Você está na página 1de 73

© 2011, Les Éditions de Minuit

Título original: Atlas ou le gai savoir inquiet


© 2018, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
v
escrita do Editor.

D556a.Pa Didi-Huberman, Georges, 1953-


Atlas, ou, O gaio saber inquieto / Georges Didi-Huberman ;
tradução Mareia Arbex e Vera Casa Nova. - Belo Horizonte ■ Editora
UFMG, 2018.
458 p. : il. - (O olho da história ; III) (Humanitas)
Tradução de; Atlas, ou, Le gai savoir inquiet.
ISBN: 978-85-423-0240-0

l.Warburg,Aby, 1866-1929. 2. Artes - História. 3. Imagem


(Filosofia). 4. Cultura. I. Arbex, Márcia. II. Casa Nova, Vera.
III. Título. IV. Título: O gaio saber inquieto. V. Série. VI, Série.

CDD; 700.1
CDU: 7

Elaborada pela Biblioteca Professor Antônio Luiz Paixão - FAFICH/UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO Heloísa Maria Murgel Starling


DIREITOS AUTORAIS Anne Carolíne Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eiiane Sousa
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Lira Córdova
REVISÃO TÉCNICA Roberto Said
PREPARAÇÃO DE NOTAS Roberta Paiva
REVISÃO DE TEXTOS Bruna Emanuele Fernandes e Roberta Paiva
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro
IMAGEM DA CAPA Detalhe de Atlas Holding World Greek Statue
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 - CAD II / Bloco III
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 - Fax: + 55 31 3409-4768
www.editoraufmg.com.br - editora@ufmg.br
I

DISPARIDADES

LER O QUE NUNCA FOI ESCRITO


O INESGOTÁVEL, OU
O CONHECIMENTO PELA IMAGINAÇÃO

Imagino que, ao abrir este livro, meu leitor já saiba pratica-


mente e muito bem era que consiste um atlas. Ele possui, sem
dúvida, ao menos um em sua biblioteca. Mas ele o "leu"? Pro-
vavelmente não. Não se "lê" um atlas como se lê um romance,
um livro de história ou um argumento filosófico, da primeira
à última página. Aliás, um atlas começa freqüentemente - nós
logo o verificaremos - de modo arbitrário ou problemático,
bem diferente do início de uma história ou da premissa de um
argumento; quanto a seu objetivo, ele freqüentemente remete à
ocorrência de uma nova região, de um campo novo do saber a
ser explorado, de modo que um atlas quase nunca possui uma
forma que se poderia dizer definitiva. Além disso, um atlas não
é necessariamente feito de "páginas , no sentido habitual do
termo: antes mesas, pranchas onde estão dispostas imagens,
pranchas que consultamos com um fim preciso, ou, antes, que
folheamos com vagar, deixando divagar nossa vontade de
saber" de imagem em imagem e de prancha em prancha. A
experiência demonstra que quase sempre usamos o atlas com-
binando estes dois gestos aparentemente tão dissociados: nós o
abrimos primeiro para procurar uma informação precisa, mas,
uma vez obtida a informação, não o abandonamos forçosamente,
continuando a percorrer suas bifurcações em todos os sentidos;

17
sem podermos encerrar a coleção de pranchas senão depo.s de
termos deambulado durante um tempo, de forma errática, sem
intenção precisa, através de sua floresta, sen labirinto, seu tesouro,
esperando uma próxima vez, tão inútil ou fecunda.
Compreende-se já, pela evocação desse duplo uso, para-
oxal, que o atlas, com sua aparência utilitária e inofensiva
podena se revelar, a quem o olha atentamente, como um objeto'
Pengoso, ate explosivo, embora inesgotavelmente gene-
roso. Uma mina, enfim. O atlas é uma forma visual do saber
uma forma sábia do ver. Mas, para reunir, para imbnear ou'
imphcar os dois paradigmas que supõe esta última expressão
paradigma estético da forma visual, paradigma epistêmico
do saber -, o atlas subverte de fato as formas canônicas em
que cada um desses paradigmas encontrou sua excelência e
mesmo sua condição fundamental de existência. A grande
tradição platônica promoveu, sabe-se, um modelo epistêmico
fundado sobre a preeminência da Idéia: o conhecimento verda-
deiro supõe, nesse contexto, que apenas uma esfera inteligível
seja previamente extraída - ou purificada - do meio sensível
portanto, de imagens, onde nos aparecem os fenômenos. Em
visões modernas dessa tradição, as coisas {Sachen, em alemão)
so encontram sua razão, suas explicações, seus algoritmos em
Ursachen) corretamente formuladas e deduzidas, por
exemplo, na linguagem matemática.
Tal seria, resumidamente, a forma padrão de toda ciência A
desconfiança de Platão em relação aos artistas - esses perigosos
azedorts de imagens , esses manipuladores da aparência -
não impediu contudo que a estética humanista retomasse por
sua vez, todo o prestígio da Idéia, como Erwin Panofsky bem
o mostrou.1 E assim que Leon Battista Alberti, em seu De Pic-
tura, pôde reduzir a noção de quadro à unidade regular de um
"período" retórico, uma "frase correta" em que cada elemento
superior se deduziria logicamente - idealmente - dos elemen-
tos de ordem inferior: as superfícies engendram membros que

18
engendram corpos representados, como num período retórico,
em que as palavras engendram as proposições que engendram as
"cláusulas" ou "grupos" de proposições.2 Nas versões modernas
dessa tradição, que se encontram, por exemplo, no modernismo
de Clement Grenberg, ou, mais recentemente, de Michel Fried,
os quadros encontram sua razão superior na própria clausura
de suas próprias molduras espaciais, temporais e semióticas, de
sorte que a relação ideal entre Sache e Ursache conserva intacta
sua força de lei.
Forma visual do saber ou forma sábia do ver, o atlas inquieta
todos os quadros de inteligibilidade. Ele introduz uma impure-
za fundamental - mas também uma exuberância, uma notável
fecundidade - que esses modelos tinham sido concebidos para
conjurar. Contra toda pureza epistêmica, o atlas introduz no
saber a dimensão sensível, o diverso, o caráter lacunar de cada
imagem. Contra toda pureza estética, ele introduz o múltiplo,
o diverso, o hibridismo de toda montagem. Essas pranchas de
imagens nos aparecem antes de qualquer página de narrativa,
de silogismo ou de definição, mas também antes de qualquer
quadro, quer essa palavra seja entendida em sua acepção artística
(unidade da beleza fechada em seu quadro) ou em sua acepção
científica (exaustão lógica de todas as possibilidades definitiva-
mente organizadas em abscissas e em coordenadas).
O atlas faz, então, imediatamente, explodir os quadros. Ele
quebra tanto as certezas autoproclamadas da ciência, que não
duvida de suas verdades, quanto as da arte, que não duvida de
seus critérios. Ele inventa, em meio a isso tudo, zonas intersti-
ciais de exploração, intervalos heurísticos. Ele ignora delibe-
radamente os axiomas definitivos. É que ele faz parte de uma
teoria do conhecimento fadada ao risco do sensível e de uma
estética fadada ao risco da disparidade. Ele desconstrói, por
sua própria exuberância, os ideais de unicidade, especificidade,
pureza, conhecimento integral. Ele é um instrumento não de
esgotamento lógico das possibilidades dadas, mas da inesgotável

19
abertura aos possíveis não ainda dados. Seu princípio, seu mo-
tor, é a imaginação. Imaginação: palavra perigosa (assim como
já o é a palavra imagem). Mas é preciso repetir, com Goethe,
Baudelaire ou Walter Benjamin,3 que a imaginação, por mais
desconcertante que seja, não tem nada a ver com uma fantasia
pessoal ou gratuita. Ao contrário, é um conhecimento transversal
que ela nos oferece, por sua potência intrínseca de montagem
que consiste em descobrir - ali mesmo onde ela recusa os laços
suscitados pelas semelhanças óbvias - laços que a observação
direta é incapaz de discernir:

A imaginação não é a fantasia; tampouco a sensibilidade, mes-


mo que seja difícil conceber um homem imaginativo que não seja
sensível. A imaginação é uma faculdade quase divina que percebe
tudo primeiro, fora dos métodos filosóficos, das relações íntimas e
secretas das coisas, das correspondências e das analogias. As honras
e as funções que ele confere a essa faculdade lhe dão um valor tal
(...), que um sábio sem imaginação só aparece como um falso sábio,
ou pelo menos como um sábio incompleto.4

A imaginação aceita o múltiplo (e até goza disso). Não para


resumir o mundo ou esquematizá-Io em uma fórmula de sub-
sunção. e nisso que um atlas se distingue de todo breviáno ou
de todo resumo doutrinai. Não mais para catalogá-lo ou para
esgotá-lo numa lista integral: é nisso que um atlas se distingue de
todo catálogo e mesmo de todo arquivo supostamente integral.
A imaginação aceita o múltiplo e o reconduz constantemente
para nele detectar novas "relações íntimas e secretas", novas
"correspondências e analogias", que serão elas mesmas inesgotá-
veis, assim como é inesgotável todo pensamento das relações que
uma montagem inédita, cada vez, será suscetível de manifestar.
O inesgotável: há tantas coisas, tantas palavras, tantas ima-
gens através do mundo! Um dicionário se sonhará como se
fosse seu catálogo ordenado segundo um princípio imutável e

20
definitivo (o princípio alfabético, neste caso). O atlas, por sua
vez, é guiado por princípios moventes e provisórios, os quais
podem fazer surgir inesgotavelmente novas relações - bem mais
numerosas ainda do que os próprios termos - entre coisas ou
palavras que, em princípio, nada parecia reunir. Se procuro a
palavra atlas no dicionário, nada além dela, normalmente, me
interessará, salvo talvez as palavras que apresentam um paren-
tesco direto, visível: atlante ou atlântico, por exemplo. Mas, se
começo a olhar a página dupla do dicionário aberto diante de
mim como uma prancha onde eu poderia descobrir "relações
íntimas e secretas" entre atlas e, por exemplo, atol, átomo, ateliê
ou, em outro sentido, astúcia, assimetria ou assimbolia, é então
que começo a desviar o próprio princípio do dicionário para um
muito hipotético, um muito aventureiro princípio-atlas.
A pequena experiência que descrevo aqui lembra evidentemen-
te algo como um jogo infantil: pergunta-se à criança a lectio de
uma palavra no dicionário, e ei-la logo solicitada pela delectatio
de um uso transversal e imaginativo da leitura. Criança tão pouco
comportada quanto são as imagens (daí a falsidade, a hipocrisia
de um provérbio tal qual sage comme une image). Ela não lê para
pegar o sentido de uma coisa específica, mas para ligar essa coi-
sa, imediatamente, a muitas outras, imaginativamente. Haveria,
então, dois sentidos, dois usos da leitura: um sentido denotativo
em busca de mensagens, um sentido conotativo e imaginativo
em busca de montagens. O dicionário nos oferece inicialmente
um instrumento precioso para a primeira dessas buscas, o atlas
nos oferece certamente um aparelho inesperado para a segunda.
Ninguém melhor que Walter Benjamin expôs o risco - e
a riqueza - dessa ambivalência. Ninguém melhor articulou
a "legibilidade" (Lesbarkeit) do mundo com as condições
imanentes, fenomenológicas ou históricas da "visibilidade"
(Anschaulichkeit) das coisas, antecipando a obra monumental
de Hans Blumenberg sobre esse problema.5 Ninguém melhor
liberou a leitura do modelo puramente lingüístico, retórico ou

21
argumentativo que se lhe associa geralmente. Ler o mundo é algo
extremamente fundamental que não se pode confiar unicamente
aos livros ou se confinar neles: pois ler o mundo é também reatar
as coisas do mundo segundo suas "relações íntimas e secretas",
suas "correspondências" e suas "analogias".
Não somente as imagens se dão a ver como cristais de "legibi-
lidade histórica,6 mas ainda toda leitura - mesmo a leitura de um
texto - deve contar com os poderes da semelhança: "O sentido
tecido pelas palavras ou frases constitui o suporte necessário
para que apareça, com a rapidez do relâmpago, a semelhança"7
entre as coisas.
Poderíamos dizer, nessa perspectiva, que o atlas de imagens
é uma máquina de leitura no sentido mais amplo que Benjamin
quis dar ao conceito de Lesbarkeit. Ele entra em toda uma cons-
telação de aparelhos que vão da "caixa de leitura" {Lesekasten)
à câmara fotográfica e à câmera, passando pelos gabinetes de
curiosidades ou, mais trivialmente, as caixas de sapato cheias de
cartões postais que achamos - hoje ainda - nas lojas de nossas
antigas passagens parisienses. O atlas seria um aparelho da leitura
antes de tudo, quero dizer, antes de qualquer leitura "séria" ou
em sentido estrito : um objeto de saber e de contemplação para
as crianças, ao mesmo tempo infância da ciência e infância da
arte. E disso que Benjamin gostava nos abecedários ilustrados,
nos jogos de construção e nos livros para a juventude.8 Foi o que
quis compreender em nível mais fundamental - antropológico
- quando evocou, com uma fórmula magnífica, o ato de "ler o
que jamais foi escrito" [was niegeschrieben wurde, lesen). "Esse
tipo de leitura, acrescenta, é o mais antigo; a leitura antes de
toda linguagem."9
Mas o atlas oferece também todos os recursos para o que se
poderia chamar uma leitura depois de tudo: as ciências humanas
a antropologia, a psicologia e a história da arte, notadamente —
conheceram, no fim do século XIX e sobretudo nos primeiros decê-
nios do século XX, uma subversão capital onde o "conhecimento

22
pela imaginação", não menos que o conhecimento da imaginação
e das próprias imagens, terá desempenhado um papel decisivo:
desde a sociologia de Georg Simmel, tão atenta às "formas", até
a antropologia de Mareei Mauss, desde a psicanálise de Sigmund
Freud - onde a observação clínica disposta em "quadro" dava
lugar ao labirinto de "associações de idéias", transferências,
deslocamentos de imagens e sintomas - até a "icohologia dos
intervalos" em Aby Warburg... Iconologia fundada sobre a "co-
naturalidade, a coalescência natural da palavra e da imagem"10
[die natürliche Zusammengehõrigkeit von Wort imd Bild), uma
hipótese da qual a Lesbarkeit benjaminiana se revela não somente
contemporânea, mas ainda intimamente concomitante. Iconologia
cujo último projeto foi, sabe-se, a elaboração de um atlas; essa
famosa coleção de imagens Mnemosyne que será, aqui, nosso
ponto de partida, tanto quanto nosso leitmotif.11

HERANÇA DE NOSSO TEMPO:


O ATLAS MNEMOSYNE

Poderíamos, sem dificuldade, parafraseando as fórmulas de


Ernst Bloch em Herança deste tempo, considerar a forma atlas
- ao mesmo título que a montagem da qual procede - como esse
tesouro de imagens e de pensamentos que nos resta da "coerên-
cia desmoronada" do mundo moderno.12 Não somente o atlas,
desde Warburg, modificou em profundidade as formas - logo,
os conteúdos - de todas as "ciências da cultura", ou ciências
humanas,13 como também incitou um grande número de ar-
tistas a repensar completamente, sob a forma da coleção e da
remontagem, as próprias modalidades segundo as quais as artes
visuais são hoje elaboradas e apresentadas.14 Desde o Handatlas
dadaísta, o Álbum de Hannah Elõch, os Arheitscollagen de Karl
Blossfeldt ou a Boite-en-valise de Mareei Duchamp até os Atlas
de Mareei Broodthaers e de Gerhard Richter, os Inventaires de
Christian Boltanski, as montagens fotográficas de Sol LeWitt
OU ainda o Álbum de Hans-Peter VAA
dt
adição pictural que explode "a""' ' í0'''' ' armi"iura
Wfeo,,) único, fechado so()re siP ^ AsSlm' n^e d° l^dro
- ate no que se chama obra-prima" - / r r 6 OU de 8êni0

artIStaS e : ensa
se comprometeram a descer nor as '' J ^ í' dores
1Zer modeStamente até
mais simples, embora mais disparatai ' a
Um
ser sublime, uma "mesa" nr '^ Pode
jamaiS
Mesa de^erendricorhrdT" "^
OU dem0 ta
depende do caso. Mesa ou "prancha "TT " 8™.
inglês ou Wnn em ^ W-se ptee em
anCeS COm0 para Ta el
em alemão ou tavola em italia ' ' f
cerra relação ^oZIToT ^ ^ ™
* quadro,. Como no caso da impreSo^u T'
Um proced
idade que tantos de nossos conm - imento sem
mp0raneos
Mareei Duchamp" - constata gorarão desde

1 0
^^quadroLuirr^C
-is ^™^
modesta ^ e às suas sobre^Z^T ^'
e um objeto anacrônico uma vez eme te Pensadas. O atlas
balham sempre juntos- a "lein mpos heterogêneos tra-
depois de rudo , como cn f ^ » "'-ura
POr exem l0
a reprodutibílídade técnica da idalT f P .
antigos usos desse objeto do • ■ C
"'"grahca con, (,s lnais
m amad0
Oue se falava mZ ZTo ''meS
d
'superfície de i„s "X-d o quadro como
1 SM
dadeatravés de uma i™ ','
eSPaC,a1
uma vertical idade que nos dom^^r/patde '

~a ^ "0
opera Mpittore> ^
86 tlUer defmitiva
ao olhar da história. A mesa é o s, n

-T-™dIHcar,sn:rrm^T6Mh0S ™P-
superfície de encontros e de Pie ■ ~ somente
"ma
"ela e nela se despeja, alternadamente mdTZ

^^ - - - -
ladura hierarquia. A unicidade do quadro dá lugar, sobre uma mesa, à
uadro abertura sempre renovada de possibilidades, novos encontros,
gênio novas multiplicidades, novas configurações. A beleza-cristal do
'dores quadro - sua centrípeta beleza achada fielmente fixada, como um
íat
da troféu, sobre o plano vertical da parede - dá lugar, sobre uma
pode mesa, à beleza rompida das configurações que nela ocorrem, cen-
trífugas belezas-achados indefinidamente moventes sobre o plano
gem, horizontal de seu platô. Na famosa fórmula de Lautréamont,
e ern
"Belo como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de
fafel uma máquina de costura e de um guarda-chuva", os dois objetos
urna
surpreendentes, a máquina de costura e o guarda-chuva, não cons-
Não tituem, sem dúvida, o essencial: o que conta é, antes, o suporte
se
m de encontros que define a própria mesa como recurso de belezas
s
' de ou de conhecimentos - conhecimentos analíticos, conhecimentos
uro por clivagem, cortes ou "dissecção" - novos.18
ir à Reunindo sobre a mesma prancha preliminar de seu atlas
ias Mnemosyne, um mapa geográfico da Europa e do Oriente
ta- Médio, um conjunto de animais fantásticos associados à cons-
ta telação do céu, enfim, a árvore genealógica de uma família de
io, banqueiros florentinos19 (Figura 1), Aby Warburg não pensa-
ús va certamente fazer obra de historiador "surrealista". O que
lo aparecia, entretanto, sobre a prancha - sua pequena "mesa de
10 trabalho" ou de montagem - não era senão a complexidade
i- mesma dos fatos de cultura da qual seu atlas procura dar conta
I, na longa duração da história ocidental. Algumas palavras esco-
á Ihidas por Warburg para introduzir a problemática em questão
não procuravam, aliás, simplificar o inesgotável de sua tarefa:
/ há, dizia ele, uma grande "diversidade dos sistemas de relação
i nos quais o homem se encontra comprometido" (verschiedene
Systeme von Relationen, in die der Mensch eingestellt ist) e
que o pensamento mágico (im magischen Denken) apresenta
sob forma de "amálgama" (Ineinssetzung).20 Desde o início,
então, Warburg enunciava cm seu atlas uma complexidade
fundamental - de ordem antropológica - que não se tratava

25
nem de sintetizar (num conceito unificador), nem de descrever
exaustivamente (num arquivo integral), nem de classificar de
A a Z (num dicionário). Mas de fazer surgir, através do encon-
tro de três imagens dessemelhantes, certas "relações íntimas e
secretas", certas "correspondências", capazes de oferecer um
conhecimento transversal dessa inesgotável complexidade his-
tórica (a árvore genealógica), geográfica (o mapa) e imaginária
(os animais do zodíaco).

Figura 1 - Aby Warburg, Bilderatlas Mnemosyne, 1927-1929. Prancha A.


Londres, Warburg Institute Archive. Fotografia The Warburg Institute.
Se é verdade que o atlas Mnemosyne constitui uma parte
importante de nossa herança - herança estética, visto que ele
inventa uma forma, uma nova maneira de dispor as imagens
entre elas; herança epistêmica, visto que ele inaugura um novo
gênero de saber21 se é verdade que ele continua a marcar em
profundidade nossos modos contemporâneos de produzir, de
expor e de compreender as imagens, nós não podemos, antes
mesmo de esboçar sua arqueologia e de explorar sua fecundida-
de, silenciar sobre sua fragilidade fundamental. O atlas warbur-
guiano é um objeto pensado como uma aposta. É a aposta que
as imagens, unidas de um certo modo, nos ofereceriam a possi-
bilidade - ou melhor, o recurso inesgotável - de uma releitura
do mundo. Reler o mundo: ligar diferentemente os fragmentos
desiguais, redistribuir a disseminação, meio de orientá-lo e
de interpretá-lo, certamente, mas também de respeitá-lo, de
remontá-lo sem acreditar resumi-lo nem esgotá-lo. Mas como
isso é possível na prática?
Sem dúvida, seria preciso acrescentar ao famoso dictum war-
burguiano "O bom Deus mora no detalhe" [der Hebe Gott steckt
im Detail), este outro, a fim de dialetizá-ío: um diabinho mora
sempre no atlas, isto é, no espaço das "relações íntimas e secre-
tas" entre as coisas ou entre as figuras. Um gênio do mal jaz em
alguma parte na construção imaginativa das "correspondências"
e das "analogias" entre cada detalhe singular. Não seria uma
certa loucura inerente a todas as grandes apostas; não suportaria,
no fundo, todas as empresas entregues aos riscos da imaginação?
Assim é o atlas Mnemosyne: pensado desde 1 905 por Aby
Warburg,22 o início efetivo de sua construção só se deu em 1924,
no momento preciso em que o historiador emergia - remontava,
se recuperava justamente, da psicose.23 O Bilderatlas não foi,
para Warburg, nem um simples "aide-mémoire" (lembrete) nem
um "resumo de imagens" do pensamento: ele oferecia, antes,
um instrumento para recuperar o pensamento em movimento,
onde a história havia parado, onde as palavras falharam. Ele foi

27
a matriz de um desejo de reconfigurar a memória renunciando a
fixar as lembranças - as imagens do passado - numa narrativa
organizada ou, no pior caso, definitiva. Ele permaneceu inaca-
bado até a morte de Warburg, em 1929.
O caráter sempre permutável das configurações de imagens,
no atlas Mnemosyne, assinala sozinho a fecundrdade heurística
e a desrazão intrínseca de tal projeto. Análise terminada (pois
Mnemosyne não só utiliza, no total, milhares de imagens,
o que é, finalmente, muito pouco nos termos de uma vida
de historiador de arte e, mais concretamente, nos termos do
arquivo fotográfico constituído por Warburg com a ajuda de
seus colaboradores Fritz Saxl e Gertrud Bing) e análise infinita
ao mesmo tempo (pois poderemos sempre encontrar novas
relações, novas "correspondências", entre cada uma dessas fo-
tografias). Warburg, sabe-se, pendurava imagens do atlas com
pequenos prendedores sobre uma toalha preta estendida sobre
uma moldura (caixilho) - logo, um "quadro" -, em seguida
fazia ele mesmo uma fotografia, ou pedia a alguém para fazê-lo,
obtendo assim uma possível "mesa" ou prancha de seu atlas,
depois disso ele podia desmembrar, destruir o "quadro" inicial,
e recomeçar outro, para desconstruí-lo de novo.
Essa é, então, nossa herança, herança de nosso tempo. Loucu-
ra da deriva, de um lado: mesas proliferantes, desafio ostensivo
a toda razão classificatória, trabalho sisifiano. Mas sabedoria
e saber, de outro: Warburg compreendeu que o pensamento é
assunto, não de formas encontradas, mas de formas transforma-
doras, assunto de "migrações" (Wandenmgen) perpétuas, como
gostava de dizer. Ele compreendeu que a própria dissociação
é suscetível de analisar, remontar, reler a história do homem.
Mnemosyne o salvava da loucura, de suas "idéias fugazes",
tão bem analisadas por seu psiquiatra Ludwig Binswanger.24
Mas, ao mesmo tempo, suas idéias continuavam a "espocar"
utilmente tais imagens dialéticas, a partir do choque ou da
relação das singularidades entre elas. Nem desordem louca nem
ordenamento muito inteligente, o atlas Mnemosyne delega à
montagem a capacidade de produzir, pelo encontro de imagens,
um conhecimento dialético da cultura ocidental, essa tragédia
sempre renovada - logo, sem síntese - entre razão e desrazão,
ou como dizia Warburg, entre os astra daquilo que nos eleva
ao céu do espírito e os monstra daquilo que nos reprecipita aos
abismos do corpo.

VISCERAL, SIDERAL, OU
COMO LER UM LÍGADO DE CARNEIRO

"Ler o que nunca foi escrito": a imaginação é primeiro -


antropologicamente - o que nos torna capazes de lançar uma
ponte entre realidades as mais longínquas e as mais heterogêneas.
Monstra, astra: coisas viscerais e coisas siderais reunidas sobre
a mesma mesa ou a mesma prancha. Walter Benjamin ignorava,
sem dúvida, as montagens de Warburg em Mnemosyne, mas ele
descreve exatamente suas engrenagens fundamentais quando,
em seu ensaio sobre "O poder da imitação" - uma problemática
evidentemente comum aos dois pensadores -, ele evoca essa "lei-
tura antes de toda linguagem" {das Lesen von aller Sprache...),
precisando onde ela tem lugar: "nas entranhas, nas estrelas ou
nas danças"25 (.. .aus den Eingeweiden, den Sternen oder Tãnzeri).
As danças, os gestos humanos em geral, constituem o essencial,
o centro da coletânea de Warburg pensada desde o início como
um atlas das "fórmulas do pathosn (Pathosformeln), esses gestos
fundamentais transmitidos - e transformados - até nós desde
a Antigüidade: gestos de amor e combate, triunfo e escravidão
enlevo e queda, histeria e melancolia, graça e feiúra, desejo em
movimento e terror petrificado...

29
Figura 2 - Aby Warburg, Bilderatlas Mnemosyne, 1927-1929. Prancha B.
Londres, Warburg Institute Archive. Fotografia The Warburg Institute.

O Homem se enconttci bem no centro do titltis Al/icv}iosytic,


na energia contrastada de seus pensamentos, de seus gestos,
de suas paixões. Mas Warburg terá muito cuidado em apre-
sentar essa energia sobre um fundo que designava seu limite
conflitual, o impensado, a zona do não saber: astra de um lado,

30
Figura 3 - Aby Warburg, Bilderatlas Mnemosyne, 1927-1929. Prancha 1,
Londres, Warburg Institute Archive. Fotografia The Warburg Institute.

monstra de outro. De um lado, com efeito, o homem se agita


sob um céu infinito do qual ele sabe muito pouco, e por isso as
pranchas preliminares do atlas são consagradas à correspondên-
cia sideral-antropomórfica, ou seja, a "transferência do sistema
cósmico sobre o homem"26 (Ahtragung d cs kosmischen Systems
auf der Menschen) (Figura 2). De outro lado, encontram-se os
abismos simétricos do mundo visceral, o homem se agitando
sobre a terra sem compreender exatamente o que o move do

31
interior: seus próprios "monstros". E o atlas sugere que não
existe gesto humano sem conversão psíquica, nem conversão
sem humores orgânicos, nem humor sem a secreta entranha que,
justamente, a secreta.

Figura 4 - Aby Warburg, Bilderatlas Mnemosyne, 1927-1929. Prancha 1 (de-


talhe). Londres, Warburg Institute Archive. Fotografia The Warburg Institute.

A prancha 1 de Mnemosyne é, desse ponto de vista, tão espan-


tosa quanto significativa (Figura 3). Espantosa porque, ao lado
de imagens facilmente identificáveis, como as figuras astronômi-
cas ou astrológicas do Sol, da Lua ou de Escorpião, ao lado de
figuras reais (Assurbanipal visível à esquerda), indicando, talvez,
o horizonte ou, ao menos, o uso político de toda representação
do mundo, encontram-se em evidência, no alto da prancha,
cinco coisas brutais, cinco formas informes que o historiador de
arte ocidental terá talvez alguma dificuldade em reconhecer. E
preciso se aproximar um pouco (Figura 4). Aprendemos então
- é preciso, para isso, explorar pacientemente certas zonas da
extraordinária biblioteca constituída por Warburg,27 "espaço
de pensamento" (Denkraum) - que se trata de representações
antigas, babilônicas ou etruscas, de fígado de carneiro.
Que estranheza! Se o atlas Mnemosyne aparece como um
tesouro de saber visual, herança de nosso tempo, então será
preciso reconhecer que o objeto inicial e até iniciático dessa
herança - herança prestigiosa, uma vez que nada menos do
que nossa história da arte está sendo reproduzida em sua longa
duração - se encontra, aí, em alguns fígados de carneiro apre-
sentados como as primeiras "frases", podemos dizer, de uma
história da cultura ocidental! O caráter surpreendente dessa
entrada na matéria, no alto da prancha 1 de Mnemosyne, não
tem nada de arbitrário, sobretudo porque Warburg levou a sério,
sobre o plano filosófico e antropológico, as potências obscuras
da imaginação.
Em primeiro lugar, esses objetos informes, estrategicamente
escolhidos pelo historiador das imagens, não são objetos insig-
nificantes nem objetos simples. Sua complexidade reside justa-
mente na sua função de imagens dialéticas: imagens destinadas
a montar, juntas, esses espaços heterogêneos que são as dobras
viscerais, por um lado, e a esfera celeste, por outro. Warburg
consagrou uma parte considerável de sua pesquisa às questões
de astrologia: ler os movimentos de tempo nas configurações
visuais - como o são as constelações de estrelas - não é, no
fundo, um paradigma fundamental para todo conhecimento
que procura extrair o inteligível a partir do sensível? E não é,
a propósito, o trabalho principal de todo arqueólogo, de todo
historiador de arte? De qualquer maneira, Warburg durante
muito tempo tentou compreender a importância cultural dessa
"pré-ciência" - ou presciência - astrológica tanto na história
estética do Renascimento28 como em sua história política e
religiosa.29 Do lado direito de nossa prancha, aliás, Warburg
quis colocar, en abyme ou em médaillon, duas pranchas que
tinha concebido para uma exposição sobre a antiga astrologia
oriental.30 Inspirava-se, então, nos trabalhos de seu amigo
Franz Boll, ao qual ele tomou emprestado - e do qual adaptou

33
- as idéias para suas questões teóricas - a famosa fórmula per
monstra ad sphaeram.31
Em segundo lugar, os fígados de carneiro divinatórios inte-
ressavam a Warburg32 pois eles representavam, a seus olhos, um
caso dessa mobilidade histórica e geográfica cujas imagens são
os veículos privilegiados: imagens migratórias que, levadas em
consideração, fazem de todo "estilo artístico" e de toda "cultura
nacional , como se costuma dizer, uma entidade essencialmente
híbrida, impura, mista. Mistura ou montagem de coisas, lugares
e tempos heterogêneos. Uma das contribuições mais decisivas
da historia da arte warburguiana reside na descoberta, no cerne
mesmo daquilo que o Ocidente produziu de mais "clássico" ou
de mais "comedido" - a saber, a arte greco-romana, de um lado
e o Renascimento italiano, de outro -, de uma impureza fun-
damental ligada a grandes movimentos migratórios que só uma
Kulturwissenschaft digna desse nome podia expor, isto é, capaz
de ler os movimentos de espaço em cada configuração visual.33

, E assim Que Warburg, para dar conta dos afrescos anto-


lógicos do Palacio Schifanoia de Ferrara, compreenderá que era
necessário passar não somente pela evidente tradição grega e
latina, mas também por suas menos óbvias conexões árabes,
um deslocamento" histórica e geograficamente observável em
outros domínios, notadamente a perspectiva.34 Tudo o que se
passa no coração dos "centros" artísticos se deve também a
esses fios menos visíveis que tecem as migrações culturais, de
modo que é preciso ir até Bagdá ou Teerã, Jerusalém ou Babi-
lônia, para ter a medida do que se passa em Roma, Florença ou
Amsterdã. É tal conhecimento nômade, desterritorializado que
nos convida à impureza fundamental das imagens, sua vocação
para o deslocamento, sua intrínseca natureza de montagem.
Eis por que quando Warburg quis expor, mais adiante em
seu atlas, as Lições de anatomia de Rembrandt, ele começou
por dissocia-las de sua significação mais evidente - científica,
cartesiana - através de uma montagem de cenas religiosas e de

t4
<er evocações antigas suscetíveis de nos fazer compreendê-las sob
o ângulo de uma longínqua sobrevivência da "anatomia má-
:e- gica"35 (magische Anatomie), modo de nos lembrar os fígados
m divinatórios da primeira prancha.
io O primeiro deles, no alto, à esquerda (Figura 4), é um fígado de
m argila babilônico que se encontra no British Museuni (Figura 5).
ra Data, sem dúvida, de 1700 antes de nossa era, aproximadamente,
te Os três outros, a seu lado, provêm do Museu de Arqueologia
;s Oriental de Berlim e são datáveis da primeira metade do século
is XIV a.C. Objetos fascinantes e dúplices como o são todas as ima-
e gens dialéticas: eles aproximam ao menos duas temporalidades,
u dois mundos, duas ordens de realidade que, normalmente, tudo
afastaria. De um lado, são imagens extremamente realistas; o
fígado de carneiro é representado segundo sua escala verdadeira,
a aparecendo mais ou menos tal como pode ser visto e manipulado
z num "hepatoscópio" babilônico, colocando-se o órgão sangrento
3 sobre uma mesa logo depois de ser arrancado do corpo do animal
que acabou de ser morto. Um anatomista contemporâneo reco-
j nhece aí toda a morfologia do órgão: os lóbulos dissimétricos -
os quais se denominam "lóbulos quadrados" -, a protuberância
chamada processus pyramidalis, a veia com sua porta hepatis,
no alto, assim como a vesícula biliar que desce para a direita.
Os numerosos modelos de argila descobertos no Oriente pelos
arqueólogos possuem todo esse caráter de precisão anatômica.36
Mas, por outro lado, esses objetos são muito mais que meras
representações naturalistas. Compreendemos isso de imediato,
ao notar que o fígado do British Museum, como todos os outros,
está coberto por escritura e dividido em zonas geométricas que
pontuam concavidades regulares, como que estrategicamente
dispostas sobre toda a superfície do objeto. A escritura faz pensar
cm uma lei ou uma sentença gravada, a distribuição geométrica,
em uma misteriosa mesa de jogo de xadrez. Num estudo fun-
damental sobre as práticas divinatórias mesopotâmicas, Jean
Bottéro mostrou que a "divisão dedutiva", como a chamamos,
Figura 5 - Anônimo da Babilônia, Fígado divinatório, circa 1700 a.C. Argila
Londres, British Museum. Fotografia DR.

cobria um campo considerável, indo da simples observação dos


fenômenos naturais - astros, meteoros, eclipses, seixos, plantas,
animais e, certamente, o próprio homem observado em sua fi-
sionomia e até em seus sonhos' - a uma elaboração complexa
de situações artificiais, tais como a disposição das peças sobre
um jogo de azar38 (como o faz, hoje ainda, aquele ou aquela que
"joga cartas" com o fim de predição).
A adivinhação litürgica, qual seja, a observação dos fígados
de animais sacrificados para a ocasião, superpõe o artificial ao
natural, a construção inteligível ao conhecimento sensível. Por
isso a hepatoscopia mistura tão intimamente precisão empírica
(a visão próxima, inscrita nas entranhas) e proliferação simbó-
lica (a clarividência assombrada por toda uma dramaturgia
das longínquas relações entre os deuses). Os fígados de argila
são, então, como interfaces, operadores de transformação entre
o visceral observado de perto e o sideral invocado de longe.
Eles são inseparáveis tanto da observação anatômica quanto da
imaginação astrológica e mágica.40 Por exemplo, como escreve
Jean Nougayrol, citando uma inscrição babilônica, "o deus-Sol
continuava a inscrever suas vontades 'no ventre da ovelha'. O
espetáculo da natureza era uma mensagem que podia ser lida."41
As dobras do corpo animal davam então a "ler o que nunca tinha
sido escrito" no mapa do céu e no corpo dos deuses.
Os rituais de aruspicação, a adivinhação pelas vísceras, cons-
tituem uma mistura bizarra em que os gestos do corpo diante
daquele informe e sangrento órgão arrancado andam de mãos
dadas com um formalismo jurídico, religioso, casuístico, em que
a escritura reinava.42 Cabe à imaginação e à imagem - a saber,
o próprio modelo de argila - "montar", memorizar ou ligar
essas realidades tão diversas. Os sacerdotes colocavam diante
da estátua de um deus uma mesinha sobre a qual era gravada
a questão colocada ao destino por algum senhor (em geral o
próprio rei, por exemplo, Assurbanipai, dirigindo-se ao deus
Shamash). Quando o sacrificador imolava a vítima e a abria,
anotava-se escrupulosamente o aspecto das entranhas, suas
cores, depois dissociava-se o fígado do cadáver, inspecionando
as partes que o rodeavam, denominadas "palácio" do fígado. O
adivinho, ou hãrü, colocava então o órgão ainda quente sobre
sua mão esquerda ou sobre uma mesa e fazia o levantamento
de todas as particularidades. A faca dava então lugar ao estilete,
visto que o hãrü redigia um longo relatório na base de antologias
de fórmulas bem precisas, algo desse gênero:

Há um "lugar". O caminho é duplo. O da esquerda cruza o da di-


reita: as armas do inimigo se enfurecem contra as armas do rei. - Não
há kal. Uma protuberância se encontra do lado direito do "lugar":
ruína do exército ou do santuário. - A porção esquerda da vesícula
biiiar está firme, teu pé esmagará o inimigo. - O "dedo" e o "dedo
mmdinho" estão normais. A parte trasetra do fígado está estragada, à
direita: ferida na cabeça, troca do plano de campanha do exército. - A
porção que se encontra em baixo é assim: um sa-ti se assenta sobre a
coroa, o "dedo" do fígado no centro, sua base é inconsistente, o kakasu
e brilhante, há 15 circunvoluções intestinais, o interior do carneiro é
normal. Em resumo: o "caminho" é duplo; o da esquerda cruza o da
direita; nenhuma kal; um "dedo" do lado do "lugar"; a porção tra-
seira do fígado está estragada, à direita; um sa-ti encontra-se sobre a
coroa. - Total: cinco signos desfavoráveis. Nenhum signo favorável.

O costume oriental de contemplar fígados arrancados de


animais - lembremos que contemplar significa, primeiramente
observar uma realidade natural delimitando-a como templum,
isto e, como um campo estritamente enquadrado pela ação na-
tural mostrando seus signos de predição, de modo que olhar o
espaço torna-se aí olhar no tempo esse costume ritualizado,
casuístico, formal permitia "ler o que jamais fora escrito". Mas,'
a partir disso, ele insinua uma dialética da matéria informe vista
como uma cartografia de sintomas dando lugar a uma intensa
atividade de escritura interpretativa. A "mesa" sobre a qual
tinha se apresentado a massa orgânica do fígado tornara-se
imagem no modelo de argila que servia de lembrete e de manual
e orientação, em seguida, tabuleta de escrituras simultanea-
mente diagnosticas (meticulosamente descritivas) e prognósticas
(declinando ao infinito as "relações íntimas e secretas entre as
coisas, as correspondências e as analogias" inerentes a cada
singularidade observada).
A literatura hepatoscópica assíria e babilônica é considerável.
Desde o inicio do II milênio constituíram-se verdadeiras biblio-
tecas, e e em milhares que se contam os relatórios divinatórios,
coletâneas de observações do fígado e fórmulas interpretativas.'
Observa-se, por exemplo, dois mil documentos para a única
época sargonida, entre 721 e 627 a.C.« Em toda parte florescem

38
i, à notáveis formulações, por exemplo: "Se o Caminho é duplo, [os
-A dois] estão abraçados: revolta; os dias escurecem constantemen-
;a te."45 O vocabulário é imenso, preciso e metafórico ao mesmo
su tempo: "presença" (manzarü, talvez a palavra mais freqüente),
>é "corpo", "perigoso", "mentira", "excrementos", "doce", "la-
:1a mento", "inseto", "sentido de cabeça para baixo", "ruína",
a- "fundação", "revoltar-se", "intervalo", "pústula", "palácio",
a "semelhante a", "lado a lado"...46 Só o sumário de uma coleção
d. Barütü - que significa "a adivinhação por excelência" - já nos
deixa pensativo:

e I. Das partes da vítima exceto o fígado, o pulmão, o intestino, seja,


:, por exemplo, a espinha e os lados, os rins, etc.
r, 11. Dos intestinos |e, mais particularmente, do cólon espiral],
III. Da linha e zona do fígado denominada Presença [divina],
> IV. De um outro sulco hepático, normalmente perpendicular ao
^ precedente e que leva o nome de Caminho.
V. Da "face estomacal" do fígado, com sua Cavidade, seu Forte,
sua Porta-do-Palácio, sua Paz.
VI. Do Amargo [a vesícula hiliar], anteriormente chamado o Pastor
e que, desde as origens, é, com o Dedo, a parte essencial.
VIL Do próprio Dedo [o terceiro lóbulo característico do fígado
de carneiro].
VIU. Da Arma e de outras marcas fortuitas.
IX. Do pulmão em suas diversas partes.
X. Do confronto [ou dialética, que não estuda mais os "signos"
postos à parte mas em suas relações entre si ou com as circunstâncias
exteriores].47

O enunciado do último capítulo desse tratado divinatório nos


informa sobre a complexidade e a grande sutileza do universo
semiótico em voga nas práticas da aruspicação. E uma teoria dos
signos que se desenvolve bem além de uma simples regra universal
contida em algum dicionário. A imaginação das relações se abria

39
sobre todos os jogos possíveis de correspondências, deixando às
cadeias de associações o Jazer de relacionar, de "reler" o órgão
fora de toda ligação fixa entre o dado sensível e a significação
inteligível.48 A observação das singularidades, quanto a ela, não
issociava a nomenclatura geral dos signos e a exceção circuns-
tancial dos sintomas.49 Daí a importância capital das "marcas
ortuitas" dando lugar a sistemas de notação gráfica que consti-
tuíam, desse modo, "atlas de singularidades" reveladas sobre o
fígado dos animais sacrificados50 (Figura 6).

loucuras e verdades do
incomensurável
Ao dispor sobre a primeira prancha de seu atlas Mnemosyne
justamente ao lado do fígado divinatório do British Museum três
objetos de mesma natureza ligados a trocas entre as civilizações
h.tita e babilomca (Figura 4), Aby Warburg tinha, sem nenhuma
cuvida o desejo de sugerir a "migração" (Wanderung) tanto
geográfica quanto temporal, das surpreendentes práticas que
acabamos de resumir. A aruspicação assíria e babilônica, com
e eito, proliferou por toda parte, do Oriente Médio - o Egito o
remo de Susa, Canaã - até a Grécia, o Ocidente etrusco e roma-
no. igraçao estritamente homogênea, diga-se de passagem, à
da astrologia, com a qual a adivinhação hepatoscópica mantém
como vimos, relações fundamentais. " Se o fígado aparece parti-
cu armente valorizado em tais práticas, é igualmente em razão
de uma psicofísica muito difundida que fazia dele, no próprio
homem, o órgão da vida e da alma por excelência55 (as coisas
mudarao sensivelmente quando Hipócrates, no século V a.C.
recentrará sobre o coração o lugar da vida).
Eis por que se encontra, no domínio semítico, uma quanti-
ade de formulas que transmitem essa antiquíssima concepção

40
psicofísica, que vão do "canto do fígado" nos Salmos até certas
fórmulas rabínicas sobre a alma humana alojada no fígado.54

JU

jjj_

JU

Figura 6 - Anônimo da Babilônia, Anomalias do fígado desenhadas sobre


tabuletas hepatoscópicas. Segundo G. Contenau, La Divination chez les
Assyriens et les Babyloniens, Paris, 1940, p. 242.

E isso se prolonga ainda até as expressões dos poetas árabes mais


tardios, sobre o "fígado rompido e dilacerado" pela dor de amor
ou sobre os frutos do amor - os filhos - que se formam "pelo
sangue mais profundo do fígado". Outro preferirá dizer que
"a letra do desejo (...) traça sobre meu fígado linhas que ditam
minhas insônias".55 Richard Onians, por sua vez, sublinhou a
importância do fígado em As origens do pensamento europeu.
Cita como exemplo o hino fúnebre de Dion para Adonis, no qual
Cípria reclama "um beijo que dure até que, desde tua alma, teu
sopro escorra em minha boca e em meu fígado".56

41
o fígado e, então, entre os gregos igualmente, o centro mesmo
das relações entre corpo e alma. Ele está associado zophrèn, que
esigna primeiramente o diafragma - por envolver o fígado mas
também separar o coração e os pulmões das vísceras inferiores
e, por correspondência, o princípio espiritual que nos torna
a ternativamente sábios e loucos ("frenéticos"). O fígado está
no centro do corpo porque ele fabrica as substâncias tanto da
(o san ue
v 8 ) como da paixão (a bile). Quando Ulisses pensa
em matar Ciclope com sua espada, é ao fígado que visa antes
de tudo; quando Prometeu ou Titio são punidos por Zeus, é
no fígado que são atingidos; quando os personagens trágicos
se suicidam, eles transpassam o fígado." O fígado servirá tam-
bém de "carne" privilegiada nos sacrifícios animais da Grécia
antiga: ele sera colocado sobre uma mesa de oferenda e seu
ordenamento interno será observado - como se dizia seu "lar"
e suas "portas" - de maneira que o próprio espaço da cidade,
por assim dizer, se coloque cm ordem.58
O fígado sera, então, para os gregos também - e de prefe-
rencia a outros órgãos como o coração, o baço, o estômago, os
pulmões ou os rins -, "o lugar por excelência da adivinhação", o
tripé áci mântica, como escreve Auguste Bouché Leclercq em sua
Historia da adivinhação na Antiguidade. Sem cabeça ou lóbulo,
ele pressagia a ruína e a morte. Assim foram avisados de seu
fim próximo Címon, Agesilas e Alexandre. Mas esse primeiro
exame era somente o início de uma análise complicada em que
se passava em revista todos os signos ou "línguas" {glôssat) do
igado. Se, de inicio, essa arte era bastante simples, em seguida
complexificou-se, como sempre acontece, com distinções arbitrá-
rias ou incoerentes. Pode-se adivinhar que as "portas" do fígado
(pintai, dochaí), cujo estreitamento era um mau presságio eram
as aberturas da veia porta, mas onde encontrar e como repartir
todas essas regiões designadas pelos nomes bizarros de: lar, mesa,
tumulo, faca, deus, rio, laço, barreira? O fígado ocupava de tal

42
forma os hiéroscopes, os adivinhos gregos, que eles negligencia-
vam quase completamente outros órgcãos.59
Mas estamos na Grécia, pátria da dialética. O que a filosofia
diria então, sobre tais práticas em que o destino de toda uma
sociedade humana podia ser "lido" nas vísceras de um animal
por intermédio de uma organização celeste comprometendo a
vontade dos deuses} Um epistemólogo moderno, formado pela
noção de "obstáculo epistemológico", apresentada por Gaston
Bachelard,60 colocava em causa essa propensão - típica da as-
trologia, da adivinhação, do pensamento mágico em geral - a
inventar laços, por "analogias" interpostas, entre ordens de
realidades incomensuráveis: os astros ou os deuses, os animais,
os homens. Se, de um lado, um signo objetivo parece induzir
uma relação legítima (por exemplo, o que a fumaça é para o
fogo), a monstruosidade física ou imaginária criar um laço
ilegítimo (o que a barba é para uma mulher ou o que são os
dentes para uma galinha), os adivinhos gregos, de outro lado,
compraziam-se em compreender sob um mesmo conjunto "sig-
nos", "monstruosidades" e "imagens", os semeia, os térata e os
phasma.61 Platão certamente colocou essas questões a respeito
da legitimidade. E as colocou, precisamente, a partir do fígado.
Ele conta, no Timeu, como o Demiurgo, consciente de que a
espécie humana se encontrava perpetuamente dividida entre a
razão (logos) e as imagens (eidôla), decidiu fabricar um fígado
para o corpo humano:

Obviando a esse inconveniente, [a divindade] concebeu a forma do


fígado e o colocou na mesma região do corpo, providenciando para que
ele fosse compacto, brilhante e liso, e, simultaneamente, amargo e doce,
para que a força do pensamento proveniente da razão ali se refletisse
como num espelho capaz de receber impressões e devolver imagens
visíveis. Essa influência poderia infundir temor na alma sempre que,
fazendo uso do amargor próprio do fígado, ela se apresenta terrível
e ameaçadora, e impregnando todo o fígado com esse amargor, faz
aparecer nele a cor biliosa, e contraindo-o, deixa-o rugoso e áspero ao

43
mesmo tempo que dobra ou encurta ou obstrui os lobos, os vasos ou a
porta do fígado, causando com isso dores e náuseas. Porém, quando um
sopro doce, oriundo da inteligência, pinta no fígado imagens contrárias
e atenua seu amargor, porque lhe repugna despertar imagens opostas
à sua própria natureza, ou tocá-las de algum modo, preferindo atuar
sobre a alma apetitiva com uma doçura de natureza muito próxima
da do fígado, para, com isso, restituir a todas as partes sua posição
direita, o brilho e a liberdade, deixa alegre e serena a porção da alma
alojada ao redor do fígado, permitindo-a passar calmamente à noite e
entregar-se, durante o sono, à adivinhação, visto como não participa
da razão nem do entendimento.62

^ É assim que o fundador de nosso racionalismo ocidental se


ve ele propno obrigado a entrar no redemoinho, nas dobras da
vida organica e irracional. Confrontado com a obscura potên-
cia de uma "monstruosidade" visceral colocada no centro do
corpo humano - massa amorfa e no entanto ativa do interior -,
Platão se vê obrigado a concordar com as exigências da razão
dos costumes, dos conhecimentos e das crenças de seu tempo
sobre o papel do fígado nas relações entre a alma e o corpo.6,3
O texto do Timeu, retrospectivamente, justifica com veemência
que representações de fígados divinatórios possam abrir o grande
álbum da "tragédia das culturas" e da história da arte ocidental
que o atlas Mnemosyne, à sua maneira, desdobra. Pois o que
Platão afirma, antes de tudo, é que o fígado constitui o órgão do
desejo - ou ao menos que ele é "colocado na mesma região do
corpo reservado à espécie desejante" - e, a esse título, funciona
como um receptáculo de imagens.
O fígado seria, então, segundo essa antiga perspectiva, uma
especie de mesa de imagens: um plano de inscrições erráticas,
ou, como diz Platão, um "espelho brilhante e liso" (suas impu-
rezas sendo regularmente limpas pelo baço) capaz de acolher
e de refletir as "impressões" e os fantasmas que lhe chegam.64
Sena também um òo/so de imagens, na medida em que contém

44
ua os humores e as cores, "doces" ou "amargas", de que se tin-
Lim girão nossos desejos. Seria, enfim, um volume de imagens que
ias Platão descreve, em seu texto, sob o ângulo de uma espantosa
tas plasticidade: a amargura o curva, o contrai, o enruga, o torna
lar "áspero", obstrui seus lobos e induz nosso "mau humor" até à
na náusea, senão até à loucura; a doçura, ao contrário, lhe devolve
ão sua "posição direita", sua extensão normal, sua textura lisa, sua
na "liberdade", que induzirão nosso "bom humor" até no sono.
:e Logo, um órgão do desejo e da imaginação. Basta articular
3a esses dois paradigmas para compreender que o interesse de
Warburg pela adivinhação e pela astrologia não foi nada mar-
ginal em seu questionamento fundamental sobre a eficácia das
5e imagens numa história de tão longa duração. As imagens figuram
la não somente as coisas e os espaços, mas os próprios tempos:
i- as imagens configuram os tempos da memória e do desejo ao
o mesmo tempo. Elas têm um caráter simultaneamente corporal,
mnemotécnico e votivo.65 Eis por que não escapava a Platão que
o o fígado, receptáculo das imagens, fosse também - ou antes, por
3 isso mesmo - um instrumento para predizer, para imaginar os
5 tempos futuros sobre a base de uma certa memória dos tempos
j passados. O fígado, concluía ele no trecho do Timeu, é o "lugar
= da adivinhação" que o baço tem por função "manter sempre
| brilhante e puro", a fim dc que as imagens divinatórias enviadas
pelos deuses ali se desenhem o mais nitidamente possível.66
O filósofo surge, certamente, para se distinguir do adivinho.
Ele nos informa que a razão se opõe firmemente à imaginação e
os signos distintos aos indistintos, por mais "brilhante e nítida"
que seja a superfície hepática de um carneiro sacrificado. Platão
lembra, assim, no Fedro, que quase nada separa a mantikè, a arte
do adivinho, da manikè, o delírio do louco67 (como em francês
as palavras "fígado" [foie] e "loucura" [folie] só são separadas
por uma única letra). Mas Platão sabe também, por tradição ou
por alguma intuição ainda informulável, que as imagens sabem
prever os tempos através do próprio exercício de montagem entre

45
coisas incomensuráveis, tais como as que formam os sonhadores
inspirados ou os oráculos "entusiastas":

O fato e este: foi sob o domínio da loucura que a profetisa de Delfos


e as sacerdotisas de Dodona prestaram numerosos e eminentes serviços
aos gregos - indivíduos tanto quanto povos enquanto que, em seu
bom juízo, elas quase não fizeram nada. E o que dizer da Sibila e de
todos os outros adivinhos inspirados pelos deuses, que fizeram tantas
prediçoes a tanta gente, colocando-os no caminho certo para o futuro?68

Existe, na doutrina platônica, certamente, todo um arsenal de


soluçoes conceituais destinadas a resolver essas dificuldades. Mas
a suspeita permanecerá, assim como permanece - em Platão e até
em Descartes, por exemplo -, essa inquietude da razão diante
dos poderes da imaginação. Que a imaginação tenha a ver com
a loucura e, portanto, com o erro e a ilusão, no fundo, isso não
tem nada de inquietante para um filósofo racionalista. Mas que
em sua proximidade com a loucura, a imaginação seja capa/
de descobrir razões que a razão ignora - como cogitarão, entre
outros, Goethe ou Baudelaire, Benjamin ou Bataille -, eis o que
complica singularmente toda teoria do conhecimento. Loucura
e verdade nao são tão incomensuráveis quanto os dualismos tra-
dicionais querem nos fazer acreditar. O que Sigmund Freud nos
ensinou no nível psíquico sobre o saber inconsciente dos sonhos
ou dos sintomas, Aby Warburg nos terá igualmente demonstrado
no nível cultural ao se interessar pelos saheres sobreviventes que
as imagens transmitem na longa duração.69
É assim que as imemoriais práticas hepatoscópicas dos
assírios e dos babilônicos sobreviveram, por uns dez ou quinze
séculos, no mundo etrusco e romano. A primeira prancha do
atlas Mnemosyne dispõe, sob os fígados adivinhatórios ba-
bilônicos, duas fotografias de ura pequeno objeto de bronze,
um objeto extraordinário descoberto cm Gossolengo, perto
de Piacenza, em 1877 (Figuras 3-4 e 7-8). Não nos surpreen-
de que um artista como Joseph Beuys tenha manifestado sua

46
fascinação diante dessa coisa fora de época que evoca bem
menos uma estátua itálica que certas esculturas surrealistas, tais
como fazia Alberto Giacometti nos anos de 1930.70 Trata-se
de um modelo etrusco de fígado divinatório. Possui as mesmas
características dos seus antecessores babilônicos: um realismo
suficiente para que possamos nos orientar precisamente na
morfologia do órgão, um simbolismo extremo que organiza
a superfície em caixas dessemelhantes, mas cuidadosamente
delimitadas - um círculo, vários triângulos, uma borda que
segue com regularidade os contornos sinuosos do objeto - e,
além disso, cobertas de escritura.

uBi v -,'r
¥<
A .T

Sr#8-

Figuras 7-8 - Anônimo etrusco, Fígado de Piacenza, ll -F a.C. Bronze, 12 x


8 x 6,4 cm. Piacenza, Museu cívico. Fotografia DR.

47
Aby Warburg era fascinado por esse objeto. Ele tentou obter
"m molde (não sabemos se ele conseguiu, e o objeto não se
encontra no arquivo hoje registrado en, Londres). Ele possuía

oteca varias monografias dedicadas ao "Fígado de


Piacenza",71 Desde esses trabalhos pioneiros, a datação do objeto
fo. revista pelos arqueólogos graças, notadamente, ao estudo das
inscrições: considera-se ho,e que o objeto foi tealizado não no
erceiro, mas no fim do segundo ou no primeiro século a C "
cm por isso ele deixa de testemunhar uma prática evidente-
mente mu,to antiga que caracterizava a religião etrusca e marcou
m duvida a rei,g,ao romana arcaica, continuando a ocupar as
mentes ate os tempos de Plínio e de Cícero." O bronze de pfacen-
za aparece, em todo caso, como uma ferramenta de orientação
'"ator,a, um lembrete técnico, um atlas em miniatura para os
adivinhos encarregados de reconhecer, em cada parte visceral,
bscrvada de jacto sobre a "mesa de dissecção» ou de consulta
as zonas siderais correspondentes de jure, a sabet, os deuses do
panteao etrusco implicados em cada sintoma, em cada dobra
cio propno orgão.

, ( f VPVJ.

ti

Figum 9 - Anônimo etrusco, Fígado de Piacenza, IP-i' a C Bron.P , 7 «


12 X 8 X
6,4 cm. Piacenza, Museu cívico. Fotografia DR.

48
O "Fígado cie Piacenza" é, portanto, ao mesmo tempo, um
objeto prático e um objeto conceituai-, um objeto prático, visto
que permitia orientar as zonas favoráveis [pars familiaris) e des-
favoráveis (pars hostilis) do fígado no exercício concreto de sua
interpretação;74 um objeto conceituai, visto que as zonas geomé-
tricas aí formam um mapa simbólico que delimita, no detalhe do
fígado examinado, as diferentes templa ou "enquadramentos" de
inteligibilidade atribuídos a cada uma das vinte e oito divindades
invocadas.75 Aby Warburg, sem dúvida, interessou-se particu-
larmente pelo fato de que a borda se apresenta, no "Fígado de
Piacenza", como uma divisão do céu, uma partição astrológica
em dezesseis regiões, partição que encontraremos seis séculos
mais tarde em Martianus Capella, cuja influência, sabe-se, se
prolongará durante toda a Idade Média e o Renascimento.76 Isso
também justificava que objetos tão bizarros e "não artísticos"
quanto esses fígados divinatórios puderam abrir o atlas warbur-
guiano da memória (Mnemosyne) - e não da crônica (Clio) - de
nossas artes visuais ocidentais durante tanto tempo.
Objeto prático e conceituai, o "Fígado de Piacenza" é ainda
um objeto empático, no sentido preciso em que Warburg quis
adaptar o conceito de Einfühlung a suas próprias questões an-
tropológicas sobre o "conhecimento por incorporação";77 no
sentido, igualmente, em que Karl Reinhardt pôde refletir sobre
as correspondências cósmico-antropomórficas na Antigüida-
de.78 Assim, cada "fenda" do fígado de carneiro contemplado
devia repetir em sua escala, sobre a mesa de dissecção, as for-
ças siderais de um clarão de raio, de um trajeto meteórico ou
de um movimento planetário. Mas não abusemos da palavra
"contemplação": ela não denota nenhuma pureza sublime do
olhar. É técnica, concreta, até na manipulação dos seus concei-
tos. Ela é sobretudo polimorfa. Assim, deveremos reconhecer
no "Fígado de Piacenza" um verdadeiro objeto cosmopolita,
híbrido, mesclado. É uma montagem de heterogeneidades cul-
tuais, culturais e temporais. E um objeto tipicamente etrusco,79

49
sem duvida, mas cheio de crenças exógenas - nem todas as di-
vindades inscritas ali são etruscas - e de longínquas migrações
assino-babiJônicas das quais se "ouvem" as harmônicas até na
escolha do vocabulário descritivo e interpretativo dos adivinhos
hepatoscópicos: o "Caminho", a "Presença", a "Grande Porta",
o "Rio", a "Prevenção"...80 Mesmo a palavra que designava o
o iciante - o "arúspice", haruspex em latim - desafia a etimo-
logia habitual ao evocar inevitavelmente a palavra assíria que
significa 'o fígado"; a palavra har.n
Tal cosmopohtismo vinha do passado - migrações de crenças
e práticas do Oriente para o Ocidente -, mas se enriqueceu, se
estendeu a épocas ulteriores no meio romano em que oficiava o
haruspex (intérprete das vísceras) ao lado do auspex (intérprete
dos passaros). Roma integrou, então, inclusive no âmbito de um
conflito sempre possível, as antigas técnicas etruscas da adivi-
nhação, isso até a Antigüidade tardia.82 O fígado do inimigo, por
exemplo, era particularmente visado pelos romanos nas práticas
ce feitiço que utilizam as "tabuinhas de maldição" ou tabellae
defixiomsP - Os feitos e gestos dos imperadores são abundantes,
por outro lado, de acontecimentos prodigiosos e de presságios'
como nesta anedota sobre Augusto relatada por Suetônio em que
se conjugam significativamente o voo dos pássaros - abutres,
além do mais - com as dobras do fígado:

Durante seu primeiro consulado, quando captava augúrios [au-


gurmm capienti), doze abutres se mostraram a ele, como outrora a
Romulo, e como ele oferecia um sacrifício, os fígados de todas as
vitimas apareceram dobrados interiormente sobre eles mesmos ate a
última fibra [omnium victimarnm iocinera replicata intrinsecus abana
fibra paruenmt): ora, os arúspices foram unânimes para ver presságios
de grandeza e de prosperidade.84

E preciso, certamente, considerar diferenças e especificidades:


enquanto os etruscos dissecavam as vísceras para um exame
isolado sobre a mesa prevista para esse fim, os romanos reuniam
os dois atos, o da oferenda benéfica {litatio) e o do exame

50
(probatio) das vísceras não desprendidas do animal aberto
[adhaerentia exta)}5 Mas como observou Robert Schilling, as
duas práticas vieram a se confundir com freqüência.86 Ainda
assim, a "disciplina etrusca", como se chamava a aruspicação,
não deixou, no mundo romano, de levantar suspeitas desde a
própria autoridade que lhe foi conferida. No ano 44 a.C., Cícero
escreveu, num contexto de reflexões sobre a religião (em seu De
natura deorum) e sobre o destino (em seu De fato), um tratado
inteiramente consagrado aos presságios, o De divinatione. Sua
argumentação dialética perturbará mais de um comentarista: ele
atuou, tomou posição - notadamente contra a instrumentaliza-
ção política dos arúspices -, mas deixou igualmente ao leitor a
escolha para tirar conclusões.87
Como Platão antes dele, Cícero critica a incomensurabilidade
das escalas de grandeza - a muito próxima e muito particular
forma de um fígado de carneiro, a muito longínqua e muito
geral estrutura das realidades supraterrestres - reunidas no ato
adivinhatório:

Os estoicos, diz ele para apoiar seu argumento, não admitem que
Deus se ocupe de cada fissura do fígado (stngulis iecorum fissis) ou de
cada canto de pássaro (não seria conveniente, nem digno dos deuses,
nem de outra maneira possível), mas eles pensam que, desde a origem,
o mundo foi formado de maneira que certos fatos fossem precedidos
de certos signos (ut certis rehus certa signa praecurrerent), uns nas vís-
ceras, outros nos pássaros, ou ainda nos relâmpagos, nos milagres, nos
astros, nas visões dos sonhos, nas palavras pronunciadas no delírio.88

Essa seria, uma vez mais, a inquietude da razão diante das


imagens feitas, não para ver somente as coisas que se apresentam
a nós, mas para entrever e prever coisas que ainda nos escapam.
É preciso, sem dúvida, denunciar a loucura de toda imaginação
entregue às "correspondências" entre coisas ou tempos inco-
mensuráveis. Mas, por outro lado, é preciso admitir a possível
verdade do sintoma, que sugere uma ligação entre "certas coisas"

5]
(ut certis rebus...) e "certos signos" [certa signa). Por isso Cícero
a lota uma dupla postura diante da aruspicação, que ele contesta
sobre o plano da razão pura - se tal vocabulário puder ser uti-
izado mas que se recusa a excluir no plano da razão prática:

Comecemos pela aruspicação: é preciso, na minha opinião, praticá-


- a pelo bem da República e da religião comum, mas estamos sozinhos
e podemos procurar a verdade sem sermos mal vistos, sobretudo eu
que duvido da maior parte das coisas. Examinemos antes, por fa-
vor, as vísceras. Quem então se deixaria convencer de que os signos
pretensamente dados pelas vísceras são conhecidos pelos adivinhos
graças a uma longa observação? Quanto tempo durou a observação?
Como se produziu o confronto entre os adivinhos para estabelecer
qual é a parte "inimiga" (pars inimica), a parte "familiar" (pars
familiaris), qual lesão mostra um perigo, qual outra uma vantagem?
(••■) Uns interpretam evidentemente as vísceras [exta interpretari]
de uma maneira, e outros, de outra, e a doutrina não é a mesma
para todos. E, sem nenhuma dúvida, se existe nas vísceras um poder
capaz de anunciar o futuro, está necessariamente ligado à natureza
ou formado de alguma maneira pela vontade dos deuses e por um
poder divino. Mas o que pode ter em comum a natureza tão vasta e
tao esplendida, espalhada em todas as partes e todos os movimentos
do mundo, eu nao ousaria dizer, com o fel de um frango (pois dizem
que essas vísceras são as mais falantes), mas com o fígado, o coração
ou o pulmão de um touro engordado para sacrifício: o que eles têm
de natural (qmd habet naturale) que possa anunciar o futuro [quid

Plmio, o Ancião, um século mais tarde, reconduzirá impli-


citamente essa ambivalência epistemológica. Apresentando a
estrutura geral do "mundo" no Livro II de sua História uaturai
nao tardara a fustigar "os avisos do relâmpago, as previsões dos
oráculos, as predições dos adivinhos (...) e mesmo as ninharias
como os esporos e os falsos passos"'» que são, evidentemente,

52
sem medida comum com a marcha do universo. Mas quando
tratar-se-á, no Livro XI, de descrever as partes internas dos
animais, misturará sem pudor as singularidades do fígado -
algumas completamente fantasiosas - aos presságios dos quais
foram creditados:

À direita está o fígado. Aí se encontra o que se chama a cabeça


das entranhas (caput extorum), parte sujeita a grandes variações. Ela
estava ausente na vítima oferecida por M. Marcellus pouco antes de
sua morte, no dia em que ele pereceu combatendo Aníbal, e no dia
seguinte encontramo-la dobrada; ela faltou também quando C. Mário
fez um sacrifício em Utica; o mesmo aconteceu com o imperador Caio,
nas calendas de janeiro, quando tomou posse do consulado, no ano
em que foi assassinado, assim como com seu sucessor, Cláudio, no
mês em que morreu envenenado. Durante um sacrifício oferecido pelo
deus Augusto em Espoleto, no primeiro dia de sua posse, encontramos
em seis vítimas o fígado dobrado sobre si mesmo a partir do lóbulo
inferior, o que interpretamos respondendo-lhe que ele dobraria sua
potência durante o ano. E ainda um mau presságio quando a cabeça
das entranhas está cortada, exceto na inquietação e no medo em que
esse fato dissipa as preocupações. As lebres dos arredores de Brilétos,
dos Tharnèe os de Quersoneso sobre a Propôntida têm dois fígados e,
coisa estranha {mirumque), um dos dois desaparece se transportamos
esses animais alhures.91

MESAS PARA RECOLHER OS PEDAÇOS


DO MUNDO

Pensamento mágico, dir-se-á. Ainda assim é preciso com-


preender o que recobre tal expressão. Stefan Czarnowski,
sociólogo das religiões que trabalhava no círculo de Émile
Durkheim, de Mareei Mauss e de Henri Hubert, estudou com
pertinência a noção de templum adivinhatório sob o ângulo
do "despedaçamento da extensão" e de sua limitação num
quadro preciso em que qualquer coisa se transfigura segundo
um novo "sistema de qualidades concretas" cuja interpretação
se organiza tendo em vista a orientação dos gestos humanos,
das práticas, das decisões.92 Jacques Vernant continuou essas
análises num estudo clássico sobre a psicologia da adivinha-
ção em que descreve justamente a transformação estrutural
que atinge, na técnica dos adivinhos, a percepção mesma do
órgão observado:

No momento de abrir o corpo da vítima, uma invocação às di-


vindades que presidem as diversas partes do organismo 'transmuda'
o corpo, sem mudar seu aspecto, em um templo. As influências das
diversas divindades aí se localizam no lugar que lhes é reservado.93

O adivinho vê bem - e mesmo "contempla" com uma aten-


ção particular - o fígado animal colocado sobre sua "mesa de
dissecção". Mas não se limita a vê-lo, e vê-lo bem: ele o vê de
forma diferente. A "transmutação" que evoca Jacques Vernant
concerne primeiramente a uma modificação decisiva no estatuto
de visibilidade do objeto contemplado: de coisa visível no sentido
empírico do termo, torna-se o suporte para outras coisas para
entrever ou para prever. Para entrever, o que não quer dizer
"ver menos bem", mas, ao contrário, ver sob o ângulo das "re-
lações íntimas e secretas das coisas, das correspondências e das
analogias". Há transformação estrutural porque, nesse quadro
espacial e temporal muito preciso do templum, a coisa enquanto
unidade visível dá lugar a um sistema de múltiplas "relações
figurais" em que tudo o que é visto só o é por desvios, relações,
correspondências e analogias.
Ainda assim é preciso, por isso, modificar o próprio espaço: o
espaço de aparição, de apresentação ou de disposição das coisas
a ver. Ainda é preciso se munir de uma mesa para acolher essa
transformação do olhar e do sentido, para recolher o feixe das
multiplicidades figurais que esperam ser vistas. "Quando um
espaço é orientado, limitado e dividido - sem que essas operações
respondam a exigências ou necessidades implicadas pela situação

54
atual sensível, mas seguindo um rito ele adquire por isso
mesmo um valor simbólico que o torna apto a servir de campo
nas práticas adivinhatórias."94 Isso começa por uma seqüência
de gestos precisos, concretos, técnicos: a arte, se assim se pode
dizer, de "instalar" ou de preparar a mesa (Figura 10). E acaba
com a colocação de um conhecimento novo, do qual Vernant
esboça, em conclusão, o perfil epistemológico: "A adivinhação,
em conseqüência, não se funda aqui sobre uma confusão afetiva,
mas sobre classificações concretas e precisas simultaneamente,
embora não superpostas a nossas classificações científicas.'"95

</*■

Figura 10 - Cena de sacrifício na Grécia antiga. Segundo C. Daremberg e


E. Saglio (dir.). Dictionnaire des antiquités grecques et romaines, I, Paris
1873, p. 349.

Jacques Vernant nos convida, nesse texto, a repensar a noção


de "pensamento mágico" ou de "pensamento mítico", obnubi-
lada que possa estar pelas teorias unilaterais - positivistas ou
neoevolucionistas - sobre a "confusão das idéias", essa loucura
da imaginação que Platão e Cícero tinham começado a fustigar
em nome da "razão" ou da "natureza". Um texto fundador sobre
essa questão - no qual Vernant provavelmente encontrou a fonte

55
de suas próprias hipóteses - é o artigo de Émile Durkheim e de
Mareei Mauss, publicado em 1903, sobre as "formas primitivas
de classificação". Segundo eles, nos ritos e nos mitos, o que se
chama de "pensamento primitivo" não depende em nada do
funcionamento "simples e elementar" (como Freud acabava de
mostrar pelos sonhos e pelos sintomas psíquicos), mas recobre
"operações mentais de fato muito complexas".96 É falso, então,
simplesmente, abordar o pensamento mágico, a adivinhação,
por exemplo, apenas sob o ângulo da confusão ou do contágio
empatico oposto a toda distinção conceituai. As duas trabalham
em acordo, modo de dizer que, a esse respeito, torna-se inope-
rante opor, a todo custo, a imaginação à razão.
A imaginação está na encruzilhada exata do sensível e do in-
teligível (Kant, sabe-se, teria tentado construir a fórmula através
dessa arte oculta nas profundezas da alma humana", que ele
chamava de "esquematismo transcendental").97 Ora, as coisas
sensíveis e suas relações inteligíveis operam em conjunto em toda
classificação, em todo conhecimento ou prática técnica, por mais
primitivas que sejam. Mareei Mauss afirmará que a própria
participação" - o que Warburg irá considerar, por seu turno,
a partir da noção estética de Einfühlung - deve ser reconhecida
em suas virtudes estruturais e operatórias, o que se verifica no
estudo preciso das classificações australianas, chinesas, hopi ou
winnebago.'6 Tudo isso guiado por uma intuição sociológica e
antropológica fundamental: o elemento afetivo tanto quanto
cognitivo das "classificações primitivas", seus monstra como
seus astra, não seriam nada mais que a recondução, no nível
das representações mentais e das categorias de inteligibilidade,
de uma certa organização da sociedade."
É preciso, sem dúvida, completar esse ponto de vista socio-
lógico pela noção técnica de cadeia operatória, introduzida em
antropologia por André Leroi-Gourhan. De um lado, a operação
técnica fragmenta o mundo, como se vê muito cedo na indústria

56
pré-histórica dos seixos lascados onde as primeiras "formas
distintas", como as chama Leroi-Gourhan, são obtidas por uma
desmontagem violenta, percussiva - uma espécie de dissecção das
coisas, poder-se-ia dizer -, dos seixos naturais (Figura 11); do
outro lado, Leroi-Gourhan vê o instrumento obtido como uma
verdadeira "secreção do corpo", onde convergem os dois sentidos
da palavra grega organon.w0 É uma pena que essa antropologia
técnica tenha negligenciado aprofundar aquilo que faz de toda
mesa uma verdadeira aparelhagem do mundo e do corpo, algo
bem mais complexo do que um simples suporte.101

Figura 11 - Técnica pré-histórica dos seixos partidos. Segundo A. Leroi-


-Gourhan, Le Geste et la parole, I. Technique et langage. Paris, 1964, p. 131
(Com a gentil autorização da Flditora Albin Michel).

Mas, em O gesto e a palavra, há um capítulo crucial con-


sagrado ao nascimento do grafismo, no qual Leroi-Gourhan
passa significativamente de gravuras rupestres pré-históricas
a ex-votos extremo-orientais, em seguida à comparação de
duas figuras, embora saídas de dois contextos culturais bem

57
diferentes (Figura 12): à esquerda, o desenho de uma estatueta
polinésia representando o mito da criação dos deuses e dos
homens sobre o corpo do grande deus do Oceano; à direita se
encontra reproduzida uma xilogravura do Renascimento com
um "Homem zodiacal", assim como Aby Warburg, sobre a
prancha B de seu atlas Mnemosyne, que dispôs vários avatares
dessa figura num período que vai do século XII ao século XVIII
(Figura 2). Nesses dois casos, o corpo antropomórfico figura
como lugar de despedaçamento e de multiplicidade simulta-
neamente: os enxames de criaturas estranhas que o invadem
parecem aderir a sua superfície, mas igualmente dilacerar sua
unidade corporal, sobretudo no caso do Homem zodiacal que
parece, em seu enquadramento retangular, colocado sobre uma
mesa, onde teria sido dissecado para revelar essa efervescência
animal - mas igualmente sideral - que o desfigura.

58
Leroi-Gourhan estava certo ao ver nesses exemplos gráficos
o que ele chama de campos operatórios onde o traço do dese-
nho, o pictograma e até a própria letra não são dissociáveis de
gestos técnicos concomitantes, de "motricidades ritmadas" ou
de elementos de oralidade inerentes a toda ritualização do cor-
po.102 Lembremos que a antropologia estruturalista de Claude
Lévi-Strauss, com sua "lógica das classificações" e seus "sistemas
de transformação",103 permaneceria infundada - ou puramente
abstrata - se esquecêssemos da "ciência do concreto" que está
em seu princípio.104 A saber, essa experimentação prática em
que a "bricolagem" de certos dispositivos - notadamente dispo-
sitivos visuais como a estatueta polinésia ou o Homem zodiacal
do Renascimento - cria a ligação necessária entre o corpo e o
pensamento, os gestos técnicos e as categorias inteligíveis, as
narrativas míticas e o conhecimento científico105 (a crítica em-
preendida por Jack Goody a respeito da "razão gráfica" peca, em
minha opinião, por sua recusa em encarar o grafismo no contexto
mais vasto de uma espacialização do corpo e do pensamento,
pelo que, por exemplo, as noções de "mesa" e de "quadro"
que procuramos aqui distinguir, se encontram unilateralmente
rebatidas uma sobre outra106).
Como os fígados adivinhatórios etruscos ou babilônicos, a
estatueta polinésia e o Homem zodiacal escolhidos por André
Leroi-Gourhan são formas orgânicas que assumem, ao mesmo
tempo, a função de campos operatórios. Na figura inicial se
enxertam, se dispõem e interagem outras figuras que lhes são,
porém, incomensuráveis: uma fissura do fígado que se chama
"porta do Palácio", uma representação antropomórfica em que se
agitam animais, homúnculos, criaturas fabulosas. O que é então
ura campo operatório visto nesse contexto? E um lugar determi-
nado - enquadrado como templum em toda extensão possível, o
céu, o mar, uma pedra plana, um fígado de carneiro... - capaz
de propiciar o encontro de ordens de realidades heterogêneas
e, assim, fazer desse encontro um lugar de sobredetenninação.

59
E uma ■ mesa" em que se decide colocar jmrtas algumas coisas
dispares, enrre as quais se procura estabelecer múltiplas «re-
ações intimas e secretas", uma área que possui suas próprias
regras de disposição e de transformação para ligar certas coisas
cujos elos não são evidentes. E para fazer desses elos, uma vez
revelados, os paradigmas de uma releitura do mundo.
Os exemplos escolhidos por Aby Warburg e André Leroi-
Oourhan apresentam a vantagem teórica de expandir o que
espontaneamente, poder-se-ia espetar da noção de campo ope-
rarono. Desde o humanismo de um Leon Battista Alberti até
o estrutural,smo de um Hubert Damisch, só existem campos
operatonos de «superfícies preparadas", reguiares, quadricula-
t as, como nas construções perspectivas ou nas casas de jogo de
xadrez: superfícies preparadas segundo uma regra prévia cujo

de fUndaÇã0 Para
Zm ^17'
[tableau].• ^ Cert0
Mas ao se retornar à noção
COncdto de
mais heurística, à noção
nao axtomattca de mesa[toWe], percebe-se qu
preparada demonstra bem sua eficácia de campo operatório
de
ora toda regra previamente estabelecida.
Exemplo: em certos ritos xamãnicos de exorcismo de Puyu-
ma, Taiwan, basta uma folha de bananeira, uma pedra, algumas
pétalas na terra cozida e algumas nozes cortadas para constituir
um autentico campo operatório (figuras 13-14).™ Pobreza
então, fragilidade extrema do dispositivo; coloca-se a folha'
e anane.ra sobre o solo, dispõcm-se os objetos miúdos, dis-
putes... e e todo um mundo que se reproduz aí, mas um mundo
que ao menor golpe de vento poderá se destruir e dispersar
num instante. Sistema há, contudo: ele compromete cada ob-
|e o em sua função de signo, não nele mesmo, certamente, mas
segundo seu papel na d,sposifão. As nozes tornam-se «nozes
de oferenda segundo o modo como são cortadas e dispostas-
em tres (verticalmente) e em cinco (horizontalmente) no alto da
folha - ou prancha, ou página - de bananeira. Outras serão

60
diferentemente, as "nozes portadoras do mal": uma representa
a morte violenta, outra a difamação, outra ainda os "espirros
inapropriados". Elas delimitam, juntas, uma "zona nefasta"
(como na pars hostilis dos fígados adivinhatórios) à qual devem
fazer obstáculo o colar de pérolas protetoras, a "noz da guarda"
e, finalmente, a pedra benéfica situada na base da composição.

JP? ' " , '-4 h:

9-A

;C-
*

tf ll \ í' 'ti

."W Mi Uia
Figura 13 - Altar Xamânico de Puyuma (Taiwan, século XX). Folha de ba-
naneira, nozes entalhadas, pérolas de argila e pedra. Segundo J. Cauquelin,
Stein- und Nussaltar, em J.-H. Martin (org.), Altãre: Kunstzum Niederknien,
Düsseldorf, 2001, p. 159.

É um sistema completo, sem dúvida, e previamente inserido


numa organização simbólica e social. Mas é um sistema aberto
onde a regra que ele estabelece, os signos que organiza não
excluem - e isso é capital - as exceções que ele acolhe a fim de
considerar os sintomas próprios a cada situação concreta. Há
uma gnoseologia, sem dúvida, mas que se metamorfoseia, que se
adapta constantemente à fenomenologia de cada caso singular.
Por isso as disposições não são fixadas de uma vez por todas
sobre a folha de bananeira (como, no jogo de xadrez, o bispo se
desloca sempre em diagonal, a torre sempre perpendicularmente
etc.). A questão sendo singular (que mal deveria-se conjurar,

61
51=====

"Opfergabcnnüsse^
«Antríebsníisss

ffie®®®

•Trígerinnín des Bossn*


■vjC
****** mmt
íMCilille Mí!e irada,,
^. rxbimnm « ,
s-ífiwoíun^en Niesanfòlie
1
j-f. íttw.»»,,, u. Grenze aus Terrâkottâpeden

^Wáchiemüsse^t

10 xxi
Se8undo
Stem- une! Nussaltar, em J.-H. Martin (ora ) A/^ ^ f" J- 'Cauquelin,
^ *
( fe ) Altare: K st
Dusseldorf, 2001, p. ] 59. '' "" zwn Niederknien,

*S£T.üs£»rm~"* -

;:;i==r=
conivência incsDcrula-d. • • ' sobretudo? uma
filósofos herdeiros'di PI P arti
™larme„te os

62
chega a ser um obstáculo às ambigüidades, às passagens e às
impurezas das práticas em jogo.110 É ao mesmo tempo e sobre
mesas juntas que se fazem o sacrifício e a oferenda, de modo que
as mesas servem, simultaneamente, de campos operatórios para
dissociar, cortar, destruir os corpos do animal, e para aglutinar,
acumular, dispor as oferendas de comida (Figura IO).111 Na
variedade tipológica das antigas "mesas sagradas", encontra-se
então o mais hierárquico e o mais díspar, o mais "triunfal" ("as
mesas agônicas" onde os atletas vencedores dispunham suas
recompensas) e o mais melancólico ("mesas funerárias"), o mais
organizado e o mais desordenado (Figura 15).112

f
JtlvV-r ¥
-m-

J&p,. W'-
í* ■i- , f: ■>v' i
1

Mi

l*
bK,-

Figura 15 - Mesa de altar cie Agia Irini (Grécia, entre 700 e 475 a.C.) cer-
cada de estatuetas em argila. Segundo C. G. Yavis, Creek altars: origins
and typology, including the minoan mycenacan offertory apparatus, Saint
Louis (Missouri), 1949, Figura 64.

A desordem só é desrazão para aquele que recusa pensar,


respeitar, acompanhar de alguma forma o despedaçamento
do mundo. A mesa seria então um lugar privilegiado para
recolher e apresentar essa fragmentação. Para firmar o valor
fundador e operatório, isto é, a possibilidade sempre aberta
de se modificar, de produzir uma nova configuração. Cada
mesa consagraria, assim, a seu modo, a partilha das coisas:

63
sua vocação a serem dissociadas, depois redistribuídas. Daí
a dimensão imediatamente social, cultural e política da mesa:
mensa, em latim, designava inicialmente um gênero de doce que
se dividia em pedaços para dispô-los como oferenda para os
euses e como comida consumível sobre um campo operatório
que logo se apropriou de seu nome.113 Christian Goudineau, em
seu estudo sobre as "mesas sagradas" gregas e romanas, notou
a igaçao que mantinham os "campos operatórios" do culto de
o erenda com as divindades do solo e da vegetação, Dionisos em
particular. 14 Como não ficar perturbado, por exemplo, com o
ato que todas as mesas de mármore, nos edifícios religiosos tanto
quanto em seus usos domésticos ou luxuosos, fossem fabricadas
com um material extraído das entranhas da terra?115
Como, então, não deduzir isso que a mesa funcione como ope-
rador de conversão entre as potências da natureza e os poderes da
cultura, as coisas brutas e os signos organizados, a fragmentação
dos monstra e a constelação dos astral Que seja para nela fazer
uma refeição, dispor oferendas, dissecar um corpo, organizar um
conhecimento, praticar um jogo de sociedade ou tramar alguma
operação mágica, a mesa em todos os casos recolhe heterogenei-
dades, da forma a relações múltiplas. Waldemar Deonna e Mareei
Renard, em sua obra sobre as Crenças e superstições da mesa na
Roma antiga, reconheceram - até em inúmeras sobrevivências
contemporâneas - esse respeito da fragmentação das coisas, por
exemplo, nas práticas ligadas aos restos das refeições, onde a
mesa não deve ficar inteiramente vazia".116

Durante a refeição, os convivas jogaram ao chão o que não co-


mtam, segundo um uso praticado por muito tempo ainda nos tempos
modernos; outros restos ficaram sobre a mesa. Eles conservam, como
nos tempos dos sacnfíc.os, o valor sagrado dos alimentos, dons dos
deuses aos homens, sua força mística, pars p,o roto. Tendo tido con-
tato com os que comeram dela, impregnados de sua personalidade,
eles podem ser ut,ligados contra eles pelos mágicos, feitteeitos, por

64
potências demoníacas. Não se deve tratá-los com desprezo, fazer mau
uso deles, abandoná-los sem precaução, sob pena de lançar sobre si a
desgraça, mas tratá-las com respeito, evitar que não caiam em mãos
maldosas. Pode-se colocá-los fora de uso, ocultá-los, enterrá-los ou
queimá-los. Mas pode-se também guardá-los, pois é preciso [como
escreve PlutarcoJ deixar algo do presente para o futuro, e (...) pensar
hoje no amanhã.117

Essa vontade de expor a desordem onde se exibem os restos


de uma refeição tem sua origem em numerosas crenças, ilustra-
das notadamente pelo preceito pitagórico segundo o qual era
proibido apanhar tudo o que caía no chão, como um modo,
literalmente falando, de respeitar o sintoma. Atribuíam-se aos
defuntos os restos da mesa que, segundo uma expressão de Ate-
nas, "pertencia aos mortos".118 No Livro XXVIII de sua História
natural, Plínio, o Ancião, conta que se via como de muito mau
agouro varrer o chão quando alguém se levantava da mesa,
e acrescenta que essa prática se fundava na crença segundo a
qual os deuses assistiam às refeições dos humanos como, aliás,
a todos os seus atos cotidianos.119 Como se, uma vez mais, se
repetisse o potente elo do sideral com o visceral pelo viés dos
gestos fundamentais necessários à vida dos humanos.
Em 1833 foi descoberto em Roma, entre as portas de São
Sebastião e de São Paulo, na Vigna de Lupi, ao pé do Aventi-
no, um mosaico soberbo datado da época de Adriano (Figura
16).120 Ele também dispõe uma fragmentação, tanto no nível
de seu material como no do que ele representa. Suas dimensões
originais, quatro metros por quatro, constituíam um extraordi-
nário quebra-cabeça composto de uns doze milhões de pastilhas,
pequenos cubos de mármore e vidro coloridos, de uma variedade,
de uma sutileza admiráveis. O que esse mosaico representa não
é menos espantoso: ossos de galinha com conchas marinhas,
espinhas de peixe com moluscos de todo gênero, crista de galo,
restos de lagosta, cascas de maçã com ouriços e lulas, conchas
de caracol com morangos e cerejas, cachos de uva com cascas

65
de noz, restos de limão com folhas de alface, sem contar um
ratinho, no canto, que se aproveita do respeito manifesto pelos
humanos com relação à fragmentação das coisas. Fragmentação
aleatória a partir de algo fixado no solo da villa romana por uma
composição chamada asarôtos otkos, "o quarto não varrido":

Os pavimentos (pavimenta) têm sua origem na Grécia e sua arte


se aperfeiçoa ao modo da pintura (...). Nesse gênero, a maior celebri-
dade foi adquirida por Sosus, que, em Pérgamo, fez a pavimentação
que se chamou asaroton oecon, porque havia representado os restos
das refeições (purgamenta cenae) e tudo o que é de costume varrer
como se isso tivesse sido deixado ali, e isso graças aos pequenos cubos
pintados em cores variadas.121

í
/
r . üà
m

Figura 16 - Anônimo romano, Chambr,


século II (detalhe). Mosaico -WV1' |Quarto 1|5o rarridol
Musd dteiani F„.„g„fla * «gn, Lupl (R„ma|,

66
HETEROTOPIAS, OU
AS CARTOGRAFIAS DO DESPAISAMENTO

Será que todos esses exemplos, fígados de carneiro ou pés de


galinha, não nos levariam, devido a sua própria trivialidade, aos
antípodas de uma idéia do atlas que, no entanto, nós havíamos
situado, no início deste percurso, na perspectiva comum à arte
e ao conhecimento? Esse é o preço que uma arqueologia exige
de todo objeto histórico. Os Atlas de Mareei Broodthaers e de
Gerhard Richter pertencem, sem nenhuma dúvida, ao que se
poderia chamar de a "grande história" da arte. Isso não signi-
fica que o uso antigo do "quarto não varrido" ou dos restos de
refeições cobrindo a mesa de um banquete romano pertençam
à "pequena história", no horizonte dessas formas contemporâ-
neas. É precisamente para melhor compreender - arqueológica e
não cronologicamente - Rafael e Rembrandt que Aby Warburg
disporá os tão nostálgicos fígados de carneiro mesopotâmicos
no limiar de seu próprio Bilderatlas.
Como Rafael e Rembrandt, Gerhard Richter notabiliza-se na
forma do quadro, seja "uma imagem ou representação de alguma
coisa feita por um pintor", assim como o definia Furetière no
século XVII; seja a "representação de um assunto que o pintor
inclui em um espaço delimitado por um enquadramento ou bor-
da", como se lê, no século XVIII, na Enciclopédia de Diderot e
d'Alembert.m Mas, além desse sentido habitual do quadro de
pintura, surgiu muito rapidamente uma acepção mais geral que
supunha ao mesmo tempo a unidade visual e a imobilização
temporal. "Quadro, momento de imobilização de uma cena
criando uma unidade visual entre a disposição dos personagens
na cena e o arranjo dos décors, de modo que o conjunto dê a
ilusão de formar um afresco", o que denota perfeitamente a
expressão "quadro vivo", do qual se conhece a questão estética
crucial, do século XV ao XIX, para a pintura bem como para o
teatro c, mais tarde, para a fotografia e mesmo para o cinema.12'

67
Mas a palavra prestigrosa quadro, em francês, ao menos, vem
diretamente de uma palavra latina extremamente banal,
que quer dizer snnplesmente uma prancha. Uma prancha onde
se pode fazer de tudo: escrever, contar, jogar, comer, guardar.
esarrumar... - Na pratica do/tóus em Gerhard Richter, como
outrora nas series de pranchas gravadas em várias "fases"
por Rembrandt, trata-se de mesas mais do que quadros. Isso'
significa, primeiramente, a renúncia a toda unidade visual e a
toda .mobilização temporal: espaços e tempos heterogêneos não
cessam de se encontrar, de se confrontar, de se cruzar ou de se
amalgamar. O quadro é uma obra, um resultado em que tudo
01 decidido: a mesa é um dispositivo em que tudo poderá sem-
pre se repetir. Um quadro se pendura nos frisos de um museu-
uma mesa se ut.hza para novos banquetes, novas configurações'
Como no amor físico em que o desejo constantemente se repe-
te, se lança e preciso, em suma, constantemente repor a mesa.
ada ah e fixo, de uma vez por todas, tudo está para ser feito
mais por prazer recomeçado, do que por castigo sisifiano -.
redescoberto, reinventado.
Desde suas definições mais instrumentais e basicamente ma-
teriais - "mesa se diz de várias coisas que são planas..."^ - até
a grande variedade de seus usos técnicos, domésticos, jurídicos
religiosos, lúdicos ou científicos, a mesa se apresenta como um
campo operatono do díspar e do móvel, do heterogêneo e do
a erto. O ponto de vista antropológico, tão caro a Warburg
apresenta essa vantagem metodológica considerável de não se-
parar a manipulação trivial dos monstra (os fígados de carneiro)
e a sublime elaboração dos astra (os quadros de Rafael), assim
como, mais tarde, Claude Lévi-Strauss se recusará a separai-
os pequenos gestos dos "modos à mesa" e as aspirações mais
grandiosas dos 'sistemas do mundo".126
Parece-me significativo que Aby Warburg tenha fracassado
sempre que tentou fixar seu pensamento em quadros «defi-
nitivos , que ele deixava era geral vazios ou incompletos ■"

68
O projeto do Bilderatlas, por seu dispositivo de mesa de mon-
tagem indefinidamente modificável - através dos clipes móveis
com os quais ele pendurava suas imagens e da sucessão dos
pontos de vista fotográficos pelos quais ele documentava cada
configuração obtida permitia-lhe sempre voltar ao jogo,
multiplicar, refinar ou fazer bifurcar suas intuições relativas à
grande sobredeterminação das imagens. O atlas Mnemosyne
foi então o aparelho concreto de um pensamento que o próprio
Warburg exprimiu na conclusão de seu discurso pronunciado na
abertura do Instituto Alemão de História da Arte em Florença,
em 1927: Si continua - coraggio / ricomiciamo la leitura!128
Como se "ler o que jamais foi escrito" exigisse a prática de
uma leitura recomeçada; a prática de uma incessante releitura
do mundo.
Perceber as "relações íntimas e secretas das coisas, as cor-
respondências e as analogias" ? E provável que isso só aconteça
com esse perpétuo jogo que se vê, notadamente nas pranchas
50-51 do atlas Mnemosyne, nas quais Warburg, sobre sua negra
"mesa de montagem", dispôs, ao lado de um quadro célebre
de Mantegna reproduzido em escala muito reduzida, diferentes
jogos de cartas reproduzidos como dignos "quadros" (Figura
17). Ali se veem as Musas do Mestre dos Tarôs de Ferrara
avizinharem-se com o jogo popular contemporâneo dos Tarôs
de Marselha, com suas figuras bem conhecidas, o Equilibrista,
o Enamorado, a Roda da Fortuna... Logo, relançar o jogo;
rearranjar e redistribuir cartas - da história da arte - sobre
uma mesa qualquer. E tirar dessa redistribuição a faculdade
- que Baudelaire diria "quase divina", mas compreendo melhor,
hoje, que ele talvez quisesse dizer "quase adivinha" ou "quase
divinatória" -, em suma, a faculdade de reler os tempos na
disparidade das imagens, na fragmentação sempre renovada
do mundo.
Ordenar e redistribuir as cartas, desmontar e remontar a
ordem das imagens sobre uma mesa para criar configurações

69
S^T V ' íby Vfvarburg' Bilderat'^ Mnemosyne, 1927-1929. Pranrh.
Institute"0'1 arbllr8 InStltute Arc 1 ve
' ' - Fotografia The Warburg

heurísticas "quase adivinhas", isto é, capazes de entrever o tra-


balho do tempo na obra do mundo visível: essa seria a seqüência
operatona de base para toda prática que chamamos aqui de
■Ulas. Vimos como Warburg tinha de imediato construído essa
pratica a patnr de um recurso explícito à arqueologia: os fígados

70
adivinhatórios etruscos não distantes das Lições de anatomia
de Rembrandt, ou ainda os sarcófagos romanos não distantes
do Déjeuner stir 1'herbe [Almoço na relva] de Manet.129 Ora, as
perspectivas "arqueológicas" abertas desde então por Michel
Foucault no domínio da história das ciências não deixam de
ter relação, parece-me, com essa redistribuição operada por
Aby Warburg no domínio da história da arte. Nos dois casos,
combate-se o caráter irrevogável do valor (a "obra de arte"
criticada por uma imagem popular, uma carta de baralho ou um
selo de correio, o "discurso da ciência" criticado pelas práticas
transversais, desviantes, políticas), as distribuições do tempo
(em que o ponto de vista arqueológico desmonta as certezas
cronológicas), enfim, as unidades da representação (visto que,
nos dois casos, é o "quadro clássico" que se verá questionado
até em seus fundamentos).
Pode-se esperar, dessa conivência, tirar alguns ensinamentos
de base para uma arqueologia do saber visual. E impressio-
nante que iMichel Foucault tenha "enquadrado" suas análises
epistemológicas por "imagens" estratégicas tomadas de em-
préstimo da história da pintura e da literatura. Assim como a
História da loucura iniciava com Os regentes, de Frans Hals,
As palavras e as coisas, começavam com As meninas de Diego
Velázquez: dois quadros, então, dois modos de significar - e de
fazer compreender, analisar - a potência da representação na
"idade clássica", como gostava de dizer Foucault.130 Mas essa
arqueologia só tinha sentido para definir as linhas de fraturas
e as linhas de frente de um conflito estrutural de onde emergirá
essa "modernidade" que exemplificam, não mais quadros mo-
numentais fixando a dignidade social das corporações burgue-
sas e cortes reais, mas séries de imagens violentas nas quais, no
século XIX, Francisco Goya explorará o domínio do "homem
jogado na noite", através de suas pequenas composições sobre
as prisões e os asilos de loucos, suas gravuras dos Disparates
ou suas enigmáticas pinturas da Quinta dei Sordo.131

71
decltll t™""5 abra 0
^ * - coisas
hispZ-co "f" ™ constelação
6
as numa
3530 dÍSS
-V- será
onde com outro
surgem tambémautor
os

de
Zlt teF ' Tlhrmi- de Kafka
' de Batai e
" - de
lu8ar dc
seu orôorio' " " ^^imenro" de
P Pr0,et0 arqUe0 Ó8ÍOT CrW E 8
Lul BoTg:: ' ^ "- - — Jorge

Este livro Ms puWos e as coisas] nasceu de um texto de Borges

1Z J1 :0m
nosso; '"T""-
daquele que tem nossa idade
Pert,,rba
e nossa geografia -
t0d

abalando todas as superfícies ordenadas e mdnc i '


sensata pata nós a profusão dos seres fazendo d '
por muito tempo, nossa prática mile„'ar do Mesmo
«to cita "uma certa enciclopédia chinesa- onde e t sln

camelo Tl T ^ deSmhad S
° «» ™ P'"Cel muito fino de pêlo de
C1Uebrar m0rmga n) c ue de
longe parecem mlsca™".^ ^ " ' l

ocai:rraofTTa ^ ^^a
um Zt
quadro de personagens reats retratados porfocalizada
7r clássica sobre
Velázque/- um

ma es,oso corap,exo pm
rí ' ' -zzz
dentro do Tt,a T*
q tadro, o enquadramento de porra etc. -"Z'"'"
sempre mais

títTTd ' 0
Ido ado por "'erC'"'
Borges
0 CekSte d0S
Mementos
a uma enciclopédia benévolos
ctqa exis.éuciaZtT
em duvidosa, provoca outro tipo de deslocamento- seria antes
rn m ICC analittco eqn.vtdente ao do tratado hepatoT™
ac,ma mm se
' " desvario scraiótico c sua vertigem
8
não
conccnmca, mas centrífuga.

72
A "mesa de Borges" não opera no âmbito de um só quadro que
organizaria seu quadriculado ou mesmo sua malícia perspectivis-
ta. Ela evoca, antes, as enormes compilações de desenhos chineses
ou de estampas japonesas (penso, por exemplo, no insaciável
Manga de Hokusaí [Figura 18J), ela quebra as molduras ou as
casas do espaço classificatório exigindo que sejam abertas regiões
nas quais cada uma jamais terá sido determinada pela precedente:
"os cães em liberdade" já se evadiram do quadro, os "inumerá-
veis" escaparão para sempre de nossa contagem, os "que acabam
de quebrar uma moringa" são inesperados e indiscerníveis, os "eí
cetera" jamais poderão ser recenseados, mesmo quando os "que
de longe parecem moscas" se impõem imediatamente a nossa
imaginação por sua força de sugestão visual.
Essa força, como Michel Foucault diz, não é outra senão um
movimento "que abala todas as superfícies ordenadas e todos os
planos que tranqüilizam a proliferação dos seres". De um lado,
ela arruina o quadro ou o sistema habitual dos conhecimentos,
de outro, ela libera esse riso "que sacode todas as familiari-
dades do pensamento", esse riso enorme que não exclui certo
mal-estar, como Foucault o repetirá várias vezes.135 Por que
esse riso? Porque a estabilidade das relações voa em estilhaços,
porque a lei da gravidade coloca-se de pernas para o ar, logo,
volta-se ao burlesco: as coisas se fundem, se erguem, se esma-
gam, se dispersam ou se aglutinam como numa célebre imagem
dos Disparates de Goya - e no contraponto que ela forma com
todas as outras da série -, os próprios homens se veem transfor-
mados em marionetes desarticuladas que parecem cuspidas pela
força de uma "superfície de abalo", um simples lençol sacudido
por seis mulheres, um lençol escuro que encobre ainda em suas
dobras um homem deitado de bruços e... um asno (Figura 19).
Tanto neste quanto naquele caso, é um riso que nos abala até
o mal-estar, porque vem de um fundo de trevas e de não-saber.
Mas de qual mal-estar, de qual sacudida se trata? Quem é
ameaçado nessa série dispare de Borges (como na coletânea,

73
Mm
■0
M
m: u ,

rk.;
^-v

'T^r^mâ
Figura 18 - Katsushika Hokusaí, Manga, 1814. Gravura sobre madeira,
-9,5 x 21 cm. Paris, Bibliothèque Nationale de France (Res. Dd 654 vo).
7, foi. 28v"-29r"). Fotografia DR.

ao mesmo tempo cômica e ameaçadora, dos Disparates de


Goya)? Foucault tem o cuidado em precisar: "Ainda não se
trata do bizarro dos encontros insólitos. Sabemos o que há de
desconcertante na aproximação dos extremos ou na vizinhança
i epentina das coisas sem relação."136 O díspar, o heteróclito não
se reduzem então ao bizarro" de um simples contraste: um
modo, para Foucault, de nos sugerir que a pista do fantástico (à
maneira de Roger Caillois) ou do devaneio material (à maneira
dc Gaston Bachelard) não e certamente uma boa pista a ser se-
guida. O que nos faz rir e abala também "todas as superfícies
ordenadas e todos os planos que tranqüilizam a proliferação
dos seres" são, justamente, os planos de inteligihilidade que se
fragmentam até o esboroamento. O que desmorona na enciclo-
pédia chinesa ou na "mesa de Borges" é a coerência e o próprio
suporte do quadro clássico enquanto superfície classificatória
do pulular dos seres.

74
Figura 19 - Francisco Goya, Disparate feminino, circa 1815-1824. Água-forte
e água-tinta, 24 x 35 cm. Prova de artista. Madrid, Museo Nacional dei Prado.
Fotografia DR. © Photographic Archive Museo Nacional dei Prado.

No intervalo entre os animais "que acabam de quebrar a


moringa" e aqueles "que de longe parecem moscas", aquilo
que se fissura, se arruina, é o "espaço comum dos encontros",
o "próprio lugar onde poderiam avizinhar-se", esse lugar-
-comum que é preciso chamar de um quadro - "quadro que
permite o pensamento operar sobre os seres uma ordenação,
uma divisão cm classes, um agrupamento nominal pelo qual são
designadas suas semelhanças e suas diferenças".137 A proposta
de As palavras e as coisas foi resumida por seu autor como
uma "história da semelhança", uma "história do Mesmo",138
e é no quadro, efetivamente, que elas encontram sua forma
"clássica" de exposição. Nessa obra, Foucault procederá dia-
leticamente: ele começou por respeitar e tornar complexa a
noção acadêmica de quadro. Ele lhe devolveu sua complexidade
como "série de séries".139 Um quadro como As meninas não
é lugar para uma totalidade do único, como queriam alguns

75
estetas. É, antes, uma totalidade do múltiplo que aí se encon-
tra organizada em sinopse sob a autoridade do semelhante.
Ora, essa autoridade indica uma coerência cultural fixan-
do, justamente, a forma das relações entre as coisas vistas e
as palavras enunciadas: o quadro seria então um espaço para
a "possibilidade de o que se poderá dizer, mas que não se
poderia dizer, em seguida, nem ver à distância se as coisas e
as palavras, distintas umas das outras, não se comunicassem
desde o início, numa representação".14» E assim será construí-
do, na idade clássica, que é a "idade da representação" por
excelencia, um "grande quadro sem falha"141 agenciado como
suporte de exposição classificatória das "comunicações", como
diz aqui Foucault, entre as palavras e as coisas.142 Mas sabemos
que todo o empreendimento foucaultiano consiste em relatar,
igualmente, a desmontagem desse sistema da idade - qualificada'
de "moderna" - em que o ponto de vista da história fragmenta
dramaticamente essa grande visão intemporal e hierarquizada
das semelhanças.143 Há sem dúvida "quadros de história", como
se diz, e talvez a Istorla fosse para Alberti a "grande obra" do
quadro, o que lhe tornava legível. Ainda assim, a partir de Goya
- e de Sade, segundo Foucault -, o grande "quadro das coisas"
achar-se-á irrevogavelmente arruinado pelo disparate do devir:
O campo epistemológico se fragmenta ou, antes, manifesta-se
em direções diferentes."144
Por isso a estranha "mesa de Borges" é chamada, nas pri-

8111
T"'m
vel . 1 Eis por^queAS pa/at/ras e as coisas de
'
ela compromete imediatamente"atlasa do impossí-
elaboração
de um conceito que será crucial em todas as dimensões do
pensamento de Foucault - da epistemologia à política, passan-
do pela estetica -, conceito próprio para designar um campo
operatono que não seria justamente aquele do "quadro" ou do
ugar-comum": esse conceito é o da heterotopia, que se pode,
sein dificuldade, compreender a partir das díspares invenções
de Goya ou de Borges. A heterotopia
seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande
número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do
heteróclito; e é preciso compreender essa palavra o mais próximo de
sua etimologia: as coisas aí são "estendidas", "postas", "dispostas"
em lugares tão diferentes que é impossível achar para elas um espaço
de acolhimento, de definir um lugar-comum}*6

Como o disparate ou o heteróclito se distinguem da "esqui-


sitice" ou do "incongruente", as heterotopias se distinguem das
utopias pois Foucault nos diz que elas "consolam" - enquanto
as heterotopias ameaçam ou inquietam modo de suspeitar
o que Louis Marin, mais tarde, mostrará em suas análises de
Thomas More, a saber, que os espaços utópicos são somente
um avatar particular do espaço representacional clássico.147

As heterotopias inquietam, talvez porque elas minam secretamente


a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque arre-
bentam os nomes comuns ou os confundem, porque arruinam ante-
cipadamente a "sintaxe", e não somente a que constrói as frases - a
menos manifesta, a que faz com que as palavras e as coisas "fiquem
juntas" (ao lado e diante umas das outras).148

Em 1982, Foucault considerará as heterotopias sob um ângulo


muito mais político para dizer ainda que a "liberdade é uma
prática" e, mesmo, uma técnica...149 Assim como tinham sido,
em sua escala, as escolhas técnicas de Warburg para fazer fun-
cionar livremente seu atlas de imagens tal qual uma verdadeira
heterotopia da história da arte.
Em 1984, num texto magnífico intitulado "Espaços outros",
Foucault explicitará mais uma vez o que compreende por "hete-
rotopias": espaços de crise e de desvio, agenciamentos concretos
de lugares incompatíveis e de tempos heterogêneos, dispositivos
socialmente isolados, mas facilmente "penetráveis", enfim, má-
quinas concretas de imaginação que "criam um espaço de ilusão

77
que denunca como mais ilusório ainda todo espaço real, todos

humana é coni
seriaTV" ^ ^ partlinemada.l-,i Níio
PaSPCCtíVa nã0 com art men
- e Í ÍZ77 ^ P ' taiizaçào
a azer um , T ^ ^ ^
3 mÇa0 meSa
e towLT
tableau] esse campo operatór.o" capaz" de
= pôr em prática
no mvel ep.stémico, estético, até político, "uma espécie de'

vivemos"30 30 meSm0 temP0


*^ do eS a 0
P í
77Z:~'0 própno espaço para
*• «—

leopardo, céu estrelado, varíola


RéSPINGOS varíola,

a "mesa de Borges", como a noção de heterotop.a que a


comenta, transforma o conhectmeuto em seu suporte em s„
exposição, sua disposição e, certamente, seu conteúdo Ela
ecipa igualmente a ,deia de platô de Gilles Delenze e

qi e Será 0
j ^ ' *"«■"» constitutivo dos "rizomas
aqUEl
r— 7™"™' «m «»» « faxem as verdadeiras
ht0: toda
f ' multiplicidade conectável com outras
P<>t hastes subterrâneas superficiais, de maneira a formar e
estender um nzomaV» E compreende-se, diante das pranchas
moveis do atlas M„a„osym, qu

menos como monumentos do que como documentos, e menos

0 0CUm n t0S d0
entre sÍporT
por vias fsuperficiais"
; . (visíveis,
^ históricas)
fatos econectados
"snbterrá-
lsmt0mais, arqueológicas) ao mesmo tempo. Tudo aqui
responde a um princípio de "cartografia aberti e cone tá
em todas as dimensões, desmontável. reversível e suscetível de

Ppági
S os, D°r3"ten
Is Deleuze e r°" :
Guattari admiram, através do "método De-
nas mesmas
8 y - fazer o mapa dos gestos e dos movimentos de uma

78
criança autista, combinar vários mapas para a mesma criança,
para várias crianças..."154 (Figura 20) - pode reconhecer-se, no
nível das migrações de culturas, tanto na curta como na longa
duração, através desse "método Warburg" que questionamos
aqui, dessa "história de fantasmas para gente grande" em que
foram dispostos múltiplos mapas móveis para as emoções hu-
manas, os gestos, os Pathosformeln155 (Figura 21).■

0f\

Figura 20 - Fernand Deligny, Calque de Monoblet, 1976. Nanquim sobre


papel vegetal, 36,6 x 49,7 cm. Arquivos Jacques Allaires e Marie-Dominique
Guibal. Fotografia DR.

Deste ponto de vista, a "iconologia dos intervalos" inventada


por Aby Warburg mantém com a história da arte que a precede
as mesmas relações que a "ciência nômade" - ou "excêntrica"
ou "menor" - mantém, nos Mil platôs, com a "ciência real"
ou a "ciência do Estado".156 E um saber "problemático" e não
"axiomático", fundado sobre um "modelo de devir e de hete-
rogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao
constante".157 Enquanto Panofsky propõe ainda uma ciência
do compars em busca da "forma invariável dos variáveis"

79
Warburg já propunha essa ciência do dispars que Deleuze e
Guattan encaram dinamicamente: "Não se trata exatamente
de extrair as constantes a partir de variáveis, mas de colocar as
próprias variáveis em estado de variação contínua.""*

vnc

_V

nhTrHnis 1.omPeIbW8' de ltma


geografia pessoal, 1928. Dese-
8 St,tUte ArChÍVe Foto ra
Institute - 8 ha The Warburg

Portanto, bem antes de reconhecer nas heterotopias foucaul-


tianas sua fecundidade filosófica quase fraternalmente assu-
mida,"' Gilles Deleuze encontrou, precisamente em Borges, o
modo de fazer rir o saber, isto é, o modo de "sacudir todas'as
familiandades do pensamento" ou de "abalar todas as superfícies
ordenadas e todos os planos que ajustam para nós a abundância
os seres". O capítulo da Lógica do sentido consagrado ao "jogo
ideal", por exemplo, se abre com uma lembrança da "corrida de
Caucus", em Lewis Carroll, na qual "damos a partida quando
quisermos e paramos de correr a nosso bel-prazer", assim como
a loteria de Babilônia" em Borges, onde "o número de sor-
teios e infinito [de modo que] nenhuma decisão é final"."0 Tais
paradoxos não podem ser geralmente pensados como "non-
sens" e, no entanto, afirma Deleuze, "precisamente: [eles são]

80
a realidade do próprio pensamento", eles são consequentemente
"o jogo reservado ao pensamento e à arte (...), o motivo pelo
qual o pensamento e a arte são reais e perturbam a realidade, a
moralidade e a economia do mundo".161
Acoplando os paradoxos de Borges à idéia estoica de tem-
poralidade, Deleuze chega então a nos fazer compreender algo
de essencial à idéia do atlas, tal qual tentamos aqui construir:
o que se passa no espaço paradoxal das diferentes "mesas de
Borges" só é possível porque um tempo paradoxal afeta todos os
acontecimentos que aí se realizam. Esse tempo não é nem linear,
nem contínuo, nem infinito: mas "infinitamente subdivisível" e
fragmentável, tempo que não cessa de se desmontar e de remontar
a suas condições as mais imemoriais. Esse tempo é o Aiôn estoi-
co proposto por Deleuze em oposição ao Chronos mensurável:
tempo "em cuja superfície" - ou "mesa" - os acontecimentos
são "recolhidos enquanto efeitos".162 E assim que "cada pre-
sente se divide em passado e em futuro, ao infinito", segundo
um "labirinto" para o qual Borges inventaria muitas formas,163
mas cuja formulação decisiva, é preciso lembrar, foi dada alguns
decênios antes por Warburg e Benjamin, através das expressões
Vorgeschichte e Nachgeschichte, a "pré e pós-história"164 con-
tígua a cada coisa do mundo.
Como se espantar, em tais condições, que Gilles Deleuze -
sempre pela via dos estoicos - não separe os jogos com o sentido,
que se encontram em todo lugar em Borges ou Lewis Carroll,
dos jogos com o tempo, que supõem as mais antigas práticas
adivinhatórias, "dividir o céu em seções e aí distribuir as linhas
dos voos de pássaros, seguir sobre o solo a letra que traça o fo-
cinho de um porco, extrair o fígado e aí observar as linhas e as
fissuras",165 ou seja, exatamente onde Warburg começaria suas
próprias "mesas visuais" da cultura ocidental? Que o Aiôn surja
no visível através do voo da andorinha, um focinho de porco ou
um fígado de carneiro, é isso que pode nos fazer compreender -
Deleuze insiste nisso - a que ponto as questões mais profundas

8]
arte de "ler o que nunca ' COm0 Bel,'ami" qUÍ ndo eíocara a
'
eSCm0 DdeUZe fala
« mnsob o p 13de um
P isma ' encontro' de esnaror;- ^ jogo com
por exemnlo
n ^utpto, "ac d..n mesas ou sériet; PUi
as duas espaços
- neterogeneos,
r > n
do sideral e do visceral, dos e dosLo^" ' ' ',7

na simu|
artificia] cproíimd^h " taneamente
0nSt,Ca
objetos que s "fm ÍMor ' " * -veutar
dos espaços e dos tempos fo^recXr ^ ' Pr0liferaÇâ0
difretar, se fragmentar ao infinito Hm "O ' 7'Para melhor se
exemplo, um homem abre um «atlas inútil» rr'816 SeCreto ^
OS quatrocent os
mil tomos da biblioteca do Cl • "
"vertiginoso" mapa da írUk tmlocT11171' POracaso
sobre um
pe sar s
"uma das menores letras" do 1"' " e" dedo sobre
■em a certera de ter ^n^^^ -P".
doravante em pedaços perdidos.» Mas em cTdT ^
ca a re
parcela de matéria on dp I- " sto, em cada
eliaSem deSde 0 4
o 2 de Zuhtr B:i?e„ tri(
o: ', ^ ^ a«
a -ontrara também o cristal d^ m a
desmontados e remontados ao infinito o 2ab ? '
a
raridade capaz de focalizar - até mesmo d ^'
Justos da tradição judaica o , ^ Carre8ar. «'^0 os
• dissimulada
ntats i- • que uaica - o universo
seja, humilde inteiro
e instável ao soK o r '
comume passageira ao mesmo tempot

^ ™—
mo£da

a data que está gravada sobr ■ o anverso


gravada sobre ^ 'C'raSIFm
e 1929
NTe ,,ún1ero
" dois;
do século XVIII um tiVrns f -y v ímzemte, no fim
S
-a"a.dueos«,:C^r^a; -t —de
Sbah mandou jogar „„ f„ndo do 8'» Nadir

82
um pedaço de turbante; na mesquita de Córdova, segundo Zotenberg,
um veio no mármore de uma das mil e duzentas pilastras; no gueto de
Tetuão, o fundo de um poço).169

Quanto ao Aleph, não seria mais do que uma "pequena esfera


de cores cintilantes" e com "diâmetro de dois ou três centíme-
tros"... Mas onde convergem, paradoxalmente "sem diminuição
de volume", todas as coisas do mundo, entre as quais:

Cada coisa (o vidro do espelho, por exemplo) eqüivalia a uma in-


finidade, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo.
Eu vi o mar populoso, eu vi a alvorada e à noite, eu vi as multidões
da América, uma teia de aranha prateada no centro de uma pirâmide
escura, eu vi um labirinto quebrado (era em Londres), eu vi olhos
bem próximos, intermináveis, que se observavam em mim como em
um espelho, eu vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu,
eu vi em um pátio da Rua Soler as mesmas lajes que tinha visto ha-
via trinta anos no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, eu vi uvas,
neve, tabaco, filão de metal, vapor de água, eu vi convexos desertos
equatoriais e cada um de seus grãos de areia, eu vi em Inverness uma
mulher que não esquecerei, eu vi sua cabeleira violenta, seu corpo
altivo, eu vi um câncer em seu peito, eu vi um círculo de terra seca
em uma calçada, ali onde antes havia uma árvore, eu vi numa quinta
de Adrogué um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de
Philemon Holland, eu vi ao mesmo tempo cada letra de cada página
(criança, eu estranhava que as letras de um volume fechado não se
misturassem e não se perdessem durante a noite), eu vi a noite e o dia
contemporâneo, eu vi um poente em Querétaro que parecia refletir a
cor de uma rosa de Bengala, eu vi meu quarto de dormir sem ninguém,
eu vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos
que o multiplicam indefinidamente, eu vi cavalos de crina revolta, sobre
uma praia do Mar Cáspio na alvorada, eu vi a delicada ossatura de uma
mão, eu vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais,
eu vi numa vitrine de Mirzapur um jogo de cartas espanhol, eu vi as
sombras oblíquas de algumas samambaias sobre o sol de uma estufa.

83
eu vi tigres, êmbolos, bisontes, multidões e exércitos, eu vi todas as
ormigas que há sobre a Terra, eu vi um astrolábio persa, eu vi em
uma gaveta de escritório (e a caligrafia me fez tremer) cartas obsce-
nas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz tinha endereçado a Carlos
rgentino, eu vi um monumento adorado em Chacanta, eu vi restos
atrozes de quem deliciosamente tinha sido Beatriz Viterbo, eu vi a
circulação de meu sangue obscuro, eu vi a engrenagem do amor e a
modificação da morte, (...) eu vi meu rosto e minhas vísceras, eu vi
teu rosto e tive vertigem e chorei (...).170

, Por mais longa que seja, essa citação forma somente uma
única frase, o que nos obriga a ver nela uma só prancha do que
scna o "atlas de Borges", um atlas formado por um número
indefinido de "mesas" desse gênero. Mas o que conta, numa tal
enumeração de imagens ou de "coisas vistas", não é sua soma,
sua lista ou inventário, mas as relações que tecem entre elas,
desde o longínquo "mar populoso" até a proximidade de um
corpo da mulher amada, desde o impessoal "círculo de terra seca
sobre uma calçada" até a íntima "circulação do meu sangue" É
o rigor secreto" das coisas caoticamente reunidas que importa
aqui, como diria Borges a propósito de Lewis Carroll.171
Escrever - que se trate de Ficções ou de crônicas, de poemas
ou de ensaios documentais - consistiria então, sob esse ângulo,
em formar o atlas ou a cartografia dépaysante, estranha, de
nossas experiências incomensuráveis (o que é muito diferente
de fazer a narrativa ou o catálogo de nossas experiências men-
suráveis). Em O autor, por exemplo, há listas aleatórias de
impressões fugidias ou as tentativas para registrar recordações
heterochtas que, com nossa morte, desaparecerão no nada.172
Mas ha também listas perfeitamente rigorosas - elas só são
a eatonas em aparência -, listas de coisas (Sachen) muito di-
ferentes, embora engendradas por uma única causa (Ursache),
como quando a realidade da escravidão justifica por si só uma
reumao de acontecimentos muito díspares, tais como: "os

84
blues de Handy, (...) a grandeza mítica de Abraham Lincoln, os
quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, (...) a admissão
do verbo linchar na décima terceira edição do dicionário da
Academia Espanhola" etc. etc.173 Um só monte de poeira no
fundo de uma étagère testemunhará, para Borges, a "história
universal",174 e é por isso que se deve constantemente reinventar,
para a própria linguagem, novas regras operatórias destinadas
a abrir as possibilidades de um conhecimento das "relações
íntimas e secretas" entre as coisas.
Assim é a "enciclopédia chinesa" evocada por Borges em
seu ensaio sobre "A língua analítica de John Wilkins", em que
a referência erudita a um certo "doutor Franz Kuhn" não apa-
ziguará nem a gargalhada, nem os abalos das superfícies, nem
o mal-estar filosófico.175 Assim serão "a máquina de pensar"
de Raymond Lulle - que, evidentemente, não funciona -, o
mundo hipermetafórico dos Kennigar, o sistema de numeração
inventado por Funes - uma palavra diferente para cada número
-, e o "labirinto dos ímpios" segundo Aureliano de Aquileia, ou
ainda a língua extraordinária dos Yahoos na qual "a palavra
nrz, por exemplo, sugere a idéia de dispersão ou de manchas [e
logo] pode significar o céu estrelado, um leopardo, um voo de
pássaro, a varíola, os respingos, a dispersão ou a fuga que se
segue a uma derrota".176
Parece que Borges, em idade avançada, concentrou uma
grande parte de sua energia, assim como Aby Warburg desde sua
experiência psicótica, em reconfigurar sua própria experiência
poética sob a forma de atlas que poderiam, todos, se intitular
Mnemosyne. Em 1960, constituiu um pequeno "museu" de
citações esparsas.177 Em 1975, estabeleceu uma coleção de desas-
tres reconhecendo o caráter incomensurável - muito pequenos,
muito grandes, bastante díspares - de "fatos memoráveis", por
exemplo, tentando fazer o "inventário" de seu sótão.178 Em
1981, voltou, uma vez ainda, para seu amor enlouquecido - e
seu uso heterodoxo - das enciclopédias.179 Em 1984, dois anos

85
antes de sua morte, Borges, enfim, publicou essa obra intitulada
Atlas, livro "feito de imagens e de palavras", de descobertas
dispostas segundo uma ordem "sabiamente caótica", e onde
fotografias só são dispostas para outrem, visto que esse atlas
ilustrado era a obra de um homem quase cego.180 Atlas do in-
comensurável, como deve ser todo atlas verdadeiro, porquanto
situa com igual dignidade as imagens visuais do mundo percor-
rido - um totem indiano, uma torre de pedra, a Praça de São
Marcos de Veneza, a ruína de um templo grego, um tigre vivo,
um brioche para degustar, algumas esquinas em Buenos Aires,
o deserto no Egito, uma inscrição japonesa, um punhal antigo
com uma faca de cozinha (Figura 22) - e imagens de sonhos que
o perseguiam à noite, sonhos de mulheres e de guerras, sonhos
de mesas de ardósia" e de enciclopédias cujos artigos têm um
fim, mas não um início.181

Figura 22 - "Punhal de Pehuajó". Segundo Jorge Luis Borges, Atlas, Buenos


Aires, 1984, p. 66.

Encontra-se aqui a dialética essencial do atlas, tal como a


caracterizou Walter Benjamin ao longo de seus textos sobre
a memória, a coleção, o mundo das imagens: é uma prática
materialista no sentido em que ela reconhece às coisas sua

R6
soberania anônima, sua profusão, sua irredutível singularida-
de.182 Mas é ao mesmo tempo uma atividade psíquica em que
o inventário racional dá espaço à associação, à anamnese, à
memória, à magia de um jogo que se relaciona com a infância
e
a imaginação.183 A imaginação, de novo: a "rainha das facul-
dades", segundo Baudelaire, a que "toca a todas as outras",
análise e síntese ao mesmo tempo, porque ela é material, até
0
ponto de ver o mundo somente como uma "imensa loja de
observações", poética, visto que "decompõe toda a criação e,
Co
m os materiais acumulados e dispostos segundo regras cuja
origem só se pode encontrar no mais profundo da alma, ela cria
u
m novo mundo".184 Esse "mundo novo" do qual o atlas faz
u
ma cartografia paradoxal e fecunda, uma cartografia capaz
de nos desorientar e nos orientar ao mesmo tempo nos espaços
e
nos movimentos da história.

87

Você também pode gostar