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A resistência e a autoria como chaves de leitura para a Educação Escolar Indígena

diferenciada e descolonizadora1

Antonio Dari Ramos


antonioramos@ufgd.edu.br
Faculdade Intercultural Indígena – FAIND/UFGD
Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil

Inicialmente, quero agradecer, nas pessoas dos professores Neimar Machado,


Gersem Baniwa e Teodora de Souza, o convite da organização do II Fórum Nacional de
Educação Escolar Indígena para fazer essa fala. Meu lugar de enunciação será a
Universidade Federal da Grande Dourados, a partir da Faculdade Intercultural Indígena,
FAIND, Unidade Acadêmica onde está lotada a Licenciatura Intercultural Indígena
Teko Arandu, curso que há 10 anos trabalha com a Formação de Professores Indígenas
das etnias autodenominadas Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, e a Licenciatura
em Educação do Campo. É um prazer muito grande falar de um tema sobre o qual tenho
me debruçado há algum tempo, realizando a interface entre a Educação Escolar
Indígena e as teorizações acerca da interculturalidade crítica.
Inicio a fala pelo tema deste II Fórum Nacional: Por uma Educação Escolar
Indígena descolonial e libertadora, e a primeira questão que surge é libertar-se de que?
Só se liberta quem rompe com as amarras que lhe causam sofrimento ou dano.
Assim, a partir da análise de conjuntura feita por Cléber Buzatto, poderíamos pensar
que a libertação deva estar relacionada primeiramente à própria colonização e ao seu
espírito de dominação que se mantém inalterado desde o período colonial, a
colonialidade. Na verdade, o capitalismo atual, em sua vertente mais nefasta, o
neoliberalismo, tem suas raízes no período colonial, constrói-se a partir e com ele.
Tomar consciência do processo de colonização é o primeiro passo para pensar em como
libertar-se de seu espírito de dominação (vejam que o processo guarda muita
similaridade com o sentido de libertação tomado da Teologia da Libertação).
O processo de retirar o colonizador e seu modo de ser do corpo e da mente do
colonizado é um processo doloroso, pois tornar-se igual ao colonizador é um desejo
daquele que o possui ‘agarrado’ em si. Sua expulsão é semelhante a um exorcismo. O
colonizador precisa ser exorcizado, expulso da cabeça do colonizado com o ritual

1
Conferência proferida no II Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, em Brasília, no dia 24 de outubro de 2016. O presente texto já incorpora os debates realizados no
âmbito do Fórum e é acrescido de análise posterior realizada na Aldeia Panambizinho, de Dourados, MS, e na fase local da II Conferência Nacional de Educação Escolar
Indígena realizada na Reserva Indígena de Dourados, MS.

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correto, que é a educação libertadora. E isso não se dá sem sofrimento por parte do
colonizado e sem a reação do colonizador.
A Educação Escolar Indígena, em sua matriz crítica, trabalha com o
rompimento com o desconhecimento e com a ingenuidade acerca de como os processos
socioeconômicos mundiais acontecem. Não é possível manter uma visão simplista da
realidade, pensando que é possível haver universalização da dignidade humana no
capitalismo atual, pois faz parte de sua organização em situações periféricas, como no
Brasil, a exploração intensa da mão-de-obra dos trabalhadores e a remessa de lucro para
os países capitalistas centrais. Esse processo está em curso desde o período de
colonização do Brasil. Uma ação política consistente, como veremos adiante, parte
necessariamente do conhecimento da realidade, dos mecanismos mesmos que são
utilizados pelos estados nacionais, pelos capitalistas financeiros e pelas corporações
nacionais e multinacionais para manter a economia globalizada em funcionamento. Não
é possível incidir propositivamente na realidade sem conhecê-la.
Outro sentimento do qual é necessário libertar-se é o conformismo relacionado
à situação das coisas. Conformar-se é mais do que aceitar o que está posto, é querer
adequar-se, enquadrar-se a ele. Por vezes, basta que se consiga um bom emprego para
que se abandonem as lutas coletivas. Gozar de um salário na média ou pouco acima dos
salários dos demais trabalhadores não pode ser motivo de acomodação e de defesa da
exploração dos demais, tampouco compõe a regra de que todos têm possibilidade de
conseguir bons salários. No capitalismo, a existência de um exército de desempregados
ou de subempregados é o que possibilita a exploração da classe trabalhadora e a
maximização dos lucros dos empregadores.
Ligado ao conformismo existe a necessidade de pensar a libertação das falsas
expectativas que se lançam sobre a escola, do canto da sereia de que é possível atingir a
posição dos brancos através da escolarização. Na maioria das vezes isso tem se
mostrado falacioso porque a escola trabalha com o alinhamento das pessoas ao sistema
econômico, formando-as para ele, sendo muito difícil alguém da classe dos
trabalhadores ou das minorias sociais romper as barreiras que os mantém às margens, o
único lugar garantido pelo estado brasileiro aos indígenas. Isso é falacioso, ademais,
porque a educação para os não indígenas já separa, pela origem, quem vai compor a
classe dos trabalhadores ou a elite, aquela que vai dominar os demais. As poucas
exceções à regra não compõem a lei de que é possível ‘vencer na vida’ através da
escolarização, embora sem ela tudo se torne bem mais difícil.

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As dificuldades, no entanto, não podem levar à desesperança, sentimento de
impotência diante da realidade posta, à ideia de que o modo de ser ocidental venceu e
somente resta a alternativa de dobrar-se a ele, pois, aparentemente, tudo estaria no seu
devido lugar e não haveria outras formas possíveis de pensar a organização do mundo.
Libertar-se da lógica do determinismo histórico é um desafio que pressupõe ajudar a
construir um mundo outro, com dignidade para todos. Esse mundo deve ser sonhado,
imaginado e construído. Os povos indígenas, a partir de suas epistemologias, podem
contribuir na sua construção.
Outro aspecto do qual há a necessidade de libertar-se é da arrogância do
conhecimento ocidental, do cientismo, que busca explicar, classificar e hierarquizar
tudo e todos, que desmerece e invisibiliza os conhecimentos outros. Não é raro
encontrarmos pessoas que acreditam que a única forma de resolver os problemas do
mundo é através da ciência. Nessa perspectiva, as pessoas aprendem que nada sabem e
que seus conhecimentos prévios à escola são não-saberes, pois são mitos, senso comum,
superstições, e que por isso necessitam da chancela escolar para aprenderem a viver.
Por fim, outra barreira que se deve romper é com a barreira da apatia. A
situação econômica e política conclamam as pessoas ao engajamento social e político.
Se na última década havia a luta para efetivar os direitos indígenas preconizados na
legislação, agora o esforço é outro: garantir a não retirada desses direitos, evitando-se o
retrocesso a níveis anteriores a 1988, ano da promulgação da Constituição Cidadã. A
apatia da escola ao ensino crítico distancia as pessoas da luta e é uma das armas usada
pelos inimigos dos povos indígenas.
Voltemos ao nosso lócus epistemológico, o nosso lugar de conhecimento, a
Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu. O curso surgiu como resistência do
Movimento dos Professores Guarani e Kaiowá (MPGK), da Grande Assembleia
Guarani, a Aty Guasu, apoiados por parceiros indigenistas. Os Guarani e os Kaiowá é
que foram seus autores. Foi resistência à formação padronizada da universidade que
não dava conta das necessidades da Escola Guarani e Kaiowá diferenciada. A autoria se
refere ao fato de que quem apresentou a proposta de curso para a universidade, tomando
como modelo a experiência acontecida desde 1999 na formação de professores Guarani
e Kaiowá em nível médio, no curso Àra Verá, foi o Movimento de Professores
Indígenas. A universidade recebeu uma proposta de curso já formatada. O desafio que
se impõe ao longo dos 10 anos de existência do curso é a manutenção do espírito inicial,

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já que nem sempre o processo de institucionalização garante a continuidade da
participação autoral indígena.
O processo histórico da criação da Licenciatura Intercultural Indígena na
UFGD traz os dois elementos que expressam, em nosso ver, o caráter da especificidade
da Educação Escolar Indígena Diferenciada: a resistência e a autoria. Os cursos
superiores (e a educação escolar indígena básica) se não forem cursos de resistência e de
autoria indígena, não fazem sentido de existir. Se assim não forem, bastaria aos
indígenas adequarem-se às possibilidades existentes de cursos e escolas para os brancos.
Há que se dizer, no entanto, que não é preciso resistir a tudo, mas a aqueles elementos
que tolhem a dignidade humana, que contribuem para a dominação e para a exploração
das pessoas, isto é, para a manutenção da colonialidade. O critério para a escolha do que
deve ser mantido será o projeto étnico de futuro, assunto que desenvolveremos melhor
adiante, e sobre o qual nos referiremos diversas e repetidas vezes com a intenção de
marcá-lo.
O contrário de educar para a resistência é educar para a subserviência e para o
medo. Uma educação crítica que parte das condições materiais e ideológicas que
levaram a situação a ser como é, mas que também se debruça nas possibilidades para
que continue sendo dessa forma ou que possa ser mudada, tem como pressuposto que a
história humana foi construída por ações específicas de pessoas e grupos que impuseram
seus interesses, e que por isso pode ser transformada em outra coisa, mais igualitária e
inclusiva. O problema é que nem sempre se sente a necessidade de resistir, mas de
adequar-se à organização socioeconômica dominante.
A organização socioeconômica brasileira, que foi e continua sendo colonial,
colonizada e colonizadora, tem na educação escolar um dos seus principais pilares de
sustentação. Uma análise do longo processo de escolarização indígena permite que
afirmemos que a educação escolar indígena raramente esteve a serviço das necessidades
e interesses dos povos indígenas. A oferta da educação escolar, historicamente, tem
visado ao objetivo de suprir ideologicamente as necessidades de dominação dos povos
originários.
Uma primeira necessidade sentida pela colonização foi a de cristianizar os
povos indígenas. Por acreditar-se que eles estavam sob o poder do demônio, pretendia-
se ‘salvar suas almas’, tirando-as das garras do maligno. Outra intenção expressa pelos
missionários era a docilização indígena através da religião. Durante muito tempo

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acreditava-se que a religião cristã tornava os indígenas dóceis, tanto que os
colonizadores sempre se fizeram acompanhar por missionários.
A educação escolar para os indígenas, inicialmente, tinha a função de prepará-
los para o acesso à cultura letrada do cristianismo. Esse mesmo objetivo é ainda hoje
buscado pelas missões religiosas em suas experiências de escolarização indígena.
Aprender a ler e escrever para poder acessar a Bíblia é, para muitas comunidades
indígenas, o principal objetivo do contato com o mundo das letras. O que se percebe é
que as Igrejas Cristãs têm sido bastante eficientes no letramento indígena, muitas vezes
com maior assertividade do que a própria escola.
Concomitante com a cristianização, outra função assumida pela escolarização
foi a civilização indígena. Saber ler, escrever e contar à maneira ocidental, dominando
seus conhecimentos, suas lógicas e valores, sempre foi sinal de civilidade. Se viver sem
as letras era sinal de selvageria e primitivismo, a escola teria a missão de ensinar as
crianças a serem ‘gente’, isto é, a falar, ler e escrever na língua nacional, ter hábitos de
higiene corporal segundo o modelo ocidental, dominar as etiquetas urbanas, abandonar
os ‘maus modos’ ancestrais. Tudo isso tem acompanhado historicamente a escola para
indígenas desde o período colonial.
Outro aspecto da educação civilizadora é a preparação mesma das pessoas para
cumprirem papéis sociais pré-determinados pela sociedade hegemônica. Ao longo da
história da República, inúmeros são os projetos de escola que objetivam educar para o
trabalho, ou melhor, para ser trabalhador, para produzir mercadorias em forma de bens e
serviços. Atualmente, como o próprio sistema percebe que as pessoas não estão
preparadas suficientemente para dar conta das necessidades da sociedade de mercado,
uma proposta de alteração dos currículos está em curso, visando alinhar a escola
brasileira ao que se precisa para inserir de vez o país na mundialização econômica,
preparando mão-de-obra para as funções consideradas essenciais para a manutenção e
fortalecimento da economia de mercado. A escola diferenciada indígena tem de
responder com bastante rapidez se reage a isso tudo ou se se adequa a essa realidade.
A resistência é ao mesmo tempo insurgência. Pensamos que essa resistência é
física, étnico-cultural, epistemológica, sociológica, utópica, de classe, política e
linguística. Com essas insurgências é que poderíamos compor o que chamamos de
projeto étnico de resistência para a Educação Escolar Indígena.

Resistência física

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A presença indígena em espaços historicamente resistentes a eles, como a
escola de educação básica ou superior é um fato novo no cenário educacional brasileiro.
Ainda longe de estar universalizado, o acesso indígena a eles, contudo, tem acontecido
de forma mais intensa nas últimas duas décadas. A permanência física de indígenas
nesses locais continua sendo um ato de resistência, pois o abandono da escola por
motivos sociais e econômicos é uma realidade de norte a sul do Brasil.
Com relação à universidade, a presença indígena incomoda os docentes e
também os demais acadêmicos, principalmente se se contrapuser ao modo como a
academia tem tratado os indígenas ao longo do tempo: como objeto de estudo. Os
relatos de acadêmicos indígenas quanto aos processos de discriminação que sofrem na
universidade são contundentes do preconceito que existe contra eles, seja relacionado ao
seu modo de ser, de falar, vestir-se ou de posicionar-se diante do conhecimento
ocidental. Permanecer no ensino superior é um ato ao mesmo tempo de resistência e de
auto-mortificação para muitos indígenas.
Outro aspecto a ser considerado a respeito da resistência física é o papel da
escola no enfrentamento de situações de retirada de direitos. Nesses casos, a resistência
política e epistemológica que a escola estabelece, como veremos adiante, incide
diretamente na entrega pessoal e coletiva às causas indígenas, fazendo com que as
pessoas resistam inclusive fisicamente se necessário for diante das investidas do estado
ou dos grupos inimigos dos indígenas. Nesse sentido, uma escola indígena pode
municiar os estudantes com conhecimentos que os levem a posicionar-se diante das
ameaças. Já vimos casos, como no episódio de uma retomada de território em Caarapó,
MS, em que a comunidade escolar – seus professores e estudantes –, juntamente com as
lideranças, bancaram fisicamente a ocupação da terra.

Resistência étnica e cultural


Em virtude de o termo possuir múltiplos sentidos, primeiramente há que se
dizer o que entendemos por cultura. Cultura é tomada aqui como uma “teia de
significados” (GEERTZ, 2003), isto é, uma trama que orienta a vida humana, que lhe dá
sentido. Decorre dessa opção que se pode tanto tomar a afirmação da cultura dada
quanto a criar, via escola, uma cultura de resistência. Em qualquer das possibilidades, o
que se percebe é que o investimento na criação de significados compartilhados por um
grupo humano pode servir-lhe para que faça frente à homogeneização que a sociedade
hegemônica estabelece.

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A resistência cultural tem a ver com a resistência à colonização do ser, esse
excesso ontológico que os colonizadores impõem aos colonizados, tomando-os como
inferiores (LANDER, 2005). Ao afirmar a positividade de suas práticas culturais, os
grupos subalternizados podem entrar, como de fato tem acontecido reiteradamente, em
confronto com forças religiosas que os demonizam, com forças econômicas que os
acusam de atrapalhar o progresso, com a cultura filosófica ocidental que os tomam
como carente de conhecimentos válidos, como atrasados e primitivos.
A resistência cultural é revolucionária porque faz frente à homogeneidade
cultural enquanto afirmação do local diante do global, do diferente diante do
homogêneo. Ela é, por isso, afirmação da alteridade étnica. Por ser um processo de
autoafirmação cria e alimenta identidades sociais, pois vincula o sujeito a um grupo
cultural, que dele obtém reconhecimento. A resistência cultural se transforma, assim,
em luta política. Por vezes, a diferença cultural é reivindicada como justificativa para o
acesso a políticas afirmativas diferenciadas.
Por certo é que a resistência cultural traz coesão e auxilia no fortalecimento das
memórias coletivas, elementos indispensáveis para evitar a fragmentação social. Esse
processo pode ser mais bem caracterizado nas áreas de retomada de territórios ou nos
momentos de mobilização política dos povos indígenas, quando as práticas culturais
recebem a participação de muita gente, que nelas se reconhecem e encontram
coletivamente o sentimento de pertença a uma causa comum. Ao contrário, o que se
percebe é que nas áreas mais antigas, como nas reservas indígenas já consolidadas, é
sempre mais difícil manter a participação das pessoas nos momentos em que se
praticam os ritos sociais. Na mesma medida, nessas áreas, quando há luta política,
geralmente ela se faz acompanhar do retorno à participação nas práticas tradicionais.
Ao mesmo tempo em que reafirma as identidades, a resistência cultural
possibilita que se pergunte sobre o que as comunidades fazem com as práticas culturais
que os indígenas recebem de fora e delas se apropriam. Nesse sentido, simultaneamente
ao fortalecimento do sentimento de pertença, a resistência cultural leva à depuração dos
processos de apropriação de elementos alheios, estabelecendo-se assim um processo de
apropriação crítica. Como exemplo disso, podemos citar o uso das tecnologias que os
povos indígenas fazem para mobilizarem-se em suas lutas coletivas.
Tomar as culturas como objeto de ação na escola não significa sacralizá-la,
folclorizando-a, senão que tomá-la como algo vivo, em mudança, que tem valores
positivos e valores negativos. Os valores positivos devem ser valorizados; os negativos,

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questionados. O critério para a avaliação do que é positivo ou negativo seria a dignidade
coletiva.
A resistência cultural tem a ver também com a defesa daquilo que é
considerado essencial, mais caro à coletividade. Como exemplo tomamos a luta pelo
território para que a recriação/manutenção da cultura seja possível. Ela tem a ver com o
direito de manter os conhecimentos ancestrais, estando ligada tanto à resistência
epistemológica quanto à política.
Quando se pensa numa escola ou universidade indígena logo vem à mente as
manifestações culturais que lá devem estar presentes. Nesses espaços, as pessoas não
precisam ter vergonha de ser o que são, de expressarem e viverem suas histórias
sagradas e seus ritos. Quando a escola se propõe a valorizar as práticas culturais
indígenas, por vezes é lá que muitos estudantes vão encontrar sua ancestralidade,
principalmente se tiveram de abandoná-la em virtude de situações religiosas, de trabalho
ou por distanciamento dos mestres tradicionais e das terras indígenas, sem motivo
aparente ou causado por algum motivo social.
Por fim, deve-se tomar a escola e o ensino superior indígenas como um projeto
que pode auxiliar na criação de uma cultura de resistência, opondo-se à racionalidade
dominante e à maneira como as relações entre os grupos humanos estão organizadas.
Para isso é que pensamos que a escola deva ser pautada pela resistência epistemológica,
nosso próximo item, pois sem ela não consegue avançar criticamente sobre o status quo.

Resistência epistemológica
A resistência epistemológica tem a ver com a descolonização do saber. Os
conhecimentos filosóficos e teológicos e o que se convencionou chamar mais tarde de
ciência foram usados, durante a colonização e na sua continuidade enquanto
colonialidade, para justificar ideologicamente a conquista de povos e territórios. O
paradigma eurocêntrico hegemônico que dá a base epistemológica ao sistema-mundo é
ao mesmo tempo patriarcal, capitalista, masculino e cristão, e pretende colocar-se como
universal, neutro e objetivo. Ele é um paradigma que se pretende desideologizado e,
portanto, científico. É com base nele que a dominação e a expansão colonial euro-
americana conseguiram construir em todo o globo uma hierarquia de conhecimento
superior e inferior e, consequentemente, de povos superiores e inferiores
(GROSFOGUEL, 2007). Nesse contexto, a resistência epistemológica é ao mesmo

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tempo recusa à colonização do ser e à do saber, à diminuição dos indígenas e de suas
ciências indígenas, mas também afirmação destes povos e seus saberes.
Se o saber está colonizado, ele favorece, em essência, à dominação. Pensá-lo
diferentemente é tratar de não ficar dependente somente dos conhecimentos de fora, de
suas respostas, mas de valorizar os conhecimentos milenarmente elaborados pelos
indígenas, de tomar as respostas dadas às necessidades sociais, criticando o próprio
colonialismo. Como os conhecimentos ocidentais classificaram e hierarquizaram os
povos e seus conhecimentos, a resistência epistemológica leva a novos modos de
perceber a realidade. É resistência às ideologias que justificam o status quo.
Não se trata, porém, de pensar que todos os saberes ocidentais levam
necessariamente à colonização. Dentre eles há também fissuras. O que se diz é que o
paradigma hegemônico é colonial e colonizador. Uma escola que reaja
epistemologicamente dará conta de avaliar a relação com esses saberes, de buscar
aqueles que possam auxiliar na construção de outras perspectivas sociais, mas também
de questionar e abandonar aqueles que são perniciosos. A interculturalidade pressupõe
isso, que se busquem em outras tradições epistemológicas aqueles saberes que possam
ser úteis para a construção da dignidade humana.
Um aspecto a considerar na resistência epistemológica é a constituição dos
currículos escolares. A escola elabora seus currículos a partir de necessidades cognitivas
específicas que visam à manutenção e retroalimentação dos valores da sociedade
hegemônica: no nosso caso, da propriedade privada, da mercantilização das relações e
da maximização dos lucros. Nessa forma ocidental, capitalista, branca, masculina e
cristã de pensar o mundo, os conhecimentos que não contribuem para a construção de
pessoas conformadas com o sistema econômico e político constituído são negados,
extirpados, inclusive aqueles que, mesmo sendo ocidentais, lhe são críticos. Isso tem
levado, historicamente, a que os conhecimentos indígenas e seus regimes de produção e
difusão tenham sido e continuem sendo silenciados pela racionalidade acadêmica, já que
se contrapõem aos regimes de conhecimento dominantes e afirmam o valor e a validade
dos conhecimentos indígenas, isto é, de suas ciências.
Outro aspecto que se deve tratar, agora ligado à resistência epistemológica, é
sobre a incidência social dos conhecimentos presentes na escola. Tudo o que se ensina
nela impacta diretamente nas posturas pessoais diante do mundo. Se se ensinar sobre os
direitos indígenas, por exemplo, se estará formando as pessoas para uma incidência
política mais contundente diante do estado nacional ou dos grupos privados. O mesmo

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pode ser dito a respeito do estudo sobre as relações pessoais, com a natureza e com as
divindades. Não é possível pensar outro mundo sem fundamentá-lo
epistemologicamente. Talvez nem se precise construir outras epistemologias, mas
buscar nas epistemologias indígenas que foram silenciadas pela colonização outras
possibilidades de explicar e construir o mundo.

Resistência sociológica
O que chamamos de resistência sociológica tem a ver com a crítica à forma
como as sociedades se produzem e reproduzem. Nesse processo, a escola tem de saber
com o que contribui para a formação e manutenção das sociedades humanas, para a
continuidade mesma da colonialidade. No caso específico indígena, a escola deve
responder com um currículo de resistência à coisificação e à mercantilização do
indígena e de sua cultura, pensando o lugar que os indígenas ocupam na estrutura social
e projetando a mudança dessas relações.
A escola indígena é mais do que espaço de conhecimento. Nela deveriam
ocorrer mais do que trocas entre as ciências ocidentais e indígenas. É lá onde se pode
ensaiar o novo, o ainda não existente, o embrião da mudança, onde se pode cultivar o
futuro em outras bases sociais. É lá onde devia acontecer o estudo, a pesquisa, a
elaboração, a prática e a experimentação das relações que se quer construir. A escola é
um dos laboratórios do que se quer construir, do mundo que se quer destruir e do mundo
que se quer colocar no seu lugar. Para isso, além de questionar o que está posto, pode
auxiliar na construção de outros desenhos de organização social e produtiva, inclusive
na produção alternativa de alimentos para que as comunidades não fiquem dependentes
dos sistemas de entrega de alimentos do Governo.
Há que se ter consciência de que a escola prepara os indígenas para essa
sociedade que aí está. Se a resistência epistemológica não estiver direcionada para a
construção de outra sociedade, estamos perdendo o tempo com a construção de uma
educação escolar indígena diferenciada e melhor seria optar pela escola do não-indígena
e por sua forma de viver. A resistência sociológica é, assim, afirmação do modo de ser
indígena e resistência à dominação.

Resistência utópica
O que chamamos de resistência utópica tem dois sentidos. O primeiro está
relacionado a não abandonar as utopias de povo construídas ao longo de milênios, de

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busca da felicidade embasada em outras variáveis que não o consumo desenfreado e a
economia de mercado. O segundo sentido tem a ver com a desconfiança de que as
utopias não indígenas são as únicas formas possíveis de construir a dignidade humana.
Aliás, muitos dos sonhos ocidentais de felicidade é que levaram à exploração e ao
genocídio indígena.
A escola não indígena é pautada pela utopia de estudar para ‘vencer na vida’,
para competir e vencer os demais, enfim, para dominar as pessoas e com isso alcançar o
enriquecimento. Essa mesma utopia é encontrada também entre vários indígenas com os
quais temos conversado a respeito. Não quer dizer que defendamos a manutenção dos
indígenas alijados do acesso aos bens elaborados socialmente pela humanidade, mas que
não se tome a sociedade de mercado como a única forma plausível de organizar a vida.
Aliás, estamos ficando órfãos de utopias que se contrapõem ao economicismo, e
estamos convencidos de que as utopias indígenas podem auxiliar a melhorar o mundo,
pois têm uma perspectiva menos agressiva à natureza e às pessoas se comparada com
outras utopias.

Resistência de classe
Quando pensamos na Educação Escolar Indígena, essa é uma discussão quase
que proibida, mas necessária. Uma escola verdadeiramente indígena trabalha com a
perspectiva de construir a utopia de relações horizontais, de dignidade, do mundo que
ainda não está aí, mas que é possível de construir, pois a utopia da dignidade humana
indígena não passa pela adequação ao mundo liberal que está posto! A universidade
e a escola estão organizadas para preparar para a sociedade de classes, e os indígenas
são parte da ‘classe de trabalhadores’, dominada, explorada. Seria irônico se
buscássemos no capitalismo, na colonização mesma, a saída para os problemas que o
capitalismo e a colonização causaram. Ademais, não existe capitalismo bonzinho. A
exclusão e a dominação são seus alicerces, e isso se aprende e se pratica na escola. No
máximo, no capitalismo pode haver um estado de bem-estar social, que em época de
crise, como a atual, se esfacela.
A escola tenta dar conta das necessidades cognitivas de uma sociedade
composta por trabalhadores e por capitalistas, ensinando os papéis que cada grupo deve
desempenhar em cada uma das posições. Nesse tipo de organização social, os indígenas
são educados para se integrarem obedientemente ao sistema socioeconômico
hegemônico, porém a partir das margens e não do centro.

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Do ponto de vista de classe, a diferença cultural tem justificado a exploração
dos indígenas no mercado de trabalho. Considerados incapazes para o trabalho
produtivo desde o período colonial, carregam o estigma de serem empecilhos para o
desenvolvimento econômico. Isso tem sido utilizado como argumento tanto pelos
poderes constituídos quanto pelos proprietários de terra e pelos meios de comunicação
social para justificar a não demarcação das terras indígenas e para barrar o seu ingresso
inclusive no mercado de trabalho. Nele, poucos são os trabalhos considerados
superiores que são confiados aos indígenas. Quanto a isso, chamou-nos a atenção, em
2015, uma afirmação feita nas redes sociais por um não indígena de que o sistema de
cotas possibilitaria o acesso ao ensino superior de pessoas incapazes. Segundo essa
pessoa, ela não se submeteria ao tratamento feito por um médico indígena, por exemplo,
por não confiar em sua formação!
Há que se dizer, no entanto, que a resistência de classe não passa pela simples
negação da escola que está posta, ou em participar do mundo do trabalho. Enquanto
outro aspecto do que consideramos resistência sociológica, a resistência de classe estaria
ligada à construção de uma sociedade igualitária para todos e todas, independente de
indígenas ou não. Uma escola indígena que se fecha sobre si mesma, que se desconecta
das lutas sociais de outros grupos sociais, é uma escola ineficiente do ponto de vista
utópico. Embora seu alcance cultural, de valorização mesma da diferença cultural e de
construção da autoestima indígena, e nisso sua ação pode ser bastante relevante, ainda
faltará a relação com o não indígena, com a sociedade de mercado na qual as
comunidades indígenas estão inseridas. Para isso, uma escola indígena de resistência
deve ser parceira de outras escolas que seguem a perspectiva crítica, como as escolas
populares do campo e da cidade, que se dedicam a construir uma nova sociedade, sem
explorados e exploradores.
A mudança nas relações sociais somente será possível com a criação de redes
que acreditem na construção de novas relações entre todas as pessoas. A escola indígena
não pode ficar separada dessas redes. Se em rede já há dificuldades, sozinha a escola
indígena é subsumida no sistema. Por tudo isso, é desejável e necessário que a escola
indígena dialogue com as lutas dos trabalhadores e com suas propostas de educação
emancipadora. Caso contrário, será uma escola que correrá o risco de formar para a
subserviência, mesmo que isso não esteja posto no seu horizonte pedagógico.

Resistência política

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A resistência política tem a ver com a descolonização do poder (QUIJANO,
1991; QUIJANO In: ROLAND, 1993; QUIJANO, 1998; ESCOBAR, 2005). Ela incide
diretamente nas relações com o Estado, com as instituições públicas e privadas, mas
também nas relações que os indivíduos estabelecem com os micropoderes sociais.
Sendo a Educação Escolar Indígena um direito arduamente conquistado que dá acesso a
outros direitos, ensinar a resistir politicamente é ensinar a tornar-se insubmisso, a não
aceitar a violência e a retirada de direitos; é cobrar soluções para os problemas; é exigir
respeito e reverência à diferença.
Por certo é que os indígenas sofrem os influxos da organização da política não
indígena. Numa sociedade de classes como a brasileira, que se diz democrática, a elite
busca no povo a chancela para se manter como elite, embora que os indígenas pareçam
não fazer parte do que convencionalmente se chama de povo. Politicamente, no entanto,
os indígenas têm sido utilizados, quando fazem uso do voto, para chancelar a mesma
sociedade que os explora, não raramente votando nas mesmas pessoas que atacarão seus
direitos. Na verdade, são os grupos que possuem o domínio do capital econômico que
hegemonizam o campo político, principalmente as corporações transnacionais e o
agronegócio, de forma que não é possível aos indígenas impor uma nova maneira de
organizar o mundo sem rivalizar politicamente com esses grupos.
De outra sorte, a resistência política deve levar à participação dos indígenas
para além dos partidos políticos. A bem da verdade, os partidos políticos participam da
composição do poder desde o âmbito municipal, passando pelo estadual, até chegar ao
nacional. Quase sempre as alianças estabelecidas pelos partidos não são pró-indígenas,
de sorte que se há de ter sempre o cuidado de escolher aquelas alianças ‘menos
inimigas’ dos povos indígenas. O que se tem percebido é que a situação de
vulnerabilidade social de muitas comunidades indígenas as torna presas bastante fáceis
da má política nacional, a começar pela compra de votos.
Outro aspecto da resistência política tem a ver com a relação entre a escola e os
sistemas (municipal, estadual e federal). Nem sempre é possível de seguir os programas
de ensino propostos por eles, já que, via de regra, mudam a cada quatro anos, a cada
eleição, e toda vez a escola indígena tem de resistir à padronização estabelecida. Se a
escola não resistir politicamente, terá de reiniciar suas ações a cada período.
Por fim, ao mesmo tempo em que ensina a resistir, a escola mesma deve fazer
parte da política de resistência dos povos indígenas. Ela sozinha não dá conta de
enfrentar as necessidades das comunidades indígenas, mas pode ser uma aliada

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importante de resistência. Uma política de resistência passaria pelo estabelecimento de
estratégias no campo do poder, da produção da vida, de vivência dos valores sociais e
culturais, enfim, perpassaria todas as dimensões da vida humana.

Resistência linguística
A resistência linguística se faz com uma negativa consciente à imposição de
línguas outras, às assimetrias sociais que impõem a língua do conquistador como a
língua válida, bonita, sob a premissa de que somente ela daria conta da necessidade
humana de comunicação.
Em muitas situações país a dentro, falar as línguas indígenas era e continua
sendo causa de desprestígio, de modo que muitos pais se negam a ensinar sua língua
materna aos filhos. A escola pode ser um importante espaço de estudo e prática das
línguas indígenas.
Na escola, a aprendizagem de línguas de outros povos é positiva desde que não
implique no abandono das línguas maternas. A perda da língua traz desvantagens
políticas, de conhecimento e simbólicas. A resistência linguística leva a uma política de
fortalecimento das línguas maternas e a uma planificação das ações a serem realizadas
para que se atinja este fim. Resumidamente, essa planificação se debruça sobre os
processos de aquisição linguística, de alfabetização nas línguas maternas, de letramento,
de comunicação cotidiana, enfim, centra-se na funcionalidade da língua materna. Por ser
reação à pressão que a língua dominante exerce sobre a língua indígena, a resistência
linguística pode estar ligada à revitalização de línguas naqueles locais em que houve
perdas. O que sabemos é que, naqueles casos em que os povos indígenas falam as
línguas indígenas como línguas maternas, há que se ter grande cuidado para que a
escola não seja um fator de aceleração do abandono da língua indígena, seja porque não
alfabetiza nela, seja porque estabelece uma transição para a língua nacional.

A autoria
A autoria está relacionada ao projeto ético e étnico que as comunidades
indígenas querem que a escola auxilie a construir. O problema é que nem sempre se
sabe ou se tem consciência de onde é possível chegar com a escola. Às vezes, quer-se
chegar à integração à sociedade majoritária, adequando-se aos seus valores liberais e
capitalistas, pensando que essa é única possiblidade que existe para os povos indígenas.
Outras vezes, no entanto, quer-se construir a autonomia, a alteridade e a solidariedade

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indígenas, seja pensando na criação de outra forma de organizar a vida humana, seja
reformando o mundo que aí está. É aí, e somente aí, que faz sentido pensar numa
educação escolar indígena diferenciada, específica, bilíngue e intercultural.
No entanto, não basta que a escola indígena seja diferenciada, específica,
bilíngue e intercultural. Pois ela pode ser tudo isso e ser contra os próprios indígenas.
Ela pode ter somente estudantes indígenas e não ser escola dos e com os indígenas. Ela
pode ser bilíngue e acabar com as línguas maternas, pois, se adotar o bilinguismo de
transição ao final de um tempo as pessoas passarão a adotar a língua nacional e a língua
materna passará ao status de língua estrangeira. Ela pode ser intercultural e acabar
justificando o lugar que os indígenas devem ocupar, ou seja, o não lugar, as bordas, as
franjas da dignidade. Se ela for intercultural de transição ou funcional não se perguntará
sobre as assimetrias sociais que se alicerçam no argumento da diferença, ela não se
perguntará sobre as desigualdades sociais. Para que seja uma escola de resistência, ela
deverá ser comprometida com a quebra dos paradigmas de exclusão, adotando a
interculturalidade crítica e o bilinguismo de adição. Nossa proposta de pensar uma
escola indígena diferenciada e crítica decorre da aposta na interculturalidade igualmente
crítica: opção ético-política de transformação das relações de desigualdade constituídas
e alimentadas por mais de quinhentos anos de colonização. Para isso, ela precisa
descolonizar-se e ser, de fato, de autoria indígena.

Resposta da escola frente às demandas indígenas


Quando pensamos a escola indígena, independente se básica ou superior, diante
do que expusemos, vemos que sua postura pode ser de enquadramento ou de indianizar-
se. É de enquadramento quando não articula os aspectos de resistência que trabalhamos;
quando está centrada somente em metodologias (e torna-se somente uma escola festiva),
ou em conteúdos (e torna-se conteudista, cognitivista). Mais do que uma escola que
possui uma metodologia de ensino que se propõe a fazer as ciências indígenas e não
indígenas dialogarem, a escola indígena deve estar a serviço de atingir os projetos
étnicos e éticos das comunidades indígenas, deve ser uma escola fortemente direcionada
ao futuro. A interculturalidade crítica supõe uma escola alinhada aos projetos de
dignidade humana pelos quais as comunidades indígenas se pautam, ao mesmo tempo
em que busca pensar estratégias de impostação frente aos outros grupos humanos.
Quando a universidade e a escola básica indígena não se alinham aos projetos de futuro
dos indígenas, elas estabelecem o seu branqueamento, isto é, a mudança do outro em

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mesmo, a adequação do modo de ser indígena ao que se espera dele numa sociedade de
classes: a formação para que sejam abnegados trabalhadores.
Por outro lado, quando a universidade e a escola básica ouvem os pleitos
indígenas, e se adequam para recebê-los, e deles se tornam parceiras, elas estabelecem
um processo interno de descolonização e se indianizam.
Tanto a universidade quanto a escola indígena podem, contudo, cair em
algumas armadilhas próprias da interculturalidade funcional. Isso acontece quando
entendem a interculturalidade como mero diálogo de culturas, quando tomam algum
elemento da cultura, geralmente da ritualística religiosa, e o inserem no seu cotidiano,
restringindo-se a prática intercultural a somente esse elemento. A isso chamaríamos de
prisão culturalista ou reducionismo cultural. Quando tomam as relações somente no
sentido de diálogos de conhecimentos ou de ciências, caem em outra prisão, no
cognitivismo. Ambas as prisões podem ser rompidas se se colocar o enfoque também na
resistência de classe. As prisões culturalista e cognitivista são outros dois aspectos dos
quais a escola indígena deve libertar-se, complementando a avaliação que fizemos no
início deste texto.
Vemos interculturalidade funcional quando a interculturalidade é somente de
uma via – é intercultural para os indígenas, mas não para a universidade ou para o
sistema educacional. A interculturalidade verdadeira afeta os dois polos da relação. Da
mesma forma, é interculturalidade funcional quando recebe os indígenas, mas continua
sendo um ambiente hostil a eles, ou quando a graduação e pós-graduação têm currículos
ocidentalizantes (inclusive muitas licenciaturas que se dizem interculturais têm matrizes
curriculares que dialogam sofregamente com a especificidade indígena), ou quando a
escola é conteudista, supervalorizando os conteúdos ocidentais em detrimento dos
conteúdos de outras matrizes epistemológicas. Pensamos que mais do que os conteúdos
escolares, o que interessa são os projetos de futuro. Quando a escola tem clareza acerca
deles, buscará conhecimentos e metodologias para alcançá-los. Estes conhecimentos
serão encontrados nas matrizes epistemológicas indígenas, mas também de outros
grupos humanos, e não haverá distinção entre um e outro conhecimento. Os
conhecimentos serão medidos não pelo valor em si, mas pela capacidade de intervenção
social.
Duas outras armadilhas da interculturalidade se mostram quando os
conhecimentos indígenas e seus modos de produção são pouco aproveitados na
universidade e mesmo na escola básica, seja por desconhecimento ou por serem

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considerados inferiores; e quando a universidade e a escola básica continuam
preparando os indígenas para uma sociedade sabidamente falida, que se pauta por uma
ética controversa, quando forma as pessoas para uma realidade economicamente
excludente.
Há que se considerar que a descolonização é um processo sempre incompleto,
pois para que aconteça necessita de passar pela tomada de consciência da condição de
exploração, pela elaboração coletiva de propostas de superação da subalternidade, pelo
controle social, pela avaliação do processo e por um projeto de intervenção de longo
prazo. Tudo isso é bastante trabalhoso. Ademais, nem sempre as comunidades escolares
estão dispostas a abandonar seu lugar ‘seguro’ para aventurar-se na construção de outras
possibilidades de organização social e do conhecimento. Pelo contrário, defendem o
colonizador. Ter paciência histórica é necessário para avançar na construção da tomada
de consciência. Basta ver a dificuldade em realizar o II Fórum Nacional de Educação
Escolar Indígena sem depender dos agentes colonizadores para financiá-lo!
Se encontramos os seguintes elementos na escola indígena e na universidade,
ou mesmo na fala dos indígenas, conforme veremos no próximo capítulo, é sinal
inequívoco de um currículo colonizado e colonizador: classificação/separação do
conhecimento em científico e tradicional; demonização/vergonha dos saberes e práticas
ancestrais; folclorização dos saberes e das práticas culturais; língua e cultura como mero
complemento; currículos centrados em conteúdos e não em projetos societários - aonde
o povo quer chegar no futuro; supervalorização ingênua dos saberes ‘clássicos’ do
ocidente; grande distância entre o discurso e a prática da diferença; excessiva carga
horária em alguns componentes considerados mais importantes que outros,
principalmente os da área das Exatas e a língua portuguesa; saberes indígenas como
ancoradouros dos demais saberes; busca da escolarização para ‘alcançar’ o patamar
social dos não-indígenas; falta de autonomia pedagógica e financeira das escolas.
Por outro lado, encontramos educação escolar indígena quando:
1. A escola possui uma clara política linguística, a instrução acontece na língua
materna. Isso acontece quando a escola dá a devida importância à língua materna
falada pela comunidade educativa. Esse aspecto pode assumir duas formas: quando se
busca manter e fortalecer o uso das línguas indígenas, através da criação gerações de
escritores e leitores na língua materna, mas também quando se quer diminuir as perdas
linguísticas, nos casos em que a escola pode auxiliar na revitalização das línguas em
processo de extinção ou extintas. Quando a escola possui uma política de valorização

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das línguas indígenas, ela busca maximizar seu aproveitamento pedagógico já que as
pessoas entendem melhor qualquer assunto se tratado em sua língua materna, a começar
pela alfabetização. Se na escola houver qualquer violência linguística, ou se ela se
propuser a levar os estudantes à passagem do uso da língua materna para a língua
nacional, nos casos de bilinguismo de transição, é sinal que continua colonizada e não
pode ser chamada de escola indígena. No máximo será escola para indígenas.
2. O professor é um líder positivo na comunidade e não fica restrito à sala de aula.
Os docentes não lidam somente com conhecimentos. Eles lidam também com processos
societários. Por vezes, entretanto, a escola acaba assumindo em muitos casos o papel de
socialização que deveria ser desempenhado pela família. O ideal mesmo seria retardar o
acesso das crianças indígenas à escola, porém isso se torna cada vez mais difícil em
virtude da pressão estabelecida pela sociedade não indígena para que se insira nas terras
indígenas a educação infantil. No entanto, independente da época em que as crianças
indígenas acessam a escola, os docentes têm de assumir posturas educativas condizentes
com o papel social que desempenham perante a comunidade. Se não for um líder
positivo, o docente dificilmente poderá contribuir no alcance dos objetivos que a
comunidade espera da escola. O compromisso ético-social do docente o faz preocupado
não somente com a escola, mas com toda a comunidade indígena. Ele é alguém com
condições de catalisar as lutas da comunidade e transformá-las em conteúdos escolares,
ao mesmo tempo em que pratica o que ensina e teoriza o que pratica. Ele é um
pesquisador de livros e da vida da comunidade, mas a sua pesquisa é balizada pelo
compromisso social que possui. No entanto, ele não pode jamais colocar-se como
alguém que tudo sabe, mas como alguém em construção que precisa dialogar sempre
com a comunidade educativa, especialmente com os mestres tradicionais.
3. Os educadores demonstram comprometimento com sua função. Numa escola
indígena espera-se que os educadores demonstrem gosto pelo que fazem. Eles devem
ser entusiastas do que ensinam e do que vivem. Se assim não for, dificilmente
entusiasmarão seus estudantes. Aliás, temos ouvido de estudantes indígenas da
educação básica que alguns de seus professores parecem não gostar do que fazem e que
somente se tornaram professores por conta do salário que recebem. Muitos deles
estariam em sala de aula devido a arranjos políticos. Alguns desses docentes viriam para
a escola sem o devido planejamento das atividades. No outro polo, as aulas de
professores preocupados com seus estudantes e com suas comunidades, com práticas

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educativas que levem a aprendizagens significativas, que demonstrem paixão pelo que
fazem, cativariam mais os estudantes e suas famílias.
4. As direções de escola, os docentes e os técnicos educacionais possuem formação
adequada. É difícil, para não dizer impossível, de construir e manter uma escola
indígena diferenciada quando os responsáveis pelos processos educativos não possuem
uma formação adequada. Ademais, a educação escolar não é uma ação calcada somente
na vontade. Ela demanda intencionalidade, mas também conhecimento técnico. Para
isso, a comunidade educativa precisa receber/promover formação inicial e continuada
na perspectiva da escola diferenciada. Ela propõe e participa de políticas públicas de
formação, pressiona o estado e suas instituições para a formação de pessoal. Uma escola
indígena está em processo constante e ininterrupto de formação de seus quadros. E essa
formação deve acontecer preferencialmente de forma coletiva para evitar que algum de
seus membros destrua o trabalho por vezes realizado por anos pela comunidade.
5. A escola investe muito tempo no planejamento das atividades. Além de possuir
muitos momentos de estudo, uma escola indígena investe, como percebemos em várias
partes do país, muito tempo no planejamento coletivo de atividades, pois fazer
Educação Escolar Indígena diferenciada não significa trabalhar qualquer conteúdo de
qualquer maneira. Aliás, a qualidade da educação escolar depende muito do
planejamento das atividades pedagógicas, e uma escola de fato diferenciada é uma
escola que consegue alcançar grande qualidade em suas ações. Nela as pessoas
aprendem e ensinam de fato, pois falam a mesma língua e compartilham de desejos de
aprendizagens socialmente relevantes. Nela os currículos têm sentido e direção, e isso
não se consegue apenas registrando no Projeto Pedagógico a intenção. Uma escola pode
ter guardado na sala da direção um bonito Projeto, mas possuir práticas educativas
pouco recomendáveis se a avaliação e o planejamento coletivo de atividades não forem
constantes.
6. A escola utiliza material específico ou imprime um olhar específico aos
materiais indiferenciados. A discussão a respeito do uso de material didático-
pedagógico específico é sempre atual na Educação Escolar Indígena. Uma das
reclamações que ouvimos em diversas escolas indígenas é que inexistem materiais
didáticos específicos e diferenciados. Quando eles são encontrados, e são elaborados
nas línguas indígenas, se referem majoritariamente aos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Dificilmente são encontrados materiais didático-pedagógicos destinados
aos anos finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio. Mesmo que o ideal seja o

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uso de material específico, outra possibilidade é utilizar os materiais indiferenciados
utilizando-se metodologias apropriadas que possibilitem aproximá-los das realidades
indígenas ou questioná-los. O que não se pode aceitar é o uso acrítico de materiais
indiferenciados. Essa mesma atitude deve ser utilizada com relação aos materiais
diferenciados.
7. A escola possui estruturas físicas e de pessoal adequadas às atividades
pedagógicas. A estrutura física de uma escola indígena vai depender do projeto
pedagógico que possui, e este do projeto étnico de futuro construído coletivamente. Por
exemplo, se faz parte da escola o uso do rio como objeto de estudo ou como laboratório
escolar, são necessários equipamentos para acessá-lo, diferentemente se a escola estiver
estabelecida no cerrado e o tomar como espaço pedagógico, ou se está localizada numa
aldeia urbana. Da mesma forma, é necessário pensar numa estrutura de pessoal
diferenciadamente dependendo do projeto que se queira desenvolver. O problema é que
nem sempre as escolas indígenas são pensadas para serem assim tão ‘diferentes’ das
escolas-padrão dos não-indígenas; outras vezes, nem se sabe que é possível de
constituírem-se escolas com estruturas diferenciadas.
8. A escola respeita o conhecimento indígena e a forma de produzi-lo e difundi-lo.
A diferenciação entre conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos é um
sinal inconteste de que a escola indígena encontra-se ainda colonizada, pois ainda
demonstra uma hierarquia de saberes, como dissemos anteriormente. Por outro lado,
quando a escolarização de saberes indígenas se dá de maneira bastante tranquila, não há
receio de que possa descaracterizar a escola ou diminuir-lhe a qualidade. Pelo contrário,
aproxima a construção do conhecimento do cotidiano das pessoas, tornando-o
significativo e, portanto, com sentido social. O cuidado que se deve ter é em não retirar
os saberes indígenas de seus espaços sociais de produção e difusão. Se isso acontece, a
escola é um fator de morte desses saberes, e não de valorização.
9. A escola atende aos projetos de povo, utilizando metodologias adequadas, isto é,
está alinhada às necessidades sociais, culturais, econômicas e políticas dos povos
indígenas. Essa situação parece-nos auto-evidente. A menos que a comunidade escolar,
a partir de consulta informada, opte por uma escola que dê conta das necessidades do
capitalismo, de formar os indígenas para ele, ela deve ser um dos instrumentos que
auxilie o povo a construir o seu futuro em outras bases. Primeiro decide-se aonde que se
quer chegar, depois é que se escolhem os caminhos, isto é, o currículo escolar e a
metodologia que melhor possibilite atingir os objetivos propostos. Não é nem a

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metodologia utilizada, tampouco os conhecimentos ensinados que fazem a escola
diferenciada. O que a diferencia das demais é o projeto de sociedade que permite
construir. Ele poderá variar de comunidade para comunidade dentro de um mesmo
território ou de um mesmo povo. Se ficar centrada somente na metodologia, será uma
escola dinâmica; se ficar centrada somente no conteúdo, será conteudista e cognitivista.
Fazer por fazer, ou saber por saber, são prisões que se devem evitar em uma escola que
pretende ser diferenciada.
10. A escola tem uma política de organização do tempo e do espaço escolares
que dialoga com a vida das comunidades indígenas. Quando se fala em escolas
organizadas em consonância com os tempos sociais indígenas, geralmente se pensa em
inserir no calendário escolar as festas dos povos indígenas. Isso é importante, mas não
demonstra suficientemente o respeito aos tempos indígenas. Outra forma possível seria
pensar em como utilizar os tempos e os espaços mais propícios para o ensino e a
aprendizagem. Por exemplo, há momentos na vida de meninas e meninos de vários
povos em que a escola não pode ser acessada devido às necessidades rituais.
Simplesmente, nesses casos, reprová-los pela ausência na escola pode acarretar o
abandono definitivo da instituição de ensino. Outra coisa é pensar, por exemplo, que
algumas aprendizagens somente ocorrem significativamente ao redor do fogo e à noite,
ou mesmo deitado, ouvindo histórias. Noutras situações, a escola se organiza a partir
dos ritmos de trabalhos, de deslocamentos ou de vivências rituais das comunidades.
Nesses casos, é possível que a escola se adapte aos tempos e espaços indígenas. A
legislação permite vários tipos de arranjos espaço-temporais, no entanto eles são pouco
utilizados pelos sistemas de ensino e raramente demandados pelas próprias
comunidades indígenas. Raros são os casos em que as escolas indígenas não pautam sua
organização pela oferta do transporte público ou pelo calendário oficial dos munícipios
e estados em virtude de terem de adequar-se à disponibilidade de tempo dos docentes
não indígenas.
11. A escola tem preocupação com o mundo do trabalho. Uma das respostas que
as famílias indígenas dão à pergunta ‘escola para quê?’ está relacionada à preparação
para o mundo do trabalho, para que os filhos possam assumir funções laborais dentro e
fora das aldeias. Esse tem sido o motivo pelo qual muitas famílias indígenas matriculam
seus filhos nas escolas dos não indígenas. Essa questão é de suma importância no
projeto de futuro que se pretende alcançar e no estabelecimento de currículos que
permitam chegar lá. Uma coisa é pensar que a escola tem de preparar, necessariamente,

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para o mercado de trabalho, aceitando e defendendo suas regras. Outra coisa é pensar
que, de fato, é muito difícil para um indígena sem escolaridade conseguir algum
trabalho que não o braçal fora da aldeia. Outra coisa ainda é pensar o trabalho na
perspectiva indígena e não somente na ocidental. Nossa postura com relação ao assunto
é que a escola indígena até pode ofertar ensino técnico, se esse for o desejo da
comunidade, mas não pode tomar para si o compromisso de formar as pessoas para o
mercado de trabalho, seguindo acriticamente as regras do mercado. Pelo contrário, a
resistência de classe que deve estar dentro da escola indígena, fará com que ela sempre
avalie criticamente a inserção dos indígenas no mundo laboral e que busque estimular a
comunidade para encontrar alternativas de trabalho digno seja dentro ou fora da aldeia.
Outro problema é quando a escola indígena de nível médio se centra no vestibular
pensando estar facilitando a inserção dos estudantes no mundo do trabalho. Se ela
desenvolver ações centradas na escrita e na leitura das letras e do mundo estará
preparando também para o vestibular, além de preparar seus quadros para o trânsito
qualificado no mundo não indígena. Agora, se se focar somente no vestibular, correrá o
risco de se tornar conteudista e desconectada da realidade, já que esta é ainda a situação
de muitos vestibulares.
A importância de se debruçar criticamente sobre as condições de trabalho
remunerado indígena tem sido escamoteada pelos defensores da educação escolar
diferenciada. No entanto, alguns povos como o Anacé do estado do Ceará, que até o
presente não possuem território demarcado e vive numa região em que o mercado
formal de trabalho exerce uma atração muito grande sobre os indígenas 2, somente
alcançam sua subsistência através da prestação de serviços, geralmente em funções
menos desejadas pelos demais trabalhadores. Uma escola de fato indígena estará atenta
às relações que as comunidades indígenas estabelecem com o mercado de trabalho e,
por decorrência, com o mercado de consumo, inserindo essas preocupações em seu
currículo. É possível que algumas escolas indígenas optem por ofertar formação técnica,
porém não podem tomar essa opção como a única necessidade a ser suprida, conforme
estamos tratando ao longo do texto.
12. A escola é militante. Uma escola indígena não pode se constituir numa bolha
separada das causas políticas e sociais defendidas pelas comunidades indígenas ou não
indígenas. Mais do que aliada, ela é um dos espaços de mobilização da comunidade. Ela

2
Na região existe o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) no qual muitos indígenas trabalham, embora os postos de
trabalho sejam aqueles que exigem menos qualificação, e às vezes até em condições insalubres, em alta rotatividade de emprego.

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é militante porque não se pensa neutra do ponto de vista político e social. Muito pelo
contrário, ela dá as bases do conhecimento necessárias para fundamentar as pautas
indígenas, realizando a formação para a ação externa, em apoio às demandas internas.
Nesse sentido, ela se transforma numa ponte, não de saída, mas de trânsito político
qualificado. No entanto, ela não pode estar à frente das lideranças políticas e das
tradicionais, mas ser parceira delas, caso contrário se transforma em um ambiente de
disputa interna, perdendo a força para a mobilização externa. Outra coisa é a militância
interna: a escola indígena milita em favor da cultura, da unidade interna, de novos
arranjos econômicos e políticos baseados na solidariedade. Quando a escola é militante,
ela prepara os estudantes para a incidência política, seja trabalhando em seu currículo
sobre a política indígena e a do não indígena, seja incentivando os estudantes a
participar, e inclusive participando com eles, das ações políticas da comunidade.
13. A escola garante espaço na organização curricular para os mestres e
conhecimentos indígenas. Há concordância entre indígenas e indigenistas que os
conhecimentos tradicionais, pelo menos parte deles, além de seus detentores, devam
fazer parte da escola indígena. Isso é inclusive reconhecido na legislação que rege a
Educação Escolar Indígena. No entanto, na prática, há grandes dificuldades de
efetivação dessa orientação, seja porque os conhecimentos indígenas e seus detentores
assumem função meramente acessória e decorativa, seja porque não se sabe como fazer
na prática para inseri-los no cotidiano escolar. Há várias experiências de inserção dos
mestres tradicionais e dos saberes indígenas na escola: através da criação de
componente curricular específico para tratar das práticas culturais, do trabalho
consorciado entre professores e mestres tradicionais no tratamento de temas escolares
específicos, através de projetos de ensino ou da sua inserção no corpo dos próprios
componentes curriculares. Resta, porém, sempre o desafio de não separar os saberes
‘científicos’ dos ‘tradicionais’, comparando-os e hierarquizando-os, mas de, sem
traumas ou rupturas, levar os estudantes a transitar entre os diferentes saberes sem
necessidade de ter de escolher a ‘ciência ocidental’ em detrimento dos ‘saberes
tradicionais’. O que se espera é que não tome o lugar dos mestres tradicionais,
tampouco da educação tradicional, mas lhes seja parceira.
14. A escola trabalha a alteridade e a autoestima indígena. Os relatos de
estudantes indígenas que estudam em escolas não indígenas são, em muitos casos,
eloquentes em demonstrar o preconceito que sofrem por serem diferentes, como se pôde
perceber no primeiro texto deste livro. Na escola indígena, seus estudantes devem

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receber um tratamento que eleve sua autoestima primeiramente como pessoa, e segundo
como sujeitos do conhecimento. Não se pode admitir que estudantes indígenas não se
sintam acolhidos em suas escolas, que não se reconheçam nelas, que esse espaço lhes
seja hostil. A alteridade indígena está presente na escola indígena quando os saberes
indígenas não são diminuídos, quando as pessoas não são discriminadas pela roupa ou
acessórios corporais que usam ou pelo cheiro de fumaça, quando se trabalha
positivamente o orgulho em ser indígena.
15. A escola valoriza e exercita as práticas culturais indígenas. Parece-nos que
esse aspecto talvez seja o primeiro com o qual toda escola indígena se identifica. E está
muito correto que seja assim. Se a escola é indígena, ela o é para os indígenas, mas
também com e dos indígenas. Se a escola de meados do século XX era uma escola que
não respeitava o modo de ser dos estudantes e de seus pais, a escola diferenciada do
final do século XX e início do século XXI é aquela que não quer desenraizá-los.
Diríamos até que a escola inculturou-se, e isso é ótimo. O único cuidado que se há de ter
é em não identificar somente nas práticas culturais os sinais diacríticos de uma escola
diferenciada, esquecendo-se todo o restante do que tratamos como aspectos de
resistência. Se ela não valorizar e exercitar as práticas culturais indígenas, será uma
escola somente para os indígenas; se ficar centrada somente nas práticas culturais e
esquecer os demais aspectos da resistência, a cultura passa a ser uma prisão e não um
elemento de potencialização do aprendizado.
16. A escola sabe o real lugar das ciências indígenas no cotidiano da
comunidade educativa. Quando se fala que os conhecimentos indígenas, aqui tomados
como ciências indígenas, devam estar na escola, dificilmente haverá entre os que
defendem a educação escolar indígena diferenciada alguém que discorde disso. No
entanto, no momento de pensar a inserção das ciências indígenas no cotidiano escolar,
no lugar que deveria ocupar diante dos conteúdos da Base Nacional Curricular Comum
(BNCC), resta sempre a dúvida de como proceder. Defendemos que é possível partir da
aldeia para ensinar grande parte dos conteúdos, inclusive os da BNCC, conforme
trabalhamos no próximo capítulo. Os critérios para a escolha dos conteúdos, insistimos
novamente, dependem do projeto étnico que se quer alcançar com a escola. Se nele as
ciências indígenas não estão contempladas, é porque não se sabe o real valor delas no
cotidiano da comunidade. Como não tomamos os conteúdos escolares como possuidores
de valor em si, mas de valor para algum projeto, pensando que eles devem de ser
instrumentalizados para ajudar a comunidade educativa a construir suas utopias,

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pensamos que uma escola de fato indígena sabe a importância que as ciências indígenas
têm na explicação dos fenômenos sociais e naturais.
17. A escola não fragmenta o conhecimento, mas o pensa de forma mais
holística, assim como o vivem os povos indígenas. No mundo ocidental, os currículos
escolares foram sofrendo a especialização das ciências ao ponto de fragmentarem-se
cartesianamente em um sem número de componentes. No momento de se pensar uma
escola indígena há sempre dúvidas quanto aos componentes que devem compor seu
currículo. Uma saída é pensar a realidade menos fragmentada, o que incidiria na
elaboração de currículos menos disciplinarizados. Para isso, uma boa saída são os
trabalhos por projetos inter e transdisciplinares. Outra, o trabalho com grandes áreas do
conhecimento.
18. A escola se insurge contra a organização curricular ocidental, subvertendo
epistemologicamente a matriz curricular dominante. Decorrente da preocupação
anterior, é preciso estar ciente que a composição dos currículos oficiais contém sempre
um projeto de sociedade, seja explícito ou implícito. Quando se discute, por exemplo, a
inserção ou retirada de componentes curriculares, como as Artes, Educação Física,
Filosofia e Sociologia, e assim por diante, existe sempre uma intencionalidade para tal
ação. Se os componentes curriculares são insuficientes para dar conta do que se deseja
com a escola, a comunidade tem o direito e a possibilidade legal de subverter a matriz
curricular dominante. Inclusive, é possível atender ao BNCC através de outros desenhos
curriculares. Por exemplo, ninguém diz que o componente curricular chamado de
matemática deva assim ser chamado nas escolas indígenas. O que se diz é que os
conhecimentos matemáticos devam ser contemplados, e isso pode acontecer, por
exemplo, ao estudar-se o vento, o rio ou a mata, que podem ser transformados em
componentes curriculares se assim a comunidade escolar decidir. Outra coisa é pensar
que os desenhos curriculares podem ser menos fixos, elaborando-se propostas para
períodos menos longos do que os costumeiros. Ao final, se a comunidade educativa
decidir que quer outra escola, que siga outra racionalidade, também isso é um direito
seu. O cuidado que se deve ter, nesses casos, é com a institucionalidade de projetos
como esses. Nalgumas situações é possível pensar uma escola paralela à escola do
sistema educacional caso não haja possibilidade de diálogo institucional. Noutras, isso
se resolve com ações no contra turno, embora isso não seja o ideal.
19. A escola não se presta a domesticar as pessoas para o sistema social
hegemônico. Se os conhecimentos indígenas e seu modo de ser foram historicamente

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silenciados pelo sistema colonial que usa a escola para manter o status quo dominante,
continuar a manter o mesmo sistema de dominação através de uma escola com feições
indígenas é, no mínimo, sinal de ingenuidade, sentimento do qual é preciso se libertar,
conforme tratamos no início desse texto. Espera-se que uma escola indígena resista em
doutrinar os estudantes para que sejam dóceis reprodutores da colonialidade. Isso se faz
com currículos alternativos e críticos, com metodologias adequadas, com políticas de
valorização das línguas maternas, com controle comunitário da escola, com docentes
indígenas comprometidos com as causas do povo.
20. A escola não cuida somente do conhecimento, do intelecto, mas da pessoa
inteira, da alma, do espírito e também do corpo. A escola trabalha com
conhecimentos, mas não somente com eles. Se ela se fixa somente em conhecimentos,
torna-se conteudista. Nesses casos, não é incomum encontrar-se escolas com ótimos
índices de aprovação em concursos os mais diversos. O grau de eficiência educacional,
nesses casos, passa a ser sinônimo de sucesso. É por conta disso, também, que as
escolas indígenas compõem, nos dados governamentais, o quadro indesejado de escolas
incompetentes. Porém, tratar da questão nesses termos é por demais desonesto. Primeiro
porque as escalas de medida são retiradas do sistema hegemônico (ENEM, Provinha
Brasil, censos educacionais) que medem exatamente a adequação ou não ao padrão do
que se espera para manter o mesmo sistema funcionando. Segundo, porque não se
pergunta sobre a pertinência ou não do que se ensina na escola. Terceiro, porque se dá
liberdade para que as escolas sejam diferenciadas, mas, ao final, cobram-se resultados
indiferenciados. Uma escola indígena deve preocupar-se sim com os conhecimentos –
ser diferenciada não significa abdicar de construir conhecimentos, no entanto, desde que
sejam socialmente relevantes –, mas deve preocupar-se com a pessoa inteira, com sua
dimensão corporal e também espiritual. Se assim não for, irá desrespeitar as práticas
sagradas da tradição e se transformará num espaço de perseguição dos próprios
indígenas.
21. A escola não está centrada somente na escrita, mas usa outras linguagens
dominadas pelas comunidades indígenas. Ao adentrar na escola, os povos indígenas
se deparam com a cultura da escrita. Isso impacta praticamente em toda sua vida social.
Se antes o uso da memória para reprisar os conhecimentos, as histórias sagradas e os
ritos era algo indispensável, o domínio do registro por escrito tende a mudar esses
regimes de memória, e por vezes o papel passa a aprisionar as narrativas orais,
chegando inclusive à possibilidade de matá-las. Os sábios, detentores de muitos

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conhecimentos, podem passar a ser relegados ao esquecimento pelos detentores da
técnica do registro. Inclusive a escola pode ter alguma dificuldade em pensar a
participação dos mestres tradicionais como docentes por não raras vezes serem
analfabetos. Se a escola indígena não se atentar para isso, corre o risco de optar somente
pela cultura da escrita e esquecer a riqueza que as demais linguagens indígenas
possuem, como a oralidade, as linguagens corporais e as sonoras. Por outro lado, numa
escola em que isso está resolvido, o currículo tem vida. Nela os estudantes não ficam o
ano todo e todos os anos dentro da sala de aula apenas copiando da lousa, sentados em
fileira a repetir o que lhes ordena o livro didático através dos professores. Uma escola
de fato indígena é extremamente criativa nos métodos de ensino, no entendimento do
que sejam os espaços e os tempos pedagógicos. Ela fala e a comunidade educativa
entende, pois ambas se expressam na mesma linguagem.
22. A escola se centra em formas coletivas de ensino, aprendizagem e viver.
Não é incomum salientar-se que grande parte dos povos indígenas ainda mantém a
economia de reciprocidade. Quando se entra na escola, no entanto, o sistema de
competição, a seleção dos “mais aptos” a continuarem os estudos e a aprendizagem
geralmente solitária impactam negativamente na formação da personalidade do
estudante e geram novos posicionamentos frente ao coletivo. Pensar em metodologias
que garantam aprendizagens coletivas, e inclusive em trabalhos avaliativos coletivos,
são formas de aproximar as aulas das formas coletivas de ensino, de aprendizagem e de
vivência dos povos indígenas. Quando falamos que a escola pode ensaiar o novo, é
também disso que estamos falando, embora o novo o seja na perspectiva pedagógica,
porque as práticas coletivas são maneiras bastante mais antigas de organização social
dos povos indígenas.
23. A escola problematiza as identidades, seja as não indígenas, mas também as
indígenas. Uma escola indígena assume abertamente uma política identitária, que não é
fortuita, mas algo planejado. Quando trabalha, valoriza e vive as práticas culturais, ela
transforma as identidades em objetos de investigação. Sobre elas lança olhares no
sentido de pensar as mudanças e as permanências culturais, os processos de apropriação
de novos elementos culturais e a criação de novas tradições. Pode acontecer, contudo,
que nesse processo a escola acabe por folclorizar aspectos da cultura, ou mesmo inserir
outras práticas, seja recriando aspectos abandonados, como de danças e cantos, seja
‘modernizando’ outros, como na inserção de novas roupagens em práticas ancestrais,
usando outras linguagens, como o Rap cantado nas línguas indígenas.

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24. A escola acompanha a comunidade, e não o contrário. Embora em muitas
terras indígenas a escola acabe por se constituir em um dos poucos espaços públicos,
senão o único, ela não pode pensar-se separada da comunidade, como dissemos. É ela
quem deve estar adequada à comunidade indígena, e não o contrário. Por exemplo, se a
comunidade estiver em área de retomada territorial, a escola deve migrar para lá; se o
povo precisa, sazonalmente, migrar para coleta ou colheita de alimentos, a escola
indígena ou muda o calendário, ou acompanha de alguma maneira o povo. O problema é
que geralmente a escola é pensada enquanto prédio e não enquanto tempo e espaço de
aprendizagens! Em muitas realidades, a criação de pequenas escolas é bem mais
interessante do que escolas nucleadas ou escolas de centenas de estudantes indígenas.
Às vezes, a escola se torna uma instituição tão grande e pesada que não consegue
inclusive comunicar-se diretamente com as famílias.
25. A escola é crítica com relação aos conteúdos coloniais e colonizados.
Partindo do pressuposto de que a escola que acompanha a colonização e a colonialidade
responde às necessidades sociais dessas sociedades, uma escola que esteja orientada
pela interculturalidade crítica terá uma visão igualmente crítica acerca dos conteúdos
que ministra. Se pretender descolonizar-se terá, então, de proceder a uma profunda
avaliação acerca das condições que a levaram a adotar este ou aquele paradigma de
conhecimento. Assim, ciente de que os conteúdos escolares que toma como científicos,
como universalmente válidos e, portanto, superiores aos conhecimentos locais e
tradicionais, somente adquiriam tal status em função das relações de poder nas quais
estão imbrincados, uma escola de fato indígena desconfiará da veracidade de tais
postulações e buscará estabelecer uma crítica contundente dos conteúdos que toma
como indispensáveis. Se eles sobreviverem a perguntas do tipo “qual a importância do
ensino deste conteúdo para o nosso povo?”, talvez seja importante de ser mantido. Caso
contrário, é melhor que seja abandonado.
26. A escola parte das necessidades cognitivas das comunidades indígenas e não
do sistema capitalista. A comunidade escolar lida sempre com a difícil decisão de
optar entre a adaptação das pessoas ao mundo da prática e a resistência àqueles
elementos os quais avalia serem perniciosos para si. Agora, se partirmos da constatação
de que o capitalismo, por estar centrado na maximização do lucro a qualquer custo, é
danoso às populações indígenas, há que se pensar que as necessidades de conhecimento
dos povos indígenas podem não ser as mesmas do sistema capitalista. Pode ser que
sejamos surpreendidos, pois a comunidade indígena pode querer uma escola que

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propicie às pessoas a ascensão social nos moldes dos não indígenas. Nesses casos,
voltamos a repetir que a luta por uma escola diferenciada deixa de ter sentido, bastando
que se opte por uma escola para os indígenas e não uma escola dos e com os indígenas.
27. A escola está articulada às lutas pela terra, saúde e demais dimensões da
vida humana. Uma escola de fato indígena não é alienada da completude da vida
humana. Na educação escolar do não indígena, não é incomum encontrarem-se escolas
conteudistas, cognitivistas, que se pensam separadas dos problemas de outras ordens
que não aqueles ligados ao conhecimento. Essas escolas pensam que os conteúdos que
ministram são neutros do ponto de vista ideológico, ao mesmo tempo em que se
despreocupam da vida social da comunidade, pois não tomam os problemas sociais
como sendo seus problemas. A escola indígena, pelo contrário, articula as diversas
dimensões da vida social da comunidade. Nela os problemas ligados à territorialidade, à
saúde, aos direitos sociais, à cidadania cultural e política não lhe são estranhos, mas
compõem o cerne de seu currículo.
28. A escola é de autoria indígena, expressão da autonomia social dos povos
indígenas. Há autoria indígena quando a comunidade tem clareza do tipo de escola que
lhe interessa. Nesses casos, a comunidade indígena pode até dialogar com o estado
brasileiro, negociando formas de institucionalização da escola, mas não abre mão de
colocar em prática o suprimento de suas demandas. Uma escola de autoria indígena
passa pelo consentimento acerca do tipo de educação que se quer implantar, a começar
pelo prédio, passando pelos componentes curriculares, pelo corpo docente, pela política
linguística, pelo tipo de refeição servida na escola, enfim, pela feição indígena que
perpassa o currículo manifesto e o currículo oculto.
29. A escola sai de si e vai para além dos seus muros. Esse aspecto tem dois
sentidos: quando a escola não fica restrita a atividades curriculares, passando a
preocupar-se com os problemas da comunidade, e quando efetivamente, por ser da
comunidade, utiliza outros espaços pedagógicos que não somente a lousa e a sala de
aula. Ademais, uma escola quando é de fato da comunidade não é necessário que seja
murada, cercada, pois as famílias transitam por ela seja nos dias letivos, seja nos finais
de semana ou períodos de férias e zelam por sua estrutura. Essa escola é reconhecida
pela comunidade como parceira de suas lutas e não como inimiga ou espaço de
perseguição dos desafetos.
30. A escola tem uma postura democrática. Se a escola não for democrática,
seguramente haverá embate entre professores e lideranças já constituídas, entre grupos

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familiares distintos pelo domínio do espaço escolar, entre os próprios docentes. Uma
escola dividida não auxilia em nada a comunidade indígena, pelo contrário, presta
grande serviço à permanência da colonialidade. Ela será democrática também quando
incluir os anseios da comunidade, e não os desejos daqueles que tem algum interesse
político e econômico particulares, trabalhando/tirando dúvidas inclusive daquelas
pessoas que têm desconfiança com relação à Educação Escolar Indígena diferenciada,
auxiliando-as a tomar as decisões com relação à própria escola.
31. A escola não abandona os estudantes pelo caminho. Uma escola diferenciada
está preocupada com a aprendizagem de todos os estudantes. Se a escola ocidental está
alicerçada na competição entre os estudantes, e os prepara para competir e vencer aos
demais, uma escola indígena que seja calcada em processos sociais coletivos não
abandona seus estudantes, sejam os que desistem dela por algum motivo, porque não
veem sentido em permanecer estudando (e isso é um indicativo de dissociação entre o
que se pretende com a escola e com os resultados que as práticas educativas resultantes
dela) ou porque tem de abandoná-la por problemas pessoais ou de origem social, ou
ainda, por conta de reprovações, ao se sentirem incapazes de aprender. Se a escola for
de fato comunitária, se preocupará com os jovens e adultos e com os demais segmentos
sociais, avaliando a presença qualificada dos estudantes em suas ações a fim de que não
percam seu tempo participando de atividades sem sentido. Será também uma escola
para todos e não somente para aquelas famílias que, por alguma razão, conseguiram
estabelecer-se dentro das terras indígenas e gozam de benefícios que muitos dos que
residem em suas franjas não conseguem acessá-los.
32. A escola não se curva à desesperança. Uma escola verdadeiramente indígena
sabe o porquê de sua existência. Se é escola de resistência, sabe aonde quer chegar.
Nesse sentido, a esperança em construir pessoas e mundos dignos é uma marca que lhe
acompanha. Ela não desiste na primeira dificuldade, mas avalia constantemente as
estratégias que utiliza. Por isso, ela planeja ações que acontecerão no menor, no médio e
no longo prazo, avaliando constantemente essas ações e os resultados obtidos. Ela
fundamenta a utopia que persegue, alimenta o sonho de docentes, estudantes, de pais e
de lideranças. Se a esperança é uma de suas marcas, ela não espera que as coisas caiam
do céu, mas constrói espaços pedagógicos para alcançar o desejo. Se eles não são dados
institucionalmente, busca-se acessá-los através da criatividade coletiva. Nesse sentido,
todos os agentes educativos encontram-se imbuídos dos mesmos objetivos, e uns dão
suporte aos outros quando fraquejam.

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33. A escola é da comunidade e não da prefeitura ou do estado. Uma escola que
possua autoria indígena e controle social da comunidade pode estar ligada à rede
municipal ou estadual, mas será sempre uma escola da comunidade. Assim sendo, a
comunidade se sente responsável por ela e, se necessário, se insurge contra a política de
estados e municípios. Quando a comunidade se apropria da escola, as famílias
participam como parceiras do seu cotidiano, auxiliando na realização de mutirões, em
projetos específicos, em atividades pedagógicas. Quando o contrário ocorre, a escola é
totalmente dependente da ação estatal e a comunidade busca apenas usufruir de algum
ganho imediato ao aproximar-se dela, como o recebimento de salário.
34. Há concursos públicos específicos e não somente contratos temporários. É
impossível de construir uma escola indígena se não houver um grupo de pessoas com
perfil adequado para tocar o processo no longo prazo. A autonomia de docentes e
técnicos não se consegue, no entanto, se eles dependerem de relações políticas para
conseguir sua inserção na escola. No estado de Mato Grosso do Sul, por exemplo, a
expressiva maioria dos trabalhadores na Educação Escolar Indígena possui contrato
temporário e precisa renová-lo a cada ano, negociando-o sempre com as prefeituras,
com o governo do Estado e com as lideranças indígenas. Qualquer postura crítica com
relação à política pode, nestas condições, redundar na não renovação do contrato de
trabalho e na descontinuidade de práticas pedagógicas. Nestas condições, é preciso
muita coragem para haver qualquer tipo de resistência ao sistema sócio-político-
educacional hegemônico, já que a precariedade do vínculo empregatício dificulta muitas
vezes a ousadia.
35. A escola possui a participação e o controle social da comunidade. A escola
não é propriedade dos docentes ou de sua direção, ou espaço de algum grupo familiar
em específico, mas deve se constituir em um espaço efetivamente público, ou pelo
menos ter esse anseio. Quando afirmamos que a escola indígena deve ter o controle
social da comunidade estamos dizendo que ela deve ouvir a comunidade, suas
demandas e anseios, mas que também deve existir transparência na sua administração,
fazendo com que seus Conselhos efetivamente funcionem. Ela não pode ser instrumento
de desunião da comunidade, mas, pelo contrário, um dos principais pontos de encontro
de pessoas e de seus sonhos. Outro aspecto do controle social é a parceria com as
famílias, com as lideranças e mestres tradicionais. A participação e o controle da
comunidade diz respeito também à compra e ao uso de insumos escolares, à alimentação
servida, ao uso dos espaços escolares, à definição de currículos, de perfis de docentes.

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36. A escola não exclui a família indígena. Uma escola indígena diferenciada é
extensão da casa. Nela os estudantes, suas famílias, lideranças e mestres tradicionais
circulam com liberdade, são ouvidos e valorizados. Nela há respeito e valorização
recíproca entre os docentes e os demais segmentos da comunidade educativa, entre a
equipe diretiva, os estudantes, as famílias indígenas. Para que isso aconteça, é
necessário que haja, além do respeito, um clima de confiança na comunidade escolar,
que os docentes e equipe diretiva não se sintam perseguidos pela comunidade, e que a
comunidade não se sinta traída pelos docentes e por suas Direções. Como nem sempre a
comunicação escrita entre família e escola funciona a contento, o ideal mesmo é a
comunicação direta para que não se criem ruídos de comunicação que põem abaixo
muitos projetos educativos interessantes.
37. A escola possui autonomia pedagógica, de pessoal e financeira. Finalmente,
não há educação escolar indígena de fato se a escola não tiver autonomia pedagógica e
recursos humanos e financeiros suficientes para dar conta da especificidade. O primeiro
elemento se refere à autoria indígena, o segundo às condições para que o projeto seja
implementado. A autonomia pedagógica, via de regra, acaba ficando comprometida
porque as escolas indígenas, com raríssimas exceções, dependem do humor e das
ideologias políticas de estados e municípios. Daí que não é possível de construir uma
educação escolar indígena sem resistência política. Mesmo quando há consulta aos
indígenas sobre o que se pretende implantar de diferente em suas escolas, o retorno nem
sempre é animador, pois existe um padrão de organização escolar, fruto de uma cultura
escola já arraigada, que está na cabeça inclusive dos gestores e que é muito difícil de
romper, propondo-se outro tipo de escola. Outra coisa, mais uma vez, é o desconforto
em não saber lidar com os controles e avaliações externos. Enfim, uma escola que não
se impõe aos sistemas educacionais, tem grande chance de ser indiferenciada. A tensão
está posta, e somente será diminuída quando a comunidade educativa tiver clareza
acerca do projeto de escola que defende. Nessa escola, os gestores não são gerentes no
sentido empresarial de preocupação somente com resultados ou em fazer cumprir os
programas oficiais, mas companheiros dos docentes e estudantes.

Considerações finais
Um olhar panorâmico e retrospectivo sobre a Educação Escolar Indígena,
debatida e construída ao longo de praticamente trinta anos, nos mostra que houve
muitos avanços teóricos sobre ela, além de muitas tentativas de constituição de modelos

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educativos nas mais diversas regiões brasileiras. O resultado disso é a multiplicidade de
experiências que pode ser encontrada em todo o território nacional, fruto de
experiências particulares de povos específicos com seu entorno social e político.
Embora a riqueza das experiências, após três décadas de debates ainda
permanecem muitas dúvidas acerca da especificidade da Educação Escolar Indígena.
Nosso intuito, neste texto, foi problematizar os fundamentos filosóficos de uma escola
que se pretende de fato indígena. A primeira conclusão a que chegamos é que é
impossível padronizar a educação escolar indígena dentro de grandes territórios. Muito
pelo contrário, talvez a luta seja pela sua despadronização! Nosso argumento em favor
disso tem a ver com o fato de que a escola deveria dar conta, juntamente com outras
instituições indígenas, de auxiliar a comunidade a construir seus projetos de futuro
como dissemos. E isso acontece de forma bastante particularizada, dependendo das
características de cada local e das intencionalidades que cada comunidade lança sobre a
escola. O único traço geral que advogamos é que a educação escolar indígena deva ser
de resistência ao modelo homogeneizador e ocidentalizante da educação brasileira. A
forma de fazê-lo depende justamente da expectativa lançada sobre a escola.
Com relação à expectativa indígena sobre a escola, a segunda conclusão a que
chegamos é que ainda há muita resistência, seja indígena ou do Estado Brasileiro quanto
à necessidade de uma escola diferente para os indígenas. Essa diferença tem sido
avaliada como uma das causas do que consideram falta de qualidade da escola indígena,
pois ela é avaliada sob os mesmos indicadores que medem a ‘qualidade’ da escola não
indígena. Nesse aspecto, embora tenham sido formuladas tardiamente as Diretrizes
Nacionais para a Educação Escolar Indígena, os sistemas ainda não chegaram a um
modelo satisfatório de avaliação das escolas indígenas. Talvez a saída para esse impasse
seja mesmo a criação de um sistema próprio de educação escolar indígena que de fato
funcione.
Relacionado a esse aspecto, nossa terceira conclusão é que há ainda uma
grande distância entre as teorizações estabelecidas pelos intelectuais da Educação
Escolar Indígena e o trabalho educativo realizado pelos docentes que estão no cotidiano
da escola, pelos gestores escolares, pelas instituições formadoras dos docentes indígenas
e pelos gestores públicos responsáveis pelas escolas indígenas. Na falta de clareza sobre
como proceder na prática, opta-se por modelos escolares bastante próximos daqueles
seguidos pelas escolas não indígenas. No entanto, poucos dos envolvidos demonstram

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segurança no caminho a seguir para resolver a problemática, de modo que se fala muito
em educação escolar indígena diferenciada, mas essa diferença é pouco praticada.
Disso resulta que continua ainda necessário debater sobre o que seria essa
diferença. Por esse motivo é que pensamos, a partir de nossa prática de formação de
professores indígenas Guarani e Kaiowá na FAIND/UFGD, que é preciso, num diálogo
franco com as comunidades indígenas, estabelecer parâmetros para pensá-la. A saída
que propomos, neste texto, é que ela deva estar ligada a dois elementos que
consideramos centrais, a resistência e a autoria indígena. Os motivos que nos levam a
essa opção estão ligados ao fato de percebermos uma escola indígena ainda à procura de
justificar-se perante os gestores e à própria comunidade acerca de sua especificidade.
Na dúvida, recorre-se à legislação específica que garante a diferença, mas que não diz
como se faz a diferença. Foi pensando nisso que elencamos, a partir das falas indígenas
do II Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, acontecido em 2016 em Brasília,
da fase local da II Conferência Nacional de Educação Escola Indígena e das atividades
realizadas no âmbito do Programa Saberes Indígenas na Escola, trinta e sete sinais dessa
diferença. Não se trata de pensar essas características como um esquema fechado,
tampouco como as únicas possibilidades existentes. Nossa opção por eles aconteceu
porque percebemos que muitos dos textos que tratam da Educação Escolar Indígena são
bastante eficientes na descrição e na análise, porém são pouco propositivos. A intenção
foi articular ambas as perspectivas.

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desenvolvimento? In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber,
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