Você está na página 1de 80

A NOITE DE NATAL

Sophia de Mello Breyner Andresen

O AMIGO
A FESTA
A ESTRELA

Fotografias e composição:
Manuela DL Ramos, Outubro 2010
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Era uma vez uma casa pintada de


amarelo com um jardim à volta.

No jardim havia tílias, bétulas,


um cedro muito antigo, uma
cerejeira e dois plátanos.

Fotografia: Manuela DL Ramos

2
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Era debaixo do cedro que Joana


brincava.

Com musgo e ervas e paus fazia


muitas casas pequenas encostadas ao
grande tronco escuro.

Depois imaginava os anõezinhos que,


se existissem, poderiam morar
naquelas casas. E fazia uma casa
maior e mais complicada para o rei
dos anões. Fotografia: Manuela DL Ramos

3
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em


quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às
vezes, ela ia a uma festa.

Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua


casa não eram realmente amigos: eram visitas.

Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no


seu jardim.

4
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia: Manuela DL Ramos


5
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros


meninos. Só sabia estar sozinha.
Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.
Joana estava encarrapitada no muro.

Fotografia: Manuela DL Ramos

6
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E passou pela rua um garoto.


Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam
como duas estrelas.
Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do
Outono.

0 coração de Joana deu um pulo na garganta.


— Ah! — disse ela.
E pensou:
«Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.»

E do alto do muro chamou-o:


— Bom dia.

7
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

0 garoto voltou a cabeça, sorriu e


respondeu:
— Bom dia!

Ficaram os dois um momento


calados.
Depois Joana perguntou:
— Como é que te chamas?
— Manuel — respondeu o garoto.
— Eu chamo-me Joana.

8
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E de novo entre os dois, leve e


aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se
tocar ao longe o sino de uma igreja.
Até que o garoto disse:
— 0 teu jardim é muito bonito.
— É, vem ver.

Joana desceu do muro e foi abrir o


portão.

Fotografia: Manuela DL Ramos

9
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E foram os dois pelo jardim


fora.

0 rapazinho olhava uma por


uma cada coisa.

Joana mostrou-
-lhe o tanque e os peixes
vermelhos.
Fotografia: Manuela DL Ramos

10
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Mostrou-Ihe o pomar, as
laranjeiras e a horta.

E chamou os cães para ele os


conhecer.

E mostrou-Ihe a casa da lenha


onde dormia um gato. Fotografia: Manuela DL Ramos

11
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E mostrou-lhe todas as árvores…

Fotografias: Manuela DL Ramos


Em primeiro plano o majestoso Liquidâmbar 12
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografias: Manuela DL Ramos

Vista do Liquidâmbar a aprtir do Jardim dos Jotas 13


A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

…e as relvas e as flores.

Fotografias: Manuela DL Ramos

14
Jardim dos Jotas
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Flores de Kalmia latifolia Flores de Jacarandá

Fotografias: Manuela DL Ramos


15
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Jardim dos "Jotas" visto do caramanchão das glicínias

Fotografias: Manuela DL Ramos

16
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— É lindo, é lindo — dizia o


rapazinho gravemente.

— Aqui — disse Joana — é o


cedro. É aqui que eu brinco.

E sentaram-se sob a sombra


redonda do cedro.
Fotografia: Manuela DL Ramos

17
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

A luz da manhã rodeava o jardim:


tudo estava cheio de paz e de
frescura.

Às vezes, do alto
de uma tília caía
uma folha amarela
que dava voltas no ar.

Joana foi buscar pedras, paus e


musgo e começaram os dois a
construir a casa do rei
dos anões. Fotografia: Manuela DL Ramos

18
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Brincaram assim durante muito tempo.


Até que ao longe apitou uma fábrica.
— Meio-dia — disse o garoto — ,
tenho de me ir embora.
— Onde é que tu moras?
— Além nos pinhais.
— É lá a tua casa?
— É, mas não é bem uma casa.
— Então? Fotografia: Manuela DL Ramos

19
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— 0 meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe
trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.
— Mas à noite onde é que dormes?
— 0 dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma
vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.
— E onde é que brincas?
— Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e
eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com
jornais velhos, com trapos e com pedras.

20
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os


animais e com as fIores. Pode-se brincar em toda a parte.

— Mas eu não posso sair


deste jardim!
Volta amanhã
para brincar
comigo.

Fotografia: Manuela DL Ramos


21
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E daí em diante todas as manhãs o


rapazinho passava pela rua. Joana
esperava-o empoleirada em cima do
muro.

Abria-lhe a porta e
iam os dois sentar-se sob a sombra
redonda do cedro.

E foi assim que Joana encontrou um Fotografia: Manuela DL Ramos

amigo.

22
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Era um amigo maravilhoso.


As fIores voltavam
as suas corolas
quando ele passava,
a luz era mais brilhante
em seu redor...

Fotografia: Manuela DL Ramos


23
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia: Manuela DL Ramos

...e os pássaros
vinham comer na palma das
suas mãos as migalhas de
pão que Joana ia buscar à
cozinha.

24
A NOITE DE NATAL

O AMIGO
A FESTA
A ESTRELA

25
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até


que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo
azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem
penteada às sete e meia saíu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala


grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro.
Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não
entrar.

26
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

For isso foi à sala de jantar ver se


já lá estavam os copos.
Os copos passavam a sua vida
fechados dentro de um grande armário
de madeira escura que estava no meio
do corredor.
Esse armário tinha duas portas que
nunca se abriam completamente e uma
grande chave.
Lá dentro havia sombras e brilhos.
Era como o interior de uma caverna
cheia de maravilhas e segredos.

27
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não


eram precisas para a vida de todos os dias, coisas
brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos,
caixas, cristais e pássaros de vidro.
Até havia um prato com três maçãs de cera e uma
menina de prata que era uma campainha. E também um
grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com
flores doiradas.
Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário.
Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada
às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.

28
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Nos dias de festa, do fundo das


sombras do interior do armário saíam
os copos.

Saíam claros, transparentes e


brilhantes, tilintando no tabuleiro.

E para Joana aquele barulho de


cristal a tilintar era a música das
festas.

29
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Joana deu uma volta a roda da mesa.

Os copos já lá estavam, tão frios e


luminosos que mais pareciam vindos
do interior de uma fonte de montanha
do que do fundo de um armário.

As velas estavam acesas e a sua luz


atravessava o cristal.

30
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Em cima da mesa havia


coisas maravilhosas e
extraordinárias:
bolas de vidro,
pinhas douradas e aquela
planta que tem folhas com
picos e bolas encarnadas.
Era uma festa.
Era o Natal.

31
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas


Noites de Natal as estrelas são diferentes.
Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava
muito frio, mas o próprio frio brilhava.
As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras
tinham caído.
Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas
pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.

32
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia: Manuela DL Ramos

33
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E nessa escuridão
as estrelas cintilavam,
mais claras do que tudo.
Cá em baixo era uma festa e
por isso havia muitas coisas brilhantes:
velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal.
Mas no céu havia uma festa maior,
com milhões e milhões de estrelas.

Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada.

34
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Não pensava em nada.


Olhava a imensa felicidade da noite
no alto céu escuro e luminoso,
sem nenhuma sombra.
Depois voltou para casa e fechou a porta.

35
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a


uma criada que ia a atravessar o corredor.
— Ainda falta um bocadinho, menina - disse a criada.

Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que


era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas
quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se
cortar e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a
pessoa mais importante que ela conhecia.

36
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

A Gertrudes tinha aberto


o forno e estava debruçada sobre
os dois perus do Natal. Virava-os
e regava-os com molho.
A pele dos perus, muito esticada sobre o peito
recheado, já estava toda doirada.

— Gertrudes, ouve uma coisa — pediu Joana.


A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada
como os perus.

37
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— 0 que é? — perguntou ela.


— Que presentes é que achas que eu vou ter?
— Não sei — disse Gertrudes — , não posso adivinhar.

Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de


Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.

— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?


— Qual amigo? - disse a cozinheira.
— 0 Manuel.

38
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— 0 Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.


— Não vai ter presentes nenhuns ?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a
tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha


compreendido que era “assim mesmo”. Porque ela
sabia que a Gertrudes conhecia o mundo.

39
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Todas as manhãs a ouvia discutir com o


homem do talho, com a peixeira e com a
mulher da fruta. E ninguém a podia enganar.
Porque ela era cozinheira há trinta anos.
E há trinta anos que ela se levantava às sete da
manhã e trabalhava até às onze da noite.

E sabia tudo o que se passava na


vizinhança e tudo o que se passava dentro das
casas de toda a gente. E sabia todas as notícias,
e todas as histórias das pessoas.

40
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E conhecia todas as receitas de cozinha,


sabia fazer todos os bolos e conhecia todas
as espécies de carnes, de peixes, de frutas
e de legumes. Ela nunca se enganava.
Conhecia bem o mundo, as coisas e os
homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era


esquisito como uma mentira. Joana ficou
calada a cismar no meio da cozinha.

De repente abriu-se a porta e apareceu


uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.

41
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Daí a uns minutos


apareceram as pessoas grandes e
foram todos para a mesa.

Tinha começado
a festa do Natal.
Havia no ar
um cheiro de canela
e de pinheiro.

Em cima da mesa tudo brilhava:


as velas, as facas, os copos, as
Fotografia: Manuela DL Ramos bolas de vidro, as pinhas doiradas.

42
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E as pessoas riam e diziam umas as


outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com
um barulho de alegria e de festa.

E vendo tudo isto Joana pensava:


— Com certeza que a Gertrudes se
enganou. 0 Natal é uma festa para toda a
gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo.
Com certeza que ele também tem presentes.

E consolada com esta esperança Joana


voltou a ficar quase tão alegre como antes.

43
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

0 jantar do Natal era igual


ao de todos os anos.
Primeiro veio a canja, depois o
bacalhau assado, depois os
perus, depois os pudins de
ovos, depois as rabanadas,
depois os ananazes.

44
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

No fim do jantar
levantaram-se todos,
abriu-se de par em par a porta e
entraram na sala.

As luzes eléctricas
estavam apagadas.
Só ardiam as velas do pinheiro.

Joana tinha nove anos e já tinha


visto nove vezes a árvore do Natal.

Mas era sempre como se fosse a


primeira vez.

45
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que


pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de
uma estrela se tivesse aproximado da Terra.
E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus
ramos se carregavam de
extraordinários frutos
em memória da alegria
que, numa noite muito
antiga, se tinha espalhado
sobre a Terra.

46
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E no presépio as figuras de barro,


o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro,
pareciam continuar uma doce conversa
que jamais tinha sido interrompida.
Era uma conversa que se via e não se ouvia.

47
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Joana olhava, olhava, olhava. As vezes


lembrava-se do seu amigo Manuel. Um dos primos
puxou-a por um braço:
— Joana, ali estão os teus presentes.
Joana abriu um por um os embrulhos e as
caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de
desenhos a cores, a caixa de tintas.

À sua volta todos riam e conversavam. Todos


mostravam uns aos outros os presentes que
tinham tido, falando ao mesmo tempo.
E Joana pensava: «Talvez o Manuel tenha tido
urn automóvel.»

48
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E a festa do Natal continuava.


As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e
nos sofás a conversar e as crianças sentaram-se no
chão a brincar.
Até que alguém disse:
— São onze horas e meia. São quase horas da
missa. E são horas de as crianças se irem deitar.
Então as pessoas começaram a sair.

0 pai e a mãe de Joana também saíram.


— Boa noite, minha querida. Bom Natal —
disseram eles. E a porta fechou-se.
Daí a um instante saíram as criadas.

49
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos


para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que
estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar
com a Gertrudes.

— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.


— Bom Natal — respondeu a Gertrudes.
Joana calou-se um momento. Depois perguntou:
— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é
verdade?
— O que é que eu disse?

50
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Disseste que o Manuel não ia ter presentes


de Natal porque os pobres não têm presentes.
— Está claro que é verdade. Eu não digo
fantasias: não teve presentes, nem árvore de
Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os
pobres são os pobres. Têm a pobreza.
— Mas então o Natal dele como foi?
— Foi como nos outros dias.
— E como é nos outros dias?
— Uma sopa e um bocado de pão.
— Gertrudes, isso é verdade?

51
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Está claro que é verdade. Mas agora era


melhor que a menina se fosse deitar porque
estamos quase na meia-noite.
— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto.
Os seus presentes de Natal estavam em cima
da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

«Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas


e livros. São tal e qual os presentes que eu
queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao
Manuel ninguém deu nada.»

52
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E sentada na beira da cama, ao lado dos


presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a
escuridão e a pobreza.
Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa
que não era bem uma casa, mas um curral de
animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem
nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das
palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de
um burro.

53
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes —


disse ela. Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que e a
Noite de Natal.»

Foi à janela, abriu as portadas e através dos


vidros espreitou a rua. Ninguém passava. 0
Manuel estava a dormir. Só viria na manhã
seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra
escura: era o pinhal.

54
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

55
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Então ouviu, vindas da torre da Igreja, fortes e


claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho
de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha
presentes na Noite de Natal.»

Foi ao armário, tirou um casaco e vestiu-o.


Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros.
Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um
rapaz e com certeza não gostava de bonecas.

56
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os


degraus estalaram um por um. Mas na cozinha
a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as
panelas e não a ouviu.

Na sala de jantar havia uma porta que dava


para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-
a ficar só fechada no trinco.

Depois atravessou o jardim. 0 Alex e a


Chiribita ladraram.
— Sou eu, sou eu — disse Joana.
E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.
Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

57
A NOITE DE NATAL

O AMIGO
A FESTA
A ESTRELA

58
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando se viu sozinha no meio


da rua teve vontade de voltar
para trás.
As árvores pareciam enormes e os
seus ramos sem folhas enchiam o
céu de desenhos iguais a pássaros
fantásticos.

E a rua parecia viva.


Fotografia: Manuela DL Ramos

59
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Estava tudo deserto. Àquela hora não passava


ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo.
As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas
e as janelas fechadas.
Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana
tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a
ouviam como pessoas.

«Tenho medo», pensou ela. Mas resolveu caminhar


para a frente sem olhar para nada.

60
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu


a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho
encontrou os campos, planos e desertos.

Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se


melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda
brilhante.

0 silêncio era tão forte que parecia cantar.

61
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.


«Será possível que eu chegue até lá?», pensou
Joana. Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no


descampado soprava um curto vento de neve que lhe
cortava a cara como uma faca.

«Tenho frio», pensou Joana. Mas continuou a


caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-


se tornando maior. Até que ficou enorme.

62
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Composição: Manuela DL Ramos

63
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Joana parou um instante no meio dos campo.


«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.
E olhava em todas as direcções à procura de um
rasto.
Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda
não havia rasto e à sua frente não havia rasto.

«Como é que hei-de encontrar o caminho?»,


perguntava ela.
E levantou a cabeça.

64
A Noite de Natal- Sophia de Mello Breyner Andresen

Então viu que no céu,


lentamente, uma estrela caminhava.
«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.
E começou a seguir a estrela.

65
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Até que penetrou no


pinhal. Então num
instante as sombras
fizeram uma roda a sua
volta.
Eram enormes, verdes,
roxas, pretas e azuis, e
dançavam com grandes
gestos.
Fotografia: Manuela DL Ramos

66
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Fotografia: Manuela DL Ramos

E a brisa passava
entre as agulhas dos pinheiros,
que pareciam murmurar frases incompreensíveis.
E vendo-se assim rodeada de vozes e
de sombras Joana teve medo e quis fugir.

67
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Mas viu que no céu, muito alto,


para além de todas as sombras, a
estrela continuava a caminhar.

composição: Manuela DL Ramos


E seguiu a estrela.

68
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.


«Será um lobo?», pensou.
Parou a escutar. 0 barulho dos passos aproximava-
se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito
alto que vinha caminhando ao seu encontro.

«Será um ladrão?», pensou.

Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um


rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus
ombros caía um longo manto azul todo bordado de
diamantes.

69
70
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Boa noite — disse Joana.


— Boa noite — disse o rei — Como te
chamas?
— Eu, Joana — disse ela.
— Eu chamo-me Melchior — disse o
rei.
E perguntou:
— Onde vais sozinha a esta hora da
noite?
— Vou com a estrela — disse ela.
— Também eu — disse o rei,
também eu vou com a estrela.

71
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

E juntos seguiram através


do pinhal.
E de novo Joana ouviu passos.
E um vulto surgiu entre as
sombras da noite.
Tinha na cabeça uma coroa de
brilhantes e dos seus ombros caía
um grande manto vermelho
coberto de muitas esmeraldas e
safiras.

72
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Boa noite — disse ela —. Chamo-me Joana e


vou com a estrela.
— Também eu — disse o rei — , também eu vou
com a estrela e o meu nome é Gaspar.

E seguiram juntos através dos pinhais.

E mais uma vez Joana ouviu um barulho de


passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras
azuis e os pinheiros escuros.

Tinha na cabeça um turbante branco e dos


seus ombros caía um longo manto verde bordado
de pérolas. A sua cara era preta.

73
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

— Boa noite — disse ela. — 0 meu


nome é Joana. E vamos com a
estrela.
— Também eu — disse o rei —
caminho com a estrela e o meu
nome é Baltasar.

E juntos seguiram os quatro


através da noite.

74
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

75
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Já quase no fundo dos pinhais viram ao


longe uma claridade E sobre essa claridade a
estrela parou. E continuaram a caminhar.

Até que chegaram ao lugar onde a estrela


tinha parado e Joana viu um casebre sem
porta.

76
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Mas não viu escuridão, nem sombra,


nem tristeza. Pois o casebre estava
cheio de claridade, porque o brilho
dos anjos o iluminava.

E Joana viu o seu amigo Manuel.


Estava deitado nas palhas entre a
vaca e o burro e dormia sorrindo.

77
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. 0


seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem
nenhuma sombra.
E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados
no ar.
Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.
— Ah — disse Joana -, aqui é como no presépio!
— Sim — disse o rei Baltasar — , aqui é como no
presépio.

78
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

Então Joana ajoelhou-se e


poisou no chão os seus presentes.

FIM
A Noite de Natal - Sophia de Mello Breyner Andresen

A NOITE DE NATAL
Sophia de Mello Breyner Andresen

Nesta versão incluíram-se, para além de ilustrações de Júlio Resende da edição de 1989,
a imagem da árvore de Natal da autoria de Maria Keil, ilustradora da 1ª edição (1959), e
fotografias do Jardim Botânico do Porto sediado na antiga Quinta do Campo Alegre que
pertenceu ao tio de Sophia Mello Breyner Andresen e onde a autora brincou em criança.

Fotografias e composição:
Manuela DL Ramos, Outubro 2010

80

Você também pode gostar