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Resumo do livro: BAUMAN. Zygmunt.

MODERNIDADE LÍQUIDA,
Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Capítulo 2 – INDIVIDUALIDADE

A disputa sobre a essência dos prognósticos populares retratados


pelos visionários Orwell, que descrevia um mundo de miséria e destituição, de
escassez e necessidade; e o de Huxley que retratava como uma terra de
opulência e devassidão, de abundância e necessidade, tinham outras
diferenças não menos notáveis: os dois mundos se opunham em quase todos
os detalhes.
No entanto, havia alguma coisa que unia as duas visões, que
compartilhavam do pressentimento de um mundo estritamente controlado, da
liberdade individual rejeitada por pessoas treinadas a obedecer a ordens e
seguir rotinas estabelecidas de uma pequena elite que manejava todos os
cordões de tal modo que o resto da humanidade poderia passar toda sua vida
movendo-se como marionetes; de um mundo dividido entre administradores e
administrados; projetistas e seguidores de projetos.
Orwell e Huxley não discordavam quanto ao destino do mundo, eles
apenas viam de modo diferente o caminho que nos levaria até lá se
continuássemos suficientemente ignorantes, obtusos, plácidos e indolentes
para permitir que as coisas seguissem sua rota natural.
Quando eles esboçaram os contornos trágicos do futuro, ambos
sentiram que a tragédia do mundo era o seu ostensivo e incontrolável
progresso rumo à separação entre os cada vez mais remotos controladores e
o resto, cada vez mais destituído de poder e controle. A visão que assombrava
os dois escritores era a de homens e mulheres que não mais controlavam suas
próprias vidas.
Assim como Platão e Aristóteles não eram capazes de imaginar
sociedade boa ou má sem escravos; Huxley e Orlwell não podiam conceber
uma sociedade, fosse ela feliz ou infeliz, sem projetistas, administradores e
supervisores que em conjunto escreviam o roteiro que outros deveriam seguir;
não podiam imaginar um mundo sem torres e mesas de controle. Os medos de
seu tempo, tanto quanto suas esperanças e sonhos, giravam em torno de
Repartições de Comando Supremo.

Capitalismo – pesado e leve


Nighel Thrift teria talvez classificado as histórias de Orwell e Huxley
não como “discurso de Joshua”(a ordem é a regra e a desordem a exceção), e
não como “discurso do Gênesis” (a desordem é a regra e a ordem a exceção).
No discurso de Joshua o mundo é “centralmente organizado, rigidamente
delimitado e histericamente preocupado com fronteiras impenetráveis”.
Até recentemente era o discurso de Joshua; agora, é o discurso de
Gênesis. Mas ao contrário do que Thrift dá a entender; o encontro de hoje,
dentro do mesmo discurso, de empresas e academia, dos que fazem e os que
interpretam o mundo, não é novidade; nem uma qualidade restrita ao novo
capitalismo ávido de conhecimento.
O mundo que sustentava o discurso de Joshua e lhe dava
credibilidade era o mundo fordista que, na descrição retrospectiva de Alain
Lipietz foi, em seu apogeu um modelo de industrialização, de acumulação e de
regulação.
A fábrica fordista foi sem dúvida a maior realização até hoje da
engenharia social orientada pela ordem. Não surpreende que tenha
estabelecido o quadro metafórico de referência para todos os que tentavam
compreender como a realidade humana opera em todos os seus níveis, tanto o
societal-global quanto o da vida individual.
A corrente invisível que prendia os trabalhadores a seus lugares e
impedia sua mobilidade era, nas palavras de Cohen, “o coração do fordismo”.
O rompimento dessa corrente foi também o divisor de águas decisivo na
experiência de vida, e se associa à decadência e ascensão aceleradas do
modelo fordista. Em seu estágio pesado, o capital estava tão fixado ao solo
quanto os trabalhadores que empregava.
Hoje, o capital viaja leve, apenas bagagem de mão que inclui pasta,
telefone celular e computador portátil. O trabalho porém, permanece tão
imobilizado quanto no passado, mas o lugar em que ele imaginava estar fixado
de uma vez por todas perdeu sua solidez de outrora; buscando rochas, as
âncoras encontram areias movediças. Alguns dos habitantes do mundo estão
em movimento; para os demais, é o mundo que se recusa a ficar parado.
Os passageiros do navio “Capitalismo Pesado” confiavam em que os
seletos membros da tripulação com direito a chegar à ponte de comando
conduziriam o navio a seu destino. Os passageiros podiam devotar toda sua
atenção a aprender a seguir as regras a eles destinadas e exibidas
ostensivamente em todas as passagens. Já os passageiros do avião
“Capitalismo Leve” descobrem horrorizados que a cabine do piloto está vazia e
que não há meio de extrair da “caixa preta” chamada piloto automático
qualquer informação sobre para onde vai o avião, onde aterrizará, quem
escolherá o aeroporto e sobre se existem regras que permitam que os
passageiros contribuam para a segurança da chegada.

Tenho carro, posso viajar


Pode-se dizer que o rumo dos eventos do mundo do capitalismo
provou ser o exato oposto do que Max Weber previa quando escolheu a
burocracia como protótipo da sociedade por vir e a retratou como a forma por
excelência da ação racional.
Extrapolando sua visão do futuro a partir da experiência
contemporânea do capitalismo pesado Weber previu o triunfo iminente da
“racionalidade instrumental” com o destino da história humana dado como
sabido, e a questão dos fins da ação humana acertada e não mais aberta à
contestação, as pessoas passariam a se ocupar mais da questão dos meios; o
futuro seria, por assim dizer, obcecado com os meios.
Quaisquer que sejam as aplicações do conceito da racionalidade
referida a valores no esquema weberiano da história, esse conceito é inútil se
quisermos captar a essência do momento histórico presente. O capitalismo
leve parece estar a anos-luz de distância da racionalidade dos valores no estilo
weberiano.
Nas novas circunstâncias o mais provável é que a maior parte da vida
humana consuma-se na agonia quanto à escolha de objetivos, e não na
procura dos meios para os fins, que não exigem tanta reflexão. O capitalismo
tende a ser obcecado por valores, o pequeno anúncio apócrifo na coluna de
“empregos procurados” – “tenho carro, posso viajar” – pode servir de epítome
ás novas problemáticas da vida, ao lado da questão atribuída aos chefes dos
institutos e laboratórios técnicos e científicos de hoje: “Achamos a solução.
Vamos agora procurar o problema”.
Para que as possibilidades continuem infinitas nenhuma deve
petrificar-se em realidade para sempre, melhor que permaneçam líquidas e
fluídas e tenham “data de validade”, caso contrário, poderiam excluir as
oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura.
O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com
tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar
provar todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das
tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de
dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos
consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha, “será que utilizei os
meios á minha disposição da melhor maneira possível?”
Mas se não se pode errar também não se pode saber se está certo, se
não há movimentos errados não há nada que permita distinguir um movimento
como melhor, e assim que permita reconhecer o movimento certo entre as
várias alternativas.

Pare de me dizer; mostre-me!


O capitalismo pesado, no estilo fordista, era o mundo dos que ditavam
as leis, dos projetistas de rotinas e dos supervisores; mundo de homens e
mulheres dirigidos por outros, buscando fins determinados por outros, de modo
determinado por outros.
O capitalismo leve, amigável com o consumidor, não aboliu as
autoridades que ditam as leis, nem as tornou dispensáveis, apenas deu lugar e
permitiu que coexistissem autoridades em número tão grande que nenhuma
poderia se manter por muito tempo e menos ainda atingir a posição de
exclusividade.
Não faltam, pessoas que afirmam “estar por dentro”, tais pessoas não
são, no entanto, líderes, elas são no máximo, conselheiros; e uma diferença
crucial entre líderes e conselheiros é que os primeiros devem ser seguidos e os
segundos precisam ser contratados e podem ser demitidos. Outra diferença
crucial é que os primeiros agem como intermediários entre o bem individual e o
“bem de todos”, ou entre as questões privadas e as questões públicas; já os
segundos cuidam de nunca pisar fora da área fechada do privado.
O melhor conselheiro é o que está ciente do fato de que aqueles que
receberão os conselhos querem uma lição-objeto, que as pessoas em busca
de conselho precisam de um exemplo de como outros homens e mulheres
diante de problemas semelhantes, se desincumbem deles.
A autoridade amplia número de seguidores, mas, no mundo de fins
incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz -
que é – a autoridade.
As condições de vida levam homens e mulheres a buscar exemplos, e
não líderes, levam-nos a esperar que as pessoas sob os refletores mostrem
como “as coisas que importam” são feitas. Afinal, ouviram das “pessoas por
dentro” que ninguém mais faria o que eles mesmos deveriam fazer, cada um
por si. Por que, então, alguém ficaria intrigado se o que atrai a atenção e
provoca o interesse de tantos homens e mulheres é o que os políticos (e outras
celebridades) fazem em privado?
Um lugar entre os refletores é um modo de ser por si mesmo, que
estrelas do cinema, jogadores de futebol e ministros de governo compartilham
em igual medida. Um dos requisitos que se aplica a todos é que se espera que
“eles têm o dever público” e que confessem “para consumo público” e ponham
suas vidas privadas á disposição, e que não reclamem se outros o fizerem por
eles. Uma vez expostas essas vidas privadas podem se mostrar pouco
esclarecedoras ou pouco atraentes.
O modo como as pessoas individuais definem individualmente seus
problemas individuais e os enfrentam é a única “questão pública”
remanescente e o único objeto de “interesse público”.
E enquanto isso for assim, espectadores e ouvintes treinados para
confiar em seu próprio julgamento e esforço na busca de esclarecimento e
orientação continuarão a olhar as vidas privadas de outros “como eles” com o
mesmo zelo e esperança com que poderiam ter olhado para as lições, homilias
e sermões de visionários e pregadores quando acreditavam que as misérias
privadas só poderiam ser aliviadas ou curadas “reunindo as cabeças”,
“cerrando fileiras” e “em ordem unida”.

A compulsão transformada em vício


O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuamos
à nossa atividade, é como ira às compras, uma atividade feita nos padrões de ir
às compras. O código em que nossa “política de vida” está escrito deriva da
pragmática do comprar.
Há muitas áreas em que precisamos ser competentes, e cada uma
delas requer uma “compra”. “Vamos às compras” pelas habilidades
necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis
empregadores de que as temos.
A lista de compras não tem fim, porém por mais longa que seja a lista
a opção de não ir às compras não figura nela. E a competência mais
necessária em nosso mundo de fins ostensivamente infinitos é a de quem vai
às compras hábil e enfatigavelmente. Os consumidores guiados pelo desejo
devem ser “produzidos” sempre novos e a alto custo.
Ademais, a história do consumismo é a história da quebra e descarte
de sucessivos obstáculos “sólidos” que limitam o vôo livre da fantasia e
reduzem o “princípio do prazer” ao tamanho ditado pelo “princípio da
realidade”. A “necessidade” considerada pelos economistas do século XIX
como própria epítome da “solidez” foi descartada e substituída durante algum
tempo pelo desejo, que era muito mais “fluído” e expansível que a necessidade
por causa de suas relações meio ilícitas com sonhos plásticos e volúveis sobre
a autenticidade de um “eu íntimo” á espera de expressão. Agora é a vez de
descartar o desejo.
O “querer” é o substituto tão necessário; ele completa a libertação do
princípio do prazer, limpando e dispondo dos últimos resíduos dos
impedimentos do “princípio de realidade”: a substância naturalmente gasosa foi
finalmente liberada do contêiner.
O corpo do consumidor
A vida organizada em torno do papel de produtor tende a ser
normativamente regulada. Há um mínimo de que se precisa a fim de manter-se
vivo e ser capaz de fazer o que quer que o papel de produtor possa requerer,
mas também um máximo com que se pode sonhar, desejar e perseguir,
contando com a aprovação social das ambições, sem medo de ser desprezado,
rejeitado e posto na linha.
A vida organizada em torno do consumo, por outro lado, deve se
bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre
crescentes e quereres voláteis não mais por uma regulação normativa. Uma
sociedade de consumidores se baseia na comparação universal e o céu é o
único limite. Como não há normas para transformar certos desejos em
necessidades e para deslegitimar outros desejos como “falsas necessidades”
não há teste para que se possa medir o padrão de “conformidade”.
Se a sociedade dos produtores coloca a saúde como padrão que seus
membros devem atingir, a sociedade de consumidores acena os seus com
ideal da aptidão. Tratar esses termos (saúde e aptidão) como sinônimos é um
erro pois pertencem a discursos e preocupações muito diferentes.
“Ser saudável” significa na maioria dos casos “ser empregável”, ser
capaz de um bom desempenho na fábrica, de “carregar o fardo” com que o
trabalho pode rotineiramente onerar a resistência física e psíquica do
empregado. O estado de “aptidão”, ao contrário, é tudo menos “sólido”; não
pode por sua natureza, ser fixado e circunscrito com qualquer precisão.
Se a saúde é uma condição “nem mais nem menos”, a aptidão está
sempre aberta do lado do “mais”. “Aptidão” significa estar pronto a enfrentar o
não-usual, o não-rotineiro, o extraordinário e acima de tudo o novo e o
surpreendente. Quase se poderia dizer que, se a saúde diz respeito a “seguir
as normas”, a aptidão diz respeito a quebrar todas as normas e superar todos
os padrões.
A saúde circunscrita por seus padrões e armada de uma clara
distinção de “norma” e “anormalidade” deveria estar, a princípio, livre dessa
ansiedade insaciável. Deveria ser claro o que deve ser feito a fim de alcançar
um estado saudável e protegê-lo, em que condições podemos declarar que
uma pessoa goza de “boa-saúde”, ou em que ponto do tratamento podemos
declarar que o estado de saúde foi restaurado e nada mais precisa ser feito.
Enquanto o cuidado com a saúde se torna cada vez mais semelhante
à busca da aptidão, esta tenta imitar, quase sempre em vão, o que era a base
da autoconfiança em relação aos cuidados com a saúde: a mensurabilidade do
padrão de saúde, e consequentemente também do progresso terapêutico.
Na esteira dos ajustes ao modelo da “aptidão”, o cuidado com a saúde
se expande a tal ponto que Ivan Illich recentemente sugeriu que “a própria
busca da saúde tornou-se o fator patogênico mais importante”. O diagnóstico
não tem mais como objeto o indivíduo, mas em cada vez mais casos seu objeto
é a distribuição de probabilidades, uma estimativa do que pode derivar da
condição em que o paciente diagnosticado se encontra.
A saúde é cada vez mais identificada com a otimização dos riscos.
Isso é o que os habitantes da sociedade de consumo treinados a trabalhar por
sua aptidão física esperam e desejam que seus médicos façam, e o que os
irrita e os torna hostis aos médicos que não cumprem com esse papel.
Compra como ritual de exorcismo
Pode-se conjectuar que temores que assolam o “dono do corpo”
obcecado com níveis inalcançáveis de aptidão e com uma saúde cada vez
menos definida e cada vez mais à imagem da aptidão provocariam cautela e
circunspecção, moderação e austeridade. Mas essa conclusão seria errônea,
exercitar os demônios interiores requer uma atitude positiva e muita ação, e
não a retirada e o silêncio.
Há razões mais que suficientes para “ir às compras”, qualquer
explicação da obsessão de comprar que se reduza a uma única está arriscada
a um erro. A compulsão-transformada-em-vício de comprar é uma luta morro
acima contra a incerteza aguda e enervante e contra um sentimento de
insegurança incômodo e estupidificante.
Como observou T. H. Marshall em outro contexto, quando muitas
pessoas correm simultaneamente na mesma direção, é preciso perguntar duas
coisas: atrás de quê e do quê estão correndo? Os consumidores podem estar
correndo atrás de sensações agradáveis, ou atrás de delícias do paladar
prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras dos
supermercados, ou atrás das sensações mais reconfortantes e profundas
prometidas por um conselheiro especializado.
Mas estão também tentando escapar da agonia chamada insegurança,
e a admirável virtude dos objetos que encontram quando vão às compras é que
eles trazem consigo a promessa de segurança. O comprar compulsivo é
também um ritual feito à luz do dia para exorcizar as horrendas aparições da
incerteza e insegurança que assombram as noites.
O que importa, porém, e permite que o jogo continue é a maravilhosa
qualidade dos exorcismos, enquanto a arte de exorcizar estiver viva, os
fantasmas não podem reivindicar a invencibilidade. E, na sociedade de
consumidores individualizados, tudo o que precisa ser feito precisa ser feito à la
“faça-você-mesmo’. O que mais além das compras preenche tão bem os pré-
requisitos desse tipo de exorcismo?

Livre para comprar – ou assim parece


Alfred Sloan era um pioneiro do que mais tarde se tornaria uma
tendência universal. A produção de mercadorias como um todo substitui hoje o
“mundo dos objetos duráveis” pelos “produtos perecíveis projetados para a
obsolescência imediata”.
Num mundo em que coisas deliberadamente instáveis são a matéria-
prima das identidades, que são necessariamente instáveis, é preciso manter a
própria flexibilidade e a velocidade de reajuste em relação aos padrões
cambiantes do mundo “lá fora”.
A obediência aos padrões tende a ser alcançada hoje em dia pela
tentação e pela sedução e não mais pela coerção. Essas verdades devem ser
reafirmadas mais e mais, pois o cadáver do “conceito romântico do eu”,
adivinhando uma profunda essência íntima que se esconde por trás das
aparências externas e superficiais, hoje em dia tende a ser artificialmente
reanimado pelos esforços conjuntos da “sociedade da entrevista” (apoiada em
todos os seus aspectos em entrevistas face a face para revelar o eu pessoal e
privado do sujeito), e de grande parte da pesquisa social de hoje.
No mundo pós-moderno todas as distinções se tornam fluídas, os
limites se dissolvem, e tudo pode muito bem parecer seu contrário. Em tal
mundo, o cuidado com a identidade tende a adquirir um brilho inteiramente
novo: a “idade da ironia” foi substituída pela “idade do glamour”, em que a
aparência é consagrada como única realidade.
A escolha do consumidor é hoje um valor em si mesma, a ação de
escolher é mais importante que a coisa escolhida. Esperar-se-ia que o
entusiasmo pela corrida diminuísse com a força dos músculos, que o amor pelo
risco e a aventura se apagaria com a diminuição dos recursos e com a chance
de escolher uma opção verdadeiramente desejável cada vez mais nebulosa.
Essa expectativa está fadada a ser refutada, porém, porque os corredores são
muitos e diferentes, mas a pista é a mesma para todos.
Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres
não podem desviar os olhos, não há mais para onde olhar. Quanto maior a
liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das
vitrines, mais profundo o sentido da realidade empobrecida tanto mais
irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento
fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha tem os ricos, tanto mais a
vida sem escolha parece insuportável para todos.

Separados, compramos
Ainda que nada inesperadamente, o tipo de liberdade que a sociedade
dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor tem um efeito
muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles a que
ostensivamente se destina.
A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras
adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de
mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de
prazeres de qualquer mercadoria tente a se exaurir rapidamente.
Felizmente para os consumidores com recursos, estes o garantem
contra conseqüências desagradáveis como a mercantilização. Ter a liberdade
de escolher, mas também a liberdade em relação às conseqüências da escolha
errada, e portanto a liberdade dos atributos menos atraentes da vida de
escolhas.
Por exemplo, “o sexo de plástico”, “amores múltiplos” e “relações
puras”, o aspecto de mercantilização das parcerias humanas foram retratadas
por Anthony Gidens como veículos de emancipação e garantia de uma nova
felicidade que vem em sua esteira, a nova escala sem precedentes da
autonomia individual e da liberdade de escolha.
Mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui
ruptura de certos vínculos e cancelamento de certas obrigações; os que estão
do lado que sofre quase nunca são consultados, e menos ainda têm chance de
exercitar a liberdade de escolha.
No entanto, mesmo levando em consideração tais “efeitos
secundários” de “relações puras”, pode-se ainda dizer que no caso dos ricos e
poderosos os arranjos costumeiros do divórcio e as pensões para as crianças
ajudam a aliviar a insegurança intrínseca às parcerias até que acabem. Mas
para os pobres e destituídos a parceria nesse novo estilo com a fragilidade do
contrato matrimonial espalha muita tristeza, agonia e sofrimento e uma volume
crescente de vidas partidas, sem amor e sem perspectivas.
A mobilidade e a flexibilidade da identificação que caracterizam a vida
do “ir às compras” não são tanto veículos de emancipação quanto instrumentos
de redistribuição de liberdades, mas são valores altamente ambivalentes que
tendem a gerar reações incoerentes e quase neuróticas.
A tarefa de auto-identificação tem efeitos colaterais altamente
destrutivos; torna-se foco de conflitos e dispara energias mutuamente
incompatíveis Como a tarefa compartilhada por todos tem que ser realizada por
cada um sob condições inteiramente diferentes, divide as situações humanas e
induz à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana e
gerar cooperação e solidariedade.

Capítulo 3: TEMPO/ESPAÇO

George Hazeldon, arquiteto inglês, estabelecido na África do Sul, tem


um sonho: criar um condomínio privado, onde as pessoas não precisem se
preocupar – o Heritage Park.
Com a compra de uma casa no condomínio pode-se ter acesso a uma
comunidade – última relíquia das utopias da sociedade de outros tempos.
O arquiteto quer recriar a comunidade em que vivia na infância. Assim,
para ele, o ideal é que todos vigiem a todos e quando alguém fizer algo, que
desagrade aos outros, seja prontamente punido e disciplinado.
Deste mundo cercado, não participam vagabundos, desocupados.
Contudo, a diferença entre a comunidade da infância de Hazeldon e
aquela por ele idealizada em forma de condomínio é o controle. Naquela, o
controle era informal, sem muito pensar e nesta o controle é realizado por
câmeras, seguranças, senhas.

Nota: estas considerações fizeram-me lembrar da música – Minha Alma (O


Rappa):
A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
As vezes eu falo com a vida,
As vezes é ela quem diz:
"Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?"
As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão

Um grupo de psiquiatras do Victorian Institute of Frensic Mental Health,


na Austrália, realizou um estudo e advertiu que modernamente as pessoas
apresentam uma tendência de apresentarem falsas comunicações de crimes.
Desta forma, gastam desnecessariamente o dinheiro público, disparando
investigações desnecessárias. Entretanto, se dinheiro público é assim
empregado, isso significa que foi destinado a estes fins.
Sharon Zukin, citando Mike Davis (City of Quartz – 1990) diz que os
anos de 1960 e 1970 foram um divisor de águas nos Estados Unidos da
América, pois coube à elite realizar uma escolha: apoiar a política
governamental para eliminar a pobreza e integrar a todos ou comprar proteção
e estimular a segurança privada.
Ao que parece optaram pela segunda.
A cultura passou a ser do medo cotidiano. As pessoas passaram a
manter-se fora das ruas. Assaltantes e vagabundos passaram a ser os inimigos
públicos.

Quando estranhos se encontram


Para Richard Sennet, uma cidade “é um assentamento humano em que
os estranhos têm chance de se encontrar”.
O encontro entre estes estranhos é um encontro sem passado e,
frequentemente, sem futuro.
Para Sennet a convivência urbana requer uma habilidade especial a
“civilidade”, a atividade que protege as pessoas das outras, permitindo,
contudo, que possam estar juntas.
Dizer que o meio urbano é civil significa que foi idealizado para que as
pessoas se encontrem sem ter que se mostrar, expressarem-se ou exibirem.
Exemplo deste meio é a praça La Défense, em Paris, onde chama a
atenção a falta de hospitalidade. Um imenso espaço que desencoraja a
permanência, sem bancos para descansar, sem árvores (Há bancos
geometricamente dispostos, ficam a um metro do chão, como se fosse um
palco para que todos pudessem apreciar o espetáculo realizado por quem
descansa).
Outra categoria de espaço público, mas não civil, destina-se a
transformar o habitante da cidade em consumidor.
Estes lugares incentivam a ação, mas não a interação, pois qualquer
interação dos atores os afastaria da ação de comprar e desviaria corpo e
mente da tarefa, a qual é absoluta e exclusivamente individual.
O templo do consumo bem supervisionado, vigiado, é uma ilha da
ordem. Livre de mendigos, desocupados, assaltantes e traficantes – pelo
menos é o que se supõe.

Lugares êmicos, lugares fágicos, não lugares, espaços vazios


Tudo o que ocorre dentro do templo de consumo tem pouca ou nenhuma
relação com o ritmo e teor da vida diária que flui “fora dos portões”.
O que faz destes espaços diferenciados não é a reversão, suspensão ou
negação das regras, mas a exibição do modo de ser que o cotidiano impede ou
tenta em vão alcançar – e que poucas pessoas imaginam experimentar nos
lugares que habitam normalmente.
Os lugares de compra/consumo oferecem o que nenhuma “realidade
real” pode dar: o equilíbrio quase perfeito entre liberdade e segurança.
Os compradores/consumidores podem encontrar o que em vão e
zelosamente não encontram fora dos templos: o sentimento reconfortante de
pertencer – a impressão de fazer parte de uma comunidade.
A pessoa que se destinam ao shopping center pode supor que lá
encontrará pessoas com o mesmo propósito, seduzidas pelas mesmas
atrações (reconhecendo-se, portanto, como atrações) e são guiadas e movidas
pelos mesmos motivos.
Claude Lévi-Strauss sugeriu que duas estratégias foram utilizadas na
história humana quando a necessidade de enfrentar a alteridade dos outros
surgiu.
A antropoêmica: consiste em vomitar os outros, vistos como
incuravelmente estranhos e alheios. Impedir o contato físico, diálogo e a
interação social. São variantes extremas: o encarceramento, a deportação e o
assassinato. As formas moderadas são a separação espacial, guetos urbanos,
o acesso seletivo a espaços urbanos e o impedimento seletivo ao seu uso.
A antropofágica: consiste numa “desalienação” das substâncias alheias.
Consiste em devorar corpos e espíritos estranhos de modo a fazê-los, pelo
metabolismo, idênticos aos corpos que ingerem. São formas desta estratégia
as cruzadas culturais, as guerras declaradas contra costumes locais e outros
preconceitos e superstições. Visava à suspensão ou aniquilação de sua
alteridade.
A já citada praça La Défense é um exemplo arquitetônico da estratégica
“êmica”, enquanto espaços de consumo representam a “fágica”.
É necessário acrescentar ainda uma terceira estratégica. Ela é o que
Georges Benko chama de “não lugares”. Eles desencorajam a ideia de
estabelecer-se. Neles, os estranhos fazem o que podem para que a sua
presença seja “meramente física” e socialmente pouco diferente e,
preferencialmente, indistinguível da ausência.
Tudo com o objetivo de zerar as idiossincráticas subjetividades de seus
passantes. São exemplos: aeroportos, anônimos quartos de hotel, transporte
público.
Os não lugares requerem domínio da sofisticada e difícil arte da
civilidade, uma vez que reduzem o comportamento público em conceitos fáceis
de aprender.
Já quanto aos espaços vazios, pode-se dizer que são aqueles aos quais
não se atribui significado.
O autor dá um exemplo. Diz que certa vez foi a uma conferência em uma
grande e populosa cidade na Europa. Foi recepcionado no aeroporto por uma
jovem, cujos pais eram ricos e de alta escolaridade. Ela se incumbiu de levá-lo
ao hotel e o percurso, que foi realizado pelo centro da cidade engarrafada,
demorou cerca de duas horas. Conforme a guia, não havia outro caminho.
No dia da partida, contudo, ele resolveu chamar um táxi. O percurso até
o aeroporto levou dez minutos. Contudo, o taxista passou por barracos pobres,
decadentes e esquecidos.
No mapa mental da jovem aqueles lugares pelos quais o táxi passou não
existiam. Havia pura e simplesmente um espaço vazio.
O vazio está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda.
Vazios são lugares que não se entra e onde se sentiria perdido ou vulnerável,
surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos.

Não fale com estranhos


A principal característica da civilidade é a capacidade de interagir com
estranhos sem utilizar essa estranheza contra eles e sem pressioná-los a
abandoná-la ou a renunciar a alguns traços que os fazem estranhos.
A questão da convivência com estranhos é fazer o que quer que digam
irrelevante e sem consequências para o que pode ser feito.
O fato é que quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o
esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em
presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais
intensa a ansiedade que ela gera.
“Não fale com estranhos” – outrora uma advertência de pais zelosos a
seus pobres filhos – tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta.
Os governos, impotentes para atacar as raízes da insegurança e
ansiedade de seus súditos estão felizes com a situação. A união dos nacionais
contra os “imigrantes” (estranhos), forma alguma coisa vagamente
assemelhada a uma “comunidade nacional”; e essa é uma das poucas tarefas
que os governos de nosso tempo são capazes de fazer e têm êxito.
A sonhada pureza da comunidade de George Hezeldon só pode ser
conquistada ao preço do desengajamento e da ruptura de laços. Os passantes
seriam livres, porque haveria pouco o que falar – à exceção de frases
rotineiras, que não geram conflitos.

A modernidade como história do tempo


A modernidade é o tempo em que o tempo tem uma história.
Busca-se saber por que espaço e tempo, outrora mesclados nos
afazeres da vida humana, se separaram e se afastaram no pensamento e na
prática da vida dos homens.
Quando meios de transportes não humanos e não animais apareceram,
o tempo necessário para viajar deixou de ser característica da distância e do
inflexível “wetware”; tornou-se atributo da técnica de viajar. O tempo se tornou
o problema do “hardware” que os humanos podem inventar, construir,
apropriar-se, usar e controlar, não do “wetwear” impossível de esticar, nem dos
poderes caprichosos e extravagantes do vendo e da água, indiferente à
manipulação humana.
O tempo é diferente do espaço porque, ao contrário deste, pode ser
mudado e manipulado.
Os reais e barões não podiam viajar muito mais depressa que seus
servos. O wetware tornava os humanos semelhantes. O hardware os tornava
diferentes.

Da modernidade pesada à modernidade leve


A modernidade pesada é a modernidade do hardware, cujo lema é
quanto mais, melhor. Ela foi a era da conquista territorial
O tempo congelado da rotina de fábrica, junto com os tijolos e
argamassa das paredes, imobilizava o capital tão eficientemente quanto o
trabalho que este empregava.
Entretanto, tudo isso se modificou com o capitalismo do software e da
modernidade leve.
O divisor de águas na história moderna do tempo é a irrelevância do
espaço, disfarçada de aniquilação do tempo.
No universo do software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode
ser atravessado, literalmente, em “tempo nenhum”. O espaço não impõe mais
limites à ação e seus efeitos e conta pouco, ou nem conta.
A tensão da luta pela conquista das coisas é que as fazem valiosas.
Assim, se tempo nenhum precisa ser sacrificado para chegar aos lugares mais
remotos, os lugares são destituídos de valor.
A quase-instantaneidade do tempo do software anuncia a
desvalorização do espaço.
Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que
quisermos, não há urgência em visitá-lo nem em gastar em uma passagem
válida para sempre.

A sedutora leveza do ser


O tempo instantâneo e sem substância do mundo do software é também
um tempo sem consequências.
Teria o tempo, depois de matar o espaço enquanto valor, cometido
suicídio?
Mesmo a tecnologia mais avançada, armada de processadores cada vez
mais poderosos, ainda tem muito caminho pela frente até atingir a genuína
“instantaneidade”.
Michel Crozier, há mais de 30 anos, estuda a dominação. Segundo ele,
quem domina são as pessoas livres, que ao mesmo tempo regulam
normativamente as ações dos protagonistas. A falta de liberdade das últimas é
o significado último da liberdade das primeiras.
Nada mudou da passagem para a modernidade leve. Contudo, o
objetivo reduziu-se à instantaneidade. As pessoas que mais aproximam o
momento do movimento (agem com mais rapidez) são as que agora mandam.
A dominação consiste na capacidade de escapar, de nos desengajarmos
e no direito de decidir sobre a velocidade que isso será feito – e ao mesmo
tempo de destituir os dominados da capacidade de decidir sobre seus próprios
movimentos.
Karl Polanti proclamou a ficção do trabalho como mercadoria. Para
controlar o processo do trabalho era preciso supervisionar os trabalhadores.
Esse requisito manteve capital e trabalho juntos.
Agora, entretanto, ocorre o fenômeno da “descorporificação”. O capital
ficou livre da tarefa que o forçava ao enfrentamento direto com os agentes
explorados em nome de sua produção e engrandecimento.
O trabalho sem corpo da era do software permite ao capital ser
extraterritorial, volátil e inconstante.
Se a ciência da administração do capitalismo pesado se centrava em
conservar a mão-de-obra e forçá-la a permanecer de prontidão e trabalhar
segundo os prazos, a arte da administração na era do capitalismo leve consiste
em manter afastada a mão-de-obra humana.
Depois de começada, a tendência ao “emagrecimento” ganha força
própria. A tendência se torna autopropelida e autoacelerada. O medo de ser
excluído do negócio justifica o jogo da fusão/redução. Este jogo não precisa de
um propósito, se continuar nele for sua única recompensa.

Vida instantânea
Richard Sennet, durante muitos anos, observou o comportamento dos
poderosos que se encontravam anualmente em Davos.
Rockefeller queria possuir oleodutos, prédios, máquinas ou estradas de
ferro por longo tempo. Por outro lado, Bill Gates tinha o cuidado de não
desenvolver apego (especialmente apego sentimental) ou compromisso
duradouro com nada, inclusive suas criações. Não tinha medo de tomar o
caminho errado, pois nenhum caminho o manteria na mesma direção por muito
tempo e porque voltar atrás ou para outro lado eram opções constantes e
instantaneamente disponíveis.
A indiferença em relação à duração transforma a imortalidade de uma
ideia numa experiência e faz dela um objeto de consumo imediato: é o modo
como se vive o momento que faz desse momento uma “experiência imortal”.
A instantaneidade (anulação da resistência do espaço e liquefação da
materialidade dos objetos) faz com que cada momento pareça ter capacidade
infinita; e a capacidade infinita significa que não há limites ao que pode ser
extraído de qualquer momento – por mais breve que seja.
Michel Thompson disse que o desejo de tornar mais duráveis seus
próprios objetos é uma constante das pessoas próximas do topo; talvez o que
as coloque lá seja mesmo essa capacidade de tornar objetos duráveis, de
acumulá-los, mantê-los e assegurá-los contra o roubo e deterioração; mais
ainda: de monopolizá-los.
Contudo, o advento da modernidade fluida subverteu radicalmente essa
credibilidade.
Passou-se a enfocar a transitoriedade em vez de durabilidade, a
disposição leve das coisas para abrir espaço para outras igualmente
transitórias e que deverão ser utilizadas instantaneamente, que é o privilégio
dos de cima e faz com que estejam por cima.
A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do
convívio humano.
Segundo Gordon Tullock, um dos mais importantes promotores da moda
teórica, a nova abordagem começa supondo que os eleitores são muito
parecidos com os consumidores e que os políticos são muito parecidos com os
homens de negócio.
Em nossos tempos a credibilidade é o recurso mais valioso do político
(enquanto a atribuição da confiança), podemos acrescentar, é a arma mais
zelosamente utilizada pelo eleitor.
A escolha racional na era da instantaneidade significa buscar a
gratificação evitando as consequências, e particularmente as responsabilidades
que essas consequências podem implicar.
Corpo esguio e adequação ao movimento, roupa leve e tênis, telefones
celulares (inventado para o uso dos nômades que têm de estar constantemente
em contato), pertences portáteis ou descartáveis – são os principais objetos da
era da instantaneidade.
Peso e tamanho, e acima de tudo a gordura (literal e metafórica)
acusada da expansão de ambos, compartilham o destino da durabilidade. São
os perigos que devemos temer e contra os quais devemos lutar, manter
distância.
É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade e que evita a
durabilidade. Também é difícil conceber a moralidade indiferente às
consequências das ações humanas e que evita a responsabilidade pelos
efeitos que essas ações podem ter sobre outros.
O advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um
território não mapeado e inexplorado, onde a maioria dos hábitos aprendidos
para lidar com ao afazeres da vida perdeu a utilidade e sentido.
Disse Guy Debord, “os homens se parecem mais com seus tempos do
que com seus pais”. E os homens mulheres do presente se distinguem dos
seus pais vivendo num presente “que quer esquecer o passado e não mais
parece acreditar no futuro”.
Mas a memória do passado e a confiança no futuro foram até aqui os
dois pilares que apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade
e a durabilidade, a mortalidade humana e a imortalidade das realizações
humanas, e também entre assumir a responsabilidade e viver o momento.

Capítulo 4: TRABALHO
Bauman inicia sua exposição sobre o trabalho refletindo sobre uma
inscrição na parede da prefeitura de Leeds - “para frente” - ao lado de outra
inscrição - “labor omnia vincit” - inferindo que, para aqueles que o inscreveram,
o progresso vinha sempre aliado ao trabalho.
Cita também Henry Ford, arauto da modernidade sólida, para quem a
história era bobagem, e o presente era o único momento digno de nota.
Dessa forma, o futuro era criação do trabalho, e o trabalho era a fonte de
toda criação. No mesmo sentido Pierre Bourdieu, segundo o qual para dominar
o futuro seria preciso estar com os pés firmemente plantados no presente.
Apresenta-se, aqui, a relação trabalho → presente → futuro. Dentro
dessa relação, não há espaço para o passado, como bem professou Ford. Na
verdade, o progresso não eleva ou enobrece a história. O “progresso” é uma
declaração da crença de que a história não conta e da resolução de deixá-la
fora das contas.

Progresso e fé na história
O ponto principal, aqui, é que o progresso se alia ao presente, mas
nunca ao passado. Na verdade, ele representa a autoconfiança do presente.
Por autoconfiança do presente, aqui, entende-se a junção de duas crenças:
que “o tempo está do nosso lado” e de que “somos nós que fazemos
acontecer”.
Como a fé no progresso se fundamenta na autoconfiança, atualmente a
fé é oscilante e fraca, principalmente por dois fatores:
1) notável ausência de uma agência capaz de “mover o mundo para
frente” - não se indaga mais o que fazer, mas quem o fará. Não existe mais
uma instituição representativa, sólida e organizada que puxe para si a
responsabilidade de promover o progresso mundial. Na modernidade líquida,
as agências da vida política são localizadas, descentralizadas. Sequer as
ideologia são claras.
2) fica cada vez menos claro o que a agência (se existisse) deveria fazer
para aperfeiçoar o mundo, no improvável caso de ter força para tanto. Tanto o
marxismo quando o liberalismo se mostraram falidos e incapazes de trazer
para a sociedade a felicidade que propugnavam.
Em que pese essa crise de fé, o encantamento moderno com o
progresso ainda não terminou e não terminará tão cedo. Em vez disso, o
progresso se modificou: não é mais uma medida temporária, uma questão
transitória, mas um desafio e uma necessidade perpétua.
Além disso, o progresso se individualizou: tornou-se desregulado (seu
conceito foi deixado ao livre arbítrio do consumidor) e privatizado (a questão do
aperfeiçoamento não se direciona mais a uma comunidade, mas a cada
indivíduo).
No que tange à exequibilidade do progresso, porém, nada mudou: o
mesmo continua, como afirmado por Bourdieu, ancorado no presente. O que
mudou, porém, foi o presente: não se tem mais a estabilidade de outrora, e,
para muitos dos contemporâneos, essa ancoragem no presente é instável ou
mesmo ausente. A fé, na verdade, é intermitente: poucos são seus portos
seguros e, na maior parte do tempo, flutua sem âncora, buscando enseadas
protegidas das tempestades.
Nesse contexto, o trabalho desempenhou papel fundamental. Dentre
suas várias vantagens, encontra-se a capacidade de restabelecer a ordem,
fornecendo estabilidade em momentos turbulentos. No contexto histórico, o
trabalho era uma instituição coletiva, em que toda a humanidade estava
empenhada por seu destino e natureza, e não por escolha.
Com a desconstrução, porém, a ideia de coletividade vai se perdendo e
o trabalho, assim como tudo na vida, vai se tornando individual. O mundo
humano, na visão de Jacques Attali, torna-se labiríntico e, nesse contexto, o
trabalho passa a ser fracionado: divide-se em episódios isolados onde os
objetivos são de curto prazo.
Talvez, nesse momento, o termo “remendar” capte melhor a nova
natureza do trabalho. Ele passa a ser, como tudo mais na modernidade líquida,
principalmente estético, ou seja, passa a ter valor em si mesmo, e não mais
pela sua contribuição à sociedade.

Ascensão e queda do trabalho


O trabalho sofreu profunda modificação com a revolução industrial:
antigamente era ligado à terra e profundamente dependente dos meios de
produção. Posteriormente, porém, houve a emancipação do trabalho: as
limitações naturais e o senhorio não eram mais óbices aos trabalhadores. Ao
mesmo tempo, porém, o industrialismo não os emancipou, mas apenas
substituiu a ordem então vigente por uma nova, mas dessa vez pré-projetada, e
não mais desorganizada como antigamente.
Essa nova ordem, portanto, fundada no trabalho, funcionava com réplica
da anterior, embora procurando substituí-la: as fábricas agora assemelham-se
a templos.
Nessa época, Henry Ford, em determinada ocasião, dobrou o salário de
seus trabalhadores. Embora afirmasse que o fazia por que queria que seus
empregados comprasse os carros que produzia, na verdade desejava deter a
alta mobilidade do trabalho na época. Desejava “prender” seus trabalhadores
na fábrica como modo de compensar o capital gasto em treinamento e
aperfeiçoamento. Inicia-se, aqui, a relação de mutualidade de dependência
entre capital e trabalho. Enquanto os trabalhadores dependiam do capital para
sobreviver, o capital dependia dos trabalhadores para se aperfeiçoar.
Nesse contexto, os horizontes temporais do capitalismo pesado (da
modernidade sólida) eram de longo prazo. Tal situação se intensificou após a
segunda grande guerra, com o desenvolvimento dos sindicatos de
trabalhadores. O confronto entre trabalhadores e capital que se fortaleceu com
os sindicatos demonstra a dependência mútua de ambos. A ruptura não era
uma saída, mas sim o acordo.
Na pós-modernidade, porém, isso se substitui. Utilizando a metáfora das
relações afetivas, o trabalho deixa de ser um casamento para ser um “morar
junto”. Não há mais a mentalidade de trabalho a longo prazo, mas sim de
muitos trabalhos sucessivos a curto prazo, da mesma forma que ninguém mais
acredita ou espera que um casamento durará para sempre.

Do casamento à coabitação
Como já afirmado anteriormente, a incerteza do presente é uma
poderosa força individualizadora. Quando o trabalho se torna de curto prazo e
precário, diminui consideravelmente a chance de união laboral. A expectativa
pelo novo corte de trabalhadores causa uma incerteza que leva ao
comportamento individualizado: não se pensa mais no trabalho como um
domicílio compartilhado, mas como um acampamento que se visita e do qual
pode-se partir quando as condições oferecidas tornarem-se insatisfatórias.
Nesse mundo do capitalismo leve, surge o desengajamento. O capital
se separa do trabalho e passa a flutuar livremente. Sua mobilidade o liberta e o
torna exterritorial. De modo contraditório, o capital passa a exigir menos
regulamentação (em termos, principalmente de regras trabalhistas e impostos)
por parte dos governos. Estes cedem, cientes de que a única forma de
“amarrar” o capital em seu território é mantendo-o leve.
Hoje, pois, o capital não tem mais compromisso algum com o Estado ou
com os trabalhadores. O único compromisso que mantém é com os
consumidores. Onde eles estiverem, o capital estará. Apenas nessa esfera se
pode falar atualmente de dependência mútua. Dessa forma, sendo a força de
trabalho apenas uma consideração secundária, perde muito do poder de
pressão que possuía no período pós segunda guerra.
Ocupam, assim, os trabalhadores uma categoria subalterna, de acordo
com Robert Reich, em que se encontram presos ao capital mas o capital não
se encontra preso a eles. Não há nada que façam que seja insubstituível. A
consequência dessa incerteza permanente é a desconfiança, a falta de
perspectiva e individualismo.

Digressão: breve história da procrastinação


Procrastinar, etimologicamente falando, significa deixar para amanhar
aquilo que deveria ser feito hoje. Trata-se, pois, de modificar a ordem temporal
natural das coisas: para se colocada no amanhã, essa coisa primeiro teve que
ser tirada de seu local normal (o hoje). Em outras palavras, procrastinar
significa não tomar as coisas como elas vêm. Longe, portanto, de ser uma
posição de relaxamento, como corriqueiramente se entende, a procrastinação
exige uma posição ativa de inverter a ordem das coisas para torná-la mais
adequada a seus anseios.
Como prática cultural, a procrastinação surgiu com a modernidade. A
mudança de tempo das coisas as afeta qualitativa e valorativamente. O
presente passa a ser avaliado não pelo que é, mas pelo que virá. O futuro
qualifica o presente, sendo a procrastinação importante instrumento para
conferir valor aos atos do presente.
A vida passa a ser uma peregrinação: busca-se sempre uma realização,
mas realizar-se equivale a perder o sentido. A satisfação é adiada
indefinidamente por meio da procrastinação.
Por sua ambivalência, a procrastinação alimenta duas tendências
opostas: uma leva à ética do trabalho, proclamando a virtude do trabalho pelo
trabalho. Outra leva à estética do consumo, rebaixando o papel do trabalho. Na
primeira tendência, serve à modernidade sólida; na segunda, à líquida.
Quanto à relação de consumo, entende a modernidade líquida que o
adiamento deve ser abolido. É o que George Steiner chama de “cultura de
cassino”: se algo merece uma recompensa, ela deve ser imediata. A
procrastinação cede espaço à satisfação frequente do desejo, mas tal
satisfação não é verdadeiramente satisfatória, mas sim abandonada sempre
pela metade.
O trabalho perde seu valor na medida em que a satisfação não pode
mais ser adiada. Tudo precisa ser aqui e agora, mesmo que a recompensa não
seja a ideal.

Os laços humanos no mundo fluido


As relações humanas são, na modernidade líquida, marcadas pela
precariedade. Por precariedade entende-se a experiência combinada da falta
de garantias (posições, títulos e sobrevivência), da incerteza (quanto à
continuação) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões).
Essa precariedade, que afeta as relações entre os homens, irradia
efeitos também no mundo do trabalho. O desemprego estrutural faz com que
ninguém se sinta verdadeiramente seguro. Ninguém pode garantir com certeza
que está a salvo da redução de tamanho, agilização ou racionalização. É,
afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a
contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Na verdade, até
mesmo os prêmios são voláteis, e acabam perdendo valor em pouco tempo.
O homem pós-moderno passou a descartar as coisas em vez de tentar
consertá-las. Um mecânico não mais conserta o que está com defeito, mas o
substitui por outra peça nova. Da mesma maneira, o trabalhador especializado
se torna descartável. Não há nada que ele saiba ou faça que outro não saiba
ou não faça.
A política de precarização passa a ser apoiada e reforçada pelas
políticas de vida. A efemeridade é a ordem da vez. Laços e parcerias tendem a
ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não
produzidas. Assim, quando uma parceira perde força, não há sentido em
mantê-la: o mais seguro é descartá-la. Privilegia-se o individualismo, e não a
cooperação. Justamente por isso o consumo, como ato individual, passa a ser
supervalorizado.
A autoperpetuação da falta de confiança
Na modernidade sólida, segundo Alain Peyrefitte, a característica mais
importante da sociedade era a confiança. A empresa era o lugar por excelência
para cultivo da confiança. Os conflitos existentes, em vez de enfraquecer essa
relação, a fortalecia: não há enfrentamento sem confiança. Confiança, nesse
caso, de que essa relação de mútua dependência era melhor para todos, de
que os direitos dos trabalhadores deveriam ser confiados a seu patrão.
Com o fim do engajamento político e da ação coletiva, a confiança
entrou em colapso. Segundo Bourdieu, a capacidade de fazer projeções é
condição para se manter a confiança. O caráter individualista e a libertação do
capital trazem uma insegurança que torna impossível qualquer tentativa de
projeção para o futuro. A confiança está acabada.
O capital é cada vez mais global, os trabalhadores são cada vez mais
individuais (por insegurança) e desprezáveis. Não há futuro, não há confiança,
não há estabilidade.

Capítulo 5: COMUNIDADE

Os liberalistas, em especial Descartes e Kant, propugnavam a libertação


do homem pelo uso da razão em direção ao individualismo. O livre-arbítrio era
a arma recém-descoberta para separar o homem da comunidade.
Entretanto, tal posição não restou imune a críticas. Poetas românticos,
historiadores, sociólogos e, principalmente, nacionalistas, uniram-se para
buscar a união dos homens com base na história e nos costumes.
Para Bauman, porém, essa disputa não é tanto no que tange à
“natureza humana”, mas sim à política. Não se questiona mais se o homem
liberta-se ou não da comunidade, mas se isso é bom ou ruim.
As comunidades se desenvolvem como mecanismos de defesa. Elas
unem os iguais e afastam os desiguais. Caminham, na verdade, na contramão
da modernidade líquida: negam o individualismo para abraçar o comunitarismo.
Esse comunitarismo, entretanto, é um tanto frágil. Os laços são transitórios, e
apenas servem para perseguir os objetivos comuns.
O objetivo principal do comunitarismo, nesse diapasão, é a segurança.
Se, para Bourdieu, o presente é instável, a ideia de comunidade oferece um
porto seguro nesse mundo de incertezas. Nesse aspecto, destaca-se a
“comunidade do evangelho comunitário” (community of the communitarian
gospel), como sendo um lar evidente (em que se nasceu, e não criado, achado
ou feito).
Dentro da comunidade do evangelho comunitário, o mundo comunitário
está completo por que separado da hostilidade e irrelevância do mundo
exterior. Para fora da comunidade se joga os medos, as incertezas e os
indesejáveis.
Nacionalismo, marco 2
A comunidade do evangelho comunitário é étnica: separa quem pode/
merece ser seu integrante. O fato de fazer parte da etnia estimula a ação de
viver à altura do modelo esperado pelos outros entes. Paradoxalmente, porém,
o próprio modelo não é uma questão de escolha, mas deriva das raízes dos
seres: ou se é ou não se é.
Foi assim que ascendeu o Estado-nação, como modelo de comunidade
étnica. Suprimiu-se todas as outras comunidades que se autoafirmavam
através de uma batalha cultural: impôs-se uma língua oficial, currículos
escolares e um sistema legal unificado.
Apesar desse aspecto “imperialista” da nação, há uma famosa distinção
entre patriotismo e nacionalismo, sendo o primeiro o aspecto positivo do
segundo (negativo). Em outras palavras, o patriotismo, como ideal, é o
nacionalismo perfeito e não excludente, civilizado e etnicamente enobrecido.
Há, contudo, sérias dúvidas de que o patriotismo tenha existido, existe ou
jamais existirá. Subsiste apenas como modelo ideal a ser perseguido, uma
utopia.
A crítica que atualmente se faz, nessa toada, é de que o patriotismo não
se diferencia tanto assim do nacionalismo como os pensadores antigos
queriam fazer crer. Na verdade, a única distinção entre ambos é quanto ao
grau de vergonha ou consciência de culpa com que os admitamos ou
neguemos. Para ser nacionalista, basta ter uma origem em comum, enquanto
que para ser patriota, é preciso escolher determinada comunidade. No fim das
contas, isso faz muita diferença no momento de admitir e abraçar a
comunidade.

Unidade – pela semelhança ou pela diferença?


A ideia de “nós” do comunitarismo traz intrínseca a ideia de “eles”,
sendo o “eles” a ameaça da qual se deve proteger. Para o nacionalismo, os
“exteriores” devem continuar fora, e as portas da comunidade devem ser
trancadas para barrar o surgimento de qualquer diferença do lado de dentro. O
patriotismo trata a situação de modo diferente: ao menos aparentemente é
mais tolerante, hospitaleiro e acessível.
Além dessa discussão, Bernard Crick, citando Aristóteles, cita um tipo
de comunidade que nem o patriotismo e tampouco o nacionalismo estão
dispostos a aceitar: aquela que seja inerentemente pluralista e, por isso
mesmo, civilizada. Nessa comunidade, é normalmente melhor conciliar
interesses diferentes que coagir e oprimir perpetuamente. Esse é,
essencialmente, o modelo republicano de unidade.
Se o patriotismo é utópico, que dirá o verdadeiro republicanismo. Por
isso, as comunidades são (pretendem ser) uniformes e, para isso, devem se
livrar do indesejado: estrangeiros, drogados, criminosos. Nesse mundo da
modernidade líquida, o sonho da pureza, como tudo o mais, foi
desregulamentado e privatizado: agora a proteção cabe à entidades privadas,
principalmente às imobiliárias, que resolvem de bom grado os problemas de
moradia limpa daqueles que podem pagar por seus serviços.
Segurança a um certo preço
Os comunitaristas, julgando inconciliáveis a liberdade e a segurança,
escolheram claramente esta em detrimento daquela. Abdicaram do livre ir e vir
em troca de manterem-se seguros e uniformes.
Como investimento seguro, a comunidade apenas tem precedentes no
corpo do membro: na contramão de tudo o mais na modernidade líquida, o
corpo humano tende cada vez mais para durar. A expectativa de vida aumentou
e, atualmente, provavelmente seja (e se não o for, será) maior que a duração
de qualquer comunidade.
Assim como a comunidade, o corpo também é um modo de proteção:
não se permite mais o toque. Ambos são aveludados por dentro e ásperos e
espinhosos por fora. Corpo e comunidade são os últimos postos de defesa no
campo de batalha cada vez mais deserto em que a guerra pela certeza, pela
segurança e pelas garantias é travada.

Depois do Estado-nação
O Estado deixou de prover aos indivíduos a segurança que necessitam.
Não houve propriamente um divórcio, mas um arranjo de “viver juntos”,
representando o enfraquecimento desses laços. Na verdade, parece haver
pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do
Estado.
No plano internacional, os Estados devem abrir mão do controle para
deixar seus indivíduos livres para agir, se relacionar e estabelecer
comunidades menores. Muitas vezes, porém, não o fazem, e a punição para tal
Estado é internacional.
De modo geral, a punição se dá de modo econômico: embargos e
retaliações comerciais são a saída mais frequente para sancionar um Estado
que se atreve a interferir de modo indesejável na vida de seus cidadãos.
Entretanto, há vezes em que há uma punição por meio da força militar.
O Estado que não joga o jogo com as regras de todos os outros. Exemplo disso
foi a invasão militar à Iugoslávia nos anos 90.
No que diz respeito aos conflitos armados, importante algumas
considerações. Hoje em dia, não se mede mais a força de um país por ser
maior ou menor, mas sim por ser mais rápido ou mais lento. Na modernidade
líquida, velocidade é a maior arma, e justamente por isso está havendo uma
inversão do processo histórico de sedentarização. Por milênios se acreditou
que o homem sedentário era a evolução do nômade, mas esse processo,
agora, com a leveza do capital, é o contrário.

Preencher o vazio
No mundo global, as empresas multinacionais pregam o fim das
fronteiras. Para elas, o mundo ideal é aquele sem Estados. Com efeito, o que
temos hoje é um sistema dual: de um lado, as economias oficiais; de outro, as
não oficiais.
Isso reflete a política de precarização observada por Bourdieu: o mundo
das nações se fragmentou, e foi substituído pela ordem supranacional – no
mais otimista dos cenários.
Nesse contexto de estruturas arbóreas, é preciso, de algum modo,
reforçar o contexto de comunidade. A saída que os Estados contemporâneos
encontraram foi através da violência, mais especificamente o sacrifício.
É preciso, para se sentir seguro, eleger um inimigo. Apenas nos unimos
por um objetivo comum, e o medo é um catalizador da união. O sacrifício se dá
com o assassinato daqueles que não fazem parte da comunidade, mas que
estão perto o bastante para percebermos seu extermínio. O próprio Estado
mata os desagradáveis de tempos em tempos, para manter a sociedade unida
e restabelecer os valores culturais mais antigos, despertando um sentimento de
nacionalismo oriundo de nossos antepassados.
Não se pode, porém, matar completamente o inimigo, mas sim deixá-lo
moribundo, ou morto-vivo. A ameaça deve ser sempre constante para manter
unido o povo, e um inimigo morto representa justamente a ausência de
ameaça.

Cloakroom communities
Cloakroom, em inglês, é um termo designado para os locais em que se
deixa os casacos durante um espetáculo para retirá-los na saída. Seguindo
essa analogia, as cloakroom communities são aquelas em que há um
espetáculo temporário em que todos comparecem, vestem-se similarmente,
têm reações parecidas, sorriem ou emocionam-se ao mesmo momentos e,
após isso, buscam novamente seus casacos (individualização) e desaparecem
na multidão.
Não há mais, como havia na modernidade sólida, uma causa comum
para se seguir adiante e perseguir como objetivo último. A união dos indivíduos
na comunidade se dá através de espetáculos efêmeros.
Também chamadas de “comunidades de carnaval”, as cloakroom
communities eficazmente impedem a condensação de comunidades genuínas,
espelhando a desordem e fragilidade que a pós-modernidade trouxe para a
união comunitária.

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