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A etnografia de produtos artísticos e de sua recepção é uma proposta que tem resultado, com
base na antropologia da performance e na sociologia da arte, uma produção crescentemente
relevante. O espetáculo ‘A invenção do nordeste’, uma obra inspirada livremente no livro
homônimo de Durval Muniz Albuquerque Junior, foi uma oportunidade privilegiada para uma
fruição inspirada na proposta acima citada.
Com uma direção segura e afinada, atores de boa qualidade são porta-vozes de uma lição
brechtiana sobre os conceitos de invenção de tradições e de identidades regionais. Com um
plot meio forçado – o desenrolar do trabalho de um diretor que seria responsável para
preparar e selecionar um ator para um personagem nordestino, sendo montado um processo
dividido em semanas numeradas – , assistimos ao desenrolar da ‘trama-aula’ sobre o tema do
processo de construção do que consiste o ‘ser’ do nordestino, apresentando-se os elementos
que se desenham a partir dos sujeitos afetados pelo mergulho nas tradições em que têm
moldadas suas subjetividades de indivíduos do nordeste do Brasil, combinando-se abordagens
de dentro e de fora deles – quando mobilizam os repertórios, os idiomas corporais e
elementos culturais a partir dos quais se pensa a nordestinidade; e quando são trazidos textos
de autores da literatura e de outros campos de saber sobre a ontologia dos que nascem na
região, a exemplo de Euclides da Cunha e Gilberto Freire.
O conceito de Freud pode ainda explicar a tênue fronteira entre o planejado e o não-planejado
da lição a ser ‘ensinada’ através do espetáculo, que termina afirmando aquilo contra o que
Albuquerque Júnior e os criadores pretendem discursar, revelando o caráter de invencionice
da Ideia/conceito/representação do nordeste do país. A fala de um dos personagens no final
sobre o peso da tradição que lhes é tatuada na alma e nos corpos pode ser ouvida como um
sintoma do gozo obceno de ser/afirmar/repetir aquilo que se nos aponta como fixidez imposta
de modo interessado por pensadores, artistas e indivíduos comuns, em seu poder de assimilar
as personas e imaginários referidos à nordestinidade, o que se nota todas as vezes que os
atores/personagens voltam a ser ‘eles mesmos’.
O conflito entre a tese do caráter arbitrário da imagem, das tradições e das ontoafirmações
sobre a região/habitantes e a afirmação sutil dos modelos de nordestinidade delas resultantes
aparece nas saídas e retornos dos atores aos personagens nordestinos que eles seriam,
afirmando de modo naturalizante, pela repetição de traços dos idiomas corporais (gestual,
sotaques), os tipos advindos da matriz tradicional inventada e disseminada pela literatura,
pela mídia e pelas poderosas redes anônimas da oralidade tradicional e da que é colocada em
circulação pelas mídias eletrônicas, notavelmente eficientes na disseminação das pedagogias
de si dos ‘cabras da peste’.
Essa dificuldade de execução mais consistente da lição construcionista sobre a constituição das
identidades da região e dos nordestinos atravessa de modo sutil todo o espetáculo. Ela
aparece no riso catártico da plateia, que diz muito do recalcado e do conflito entre as
demandas simultâneas de autenticidade/fixidez referida ao passado geográfico inscrito nas
memórias mentais e corporais e as demandas de descartabilidade/universalidade e fluidez
desses tempos de www, explicitados recorrentemente, por exemplo, em relação às festas do
Maior São do Mundo, em Campina Grande , quando emerge a discussão sobre o ‘verdadeiro
forró’, o ‘São João genuíno’, e também em todo discurso que aponta para a metáfora crua do
local, quando por exemplo, se torce pelos ou se defende e se quer conquistar aceitabilidade e
legitimidade de equipes e atletas do Brasil, times da cidade, produção de cinema/música, ou
de quaisquer outras manifestações artística, pela referência à paraibanidade/nordestinidade.
Reconhecendo que escapar das malhas dos personagens que vivemos antes mesmo de
existirmos, durante nossas vidas e no futuro que nos transcenderá é sempre muito difícil, o
espetáculo e o modo de colocar as questões sobre essa dificuldade é uma tentativa
interessante, mesmo quando não funciona na direção desejada, dadas as dinâmicas
magmáticas que operam nas narrativas de nós mesmos, nas quais precisamos sempre de
recorrer a espelhos em grande medida indecidíveis.