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Contra o Financismo – O Método Mais Prático

e Eficiente para Investir em Ações


Contra o Financismo – O Método Mais Prático
e Eficiente para Investir em Ações

1a Edição

Felipe Miranda e Rodolfo Amstalden

São Paulo, 2016


Ao Ramiro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Miranda, Felipe
Contra o financismo : o método mais prático e
eficiente para investir em ações / Felipe Miranda
e Rodolfo Amstalden. -- 1. ed. -- São Paulo :
Empiricus, 2016.

Bibliografia.
ISBN 978-85-92581-01-5

1. Ações (Finanças) 2. Bolsa de valores


3. Finanças pessoais 4. Investimentos 5. Mercado de
ações 6. Mercado de capitais I. Amstalden, Rodolfo.
II. Título.

16-06800 CDD-332.6
Índices para catálogo sistemático:
1. Mercado financeiro e de capitais : Economia
332.6

Capa e Ilustrações - Marcelo Torres


Projeto Gráfico - Renata Torres
Diagramação - Guilherme Montanari
Revisão: Daniela Piccoli, Frederico Rosas e Renato Torelli
marcelodgt@gmail.com

© 2016 Empiricus Consultoria e Negócios Ltda.


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Itaim Bibi – São Paulo/SP
www.empiricus.com.br
Contra o Financismo – O Método Mais Prático e Eficiente para
Investir em Ações

Prefácio..................................................................... 09

Introdução................................................................ 19

I. Quer investir em valor?..................................... 33

II. As armadilhas de valor..................................... 59

III. Crítica da razão pura....................................... 79

IV. Buffett vale mais............................................... 95

V. Um pouco de muito risco.............................. 107

VI. Opcionalidades............................................... 121

Epílogo................................................................... 139
Prefácio

Por Caio Mesquita


CEO da Empiricus

Caro leitor,

Você tem em mãos um título contrário ao “Financismo”.

Provavelmente nunca ouviu tal expressão, mas pode deduzir seu signifi-
cado com o empurrãozinho semântico aqui prefaciado por mim, a pedido
do Felipe e do Rodolfo.

A Empiricus cunha o Financismo como um conjunto de hábitos poten-


cialmente nocivos ao bolso do investidor. Não é coincidência que o termo
soe estranho, pois ele pretende provocar a estranheza.

Os financistas promovem uma complexidade – desnecessária, é claro – da


linguagem, sempre falando difícil o que poderia ter sido dito de maneira fá-
cil. Trata-se de um artifício retórico para tentar distanciar as pessoas normais
(advogados, engenheiros, médicos etc.) das pessoas financistas, atribuindo a
essas últimas um monopólio do conhecimento lucrativo.

Como advogado, engenheiro ou médico, você lida diariamente com te-


mas tão complexos quanto uma conciliação de normas e jurisprudências an-
tagônicas, o dimensionamento estrutural de uma ponte de concreto armado
ou o perfil epidemiológico de pacientes com meningioma cerebral.

.9.
Por que você não conseguiria entender sobre o funcionamento de um
título público que protege contra a inflação ou sobre o fluxo de caixa de
uma empresa que distribui dividendos regularmente?

Se você dirige uma dúvida objetiva a um financista – por exemplo, vale a


pena comprar dólares agora? – e recebe uma resposta confusa, ininteligível,
esteja certo de que a culpa mora do lado financista do balcão.

Eu, Felipe, Rodolfo ou qualquer analista da Empiricus jamais saberemos


responder se o dólar vai subir ou vai cair. Mas nos sentimos confortáveis
em analisar se vale a pena comprar dólares ou reais agora, com a máxima
clareza possível.

Fingem-se iguais, mas são óticas bem diferentes.

Prever o futuro (vai subir ou vai cair) nada tem a ver com a nobre tarefa
de pesar vários tipos de futuro (vale a pena?). Prever o futuro é uma ambição
impossível. Pesar vários futuros é um exercício útil.

O Financismo ambiciona prever o futuro, mas só consegue prever o pas-


sado – aquele mesmo passado que não vale nada, pois já aconteceu.

Quando, em meados de 2014, nosso estrategista Felipe Miranda temia


uma potencial recessão de -3% para 2015, o consenso de mercado unia-se
em torno de +1% de crescimento. A realidade se provou ainda mais dura
que o temor do Felipe, e atropelou completamente o consenso de mercado,
marcando retração de -4%. O episódio referendou nossa tese metafórica de
O Fim do Brasil e, mais importante, referendou dicas de investimento que
geraram milhões de reais em valor para nossos leitores.

.10.
Como conseguimos atingir esse alto grau de verossimilhança num mo-
mento em que o futuro desafiava radicalmente o passado? Lendo aquilo que
o Financismo não lia, estudando aquilo que o Financismo não estudava,
falando aquilo que os advogados, engenheiros e médicos poderiam compre-
ender facilmente.

Miramos o ideal de John Maynard Keynes – o principal economista do


século XX –, que preconizava: “Quando nós, economistas, conseguirmos
construir nosso raciocínio como pessoas humildes e competentes, no mes-
mo nível dos dentistas, estaremos numa situação esplêndida”.

Como se referenciar pelo ethos profissional do dentista? Trabalhando num


ritmo oposto ao do consenso pasteurizado de mercado, que não cabe em plani-
lhas de excel. Viajamos pelo país, visitamos fábricas, conversamos com concor-
rentes, sentimos o cheiro do mérito ou do embuste nos discursos corporativos.

Para analisar a realidade, precisamos experimentá-la de inúmeras manei-


ras, em um exercício multissensorial que o financista mediano já abandonou
faz tempo. Precisamos mergulhar naquilo que não nos pertence. A planilha
de excel, portanto, não basta, pois só preenchemos as células com aquilo que
já sabemos, ou calculamos saber.

Ouço dizerem: “é impossível bater o mercado”! Gênios como Warren


Buffett ou George Soros seriam meras excrescências estatísticas. Mas como o
financista sabe dessa impossibilidade, se ele sequer tentou bater o mercado?

O mercado – para o Financismo – é o último dos adversários. Frequentemen-


te, o financista nem chega a alcançá-lo, parando em outros obstáculos imediatos.

.11.
Para na já citada metodologia rasa das planilhas, para nos interesses co-
merciais do banco no qual trabalha ou nas ordens frenéticas da corretagem
que remunera seu trabalho. Desimpedido, poderia seguir em frente. Travado,
desiste e adere ao conforto de uma remuneração por soma zero, em que o
cliente perde enquanto ele ganha.

Lembro-me de um gestor profissional conversando com o Felipe sobre


os desafios de montar e acompanhar a Carteira Empiricus. “Felipe, como é
brigar noite e dia contra o CDI? Muito estressante?”

Pergunta aparentemente absurda, pois seria exatamente essa a briga desig-


nada, por vocação, ao próprio gestor – o qual retrucou: “Eu não brigo contra
o CDI. Brigo contra a administradora do meu fundo, contra os cotistas,
contra o 2/20, contra a ANBIMA e contra a CVM. Quando chego no CDI,
lá no fim da fila, já estou exausto”.

Ao se perceber uma vítima do Financismo, o profissional da Faria Lima


tem duas escolhas: conformar-se ou trabalhar como um louco para comprar
sua alforria o quanto antes. Via de regra, não são escolhas mutuamente ex-
cludentes, e o preço da alforria sobe a cada dia, ajustado pelo CDI.

Posso afirmar pois fui eu mesmo, certa vez, a vítima dessa mesma dita-
dura financista. Trabalhei em bancos internacionais – aqui, na Europa, em
Nova York –, onde conheci a arrogância e a incompetência que tanto nos
distanciam dos nobres dentistas.

Em 2009, mastigando disso tudo, tivemos uma cárie e fundamos a


Empiricus.

.12.
O que significa “Empiricus”? – de certo, não é uma alcunha comum.

Nossa marca é inspirada em Sextus Empiricus, filósofo grego conhecido


como o pai do Ceticismo.

Cético – como bem definiu Oscar Wilde – é o homem que conhece o


preço de tudo, e não conhece o valor de nada.

Bem antes de Oscar Wilde ou de David Hume, Sextus já pregava a suspen-


são das crenças absolutas e alertava para as ameaças do raciocínio por indução,
que se presta a tirar conclusões gerais a partir de observações particulares.

Seu pensar era bem mais simples.

Deparando-se com razões ou sentimentos de ordem X, Sextus limitava-se


a afirmar, numa postura humilde em relação à realidade: “parece-me, neste
momento, que isso significa X”. Portanto, sem que tal afirmação despertasse
a ânsia de uma definição completa e imutável do mundo exterior.

Sextus não teria problema algum em provocar sua audiência com um


discurso destrutivo de O Fim do Brasil para então – tempos depois – repro-
vocá-la por meio de uma tese construtiva de Contragolpe.

“Eu sei que o mel que eu provo tem um gosto doce” – ele dizia. “Mas sei
também que esse adocicado talvez não me explique nada sobre as verdadeiras
propriedades do mel”.

.13.
Quais são as verdadeiras propriedades de um título público? A política
fiscal por trás do déficit primário? O Estado de mal-estar social?

Quais são as verdadeiras propriedades de uma ação? A empresa por trás


da ação? Os investidores que insistem, dia a dia, em comprá-la e vendê-la?

Quais são as verdadeiras propriedades de um fundo imobiliário? Metros


quadrados, nível de vacância, liquidez restrita?

Quais são as verdadeiras propriedades do câmbio? Termos de troca das com-


modities, intervenção via swaps do Banco Central, quantitative easing do Fed?

Todas as respostas, parciais, são negativas e afirmativas em diferentes


proporções.

Diante de tantos salgados, amargos e azedos do mel financeiro, devemos


servir um banquete completo para os deuses do mercado, resistindo à tenta-
ção de pular direto para a sobremesa e pedir a conta.

Se tais e tais coisas acontecerem (ninguém sabe se acontecerão), quanto


poderemos ganhar? E quanto poderemos perder? Esse é o único raciocínio
legítimo para um analista que não queira se meter a prever o futuro.

O Financismo, entretanto, impede que as humildes sugestões de Sextus


Empiricus sejam levadas a cabo dentro das instituições financeiras. Analistas
de bancos e corretoras precisam saber exatamente o que acontecerá e não
podem se dar ao luxo de perder, nem mesmo por mera hipótese.

.14.
Sem meio termo, ou eles partem de premissas utopicamente racionais ou
de premissas descaradamente comerciais.

Não é à toa que o Financismo produz estudos e recomendações que inte-


ressam apenas aos financistas, e a ninguém mais.

No utopicamente racional, vale a briga infantil entre as melhores pro-


jeções de inflação, câmbio, Ebitda e lucro – sem qualquer apelo prático.
Aquilo que Deirdre McCloskey ilustrou como “boys playing games in their
sandbox”. Garotos entretidos pela construção de castelos de areia, valoran-
do-os como castelos de verdade.

No descaradamente comercial, ganha o analista que mais gerar dinheiro


para os deals do banco: empréstimos-ponte, aberturas de capital, advisory
para fusões & aquisições. Quem ganha é o banco e, depois, o analista. Não
ganha o dentista.

Com a Empiricus – e com este livro, em particular – brigamos pela defi-


nição de um novo tipo de financista. Aquele que é dentista cinco dias por
semana e também sabe cuidar de seus investimentos. Aquele que entende
quando ouve de finanças e se faz entender quando fala de finanças.

Miramos um novo tipo de financista. Como chegaremos lá? Contando


histórias.

Contadores de histórias que são, Felipe e Rodolfo dedicam boa parte


do livro a narrativas pessoais e coletivas que tocam em diversos campos do
saber (e do não saber). Aproximam, assim, a experiência de aprender sobre
investimentos à experiência cotidiana.

.15.
Temos que dançar dançando, e investir investindo. Não existe fórmula
mágica, robôs, algoritmos ou guias definitivos para o seu bolso. Pare de
procurar por essas soluções externas e comece a experimentar você mesmo.

As próximas páginas não vão prepará-lo para se tornar um investidor de


sucesso, do quilate de Buffett ou Soros. Páginas escritas em ouro não pode-
riam prometer isso, pois Buffett ou Soros amparam-se, principalmente, em
conhecimento tácito.

Veja só o que Buffett disse aos sócios da Ambev quando questionado


sobre tomada de decisão de investimento: “Em todas as ações e empresas
que investi, tomei a decisão em menos de dois minutos. Gosto de olhar no
olho de quem toca o negócio e ver se ele é fanático, se se preocupa com seus
clientes e se sente mal quando algum (cliente) é mal atendido’’.

Você não é Warren Buffett, mas já está preparado desde antes deste prefá-
cio. Preparado não para um sucesso de capa de revista, mas sim para o suces-
so que nos interessa: cumprir necessidades e satisfazer vontades financeiras,
suas e de sua família, ao longo de todo o seu ciclo de vida.

Indo contra o Financismo, Felipe e Rodolfo falam de um método práti-


co e eficiente para investir em ações. O que esperar ao final da leitura? Sem
spoilers, você vai aprender sobre Kafka, Tales de Mileto, Gilmar Fubá e o
tutu de feijão da Solange. Vai entender também como pensam Nassim Taleb,
Harry Markowitz, Benjamin Graham e Daniel Kahneman.

É como querer financiar o que há de bom.

.16.
Introdução

“Querido Pai,
Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu
não soube, como de costume, o que te responder, em parte justa-
mente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos
detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los
no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro re-
sponder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto,
porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me
atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de
longe minha memória e meu entendimento”.

.19.
Apesar de começar assim, este livro pouco tem de kafkiano. Ele não traz
nenhuma ideia repressiva ou surreal. Tampouco simboliza um acerto de
contas com a figura paterna. Há outros motivos envolvidos desde o início.

Essas linhas primeiras, extraídas da Carta ao Pai de Kafka, são uma ho-
menagem amorosa aos nossos pais, mestres e a todos aqueles que, de alguma
forma, exerceram ascendência intelectual sobre os autores. Obrigado, nós
amamos vocês.

Para além dessa gratidão pessoal, o trecho foi escolhido visando rebater
o fato estilizado – antigo e autoritário – de que só o especialista em Admi-
nistração ou Ciências Econômicas pode fazer bons investimentos. Aceitar
esse clichê é compactuar com uma limitação intelectual cujos danos à saúde
(financeira) são irreversíveis.

Ao longo dos próximos capítulos, você perceberá que os autores têm uma
ideia fixa na cabeça: seguindo lições simples, o leigo pode se sair inclusive
melhor do que o profissional financeiro. Usando sua própria inteligência, o
advogado, engenheiro ou médico está habilitado a bater as recomendações
do gerente de banco, inclusive por larga margem.

Como bem nos ensinou o investidor Guimarães Rosa, o que esta vida
quer da gente é coragem. Enfrentaremos corajosamente o estereótipo do
financista sabe-tudo, amparados na certeza de que uma mudança tan-
gível na forma de tratar seus investimentos poderá alçá-lo a uma nova
compreensão do que é rentabilidade.

Estamos propondo algo essencial: livrar-se da necessidade de estar


100% certo nas teses de investimento. Em vez dessa massagem ao ego,

.20.
privilegiamos o foco total em ganhar dinheiro – seja nos campos filosó-
fico, teórico ou prático.

Não somos mais crianças a ponto de saber tudo. Abandonamos lá atrás


a obsessão por se estar sempre corretos, vencendo a discussão. Agora temos
um objetivo adulto: fazer nossos leitores mais ricos.

Se você é daqueles que se preocupam com os melhores racionais e os


mais sofisticados métodos de investimento, então precisará entrar na fila do
diploma de PhD. Antes que perca tempo e dinheiro com cursos platônicos,
precisamos lhe dizer que não vai adiantar.

Praticamente todos os modelos financeiros são simplificações grosseiras


da realidade. E a realidade das ações é também a realidade das empresas –
que, por sua vez, carregam uma complexidade muito grande para caber em
planilhas de Excel. Fenômenos sociais não podem ser reduzidos a cartilhas
econômicas. Ao tentar fazê-lo, não estamos apenas simplificando a realida-
de, mas distorcendo o mundo, naquilo que a linguagem técnica batizou de
“não-ergodicidade”. Distorções de interpretação nos investimentos têm um
corolário imediato: prejuízo.

Já se você tem uma outra motivação – em vez de estar certo, quer sim-
plesmente ganhar dinheiro – então pode abrir mão de ser um PhD. Você
reconhece a impossibilidade de entender a realidade e tentar adivinhar o
futuro. O ininteligível não significa o “não inteligente”. Em vez de procurar
entender o mundo e fazê-lo caber em poucas linhas de uma planilha, passe
a aproveitar o quanto não conhece. Em vez de brigar contra sua ignorância,
beneficie-se dela. Do limão à caipirinha. Como viver num mundo que não
entendemos? Essa é a tarefa, afinal.

.21.
Gostaríamos de saber das coisas, mas não é assim que funciona. Lembra
o Caetano em Cajuína? “Existirmos, a que será que se destina?” Não sabe-
mos, nem vamos saber. Ora, então por que tentamos entender cada nota de
rodapé da realidade financeira, em vez de focarmos em beneficiar-nos da
nossa ignorância e da incerteza que nos cerca?

Trazendo para a linguagem canônica de finanças, estamos propondo um


instrumental mais moderno frente ao típico investimento em valor (value
investing). Uma filosofia que permita ganhos formidáveis (e intuitivos) ao
investidor leigo no longo prazo.

Que fique clara a mensagem: qualquer um pode se tornar milionário in-


vestindo em ações. Não requer conhecimento elaborado em Finanças. Exige
apenas assumir que você vai errar várias vezes. Estar equivocado faz parte
do processo. Basta que perca pouco quando erra e ganhe muito ao acertar.
Fazendo isso, um único acerto empurrará o agregado de sua carteira para
o positivo. O resumo é esse.

Se você reparar na Carta ao Pai, Kafka assume que a grandeza do tema


ultrapassa seu entendimento. Se o sujeito é incapaz de entender a relação
com o próprio Pai, com quem esteve, até aquele momento, por 36 anos,
como poderá compreender uma empresa ou uma ação? Não estamos aqui
para entender. Estamos aqui para triunfar.

.22.

Jogo de influências

A organização (ou a falta dela) deste livro é curiosa. Reúne relatos pes-
soais, casos reais, um pouco de filosofia e, mais importante, o objetivo de
mostrar a capacidade de o leigo superar o profissional – falamos aqui espe-
cificamente do caso financeiro, mas estamos um tanto convencidos à esta
altura de que serviria para quase todas as disciplinas das Ciências Sociais.

Se você tem alma engenheira, não se preocupe, pois este é também um


trabalho de algumas tecnicidades. Sob o ponto de vista técnico, estamos nos
inspirando no conceito de “antifragilidade” tal como definido por Nassim
Taleb. Trata-se, obviamente, de interpretação própria dos autores, de modo
que nossas culpas serão sempre nossas, e de mais ninguém.

Essa veia técnica absorve o conceito de Taleb e o relaciona diretamente


ao investimento em ações e em demais ativos financeiros. Grosso modo, es-
tamos afirmando que estratégias desenhadas sob uma abordagem antifrágil
são – ao menos do ponto de vista filosófico – superiores àquelas do tradicio-
nal investimento em valor ou a qualquer outro método manjado.

Mas o leitor distante do mundo de Finanças não precisa se preocupar com


isso neste momento. Tudo será explicado em cenas dos próximos capítulos.

Antes que sejamos bombardeados por milhares de e-mails das viúvas de


Warren Buffett e Benjamin Graham, cumpre esclarecer: não há absolutamen-
te nada contra o value investing original. Ao contrário, achamos que essa
abordagem funciona também. E já se provou historicamente adequada para
carteiras de ações voltadas ao longo prazo.

.23.
Somos, sim, e continuaremos sendo admiradores desses monstros sa-
grados. Estamos defendendo apenas uma superioridade epistemológica na
antifragilidade frente aos ensinamentos da Escola de Valor. Não precisa-
mos ter medo dos nossos pais e mestres. Se quiserem, ainda assim, mandar
e-mails em defesa de Buffett (como se ele precisasse), responderemos com
prazer.


Uma raiz filosófica

“É curioso como não sei dizer quem sou.


Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer
porque no momento em que tento falar
não só não exprimo o que sinto
como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo”.
(Clarice Lispector)

Um bebê precisa ser capaz de catalogar os nutrientes do leite materno an-


tes da amamentação? Ciclistas do Tour de France estudam noções cinéticas
essenciais à Engenharia Mecânica?

Veja bem, não é por que você não entende uma coisa que ela não existe.
Há o conhecimento passível de narrativa/formalização e há o mais opaco.
Com todo o perdão da palavra, eu, imitando a Clarice Lispector, sou um mis-
tério para mim.

.24.
Na Escola, misturávamos história antiga e mitologia grega, temperando
a salada com dúvidas – algumas filosóficas – sobre o que era filosofia. Não
sabia se o tal Aristóteles era Deus, semideus, herói ou humano. Recente-
mente fiquei feliz em saber que o sujeito pertencia à ultima categoria. Ele
também cometia seus erros. Se fosse herói, teria – como os outros – morrido
de overdose.

Então deixe-me contar uma história rápida, causo real.

Tales de Mileto, matemático e filósofo pré-socrático, embora dotado de


competências mercantis razoáveis, vivia uma vida sem luxo. Por isso, enfren-
tava com frequência críticas inspiradas no dito popular da época: “aqueles
que podem, fazem; os outros filosofam”. De tanto ouvir, Tales se cansou da
turma do amendoim.

Numa tentativa de demonstrar que sua opção pela filosofia derivava de


interesse genuíno (e não da falta de alternativas), alugou todas as prensas de
olivas de Mileto e adjacências num momento supostamente adverso para
a colheita. Para tanto, fez um pagamento antecipado muito barato (já que
tudo indicava colheita ruim), garantindo o aluguel futuro das prensas. As
condições climáticas mostraram-se profícuas e renderam uma colheita alta-
mente produtiva, fomentando a demanda por prensas e trazendo grandes
lucros para Tales.

Aristóteles interpretou essa história como uma demonstração da capaci-


dade de Tales de antecipar condições climáticas favoráveis à colheita, graças
a seus conhecimentos de astrologia. Nessa leitura aristotélica, a razão do fi-
lósofo teria sido a força por trás de seu enriquecimento. Não concordamos.

.25.
Na verdade, a coisa funciona justamente na direção contrária: os lucros
vieram do aproveitamento da ignorância, e não do conhecimento. Tales
estava na posição de se beneficiar fortemente de um resultado positivo,
tendo, em contrapartida, sua perda limitada pelo pagamento antecipado e
barato. Paga-se um preço pequeno para expor-se a uma chance de grandes
lucros. Perde-se pouco em caso de resultado negativo e ganha-se muito em
caso de acerto. Essa é a ideia central da antifragilidade.

Há uma separação importante entre os talesianos e os aristotélicos. Os


primeiros se preocupam com os efeitos práticos da exposição, com os
payoffs e as consequências práticas de cada ação, enquanto os últimos
focam o conhecimento per se, a preocupação vaidosa com estar certo ou er-
rado. Dada a impossibilidade de se prever o futuro e adivinhar qual cenário
vingará à frente, o foco nos impactos (e não o evento em si) é a coisa mais
importante para investimentos bem feitos.


A hora de definir

“Eu errei mais de nove mil arremessos em minha carreira. Perdi


quase 300 jogos. Por 26 vezes, me confiaram a bola do jogo e eu
errei. Eu falhei, e falhei e falhei de novo em minha vida. E é por
isso que eu prosperei”.

Quem disse isso foi um jogador de basquete, numa famosa propaganda


da Nike. Sim, Michael Jordan entendeu o ponto. O esporte, o empreendedo-
rismo e o investimento são todos processos de tentativa e erro.

.26.
O erro faz parte das situações que envolvem incerteza. Não dá para tentar
domesticar o desconhecido, tratando a realidade com a mesma complexi-
dade de videogame ou jogos de cassino, em que os cenários potenciais e as
probabilidades de ocorrência são conhecidas a priori.

Interessante como empresários entendem facilmente a questão, mas


acadêmicos & afins passam batido. Vejam como pensa o pessoal da 3G –
Lemann, Telles e Sicupira: “Claro que é da natureza humana querer que a
incerteza vá embora. Mas esse desejo pode levá-lo a agir rápido, às vezes rá-
pido demais. De onde eu venho, você percebe rapidamente que a incerteza
jamais desaparecerá, não importa quais ações ou decisões tomemos”.

Preâmbulos feitos, por que o nome estranho de antifragilidade? Sem pre-


cisar recorrer ao dicionário – ok, você pode conferir se quiser, sem problema
–, o que é frágil? Basicamente, algo que se quebra facilmente mediante um
choque. E qual o contrário de frágil? Com frequência, apontam-se supostos
antônimos como forte, vigoroso, robusto.

Ora, o contrário de negativo não é neutro, mas sim positivo. De ma-


neira análoga, o antônimo de frágil não pode ser simplesmente algo que
resiste bravamente a um choque. O oposto de frágil deve se beneficiar de
um choque. Na ausência de outro termo pré-existente, ficamos com anti-
frágil: aquilo que se beneficia do impacto, da turbulência, da incerteza, da
volatilidade, da ignorância, do desconhecido.


Esmiuçando a coisa, definições um pouco mais formais para o propósito


deste livro seguem abaixo:

- Frágil: toda coisa ou situação em que as perdas aumentam mais do que

.27.
proporcionalmente conforme a intensidade do choque negativo; os ganhos,
por sua vez, aparecem em intensidade inferior àquela do choque positivo.

- Robusto: toda situação ou coisa com resposta linear à intensidade


do choque.

- Antifrágil: toda coisa ou situação em que os ganhos aumentam mais


do que proporcionalmente conforme a intensidade do choque positivo;
as perdas, por sua vez, ficam maiores em intensidade inferior àquela do
choque negativo.

Uma xícara é frágil ao impacto. Vários choques muito pequenos não vão
fazê-la quebrar. Um único golpe um pouco mais forte e ela está desfeita. O
corpo humano é frágil à altura. Dez quedas de 50 centímetros causam pouca
(ou nenhuma) lesão. Uma única queda de cinco metros pode ser fatal. Tacar
1.000 pedras de 100 gramas num sujeito pode ser desprezível. Basta uma
pedra de 100 kg para empurrar o cidadão para o andar de cima. Em cada
uma dessas situações, o resultado negativo (prejuízo ou perda) aumenta em
velocidade superior àquela da intensidade do choque.

Em contrapartida, a compra de um seguro para sua casa pode ser anti-


frágil. Quanto mais extremo for um evento – exemplo: incêndio em toda
a residência –, mais terá valido a pena fazer o seguro. Pequenos choques
não mexem muito com você, mas algo impactante o deixará satisfeito por
ter feito o seguro (importante frisar que falamos da contratação do seguro
e não da perda da casa em si). Os ganhos de felicidade em ter concordado
com o corretor serão maiores conforme a intensidade do choque – se é que é
possível alguma felicidade decorrente de conversas com corretores de seguro.

.28.
Quando se está diante de algo frágil, um evento adverso vai lhe trazer
grandes perdas. E quanto mais adverso, ainda maiores as perdas. Já um even-
to positivo traz poucos ganhos, que crescem em ritmo lento à medida que o
resultado favorável se intensifica.

Em contrapartida, na antifragilidade, um evento adverso lhe traz poucas


perdas. E se o evento vai se tornando ainda mais adverso, o tamanho das
perdas vai aumentando lentamente, ou nem sequer aumenta. Enquanto isso,
um evento positivo traz grandes ganhos, que sobem rapidamente com a
intensidade do cenário favorável.

Resume-se a coisa assim: o frágil não gosta de volatilidade e eventos ex-


tremos. Além disso, em situações de fragilidade, você perde muito se estiver
errado e ganha pouco se estiver certo. Analogamente, o antifrágil adora vola-
tilidade e eventos extremos. Sob antifragilidade, você perde pouco se estiver
errado e ganha muito quando acerta.

Quando você faz o seguro da casa, você não acha que sua casa vai ne-
cessariamente pegar fogo. Mas, se estiver errado, perderá apenas o valor do
prêmio. Certamente, um prejuízo pequeno frente à possibilidade de arcar
com todo o patrimônio imobiliário.

Vamos por partes

O livro é estruturado no seguinte sentido: da apresentação dos pilares or-


todoxos do investimento em valor para a defesa da superioridade filosófica
da antifragilidade.

.29.
O primeiro capítulo introduz o value investing tradicional. Colocamos
aí os principais conceitos do Investimento em Valor a partir dos ensinamen-
tos clássicos de Benjamin Graham e Warren Buffett. Tratamos também da
evolução da Escola de Valor, passando da maior importância ao passado,
conforme as determinações iniciais de Graham, para posterior possibilidade
de incorporarem-se fluxos futuros na determinação do valor de uma empre-
sa, tratando da influência de Philip Fisher sobre Warren Buffett. A seção é
fechada com a exposição de um Modelo de Fluxo de Caixa Descontado, e
de como o método remete ao mito da Cama de Procustos.

A segunda parte aborda as armadilhas canônicas, que ensejam uma dis-


cussão mais ampla sobre o que é valor. Existiria mesmo uma aparente ver-
dade aristotélica capaz de cravar com precisão qual o valor de uma empresa?
Recado antecipado: não há somente armadilhas de valor; o próprio valor é
uma armadilha. A rigor, os riscos escondidos e os eventos imprevisíveis são
aqueles que acabam determinando a evolução de um ativo financeiro. Isso
remete ao problema clássico da indução de David Hume e aos tais cisnes
negros de Nassim Taleb.

O terceiro capítulo faz um apanhado sobre a inadequação da hipótese


de que podemos conhecer os fluxos de caixa futuros e, portanto, o valor de
uma empresa. O investidor é um ser humano – e não um sujeito capaz de
fazer cálculos e processar informações perfeitamente. O homem é uma coisa
e aquilo que a Teoria Econômica chama de Homo Economicus é outra, bem
diferente.

A quarta parte funciona como uma espécie de ressalva. Expõe como


Buffett é, na verdade, muito mais complexo do que os livros sobre ele
supõem. Letras não são capazes de dar a devida precisão à abordagem

.30.
buffettiana do ponto de vista prático. Muito do processo de investimento
se apoia em conhecimento tácito, há um grande reducionismo nas narrati-
vas e boa parte dos casos de sucesso de Warren Buffett esteve, a rigor, mais
associada ao growth investing (investimento em crescimento futuro, e não
em valor).

E se Buffett responde pelo tradicionalismo em ações, Markowitz faz o


mesmo para a montagem de portfólio. O capítulo subsequente versa exa-
tamente sobre o platonismo de uma tal fronteira eficiente, que inclusive
ganhou prêmio Nobel de Economia. As premissas são completamente im-
pertinentes e o objetivo aqui é mostrar como um portfólio composto por
90/95% de um ativo sem nenhum risco, combinado a uma pequena parcela
(10/5%) de algo muito arriscado – com a óbvia contrapartida de bom re-
torno potencial –, é superior a uma carteira feita por vários ativos de risco
médio. De novo, o problema dos riscos escondidos.

O sexto bloco representa o ponto máximo da argumentação. Definimos


em detalhes a abordagem filosófica e teórica da antifragilidade, para então
mostrarmos como a coisa funciona na prática. Daremos exemplos reais de
investimentos embasados na antifragilidade, porque isso aqui não é cultura
de enciclopédia.

Por fim, o capítulo sétimo faz a conclusão dos argumentos anteriores, e


sebo nas canelas. Só há uma forma de se aprender a cozinhar: cozinhando.
Já diria Jorge Ben: tem que dançar dançando. Grosso modo, é assim também
com investimentos. Faça você mesmo.

.31.
I. Quer investir em valor?

Este não é um livro sobre value investing. Ao menos nestas páginas, não
estamos bitolados em investimento em valor, escola de valor ou qualquer
outro nome a gosto do freguês que envolva “valor”. Há centenas de livros na
área. Alguns são bem legais, desconfia-se de muitos.

Por ora, queremos apenas apresentar o value investing da forma como


bem (ou mal) entendemos. É histórica a incapacidade de estabelecer uma
visão definitiva sobre investimento em valor. Portanto, isso aqui é só como
nós vemos a coisa em nosso dia a dia de analistas. Na verdade, o investimen-
to em valor é simples de entender – de implementar, nem tanto.

.33.
Num esforço didático, acho que dá pra resumir a filosofia em dois
pilares centrais:

(i) Uma ação é a menor representação do capital próprio de uma empresa.


(ii) Podemos estimar com alguma precisão o valor de uma companhia. A essa cifra
dá-se o nome de valor intrínseco – por ser indissociável, inapartável e íntimo à firma.

Ora, se uma ação é – em última instância – uma empresa, e eu posso


calcular o valor dessa empresa, então tenho uma sequência lógica: o preço
da ação deve convergir para o valor intrínseco.

Basta o sujeito calcular o valor intrínseco e olhar para o preço da ação,


de modo a capturar distorções entre ambos. Se o preço da ação for inferior
ao valor intrínseco, você compra. Caso contrário, você vende. Pau, pedra e
fim do caminho.

Bebendo da fonte ipsis litteris, Warren Buffett caracteriza seu método


como a forma de se comprar algo que vale um dólar (valor) por cinquenta
cents (preço). E citando outra frase clássica do oráculo de Omaha: se um
negócio vai bem, no fim das contas a ação acaba refletindo isso, numa refe-
rência explícita à convergência.

Aparentemente, tudo se resume em saber o diabo do valor intrínseco,


dado que o preço da ação é informação pública. Aqui já vale a pena atentar
para certas nuances da metodologia…

A afirmação de que a ação é a menor fração do capital próprio da em-


presa decorre de uma constatação contábil e jurídica – ignorando razões

.34.
práticas de que quem forma o preço da ação é o mercado e, por conseguinte,
investidores. Todas as vicissitudes da interação social dos agentes de mercado
são simplesmente ignoradas.

Já a ideia de que existe um valor intrínseco passível de estimativa não


provém da dedução lógica. Ao contrário, é premissa do modelo, proveniente
da suposta observação empírica de Benjamin Graham (precursor do value
investing) lá por meados do século XX – sim, bem antes da internet e da
atual pluralidade de informações. Assume-se que é assim e ponto final.

O próprio Graham chegou a ser questionado sobre a justificativa por trás


da convergência entre preço das ações e seu valor intrínseco, ao que respon-
deu da seguinte forma: “Não sei explicar o porquê. Simplesmente é assim.
Tenho observado esse comportamento por vários anos”. Explicação clara e
indubitável: a convergência é uma hipótese assumida ad hoc. Basta sentar no
sofá de uma sala (eterna?) de espera e aguardar chamarem sua senha para o
paraíso de precificação.

De volta ao purgatório, tudo se resume ao cálculo do valor intrínseco –


essa espécie de verdade aristotélica de quanto vale precisamente uma empre-
sa, a reger o cosmo financeiro. Como definir esse tinhoso?

Originalmente, conforme os ensinamentos de Ben Graham, o valor in-


trínseco seria definido a partir dos bens e direitos já detidos pela companhia.
Diferente do Raul Seixas, Graham não era astrólogo, nem conhecia a histó-
ria do início ao fim. Apoiava-se no presente e no passado para determinar
o valor de uma firma. Toda a informação era extraída de demonstrações de
resultados e balanços já divulgados.

.35.
No meio do século XX, adivinhar o futuro significava introduzir elemen-
tos da ficção na análise de ativos financeiros. Certa vez, Graham chegou a
dizer: “a combinação de fórmulas precisas e suposições imprecisas pode ser
usada para estabelecer ou justificar qualquer valor desejado, por mais alto
que seja”. Versão mais elegante para a seguinte afirmação rápida e rasteira:
“as planilhas de projeção aceitam qualquer coisa”.

Uma das formas preferidas de Graham para estimar o valor intrínseco


apoiava-se essencialmente no patrimônio líquido da empresa. Racional bas-
tante simples: ora, se uma ação é cotada a preço inferior ao dos ativos menos
suas obrigações financeiras, então seu valor real está acima daquilo, confi-
gurando-se num ponto de entrada. Anomalias ainda mais gritantes seriam
descontos no valor da ação frente à soma do ativo circulante, ou até mesmo
na comparação com o montante detido no caixa.

Além de observações a respeito do patrimônio líquido ou de seus ativos


mais líquidos, distorções em relação ao NAV (net asset value; valor do ativo
líquido) ou a seu valor de liquidação merecem atenção. Grosso modo, o
primeiro representa o valor de todos os ativos da companhia, apreçados
corretamente a partir de cotações de mercado, subtraídos de suas obrigações
financeiras. Já o valor de liquidação oferece a ideia do quanto a companhia
poderia levantar caso fosse vendida integral e imediatamente. Warren Buffett
gosta de lembrar que sempre haverá a opção de liquidar um negócio e ir
embora caso as coisas não caminhem bem – por isso, observa com relativa
frequência descontos frente ao valor de liquidação.

Para encerrar a exposição inicial, cito a descrição do próprio Graham


para sua maneira original de investir em ações. Sou uma espécie de Eça de
Queiroz e acho uma lamentável sabujice essa história de falar bem uma

.36.
outra língua. Ainda assim, mesmo dispondo de péssimo inglês, arrisco
uma tradução livre da definição:

“Meu primeiro instrumental, mais limitado, contempla compra de


ações a preços inferiores ao valor de seu ativo circulante, sem dar
nenhum peso à planta e a outros ativos fixos, e subtraindo todas as
obrigações financeiras da firma. Nós usamos extensivamente essa téc-
nica na gestão de fundos de investimento e, por um período difícil
de 30 anos, devemos ter ganhado aproximadamente 20% ao ano. Por
um momento, entretanto, depois da metade dos anos 50, esse tipo de
oportunidade ficou bastante raro por conta do persistente otimismo
generalizado. Depois, as oportunidades voltaram em maior frequên-
cia com a queda de 1973/74. Em janeiro de 1976, nós contamos 300
situações como essa no stock guide da S&P, cerca de 10% do total”.

Há também um outro método de Graham, similar ao primeiro em


sua filosofia:

“Comprar grupos de ações a preços inferiores a seu valor intrínseco,


indicado a partir de um ou mais critérios simples. O critério que
eu prefiro é a relação de sete vezes os lucros reportados nos últimos
12 meses. Você pode usar outros – como o retorno corrente de divi-
dendos acima de sete por cento ao ano ou valor de livro superior ao
preço da ação em 120%, etc. Nós estamos terminando um estudo de
performance dessas abordagens ao longo da última metade de século
(1925-1975). Elas geram consistentemente retorno de 15% ou mais
por ano, equivalente a duas vezes o desempenho do índice Dow
Jones em igual intervalo. Tenho muita confiança no seguinte tripé

.37.
desse método: lógica sólida, simplicidade da aplicação e um exce-
lente histórico. No final, é uma técnica que permite ao verdadeiro
investidor explorar o excesso de otimismo ou de apreensão inerentes
à especulação alheia”.



Pescador do futuro

Sou do tempo das locadoras de fitas VHS. Religiosamente aos sábados,


meu pai ia à Pop Arte, na Av. Heitor Penteado, bairro do Sumarezinho, São
Paulo. Hoje virou papelaria, daquelas meio bregas – toldo cor-de-rosa e pla-
quinha emoldurada na entrada com madeira de lei: “Temos Wi-Fi”.

Eu tinha dois heróis e sempre insistia que meu velho voltasse da Heitor
carregando ao menos um deles embaixo do braço. Enquanto empurrava os
óculos com o indicador direito contra o meio das sobrancelhas para mitigar
a miopia, ele acelerava o passo pela calçada, prensando a sacola bege nas
costelas com a parte interna do braço. Dentro, havia de conter Rocky: O
Lutador e/ou De Volta para o Futuro. Sem isso, meu final de semana estava
acabado. Decorei até mesmo as frases do Paulie e nunca me esquecerei da
engraçada previsão de Dr. Emmett Brown de que Ronald Reagan seria pre-
sidente dos EUA.

Rocky Balboa era um semideus, símbolo da superioridade da intuição,


da sabedoria de rua e do improviso sobre o tecnicismo. Como um bom he-
rói, poderia ter também morrido de overdose (de esteroides), mas está aí até
hoje. Marty McFly, por sua vez, representava o novíssimo, o skate voador e
o colete vermelho fofinho, igualzinho ao do meu sócio Caio Mesquita.

.38.
Desde então, sou um apaixonado pelo futuro, mas confesso: já desisti
de entendê-lo. Virei uma espécie (menos santa) de Madre Teresa. “O ontem
já foi. O amanhã ainda não chegou. Nós só temos o hoje. Vamos começar”.

Philip Fisher pensava diferente. O professor da Stanford Graduate


School of Business e fundador da gestora de recursos Fisher & Co. é tido
como o precursor do growth investing, em linhas gerais a capacidade de o
crescimento futuro agregar valor.

A ideia central de Fisher é de que determinados negócios oferecem boa


dose de certeza sobre sua capacidade de expansão – assim, na avaliação de
uma companhia, negligenciar o componente de crescimento poderia levar
à precipitada conclusão de que uma ação está cara quando, na verdade, se
mostra barata se contemplar o rendimento futuro.

Em manuais superficiais de finanças, o growth investing é apresen-


tado como diametralmente oposto à abordagem value. Eu, que posso
ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania, não gosto de co-
locar as coisas dentro de gavetas sem fundo falso. Discordo, portanto,
de qualquer antagonismo – Fisher é complementar a Graham. A asser-
tiva é corroborada por autoavaliação de Warren Buffett, o maior ex-
poente do value investing, resumindo a si mesmo como 85% Graham,
15% Fisher.

Filosoficamente, Fisher não trouxe grandes novidades à ideia de valor


intrínseco e convergência de preços. Apenas reconheceu uma firma como
uma entidade viva, com bens e direitos variando mediante a passagem do
tempo. Por conseguinte, o valor intrínseco pode ir crescendo com a em-
presa. Saímos de uma abordagem mecanicista, que trata o valor da firma

.39.
como um parâmetro, para uma perspectiva menos newtoniana, em que o
valor intrínseco se torna uma variável.

Obcecado por vantagens competitivas de longo prazo, Fisher apresentou


em sua obra mais emblemática – Common Stocks and Uncommon Profits –
uma espécie de guia qualitativo para a identificação de empresas bem geridas
e com oportunidades de sólido crescimento à frente, batizado de Fifteen
Points to Look for in a Common Stock.

A apresentação dessas quinze coisas para procurar em uma ação resume


o essencial sobre growth investing. Não é à toa que perdemos tempo com
isso. O reconhecimento de um futuro gerador de valor é a centelha para uma
série de problemas epistemológicos na análise de ações (chegaremos lá). Por
ora, seguimos o guia de Fisher:

1- A companhia dispõe de produtos/serviços com potencial de mer-


cado suficiente para crescer suas vendas com vigor por vários anos?
Uma empresa que mira um período consistente de crescimento ex-
pressivo precisa estar diante de mercados grandes e em expansão.

2- Existe obstinação dos administradores da empresa por novos pro-


dutos/processos capazes de dar um novo salto às vendas quando os
serviços anteriores já esgotaram suas possibilidades? Todos os mer-
cados encontram a maturidade e, para manter crescimento acima
da média por um período de décadas, uma empresa necessita desen-
volver novos produtos para expandir o mercado atual ou encontrar
um novo.

.40.
3- Quão efetiva é a área de pesquisa e desenvolvimento da companhia
frente a seu tamanho? Para desenvolver um novo produto, o esforço
em P&D precisa ser eficiente.

4- O tamanho da equipe de vendas é superior à média de mercado?


Poucos produtos e serviços são tão atrativos a ponto de maximiza-
rem seu potencial sem o devido aparelhamento da área comercial e
de marketing.

5- A margem líquida compensa? Uma empresa pode crescer uma enor-


midade, mas a expansão deverá ser acompanhada de lucros capazes de
remunerar seus investidores.

6- O que tem sido feito em favor da margem de lucro? Não importa


a margem líquida do passado, mas sim a do futuro. A inflação exer-
cerá pressão sobre as margens e a concorrência vai tentar empurrar os
preços de mercado para baixo, de modo que precisamos monitorar a
atividade em prol da redução de custos.

7- A companhia oferece um bom clima para trabalho em grupos?


Uma empresa é feita de pessoas e pessoas mais felizes produzem mais.
É capcioso medir isso, mas você pode procurar por boas políticas de
remuneração e analisar a forma como o top management trata os
demais empregados.

8- A empresa se pauta em incentivos meritocráticos? Procure por


mérito nas promoções e salários que reconheçam diferenciais de pro-
dutividade. Evite ambientes de nepotismo ou politicagem.

.41.
9- Existe uma cultura enraizada – com a devida profundidade no
management – capaz de transcender uma única gestão? Estamos atrás
de crescimento por décadas, sendo nevrálgica uma amostra grande de
talento do management por gerações. Alerta adicional sobre manage-
ment relutante em delegar funções.

10- A análise de custos e a contabilidade são suficientemente boas?


(alguém aí pensou nas incorporadoras brasileiras?). Não dá pra cres-
cer de forma sustentada sem saber exatamente como se comportam os
custos de cada etapa das operações.

11- Há algum atalho, uma dica ou qualquer coisa que possa fazer o in-
vestidor perceber as vantagens competitivas daquela empresa frente aos
competidores? É importante ao investidor entender de onde vêm os
fatores de sucesso daquela firma e como ela lida com a concorrência.

12- Qual é o horizonte temporal das perspectivas de lucros? Curto


ou longo? Fisher sempre manteve horizontes dilatados em seus inves-
timentos. Exigia isso das empresas também. A obsessão por atender
estimativas de lucros trimestrais por vezes representa a perda de gran-
des oportunidades de longo prazo.

13- O crescimento futuro exigirá levantar dinheiro via emissão de


ações e, portanto, diluirá os acionistas antigos? A empresa precisa con-
seguir se financiar com fluxo de caixa próprio ou a partir da tomada
de dívida, sem pedir dinheiro novo aos acionistas.

14- A Diretoria conversa com a comunidade financeira de forma am-


pla e transparente na bonança, mas não quer papo quando das vacas

.42.
magras? Todo negócio vai ter seus percalços. Escolha firmas dispostas
a mostrar todo o aspecto do negócio, suas partes boas e ruins – você
precisa conhecer o inimigo e, portanto, é importante conversar tam-
bém sobre os pontos fracos.

15- Por fim, a integridade dos administradores é inquestionável? Para


Fisher, o investidor jamais deveria colocar seu dinheiro na ação de
uma empresa cujos donos não se relacionam com o mercado de for-
ma 100% confiável.


Pronto: você já tem 15% do cérebro de Warren Buffett. É bom, mas pre-
feriria 15% do patrimônio, né?


Bicho de sete cabeças

Não dá pé, não tem pé nem cabeça, não tem ninguém que mereça, é o
bicho de sete cabeças.

Reconhecida a capacidade de o futuro agregar valor, chegamos ao palav-


rão maior, o modelo de Fluxo de Caixa Descontado (Discounted Cash Flow,
ou simplesmente DCF). O nome é longo, mas esse bicho não me assusta,
nem vai assustá-lo.

Quanto você pagaria por um bilhete da seguinte loteria: ela te premia


com R$ 100 no cenário A e com R$ 0 no cenário B. As chances de acontecer
cada um dos eventos é a mesma, 50%.

.43.

A (R$ 100, 50%)
(50%*100) + (50%*0) = R$ 50
B (R$ 0, 50%)

Se você não é um sujeito avesso a riscos, está disposto a pagar R$ 50 para


participar desse jogo. É o valor esperado da loteria, nada mais natural. O
valor de um jogo – análogo ao valor de uma empresa – se dá justamente pelas
suas entradas líquidas de caixa ponderadas pelo futuro.

Pois bem, o valor de uma firma vem de seus fluxos de caixa projetados.
Evidentemente, uma mesma cifra não representa a mesma coisa hoje e ama-
nhã. Há um custo do dinheiro intimamente associado ao tempo, e esse custo
é dado pela taxa de juros. Logo, precisamos descontar os fluxos de caixa
futuros da empresa por uma determinada taxa de juro.

O modelo de Fluxo de Caixa Descontado foi originalmente formalizado


na tese de doutorado de John Burr Williams, posteriormente sacramentada
no livro clássico The Theory of Investment Value.

A ideia é intuitiva e está alinhada aos princípios filosóficos do value in-


vesting. John explica que o valor de uma empresa é definido pela soma dos
fluxos de caixa esperados de hoje até o infinito, trazidos ao tempo presente
pela taxa de juros apropriada. E se a ação é o pedaço de uma empresa, o valor
da ação decorre facilmente do cálculo anterior.

Depois de ler as próximas linhas, talvez você pense que tenho algo pes-
soal contra o DCF. Eu juro: ele nunca me tratou mal, nem quis sair com
minha mulher ou me negou uma carona. Minha relação com o Fluxo de

.44.
Caixa Descontado parte de uma história curiosa, mas as críticas são essen-
cialmente técnicas, ok?

Começo pela experiência pessoal. Apesar da calvície, não sou tão velho
assim. Mas em Finanças me considero um dinossauro.

Por influência do meu pai, que acabara de deixar o Banco Safra depois
de 20 anos e fora trabalhar em casa como trader/analista de ações, comecei
cedo na renda variável. Pé trocado! Comprei minha primeira ação aos 14
anos. Era o auge da Nasdaq e eu, metido a descolado, fui logo enchendo o
carrinho (à época bem pequeno, por razões óbvias) das famosas Globonabo.
Gostaria de esquecer da PLIM4. Em contrapartida, se pudesse, tatuaria as
queridas CMET4, que me renderiam alguns quinhões.

Fique tranquilo, não há trauma nenhum nisso. O resto da adolescência


foi todo normal – com exceção de uma dedicação imbecil aos estudos. Natu-
ral também acabou sendo a escolha pela Faculdade de Ciências Econômicas;
nem sei se foi muito bem “escolha”…

Estava no primeiro ano da FEA-USP quando pintou uma vaga de está-


gio. Eu tirava notas legais, com exceção da disciplina do professor Flávio
Saez, que eu odiava – a disciplina, não o professor. Então decidi que queria
mesmo trabalhar, fui fazer entrevista no Deutsche Bank. O salário era bo-
nito para a época e o cartão servia para inflar o ego adolescente e idiota ao
traduzir em negrito: Banco Alemão.

Fui à entrevista sem grandes pretensões. Eles queriam alguém do quarto


ano e era improvável aceitarem um menor de idade com inglês macarrôni-
co. Ao final, resolveram me contratar. Ainda não sei a razão, só sei que foi

.45.
assim. Dizem que está cada vez mais impossível arrumar estagiário, naquela
época já era difícil. E lá fui eu pra área de sales de mercados emergentes, com
foco em operações estruturadas de derivativos. Alguém conhece lugar pior
para começar? Já não bastava perder a virgindade com a Globonabo?

Bom, de cara, percebi de onde vinha o apelido “cowboys do mercado”


para os traders do Deutsche. A experiência foi traumática e durou meses.
“Pai, o ambiente de investment banking não é pra mim. Trabalho 13 horas
por dia, corro feito louco, não me dão nada que valha pensar, me cobram
coisas sem qualquer sentido e ainda me tratam como um verme. Por favor,
deixa eu pedir as contas? Quero seguir carreira acadêmica”.

Sério, mudei de ideia em seis meses. Mergulharia integralmente nos es-


tudos, prestaria Anpec (prova de seleção para o mestrado em Economia) e
seria professor universitário. Felizmente, Drummond estava ao meu lado:
havia uma pedra no meio do caminho, que obrigou a virar o volante noutra
direção. “Felipe, tem uma vaga na LCA. É a sua cara. Eles estão montando
uma área especial na consultoria, voltada pra análise de ações. Querem gente
nova, dedicada e com flexibilidade de horário. Posso mandar seu currículo?”

Eu não podia negar a chance de trabalhar ao lado do estádio do Pacaem-


bu. Já combinei a tal flexibilidade de horário com as noites de quarta-feira
– eu teria a chance de parar o carro sem pagar o flanelinha e usufruir semanal-
mente da calabresa na barraca durante a caminhada de volta. Isso sim é vida.

Então lá fui eu para uma nova rodada de perguntas com o RH. Dona Jú-
lia, muito gentil, conversou comigo por uns 45 minutos e disse ter gostado
de mim – pois é, tem gosto para tudo, bicho. Só pediu algo simples como
lição de casa: “Você pode fazer esta análise de Ultrapar pra gente?”

.46.
Era uma planilha com modelo de Fluxo de Caixa Descontado para Ul-
trapar e suas 276 mil unidades operacionais. O Excel continha mil linhas,
separadas em oito abas diferentes. Arrisquei-me numa inicial masturbação
com os números. Mas logo percebi que aquilo era tão absurdo que poderia
preencher as células com qualquer coisa que me viesse à cabeça. Uma clara
transcrição quantitativa do que é a subjetividade.

Se eu estivesse otimista com a empresa, colocaria números alinhados a


bom prognóstico de crescimento e expansão de margens. Estava feito um
DCF capaz de entregar uma ação bem atrativa, descontada frente a seu valor
intrínseco. Já se eu não gostasse da companhia, embutiria ritmo fraco das
receitas e margens estagnadas, deixando a ação cara. Sábios mesmo foram
Pérsio Arida e Deirdre McCloskey – não necessariamente nessa mesma or-
dem –, que perceberam a importância da retórica na Economia…

Talvez ainda pior: uma única linha em meio àquelas mil seria suficiente
para mudar tudo. Uma célula (i)mexível tornaria o caro barato e vice-versa,
com variações radicais sobre o valor intrínseco. Resultado: não fui adiante
com a lição de casa, desisti da vaga de imediato. Adeus ao Paca, adeus à
calabresa.

Por ironia, aquilo despertou minha atual vocação. Se há algum uso pra
mim nesta vida, é como analista de ações. E não vou para compactuar com
um método que pressupõe preenchimento exato de mil linhas. Desde então,
firmei esse compromisso ético e moral. Como resume Taleb: se você vê uma
fraude e não a aponta, então você também é uma fraude.

.47.
Rei nu, rei posto

Quero deixar o rei nu. Vamos construir juntos um modelo de DCF para
você ver com os próprios olhos as doses de absurdo envolvidas. O financis-
mo engravatado tenta, platonicamente, fazer com que a realidade complexa
caiba numa planilhinha de Excel.

A melhor forma de aprender sobre um método (e suas fragilidades) é


pela via da aplicação prática. Então, vamos lá enfrentar o gigante Piaimã, o
monstro Venceslau Pietro Pietra.

As nuances técnicas são chatas, e podem soar ainda mais monótonas


para o leitor não técnico. Mas não se preocupe: delas não depende o cerne
da discussão, visto que podem ser puladas sem nenhuma perda relevante
de conteúdo. O aparato técnico configura apenas um reforço adicional ao
argumento. Quando pintar uma fórmula que o cansa, vá direto ao pará-
grafo seguinte.

Retomemos o conceito de DCF rapidinho para deixar as coisas mais fá-


ceis – entre a repetição e a confusão, prefiro a primeira. O modelo de Fluxo
de Caixa Descontado tem a pretensão de definir o valor de uma empresa a
partir da soma dos fluxos de caixa projetados, de hoje até o infinito, trazidos
a valor presente por uma taxa de desconto adequada.

Por imposição lógica, tudo começa, portanto, com a determinação dos


fluxos de caixa. Precisamos chegar nesses danados.

Funciona basicamente assim: partimos da receita bruta, extraímos os im-


postos diretos e fazemos a primeira pausa na receita líquida.

.48.
Receita Bruta – Impostos Diretos = Receita Líquida

Daí tomamos fôlego para subtrair o Custo dos Produtos Vendidos, alcan-
çando o lucro bruto.

Receita Líquida – CPV = Lucro Bruto

Retiramos despesas de Vendas, Gerais e Administrativas, chegando ao


lucro operacional.

Lucro Bruto – Despesas VGA = Lucro Operacional

Somamos então a depreciação, mas retiramos os gastos com investimen-


to (Capex) e a variação do capital de giro (K Giro).

Lucro Operacional + Depreciação – Capex – ∆K Giro = FCx

Pronto! Temos o fluxo de caixa da empresa num dado período.

Faremos nosso modelo aqui para uma empresa de varejo. Poderia ser
qualquer uma. Cada qual tem uma especificidade, mas a essência é a mesma.

Na primeira linha, a receita bruta é, por definição, a multiplicação de


duas variáveis: a quantidade vendida e seu respectivo preço. Coisa fácil. Bas-
ta prever quanto a empresa vai vender e a cifra cobrada por cada unidade.

Para uma companhia de varejo, em particular, a estimativa de faturamen-


to é normalmente separada entre lojas existentes e lojas novas. Assume-se
certo crescimento para as lojas já maduras (conceito usual de “same store

.49.
sales”) e uma curva de maturação para as debutantes, sob premissa de evolu-
ção gradual das vendas conforme a experiência histórica.

Também precisamos pensar nos componentes de inflação, em como


a empresa vai conseguir remarcar preços, e dessa forma matamos o pri-
meiro passo.

Chegar na receita líquida é trivial, em que se pesem isenções tributárias


ou aproveitamento de créditos fiscais. Os impostos diretos oferecem alíquo-
tas (infelizmente) conhecidas, de modo que basta tirá-los da receita bruta
para chegarmos ao faturamento líquido. Tranquilão.

Rumamos agora ao lucro bruto, dedutível de dois jeitos: ou você estima


cada linha de custo dos produtos vendidos ou simplesmente projeta um
percentual de margem bruta. Seja como for, passamos aqui necessariamente
pelo conhecimento do custo de todas as matérias-primas e dos indicadores
de eficiência da empresa no trato dos insumos.

De posse do lucro bruto, queremos chegar no lucro operacional, certo?


De novo, duas formas possíveis: supor diretamente uma margem operacional
ou passar, linha a linha, pelas despesas de vendas, gerais e administrativas
(no jargão em inglês, SG&A). Neste caso, precisamos conhecer a estratégia de
marketing, política de remuneração, eventuais comissões, demissões e outras
nuances. Não à toa, o tal SG&A é conhecido como a bolsa de mulher da
demonstração de resultados, onde cabe tudo e onde ninguém acha nada.

Agora faltam só três coisas até o fluxo de caixa do primeiro ano: gastos
com investimento (no jargão inglês, capex), depreciação e variação do capital
de giro.

.50.
O capex depende da decisão empresarial de quanto aplicar para expansão
ou manutenção da capacidade. A depreciação é feita usualmente como um
patamar fixo por ano (20% do ativo fixo, por exemplo). Já a variação de
capital de giro exige nada menos do que a estimativa de todos os ativos e
passivos mais dinâmicos da empresa.

Como hipótese (bem) simplificadora, normalmente se atribui um per-


centual da variação da receita como proxy da variação do capital de giro. Aí
mora a ideia de que, se a empresa está crescendo num dado ritmo, precisará
administrar seu ativo circulante líquido em ritmo parelho.

Pois bem, por meio desse esforço rápido, temos o fluxo de caixa do pri-
meiro ano. Replicamos o mesmo exercício para todos os demais anos, até
o infinito, e trazemos a soma total a valor presente pela taxa de desconto
apropriada.

Nem mesmo os financistas mais bitolados vão perder tempo estendendo


o cálculo até o infinito. Então, a rotina manda projetar os fluxos de caixa
para um intervalo prático (cinco, dez ou quinze anos) e posteriormente
assumir que o negócio analisado entra em regime de perpetuidade – isto é,
passa a crescer numa velocidade vegetativa constante.

Por conseguinte, deparamo-nos com a soma de dois blocos temporais


distintos. O primeiro deles contempla o horizonte efetivo de projeção e o
outro vem da perpetuidade.

É fácil encontrar uma fórmula para a perpetuidade, matemática an-


cestral. Ela é a soma dos termos de uma progressão geométrica infinita e
convergente. Na dúvida, o Excel faz pra você. De nossa parte, tudo que

.51.
precisamos saber para o cálculo da perpetuidade é (i) qual o ritmo de cres-
cimento da empresa quando ela atinge a maturação e (ii) qual a taxa de
desconto apropriada.

Vixe, mas até agora não falamos dessa última… tratamos apenas generica-
mente de uma taxa de desconto “adequada”. Mas qual é?

Ora, se os fluxos de caixa estão associados intrinsicamente à empresa,


deve haver também uma taxa de juro que represente o custo do dinheiro
no tempo para nossa companhia de varejo. O nome desse pedágio tempo-
ral é custo médio ponderado de capital (weighted average cost of capital,
ou WACC).

Normalmente, uma empresa é formada tanto por capital próprio (acio-


nistas) quanto de terceiros (credores da dívida). Logo, a taxa de juro apro-
priada para descontar os fluxos de caixa tem de ser aquela que remunera
simultaneamente os credores e os acionistas, ponderando por suas respec-
tivas participações.

WACC é apenas isso: a taxa de juro ponderada entre o custo da dívida e


o retorno exigido pelos acionistas. Formalmente, temos:

, onde:

“D” é a dívida, informação encontrada no balanço da empresa listada.

“E” é o valor de mercado (equity), também informação pública.

.52.
“Kd” é o custo médio da dívida, igualmente público (a rigor, podemos subtrair
daqui o benefício fiscal da dívida).

“Ke” é o custo do capital, que precisa ser estimado.

“D+E” é a soma do capital próprio e de terceiros.

Concluímos que todas as variáveis são conhecidas ou facilmente calcu-


ladas, com exceção do Ke. O custo do capital (isto é, o retorno exigido pelo
acionista) precisa ser calculado.

Como de praxe, isso é feito por uma equação de CAPM (Capital Asset
Pricing Model), definida conforme segue:

, onde:

E(Ri) é o custo do capital, exatamente a variável em que estamos interessados.

Rf é uma taxa de juros livre de risco.

mede a resposta da ação às variações de mercado; se o mercado anda 1 ponto,


quanto anda, na média, a ação?

E(Rm) é o retorno esperado para o mercado como um todo.

A equação do CAPM é intuitiva. Segundo ela, o retorno de uma ação


é dado pelo o rendimento de um ativo livre de risco (Rf) mais quanto há

.53.
de excesso do retorno de mercado sobre o ativo livre de risco (E(Rm) – Rf),
ponderado pela resposta da respectiva ação a variações do mercado.

Legal, porque de posse do custo de capital temos tudo o que precisamos


para chegar ao WACC.

Recapitulando: compreendemos os fluxos de caixa para o horizonte de


projeção, o valor da perpetuidade e a taxa de desconto desses fluxos. Barba,
cabelo e bigode. Atravessamos tudo o que precisávamos para o modelo de
fluxo de caixa descontado.

Primeiro, você calcula os fluxos de caixa para cada um dos períodos de


projeção. Em seguida, define o valor da perpetuidade a partir de (i) cresci-
mento vegetativo de longo prazo, (ii) cálculo do WACC e (iii) soma da PG
infinita e convergente. Por fim, traz tudo a valor presente pelo WACC.

C’est fini: estimamos o valor da empresa. Daí para chegar no valor da


ação é fácil: retiramos a dívida líquida e dividimos pelo número de ações.


Em berço esplêndido

Depois de todo esse esforço técnico, permita-me uma digressão: você já


ouviu falar de Procusto?

Ele era um marginal grego perigosíssimo. Pintou e bordou até encontrar


o herói Teseu, que o decapitou merecidamente. Antes disso, porém, Procusto
fez várias vítimas, despertando inveja nos mais maldosos assassinos em série.

.54.
O bandido tinha em sua casa uma cama de ferro moldada a seu exato ta-
manho. Todos os viajantes que por lá passavam recebiam o hospitaleiro con-
vite para se deitarem nessa cama. De forma a adaptar os hóspedes ao repouso,
Procusto seguia à risca o molde, cortando as pernas dos mais altos e esticando
os mais baixos. Assim, todos poderiam caber em sua cama “versátil”.

O modelo de Fluxo de Caixa Descontado não é nada além da represen-


tação financeira do mito grego da cama de Procusto. Cortamos as pernas
da realidade econômica & financeira para fazê-la caber nas células de Excel.

Sejamos honestos: é impossível saber com precisão qual será a receita


do próximo ano – o passo número um do nosso modelo. Definir o fatura-
mento implicaria conhecer toda a dinâmica macroeconômica (PIB, câmbio,
juros, inflação), o comportamento dos consumidores, o acerto nas coleções
de verão/inverno, condições climáticas, dinâmica da concorrência…

Para o lucro bruto, enfrentamos a questão de matérias-primas com preços


comoditizados, definidos por mercados globais. E também a capacidade da
empresa se reinventar na produtividade (vai tentar estimar o lucro bruto de
uma Ambev, por exemplo, que se reinventa a cada trimestre…).

Respeitando a sequência, poderíamos tecer essas mesmas críticas


linha a linha, até chegar ao fluxo de caixa. Seria um mero exercício
de redundância.

Os financistas querem matematizar o mundo, eles querem que sejamos


capazes de – através da utilização de “sólidos” critérios quantitativos – dis-
farçar nosso viés qualitativo. Mas não conhecemos sequer uma célula da
planilha de mil linhas por mil colunas. E qualquer pequeno desvio é capaz

.55.
de causar distorções de pelos menos 10% no valor da empresa (na verdade,
10% de erro seria como acertar em cheio).

Evidentemente, erros de 10% ou 100% podem ser decisivos para inverter


uma decisão de compra ou venda de determinada ação.

Não tenho a pretensão de virar Teseu, mas reservo ainda mais uma crítica
ao Procusto financeiro. Existe um problema de autorreferência, ou seja, de
incoerência interna ao modelo.

Repare que quando o financista constrói um DCF, ele está interessado


– sob última instância – em saber se o potencial de valorização embutido
naquela ação merece uma compra. Estamos todos interessados nesse upsi-
de. Porém, ao estimar o WACC, precisamos passar pelo custo do capital,
que é a pergunta exata de quanto se exige de retorno para estar na ação.

Conforme o CAPM, a ação está apreçada na exata medida da exigência


do investidor – o CAPM se apoia em premissas de mercados eficientes, em
que todos os ativos são apreçados corretamente, não havendo espaço para
valorizações anormais. Nesse ambiente pasteurizado, todas as ações rende-
riam a mesma coisa quando ponderadas pelo risco.

Em outras palavras, você está interessado em ações capazes de oferecer


grande potencial de valorização e, para calcular isso, usa um método que
supõe apreçamento perfeito, sem espaço para retornos acima da média quan-
do ponderados por risco. Isso é o mesmo que procurar pastel de carne com
azeitona numa pastelaria cuja receita do pastel proíbe azeitonas (o que seria
uma lástima).

.56.
Não podemos, no mesmo método, usar o CAPM e esperar por valoriza-
ções extraordinárias ponderadas pelo fator de risco. Os financistas precisam
decidir o que querem da vida.

Tom Copeland, considerado um dos maiores entendidos de avaliação de


empresas no mundo, pendura há décadas o seguinte quadro em seu escritó-
rio: “DCF RIP”.

Em bom português, Fluxo de Caixa Descontado, descanse em paz.

.57.
II. As armadilhas de valor

Ainda me lembro bem daquele verão de 1988. Algumas coisas foram


muito marcantes. O gol de carrinho do Viola contra o Guarani, O Último
Imperador do Bertolucci e suas nove estatuetas do Oscar, e aquele aparta-
mento no Guarujá, praia da Enseada, perto da Brunella.

Algo esteve acima de tudo isso, porém. A constatação de como meu


pai colocava a família à frente de seu próprio interesse. Ramiro andava
de Chevettão, mas resolveu fazer uma surpresa para minha mãe. Era me-
recido, claro. Aliás, se fosse uma questão estrita de mérito, talvez coubesse
coisa melhor.

.59.
Entrou em casa sem conseguir disfarçar. Falava alto e ria desenfreada-
mente. Gostaria de tê-lo visto mais assim, mesmo com aquelas risadas um
pouco constrangedoras e exageradas. A alegria descomedida tinha uma ra-
zão. Ele tinha acabado de comprar um Monza Classic 2.0, raridade à época.
Azul marinho, aquele bem típico, que se confunde com a cor do terno,
exatamente do jeitinho que minha mãe gostava.

Único dono, só 15 mil km rodados, um brilho. Era o presente ideal para


a Dona Lúcia. E o melhor: sem esfolar o bolso. Meu pai veio me confiden-
ciar que encontrara uma verdadeira barganha. Pediu sigilo, segredo nosso.
“Não vá contar pra sua mãe que fiquei pechinchando por aí”.

A felicidade e as doses de uísque que sucederam a apresentação do carro


tinham lá sua justificativa. Havíamos comprado o carro do ano, a cópia
fresquinha do Opel Ascona alemão, com desconto de 30% sobre o preço de
tabela. Baita negócio!

Ou nem tanto…

A alegria virou frustração antes das águas de março fecharem o verão.


Quem gostou mesmo do Monza cor de terno foi o mecânico da família. O
sujeito enriqueceu. Em dois meses, gastamos mais da metade do valor do
carro em sete consertos. Na verdade, tínhamos comprado um Monza todo
detonado nas engrenagens. Enquanto isso, o Chevette estava lá, impávido
como Muhammad Ali.

De repente, o barato ficou caro. O que meu pai passou a chamar de eco-
nomia com porcaria. Lição prática – e custosa – de que, por vezes, existe um
motivo pras coisas serem baratas. Logo, queremos alertar o investidor (prin-

.60.
cipalmente o investidor Fenômeno) de que a coisa pode não ser exatamente
o que parece numa primeira olhada.

Na análise de ações, esse tipo de situação é batizado de armadilha de


valor, a famosa “value trap”.

Aquilo que, numa abordagem inicial, pode parecer descontado em


relação a seu valor intrínseco na verdade não é. O valor intrínseco do
Monza era substancialmente inferior ao que parecia. Tomamos o carro
médio como bom indicador do valor do Monza, o que se mostrou – a
posteriori – uma estupidez.

Armadilhas clássicas

Neste capítulo, trataremos das armadilhas de valor clássicas.

Como já narrado em verso & prosa, o cerne do value investing tradi-


cional é comprar empresas abaixo do valor de seus bens e direitos. Por
conseguinte, uma das recomendações mais típicas seria a de procurar ações
a níveis inferiores ao valor do patrimônio líquido.

Simples, não? Easy like a Sunday morning. Porém, surgem ao menos


três eventuais armadilhas mais relevantes dentro da análise de Preço sobre
Valor Patrimonial:

(i) O patrimônio líquido pode estar enviesado pelo enorme otimismo na de-
terminação do valor dos ativos. Algumas empresas superdimensionam seus ativos,

.61.
induzindo valor muito alto para o patrimônio. Não é tão raro encontrar esse pro-
blema, pois há alguma subjetividade na análise de ativos – ativo fixo, imobilizado
e intangível são linhas facilmente sobreavaliadas. Assim, qualquer compra de ação
baseada na atratividade vinda do desconto face ao valor patrimonial exige uma
observação criteriosa do tratamento dado ao valor dos ativos.

(ii) Uma empresa pode estar descontada em relação ao patrimônio líquido por-
que esperam-se seguidos prejuízos no futuro. Num primeiro momento, os prejuí-
zos soam como pequenos tropeços de uma demonstração de resultados trimestral.
Mas logo se acumulam e passam a transitar pelo balanço. Mais especificamente,
viram subtrações ao patrimônio líquido. Ou seja, o patrimônio vai cair no futuro,
enriquecendo apenas os mecânicos de plantão (no mercado financeiro, mecânicos
são os advogados).

(iii) O patrimônio da empresa pode não estar sendo remunerado adequadamen-


te, e isso justificaria o desconto na ação. Temos exemplos claros na Bolsa brasileira.
Bancos médios e estatais passam longos períodos esperando que suas ações preva-
leçam sobre o patrimônio, o que não acontece por conta dos baixos retornos sobre
o equity. Outro caso clássico está no setor imobiliário. Incorporadoras com altos
níveis de retorno sobre o patrimônio conseguem negociar a valuations esticados (até
2x o valor de livro), enquanto as que remuneram o equity inadequadamente ficam
cada vez mais baratas (casos impressionantes de até 0,2x o valor de livro).

Algo parecido acontece com análises que envolvem Preço sobre Valor de
Liquidação. Será que a alternativa de liquidação está sendo mesmo contem-
plada? Porque se a empresa não está realmente pensando nisso, vira somente
uma referência platônica. São muitas empresas negociando abaixo de seu
valor de liquidação e poucas efetivamente sendo liquidadas.

.62.
Quando uma companhia destrói valor ao longo do tempo, é natural que
ela negocie abaixo de seu valor de liquidação. A cada minuto que passa, a
empresa está valendo menos e menos.

Outra questão polêmica diz respeito ao cálculo exato do liquidation


value. Haverá, de fato, comprador para os ativos naqueles preços? Ou esta-
mos apenas tomando uma impressão média a partir de outros ativos, sem
cunho prático? Se não houver comprador, não existe valor de liquidação.

Até mesmo ações negociando abaixo do dinheiro em caixa podem signifi-


car armadilhas. Imagine-se diante de uma companhia com valor de mercado
inferior ao que consta no caixa. Você acha aquilo absurdo, uma barganha
imperdível, e logo sai comprando. É óbvio, né?

Bom, mais ou menos… Pense no caso de empresas pré-operacionais, por


exemplo. Por definição, elas ainda não têm operação, tampouco receitas.
Elas queimam caixa. Assim, as disponibilidades imediatas que você observa
naquele momento não podem servir como proxy para o valor da compa-
nhia. Já no dia seguinte, o caixa estará menor, e se a empresa não for bem-
-sucedida na transição à fase operacional, a liquidez vai convergir para zero.
Então, o valor dessa companhia pode ser mesmo nulo. Existe uma única boa
notícia para a ação nesse caso: do chão ela não passa.

Conforme visto no capítulo anterior, Benjamin Graham também conside-


rava o lastro aos lucros passados. Graham gostava de comprar ações negocian-
do abaixo de 7x os lucros dos últimos 12 meses. Mas será que houve algum
acontecimento extraordinário influenciando os lucros passados ou eles decor-
rem de fatores estritamente operacionais? Se o lucro se deu por conta da venda
de ativos ou de uma reavaliação de portfólio, isso pode significar pouca coisa.

.63.
Além disso, qual a capacidade de a empresa voltar a entregar lucros iguais
ou maiores à frente? Por definição (e não há nenhum problema na defini-
ção), uma empresa vale seus fluxos de caixa de hoje ao infinito – ou seja,
interessam na verdade os lucros futuros, e não os lucros passados. Você pode
encontrar por aí uma companhia negociando a até 3x lucros, justamen-
te porque se espera vigorosa redução de seus lucros futuros. Telecoms no
Brasil negociaram descontadas por vários anos. Além dos problemas de go-
vernança corporativa no setor, essa avaliação modesta refletia justamente a
percepção de que os lucros iriam, na melhor das hipóteses, ficar parados. O
mercado estava certo.

Entrando agora nas armadilhas associadas aos resultados futuros, as nu-


ances são ainda mais emblemáticas. Uma ação atrativa pode ser vista como
aparentemente cara se não for contemplado o adequado crescimento vin-
douro. De forma análoga, o sonho de uma baita expansão à frente pode
tornar qualquer ação supostamente atrativa.

Exemplo emblemático das sutilezas associadas a crescimento futuro vem


das ações de Ambev. Elas são consideradas caras praticamente desde seu pri-
meiro trade e teimam em continuar subindo a longo prazo – lembro apenas
de um ano de queda, em 2008, quando absolutamente tudo caiu por conta
da crise imobiliária americana. E então, será que Ambev é mesmo cara?

De forma a aliviar o problema, recomendamos sim que o investidor


admita a possibilidade de o crescimento futuro agregar valor, mas que o
faça de modo conservador. Com isso, pode até ser que você perca algumas
oportunidades atrativas no caso de uma expansão vigorosa.

Entretanto, é melhor perder certas chances de lucro do que mergulhar

.64.
em um buraco negro de prejuízos. Prudência e dinheiro no bolso, canja de
galinha não faz mal a ninguém.

Também dá pra fazer a conta ao contrário. Rodar um modelo de Fluxo


de Caixa Descontado de trás para frente, ou seja, vendo qual crescimento
está sendo considerado naquele respectivo preço de mercado. Assim, você
conclui se acha o ritmo implícito razoável ou exagerado. Se a expansão im-
plícita no preço da ação for considerada baixa, você compra. Caso contrário,
você fica fora.

Ao se deparar com alguma das armadilhas clássicas, o investidor deve


sempre avaliar os parâmetros quantitativos com postura crítica. Desconfie
das próprias premissas e das métricas generalistas. Não raro, um múltiplo
excessivamente baixo por muito tempo tem uma real razão de ser – ameaças
concorrenciais, contingências fora do balanço, interesses egoístas do con-
trolador e risco regulatório são apenas algumas das razões mais frequentes.

De maneira geral, buscar fluxos de caixa consistentes, focar em negócios


defensivos, com larga margem de segurança e sob contabilidade confiável
funcionam bem. Tudo isso – claro – deve ser conjugado a um preço razoável.
É difícil reunir esse monte de coisas. Mas fazer o quê? Value investing é para
ser rentável, não para ser fácil.

Uma ação é uma empresa?

Meu tio Miguel foi operador de commodities de 1984 até 1992. Natural
das Minas Gerais, estabeleceu-se na Lapa, mais precisamente na Rua Catão,

.65.
tão logo chegou em São Paulo no começo dos anos 80. Era razoavelmente
gordo, canhoto e de nariz grande, herdado da ascendência libanesa. A entra-
da imediata no mercado financeiro, sob indicação do meu pai, tirou-lhe boa
parte dos hábitos antigos – exceções feitas à jaqueta de couro com ombreira
e às visitas frequentes ao Bar Valadares, onde o ambiente aliviava a saudade
da raiz mineira.

Tio Miguel era pouco estudado (mentia ao dizer que completara o


segundo grau), caipira e esperto, além de especialmente briguento. Tinha
mau hálito. Fez sua principal desavença na corretora em janeiro de 1991,
quando também ficou rico – bastante rico. O alvo era João Clarindo Fon-
seco (nome fictício), então economista-chefe e PhD em geopolítica. Clarin-
do era o oposto do meu tio, compartilhando apenas a relação genealógica
com o Oriente Médio e a halitose. Muito estudado, cosmopolita, erudito
(pseudo), magro e um idiota.

Dentro do mercado financeiro brazuca, João Clarindo era possivelmente


o maior estudioso do Kuwait à época. Sabia exatamente as nuances por trás
da invasão iraquiana e foi um dos primeiros a alertar em terras brasilis,
ainda na primeira semana de outubro de 1990, sobre a iminente entrada dos
EUA na Guerra – o que viria a se confirmar no janeiro seguinte.

A perspectiva de participação americana no conflito foi se tornando con-


sensual. A isso, seguiu-se recomendação explícita de Clarindo: “compremos
lotes e lotes de petróleo. Bush (o pai) está prestes a declarar entrada no Gol-
fo. Petróleo sobe com guerra no Oriente Médio”.

De súbito interveio Miguel, com a educação costumeira: “Doutorzinho,


vai lá estudar sua geopolítica e deixa o trade comigo. Petróleo não pode

.66.
subir com uma guerra programada. Todos já sabem da guerra e estocaram
milhões de barris no porão. Vamos vender lotes e lotes de petróleo enquanto
todo mundo está comprando”.

A proposta do trader era totalmente contrária às posições de consenso.


Todas as grandes mesas de operação estavam comprando petróleo, na ex-
pectativa de guerra iminente. Clarindo rebateu com a arrogância de sempre
e teve como tréplica o olho esquerdo acertado em cheio por um direto de
esquerda do meu tio. O feeling de trader (ou talvez a força física) acabou
se impondo e a corretora terminou mesmo shorteando a commodity, seja
lá por quais motivos.

Clarindo acabou se demitindo depois daquela cena brutal. Miguel, po-


rém, continuou empregado por recorrer ao crédito de favores pessoais fei-
tos anteriormente ao dono da corretora. O petróleo, por sua vez, desabou.
Confundiu-se a guerra com o próprio petróleo. A commodity pode ter
forte relação com movimentos bélicos, mas o petróleo não é a própria guer-
ra. Se todos esperavam a guerra, o nível de estoques de petróleo já havia se
ajustado a essa expectativa unânime.

Damos o nome de “conflation” (peço desculpas pelo anglicismo, mas


desconheço a versão em português) a toda situação em que uma variável é
confundida com outra de maneira simplista. Y não é X, mas sim uma fun-
ção de X. Existe uma relação entre ambas as coisas, isso não quer dizer que
uma signifique exatamente a outra.

Assim chegaremos à constatação de que uma ação não é exatamente


uma empresa. Certamente, existe um vínculo aí. Conforme vimos, o preço
da ação é uma função de variáveis corporativas – o que é bem relevante,

.67.
mas não diz tudo. Para dificultar as coisas, essa função acionária é tão
complexa que não temos meios – nem nós, nem ninguém – de tratá-la em
bases puramente matemáticas. Nem mesmo aquele japa que sentava à sua
frente no colégio Etapa conseguiria.

Isso torna o Value Investing um desafio maior, e bem mais interessante,


pois sua premissa mais elementar fica em xeque: a ação não pode ser enten-
dida meramente como uma representação direta da firma.

Lembra da abordagem clássica do Investimento em Valor, que identifica


um valor intrínseco para a ação e, posteriormente, supõe convergência entre
o preço de tela e esse valor intrínseco?

O preço, por definição, denota uma variável extrínseca, que não está em-
butida na essência da coisa. Preços representam a materialização do acordo
imediato entre duas pessoas, comprador e vendedor, em praça pública.

Enquanto o preço é algo observável e tangível, o valor viria de algo não


observável, mas passível de estimação. Ao final do filme, de acordo com o
enredo da Escola de Valor, os dois acabam se encontrando. Mas será que os
destinos realmente se cruzam?

Lá vem o Valor, cheio de paixão… vamos tentar entender quem é esse cara.

Originalmente, a noção de valor aparece – tal como a descrevem Adam


Smith e Karl Marx – associada à Teoria do Valor-Trabalho. O valor econômi-
co de um determinado bem viria da quantidade de trabalho necessária para
produzi-lo, computando-se também o trabalho anterior em maquinário e
nas matérias-primas empregadas no processo produtivo. Acima de tudo, o

.68.
trabalho seria o elemento agregador de valor; logo, a quantidade média de
tempo de trabalho alocado para produzir um bem determinaria seu valor.

David Ricardo, que também contribuiu para os pilares da Teoria do Va-


lor-Trabalho, sofistica um pouco o conceito precursor e relaciona o valor
geral de determinada mercadoria também ao seu valor de uso (ou seja, ao
quanto ela proporciona de utilidade, bem-estar). Para fazermos justiça, Marx
também já havia entrado mais fundo na questão do valor de uso, embora
focando nas funções coletivas do valor-trabalho.

Digeridos os adendos e críticas iniciais, o salto mais contundente na Te-


oria do Valor-Trabalho foi provavelmente promovido pela Escola Austríaca.
Num insight que hoje parece intuitivo, mas na época foi revolucionário,
Carl Menger e Ludwig von Mises associaram valor à utilidade e raridade
do bem.

E a síntese disso tudo – que acabou dominando o mainstream econômico


– veio de Léon Walras, Stanley Jevons e também do mesmo Menger. Cada um
de sua forma, os três conectaram o valor do bem à sua utilidade marginal. Ou
seja, o valor de um bem estaria atrelado ao benefício incremental proporcio-
nado ao indivíduo, a partir de uma unidade adicional de consumo.

Todo o paradigma walrasiano (de Léon Walras, pilar das Finanças Moder-
nas), ao igualar o valor do bem à utilidade marginal, recorre a parâmetros
essencialmente individuais. A função utilidade (medida de bem-estar) é pen-
sada principalmente sob a ótica do indivíduo. E aí mora o problema.

Quando você reconhece esse aspecto “egoísta”, simplesmente precisa


abandonar a noção de valor intrínseco. O valor passa a ser subjetivo, per-

.69.
tencente apenas ao sujeito. Não há mais valor intrínseco, inapartável, indis-
sociável da empresa. Ele depende de uma contrapartida: o homem humano.
Portanto, é extrínseco à companhia.

Sob essa ótica, o valor intrínseco não sobrevive. Só existem percepções


de valor, elaboradas de maneira abstrata e inerente à concepção individual.
Tais percepções constituem uma expressão momentânea da necessidade dos
indivíduos e da capacidade dos objetos em atender essa necessidade.

Isso já seria suficiente para abalar a noção de valor intrínseco, mas vamos
cutucar um pouco mais. A Teoria Econômica tradicional sabe do problema
e tenta driblá-lo por meio de uma hipótese (artificial) de agregação: assume-
se um indivíduo representativo, com uma função de utilidade média. Dessa
forma, bastaria conhecermos esse indivíduo médio que saberíamos da prefe-
rência de toda a sociedade.

Isso é obviamente problemático, porque a definição parte de uma ob-


servação individual e, no momento subsequente, retira suas caracterís-
ticas individuais.

Para apreçamento de ações isso é especialmente ardiloso, posto que os


investidores cultivam expectativas diferentes sobre o futuro, negociam em
moedas diferentes, deparam-se com taxas de juro diferentes, etc. Se você
fizer contas em cima de um “indivíduo representativo”, vai chegar num
valor médio que representa algo caríssimo para uns e baratíssimo para
outros. De novo, perdemos a noção global de intrínseco.

Além de nos policiarmos contra as armadilhas de valor, devemos estar


bem cientes de que o próprio valor é uma armadilha.

.70.
Concurso de beleza

Seguinte, vamos esquecer por alguns minutos o embate supracitado. Pau-


sa entre os rounds. Vamos supor que, por milagre da natureza, tenhamos
encontrado a verdade aristotélica e chegamos ao famoso valor intrínseco.

Qual a garantia de que haverá convergência entre preço e valor? E em


que velocidade dar-se-á esse processo? Se ontem o preço da ação era diferente
do valor, hoje ele é diferente, e amanhã também, por que alcançaremos a
paridade depois de amanhã?

Lembre-se que as ações do UOL negociaram por uma década a uma fra-
ção do que seria minimamente razoável (abaixo do caixa, por certo tempo)
e fizeram muita gente boa desistir do investimento.

Retomemos então o conceito de conflation: uma ação não é uma em-


presa. Obviamente, há uma função ligando essas duas coisas, mas não a
conhecemos, tampouco sabemos tratá-la matematicamente. Você não pode
trocar sua ação por um pedacinho da empresa ou por um luxo anual
pré-determinado.

Juridicamente, ao deter um ativo mobiliário, você ganha acesso a um


conjunto de direitos previstos em contrato, e não à empresa em si. Con-
fundir essa lista de direitos com a própria empresa é ignorar o contrato e a
interação social diariamente responsável pela marcação a mercado.

O preço da ação é determinado pelos acordos de compra & venda de uma


série de pessoas com acesso à Bolsa, e não por uma suposta convergência
imediata rumo ao valor intrínseco. Então não há como abstrair o processo

.71.
de formação de preços e contemplar apenas o valor intrínseco sob uma hi-
pótese platônica de convergência.

Conforme resumiu Keynes, a Bolsa é um concurso de beleza em que ga-


nha aquele que acertar a princesa mais bonita, por unanimidade. Não se trata
de votar na mais bonita, mas naquela que os outros acharão a mais bonita.

Entramos aí numa espécie de teoria dos jogos circular, em que o sujeito


tenta adivinhar a opinião de um terceiro. Por sua vez, o terceiro adivinha o
que os outros vão adivinhar dele e entramos numa espiral infinita.

Não há nenhuma garantia de que vencerá o jurado que efetivamente


votou na garota “idealmente” mais bonita. A empresa mais barata pode não
representar a ação mais valorizada daquele ano.

Terno de alfaiate

No fundo, o grande problema dos analistas de ações está na arrogância


em torno de sua suposta capacidade de identificar quanto vale uma empresa
e de adivinhar para onde vai o ativo financeiro subjacente. O financista se
acha apto a identificar um valor intrínseco em demonstrações financeiras
passadas ou a prever o futuro melhor do que os outros. Mas nunca vimos
inteligência brotar de planilhas de Excel.

A grande geração de valor não está nos resultados ou balanços passados,


até por uma nuance associada ao acesso à informação. Quando das ideias
originais de Graham, grandes distorções entre preço e valor poderiam ser facil-

.72.
mente obtidas por meio de dados históricos porque a restrição à informação
era enorme. Hoje, o nível de pesquisa para se identificar anomalias de preços
é tal que, se uma ação negocia abaixo de seu valor patrimonial, muita gente já
sabe, e normalmente há uma boa razão para ser assim. Provavelmente, aquele
patrimônio não está sendo remunerado de maneira adequada. A grande ques-
tão nesse caso não seria acusar o desconto frente ao patrimônio, mas sim saber
se os próximos anos trarão uma virada importante no retorno do negócio.

Para uma empresa, o valor nasce dos fluxos de caixa de hoje até o infinito.
Ou seja, o passado não importa. Se uma firma gerou lucros bilionários no pas-
sado e de repente vem uma concorrente com nova tecnologia e simplesmente
destrói a anterior, a firma antiga vale zero. Seus lucros passados não têm
nenhum valor. Precisamos olhar para frente, para os fluxos de caixa futuros.

O diabo é que esses fluxos são imprevisíveis. Eles dependem de uma


infinidade de variáveis selvagens, into the wild, que viajam para onde bem
entendem. Ninguém em sã consciência traçará o roteiro de antemão.

Os modelos de Fluxo de Caixa Descontado são ultrajantes do ponto


de vista epistemológico. Apoiam-se nas informações disponíveis hoje, ig-
norando que as coisas mudam com o passar do tempo. Como fenômenos
sociais típicos, as características corporativas, setoriais e macroeconômicas
assumem comportamento errático, pois dependem sempre de novos mapas
de informações, indisponíveis na data inicial (só conhecidos a posteriori).

Aos técnicos, falamos aqui da rejeição à hipótese de ergodicidade. Em


bom português, as propriedades estatísticas de uma série não são preservadas
ao longo do tempo. As coisas mudam! E isso inviabiliza qualquer tentativa
de previsão apoiada em critérios quantitativos.

.73.
É como pedir aos comentaristas de futebol todos os resultados do Bra-
sileirão com um ano de antecedência. É como ir ao psicanalista e pedir:
“Doutor, me fala como eu vou me comportar daqui a três meses, preciso
me preparar até lá”.

Já vi muita gente culpar um modelo mal feito pelos erros de projeção.


Isso é uma bobagem. Absolutamente, não se trata de tentar sofisticar os
modelos em prol de previsões melhores. Cito dois exemplos clássicos, entre
outros milhões dignos de nota para ilustrar o caso.

Nada mais emblemático do que a implosão do fundo LTCM durante


a crise russa, quando dois prêmios Nobel de Economia – Myron Scholes e
Robert Merton – usavam métodos quantitativos dos mais complexos para
tentar predizer o comportamento dos ativos financeiros. Não havia no mun-
do sujeitos melhores em modelagem. Erraram não no modelo em si, mas em
acreditar na sua clarividência.

O outro caso ocorreu entre 2007 e 2008, na antessala do estouro da crise


imobiliária americana, a maior desde 1929. O também Nobel Joseph Sti-
glitz – com ajuda dos irmãos Peter e Jonathan Orszag – rodou uma série de
simulações para Fannie Mae e Freddie Mac (empresas de crédito imobiliário
bancadas pelo governo dos EUA). Concluiu extenso relatório com duas afir-
mações: “com base na experiência histórica, o risco para o governo de um
potencial calote na dívida delas é efetivamente zero”, e “a probabilidade de
um default é considerada tão baixa que é até difícil de se detectar”. Poucos
meses depois, Fannie Mae e Freddie Mac estavam quebradinhas da silva.

Não é aquele modelo específico que está errado, é a própria prática de


se usar modelo para algo imodelável – peço licença a Antonio Magri pelo

.74.
neologismo. Ao modelar em excesso, você perde o apego à realidade, distor-
cendo por completo as ferramentas que deveriam te ajudar a desparafusar
o mercado.

A geração de valor não está no passado, por razões práticas e teóricas.


Tampouco pode estar nas previsões para um futuro incógnito. Os grandes
ganhos financeiros vêm justamente do imponderável. Viradas operacionais,
crescimento exponencial, fusões e aquisições, um suíço que por acaso nasceu
no Rio de Janeiro – e assim por diante.

É o tipo de acontecimento batizado como Cisne Negro pela literatura


clássica – evento raro, de alto impacto e imprevisível (depois que acontece
parece óbvio, mas não é).

Papo rápido sobre etimologia: antes da descoberta da Austrália, sequer


precisávamos caracterizar a cor dos cisnes. No Velho Continente, apenas
cisnes brancos eram conhecidos, ponto final. Então, tirando o chão dos or-
nitologistas da época, um único cisne negro foi suficiente para dizimar tudo
que havia sido escrito sobre os cisnes.

Ninguém aqui está tão preocupado com o estudo das aves, é só um


exemplo pontual do problema clássico da indução de David Hume, poste-
riormente também explorado por Karl Popper e seu falseacionismo.

Basicamente, aludimos a problemas de interpretação associados a conclu-


sões gerais a partir de casos particulares. Você vê uma série de cisnes brancos
e imediatamente conclui que todos seguem o mesmo padrão. Mas basta uma
– apenas uma – informação contrária para derrubar o paradigma. Essa é a
proposta clássica de David Hume.

.75.
Popper, por sua vez, estende o conceito para o alerta de que teorias não
podem ser confirmadas, mesmo a partir de muitas observações, já que uma
única exceção, mesmo que ainda não conhecida por ora, pode aparecer lá na
frente e mudar tudo. As teorias poderiam, portanto, somente ser negadas,
nunca categoricamente afirmadas.

Veja por exemplo o que me aconteceu no triste ano de 1989. Eu


passei esse período inteiro em Minas Gerais, com a família da minha
mãe. Interiorzão mesmo. Fazenda, sem energia ou telefone. Por todo o
ano, alimentamos um peru. Criei um grande carinho pelo bicho. Ele
mancava da perna esquerda, igual ao meu tio, e, por isso, eu dei o nome
de Geraldo.

Alimentei o peru por 360 dias consecutivos. A cada manhã, prato cheio,
ele tinha uma confirmação adicional sobre o amor da família Miranda.
Crescia a confiança, baseada na larga série de informações passadas (amostra
grande, 360 observações) de que as coisas continuariam indo muito bem.
Então, chegada a noite de Natal, no suposto ápice da cumplicidade, lá estava
o Geraldo virando jantar. O peru virou cisne negro.

Devo admitir: eu nunca passei um ano em Minas Gerais, nem sequer


conheci o Geraldo. A metáfora original é de Bertrand Russell, que bem
distinguiu a frequente confusão entre ausência de evidência e evidência de
ausência. O fato de você nunca ter visto Deus não significa que Ele não
existe. O que é óbvio aos religiosos escapa aos financistas.

Ufa! Esta seção serviu para questionar a convicção de que podemos iden-
tificar valor a partir de informações passadas. Ela também brochou com a
vontade de antever os resultados corporativos e, por conseguinte, das ações.

.76.
Assim, vamos desmontando mitos enraizados no profissional típico do mer-
cado financeiro, que veste terno de alfaiate.

Felizmente, não tomamos seu tempo pra defender uma postura niilista,
de queimar a teoria ortodoxa sem colocar nada no lugar. Temos de propor
algo que seja mais bonito filosoficamente, e muito mais prático. Temos de
propor a antifragilidade.

.77.
III. Crítica da razão pura

Quando eu era pequeno, tudo parecia naturalmente maior. Eu vinha


para São Paulo com meus pais e achava shopping uma coisa gigantesca.
Mais tarde, quando tive que escolher entre ser analista de shoppings ou de
bancos, preferi a segunda opção, tamanho meu trauma de infância.

Era trauma mesmo, porque uma vez eu me perdi no Shopping Morumbi.


Havia dezenas de crianças perambulando sozinhas pelos enormes corredores
do Morumbi, todas absolutamente perdidas. Eu me somava àquele exército
de nanicos em movimento quasibrowniano, não fosse minha vontade dire-
cional de achar a loja de brinquedos. Eu queria o Pegasus.

.79.
Não o cavalo alado, obviamente. Nunca fui dessas crianças que gosta
de cavalo alado. O Pegasus era um carrinho de controle remoto da Estrela,
réplica da BMW–M1. Para um brinquedo até que corria bem, fazendo 20
km/h, ou um pouco mais na descida. Bebia cinco pilhas grandes, sem falar
nas seis pequenas do controle.

Eu sonhava com o Pegasus, pedia pro meu pai, contava os dias. No Natal
de 88, já não acreditava mais em Noel, de modo que a única chance seria
me desgarrar da minha mãe dentro da Sears e me alistar. Marchei e marchei
naquele shopping, até que encontrei o Pegasus. A moça da loja perguntou
meu nome, anunciou no sistema de som e logo meu pai apareceu. Estava
tudo dando certo.

Peguei o controle na mão, fiz tudo o que podia com o carrinho, trezentos
e sessenta, cavalo de pau, e pedi pra ir embora. Em cinco minutos, brinquei
o que podia, e pedi pra ir embora sem carrinho. Meu pai ficou me olhando
embasbacado, sem entender nada e agradecendo a Deus, porque eita brin-
quedo caro. A mãe disse que era coisa de criança.

Naquele Natal – ainda me lembro – ganhei um banco imobiliário do


Papai Noel. Foi supresa, eu não esperava. Fiquei muito feliz, como coisa de
criança mesmo. E assim aprendi a graça de não esperar.

Coisa de adulto

No capítulo I, aprendemos como calcular o preço de uma ação por meio


do modelo de DCF (Fluxo de Caixa Descontado). Logo em seguida, no

.80.
capítulo II, fomos introduzidos a algumas armadilhas inerentes ao modelo
e – em termos mais gerais – à própria Escola do Value Investing. Vimos in-
clusive que o conceito de Valor é em si uma armadilha.

Pena que não é o bastante, quem te conhece que te venda. Porque, mes-
mo sabendo que existem armadilhas, caímos nelas como patinhos. Justo
nós, iluministas vacinados, somos pegos por nossos próprios truques. Fa-
zemos engenharia reversa, contas de chegada para provar com os números
– coitados dos números – aquilo que mais desejamos. Cursamos MBAs Ivy
League para acertamos em cheio, bem mais que a média.

Pesquisas de autoavaliação mostram que a maioria dos alunos de MBA


(87% em Stanford) julga-se acima da média, numa clara incoerência esta-
tística. Esses mesmos estudantes viram financistas inteiramente convictos
das projeções que fazem, tão convictos que começam pelo fim. Primeiro
dizem para si mesmos o que acham de determinado investimento e de-
pois buscam os meios técnico-científicos mais arrojados para corroborar
seu achismo. A razão é também a mais forte das emoções: o desejo de
controle.

Esse desejo passou a perturbar os economistas modernos, especialmente


na passagem para o século XX, quando os primeiros expoentes da Economia
Política (Smith, Marx, Ricardo) foram dando lugar a abordagens menos
conceituais e mais “objetivas”.

Em busca de teoremas econômicos, a matematização foi ganhando es-


paço nos manuais e nas escolas – institucionalizada por nomes como Ed-
geworth, Marshall e Samuelson. Toda essa aparente evolução quantitativa do
arcabouço teórico despontava como simples, clara e natural. Muita coisa foi

.81.
importada da Física, irmã mais velha que toda ciência infantil queria imitar.
Infelizmente, sem rigor epistemológico.

Só havia uma forma de a Matemática realmente caber nos modelos eco-


nômicos, sem que as exceções ultrapassassem as regras. Nós, economistas,
teríamos todos que fazer uma espécie de Juramento de Hipócrates logo no
primeiro ano de faculdade. Teríamos que jurar de pé junto nossa própria
racionalidade. Indo além, concordaríamos também por unanimidade que
qualquer indivíduo – enquanto agente econômico – agiria em plena confor-
midade com preceitos racionais. Nascia assim o homo economicus.

Não vamos adentrar em detalhes sobre alicerces lógicos, mas as premissas


que formalmente definem a racionalidade do homo economicus são bem
exigentes – ao menos para a maioria das pessoas demasiadamente humanas
que eu conheço (inclusive eu mesmo). Duas das principais premissas dizem
respeito à consistência e à completude.

Ser consistente é não cair em contradições. Se você prefere as ações da


Ambev às de Gerdau, e prefere Gerdau a Embraer, então não pode preferir
Embraer a Ambev. Não pode investir em LCIs só porque os outros estão
investindo, ou porque seu private banker te levou para jogar golfe. Nem
vale entrar no cheque especial enquanto tem saldo na poupança para co-
brir a posição.

Em paralelo, ser completo é ter algo sério a dizer sobre absolutamente


tudo. Qualquer proposição que lhe aparecer à frente, você será capaz de falar
se é verdadeira ou falsa. Dotado de completude, você saberá afirmar se o
preço-alvo estimado pelo analista de sellside é fruto do DCF ou de influên-
cias da área comercial do banco. Nenhum ativo financeiro fica em cima do

.82.
muro: ou é pra comprar ou é pra vender. E todos os preços convergem para
seus respectivos valores intrínsecos (e não o contrário!).

Mediante críticas de que esse indivíduo racional divergia da realidade, os


economistas modernos respondiam que a Ciência não deveria estar preocu-
pada com a realidade, mas sim com uma realidade, passível de modelagem.
E a partir dela faríamos pequenos ajustes.

Décadas mais tarde, com o triunfo da Economia Comportamental, con-


seguimos notar que os pequenos ajustes tinham ficado grandes demais; e a
realidade só encolhendo, coitada. Formalmente, só reconhecemos isso em
2002, quando o Nobel de Economia foi conferido ao psicólogo Daniel
Kahneman. Mas antes tarde do que nunca.

Infelizmente, a Teoria Financeira que orienta várias das práticas de


mercado – sobretudo o apreçamento de ações – ainda não fez esse reconhe-
cimento de gramado. Nós, engravatados da Faria Lima (ou de Wall Street,
tanto faz), continuamos habitando um mundo em que é possível formar
expectativas exatas sobre eventos futuros e – por conseguinte – sobre os
preços dos ativos financeiros.

À espera

A esta altura do livro, creio que já compreendemos a dependência-vício


que o investidor tem em relação ao futuro. O passado não serve para estimar o
valor justo de uma ação, tampouco o presente. Por eliminação, resta o futuro
– ou mais precisamente – os fluxos de caixa daqui até o infinito. Vai encarar?

.83.
Como desincentivo, nem mesmo os livros-texto conseguiram determinar
a maneira preferida do homo economicus fazer julgamentos e formar expec-
tativas em contextos de incerteza. Num torto exercício metalinguístico, os
economistas tentam há anos predizer o comportamento intertemporal dos
agentes econômicos, sem muito sucesso.

A tentativa mais simples nesse sentido resulta no que chamamos de


expectativas estáticas. Por essa ótica, esperamos que o próximo período seja
rigorosamente igual ao período corrente. Os dias se repetem, os meses se repe-
tem, os anos se repetem. Todo dia ela faz tudo sempre igual, te sacode às seis
horas da manhã, te sorri um sorriso pontual e te beija com a boca de hortelã.

Assim, o melhor a fazer como investidor é repetir também. Parece in-


gênuo, mas de fato muita gente age assim no mercado. Traders “arrojados”
projetam que a ação que lucrou em janeiro subirá também em fevereiro, e
março – no que é tecnicamente conhecido como momentum trading, em
alusão ao momento de inércia.

Triste também que – no mundo todo – investidores de varejo só apostem


com ênfase na Bolsa depois que o negócio já bombou. Não raro, eles en-
tram no momento mais caro possível e saem realizando prejuízos, ficando
traumatizados demais para aproveitar quando as ações voltam a se tornar
atrativas. Lamentável, mas é sempre assim.

E se não fosse? E se não fosse sempre do mesmo jeito? Como alternativa


à monotonia estática, pensou-se noutro modelo, de expectativas adaptati-
vas, muito usado inclusive em programas de inteligência artificial. Agora,
em vez de bater só numa tecla, as pessoas podem ir ajustando suas expecta-
tivas conforme os erros e acertos dos palpites anteriores. Com isso, vamos

.84.
aperfeiçoando o método até atingirmos um estado ótimo em que os erros
são minúsculos e os acertos predominam.

Isso funciona razoavelmente bem no aprendizado de tarefas elementa-


res – como as de coordenação motora, por exemplo. Chutamos fraco, a
bola não chega no gol. Chutamos forte, ela passa por cima da trave. Chute
a chute, vamos alternando entre dois extremos, até alcançarmos a verdade
aristotélica num meio-termo.

Assim como o momentum trading deriva das expectativas estáticas, po-


demos associar as expectativas adaptativas a uma estratégia de investimento
denominada “reversion to mean”, ou simplesmente reversão à média. Existe
uma média – um centro de alvo – na qual estamos mirando e tentando acer-
tar. Se ocorre um desvio acima da média, corrigimos a rota do barco para
baixo. Já se o desvio é para baixo, ajustamos para cima.

Infelizmente, na prática, alguns graves problemas depõem contra essa


estratégia. Ninguém sabe qual é a média; quando achamos que descobrimos,
ela muda de lugar sem avisar ninguém. O preço de uma ação pode ficar
longe da média (o valor intrínseco da empresa) por muitíssimo tempo, sem
que a rota do navio-mercado seja devidamente corrigida. E mesmo se você
estiver 100% certo sobre qual é a “verdadeira” média, os outros participantes
do concurso de beleza keynesiano podem jamais concordar com você.

Ok, ok, já deu pra entender que não é fácil. Vamos então para a terceira
empreitada, aquela que conquistou o coração dos economistas mais or-
todoxos: a hipótese das expectativas racionais. Nesta concepção, o homo
economicus ganha um pouco mais de jogo de cintura no trato do futuro.
Ele forma expectativas baseado (i) na compreensão perfeita das leis que

.85.
regem o ambiente econômico-financeiro e (ii) em todas as informações
disponíveis até o momento em que as projeções são construídas.

Quanto à compreensão das leis, é razoável supor que os investidores


saibam como se comporta o mercado. No entanto, até que se atinja um
nível próximo à “perfeição”, esse entendimento demanda tempo, muita
experiência. Não basta enxergar demanda e oferta nas ordens de compra
e venda, nem basta diferenciar ONs de PNs. Há vários outros compo-
nentes da engrenagem de Bolsa muito menos óbvios, que não cabem nos
dicionários financeiros. Uma ação subindo forte dentro do Ibovespa pode
espelhar a contrapartida de um movimento pesado de venda do índice
futuro. Uma small cap pode subir 200% em um ano, mesmo dissociada
de qualquer fundamento, desde que seu free float esteja sequestrado por
lobos disfarçados de carneiros. Ninguém debuta em Bolsa com esse grau
de senso crítico trazido do berço.

No tocante às informações, a hipótese de expectativas racionais prevê


que os agentes econômicos incorporam rapidamente todas as notícias, fatos
relevantes e comunicados ao mercado. Incorporar significa ler o conteúdo,
processá-lo e comprar/vender ações conforme as respectivas interpretações.
Nada passa despercebido por mais do que alguns minutos, toda informação
relevante entra automaticamente nos preços. Você já deve ter se assustado
ao ver uma breaking news sobre a possível venda do Fleury se transformar
instantaneamente em 8,95% de valorização para FLRY3.

Reconhecendo os méritos da hipótese, muita coisa evoluiu desde os tem-


pos de Benjamin Graham. Este é o mundo moderno pós-Gutenberg, com
iPhone, Twitter e Facebook. Se algo acontece, realmente ficamos sabendo em
questão de segundos.

.86.
Mesmo assim, os adventos tecnológicos (atuais e futuros) não garantem
que essa tonelada de informações chegará aos preços de maneira eficiente,
sem ruídos. Quem afirma que a possível venda do Fleury implica 8,95% de
valorização, e não 5% ou 15%?

Quanto mais nos afogamos em informações, menos fôlego temos para


compreendê-las adequadamente. Se elas de fato alcançam as cotações, o fa-
zem com timidez ou exagero, mas dificilmente na medida certa.

Por isso, os analistas da Empiricus trabalham com o mínimo possível de


inputs, muito bem selecionados, a partir de fontes oficiais ou de conversas
com pessoas de carne e osso. Em nosso ofício, menos é mais. Como 90%
das informações de mercado que caem em nossas cabeças são inúteis (con-
fundem, em vez de esclarecer), o desafio está em jogar fora os comunicados,
não em acumulá-los. Somos melhores investidores na medida em que apren-
demos a negar, cortar, excluir, ignorar.

O fenômeno conhecido como “big data” promete um oceano de da-


dos para navegarmos e gerenciarmos tudo nos mínimos detalhes. No
entanto, quanto maior o número de informações, maior também o nú-
mero de correlações espúrias. Hoje temos subsídios para achar explicação
para tudo, só que de forma absolutamente arbitrária. Em Bolsa, isso é
perigosíssimo.

No caminho informacional típico, o fato é a causa e a variação da ação


é o efeito. Petrobras encontra o pré-sal, torna pública a descoberta e PETR
dispara em consonância. Esses são ventos raros, de alto impacto e cuja cau-
salidade merece reconhecimento.

.87.
Frequentemente, porém, investidores percorrem a trajetória inversa:
primeiro olham para a variação do papel no home broker e depois saem
por aí, procurando justificativas. A imprensa corrobora essa atitude pouco
científica, sobretudo num dia em que a Bolsa começa caindo e depois
passa a subir (ou vice-versa).

Segundo as manchetes, a Bolsa cai porque as estatísticas de emprego nos


EUA vieram abaixo do esperado. Uma hora depois, a Bolsa sobe porque as
estatísticas de emprego nos EUA vieram abaixo do esperado, e isso induz o
Banco Central americano a injetar mais liquidez na economia. Em tese, do
ponto de vista lógico, uma varíavel não pode assumir direções opostas (alta/
baixa) por conta de um mesmo motivo (emprego abaixo do esperado). Mas
no mercado torturam-se as causas conforme o gosto do freguês – um freguês
que nunca tem razão.

Aliás, voltemos ao nosso freguês predileto, o modelo de Fluxo de Caixa


Descontado. Para estimarmos os fluxos de caixa futuros de modo robus-
to, dependemos idealmente das expectativas racionais traçadas pelo homo
economicus. Com isso, estamos automaticamente supondo que todas as
informações são instantaneamente incorporadas aos preços. Mas peraí…

Não estamos montando o DCF de uma empresa justamente para acessar


seu valor intrínseco e compará-lo com o valor de mercado, derivando de
eventuais desvios as oportunidades de compra ou venda? Uai, se todas as
informações estão nos preços, não pode haver desvio algum: valor intrín-
seco e valor de mercado teriam de ser os mesmos. Ou somos racionais do
começo ao fim ou não somos racionais.

.88.
O que vem é grato

Sejam expectativas estáticas, adaptativas ou racionais, até o momento


nada parece se encaixar ao modo como efetivamente vislumbramos o futu-
ro. Não me espanta, porque em vez de adotarem uma atitude empírica, os
economistas preferiram “deduzir” o algoritmo de expectativas usado pelo
homo economicus.

Em vez disso – por mais absurdo que pareça aos economistas – não seria
mais fácil simplesmente perguntar ao homo sapiens como ele lida na prática
com as incertezas futuras? E só então tentar elaborar algum tipo de modelo?

Felizmente, fomos salvos por dois psicólogos que entenderam isso e re-
solveram atacar o problema com uma postura empírica. Desde os trabalhos
seminais de Amos Tversky e Daniel Kahneman, vários outros psicólogos e
economistas se aprofundaram no tema, estabelecendo um novo campo de
estudos denominado Economia Comportamental – e que tem as Finanças
Comportamentais como subsidiárias.

Comos fãs de Kahneman e Tversky, poderíamos citar dezenas de con-


tribuições que ambos trouxeram à maneira geral com que encaramos e
entendemos expectativas. Mas dado o escopo deste livro, daremos apenas
um exemplo, suficiente para provar o ponto. Lembrando do falseacionismo
de Karl Popper no Capítulo II, uma única exceção basta para violarmos a
proposição de que enxergamos o futuro sem viés.

O exemplo que escolhemos alude a um estudo feito por Craig Fox –


aluno de Amos Tversky. Esse estudo ressalta dois pontos (i) esperamos
o que queremos esperar e (ii) subestimamos a importância dos cenários

.89.
alternativos com os quais nos deparamos. O primeiro ponto remete ao
que a língua inglesa chama de “wishful thinking”, posto que existe uma
linha tênue entre a torcida e a expectativa. Já o segundo ponto escancara
nossa enorme dificuldade de pensar em várias coisas ao mesmo tempo, que
atrapalha em especial os julgamentos estatísticos.

Craig reuniu fãs do basquete americano e arquitetou várias perguntas a


respeito dos playoffs da NBA, e de quem venceria o mata-mata. Em particu-
lar, os torcedores foram questionados sobre a probabilidade de cada um dos
oito times restantes ganhar a competição.

Como evidência do wishful thinking, os fãs do Chicago Bulls atribuíram


chances bem maiores à vitória dos Bulls – e o mesmo viés de confirmação
ocorreria com torcedores do Heat, Bucks, Nets, Pacers, Hawks, Knicks e
Celtics. Embora permeado por estatísticas, análises táticas e habilidades in-
dividuais dos jogadores, esporte é – acima de tudo – paixão.

Até aí tudo bem. O viés é inquestionável, mas já imaginávamos que o


torcedor chutaria com o coração na ponta da chuteira. A surpresa maior
vem do fato de que mesmo os demais times, sempre avaliados caso a caso,
sequestravam uma atenção excepcional dos participantes. É como se cada
respondente da pesquisa conseguisse pensar só no time daquela rodada de
perguntas, e não nos demais.

No fim das contas, sob efeito de ambos os desvios, a probabilidade mé-


dia dos oito times vencerem o torneio totalizou 240%! Esse percentual é
completamente absurdo, já que as chances de cada concorrente ao título
deveriam somar necessariamente 100%.

.90.
Craig Fox ficou tão impressionado com o resultado do estudo que
resolveu levá-lo adiante. Convocou os fãs de basquete a fazer apostas fi-
nanceiras em cima de suas expectativas, escolhendo o provável ganhador
da competição. A hipótese era de que, eventualmente, ao colocar dinheiro
vivo, os participantes levariam mais a sério o desafio e forneceriam estima-
tivas aprimoradas. Porém, a essa altura você já deve imaginar que não foi
isso o que aconteceu…

O torcedor que acertasse o time campeão levaria US$ 160. Craig per-
guntou aos participantes quanto eles topariam gastar no máximo para
entrar em cada uma das oito apostas possíveis. Recolhidas as intenções, a
soma dos gastos máximos (que espelha as respectivas impressões de proba-
bilidade) alcançou US$ 287! Ou seja, se alguém apostasse em todos os oito
times, perderia com certeza US$ 127 – o que viola quaisquer preceitos de
racionalidade.

Os participantes sabiam que havia apenas oito times disputando os


playoffs e sabiam que o acerto renderia US$ 160. Mesmo assim, eles to-
param implicitamente pagar bem mais do que US$ 160 para entrar nessa
aposta, transformando-a em um péssimo negócio. Os homo sapiens estuda-
dos empiricamente por Craig Fox não só sobreavaliaram as probabilidades
de vitória como botaram grana nessa sobreavaliação. Qualquer semelhança
com as apostas feitas diariamente na Bolsa não é mera coincidência.

Nossa racionalidade é limitada por vieses. A despeito disso, enquanto


pessoas e investidores, temos que lidar racionalmente com as incertezas ine-
rentes ao futuro. Como conciliar as duas condições? Precisamos abandonar
o vício de previsão em nome de uma virtude, a virtude de se posicionar de
maneira antifrágil em relação às nuances vindouras.

.91.
O escritor Fernando Pessoa não só sabia encarar diferentes cenários pros-
pectivos como teve a astúcia de se transformar ele mesmo em tipos diversos.
Na pele de Ricardo Reis, escreveu uma estrofe assim:

“Aos que a felicidade


É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo que vem é grato”.

.92.
IV. Buffett vale mais

O que você vai ser quando crescer? Eu nunca fui uma criança típica. Não
tentava ser jogador de futebol. Também não era uma espécie de Lulu Santos,
que queria ir tocar guitarra na TV. Eu estava mais para o Tom Hanks, no fil-
me Big: eu só queria ser grande mesmo. Aquela coisa de ter de me rotular de
algum jeito me incomodava desde os tempos mais pueris. Eu tinha mesmo
que me enquadrar em alguma caixa?

Fui me apertando entre as laterais, esperando fecharem a tampa, lá pelos


12 ou 13 anos. Sem motivo aparente, comecei a vomitar com frequência
absurda (desculpem-me pela imagem escatológica). Na média, duas ou três
vezes por dia, lá estava eu de joelhos sobre os azulejos brancos e frios, abra-

.95.
çado à privada igualmente branca, com cobertura caramelo. Numa quarta-
-feira, cheguei a bater o recorde: foram dez visitas ao banheiro para sentir
aquele aperto horrível nas costelas, gosto de bile na boca.

Conheci os melhores gastroenterologistas do Brasil. Dos simpáticos aos


arrogantes. Fiz todos os exames possíveis e imagináveis – conheci cada fun-
cionária do Fleury. Tudo isso para descobrir o seguinte: não havia nada de
errado com meu sistema digestório. Minhas conversas com a privada eram
despertadas exclusivamente por questões psicológicas.

Adultos à minha volta tentaram arrumar as mais variadas explicações.


A culpa seria de uma namoradinha da escola. “Ah, não, ele não gosta dela
tanto assim”. Na verdade, é a pressão dos pais pela disciplina. “Imagina, os
pais falam até para ele parar de estudar!” Até dúvidas sobre minha opção
sexual foram trazidas à mesa. Com minha educação costumeira, convidei a
moça para sair e verificar ela mesma se a tese faria sentido.

Sem descobrir a causa real para os vômitos, lá fui eu bater à porta dos psi-
cólogos. Não me entenda mal, por favor. Sou grande fã da análise da psique.
Inclusive, tenho em Daniel Kahneman meu Nobel de Economia favorito.
Mas a psicologia não funcionou pra mim.

Passei por cinco consultórios diferentes, sem sucesso. Era estranho, porque
o processo me forçava a definir coisas que para mim eram indefiníveis. Eu não
poderia saber exatamente questões a meu respeito e, mesmo assim, era obriga-
do a responder, ciente da imprecisão com que as palavras saiam da minha boca.
Por maior que fosse meu esforço, era insuficiente para transmitir quem eu real-
mente era. E o pior: o doutor ia formar uma ideia a meu respeito baseado nas
palavras que eu lhe falava, em grande parte mentirosas, sem querer querendo.

.96.
Vira exatamente o problema da Clarice Lispector que citamos lá no co-
meço, sabe? “É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem,
mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento
em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se
transforma lentamente no que eu digo.”

Quando você lê um livro sobre Warren Buffett e seu processo de in-


vestimento, está diante do mesmo problema. As decisões financeiras
são muito mais complexas do que os livros de value investing, mesmo
os autobiográficos.

Esse capítulo é uma espécie de pedido, misturado com esclarecimento:


por favor, não entenda esse livro como uma crítica a Warren Buffett e
Benjamin Graham. Com efeito, a obra é escrita por dois fãs de carteirinha
desses monstros sagrados.

Em nenhum momento, questionamos as virtudes de Warren Buffett e de


seu método prático. Os questionamentos fazem referência às teorias e aos
fatos estilizados que se formaram em torno dessa sábia figura de Omaha.
Ademais, o capítulo pode ser lido como uma resposta à pergunta que até há
pouco pairava no ar: “se há tantos problemas com o value investing, como
Buffett pode ser tão bem sucedido”?

Ninguém aqui é louco de negar a utilidade da Escola de Valor, mesmo


em seu mais simples conceito. São milhares de estudos ao longo de décadas
mostrando como métodos apoiados nos princípios do investimento em va-
lor renderam resultados consistentes e impediram maior perda de dinheiro
em situações de crise.

.97.
Como alternativa, porém, acho que a abordagem antifrágil (tal como
proposta por Nassim Taleb) vence a briga tanto por sua superioridade
epistemológica quanto pela prática. O fato de Ayrton Senna ter superado
Alain Prost em nada diminui o piloto francês.

A questão central aqui: Warren Buffett é muito mais complexo e interes-


sante do que qualquer coisa já escrita sobre ele. Um olhar de fora escrevendo
sobre o megainvestidor incorre no clássico problema da não tradução; trans-
crições desse tipo sempre incorrem em grandes perdas de conhecimento.
Nada substitui o original.

Mas o entrave é ainda maior, pois nem mesmo o próprio Buffett po-
deria se autodescrever. Como para qualquer fenômeno social, o processo
de investimento envolve muito conhecimento tácito e heurístico – ou seja,
incapaz de formalização. Ninguém consegue descrever com precisão, “passo
a passo”, um algoritmo bem-sucedido de investimento.

Tacitus em latim refere-se a calado, silencioso. Um conhecimento acumu-


lado ao longo da vida, associado às experiências e às habilidades individuais,
sem ser passível de definição explícita.

Quem estudou muito isso foi o filósofo austríaco Michael Polanyi, que
descreveu o conhecimento tácito como: “espontâneo, intuitivo, experimen-
tal, conhecimento cotidiano, do tipo revelado pela criança que joga um bom
jogo de basquete, (…) ou que toca ritmos complicados no tambor, apesar
de não saber fazer operações aritméticas elementares. Tal como uma pessoa
que sabe entregar troco mas não sabe somar números. Se o professor quiser
se familiarizar com este tipo de saber, tem que prestar atenção, ser curioso,
ouvi-lo, surpreender-se, e atuar como uma espécie de detetive que procura

.98.
descobrir as razões que levam as crianças a dizer certas coisas”. É uma espé-
cie de representação das forças dionisíacas de Nietzsche.

O argumento ficou resumido na famosa frase de que podemos conhecer


mais do que podemos explicitar. Um conhecimento integralmente explícito
é inconcebível.

Conhecimento tácito é importante por ser inclusive mais relevante do


que a parte formalizável do saber. Conforme Polanyi, há mais valor naquilo
que tem difícil captura, registro e divulgação, justamente por estar atrelado
ao indivíduo.

Para o nosso caso, Buffett – em sua completude – não cabe nos livros. O
que vaza pra fora das páginas é o que faz toda a diferença. Não adianta que-
rer se tornar um Mini-Buffett lendo as incontáveis biografias a respeito do
guru. Você vai deixar de ser o investidor que é, e não ganhará nada em troca.

Acho que Pérsio Arida entenderia o ponto. Pegando emprestados os


ensinamentos de Arida sobre a importância da Retórica na Economia, nota-
ríamos que o value investing é sim associado à fronteira do conhecimento em
análise de ações, mas não por representar a técnica mais rentável. Sua pretensa
superação não veio de resultados empíricos mostrando que Buffett aplicou,
de fato, os elementos da Escola de Valor e ganhou dinheiro com isso.

A rigor, o value investing ganhou a tradição em finanças por seguir fiel-


mente as regras de retórica, que é, em última instância, a responsável pela
vitória das mais variadas teorias em Economia, conforme bem definiram
Deirdre McCloskey e Persio Arida – não necessariamente nessa mesma ordem.

.99.
A Escola de Valor é simples, coerente, abrangente; oferece generalidade
e poucas metáforas; permite formalização e resgate da tradição. Ou seja,
atende com precisão cirúrgica às sete regras de retórica contidas no brilhan-
te artigo “A História do Pensamento Econômico como Teoria e Retórica”,
de Arida.

Corrobora o argumento o fato de que Buffett pratica algo muito além do


que supõe o value investing tradicional. Artigo de Gerald Martin (American
University – Kogod School of Business) e John Puthenpurackal (University
of Nevada – Department of Finance), de abril de 2008 e título Imitation is
the Sincerest Form of Flattery: Warren Buffett and Berkshire, mostra como,
contrariando o fato estilizado, o bilionário seguiu preceitos mais associados
ao growth investing do que propriamente ao value investing.

O resumo do trabalho diz mais ou menos assim (desculpem eventuais


erros na tradução livre):

“Nós analisamos os portfólios de ações da Berkshire Hathaway


(empresa de Buffett) entre 1976 e 2006 e exploramos potenciais ex-
plicações para sua performance acima da média. Contrariamente à
crença popular, descobrimos que a Berkshire investe, primeiramente,
em large caps de crescimento, em vez de ações tradicionalmente as-
sociadas aos conceitos de valor. Ao longo desse período, o portfólio
bateu seu benchmark em 27 de 31 anos, na média superando o S&P
500 em 11,14%. A carteira bateu o índice que contempla a média
ponderada de todas as ações em 10,92% e um portfólio montado a
partir de um modelo Fama & French em 8,56% ao ano. Embora estar
à frente do mercado em 27 de 31 anos possa acontecer estatistica-
mente apenas por conta da sorte, quando incorporamos a magnitude

.100.
da superioridade, a explicação por meio da simples sorte sugere algo
bastante improvável, mesmo se ponderarmos pelo viés de seleção ex
post. Identificamos que a carteira da Berkshire Hathaway é altamente
concentrada em poucas ações, com os cinco maiores representantes
respondendo por 73% do valor do portfólio. Embora o aumento de
volatilidade seja tradicionalmente associado à maior concentração,
nós mostramos que a volatilidade do compêndio é derivada dos re-
tornos positivos, e não das variações para baixo. (...) Nossa evidência
sugere que Warren Buffett, Charles Munger e Lou Simpson possuem
habilidades de investimento incapazes de serem explicadas pela Teo-
ria dos Mercados Eficientes”.

Breve digressão: quem mereceria o Nobel, Eugene Fama, um dos precur-


sores da hipótese de mercados eficientes, ou Warren Buffett?

Voltando ao raciocínio... citamos Polanyi e Arida para questões me-


todológicas, mas poderíamos ir um pouco além, resgatando as ideias de
Lakatos sobre validação ou não de teorias. Para o físico/matemático/filó-
sofo, os pacotes de conhecimento são compostos por um miolo forte, um
pressuposto básico que acaba não sendo efetivamente testado. Esse miolo
estaria circundado por teorias de suporte, e somente essas viriam a ser tes-
tadas, estando suscetíveis à refutação.

Quando pensamos na associação entre Warren Buffett e value investing,


qual é o miolo da coisa? Ora, o miolo é o valor – como defini-lo e como
formalizá-lo. Teorias de suporte (como a análise de múltiplos, por exemplo)
nos interessam menos.

.101.
Um caso prático

Matéria da Bloomberg de 18 de fevereiro de 2011 trazia o seguinte pri-


meiro parágrafo:

“As ações da BR Foods subiram para o valor mais alto já registrado


na Bovespa, em meio a notícias de que a Berkshire Hathaway, em-
presa do bilionário Warren Buffett, começou a comprar ações da
fabricante brasileira de alimentos. A Brasil Foods, maior exportadora
mundial de frango, subia 2,5 por cento, para R$ 29,44 às 12:30. Mais
cedo, o papel chegou à cotação de R$ 29,98, maior valor desde o
início das negociações da empresa, conhecida anteriormente como
Perdigão, em 1997. O Ibovespa subia 0,3 por cento”.

Um pouco mais à frente, a reportagem diz: “Buffett começou a comprar


as ações depois que gestores de fundos da Berkshire visitaram unidades da
Brasil Foods – disse hoje o Valor Econômico, citando investidores não iden-
tificados que conversaram com executivos da companhia”.

A esta altura, nem preciso dizer que foi mais uma aposta acertada de Bu-
ffett e sua trupe – assumindo aqui a veracidade das informações publicadas
na mídia (nunca houve confirmação oficial do investimento).

Foi caso claro em que o sábio de Omaha desviou-se dos pilares mais tra-
dicionais do value investing e ganhou muito dinheiro. O múltiplo Valor da
Empresa sobre Ebitda (proxy para a geração de caixa) superava 10x à época,
enquanto demais empresas do setor de alimentos negociavam a 7x. Em adi-
ção, estávamos às vésperas da decisão do Cade a respeito da fusão Perdigão

.102.
& Sadia, o que retirava visibilidade sobre as sinergias a serem colhidas pela
união e impunha risco adicional ao case.

A determinação do tal valor intrínseco é muito mais complexa do que


este ou aquele múltiplo. Olhar métricas quantitativas friamente poderia ser
profícuo quando da época de Benjamin Graham, quando o acesso à infor-
mação era precário. Com o advento do Google, não existe mais burro nem
leigo. Precisamos de referências também qualitativas e não foi por acaso a
visita à fábrica da BR Foods pelos analistas da Berkshire.

Buffett pagou prêmio pelas ações nas mais variadas métricas de valuation
e viu seu capital simplesmente dobrar em pouco mais de dois anos.

Para mim, está ótimo.

Como ler então?

Este capítulo termina sugerindo uma forma de interpretação do instru-


mental analítico de value investing, que acaba unindo os ensinamentos de
Benjamin Graham e Warren Buffett à filosofia antifrágil de Nassim Taleb.

O Investimento de Valor não deve ter uma veste mecanicista, suposta-


mente capaz de revelar o Santo Graal financeiro (também conhecido como
valor intrínseco). Esta verdade aristotélica, se existir, é indeterminável.

Como já afirmado no conceito de conflation, ações não são rigoro-


samente empresas; são ativos financeiros que guardam relação com as

.103.
companhias. É aí que deve entrar o value investing. Uma ferramenta de
ajuda para entender como as ações estão se comunicando com as empresas,
e vice-versa. O que está sendo dito para a firma naquela cotação? O que
pode acontecer de maneira a justificar um preço mais alto? Quais as opcio-
nalidades envolvidas?

Nem Buffett, nem Graham, nem ninguém pode revelar a verdade aris-
totélica. Eles “apenas” oferecem instrumentos para tentar reduzir nossas
perdas ou sugerir altos retornos. Trazem-nos referências de quanto a coisa
pode ficar melhor ou pior, servindo de elemento adicional num processo
complexo e recheado de incertezas.

Se você vê uma ação abaixo do caixa, por exemplo, pode ser um belo pri-
meiro incentivo, pois temos a noção de que há um colchão capaz de limitar
nossas perdas. Simultaneamente, se esse caixa for bem empregado, a ação
estará preparada para subir. Com um olho no peixe e outro no gato, você
tenta diminuir sua perda a partir de uma referência de “preço justo mínimo”
e se expõe a potenciais eventos positivos.

Essa é a leitura que gostaríamos de dar ao value investing. Em se enten-


dendo dessa forma, Buffett passa a conversar em harmonia com Taleb. Veja
que isso está totalmente alinhado à Regra 1, proposta pelo sábio de Omaha:
“nunca perder dinheiro”. E também à Regra 2: “não esquecer a Regra 1”.

As preocupações estão inicialmente em evitar as perdas, e não em deter-


minar com precisão para quanto vai a ação. Usamos as métricas clássicas de
valuation para limitar prejuízos. Assim, podemos beber dos acontecimen-
tos futuros, desconhecidos por natureza, como trampolins para alçar-nos a
preços mais altos.

.104.
Não adianta rezar para um Deus das finanças achando que ele vai lhe
trazer a verdade. Eu mesmo tenho tentado há 30 anos. Eu falo, falo, falo. Ele
ainda não respondeu nada. Esta aí um Sujeito introspectivo.

.105.
V. Um pouco de muito risco

Gilmar Fubá foi jogador de futebol. Talvez você se lembre dele, meio-cam-
po. Primeiro volante, marcador implacável. Atuou profissionalmente entre
1995 e 2011, com maior destaque pelo Corinthians. Hoje está no showball.

Pelo preparo físico, era um grande jogador. Do ponto de vista técnico,


era uma tragédia. Marcava muito, passava ou driblava pouco.

Apesar da parca habilidade, eu adorava o Fubá. Ele tinha o que a torci-


da queria: amor à camisa e muita raça, além de um carisma garantido por
humildade superior ao seu 1,80m de largura. Passou a ser particularmente
especial quando fez uma partida impecável na final do Brasileirão de

.107.
1999 contra o Atlético Mineiro, ajudando a trancar a defesa alvinegra
paulista, mesmo jogando com a camisa 9 que originalmente pertencia ao
artilheiro Luizão.

Não podemos negligenciar também sua presença no título Mundial, em


2000 – a primeira vez a gente nunca esquece. O Corinthians bateu o Vasco
nos pênaltis e levou a taça. Gilmar Fubá, como todos os integrantes do
elenco, ganhou um belo prêmio financeiro pela conquista. Para o seu caso,
foram R$ 190 mil. À época, uma fortuna para o volante nascido em São
Mateus, zona leste (bem leste) de São Paulo.

Diz-se que, ao receber a grana, Gilmar Fubá não sabia o que fazer. Esta-
va indeciso quanto ao destino do dinheiro. Tinha receio de que o banco
poderia roubá-lo em caso de aplicar o montante em algum investimento.
Então, decidiu: compraria duas BMWs, idênticas. Ao menos é assim que a
lenda conta.

Olha, eu realmente não tenho nada contra carros alemães. Nem poderia,
né? Mas comprar dois iguais já é muito para mim.

Fubá não entendeu os ganhos advindos da diversificação. Diversificar é


aquela história: não colocar todos os ovos na mesma cesta.

Em Finanças, o clichê foi formalizado a partir do instrumental de


Harry Markowitz, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1989. A
ideia básica de Markowitz é de que o investidor pode montar um portfólio
com menos risco e mesmo retorno potencial a partir da diversificação de
ativos. E como, em tese, o indivíduo gosta de retorno e não gosta de risco,
estaria em vantagem.

.108.
Se Benjamin Graham e Warren Buffett são os representantes clássicos da
análise de ações, Harry Markowitz assume o protagonismo na ortodoxia
financeira quando o intuito não é escolher um ativo especificamente, mas
sim a montagem de todo o portfólio.

Este capítulo começa apresentando as ideias de Markowitz. O mote do


arcabouço analítico é demonstrar como a diversificação pode levar a ganhos
na montagem de portfólio, através de carteiras supostamente eficientes (má-
ximo retorno potencial para um determinado nível de risco ou mínimo
risco para um dado nível de retorno potencial).

Num segundo momento, revelaremos as fragilidades desse mode-


lo. Markowitz é apenas uma tentativa platônica de construir portfólios
ótimos. Através de métodos altamente sofisticados (e inócuos) tentam-se
definir retornos esperados e patamares de risco, quando isso se trata apenas
de um esforço pseudocientífico de, mais uma vez, domesticar a incerteza e
simplificar a realidade.

Por fim, o capítulo termina com uma proposta prática de montagem de


portfólios superiores aos sugeridos pela ortodoxia – cujos hábitos derivam
de uma arrogância epistemológica gigantesca. O novo método prescinde do
conhecimento do futuro, não reduz a realidade a um vídeogame, é mais sim-
ples e consegue capturar bons potenciais de valorização, sob perfil de risco
efetivamente conhecido e baixo.

.109.
A fronteira eficiente

Markowitz simboliza o asset allocation (alocação de ativos) ortodoxo.


Damos atenção ao caso justamente por simbolizar mais um fiel ícone do
acréscimo desnecessário de tecnicidade à prática dos investimentos.

A ideia inicial parte de uma visão crítica da tese de doutorado de John


Burr Williams, que, conforme já descrito, basicamente expõe as raízes do Mo-
delo de Fluxo de Caixa Descontado. A leitura questionadora de Markowitz
é de que a proposição de Williams não contempla uma análise de risco.
Filosoficamente, o insight de Markowitz teria partido de seus estudos de
filosofia em David Hume (embora possivelmente Hume, se lesse a proposta
de Markowitz, não concordaria).

O pilar de Markowitz é a noção de que o princípio da diversificação


poderia levar a uma redução de risco, sem perda de rendimento potencial.
Ao comprar dois ou mais ativos que não se movem exatamente na mesma
direção, o investidor conseguiria, para o mesmo nível de retorno esperado,
encontrar um perfil de risco menor.

Sob a hipótese de aversão a risco, o sujeito gosta de mais retorno e não


gosta de risco. Portanto, aplicando a noção de diversificação e observando
de forma correta as covariâncias (como os ativos se comportam juntos), po-
deríamos selecionar ativos de maneira ótima: o menor risco possível para
um dado retorno esperado; ou, analogamente, o maior retorno esperado
a partir de um dado nível de risco. Nesse contexto, a medida de risco é
definida a partir do desvio-padrão (ou variância) dos ativos, contempladas
as respectivas covariâncias.

.110.
Note que, para cada nível de retorno esperado predeterminado, estaria
associada uma combinação de ativos que daria o mínimo de risco possível.
A relação de todos os casos de menor risco para um dado retorno dá ori-
gem à chamada Fronteira Eficiente de Markowitz, marcada na linha azul
em negrito abaixo (o maior retorno esperado possível para cada nível de
risco pré-acordado):

Em resumo, o investidor escolherá uma cesta que:

1) Oferece o máximo retorno esperado para diferentes níveis de risco; e

2) Oferece o mínimo risco para diferentes níveis de retorno esperado.

.111.
Qual portfólio exatamente será escolhido dentro daqueles da fronteira
eficiente depende da preferência individual, de quanto o investidor quer
combinar entre risco e retorno. Qualquer um, desde que esteja na linha azul
em negrito, será eficiente.

Matematizando

Aos que desejam ver os argumentos técnicos pormenorizados, o investi-


dor se depara com um problema simples de maximização do retorno esperado
para um dado nível de risco. Ou, de forma análoga, de minimização do
risco para um dado nível de retorno esperado. A restrição é de que a soma
dos pesos investidos em cada ativo deve ser igual a 100%. O risco da carteira
é definido pelo desvio-padrão do portfólio:

, onde:

wi é o peso a ser alocado no ativo i,

wj é o peso a ser alocado no ativo j,

é a covariância entres os ativos i e j (quando i = j, temos a própria variância).

A restrição, no caso, é representada pela hipótese de que não há alavanca-


gem e que todo o capital é investido:

.112.
0 < wi < 1

E agregamos também a restrição de que o retorno esperado não é uma


variável, mas sim uma constante. Lembre-se que estamos minimizando o
risco para um “dado retorno”, que é dado por:

O retorno esperado do portfólio é a soma dos retornos esperados indivi-


duais, ponderados pelo peso aplicado em cada ativo.

Assim, assumindo que conhecemos o retorno esperado e o nível de risco


(hipótese de Markowitz), chegamos a um problema clássico de otimização.
Minimiza-se o risco do portfólio, sob as restrições de que a soma dos pesos
é unitária e o retorno esperado é um parâmetro exógeno definido a priori.

Markowitz leu hume?

Hoje completa um mês exato desde que fui pela última vez ao médico
do convênio. Normalmente, tolero calado esse tipo de coisa, mas aquela
situação foi demais para mim. No momento preciso em que eu cruzava a
porta do consultório, ainda quando entrava com meu pé direito na sala e
mantinha a outra perna para fora, o sujeito já preenchia minha receita.

.113.
Eu nem sequer havia cumprimentado o doutor e ele passava a prescrição,
sem nenhum tipo de diagnóstico. Não resisti e disparei:

- Doutor, o senhor me desculpe, mas essa daí é a minha receita? Eu ainda


nem fiz ‘aaaaa’. O senhor não olhou a minha garganta…

Ao que ele prontamente esclareceu:

- Não, não, caríssimo. Fique tranquilo. Esta prescrição aqui é do próximo


paciente. A sua já está pronta faz tempo. Pode levar. Pega aqui, ó.

Não dá para fazer medicina com pressa e superficialidade. Idem para


investimentos. Por isso fico perplexo com a falta de profundidade de
Markowitz. Entregamos um Nobel à toa. Para falar a verdade, foi o pri-
meiro prêmio concedido por uma derivada de primeira ordem, algo que se
estuda no primeiríssimo ano da faculdade (aquele em que vamos a todas
as festas e a nenhuma aula).

Em seu estudo seminal sobre a Fronteira Eficiente, Markowitz começa


assim: “assuma que o retorno esperado e o risco (variância) dos ativos são
conhecidos”. A partir daí, faz toda a derivação matemática do artigo, sob
a ideia de que retorno esperado e risco são de fato conhecidos.

Qual é o grande problema? Essas coisas não são parâmetros conhecidos a


priori. Ao contrário, são variáveis que precisam ser estimadas! E como vari-
ável estimada, deve vir acompanhada de um erro ou intervalo de confiança.
Markowitz simplesmente despreza esse ponto e desafia um dos pilares mais
triviais da estatística.

.114.
E o pior: se reconhecêssemos o óbvio, que os tais parâmetros precisa-
riam ser estimados e acompanhados de um erro nas equações, então seria
impossível derivar as coisas da forma como fez Markowitz. Não haveria
artigo, Nobel ou Fronteira Eficiente. O modelo é muito frágil em relação
às premissas.

Indo além, estamos diante de um sério – e comum – viés metodológico,


em que as hipóteses do modelo são escolhidas justamente para permitir a
formalização matemática desejada, e não para retratar a realidade de ma-
neira verossímil.

Ao final de seu trabalho clássico, Markowitz reconhece que retorno es-


perado e variância precisam ser estimados, por meio de uma combinação
de técnicas estatísticas e do “julgamento do homem prático”. Ênfase para
essa segunda parte. Depois de toda a atematização, precisamos recorrer ao
julgamento do homem, ou seja, à subjetividade.

Em outras palavras, se assumirmos conhecer o retorno esperado e o risco,


então vira um exercício de cálculo diferencial trivial. O problema é que não
conhecemos. E a maior dificuldade está justamente na estimação.

Essa crítica não é apenas nossa. O argumento, em outras palavras, apare-


ce formulado no Apêndice II do livro de Nassim Taleb sobre antifragilidade.
Mas isso é somente parte da dificuldade de aceitar Markowitz. Podemos
acrescentar outros elementos indigestos.

Ficarei um pouco técnico agora, mas vai passar rápido. Apenas dois pa-
rágrafos e volto a falar português.

.115.
A ideia de Fronteira Eficiente decorre de um modelo apoiado apenas
nos dois primeiros momentos da distribuição de probabilidade: na média
(retorno esperado) e na variância (risco). Ocorre, porém, que o preço dos
ativos em longo prazo depende ainda mais substancialmente dos próximos
momentos, como a curtose (grosso modo, dos eventos raros, aqueles bem
distantes da média – já vimos isso anteriormente com o Cisne Negro).

Esse argumento passa a ser aceito até mesmo pela ortodoxia em Finanças.
Robert Barro, por exemplo, que é um dos grandes expoentes desse pessoal,
em seu artigo Rare Events and Equity Premium, demonstra a importância
dos eventos raros no apreçamento das ações. Quando Markowitz trabalha
apenas com média e variância, despreza elementos essenciais da gestão de
risco. De novo, não estamos apenas simplificando a realidade, mas sim dis-
torcendo a danada.

Outro ponto importante é que variância não é risco. Lembre-se do


caso do Geraldo, nosso querido peru de natal. Ele foi alimentado por 360
dias, sem nenhuma variância. Se tomássemos o desvio-padrão de sua saú-
de como proxy para sua vitalidade no 25 de dezembro, teríamos inferido
que ele acordaria feliz e sadio, quando, em verdade, o bicho se tornara o
próprio jantar.

Como exemplos claros do argumento, podemos citar o lucro dos bancos


às vésperas de setembro de 2008 (marco da crise subprime), a estabilidade
das torres gêmeas do WTC na primeira semana de setembro de 2011, o
comportamento da indústria de Fukushima dias antes do desastre, a evolu-
ção das ações do setor elétrico brasileiro antes do anúncio da MP 579, que
mudou uma série de regras do segmento, e por aí vai. Os maiores riscos não
são precedidos por maiores variâncias. Eles acontecem de súbito.

.116.
As porradas e derretimentos do mercado acabam sendo uma das repre-
sentações canônicas em finanças do problema de indução proposto por
David Hume (lembra dele?). Markowitz, que estudara filosofia e se dizia
muito interessado em Hume, parece não ter entendido bem a coisa.

Para esgotar as críticas, temos algo ainda mais traumático. Quem desper-
ta os tais ganhos da diversificação propostos por Markowitz são as covari-
âncias. Grosso modo, covariâncias descrevem como um ativo se mexe em
relação a outro. Em tese, você combina ativos que não se movem na mesma
direção e, com isso, consegue preservar retorno esperado e reduzir seu risco.

Acontece que, nas crises, exatamente quando você está mais precisando
do dinheiro, as correlações entre os ativos vão todas para perto de 100%.
Tudo se move na mesma direção e rompe os históricos padronizados. Como
bem definiu Guimarães Rosa, Deus é traiçoeiro. Ele faz é na lei do mansi-
nho. Mas o diabo é às brutas. Vem a crise e toda a construção da Fronteira
Eficiente é arruinada no primeiro sopro.

Alfred nobel bipolar

Markowitz não é apenas um mapa incompleto ou impreciso. É um mapa


errado. E, como diria Taleb, um mapa errado é pior do que não ter mapa
nenhum. Por isso, precisamos abandonar essa ideia. Quando você mais pre-
cisar dela, estará sozinho e perdido.

Não há como combinar ativos de risco médio achando que isso vai re-
sultar numa diminuição do risco total do portfólio, justamente porque os

.117.
padrões históricos de correlação são quebrados. Assim como para qualquer
outra variância financeira, o futuro das covariâncias também é incerto.

Portanto, só há um caminho confiável para termos portfólio de baixo


risco: alocar grande parte da carteira num ativo de alta segurança. Isso é bem
diferente do que combinar papéis que, em teoria, se mexem em direções
opostas, porque, em várias situações, eles vão caminhar juntos.

Um portfólio pouco arriscado há de trazer necessariamente algo como


90% a 95% em papéis de baixíssimo risco, e que pagam acima da inflação.
Exemplos clássicos em títulos do Tesouro americano, poupança ou mesmo
notas soberanas brasileiras (assumindo aqui o carregamento do título até
o final do vencimento, sem exposição às nuances da marcação a mercado
diária). Somente assim você poderá ter certeza da preservação da parte mais
expressiva do seu patrimônio.

E como fazer isso sem abrir mão de retorno potencial? Use o restante
(5% a 10%) em aplicações altamente arriscadas, com a óbvia contrapartida
de elevado retorno potencial.

Falamos isso sem a pretensão de conhecer probabilidades e todos os


cenários possíveis para esses ativos de risco. Assuma sua ignorância e ado-
te a postura mais humilde/simples entre todas: pegue essa pequena fatia
de seu portfólio e divida equitativamente pelos mais arriscados ativos
que encontrar (inteligentemente arriscados), exigindo em troca um belo
retorno potencial.

Formalmente, a estratégia é conhecida por 1/N. Repartimos o montante


total da parcela dedicada a risco (1) por N (número de ativos).

.118.
A seleção de ativos deve atender justamente ao ponto nevrálgico deste
livro: quanto eu perco em caso de estar errado (deve ser pouco) e quanto eu
ganho estando certo (deve ser muito). Representação canônica da antifragi-
lidade. Leve N o mais perto do infinito que puder. Isso vai maximizar suas
chances de acerto. Por construção, apenas um ou outro tiro certeiro será
suficiente para sobrepujar vários pequenos erros.

No próximo capítulo, apresentaremos exemplos práticos para compor


essa fatia arriscada da carteira – inclusive com resultados reais de sucesso.

.119.
VI. Opcionalidades

Chegamos enfim ao capítulo mais pragmático do livro – isso o torna


especialmente interessante para os leitores sedentos por exemplos reais e
aplicações depois de tanta teoria. Em causa própria, argumentamos que nos-
sa teoria também se faz prática, à medida que mata a cobra e mostra o pau.
Logo, o que veremos aqui é apenas o sacramentar dos conceitos explorados
desde o início desta jornada em prol do investimento em Bolsa.

Antes, porém, devo contar uma história pessoal. Quando estávamos


ainda a imaginar esta mesma escrita que agora o alcança, a editora deu uma
sugestão: por que vocês não misturam com os insights financeiros algumas
histórias pessoais?

.121.
Ao contrário de outros editores, a Renata até que foi gentil nesse sentido,
pois não nos obrigou a nada. Tínhamos o direito de compartilhar essas
idiossincrasias, mas nunca o dever. É assim que tem de ser a escrita: direitos
em vez de deveres. Eu escolho as coisas que quero contar sobre investimen-
tos, você escolhe se quer ouvir ou não. Ao leitor – principalmente – cabe a
prerrogativa de fechar o livro ou seguir adiante, ansioso pelo desfecho da
história, para logo depois lamentar que acabou. E quando acaba, começa
outra.

Nesta eu tinha uns cinco anos, estava começando a me apaixonar pela


clássica Coleção Vagalume da Editora Ática. Pensando bem, mentira – eu
já tinha me apaixonado faz tempo, estava agora reconhecidamente viciado.
De olhos vermelhos, fechei o Escaravelho do Diabo, fui tomar groselha
(naquela época, as crianças gostavam de groselha) e na volta me aguardava
A Ilha Perdida.

Minha mãe começou a desconfiar daquela situação. Era fato que eu abria
os livros, folheava cada página, movimentando os olhos linha por linha, da
esquerda para a direita, cima pra baixo. Fazia isso na frente de todos, sem
pudor algum, tamanho era meu grau de dependência. Mas e daí?

Que garantia a Dona Márcia tinha de que eu estava entendendo a Coleção


Vagalume? Ler é uma coisa, interpretar e assimilar são outras bem adiante.
Ler a gente faz com a parte rápida do cérebro, e o resto cabe à parte devagar.

Não era tanto uma preocupação, era curiosidade. Minha mãe estava curio-
sa de saber se aquilo era real, ou se era um simulacro. Depois, como analista
de ações, herdei essa mesma curiosidade, sem a qual não posso trabalhar.

.122.
Antes de dormir, ela se sentou na ponta da minha cama e pediu para eu
ler um pouco em voz alta aquela história de uma ilha perdida. Segundo me
consta, foi um pedido natural, ao qual eu nunca questionei. Dois meninos
estavam passando férias em uma fazenda, à beira de um rio, e dali podiam
enxergar uma ilha, do outro lado do rio. Obviamente, não lhes bastava con-
templar a ilha à distância: queriam ir até lá.

Aquecendo os motores

Num curso tradicional de Finanças (MBA também vale), os alunos nor-


malmente ouvem muito sobre ações, opções e demais ativos financeiros
– mas pouco sobre opcionalidades. E raramente aprendem a pensar em
opcionalidades de investimento.

Talvez porque seja algo que transborde a sala de aula, assimilável apenas
com prática e experiência. E, mesmo assim, não qualquer tipo de experi-
ência. Opcionalidades só se tornam nítidas para as pessoas que acumulam
experiência cogitando (i) o que foi, mas poderia não ter sido e (ii) o que
não foi, mas poderia ter sido. Essa atitude quântica em relação ao passado,
de várias possibilidades, ajuda você a contemplar o futuro de forma mais
humilde e plural. Por conseguinte, o ajuda a investir melhor.

Por meio de um livro, não há como exercitar essa experiência diretamente.


Por isso, recomendamos: faça você mesmo. Comece colocando muita grana
na poupança e pouca grana em ações. Ou, com algo mais de arrojo, invista
bastante em NTN-Bs e um bocadito em opções. As lições de alocação apresen-
tadas ao fim do Capítulo V servem tanto ao profissional quanto ao iniciante.

.123.
Investir em renda variável não é coisa de expert nem coisa arriscada, se feita
na dose certa.

Nada substituirá essa prática para a qual o convocamos. Todavia, um


aquecimento antes de começar pode sim tornar o movimento mais fluido. É
o que faremos aqui, a partir de agora. Vamos aquecer os motores por meio
de três exemplos reais.

Como primeiro passo, apresentarei uma tese geral de investimento ampa-


rada nas eleições presidenciais de 2014. Estou ciente de que algum incauto
lendo este livro depois do pleito poderá julgar essa abordagem inicial como
inútil e ultrapassada. Porém, a essência epistemológica e didática continuará
a mesma até o final dos tempos, independentemente de já sabermos que
Dilma ganhou, foi impedida, e muita coisa mudou desde então.

Numa segunda etapa, adentraremos ao investimento em ações através


de dois casos opostos: o de uma empresa que oferece retornos frágeis, e o
de outra que oferece retornos antifrágeis. Veremos como a primeira pode
ser comparada ao peru de Natal de Bertrand Russell, enquanto a segunda é
exatamente o que buscamos enquanto adeptos de uma nova escola de value
investing.

Por fim, detalharei aquele que é talvez o instrumental financeiro mais


afinado ao conceito de antifragilidade: o mercado de opções. Vamos conferir
estratégias antifrágeis montadas na Carteira de Opções da Empiricus – algu-
mas com ganhos e outras com perdas. Se os portfólios são sempre pensados
de modo a ter pequenos prejuízos e grandes lucros, o agregado acaba se
tornando bem vantajoso.

.124.
De A a Z, o investidor iniciante poderá replicar facilmente configurações
tais quais as sugeridas pelo exemplo eleitoral. Ao intermediário, o discerni-
mento entre ações frágeis e antifrágeis haverá de se tornar habitual. E aquele
investidor mais avançado não terá problemas ao desbravar o mercado de
opções, desde que munido dos preceitos de perdas limitadas face a ganhos
ilimitados. Voilà!

Quem vai ganhar a eleição?

Evocada como provocação, esta é justamente a pergunta que você não vai
querer formular – e muito menos responder! – num investimento em ano de
corrida presidencial. Você não quer nem pode saber quem vai ganhar uma
eleição.

Sempre que a tentação de vidente ameaçar tomar conta do seu cérebro


(ou estômago), lembre-se do que aprendemos desde o início do livro: quase
sempre ficamos pobres ambicionando prever o futuro, mas podemos nos
tornar milionários analisando diferentes cenários, com respectivas probabi-
lidades e impactos.

Pouco importa quem vai ganhar a eleição – pode ser o PT, o PSDB, o
PMDB, a REDE etc. Não entraremos em qualquer mérito político. Nosso
esforço será no sentido de imaginar o que ocorreria com o mercado brasi-
leiro em cada uma das hipóteses. Obviamente, faremos isso aqui de maneira
simples, mas já suficientemente ponderada a ponto de captarmos as ideias
essenciais.

.125.
Aproximadamente um ano antes do pleito de 2014, as pesquisas de inten-
ção de voto apontavam Dilma como favorita. Esses números podiam mudar
radicalmente até a ida às urnas, de modo que não vamos nos ater a percen-
tuais específicos. Para efeito deste exercício, consideraremos tão somente que
Dilma Rousseff, até aquele momento, era a líder do páreo, com PSDB e PSB
figurando como concorrentes.

Fosse eu analista político, faria distinções elaboradas entre tucanos e


pessebistas. Mas como sou analista financeiro, não vou me aventurar por
aquelas bandas. A mim, basta a impressão de que PSDB e PSB representavam
alternativas mais amigáveis ao ambiente de mercado. Em caráter ilustrativo,
diria que a Faria Lima preferia Aécio ou Marina.

Depois de tantas rixas com o setor privado, canetadas regulatórias e peda-


ladas nos gastos públicos, Dilma perdeu moral com os empresários e finan-
cistas, brasileiros ou gringos. Nossa avaliação, portanto, era de que a reelei-
ção de Dilma Rousseff tenderia a gerar estresse adicional. Grosso modo, essa
indisposição seria traduzida em menor crescimento do PIB, valorização do
dólar frente ao real, elevação dos juros futuros e queda da Bolsa.

Assim chegávamos a duas situações possíveis. No cenário mais provável,


Dilma seria reeleita e o mercado brasileiro aprofundaria os sintomas de
estresse já sinalizados: Bolsa pra baixo, juros futuros pra cima, dólar pra
cima. No cenário menos provável, a oposição venceria a disputa e o mercado
agradeceria com Bolsa pra cima, juros futuros pra baixo e dólar pra baixo.

Como investidor, o que você faria diante dessa encruzilhada? Ficar 100%
alocado em ações, por exemplo, era uma escolha péssima, já que a conjun-
tura mais provável se mostrava bem capaz de derrubar o Ibovespa. Nessas

.126.
horas, eu coloco minha paixão por Bolsa em standby, não adianta ser fanáti-
co ou teimoso. Ao mesmo tempo, não gostaria de estar 0% posicionado em
ações, pois quero ter alguma exposição ao futuro em que a oposição vence as
eleições, mesmo que as chances de isso acontecer sejam menores.

Logo, a parte mais arriscada da minha carteira total (10% a 15%) poderia
ser preenchida por ações – e também opções, conforme veremos adiante.
Essa dose modesta não nos machuca muito no cenário-base, e pode trazer
um ganho interessante no cenário alternativo.

Em paralelo, o grosso das aplicações estaria religiosamente distribuído


em ativos de baixo risco. Diante da perspectiva predominante de elevação
dos juros, eu gostaria de carregar uma boa posição (65% a 70%) em títulos
pós-fixados ou em instrumentos simples de renda fixa que sigam o DI. Essa
é uma escolha defensiva por si só, que preserva meu poder de compra, mas
também capaz de trazer lucros substanciais caso os juros disparem. Por ou-
tro lado, se Dilma ficar para titia, acho difícil que ocorra uma queda drástica
dos juros, a ponto de provocar prejuízos substanciais.

Complementando o conservadorismo dos pós-fixados, soa astuta uma


aposta em ativos denominados em dólar (15% a 25%). A moeda americana
nos protegeria razoavelmente bem da inflação e poderia tirar vantagem de
um evento cambial extremo. Para boa parte das pessoas (e sobretudo dos
turistas), a esticada do dólar é traumatizante. Mas alguns poucos investi-
dores perspicazes encheram os bolsos em 2008, quando o dólar disparou
rapidamente de R$ 1,50 para R$ 2,50. Entendíamos que se o dólar viesse a
subir no cenário pró Dilma, subiria bastante; já se viesse a cair, não cairia
tão intensamente num primeiro momento.

.127.
Com isso, formamos um portfólio tão simples quanto possível – qual-
quer investidor poderia replicá-lo numa boa. Um pouco de ações, um pouco
de dólar e bastante renda fixa pós. De modo trivial, esse mix poderia ser
traduzido em 15% de ETF de Ibovespa (fundo de índice que replica a Bolsa
brasileira), 20% de fundo cambial e 65% de um fundo DI.

Se o cenário de maior probabilidade se confirmasse, você estaria devi-


damente protegido e poderia inclusive ganhar com o estresse do mercado,
graças à sua estratégia antifrágil. Em contrapartida, se triunfasse o cenário
remoto, talvez você deixaria de ganhar algo, mas não sofreria tanto e teria
tempo para se ajustar a um panorama mais otimista.

Percebe como nada disso tem a ver com boca de urna?

Ações assimétricas

Fundamos a Empiricus em novembro de 2009. Dizem que são neces-


sárias pelo menos 10 mil horas dedicadas a um mesmo ofício até que se
comece a desenvolver verdadeira aptidão. Com base em 252 dias úteis por
ano, 8 horas de labuta por dia útil, esse ponto de inflexão ocorreu em
novembro de 2014.

Legal para quem passou a acompanhar nosso research de 2015 em diante,


mas e quanto aos leitores da Empiricus até 2014 – aqueles que permitiram
que nosso trabalho florescesse, e que mais mereceriam recomendações lucra-
tivas em troca do voto original de confiança?

.128.
Para nosso bem e felicidade geral da nação, esses primeiros assinantes
corajosos receberam centenas de dicas de investimento que pouco depen-
diam de nossa pretensa aptidão. Pois preferimos, desde o início, privilegiar
ações de assimetria favorável. O que chamamos aqui de PPGN: Pequenas
Perdas, Grandes Negócios.

Em sua concepção rigorosa, o value investing não deve estar preocupado


apenas com ações baratas. E daí se a ação está barata? Pode ser um Monza
detonado com cara de novo, não pode? Por isso, o genuíno investidor de
valor tem que abrir mão da obsessão pelo zero absoluto. Sozinho, o valor é
uma armadilha.

Assimetria favorável funciona assim: você não se importa de perder pou-


co com uma ação se estiver jogando também a contrapartida de um possível
ganho estrondoso. Sob essa ótica, despontam duas alternativas sedutoras:

(i) Ações muito descontadas, cujo preço já considera o pior cenário possível. O
chão está perto e o teto está longe. Quanto mais volatilidade, melhor. Nesses casos,
o acionista pode ficar feliz de antemão ao saber que sua empresa saiu no jornal,
mesmo antes de verificar se a notícia é boa ou ruim.

(ii) Ações não necessariamente descontadas (podem inclusive parecer caras), mas
que guardam cartas na manga alheias à percepção do investidor comum. Talvez haja
uma probabilidade ínfima de 1% da empresa ganhar um novo contrato que dobrará
suas receitas. Na prática, ninguém liga para probabilidades de 1%. Mas pense só o
que seria dobrar as receitas numa tacada só…

Lógico que não dá pra acertar sempre. Porém, na média, se selecionarmos


várias ações com assimetrias favoráveis, a lei dos grandes números acabará

.129.
por consolidar um resultado vantajoso. Normalmente demora, exige paciên-
cia, mas a passagem do tempo só ajuda.

Em 2009, estudando Valid (então denominada ABNote), identificamos


um raro caso de assimetria favorável. Na época, a empresa tinha valor de
mercado de R$ 970 milhões e fazia lucros anuais da ordem de R$ 80 milhões.
Grosso modo, portanto, encontrávamos uma relação Preço sobre Lucro de
12x. Não era exatamente um exemplão de desconto em Bolsa. Cadê a parte
favorável da assimetria?

Uai, nas opcionalidades! Foram elas que nos motivaram a ir adiante com
a recomendação de compra, mesmo sem respaldo externo (praticamente ne-
nhum analista do sell side cobria ABNote).

A empresa fechou 2009 com pequena elevação anual das receitas


(+4,1%), queda do Ebitda (-12,4%), mas aumento considerável dos lucros
(+9,3%). Por si só, não é uma configuração muito animadora, mas nota-
mos que os resultados foram alcançados mesmo num ano bem difícil para
seus negócios.

Ao mesmo tempo em que a ABNote lamentava o declínio do segmento


de cartões indutivos utilizados nos orelhões (lembra deles?), já assentava as
bases para uma nova aposta nos SIM Cards hoje amplamente usados em ce-
lulares e smartphones. Para isso, contou com a aquisição da Microeletrónica,
uma empresa espanhola com baita know-how de cartões chipados e uma
carteira de clientes com os principais players de telecom. Aliás, a tecnologia
de cartões chipados ajudaria também a substituir o velho modelo de cartões
magnéticos empregados pelos bancos.

.130.
Em paralelo, a parte de Serviços Gráficos passava por uma profunda
reestruturação, livrando-se de custos excessivos com impressos e dando um
choque de gestão via concentração na planta de Sorocaba. Os benefícios
dessa reestruturação ainda não eram evidentes, mas indicavam no mínimo
um bom corte de custos.

Ademais, do ponto de vista societário, o antigo controlador (American


Banknote Corp) havia acabado de zerar sua participação, transformando
ABNote numa autêntica corporation listada, com 100% das ações em cir-
culação. Prato cheio para investidores institucionais que enxergassem valor
ali, e quisessem montar participações relevantes – como veio a ser o caso
da Vinci e da Aberdeen.

Então tínhamos três opcionalidades interessantes em vista:

(i) Forte crescimento de cartões chipados.

(ii) Reestruturação de serviços gráficos.

(iii) Institucionais atraídos por um float livre, leve e solto.

Como lastro concreto a essas opcionalidades, sabíamos que o business


reloginho de Sistemas de Identificação – responsável por metade do Ebi-
tda consolidado – não deixaria a peteca cair caso as inovações falhassem.
Logo, era como se comprássemos Sistemas de Identificação por R$ 18,90
(cotação de ABNB na época) e levássemos junto algumas oportunidades
valiosas, dadas praticamente de graça. Baixo downside frente a uma chance
de upside significativa.

.131.
No final de 2013, Valid respondia por um valor de mercado acima
de R$ 2 bilhões, mais que o dobro dos R$ 970 milhões que marcaram o
início de nossa recomendação. Ou seja, ganho superior a 100% para o
acionista que conferiu na pele a velha ABNote se transformando nessa
nova Valid.

Parece o fim da história, mas não é. Identificamos novas opcionalidades em


pauta, capazes de levar a ação a outro salto emblemático nos próximos três anos.
Particularmente, o ramp up de certificação digital e da subsidiária americana.

Por justiça equânime, não vamos falar aqui só de uma história que deu
certo. Afinal, opcionalidades também podem dar errado. O importante não
é comprá-las com chance nula de fracasso, mas sim de forma que os ganhos
potenciais superem muito as perdas potenciais. Fazendo isso em vários casos
(o 1/N do Capítulo V), a média lhe será agradável.

Em 2011, meses depois do IPO, iniciamos cobertura de HRT, uma em-


presa pré-operacional de petróleo. HRT captou R$ 2,5 bilhões em recursos
junto ao mercado visando desenvolver concessões já obtidas na Bacia do
Solimões e nas águas profundas da Namíbia.

Com essa grana, a empresa teve bala para fazer 14 perfurações, sendo 11
no Solimões e 3 na Namíbia. Segundo estudos feitos pela D&M – principal
certificadora global de recursos de óleo & gás –, a probabilidade a priori de su-
cesso comercial em cada um desses furos era de aproximadamente 25%. Isso
posto, a probabilidade complementar de fracasso era, naturalmente, de 75%.

Compondo as chances de fracasso nas 14 perfurações, chegamos a uma


probabilidade de 1,8% (0,75^14). De modo complementar, havia uma chan-

.132.
ce de 98,2% da empresa alcançar sucesso comercial com hidrocarbonetos em
ao menos um dos 14 eventos. Para nós, esse mapa estatístico oferecia óbvias
oportunidades de destravar valor. Por conseguinte, recomendamos compra
de HRTP lá em 2011, quando ação valia R$ 27,70.

Ao final de 2013, as ações de HRT não valiam mais do que R$ 1 em


Bolsa. Absolutamente nenhuma das perfurações deu certo – aquele 1,8% se
transformou em 100% dois anos depois. Somou-se a isso a queima de caixa
no meio do caminho, com gastos exagerados e um fundador se empolgan-
do nas expectativas passadas ao mercado (o que parece ser um denominador
comum para junior oils).

Já a Valid era a oitava melhor indicação de nosso track record, com ga-
nhos acumulados de 168%, incluídos aí os proventos. Na outra ponta, HRT
ocupava a lanterninha da Empiricus, com prejuízo de 97%. Se o investidor
tivesse colocado R$ 10.000 divididos igualmente em cada uma das ações,
teria chegado a R$ 13.550 – valorização de 35,5% no período. Embora
simplificado, este é um exemplo real dos benefícios da assimetria enquanto
repartida entre diversos casos.

Antifrágil na veia

Opções constituem a própria materialização do conceito de antifragili-


dade. Opções na terra, antifragilidade no céu. Contudo, é preciso manusear
bem essa ferramenta, que pode ser tão virtuosa quanto nociva no tocante ao
gerenciamento de riscos.

.133.
Em nossas estratégias de derivativos, limitamo-nos a indicar apenas a
compra de opções, nunca operamos vendidos em opções. Recomendamos
compra de calls (opções de compra) e de puts (opções de venda). Quem
compra uma opção detém um direito. Quem vende uma opção assume
uma obrigação. Deter direitos é antifrágil, assumir obrigações é frágil.

A cada semana, atualizamos a Carteira de Opções da Empiricus com opor-


tunidades baratas de calls e puts fora do dinheiro. Aos menos familiarizados
com o vernáculo, isso quer dizer que recomendamos opções relativamente
distantes de seus preços de exercício, e cuja precificação corrente implica
perdas. Se nada diferente acontecer, essas opções viram pó (valem zero). Em
contrapartida, se houver eventos extremos, elas podem disparar num curto
intervalo de tempo, por vezes mais que dobrando de valor. Desse modo, a
volatilidade está a nosso favor, e temos perdas limitadas (o custo da opção)
versus ganhos potencialmente ilimitados.

Assim como na seção sobre ações assimétricas, ilustraremos aqui uma


performance positiva da Carteira de Opções, e outra performance negati-
va. Ambas efetivamente ocorreram, foram sugeridas e reportadas aos nos-
sos assinantes.

Começando pelo lado bom (a carne é fraca), nosso primeiro exemplo se


refere a uma valorização semanal de 83,27%. Contudo, o que mais nos deixa
contentes neste exemplo é a maneira com que essa valorização foi atingida,
consoante com uma típica manifestação de antifragilidade.

Vejamos:

.134.
Carteira de 29 de julho a 2 de agosto
Opção Vencimento Entrada Saída Var Aplicado Recebido
bvmfi14 (call) 16/set 0.04 0.04 0.00% R$200 R$200
itubh32 (call) 19/ago 0.04 0.02 -50.00% R$200 R$100
ogxpi75 (call) 16/set 0.10 0.06 -40.00% R$200 R$120
oibri5 (call) 16/set 0.12 0.12 0.00% R$200 R$200
valeh32 (call) 19/ago 0.06 0.51 750.00% R$200 R$1,700
pdgrt17 (put) 19/ago 0.05 0.04 -20.00% R$200 R$160
petrt16 (put) 19/ago 0.07 0.03 -57.14% R$200 R$86
agregado 83.27% R$1,400 R$2,566

O que aconteceu com as sete componentes dessa carteira?

Temos que separar a resposta em duas partes bem discrepantes. Para seis das
opções relacionadas, os resultados foram estáveis ou negativos. Enquanto isso,
uma – e apenas uma – das opções registrou alta impressionante de 750%. Não
me importo de perder um pouco com seis opções se lucrar muito com a sétima.

Em termos gerais, é fácil perceber que uma opção pode – na pior das hi-
póteses – cair 100%; e pode – na melhor das hipóteses – subir infinitamente.
Isso é assimetria favorável na veia.

Partindo agora para o lado ruim, lembramo-nos do mês de setembro,


quando uma reunião especial do Federal Reserve prometia assombrar o mer-
cado. No dia 18 de setembro de 2013, o Banco Central dos EUA poderia
anunciar passos concretos para reduzir seu programa de estímulos quanti-
tativos. Graças às declarações prévias de Ben Bernanke, um anúncio desse
tipo era largamente esperado, e poderia machucar bastante a Bolsa brasileira.

.135.
Pensando nisso, fugimos um pouco do script e montamos um portfólio
de opções bem defensivo para a semana de 16 a 20 de setembro, quase que
inteiramente concentrado em puts. Usamos a carteira para um outro fim
além da ganância: o de proteção.

Opções também podem funcionar como ótimos instrumentos de seguro.


E seguro é assim: você reclama de pagar o prêmio sem ter que usá-lo, mas
esse é o melhor cenário possível. Ninguém fica feliz porque bateu o carro e
poderá, enfim, acionar o benefício da seguradora.

Bernanke veio a público no dia 18, mas não falou nada, nenhuma no-
vidade acerca de mudanças nos estímulos. Em resposta, a Bolsa brasileira
disparou 2,64%, detonando nossas puts.

Carteira de 16 a 20 de setembro
Opção Vencimento Entrada Saída Var Aplicado Recebido
petrj21 (call) 21/out 0.08 0.1 25.00% R$200 R$250
valej37 (call) 21/out 0.16 0.08 -50.00% R$200 R$100
bbasv23 (put) 21/out 0.15 0.05 -66.67% R$200 R$67
bbdcv27 (put) 21/out 0.11 0.06 -45.45% R$200 R$109
bvmfv12 (put) 21/out 0.17 0.18 5.88% R$200 R$212
petrv15 (put) 21/out 0.08 0.04 -50.00% R$200 R$100
valev27 (put) 21/out 0.06 0.04 -33.33% R$200 R$133
agregado -30.65% R$1400 R$971

.136.
Uma queda acumulada de 30,65% foi o preço que pagamos para dormir
tranquilos naqueles dias agitados. Olhando depois, à distância, parece ape-
nas um prejuízo de 30%. Na hora, porém, as perdas (indiscutíveis) tiveram
sua razão de ser – o que é mais do que podemos dizer sobre a maioria das
perdas em Bolsa.

.137.
Epílogo

Você já comeu tutu de feijão?

Olha, se você nunca provou esse prato feito pela minha cozinheira, então
me desculpe, pois você nunca comeu. A Solange, que é mineira, faz o me-
lhor, o único e o verdadeiro tutu do Planeta Terra.

Ela não tem uma teoria para cozinhar. Simplesmente vai lá e faz. E não
adianta tentar explicar isso.

No geral, a irmã da Solange tem dotes culinários mais sofisticados. Mas


tutu de feijão, não. A Solange já tentou “ensinar” a Sélia, mas não fica a
mesma coisa. Não adianta.

.139.
A diferença entre um bom tutu e “O Tutu da Solange” é inexplicável;
entra justamente na parte do conhecimento tácito. Há algo na Solange
relacionado à sua propria competência e às experiências individuais que
ela já viveu.

Ler uma receita e tentar reproduzir com fidelidade um determinado


prato é industrializar uma arte. Não existem teorias sobre como cozinhar.
Basicamente, cozinhamos. Essa arte pertence aos praticantes do fogão, e
não aos teóricos do livro de receitas.

Imagine-se precisando escolher entre provar um prato feito por uma


pessoa que cozinha com gosto há 30 anos ou conferir uma suposta delícia
elaborada por um recém-formado na faculdade de gastronomia, com exce-
lentes notas no boletim. Responda honestamente: você fica com qual?

Tenho 200% mais confiança em quem, de fato, cozinha do que em quem


estuda culinária.

Em finanças, é exatamente o mesmo, e com o agravante de que as recei-


tas estão confusas; o mapa carregado no bolso dos financistas profissionais
oferece direções erradas. Não dispor de mapa é melhor do que ter um
mapa errado.

Entendemos, portanto, que a arte de investir pertence aos investidores,


e não aos teóricos sobre investimentos. Isso é mais ético também, pois uma
opinião sem exposição vale zero. Só o investidor – e não o teórico de finan-
ças – coloca o dele na reta. Ele acha o ativo bom, vai lá e compra. Expõe-se
aos mesmos riscos que recomendaria a um terceiro. Se eu recomendo para
você e não compro, então minha sugestão não serve.

.140.
Por isso, aprenda a investir investindo. Limite suas perdas, mas erre. Para
acertar em cheio, você precisará ter errado muito. Isso é parte do processo.
Felizmente, tudo o que você precisa é de poucos grandes acertos em meio a
vários pequenos erros.

A sabedoria oriental é muito superior à nossa. Os japoneses dizem: caia


sete vezes, levante oito. A arrogância de supostamente adivinhar o futuro e
querer acertar sempre é apenas uma questão de ego.

Terminamos quase da mesma forma com que começamos. Não com o


pai de Kafka, mas sim com Clarice:

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece


como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa
qualquer entendimento”.

Você não precisa estar certo, e muito menos de um ego milionário. Você
só precisa entrar em campo. Não há um sujeito sequer que tenha enriqueci-
do em Bolsa sem tentar enriquecer.

.141.
Felipe Miranda
Trabalhou na equipe de Sales de derivativos do Deutsche Bank e como
analista na Monitor Clipper Partners. Foi professor da FGV-SP. Economista
pela FEA-USP e mestre em Finanças na FGV-SP.

Rodolfo Amstalden
Foi consultor na International Paper, pesquisador da ANP e professor
da Faculdade Cásper Líbero. É bacharel em Economia pela FEA-USP, em
Jornalismo pela Cásper Líbero e mestre em Finanças pela FGV-EESP. Cursou
graduação em Física no IF-USP.

Fundada em 2009, a Empiricus é uma casa independente de análise de


investimentos. Queremos ajudá-lo a se tornar um investidor mais esperto e
bem remunerado - ambos requisistos essenciais na busca de independência
funanceira. Conheça mais em www.empiricus.com.br

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