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Resumo: Muitos podem ser os referenciais em que se pode fundamentar uma clínica psicoló gica. Partindo de um diá logo afina-
do com as filosofias de Kierkegaard e Heidegger, a perspectiva fenomenoló gico-existencial poderá firmar sua posição de que a
clínica consiste em um espaço de conquista de si mesmo. Neste artigo pretendemos colocar em discussão o posicionamento crí-
tico de Kierkegaard a respeito do modo como a ciência, a sabedora de vida e a autoajuda prescrevem aquilo que o homem deve
fazer para evitar o tédio, a repetiçã o e o ó cio. Em Heidegger, traremos a discussão acerca das tonalidades afetivas da angú stia
e do tédio, sugerindo que antes de nos distrairmos, de modo a não nos confrontarmos com estes estados de ânimo, é preciso
despertar para tais tonalidades, uma vez que são elas que abrem a possibilidade de um rompimento com o horizonte fá tico se-
dimentado, o qual nos faz crer que com a ciência, a sabedoria de vida e a autoajuda podemos transformar as contingências de
acordo com a soberania da vontade.
Palavras-chave: Psicologia Clínica; Fenomenologia; Filosofia da Existência
Abstract: Many approaches may be used for basis of psychological practice. Stemming from the philosophies of Kierkegaard
and Heidegger, the phenomenological-existential perspective can establish its position in the fact that the clinic exists in the
realm of self-conquest. Our intention in this article is to examine Kierkegaard’s position related to how science, knowledge of
life and self-help prescribe what a man should do to avoid boredom, repetitiveness and idleness. In Heidegger, we discuss the
affective tonality of anguish and boredom, emphasizing that before we attempt to amuse ourselves, in order to avoid confront-
ing the aforementioned states of mind, it is necessary to be aware of such states, as they open the possibility of a break from the
phatic sedentary realm, which leads us to believe that with science, the knowledge of life and self-help we can transform the
contingencies according to the sovereignty of will.
Keywords: Clinical Psychology; Phenomenology; Philosophy of Existence
Resumen: Muchos pueden ser los puntos de referencia que se puede basar en una clínica psicoló gica. Desde un diá logo en sin-
tonía con la filosofía de Kierkegaard y Heidegger, la perspectiva existencial-fenomenoló gico podría reforzar su posició n de que
la clínica consiste en una conquista del espacio por sí mismo. En este artículo nos proponemos poner en debate la posició n crí-
tica de Kierkegaard acerca de la ciencia moderna, la sabiduría de la vida y la autoayuda prescribirem lo que el hombre debe ha-
cer para evitar el tedio y la angustia. En Heidegger traerá la discusió n del tono afectivo de la angustia y el tedio, señ alando que
antes de que se distraiga, por lo que no se enfrentan estos estados de ánimo, hay que despertar a estas tonalidades, al igual que
las que se abren posibilidad de una ruptura con el horizonte historico atual, que nos hace creer que con la ciencia, la sabiduría
en la vida y la auto-ayuda pueden acudir para contingencias, de conformidad con la soberanía de la voluntad.
Palabras-clave: Psicología Clínica; La Fenomenología; La Filosofía de la Existencia.
Introdução
gó gico, que tem como base os ensinamentos da filosofia,
na autoajuda aquele que orienta acredita saber como se
A clínica psicoló gica, pautada na filosofia da exis-
deve proceder para atingir resultados. Há ainda aqueles
tência e no método fenomenoló gico, pode muito facil-
que avaliam a clínica psicoló gica como uma “sabedoria
mente ser confundida com a filosofia clínica. Aliá s,
na vida” (Schopenhauer, 1953).
muitas questõ es surgem quanto à diferença entre essas
Numa clínica fenomenoló gico-existencial, nenhum
duas perspectivas. A clínica psicoló gica também acaba
dos posicionamentos expostos acima é tomado como o
sendo, muitas vezes, confundida com a autoajuda, tanto
cerne do processo, que encontra seus fundamentos na fe-
que, muito frequentemente, aqueles que se encontram no
nomenologia e na filosofia da existência. Da
processo clínico perguntam ao psicó logo o que devem
fenomenolo- gia, o analista assume a postura
Artigo
imprevisibilidade do existir, não sendo pertinente, nes- de cada homem. Ao romper com a dicotomia homem e
te sentido, tutelar o outro em suas escolhas, orientar ou mundo, a ênfase da existência passou a recair sobre a ar-
indicar caminhos, seja a partir de filosofias, de experi- ticulação homem/mundo em uma atmosfera que propi-
ência de vida ou, ainda, de modelos empíricos que cia as vinculaçõ es. Logo, não é mais uma subjetividade
ditam verdades a partir do cô mputo estatístico ou de apartada do mundo que o define e determina. A
sistemas ló gicos que pressupõ em postulados dos quais vontade perde a soberania para a afinação afetiva.
se dedu- zem todas as verdades. Deste modo, caem por terra as autoajudas, as orientaçõ es
Os filó sofos da existência trazem riquíssimas contri- e prescriçõ es dos especialistas e as verdades do senso
buiçõ es para que possamos pensar a clínica psicoló gica, comum como as sabedorias de vida.
prescindindo dos referenciais de verdade tais como to-
mados pelos especialistas da ciência, pelas sabedorias
de vida ou pela autoajuda. Discussõ es sobre os diferen- 1. As Temáticas Kierkegaardianas: Comunicação
tes modos de aconselhar, sobre a dicotomização da Indireta, Tédio e Repetição
exis- tência, da angú stia, do tédio e do cuidado, dentre
outras, serão tratadas aqui a partir dos filó sofos O tema da obra de Kierkegaard como um todo é o da
Kierkegaard e Heidegger, para então podermos pensar o existência, especificamente o desafio de ser-si-mesmo
espaço de rea- lização de uma clínica psicoló gica que, numa existência que clama por justificar-se, não somente
longe de apontar caminhos, devolve ao homem o no presente e no contingente, mas sumariamente clama
cuidado por sua existên- cia, ou seja, a sua pró pria por uma justificativa eterna na existência. Eterno, em
tutela. Kierkegaard, diz respeito à possibilidade da repetiçã o
Sö ren Kierkegaard (1813-1855) elaborou sua filosofia enquanto uma justificativa que pode se repetir, sempre
da existência em muitos textos, grande parte deles uma vez mais, pois é uma justificativa eternamente ne-
escri- tos sob pseudô nimos, nos quais tece criticas cessária, ou seja, independentemente da situaçã o vivida
àqueles que aconselham e tutelam, apontando, algumas ela continua sendo minha justificativa. Essa repetiçã o
vezes, para os perigos que a tutela, o conselho ou a eterna diferencia-se da justificativa no temporal, que se
orientação podem trazer, tanto para o aconselhador como refere às situaçõ es vividas contingencialmente e que se
para o aconselhan- do. Destes textos podem ser justificam apenas em cada situaçã o especifica.
destacados vários tipos de conselheiros, submetidos aos Foi por captar o caráter multifacetado e complexo
modos estético, ético ou reli- gioso. Kierkegaard refere-se do existir que o filó sofo dinamarquês escreveu utilizando-
ao conselheiro estético como aquele que aconselha a partir se de uma metodologia indireta, por meio de pseudô nimos
de sua pró pria experiência: “deu certo para mim também e falando através de personagens e de situaçõ es vividas
dará certo para o outro”. O conselheiro estético é aquele por estes, de forma que o leitor pudesse, à medida que
que acredita na repetiçã o da experiência, e mais, que lesse cada texto, ver a si mesmo e julgar a si mesmo,
pensa que o caráter da repetição é uma prova da exercen- do a tarefa excelsa de ser-si-mesmo em meio
validade da verdade estabelecida. O con- selheiro ético é ao já-estar- sendo de algum modo no existir
aquele que pensa que o conselho deve se- guir o caráter da cotidiano.1
norma, da lei tal como estabelecida pelo universal. Não foi Muitos que procuram a psicologia clínica queixam-
aleató ria a escolha feita por este filó sofo em usar a pessoa se de depressão. No exercício de uma clínica
de um juiz como pseudô nimo ético. O conselheiro fenomenoló gi- co-existencial o outro nunca se mostra
religioso seria aquele que devolve ao outro a decisão por meio de uma categoria de diagnó stico, mas, diante
sobre os critérios nos quais pautar as escolhas para a dele, o clínico as- sume uma atitude antinatural, que
sua vida. Este conselheiro, em uma comunicaçã o consiste em suspen- der todos os esclarecimentos
indireta, devolve o outro a si mesmo, comportando-se de prévios, de forma a poder acolher o outro tal qual ele se
forma que aquele que lhe pede um conselho possa ouvir mostra. Desta forma, ins- pirados nas reflexõ es de
a si mesmo e julgar por si mesmo. Kierkegaard sobre o tédio, por exemplo, o clínico
Em Heidegger (1889-1976) podemos encontrar uma assume um posicionamento sem pre- conceitos,
crítica à tendência a se ditarem caminhos por intermédio deixando de assumir as referências do senso comum,
de um método que conduza à certeza. Para ele, a que tende a compreender o tédio como o enfado da vida
verdade como representação está enraizada na cotidiana, o qual provoca, imediatamente, um impulso
dicotomia tradi- cional entre sujeito e objeto, dicotomia de repulsão, manifestado ora pela vontade de escapulir
esta que provo- ca o total esquecimento da existência e dele mediante ocupaçõ es, ora pela tendência a se
a crença de que tudo que diz respeito à fragilidade e acomodar à “vida pra levar”. Na perspectiva do senso
vulnerabilidade hu- manas, inclusive à sua finitude, comum, a repetiçã o cotidiana é experimentada como um
deveria ser superado. Heidegger apresentou suas teses fardo para o qual não há saída. Nessa situação os conse-
Artigo
sempre com o objetivo de retornar à existência e, lheiros normalmente oferecem sugestõ es como entregar-
assim, procedeu à análise do
modo de ser do homem, que ele denominou de Dasein.
Heidegger abalou a noção tradicional de que a vontade teria soberania e determinaria as escolhas e o destino
Ana M. L. C. de Feijoo & Myriam M. Protasio
1
As palavras hifenizadas reverenciam aquilo já captado por
Heide- gger, a impossibilidade de encontrar palavras simples
que possam abarcar a complexidade da experiência que está
para ser descrita.
se à diversã o, aos afazeres, enfim, não parar para pensar, manual de sabedoria na vida. Nestes termos o autor, de
o aconselhamento dando-se no sentido de evitar qualquer certa forma, devolve o leitor a si mesmo, para a tarefa
pronunciamento desta tonalidade afetiva, tal como deno- de esclarecer seu pró prio modo de lidar com o tédio
minada por Heidegger. carac- terístico da existência.
Serão tomados, aqui, três textos kierkegaardianos, No outro texto, “O estético e o ético na formação
os quais fazem parte de sua grande obra pseudonímica, da personalidade”, o autor, Juiz Wilhelm, é, ao que
a partir dos quais se pretende discutir o tema do acon- tudo in- dica, um homem mais velho, casado, e que
selhamento e de suas consequências. São eles, “Rotação quer trans- mitir ao jovem, à guisa de parâ metro
dos cultivos”, “O estético e o ético na formação da comparativo, seu pró prio modo de enfrentar a vida
perso- nalidade” e “A repetição”. Os dois primeiros cotidiana em seu fluir temporal e em suas
integram a obra Ou...ou. O primeiro pertence ao determinaçõ es. Assume, nessa tare- fa, um tom
volume I e foi assi- nado por um certo “A”. O texto professoral e conselheiro. Ele quer provar ao jovem que o
seguinte está no volume II da mesma obra e foi sensual, a beleza e o prazer também têm lu- gar numa
assinado pelo Juiz Wilhelm. Esse livro, em seus dois existência que tem seus fundamentos na cora- gem de
volumes, foi editado por Victor Eremita (Kierkegaard, assumir compromissos regulares e que prometem longa
2006, 2007). O terceiro texto, cujo título é “A duração no tempo. Para ele o cotidiano e o habitual não
repetição”, foi assinado por Constantin Constantius são, necessariamente, um abandono de uma existên- cia
(Kierkegaard, 1976). Todos foram escritos em 1843. leve e movida pela sensualidade, mas sim oportuni-
A escolha por falar a partir destes três textos se dade para uma transfiguraçã o do sensual e do singular
deve à constataçã o de que nos três se encontra em num plano universal. Para dar voz ao seu apelo escreve
discussã o uma crítica às relaçõ es nas quais as orientaçõ es uma longa carta ao jovem, dando-lhe todas as diretri-
dadas se pautam ou em uma teoria (orientaçã o ética) ou zes que certamente o levarão a sair de sua situaçã o para
em uma experiência pessoal (orientação estética). Este uma bem melhor.
trabalho pretende recolher algumas destas contribuiçõ es Ao contrá rio dos conselhos dados pelo jovem, no
e pensar sobre o aconselhar nas temáticas do tédio e da pri- meiro texto, os conselhos do Juiz apontam na
repetição, apontando para o modo como as reflexõ es direção da decisão e do comprometimento, não um
deste filó sofo podem ser elucidativas para a clínica comprometimen- to com uma coisa ou outra, com uma
psicoló gica e, assim, esclarecer os elementos de uma atividade ou outra, mas um compromisso consigo
relação em uma clínica fenomenoló gico-existencial. mesmo. O Juiz proclama como maior tesouro a escolha,
No primeiro destes textos, “Rotação dos cultivos”, pois acredita que é jus- tamente o ato de escolher que
o autor usa como referência para seus conselhos algo confere ao homem uma solenidade, uma serena
que podemos denominar – plagiando Schopenhauer –, dignidade que jamais se perde completamente, pois no
de “Sabedoria na vida”, que tem como fundamento a momento da escolha tudo se faz sereno, a alma fica só e
crença de que é possível prescrever procedimentos que, o eu recebe a si mesmo. Afirma que a personalidade não
segui- dos, garantirão o bem-estar existencial e a é nada antes de haver escolhido a si mesma, pois a
ausência do tédio. Nosso autor, o pseudô nimo “A”, grandeza não está em haver escolhi- do isto ou aquilo,
prescreve que se utilize o método da rotação dos mas em haver escolhido a si mesmo, e todo homem
cultivos que, inspirado na ló gica do homem do campo, pode se escolher.
tem duas possibilidades: ir mudando de “terreno”, ou Se no texto das “Rotações” o “comprometer-se” apa-
seja, ir trocando de lugar e, desta forma, iniciar sempre rece como o precursor do tédio, ao trazer a
algo novo, ou ir mudando o modo de cultivo, ou seja, regularidade produtora de enfado para a existência, no
controlar o modo como se en- volve nas situaçõ es de segundo texto o que surge é uma possibilidade de
modo a poder exercitar outros modos logo que a situação ganhar a si mesmo em meio à regularidade de uma vida
aponte para um compromisso que ocasionaria o enfado regida pelo com- promisso com as regras. O Juiz
da repetiçã o. Utilizando-se da ironia, tal qual pensada insiste na importância da escolha pelo compromisso,
por Kierkegaard em sua tese de doutorado “O conceito que é propriamente o que descreve um posicionamento
de ironia” (1841/1991), e que im- plica um método de ético na existência. A vida ética, em sua regularidade,
reflexão, uma linguagem que possi- bilita que aquele aparece como promessa de felicidade e plenitude,
que ouve ou que lê possa ver-se refleti- do e, assim, advinda da tranquilidade vivida na repetição. O homem
vendo a si mesmo no texto, refletir sobre sua pró pria ético descobre o prazer em uma vida sem surpresas,
existência, o autor apresenta uma situaçã o que tanto regrada e ritmada pelo hábito, e isso para ele é
pode ser seguida ao pé da letra, quando se acredi- ta na propriamente ser livre.
possibilidade de se escapulir do tédio, como pode servir É no interior da experiência ética que advém o pra-
de alerta para a realidade da vida, à qual perten- ce zer, na medida em que se descobre o universal da vida.
Artigo
tanto o ó cio quanto a repetição. Mas estas situaçõ es Se para o homem esteta o universal é aquilo que aniqui-
guardam consigo outras possibilidades além do tédio e la a vida sensível, para o homem ético é a regularidade
do enfado, possibilidades que precisam ser experimen- e a cadência da vida rotineira que confere um caráter de
tadas singularmente e não podem figurar dentro de um cerimô nia à sequência dos acontecimentos vividos. O
169 Revista da Abordagem Gestáltica – XVI(2): 167-172, jul-dez, 2010
perigo aqui é o da submissão do si mesmo às regras, é o
Referências
fundamentais da metafísica.
São Paulo: Forense-Universitária.