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Capítulo 3 - A família

I.
Família, de maneira geral, se refere a todos os parentes de uma pessoa,
mas "a família" trata-se de uma unidade que contém pelo menos os seguintes
tipos de parentes: marido e esposa (pai e mãe) e filhos, os quais estão em
relações especiais uns com os outros. "Todo membro da família é ao mesmo
tempo um parente, e todo parente é, neste sentido, um membro da família" (42).
Reunindo tipos diferentes de parentes, a família forma uma única unidade
cultural. A partir disso, Schneider formula sua hipótese sobre o parentesco
americano: "a relação sexual (o ato de procriação) é o símbolo que fornece as
características distintivas em termos das quais tanto os membros da família
como parentes quanto a família como uma unidade cultural são definidos e
diferenciados" (43).
Observa que símbolo representa algo com o qual não está intrínseca ou
necessariamente relacionado, sendo uma relação arbitrária, o que pode ser
contraditório, uma vez que parece haver uma relação intrínseca ou necessária
entre a relação sexual e algum aspecto do parentesco americano. Então, o autor
afirma que "a relação sexual é um ato que é realizado, e que não simplesmente
acontece" (44), para trazer à luz a relevância de sua descoberta: trata-se de um
fato etnográfico sobre a cultura americana, de uma espécie de premissa cultural
(ou crença) sobre a natureza da vida e um fato observável pelos americanos.
II.
Não possuir família pode significar que a pessoa não seja casada, não
tenha cônjuge nem filhos, que seus pais não estejam mais vivos, que está
separada/não vive com um cônjuge e filhos (os quais também não constituem
uma família). Desse modo, um casal sem filhos não compõe uma família, pois
essa pressupõe a adição de crianças, completando a unidade cultural e criança
esse estado. Além disso, é preciso viver junto, pois a família é onde a pessoa
mora, não sendo, nesse sentido, possível ser membro de duas famílias ao
mesmo tempo. Já na falta de um membro do casal, por divórcio, morte ou
separação, ou de uma filha, os membros remanescentes não constituem uma
família completa, de maneira que se o filho sai de casa, a família está desfeita,
pois já não vivem mais juntos. "O estado do bem-estar de uma família também é
descrito em termos de viverem juntos. (...)Viver juntos também pode ser usado
como um eufemismo para a relação sexual, pois implica uma intimidade entre
um homem e uma mulher" (46).
"Os informantes descrevem a família como consistindo em marido,
esposa e seus filhos que vivem juntos como uma unidade natural. A família é
formada de acordo com as leis da natureza e vive seguindo as regras que são
consideradas pelos americanos como evidentemente naturais". Disso se segue
que as várias tarefas referentes à vida em família são divididas de acordo com
"talentos, aptidões e dotes naturais" dos envolvidos, de forma que algumas
cabem naturalmente aos homens, outras às mulheres e alguns modos são vistos
como naturais pela idade dos mais novos.
Assim, as mulheres têm muito a aprender com fontes externas, mas a
premissa cultural é de que naturalmente, por conta de seus dotes naturais, geram
filhos, zelam e cuidam deles. Já os homens "não são naturalmente dotados de
modos de sentir as necessidades dos bebês" (47), ainda que possam aprender,
lentamente e não tão gentilmente como as mulheres. A base da autoridade dos
pais sobre os filhos parte da premissa de por serem mais velhos, sabem o
suficiente sobre o que fazer, se baseia em "conhecimento e experiência" (idade)
e se apoia pela força (diferença física), de modo que "a relação entre filho e pai
não é igual".
Além disso, "num de seus sentidos fundamentais, a natureza sozinha
constitui a família, e os papeis naturais de marido, esposa, pai, mãe e filha/filho
definem os membros da família". Segundo Schneider, "há algo mais nos papeis"
que é definido como "adições aos dotes naturais, acréscimos às diferenças
naturais, como implementação das tendências inatas". Fatos naturais como a
idade e o sexo são tidos como baseados em algo que lhes é adicionado: "trata-se
da adição da razão humana ao estado natural das coisas" (48), criando algo a
mais que produz sozinha a natureza. Ademais, "a razão humana seleciona
apenas parte da natureza para a basear", o que se dá, segundo o autor, devido ao
duplo caráter da natureza, que por um lado é boa/humana e por outro é
má/animal, de maneira que a razão seleciona a parte boa.
O construto natural da família deriva das duas ordens do mundo, aquela
da natureza e aquela da lei, da razão, do humano em distinção do animal. "O
que é humano é, obviamente, uma parte da natureza, mas é uma parte muito
especial". Enfim, "A família, no parentesco americano, é definida como uma
unidade natural baseada nos fatos da natureza. Na cultura americana, isso
significa que apenas alguns dos fatos da natureza são selecionados, que eles são
alterados, e que se constrói sobre eles, ou se adiciona algo a eles".
III.
Parente trata-se de uma pessoa relacionada por sangue ou por casamento.
Os parentes por sangue são ligados por substância material, se relacionam de
modo inteiramente objetivo e têm um laço permanente. Trata-se de uma relação
involuntária, pois não é uma questão de vontade humana, ao mesmo tempo, é da
ordem natural, segue as leis da natureza. Além disso, não se pode escolher os
parentes de sangue, pois "ele nasce com eles, e eles se tornam seus por
nascimento" (49). Já os parentes por casamento são ligados por lei, se
relacionam subjetivamente e seu laço pode ser terminado. Nesse caso, trata-se
de uma relação voluntária, sendo questão de vontade e é definida e criada pelas
leis do homem (as quais são invenções humanas), de maneira que não é apenas
uma instituição por ele inventada, mas também é um passo ativo que alguém
deve dar.
"O sangue é uma questão de nascimento; o nascimento, uma questão de
procriação; e a procriação, uma questão de relação sexual. A relação sexual é
um ato que é realizado e não simplesmente acontece. Mas, enquanto um ato, ela
é natural. Seu resultado é a concepção, que é seguida pelo nascimento, e esses
também são naturais". A relação sexual "é um ato exclusivo e distintivo do
relacionamento marido-esposa: a relação sexual só é legítima e apropriada entre
marido e esposa, e cada um tem o direito exclusivo sobre a atividade sexual do
outro".
Além disso, "a relação sexual é um ato no qual e pelo qual expressa-se o
amor; ela é muitas vezes chamada de 'fazer amor', e o amor é um símbolo
cultural explícito no parentesco americano". Assim, encontra dois tipos distintos
de amor, sendo um aquele conjugal, erótico, cujo ato sexual é a encarnação
concreta. O outro é aquele cognático, cuja expressão simbólica é a relação de
sangue entre pai e mãe e seus filhos. Nesse sentido, o beijo é uma expressão do
amor, sendo, por um lado, erótico quando direto nos lábios (podendo ser, às
vezes, eufemismo para a relação sexual), por outro, afirmação cognática quando
na testa ou bochecha. Por esta razão, quando uma criança rejeita o beijo de seus
pais, não se trata de questão trivial.
"O amor conjugal entre marido e esposa é o oposto do amor cognático de
pai, filho e irmão. Um é a união de opostos, o outro é a unidade que as
identidades têm, o compartilhamento de substância biogenética" (50). "É o
símbolo do amor que liga o amor conjugal e o cognático, e relaciona ambos ao
símbolo da relação sexual. (...) Tanto o amor quanto a relação sexual tratam de
dois elementos distintos. Um é a unificação de opostos. O outro é a separação
de unidades" (51). "Macho e fêmea, os opostos, são unidos na relação sexual
como marido e esposa. Suas substâncias biogenéticas diferentes são unidas no
filho concebido dessa união, e seu relacionamento um com a outra é reafirmado
não apenas como marido e esposa um da outra, mas como pais de seu filho, pai
e mãe do mesmo descendente. Mas o que era um deve se tornar dois. O filho
nasce de seus pais e é separado fisicamente deles através do parto. (...) A
separação que começa com o ato do nascimento continua até a criança crescer e
deixar sua família para se casar e fundar sua própria família".
Tanto cognático quanto conjugal são tipos de amor, que é unificador e
"essência" do parentesco americano. Todos os seus símbolos significativos
estão contidos naquele da relação sexual, figura formada como entidade
biológica e ato natural. "Ainda assim, o tempo todo, cada elemento que é
definido culturalmente como natural é ao mesmo tempo aumentado e elaborado,
acrescido e nutrido pela regra da razão humana, incorporada na lei e na
moralidade" (52).
IV.
Na cultura americana, há dois domínios distintos do sexo, um é o da
relação sexual, símbolo que fornece as características distintivas da definição de
família, e o outro é o dos atributos sexuais, os quais "constituem fatos da
natureza de grande importância para a família, mas num nível cultural
completamente diferente do nível das características distintivas" (52).
Aqui, o que define uma pessoa como macho ou fêmea é o tipo de órgãos
sexuais que ela tem, bem como outras características indicativas da identidade
sexual, como aquelas físicas que aparecem sendo mais comuns aos homens
(pelos faciais) do que às mulheres. Por outro lado, aparecem características
fruto de crenças culturais sobre as qualidades relativas a cada um dos sexos,
diferentes entre aquelas relativas à masculinidade e aquelas relativas à
feminilidade, levando-os a se encaixarem em diferentes atividades e ocupações.
"As qualidades ativas e agressivas dos homens, sua força e resistência, serviram
para torná-los caçadores e soldados particularmente bons, e os predispõem para
posições de autoridade, especialmente em relação a mulheres e crianças. As
mulheres devem ser acalentadoras e passivas de modo que as tornam
particularmente boas para ensinarem em escolas, para a enfermagem,
preparação de comida e cuidado do lar. As aptidões mecânicas dos homens
serviram para torná-los bons para trabalharem com máquinas - projetando-as,
construindo-as e consertando-as – de modo que a s mulheres não podem
igualar" (52-53).
"Na cultura americana, o papel sexual ocorre num contexto que seleciona,
modifica ou enfatiza ainda mais alguns de seus aspectos especiais. (...) Os
atributos do papel sexual têm valores diferentes em cada um [dos] casos" (53).
"O mesmo vale para a família. Esposa, mãe, filha e irmã são mulheres; marido,
pai, filho e irmão são homens". O autor enfatiza que seus papeis sexuais não são
definidos por serem esposas/mães ou maridos/pais, mas por serem,
respectivamente, mulher e homem. Nesse sentido, há duas unidades culturais
agindo de modo distinto, pois a ação de uma pessoa como um homem é definida
diferentemente da maneira como o é como pai/marido, o mesmo valendo para a
mulher/mãe/esposa.
Outro fato que Schneider chama atenção é aquele de que, por definição
cultural, pai/marido é homem e mãe/esposa é mulher. "O que define as unidades
culturais de marido e esposa ou pai e mãe? Demonstravelmente, não é o sexo.
(...) Há tipos de mulheres que não são nem esposas nem mães, mas nenhuma
esposa ou mãe não é mulher" (54). Assim, a característica distintiva da família é
a relação sexual, enquanto a característica distintiva em termos da qual o papel
sexual é definido é aquela dos genitais. "É fundamental distinguir entre o pai
como um pai e como um homem, a mãe como uma mãe e uma mulher etc" (55).
V.
"'A família' representa cada membro da família e todos os seus membros,
representa como cada membro da família deve se comportar e como as relações
de família devem ser conduzidas por quem quer que as conduza. (...) A família
como um símbolo é um padrão para como as relações de parentesco devem ser
conduzidas; a oposição entre 'lar' e 'trabalho' define muito claramente esses
significados e os enuncia em termos das características distintas a ambos e
opostas às do outro" (56). Antes de tudo, é preciso lembrar que uma casa é o
lugar onde a família mora, mas a forma pela qual mora, pode transformá-la em
um lar, que se opõe a outras possibilidades estranhas ao lugar da família viver
junto e cultiva um modo de viver e comportamentos familiares. Então, o autor
afirma que a única semelhança entre o trabalho e o lar é que ambos são tanto um
lugar quanto uma atividade, em qualquer nível mais profundo que esse, os dois
se separam em atividades, objetivos e comportamentos.
O objetivo do trabalho é claro, explícito e unitário, além de ser produtivo,
ou seja, resultar em algum tipo de produto. O lar não possui objetivo no mesmo
formato, tampouco seu resultado é único e os comportamentos são feitos com
base em amor, não em dinheiro. Os parentes não podem ser escolhidos, a pessoa
nasce e permanece com eles, já os empregados são escolhidos e podem ser
demitidos por má atuação de acordo com padrões técnicos descritivos, o que
não pode passar com um parente. "O casamento (...) é pra valer, para sempre
(...). O divórcio ou a anulação do casamento dependem do fato de que o
relacionamento poder ser terminado, e isso depende do fato de ser um
relacionamento na lei, mas não de substância" (59), mas essa situação não
dependerá de padrões técnicos ou de má realização de uma atividade enquanto
um trabalho.
"A recreação está no meio do caminho entre o lar e o trabalho, e combina
as principais características simbólicas de ambos. (...)Enquanto o trabalho é por
dinheiro e o lar é por amor, a recreação é pela gratificação, para restaurar, para
recriar. (...) As férias são produtivas (...) porque são as coisas que a pessoa gosta
de fazer. (...) Lá encontra todos os confortos do lar, mas nenhuma de suas
restrições". "O sucesso das férias não é medido pelo seu custo, mas pela razão
entre gratificação e custo. (...) O conjunto de características que distingue o lar
do trabalho é uma expressão do paradigma geral de como as relações de
parentesco devem ser conduzidas e com qual objetivo. Essas características
formam um aglomerado interconectado intimamente" (59-60).
Dinheiro e amor não se opõem simplesmente porque o primeiro é
material e o outro não, mas também porque um é destrutível e transitório e o
outro é espiritual, duradouro e indestrutível. "A qualidade espiritual do amor
está intimamente ligada ao fato de que, no amor, as considerações cruciais são
pessoais. As considerações pessoais são uma questão de quem é, e não do quão
bem se realiza uma tarefa ou quanta eficiência se tem. A moralidade e os
sentimentos, por sua vez, são a essência da qualidade espiritual do amor" (60).
VI.
"Podemos falar da família como 'as pessoas amadas'. O amor pode ser
traduzido livremente como solidariedade difusa duradoura. O objetivo para o
qual as relações de família são conduzidas é o bem-estar da família como um
todo e de cada um de seus membros" (61-62). Trata-se de fazer o que é bom ou
correto para o outro, sem levar em consideração o efeito para o agente, que na
verdade é benéfico por ter praticado o bem. Como isso deve ser feito não é dado
pelo amor, mas por todos os outros símbolos definidores de contexto da cultura
americana. Em relação ao amor, há uma extensa variedade de tipos de atos
específicos que podem expressá-lo ou afirmá-lo, podendo até mesmo ser um ato
que, no contexto ou de forma erradas, pode ser sinalizar que não há amor.
A família no parentesco americano é "um sistema de um pequeno número
de símbolos [que] define e diferencia os membros da família. Esses mesmos
símbolos também definem e diferenciam os tipos de relacionamento – ou seja,
os códigos de conduta – que os membros da família devem ter entre si" (63). "A
relação sexual é amor e representa um signo de amor, e o amor representa a
relação sexual e é um signo dela. (...) Então, independentemente de como os
membros da família se diferenciam uns dos outros, seu relacionamento entre si
deve ser idêntico. Ele deve ser de amor. Cada um deve agir para os outros com
o amor como princípio orientador".
"Solidariedade porque o relacionamento é de apoio, de ajuda e
cooperativo; ele se baseia na confiança e pode-se confiar no outro. Difusa
porque ele não se confina estreitamente a um objetivo específico ou a um tipo
de comportamento específico. Dois membros da mesma família não podem ser
indiferentes um ao outro, e como sua cooperação não tem um objetivo
específico ou um tempo limitado específico em mente, ela é duradoura" (64).
Entretanto, outros tipos de relacionamentos podem ter essas três características,
como a amizade, mas o diferencial é que os parentes não podem ser escolhidos,
tampouco descartados a qualquer momento e sem nenhuma obrigação, além de
que amigos podem ser selecionados e escolhidos arbitrariamente e até mesmo
com nítidos propósitos em mente. "Escolher e descartar um cônjuge por
propósitos puramente utilitários não é considerado apropriado, ainda que isso
certamente aconteça. (...) Para um amigo, a performance é tudo, pois não há
nada mais" (65).

Capítulo 6 - Conclusão
I.
Para o autor, o relacionamento entre natureza e homem na cultura
americana é ativo, no sentido de que seu lugar é tentar dominá-la, controlá-la,
utilizar suas potencialidades para os próprios fins humanos, de modo que a
ciência, a tecnologia e muito de sua vida se direciona a tais tarefas. Entretanto,
aponta a primeira contradição dessa relação de que, no lar, quando se trata de
parentesco e família, essa situação praticamente se inverte na cultura americana,
para a qual aquilo que há na natureza é o que o parentesco é. Trata-se de
obedecer às leis da natureza, de um relacionamento de sangue (substância
biogenética compartilhada), de um laço de carne e osso entre mãe e filho, por
isso o instinto materno, natural, é seu amor por ele. Nesse sentido, aquilo que é
diferente, artificial, não natural, é contrário à natureza.
A sexualidade aparece como um bom exemplo, pois apenas uma de suas
formas é legítima e apropriada, a partir dos padrões americanos, enquanto todas
as outras são impróprias e moralmente erradas: relações heterossexuais, entre
marido e esposa, de genital com genital. Pois "o estado de coisas natural, o
modo que é e o modo que deve ser (...) é o casamento" (120). A oposição entre
natureza e homem é resolvida pela premissa seguinte de que o homem é apenas
parte especial da natureza, sendo o foco deslocado para outra oposição, aquela
própria à natureza entre animal e humano, sendo o fator de distinção a razão ou
inteligência. Essa não existe como algo em si, mas como parte da natureza, da
parcela especial que é humana, um animal, mas não como outros, um animal
especial, e sua inteligência é um tipo especial de inteligência animal, em
contraposição à irracionalidade animal.
Uma segunda contradição aparece, "pois parece claramente dado na
cultura americana que a razão ou inteligência humanas afastam-se do que é
animal na natureza, e, portanto, afastam-se ao mesmo tempo do que é natural"
(120-121). Em outras palavras, parece haver uma relação direta entre a extensão
da ação da inteligência e a distância do resultado em relação ao estado de
natureza, ou seja, "quanto mais a razão humana trabalha, menos sobra da
natureza" (121), cujo resultado só pode ser ruim, posto que não natural. Assim,
em quaisquer níveis analisados, permanece uma contradição entre o homem e a
natureza, a qual é resolvida através da ordem da lei, que é o resultado próprio da
ação humana sobre a natureza. "O bom é selecionado, descoberto, escolhido;
regras e regulações (a ordem da lei) são estabelecidas para manter e perpetuar o
bom (...). Mas isso também pode ocorrer de outro modo, através da invenção de
algum modo costumeiro ou apropriado de se comportar", que é exatamente o
propósito das regras.
Nesse sentido, o autor afirma que a noção de cultura do antropólogo não é
tão diferente da noção de ordem da lei do americano, pois não se trata de cultura
contra a natureza ou o homem, mas de cultura com a natureza, no sentido de que
"é a ordem da lei, ou seja, a cultura, que resolve as contradições entre o homem
e a natureza, que são contradições dentro da própria natureza". Assim, o
parentesco americano é visto como um sistema cultural e a família aqui é
simplesmente o estado biológico natural centrado na reprodução: o casamento,
em última instância, "é a união sexual [e] o par reprodutor, vivendo junto com
seus filhos, é a família" (122). Mas é a ordem da lei que distancia e diferencia (a
família de) o humano do animal, ainda que mantendo tudo dentro do reino da
natureza e baseado na natureza. "É a ordem da lei, baseada na razão e na
natureza, que, combinada com a natureza, é o arranjo mais poderoso e mais
aproximadamente ideal na definição da cultura americana".
Enfim, o parente por afinidade, determinado por um conjunto de regras
artificiais em prol da conduta, não possui base substantiva ou natural e está em
um extremo. No outro extremo está o parente por natureza, mas quando se
pensa que ele é também um parente de sangue, que está relacionado pela própria
natureza e pela lei, percebe-se que "ele junta o melhor da natureza modificado
pela razão humana; ele é assim o parente no sentido mais verdadeiro e mais
altamente valorizado".
II.
Na cultura americana, as relações entre o homem e a natureza podem ser
definidas tanto como um conjunto de contradições resolvidas de variados
modos, quanto de um modo diferente, mas com valor igualmente verdadeiro.
Formalmente, a natureza inclui o homem e o animal, mas também é possível
que a palavra "homem" tenha um significado fortemente diferente da categoria
natureza, sendo dela separado. Segundo o autor, esse padrão se repete para,
entre outras, as categorias de parente e de sangue e os termos família e pai. O
fato de que eles "existem tanto como um sistema de contradições e sua solução
quanto como um sistema de categorias marcadas e não marcadas no parentesco
americano enquanto um sistema cultural é o fato crucial" (124) e que leva ao
problema fundamental na análise do parentesco, para Schneider, que é a grande
variação em quase todos os níveis. Isso devido ao fato de que, no nível das
características distintivas, não há variância.
O primeiro passo para resolver esse problema seria o de ouvir os
informantes, reconhecendo "que há na realidade dois sistemas operando, e que
esses dois sistemas estão intimamente articulados, as não são de modo algum
idênticos". Trata-se, então, de "fazer a distinção entre o parente como uma
pessoa e as características distintivas que definem a pessoa como um parente.
Isso simplesmente separa o sistema de características distintivas do sistema de
definições centradas na pessoa", de maneira que a presença ou não de variância
marca essa distinção.
Há dois tipos de variância, sendo um aquele que "consiste no fato de que
os dados imediatos que o observador encontra são decisões específicas que
pessoas tomaram sobre pessoas específicas sob circunstâncias especiais onde o
próprio sistema permite uma grande variedade de modos alternativos de ação
legítima" (125). O outro "tipo de variância está no nível dos construtos
normativos diferentes do parente como uma pessoa", colocando no centro a
questão de saber se existe um único ou se existem muitos sistemas de
parentesco americano. Para o autor a resposta é dada pela noção de que "o
sistema de características distintivas, definido e diferenciado em termos de um
símbolo central, constitui um núcleo firme e fico que fornece a característica
distintiva para todo tipo de pessoa. É ao redor dessas características fixas que
ocorre a variação, e pelo menos nesse sentido pode-se dizer que existe um único
sistema de parentesco americano". A variação depende, então, "de variáveis
como a diferenciação de papeis sexuais do sistema de atributos sexuais, e da
diferenciação de classes do sistema de estratificação. A variação na forma da
família, então, é em grande parte uma questão de variação de classe e do
atributo de papel sexual, e não do parentesco ou da família" (126).
III.
Finalmente, Schneider aborda a questão da relação sexual como símbolo
central do parentesco americano como um sistema cultural e para isso,
estabelece algumas distinções. A primeira é que ela pode ser vista como um
conjunto de fatos biológicos, os quais fazem parte do mundo e têm seus efeitos.
A segunda é que há determinadas noções e construtos culturais sobre (acerca
dos) fatos biológicos, que se dão a partir da organização formal das ciências
e/ou de noções e crenças culturais sobre esses fatos, os quais servem de guia
para as ações daqueles que com eles lidam. Além disso, "há uma tendência
muito forte – apesar de ela não ser executada perfeitamente, longe disso – de
ajustar a cultura aos fatos e não vice-versa, e de mudar os construtos culturais
quando eles não se conformam aos fatos" (127). A terceira é que há
determinadas "noções culturais que são colocadas, fraseadas, expressas,
simbolizadas por noções culturais que representam fatos biológicos, ou que
passam por fatos biológicos. (...) O parentesco não é uma teoria sobre a biologia
[nem só um conjunto de fatos biológicos], mas a biologia serve para formular
uma teoria sobre o parentesco".
Os construtos culturais que representam os fatos biológicos também têm
uma qualidade simbólica na medida em que representam algo distinto do que
eles são, "além e mais de sua existência enquanto fatos biológicos e enquanto
construtos culturais sobre fatos biológicos" (128). Os construtos culturais que
representam fatos da relação sexual simbolizam a solidariedade duradoura
difusa, os tipos de relações interpessoais que os humanos precisam ter para
nascer e crescer, para dar continuidade à sua sociedade e à sua cultura. Para isso
ser expresso, ser colocado em prática e guiar de fato as ações das pessoas é
preciso um modelo que exprima aquilo que elas "gostam de pensar que são seus
instintos" (129). "Esses fatos biológicos são transformados, através da
atribuição de significado, em construtos culturais, e eles então constituem um
modelo para o compromisso".

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