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BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro Zahar, 2001
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro Zahar, 2001
MODERNIDADE LÍQUIDA,
Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
Capítulo 2 – INDIVIDUALIDADE
Separados, compramos
Ainda que nada inesperadamente, o tipo de liberdade que a sociedade
dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor tem um efeito
muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles a que
ostensivamente se destina.
A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras
adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de
mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de
prazeres de qualquer mercadoria tente a se exaurir rapidamente.
Felizmente para os consumidores com recursos, estes o garantem
contra conseqüências desagradáveis como a mercantilização. Ter a liberdade
de escolher, mas também a liberdade em relação às conseqüências da escolha
errada, e portanto a liberdade dos atributos menos atraentes da vida de
escolhas.
Por exemplo, “o sexo de plástico”, “amores múltiplos” e “relações
puras”, o aspecto de mercantilização das parcerias humanas foram retratadas
por Anthony Gidens como veículos de emancipação e garantia de uma nova
felicidade que vem em sua esteira, a nova escala sem precedentes da
autonomia individual e da liberdade de escolha.
Mudar de identidade pode ser uma questão privada, mas sempre inclui
ruptura de certos vínculos e cancelamento de certas obrigações; os que estão
do lado que sofre quase nunca são consultados, e menos ainda têm chance de
exercitar a liberdade de escolha.
No entanto, mesmo levando em consideração tais “efeitos
secundários” de “relações puras”, pode-se ainda dizer que no caso dos ricos e
poderosos os arranjos costumeiros do divórcio e as pensões para as crianças
ajudam a aliviar a insegurança intrínseca às parcerias até que acabem. Mas
para os pobres e destituídos a parceria nesse novo estilo com a fragilidade do
contrato matrimonial espalha muita tristeza, agonia e sofrimento e uma volume
crescente de vidas partidas, sem amor e sem perspectivas.
A mobilidade e a flexibilidade da identificação que caracterizam a vida
do “ir às compras” não são tanto veículos de emancipação quanto instrumentos
de redistribuição de liberdades, mas são valores altamente ambivalentes que
tendem a gerar reações incoerentes e quase neuróticas.
A tarefa de auto-identificação tem efeitos colaterais altamente
destrutivos; torna-se foco de conflitos e dispara energias mutuamente
incompatíveis Como a tarefa compartilhada por todos tem que ser realizada por
cada um sob condições inteiramente diferentes, divide as situações humanas e
induz à competição mais ríspida, em vez de unificar uma condição humana e
gerar cooperação e solidariedade.
Capítulo 3: TEMPO/ESPAÇO
Vida instantânea
Richard Sennet, durante muitos anos, observou o comportamento dos
poderosos que se encontravam anualmente em Davos.
Rockefeller queria possuir oleodutos, prédios, máquinas ou estradas de
ferro por longo tempo. Por outro lado, Bill Gates tinha o cuidado de não
desenvolver apego (especialmente apego sentimental) ou compromisso
duradouro com nada, inclusive suas criações. Não tinha medo de tomar o
caminho errado, pois nenhum caminho o manteria na mesma direção por muito
tempo e porque voltar atrás ou para outro lado eram opções constantes e
instantaneamente disponíveis.
A indiferença em relação à duração transforma a imortalidade de uma
ideia numa experiência e faz dela um objeto de consumo imediato: é o modo
como se vive o momento que faz desse momento uma “experiência imortal”.
A instantaneidade (anulação da resistência do espaço e liquefação da
materialidade dos objetos) faz com que cada momento pareça ter capacidade
infinita; e a capacidade infinita significa que não há limites ao que pode ser
extraído de qualquer momento – por mais breve que seja.
Michel Thompson disse que o desejo de tornar mais duráveis seus
próprios objetos é uma constante das pessoas próximas do topo; talvez o que
as coloque lá seja mesmo essa capacidade de tornar objetos duráveis, de
acumulá-los, mantê-los e assegurá-los contra o roubo e deterioração; mais
ainda: de monopolizá-los.
Contudo, o advento da modernidade fluida subverteu radicalmente essa
credibilidade.
Passou-se a enfocar a transitoriedade em vez de durabilidade, a
disposição leve das coisas para abrir espaço para outras igualmente
transitórias e que deverão ser utilizadas instantaneamente, que é o privilégio
dos de cima e faz com que estejam por cima.
A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do
convívio humano.
Segundo Gordon Tullock, um dos mais importantes promotores da moda
teórica, a nova abordagem começa supondo que os eleitores são muito
parecidos com os consumidores e que os políticos são muito parecidos com os
homens de negócio.
Em nossos tempos a credibilidade é o recurso mais valioso do político
(enquanto a atribuição da confiança), podemos acrescentar, é a arma mais
zelosamente utilizada pelo eleitor.
A escolha racional na era da instantaneidade significa buscar a
gratificação evitando as consequências, e particularmente as responsabilidades
que essas consequências podem implicar.
Corpo esguio e adequação ao movimento, roupa leve e tênis, telefones
celulares (inventado para o uso dos nômades que têm de estar constantemente
em contato), pertences portáteis ou descartáveis – são os principais objetos da
era da instantaneidade.
Peso e tamanho, e acima de tudo a gordura (literal e metafórica)
acusada da expansão de ambos, compartilham o destino da durabilidade. São
os perigos que devemos temer e contra os quais devemos lutar, manter
distância.
É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade e que evita a
durabilidade. Também é difícil conceber a moralidade indiferente às
consequências das ações humanas e que evita a responsabilidade pelos
efeitos que essas ações podem ter sobre outros.
O advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humanas a um
território não mapeado e inexplorado, onde a maioria dos hábitos aprendidos
para lidar com ao afazeres da vida perdeu a utilidade e sentido.
Disse Guy Debord, “os homens se parecem mais com seus tempos do
que com seus pais”. E os homens mulheres do presente se distinguem dos
seus pais vivendo num presente “que quer esquecer o passado e não mais
parece acreditar no futuro”.
Mas a memória do passado e a confiança no futuro foram até aqui os
dois pilares que apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade
e a durabilidade, a mortalidade humana e a imortalidade das realizações
humanas, e também entre assumir a responsabilidade e viver o momento.
Capítulo 4: TRABALHO
Bauman inicia sua exposição sobre o trabalho refletindo sobre uma
inscrição na parede da prefeitura de Leeds - “para frente” - ao lado de outra
inscrição - “labor omnia vincit” - inferindo que, para aqueles que o inscreveram,
o progresso vinha sempre aliado ao trabalho.
Cita também Henry Ford, arauto da modernidade sólida, para quem a
história era bobagem, e o presente era o único momento digno de nota.
Dessa forma, o futuro era criação do trabalho, e o trabalho era a fonte de
toda criação. No mesmo sentido Pierre Bourdieu, segundo o qual para dominar
o futuro seria preciso estar com os pés firmemente plantados no presente.
Apresenta-se, aqui, a relação trabalho → presente → futuro. Dentro
dessa relação, não há espaço para o passado, como bem professou Ford. Na
verdade, o progresso não eleva ou enobrece a história. O “progresso” é uma
declaração da crença de que a história não conta e da resolução de deixá-la
fora das contas.
Progresso e fé na história
O ponto principal, aqui, é que o progresso se alia ao presente, mas
nunca ao passado. Na verdade, ele representa a autoconfiança do presente.
Por autoconfiança do presente, aqui, entende-se a junção de duas crenças:
que “o tempo está do nosso lado” e de que “somos nós que fazemos
acontecer”.
Como a fé no progresso se fundamenta na autoconfiança, atualmente a
fé é oscilante e fraca, principalmente por dois fatores:
1) notável ausência de uma agência capaz de “mover o mundo para
frente” - não se indaga mais o que fazer, mas quem o fará. Não existe mais
uma instituição representativa, sólida e organizada que puxe para si a
responsabilidade de promover o progresso mundial. Na modernidade líquida,
as agências da vida política são localizadas, descentralizadas. Sequer as
ideologia são claras.
2) fica cada vez menos claro o que a agência (se existisse) deveria fazer
para aperfeiçoar o mundo, no improvável caso de ter força para tanto. Tanto o
marxismo quando o liberalismo se mostraram falidos e incapazes de trazer
para a sociedade a felicidade que propugnavam.
Em que pese essa crise de fé, o encantamento moderno com o
progresso ainda não terminou e não terminará tão cedo. Em vez disso, o
progresso se modificou: não é mais uma medida temporária, uma questão
transitória, mas um desafio e uma necessidade perpétua.
Além disso, o progresso se individualizou: tornou-se desregulado (seu
conceito foi deixado ao livre arbítrio do consumidor) e privatizado (a questão do
aperfeiçoamento não se direciona mais a uma comunidade, mas a cada
indivíduo).
No que tange à exequibilidade do progresso, porém, nada mudou: o
mesmo continua, como afirmado por Bourdieu, ancorado no presente. O que
mudou, porém, foi o presente: não se tem mais a estabilidade de outrora, e,
para muitos dos contemporâneos, essa ancoragem no presente é instável ou
mesmo ausente. A fé, na verdade, é intermitente: poucos são seus portos
seguros e, na maior parte do tempo, flutua sem âncora, buscando enseadas
protegidas das tempestades.
Nesse contexto, o trabalho desempenhou papel fundamental. Dentre
suas várias vantagens, encontra-se a capacidade de restabelecer a ordem,
fornecendo estabilidade em momentos turbulentos. No contexto histórico, o
trabalho era uma instituição coletiva, em que toda a humanidade estava
empenhada por seu destino e natureza, e não por escolha.
Com a desconstrução, porém, a ideia de coletividade vai se perdendo e
o trabalho, assim como tudo na vida, vai se tornando individual. O mundo
humano, na visão de Jacques Attali, torna-se labiríntico e, nesse contexto, o
trabalho passa a ser fracionado: divide-se em episódios isolados onde os
objetivos são de curto prazo.
Talvez, nesse momento, o termo “remendar” capte melhor a nova
natureza do trabalho. Ele passa a ser, como tudo mais na modernidade líquida,
principalmente estético, ou seja, passa a ter valor em si mesmo, e não mais
pela sua contribuição à sociedade.
Do casamento à coabitação
Como já afirmado anteriormente, a incerteza do presente é uma
poderosa força individualizadora. Quando o trabalho se torna de curto prazo e
precário, diminui consideravelmente a chance de união laboral. A expectativa
pelo novo corte de trabalhadores causa uma incerteza que leva ao
comportamento individualizado: não se pensa mais no trabalho como um
domicílio compartilhado, mas como um acampamento que se visita e do qual
pode-se partir quando as condições oferecidas tornarem-se insatisfatórias.
Nesse mundo do capitalismo leve, surge o desengajamento. O capital
se separa do trabalho e passa a flutuar livremente. Sua mobilidade o liberta e o
torna exterritorial. De modo contraditório, o capital passa a exigir menos
regulamentação (em termos, principalmente de regras trabalhistas e impostos)
por parte dos governos. Estes cedem, cientes de que a única forma de
“amarrar” o capital em seu território é mantendo-o leve.
Hoje, pois, o capital não tem mais compromisso algum com o Estado ou
com os trabalhadores. O único compromisso que mantém é com os
consumidores. Onde eles estiverem, o capital estará. Apenas nessa esfera se
pode falar atualmente de dependência mútua. Dessa forma, sendo a força de
trabalho apenas uma consideração secundária, perde muito do poder de
pressão que possuía no período pós segunda guerra.
Ocupam, assim, os trabalhadores uma categoria subalterna, de acordo
com Robert Reich, em que se encontram presos ao capital mas o capital não
se encontra preso a eles. Não há nada que façam que seja insubstituível. A
consequência dessa incerteza permanente é a desconfiança, a falta de
perspectiva e individualismo.
Capítulo 5: COMUNIDADE
Depois do Estado-nação
O Estado deixou de prover aos indivíduos a segurança que necessitam.
Não houve propriamente um divórcio, mas um arranjo de “viver juntos”,
representando o enfraquecimento desses laços. Na verdade, parece haver
pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do
Estado.
No plano internacional, os Estados devem abrir mão do controle para
deixar seus indivíduos livres para agir, se relacionar e estabelecer
comunidades menores. Muitas vezes, porém, não o fazem, e a punição para tal
Estado é internacional.
De modo geral, a punição se dá de modo econômico: embargos e
retaliações comerciais são a saída mais frequente para sancionar um Estado
que se atreve a interferir de modo indesejável na vida de seus cidadãos.
Entretanto, há vezes em que há uma punição por meio da força militar.
O Estado que não joga o jogo com as regras de todos os outros. Exemplo disso
foi a invasão militar à Iugoslávia nos anos 90.
No que diz respeito aos conflitos armados, importante algumas
considerações. Hoje em dia, não se mede mais a força de um país por ser
maior ou menor, mas sim por ser mais rápido ou mais lento. Na modernidade
líquida, velocidade é a maior arma, e justamente por isso está havendo uma
inversão do processo histórico de sedentarização. Por milênios se acreditou
que o homem sedentário era a evolução do nômade, mas esse processo,
agora, com a leveza do capital, é o contrário.
Preencher o vazio
No mundo global, as empresas multinacionais pregam o fim das
fronteiras. Para elas, o mundo ideal é aquele sem Estados. Com efeito, o que
temos hoje é um sistema dual: de um lado, as economias oficiais; de outro, as
não oficiais.
Isso reflete a política de precarização observada por Bourdieu: o mundo
das nações se fragmentou, e foi substituído pela ordem supranacional – no
mais otimista dos cenários.
Nesse contexto de estruturas arbóreas, é preciso, de algum modo,
reforçar o contexto de comunidade. A saída que os Estados contemporâneos
encontraram foi através da violência, mais especificamente o sacrifício.
É preciso, para se sentir seguro, eleger um inimigo. Apenas nos unimos
por um objetivo comum, e o medo é um catalizador da união. O sacrifício se dá
com o assassinato daqueles que não fazem parte da comunidade, mas que
estão perto o bastante para percebermos seu extermínio. O próprio Estado
mata os desagradáveis de tempos em tempos, para manter a sociedade unida
e restabelecer os valores culturais mais antigos, despertando um sentimento de
nacionalismo oriundo de nossos antepassados.
Não se pode, porém, matar completamente o inimigo, mas sim deixá-lo
moribundo, ou morto-vivo. A ameaça deve ser sempre constante para manter
unido o povo, e um inimigo morto representa justamente a ausência de
ameaça.
Cloakroom communities
Cloakroom, em inglês, é um termo designado para os locais em que se
deixa os casacos durante um espetáculo para retirá-los na saída. Seguindo
essa analogia, as cloakroom communities são aquelas em que há um
espetáculo temporário em que todos comparecem, vestem-se similarmente,
têm reações parecidas, sorriem ou emocionam-se ao mesmo momentos e,
após isso, buscam novamente seus casacos (individualização) e desaparecem
na multidão.
Não há mais, como havia na modernidade sólida, uma causa comum
para se seguir adiante e perseguir como objetivo último. A união dos indivíduos
na comunidade se dá através de espetáculos efêmeros.
Também chamadas de “comunidades de carnaval”, as cloakroom
communities eficazmente impedem a condensação de comunidades genuínas,
espelhando a desordem e fragilidade que a pós-modernidade trouxe para a
união comunitária.