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ARTIGOS

Psicologia & Sociedade, 29: e119584

A Psicologia no CRAS: um estudo de representações


sociais
La Psicología en el CRAS: un estudio de representaciones
sociales
The Psychology at CRAS: a study of the social
representations
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29119584

Vinicius Tonollier Pereira e Pedrinho A. Guareschi


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil

Resumo
Este artigo, parte de uma pesquisa de dissertação, objetiva compreender as representações sociais construídas
sobre as famílias em situação de vulnerabilidade social. O estudo do qual este trabalho faz parte procurou investigar
e analisar as representações sociais de profissionais da psicologia que atuavam em Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS) sobre os usuários desse serviço, considerado a “porta de entrada” do Sistema Único
de Assistência Social (SUAS). Entrevistaram-se 21 psicólogas. Entre os resultados, observou-se a existência
de uma culpabilização das famílias pela situação de vulnerabilidade social em que vivem, evidenciando assim
uma representação social individualista e familiarista, capaz de produzir a psicologização e familiarização dos
problemas sociais e a responsabilização das famílias por questões que têm origem, na verdade, em dinâmicas
sociais, políticas e econômicas complexas.
Palavras-chave: psicologia; assistência social; CRAS; vulnerabilidade social; representações sociais.

Resumen
Este  artículo, parte de una  búsqueda  de  disertación,  con el objetivo  de  comprensión de  las representaciones
sociales construidas sobre las familias en situación de vulnerabilidad social. El estudio del cual este trabajo es
parte busco investigar y analizar las representaciones sociales de profesionales de psicología que actuaban en
Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS) sobre los usuarios de este servicio, considerado la “puerta
de entrada” del Sistema Único de Asistencia Social (SUAS). Se Entrevistó 21 psicólogas. Entre los resultados, se
observó la existencia de una culpabilidad de las familias por la situación de vulnerabilidad social en que viven,
evidenciando así una representación social individualista y familiarizada, capaz de producir psicologización  y
familiarización de los problemas sociales que responsabilizarían a las familias por cuestiones que tienen origen,
en la verdad, en dinámicas sociales, políticas y económicas complejas.
Palabras clave: psicología; asistencia social; CRAS; vulnerabilidad social; representaciones sociales.

Abstract
This article, part of a masters’ research, aims at problematizing some of the social representations constructed on
families in situation of social vulnerability. The study seeks to investigate the social representations of psychologists
working at CRAS (Centro de Referência de Assistência Social / Reference Center for Social Assistance) towards
users of that service since CRAS is considered the doorway to SUAS (Sistema Único de Assistência Social/
Social Assistance Universal System). Twenty-one psychologists have been interviewed. Results points to the
culpabilization of families for their situation of social vulnerability. It reveals an individualistic approach to a
representation that is social and family-focused which leads to the psychologization of social problems and the
misattribution of blame and responsibility to families for issues that emerge from complex social, political and
economic dynamics.
Keywords: psychology, social work; CRAS; social vulnerability; social representations.

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Pereira, V. T. & Guareschi, P. A. (2017). A psicologia no CRAS: um estudo de representações sociais.

Introdução centralidade dos pressupostos representacionais dos


profissionais na determinação de suas práticas de
trabalho.
O advento do SUAS (Sistema Único de
Assistência Social) inseriu definitivamente a A família e o Sistema Único de Assistência Social
psicologia no campo da assistência social, já que (SUAS)
a presença de profissionais psicólogos é prevista e
inclusive obrigatória, em alguns casos, na composição A família compõe um dos eixos estruturantes do
das equipes dos dois principais serviços de proteção SUAS, considerada como “núcleo social fundamental
social que estruturam essa política: CRAS (Centro de para a efetividade de todas as ações e serviços da
Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de política de assistência social” (MDS, 2009, p. 12). O
Referência Especializado de Assistência Social). modelo familiar preconizado pela Política Nacional de
A Proteção Social Básica (PSB), foco deste Assistência Social (PNAS) (MDS, 2004) a define como
estudo, materializada nos CRAS, unidades públicas um “conjunto de pessoas que se acham unidas por
estatais localizadas geralmente nas áreas de maior laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade”
pobreza e vulnerabilidade social, tem como objetivo (p. 35), não existindo enquanto modelo idealizado,
evitar situações de risco, desenvolvendo potencialidades mas sim a partir de uma pluralidade de arranjos. Ou
e fortalecendo vínculos familiares e comunitários seja, uma abordagem que ultrapassa – ou deveria
(MDS, 2004). Algumas atividades realizadas pelas ultrapassar – visões moralistas e disciplinadoras que
equipes dos CRAS, incluindo a psicologia, são enquadram as famílias em normas e convenções,
descritas pelos cadernos e normativas do SUAS, como desconsiderando a história, o universo cultural e o
o acompanhamento de famílias e as visitas domiciliares sistema sociorrelacional onde estão inseridas (Yazbek
(MDS, 2009). Contudo, a justificativa para este estudo et al., 2010). Corroborando com essa definição está
é que há outro determinante decisivo no trabalho dos o trabalho de Fonseca (2002), que mostra o quanto
técnicos da assistência social, para além das práticas o lugar da família nuclear tradicional como norma
já prescritas nesses documentos: as representações hegemônica vem sendo questionado na atualidade,
sociais que os profissionais possuem sobre as famílias evidenciando que dinâmicas familiares “alternativas”
e usuários(as), que acabam sendo decisivas na forma têm se tornado cada vez mais legítimas no Brasil
como as intervenções são desenvolvidas. contemporâneo.

Outros estudos corroboram com essa perspectiva, Porém, as representações sociais visibilizadas
ao considerar as ideias e os valores dos profissionais neste trabalho comprovam a existência ainda de ideias
como decisivos em seu fazer cotidiano. Yazbek et al. sobre a inadequação e desajustes das famílias usuárias
(2010) afirmam que o trabalho social desenvolvido da assistência social, a partir da histórica fixação em
no CRAS pode ser tanto portador de tutela e coerção um modelo nuclear burguês e tradicional, típico de
como de autonomia e emancipação, o que depende uma compreensão própria de uma psicologia centrada
em parte das representações dos profissionais que no indivíduo e no núcleo familiar e de uma sociedade
condicionam uma ou outra prática. Nery (2009), em igualmente estruturada com base na família. Esse
sua tese, percebe um vazio teórico e metodológico modelo, conforme Fávero (2007), pressupõe uma
na atuação dos profissionais nos CRAS investigados, família nuclear monogâmica, formada por pai, mãe
o que pode acabar enaltecendo a dimensão pessoal e filhos, vivendo juntos num mesmo espaço, onde
dos profissionais e de suas concepções. Já Costa e cabe ao pai o provimento através do trabalho (espaço
Cardoso (2010) fazem um importante diagnóstico, ao público), e à mulher os cuidados da casa e dos filhos
afirmarem que as orientações normativas do CRAS (espaço privado), convivendo harmoniosamente em
deixam espaço tanto para práticas assistencialistas um ambiente bem cuidado, afetivo e provido de bens
como para práticas transformadoras; o que diferencia materiais, descrição que pode parecer ultrapassada,
o tipo de conduta é a leitura do profissional e de mas que, de fato, ainda está presente, como se
como ele articula isso a seus conhecimentos para depreende em diversas falas que compõem este estudo.
intervenções que contribuam ou não para mudanças Para Chauí (2011)1, esse modelo familiar
sociais mais profundas. Portanto, fica evidente o está inscrito na própria estrutura social brasileira,
quanto, para além da formação teórica e acadêmica, que segue o modelo do núcleo familiar e de
as posturas éticas e políticas – ou as representações hierarquização, sendo o esperado que as relações
sociais compartilhadas pelos profissionais – acabam sociais se estabelecem assimetricamente, devido a
sendo decisivas na condução das políticas públicas, uma dificuldade de perspectiva igualitária. Por isso é
sustentando assim a tese deste artigo sobre a comum que exista o estranhamento de famílias com

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modos diversos de organização: não comandadas pesquisador. As entrevistas foram realizadas entre
por homens e/ou chefiadas por mulheres, ditas março e julho de 2012. No total, foram entrevistadas
desorganizadas ou muito numerosas. 21 psicólogas. No decorrer do artigo serão chamadas
abreviadamente de P1 (participante 1), P2, P3 e assim
O conceito de vulnerabilidade social sucessivamente, até a P21. As entrevistadas são
oriundas de 20 CRAS diferentes, de 14 municípios
Neste artigo, adota-se a definição de do Rio Grande do Sul. Desses, de acordo com a
vulnerabilidade social tecida pela Tipificação Nacional classificação do SUAS (MDS, 2004), dois são de
dos Serviços Socioassistenciais (MDS, 2009, p. 7), que pequeno porte I (até 20.000 habitantes), três de pequeno
a concebe como “decorrente da pobreza, do precário porte II (de 20.001 a 50.000), dois de médio porte
ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização (50.001 a 100.000), seis de grande porte (100.001 a
de vínculos de pertencimento e sociabilidade”. Ou 900.000) e uma metrópole (mais de 900.000). A média
seja, não somente associada à pobreza econômica, de idade ficou em 32,5 anos, tendo a participante mais
mas correlacionada a uma multiplicidade de fatores, velha 58 anos e a mais nova 24. O tempo médio de
constituindo hoje um novo conceito, alcançando planos anos transcorridos após a conclusão de graduação é de
políticos, morais e espirituais, através da desigualdade 7 anos, sendo o maior tempo de 27 anos e o menor
de acesso aos direitos, de informações, de poder, de de 1 ano e 6 meses. Cerca de 70% se formaram em
possibilidades e oportunidades, situações de risco e universidades particulares, sendo as outras 30%
empobrecimento das redes sociais, discriminação por oriundas de universidades federais. O tempo total de
questões de etnia, cultura e gênero, dentre outros. A trabalho em CRAS é, em média, 1,8 anos. O maior
vivência dessas precariedades se origina em dinâmicas tempo de trabalho em CRAS foi de 6 anos e 6 meses e
sócio-históricas discriminatórias, resultado dos jogos o menor de 4 meses. O tempo médio de carga horária
de poder da sociedade, relacionadas aos processos semanal foi de 30 horas, sendo as maiores de 40 horas,
de produção e reprodução de desigualdades sociais e a menor de 16, discrepante dos dados do Censo
e da violação de direitos. Em última instância, a SUAS 2009 (MDS, 2011), que trazem que 51% dos
consequência da vulnerabilidade social para os usuários profissionais de ensino superior cumprem 40 horas
da assistência social é a convivência permanente semanais. Quanto ao vínculo empregatício, a maioria,
com uma série de violação de direitos que, embora 13 delas, eram servidoras estatutárias, enquanto 8
garantidos constitucionalmente, estão ainda longe de tinham contratos temporários, realidade melhor que a
serem realmente assegurados na “vida vivida”. apresentada pelo Censo SUAS 2010 (MDS, 2010), que
Embora a definição teórica de vulnerabilidade indica que apenas 35,6% dos servidores com ensino
seja mais complexa e passível de ser mais bem superior nos CRAS do país são concursados.
problematizada, para fins deste artigo se opta por A presença única de mulheres está em
essa definição “oficial” com o objetivo de ressaltar, consonância com os dados de Macedo et al. (2011),
especialmente, que este é um conceito que está que indicam que, do total de 8.079 psicólogos(as) que
para além da pobreza econômica, sendo que a atuavam em CRAS no Brasil em 2011, 89,6% eram
vivência de condições de vulnerabilidade atravessa mulheres, evidenciando a preponderância do público
permanentemente a vida das famílias usuárias do feminino. Isso tem a ver com a maior presença feminina
CRAS, objeto deste estudo. que a masculina nos cursos de psicologia, e também
nos de serviço social, que fazem com que a assistência
Metodologia social seja uma política predominantemente feita por
mulheres. No Rio Grande do Sul, segundo os mesmos
O objetivo da pesquisa de dissertação do qual autores, em torno de 400 psicólogos(as) atuam em
este artigo faz parte foi o de investigar e analisar as CRAS, sendo relevante que se tenha entrevistado cerca
representações sociais de profissionais da psicologia de 5% desses(as) profissionais nesta pesquisa, embora
que atuam em CRAS sobre os(as) usuários(as) desse não se esteja interessado nos números de opiniões
serviço. Para tanto, optou-se por entrevistas abertas, nem em generalizações absolutas dos achados. Essa
a fim de melhor explorar as diferentes representações significância apenas indica que se tem uma boa gama
acerca do tema. de representações a explorar.

Participantes Procedimentos para a entrevista

Os participantes do estudo foram reunidos Antes das entrevistas, as participantes tomaram


por conveniência, em CRAS de mais fácil acesso ao ciência do Termo de Consentimento Livre e

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Pereira, V. T. & Guareschi, P. A. (2017). A psicologia no CRAS: um estudo de representações sociais.

Esclarecido, assinando-o ao concordar em participar vez torne o conteúdo familiar, para que seja possível
da pesquisa, sendo informadas da possibilidade de a organização em campos temáticos, mais gerais
desistência a qualquer tempo. Um tópico-guia auxiliou no início. Em seguida, acontece uma análise mais
na entrevista, tentando, contudo, preservá-la o mais profunda, em que se refinam as primeiras análises.
livre possível. O tópico-guia foi composto por cinco Embora o material seja categorizado, não significa
itens: (a) “Quem são os usuários do CRAS e como que ele não suporte contradições e fragmentos.
caracterizá-los?”; (b) como são as famílias usuárias do Pelo contrário, já que as representações sociais são
CRAS e como caracterizá-las; (c) como é a vida desses totalmente afeitas à ambivalência.
sujeitos (em termos de rotina e cotidiano, o que ia sendo
Vale lembrar que a análise de discurso é uma
explorado a partir de mais perguntas de acordo com
maneira de ler o texto, existindo outras. A partir dela
o que era trazido pelas entrevistadas); (d) há aspectos
se tem uma interpretação cuidadosa do material,
dos usuários que podem ser vistos como obstáculos
sendo que a validade reside na descrição minuciosa
para a efetivação das propostas do CRAS/SUAS e, se
do pesquisador sobre seus passos, como se tenta fazer
sim, quais são eles; e, por fim, (e) se há aspectos dos
aqui.
usuários que podem ser vistos como positivos e que
contribuam para a efetivação da proposta do CRAS/
SUAS e, caso existam, quais são eles. Resultados
A definição por 21 entrevistas obedeceu ao
critério de saturação indicado por Bauer e Aarts Os resultados foram organizados em três campos
(2008), no qual as entrevistas vão sendo realizadas, temáticos. O primeiro deles tem como representação
produzindo diferentes representações e um bom central a pouca presença masculina, ou a crise dos
volume de dados, até que a inclusão de novos homens, já que geralmente são pouco presentes,
participantes não acrescente mais tantos dados exercendo um papel secundário, “apagado” ou
inéditos ou significativamente relevantes. Ou seja, negligente nas famílias, que são comumente dirigidas
mais entrevistas não levariam necessariamente a um por mulheres. Essas sim são apontadas como figuras
entendimento mais detalhado, existindo uma confiança fortes, responsáveis quase que integralmente pelo
crescente na compreensão do fenômeno à medida que cuidado do grupo familiar, como pode se observar
vão sendo realizadas as entrevistas. Bauer e Aarts pelos sentidos presentes nas falas das participantes.
(2008) indicam que o número entre 15 e 25 entrevistas
O segundo campo temático abrange o que é
individuais é o máximo possível para uma criteriosa
classificado como desorganização, desestruturação ou
análise, o que está de acordo com este estudo.
disfunção das famílias que, vistas nessa perspectiva,
já passam a ser alvo de intervenções dos serviços no
Procedimentos para análise das entrevistas sentido de ajustes e normatizações.
Posteriormente, todo o material levantado Para finalizar, é apresentado o campo temático
nas entrevistas foi submetido à análise de discurso, que reúne representações sobre as famílias numerosas,
conforme proposta por Gill (2008). Para ela, não há principalmente no que se refere ao grande número de
uma receita delimitada para tanto, mas sim etapas que filhos, sendo comum que sejam de relacionamentos
podem ser mais ou menos estruturadas. Segundo a diferentes. Além disso, são famílias que aceitam bem
autora, o primeiro passo é a transcrição das entrevistas, novas pessoas, parecendo que a adaptação ao ambiente
a partir dos registros literais das falas. A manutenção valha mais que qualquer laço sanguíneo, por isso
dos registros literais das fontes no decorrer do trabalho a facilidade em incorporar novos membros, o que é
– ao invés da seleção de pequenos recortes que apenas estranhado por algumas entrevistadas.
legitimam o que diz o autor – foi uma proposta mantida
nesta pesquisa, baseada na ideia de que o registro
1. “Muito pouca presença masculina”: crise do
literal indica confiabilidade, como afirmam Gaskell
homem nas famílias usuárias do CRAS
e Bauer (2008), já que dão margem para diferentes
interpretações sobre os pontos de vistas explorados. Uma das representações sobre as famílias
Após a primeira parte, Gill (2008) relata que compartilhadas pelas entrevistadas diz respeito ao que
se inicia a análise propriamente dita, através de uma pode ser definido como uma “crise” dos homens, devido
leitura que seja capaz de tornar o familiar estranho, a sua não presença ou, quando presente, exercendo um
a partir de um espírito cético, atento ao contraditório papel secundário, pouco protagonista ou negligente, já
e ao detalhe. Feito isso, passa-se à codificação, em que são as mulheres que costumam chefiar as famílias,
um movimento de mergulho no material, que dessa como exemplifica a fala de uma entrevistada:

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São famílias que a mãe é a chefe de família né, ganham mais uma função de trabalho não remunerado,
normalmente ela não está sozinha, ela tem um permanentemente à disposição dos programas de
companheiro, que é dentro da família uma figura assistência social, reforçando a imagem da mulher-
muito frágil assim, não só da parte como ele se coloca, mãe-esposa-dona-de-casa.
mas de como ele é visto por essa mãe. E o lugar que é
dado pra ele pelos membros da família é de um lugar Embora seja praticamente consensual hoje que
secundário assim em relação ao da mulher né”. (P2) existam e estejam disseminadas novas configurações
familiares para além de padrões ou modelos
Outra participante da pesquisa segue na mesma esperados de família, as falas deste estudo indicam
linha, evidenciando a força dessa representação: que permanecem vivas ainda concepções sobre
“Muito mais mulheres como ‘chefes’ [aspas da modelos tradicionais de papéis atribuídos a mulheres
entrevistada] de família ... Tem alguns pais que dão e homens – mães e pais – calcados em postulações
pensão pras crianças, mas são às vezes muito irrisórias culturais tradicionais. O destaque fica por conta da
e a maioria não dá nenhum tipo de ajuda quando vai figura matriarcal, fortalecendo a ideia das mulheres
embora” (P4). como chefes das famílias e principais destinatárias
A centralidade da mulher na “chefia” das da assistência social, o que também corresponde à
famílias não chega exatamente a ser uma novidade, maioria das pessoas que acessam o CRAS, conforme
sendo que outros autores já detectaram isso, como Pereira (2013). Ao menos dois posicionamentos das
Fernandes (2006); Alencar (2010); Duque-Arrazola entrevistadas corroboram com essa perspectiva:
(2010); Fávero (2007), que vê o fato até como uma São famílias que a maioria são chefiadas por
tendência; e Pereira-Pereira (2010), que defende que mulheres, as mulheres é que tomam conta. Os
há o esgotamento de um modelo familiar nuclear a maridos, quando existem, são desvalorizados, não
partir da ascensão da mulher ao mundo do trabalho tem uma atitude, um posicionamento. Não tem uma
questão de saber qual o seu papel, a mãe, os filhos, há
e ao sustento financeiro e emocional da família.
uma confusão assim geral em relação a isso, não tem
Porém, como afirma Mioto (2010), apesar de certo essa determinação de limites entre gerações, não tem
consenso sobre as mudanças no interior das famílias, muito esse posicionamento né de qual que é meu papel
os serviços e concepções dos profissionais continuam diante do filho ... e aí assim existe e aparece muito os
se movimentando a partir de expectativas relacionadas conflitos em função disso, surgem os problemas e eles
aos papéis típicos de uma concepção funcional de não conseguem resolver. (P21)
família, sendo a mulher-mãe responsável pelo cuidado
Mas a maioria são famílias com a mãe, mães jovens
e educação dos filhos e o homem-pai pelo provimento
de 20, 20 e poucos anos, aquela história, mais ou
e autoridade familiar. Isso está fortemente atravessado menos entre três e quatro filhos, não do mesmo pai,
por julgamentos morais, principalmente sobre a figura e se virando sozinhas assim. Mais contando com a
materna, frequente alvo de culpabilização, como avó. Geralmente sem o pai delas e sem o pai dessas
mostra a fala a seguir: crianças. E muitas até abrindo mão de ter uma ajuda,
se esse pai trabalha, ou não reconheceu e aí não
A questão dos filhos, do significado dessa questão de
entrou com pedido de pensão, coisas assim. Tem essa
ser mãe, o quanto isso é importante, mesmo que elas
cultura da mãe assim, de estar dando conta de tudo e
não sintam como sendo, mas o quanto um filho a cada
de todos e abrindo mão de muitos dos seus direitos, de
ano, ou a cada dois anos, vai constituindo aquele
direitos dos filhos. (P11)
ser né. E ao mesmo tempo às vezes com mínimas
condições de dar conta, mas aquilo é o que se
consegue daquele sujeito né ... Embora às vezes eles Para Fávero (2007) – que encontrou um padrão
não conseguem nem exercer a maternagem direito né, parecido de ausência do pai em sua pesquisa sobre
só o seio e o seio, não tem um olhar. Então sempre a perda do poder familiar –, o papel masculino que
quando eu atendo eu digo ‘tu brinca com teu filho? Tu supunha autoridade e provento se encontra frágil
conversa com ele? Tu olha pra ele? (P9) frente às pressões socioeconômicas às quais essa
população vulnerável fica exposta, com dificuldades
Essa psicologização e culpabilização fazem com de integração no mundo do trabalho, o que pode
que comumente o foco do trabalho dos psicólogos ser uma das possíveis explicações para essa “crise”
seja sobre indivíduos-problemas, especialmente as masculina, já que o homem acaba tendo dificuldades
mães, mas também pais ou filhos, não relacionados para exercer o elo entre a família e o mundo externo,
a processos relacionais mais amplos, no que a autora pelo qual tradicionalmente ele era o responsável.
chama de enclausuramento dos problemas sociais nos Porém, como evidencia Duque-Arrazola (2010),
muros domésticos. Conforme Duque-Arrazola (2010), mesmo que as mulheres sejam responsáveis por toda a
isso sobrecarrega as mulheres na medida em que vida da família, permanece viva a ideia de que a voz de

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mando é do marido quando ele está em casa, restando Ou ainda:


a elas um jogo de estratégia de poder: Família assim, desorganizada, desestruturada,
Muitas famílias é aquela coisa assim ó: quando o enfim, acho que muito mais desorganizada do que
pai trabalha, às vezes mesmo o pai não trabalhando de estrutura né ... Essa cultura oral né, que os pais
é o que comanda, com aquela rigidez. E há uma passam pra gente assim né, não tem. Mas é sabe,
certa hipocrisia, porque rigidez pra algumas algumas famílias muito, muito primitivas. Outras não,
coisas e permissividade pra outras ... Às vezes a claro que uma coisa mais incorporada da cultura,
agressividade inicia no pai alcoolista né, às vezes é da televisão, dos meios de comunicação. Não que
a mãe que comanda, às vezes a mãe consegue ser, essas que eu te disse que não têm cultura não tenham
apesar de rígida, consegue ser afetiva e amorosa ... televisão, não é isso. Mas não incorporam. (P8)
Então as crianças com muita agressividade, mas ao
mesmo tempo uma doçura, e essa mãe por um lado O que se observa é que acaba vigorando um
era amorosa e por outro completamente negligente, modelo normativo de família construído pelas
porque tem que trabalhar, porque tem que isso, tem
profissionais, sendo que todas aquelas que divergem
que aquilo. E os filhos muito apegados à mãe. Alguns
às vezes revoltados, em alguns momentos. Mas em
desse padrão, quando comparadas à norma, passam
essência apegados ... Uma certa confusão assim a ser consideradas problemáticas, de algum modo.
de valores, porque ao mesmo tempo que tem essa As consequências dessa denominada desorganização,
afetividade, tem a negligência. Então imprime um a partir de referenciais da própria psicologia, são
padrão de afetividade, mas vem a negligência. Então intervenções no sentido de adequação dessas famílias
tem que fazer todo o resgate. (P19) a um padrão tido como funcional:

Portanto, fica clara a preponderância feminina São famílias bem desorganizadas, que precisam ter
alguém ali sabe ‘e aí vamos fazer, como é que está?
na política de assistência social: trata-se tanto do
Teu filho está indo pra escola? Não está indo pra
público que predominantemente acessa os serviços escola? O que está acontecendo?’ Precisam muito de
como também o que é alvo da maior parte das um apoio sabe. (P15)
intervenções e programas. Assim, restam, primeiro,
problematizações sobre a dimensão social do que Para Foucault (citado por Macedo & Dimenstein,
pode ser chamado de uma “crise” dos homens, não 2009), nos casos de tentativas de normatização,
os culpabilizando individualmente, para não recorrer acaba-se configurando um exercício de tutela e
ao mesmo viés individualista, mas, sim, investigando desapropriação do saber do outro sobre si próprio na
como essa “crise” se engendra às dinâmicas sociais, ao condução dos seus projetos de futuro. Ou seja, são os
mundo do trabalho, à violência, dentre outros aspectos profissionais que, por deterem o saber, definem o que
que nos dão pistas sobre a “ausência” masculina
seria melhor ou adequado aos sujeitos. Isso favorece
nas famílias; e, segundo, o cuidado com a noção de
a criação de amplos mecanismos de regulação e
mulher/mãe/chefe-de-família, já que ela pode ser
vigilância da vida, tornando as políticas do bem-estar
consequentemente culpabilizada ou sobrecarregada
um território profícuo para o exercício da gestão ou
por assumir a responsabilidade da família e por ter
do governo da população através da disciplina e do
de estar permanentemente à disposição das ações da
controle, entendidos como estratégias biopolíticas para
assistência social.
se fundar ou redimensionar a ordem social vigente.
Assim, restaria aos profissionais a busca por uma
2. “Famílias desorganizadas com uma cultura
maior tolerância aos modos múltiplos de organização
complicada”: necessidade de normatização
e planejamento da vida, para não tornar essa lógica
Em relação à dinâmica familiar, apresentam- normativa operante, como parece já estar ocorrendo
se neste campo temático representações que versam em algum grau no campo da assistência social.
sobre as formas disfuncionais, desestruturadas ou Outros aspectos recorrentes nas falas são questões
desorganizadas dessas famílias na perspectiva de relacionadas à negligência dos pais e das mães; à
algumas psicólogas entrevistadas: higienização e à limpeza das casas e das famílias; à
Tem famílias que são mais organizadas. Mas tem organização ou à falta dela, inclusive na aparência
as famílias que demandam mais orientação, um das pessoas; à ausência de limites das crianças; e à
acompanhamento ... São famílias que têm uma cultura falta de uma rotina organizada. Em comum, a ideia
bem complicada ... Então a gente procura trabalhar de disfuncionalidade ou desestrutura dessas famílias,
para que elas se organizem. A gente procura levar
como exemplificam as falas a seguir:
para eles essa necessidade de se organizar, procurar
organizar a família com aquela renda que eles Desde a questão da organização da casa, porque isso
recebem do Bolsa-Família, atender as crianças. (P1) representa na nossa qualidade de vida, mas muitas

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são desorganizadas assim. Até porque trabalham dirigidas aos modos de funcionamento das famílias e
com essa questão de reciclagem e elas levam esses todas as “desorganizações” daí decorrentes:
materiais pra casa pra poder vender né, papelão,
Pessoas muito frágeis sabe ... Desamorosas sabe,
metal, e a casa fica atopetada de lixo, entulho, muitas
poucas assim que a gente encontra que são mães
coisas. E a gente tenta trabalhar muitas vezes com
mais afetivas, mais carinhosas e daí tu vê também que
elas nesse sentido né. (P7)
a casa é mais ‘organizadinha’ assim. ... Mas assim,
Algumas são mais ‘estruturadinhas’ assim e naquelas desorganizadas tu vê que emocionalmente,
conseguem ter uma noção, vêm e pedem ajuda e tal, afetivamente também né, são desorganizados em tudo
mas têm muitos assim que ficam ali dando voltas né. Se reflete na questão material, mas daí tu vê que
no próprio ‘rabo’ assim sabe. Não conseguem afetivamente tu não vê laços né afetivos entre essas
costurar ‘eu tenho que fazer um curso pra mim me mães e filhos. (P8)
profissionalizar e fazer alguma coisa’ sabe ... As mães
geralmente assim não têm um cuidado com os filhos Quando definidas como incapazes, doentes
sabe. Às vezes até umas coisas básicas, como higiene ou anormais, essas famílias passam a ser alvos
assim. Cuidar, por exemplo, que eles tenham horários, de intervenção, merecedoras de ajuda pública por
que não podem ficar soltos na rua. Mas assim, o supostamente falharem na responsabilidade de cuidado
grosso assim é essa coisa de dinâmica familiar, sabe,
e proteção de seus membros, quando na verdade o
essas famílias monoparentais assim né, uma penca de
filhos, e aí os filhos já vão se criando assim ... Eu não
próprio Estado não as protege em seus direitos, atuando
vejo assim que eles têm uma coisa de família. E eu não apenas em uma lógica de culpabilização.
sei onde começa, se é no comprometimento cognitivo Fonseca (2007) reitera isso ao ver uma crescente
deles, se é uma coisa dos pais deles que ensinaram tendência, em políticas sociais de intervenção, de
eles a serem assim e aí é uma coisa que vem passando ver a família como lócus privilegiado de problemas
... de geração em geração, transgeracional. (P14)
e soluções sociais, em uma análise que acabar por
ser reducionista e psicologizante, culpabilizando as
O que chama negativamente a atenção nessas
próprias vítimas e minimizando a importância das
falas é a presença de aspectos que estão na origem
influências sociais, políticas e econômicas.
da assistência brasileira, como mostram Gomes e
Nascimento (2003), atrelados a práticas higienistas, Para Scheinvar (2006), ao contrário da ideia
ajustadoras e normatizantes, objetivando o controle de ausência do Estado como prega o neoliberalismo,
social, como se nota nas representações produzidas contemporaneamente se revela fundamental a presença
sobre questões de higiene e limpeza das pessoas e do Estado nas áreas de interesse da ordem burguesa,
até de suas casas, além de uma crítica a seus hábitos como acontece na coação da família. Na defesa do
de vida e valores. Outro aspecto que se depreende mercado, é clara a intervenção do Estado, embora não
é a vigência ainda da ideia de que pais pobres são se assuma que essa é sua única prioridade, pois aparece
negligentes ou inabilitados para o cuidado dos filhos, travestida de preocupações com justiça e segurança.
o que absolutamente não é verdadeiro para todos os No entanto, ao se falar de violência, individualizam-
casos. Essas crenças podem estar ancoradas na crença se e particularizam-se os casos, como se fosse uma
de superioridade do saber científico, perpassada por disfunção decorrente da desestrutura da família, como
uma culpabilização da família por seus desajustes às se nela estivessem as possibilidades para se reverter
normas estabelecidas. um quadro político e social, culpabilizando-as e as
responsabilizando então pelos problemas. Portanto,
Corroborando com isso estão as ideias de Mioto
o discurso individualizado e privatizado em torno da
(2010), que discorre sobre a invasão progressiva e
família ainda prevalece na área social, como indica
controladora do Estado sobre a família através de três
a autora e como também corroboram algumas falas
diferentes meios: por uma extensa legislação, que
deste estudo, tais como esta outra:
regula as relações familiares, como deveres dos pais
Muito conflito assim de falta de limites com os
e direitos entre cônjuges; pelas políticas demográficas,
filhos, muita inabilidade de lidar com situações, até
principalmente aquelas que se referem à natalidade;
porque eles próprios não foram também acolhidos
e pela difusão de uma cultura de especialistas, que e não tiveram esse jeito assim né ou foram muito
ocupam posições estratégicas no Estado e regulam, mal tratados e não conseguem, são extremamente
com seus discursos e práticas, uma série de fatores da permissivos ou são agressivos com as crianças. (P9)
vida das pessoas, principalmente das classes populares.
E é esse último meio de ação que parece corresponder Sendo assim, conclui Scheinvar (2006), a família
à necessidade de normatização descrita fortemente é mais um espaço de privatização do social em um
neste campo temático, que transparece no discurso sistema estruturado a partir da iniciativa privada, onde
de algumas entrevistadas, principalmente nas críticas atualmente é pressionada à norma.

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Pereira, V. T. & Guareschi, P. A. (2017). A psicologia no CRAS: um estudo de representações sociais.

Para Fernandes (2006), a definição de “família 3. “Muitos filhos, vários companheiros”: famílias
estruturada” acaba pressupondo a desqualificação numerosas.
e negação da diversidade de formas de família se
organizarem e se expressarem, definindo as que Outra representação social difundida entre as
não estão no mesmo padrão como disfuncionais ou entrevistadas se refere às famílias numerosas, com
patológicas. Por trás disso, há uma concepção que grande número de integrantes, principalmente de
culpabiliza os sujeitos e deposita neles – e na família filhos, o que, mais uma vez, tem a ver com modos
– a patologia do social. Isso gera como consequência diversos de organização, que escapam de um modelo
a produção de determinadas verdades sobre o modo de família ideal ou tradicional:
de ser família e de viver uma infância normal, o que Normalmente famílias bem numerosas assim, acho
é comum dentro do escopo de saberes da psicologia, que é muito comum assim oito, nove, dez filhos
como afirmam Cruz e Guareschi (2012). A fala a seguir assim, é uma realidade bem presente. Famílias que
ratifica o acima exposto: em muitos momentos não conseguem ficar juntos
assim, esse núcleo mãe e filhos é bem frequente que
Acho que a grande maioria são famílias constituídas
os filhos estejam esparramados ... filhos morando com
assim numa desorganização muito grande, famílias
a tia, com a avó, até algumas famílias com filhos em
com um filho de cada pai, algumas ... E famílias bem
amigos. (P2)
desorganizadas assim em tudo, em tudo sabe. Uma
sujeira né. Tem algumas casas que a gente vai que Ou, ainda,
é tudo limpinho, tudo ‘arrumadinho’, não é porque
são pobres. Mas a grande maioria as pessoas são São relações de agrupamento familiares ... A cada
completamente desorganizadas. (P8) novo filho assim, por exemplo, se eu tenho um outro
companheiro normalmente eu tenho um filho desse
companheiro. A gente vê muito assim as famílias são
Essa perspectiva, que se centra em um modelo numerosas e às vezes são nove filhos e é capaz de elas
padronizado, pode ser entendida, segundo Rocha terem os nove de companheiros de relacionamentos
(2003), a partir do resultado de um processo de diferentes. (P2)
valorização do domínio privado, da definição da
família como templo de segurança e moralidade frente Fonseca (2002) é uma autora que trabalha muito
às ameaças do social, espaço onde supostamente bem essa temática, evidenciando o quanto é comum
se viveria sem conflitos. Para Scheinvar (2006), que crianças de baixa renda circulem desde sua tenra
no mundo moderno a família se torna a referência infância em famílias não aparentadas, ampliando
imediata das pessoas, um espaço privado responsável assim suas redes de apoio. Historicamente essa era
por seus membros. Quando algo ocorre fora dos uma prática comum, contudo, hoje, devido à adoção
padrões instituídos de normalidade, principalmente pelas classes abastadas do modelo nuclear conjugal de
com crianças e jovens, a família é chamada a família, a circulação de crianças é vista como sintoma
responder, evidenciando uma série de estratégias de desorganização familiar ou abandono materno.
de controle sobre ela e também uma naturalização
da estrutura social – inclusive por inúmeras práticas Embora esse modelo de dinâmicas familiares
profissionais – sustentada na perspectiva do “alternativas” seja comum e aceito em grupos
indivíduo-família. populares, essas famílias são vistas muitas vezes como
problemáticas pelos profissionais da assistência social,
Para Mioto (2010), mesmo sendo raro encontrar por não se enquadrarem em um modelo esperado ou
técnicos que não compreendam a ideia de diversidade definido como normal, seja por sua dita desorganização,
das famílias, permanecem vivas e largamente usadas as seja por ser uma família numerosa:
concepções de família desestruturada. Ou seja, mesmo
que teoricamente já tenha ocorrido algum avanço, O que eu percebo mais frequentemente assim é um
histórico familiar que já vem de famílias numerosas,
a expectativa em relação às obrigações familiares
onde eles já cuidaram os irmãos mais novos ou foram
permanece preservada, esperando-se delas um mesmo cuidados pelos irmãos mais velhos e acham isso um
padrão de funcionalidade. processo natural assim. Eu me impressiono muito
Portanto, vale a reflexão, como sugerem Cruz e que às vezes a família já é bastante numerosa e eles
acolhem com muita facilidade o namorado da filha
Guareschi (2012), do quanto as práticas e os discursos
que veio morar junto, o filho que traz uma pessoa
produzidos pela psicologia no CRAS estão ou não
para morar junto sabe, e dali daquela nova família
se configurando como dispositivos de controle das que se forma dentro da família daqui a pouco tem um
famílias, acabando por psicologizar as questões bebê sabe, isto tudo com uma naturalidade ... Não tem
sociais, produzindo roteiros sobre os modos de infância lugar, não tem espaço às vezes na casa pros que já
e também de ser família. estão e ainda tem que arranjar espaço pros que vêm.

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E é bem frequente assim, pra mim me choca muito individualista de classe média), ou ainda a ideia de um
assim um aspecto que é: meu filho tem 17, 18 anos sujeito universal (em um modelo psicologizante).
e tem uma esposa. Aí tu vai ver a esposa tem 13, 13
anos. Uma jovem que veio morar contigo e a família Por fim, vale lembrar Fávero (2007), que sustenta
dessa jovem sabe que ela está aqui contigo? Não. Eles que é necessário levar em conta mais a família vivida do
não conhecem, eles não... Sabe, a impressão que eu que a idealizada, isto é, aquelas nas quais se observam
tenho é a pessoa caiu ali de pára-quedas ali na vida diversas formas de organização, onde as estratégias de
da família, e a família também não tem muito interesse sobrevivência se sobrepõem aos laços de parentesco
em saber quem é, de onde veio, os pais tão assim e, por isso, à existência de uniões consensuais, rede
concordando com isso. Basta que eu aceite, tenha um extensa de parentes e à casa aberta à sociabilidade.
cantinho, faça mais uma peça e fica por isso mesmo. É
uma coisa que chama bastante atenção. (P2)
Considerações finais
Para Scheinvar (2006), há uma concepção de
que a vigilância íntima da família é o que garantirá a
ordem social, o que pode incluir ideias de controle de Neste artigo se trabalhou com uma gama de
natalidade e cobranças sobre uma maior padronização. significados que remetem a uma representação social
Conforme essa autora, há uma exigência de que as individualista e familiarista, capaz de culpabilizar
famílias pobres adiram à ordem instituída, existindo as famílias usuárias do CRAS por sua condição de
um modelo “certo” a ser seguido, o que, na verdade, vulnerabilidade social, vista como fruto de seus
sequestra o direito à família, principalmente pela desajustes e inadequações. Na sustentação dessa
intervenção na relação com os filhos, inclusive representação social, encontram-se elementos
exigindo que sejam poucos, por exemplo. Por trás ideológicos (neo)liberais que, conforme Iamamoto
de muitos saberes, inclusive o psicológico, surge (2011), forçam a perda da dimensão coletiva das
a ideia de que a família é incapaz de ser família, expressões da questão social, isentando a sociedade pela
desqualificando seus saberes, retirando os filhos de reprodução das desigualdades. Com isso, a questão é
seu poder, ou até coibindo a geração de mais filhos, reduzida ao indivíduo e a sua família. Assim, fica claro
exigindo um ordenamento através de intervenções que essa ideologia opera principalmente ao encobrir
discriminatórias ou inadequadas que não interferem a responsabilidade do sistema capitalista na produção
efetivamente na condição de vida que os levou a serem da vulnerabilidade, naturalizando as desigualdades e
alvo da intervenção. despolitizando a questão social, enquanto problema
público e político. Além disso, percebe-se a partir
Assim, o que há é um processo amplo de dos resultados do estudo uma baixa tolerância dos
produção de subjetividades a fim de naturalizar a profissionais sobre os modos “alternativos” e diversos
institucionalização de um modelo hegemônico de de ser família, tensionando uma normatização desses
família, como fica claro na fala a seguir: arranjos a partir da própria política de assistência
São famílias bem numerosas, têm bastantes filhos, social e da atuação da psicologia nesse contexto.
moram em lugares pequenos, bem precários, tem
muitos lugares aqui que não têm um banheiro pra Diversos autores reforçam esses achados.
fazer higiene, um situação bem... Que muitas vezes o Pereira-Pereira (2010) e Duque-Arrazola (2010), por
Conselho Tutelar retira as crianças pela questão da exemplo, criticam a leitura que liga família e proteção
higiene ... Muitas delas é um filho de cada pai né, e às social, definindo a primeira como lugar de proteção por
vezes muito próximos na idade, aí um sumiu o outro excelência, sobrecarregando principalmente a figura
foi pra não sei aonde, dificilmente tu pega aquilo feminina. Para elas, as definições de crise, patologia
que a gente teria como ideal de família, são famílias ou desorganização da família estão relacionadas
com uma mistura muito grande, tem avós, prima, tem
à importância dessa nos esquemas de proteção
irmão, enfim. (P4)
neoliberais, enquanto substituta do Estado na provisão
de bens e serviços sociais básicos a seus membros,
Essa lógica opera, primeiramente, por meio de
ganhando, não por acaso, centralidade nas políticas
discriminações de relações familiares – como a de
públicas, em especial na assistência social. Perde-se,
famílias numerosas, de mãe solteira, de parentes ou
com isso, a possibilidade de a família ser considerada
vizinhos que assumam a responsabilidade pelos outros,
como uma instituição variada e também contraditória,
de casais separados – e, segundo, pela patologização
que pode inclusive funcionar como reprodutora de
desses modelos “alternativos”, como indica Fonseca
desigualdades.
(2002), já que o “normal” acaba sendo aquilo que é
definido pelos próprios modelos e visões de mundo Alencar (2010) é outro autor que corrobora
dos profissionais (geralmente uma experiência com essa perspectiva ao afirmar que historicamente

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Pereira, V. T. & Guareschi, P. A. (2017). A psicologia no CRAS: um estudo de representações sociais.

a família sempre funcionou como anteparo social social, família e juventude: uma questão de direitos (6ª ed.,
no país, dado o vazio de políticas públicas que a pp. 61-78) São Paulo: Cortez.
protegessem. Ou seja, o que ocorre é uma transferência Bauer, M. W. & Aarts, B. (2008). A construção de um corpus:
um princípio para a coleta de dados qualitativos. In M. W.
de responsabilidade do Estado para a sociedade civil Bauer & G. Gaskell (Orgs.), Pesquisa Qualitativa com
e as famílias, exigindo certo modo de organização e texto, imagem e som: um manual prático (7ª ed., pp. 39-63).
funcionamento que dê conta dessas exigências, além Petrópolis, RJ: Vozes.
de uma ideologia de que as famílias, independente de Costa, A. F. S. & Cardoso, C. L. (2010). Inserção do psicólogo
suas condições de vida, devem ser capazes de proteger em Centros de Referência de Assistência Social – CRAS.
os seus membros. As consideradas incapazes passam Revista Interinstitucional de Psicologia, 3(2), 223-229.
Couto, B. R., Yazbek, M. C., & Raichelis, R. A. (2010). Política
a ser alvo de intervenções do Estado, muito através
Nacional de Assistência Social e o SUAS: apresentando e
da assistência social, evidenciando uma tendência problematizando fundamentos e conceitos. In B. R. Couto,
de soluções residuais aos problemas familiares. Isso M. C. Yazbek, M. O. S. Silva, & R. A. Raichelis (Orgs.),
reflete, para Alencar (2010), uma tendência histórica O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma
brasileira de se resolver na esfera privada questões realidade em movimento (pp. 54-87). São Paulo: Cortez.
de ordem pública, ou, para usar outras palavras, na Cruz, L. R. & Guareschi, N. M. F. (2012). Articulações entre a
psicologia social e as políticas públicas na assistência social.
individualização dos problemas sociais. Para Couto,
In O psicólogo e as políticas públicas de assistência social
Yazbek e Raichelis (2010), o discurso das famílias (pp.15-34) Petrópolis, RJ: Vozes.
desestruturadas e incapazes reforça a culpabilização Duque-Arrazola, L. S. (2010). O sujeito feminino nas políticas
das famílias e despolitiza a questão. Com isso, conclui- de assistência social. In A. E. Mota (Org.), O mito da
se, com a ajuda de Yazbek et al. (2010), que se exige da assistência social: ensaios sobre Estado, política e sociedade
família uma ampla função protetiva quando na verdade (pp. 225- 255). São Paulo: Cortez.
ela própria não é protegida pelo Estado, reforçando a Fávero, E. T. (2007). Questão social e perda do poder familiar.
São Paulo: Veras.
perversa lógica de culpabilização e responsabilização Fernandes, I. (2006). Dialética da instrumentalidade: abordagem
das próprias famílias. grupal e familiar na perspectiva da assistência social. In J. M.
Portanto, é nítido que existe em nossa sociedade R. Mendes, J. C. Prates, & B. Aguinsky (Orgs.), Capacitação
sobre PNAS e SUAS: no caminho da Implantação (pp. 135-
uma ampla e difundida representação social que
151). Porto Alegre: EDIPUCRS.
individualiza os problemas sociais, culpabiliza Fonseca, C. (2002). Mãe é uma só? Reflexões em torno de
os sujeitos e as famílias por sua situação de alguns casos brasileiros. Psicologia USP,13(2), 49-68.
vulnerabilidade e atribui a seus supostos desajustes e Fonseca, C. (2007). Apresentação – de família, reprodução e
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o principal ponto a ser destacado neste estudo é a 9-35.
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denúncia desses elementos ideológicos que compõem
contas pública: além da amostra, da fidedignidade e da
uma representação social individualista, familiarista validade. In Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som:
e culpabilizante, compartilhada pelo menos em um manual prático( 7ª ed., pp. 470-490). Petrópolis, RJ:
alguma medida pelos(as) próprios(as) psicólogos(as) Vozes.
que operam a política de assistência social. Por isso, Gill, R. (2008). Análise de discurso. In M. W. Bauer & G.
é importante acentuar a necessidade da discussão Gaskell (Orgs.), Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e
política, ética e social na formação em psicologia, som: um manual prático( 7ª ed., pp. 244-270). Petrópolis,
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para que não se depositem nos próprios sujeitos e Gomes, A. M. & Nascimento, M. L. (2003). Infância,
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questão. São Paulo. Tese de Doutorado, Programa de Pós- Grande do Sul (UFRGS). Atua como psicólogo do Centro
graduação em serviço Social, Pontifícia Universidade de Atendimento Psicossocial Álcool e outras Drogas
Católica de São Paulo, São Paulo, SP. (CAPS-AD) de São Leopoldo - RS. Professor do curso de
Pereira-Pereira, P. A. (2010). Mudanças estruturais, política Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA),
social e papel da família: crítica ao pluralismo de bem-estar. nos campus de Gravataí e Guaíba. Temas principais
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social, família e juventude: uma questão de direitos (6ª ed.,
psicologia comunitária, assistência social, saúde mental e
saúde coletiva. Endereço: Rua Saturnino de Brito 68, São
pp. 25-42). São Paulo: Cortez.
José. São Leopoldo/RS, Brasil. CEP 93040-080.
Pereira, V. T. (2013). A Psicologia no mundo da vida:
E-mail: viniciustonollier@hotmail.com
representações sociais sobre os(as) usuários(as) do CRAS.
Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Pedrinho Guareschi é mestre em Psicologia Social pela
Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Marquette University Milwaudee (1973), doutor em
Rocha, M. L. (2003). Espaço urbano e configurações subjetivas Psicologia Social - University Of Wisconsin At Madison
contemporâneas. In A. M. Jacó-Vilela, A. C. Cerezzo, & (1980), pós-doutorado - Universidade de Wisconsin (1991)
H. B. C. Rodrigues (Orgs.), Clio-Psyché paradigmas: e pós-doutorado - Universidade de Cambridge (2002).
historiografia, psicologia, subjetividades (pp. 115-118). Rio Atualmente é professor convidado da Universidade Federal
de Janeiro: Relume Dumará: FABERJ. do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal
Scheinvar, E. (2006). A família como dispositivo de privatização de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
do social. Arq. Brasileiros de Psicologia, 58(1), 48-57. E-mail: pedrinho.guareschi@ufrgs.br

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