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infância
Introdução
Este artigo analisa, a partir das referências conceptuais dos modelos psicodinâmicos,
sistêmicos e sociológicos, os resultados obtidos numa pesquisa efetuada com uma amostra
constituída por 45 jovens do sexo masculino com idades compreendidas entre os 16 e os 25
anos que à data da sua realização cumpriam pena privativa de liberdade no Estabelecimento
Prisional de Leiria.
Na estreita ligação que existe entre o estrato da realidade que constitui a amostra e o
aparelho conceptual que privilegiamos percepcionamos a temática da Delinquência Juvenil
como sendo um fenômeno dialético que deve ser compreendido numa óptica psicossocial e
interdisciplinar dado que a sua análise liga-se a questões da patologia mental e social; neste
sentido justifica-se um particular interesse pela complexidade do significado desta "forma de
adoecer".
Neste contexto, inscrevemos o presente artigo num amplo estudo dos fatores
psicossociais que envolvem a gênese da Delinquência Juvenil, sem menorizar a complexidade
da questão nem pela relatividade sócio-jurídica do conceito nem pela frequente dificuldade de
distinção entre o que é patológico e o que é crise desenvolvimental e visualizamos a
Delinquência Juvenil numa dupla polaridade que abrange duas realidades que se unem uma à
outra: a primeira interrelaciona-se com o âmbito da Psicopatologia do Desenvolvimento, ou
seja, a vida psicológica onde o foco de atenção é o indivíduo autônomo da realidade
envolvente; a segunda refere-se ao Outro, isto é, ao grupo social, entendendo este como uma
realidade independente dos sujeitos que o formam e que estabelecem normas.
Ontem como hoje, a família não pode deixar de ser a estrutura fundamental que molda o
desenvolvimento psíquico da criança, uma vez que é, por excelência, o local de troca
emocional e de elaboração dos complexos emocionais, que se refletem no desenvolvimento
histórico das sociedades e nos fatores organizativos do desenvolvimento psicossocial. Por isso,
torna-se importante o estudo das eventuais variações psicológicas provenientes das
modificações decorrentes no agregado familiar sem desprezar o enquadramento espacial do
mesmo: o meio físico, cultural e social.
A liberalização dos costumes, apesar de, na opinião de alguns, poder estar imbuída de
aspectos negativos, teve a capacidade de trazer para o núcleo familiar uma nova ordem visível
em termos sociais, por exemplo: no desempenho de novos papéis impostos ao homem e à
mulher, no nível da competência enquanto agentes capazes de transmitir valores sociais e
culturais essenciais, a linguagem e o simbólico e como unidade responsável e catalizadora de
todos os processos mentais, isto é, de na e pela relação transmitir afetos e emoções
determinantes para o desenvolvimento e crescimento do indivíduo.
No entanto, não podemos deixar de salientar que ambas acabam por destacar no Homem
duas vertentes: uma a da realidade psíquica, outra a da realidade externa, que se expressam
no comportamento e organização social. Mas este Homem de que falamos é "aquele que entre
as espécies (...) vem ao mundo com maior imaturidade, (...) tem a infância mais longa, (...)
traz (...) mais potencialidades evolutivas e que mais fica dependente do estímulo dos
progenitores" (Malpique, 1990).
Por tudo isto, se justifica o interesse que, atualmente, continuam a ter os estudos sobre
as funções dos progenitores no desenvolvimento psicossocial da criança e do adolescente e a
necessidade de reavaliar o papel daqueles a nível familiar e social bem como o seu peso na
construção equilibrada do futuro adulto.
A função paterna, por seu torno, possibilita uma nova dimensão quer em termos de
funcionamento psíquico quer de inserção social. Representa exigências de comunicação social,
isto é, o pensamento lógico, a linguagem escrita, e veicula as interdições morais, regras de
vida em sociedade, aprendizagem de técnicas e valores culturais.
A nível microscópico, é nítida a fragilização e distorção dos anéis familiares uma vez que
a dissociação a nível psico-afectivo é visivelmente marcante. Esta dissociação constata-se pelo
elevado número de pais ausentes quer pela separação, divórcio, morte e até, se bem que em
número reduzido, pela emigração.
Para além destes devemos considerar, ainda, os pais que estando legalmente casados
estão, no entanto, separados e/ou divorciados emocional e afetivamente. Entre estes os
conflitos são constantes, o que produz tanto ou mais consequências nefastas que a separação
concretizada, mas também o são os conflitos dos pais para com os filhos.
O que constatamos na amostra por nós estudada é o modo como nos surge, sob o signo
da ausência, a enorme deficiência da imagem do pai. Esta ausência deve-se a alterações a
nível do quadro familiar, marcado pela ausência física e relacional seja por divórcio e
separação (14%), ausência por morte (23%) e até emigração (14%).
É também possível que quanto mais a distorção do anel familiar se inscrever no plano da
realidade, isto é, quanto maior for a pobreza das relações intra-familiares, (a lacuna real nas
relações de objeto) quanto mais a ausência do pai se inscrever num processo de realidade,
mais nos encontramos em face de sujeitos dominados por tendências marginalizantes e/ ou
anti-sociais. Estes cada vez mais cedo iniciam um percurso de vida marcado pelas diferentes
perturbações comportamentais: fugas de casa e da escola, prática dos mais diversos tipos de
furto, consumo de drogas e também mais cedo entram em contacto com nas "teias da lei".
"A patologia do pai ausente, como ANDERSON afirmou, acaba por criar no interior do
sistema familiar um vazio a que corresponde um outro vazio, o dos introjectos no interior do
aparelho psíquico da criança. Um pai suficientemente bom, afirma ANDERSON, é tão
importante como a mãe suficientemente boa, de que falou WINNICOTT" (Dias, 1990 cit.
Malpique, 1990).
O fato de: serem sobretudo naturais (76%) e residentes (78%) das grandes cidades;
habitarem bairros de habitação social (37% dos casos) das zonas sub-urbanas; mudarem de
residência com frequência (58% pelo menos já mudou uma vez; 30% entre duas a cinco
vezes); possuírem um agregado familiar que tem em média cinco pessoas; uma fratria que em
33% dos casos abrange entre cinco a sete irmãos (sendo a média de irmãos por fratria de
cinco podendo estar presentes ou já ausentes) e terem por primeiro local de convívio a rua;
são fatores que se constituem como o habitat propício que terão um papel fulcral no aumento
da delinquência juvenil.
Perante uma família que possui uma situação afetiva e sócio-econômica deficiente, os
jovens iniciam o consumo de estupefacientes em média aos 13 anos (86% dos reclusos são
toxicodependentes) e em 68% dos casos recorrem ao furto e ao furto qualificado para adquirir
droga.
Pelo que anteriormente referimos, um dos aspectos cruciais a reter, neste estudo,
relaciona-se com a articulação existente entre a fragilização das introjecções e as dificuldades
de organização do Super-eu como também deste para com o Ideal do Eu. LEBOVICI (1976),
entre outros, teve a oportunidade de referir que uma perca de identidade altera o binômio
Super-Eu/Ideal do Eu, o que se refletirá no comportamento do indivíduo delinquente.
O Ideal do Eu ao ter uma origem sobretudo maternal, logo um caráter narcísico e arcaico,
é definido por FREUD como uma tentativa de encontrar a perfeição narcísica inicial e por
outros autores como estando ligado à onipotência infantil e desejo de fusão à mãe. O aspecto
focado origina, no homem o desejo, sob a forma nova de um Ideal do Eu, de recuperar a
perfeição precoce que lhe foi tirada, já que o que se projeta diante de si como Ideal, é
unicamente o substituto do narcisismo perdido na infância (do tempo aonde ele era o seu
próprio Ideal).
O Ideal do Eu deve ser entendido como um elemento importante dado que possui
peculiaridades próprias ao nível dos aspectos megalômanos infantis, estes são habitualmente
corrigidos pelo Super-eu, com o qual acaba por se fundir no binômio Super-Eu/ Ideal do Eu. O
Ideal do Eu só se torna realizável no contexto do real, é habitualmente corrigido pela
introjecção parental e essencialmente, pela "lei" da imagem paternal.
A observação dos resultados obtidos coloca em evidência uma paragem na evolução dos
bastões fundamentais da estrutura psíquica, isto é, no sistema Super-Eu/ Ideal do Eu.
O que verificamos, nos casos por nós estudados, é que estes jovens perdem as
referências do real uma vez que: com uma média de vinte e um anos de idade; um baixo nível
de escolaridade (88% tiveram insucesso escolar e apontaram como motivo das reprovações
em 28% dos casos desinteresse na aprendizagem e falta às aulas); uma situação profissional
instável, (tanto estão inseridos no grupo profissional que abrange o sector 4 e o 7/8/9 da
Classificação Nacional de Profissões de 1980 como estão sem exercer qualquer atividade) e
sucessivas experiências de reincidência (em que se assiste à repetição do ciclo de passagem
pelo Tribunal/ Julgamento- Estabelecimento Prisional/ Cumprimento de pena- Libertação/
Retorno à delinquência), estão reunidas as condições para que a imaturidade psicoafectiva se
acentue.
A atitude dos pais face às sucessivas privações de liberdade mostra indiretamente o tipo
de investimento/ desinvestimento daqueles para com os filhos, o que sugere também a
distorção das relações inter- pessoais no seio destas famílias. Por isso, o jovem num "último
grito" apela ao Estabelecimento que chame a si os progenitores que de um modo real ou
simbólico estiveram ausentes.
Para quem, como nós, tivemos a percepção do pulsar da instituição, é visível um grande
número de casos em que, pelo menos, o reencontro físico com os progenitores ocorre todos os
fins de semana (esperamos que o afetivo também). Aqueles passam a telefonar e visitar
regularmente o filho (primeiro a mãe e só depois o pai e os irmãos). E estes vêm carregados
não só de produtos alimentares suplementares para os filhos, mas também "sobrecarregados
de esperanças" ou das palavras dos advogados ou do antigo patrão que ainda está disponível
para aceitar o filho quando sair em liberdade.
Para uma sociedade como a nossa que preconiza uma "geração de sucesso", os
itinerários de vida que estes indivíduos tentarão prosseguir serão uma árdua tarefa. De fato,
as imprescindíveis condições de funcionamento psicoafetivo e social adequado à adoção de um
estilo de vida saudável e as condições de vida que a civilização atual impõe aos jovens são
solicitações "facilmente" ultrapassáveis, para uns, mas para "outros" são dificuldades
intransponíveis.
De certo modo, estes jovens prevêem que não se conseguirão adaptar aos estímulos
externos que em nada se adequam aos seus ideais. A realidade sócio-econômica, a situação de
desemprego, a distorção frequente dos anéis familiares seja por existência de conflitos
familiares seja pela ausência da figura parental provoca, ainda mais, numa situação de
privação de liberdade, um intenso sentimento de frustração propiciador ao enraizamento de
uma identidade cada vez mais não adaptativa. Na prisão poderá encontrar um reforço ou uma
continuidade de perturbação da identidade, o que dificultará o restabelecimento adequado dos
processos identificatórios parentais, sócio-culturais e ambienciais.
O Eu não dispõe de condições para se fortalecer uma vez que lhe falta o suporte de uma
família coesa, de uma sociedade com valores definidos que facilite a inserção em termos
profissionais, antes encontra condições psicossociais que solidificam a "difusão da identidade"
ou a "identidade negativa".
Com base nas já referidas "doenças da idealidade", ao nível arcaico -os ideais do Eu- que
condicionam o equilíbrio do Eu, podem arrastá-lo para regressões sob a forma de depressões,
toxicomania, perturbações de caráter. A um nível mais evoluído, orientado para o narcisismo e
suas aspirações -o Eu ideal- surgem as "doenças de anidealidade" que se traduzem nos jovens
por falta de criatividade, vazio, ausência de objetivos e de esperança (Luquet, 1973).
Intimamente relacionada com a temática que temos vindo a abordar, isto é, com a
adequada ou inadequada articulação estabelecida entre o binômio Super-Eu/ Ideal do Eu estão
as inevitáveis perturbações da comunicação.
Estas podem-se gerar em aspectos cruciais determinantes para a avaliação da
comunicação do sujeito quer no interior da família quer no estabelecimento de relações
interpessoais em geral.
Os comportamentos referidos deverão ser analisados num duplo registro, uma vez que
estão diretamente relacionados com os processos de pensar, a dificuldade inerente ao pensar e
ao déficit de mentalização característicos dos indivíduos que manifestam perturbações
comportamentais de que a tendência para o 'acting out' é uma manifestação exemplar de fuga
ao que é angustiador no interior de Si.
Assim, o sujeito ao pensar deixa de lidar com as representações globais dos objetos para
empregar sinais arbitrários ou adquiridos pela socialização. Neste contexto, é possível
compreender o 'acting out' como forma de proteção da dor mental. O aparelho psíquico
descarrega ou pela inibição (porque se detém o poder de controlo das forças biológicas e das
pressões sociais) ou pela descarga impulsiva.
Esta constatação permite demonstrar não só que a fragilização das introjecções remonta
à precocidade do desenvolvimento do sujeito como também que as problemáticas
delinquenciais estão irremediavelmente ligadas por um encadeamento de sucessivas
perturbações anti-sociais, que terão como ponto culminante as repetições constantes e
periódicas da privação de liberdade.
Um dos aspectos que demonstram esta precocidade a que nos temos vindo a referir é
visível no número impressionante de indivíduos que, na amostra, revelam fuga quer de casa
(52%), quer à escola (78%) quer mesmo a fuga do Estabelecimento de Reeducação (entre os
casos que passaram pela instituição tutelar enquanto menores) (16%).
No que se refere à fuga da escola autores como DANZINGER (1959), MAUCO (1967),
POSTIC (1984) (cit. Fetue, 1984) explicam-na pela insuficiente aprendizagem no ambiente
familiar das figuras representativas da autoridade, o que justificará a dificuldade em aceitar a
figura simbólica do professor.
É na escola que a criança se confronta com o lugar de "lei", mas também com a
possibilidade de transgredir, projetar os conflitos e dificuldades de adaptação sobre o professor
e sobre a escola, o que determina a resposta de fuga.
Quando a família falha as suas funções, a escola poderá desempenhar uma função
"terapêutica" proporcionando condições de transmissão de aprenderes fundadores que
permitam a aprendizagem, dinamizem o pensar e o pensamento, a reflexão e o sentir, isto é,
condições que possibilitem o crescimento do indivíduo.
A escola, é de fato, tal como estudos realizados demonstram, o local mais indicado para
detectar e diagnosticar fatores de risco como as perturbações de comportamentos de que a
fuga e as ações constantes que envolvam agressão e violência são somente um dos exemplos
porque se manifestam precocemente e com maior nitidez.
Por tudo isto, se sente cada vez mais a necessidade de defender a elaboração de um
plano específico de Prevenção da Delinquência; este deverá ser articulado com outras áreas
problemáticas (toxicodependência, sida, suicídio juvenil) para que os sintomas, os sinais de
alarme que traduzem sofrimento psicológico se possam diagnosticar o mais precocemente
possível.
Conclusão
A recusa em aprender manifesta-se pela fuga de casa e depois da escola o que torna
inviável o estabelecimento de uma relação de afetividade seja com as figuras parentais seja
com a figura simbólica do professor. Sendo nítida esta negação é também concebível a recusa
para aprender a pensar, sentir e crescer uma vez que também as funções emocionais e
relacionais dentro e fora da família, que têm um impacto importante nas diferentes
aprendizagens foram bloqueadas e deixaram no indivíduo feridas narcisícas e sequelas
psicossociais irreversíveis.
Nesta perspectiva, pensamos que o despontar deste interessante campo de estudo, que
une a patologia mental à social, concebe a análise psicossocial da Delinquência Juvenil
orientada para a leitura das realidades e ambientes que a envolvem como centra a sua
temática sob o ângulo da concepção negativa de Si e dos afetos depressivos no indivíduo, de
que o 'acting out' é uma manifestação defensiva contra os afetos nomeados.
Resumo
Finalmente, o terceiro vetor visa articular o aspecto da precocidade com que os jovens
enveredam por expressões de tendência anti-social seja na família com a fuga desta seja nos
grupos sociais com a fuga à escola.
Referências Bibliográficas
BERGERET, J.; LEBLANC, J. (1988), Précis des Toxicomanies. Paris, Masson, 2ªed.
GRINBERG, L.e all.(1973), Introdução às Ideias de Bion. Rio de Janeiro, Imago Editora.
LUQUET, Pierre (1973), "Les ideaux du Moi et L'ideal du Je", in Rev. Française de
Psychanalyse. 5-6, XXXVII, P.U.F., Paris, p.1007-1013.