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O legado antigo entre transferências e migrações

Cássio Fernandes*

Warburg, Aby. A renovação da Antiguidade delimitar de próprio punho o que desejava


pagã: contribuições científico-culturais para fosse publicado do vasto material composto
a história do Renascimento europeu. Tra- por escritos curtos, conferências, cartas ou
dução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: cursos ministrados como convidado na Uni-
Contraponto, 2013. versidade de Hamburgo. Os livros que se
constituíram dos escritos de Warburg foram
produto do interesse e da sistematização de
Fora do restrito círculo de estudiosos outrem. Ele próprio editou apenas de modo
da arte e da cultura do Renascimento, Aby fragmentário parte de sua produção textu-
Warburg (1866-1929), ao longo do século al, em revistas científicas, em publicações da
XX, ficou mais conhecido como criador de própria Biblioteca Warburg ou como peque-
uma biblioteca pessoal transformada em ins- nos volumes separados. Mesmo assim, gran-
tituto de pesquisa do que propriamente pelo de parte de seus escritos permaneceu inédita
teor de seus escritos. Por certo, sua bibliote- até o final de sua vida.
ca, sediada originalmente em Hamburgo e Os escritos de Warburg conheceram
transferida para Londres depois da ascensão uma primeira sistematização, produto de
nazista na Alemanha, simbolizou o interesse um projeto editorial, no início da década de
que percorreu seu inteiro trajeto de estudio- 1930, pelo esforço de Gertrud Bing, que, ao
so. O Instituto Warburg para a Ciência da lado de Fritz Saxl, dirigia a biblioteca ainda
Cultura, ligado à Universidade de Londres, em Hamburgo. Ambos haviam trabalhado
reúne um vasto material sobre a vida póstu- ao lado de Warburg e também durante o in-
ma da Antiguidade, ou seja, a influência da terregno de sua ausência, entre 1918 e 1923,
cultura antiga sobre os séculos posteriores e em que passou em tratamento na clínica psi-
seu papel na formação da Europa moderna. quiátrica de Kreuzlingen, na Suíça. Do tra-
O tema de sua biblioteca paraleliza-se com o balho de organização de Gertrud Bing sur-
tema de sua obra. giu em 1932, pela editora alemã Teubner, a
Porém, a obra de Warburg não se consti- Gesammelte Schriften, que deveria constituir
tuiu como um corpus organizado em forma apenas a primeira parte do projeto de edição
de livros ou de conjuntos de textos sistemati- do legado textual de Warburg. Esse proje-
zados pelo próprio autor. Ao contrário, War- to, porém, delineado brevemente por Fritz
burg jamais escreveu um livro, jamais obte- Saxl na edição original, jamais seria levado a
ve uma cátedra acadêmica, jamais tratou de cabo. O livro de 1932 tornou-se, ao longo do
DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X015028016
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século XX, a edição canônica dos escritos de a concepção de Winckelmann a respeito da


Aby Warburg, sendo desde então reimpresso serenidade olímpica da Antiguidade. Esse
em língua alemã ou traduzido para outros ideal, formulado na juventude, transformar-
idiomas. Esse livro ganha, em 2013, sua pri- -se-ia numa espécie de obsessão, que, em cer-
meira edição brasileira, pela Editora Con- to modo, o acompanharia até o final de suas
traponto, do Rio de Janeiro, sob o título A forças. Uma primeira viagem a Florença,
renovação da Antiguidade Pagã: contribuições em 1888, possibilita-lhe o encontro com o
científico-culturais para a história do Renas- historiador da arte August Schmarsow, que,
cimento europeu, com tradução de Markus naquele momento, tentava formar, na cidade
Hediger. Antes disso, o que se conhecia de dos Medici, um instituto alemão de história
Warburg em língua portuguesa era apenas a da arte. Warburg permance em Florença por
sua tese de 1893, publicada em Portugal, em seis meses. Poucos anos depois, Schmarsow
2012, O nascimento de Vênus e a Primavera veria criado o Kunsthistorisches Institut in
de Sandro Botticelli, pela Editora KKYM, de Florenz. De Florença, Warburg sairia com a
Lisboa. ideia da futura tese, defendida não em Bonn,
A edição brasileira do livro canônico de mas em Estrasburgo, sob orientação de Hu-
Warburg tem o mérito de trazer, além do bert Janitschek, estudioso do Renascimento,
prefácio da edição de 1932, de autoria de organizador da edição do De pictura de Leon
Gertrud Bing, também o prefácio da edição Battista Alberti. A tese de Warburg, editada
de estudos de 1998, assinado em conjunto em 1893, trataria das pinturas mitológicas
por Horst Bredekamp e Michael Diers. O de Sandro Botticelli, na perspectiva da lei-
prefácio de 1998 nos ajuda a compreender tura, por parte do humanismo florentino do
o contexto de surgimento do livro de 1932, ambiente de Lorenzo de’ Medici, da tradição
numa perspectiva da história da fortuna da homérica pela via da transmutação latina re-
obra de Warburg, bem como aponta alguns alizada por Ovídio. Era uma compreensão
aspectos que determinaram a interrupção do do diálogo entre palavra e imagem no seio
projeto editorial de sua obra. do humanismo florentino dos anos 1480,
Aby Warburg provinha de uma família somada a uma perspectiva histórico-artística
judia de banqueiros de Hamburgo. Após que perseguia a relação entre artista, comi-
uma incursão juvenil no estudo da medici- tente e conselheiro erudito. Warburg defen-
na, voltou seus interesses aos temas estéticos dia, na tese, que as pinturas de Botticelli, O
e culturais, ingressando na Universidade de nascimento de Vênus e a Primavera, surgiram
Bonn em 1886. Em Bonn, assistiu às aulas da encomenda de Lorenzo de’ Medici e sob
do historiador da cultura Carl Justi e do es- a base iconográfica formulada pelo literato
tudioso do mito e das religiões gregas antigas e professor de Ovídio na Academia Platôni-
Hermann Usener, concentrando-se, já nos ca de Florença, Angelo Poliziano. Poliziano,
primeiros anos de estudo, na ideia de corri- então, seria o mediador da relação entre Bot-
gir, sob um fundamento histórico-cultural, ticelli e Ovídio nas pinturas, que teriam sido

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executadas justamente para ornar o salão de às etapas do processo criativo, que incluía,
debates da referida academia. A tese de War- em primeira escala, as figuras do comitente e
burg aparece como primeiro capítulo em A do idealizador erudito. Era um modo muito
renovação da Antiguidade pagã. concreto de compreender a arte no âmbito
Na tese sobre Botticelli, Aby Warburg da cultura do Renascimento.
apresentava já o interesse pelo processo cons- O termo cultura do Renascimento, en-
titutivo das obras de arte e, ao mesmo tem- tretanto, remetia Warburg a um estudioso
po, sua disposição de seguir o caminho das cujo nome é já uma referência ao tema e de
transmissões do legado antigo no limiar da quem Warburg afirmaria, logo depois, ser
era moderna. E tudo isso é realizado num es- um seu continuador. Tratava-se de Jacob
tudo de caso, analisando dois quadros para Burckhardt, a quem Warburg enviou a tese
compreender, de modo individualizado, um sobre Botticelli e recebeu de volta uma carta
problema histórico que certamente não se com as seguintes palavras: “com o seu escrito
apresentava isoladamente, mas, ao contrário, o senhor fez cumprir um passo adiante no
indicava um edifício maior. Decerto, seu conhecimento do medium social, poético e
aprendizado em Bonn, com Carl Justi, teria humanístico no qual Sandro [Botticelli] vi-
contribuído para a elaboração de uma pers- via e pintava”.
pectiva microscópica. Justi havia aprendido Burckhardt concedera a Warburg, de
com seu antecessor e mestre, Anton Springer fato, o tema da cultura do Renascimento
(1825-1891), como abordar amplos proble- sob uma perspectiva de movimento e inter-
mas históricos focados em personagens in- -relações culturais que o estudioso de Ham-
dividuais. Springer é o criador de um gênero burgo aprofundará ao longo de seus estudos.
historiográfico, muito empregado no âmbito O livro de Warburg é organizado em seções
dos estudos culturais e artísticos, que ficou que, por sua vez, são compostas por textos
conhecido como Monographie. Carl Justi de várias fases de sua vida, revelando que o
transformou-se no mestre do gênero mono- autor lidou com alguns temas mais gerais,
gráfico, autor de monografias sobre Miche- revisitando-os ao longo de sua trajetória.
langelo, Velazquez e Winckelmann. Algumas dessas seções temáticas são intei-
Mas Warburg estivera também em Es- ramente ligadas a caminhos trilhados por
trasburgo e, sob orientação de Janitschek, Jacob Burckhardt. O mais claro exemplo é
autor do livro Die Gesellschaft der Renaissance a primeira seção, “A Antiguidade na cultura
und die Kunst in Italien (A sociedade do Re- burguesa florentina”, da qual faz parte a tese
nascimento e a arte na Itália), aproximara-se sobre Botticelli, seção facilmente referível
da perspectiva da história social da arte. Esse ao centro do estudo de Burckhardt contido
aprendizado estava presente na tese de 1893, em seu livro mais conhecido, A cultura do
no movimento de ampliação da interpreta- Renascimento na Itália, de 1860. Além dis-
ção da arte florentina do Quattrocento do so, é importante citar o texto warburguia-
âmbito propriamente do artista em direção no de 1902, “A Arte do retrato e a burgue-

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sia florentina”, que se anuncia, já na “Nota de altar” e “Os colecionadores”. Uma das li-
preliminar”, como continuação ao livro de nhas interpretativas que atravessavam esses
Burckhardt sobre o tema, recentemente edi- textos de Burckhardt era a importância da
tado no Brasil: O retrato na pintura italiana pintura flamenga para a formação do gosto
do Renascimento. Warburg se utiliza de um artístico de uma classe de mercadores flo-
único afresco, pintado por Domenico Ghir- rentinos encomendantes das obras artes e,
landaio na Capela Sassetti, na igreja floren- consequentemente, seu papel da execução
tina de Santa Trinità, para compreender o da pintura em Florença. O outro aconteci-
problema da relação entre cristianismo me- mento editorial importante para W ­ arburg,
dieval e paganismo antigo na Florença da se- nesse momento, foi o aparecimento, em
gunda metade do século XV. A abordagem 1888, do livro de Eugène Müntz sobre
de Warburg colocava, de novo, no centro a as coleções dos Medici no século XV, Les
relação entre comitente e artista, nesse caso, collections des Médicis au quinzième siècle, que
entre o retratista, Ghirlandaio, e o retratado, também tinham sido de grande valia para os
Francesco Sassetti, que representa o figura citados estudos de Burckhardt. O estudo do
do burguês laico e culto do primeiro Renas- inventário dos Medici permitia compreen-
cimento florentino. Sassetti é o banqueiro, der um progressivo interesse, em Florença,
assolado cotidianamente pelo pecado da pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre
usura, que manda pintar sua capela fúnebre madeira, em comparação com a tradicional
em homenagem a São Francisco, santo que pintura a fresco. Com esse processo, era pos-
simboliza o despojamento dos bens mate- sível perceber a importância da arte flamen-
riais e exalta a pobreza como redenção. ga no ambiente dos Medici, e não apenas do
Entretanto, seria interessante nos vol- ponto de vista da pintura, mas também da
tarmos a outras duas seções do livro de tapeçaria. A partir do livro de Müntz, era
Warburg, com o intuito de compreender o possível concluir que os flamengos tinham
quanto foi-lhe importante o ensinamento de condicionado o desenvolvimento do primei-
Burckhardt. A primeira delas intitulou-se ro colecionismo italiano, em especial, pela
“O intercâmbio entre as culturas florentina capacidade realística da pintura a óleo de-
e flamenga”. Dois acontecimentos editoriais senvolvida em Flandres, mas também pela
marcaram o encontro de Warburg com o facilidade de circulação dos tecidos, dos
tema das relações culturais entre Florença tapetes e dos quadros flamengos de peque-
e Flandres no Quattrocento. O primeiro nas dimensões, fato que antecede a circula-
foi a edição póstuma de parte dos últimos ção dos próprios artistas nórdicos na Itália.
escritos de Burckhardt sobre a arte italiana Desse modo, os inventários das coleções dos
do Renascimento, em 1898, as Beiträg zur Medici confirmavam a importância da liga-
Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à ção entre a tarefa ditada pelo colecionador e
história da arte na Itália), que conteve três o conteúdo de uma obra. Warburg, então,
ensaios “O retrato na pintura”, “O retábulo dedica-se a ampliar e aprofundar as indica-

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ções a esse respeito, presentes nos textos de festa era, portanto, não apenas o momento
Burckhardt, com estudos de casos entre os de apresentação da expressividade artística,
anos de 1899 e 1907. Toda a seção do livro com todo o aparato que compõe a arquitetu-
trata desse tema, refletindo, uma vez mais, ra decorada, mas sobretudo o palco da ence-
o interesse de Warburg em compreender as nação da existência, quase uma transição da
imagens como símbolos de circulações, de vida para a arte. Os cortejos e as encenações
migrações de homens e de ideias, seu esfor- festivas eram, para Warburg, ocasiões para
ço em perfazer os caminhos das conexões, contemplar a vida social, bem como para
dos encontros entre elementos distintos, sua interpretar o aparato artístico de que eram
determinação em entender a fronteira como compostos. Esse aparato, em sua concretu-
o próprio terreno da história. Além disso, de, revelava-se, então, documento do signifi-
encantava-lhe o fascínio do mundo refinado cado histórico da Antiguidade clássica para
toscano pelos meios de expressar o vivo, tra- os homens dos séculos XV e XVI na Itália,
zidos à luz pela arte flamenga. Para Warburg, bem como no mundo nórdico, indicando
essa pintura é um exemplo emblemático da ainda as ligações entre esses dois universos
compreensão espontânea demonstrada pela culturais.
burguesia toscana em direção à arte nórdica, Exatamente a busca de diálogo entre
resultado da mescla de elementos humanos norte e sul dos Alpes havia movido War-
que se atraem por seu contrário. burg a idealizar sua biblioteca particular.
A outra seção que demonstra quão pe- Sua intenção era reunir um acervo de livros
rene foi o influxo de Burckhardt sobre a e documentos que constituíssem as malhas
obra de Warburg é aquela relativa ao tema de ligação entre o Sul e o Norte da Europa,
da “Antiguidade e o presente na vida festiva concentrando num único lugar a livre con-
do Renascimento”. Burckhardt tinha intitu- sulta de publicações fundamentais sobre esse
lado a parte 5 de A cultura do Renascimento contato cultural. Ele, então, escolheu um
na Itália de “A sociabilidade e as festivida- tema que pudesse amalgamar sua proposta
des”, entrelaçando o esplendor artístico nas de seguir o diálogo e as relações transalpi-
cidades da Itália renascentista às festividades nas, sem deixá-los dispersar-se no infinito.
em sua formulação mais elevada, como um Escolheu o tema da influência da Antigui-
movimento superior da vida do povo, mo- dade, com o qual desenvolvia já à época seu
mento no qual seus ideais religiosos, mo- trabalho de pesquisa.
rais e poéticos assumem uma forma visível. Corria o ano de 1902 e, numa conver-
Warburg, por sua vez, buscou conceber a sa em família, Aby Warburg adquiriu, por
expressão humana na obra de arte figurati- parte de seu pai, com o apoio de seu irmão
va como imagem da vida prática em movi- mais velho, Max, a quantia de 1.700 marcos
mento, tanto para o caso do culto religioso, para instalar sua biblioteca no edifício onde
quanto para aquele do drama da cultura por permanecera até 1933, em Hamburgo. Era
meio da festividade ou do palco cênico. A o início da Biblioteca Warburg para a Ci-

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ência da Cultura, transformada depois em da transposição da arte italiana ao mundo


instituto de pesquisa. A biblioteca nascia, germânico, também a face bifrontal da in-
assim, como fruto de um problema históri- fluência da doutrina clássica no Renascimen-
co de alta relevância, e talvez ainda hoje não to, tanto ao norte, quanto ao sul dos Alpes.
explorado a contento: o problema das trans- Warburg queria demonstrar que a Antigui-
posições históricas do mundo mediterrânico dade chegou a Dürer, por intermédio da Itá-
em direção è Europa nórdica, um tema que lia, na forma de estímulos dionisíacos, mas
seguia, no início do século XX, a contrape- também com a sobriedade apolínea.
lo dos caminhos políticos da Europa à beira Em 1908, estudando desenhos, gravuras
dos conflitos nacionais. Enquanto Warburg e calendários dos séculos XV e XVI, pro-
buscava os contatos culturais, as transposi- venientes da Itália e do mundo germânico,
ções, as circulações de modelos literários e Warburg aponta para o momento em que
imagéticos da Antiguidade aos tempos mo- ocorre uma mudança estilística nessas ima-
dernos, do Sul em direção ao Norte, ven- gens pela entrada em cena das influências da
ciam, na Europa das primeiras décadas do escultura clássica sobre as representações tar-
Novecentos, as ideias de identidades nacio- do-medievais de imagens de deuses oriundos
nais, baseadas na noção de fronteiras natu- da Antiguidade tardia. Há, portanto, para
rais na formações dos povos europeus. As- o estudioso de Hamburgo, uma refigura-
sim, ao final da Primeira Guerra, Warburg ção de ilustrações medievais provocada pela
sucumbiu a uma forte crise psiquiátrica e foi redescoberta renascentista da arte da Anti-
internado numa clínica na Suíça, onde per- guidade. Para isso, ele realizava também, no
maneceu até 1923. estudo de 1908, as primeiras incursões no
No que se refere ao livro em questão, é tema da astrologia.
importante salientar a intensificação dos es- De fato, Warburg dedica-se de modo sis-
tudos de Warburg em temas históricos que temático aos estudos astrológicos a partir da
permitem um aprofundamento das inter- leitura, realizada em 1907, do livro de Franz
-relações e transferências culturais entre o Boll (1867-1924). Filólogo clássico e profes-
mundo mediterrânico e a Europa nórdica. sor na Universidade de Heidelberg, eminente
As demais seções do livro apontam nessa especialista em história da astrologia, Franz
direção, indo, nesse sentido, muito além da Boll havia publicado, em 1903, Sphaera.
perspectiva de Burckhardt. Neue griechische Texte und ­untersuchungen
Em primeiro lugar, Warburg aborda o zur geschichte der Sternbilder. Nesse livro,
tema da Antiguidade italiana na Alemanha Boll, mediante fragmentos de textos e re-
a partir da obra de Dürer, estudando, em ferências indiretas, conseguiu restituir um
1905, a circulação de gravuras provenientes dos mais influentes tratados sobre o céu da
do ambiente de Andrea Mantegna no âm- Antiguidade Clássica, a Sphaera barbarica,
bito do artista de Nüremberg. Interessa a do babilônico Teucro (séc. I a.C.). Partindo,
­Warburg compreender, além propriamente então, do tratado de Teucro, Franz Boll em-

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preende uma reconstrução detalhada da mi- também o momento de apresentação para


gração da astrologia e da astronomia grega um público internacional de sua metodo-
por meio de suas transmissões no Oriente e logia histórico-artística, onde a abordagem
na Idade Média latina. O texto de Teucro iconológica figurava em gênese. Na confe-
mostrava já, por sua vez, a contaminação e o rência, que na edição brasileira apresenta o
enriquecimento da sphaera clássica com no- título “A arte italiana e a astrologia inter-
vos asterismos orientais, ou seja, o catálogo nacional no Palazzo Schifanoia de Ferrara”,
das estrelas fixas de Arato (séc. III a.C.). Na Aby Warburg encontrava nos afrescos a con-
época helenística, esse céu de poucas cons- firmação de sua hipótese de trabalho, qual
telações foi preenchido com novas figuras seja, a transmissão ao Renascimento italiano
provenientes da tradição egípcia, aramaica de uma tradição iconográfica grega antiga,
e babilônica. Esse catálogo de constelações, através da mediação indiana e árabe. Era
mescla de elementos gregos e orientais, teve essa uma forma de sobrevivência dos deuses
grande fortuna e, no curso do tempo, foi pagãos que passava por um grande percurso
enriquecido com ornamentos astrológicos migratório até tocar o território da Península
indianos e persas. Portanto, o tema do livro Itálica, marcando a importância da tradição
de Franz Boll é a história da compilação de antiga para a formação da Europa moderna.
Teucro, e de suas migrações na Antiguidade Com a conferência de 1912, Warburg
e na Idade Média, entre diversas culturas no observava o quanto o classicismo grego es-
Oriente e no Ocidente. tava perpassado por elementos orientais,
Warburg, por seu turno, havia começado oriundos do Egito, da Pérsia, da Mesopotâ-
a estudar intensamente a história da mito- mia. Portanto, sua noção de “antigo” tinha
grafia e da astrologia, focalizando a descrição uma forte dose do primitivismo a minar o
das divindades pagãs nos textos medievais e equilíbrio olímpico das divindades gregas.
a continuidade do imaginário astrológico da Paralelamente, sua noção de Renascimento
antiguidade nos tempos modernos. O livro ampliava-se ainda mais, ultrapassando em
de Boll despertou-lhe o interesse pelo estudo muito as relações entre arte nórdica e pri-
dos textos astrológicos indianos, o que seria meiro Renascimento na Itália, que até 1907
fundamental para sua interpretação da ico- tinha dado um sentido a seus estudos histó-
nografia das pinturas do Palácio Schifanoia rico-artísticos. Com a conferência de 1912,
de Ferrara. Em 1909, imerso no estudo sobre Warburg distanciava-se de Burckhardt,
astrologia, Warburg entra em contato episto- tanto na concepção da Antiguidade grega,
lar com Franz Boll. Em 1912, Aby Warburg quanto na noção de Renascimento. Com o
apresenta, no X Congresso Internazionale di estudo sobre os afrescos astrológicos do Pa-
Storia dell’Arte di Roma, uma conferência lácio Schifanoia de Ferrara, o Renascimento
em que decifra os afrescos do Palácio Schi- de Warburg absorve o vasto universo das
fanoia a partir da história da tradição astro- interpretações árabes e indianas do mundo
lógica. A conferência de 1912 representaria grego antigo, compreendendo, assim, um

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caminho migratório muito amplo a conec- Warburg consiste em interrogar os símbolos


tar o Renascimento italiano à Antiguidade sobre o que eles comunicam, localizando
grega. sua indagação no intervalo entre o páthos e o
O texto de 1912 é, então, emblemático símbolo propriamente. Assim, Aby Warburg
na obra de Warburg por indicar um rompi- concentrou-se no intervalo pré-linguístico
mento com todas as fronteiras que os estu- da experiência humana, situado entre a co-
diosos da arte e da cultura do Renascimento moção causada pelos fundamentais senti-
tinham até então estabelecido, dando um mentos do homem, tais como a dor, a morte,
caráter internacionalista a sua interpretação. o amor, e o impulso de representá-los com
Nem mesmo as históricas fronteiras entre imagens, transformando-os em símbolos.
Ocidente e Oriente permaneceriam de pé Desse modo, seu estudo direcionou-se
depois de seu estudo apresentado em Roma. ao mundo das formas simbólicas (então o
É curioso que essa abordagem tenha perma- mito, a arte, a linguagem, a ciência), como as
necido fora do centro nefrálgico dos estudos tinha definido seu amigo e colaborador dos
histórico-artísticos durante o século XX. anos finais em Hamburgo, Ernst ­Cassirer,
Assim, o livro canônico de Warburg, autor do livro dedicado a Warburg, A filo-
agora editado em língua portuguesa, cum- sofia das formas simbólicas. No livro, Cassirer
pria em parte a tarefa de apresentar às gera- compreende as formas simbólicas não como
ções futuras o autor formado em ambientes imitações do real, e sim como órgãos da re-
intelectuais que, no final do Oitocentos, co- alidade, ou seja, como modo de converter o
municavam a história social da arte com a real em objeto de captação intelectual, tor-
história da cultura, a história das religiões nando-o visível para nós.
e a nascente antropologia. Um autor que, Porém, a fase de maior colaboração inte-
de fato, jamais teve a intenção de dar vida a lectual entre os dois infelizmente não ficara
uma disciplina específica, mas, ao contrário, registrado em A renovação da Antiguidade
percorreu, movendo-se por resultados que a pagã. Exatamente a fase final de seu trabalho,
psicologia, a antropologia, a linguística da após a recuperação da crise psicológica e o
época lhe ofereciam, a evolução dos meca- retorno, em 1923, às atividades na biblioteca
nismos fundamentais da expressão humana, de Hamburgo. Cassirer tinha chegado à ci-
que tinham conduzido determinadas cul- dade, para ensinar na recém-fundada univer-
turas do antropomorfismo ao pensamento sidade, em 1920, ao lado de Erwin P ­ anofsky
simbólico. Warburg, na verdade, procura de- e do jovem Edgar Wind, este último estu-
monstrar que o comportamento humano é dante de doutorado. Essa fase da atividade de
sempre mediado pelo uso de símbolos. Com Warburg diz respeito a sua conferência sobre
base nisso, sua busca não foi a de mover os “O ritual da serpente”, ao projeto inacabado
símbolos para captar uma presumível verda- do “Atlas Mnemosyne”, à conferência auto-
de histórica neles submersa. Ao contrário, o biográfica “De arsenal a laboratório”, ao tex-
movimento intelectual presente na obra de to sobre Burckhardt e Nietzsche, aos cursos

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ministrados como convidado na Universida- Atlas ­Mnemosyne. Este último, organizado a


de de Hamburgo sobre Burckhardt e sobre partir da edição alemã, que, sob os cuidados
“O método da ciência da cultura”. Tam- de Martin Warnke, é uma nova seleção dos
bém esteve fora do livro de 1932, traduzido escritos do estudioso de Hamburgo. É im-
no Brasil em 2013, uma série de textos de portante citar, ainda, a edição alemã de 2010,
­Warburg anteriores ao internamento na Suí- que mescla textos presentes no livro de 1932
ça. A maior parte desse volumoso c­ orpus per- com outros até então inéditos em alemão.
manece inédita em português, e, na verdade, Não citaremos aqui as edições de comenta-
só se tornou pública no início dos anos 2000, dores da obra de Warburg, surgidas sobretu-
sobretudo na Itália e na Alemanha. Vale ci- do desde os anos 2000, trazendo importan-
tar aqui o fundamental trabalho a partir tes releituras de sua produção.
dos manuscritos realizado pelo estudioso Tudo isso decerto não tira o mérito da
italiano, Maurizio Ghelardi, que traduziu edição recentemente traduzida no Brasil.
diretamente ao italiano e publicou em dois Porém, revela a importância da obra de
volumes, em 2004 e 2008, as Opere de Aby Warburg para o estudo das imagens, seja no
Warburg. O trabalho de Maurizio Ghelardi âmbito da história da arte e da cultura, seja
traz ainda o mérito de editar a inédita cor- no campo da pesquisa antropológica ou da
respondência entre Warburg e Cassirer, além teoria da imagem. Oxalá a edição brasileira
da publicação em conjunto na Alemanha de 2013 sirva de incentivo para novas tradu-
(traduzida na França) dos últimos escritos ções e edições de escritos de Aby Warburg
de Warburg, de algumas de suas cartas e da no Brasil.
introdução ao Atlas Mnemosyne. Ghelardi é
responsável, ainda, pela edição italiana dos
*
Cássio Fernandes é professor adjunto do Departa-
mento de História da Arte da Universidade Federal
estudos de Warburg sobre os índios pueblos de São Paulo. E-mail: cassiofer@hotmail.com.
do Novo México, bem como do próprio

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