, quando a indfistria doméstica era provida de matérias-
gao da mercadoria. primas pelo capitalista mercador, o-zqual controlava o processo de pro-
Ora, em relagao ao trabalho, a terra e ao dinheiro nao se pode dugao como uma empresa puramente comercial. Foi nessa ocasiao que a
manter um tal postulado. Permitir que o mecanismo de mercado seja o produgao industrial se colocou definitivamente, e em grande escala, sob
finico dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natu- a lideranga organizadora do mercador. Ele conhecia o mercado, o volu-
ral, e até mesmo o arbitro da quantidade e do uso do poder de com- me e a qualidade da demanda, e podia se encarregar também dos supri--
pra, resultaria no desmoronamento da sociedade. Esta suposta merca- mentos que, incidentalmente, consistiam apenas em 15, tinturas e, as
doria, “a forga de trabalho”, n50 pode ser impelida, usada indiscrimi- vezes, molduras ou teares usados pela indfistria doméstica. Se nao hou-
vesse suprimentos, o aldeao era 0 mais prejudicado, pois perdia seu
3 A 'afirmativa de Marx do caréter ‘fetichista do valor das mercadorias se refere an valor de emprego durante' algum tempo. 0 caso n50. envolvia nenhuma fabrica
Roger‘ d e mercadprias‘g‘enuinas e Inao ternnada em comum com ‘35 mercadorias ficticias dispendiosa e o mercador nao incorria em risco sério ao assq a res—
94 mencionadas no texto.
ponsabilidade da producao. Durante séculOs esse sistema cresceu em 95
poder e objetivo ate’ que finalmente, num pais como a Inglaterra, a Quanto mais complicada se tornou a producao industrial, mais
industria da 15, produto basico nacional, atingiu grandes setores do pais numerosos passararn a ser os elementos da industria que exigiam
onde a producéo era organizada pelo negociante de tecidos. garantia de fornecimento. Trés deles eram de importancia fundamen-
A propésito, aquele que comprava e vendia provia também a pro- tal: o trabalho, a terra e o dinheiro. Numa sociedade comercial esse
dugao — nao era preciso uma outra motivacao. A criacao de bens nao fornecimento so podia ser organizado de uma forma: tornando—os dis—
envolvia atitudes reciprocas de ajuda mutua; nao havia a preocupagao poniveis a compra. Agora eles tinharn que ser organizados para a venda
do chefe de familia por aqueles cujas necessidades provia; nem o orgu— no mercado— em outras palavras, como mercadorias. A ampliacéo do
lho do artesao no exercicio da sua profissao; nem a satisfacio do elogio, . ' mecanismo de mercado aos componentes da industria — trabalho, terra
publico — nada além do motivo simples do lucro, tao familiar ao. - e dinheiro — foi a conSequéncia inevitavel da introducao do sistema
homem cuja profissao é comprar e vender. Até 0 final do século XVIII, fabril numa sociedade Comercial. Esses elementos da industria tinham
a producao industrial na Europa Ocidental ja era um mero acessério que estar a venda.
do comércio. Isto estava de acordo com a exigéncia de um sistema de mercado.
Enquanto a méquina foi uma ferramenta barata e nio-qualificada, Sabemos que num sistema como esse os lucros so podem set assegura—
nao houve qualquer mudanga nesta situagao. O simples fato do tecelao dos se se garante a auto-regulacao através de Inercados competitivos
doméstico poder produzir quantidades maiores do que antes, no mesmo interdependentes. Como o desenvolvimento do sistema fabril se orga-
espaco de tempo, poderia induzi-lo a usar maquinas para aumentar seus nizara como parte de um processo de compra e venda, o trabalho, a
ganhos, porém este fato em si mesmo nio afetava‘, necessariamente, a terra e o dinheiro também tiveram que se transformar em mercadorias
organizagao da profissao. O fato da maquinaria baram ser propriedade para manter a producao em andamento. E verdade que eles n50 pude-
do trabalhador on do mercador fazia alguma diferenga’quanto a posigao ram ser transformados em mercadorias reais, pois n50 eram produzi—
social das partes e sem duvida influia nos ganhos do trabalhador que dos para venda no mercado. Entretanto, a ficgao de serem assim pro-
ficava em melhor situagao enquanto proprietario das suas ferramennas duzidos tonou-se o principio organizador da sociedade. Dos trés ele-
de trabalho. Entremnto, isto nao obrigava o mercador a tornar-se um mentos, u m se destaca mais: trabalho (mac-de-obra) é o termo técnico
capitalista industrial ou o limitava a emprestar seu dinheiro as pessoas usado para os seres humanos na medida em que nao sao empregadores
interessadas. O fluxo de bens raramente se expandia; a dificuldade mas empregados. Segue—5e dai que a organizagao do trabalho mudaria
maior continuava a ser 0 fornecimento de matérias—primas, as vezes ine- simultaneamente com a organizagao do sistema de mercado. Entre-
vitavelmente interrompido. Mesmo em tais cases, 0 prejuizo do merca- tanto, como a organizacao do trabalhoéeapenas um outro termo para
dor proprietario das maquinas nao era substancial. as formas de vida do povo comum, isto significa que o desenvolvimen-
N50 foi o aparecimento da maquina em si mas a invengao de ma- to do sistema de mercado seria acompanhado de uma mudanca na
quinarias e fabricas complicadas e, portanto, especializadas que mudou organizagio da propria sociedade. Seguindo este raciocinio, a socieda-
completamente a relacao do mercador com a producao. Embora a de humana tornara-se um acessorio do sistema economico.
nova organizagio produtiva tenha sido introduzida pelo mercador — Relembremos nosso paralelo entre as devastacoes dos cercamentos
fato esse que determinou todo o curso da transformagao —, a utilizagao na histéria inglesa e a catéstrofe social que se seguiu a Revolugao
de maquinarias e fabricas especializadas irnplicou o desenvolvimento Industrial.§!Dissemos que, como regra, o progresso é feito a custa da
do sistema fabril e, com ele, ocorreu uma alteracao decisiva na impor- desarticulzfcao social. Se 0 ritmo desse transtorno é exagerado, a comu—
tancia relativa do comércio e da industria, em favor dessa filtima. A nidade pode sucumbir no processo. Os Tudors e 08 primeiros Stuarts
producéo industrial deixou de ser um acessério do comércio organiza- salvaram a Inglaterra do destino da Espanha regulamentando o curso
do pelo mercador como proposicao de compra e venda; ela envolvia da mudanga de forma a torna—la suportavel e puderamvcanalizar seus
agorainvestimentos ..a longo prazo, comos-riscos correspondentes; ea efeitos por caminhos menos destruidores. Nada porém foi feito para sal-
menos que -a continuidade. da producao fosse’ garantida, com certa var o povo comum da Inglaterra do impacto da Revolucao Industrial.
96,. margem de seguranca, um tal risco n50 seria suportavel. Um fé cega no progresso esponm’ineo havia se apossado da mentalidade 97
pres-
das pessoas e, com o fanatismo de sectérios, os mais esclarec1dos
s nem
sionavam em favor de uma mudanga na socredade, sem limite
terri—
regulamentacoes. Os efeitos causados nas vidas das pessoas foram
na poder ia ter. sido aniqu i-
veis, quase indescritiveis. A sociedade huma
tos pro-
lada, de fato, nao fosse a ocorré ncia de alguns contramovimen 7
tetores que cercearam a agao desse mecanismo autodestrutivo.
duplo
' A historia social do século XIX foi, assim, o resultado deum
dolme rcado em relaga oas
movimento; a ampliagao da‘ organizagao SPEENHAMLAN D, 1 795
restrlg ao em relacao
mercadorias genuinas foi aco'mpanhada pela sua
se difun— -
as mercadorias ficticias. 'Enquanto, de um lado, os mercados
'
diam sobre toda a face do globo e a quantidade de bens envolvidos
as e
assumiu propOrgoes inacreditaveis, de outro uma rede de medid
destln adas a cercea ra
politicas se integravam em poderosas instituigoes
acéod o mercado relativa ao trabalho, a terra e ao dinhei ro.-En quanto
mercados A'sociedade do século XVIII resistiu, inconscientemente, a qual-
a organizagao dos mercados mundiais de mercadorlas, dos quer tentativa de transforma-la em mero apéndice do mercado. N210
a eglde
mundiais de capitais e dos mercadOS mundiais de moedas, sob. era concebivel uma economia de mercado que n50 incluisse um merca-
parale lo a0 mecam smo de
do padrao-ouro, deu um momentum sem do de trabalho, mas estabelecé-lo, especialmente na civilizagao rural da
re31st1r aosefe i—
mercados, surgiu um movimento bem ‘estruturado para Inglaterra, significava nada menos do que destruir totalmente o tecido, -
soc1e da-
tos perniciosos de uma economia c0ntrolada pelo rnercado. A tradicional da sociedade. Mesmo durante o periodo mais ativo da
do
de se protegeu' contra os perigos inerentes a um s1stema_de nlerca R'elvolugao Industrial, de 1795 a 1834, impediu-se a criacao de um
o abrang ente na histor ia desses
auto-regulavel, e este foi o unico aspect mercado de trabalho na Inglaterra através da Speenhamland Law (Lei
periodo. Speenhamland).
Com efeito, o mercado de trabalho foi o ultimo dos mercados a ser
organizado sob o novo sistema industrial, e esse passo final 56 foi
tornado quando a econornia de mercado foi posta em marcha e a
auséncia de um mercado de trabalho provou ser urn mal ainda maior
para o proprio povo comum do que as calamidades que acompanha—
riama sua introdugao. No final, 0 mercado livre de trabalho, a despei-
to dos métodos desumanos empregados na sua criacao, provou ser
financeiramente benéfico para todas as partes envolvidas.
Entretanto, so agora surgia o problema crucial. As vantagens eco-
nomicas de um mercado livre de trabalho nao podiam compensar a
destruigio social que ele acarretaria. Tiveram que ser introduzidas
regulamentagoes de um novo tipo para mais uma vez proteger o traba-
lho, so que, agora, contra o funcionamento do proprio mecanismo de
mercado. Embora as novas instituigoes protetoras — sindicatos e leis
fabris — fossem adaptadas, tanto quanto possivel, as. exigéncias do
mec'anismo economico, elas interferiam com a sua auto-regulacio e
finalmente destruiram o sistema. 99
Dentro da ampla logica desse desenvolvimento, a Speenhamland novo regime do homem economico, ninguém trabalharia por um sala-
Law ocupou uma posigao estratégica. . -‘ rio se pudesse sobreviver sem fazer nada.
Na Inglaterra, tanto a term como o dmheiro foram mobilizados Um outro aspecto da anulagao do método Speenhamland revelou-
nacional
' antes do trabalho. Este se viu impedido de for-mar um mercado se menos obvio para a maioria dos escritores- do século XIX, a saber,
pelas restrigoes estritamente legais impos tas a sua mobili dade fisica: o que o sistema de salérios teria que se tornar universal no interesse dos
trabal hador estava praticamente restrit o a sua paréq uia. 0 Act of préprios assalariados, embora isto significasse privé-los da sua exigen-
regras da
Settlement (Decreto de Domicilio) de 1662, que estabeleceu as cia legal a subsisténcia. O “direito de viver” provara ser uma armadilha
Esse mortal.
assim chama da servid ao paroqu ial, so foi abrand ado em 1725.
nal de
passo tornaria possivel o estabelecimento de um mercado nacno O paradoxo foi apenas aparente. Através da Speenhamland preten-
trabalho se nao tivesse surgido, no mesmo am, a Speenhamland Law on dia-se que a Poor Law fosse administrada liberalmente, porém, ela se
isto é, transformou de fato no oposto do seu intento original. Sob a lei elisa-
“sistema de abonos”. A intengéo dessa lei tinha um sentido oposto,
de
0 de reforgm poderosamente o sistema paternalism da orgamzagao betana, os pobres era forgados a trabalhar com qualquer salario que
trabalho, nos moldes herdados dos Tudors e dos Smarts. Os juizes pudessem conseguir e somente aqueles que nao conseguiam trabalho
o
de Berkshire, nun; encontro no Pelikan Inn, em Speenhamland, prémm tinham direito a assisténcia social; nunca se pretendeu e nem se conce-
a Newbury, em 6 de maio de 1795, numa época de grande perturb agao, deu qualquer assisténcia sob a forma de abono salarial. Durante a
decidiram conceder abonos, em adimmento aos salérios, de acordo corn vigéncia da Speenhamland Law, 0 individuo recebia assisténcia mesmo
uma tabela que dependeria do prego do pao. Assim, fimria assegurada ao quando empregado, se seu salario fosse menor do que a renda familiar
pobre uma renda minima independente dos seas proventos. 'A famosa estabelecida pela tabela. Ora, nenhum trabalhador tinha qualquer inte-
recomendagio dos magistrados dizia: Quando o prego do quilo de pao resse material em satisfazer seu empregador, uma vez‘que a sua renda
de uma determinada qualidade “cusmr 1 shilling, qualquer pessoa pobre era a mesma qualquer que fosse o seu salario. A situagao era diferente
e diligente tera 3 shillings por semana para seu sustento, quer ganhos por apenas no caso dos salérios-padrio, i.e., quando 0s salarios pagos exce-
ela propria ou pelo trabalho de sua famflia, quer como um abono prove- diam a tabela, ocorréncia esta muito pouco comum no campo, uma vez
niente do imposto dos pobres, e 1 shilling e 6 pence para o sustento de sua que o empregador podia conseguir trabalhadores a qualquer prego. Por
mulher e qualquer outro membro da sua fami’lia. Quando o quilo de . menos que ele pagasse, o subsidio auferido através dos impostos sem-
pao custar 1/6, 4 shillings por semana mais _1/10. A cada pence acnma pre elevava a renda do trabalhador até o nfvel determinado pela tabela.
de 1 shilling no aumento do prego do [350 corresponderao 3 pences para Em poucos anos a produtividade do trabalho comegou a declinar
ele e 1 pence para os demais”; Essas cifras variavam em alguns condados até o nivel do trabalho indigente, oferecendo aos empregadores mais
mas, na maioria dos cases, adotava-se a tabela de Speenhamland. um motivo para nao elevar os salarios além da tabela. Depois que a
Isto foi feito' como uma medida de emergéncia, introduzida infor- intensidade do trabalho, o cuidado e a eficiéncia com o qual era execu-
malmente. Embora chamada comumente de lei, a prépria tabela nunca tado cairam abaixo de um nivel definido, ele chegou quase a “inutilida-
foi promulgada. Passou, porém, vigorar c0mo lei na maior parte do de”, a um simulacro de'trabalho apenas para salvar as aparéncias.
Na Apesar de 0 trabalho ainda ser obrigatério em principio, na prética a
campo e, mais tarde, até mesmo em alguns distritos manufatureiros.
verdade, ela introduziu uma inovagao social e economica que nada mais assisténcia externa se tornou geral, e mesmo quando prestada nos asi-
era que o “direito de viver” e, até ser abolida, em 1834, ele impedni efe- los de indigentes dificilmente se poderia chamar de trabalho a ocupa-
fivamente o estabelecimento de um mercado de trabalho competitive. gao obrigatéria‘ a que se entregavam os seus internos.
do
Desde 1832, dois anos antes 'portanto, a classe média vinha forgan Isto resultou no abandono da legislagao Tudor, nao em nome de
seu carninho em diregao ao pod'er, em parte para remove r esse obstécu - um menor paternalismo, mas de um ainda maior. A ampliagao da assis-
losa noVa‘ieeonomia 'capitalista.rCom efeito, nada poderia-set mais 6hv10 ‘téncia externa, a introdugao de abonos salariais, suplementados ainda
do quelloniato*de' 0 sistema‘de salaries exigir imperativamente a aboligéo por abonos separados para a mulher e as filhos, e que aumentavam ou
too . do.“direito de viver” conforme proclamada pela Speenhamland -, 80b 0 diminuiam de acordo com o prego do pao, significavam, em relagao ao 101
trabalho, uma renovagao dramatica do mesmo principio regulador que va os elementos da produgao, inclusive a terra, sob um
sistema de mer-
se estava eliminando rapidamente na Vida industrial como um todo. cado, afastando a genre comum do seu status anterior,
compelindo-a a
Nenhuma outra medida se popularizou mais amplamente.1 Pals ganhar a Vlda oferecendo seu trabalho a venda enquanto,
a0 mesmo
nio precisavam cuidar dos filhos; filhos nao dependiam mais dos pals; ~ tempo, privava esse trabalho do seu valor_de mercado. Criav
a~se uma'
os empregadores podiam reduzir os salarios a bel-prazer e as trabalha- nova classe de empregadores, mas nao Se podia constituir uma classe
dores nao passavam fome, quer fossem diligentes ou preguigosos. Os correspondente dc empregados. Uma nova onda gigantesca de
cerca-
'humanitaristas aplaudiam a medida como ato de piedade, senz'io de jus- mentos mobilizava a terra e produzia um proletariado rural, enqua
nto
tica, e os egoistas se consolavam com o pensamento de que se tratava a “ma administragao da Poor Law” impedia esse proletariado de
de um gesto de caridade e n50 de um ato liberal. Mcsmo os contribuin- ganhar a Vida com o seu trabalho. N50 é de admirar que os contempo-
tes dos impostos custaram a compreender o que aconteceria a essec raneos se sentissem estarrecidos diante da aparente contradicao entre
impostos num sistema que proclamava o “direito de viver” quer um um aumento quase miraculoso na produgio e uma quase inanigao das
homem trabalhassc por um salario vivo on n50. massas. 12’! em 1834 havia a convicgao geral — e uma convicgéo apaixo-
A longo prazo o resultado foi estarrecedor. Embora levasse algum nante para muitas pessoas de responsabilidade — de que qualquer coisa
tempo até que o respeito préprio do homem comum descessc a um era preferfvel a continuagio da Speenhamland Law. On as maquinas
nivel tao baixo a ponto dele preferir a assisténcia aos pobres ao salario, teriam que ser desmontadas, como os Ludistas tenmram fazer, ou tinha
a verdade é que esse salario, subsidiado através de fundos publicos, que ser criado um mercado dc trabalho regular. Assirn a humanidade se
chegou a um ponto tal que ele se viu forcado a recorrer a assisténcia viu forcada a ingressar no caminho de uma experiencia utopica.
dos impostos . Pouco a pouco o pessoal do campo foi se pauperizando; Este n50 é o lugar para se discorrer sobre a economia da Spee-
o adégio “uma vez por conta dos impostos, sempre por conta deles” nhamland; seré oportuno fazé-lo mais adiante. Em face do teor dessa
passou a ser uma verdade incontestavel. Seria impossivel explicar a ta] lei, o “direito de viver” 'deveria ter acabado de vez-com o trabalho
degradagao humana e social do capitalismo primitivo sem os prolonga- assalariado. Os salarios-padrio deveriam ter baixado gradualment'e até
dos efeitos do sistema de abonos. ‘ o nivel zero, ficando totalmente por conta da paréquia o pagamento
O episodic de Speenhamland revelou a0 povo do principal pau’s do dos salarios. Se isto ocorresse, ficaria patente o absurdo desse dispositi-
século a verdadeira natureza da aventura social na qual estavam embar- . vo. Esse, porém, era um periodo essencialmente pré-capitalista, em que
cando. Dirigentes e dirigidos jamais esqueceram a licio daquele paraiso as pessoas comuns ainda pensavam de modo tradicional e ainda nio
de todos. Se 0 Reform Bill (projeto de Reforma) de 1832 e a Poor Law pautavam seu comportamento apenas por motivagées monetarias. A
Amendment (Emenda da Lei dos Pobres) de 1834 foram vistos como grande maioria do pessoal do campo era de posseiros-proprietérios ou
pontos de partida do capitalismo moderno, é porque puseram um foreiros vitalicios que preferiam qualquer tipo de vida a situagao de
ponto final no dominio do latifundiario benevolente e seu sistema de indigente, ainda que esta n50 fosse deliberadamente sobrecarregada
abono. A tentativa de criar uma ordem capitalista sem um mercado de por limitacées penosas e ignominiosas como aconteceu posteriormen-
trabalho falhara redondamente; As leis que governavam uma tal ordem te. Se os trabalhadores tivessem a liberdade de fazer combinagoes para
ja se haviam afirmado e manifestavam seu antagonismo radical ao prin- favorecer seus interesses, o sistema de abonos talvez pudesse ter causa-
cipio do paternalismo. Seu rigor era visivel e sua violagao acarretava do efeito contrario no padrio de salarios: a assisténcia aos empregados,
sancées cruéis contra aqueles que a tentavarn. implicita numa administragao tio liberal da Poor Law, teria ajudado
Sob a Speenhamland Law, a sociedade se debatia entre duas in- muito a acao dos sindicatos.
fluéncias opostas: a que em'anava do paternalismo e que protegia a Talvez. esta tenha sido uma -das razées da promulgacio das Anti~'
mac-dejobra dos perigos de um sistema de mercado, e a que organiza- Combination Laws (Leis Anticombinagao) de 1799-1800, tio injustas,
pois seria dificil .explicé-las de outra maneira, uma vez que tanto os
magistrados de Berkshire c0mo os membros do Parlamento 5e preocu-
102‘ _1Meredith,H. 0, out,“ of the E . Hwy ofEnglqnd,‘1908- pavam,- de‘modo geral, pela condigio econémica dos pobres e, apés 103
1797, a agitagao politica ja havia diminuido. Pode-se argumentar, de pauperizagao das massas, que quase perderam a sua forma humana no
fato, que a intervengao paternalista da Speenhamland contribuiu para decorrer do processo. ‘
o aparecirnen to das Anti—Combination Laws, uma intervencao poste- A Poor Law Reform de 1834 acabou com essa obstrucao do merca-
' rior, e, se néo fosse por elas, a Speenhamland poderia ter atuado no do de trabalho; foi abolido o “direito dc viver”. A crueldade cientifica
sentido de elevar os salarios em vez de rebaixa—los como realmente desse decreto foi tao chocante para o sentimento publico nos anos
ocorreu. Vigorando em conjunto corn as Anti—Combination Laws, que 1830—1840 que os protestos veementes dos contemporaneos obscure-
nao foram revogadas-por mais um quarto de século, Speenhamland ceram o quadro aos olhos da posteridade. E verdade que muitos dos
culminou no resultado ironico de arruinar eventualmente as pessoasla'“ pobres mais necessitadosforam abandonados a sua sorte quando se
que ela ostensivamente se destinava socorrer através- do “direito de re'tirou a assisténcia eiterna, e entre aquelesuc-lue sofreram mais amar—
viver” financeiramente implementado. gamente estavam os “pobres merecedores”, orgulhosos demais para se
Para as geracoes mais velhas ficou claramente patente a incompati- recolherem aos albergues, que se haviam tornado um abrigo vergo-
bilidade mfitua entre instituigoes tais como o sistema de salarios e o nhoso. Em toda a historia moderna talvez jamais se tenha perpetrado
“direito de viver”, em outras palavras, 7a impossibilidade do funciona- um ato mais impiedoso de reforma social. Ele esmagou multidoes de
mento de uma ordem capitalista enquanto os salarios fossem subsidia- vidas quando pretendia apenasI criar um critério de genuina indigéncia
dos por fundos pfiblicos. Os contempor aneos nao compreendiam, com a experiencia dos albergues. Defendeuése friamente a tortura psico-
porém, qual o tipo de ordem para a qual preparavam o caminho. So logica, e ela foi posta em pratica por filantropos benignos como meio de
quando a grave deterioracao da capacidade produtiva das massas se fez lubrificar as rodas do moinho de trabalho. O comum das queixas,
sentir — uma verdadeira calamidade nacional que obstruia o progresso porém, relacionava-se realmente com a erradicagao abrupta de uma ins—
da civilizagao da maquina — é que se impos a consciéncia da comunida— tituigao tao antiga ao mesmo tempo que se efetuava uma transformagao
de a necessidade de abolir o direito Vincondicional do pobre a assistén- tao radical. Disraeli denunciou essa “revolugao inconcebivel” na Vida do
cia. A complicada econornia da Speenhamland transcendia a com- povo. Entretanto, se se levasse em conta apenas a renda monetaria, a
preensao até mesmo dos observadores mais atentos da época. A con- condigao do povo logo poderia ser considerada como melhor.
clusao a que se chegou, porém, nao deixava margem de dfividas: o Os problemas do terceiro periodo foram incomparavelmente mais
abono salarial so podia ser inerentemente falho, pois prejudicava mira- profundos. As atrocidades burocraticas cometidas contra os pobres
culosamente até mesmo aqueles que o recebiam. . durante a década seguinte a 1834 pela nova autoridade centralizada da
As ciladas do sistema de mercado nao eram prontamente visiveis. Poor Law foram apenas esporédicas e quase nulas quando cOmparadas
Para compreender isto com mais clareza temos que distinguir entre as aos efeitos gerais da mais potente de todas as instituigoes modernas — o
varias vicissitudes a que os trabalhador es estiveram expostos na mercado de trabalho. Quanto a extensao, era similar a ameaga represen-
Inglaterra desde o aparecimento da maquina. Primeiro, aquelas do tada pela Speenhamland, com'a diferenga significativa de que a fonte de
periodo Speenhamland, 1795 a 1834. Segundo, as dificuldades causa— perigo era agora nao a auséncia mas-=a presenca de um mercado de traba—
das pela Poor Law Reform, na déoada que se seguiu a 1834. Terceiro, lho competitivo. Se a Speenhamland impedira a emergéncia de uma clas—
os efeitos deletérios de um mercado de trabalho competitivo apos se trabalhadora, agora os trabalhadores pobres estavam sendo formados
1834 até que o reconhecimento dos sindicatos, nos anos 1870, passou nessa classe pela pressao de um mecanismo insensivel. Se durante a
a oferecer a necessaria protegao. Cronologicamente, a Speenhamland vigéncia' da Speenhamland cuidava—se do povo como de animais nao
antecedeu a econornia de mercado; a década do PoOr Law Reform Act muito preciosos, agora esperava—se que ele se cuidasse sozinho, com
representou o periodo de transicao para essa economia. O -1’11timo todas as desvantagens contra ele. Se a Speenhamland significava a miséria
periodo— .que superou estc e foi 0 da econornia de mercado propria— da degradagéo abrigada, agora o trabalhador era um homem sem lar na
mente tdita. Os trés periodos diferiramg acentuada mente. 0 da sociedade. Se a Speenhamland havia sobrecarregado os valores da comu-
Speenhamlan d-se destinou a impedir a proletarizagao do homem nidade, da famflia e do ambiente rural, agora o homem estava afastado
104 comum, ou pelo menos diminuir o seu ritmo. O resultado foi apenas a do lar e da familial, arranm das suas raizes e de todo o ambiente de sig- 105
nificado para ele. Resumindo, se a Speenhamland significava a decompo- fia e teologia para poderem ser assimiladas como significados huma—
sigao da imobilidade, agora o perigo era a morte pela exposigao. nos. Os fatos obstinados e as leis brutais e inexoraveis que surgiram
Um mercado de trabalho competitivo so foi estabelecido na In- para abolir nossa liberdade tinham que se reconciliar, de uma forma ou
glaterra apos 1834; assim, nao se pode dizer que o capitalismo indus- de outra, com essa mesma liberdade. Isto se tornou a mola mestra das
trial, como sistema social, tenha existido antes desta data. Quase ime- forgas metafisicas que secretamente sustentaram os positivistas e os uti-
diatamente, porém, a autoprotegao da sociedade se manifestou — surgi- litaristas.-A resposta ambivalente da mente a essas terriveis limitagées
-ram leis fabris e uma legislagao social, assim como a movimentagao foi uma esperanga irrestrita e um desespero ilimitado, que se voltavam
politica e industrial da classe trabalhadora._ For justamente com-essa para as regiées ainda nao-exploradas das possibilidades humanas. Do
tentativa de'evitar 0s perigos totalmente novos do mecanismo de mer- ' pesadelo da populagao e das leis salariais destilou-se a esperanga -— a
cado que a agao protetora entrou em conflito fatal com a auto-regula- visao do aperfeicoamento — e ela se materializou numconceito de pro-
gao do sistema. Nao é exagero dizer que a histéria social do século gresso tao inspirador que parecia justificar as enormes e dolorosas dis—
XIX foi determinada pela logica do sistema de mercado propriamente torgéespor vir. O desespero provaria ser um agente ainda mais pode—
dito, apés ter sido ele liberado pelo Poor Law Reform Act de 1834. O roso da transformagao. _ .
ponto de partida dessa dinamica foi a Speenhamland Law. O homem foi forgado aresignar-se a perdigéo secular: seu destino
Se sugerimos que o estudo da Speenhamland é o estudo do nasci- era limitar a procriacao da sua raga-cu condenar—se irremediavelmente
mento da civilizacao do século XIX,,nao temos em mente exclusiva- a liquidagao através. da guerra e da peste, da fome e do vicio. A pobre-
mente seus efeitos economicos e sociais, nem mesmo a influéncia deter- za representava a sobrevivéncia da natureza na sociedade. A limitagao
minante desses efeitos sobre a moderna histériapolitica, mas o fato de dos alimentos e a ilimitagao dos homens chegaram a um impasse justa—
que a nossa consciéncia social foi fundida nesse molde, fato esse desco- mente quando surgia a promessa de um aumento ilimitado de riqueza,
nhecido da atual geragao. A figura do indigente, quase esquecida desde o que apenas tornava a ironia mais amarga.
entao, dominava uma discussao que deixou marcas tao profundas c0mo Foi assim que a descoberta da sociedade integrou-se ao universo
as dos acontecimentos mais espetaculares da historia. Se a Revolugao espiritual do homem. Mas, de que forma essa nova realidade da socie—
Francesa muito deveu ao pensamento de Voltaire e Diderot, Quesnay e dade seria traduzida em termos de vivéncia? Como guias para a prati~
Rousseau, a discussao em torno da Poor Law formou as mentes de ca, os principios morais da harmonia e do conflito tinham atingido seu
Bentham e Burke, Godwin e Malthus, Ricardo e'Marx, Robert Owen e limite e pelejavam, dentro de um padrao de completa contradicao.
John Stuart Mill, Darwin e Spencer, que partilharam com a Revolugao Dizia-se que a harmonia era inerente a economia pois, em ultima ins-
Francesa a paternidade espiritual da civilizagao do século XIX. Durante tancia, os interesses do individuo e d a comunidade eram idénticos.
as d_écadas que se seguiram a Speenhamland e a Poor Law Reform foi Todavia, uma tal auto—regulagao harmoniosa exigia que o individuo
que a mente do homem se voltou para a sua propria comunidade com respeitasse a lei economica mesmo que ela o destruisse. O conflito tam—
um nova angfistia e preocupagao: a revolugao que os juizes de Berkshire bém parecia inerente a economia, seja como competigao entre indivi—
em véo tentaram frear e que a Poor Law Reform eventualmente liberou duos, seja como luta de classes — mas esse conflito poderia transformat-
modificara a visao dos homens em relacao‘a seu ser colétivo, como se a se apenas no veiculo de uma harmonia mais profunda imanente numa
sua presenga tivesse sido esquecida até entao. Descobriu-se um mundo sociedade atual ou talvez futura.
de presenga insuspeitada, o das leisque governam uma sociedade com- O pauperismo, a economia politica e a descoberta da sociedade
plexa; Embora a emergencia da sociedade, neste sentido novo e caracte- estavam estreitamente interligados. O pauperismo fixou a atengao no
ristico, tenha ocorrido no campo economico, seu referencial foi muito fato incompreensivel de que a pobreza parecia acompanhar a abundan-
mais abrangente, universal. . ' x . . . cia. Este, porém, foi apenas o primeiros dos surpreendentes paradoxos
-. .-;-A realidade nascentechegoua nossa conSciéncia através da-econo- com os quais a sociedade industrial confrontou o homem moderno.
mia politica. Com efeito, suas regularidades:surpreendentes e contradi- Este penetrara no seu novo dominio pela porta da economia e essa cir-
106 goes assombrosas tinham que ser enquadradas num esquema de filoso- cunstancia fortuita envolveu o periodo com a sua aura materialista. Para 1 0 7
/
Law falhou na aplicagio do remédio certo. res. A migracao se faZ' acompanhar, geralmente, por uma remigragio
pau-
A resposta correta seria, com certeza, que o agravamento do
acentuada. E parece 'que esse refluxo para a 'aldeia realmente ocorreu,
uilo o que encontra comprovacao também no fato de nao ter se verificado
perismo e 03 impostds mais elevados se deviam ao aumento-daq
que hoje chamariamos desemprego invisivel. Tal fato. n onao poderia ser uma diminuigao absoluta na populagéo rural. Ocorria, assim, um des-
geral,
o o empre go, era invi- locamento cumulativo da populagéo, a medida que diferentes grupos
aparente numa _época em que até mesm
, sob a indust ria casei- se integravam na esfera do emprego comercial e manufatureiro, por
sivel, como necessariamente o foi até ’certo ponto
esse periodos variaveis, e depois, abandonados, voltavam ao seu habitat
ra. Todavia, estas questoes ainda ficam de pé: como justifica r
os '
aumento no numero de desempregados e subempregados? Por que rural original.
até Grande parte do dano social ocorrido no campo inglés se originou,
indicios de mudangas iminentes na indfistria escaparam a visao
? . . inicialmente, nos efeitos desarticuladores que o comércio exerceu dire-
mesmo dos contemporéineos observadores
Em primeiro lugar, a explicagéo se baseia nas flutuagoes excessrvas tamente no campo. A Revolucio Agricola antecedeu definitivamente a
to Revolucao Industrial. Tanto os cercamentos das terras comuns quanto
do comércio na sua época inicial, o que levava a encobrir o aumen
pelo as consolidagoes dos arrendamentos compactos, que acompanharam o
absoluto no comércio. Enquanto este ultimo era 0 responsavel
aumento dos empregos, as fluruagées justific avam um aumen to muito novo e grande avango nos métodos agricolas, acarretavam resultados
maior no desemprego. Além disso, enquanto o aumento do emprego muito perturbadores. A guerra contra as habitagoes d o campo, a
era lento, em nfvel geral, o aumento do desemprego e do subempre— absorgao das hortas e terrenos que rodeavam essas habitagoes o confis-
go tendia a ser répido. Assim, a formagao daquilo que Friedrich Engels co dos direitos sobre as terras comuns, _privaram a indfistria doméstica
chamo u de ex‘ército industr ial de reserva ultrapassou em muito a cria- de seus dois esteios: os rendimentos familiares e o “pano de fundo”
950 do eXército industrial propriamente dito. . agricola. Enquanto a indfistria doméstica era suplementada pelas facili-
Isto teve como consequencia importante o fato de- escapa r facrl- dades e amenidades de um canteiro de horta, umpedago dc terra-ou
mente a
,observag ao
a_conexéo entre o desemprego e o incremento do direitos de pastagem, a dependéncia do trabalhadorzaos rendimentos
monetarios'nao era absoluta. Fazia uma diferenga enorme ter um lote
de batatas ou de “gansos teimosos”, uma vaca ou atémesmo um burro
camH'IbeHamze: 1833. pastando nas terras comuns, e as ganhos familiares eram uma espécie 115
.114'1':‘
de seguro contra o desemprego. A racionalizacao da agricultura desen- Entretant o, muitas coisas ainda acontece riam antes que (apenas
raizou inevitavelmente o trabalhador e solapou a sua seguranca social. cinco anos mais tarde) um homem tao afastado da politica, fiio bem-
No cenario urbano eram manifestOs os efeitos do novo nivel de sucedido e téo racional como Telford, um escocés construtor de pontes,
emprego flutuante. A indfistria era vista geralmente como uma ocupa- pudesse irromper com reclamacoes amargas sobre o pouco que se podia
gao esporadica. “Os operérios que hoje estao empregados podem esperar da acao normal do governo e que a' revolugao seria, assim, a
muito bem estar nas ruas amanha, mendigando 0 p510...” , escreveu {mica esperanca. Uma unica copia dos Rights of Man, de Paine, enviada
David Davies, e acrescentou: “A incerteza quanto as condicoes de tra- por Telford a sua aldeia natal, provocou um tumulto naquele local. Paris
balho é o resultado mais perverso destas inovacoes.” “Quando uma estava catalisando a fermentacao européia. , -' __
”cidade
empregada em uma manufatura é dela privada, os habitantes A conviccao de Canning era de que a Poor Law salvara a Inglaterra
ficam como que atacados de paralisia e se tornam instantaneamente de uma revolucao. Ele pensava basicamente na década de 1790 e nas
uma carga para a paroquia; mas a desgraca nao acaba com essa gera- guerras francesas. O novo surto de cercamentos depreciou ainda mais
cao...” E de fato, pois, enquanto isto, a divisao do trabalho exerCe a sua os padroes dos pobres no campo. J.H.A Clapham, um defensor desses
vinganca: 0s artesaos desempregados retornam em v50 a sua aldeia cercamentos, concordava que “era uma coincidéncia marcante o fato
..
pois “o tecelao ja’. 1150 pode mais utilizar as maos para o que quer que da area na qual os salarios tiveram que ser aumentados sistematicamen—
seja”; A irreversibilidade fatal da urbanizacio girava em torno deste te por conta dos impostos coincidir com a area onde ocorreram os
simples fato, que Adam Smith previu quando descreveu o operario maiores cercamento s recentes”. E m outras palavras, nao fossem os
industrial como intelectualmente inferior ao mais pobre cultivador do abonos salariais, os pobres cairiam abaixo do nivel de inanicao em
solo, uma vez que este ainda pode assumir qualquer emprego. Na grandes areas da Inglaterra rural. A queima de medas era-freqfiente, a
época em .que Adam Smith publicou o livro Riqueza das Nagées, conjuracao Popgun encontrava grande ressonancia, os disti’irbios eram
porém, o pauperismo ainda nao havia aSSLimido proporgoes tao alar- constantes e seus boatos se difundiam amplamente. Em Hampshire — e
mantes. - ‘ ‘ , nao apenas la — os tribunais ameacavam com a condenagéo a morte
..-=J_.g..fi;1
O quadro mudou subitamente nas duas décadas seguintes. Em qualquer tentativa de “baixar obrigatoriamente o preco de mercado-
seu Thoughts (7' Details on Scarcity que Burke submeteu a Pitt em rias, tanto no mercado como em caminho”. Simultaneamente, porém,
1795, o autor admitia que, a despeito do progresso geral, ocorrera os magistrados do mesmo condado pressionavam com insisténcia pela
“um ultimo ciclo mau de vinte anos”. De fato, na década que se concessao geral de abonos em aditamento aos salarios. Esta claro que
seguiu a Guerra dos Sete Anos (1763) o desemprego aumentara visi- chegara a hora de uma acao preventiva.
velmente, como o demonstrava a ampliagao da assisténcia social Mas por que sera que, de todos os cursos de agao, foi escolhido jus-
externa. Observou-se, pela primeira vez, que um surto vigoroso no tamente aquele que mais tarde demonstrou ser 0 mais impraticavel de
comércio se fazia acompanhar por indicios de crescentes dificuldades todos? Consideremos a situagao e 05 interesses envolvidos. O proprie-
para os pobres. Esta contradicao aparente seria o mais desconcertan— tario rural e o paroco dirigiam a aldeia. Townsend resumiu a situacao
te dos fenomenos periodicos da Vida social para a nova geracio da quando disse que o cavalheiro fundiario mantém as manufaturas “a uma
humanidade ocidental. O espectro da superpopulacao comecava a distancia conveniente” porque “acha que as manufaturas flutuam; que
obcecar a mente das pessoas. Em sua Dissertation on the Poor Laws o beneficio que ele pode usufruir com elas nao é proporcional ao
(Dissertacao sobre a Lei dos Pobres) prevenia William Townsend: encargo que passa a recair sobre a sua propriedade.. .” Esse encargo
“Especulacao 21 parte, 0 fato é que temos na Inglaterra mais gente do consistia principalmente nos dois efeitos aparentemente contraditorios
\..
que podemos alimentar, e 'muito além do que. podemos empregar, da manufatura, isto é, o aumento no pauperismo e a elevacao dos sala-
com «proveito sob o atual sistema de leis”. Adam Smith, em 1776, rios. Estes dois items so eram contraditorios, porém, se fosse assumida a
aindarefletia uma .atmosfer'a de .progreSSo tranqiiilo; Townsend,.que existéncia de um mercado de trabalho competitive que, naturalmente,
_ escrcveuapenas .dez anos maistarde, ja tinha conSCiéncia do vagalhao tenderiaa- diminuir o desemprego através da redugéo dos salarios dos
1,16 que. se aproximava. ' ' empregados. Na falta de um tal mercado — e 0 Act of Settlement ainda 117
estava em vigor — o pauperismo e os salérios podiam aumentar simulta- Burleigh e Laud, quando a Coroa dirigia a Poor Law através de juizes de
neamente. paz e se iniciou um esquema ambicioso de construir asilos de indigentes
Sob tais condigées, 0 “onus social” do desemprego urbano remia ao .mesmo tempo que surgia a obrigatoriedade do trabalho. Mas a
' principalmente sobre a aldeia natal, a qual freqiientemente- retornavam Commonwealth (1642-1660) destruiu novamente o que era entio
aqueles que ficavam sem trabalho. Os salérios elevados das cidades denunciado como controle pessoal da Coroa e, bem ironicarnente, a-res-
representavam uma carga ainda maior para a economia rural. Os sala- tauragao completou o trabalho da Commonwealth. 0 Act of Settlement
rios agr1colas estavam acima d o que o fazendeiro podia suportar, de 1662 restringiu a Poor Law a base paroquial e a legislacao dedicou
embora abaixo do nivel dc subsisténcia do trabalhador. Parece claro muito pouta atencio. ao-pauperismo até a-lterceira década do .século
que a agricultura nao podia competir com os salarios das cidades. Por XVIII. Finalmente, em 1722, comegaram a ser feitos esforgos para uma
outro lado, havia um consenso geral de que o.Act of Settlement deveria diferenciagio; os albergues seriam construidos . p o r unioes de paréquias e
ser abolido, ou pelo menos abrandado, para ajudar o trabalhador a seriam diferentes dos asilos de indigentes locais. Era permitida a assistén-
encontrar emprego e 03 empregadores a arranjar trabalhadores. Sentia- cia externa pois o albergue forneceria a prova da necessidade.
se que isto aumentaria a produtividade do trabalho em todos os senti- Em 1782, com o Gilbert’s Act, deu-se um passo maior nosentido de
dos-e, incidentalmente, diminuiria o encargo dos salarios. expandir as unidades de administragio, encorajandoaformagio de
Mas a questao imediata do diferencial de salariosentre cidade e unioes paroquiais. Nessa ocasiio, instava-se para que as paroquias
aldeia tornar-se-ia ainda mais premente para a-aldeia, obviamente, per- encontrassem emprego para os individuos capazes nas- préprias vizi— ‘
mitindo'que os salérios “encontrassem seu prép'rio m’vel”. O fluxo- e nhancas. ‘Essa politica seria complementada pela assisténcia externa 3e
refluxodo emprego industrial, alternando-se com espasmo de desem- até mesmo por abonos salariais, a fim de diminuir o custo da assisténcia
prego, transformaria ainda mais as comunidades rurais. Era preciso aos elementos capacitados. Embora a formacio de unioes de paréquias
erguer um dique para proteger'a aldeia contra a onda de salarios ascen- fosse sugerida e nao obrigatéria, ela jé significava um progresso no sen-
dentes. Teriam que ser adotados métodos que protegessem o setor tido-de unidades maiores de administragao e da diferenciacio das vérias
rural contra a desarticulagao social, que reforgassem a autoridade tradi- categorias de pobres assistidos socialmente. Assim, a despeito das defi-
cional, que impedissem o .éxodo da' mac-de-obra rural e que elevassem ciéncias do sistema, o Gilbert’s Act representou uma tentativa na dire-
os salérios agricolas sem sobrecarregar o fazendeiro. Este artificio foi a gao correta e, enquanto a assisténcia externa e 05 abonos salariais eram
Speenhamland Law. Atirada nas éguas turbule-ntas 'da Revolugao apenas subsidiarios em relagao a uma legislagao social positiva, eles nio
Industrial, ela sem dfivida criaria umredemoinho econémico. Todavia, representavam necessariamente algo fatal para uma solucao racional. -A
as suas implicacoes sociais enfrentaram nitidamente a situagao, a julgar Speenhamland, porém, colocou um ponto final na reforma. Tomando
pelos interesses dominantes da aldeia— as do proprietario rural. gerais a assisténcia externa e 03 abonos salariais, ela nao conseguiu a _
orientagao do Gilbert’s Act (como se tem afirmado falsamente) mas
Do ponto de vista da administragéo da Poor Law, a Speenhamland foi inverteu completamente a sua tend'éncia e, de fato, destruiu todo o siste-
um passo terrivelmente regressive. A experiéncia de 250 anos ja havia ma da Pobr Law elisabetana. A disti'ncao laboriosamente estabelecida
demonstrado ser aparéquia uma unidade demasiado pequena para a entre albergues e asilos de indigentes perdeu o seu significado. As.vérias
administragao da Poor Law. Nao podia ser-adequado um tratamento que categorias~ de indigentes e desempregados capacitados tendiam agora a
nao fazia distincfio entre os desempregados capacitados, de um lado, e 05 confundir—se em uma so massa indiscriminada de pobreza dependente.
idosos,‘enfermos e criangas, de outro. Seria o mesmo que um distrito, C-riou-se o oposto de um processo de diferenciagfio: o albergue fundiu-
hoje em dia, tentar tratar sozinho do seguro-desemprego, on se esse se com o asilo de indigentes e este mesmo tendia a desaparecer cada vez
seguro envolvesse ainda a-rresponsabilidade com os velhos. Em conse- mais. A paréq‘uia tomou-se novamente a unidade solitaria e final nesta
qiiéncia,~sOmente-.nos curtQSsperiodOS Lem .quea adrninistragao da‘Poor verdadeira obra-prima de degeneragao institucional. ‘
Law
foi ao mesmo-tempo hacional e diferenciada é que ela pode ser mais A supremacia do proprietario de terras e do péroco foi até aumen-
outmenos'satisfatéria. Esse periodo ocorreu de '1590 a 1 6 4 0 , sob tada em conseqfiéncia da Speenhamland, se é que tal coisa era possivel. 1119
A “benevoléncia indistingufvel do poder” da qual se queixavam os ins— to apenas a comida, ou eram postos em leilao na “praga” da aldeia por
petores dos pobres, assumia a sua melhor forma naquele papel de alguns pences por dia. Quanto valia essa espécie de trabalho deprimente
“socialismo conservador” que juizes d e paz se arrogavam para manejar é uma outra questao. Para coroar tudo isto, concedia-se as vezes aos
o poder benevolente, enquanto o impacto dos impostos recai’a sobre a pobres um abono para aluguel e o proprietario inescrupuloso das casas
classe média rural. Grand'e parte da classe dos pequenos proprietérios ainda ganhava mais dinheiro sublocando habitagoes insalubres. As auto-
rurais ha muito se extinguira nas vicissitudes da Revolugao Agricola e ridades da aldeia fechavam os olhos a isto, desde que os impostos sobre
05 rcStantes foreiros vitalicios e posseiros tendiam a confundir-se com os galpoes continuassem a ser pagos. E evidente que uma tal rnistura de
os aldeées e 05 pequen05 proprietarios em- um unico estrato social aos interesses subverteria qualquer senso de responsabilidade financeira e
olhos do potentado do campo. Ele nao distinguia muito bém entre pes- encorajaria todos os tipos de corrupcao mesquinha.
soas necessitadas e pessoas que precisavam de ajuda num dado Todavia, num sentido mais amplo, a Speenhamland compensou;
momento. Do alto da perspectiva através da qual observava a luta pela Ela comegou c o m abonos salariais, beneficiando ostensivamente os
Vida na aldeia, parecia nao haver qualquer linha de demarcagao que empregados mas, na verdade utilizando fundos publicos para subsidiar
separasse os pobres dos miseraveis. Muitas vezes 616 SC surpreendia ao os empregadores. De fato, o resultado principal do sistema de abonos
tomar conhecimento de que um pequeno fazendeiro tinha que se valer foi baixar os salarios a m’vel inferior ao de subsisténcia. Nas areas mais
“da taxa de impostos” num ano mau, apés ter sido arruinado pelo profundamente pauperizadas, os fazendeiros nao empregavam os tra-
nivel desastroso desses impostos. Tais casos nao eram freqiientes, é ver- balhadores agricolas que ainda possufam um pedago de terra, “porque
dade, mas a prépria possibilidade de ocorrerem enfatizava o fato de quem dispunha de alguma propriedade nao podia recorrer a assisténcia
que muitos contribuintes de impostos eram pobres. De um modo geral, paroquial e o salario-padrao era tao baixo que, sem alguma espécie de
a relagao entre o 'contribuinte de impostos e o indigente era algo seme- auxilio, ele era insuficiente para um homem casado”. Em‘conseqfién-
lhante a existente entre o empregado e o desempregado em nossa cia, s o encontravam emprego em algumas areas aquelas pessoas que ja
época, com os Varios esquemas de seguro social que fazem incidir viviam a custa d o s impostos; aqueles que tentavam manter—se sem
sobre aquele que esta empregado o encargo de manter o desempregado recorrer aos impostos e'ganhar a Vida por seu préprio esforgo rara-
temporério. O contribuinte tipico, porém, nao podia apelar para a mente conseguiam emprego.
assisténcia aos pobres e o trabalhador agricola tipico nao pagava No campo como um todo, porém, a grande maioria devia ser ainda
impostos. Politicamente, a influéncia do proprietario rural sobre os desse ultimo tipo, e 05 empregadores, como classe, tinham um lucro
pobres da aldeia se fortaleceu com a Speenhamland, enquanto a da extra em relagao a cada um deles uma vez que se beneficiavam do baixo
classe média rural se enfraqueceu. nivel dos salarios sem ter que compensa-los com os impostos. A longo
O aspecto mais extravagante do sistema foi a sua economia propria- prazo, um sistema tao antieconémico como esse teria que afetar a pro-
mente dita. A pergunta “Quem pagou pela Speenhamland?” ficou prati- dutividade d o trabalho e baixar os salarios-padrao e, até mesmo, a
camente sem resposta. Diretamente, a carga maior recaiu sobre 05 con- “tabela” estabelecida pelos magistrados em beneficio dos pobres. Na
tribuintes de impostos, sem duvida. Os fazendeiros, porém, foram par— década de 1820 a tabela de pao jé vinha sendo diminuida em varios
cialmente compensados pelos baixos salarios que pagavam a seus traba— condados e 05 miseraveis proventos dos pobres eram ainda mais reduzi-
lhadores — um resultado direto do sistema Speenhamland. Além disso, o dos. Entre 1815 e 1830 a tabela Speenhamland, praticamente a mesma
fazendeiro conseguia abater sua parte dos impostos empregando um em todo o pais, foi reduzida em quase um tergo (e essa redugao também
aldeao que, de outra forma, passaria a depender desses impostos. A con— foi de ambito geral). Clapham duvidava que fosse tao pesado o encargo
seqfiente superlotagao da cozinha e das terras do fazendeiro com traba- total dos impostos, como queriam fazer acreditar com a subita explosao
lhadores desnecessarios, e alguns deles pouco diligentes, tinha que figu— de reclamagoes. E 616 tinha razao. Embora a aumento dos impostos
rar Ina conta de débitos. Saia muito mais barato'o trabalho daqu'eles que fosse espetacular e tivesse o efeito de uma calamidade em algumas
ja éstavam por conta dos impostos. Eles tinham que trabalhar, muitas regioes, parece mais provével que a raiz do problema nao fosse tanto o
12a vezes, “como jornaleiros”, em lugares alternados, tendo como pagamen— peso desse encargo como o efeito econémico que os abonos salariais 121
w
exerciam sobre a produtividade do trabalho. O sul da Inglaterra, o mais sia respeitavel e gente da cidade, que poderiam ter servido de meio
diretarnente atingido, n50 chegava a despender 3,3% da sua renda com assimilador para o trabalhador rude que labutava nos primitives. moi-
a taxa dos pobres — um 6nus bastante toleravel, pensava Clapham, em nhos - atraidos por salarios altos ou expulsos da terra por espertos cer-
‘vista do fato de que parte consideravel desta soma “deveria reverter aos cadores. A cidade industrial, tanto no Midlands como no North West,
pobres, sob a forma de salarios”. De fato, os impostos totais decresciam era um deserto cultural; suas favelas apenas refletiam sua falta de tradi-
rapidamente na década de 1830 e seu peso relativo deve ter diminuido gao e de respeito civico pr6prio. Mergulhado nesse lamagal desolador
ainda mais rapidamente em vista do crescente bem-estar nacionaL Em de miséria, o camponés imigrante, ou até mesmo o antigo pequeno
proprieuirio rural ou o foreiro, logo se transformava em um indefinivcl
aproximadani‘ente oito milh6es de libras; elas decresceram continua- animal do pantano. Niovera porque se lhe pagava muito pouco, ou até
mente até atingirem menos de seis milh6es em 1826, enquanto a renda mesmo porque trabalhasse muitas horas — emb‘Ora ambas as coisas
nacional se elevava rapidamente. .E, no entanto, a critica a Speenham- ocorressem as vezes, e em excesso — mas sim o fato de ele viver agora
land se tornava cada vez mais violenta, parece que em virtude-do fato. em condig6es fisicas que negavam a pr6pria forma humana da vida. Os
de que a desumanizagio das massas comegara a paralisar a vida nacional negros das florestas africanas que se viam enjaulados, lutando pelo ar
e principalmente a restringir as energias da pr6priaind1’1stria. nos por6es dos navios negreiros, deviam sentir o mesmo que essas pes-
soas. E, no entanto, nada disto era irremediavel. Enquanto um homem
Speenhamland precipitou uma catastrofe social. Acostumamo-nos a tinha uma posigao a qual .se apegar, um padrao restabelecido por seus
encarar as sombrias apresentagoes do capitalismo primitivo como “dra- parentes ou companheiros, ele podia lutar por eles e readquirir sua
malh6es”. Nao ha justificativa para isto. O quadro pintado por Harriet alma. Mas no caso do trabalhador, isto so podia ocorrer de uma {mica
Martineau, a fervorosa apostola da Poor Law Reform, coincide com o forma: fazendo de si mesmo o membro de uma nova classe. Se nao
dos- propagandistascartistas que dirigiam o clamor contra a mesma Poor pudesse ganhar a vida com seu pr6prio trabalho, ele nao era um traba-
Law Reform. Os fatos apresentados no famoso Report of the Commision lhador mas um indigente. Reduzi-lo artificialmente a uma tal condigao
on the Poor Law (Relatério da Comisséo sobre a Lei dos Pobres — 1834), foi a suprema abominagao da Speenhamland. Essa lei, de um humani—
defendendo a aboligao imediata da Speenhamland Law, poderiam ter. mrismo ambig'uo, impediu os trabalhadores de se constituirem numa
servido de material para a campanha de Dickens contra a politica da classe econ6mica, privando-os, assim, do 1’1nico meio de enfrenm o
Cornissao. Nem Charles Kingsley, nem Friedrich Engels, nem Blake ou destino que lhes fora reservado no moinho economico.
Carlyle, se .enganaram ao acreditar-que a pr6pria imagem do homem Speenhamland foi um instrumento infal1vel de desmoralizagao
fora ,maculadapor alguma terrivel catastrofe. Mais impressionante popular. Se uma sociedade humana é uma maquina de atuagao pr6pria
ainda do que as explos6es de dor e de. ira que poetas e filantropos para manter os padr6es sobre os quais é construida, a Speenhamland foi
expressaram, foi o gélido siléncio de Malthus e Ricardo que ignoraram um automato para a destruigéo dos padr6es sobre os quais qualquer
o ,cenério no qual nasceu a sua pr6pria filosofia de danagao secular. tipo de sociedade poderia se basear'. Ela nao so colocou como prémio a
Nao ha dfivida de que a desarticulagéo social causada pela maquina evasao do. trabalho e a desculpa da inadequagao, como ainda aumentou
e pelas circunstancias sob as quais o homem estava agora c'ondenado a a atragao do pauperismo, precisamente numa conjuntura em que o
servi-la teve muitos resultados que eram inevitaveis. Faltava a civilizaJ homem lumva para fugir a sina da miséria. Desde que um homem fosse
gio rural da Inglaterra aqueles arredores urbanos a partir dos quais para um asilo de indigentes (e acabava indo para la se ele e sua familia
cresceram, mais tarde, as cidades industriais do continente. 2 Nas novas. dependessem dos impostos durante algum tempo)'a armadilha se fecha-
cidades nao havia uma cla3se média ;-urbanaestabelecida, nem aqueles va e era raro ele poder-escapar. A decéncia e o auto-respeito inculcadOs
nucleosgde artesaos e profissionais formados pdr uma pequena bur-gues- durante séculos de vida organizada desapareciam rapidamente napro-
miscuidade do asilo de indigentes, onde um homem tinha que ser cuida-
doso para r1510 0 julgarem em melhor situagao que seu vizinho, pois, do
contrario, ele seria forgado a sair a caga de trabalho em'vez de “vaga- 123
dos seus interesses economicos, eles se viam obrigados a manter nego-
bundear” no abrigo habitual. “O imposto dos pobres se tornara uma
cios”. Lorde Eldon, se queixava ela, tal como outros que deveriam
espoliacio pi’iblica... Para conseguir a sua parte os mais brutos bajula—
compreender melhor, “incluia sob apenas u m a cabega (‘as classes
vam a administracao, 0s dissolutos exibiam seus bastardos, que precisa-
baixas’) todos os que estavam abaixo dos banqueiros mais ricos — fabri-
varn ser alimentados, os preguigosos cruzavam os bragos e esperavam.
cantes, comerciantes, artesaos, trabalhadores e indigentes..."’.4 Mas,
Rapazes e mogas ignorantes casavam-se contando com ele; cacadores
insistia ela com ardor, era da diferenga entre essas duas filtimas catego—
furtivos, ladroes e prostitutas extorquiam-no através da intimidagao; jui-
rias que dependia o futuro da sociedade. “Excetopela distincao entre
ze's do campo esbanjavam-no em busca de popularidade e os guardiaes
soberano e sfidito, nao existe na Inglaterra uma diferenga social tao . .
por conveméncia. Esta era a forma de gerir o fundo...” O fazendeiro,
grande como a que ocorre entre o trabalhador indepEndente e o indil
em vez de dispor de um ni’imero satisfatério de trabalhadores para culti-
gente, e é ao mesmo tempo sinal de ignorancia, de imoralidade e de
var sua terra — trabalhadores pagos por ele mesmo -, era forgado a man-
falta de visao politica confundir as duas”, escreveu ela. 1::claro que nao
ter 0 dobro da quantidade e os salarios eram parcialmente pagos com os
se tratava da constatagéo de um fato: a diferenga entre os dois estratos
impostos. Esses homens, empregados por ele através de compulsao,
deixara de existir sob a Speenhamland. Tratava-se mais de uma afirma-
Aficavam
fora de seu controle — trabalhavam ou nao, conforme lhes apra-
cao politica, baseada numa antecipagao profética. A politica era a dos
zia — diminuiam a qualidade da sua terra e impediam—no de empregar
Poor Laws Reform Commissioners (Comissarios da Reforma da Lei
homens melhores, que trabalhariam duramente pela sua independéncia.
dos Pobres); a profecia‘ visava a um mercado livre e detrabalho compe-
Esses homens melhores acabavam se perdendo entre os piores; o aldeao
titivo e a conseqiiente emergéncia de um proletariado industrial.
contribuinte de impostos, apés uma luta v5, terminava procurando a
A abolicao da Speenhamland representou o nascimento‘ real da
assisténcia na mesa paga...” Eis ai Harriet Martineau.3
moderna classe t'rabalhadora, cujo imediato interesse proprio destinou—a
Muitos liberais de filtima hora, constrangidos, negligenciaram de .
a tornar-se a protetora da sociedade contra os perigos intrinsecos de
uma forma ingrata, a meméria desta sincera apostola do seu credo. E
uma civilizacao de maquinas. O que quer que o futuro lhes reservas'se, a
no entanto, mesmo os seus exageros, que eles agora temiam, coloca-
classe trabalhadora e a economia de mercado surgiram na histéria a0
vam os enfoques no lugar certo. Ela mesma pertencia aquela classe
mesmo tempo. 0 horror 51 assisténcia pi’iblica, a desconfianga na agao
média, sempre em luta, cuja pobreza bem educada a tornava ainda
do estado, a insisténcia na respeitabilidade e na autoconfianca permane-
mais sensivel as complexidades morais da Poor Law. Ela compreendia e
ceram como caracteristicas do trabalhador briténico durante geracoes.
expressava claramente a necessidade que a sociedade tinha de uma
independent es”. Eles eram os
A revogagao da Speenhamland foi conseqiiéncia do trabalho de
nova classe, uma classe de “trabalhadores
uma nova classe que entrava no cenario historico — as classes médias da
heréis dos seus sonhos e ela fez um deles — um trabalhador cronica-
Inglaterra. A classe dos proprietarios rurais nao podia fazer o trabalho
mente desempregado, que se recusava a apelar para a assisténcia social
que essas classes se destinavam a executar: a transformagao da socieda-
- dizer com orgulho a um colega que se decidira a depender dos de em uma economia de mercadou-Dezenas de leis foram abolidas e
impostos: “Aqui estou eu, e desafio qualquer um a desprezar-me. Eu
outras tantas promulgadas antes que a transformagao tomasse o seu
poderia deixar meus filhos no meio da nave da igreja e desafiar qual-
rumo. A Parliamentary Reform Bill (Lei Parlamentar da Reforma), de
quer um a zombar deles quanto ao lugar que ocupam na sociedade.
1832, retirou os direitos politicos dos burgos infectos e deu poder, de
Pode haver alguns mais sabios, outros muitos mais ricos, mas nenhum
uma vezpor todas, aos membros da Camara dos Comuns. O primeiro
mais honrado”. Os grandes homens da classe dominante ainda estavam
grande ato da reforma foi a aboligao da Speenhamland. Agora que ava-
longe de compreender a necessidade dessa nova classe. A senhorita
liamos o grau em que seus métodos paternalistas se imiscuiram com a
Martineau apontou “o erro vulgar da aristocracia em supor existir ape-
Vida no campo,' compreenderemos melhOr por que até mesmo os
nas uma espécie de sociedade abaixo da rica com a qual, em fungao
era a sobrevivéncia da natureza na s0ciedade; a fome era a sua sangao raiam o absurdo, sob o pretexto de cumprir aquilo que é impraticavel a
.fisica. “Se a forga da sancao fisica é suficiente, seria supérfluo o empre— propria natureza e constituicao do mundo”. Deixando os indigentes a
go da sancao politica”.4 86 o que se precisava era dar tratamento “cien— mercé dos ricos, quem poderia duvidar que “a (mica dificuldade” seria
tifico e economico” aos pobres.5 Bentham se opunha fortemente a restringir a impetuosidade da benevoléncia desses filtimos? E por acaso
Poor Law Bill, de Pitt, que resultaria numa renovacao da Speenhamland, os sentimentos de caridade nao sao mais nobres do que aqueles que se
uma vez que ela previa tanto assisténcia social externa como os abonos originam de obrigagées legais inflexiveis? “Pode haver coisa mais bela
salariais. E todavia Bentham, diferente de seus seguidores, nao era na na natureza do que a suave complacéncia da benevolencia?” Alegava
época nem. um liberal econémico rigido, nem um democrata. Suas - ele, contrastando-a com a fria impessoalidade da “caridade paroquial”
Industry-H ouses eram um pesadelo de administra gao utilitarista que n50 conhecia as cenas da “expressao natural de uma gratidao sin-
minunciosa, reforcada por todo o engodo da diregio cientifica. Ele cera por favOres inesperados...” “Quando o pobre é obrigado a cultivar
afirmava que elas seriam sempre necessarias pois a comunidade nao a amizade do rico, o rico nunca sentira a inclinagao de procurar aliviar
podia se desinteressar completamente pelo destino dos indigentes. a necessidade do pobre...” Quem quer que tenha lido esse tocante
Bentham acreditava que a probreza era parte da opuléncia. “No estégio retrato da Vida intima das Duas Nagoes jamais podera duvidar de que,
mais elevado da prosperidade social”, dizia ele, “a grande massa dos inconscientemente, foi a partir da ilha das cabras e dos caes que a
cidadaos provavelmente dispora de poucos outros recursos além do Inglaterra vitoriana aprendeu a sua educacéo sentimental.
seu' trabalho diario e, conseqiientemente, estara sempre a um passo da Edmund Burke foi um homem de estatura diferente. Onde homens
indigéncia...”. Dai recomendar ele “organizar-se uma contribuigao como Townsend fracassaram em pequena escala, ele fracassou em
regular para as necessidades da indigéncia”, embora, com isso, “a grande estilo. Seu génio transformou o fato brutal numa tragédia e
necessidade decresga, em teoria, e ati'nja pormnto a industria”. Esse investiu o sentimentalismo de um halo de misticismo. “Quando fingi-
acréscimo ele o _fazia com pesar uma vez que, do ponto de vism utilita- mos lamentar como pobres aqueles que precisavam trabalhar, do con-
rista, a tarefa do governo era aurnentar a necessidade a fim de tornar trario o mundo nao poderia existir, estamos brincando com a prépria
efetiva a sangéo fisica da fome.5 condigao da humanidade.” Isto era sem duvida melhor que a indiferen-
A aceitagao da' quase-indigéncia da massa dos cidadaos como o ca grosseira, as lamentagées vazias ou a lamfiria de um enaltecimento
prego a ser pago por um estégio mais elevado de prosperidade se fazia indulgente. Todavia a virilidade dessa atitude realista foi empanada
acompanhar de atitudes humanas muito diferentes. Townsend corrigia pela complacéncia sutil com a qual ele enfocava as cenas da pompa
seu equilibrio emocional inclinando-se para o preconceito e o senti- aristocratica. O resultado foi afastar Herodes mas também'subestimar
mentalismo . A imprevidén cia do pobre era uma lei da natureza, do as oportunidades de uma reforma oportuna. Pode-se supor que, se
contrario o trabalho servil, sordido e ignobil, nao poderia ser feito. E o Burke vivesse, a Reform Bill parlamentar de 1832, que colocou urn
que aconteceria com a patria se nao pudéssemos confiar nos pobres? ponto final no ancien régime, so seria aprovada ao preco de uma revo-
“Se néo fosse a angfistia e-a probreza que se impéem sobre as classes lucao sangrenta evitavel. E Burke poderia ainda ter contraposto, ja que
baixas do povo, como eles iriam enfrentar os horrores que os aguar- as massas estavam sendo condenadas a penar na miséria pelas leis da
dam nos oceanos tempestuosos ou nos campos de batalha?” Mas esta economia politica, o que era a idéia da igualdade senao uma isca cruel
demonstracao de um éspero patriotismo ainda deixava lugar para sen- para atrair a humanidade para a autodestruicao?
timentos mais ternos. E claro que a assisténcia social aos pobres deveria Bentham nao possuia nem a complacéncia insinuante d e um
ser abolida imediatamente. As Poor Laws “provém de principios que Townsend nem o historicismo muito precipitado de um Burke. Pelo
contrario, para este adepto da razao e da reforma, o reino da lei social
recentemente descoberto surgia como a cobicada terra de ninguém da
experiéncia utilitaria. Como Burke, ele se recusava a aceitar o determi—
4 Bentham, 1., Principles of Civil Code, Cap. 4 (Bowring, voL I, p. 333).
5 Bentham, ];, Observation on the Poor Bill,1797.
nismo zoolégico e também ele rejeitava a ascendéncia do economico
1 4 4 6 Bentham,]., Principles of Civil Code, p..314.- sobre o politico propriamente dito. Embora autor de um Essay on 145
up“?
‘5:--". ,--.
Usury e de um Manual of Political Economy, ele era um amador nessa qual era a tendéncia da balanga do comércio exterior ou que classe da
ciéncia e deixou até mesmo de proporcionar a {mica grande contribui- populagio crescia em relacao it outta. Era apenas tema de conjecturas,
cao que o utilitarismo poderia fazer a economia, isto é, a descoberta de freqiientemente, saber se a riqueza do pais aumentava ou diminuia, de
. que o valor provinha da utilidade. Ao invés disso, ele se deixou induzir onde vinham os pobres, qual a situacao do crédito, dos bancos ou dos
pela psicologia associacionista a dar rédeas as suas ilimitadas faculdades lucros. O que a .“ciéncia” significava, em primeiro lugar, era apenas
irnaginativas como engenheiro social. Para Bentham, o laissez-fizire sig- uma abordagem empirica em vez de uma puramente especulativa ou
nificava apenas u m outro artificio n a mecanica social. A invengéo antiquada em relacao a assuntos como esses. Como os interesses préti—
social, e 1150 a técnica, era a fonte intelectual da Revolucao Industrial. COS cram naturalmente mais 1mportantes, COLIbC a ciencia SllgCITlE- como
A contribuigao decisiva das ciéncias naturals a engenharia so foi feita regular 6 organizar o vasto reino dos novos fenomenos.
um século mais tarde, quando 1a terminara, ha muito, a Revolugio Ja vimo's como os Santos se sentiam intrigados pela natureza da
Industrial. Para 0 construtor pratico de uma ponte ou de um canal, pobreza e a forma engenhosa das suas experiéncias com‘ tipos de auto-
para o desenhista de méquinas e motores, o conhecimento das leis ajuda; como a nocao do lucro era proclamada a cura para os mais
gerais da natureza era inteiramente inutil antes de terem sido desenvol- diversos males; como ninguém podia dizer se 0 pauperismo era um
vidas as novas ciéncias aplicadas a mecanica e a quimica. Telford, fun- sinal bom ou mau; como as diregées cientificas dos albergues ficavam
dador e presidente vitalicio da Sociedade dos Engenheiros Civis, recu- atonitas pot se sentirem incapazes de ganhar dinheiro com os pobres;
3—5:»
sa-va receber como membros desse orgao as candidates que haviam como Owen fez fortuna dirigindo suas fabricas na linha de uma filan-
cstudado fisica e, segundo Sir David Brewster, ele mesmo nunca se tropia consciente; como uma série de outras experiéncias, que pare-
familiarizou com os elementos da geometria. ciam envolver a mesma técnica de auto-ajuda esclarecida, fracassaram
Os triunfos da ciéncia natural haviam sido teéricos no verdadeiro redondamente, causando imensa perplexidade a seus autores filantro-
sentido da palavra, e nao podiam se comparar, em importancia prética, picos. Se ampliassemos nosso campo de agao do pauperismo para o
aos das ciéncias sociais da época. Deveu-se a essas filtimas o ptestigio crédito, para a moeda sonante, monopélios, poupanga, seguro, investi-
da ciéncia em oposicao a rotina e a tradigao e, per mais incrivel que mento, financa pfiblica ou, ainda, para as prisées, educacao e loterias,
possa parecer a nossa geragao, o prestigio da ciéncia natural cresceu poderi’amos facilmente acrescentar outros tipos de empreendimento
muito através da sua ligacao com as ciéncias humanas. A descoberta da em relacao a cada um deles.
economia foi uma revelagéo assombrosa, que apressou em muito a Este periodo chegou ao seu final, aproximadamente, com a morte
transformagao da sociedade e o estabelecimento de um sistema de mer— de Bentham.7 Desde a década de 1840 os planejadores de negécios 1'51
cado, enquanto as méquinas decisivas haviam sido invencées de arte— cram sirnplesmente organizadores de empreendimentos definidos, e
saos nao-educados, alguns dos quais mal sabiam ler ou escrever. Era 1150 mais pretensos descobridores de novas aplicacées de principios
pottanto bastante justo e apropriado considerar as ciéncias sociais, e universais de mutualidade, confianca, riscos e outros elementos da
1150 as naturais, como mentores intelectuais da revolucéo mecanim que empresa humana. Doravante, osazhomens de negécios imaginavam
sujeitou os poderes da natureza ao homem. saber exatamente as formas que suas atividades iriam tomar — raramen-
O préprio Bentham estava convencido de que havia descoberto te inquiriam sobre a natureza do dinheiro antes de fundar um banco.
uma nova ciéncia social, a da moral e da legislacao. Ela se fundamenta- Os cngenheiros sociais so cram encontrados agora entre os excéntricos
ria no principio da utilidade, que permitia o calculo exato com a ajuda ou os embusteiros, e muitas vezes iam parar atras das grades. A torren-
da psicologia associacionista. Precisamente porque se tornou efetiva te de sistemas industriais c bancarios que havia inundado as bolsas de
dentro da circunferéncia dos assuntos humanos, a ciéncia significava, valores, desde Paterson 6 John Law até os Pereires, com projetos d e
invariavelrnente, na Inglatetra do século XVIII, uma arte prética basea- sectarios religiosos, sociais e académicos, tornara-se agora um simples
da no. conhecimento empirico. Era, de fato, irresistivel a necessidade de
uma :tal atitude pragmatica. Como nao dispunham dc estatl’stims, mui-
145 tas vezes nao era poss1vel dizer se a populagéo aumentava ou diminuia, 7 1832. 147
filete. As idéias analiticas ja nao tinham interesse para os que se envol— estava em guerra com a Franga e o terreur fez da palavra “democracia”
viam na rotina dos negocios. A exploragao da sociedade estava termi- o sinonimo de revolugao social. 0 movimento democratico na Ingla-
nada, ou pelo menos assim se pensava, e nao havia mais espacos em terra, porém, que se inaugurou com o serméo d o D r . Price, “Old
branco no mapa humano. Durante um século seria impossivel imaginar Jewry”(1789), e alcangou o seu cume literario com The Rights of Man
um homem do tipo de Bentham. Uma vez dominante a organizagao de (1791), de Paine, se restringia ao campo politico. O descontentamento
mercado da vida industrial, todas as outras areas institucionais foram dos trabalhadores pobres n50 encontrava qualquer ressonfincia nessa
subordinadas a esse padrao — o génio pelos artefatos sociais nao encon- democracia. A questao da Poor Law quase nao era mencionada nos pan-
trava mais lugar. fletos.que levantaram a campanha pelo sufrégiouniversal e por parla-
O Panopticon de Bentham n50 era apenas um “moinho que trans— mentos anuais. No enmhto, foi na esfera da Poor Law que surgiu 0 con-
formava vagabundos em honestos e preguigosos em diligentes”;3 ele tramovimento decisivo dos proprietarios fundiarios, sob. a forma da
tinha também que pagar dividendos, como os do Banco da Inglaterra. Speenhamland. A paréquia se escondeu por tras de uma muralha artifi-
Bentham patrocinava projetos tao diferentes como um melhor sistema cial, sob cuja protegao ela sobreviveu a Waterloo por mais de vinte anos.
de patentes, companhias de responsabilidade limitada, um censo dece— Embora as maléficas conseqiiéncias dos terriveis atos de repressao politi-
nal da populacao, a criagio de um Ministério da Safide, letras que ren- ca da década de 1790 pudessem ser logo superadas, se entregues a si
diam' juros para tornar a poupanga geral, um frigorifico para frutas e mesmo, o processo degenerativo iniciado pela Speenhamland deixou
legumes, fabricas de armamentos apoiadas em novos principios técnicos sua marca indelével no pais. O prolongamento de quarenta anos da '
e que podiam funcionar tanto pelo trabalho dos presos como, alternati— classe dos proprietérios rurais que ela produziu foi conseguido ao prego
vamente, dos pobres assistidos socialmente; uma Chrestomathic Day do sacrificio da virilidade do povo comum. “Quando as classes proprie-
School, para ensinar o utilitarismo as classes médias altas; um registro tarias reclamavam que os impostos para os pobres eram cada vez mais
,. geral da prosperidade real; um sistema de contabilidade publica; refor- pesados”, diz Mantoux, “elas esqueciam o fato de que estes impostos
mas da instrucao publica; registros uniformes; libertar-se da usura; p eram, na verdade, um seguro contra a revolugéo, enquanto a classe tra-
1 abandono das colonias; o uso de anticoncepcionais para diminuir o nas-
cimento de pobres; a jungao dos oceanos Atlantico e Pacifico através de
balhadora, quando aceitava o minguado abono que lhe era concedido,
nao compreendia que ele era conseguido, em parte, pela reduca‘io dos
uma sociedade anonima e outros. Alguns desses projetos abrigavam seus proventos legitimos.-O resultado inevitével desses ‘abonos’ era
uma quantidade enorme de pequenos progressos como, por exemplo, mantcr os salarios no seu nivel mais infimo, e até mesmo forgé—los abai—
as' Industry-Houses, um coniunto de inovagées para a melhoria e a xo do limite correspondente as necessidades minimas dos assalariados.
exploragao do homem corn base nas conquistas da psicologia associa- O fazendeiro ou o fabricante contava com a paréquia para contrabalan-
cionista. Enquanto Townsend e Burke ligavam o laissez—faire ao quietis— car a diferenca entre o que ele pagava aos homens e a importéncia sufi-
mo legislativo, Bentham 1150 via nele qualquer obstaculo as amplitudes ciente para sobreviverem. Por que deveriam incorrer em mais despesas
da reforma. se estas eram tao facilmente cobertas p’elo conjunto de contribuintes de
Antes de chegar a resposta que Malthus deu a Godwin, em 1798, e impostos? Por outro lado, aqueles que recebiam assisténcia social da
com a qual a economia classica propriamente dita se inicia, voltemos its paréquia estavam dispostos a trabalhar por um salario mais baixo, o que
recordagoes. 0 Political justice, de Godwin, foi escrito em oposigéo as tornava a 'competicio impossivel para ‘os que n50 recebiam ajuda paro~
Reflections on the French Revolution (1790), de Burke. Ele surgiu justa- quial. O resultado paradoxal a que se chegou foi que o assim chamado
mente antes que comegasse a onda de repressao, com a suspensao do ‘imposto dos pobres’ significava uma economia para os empregados e
habeas-corpus (1794) e a perseguigao as democraticas Correspondence uma perda para o trabalhador diligente que nao contava com a caridade
Societies (Sociedades de Correspondentes). Nessa ocasiéio, a Inglaterra pfiblica. Assim, a interposigao impiedosa de interesses transformou uma
lei caridosa num grilhao de ferro”.9
m . '8Stephen,Sir L,The English Utilitarians,1900. 9 Mantoux, P. L., The Industrial Revolution in the Eighteenth Century, 1928. 149
Calculamos que foi justamente nesse grilliao que se apoiou a nova no, e teve que set deduzida a partir dos fatos naturalistas da fertilida-
lei de salarios e de populagao. O proprio Malthu s, como Burke e de do homem e do solo, conforme apresentadas a0 mundo pela lei
Bentham, se opunha violentamente a Speenhamland e defendia a revo- de populacao de Malthus, em combinacao com a lei dos rendimen-
' gagao completa da Poor Law. Nenhu m deles poderia prever que a tos diminuidos. O elemento naturalista nos fundamentos da econo-
Speenhamland forgaria 0s salarios dos trabalhadores ate 0 nivel da sub- mia ortodoxa foi o resultado de condigoes criadas basicamente pela
sisténcia, e mesmo abaixo. Pelo contrario, eles esperavam que ela ele- Speenhamland.
vasse os salarios, ou pelo menos os mantivesse artificialmente, 0 due Deduz-se dai que nem Ricardo nem Malthus entenderam o funcio—
poderia ter ocorrido se nao fossem promulgadasas Anti-Combination .narr-iento do sistema capitalista. Nao foi senao um século apés a publi-
Laws. Esta falsa previsao ajuda a explicar por que eles nao consegmram cacao de Riqueza dds Nagées que se compreendeu claramente que, sob
ligar o baixo nivel dos salarios rurais a Speenhamland, que for a sua um sistema de mercado, os fatores de produgao participavam do pro-
causa verdadeira, e o viam como prova inconteste do funcronamento duto e, como o produto aumentava, a sua participagio absoluta tam-
a
da assim chamad a lei de ferro dos salarios. Devemos voltar, agora, bém deveria aumentar.10 Embora Adam Smith seguisse o falso ponto
este fundamento da nova ciéncia economical. dc partida de Locke sobre as origens do valor do trabalho, seu senso de
O naturalismo de Townsend nao foi, certamente, a {mica base pos- realismouimpediu—o de ser incongruente. Dai ter ele opinioes confusas
sivel da nova ciéncia da economia politica. A existéncia de uma socie- sobre os elementos do prego, embora insistindo, com muita justica, que
dade economica era manifesta na regularidade dos pregos, e a estabili-l nenhuma sociedade pode progredir se a grande maioria de seus mem- '
dade dos rendimentos dependia desses precos. Em conseqiiéncia, a lei bros é pobre e miseravel. Entretanto, o que nos parece hoje um truis-
econémica poderia perfeitamente se basear diretamente nos pregos. O mo era, na sua época, um paradoxo. A propria opiniao de Smith era
que induziu os economistas ortodoxos a procurar sens fundamentos no que a abundancia universal nao poderia deixar de fluir para o povo;
naturalismo foi a miséria, de outro modo inexplicavel, da grande massa era impossivel que a sociedade se tornasse cada vez mais rica e o povo
de produtores que, como sabemos hoje, jamais deveria ter sido subtrai- cada vez mais pobre. Infelizmente, os fatos n50 parecem té-lo compro-
da as leis do antigo mercado. Conforme apareciam aos contempora- vado por um longo tempo. Como os teéricos tinham que justificar os
neos, os fatos eram estes, em resumo: em tempos passados o povo tra- fatos, Ricardo argumentava que, quanto mais a sociedade progredisse,
balhado r vivia praticam ente a beira da indigén cia (pelo menos se se maior seria a dificuldade de encontrar alimentos, e mais ricos se torna-
. levava em conta as mudangas nos niveis dos padroes costumeiros). A riam os senhores de terra, explorando simultaneamente os capitalistas
introdugao da maquina certamente nao concorrera para que eles se ele- e os trabalhadores; que os interesses dos capitalistas e dos trabalhado-
vassem acima do nivel de subsistencia e agora, que a sociedade econo- res estavam em oposicao fatal uns com ‘os outros e que essa oposigao
mica finalmente tomava forma, era um fato indubitavel que, década era inefetiva, em filtima instancia, porque os salérios dos trabalhadores
apés década, o nivel material da existéncia do trabalhador pobre nao jamais poderiam elevar-se acima do nivel de subsisténCia e, de qualquer
melhorava em nada, se 6 que nao se tornava pior. forma, os lucros deveriam estacionaii'.
Se jamais houve ocasiao em que a superabundante evidéncia dos Em algum sentido remoto, todas essas afirmativas continham um
fatos parecia apontar numa direcao, isto ocorreu , com certeza, no caso elemento de verdade mas, como explicacao do capitalismo, nada pode—
da lei férrea dos salarios. Esta afirmava que o nivel de mera subsisten- ria ser mais irreal e ininteligivel. Todavia, os préprios fatos se forma-
cia em que viviam os trabalhadores resultava de uma lei que tendia a ram em padroes contraditérios e, ainda hoje, encontramos dificuldade
manter. seus salarios tao baixos que, para eles, nao havia outro padrao em desenreda—los. Nao é de admirar, pois, que o deus ex mac/aim da
possivel. E claro que esta semelhanca nao era apenas enganadora mas propagacao do animal e da planta tivesse que ser invocado num siste-
implicava ainda umabsu rdo, do ponto de vista (16 qualquer teoria soli- ma cientifico cujos autores alegavam deduzir as leis da produgao e da
da de pregos e rendime ntos sob o capitalismo. Entretanto,~em {llama
analise, foi por causa dessa falsa'aparéncia que a lei dos salarios 1150
1‘50 pode se basear em qualquer regra racional de comportamento huma- 10 Cannan, E., A Review of Economic 'Ibeoty, 1930. 151
distribuigao, 11510 a partir do comportamcnto_das plantas ou dos ani- natureza. Como os scrcs humanos sao destrui’dos por outras causas
mais, mas dos homcns. além da inanigao - guerra, pcstc c vicio — essas causas sc cquipara vam
Vamos cxaminar, rcsumidamcntc, as conscqfiéncias do fato dc que as forgas dcstrutivas da natureza. Num ambito cstrito, isto cnvolvia
os fundamentos da tcoria economica foram estabelecidos durante o uma contradigao, pois tornava as forgas sociais responsavcis pclo alcan-
periodo Specnhamland, o que fez parcccr como economia competitiva cc do equilibrio cxigido pcla natureza. A csta critica, porém, Malthus
dc mercado aquilo que era, na verdade, um capitalismo sem um merca- podcria tcr respondido que, na falta de guerras c vicios — isto é, numa
do de trabalho. comun idade virtuos a — tcriam que passar fomc tantas pcssoa
s quanta s
Primciro,ua. tcoria cconémica dos economistas cléssicos era essen— aquclas poupadas por suas virtudes pacificas. Na sua csséncia, a socie—
cialmcntc confusa. O paralelismo entre riqucza e valor gerou os mais dade cconémica sc fundamentava nas inflexiveis rcalidades da nature-
dcsconccrtantcs pseudoproblcmas em quase todos os sctorcs da econo- za; sc 0 homem desobcdecessc as leis que dirigiam tal sociedade, 0 car-
mia ricardiana. A tcoria do fundo salarial, um legado dc Adam Smith, rasco cruel estrangularia os rcbcnto s dos imprcv idcntcs . As leis dc uma
foi uma rica fonte dc desentendirncntos. A partc algumas tcorias espe- sociedade competitiva cram colocadas sob a sangéo da sclva.
ciais, como as do alugucl, da taxagao e do comércio exterior, dc pro- O verdadeiro significado do tormentoso problema da pobrcza sc
funda perspicécia,.a tcoria consistiu cm tentativas frustradas dc chegar revelava agora por intciro: a sociedade economica estava sujcita a leis
a conclusées categéricas sobrc termos mal-definidos que se propunham que mic cram leis humanas. A brccha entre Adam Smith e Townsend sc
a cxplicar o compormmcnto dos prcgos, o nivel de lucros, salérios c transformara num abismo; surgia uma dicotomia que marcaria o nasci-
juros, a maioria dos quais continuou tio obscura como antes. mento da consciencia do século XIX. A partir deste perfodo , o natura-
Segundo, dadas as condigocs sob as quais o problcma sc aprcscnm— lismo passou a assombrar a ciéncia do homem, e a rcintcgragéo da
va, nao era possfvel obter outro resultado. Nenhum sistcma unitfirio sociedade no mundo humano tornou-se o objctivo pcrscguido com
podcria tcr explicado os fatos, pois eles nao cram partc dc qualqucr sis- persisténcia na evolucéo do pensamcnto social. A cconomia marxista —
tcma I’mico e cram, na verdade, o rcsultado da acao simultanca dc dois nesta linha dc argumentagio — foi uma tentativa malograda dc atingir
sistcmas mutuamcnte exclusivos sobrc o corpo social, isto é, uma cco- cssc objetivo, um fracasso dcvido a adcséo muito cstrita dc Marx as
nomia dc mercado nascentc c uma rcgulamcntagao patcrnalista na tcorias dc RiCardo e as tradicécs da cconomia liberal.
csfcra do fator mais importante da produgao, o trabalho. Os préprios economistas classicos cstavam longc da inconsciéncia
Tcrcciro, a solugao a que chegaram os economistas cla’ssicos tcve cm relacao a essa necessidadc. Malthus c Ricardo néo cram dc forma
conscqiiéncias de grandc alcance para a comprccnsao da naturcza da alguma indifcrcntcs ao destino dos pobrcs, porém sua preocu pacio
sociedade economica. A medida que as leis quc governavam uma eco- humana apenas forgou uma falsa tcoria por caminhos ainda mais tor-
nomia dc mercado iam sendo aprccndidas, essas leis cram colocadas sob tuosos. A lei férrca dos salarios dispunba dc uma clausula dc scguranga
a autoridade da propria natureza. A lei dos rcndimcntos diminuidos foi bcm conhecida, segundo a qual quanto mais clevada as neccssidades
uma lei de fisiologia da planta. A lei dc populacao malthusiana rcflcn'u costumeiras da classc trabalhadora, mais elevado era 0 nivel dc subsis-
a rclagao entre a fertilidadc do homem e do solo. Em ambos os casos téncia abaixo do qual nem mesmo a lei férrca podia diminuir 0s sala—
as forgas cm jogo cram as forcas da natureza, o instinto animal do scxo rios. Malthus colocou suas cspcrangas ncssc “padrio dc miséria”11 c
c o crcscimcnto da vegetacao num dado $010. 0 principio envolvido queria que ele fosse clevado por todos os meios, pois somcntc assim,
era 0 mesmo do caso das cabras c cacs dc Townsend: havia um limitc pcnsava ele, podcriam scr salvos das formas mais abjetas da miséria
além do qual os scrcs humanos nao podiam sc multiplicar, c cssc limi- aqueles que, por forga da lci, cstavam condcnados a essa desgraga. Pcla
tc era cstabelecido pclo abastccirncnto dc alimentos disponivcis. Como mesma razao, também Ricardo dcscjava que as classes trabalha doras
Townsend, Malthus concluiu que os espécimcs supérfluos scriam mor- cm-todos os pafscs tivcsscm o prazcr do conforto e da alegria, “e eles
‘tos; enquanto as Cabras-sao mortas pelos cites, 05 cacs dcvcm passar
llHazlitt,VV.,A RepIytotbeEss ayonP
, fome por falta dc alimento. Com Malthus, o controlc repressivo con- ,1803_ ‘
opulatwnby the R e u. T A
. Maltb usm
" a S mesof
'
152 sistia na destruigao dos espécimcs 'cxccdcntes pclas forgas brutas da 153
deveriam ser estimulados, por todos os meios legais, no seu afa para ralismo economico uma forca irresistivel foi essa congruéncia de opi-
atingi-los”. De forma ironica, e a fim de fugir a lei da natureza, prescre- nioes entre perspectivas diametralmente opostas. Aquilo que 0 ultra-
via-se aos homens a tarefa de elevar seu préprio nivel de inanicao. E, no reformador Bentham e o ultratradicionalista Burke aprovavam igual-
entanto, estas eram, sem duvida, tentativas sinceras por parte dos eco- mente assumia, automaticamente, o carater de auto-evidéncia.
nomistas cléssicos para salvar os pobres de um destino que as suas pr6- Apenas um homem percebeu o significado da provacao, talvez por-
prias teorias ajudaram-a preparar para eles. que entre os espiritos dominantes da época somente ele possuia um
~No
caso de Ricardo, a'propria teoria incluia um elemento que con- intimo conhecimento pratico da industria e também estava aberto a
,5... trabalancava o rigido naturalismo. Esse elemento, que permeava todo uma visao anterior. Nenhum pensador chegou tao longe'Quanto '
o seu sistema, e se assentava firmemente em sua teoria de valor, era 0 Robert Owen no reino da sociedade industrial. Ele tinha profunda
principio do trabalho. Ele completara o que Locke e Smith haviam consciéncia da distincao entre sociedade e estado; embora n50 tivesse
comegado, a humanizagio do valor economico; aquilo que os fisrocra- qualquer preconceito contra esse ultimo, como ocorreria com Godwin,
tas haviam creditado a natureza, Ricardo reclamava para o homem. ele via 0 estado apenas por aquilo que ele podia executar: uma inter-
Num teorema equivocado de alcance tremendo, ele investiu o trabalho vencio que afastasse da comunidade qualquer perigo mas nao, enfati-
com a capacidade (mica de constituir valor, reduzindo assim todas as camente, para a organizagao da sociedade. Da mesma forma, ele néo
transacoes concebiveis na sociedade economica ao principio da troca nutria qualquer animosidade contra a maquina, cuio carater neutro ele
igual numa sociedade de homens livres. reconhecia. Nem o mecanismo politico do estado, nem o aparato tec-
Dentro do proprio sistema de Ricardo coexistiam os fatores natu- nolégico da maquina esconderam dele o fenomeno: a sociedade. Ele
ralista e humanista que lutavam pela supremacia ria sociedade econo- rejeitava a abordagem animalista da sociedade, refutando suas limita-
mica. A dinamica dessasituagao foi de um poder esmagador e, como goes malthusianas e ricardianas. O -fulcro de seu pensamento, porérn,
seu resultado, a indugao para um mercado competitivo adquiriu 0 im- foi o seu afastamento do Cristianismo a quem ele acusava de “indivi-
peto irresistivel de um processo da natureza. Acreditava—se que o mer- dualizagao”, ou de fixar no proprio individuo a responsabilidade pelo
cado auto-regulavel provinha das leis inexoraveis da natureza, e que o carater, negando assim, segundo Owen, a realidade da sociedade e sua
mercado se desprenderia como uma necessidade inelutavel. A criacao influencia formativa e todo-poderosa sobre o carater. O verdadeiro sig-
de um mercado de trabalho foi um ato de vivisseccao executado no nificado do ataque a “individualizacao” estava na sua insistencia sobre
corpo da sociedade por aqueles que ja estavarn fortalecidos na sua tare- a origem social das motivacées humanas: “O homem individualizado e
fa pela seguranca que apenas a ciéncia podia oferecer. tudo o que o Cristianismo realmente valoriza estao tao separados que
O fato de a Poor Law ter que desaparecer era parte dessa certeza. sio inteiramente incapazes de se unirem por toda a eternidade”. Foi a
“O principio da gravidade n50 é mais certo do que a tendéncia de tais descoberta da sociedade que fez Owen transcender o Cristianismo e
leis de mudar a riqueza e o vigor em miséria e fraqueza... até que, final- atingir uma posicao além dele. Ele apreendeu a verdade de que, uma
' mente, todas as classes sejam infectadas pela praga da pobreza univer- vez que a sociedade 6 real, 0 homem deve se submeter a ela, e m filtima
sal”, escreveu Ricardo.12 Ele seria, com efeito, um covarde moral se, instancia. Pode—se dizer que o seu socialismo se baseava numa reforma
sabendo disto, deixasse de encontrar forcas para salvar a humanidade da consciéncia humana, a ser atingida pelo reconhecimento da realida-
de si mesma através da cruel operagao da aboligio da assisténcia social de da sociedade. “Se qualquer das causas do mal nao puder ser removi-
aos pobres. Sobre este ponto havia o consenso geral de Townsend, da pelos novos poderes que os homens estao a ponto de adquirir”,
Mal-thus e Ricardo, Bentham e Burke. Por mais diametralmente que escreveu ele, “eles saberio que cais males sao necessarios e inevitaveis e
diferissem em método e perspectiva, eles concordavam na oposicao aos cessarao de fazer queixas infantis e inuteis.”
principios da economia politica e a Speenhamland. O que fez-do libe- Owen pode ter abrigado uma nogao exagerada desses poderes, pois
do contrario ele dificilmente poderia ter sugerido aos magistrados do
'Condado de Lanark que a sociedade deveria comecar novamente e
1 5 4 Ii Ricardo, D., Principles of PoliticalEconomy and Taxation (ed. Gonner, 1929, p. 86). 'incontin‘enti a partir do “nficleo de sociedade” que ele havia descober— 155
to nas suas comunidades aldeas.'Um tal fluxo de imaginagao é privilé- o q ue parecia
' bas'warnente um problema eco
nom ' era, essencialmen-
i lco
gio do génio, sem o qual a humanidade poderia nao existir pela falta te, um pro blem a soc1al. E claro
que 0 tr ab alhador
de compreensao que ela tem de si mesma. Mais significativa ainda foi a do
termos
T econémicos:
via, por .ele_ nao recebia era exp lorado e m
em. troca aqul'lo que lhe era dev '
. oda mais importante que IStO fosse nao 1-
.irremovivel fronteira de liberdade para a qual ele apontava, e que era I
er
estipulada pelos limites necessarios da auséncia do mal na sociedade. Ma
peitsoum da min caob, financeiiramente ele\estava , mel
expdlorai0 a
b 1h llior'do
tudo . Aante
que dfis.
-
Owen sentia, porém, que essa fronteira 56 se tornaria aparente quando p astante esfavoravel a fe11c1dade 1nd
tra . a - ava na destrulgao de seu amb 1v1 dua l e ger al
o homem transformasse a sociedade com a ajuda dos novos poderes iente social, .sua vizinhan a s
_que adquirira. O homem teria entao que aceitar essa fronteira, com o pomeaona comunidade, sua profiss
ao, numa palavra, de todas E iielua
espirito de maturidade que nao conhece queixas infantis. relaeoes corn a natureza e o lioiiiéin
na qual esta‘va'éinbutida a sua:lexia:
Robert Owen, em 1817, descreveu o caminho no qual penetrara o tenc1a eco nom lca ant erio r. A
Rev olu gao Ind ustr ial esta va cau
um: desarticulagao social de estupen san do
homem ocidental e suas palavras resumiam o problema do século vin- das proporgoes, e o problema da
douro. Ele apontou as importantes conseqiiéncias que decorrem das pro reza era apenas o aspecto econom
ico desse acontecimento Owen
manufaturas “deixadas a sea progresso natural”. “A difusao geral das afirmou, com multa justeza, que a
menos que a interferencia e-a dire-
manufaturas através de um pais gera um novo carater em seus habitan- gao legislatlvas contrabalangassem
essas forgas devastadoras -
tes. Como esse carater se forma a base de um principio bastante.desfa— riam grandes e permanentes males.
" , OCOU-‘e'
vorével a felicidade individual on geral, ele produzira 05 males mais Nessa ocaSIio, ele nao previa que
a autoprotegao da sociedade,
lamentaveis e permanentes, a nao ser que sua tendéncia seja contraba- Sela qual. ele.clamava, provaria ser inco
mpativel corn 0 funcionamento
langada pela interferéncia e diregao legislativa.” A organizagao do total o proprlo snstema economico.
da sociedade sob o principio do ganho e do lucro deveria ter resultados
de longo alcance. Ele formulou esses resultados em termos de caréter
humano. O efeito mais obvio do move sistema institucional era, sem
dfivida, a destruigao do carater tradicional das populagoes organizadas
e sua transmutagao em um novo‘ tipo de gente, migratério, nomade,
carente de auto-respeito e disciplina — seres rudes e brutais dos quais
eram exemplo tanto o trabalhador como o capitalista. Ele prosseguiu
com a generalizacao de que o principio envolvido era desfavoravel a
felicidade individual e social. Dessa maneira, graves males seriam pro-
duzidos, a menos que as tendéncias inerentes as instituigées de merca—
do fossem contidas por uma diregao social consciente, efetivada através
da legislagao.
E verdade que a condigao dos trabalhadores, que ele deplorava,
decorria parcialmente do “sistema de abonos”. Mas, na sua esséncia, o
que ele observava era verdadeiro tanto em relagao aos trabalhadores da
cidade como das aldeias, isto é, que “eles estao agora numa situagao
infinitamente mais degradante e miseravel do que antes da introdugao
.dessas manufaturas, de cujo sucesso depende agora a sua mera subsis-
.téncia”. Mais uma vez eleatinge aqui or fundo da questao, enfatizando
1150 OS rendimentos mas a degradagao e a miséria. Como causa primei—
-ra .‘de'ssa degradagao ele aponta, mais uma vez corretamente, a depen-
j155 déncia a fabrica para a mera subsisténcia. Ele apreendeu o fato de que
157
1:!
I.r.u.51rl.v‘
dessa forma, a ficgao da mercadoria menosptezou o fato de que dental: por intetmédio do Banco da Inglaterra. De 'fato, nao era concebivel
o destino do solo e das pessoas por conta do mercado seria o mesmo qualquer outto método para impedit o estado de “interferir” no siste-
que aniquilé-los. Assim, o contramovimento se propunha a enfrentar a ma monetatio, e assim tesguatdat a auto-regulagéo do mercado.
agao do mercado em relagao aos fatores de ptoduga o — trabalho e Existia, pottanto, em telagao aos negocios, uma situagao muito
tetra. Foi esta a fungéo principal do intervencionismo. semelhante a que dizia tespeito a substancia natural e humana da socie-
A Otganizagao ptodutiva também'se viu ameagada do mesmo angu- dade. O mercado auto-tegulével eta uma ameaga a todos eles e por
lo. 0 petigo se abatia sobre a emptesa individual — industrial, agncola razoes basicamente similates. Se a legislagao fabtil e as leis sociais etam
ou cometcial — na medida em que ela era afetada pelas mudangas no exigidas para proteget o homem industrial das implicagoes da ficgao da
nivel de ptego. Sob um sistema de mercado, se os ptegos caissem o mercadoria em telagao a forga de trabalho, se leis para a tetra e tatifas
negocio eta prejudicado; a menos que todos os elementos de custo agrarias cram criadas pela necessidade de proteget os tecutsos natutais
caissem proporcionalmente, “emptesas atuantes” etam forgadas a liqui- e a cultuta do campo contra as implicagées da ficgao de mercadoria em
dat, embora a queda nos pregos pudesse ocorret nao pot uma queda relagéo a eles, era também verdade. que se faziam necessatios bancos
geral nos custos, mas apenas pela maneita como se orgamzava o SlSte- centtais e a gestao do sistema monetario para mantet as manufatutas e
ma monetatio. Como vetemos, eta isto o que ocorria, de fato, sob um outtas emptesas ptodutivas a salvo do perigo que envolvia a ficgao da
mercado auto-tegulével. . mercadoria aplicada ao dinheito. Por mais patadoxal que patega, n50
Em principio, o podet de compra é provido e tegulado aqui pela cram apenas os setes humanos e os tecutsos natutais que tinham que
agao do ptéptio mercado; é este o significado quando afirmamos que o set protegidos contra os efeitos devastadores de um mercado auto-
' dinheito é uma mercadoria cuja quantidade é controlada pela ofetta e 7 . regulavel, mas também a propria organizagao da ptodq capitalism.
ptocuta de bens que {juncionam como dinheito — a bcm conhecida teo- Voltemos agora Aquilo que chamamos dc duplo movimento. Ele
tia classica do dinheiro.~ De acordo com essa douttina, o dinheito .é .' pode set petsonificado como a agéo de dois principios otganizadores
apenas um outto nome para uma mercadoria usada na troca com mais .' da sociedade, cada um deles determinando seus objetivos institucionais
162 fteqiiéncia que outta e'gue, portanto, é adquitida ptiIlClpalmente a fim especfficos, com o apoio de forgas sociais definidas e utilizando dife- 163
rentes métodos proprios. Um foi o principio do liberalismo economi- classe social porém, mesmo inconscientemente, representou, numa ou
co, que objetivava estabelecer um mercado auto-regulavel, dependia do noutra ocasiao, interesses mais amplos que os seus proprios.
apoio das classes comerciais e usava principalmente o laissez—faire e o Na virada do século XIX — o sufragio universal jé tinha agora uma
livre come’rcio como seus métodos. O outro foi o principio da prote- abrangéncia bastante ampla —- a classe trabalhadora era um fator de
gao social, cuja finalidade era preservar o homem e a natureza, além da influéncia no estado. Por outro lado as classes comerciais, cujo dominio
organizacao produtiva, e que dependia do apoio daqueles mais imedia— sobre a legislatura comecava a ser desafiado, tomaram consciéncia do
_tamente afetados pela agéo deletéria do mercado — bésica, mas néo poder politico que a sua lideranga na indfistria abrangia. Essa localiza-
exclusivamente, as classes trabalhadoras‘ e fundiarias_.—__e_ que utilizava _ ,_ géo peculiar _da influéncia e do poder nao causou problema enquanto o
uma legislacao protetora, associagoes restritivas e outros instrumentos ' sistema de mercado continuou a funcionar sem grande pressio e esfor—
de intervengéo como seus me’todos. go. Quando porém, por razées intrinsecas, isto ja n50 mais ocorria, e
. A énfase sobre a classe é importante. Os servigos prestados a socie- comecaram a surgir tensoes entre as classes sociais, a propria sociedade
dade pelas classes fundiaria, media 6 trabalhadora modelaram to'da a se viu em perigo pelo fato de as partes rivais fazerem do governo e dos
histéria social do século XIX. Esse papel lhes foi atribufdo pelo fato negocios, do estado e' da industria, respectivamente, os seus baluartes.
de estarem aptas a desempenhar varias fungoes decorrentes da situa- Duas fungoes vitais da sociedade, a politica e a economica, estavam
gao global da sociedade. As classes médias foram as condutoras da sendo usadas e abusadas como armas em uma luta por interesses sec—
nascente economia de mercado; seus interesses comerciais, como um cionais. A crise fascista do século XX teve origem justamente nesse
todo, eram paralelos ao interesse geral quanto a produgao e ao empre- perlgoso impasse.
go. Se os negocios progrediam, havia oportunidade de empregos para E a partir desses dois fingulos, portanto, que pretendemos esbocar
todos e de aluguéis para os proprietarios; se 05 mercados se expan- o movimento que modelou a historia social do século _XIX. Um se ori-
diam, podia se investir livremente; se a comunidade comercial tinha ginou do choque entre os principios organizadores do liberalismo eco-
sucesso ao competir com a estrangeira, a moeda circulante estava nomico e a protegao social que levou a uma tensao institucional pro-
segura. Por outro lado, as classes comerciais nao tinham um orgéo que fundamente arraigada. O outro surgiu do conflito de classes que, inte-
pressentisse os perigos acarretados pela exploragao da forga fisica do ragindo com o primeiro, transformou a crise numa catastrofe.
trabalhador, a destruicao da vida familiar, a devastacao das cercanias,
o desnudamento das florestas, a poluigéo dos rios, a deterioracao dos
padroes profissionais, a desorganizacéo dos costumes tradicionais e a
degradagao geral da existéncia, inclusive a habitagao e as artes, assim
como as inumeraveis formas de vida privada e pfiblica que nao afetam
os lucros. As classes médias cumpriram a sua fungao desenvolvendo
uma crenca quase sacramental na beneficéncia universal dos lucros,
embora isto as desqualificasse como mantenedoras de outros interes-
ses, tao vitais para um bom padréo de vida como o incremento da
produgao.
Surgiu assim uma oportunidade para aquelas classes que n50 se
ocupavam em aplicar a produgao maquinas dispendiosas, complicadas
ou especializadas. Em resumo, recaiu sobre a aristocracia fundiaria e o
campesinato a tarefa de resguardar as qualidades marciais da nagéo,
que em grande parte continuava a depender dos homens e do solo. O
povo trabalhador, numa extensao maior ou menor, tornou-se represen-
154 tante dos interesses humanos comuns que estavam ao desamparo. Cada 165
a livrc exportagéo dc cereais para garantir rendas melhores para os
fazendeiros, posseiros e senhores de terra. Para os demais, a sua ordre
nature] nada mais era do que um principio diretivo para a regulagao da
indfistria e da agricultura por parte de um governo supostamente todo-
poderoso e oniscienre. As Maximes de Quesnay pretendiam fornecer a.
12 esse governo os pontos de vista necessarios para transformar em prati-
ca politica os principios do Tableau, a base dos dados estatisticos que
s'O ele se comprometia a suprir periodicamente. A idéia de um sistema de
NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL' " ' mercados auto-regulaveis jamais sequer penetrara a sua mente.
Na Inglaterra, o laissez-faire mmbérn foi interpretado de‘forma muito
estreita: ele significava apenas libermr-se das regulamentagoes da produ-
gio e o comércio n50 estava incluido. As manufaturas de algodao, a
maravilha da época, haviam crescido da insigrfificancia para a principal
indfistria de exportagao do pafs e, no entanto, a importagao de algodées
estampados continuava a ser proibida por um estaruto indiscuu’vel. N50
O liberalismo economico foi o principio organizador de uma socie- obstante o_ monopélio tradicional do mercado interno, conseguiu-se uma
dade engajada na criagao de um sistema de mercado. Nascido como subvengao de exportagao para o morim e a musselina. O protecionismo
mera propensao‘em favor de métodos nao-burocraticos, ele evoluiu estava' tao entranhado que os ,fabricantes de algodao de Manchdster, em
para uma fé verdadeira na salvagao secular do homem através de um 1800, exigiram a proibigao da exportagio do fio, embora tivessem cons-
mercado auto-regulavel. Um tal fanatismo resultou do sfibito agrava: ciéncia do fato de que isso signifimva perda de negocio para eles. Urn
mento da tarefa pela qual ele se responsabilizara: a magnitude’ dos decreto promulgado em 1791 estendeu as penalidades que incidiam
sofrimentos a serem infligidos a pessoas inocentes, assim como o sobre a expormgéo de ferramenms usadas na manufatura dos tecidos de
amplo alcance das mudangas entrelagadas que a organizagao da nova algodao a exportagao de modelos ou especificagoes. As origens do livrc ‘
ordem envolvia. O credo liberal s6 assumiu seu fervor evangelico em _ comércio da indfistria do algodio 3'50 realmente um mito. A indl’lstria s6
resposta as necessidades de uma economia de mercado plenamente queria libertar-se da regulamentagao na esfera da produgao, pois a liber-
desenvolvida. dade na esfera da troca ainda era considerada urn perigo.
Seria inteiramente a-histérico antecipar a politica do laissez- aire Poder-se-ia supor que a liberdade da produgio se difundiria natu-
para a época em que essa palavra-chave foi usada pela primeira vez na ralmente do campo puramente tecnolégico para 0 do emprego da
Franga, em meadds do século XVHI, como ocorre corn 'freqiiéncia. mac-de-obra, porém s6 comparativamente mais tarde foi-que Man-
Pode-Se dizer com seguranga que o liberalismo economico nio era mais chester comegou a exigir um trabalho livrc. A indfistria doalgodao
que uma tendéncia espasmédica até duas geragées mais tarde. Foi jamais fora sujeita a0 Statute of Artificers e, conseqfientemente, 1150 se
somente nos anos 1820 que ele passou a representar os trés dogmas via tolhida pelas avaliagées anuais dos salarios ou pelas regras do
classicos: o trabalho deveria encontrar seu prego no mercado, a criagao aprendizado. Por outro lado, a antiga Poor Law, contra a qual os libe-
do dinheiro deveria sujeitar-se‘ a um mecanismo automatico, os bens rais de filtima hora objetavam tao forternenre, era uma ajuda para os
deveriam ser livres para fluir de pais a pais, sem empecilhos ou privilé- fabricantes. Ela nao s6 lhes fornecia os aprendizes da paréquia, como
gios. Em resumo, um mercado de trabalho, o padréo-ouro e o livrc- lhes pe'rmitia ainda isentar—se da responsabilidade para com os empre-
comércio. gados demiu'dos, jogando assirn para os fundos pfiblicos grande parte
Estarl’amos bem préximos do fantastico se quiséssemos dar a da carga do desemprego.
Frangois Quesnay o crédito de ter sequer considerada um tal esmdo de A princfpio, nem mesmo o sistema Speenhamland foi impopular
166 coisas. Tudo o que os fisiocratas exigiam nurn mundo mercantilista era junto aos fabricantas de algodao. Enquanto o efeito moral dos abonos 167
nao reduziu a capacidade produtiva do trabalhador, a industria podia mada e sem que houvesse qualquer periodo de espera. O laissez-faire
ate ver 0 abono familiar como uma ajuda para manter aquele exército havia sido catalisado num impulso de intransigente ferocidade.
de reserva de mac-de-obra exigido com tanta preméncia para enfrentar Incitado pelo liberalismo economico, que mudou de um interesse
as tremendas flutuagées do comércio. Numa época em que o emprego académico para um ativismo ilimitado, algo semelhante ocorreu e m
na agricultura ainda era em termos anuais, tornava—se muito importante duas outras areas da organizagao industrial: meio circulante e comér—
existir urn fundo de mao-de—obra movel a disposigao da industria nos cio. O laissez-faire se transformou num credo fervoroso em relagao a
periodos de expansao; D211 03 ataques dos fabricantes contra 0 Act of essas duas areas quando se tornou aparente a inutilidade de qualquer
.,
Settlement que impedia a mobilidade fisica da mao-de-obra. Todavia, a outra solugao que nao a mais extremada. . __
aboligao desse ato so ocorreu apés 1795 —— mas apenas para ser substitui- O tema do meio circulante chegou a atengao da comunidade ingle—
‘do por um paternalismo maior, e nao menor, em relagio a Poor Law. 0 sa primeiro sob a forma de um aumento geral no custo de Vida. Os
pauperismo continuava a ser a preocupagao do proprietario fundiério e pregos duplicaram entre 1790 e 1815. Os salarios reais cairam 6 OS ne—
do campo. Até mesmo criticos acerbos da Speenhamland, como Burke, gécios foram atingidos por uma queda brusca no cambio exterior.
Bentham e Malthus, viam-se menos como representantes do progresso Entretanto, so depois do panico de 1825 6 que o meio circulante soli—
industrial do que como proponentes de principios sélidos de adminis- do se tornou um dogma do liberalismo economico, i. e., s6 quando os
tragao rural. principios ricardianos se arraigaram profundamente na mentalidade,
Nao foi senao nos anos 1830 que o liberalismo economico explo- tanto dos politicos.quanto dos homens de negécios, é que se manteve o
diu como_ uma cruzada apaixonante, e, o laissez-faire se tornou um “padrao”, a despeito da quantidade enorme de vitimas financeiras. Isto
credo militante. A classe manufatureira pressionava pela emenda da marcou o inicio daquela crenga inabalavel no mecanismo automatico
Poor Law, uma vez que esta impedia a criagao de uma classe trabalha— da orientagao do padrio-ouro, sem o qual o sistema de mercado jamais
dora industrial que s6 assim poderia conseguir uma renda prépria. poderia ter entrado em funcionamento.
Tornava—se aparente, agora, a magnitude do empreendimento que sig- O comércio livre internacional envolvia também‘ um mesmo ato de
nificava a criagao de um mercado de trabalho livre, bem como a exten- fé. Suas implicagées eram extremamente extravagantes. Ele significava
sao da miséria a ser infligida As vitirnas do progresso. Assim, jé no ini~ que a Inglaterra dependeria de fontes externas para seu abastecimento
cio da década de 1 8 3 0 era visivel um clima de mudanga acentuada. alimentar, que ela sacrificaria sua agricultura, se necessario, para
Uma reedigéo da Dissertation de Townsend, em 1817, continha urn ingressar em uma nova forma de Vida na qual ela seria parte integrante
prefécio elogiando a previsao do autor em relagéo as Poor Laws e exi- de uma unidade mundial do futuro, vagamente concebida; que essa
gindo seu completo abandono. Os editores alertavam, porém, contra a comunidade planetaria teria que ser pacifica, pois, do contrario, ela
sugestao “impetuosa e precipitada” do autor de que a assiténcia social seria tornada segura para a Gra—Bretanha pelo poder da sua marinha; e
externa aos pobres fosse abolida no curto periodo de dez anos. Os que a nagao inglesa enfrentaria a perspectiva de deslocamentos indus—
Principles de Ricardo, que apareceram no mesmo ano, insistiam na triais continuos pela firme crenga na sua capacidade superior, inventiva
necessidade d e abolir o sistema de abonos, mas recomendava também e produtiva. Entretanto, acreditava-se que os cereais do mundo inteiro
que isto s6 fosse feito muito gradualmente. Pitt, um discfpulo de Adam pudessem fluir livremente para a Gra-Bretanha, so entao suas fabricas
Smith, havia rejeitado essa sugestao alegando que ela implicaria em poderiam vender mais barato que todo mundo. Assim, mais uma vez, a
sofrimento para inocentes. J21 em 1829, Peel ainda “duvidava se 0 siste~ medida da determinagao exigida foi estabelecida pela magnitude da
ma de abonos poderia ser removido corn seguranga, a mic ser de forma proposta e pela vastidao dos riscos envolvidos na sua aceitagéo total,
gradual”.1 Entretanto, apés a vitéria politica da classe media, em 1832, pois uma aceitagao menos global certamente significaria alguma ruina.
a Poor Law Amendment Bill foi posta em pratica na forma mais extre- As fontes utépicas do dogma do laissez—faire nao podem ser inteira—
mente compreendidas enquanto examinadas separadamente. Os trés
pilares — mercado de trabalho competitive, padrao-ouro automatico e
1,68 1 Webb, 5. c B., op. cit. comércio internacional livre — formavam um todo. Eram infiteis, ou tal- 169
vez pior, os sacrificios exigidos para atingir qualquer um deles a menos para atingir alguma coisa, era a coisa a ser atingida. E verdade que a
que os dois outIos fossem igualmente garantidos. Era tudo ou nada. legislagao nada podia fazer diretamente, a nine ser abolir as restrigées
Qualquer um podia ver que o padrao-ouro, por exemplo, significa- prejudiciais, mas isto nao significava que o governo nao podia fazer
va risco de uma deflagéo mortal e, talvez, uma fatal rigidez monetaria
alguma coisa, ainda que indiretamente. Pelo contrario, o liberal utilita-
num panico. Assim, o fabricante so poderia manter—se se lhe fosse asse- rista via no governo o grande agente para 'atingir a felicidade. Em rela-
gurada uma escala progressiva da produgao, a pregos remunerados (em gao ao bem-estar material, acreditava Bentham, a influéncia da legisla-
outras palavras, somente se os salarios caissem pelo menos em propor- gao “nao é nada” se comparada a contribuigao inconsciente do “minis-
gao a queda geral dos pregos, de forma a permitir a exploragao de um tro da policia”. Das‘trés coisas necessarias para o sucesso economico —
mercado mundial e m expansao) . A Anti-Corn Law Bill, de 1846, foi o inclinagao, conhecimento e poder — a pessoa privada possuia apenas a ' '
corolario do Bank Act de 1844, de Peel, e ambos presumiam a existen- inclinagao. O conhecimento e o poder, ensinava Bentham, podem ser
cia de uma classe trabalhadora a qual, desde a Poor Law Amendment administrados pelo governo de forma muito mais barata do que através
Act, de 1834, havia sido forgada a dar o melhor de si sob a ameaga da de pessoas privadas. Era tarefa do executivo coletar estatisticas e infor-
fome, de forma que os salarios eram regulados pelo prego do cereal. As magées, patrocinar as ciéncias e as experiéncias, assim como fornecer
trés grandes medidas formaram um todo coerente. os inl’imeros instrumentos de realizagao final no campo do governo. O
O alcance global do liberalismo economico pode ser visto, agora, liberalismo benthamita significava a substituigao da agao parlarnentar
de um relance. Nada menos do que um mercado auto-regulavel, em pela agao dos orgaos administrativos.
escala mundial, poderia assegurar o funcionamento desse mecanismo Havia muito campo para isto. Na Inglaterra, a magic nao governara
estupendo. A menos que o prego do trabalho dependesse do cereal — como na Franga — através de métodos administrativos mas utilizara
mais barato disponivel, nao havia garantia para as industrias nao-prOte- exclusivamente a legislagéo parlamentar para fazer funcionar a repressao
gidas de que elas n50 sucumbiriam sob o guante do senhor voluntaria- politica. “Os movimentos revolucionarios de 1785 e de 1815/1820
mente aceito — o ouro. A expansao do sistema de mercado no século ‘ foram combatidos, n50 por uma agao departamental, mas pela legislagao
XIX foi sinonimo do comércio livre internaciona l, do mercado de tra- parlamentar. A suspensao do Habeas Corpus Act (Lei do Habeas
balho competitive e do padréo-ouro — eles formavam um conjunto. Corpus), a votagao do Libel Act (Lei do Libelo) e do Six Acts (Seis Leis)
N510 é de admirar que o liberalismo economico tenha se transformado de 18197foram medidas severamente coersivas, mas elas n50 Comprovam
numa religiao secular, depois que Se tornaram evidentes os grandes ris- qualquer tentativa de dar um carater' continental a administragao. Na
cos desse empreendimento. ' medida em que a liberdade individual foi destruida, ela o foi através de 6
de acordo'com os atos do parlamento.”2 Os liberais econémicos ainda
Nao havia nada natural em relagao ao laissez-faire; os mercados livres nao haviam adquirido qualquer influéncia no governo, em 1832, quando
jamais poderiam funcionar deixando apenas que as coisas seguissem o a posigéo mudou completamente em favor dos métodos administrativos.
'algodao “O resultado liquido da atividade legislativa‘que caracterizou o periodo,
seu curso. Assim como as manufaturas de — a indfistria mais
importante do livre comércio — foram criadas com a agao de tarifas desde 1832, embora com diferentes graus de intensidade, foi a constru—
protetoras, de exportagoes subvencionadas e de subsidibs indiretos dos gao fragmentaria de uma maquina administrativa de grande complexida—
salarios, o proprio laissez—faire foi imposto pelo estado. As décadas de de, que exige a necessidade constante de reparos, renovagoes, reconstru-
1930 e 1940 presenciaram n50 apenas uma explosao legislativa que gées e adaptagées a novas exigéncias, da mesma forma que uma fabrica
repelia as regulamentagées restritivas, mas também um aumento enor- numa manufatura moderna.”3 Esse crescirnento da administragao refletia
me das fungées administrativa s do estado, dotado agora de umaburo—
cracia central capaz de executar as tarefas estabelecidas pelos adeptos
do '-libe‘ralismo; Para 0 utilitarista tipico, o liberalismo econémico era 2 Redlich e Hirst, J., Local Government in England, vol II, p. 240, citando Dicey, A. V.,
umapr‘ojeto social que deveria ser posto em pratica para'grande felici- Law and Opinion in England, p. 305.
3 Ilbert, Legislative Methods, pp. 212-3, citando Dicey, A V., op. cit.
170 -dade~.do maior numero de pessoas; o laissez-faire nao era 0 método 171
i o espfrito do utilitarismo. O fabuloso Panopticon de Bentham, sua utopia as origens do “anti-laissez—faire” ou, como ele a chamava, a tendéncia
mais pessoal, era um ediffcio em formato de estrela e da sua parte central “coletivista” da opiniao pfiblica inglesa, cuja existéncia era manifesta
os guardas de prisao podiam exercer a mais efetiva supervisao sobre o desde 0 final da década de 1860; Ele ficou surpreso de n50 encontrar
maior nfimero de ’prisioneiros com o menor custo para o p1’1blico. De qualquer prova dessa tendéncia a 7250 ser nos proprios decretos legislati-
forma similar, no estado utilitarista o seu principio favorito de “inspe- vos. Falando com mais exatidao, nenhuma prOva de uma “tendéncia
cao” assegurava que o ministro, no cargo mais alto, devia manter um coletivista” na opiniao pfiblica pode ser encontrada anterior as leis que
controle efetivo sobre toda a administragao local. pareciam representar tal tendéncia. Quanto a opiniao “coletivista” pos-
0 caminho _para o mercado livre estava aberto e se mantinha aberto -_ _t_erior, Dicey inferiu que a propria legislagao “coletivista” poderia ter
através do incremento de um intervencionismo continuo, controlado e sido a sua fonte primordial. Com essa sagaz investigagao ele constatou a
organizado de forma centralizada. Tornar a “liberdade simples e natu- auséncia total de qualquer mtengao deliberada de ampliar as fungoes do
ral” de Adam Smith compativel com as necessidades de uma sociedade estado, ou restringir a liberdade do individuo, por parte daqueles direta-
humana era tarefa assai complicada. Vejam a complexidade das clausu- mente responséveis pelas legislagoes restritivas dasdécadas de 1870 e
las nas inumeréveis leis do cercamento; 0 total de controle burocratico 1880. A ponta-de-langa legislativa do contramovimento que se opos a0
inserido na administragao das New Poor Laws que, pela primeira vez mercado auto-regulavel, conforme se desenvolveu na metade do século
desde o reinado da Rainha Elisabeth, eram supervisionadas efetivamen- apos 18,60 revelou--se espontanea, nao dirigida pela opiniao e induzida
te por uma autoridade central; on o aumento da administragao gover- por um espirito puramente pragmatico.
namental inserido na tarefa meritéria da reforma municipal. Todos esses Os liberais economicos certamente nao partilham essa opiniao. Toda
baluartes da interferéncia governamental, no entanto, foram criados a sua filosofia social gira em torno da idéia de que o laissez—faire foi
com a finalidade de organizar uma simples liberdade — a da terra, do um desenvolvimento natural, enquanto a legislagéo anti~laissez-faire
trabalho e da administragao municipal. Assim como, contrariando as subseqiiente foi o resultado de uma agao propositada por parte dos que
expectativas, a invengao da maquinaria que economizaria trabalho nao . se opunham aos princfpios liberais. Nio seria demais dizer que nessas
diminuira mas, na verdade, aumentara a utilizagao do trabalho humano, duas interpretagoes mutuamente exclusivas do duplo movimento ainda
a introdugao dos mercados livres, longe de abolir a necessidade de con— se envolve, hoje em dia, a verdade ou inverdade da posicao liberal.
trole, regulamentagao e intervengao, incrementou enormemente o seu Autores liberais, como Spencer e Sumner, Mises e Lippmann, nos
alcance. Os administradores tinham que estar sempre alertas para garan—i oferecem um relato desse duplo movimento bastante similar a0 nosso,
tir o funcionamento livre do sistema. Assim, mesmo aqueles que deseja- mas lhe dao uma interpretacao inteiramente diferente. Enquanto, em
vam ardentemente libertar o estado de todos os deveres desnecessarios, nossa opiniao, o conceito de um mercado auto-regulével era utopico e
e cuja filosofia global exigia'a restrigéo das ati‘vidades do estado, nao seu progresso foi obstruido pela autoprotegao realista da sociedade, na
tinham outra alternativa senao confiar a esse mesmo estado os novos perspectiva deles todo o protecionsimo foi um erro resultante da impa-
poderes, orgéos e instrumentos exigidos para o estabelecimento do [ais- ciéncia, ambigao e estreiteza de visao, e sem elas o mercado teria resol-
sez—faire. vido suas dificuldades. Resolver qual dessas duas perspectivas é a corre-
Esse paradoxo foi sobrepujado por um outro. Enquanto a economia ta 6 talvez o problema mais importante da histéria social recente, uma
laissez-faire foi o produto da acao deliberada do estado, as restrigoes vez que ela envolve nada menos que uma decisao quanto a alegagao do
subseqiientes ao laissez-faire se iniciaram dc maneira espontanea. O [ais— liberalismo economico de ser 0 principio basico organizador da socie-
sez-faire foi planejado; o planejamento nao. A primeira metade desta dade. Antes de nos voltarmos para o testemunho dos fatos, é necessaria
afirmativa é verdadeira, como mosn-amos acima. Se alguma vez ja se fez uma formulagao mais precisa do tema.
uso .consciente do executivo, a servigo de uma politica deliberadament'e Em retrospecto, nossa época tera o crédito de ter visto o fim do
controlada pelo. governo, isto ocorreu com os benthamitas no periodo mercado auto-regulavel. A década de 1920 viu o prestigio do liberalis-
heréico do laissez-faire. A outra metade foi posta em debate, em primei- mo econémico no seu apogeu. Centenas de milhées de pesso'as
172 ro lugar, pelo eminente liberal Dicey, que tomou a si a tarefa de inquirir, haviam sido afetadas pelo flagelo da inflagao; classes sociais inteiras, 173
nacocs inteiras, haviam sido espoliadas. A estabilizacao da mocda se Brctanha, a ortodoxia orcamcntaria e monetaria levou um pais quc
.tornara
o ponto focal no pensamcnto politico de povos e governos; a enfrentava realmente uma guerra total a adcrir ao principio estratégico
restauracao do padrao-ouro era 0 objetivo supremo de todo o esforgo tradicional de Compromissos limitados. Nos Estados Unidos, os interes—
organizado na area economica. O pagamento dos empréstimos exter— ses investidos — tais como petroleo e aluminio - sc entrincheiraram por
nos e o retorno as moedas estaveis cram rcconhecidos como as pedras trés dos tabus do negocio liberal e resistiram com sucesso .aos prepara-
de toque da racionalidadc politica. Nenhum sofrimento particular, tivos de uma emergencia industrial. Nao fosse a insistencia tcimosa e
nenhuma violagao dc sobcrania, cra considerada um sacrificio dema- apaixonante dos liberais economicos em relagio as suasfalécias, os
lidcres da raga, assim como as massas de homens livres, cstariam mais
goes dos descmpregados, scm emprego devido‘a deflacaoga' demissao bcm equipados para enfrentar a tragédia da época, e talvez pudessem
dc funcionarios publicos, afastados sem uma pensao, até mesmo o até cvité—laL .
abandono dos direitos nacionais c a perda das liberdades constitucio— Os dogmas seculares de uma organizacio social quc inclui todo o
nais cram considerados um prcgo justo a pagar pelo cumprimento da mundo civilizado n50 sio derrubados pelos acontecimentos de apenas
exigencia dc orcamentos estaveis e moedas sélidas, estes a priori do uma década. Tanto na Gra-Brctanha como nos Estados Unidos milhées
liberalismo economico. . dc unidades dc negécios independentcs deviam sua cxisténcia aos prin-
A década dc 1930 viu as proposigées absolutas de década de 1920 cipios do laissez-faire e o. fracasso cspetacular cm uma dctcrminada
serem questionadas. Apés varios anos durante os quais as moedas area 1150 destruiu sua autoridade em todas elas. Na verdade, o scu
foram praticamentc restauradas e as orcamentos equilibrados, os dois eclipse parcial pode até ter fortalecido a sua influencia, uma vez que
paises mais poderosos, Gra-Bretanha e Estados Unidos, encontraram—se pcrmitiu a seus defensores argumentar que as razoes dc todas as difi-
cm dificuldades, abandonaram o padrio-ouro e comccaram a dirigir culdades a ele atribuidas resultavam da aplicagao incompleta dos seus
suas préprias moedas. As dividas internacionais cram repudiadas inte- principios.
gralmente e 08 pilarcs do liberalismo econ6mico eram’abandonados De fato, estc‘é qflfiltimo argumento do liberalismo economico quc
pelos mais ricos c mais respeitaveis. Em meados da década de 1930, a resta hoje em dia. Seus defensores rcpetcm, com infindaveis variacées,
Franga c alguns outros paiscs quc ainda aderiam ao ouro foram forga- que se néo fosscm as politicas apoiadas pelos seus criticos, o liberalismo
dos a abandonar esse padrao pelos Tesouros da Gra-Bretanha e dos teria atingido a sua meta; quc nio foram o sistema competitivo e o mer-
Estados Unidos, anteriormcnte Os zeIOSOS guardiaes do credo liberal. cado auto-regulavel os responsaveis pelos nossos males c sim a interfe-
Na década'de 1940, o liberalismo economico sofrcu uma derrom réncia com esse sistema e as intervencées nesse mercado. Esse argumen-
ainda maior. Embora a Gra-Bretanha e os Estados Unidos tivcsscm to nao cncontra apoio apenas nas recentes e inumeraveis violacées da
abandonado a ortodoxia monctéria,‘cles ainda guardavam os princi- liberdade econémica, mas também no fato indubitével de que o movi-
pios e os métodos do liberalismo na industria e no comércio, na orga- mento para difundir o sistema de mercados auto-regulaveis foi enfrenta-
nizagao geral da sua vida ccon6mica. Isto provaria scr um fator na pre- do, na segunda metadc do século XIX, por um contramovimcnto per-
cipitacao da guerra e uma desvantagcm em combaté-la, pois o liberalis- sistente que obstruiu o livre funcionamento de tal economia.
mo cconémico havia criado c alir'nentado a ilusao dc quc as ditaduras O liberal econ6mico esta, portanto, em condicées de formularum
so podiam resultar cm catéstrofe economical. Em razéo dessc credo, os caso quc liga o presente a0 passado num todo coerente. Quem iria
governos democréticos foram os ultimos a comprcender as implicacées negar que a intervencao governamental nos negécios pode minar a
das moedas administradas e do comércio dirigido, mesmo quando conflanca? Quem podcria negar que o desemprego talvez fosse menor
cram elcs mesmos quc utilizavam esses métodos por forca das circuns- sc a lei nao fornecessc bencficios aos sem trabalhOPQuc os negécios
,tancias. O legado do liberalismo cconomico também impedia o cami- particulates sao prejudicados pela competicao dc obras publicas? Que
sem .dos
nho para um rearmamento oportuno nome orgamcntos equili- o déficit financeiro pode amcacar os investimentos privados? Que o
brados .e da livreiempresa' quc sc imaginava serem os fornecedores dos paternalismo tende a desalentar a iniciativa dos ncgécios? Se isto aco'n-
174 unicos flmdamentos seguros da forga ccon6mica na guerra. Na Gra- tccc no presente, ccrtamcnte nao era diferente no passado. Em 1870, 175
quando comegou o movirnento protecionista geral na Europa — social e uma grande iniciativa. Incapaz de acrescentar a prova de qualquer
.nacional
— quem podera duvidar que ele dificultou e restringiu o co- esforgo conjunto para dissolver o movimento liberal, ele recai na hipo-
mércio? Quem podera duvidar que as leis fabris, o seguro social, 0 tese praticamente irrefutével da agao oculta. Este é o mito da conspira-
comércio municipal, os servigos de safide, de utilidade pfiblica, tarifas, gao antiliberal que, de uma forma ou outra, é comum a todas as inter-
subvencoes e subsidies, cartéis e trustes, embargos a emigracio, a pretacées liberais dos acontecimentos das décadas de 1870 e 1880. A
movimentos de capital, a importacoes — para néo falar de restrigoes forma mais comum é atribuir ao nascimento do nacionalismo e do socia-
menos claras a movimentos de homens, bens e pagamentos — devem lismo o crédito de agente principal nessa mudanga de cenério; as associa-
ter atuado como tantos outros empecilhos para o funcionamento do gées e 05 monopélios de fabricantes, os interesses agrarios,e. 95 sindicatos
sistema competitivo, adiando as depressées nos negécios, agravando o profissionais 550 OS viloes da peca. Assim, na sua forma mais espirituali-
desemprego, aprofundando os declinios financeiros, diminuindo o co- zada, a doutrina liberal consubstancia o funcionamento de alguma lei
mércio e danificando severamente o mecanismo auto-regulador do dialética na sociedade moderna invalidando os empenhos da razao escla-
mercado? A raiz de todo mal, insistem osliberais, foi precisamente essa recida, enquanto na sua versao mais crua ela se reduz a um ataque a
interferéncia com a liberdade de emprego, comércio e moedas pratica- democracia politica como fonte presumivel do intervencionismo.
da pelas varias escolas de protecionismo social, nacional e monopolista, O testemunho dos fatos contradiz decisivamente a tese liberal. A
desde o terceiro quarto do século XIX.Nao fosse a alianga profana dos conspiragao antiliberal é pura invencao. A grande variedade de formas
sindicatos profissionais e partidos trabalhistas com os fabricantes nas quais surgiu o contramovimento “coletivista” nao foi devida a qual-
monopolistas e os interesses agrarios que, na sua ambicao tacanha, uni- quer preferéncia pelo socialismoou pelo nacionalismo por parte dos
ram forgas para frustrar a liberdade 'econ6mica, o mundo estaria interesses envolvidos, mas deveu—se exclusivamente ao alcance mais
gozando agora dos frutos de um sistema quase automatico de criar amplo dos interesses sociais vitais afetados pela expansao do mecanismo
bem-estar material. de mercado. Isto justifica as reagoes quase universais, de caréter eminen-
Os lideres liberais jamais se cansam de repetir que a tragédia do temente prético, convocadas pela expansao desse mecanismo. Os
século XIX resultou da incapacidade do homem de permanecer fiel a modismos intelectuais nao desempenharam qualquer papel nesse pro-
inspiragao dos primeiros liberais. Que a generosa iniciativa de nossos cesso; de fato, nao havia lugar para o preconceito que o liberal vé como
ancestrais foi frustrada pelas paixoes do nacionalismo e da luta de clas- forga ideolégica por tras do desenvolvimento antiliberal. Embora seja
ses dos interesses investidos e d0s monopolistas e, acima de tudo, pela verdade que as décadas de 1870 e 1880 viram o fim do liberalismo
cegueira do povo trabalhador em relacao ao beneficio final de 'uma ortodoxo e que todos os problemas cruciais do presente tém sua raiz
liberdade economica irrestrita para todos os interesses humanos, inclu- nesse perfodo, seria incorreto dizer que a mudanga para um protecionis- ‘
sive os dele mesmo. Alega-se, assim, que um grande progresso intelec- mo social e nacional fosse devida a qualquer outra causa além da mani-
tual e moral foi frustrado pela fraqueza intelectual e moral da massa do festagao das fraquezas e perigos inerentes a um sistema de mercado anti-
povo. O que o espirito do Iluminismo havia alcangado fora derrotado regulavel. Isto pode ser demonstradd'em mais de uma forma.
pelas forgas do egoismo. Em poucas palavras, esta é a defesa do liberal Primeiro, existe a surpreendente diversidade dos assuntos em'rela-
economico e, a menos que ela seja refutada, ele continuara a ser exibi— gao aos quais a agao se fez sentir. Sé isto excluiria a possibilidade de
do na discussao dos argumentos. uma agao combinada. Podemos citar exemplos a partir de uma lista de
Focalizemos o assunto. Concorda-se que o movimento liberal, intervengoes compilada por Herbert Spencer em 1884, quando acusou
preocupado em difundir o sistema de mercado, foi enfrentado por um _ os liberais dc terem desertado seus princfpios em favor de uma “legis-
contramovimento protetor que se empenhava em restringi-lo. Esse lga'iorestritiva”.4 A variedade de assuntos nao podia ser maior. Fm
pressuposto, esté de fato implicito em nossa tese do duplo movimento. 1860, concedeu-se permissao para que os “analistas de alimentos e
Enquant'oafirmamos,_porém, que o absurdo inerente a idéia de um sis-
temédemercado auto-regulavel teria destruido a sociedade, eventual-
175 me'rite,.-o liberal acusa os elementos variados de haverem destrufdo 4 Spencer,‘H., The Man vs. the State, 1884. 177
bebidas fossem pagos através dos impostos locais”; a isto seguiu-se um Act (Decreto da Compensagéo do Trabalhador), que tratava da respon-
decreto autorizando a “inspecao das obras de gas”; uma ampliacio do sabilidade dos empregadores pelos danos causados aos seus emprega-
Mines Act “determinando penalidades para aqueles que empregassem dos durante o periodo do emprego. A historia dos varios decretos que
meninos abaixo de doze anos que nao freqfientassem escolas e que nao incorporaram essa idéia, desde 1880, demonstra a adesio total ao prin—
soubessem ler e escrever”. Em 1861, foi autorizado “aos guardiies da cipio individualista de que a responsabilidade do empregador para com
Poor Law tomar a vacinacao obrigatéria”; as juntas locais foram auto- seu empregado deveria ser regulamentada de maneira estritamente
rizadas “a fixar taxas de aluguel para os meios de transporte”; alguns idéntica a do governo em relagao aos outros, i.e., aos estrangeiros. Sem
orgios de formacéo local “haviam assumido poderes para taxar a loca- - 'que ocorresse qualquer mudanga de opiniio, em 18,97.-o.empregador .
lidade por obras de drenagem e irrigagao rural e para o fornecimento passou a ser, subitamente, o segurador dos seus trabalhadores contra
de'agua ao gado”. Em 1862, foi promulgado um decreto tornando ile- qualquer dano ocorrido durante o seu tempo de empregado, “uma
gal “uma mina de carvio com apenas um pogo”; um decreto concedeu legislagao perfeitamente coletivista”, conforme observou Dicey, muito
ao Council of Medical Education 0 direito exclusivo “de suprir a far- justamente. Nao se poderia acrescentar inelhor prova de que nao foi a
macopéia, cujo preco sera fixado pelo Tesouro”. Spencer, horrorizado, mudanca no tipo de interesses envolvidos on a tendéncia das opinioes
prencheu diversas paginas com a enumeragio destas e de outras medi- em relacéo ao assunto que levaram a substituigio de um princjpio libe-
das similares. Em 1863, “a vacina compulséria foi estendida a Escocia ral por um antiliberal, e sim exclusivamente a evolugao das condigées
e a Irlanda”. Houve também um decreto nomeando inspetores “para sob as quais o problema surgiu e para o qual se buscou uma solugéo.
as condicées de higiene dos alimentos”; um Chimney-Sweeper’s Act Terceiro, existe a prova indireta, mas bastante marcante, que‘ nos
‘(Decreto sobre Limpadores de Chaminés) para impedir a tortura e a oferece a comparacao do desenvolvimento de uma configuragao politi-
morte eventual de criangas 'que limpavam aberturas muito estreitas; um ca e ideolégica bastante diferente em varios paises. A Inglaterra vitoria-
Contagious Diseases Act (Decreto sobre Moléstias Contagiosas); um na e a Prussia de Bismarck cram polos 5 parte, e ambos eram muito
Public Libraries Act (Decreto sobre Bibliotecas Publicas), concedendo diferentes da Franga da Terceira Republican ou do Império dos Habsburgs.
poderes locais “pelos quais uma maioria pode taxar uma minoria pelos No entanto, cada um deles passou por urn periodo de livre-comércio e
seus livros”. Spencer acrescentou-0s como outra prova irrefutavel de laissez—faire, seguido por um perfodo de legislagao antiliberal em rela-
uma conspiragio antiliberal. No entanto, cada um desses decretos lida- 950 a safide publica, condicées fabris, comércio municipal, seguro
va com algum problema originado das modernas condigoes industriais social, subsidios de navegacao, utilidades pfiblicas, associagoes comer-
e objetivava defender algum interesse pfiblico contra 0s perigos ineren- ciais e assim por diante. Seria facil apresentar um calendario regular
tes a tais condicoes ou, pelo menos, ao método do mercado de lidar marcando os anos em que ocorreram tais mudangas analogas nos
com eles. Para uma mente imparcial, essas medidas comprovam a natu- diversos paises. A compensacio dos trabalhadores foi decretada na
reza puramente pratica, pragmatica, do contramovimento “coletivista”. Inglaterra em 1 8 8 0 e 1 8 9 7 , na Alemanha em 1 8 7 9 , na Austria em
A maioria daqueles que punham em pratica essas medidas eram parti- 1887, na Franca em 1899. A inspegio das fabricas foi introduzida na
darios convictos do laissez-faire e certamente nao achavam que seu Inglaterra e m 1 8 3 3 , na Prussia em 1 8 5 3 , na Austria e m 1 8 8 3 , na
consentimento para a organizagio de um corpo de bombeiros em Franga em 1874 e 1883. O comércio municipal, inclusive a diregao das
Londres implicasse um protesto contra os principios do liberalismo utilidades pfiblicas, foi introduzido por Joseph Chamberlain, um dissi-
econémico. Pelo contrario, os patrocinadores desses atos legislativos dente e um capitalista, em Birmingham na década de 1 8 7 0 ; na Viena
cram, em regra, oponentec intransigentes do socialismo ou de qualquer imperial na década de 1890, pelo “socialista” catélico, perseguidor de
outra forma de coletivismo. judeus, Karl Lueger, e nas municipalidades alemas e francesas através
Segundo, a mudanga‘de solucée's liberais para “coletivistas” ocorria de uma série de coalizées locais. As forcas de apoio eram its vezes vio-
is vezes da noite para 0 dia, e sem qualquer conscientizacio por parte lentamente reacionarias e anti-socialisms, 'como em Viena, outras vezes
dos que se engajavam no processo de ruminagao legislativa., Dicey “imperialistas radicais”, como em Birmingham, on tinham uma tonali-
17s acrescentou ainda o exemplo classico do Workmen’s Compensation dade puramente liberal como aconteceu com o francés Edouard 179
Herriot, prefeito de Lyon. Na Ingla'terra protestante, os gabinetes coletivamente, se assim decidissem; implicava também a liberdade dos
Conservador e Liberal agiam de forma intermitente para completar a homens de negocios de ajustar os pregos de venda independentemente
legislagao fabril. Na Altamanha, tanto Os catélicos romanos quanto os da vontade dos consumidores. Na pratica, porém, tal liberdade entrava
social-democratas tomaram parte na sua consecugao; na Austria, a em conflito com a instituigao de um mercado auto-regulavel e, em tal
Igreja e seus partidarios mais ativos. Na Franga, os inimigos da Igreja 6 conflito concedia-se precedéncia, inuariauelmente, ao mercado auto-
cs clericais mais ardentes foram responsaveis pela promulgagao de leis reguldvel. Em outras palavras, se as necessidades do mercado auto—
quase idénticas. Assim, sob os lemas mais variados, com as motivagées regulavel provavam ser incompativeis corn as exigéncias do laissez-
mais diferentes, uma multidao de partidos e _es_tra_tos sociais colocou e_m faire, o liberal economico voltava-se contra o laissez-faire e preferia —
funcionamento medidas quase exatamente iguais, numa série de pa15es como qualquer antiliberal— os métodos assim chamados coletivistas de
e em relagao a um grande numero de assuntos complicados. Em face regulamentagao e restrigao. A lei dos sindicatos profissionais e a legisla-
disto, nada é mais absurdo do que inferir que eles eram secretamente gao antitruste surgiram em consequéncia dessa atitude. Nao se poderia
impulsionados pelos mesmos preconceitos ideologicos ou restritos inte- oferecer prova mais conclusiva da inevitabilidade dos métodos antilibe-
resses de grupo, como quer fazer crer a lenda da conspiragao antilibe- ral ou “coletivista”, sob as condigoes da moderna sociedade industrial,
ral. Pelo contrario, tudo parece confirmar o pressuposto de que foram = do que o fato de que até mesmo os préprios liberais economicos usa-
razoes obje'tivas, de natureza premente, que forgaram a atuagao dos vam regularmente tais métodos em areas de importancia decisiva da
legisladores. organizagao industrial. '
Quarto, existe o fato significativo de que, em varias ocasiées, os A propésito, isto ajuda a esclarecer o verdadeiro significado do
projetos liberais economicos defenderam restrigées a liberdade do con- termo “intervencionismo”, com o qual os liberais economicos gostam
trato e do laissez-faire em urn numero de casos bem definidos, de gran- de demonstrar o oposto da sua prépria politica, mas que apenas
de importancia teorica e prética. O preconceito antiliberal certamente demonstra confusao de pensamento. O oposto do intervencionismo é
nao poderia ter sido a sua motivagao. Temos em mente, de-um lado, o o laissez—faire e acabamos justamente de ver que o liberalismo econo-
principio da associagao do trabalho e, do outro, a lei das corporagées mico nao pode ser identificado com o laissez—faire (embora na lingua-
de negécios. O primeiro refere-se ao direito dos trabalhadores de se gem comum nao exista qualquer prejuizo e m intercambia-los). D e
associarem com o propésito de elevar seus salaries; o ultimo, ao direito forma estrita, o liberalismo economico é o principio organizador de
dos trustes, cartéis ou outras formas de associagées capitalistas, de ele- uma sociedade na qual a industria se baseia na instituigao de um mer-
var os pregos. Em ambos os casos acusava-se justamente a liberdade de cado auto-regulavel. E verdade que, uma vez atingido um tal sistema,
contrato on o laissez—faire de estar sendo usado para restringir o mesmo aproximadamente, é cada vez menos necessario urn certo tipo
cornércio. Seja no caso das associagoes de trabalhadores para elevar de intervengéo. Todavia, lStO nao quer dizer que sistema de mercado e
salaries, ou das associagoes comerciais para elevar pregos, é obvio que intervengao sao termos mutuamente exclusivos. Enquanto esse sistema
o principio do laissez—faire podia ser usado pelas partes interessadas nao é estabelecido, os liberais econémicos apelarao, sem hesitar, para a
para estreitar o mercado tanto para o trabalho como para outras mer- intervengao do estado a fim de estabelecé-lo e, uma vez estabelecido, a
cadorias. E altamente significativo que, tanto num como noutro caso, firm de manté-lo. O liberal economico pode, portanto, sem qualquer
sélidos liberais, de Lloyd George a Theodore Roosevelt até Thurman contradigao, pedir que o estado use a forga da lei; pode até mesmo
Arnold e Walter Lippmann, subordinaram o laissez-faire a exigéncia de apelar para as forgas violentas da guerra civil a fim de organizar as pre-
um mercado competitivo livre. Eles pressionaram por regulamentagoes condigoes de um mercado auto-regulavel. Na America do Norte, o Sul
e restrigées, por leis penais e compulsao, argumentando, como o faria apelou para os argumentos do laissez-faire para justificar a escravidao;
qualquer “coletivista”, que a liberdade d'e contrato estava sendo “abu- o Norte apelou para a intervengao das armas para estabelecer um mer-
Sadat", por:._Sindicatos ou corporagées,rqualquer que fosse o caso. - cado de trabalho livre. A acusagao de intervencionismo por parte de
Teoricamente; .o laissez-faire on a liberdade de contrato implicava a autores liberais e, portanto, um slogan vazio, implicando a denuncia de
180 liberdade dos trabalhadores de recusar-se a trabalhar, individual on um finico e idéntico conjunto de agoes conforme eles possam aprova- 181
las ou nao. O finico principio que os liberais podem manter sem cair mos demonstrar serem os interesses particulares independentes das
em contradigio e 0 do mercado auto- regulavel, quer ele 0s envolva em ideologias especificas presentes em uma série de diferentes paises
intervengao ou nao. Também nesse caso pudemos apresentar provas conclusivas. Final-
Resumindo: o contramovimento que se opés a0 liberalismo econo- mente, o comportamento dos préprios liberais provou que a manuten-
mico e a0 laissez-faire teVe todas as caracteristicas inequivocas de uma gao da liberdade de comércio — em nossos termos, de um mercado
reagao espontanea. Em infimeros pontos isolados ele surgiu sem que auto-regulavel — longe de excluir a intervencao, na verdade exigia tal
houvesse ligagoes aparentes entre 'os interesses diretamente afetados ou acao, e que os prépriosliberais apelaram sistematicamente para a atua-
gao compulséria do estado,coino no caso da lei dos sindicatos profis-
mesmo problema, conio no caso da compensacao aos trabalhadores, as sionais e das leis antitrustes. Assim, nada poderia ser mais incisivo que
solucoes mudavam de individualista para “coletivista”, de liberal para a evidéncia da histéria sobre qual das duas interpretagées‘conflitantes
antiliberal, do “laissez-faire” para formas intervencionistas, sem que do duplo movimento é correta: a do liberal economico que afirma que
ocorresse qualquer mudanga no interesse econémico, nas influéncias sua politica jamais teve uma oportunidade, tendo sido estrangulada por
ideolégicas ou nas forgas politicas em jogo, mas apenas como resultado sindicalistas de visao estreita, intelectuais.marxistas, fabricantes ganan—
da crescente compreensao da natureza do problema em questao. Pode- ciosos e latifundiarios reacionarios; ou a dos seus criticos, que podem
se demonstrar, também, que uma mudanca bastante similar do laissez- apontar para a magic “coletivista” universal contra a expansao da eco-
faire para o “coletivismo” ocorreu em varios paises, num estagio defini- nomia de mercado, na segunda metade do século XIX, como prova '
do do seu desenvolvimento industrial, revelando a profundidade e conclusiva do perigo para a sociedade inerente ao principio utépico de
independéncia das causas subjacentes ao processo que os liberais eco- um mercado auto-regulavel.
némicos atribuiram, de forma tao superficial, a climas de mudanga on
a interesses diversos. Finalmente, a analise. revela que nem mesmo .os
adeptos mais radicais do liberalismo econémico puderam fugir a regra-
que tornou o laissez—faire inaplicavel as condigées industriais avanca-
das. No caso critico da lei dos sindicatos profissionais, e das regula-
mentacées antitrustes, os préprios liberais extremados apelaram para
intervengées mfiltiplas do estado, a fim de garantir as precondigées de
funcionamento de um mercado auto-regulavel contra acordos mono-
polistas. Até mesmo o livre comércio e a competigao exigiam a inter-
veng'éo para poderem funcionar. E, portanto, contrario a todos os fatos
o mito liberal da conspiragio “coletivista” das décadas de 1870 e-1880.
Achamos, assim, que a evidéncia comprova a interpretagao que
damos a0 duplo movimento. Se a economia de mercado foi uma amea-
ca para os componentes humano e natural do tecido social, como insis-
timos, o que mais se poderia esperar senao que uma ampla gama de
pessoas exercesse a maior pressao- no sentido de obter alguma espécie
de protecao? Foi isto o que encontramos. Seria de se esperar, também,
que isto acontecesse sem qualquer prevencao teorica ou intelectual por
patte deles, e a despeito da atitude que assumiam em relacao aos prin-
'cipios
subjacentes a u m a economia demercado. Mais uma vez, .este foi
Ozcasa Além disso, sugerimos -que a histéria comparativa dos governos
1'82_ poderia oferecer urn apoio quase experimental a nossa tese, se pudésse- 183
aos das firmas de armamentos que adquiriam, miraculosamente, a
capacidade de levar nagées inteiras a politicas fatais, contrérias a seus
interesses vitais. D e fato, liberais e marxistas estavam de acordo ao
inferir o movimento protecionista a partir da forga dos interesses sec-
cionais; em responsabilizar as tarifas agrérias pela forga politica dos
13 latifundiarios reacionérios; e m fazer da fome de lucro dos magnatas
'industriais a responsavel pelo crescimento das formas monopolisticas
de empresa; em apresentat a guerra comb-resultado da agressividade
0 NASCIMENTO DO CREDO LIBERAL dos negécios. '
(CONTINUAQAO); o INTERESSE A perspectiva economica liberal encontrou, assim, um apoio pode-
roso numa estreita teoria de classe. Defendendo a perspectiva das clas-
,DE CLASSE E A MUDANCA SOCIAL ses em oposigao, liberais e marxistas apresentaram proposigoes idénti—
cas. Estabeleceram um caso inequivoco para a afirmativa de que 0 pro-
tecionismo do século XIX- foi o resultado da agao de classe, e que essa
agao deveria atender basicamente aos interesses economicos dos mem-
bros das classes envolvidas. Entre si, eles quase obstruiram por comple-
to uma visao geral da sociedade de mermdo e a fungao do protecionis-
mo em tal sOciedade.
O mito liberal da conspiragéo coletivista deve ser dissipado inteira— Na verdade, os interesses de classe oferecem apenas uma explica-
mente antes de se colocar a nu a verdadeira base das politicas do século géolimitada para os movimentos da sociedade a longo prazo. O desti-
XIX. Essa fabula alega que o protecionismo foi apenas o resultado dos no das classes é muito mais determinado pelas necessidades da socieda-
sinistros interesses agrarios dos fabricantese dos sindicalistas que arrui- de do que o destino da sociedade é determinado pelas necessidades das
naram, de forma egofsta, a maquinaria automatica do mercado. De classes. Dada' uma estrutura definida da sociedade,. a teoria de classe
uma outra forma e com uma tendéncia politica oposta, naturalmente, funciona; mas o que acontece se esta estrutura sofre mudanga? Uma
os partidos'marxistas argumentavam em termos igualmente seccionais. classe que perde a sua fungao pode se desintegrar e ser rapidamente
(N50 é relevante, aqui, o fato da filosofia basica de Marx centralizar-se suplantada por uma nova classe ou classes. Ocorre, ainda, que as opor—
na totalidade da sociedade e na'natureza nao—economica do homem.1) tunidades das classes em luta dependerao da sua habilidade em ganhar
O proprio Marx seguiu Ricardo ao definir as classes em termos econo- apoio fora da sua prépria coletividade, e-isso também dependera da
micos e a exploragao economica foi, sem dfivida, urn aspecto da era possibilidade de executarem as tarefas estabelecidas por interesses mais
burguesa. ' amplos do que o seu proprio. Assim, ‘r‘i‘em o nascimento nem a morte
No marxismo popular isto levou a uma incipiente teoria de classe das classes, nem os seus objetivos, nem o' grau em que elas o atingem,
do desenvolvimento social. A presséo por mercados e zonas de influen- nem as suascooperagoes ou os seus antagonismos podem ser com-
cia foi simplesmente atribuida a motivagao do lucro de um punhado de preendidos fora da situagao da sociedade como um todo.
. financistas. O imperialismo foi explicado como uma conspiragio capi- O r a , e m regra essa situagao é criada por causas externas, como
talista para induzir governos a se langarem a guerras no interesse dos uma mudanga noclima, no resultado das colheitas, um novo inimigo,
grandes negocios. Atribuia—se as guerras a esses interesses, combinados uma .nova arma us'ada por um antigo inimigo, a emergéncia de novas
finalidades comunais on, se for o caso, a descoberta de novos métodos
para alcangar os fins tradicionais. Os interesses seccionais tém que estar
_ 1‘
Marx, K., “Nationalokonomie und Philosophie”, Em Der Historische Materialismus, relacionados corn esta situagéo total, em filtima instancia, para tornar
1.8.4- 1932. ' ' bem data a sua fungao no desenvolvimento social. 185
O papel essencial desempe nhado pelos interesses de classe na motivagées dos individuos humanos so excepcionalmente sao determi-
mudanca social esta na natureza das coisas. Qualquer forma ampla de nadas pelas necessidades do desejo-satisfagao material. 0 fato de a
mudanga deve afetar as varias partes da comunidade, de diferentes . sociedade do século XIX ser organizada a partir do pressuposto de que
maneiras, ainda que nao seja por outra razao que as diferengas de loca- tal motivagao poderia tornar-se universal foi uma peculiaridade da
gao geografica e de equipamento economico e cultural. Os interesses época. Era apropriado, portanto, oferecer um campo comparativamen—
seccionais sao, portanto, o veiculo natural da mudanga social 6 politica. te mais amplo para o desempenho das motivagoes economicas quando
Qualquer que seja a fonte da mudanga, guerra ou comércio, invengoes . se analisava essa sociedade. Temos que nos resguardar, porém, contra o
assombrosas ou mudangas nas condigoes naturais, as varias secgoes da_ ‘ptejulgamento do 'aSSunto, que é precisa'nie’nte em que medida-uma tal‘
Sociedade procurari o métodos diferentes de ajustamen to (inclusive motivagao insélita podia se tornar efetiva.
pela forga) e conciliarao seus interesses de modo diferente dos escolhi- Assuntos puramente economicos como os que afetam o desejo-
dos por outros grupos, os quais talvez até procurem conduzir. Dai, satisfagao sao incomparavelmente menosrelevantes para o comporta-
somente quando se pode apontar o grupo ou grupos que efetuaram a - mento de classe do que questées de reconhecimento social. 0 desejo-
mudanga, pode-se explicar como essa mudanga ocorreu. Entretanto, a satisfagao pode ser, sem duvida, o resultado de um tal reconhecimento,
causa filtima é estabelecida por forgas externas e a sociedade depende especialr'nente como seu indicio ouprémio exterior. Todavia, os inte-
das forgas internas apenas para o mecanismo da mudanga. O “desafio” resses de uma classe se referem mais diretamente a sua posigao e lugar,
é para a sociedade como um todo; a “resposm” chega através de gru- a0 status 6 seguranga, isto é, eles sao basicamente nae-economicos, mas
pos, secgées e classes. sociais.
Os meros interesses de classe nao podem, portanto, oferecer uma As classes e os grupos que tomaram parte, intermitentemente, no
explicagao satisfatéria para qualquer processo social a longo prazo. movimento geral em diregao ao protecionismo apés 1870. nao o fize-
Primeiro, porque o procesSo em questao pode decidir sobre a existen- ram, basicamente, por conta dos seus interesses economicos. As medi-
cia da prépria classe; segundo, porque os interesses de dadas classe's das “coletivistas” promulgadas nos anos criticos revelam que so excep-
determinam apenas 0s objetivos e os propésitos em cuja diregao essas -cionalmente estaria envolvido o interesse de uma unica classe, e, neste
classes lutam, e n50 também o sucesso ou fracasso de tais esforgos. N50 caso, esse interesse raramente poderia ser descrito como economico. E
existe qualquer magica nos interesses de classe que possa garantir aos certo que nenhum “interesse economico estreito” poderia ser atendido
membros de uma classe o apoio dos membros de outras classes. E, no por um decreto que autorizava as autoridades da cidade assumir res-
entanto, esse apoio é uma ocorréncia diaria e o protecionismo constitui ponsabilidade sobre espagos ornamentais negligenciados; por regula-
um bom exemplo. O problema aqui nao é por que o campo, os fabri- mentagées que exigiam a limpeza das padarias com agua quente e
cantes on OS sindicalistas desejaram elevar suas rendas através da agio sabao pelo menos uma vez em seis meses; ou um decreto que tornava
protecionista, mas porque. conseguiram fazé-lo; n50 por que homens compulsério examinar cabos e incoras. Tais medidas corresponderam
de negécios e trabalhadores desejaram estabelecer monopélios para sirnplesmente as necessidades dc uma'vcivilizagéo industrial as quais os
seus produtos, mas porque atingiram o seu objetivo; nao por que métodos dos mercados n50 eram capazes de atender. A grande maioria
alguns grupos agiram de modo semelhante em uma série de paises con- dessas intervengées nao teve qualquer influéncia direta, _e pouco mais
tinentais, mas porque tais grupos existiram nesses paises tao diferentes que indireta, nos rendimentos. Isto ocOrreu com praticament‘e todas as
em outros sentidos e atingiram igualmente seus objetivos em todos os leis relacionadas asafide e a habitagao, as amenidades e as bibliotecas
lugares; nao porque aqueles que cultivavam o trigo tentavam vendé—lo pfiblicas, as condigées fabris e a0 seguro social. 0 mesmo aconteceu
mais caro, mas porque eles conseguiam, regularmente, persuadir aque- em relagao as utilidades publicas — educagao, transporte e inumeros
les que comprava m o trigo a ajudar no aumento do seu prego. outros assuntos. Mesmo nos casos que envolviam valores monetarios,
--Segundo, existe a doutrina igualmente equivoca da natureza essen— eles erar'n secundarios em relagao a Outros interesses. Quase invariavel-
cialmente economica dos interesses de classe. Embora a sociedade mente, o que estava em 'questao era 0 status profissional, a seguranga e
1.86 humana seja naturalmente condicionada por fatores economlcos, as ‘ a estabilidade, a forma da Vida de um homem, a extensao da sua exis- 187
téncia, a estabilidade do seu ambiente. A importancia monetaria de comunidade como um todo. Entretanto, se a ascensao dos industriais,
algumas intervencées tipicas, como tarifas aduaneiras ou compensagéo empresarios e capitalistas foi o resultado do seu papel dominante no
dos trabalhadores, nao deve ser minimizada, de forma alguma Porém,
movimento expansionista, a defesa recaiu sobre as classes fundiarias
mesmo nesses casos 0s interesses nao—monetarios eram inseparaveis dos tradicionais e a nascente classe trabalhadora. Se dentre a comunidade
monetérios. As tarifas aduaneiras, que implicavam lucro para os capita- comercial coube aos capitalistas representar os principios estruturais do
listas e salarios para os trabalhadores, significavam também, em filtima sistema de mercado, o papel de defensor ferrenho do tecido social
instancia, seguranga contra o desemprego, estabilidade para as condi- coube, de um lado, a aristocracia feudal e, de outro, ao ascendente
goes regionais, seguranga contra. a liquidagao de indfistriaS e, talvez
0..... proletariado industrial. Entretanto, enquanto as classes fundiarias natu-
melhor, anulacao da dolorosa perda de status que acompanha inevita- ralmente procuravam a solucao de todos 05 males na manutencao do
velmente a mudanga para um emprego no qual o homem se sente passado, os_ trabalhadores estavam, até certo ponto, em posigao de
menos habilitado e experirnentado do que no seu proprio. transcender os limites de uma sociedade de mercado e pedir solugoes
Ja que nos livramos da obsessio de que apenas os interesses seccio— ao futuro. Isto nio significa que a volta a0 feudalismo on a proclama-
nais, e nunca os gerais, podem se tornar efetivos, assim como do pre- 950 do socialismo estavam entre as linhas de agao possiveis, mas indica
conceito gémeo de restringir os interesses dos grupos hunmanos a seus as diregées inteiramente diferentes para as quais tendiam as forgas
rendirnentos monetérios, a amplitude e a compreensao do movimento agrarias e da classe trabalhadora urbana na busca de solugao para uma
protecionista perdem seu mistério. Enquanto os interesses monetérios emergencia. Se a economia de mercado entrasse em colapso, como
sao veiculados, necessariamente, apenas pelas pessoas a quem eles per- arneagou ocorrer em cada uma das crises maiores, as classes fundiarias
tencem, outros interesses tém uma clientela mais ampla. Eles afetam os podiam tenmr um retomo a um regime militar ou feudal de paternalis-
individuos de infimeras maneiras, como vizinhos, profiSsionais, consu- mo, enquanto os trabalhadores fabris viam a necessidade de estabelecer
midores, pedestres, viajantes, esportistas, andarilhos, jardineiros, uma comunidade de trabalho cooperativo. Numa crise, as “respostas”
pacientes, macs ou amantes — e 550 passiveis de serem representados. podem apontar para solucoes mutuamente exclusivas. Um simples cho-
por quase todos os tipos de associagao territorial ou funcional, como que de interesses de classe, que poderia ser solucionado pelo compro-
igrejas, distritos, fraternidades, clubes, sindicatos ou, mais comumente,‘ misso, se revestiu de um significado fatal.
partidos politicos de amplas bases de adesao. Uma concepgzao dc inte— Tudo isto deveria alertar-nos contra confiar demais nos interesses
resse demasiado estreita pode levar, com efeito, a uma visao deturpada economicos de dadas classes para a explicagfio da histéria. Uma abor-
da histéria social e politica, e nenhuma definigao puramente monetéria dagem como essa irnplicaria a admissao técita dessas classes num senti-
dos interesses deixa espago para aquela necessidade vital de protegao do que so seria possfvel numa sociedade indestrutivel. Isto deixaria
social, cuja representacao recai, habitualmente, nas pessoas encarrega- fora do alcance aquelas fases criticas da histéria, quando uma civiliza-
das dos interesses gerais da comunidade — sob condigées‘modernas, os cao desmorona ou passa por uma transformagao, ocasiao em que,
governos do dia. Foram precisamente 0s interesses sociais, e 115.0 os como regra, novas classes se formam, asivezes no mais curto espago de
economicos, de diferentes segmentos da populagao que se viram amea— tempo, a partir de ruinas de classes antigas, ou até mesmo a partir de
cados pelo mercado, e pessoas pertencentes a varios estratos economi- elementos extrinsecos, como aventureiros estrangeiros ou proscritos.
cos inconscientemente conjugaram forcas para conjurar o perigo. Numa conjuntura historica, é freqiiente surgirem novas classes simples-
A ampliagio do mercado foi pois simultaneamente adiantada e obs— mente em virtude das exigéncias da hora. Assim, em filtima instancia, é
truida pela agao das forgas de classes. Dada a necessidade de uma pro- a relagao que uma classe tem com a sociedade como um todo que deli-
ducao de maquina para o estabelecirnento de um sistema de mercado, mita a sua parte no drama. Seu sucesso é determinado pela amplitude e
somente as classes comerciais estavam em'posigao de assumir a lideran- variedade dos interesses, além dos seus préprios, que ela é capaz de
9a nessa.-prirneira transformagao, ESurgiu uma nova classe de empresé- servir. Na verdade, nenhuma politica de interesse de classe restrito
r_i'Q$ dos remanescentes das antigas classes, a fim de tornar conta de um pode defender bem até mesmo esse interesse — uma regra que $6 per-
1333 desenvolvimento que estava em consonancia com os interesses da mite poucas excegoes. Nenhuma classe brutalmente egoista pode man- 139
ter-se na lideranca a nao ser que a alternafiva para a conjuntura social E fora de dfivida, que uma calamidade socialé basicamente um
seja um mergulho na destruicao total. fenomeno cultural e nao um fenomeno econémico que pode ser medi-
Para poder iogar a culpa na suposta conspiragio coletivism, os libe- do por cifras de rendimentos ou estatisticas populacionais. Catéstrofes
rais econémicos tém que negar, em filtima instancia, que jamais tenha culturais que envolvem amplos estratos do povo comum nao podem
ocorrido qualquer necessidade de protecao para a sociedade. Em época 'ser freqiientes, naturalmente. Mas também nao ‘0 s50 acontecimentos
recente, aplaudiram as opinioes dc alguns eruditos que abandonaram a mtaclismicos como a Revolucao Industrial — um terremoto economico
doutrina tradicional da Revolugéo Industrial, segundo a qual desabou que em menos de meio século transformou grandes massas dc habitan—
uma catastrofe sobre as infelizes classes trabalhadoras da Inglaterra na tes do campo inglés de gente estabelecida em migrantes ineptos.
década de 1790. Conforme esses autores, o povo comum jamais foi Todavia, se desmoronamentos destrutivos como esses sao excepcionais
atingido por algo semelhante‘a subita deterioracao dos padroes. Em‘ na histéria das classes, eles sao uma ocorréncia comum na esfera dos
média, ele estava bem melhor do que antes da introdugio do sistema contatos culturais entre povos de racas diferentes. Intrinsecamente, as
fabril e, quanto aos numeros, ninguém poderia negar o seu répido cres- 'condigoes $50 as mesmas. A diferenga esta principalmente no fato de
cimento. Os autores confirmavam ainda que, baseando—se nos indices que uma classe social 6 parte de uma sociedade que habita a mesma
aceitos dc bem-estar economico - salaries reais e dados populacionais - area geogréfim, enquanto o contato cultural ocorre geralmente entre
o inferno do capitalismo primitivo jamaisexistiu. Longe de terem sido sociedades estabelecidas em diferentes regioes geograficas. Em ambos
exploradas, as classes trabalhadoras foram economicamente as vence- . os easos o contato pode ter efeito devastador sobre a parte mais fraca.
doras, e era obviamente impossivel discutir a necessidade de protegéo A causa da degradagao, 1150 6, portanto, a exploragio economica,
social contra um sistema que .beneficiava a todos. . como se presume muitas vezes, mas a desintegragéo do ambiente cultu-
Os criticos do capitalismo liberal fimram surpresos. Durante cerca ral da vitima. O processo economico pode, naturalmente, fornecer o
de setenta anos, estudiosos e comissées reais denunciaram os horrores veiculo da destruigio, e quase invariavelmente a inferioridade econo-
da Revolugao Industrial e uma galaxia de poetas, pensadores e autores . mica faré o mais fraco se render, mas a causa imediata da sua ruina nao
estigmatizaram as suas crueldades. Era considerado fato estabelecido é essa razao economica — ela esta no ferimento letal infligido as institui—
que as massas estavam sendo exauridas e definhavam com a explora- goes nas quais a sua existéncia social esta inserida. O resultado é a
céo impiedosa do seu desamparo; que os cercamentos haviam privado perda do auto-respeito e dos padrées, seja a unidade um povo ou uma
os moradores do campo de seus lares e terras, atirando-os ao mercado classe, quer o processo resulte do assim chamado “conflito cultural” ou
dc trabalho criado pela Poor Law Reform; e que as tragédias compro- de uma mudanca na posigao de uma classe dentro dos lirnites de uma
vadas das criangas que trabalhavam até morrer nas minas e fabricas sociedade.
ofercciam prova impressionante da destituicéo das massas. De fato, a Para 0 estudioso do capitalismo primitive o paralelb é altamente
explicacao habitual da Revolucao Industrial se baseaya no .grau de significativo. A condigéo de algumas tribos nativas na Africa, hoje em
exploragao que os cercamentos do século XVIII tornaram possivel; dia, tern uma semelhanga indiscutfvel com as das classes trabalhadoras
nos baixos salérios oferecidos aos trabalhadorcs sem lar, responsaveis inglesas durante os primeiros anos do século XIX. O cafre da Africa do
pelos elevados lucros da industria do algodéo, assim como pela rapida Sul, um nobrc selvagem que nao podia se sentir mais seguro socialmen—
acumulagio dc capital nas maos dos primeiros fabricantes. A acusagéo te no seu kraal nativo, foi transformado numa variedade humana dc
contra cstes era de exploragio, uma exploracao ilimitada dos scus animal semidomesticado, vestido com os “trapos mais disparatados,
semelhantes, considerada a causa basica de tanta miséria e aviltamcn— mais imundos, mais disformes que o mais degenerado homem branco
to. Tudo isto estava sendo agora aparentemente refutado. Historia- jamais usaria”,2 um ser indescritivel, sem auto-respeito ou padrio, um
' dores economicos aplaudiam o fato de se ter dispersado a sombra verdadeiro refugo humano. A descricio lembra o retrato que Robert
negra Que cncobria as primeiras décadas do sistema fabril. Como
p deria ocorre; uma catastrofe social onde havia, sem dfivida, pro-
190 gresso econém1co> 2 Millin, Mrs. S. G., The South Africans, 192.6. 191
->=u:='a=
Owen descreveu de seus proprios trabalhadores, quando a eles se diri- O historiador social, porém, nio segue a sugestao. Ele ainda se
giu e m New Lanark, dizendo-lhes na cara, serena e objetivamente recusa a ver que a forga elementar do contato cultura l, que esta agora
‘ como um pesquisador social registraria os fatos, por que eles hav1am se revolucionando o mundo colonial, é a mesma que, ha um século, criou
transformado na ralé degradada que eram. E a verdadeira causa da sua as cenas funestas do capitalismo primitive. Um antropélogo5 chegou a
degradagao n50 poderia ser mais habilmente descrim do que pelo fato conclusao geral: “A despeito de numerosas diVergéncias, existem no
deles viverem num “vacuo cultural” — o termo usado por um antropo- fundo as mesmas situagoes entre os povos exéticos de hoje que exis-
logo3 para descrever a causa do aviltamento cultural de algumas das tiam entre nos ha décadas ou séculos. Os novos dispositivos técnicos, o
tribos negras mais valentes da Africa, sob a influénCia do contato com a novo conhecimento, as novas formas de riqueza e poder acentuararn a
civilizagiobranca. Suas habilidades haviam decaido, as condigoes poli- _ mobilidade social , L e , a migragao de individ uos, o aumen to e dimi-
ticas e sociais da sua existéncia haviam sido destruidas, eles estao “mor- nuigao das familias, a diferenciagao de grupos, novas formas de lide-
rendo de tédio”, segundo a famosa frase de Rivers, ou desperdigando ranca, novos modelos de Vida, diferentes valorizagoes”. A niente pene-
suas vidas e substancias na dissipagao. Enquanto sua propria cultura trante de Thumwald reconheceu que a catéstrofe cultural da sociedade ne-
nio mais lhes oferece quaisquer objetivos dignos de esforgo ou sacrifi- gra, hoje, é bastante analoga a de uma grande parte da sociedade bran-
cio, o esnobismo racial e o preconceito barram o caminho para sua ca nos primeiros dias do capitalismo. $6 0 historiador social ainda
participagao adequada na cultura dos invasores brancos.4 Substituamos perde este ponto de analogia. '
a exclusao de cor pela exclusao social e emergira as Duas Nagoes da Nada obscurece mais a nossa visao social do que o preconceito eco-
década de 1840, sendo o cafre apropriadamente substituido pelo cam- nomico. A exploragao tem sido colocada tao persistentemente a frente
baleante morador da favela, das novelas de Kingsley. do problema colonial que este ponto exige uma atengao especial. A
Mesmo aqueles que podem concordar inteiramente que a Vida num exploracao feita pelo homem branco, num sentido obviamente huma-
vazio cultural nao é Vida, parecem esperar que as necessidades econo- no, tern sido perpetra da com tanta freqiiéncia, corn tanta persisténCia 6
micas preencham automaticamente aquele vazio e tornem a Vida mais. com tanta impiedade em relacao aos povos atrasados do mundo, que
suportavel sob quaisquer condigoes. Esse pressuposto é contestado, de poderia aparecer apenas uma total insensibilidade nao atribuir-lhe um
forma contundente, pelo resultado da pesquisa antropolégica. “Os lugar de destaque em qualquer discussao sobre o problema colonial.
objetivos pelos quais os individuos irao trabalhar sao determinados cul- No entanto , é precisamente essa énfase na exploragao que tende a
turalmente e nao sio uma resposta do organismo a uma sntuagao exterv ocultar da nossa perspectiva o tema ainda maior da degeneracao cultu-
na, culturalmente indefinida, como uma simples escassez de alimento”, ral. Se a exploragio é definida, em termos estr‘itamente economicos,
diz a Dra. Mead. “O processo pelo qual se converte um grupo de sel- como uma insufici éncia perman ente na propor cao da troca, entao
vagens em mineiros de ouro ou tripulagoes de navios, ou ele é simples- pode-se du'vidar se de fato existiu a exploragéio. A catastrofe da comu-
mente espoliado de todo incentivo para o esforco e abandonado a uma nidade nativa é um resultado direto da ruptura rapida e violenta das '
morte indolor ao lado de correntes ainda repletas de peixes, pode instituigoes basicas da vitima (n50 parece relevante se a forga é usada
parecer tao bizarro, tao alheio a natureza da sociedade e seu funciona— on n50 no processo). Essas instituigoes sao dilaceradas pelo proprio
mento normal, que pode parecer patologico”, e no entanto, acrescenta fato de que uma economia de mercado é impingida a uma comunidade
ela, “é precisamente o que acontece com o povo, em regra, em meio a organizada de modo inteiramente diverso; o trabalho e a terra se trans-
uma mudanga externa violentamente introduzida, ou pelo menos pro- formam em mercadorias, o que, mais uma vez, é apenas a formula
duzida externamente...” E conclui ela: “Este contato rude, este desen- abreviada para a liquidagao 'de toda e qualquer instituigao cultural
raizamento de pessoas simples dos seus mores, é .demasiado freqfiente numa sociedade organica. As alteracoes nos rendimentos e nas cifras
para nao, merecer séria atencao por parte do historiador social”.
3 Goldenweiser, A., Anthropoly, 1937. ‘ 5 Thumwald, p. c., Black and White in Eau Am.- The Fabric ofa New Civilization,
1 9 2 4 'Goldenweiser, A., ibid. 1935.
193
populacionais sao evidentemente incomensuraveis em tal processo. mente grave apenas depois que se aboliu o impiedoso monopélio da
Quem, por exemplo, poderia negar que um povo anteriormente livre Companhia das Indias Orientais e se introduziu o livre comércio na
tenha sido explorado, arrastado para a escravidao, embora seu padrao India. Durante a . é p o c a dos monop6lios, a situacao se mantinha sob
de vida, em algum sentido artificial, possa ter melhorado no pais para controle com a ajuda da organizacao arcaica do campo, inclusive 3
o qual foi vendido, se comparado ao que tinha na sua floresta nativa? livre distribuicao do trigo, enquanto sob uma troca livre e igual os
'indianos
E, no entanto, nada seria alterado se imaginassemos que os nativos pereciam aos mi1h6es. A India pode ter sido beneficiada eco-
conquistados haviam sido libertos, 6 nine teriam sequer que pagar o nomicamente— e certamente foi, a longo prazo— mas ela foi desorgani-
prego excessivo dos algodoes baratos a eles impingidbs, e que a sua... zada socialmente e se tornou presa da nuser1aeuda degradagao.
inanigao era causada “simplesmente” pela ruptura de suas instituicées
sociais. podemos dizer, Iniciou o contato cultural desintegrador. A concessao
Podemos citar o famoso exemplo da India. As massas indianas nao territorial obrigat6ria feita em 1887 aos indios norte-americanos bene-
morriam de fome na segunda metade do século XIX porque eram ficiou-os individualmente, segundo a nossa tabela financeira de calculo.
exploradas pelo Lacanshire; elas pereciam em grande nfimero porque a Entretanto, a medida quase destruiu a raga na sua existéncia ffsica — o
comunidade aldea indiana havia sido abalada. E uma verdade indiscuti- caso mais importante de degeneragao cultural em registro. O génio
vel que isto ocorreu através das forcas da competigao economica, isto moral de um John Collier redimiu a situagao, quase meio século mais
é, o constante barateamento dos chaddar feitosaa m a o em fungao das tarde, insistindo na necessidade de um retornoas aspossessées tribais:
mercadorias feitas‘a maquina. Todavia, isto prova 0 oposto da explora- hoje os indios norte-americanos, pelo menos em alguns lugares, tém
gao econémica, uma vez que o dumping significa o inverso da onera- novamente uma comunidade viva — e 1150 foi a melhoria econ6mica,
gao. A verdadeira fonte da penfiria dos ultimos cinqiienta anos foi a mas a restauragd‘o social que fez o milagre. O choque de um contato
livre comercializacao de cereais, em conjunto com a baixa dos rendi- cultural devastador foi registrado pelo nascimento patético da famosa
mentos locais. O fracasso nas colheitas 6 parte do quadro, sem dfivida, - Danga do Espectro, versao .da Pawnee Hand Game, em 1890 mais ou
mas as areas ameagadas foram amparadas com a remessa de cereais menos, exatamente na ocasiao em que a melhoria das condigées eco-
através de ferrovias. O problema, porém, era que o povo nao podia nomicas tornava anacrénica a cultura aborigine desses peles-vermelhas.
comprar o trigo aos precos astronomicos que, num mercado livre mas Além disso, o fato de que nem mesmo um aumento de populagao — o
incompletamente organizado, seriam a reagao a escassez. Em épocas outro indice economico — precisa excluir uma catastrofe cultural é
anteriores havia pequenos dep6sitos locais para o abastecimento no igualmente apoiado pela pesquisa antropolégica.‘ As taxas naturais de
caso de fracassarem as colheitas, mas eles nao foram conservados, ou aumento da populacao podem ser, na verdade, tanto um fndice de vita-
foram absorvidos pelo grande mercado. Por esta razao, a prevengao lidade cultural como de degradacao cultural. O significado original da
contra a fome assumia agora a forma de obras pfiblicas que permitis- palavra “proletario”, ligando fertilidade e mendicidade, é uma expres-
sem a populagao comprar a pregos elevados. As trés ou quatro grandee sao marcante dessa ambivaléncia.
fornes que dizimaram a India sob o governo britanico, desde a rebeliao, O preconceito economista foi ao mesmo tempo a fonte da teoria da
nao foram portanto conseqiiéncia nem dos elementos, nem da explora- exploragao cruel do capitalismo primitivo e do equivoco, nao menos
cao, mas simplesmente da nova organizacao do mercado de trabalho e cruel porém mais erudito, que negou mais tarde a existéncia de uma
da terra, que desmoronou a antiga aldeia sem. resolver realmente os catastrofe social. A implicagao significativa dessa filtima e mais recente
seus problemas. interpretagao da hist6ria foi a reabilitagao da economia do laissez- dire.
Enquanto sob o regime do feudalismo e da comunidade aldea, a Se a economia liberal m‘io causou qualquer desastre, entfio o protecio-
noblesse oblige, a solidariedade do cla e a regulamentagao do mercado nismo, que roubou ao mundo os beneficios dos mercados livres, foi um
de .trigo controlavam a fome, sob a direcao do mercado nao se podia crime desumano. O pr6prio termo “Revolucao Industrial” era encarado
impedirque as pessoas morressem de fome segundo as regras do jogo. como se transmitisse uma idéia exagerada daquilo que foi, na sua essén—
194 O termo “exploragao” descreve mal uma situacao que se tornou real- cia, um vagaroso processo de mudanga. Nada mais aconteceu, insistiam 195
esses eruditos, do que o desdobramento gradual das forgas do progresso ameagas a sociedade que eles envolviam nem sempre podiam ser estri—
tecnolégico que transformararn as vidas das pessoas. Muitos softeram tamente separadas.
no decurso da mudanga, sem dfivida, mas, no seu todo, a historia foi a A despeito disso, um esbogo do desenvolvimento institucional da
de um progresso continuo. Esse produto feliz foi resultado do funciona- sociedade ocidental durante os criticos oitenta anos (1834—1914) pode
mento quase inconsciente das forgas economicas, que executaram seu referir—se a cada um desses pontos ameagadores em termos semelhan—
trabalho beneficente apesar da interferéncia de elementos impacientes, tes. A organizacio do mercado cresceu a ponto de se tornar um perigo,
que exagerararn as dificuldades inevitaveis da época. A inferéncia foi e canto no que concerne ao homem, a natureza ou a organizagao pro-
nada menos_que.a negacao do perigo .que ameacava a sociedade a partir dutiva, grupos ou classes definidas pressionaram por protegio. Em
da nova economia. Se a revisao ' d a histéria da Revoluc'ao Industrial se cada um dos casos o espago de tempo consideravel que decorreu entre
ativesse aos fatos, o movimento protecionism perderia toda a justifica- o desenvolvimento inglés, continental e norte-americano teve uma
gao objetiva e o laissez-faire estaria vingado. A falacia materialista em orientacao importante e, no entanto, na virada do século, o contramo-
relagao a natureza da catastrofe social e cultural sustentaria, assim, a vimento protecionista havia criado uma situacao anéloga em todos os
fabula de que todos os males da época ocorreram por termos abandona- paises ocidentais. _
do 0 liberalismo economico. Sendo assim, tramremos separadamente da defesa do homem, da
_ Resumindo, néo foram grupos ou classes unicas'a fonte do assim natureza e da organizagaolprodutiva — um movimento de auto-preser-
chamado movimento coletivista, embora o resultado tenha sido vagao do qual emergiu um tipo de sociedade mais intimamente entrela—
influenciado decisivamente, pelo carater dos interesses de classe envol- gada e que, no entanto, estava ameagada de total rompimento.
vidos. Em ultima instancia, o que fez as coisas acontecerem forarn os
interesses da sociedade como um todo, embora sua defesa tenha recai-
do basicamente numa secgao da populagao em preferéncia a outra.
Parece razoavel agrupar nosso relato do movimento protetor 1150 cm
torno de interesses de classe, mas em torno das substancias sociais
ameagadas pelo mercado.
Os pontos perigosos foram indicados pelas direcées principais do
ataque. O mercado de trabalho competitivo atingiu o possuidor da
forga de trabalho, isto é, o homem. O comércio livre internacional foi
basicamente uma ameaga a maior industria dependente da natureza,
isto é, a agricultura. O padrao-ouro ameacou as organizacoes produti-
vas que dependiam do movimento relativo de pregos para o seu fun-
cionamento. O s mercados se desenvolveram, e m cada u m a dessas
areas, o que implicou uma ameaga latente para a sociedade em alguns
dos aspectos mais vitais da sua existéncia.
Os mercados de trabalho, terra e dinheiro, s50 faceis de distinguir;
nao é tio facil distinguir aquelas partes de uma cultura cujo nucleo é
formado por seres humanos, seus ambientes naturais e as organizagoes
produtoras, respectivamente. O homem e a natureza sio praticamente
um na esfera cultural. O aspecto Ade dinheiro da empresa produtiva
peneu'agap’e‘na'sfem um'interesse socialmente =vital, .isto é, a unidade e a
Coesao-Ida :nacéo.J»-A‘ssim, enquanto . o s mercados para as mercadorias
196 fictiCias‘éfétrabalho, terra erdinheiro — eram distintos e separados, as 197
Nenhum Kwakiutl “jamais correu o menor risco de ficar faminto”.2
“N50 existe'a inanigao em sociedades que vivem a margem da subsis-
téncia”.3 O principio de independer da caréncia era conhecido também
na comunidade aldea hindu e, podemos ainda acrescentar, em quase
todos os tipos de organizacao social até aprOximadamente o inicio do
14 século XVI na Europa, quando as idéias modernas em relagao aos
pobres, apresentadas pelo humanista Vives, foram discutidasna
Sorbonne. E justamente a auséncia da ameaga de inanigao individual
""" MERCADO E HOMEM que torna a sociedade prirnitiva, num certo sentido, mais humana‘que
a economia de mercado e, ao mesmo tempo, menos economica. De
forma irénica, a contribuigao inicial do homem branco para o mundo
do homem negro consistiu principalmente em acostuma-lo a sentir o
aguilhao da fome. Assim, o colonizador pode decidir cortar arvores de
frum—pao a fim de criar uma escassez artificial de alimentos, ou pode
impor uma taxagao sobre a cabana do nativo, para forga-lo a permutar
Separar o trabalho das outras atividades daa vida e sujeita-lo as leis o seu trabalho. Em amb0s os casos o efeito é similar ao dos cercamen-
do mercado foi o mesmo que_aniquilar todas as formas organicas da tos da era Tudor, com sua esteira de hordas errantes.
existencia e substitui-las por um tipo diferente de organizagao, uma Um relatorio da Liga das Nagées mencionou, com o devido hor-
organizagao atomista e individualism. ror, o aparecimento recente daquela indescriti’vel figura do cenario
Tal esquema de destruigao foi ainda mais eficiente com a aplicagéo europeu do século XVI, o “homem sem dono”, na floresta africana.4
do principio da liberdade de contrato. Na pratica, isto significava que No final da Idade Média, ele so era encontrado nos “intersticios” da
as organizagées nao-contratuais de parentesco, vizinhanga, profissao e sociedade.5 E no enmnto ele foi o precursor do trabalhador nomade
credo teriam que ser liquidadas, pois elas exigiam a alienagao do indi- do século XIX.6
viduo e restringiam, portanto, sua liberdade. Representar esse principio Ora, o que o homem branco ainda pratica ocasionalmente em
como 0 da nao interferéncia, como os liberais economicos se propu- regiées remotas hoje em dia, isto é, a derrubada das estruturas sociais a
nham a fazer, era expressar simplesmente um preconceito arraigado fun de extrair delas o elemento do trabalho, foi feito no século XVIII
em favor de uma espécie defmida de interferéncia, isto é, que iria des- com as populagées brancas, por homens brancos, com propésitos simi-
truir as relagées nio-contratuais entre individuos e impedir a sua refor- lares. A visao grotesca do Estado de Hobbes — um Leviata humano,
mulagao espontanea. cujo corpo imenso era formado por um nfimero infinito de corpos
Este resultado do estabelecimento de um mercado de trabalho é humanos — foi eclipsada pelo construto ricardiano do mercado de tra-
perfeitamente aparente nas regiées coloniais de hoje em dia. Os nativos balho; um fluxo de vidas humanas cujo‘ abastecimen'to era regulado
sio forcados a ganhar a vida vendendo o seu trabalho. Para atingir essa pela quantidade de alimentos a sua disposigéo. Embora reconhecendo
finalidade, suas instituigées tradicionais tém que ser destruidas e impe-
didas de se reformularem, pois, em regra, o individuo numa sociedade
prirnitiva 1150 se vé ameagado de inanigao a menos que a comunidade 2 Loeb, E.M., “The Distribution and Function of Money in Early Society”, Em Essays in
como um todo também esteja numa situacao semelhante. Sob o sistema Anthropology, 1936.
de terra kraal dos cafres, por exemplo, “a miséria é impossivel: quem 3 Herskovits, M.]., The Economic Life of Primitive Peoples, 1940.
4 Thumwald, R.C., op. cit. .
queri'que precise de assisténcia, pode recebé-la i'ncondicionalmente”.1 5 Brinkmann, G , “Das soziale System des Kapitalismus”, Gmndriss der Sozialb'konomik,
1924.
1 9,8 1 Mair,- L.P., An African People in the Twentieth Century, 1934. 5 Toynbee, A., lectures on the Industrial Revolution,1887, p. 98. 199
que existia um padrao costumeiro, abaixo do qual nenhum salario dc enquanto os interesses do mercador eram, naturalmente, antagonicos
trabalhador poderia diminuir, considerou—se também essa limitagao aos dos seus clientes.
como efetiva apenas no caso do trabalhador estar reduzido a escolha Por interesse e inclinagao, recaiu sobre os senhores de terra da
entre ficar sem alimento ou oferecer seu trabalho no mercado, pelo Inglaterra a tarefa de proteger vidas do povo comum contra a investida
prego que pudesse conseguir. A propésito, isto explica uma omissio da Revolugao Industrial. A Speenhamland foi um fosso cavado em
dos economistas classicos, de outta forma inexplicavel, isto é, porque defesa da organizagéo rural tradicional, quando a agitagao da mudanga
somente a penalidade da inanigao, e 1150 o atrativo dos ordenados avassalava o campo e transformava a agricultura, incidentalmente,
altos, era considerada capaz de criar urn mercado de trabalho atuante. numa indfistria precaria, Em sua relutancia natural de inclinar-se as
Aqui também a experiéncia colonial confirmou a desses economistas. necessidades das cidades 'manufatureiras, os proprietarios rurais foram
Quanto mais elevado o salario, menor era a attacao que exercia sobre os primeiros a resistir naquela que provou ser 3 luta perdida de um
o nativo que, diferente do homem branco, n50 era compelido pelos século. Sua resisténcia, porém, néo foi em v5.0. Durante varias geragées
seus padroes culturais a ganhar tanto dinheiro quanto lhe fosse possi- ela impediu a ruina e deu tempo para que houvesse um reajustamento
vel. A analogia era ainda mais marcante pois também o trabalhador quase completo. Ela retardou o progresso economico por um periodo
primitivo tinha horror 51 fabrica, onde se sentia degradado e torturado, critico de quase quarenta: anos’ e, quando a reformanparlamentar de
como o nativo que muitas vezes se resigna a trabalhar a nossa maneira 1834 aboliu a Speenhamland, os senhores de terra mudaram o foco da
apenas quando é arneacado de castigos corporais e até de mutilagio sua resisténcia para as leis fabris. A Igreja e a herdade feudal agora agi—
fisica. Os fabricantes de Lyon, do século XVIH, impunham salarios bai- tavam o povo contra o proprietério do moinho, cuja predominancia
xos basicamente por razoes sociais7. Somente um trabalhador exausto tornaria irresistfvel a grita por alimentos baratos, e assim, indiretamen-
e oprimido, argumentavam eles, renunciaria a associaciio com seus te, ameagava solapar os alugue’is e 03 dizimos. Oastler, por exemplo,
camaradas para escapar a condicio de servidao pessoal, sob a qual ele foi “um homem da Igreja, urn Tory e um Protecionista”;8 mas era tam-
se via obrigado a fazer aquilo que seu senhor dele exigia.eAssim como bém um Humanista. Assim eram também, com misturas variadas des-
na Inglaterra foi a compulsao legal e a servidao paroquial e no ses ingredientes de socialismo conservador, as outras grandes figuras do
'Continente-os
rigores de uma politica de trabalho absolutista, nas movimento fabril: Sadler, Southey e Lorde Shaftesbury. Mas o pressen-
Américas primitivas foi o trabalho encomendado o pré-requisito do timento das perdas ameagadoras pecuniarias que impelia o grosso de
“trabalhador voluntério”. O estégio final, porém, so foi alcangado com seus seguidores tinha realmente bons fundamentos: os exportadores de
a aplicacao da “penalidade da natureza” — a fome. Para consegui-lo, foi Manchester logo comegaram a clamar por salaries mais baixos, que
necessario liquidar a sociedade organica, que se recusava a permitir que significariam cereais mais baratos — a aboligio. da Speenhamland e o
o individuo passasse fome. desenvolvimento das fabricas realmente prepararam o caminho para o
sucesso da agitacao que envolveu as Anti-Corn Laws'em 1846. Entre-
A protecéo da sociedade, no primeiro exemplo, recai sobre os domina- tanto, por razées fortuitas, a ruina-da agricultura na Inglaterra foi
dores, que podem impor sua vontade diretamente. Entretanto, os libe- retardada durante toda uma geracao. Enquanto isso, Disraeli baseou o
rais economicos adotam com muita facilidade a nocio de que os diri— socialismo Tory num protesto contra a Poor Law Reform Act, e as lati-
gentes economicos tendem a ser beneficentes, enquanto o mesmo nao fundiarios conservadores da Inglaterra impuseram técnicas de Vida
ocorre com os dirigentes politicos. Este nao parece ser 0 pensamento radicalmente novas a sociedade industrial. A Ten Hours Bill (Lei das
de Adam Smith, pois ele insistia para que um governo britanico direto Dez Horas) de 1847, que Karl Marx aplaudiu como a primeira vitéria
na lndia substitufsse a administragao feita por uma companhia privile- do socialismo, foi obra de reacionérios esclarecidos.
“at... .
200 7 Heckscher, E. F., 011.at, vol II, p. 168. 8 Dicey, A. v., 01;. at, p. 22.6. 201
Os préprios trabalhadores nao eram praticamente um fator nesse havia esquecido a forma do homem. Todavia, este n50 foi o caso nem
grande movimento cujo resultado, falando figurativamente, era permi- de um nem de outro. O owenismo n50 foi a inspiragio de uma seita
tir-lhes sobreviver a Passagem Intermediaria. Eles tinham téo pouco a insignificante, nem o cartismo se restringiu a uma elite politica; ambos
dizer na determinagao de seu proprio destino como a carga negra dos os movimentos incluiam centenas de milhares de profissionais e arte-
navios de Hawkins. E, no emanto, foi precisamente esta falta de patti- séos, operarios e trabalhadores 6, com sens infimeros adeptos, podem
cipagao ativa por parte da classe trabalhadora britanica na decisao do se classificar entre os maiores movimentos sociais da histéria moder-
seu préprio destino que determinou o curso da historia social inglesa e na. No entanto, diferentes como cram, semelhantes apenas na medida
tomou-a, para melhor ou para pior,'t§o diferente dado continente. do seu-fracasso, eles serviram para provar como era ineviu’wel, desde
Existe um toque peculiar no q'ue diz respeito aos incitamentos o primeiro momento, a necessidade de proteger o homem contra o
nao-dirigidos, as excitagoes e erros de uma classe nascente, cuia verda- mercado. .
deira natureza a histéria ja revelou ha tempos. Politicamente, a classe O movimento owenita n50 foi originalmente nem politico nem da
trabalhadora britanica foi definida pela Parliamentary Reform Act de classe trabalhadora. Ele representava os anseios do povo comum,
1 8 3 2 , que recusou-lhe o v o t o . Economicamente, pela Poor Law esmagado pelo surgimento da fabrica, de descobrir uma forma de exis-
Reform Act de 1834, que excluiu-a da assisténcia social 6 separou-a téncia que tornasse o homem senhor da ,méquina. Na sua esséncia, ele
dos indigentes. Durante algum tempo, ainda, a futura classe trabalha- visava aquilo que pode nos parecer como um desvio do capitalismo.
dora britanica estava em dfivida quanto a sua salvagao, se ela n50 esta- Uma formula como essa teria que ser um tanto equivoca, sem dfivida,
ria, afinal de contas, num retorno a existéncia rural e as condigoes do uma vez que o papel organizador do capital e a natureza de um merca-
W '
artesanato. Nas duas décadas seguintes a Speenhamland, seus esforcos do auto-regulavel ainda cram desconhecidos. Entretanto, talvez ela
T g fl r r r w - m ,h w — h — w
se concentraram em parar o livre uso da maquinaria, quer reforgando expresse melhor o espirito de Owen, que enfaticamente nao era urn
as clausulas de‘ aprendizado do Statute of Artificers, quer pela agao inimigo da maquina. Ele acreditava que o homem continuaria a ser o
direta, como no ludismo. Essa atitude aparentemente atrasada prolon- seu préprio patrao, a despeito da méquina; o principio da cooperagao
gou-se como uma corrente subterranea durante o movimento oweni- ou “sindicato” resolveria o problema da maquina sem sacrificar nem a
ta, até 0 final da década de 1940, quando a Ten Hours Bill, 0 eclipse liberdade individual nem a solidariedade social, nem a dignidade' do
do cartismo e o inicio da Idade de Ouro do capitalismo obliteraram a homem on a sua simpatia para com seus semelhantes.
visao do passado. Até entao a classe trabalhadora britanica, in statu A forga do owenismo estava no fato da sua inspiragao ser eminen—
nascendi era urn enigma para si mesma e somente quando se acompa- temente pratica, porém seus métodos se baseavam numa apreciagio do
nha, com toda a compreensao, suas agitagoes semi-inconscientes é que homem como um todo. Embora os problemas fossem, intrinsecamente,
se pode avaliar a imensidade da perda que a Inglaterra sofreu com a cs da vidacotidiana, como a qualidade do alimento, a habitagao e a
exclusao da classe trabalhadora de uma participacio igualitaria na educagao, o nivel dos salaries, a fuga a0 desemprego, a ajuda na doen-
_
Vida nacional. Quando o owenismo e o cartismo se consumiram, a ca e. outros similares, os temas env'élvidos eram tio amplos como as
-;.-.»
Inglaterra tornou-se mais pobre naquela substéncia a partir da qual o forgas morais para as quais apelavam. A convicgéo de que a existéncia
ideal anglo-saxio de uma sociedade livre poderia ter sido estruturado do homem poderia ser restaurada, se fosse descoberto o método certo,
durante os séculos vindouros. permitiu que as raizes do movimento penetrassem naquela camada
Mesmo se 0 movimento owenim tivesse se restringido apenas a profunda onde se forma a propria personalidade. Raramente surgiu
atividades locais, de pouca monta, ele poderia ter-se tornado urn um movimento social menos intelectualizado com objetivo semelhante;
monumento a imaginagao criativa da raga. Mesmo se 0 cartismo as conviccées daqueles que nele se engajavam imbuiam de significado
jamais tivesse ido além dos limites daquele nficleo que concebera a até mesmo as atividades mais aparentemente triviais, de forma que n50
'ide’ia de um “feriado nacional” para obter os direitos do povo, ele era necessario urn credo organizado. Na verdade a sua fé era profética,
poderia ter demonstrado que algumas pessoas ainda podiam sonhar pois insistia em métodos de reconstrugéo que transcendiam a econo—
‘202 seus préprios sonhos, e tomavam a medida de uma sociedade que mia de mercado. 203
4—.._7
O owenismo foi uma religiio da industrial, cujo portador era a clas— do uma moeda propria e exibindo os meios de realizar “a grande asso-
se trabalhadora? sua, riqueza de formas e iniciativas n50 teve rival. Ele ciagao para a emancipagao das classes produtivas”. As cooperativas de
foi, praticamente, o iniciador do movimento sindicalista moderno. produtores industriais do século XIX datam desse empreendimento.
Sociedades cooperativas eram fundadas e se ocupavam principalmente Foi do Builders’ Union ou Guild e seu “Parlamento” que surgiu conso-
das vendas a varejo a seus membros. N50 se tratava, certamente, de lidado o ainda mais ambicioso Trades .Union que, durante um curto
cooperativas de consumidores regulates, mas de lojas sustentadas por prazo, abrangeu quase um milhao de trabalhadores e artesaos na sua
elementos enn1siastas,determinados a devotar os lucros do empreendi— frouxa federagao de sindicatos profissionais e sociedades cooperativas.
.mento a continuidade dos planos owenitas, preferindo—as a organiza- Sua idéia era a revolta industrial por meios pacificos, o que nao parece-
' gao das Villages of Cooperation. “Suas atividades cram tanto educacio- ré uma contradigao se nos lembrarmos que, no messifihico amanhecer '
nais e propagandistas como comerciais; seu objetivo era a criagao de do seu movimento, 3 meta conscientizagao da sua missao parecia tor-
uma Nova Sociedade através de seus esforgos conjuntos”. As “Union nar irresistivel as aspiragées do povo trabalhador. Os martires de
Shops” criadas pelos membros dos sindicatos profissionais eram mais Tolpuddle pertenciam a uma filial rural dessa organizagao.
da natureza de cooperativas de produtores, e os artesaos desemprega- A propaganda a favor de uma legislagéo fabril foi levada a efeito
dos podiam 15 encontrar trabalho ou, em caso de greves, ganhar algum pelas Regeneration Societies; estas foram as pioneiras do movimento
dinheiro ao invés do pagamento de greve. N0 “Labour Exchange” secularista, embora mais tarde fossem fundadas sociedades éticas. A
owenita, a idéia da loja cooperativa se desenvolveu numa instiniigao idéia da resisténcia nao violenta se desenvolveu plenamente no meio
sui generis. No coragao do Exchange on Bazar havia confianga na natu- delas. Como o saint-simonismo na Franga, o owenismo na Inglaterra
reza complementar das profissoes; provendo as necessidades uns dos mostrou todas as caracteristicas de uma inspiragao espiritual. Entre—
outros, os artesaos poderiam se emancipar das altas e baixas do merca- tanto, enquanto Saint—Simon trabalhava por um renascimento do Cris—
do, era o que se pensava. Mais tarde, isto se fez acompanhax da utiliza- tianismo, Owen foi o primeiro adversario do Cristianismo entre os
gao de notas de trabalho, que tinham uma circulagéo consideravel. Um lideres da classe trabalhadora moderna. As cooperativas de consumido-
tal artificio pode nos parecer fantéstico, hoje em dia, mas, na época de res da Gra-Bretanha, que encontraram imitadores em todo o mundo,
Owen, nao s o 0 carater do trabalho assalariado como também das foram cermmente a iniciativa mais eminentemente pratica do owenis-
nous bancarias permanecia inexplorado. mo. 0 fato dc ter perdido seu impeto — ou té-lo mantido apenas na
O socialismo nao era essencialmente diferente desses projetos e esfera periférica do movimento de consumidores — foi a maior derrota
invengées que fetvilhavam no movimento benthamita. Tanto a oposi- individual das forgas espirituais na histéria da Inglaterra industrial.
géo rebelde quanto a respeitavel classe média esmvam numa atmosfera Todavia, um povo que, apés a degradagao moral do periodo d o
experimental. O préprio Jeremy Bentham investiu no futuristico Speenhamland, ainda possuia a exuberancia exigida por um esforgo
esquema educacional de' Owen, em New Lanark, e apurou um dividen- criador téo imaginativo e ininterrupto, deve ter possuido um vigor
do. As Sociedades Owenitas propriamente ditas eram associagées ou intelectual e emocional quase ilimitado.
clubes que se destinavam a apoiar os planos das Villages of Co-opera- No owenismo, com a sua consideragéo do homem como um todo,
tion, que ja descrevemos em relagaoa assisténcia social aos pobres. ainda restava algo daquela heranga medieval de vida corporativa que
Esta foi a origem da cooperativa dos produtores agricolas, uma idéia encontrou sua expressao na Builders’ Guild e no cenario rural do seu
que teve uma carreira longa e destacada. A primeira organizagao nacio- ideal social, as V1llages of Co-operation. Embora tenha sido a fonte do
nal de produtores com objetivos sindicalistas foi a Operative Builders’ socialismo moderno, suas proposigoes n50 se baseavam no tema da pro-
Union, que tentou regulamentat diretamente o negocio das constru- priedade, que é o aspecto legal apenas do capitalismo. Atingido o novo
goes criando‘‘construgées na escala mais extensa possivel”, introduzin- fenomeno da indfistria, como havia-feito Saint-Simon, ele reconheceu o
desafio da méquina. Mas o trago wracteristico do owenismo foi sua insis-
téncia na abordagem social: ele se recusava a aceitar a diviséo da socieda-
204 9 Cole, G..DH., Robert Owen, 1925, uma obra sobre a qual nos apoiamos decisivamente. de em esferas economical e politica e, em conseqiiéncia, rejeitava a 3910 205
politica. A aceitagio de uma esfera eoonémim separada teria implicado o vao, enterrando-se nas profundezas da tetra e la, numa tenra idade,
.reconhecimento do principio' do ganho e do lucro como a forga organiza- sem usar seu sexo como desculpa, ela acompanhava o trabalho
dos
dora da sociedade, e isto Owen recusava-se a fazer. Seu génio reconheceu mineir os, uma raga de homen s bastan te rude mas muito util
para a
que a incorporacao da maquina so era possivel numa nova sociedade. O comun idade” . O pai foi morto num acidente no pogo, diante
dos
aspecto industrial das coisas, para ele, [1510 se restringia ao econonnco (lsto filhos. Ela entao pediu emprego como criada, mas havia um preconcei-
teria implicado uma visao de mercado da sociedade que ele relertava). to contra ela porque havia sido mineira, e ela n50 conseguiu o empre
-
New Lanark lhe havia ensinado que na vida do trabalhador o salarlo era go. Felizmente, através dessa reconfortante compensagao que transfo
r-
apenas um entre muitos outros fatores, como as circunvizirrliancas natural ma as aflicées em béngios, seu caréter e pacién cia atrairam a atenca o,-
e doméstica, a qualidade e 05 precos das mercadorias, a estabrhdade do foram feitas indagacoes na mina, e as recomendacées'fOram tio eleva—
-
emprego e a seguranga na posse da tetra. (As fabricas de New Lanark, das que ela conseguiu o emprego. “Esta histéria”, conclui o folheto
,
como algumas outras firmas antes delas, conservavam seus empregados na “pode ensinar ao pobre que é raro ele se encontrar numa condigio de
folha de pagamento mesmo quando nao havia trabalho para eles.) Mas Vida tao baixa que o impega de atingir algum grau de independéncia ao
havia muito mais nesse ajuste. A educagio das criancas e dos adultos, a procurar esforcar—se, e que nao pode existir uma situagao tio indigna
provisio de lazer, a danga e a mfisica e a suposigio geral de que uma que impega a pratica de muitas virtudes nobres.” As irmas More prefe-
moral.elevada e padroes pessoais para velhos e jovens cnavarn a atmosfera riam trabalhar entre operarios famintos mas se recusavam a se interes-
na qual a populagio industrial como um todo atingia um novo status. sar sequer pelos seus sofrimentos fisicos. Elas procuravam solucionar o
Milhares de pessoas de toda a Europa (e até mesmo da America do problema fisico do industrialismo simplesmente concedendo status 6
Norte) visitavam New Lanark como se ela fosse uma reserva do futuro na funcio aos trabalh adores do alto da sua magnanimidade. Hanna h
qual fora consumado o feito impossfvel de dirigir um neg6c10 fabnl bem- More insistia que o pai da sua heroina era um membro fitil da comuni-
sucedido com uma populagio humana. E, no enmnto, a firma de Owen dade; a situacio da filha foi reconhecida pela compreensao dos seus
pagava salérios consideravelmente menores do que algumas c1dades v121-‘ patroes. Hanna h More acreditava que nada mais era preciso para o
nhas. Os lucros de New Lanark derivavam principalmente da grande pro- funcionamento de uma sociedade.11 _
dutividade do trabalho em menos horas, em conseqfiéncia de uma exce- Owen afastou-se de um Cristianismo que renunciara a tarefa de
lente organizagao e de trabalhadores repousados, vantagens que compen- dominar o mundo do homem, e preferia exaltar 0 status e a fungéo ima-
savam o aumento dos salarios reais incluidos em provisoes generosas para ginérios da desgracada herofna de Hannah More em vez de enfrentar a
uma Vida decente. 86 esta filtima pode explicar os sentimentos de quase terrivel revelagio que transcendia o Novo Tes'tamento — a condicio do
adulacao que os trabalhadores tinham para com Owen: Foi a par-tirde homem numa sociedade complexa. Ninguém pode duvidar da sinceri-
experiencias como essas que ele extraiu a abordagem soaal, 1sto e, maror— dade que inspirava a convicgéo de Hannah More de que quanto mais
que-economica, do problema da indfistria. . rapidamente o pobre admitisse a sua condicao de degradacao, mais
E mais um tributo a sua visao o fato de que, a despeito dessa pers- facilmente ele se voltaria para o consolo do ce’u, o finico em que ela
pectiva compreensiva, ele apreendeu a natureza incisiva dos fatos fisl- confiava tanto para a salvacao do pobre como para o perfeito funciona-
cos concretos que dominavam a existéncia do trabalhador. Seu senso mento de uma sociedade de mercado na qual ela acreditava firmemente.
religioso se revoltava contra o transcendentalismo pratico de uma Hannah Mas esses cascos vazios de Cristianismo, nos quais vegetava a Vida inte-
More e Suas Cheap Repository Tracts; Um deles exaltava o exemplo de rior dos mais generosos representantes das classes superiores, faziam um
uma moga mineira do Lancashire. Ela fora levada para o pogo na idade contraste deficiente com a fé criativa daquela religiio de diligéncia em
dc nove anos, para empurrar o carrinho junto com seu 1rmao, dms cujo espirito o povo comum da Inglaterra tentava redimir a sociedade.
anos mais novo.19 “Ela o seguia (seu pai) alegremente no poco de car- O capitalismo, porém, ainda tinha um futuro a sua frente.
lo-Morejrng
m We Colliery Girl, maio de 1795; cf. Hammond, J. L e 11,11» 11 Cf. Drucker, RE, The End of Economic Man, 1939, p. 93, nos English Evangelim
lls; e
206 Town labourer,1917, p. 230. The Future of Industria l Man, 1942, pp. 2 1 e 194 sobre semis e fungio.
207
O movimento cartista apelava para um conjunto de impulsos tao Londres com uma precisao muito mais comum em relagao a abertura
.diferentes que sua emergé'ncia quase poderia ser predita apés o fracas- de uma feira do que de uma sublevagao social, 6 revolugoes “de refor-
so prético do owenismo e de suas iniciativas prematuras. Ele foi um ec— go” estouraram prontamente em Berlim, Viena, Budapeste e algumas
forgo puramente politico que tentou ganhar influencia no governo atra- cidades da Italia. Em Londres também havia grande tensao pois todos,
inclusive os proprios cartistas, esperavam uma agao violenta para com-
vés de canais constitucionais. Sua tentativa de pressionar o governo
mantinha a linha tradicional do movimento da reforma que havia pelir o Parlamento a conceder o voto ao povo. (Menos dc 15% dos ho-
garantido o voto para as classes medias. Os Six Points of the Charter mens adultos tinham direito ao voto.) Em toda a histéria da Inglaterra
(Seis Pontos da Carta Magna) exigiam um sufragio popular .efetivo. A jamais ocorreu semelhante concentracao de forgas, de prontidao para a
rigidez intransigente com que o Parlamento reformulado rejeitou esta defesa da lei e da ordem, do que em 12 de abril de 1848. Nesse dia,
eXtensao do voto durante um tergo de século, 0 use da forga em razao centenas de milhares de cidadaos foram investidos de autoridade poli-
do apoio da massa em favor da Carta Magna, a contrariedade dos libe~ cial especial para enfrentar os cartisms. A revolugao de Paris, porém,
rais da década de 1840 em relagao a idéia de um governo popular, chegou tarde demais para assegurar a vitéria de um movimento popu-
tudo isso prova que o conceito de democracia era estranho as classes lar na Inglaterra. Nessa ocasiao, ja se dissipava o espirito de revolta
médias inglesas. Somente depois que a classe trabalhadora aceitou os acirrado pela Poor Law Reform Act .e pelo sofrimento causado pela
principios de uma economia capitalista e os sindicatos profissionais fome da década de 1840. A onda do comércio ascendente incrementa-
fize'ram do pleno funcionamento da indfistria a sua preocupagao maxi- va 0 emprego e o capitalismo comegava a cumprir a sua parte. Os cat-
ma foi que as classes médias concederam o voto aos trabalhadores mais tistas se dispersaram pacificamente. O caso deles nao foi sequer consi-
bem situados. Isto sé ocorreu, porém, muito tempo depois que o movi- derado pelo Parlamento, a mac ser em data posterior, quando sua pro-
mento cartista declinara e havia a certeza de que os trabalhadores nao posta foi derrotada por uma maioria de cinco a um na Céimara dos
tentariam usar esse privilégio a servigo de quaisquer idéias préprias. Do Comuns. Foi em vao que recolheram milhoes de assinaturas; foi em
ponto de vista da difusao de formas de existéncia do mercado, isto vao que os cartistas se comportaram como cidadaos obedientes a lei.
encontra justificativa pois ajudou a superar os obstéculos— apresentados Seu movimento foi ridicularizado pelos vencedores a ponto de se
pelas formas subservientes de vida organica e tradicional entre o povo extinguir. Assim terminou o maior esforgo politico do povo da
trabalhador. Nada foi feito, porém, em relagao a tarefa totalmente Inglaterra para fazer desse pais uma democracia popular. Um ou dois
diversa de restabelecer o povo c'omum, cujas vidas haviam sido desen~ anos mais tarde, o cartismo ja estava praticamente esquecido.
raizadas na Revolugao Industrial, e introduzi—lo no desdobramento de
uma cultura nacional comum. Nao havia mais como recuperar a posi- A Revolugao Industrial chegou ao continente meio século mais tarde. La
gao pois o investiment o que fizeram com o voto ocorrera justamente a classe trabalhadora n50 havia sido forgada a abandonar a tetra por um
na ocasiao em que jé fora infligido um dano irreparavel a capacidade movimento de cercamento. Ao contrario, foi o atrativo dos salarios
do povo de participar da lideranga. As conclusées dominantes haviam altos e da Vida urbana que levaram o“traba.lhador agricola semi—servil a
cometido o erro de ampliar o princfpio da inflexivel dominagao de abandonar a pequena propriedade e migrar para a cidade, onde ele se
classe para abarcar um tipo de civilizagao que exigia a unidade cultural associou a classe média baixa tradicional, e teve oportunidade de adqui-
e educacional da comunidade para n50 ser vitima dc influéncias dege- rir uma tonalidade urbana. Longe de se sentir rebaixado, ele se sentiu
nerativas. elevado pelo seu novo ambiente. l3. fora de dfivida que as condigées de
moradia cram abominaveis e o alcoolismo e a prostituigao imperaram
O movimento cartista era politico e, portanto, mais facil de com-
preender do que o owenismo. Todavia, é dificil apreender a intensida- . entre os estratos mais baixos dos trabalhadores citadinos até o inicio do
de emocional, ou até mesmo a amplitude desse movimento, sem se século XX. Todavia, nao havia comparagao entre a catéstrofe moral e
fazer alguma referéncia imaginativa a época. As décadas de 1789 e cultural do foreiro ou posseiro inglés, de ancestralidade decente, que se
183.0Ifizeram da revolugao uma instituigao regular na Europa. Em sentiu afunda}, sem defesa, no lamacal social e fisico das favelas, na vizi-
208 1848, a data do levante de Paris ja havia sido prevista em Berlim e nhanga de alguma fabrica e 05 eslovacos on o trabalhador agricola da 209
Pomerania que se transformava, quase que da noite para 0 dia, de pea'io nacional para os seus superiores, o trabalhador da Europa Central tor-
morador de estabulo, em operario industrial de uma metrépole moder- nava-se um socialista politico, acostumado a lidar com os problemas do
na. Um trabalhador irlandés ou galés, ou um montanhés da Escécia estado — é verdade que, basicamente, aqueles que visavam seus pré-
podia passar por uma experiéncia semelhante vadiando pelas was de prios interesses, tais como leis fabris e legislagao social.
Manchester ou Liverpool, mas o filho de um pequeno proprietério rural Se decorreu um espago de tempo de cerca de meio século entre a
inglés ou foreiro despedido certamente nao sentia o seu status mais ele- industrializacao da Gra-Bretanha e a do continente, transcorreu um
vado. Nao foi apenas o labrego camponés do continente, recentemente espaco ainda maior na organizagao da unidade nacional. A, Italia e a
emancipado, que tivera a oportunidade de ascender.para as classes Alemanha s6 chegaram ao estagio da unificagio durante a segunda
médias baixas dos profissionais e comerciantes, com s'uas'antigas tradi- metade do século XIX, unificagéo essa que a Inglaterra jé alcangara
‘gées culturais. Até a burguesia, socialmente muito acima dele, politica- . séculos antes, e os estados menores da Europa Oriental so alcancaram
mente se situava no mesmo nivel, tao afastada das fileiras da classe ainda mais tarde. As classes trabalhadoras desempenharam um papel
dominante como o préprio camponés. As forcas da ascendente classe vital nesse processo de construgéo do estado, o que fortaleceu ainda
média e da classe trabalhadora se aliavam estreitamente contra a aristo- mais a sua experiéncia politica. Numa era industrial, um processo
cracia feudal e o episcopado romano. A intelligentsia, principalmente os como esse n50 podia deixar de compreender também uma politica
estud'antes universitarios, cimentava a uniio entre essas duas classes no social. Bismarck procurou a unificagao do Segundo Reich introduzindo
seu ataque comum contra o absolutismo e o privilégio. um esquema de legislacao social que marcou época. A unidade italiana
Na Inglaterra, as classes medias, tanto os proprietarios rurais e 05 foi ativada pela nacionalizacio das ferrovias. Na monarquia austro-
mercadores do século XVII, como os fazendeiros e 05 comerciantes do hfingara, esse conjunto de racas e povos, a propria coroa apelou repeti-
século XIX, eram fortes o bastante para reivindicar sozinhos os seus das vezes para o apoio das classes trabalhadoras na tarefa de realizar a
direitos, e nio procuraram o apoio dos trabalhadores nem mesmo centralizacao e a unidade imperial. Assim, através da sua influéncia na
durante o seu esforgo quase revolucionario de 1832. Além disso, a aris- legislacao, os partidos socialistas e os sindicatos profissionais encontra—
tocracia inglesa procurava assimilar 0s recém-chegados mais ricos, alar~ ram muitas aberturas para atender aos interesses do trabalhador indus-
gando os niveis mais altos da hierarquia social, enquanto no continen- trial também nessa esfera mais ampla. '
te, a aristocracia, ainda semifeudal, nao permitia o casamento de seus As prevencées materialistas toldaram os contornos do problema da
pares com a burguesia, e a auséncia da instituigao da primogenitura classe trabalhadora. Os autores britanicos achavam dificil compreender
isolava-a hermeticamente das outras classes. Assim, cada passo bem- a tertivel impressao que as condicées capitalistas primit’ivas no
sucedido em diregio a igualdade de direitos e das liberdades beneficia- Lancashire causavam aos observadores continentais. Eles apontavam
va tanto as classes medias continentais como as classes trabalhadoras. para os padroes de vida ainda mais baixos de muitos artesaos da
Desde 1830, cu talvez desde 1789, fazia parte da tradicao continental Europa Central nas industrias téxteis, cujas condicées de trabalho eram
contar com a ajuda da classe trabalhadora nas batalhas da burguesia talvez- tao ruins como a de seus ca‘maradas ingleses. Entretanto, tal
contra o feudalismo, ainda que - como diz 0 dim — a classe média lhe comparacio obscureceu um ponto saliente, precisamente aquele que
roubasse depois os frutos da vitéria. No entanto, quer a classe trabalha- foi a ascensio no status social e politico do trabalhador no continente,
dora ganhasse ou_ perdesse, sua experiencia se fortalecia e seus objeti- em contraste com a queda nesse status ocorrida na Inglaterra. O traba—
vos se elevavam a um nivel politico. E isto o que significa adquirir uma lhador continental nao havia sofrido a pauperizagao degradante da
consciéncia de classe. As ideologias marxistas cristalizaram a perspecti- Speenhamland e nem havia, na sua experiéncia, qualquer paralelo com
va do trabalhador urbano, a quem as circustancias ensinaram a usar sua a provacao arrasadora da New Poor Law. Ele mudara — ou se elevara —
forga industrial e politica como arma de uma politica mais ambiciosa. do seu status de servo feudal para a condigao de operatic fabril 6, logo
Enquantqos trabalhadores britanicosadquiriam uma experiéncia depois, 6 com participagio politica, para a de operério sindicalizado.
incomparavel
nos problemas pessoais e sociais do sindicalismo, inclusi- Assim, ele escapou a catastrofe cultural que seguiu na esteira da
210 ve astaticas e as estratégias da agéo industrial, e deixavama politica Revolucio Industrial na Inglaterra. Além disso, o continente foi indus- 211
trializado numa época em que ja se tornara possfvel o ajuste 5s novas Mises argumentou, com razao, que se os trabalhadores “nao agissem
técnicas produtivas, gragas , quase que exclusivamente, a imitagao dos como sindicalistas profissionais mas reduzissem suas exigéncias e
métodos ingleses de prOtegao social.12 ' mudassem suas localizagoes e ocupacoes de acordo com os requisitos
O trabalhador continental nao precisava tanto de protegao contra do mercado de trabalho, eles poderiam eventualmente encontrar traba-
o impacto da Revolugio Industrial — num sentido social, nunca ocorreu lho”. Isto resume a situagao vigente sob um sistema baseado no postu-
semelhante coisa no continente - mas sim contra a agao normal das lado do carater de mercadoria do trabalho. Nao cabe a mercadoria
condigoes fabris e do mercado de trabalho. Isto ele conseguiu princi- decidir onde sera oferecida a venda, para que finalidade sera usada, a
paltnente com a ajuda-da legislagao, enquanto seus camaradas britani- que prego ser—lhe a permitido trocar de maos, e de que maneira ela
'cos confiavam mais na associagao voluntaria — sindicatos profissionais -— deve ser consumida ou destruida. “Nao ocorreu a ninguém”, escreveu
e seu poder de monopolizar o trabalho. Relativamente, o seguro social esse liberal convicto, “que a falta de salarios seria um termo melhor
chegou muito mais cedo ao continente do que a Inglaterra. A diferenga 'que a falta de emprego, porque o que falta a pessoa desempregada 1150
se explica através da inclinagao politica continental pela concessao do 6 o trabalho mas a remuneragao do trabalho.” Mises estava certo,
voto as 'massas trabalhadoras do continente em época comparativa- embora nao houvesse qualquer originalidade na sua alegagao; 150 anos
mente anterior. Embora a diferenca entre métodos de protegao com- antes dele dizia o bispo Whately: “d0 o homem pede trabalho,
pulsorio'e voluntario — legislagao versus sindicalismo - possa ser facil- ele nao esta pedindo o trabalho mas o salario.” Falando tecnicamente,
mente exagerada do ponto de vista economico, do ponto de vista poli- - é verdade que “o desemprego nos paises capitalistas se deve ao fato de '
tico as suas conseqiiéncias foram amplas. No continente, os sindicatos que tanto a politica do governo como a dos sindicatos profissionais
profissionais foram uma criagéo do partido politico da classe trabalha— objetiva manter um nivel de salarios que nao combina com a produtivi-
dora; na Inglaterra, o partido politico foi uma criagao dos sindicatos dade do trabalho existente”. Como poderia haver desemprego, per-
profissionais. Enquanto no continente o sindicalismo se tomou mais guntava lVlises, a nao ser pelo fato de que os trabalhadores “nao que-
ou menos socialista, na Inglaterra até mesmo o socialismo politico per-. rem trabalhar pelo salario que podem‘obter num mercado de trabalho,
maneceu essencialmente sindicalista. Assim, enquanto na Inglaterra o para esse trabalho particular que sao capazes e deseiam executar”? Isto
sufragio universal tendeu a aumentar a unidade nacional, no continen- esclarece o que significa realmente a insisténcia dos patroes em favor
te ele teve algumas vezes o efeito oposto. Foi no continente, e [1510 na da mobilidade da mao-de-obra e da flexibilidade dos salarios: precisa-
Inglaterra, que se tornaram realidade os pressentimentos de Pitt 6 Peel, mente aquilo que circunscrevemos acima como um mercado, no qual o
de' Tocqueville e Macaulay de que um governo popular envolveria uma trabalho humano é uma mercadoria. I
ameaga para o sistema economico. O objetivo natural de toda a protegao social era destruir tal institui—
Do ponto de vista economico, os métodos de protegao social ingle- 950 e tornar impossivel a sua existéncia. Com efeito, so so poderia per-
ses e continentais levaram a resultados quase idénticos. Eles atingiram mitir que o mercado de trabalho conservasse a sua fungao principal
aquilo a que se propunham: a ruptura do mercado para aquele fator de desde que os salarios e as condigées de“ trabalho, os padroes e as regu-
produgao conhecido como forca de trabalho. Um tal mercado so aten— lamentagoes pudessem resguardar o carater humano da suposta merca-
deria a 'seus propositos se os salaries fossem paralelos aos pregos. Em doria, o trabalho. Argumentar que a legislagao social, as leis fabris, o
termos humanos um tal postulado implicava uma extrema instabilidade seguro desemprego e, acima de tudo, os sindicatos profissionais nao
de vencimentos para o trabalhador, a auséncia completa de padroes interferiram com a mobilidade da mao—de-obra e a flexibilidade dos
profissionais e a facilidade abjeta de ser impelido e empurrado indiscri- salarios, como ocorre algumas vezes, é deixar implicito que essas insti-
minadamente, uma completa dependéncia as fantasias do mercado. tuigoes falharam redondamente em seu propésito, que foi exatamente
interferir com as leis da oferta e da procura em relagao ao trabalho
humano, afastando—o da orbita do mercado.
12'
.KnOwles, L.=, The Industrial and Commercial Revolution in Great Britain During the
212 19th CenMy, 1926 213
levante, as vezes, se 0 colonizador precisa da terra e m fungao das
riquezas nela contidas ou se ele deseja obrigar os nativos a produzir um
excedente de alimentos e matérias-primas. E nem faz muita diferenga
se 0 nativo trabalha sob a supervisao direta do colonizador ou apenas
coagido por uma compulsao indireta, o fato é que qualquer que seia o
15 caso, o sistema social e cultural da Vida nativa tem que ser arrasado,
antes de mais nada. _
Existe uma estreita analogia entre a situagao ”colonial de hoje em” . '
MERCADO E NATUREZA dia e a da Europa Ocidental de um ou dois séculos passados. A mobili-
zagao da terra, que pode ter sido comprimida em alguns poucos anos
ou décadas nas regiées exoticas, pode ter levado o mesmo nfimero de
séculos na Europa Ocidental.
O desafio se Originou do crescimento de outras formas do capita-
lismo, além das puramente comerciais. Com os Tudors, na Inglaterra,
surgiu o capitalismo agricola e sua necessidade de um tratamento indi—
Aquilo que chamamos terra é um elemento da natureza inexplica- vidualizado para a terra, inclusive as conversoes e 03 cercamentos. Ja‘
velmente entrelagado com as instituigées do homem. Isola-la e com ela no inicio do século XVIII surgiu o capitalismo industrial que — tanto
formar um mercado foi talvez o empreendimento mais fantéstico dos na Franga como na Inglaterra — foi basicamente rural e precisava de
nossos ancestrais; locais para seus moinhos e o alojamento dos trabalhadores. Mais
Tradicionalmente, a terra e o trabalho 11510 $510 separados: o trabalho poderosa ainda, embora afetasse mais o uso da terra do que a sua pro-
6 parte da Vida, a terra continua sendo parte da natureza, a Vida e 'a priedade, foi a ascendéncia das cidades industriais, com sua exigéncia
natureza formam urn todo articulado. A terra se liga, assim, as organiza- praticamente ilimitada de alimentos e matérias-primas durante o sécu-
gées de parentesco, vizinhanga, profissao e credo — como a tribo e o l o XIX.
templo, a aldeia, a guilda e a igreia. Por outro lado, Um Grande Superficialmente, havia pouca semelhanga nas respostas a esses
Mercado é uma combinacao de Vida econémica que inclui mercados desafios e, no entanto, eles foram estagios na subordinagao da superfi-
“Ease-.1931
para os fatores da produgéo. Uma vez que esses fatores nao Se distingam cie. do planeta as exigéncias de uma sociedade industrial. 0 primeiro
dos elementos das instituigées humanas, homem e natureza, pode-se ver estagio foi a comercializagao do solo, mobilizando o rendimento feudal
claramente que a economia de mercado envolve uma sociedade cujas da terra. O segundo foi o incremento da produgao de alimentos e de
instituigoes estao subordinadas as exigéncias do mecanismo de mercado. matérias—primas organicas, para atender as exigéncias, em escala nacio—
.":
O pressuposto é tao utopico em relacao a terra como em relacao nal, de uma produgao industrial em'fapido crescimento. O terceiro foi
ao trabalho. A fungao economica é apenas uma entre as muitas fungoes estender esse sistema de produgao excedente aos territorios de além-
vitais da terra. Esta da estabilidade a Vida do homem; é 0 local da sua mar e coloniais. C o m esse ultimo passo, a terra e sua produgao se inse-
habitagao,ée a condigao da sua seguranca fisica, é a paisagem e as esta- riram finalmente no esquema de um mercado auto-regulavel.
goes do ano. Imaginar a Vida do homem sem a terrae o mesmo que A comercializagzao do solo foi apenas um outro nome para a liqui—
imagina—lo nascendo sem maos e pes. E no entanto, separar a terra do dagao do feudalismo, que se iniciou nos centros urbanos ocidentais,
homem e.organizar a.sociedade de forma tal a satisfazer as exigéncias inclusive na Inglaterra, no século XIV e terminou cerca de quinhentos
de _um mercado imobiliariofoi .parte vital do conceito utopico de uma anos mais tarde, no decurso das revolugoes européias, quando foram
,gcononua dc mercado. ' abolidos os remanescentes da servidao feudal. Tirar o homem da terra
Mais uma vez, 6 na area da colonizag‘ao moderna que se torna significava reduzir o corpo econémico a seus elementos; de forma que
'214 manifesto o verdadeiro significado de um tal empreendimento. E 1116- cada elemento pudesse inserir-se naquela parte do sistema onde fosse 215
mais fitil. O novo sistema se organizou, de inicio, lado a lado com o pode, se os meios de transporte e a lei permitem. “Assim, a mobilidade
antigo, que ele tentou assimilar e absorver através da manutengéo do dos bens compensa, de alguma forma, a falta de mobilidade inter-regio-
controle daquela terra ainda ligada a lacos pré-capitalistas. O seqfiestro nal dos fatores; ou (o que é a mesma coisa) o comércio atenua as des-
feudal da terra foi abolido. “O objetivo era a eliminagao de todas as vantagens da distribuigao geografica inconveniente dos recursos produ—
reivindicagoes por parte das organizagoes dc vizinhanca ou de paren- tivos”.3 Uma nogao como essa era totalmente estranha a perspectiva
tesco, principalmente as da viril estirpe aristocratica assim como as da tradicional. “Nem na antiguidade, nem no principio da IdadeMédia -
Igreia — reivindicagoes que isentavam a tetra da comercializagao ou da e isto deve ser afirmado enfaticamente — eram regularmente compra-
hipoteca”.l Parte desse obietivo foi atingidopéla forga individual e a . . _dos e vendidosps-bens da Vida cotidiana”.4 Suponha-se que os exce-
violéncia, parte por revolucoes do alto ou de baixo, parte pela guerrae dentes de cereais aprovisionariam a vizinhanga, especialmente a cidade
a Conquista, parte pela agao legislativa, parte por pressao administrati- local, e até o século XV os mercados de trigo tinham uma organizagéo
va, parte pela agao espontéinea de pessoas privadas, em pequena escala, estritamente local. Todavia, o crescimento das cidades induziu os
ao longo de muito tempo. 0 fato desse transtorno ser rapidamente senhores de tetra a produzit basicamente para a venda no mercado e —
absorvido ou causar um ferimento aberto no corpo social dependeu na Inglaterra — o crescimento das metropoles compeliu as autoridades a
basicamente das medidas tomadas para regular 0 processo. Os préprios abrandar as restrigoes sobre o comércio do trigo e permitir—lhe tornar-
governos introduziram fatores poderosos de mudanca e ajustamento; A se regional, embora nunca- nacional.
secularizagao das terras da Igreja, por exemplo, foi um dos fundamen- A aglomeragao das populagées nas cidades industtiais, na segunda
tos do estado modern o até a época do Risorgimento italiano e, bem a metade do século XVIII, mudou completamente a situagéo - primeiro
propésito, ele foi um dos meios principals da transferénCia ordenada em escala nacional, depois em escala mundial.
da terra para as maos de individuos privados. Efetuar essa transformagao foi o verdadeiro significado do livre
Os maiores passos isolados foram dados pela Revolugao Francesa e comércio. A mobilizagao do produto da terra se estendeu do campo
pelas reformas benthamitas das décadas de 1830 e 1840. “A condigio vizinho para as regioes tropical e subtropical — a divisao do trabalho
.i- s
mais favorével para a prosperidade da agricultura”, escreveu Bentham, industrial-agricola foi aplicada ao planem. O resultado foi que os povos
aparece quando néo ha entraves, doagoes inalienaveis, terras comuns, de zonas distantes foram engolfados pelo turbilhao da mudanga, cujas
direitos de redengao, dizimos...” Uma tal liberdade no tratamento da origens cram obscuras para eles, enquanto as nagées européias se tor-
.-
propriedade, especialmente a propriedade da tetra, era parte essencial navam dependentes de uma integragéo, ainda nao garantida na Vida da
. .-_ s7--s. .
da concepgéo benthamita de liberdade individual. Ampliar essa liberda- humanidade, para as suas atividades cotidianas. Com 0 livre comércio,
. - . _ . ‘ - .—
de, de qualquer maneira, foi o obietivo e o resultado da legislagéo do as novas e tremendas casualidades da interdependéricia planetaria
tipo dos Prescriptions Acts, dos Inheritance Act, Fines and Recoveries ganharam corpo.
r:
1» Act, Real Property Act, do amplo Enclosure Act de 1801 e seus suede- O escopo da defesa social contra o deslocamento total foi téo
g%
sores,2 assim como os Copyhold Acts de 1841 are 1926. Na Franga, e amplo quanto a frente do ataque. Embora a lei comum e a legislagao
em grande parte do continente, 0 Code Napoleon instituiu formas de apressassem a mudanca em certas ocasiées, elas a atrasaram cm outras.
propriedade para a classe média, transformando a tetra em bem co- Todavia, a lei comum e a lei estatutaria nio atuavam necessariamente
merciével e tomando a hipoteca um contrato civil privado. na mesma direcéo em qualquer tempo dado.
O segundo passo, que superou o primeiro, foi a subordinagéo da
terra as necessidades de uma populagio urbana em rapida expansao.
Embora o solo nio possa ser mobilizado fisicamente, a sua produgio
,, . 3 Ohlin, 5., Interregional and International Trade, 1935, p. 42.
' : 4 Biicher, K., Entstehung der Volkswirtschaft, 1904. Cf mmbém Penrose, E. F., Population
'1 Btinkrnann,
-C.,
“Das soziale System des Kapimlismus”, Gmndn'ss der Scablolzonomik, Theories and their Application, 1934, que cita Longfield, 1834, como a primeira mengio
1924: ‘ .- da idéia de que os movimentos das metmdorias podem set vistos como substitutos para os
2.,Dicey,
115 a. v.,5;». cit, p. 226. movimentos dos fatores dc produgio. 217
A lei comum desempenhou um papel eminentemente positivo no compactos de produtores agricolas.5 Esse processo inevitavel de des-
advento do mercado de trabalho — a teoria do trabalho como mercado- truigao se agravava ainda mais com a descontinuidade inerente a0
ria foi apresentada em primeiro lugar, e enfaticamente, nao por econ0- desenvolvimento dos meios de transporte modernos, demasiado dis-
mistas, mas por advogados. Também no caso das combinagées de tra— pendiosos para se estenderem as novas regiées do planem, a menos que
balho e da lei de conspiragao, a lei comum favoreceu um mercado livre a recompensa fosse bastante alta. Realizados 0s grandes investimentos
de trabalho, embora isto significasse restringir a liberdade de associa— na construgio de navios a vapor e ferrovias, continentes inteiros se
gao‘dos trabalhadores organizados. abriarn e uma avalanche de cereais invadiu a infeliz Europa. Isto con-
‘ No que diz respeito a terra, porém, a lei comum abandonou 0 seu trariava o prognéstico classico: Ricardo transformara num axioma que
papel de encorajadora da mudanga, opondo-se a ela. Durante os sécu- a terra mais fértil se consolidaria primeiro. Numa ironia espetacular, as
los XVI e XVII, era mais freqiiente a lei comum insistir no direito do ferrovias encontraram terras mais férteis nas antipodas. A Europa
proprietario de melhorar a sua terra em seu proveito, mesmo que isto Central, temendo a destruigao total da sua sociedade rural, se viu for-
implicasse um grave deslocamento de habitagées e emprego. Como gada a proteger o seu campesinato introduzindo leis do trigo.
sabemos, no continente esse processo de mobilizagio estava sob a juriS— Entretanto, se os estados organizados da Europa podjam se proteger
digao da lei romana, enquanto na Inglaterra a lei comum se fez valer e contra a repercussao do comércio livre internacional, o mesmo n50
conseguiu diminuir o abismo entre os direitos restritos da propriedade ocorria com os povos coloniais, politicamente nao organizados. A revol-
medieval e da propriedade individual moderna, sem sacrificar o princi- ta contra o imperialismo foi principalmente uma tentativa dos povos
pio da lei juridica, vital para a liberdade constitucio nal. Por outro lado, exéticos de alcangar 0 status politico necessario para protegé-los das dis-
desde o século XVIII a lei comum da terra atuava como preservadora torgées sociais causadas pelas politicas comerciais européias. A protegao
do passado em face da legislagio modernizadora. Os benthamitas, de que o homem branco podia assegurar-se com facilidade, pelo status
porém, acabaram conseguindo o seu intento e, entre 1830 e 1860, a soberano de suas comunidades, estava fora do alcance do homem de
liberdade de contrato foi estendida a terra. Essa poderosa tendéncia so cor enquanto lhe faltasse o pré—requisito — o governo politico.
se inverteu na década de 1870, quando a legislagio alterou radicalmen-
te o seu curso. Havia comegado o periodo “coletivista”. As classes comerciais patrocinavam a exigéncia de mobilizagao da terra.
A inércia da lei comum foi deliberadamente acentuada por estatutos Cobden deixou estarrecidos os senhores rurais da Inglaterra com sua
expressamente votados para proteger as habimgées e as ocupagoes das descoberta de que cultivar a terra era um “negécio” e aqueles que esta-
classes rurais contra 0s efeitos da liberdade de contrato. Desenvolveu—se vam falidos deveriam abandoné—la. As classes trabalhadoras foram con-
um amplo esforgo para assegurar algum grau de higiene e salubridade quistadas pelo livre comércio quando se tornou aparente que ele torna-
na moradia dos pobres, fornecer-lhes loteamentos, conceder-lhes a va 0 alimento mais barato. Os sindicatos profissionais se tornaram 0s
Joportunida de
de fugir das favelas e respirar 0 ar fresco da natur'eza o bastiées do antiagrarianismo e o socialismo revolucionario estigmati-
“parque dos cavalheiros”. Infelizes irlandeses e favelados londrinos zou o campesinato do mundo como massa indiscriminada de reaciona-
eram salvos do guante das leis de mercado através de atos legislativos rios. A divisao internacional do trabalho foi um credo progressista, sem
destinados a proteger suas habitagées contra o monstro — o progresso. duvida, e seus adversarios eram recrutados, muitas vezes, entre aqueles
No continente, foi principalmente a lei estatutaria e a agao administra- cujo julgamento ja estava viciado por interesses investi'dos ou por falta
tiva que salvaram o rendeiro, o camponés, o trabalhador agricola dos de inteligéncia natural. As poucas mentes independentes e desinteressa—
efeitos mais violentos da urbanizagao. Prussianos conservadores, como das que descobriram as falacias do comércio livre irrestrito eram em
Rodbertus, cujo socialismo Junker influencio u Marx, eram irmaos de numero demasiado pequeno para causar qualquer impacto.
sangue dos democratas Tory da Inglaterra. _ _ ,- r
dep _e_s ..e_ continent es inteiros, O comércio livre internaci onal, sem
5 Borkenau, F., The Totalitarian Enemy, 1939, capitulo Towards Collectivism. 219
21a; .barreiras, deveria necessariamente eliminar orgamsmos cada vez mais
Todavia, as suas conseqfiéncias nao foram menos reais pelo fato de do solo e dos seus-recursos — o vigor e a perseveranga da populagao, a
nao terem sido reconhecidos conscientemente. Com efeito, a grande abundancia de alimentos, a quantidade e o carater dos materiais de
influéncia exercida pelos interesses fundiarios na Europa Ocidental e a defesa, até mesmo o clirna do pais, que podia sofrer com o desnuda—
sobrevivéncia de formas de vida feudal na Europa Central e Oriental mento das florestas, as erosées e as dunas, tudo aquilo que, em ultima
durante o século XIX tém uma explicagio cabal na fungao protetora analise, depende do fator terra, embora nenhuma das quais responda
vital dessas forgas a0 retardarem a mobilizagao da terra. A questao sur- a0 mecanismo de oferta e procura do mercado. Dado um sistema intei-
gia sempre: O que permitiu a aristocracia feudal do continente manter ramente dependente das fungoes do mercado para a defesa das suas
sua influéncia num estado de classe média, quando ja havia perdido as necessidades existenciais, a confianga voltar—se-a naturalment‘e para
fuhéé'ié's militar, juridica e administrativa as quais deviam a sua ascen- aquelas forgas fora do sistema de mercado capazes de proteger os inte-
déncia? A teoria das “sobrevivéncias” aparecia as vezes como explica- resses comuns ameagados por aquele sistema. Essa perspectiva combina
gao, mercé da qual instituigées sem fungao ou certas caracteristicas com a apreciagao que fazernos das verdadeiras fontes de influéncia da
podem continuar a existir em virtude da inércia. Todavia, seria mais classe: ao invés de tentar explicar os acontecimentos que ocorrem, con-
.correto dizer que nenhuma instituigao jamais sobrevive a sua fungao —- trariamente a tendéncia geral da época, através da influéncia (inexpli-
quando parece fazé-lo, é porque ela atende a alguma outra fungao, ou cével) das classes reacionérias, preferimos explicar a influéncia de tais
funcoes que nab precisam incluir a original. Assim, o feudalismo e o classes pelo fato de que elas, embora casualmente, apéiam 0s aconteci-
conservadorismo fundiario mantiveram a sua forga enquanto serviram mentos s6 aparentemente contrarios ao interesse geral da comunidade.
um propésito que, por acaso, foi 0 de restringir os efeitos desastrosos O fato dos seus préprios interesses serem quase sempre bem atendidos
da mobilizagao da terra. Nessa ocasiao, os adeptos do livre comércio ja por uma tal politica apenas oferece mais uma ilustragao da verdade do
haviam esquecido que a terra era parte do territério do pais, e que o fato de que as classes conseguem se aproveitar, desproporcionalmente,
carater territorial de soberania nao era apenas um resultado de associa- daqueles mesmosservigos que parecem prestar a comunidade como
gées sentimentais porém de fatos concretos, inclusive fatos econémi-. um todo. ' ‘
cos. “Em contraste com os povos nomades, 0 cultivador se incumbe de A Speenhamland aparece como exemplo. O proprietario rural que
aperfeigoamentos determinados para um lugar particular. Sem esses dominava a aldeia descobriu uma forma de diminuir a alta dos salarios
aperfeigoamentos a vida humana continuaria a ser elementar e pouco rurais e a distorgio que ameagava a estrutura tradicional da vida aldeai
diferente da dos animais. E quao grande foi 0 papel desempenhado por A longo prazo, o método escolhido estava fadado a produzir os resulta-
essas benfeitorias na histéria humana! Sio elas as terras limpas e culti- dos mais nefastos. Os proprietarios rurais, porém, nao poderiam man-
vadas, as casas e outras construgées, os meios de comunicagao, a fabri— ter os seus métodos a mic ser que, a0 fazé-lo, eles tenharn ajudado o
ca multiforme necessaria a produgao, inclusive a indfistria e a minera- pais como um todo a enfrentar o vagalhao da Revolugao‘lndustrial.
gao, todos os aperfeigoamentos permanentes e irremoviveis que ligam No continente da Europa o protecionismo agrario também foi uma
uma comunidade humana a localidade em que se situa. Eles nao necessidade. As forcas intelectuais mais ativas da época, porém, estavam
podem\ ser improvisados, tém que' ser construidos gradualmente, por engajadas numa aventura que modificou seu angulo de visao, de forma a
geragées de esforgo paciente, e a comunidade n50 pod'e se permitir lhes ocultar o verdadeiro significado da condigao agraria. Sob as circuns—
sacrifica-los e comegar novamente em outro lugar. Dai o carater terri- tancias, um grupo capaz de represenmr 0s interesses rurais ameagados
torial da soberania que impregna nossas concepcoes politicas”.6 poderia adquirir uma influéncia fora de proporgao com o seu nfimero. O
Durante um século essas verdades obvias foram ridicularizadas. contramovimento protecionism na verdade conseguiu estabilizar o campo
O argumento economico podia se ampliar facilmente, de forma a ‘ europeu e enfraquecer o fluxo em diregao as cidades, que era 0 tormento
englobar as condigoes de seguranga e estabilidade ligadas a integridade da época. A reagao foi a beneficia’ria de uma fungio socialrnente fitil que
.__i ...__.__..¢._.\..__...._‘._..r ..
TRANSFORMACAO EM PROGRESSO
19
GOVERNO'POPULAR
' E ECONOMIA DE MERCADO
class1cos e a
lema do intervencionismo foi cunhado pelos economistas ser assistido, em favor da industria. Nao importava o fato de que o tra—
1al
Speenhamland estigmatizada como uma interferénc1a art1f1c l n u m a balhador desempregado nao era responsavel pela sua propria sorte. O
us eRica rdo
ordem de merca do ainda nao-e xisten te. Town send, Malth ponto nao era se ele podia ou nao encontrar trabalho, caso tentasse,
/s1ncons1s-
erigiram o edificio da economia classica sobre as'fundacloe mas que o sistema salarial sofreria uma derrocada, atirando a sociedade
o ma1s formid avel instru—
tentes das condigoes da Poor Law, e ele foi na miséria e no caos, a nao ser que ele se sentisse ameagado pela fome,
uma ordem des-
mento conceitual de destruicao jamais dirigido contra tendo como alternativa apenas o detestado albergue. Reconhecia-se
prote-
gastada. Todavia, durante mais uma geragao o sistema de abonos que isto significava castigar um inocente, mas a perversao da crueldade
atrativ o- dos elevad os salario s urban os.
geu os limites da aldeia COntra o consistia precisamente em emancipar o trabalhador com o objetivo
e Peel amplla vam os cami-
Em meados da década de 1820, Huskisson concreto de fazer da fome uma ameaga efetiva de destruigao. f3 justa—
acao de
nhOs do comér cio exterio r, surgiu a permis sao para a export mente este procedimento que torna inteljgivel aquele melancélico sen-
abol1-
maquinaria, foi levantado o embargo sobre a exportagao da 151, tirnento de desolagao que as obras dos economistas classicos nos trans-
cao
das as restrigoes a navegagao, a emigracao foi fac111tada e a revoga mitem. Assim, fechando as portas aos excedentes que se encontravam
izado e avalia coes salaria is
formal do Statute of Artificers sobre aprend agora aprisionados dentro dos limites do mercado de trabalho, o
Ainda as51m , a
foi seguida pela aboligao das Anti-Combination Laws. governo se colocou sob um estatuto que negava a si mesmo, pois — nas
condad o,
desmoralizante Speenhamland Law se difundia de condado a palavras de Harriet Martineau — fornecer qualquer assisténcia as viti-
privando o operario do trabalho honesto e transformando em incon- mas inocentes passou a ser uma “violagao dos direitos do povo” por
.
gruéncia o propri o conceito de homem trabalhador independente ' parte do estado.
Embora ja tivesse chegado a oportunidade para um mercad o-de traba- Quando o movimento cartista exigiu a entrada dos deserdados nos
lho, sua criacao foi impedida pela “lei” dos propr1etarlos rurals. . limites do estado, a separagao do economico e do politico deixou de
s1stema
O parlam ento da reform a atacou de imedia to a abolig ao do ser um tema académico e passou a ser incontestavel condicao do siste-
era~
de abonos. A New Poor Law, que atingiu essa finalidade, f01cons1d ma Vigente na sociedade. Teria sido um ato de loucura entregar a admi-
da 0 ato mais impor tante de legislagao social jamais votado pela nistracao da New Poor Law, com seus metodos cientificos de tortura
s-
Cfimara dos-Comuns. No entanto, o cerne desse decreto foi simple mental, aos representantes do mesmo povo a quem esse tratamento era
la do
mente a aboliga o da Speenh amland . Nao existe prova mais dec1s1j dispensado. Lorde Macaulay estava apenas sendo coerente quando exi-
ncao no
que o fato de que, nessa ocasia o, a simples ausénc1a de interve giu, na Cfimara dos Lordes, num dos discursos mais eloqiientes jamais
mercado de trabalho era reconhecida como algo de importanc1a consti- feitos por u m grande liberal, a rejeicao incondicional da peticao cartis-
tutiva para toda a futura estrutura da sociedade. O mesmo se pode ta, em nome da instituicao da propriedade sobre a qual repousava toda
.
dizer e m relacao a fonte econom ica da tensao. a civilizagao. Sir Robert Peel acusou a Carta de ser um ataque a
Quanto a fonte politica, a reforma parlamentar de I832 reahzou Constituigao. Quanto mais viciosamente o mercado de trabalho retor-
a pela
uma revolugao pacifica. A estratificagao social do pais f01alterad cia as vidas dos trabalhadores, mais insistentemente eles clamavam pelo
Poor Law Amendment de 1834, e alguns dos fatos basico s da v1da voto. A exigéncia de um governo popular foi a fonte politica da tensao.
A
inglesa foram reinterpretados ao longo de linhas radicalmente novas. Sob tais condigées, o constitucionalismo adquiriu um significado
New Poor Law aboliu a categoria geral dos pobres, o “pobre honesto. inteiramente novo. Ate entao, as salvaguardas constitucionais contra a
o u “pobre trabalh ador” — termos contra os quais Burke ja haYia investi— interferéncia ilegitima nos direitos de propriedade eram dirigidas ape-
do. Os pobres anteriores se dividiam agora em indlgentes fisicamente nas contra os atos arbitrarios vindos de cima. A visao de Lock nao
n-
desamparados, cujo lugar era nos albergues, e trabalhadores indepe transcendeu os limites da propriedade fundiaria e comercial, e objetiva-
dentes que ganhavam sua Vida com o trabalho assalarlado. Isto criou va apenas excluir os decretos despéticos da Coroa, como as seculariza-
fez
uma, categoria de pobres inteiramentenova, o desempregado, que goes feitas sob Henrique VIII, 0 roubo da Casa da Moeda sob Carlos I
sua aparig aonoce nario social. Enquan to o indigen te deveria ser aten— on a “parada” do Erario sob Carlos II. A separagao entre governo e
nao deveria
252 dido por uma questa o de human idade, o desem pregad o negécios, no sentido de John Locke, foi alcangada de forma exemplar 263 _
A experiéncia do tema trabalhista foi repetida no item moeda e
aterra em 169 4. 0 capital
na carta de um banco independente da Ingl - .
também nele'a década de 1920 foi prefigurada pela década de 1790,
oa. .
comercial havia ganho a sua luta contra a Cor Bentham foi o primeiro a reconhecer que a inflagao e a deflagao eram
strial e nao mais a
Cem anos mais tarde, era a propriedade indu intervengoes no direito a propriedade: a primeira, um imposto sobre, a
contra a (‘Zoroa mas coin-
comercial que devia ser protegida, e 1150 mais filtima uma interferéncia nos negécios.2 Desde entire 0_ trabalho e o
ria levar a aphcagao (211s
tra o povo. So uma nogao equivocada pode dinheiro, o desemprego e a inflagao estiveram polin'camente na mesma
lo XIX. A separaaci‘ao e
acepgoes do século XVII as situagoes do. secu categoria. _Cobbett denunciou o padrao-ouro juntamente com a New
ntad o nesse intent-do, era
pode res, que Montesq‘uieu (1748) hav1a inve cc:-
Poor Law; Ricardo apoiou ambos, e com argumentos bastante simila—
e a sua propria v1 a
"'iis‘ada agOra para isolar o povo do poder sobr _ res, sendo o trabalho e o dinheiro mercadorias e nao tendo o governo
elada num ambiente, . e
nomica. A constituigao norte-americana, mod o direito dc interferir com qualquer dos dois. Banqueiros se opunham
precavidalpelo cenario
fazendeiros e artifices por uma lideranga ja a introdugao do padrao-ouro, como Atwood de Birmingham, encon-
a economica da lurisclii-
industrial inglés, isolou completamente 'a esfer travam-se do mesmo lado que os socialistas, como Owen. Um século
rieda de privada sob a maaiis a ta
gao da constituigao, colocando a prop ment e
mais tarde, Mises ainda reiterava que o trabalho e o dinheiro nao eram
de merc ado leg
prote gao concebivel, e criou a {mica soc1edade uma preocupagao maior do governo do que qualquer outra-mercado—
ersal, ols eleitores norte—
constituida no mundo. Apesar do sufragio univ ria do mercado. No século XVIII, na America do Norte pré—federativa,
rios. . . -
americanos nao tinham poder contra os proprieta o dinheiro barato era 0 equivalente da Speenliamland, isto é, uma con-
Na Inglaterra, torno u-se uma lei nao escrita na Consumigao Ique
cessao economicamente desmoralizante feita pelo governo, para aten-
Os lideresicamStas
deveria ser negado o voto a classe trabalhadora; der ao clamor popular. A Revolugao Francesa e as seus assignats’ mos-
oes, foram ridicfplari—
foram presos; seus partidarios, que atingiam milli traram que o povo podia destruir a moeda, e a historia dos estados
s uma pequeina agao
Zados .por um legislativo que representava‘apena americanos nao ajudava a dissipar essa suspeita. Burke identificava a
a tratada pe as auton-
da populagao, e a simples exigéncia de eleigao-er democracia norte-americana com problemas na moeda, e Hamilton
quer indicr o do ESPlrltO‘
dades como um ato criminal. Nao hav1a qual receava'nao apenas as facgées mas também a inflagao. Todavia,
do Sistema britanico —
de compromisso supostamente caracterfstico enquanto na América do Norte do século XIX as escaramugas dos par—
lhadora atravessou
uma invengao posterior. S6 depois que a classe traba tidos populistas e greenback com os magnatas de Wall Street eram
é que emergiu uma geria-
os Hung ry Forties (a fome dos anos quar enta) 5-
endémicas, na Europa a acusagao de inflacionismo 36 se tornou um
e de Our o do cap“?
gao mais décil para colher os beneficios da Idad argumento efetivo contra legislativos democréticos na década de 1920,
lhadores espec1aiza—
mo; 56 depois que uma camada superior de traba com conseqiiéncias politicas de longo alcance.
a massa de pauperri-
dos criou os seus sindicatos e separou—se da negr A protegao social e a interferencia na moeda nao eram simplesmen—
ores aquiesceram ao Sis—
mos trabalhadores; so depois que os trabalhad te temas analogos, mas freqfientemente idénticos. Desde o estabeleci-
se permitiu a0 estrato
tema que a New Poor Law impunha a eles 6 que mento do padriio-ouro, a moeda passou a ser ameagada tanto pela ele-
nas assembleias da
mais bem remunerado de trabalhadores participar vagao do nivel salarial quanto pela inflagao direta — ambas podiam
de para r o moinlfio do
nagao. Os cartistas haviam lutado pelo direito diminuir as exportagées e até depreciar os cambios. Esta simples cone-
esses direitos so ' o r z m
mercado que triturava as vidas do povo, mas xao entre as duas formas basicas de intervengao tornou-se o fulcro da
e concretiza o.
concedidos a0 povo depois que o terrivel alust .fora politica na década de 1920. Partidos preocupados com a seguranga da
a Mises, de Spencer 3
Den tro e fora da Ingl aterr a, de Macaulay expr es-
al que deixasse de
Sum ner, nao houv e um finic o milit ante liber
lar erau m perigo para o
sar a sua convicgao de que a democracia popu 7-
,capifalismo.: - ' - Bentham, 1., Manual of Political Economy, p. 44, sobre inflagéo como-“frugalidade for—
gada”; p. 45 (pé—de-pagina) como “taxagio indireta”. Cf. também Principles of Civil Code,
cap;15. 5
1;‘Had le§,‘AT .,‘-Eco noynia s: An Account of the Relations betweearivate Property and ' Papel-moeda emitido pelo governo da Revolugao Francesa (N. do R
. , 265
264- Bahliqwelfare,-1896-
7'
272 remanescentes da divisio intemacional do trabalho. A teimosm dos do socialismo, de acordo com as idéias ocidentais. Essas diferengas tor- 273
“ . . .. . . _ . ...
.w. . _
naram seus métodos e solugoes inaplicaveis em qualquer outro lugar,
E, no entanto, foi precisamente este o caso da déca
mas nao impediram que o socialismo se tornasse um poder mundial. da de 1920 O
trabalho se entrincheirou no parlamento, onde
No continente, os partidos dos trabalhadores sempre foram socialistas o seu nfimero lhe dava
peso, os capitalistasfizeram da industria uma forta
em sua perspectiva e qualquer reforma que desejassem alcangar era, de leza para dirigir o
pais. Os orga os popu lares resp onde ram com
imediato, suspeita de servir a objetivos socialistas. Em épocas mais u_ma impi edos a inter
ven-
eao/nos negécios, desprezando as necessidades
tranqiiilas essa suspeita seria injustificada, pois os partidos socialistas da de uma dada forma de
industria. Os capitaes de industria subvertiam a
'classe trabalhadora como um todo estavam mais comprometidos com a lealdade da populagao
para com os seus prép rios dirig entes , livre
reforma do capitalismo do que com a sua derrubada revolucionaria. ment e eleit os, enqu anto
orgaos democraticos entravam'em luta contra o-sis
Numa emergéncia, porém, a situagao se modificava. Se o s métodos te'ma industrial do~--~
qual dependia a subsisténcia de todos. E claro que cheg
normais nao eram validos, entao poderiam ser tentados outros méto— aria o momento
em que ambo s, os sistemas econ émic o e polit ico,
dos, anormais, e, em se tratando de um partido de trabalhadores, tais se veria m ameagados
de uma paralisia total. 0 medo atingiria o povo
métodos poderiam incluir o desprezo aos direitos de propriedade. Sob e a lideranga seria
entregue aqueles que- oferecessem uma safda facil, a
a pressao de um perigo iminente, os partidos dos trabalhadores podiam qualquer prego. A
epoca estava madura para a solugao fascista.
apelar para medidas de carater socialista ou que assim pareciam aos
partidarios militantes da empresa privada. Um simples indicio nesse
sentido seria suficiente para atirar os mercados numa confusao e come-
gar um panico universal.
Sob condigées como essas, o rotineiro conflito de interesses entre
patroes e empregados assumiu um carater sinistro. Embora uma diver—
géncia de interesses economicos terminasse sempre em compromisso,
normalmente, a separagao das esferas economica e politica na socieda- _
de tendia a investir tais choques de graves conseqfiéncias para a comu-
nidade. Os patrées eram os proprietérios das fabricas e das minas e,
portanto, diretamente responsaveis pelo andamento da produgao na
sociedade (além do seu interesse pessoal nos lucros). Em principio, eles
teriam o apoio de todos na sua tentativa de manter a indfistria em
andamento. Por outro lado, os empregados representavam uma grande
secgao da sociedade; seus interesses também eram, e num grau impor-
tant'e, coincidentes com cs da comunidade como urn todo. Eles consti-
tuiam a {mica classe apta a proteger os interesses dos consumidores,
dos cidadaos, dos seres humanos como tais e , com o sufragio universal,
a sua quantidade numérica lhes conferia uma preponderancia na esfera
politica. Entretanto, o legislativo, como a indfistria, desempenhava fun—
gées normais na sociedade. Seus membros tinham a seu cargo a forma-
gao da vontade comunal, a administragéo da politica pfiblica, a elabo—
ragao de programas a longo prazo, internos e externos. Nenhuma
sogiedadefigomplexa podia passar sem orgaos legislativos atuantes e
C9£pQ$;;§X§CutiVOSf;d¢ tipo vpolitico. Um choquede interessesde grupo
qua-ESEIWSC na paralisagao de orgaos da industria on do estado — um
274 7 deles ou ,ambos - criava ,um perigo imediato para a sociedade.
275
O aparecimento desse movimento nos pafses industrializados do
globo, e até mesmo em alguns menos industrializados, jamais pode ser
atribuido a causas locais, mentalidades nacionais ou formacao histori-
ca, como fizeram sistematicamente os contemporaneos. O fascismo
teve tio pouco a ver com a Primeira Guerra Mundial como com o
20 Tratado de Versalhes, com o militarismo Junker como com o tempera-
mento italiano. O movimento surgiu em paises derrotados, como a
___Bulgéria, e em paises vitoriosos, como a Iugoslavia; em paises de tem-
"A" HISTORIA NA ENGRENACEM peramento nérdico, como a Finlandia e a Noruega, e de temperamento
DA MUDANCA SOCIAL sulista, como a Italia e a Espanha; em pafses de raga ariana, como a
Inglaterra, a Irlanda on a Bélgica, e de ragas nao-arianas, como o
Japao, a'Hungria ou a Palestina; em paises de tradigao catélica, como
Portugal, e em paises protestantes, como a Holanda; em comunidades
militares, como a Prussia, e unidades civis, como a Austria; em culturas
antigas, como a Franga, e novas, como os Estados Unidos e os paises
latino-amcricanos. De fato, n50 houve qualquer tipo de formagio — de '
tradigéo religiosa, cultural ou nacional —- que tornasse um pais imune
Se jamais existiu urn movime nto politico que correspo ndeu as ao fascismo, uma vez dadas as condicées para a sua emergéncia.
necessidades de uma situagéo objetiva, e que n50 foi resulmdo de cau- Ademais, foi marcante a falta de 'relagao entre a sua forga material C
sas fortuitas, ele foi o fascismo. Ao mesmo tempo, 0 carater degenerati- numérica e a sua efetividade politica. O préprio termo “movimento”
vo da solucio fascista era evidente. Ela oferecia um escape a um impas- era equivocado, uma vez que implicava uma espécie d e alistamento o u
se institucional que era essencialmente semelhante em grande nfimero participagao pessoal de grandes massas. Se houve alguma coisa caracte-
de paises e, no entanto, se esse remédio fosse aplicado em todo lugar ristica no fascismo foi a sua independéncia de tais manifestagées popu-
ele teria produzido uma doenca que levaria a morte. Esta é a manelra lates. Embora seu objetivo fosse um cortejo de massas, sua forga poten-
na qual perecem as civilizagoes. cial era reconhecida nao pelo nfimero dos seus adeptos mas pelo fato
' A solugao fascista do impasse atingido pelo capitalismo liberal pode de os lideres fascistas gozarem da boa vontade de pessoas em postos de
ser descrita como uma reforma da economia de mercado, alcangada ao relevancia, cuja influéncia na comunidade podia defendé-los das conse-
prego da extingao de todas as instituigées democréticas, tanto no qiiéncias eventuais de uma revolta abortada, afastando assim os riscos
campo industria l como no politico. O sistema economico, ameagado da revolugao.
de ruptura, poderia ser revitalizado, mas os povos ficaram SHJCItOS a Um pais que se avizinhava da fase‘fascista revelava sintomas e
uma reeducagao que se propunha a desnaturalizar o individuo e torna- entre eles nao era necessaria a existéncia de um movimento fascista
lo incapaz de funcionar como unidade responsavel do corpo politico.1 propriamente dito. Entre esses indfcios importantes estavam a difusa‘io
Essa reeducagao, que abrangia o dogma de uma religiio politica que de filosofias irracionais, estéticas raciais, demagogia anticapitalista,
negava a idéia da fraternidade do homem em todas as suas formas, f01 opiniées heterodoxas sobre a moeda, critica do sistema partidario, a
alcangada através de um ato de conversao de massa, imposta aos recal- depreciagio amplamente difundida do “regime”, ou qualquer que seja
citrantes por métodos cientificos de tortura. o nome dado ao conjunto democratico vigente. Na Austria a chamada
filosofia universalista de Othmar Spann, na Alemanha a poesia de
Stephan George e o romantismo cosmogonico de Ludwig Klages, na
Inglaterra a vitalidade erotica de D. H. Lawrence, na Franga o culto
27's I 1 Polanyi, K., “The Essence of Fascim”. Em Christianity and the Social Revolution,1935. do mito politico de Georges Sorel estavam entre os seus precursores 277