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INTRODUÇÃO ÀS

CIÊNCIAS SOCIAIS

Formas de Conhecimento e
Questões Epistemológicas
UNIDADE I em Ciências

2018
Ficha Técnica:
Título: Introdução às Ciências Sociais – Formas de Conhecimento e Questões Epistemológicas em Ciências
Sociais
Autor: João Feijó
Revisor: Adriano Niquice
Execução gráfica e paginação: Instituto Superior Monitor Registado
no INLD com o número: 7224/2011
3ª Edição: 2013
Readaptação por Instituto Superior Monitor: janeiro de 2018
© Instituto Superior Monitor

Todos os direitos reservados por:


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Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em
recolhas antológicas ou similares, de onde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são
passíveis de procedimento judicial
Índice
UNIDADE I – OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO E
QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS .......4
CAPÍTULO I - O MITO ..................................................................................5
1.1. Definição de mito: ..............................................................................................5
1.2. Dois exemplos de mitos: ....................................................................................7
1.3. A renovação dos mitos: ......................................................................................8
1.4. A mitologia política: ...........................................................................................8
EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO DO CAPÍTULO I: ..............................................9
2. CAPÍTULO II – A IDEOLOGIA: .............................................................11
2.1. Definição de Ideologia: ....................................................................................11
2.2. Características da Ideologia: .............................................................................11
2.3. Dois exemplos de pensamentos ideológicos: ...................................................14
CAPÍTULO III – A UTOPIA ........................................................................17
3.1. Definição de Utopia: .........................................................................................17
3.2. As diversas correntes do conhecimento utópico: .............................................18
CAPÍTULO IV- O CONHECIMENTO CIENTÍFICO .................................24
4.1. Definição de Ciência: .......................................................................................24
4.2. As características do conhecimento científico: ................................................24
4.3. O método científico: .........................................................................................28
4.4. Classificação das Ciências: ...............................................................................31
GLOSSÁRIO: ................................................................................................32
CAPÍTULO V – QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE AS
CIÊNCIAS SOCIAIS ....................................................................................36
5.1. GASTON BACHELARD E A PSICANÁLISE DA CIÊNCIA .......................36
5.3. O CONFRONTO DE PARADIGMAS (THOMAS KUHN) ...........................48
5.4. OS PROGRAMAS DE PESQUISA (EMRI LAKATOS) ...............................53
SUGESTÕES DE LEITURA: .................................................................................60
UNIDADE I – OS DIFERENTES TIPOS DE CONHECIMENTO E
QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS

Prezados Estudantes: A cadeira de Introdução às Ciências Sociais será ministrada em 3


unidades. Nesta 1.ª unidade, temos como objectivo analisar as diversas formas de conhecimento
existente e as várias questões epistemológicas sobre as ciências sociais. Trata- se de distinguir
conhecimento mitológico, de conhecimento ideológico, de conhecimento utópico e de
conhecimento científico.

Cada unidade corresponde a cerca de 5 semanas de estudo. No final de cada unidade de estudo
irá encontrar um teste de avaliação que deverá ser respondido e enviado para o ISM pelas
seguintes vias: correio, entregue presencialmente na sede ou nos centros de recurso ou
digitalizado e enviado para o email: testes@ismonitor.ac.mz. Os testes devem ser enviados ao
fim e cada 5 semanas de estudo por forma a garantir o conhecimento atempado dos resultados
obtidos no mesmo. Não entregue os 3 testes ao mesmo tempo, pois assim não estará a par da
sua progressão e dos seus erros e melhorias que deve levar a cabo para ter sucesso.

Na página do ISM www.ismonitor.ac.mz encontrará todos os contactos. Deve estar sempre


atento aos contactos da direcção do seu curso, da coordenação e do tutor de cada uma das
disciplinas que frequenta.

No final de cada unidade é providenciada uma lista de bibliografia e de referências na internet


que poderá consultar. A biblioteca virtual do ISM inclui livros digitalizados, artigos, websites
e outras referências importantes para esta e outras disciplinas, que deverá utilizar na realização
de casos práticos. A biblioteca virtual pode ser consultada na página do ISM.

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CAPÍTULO I - O MITO
O mito, enquanto narrativa tradicional com um carácter explicativo da realidade constitui uma
forma de conhecimento comum em todas as sociedades. O mito está fortemente associado a
rituais (cerimónias, orações, sacrifícios), muitos dos quais acompanham a vida do indivíduo.
Pelo facto de se referir a crenças comuns e de não lhe ser conferido fundamento científico, é
utilizado muitas vezes com uma conotação pejorativa. Porém, diversos acontecimentos
históricos podem-se transformar em mitos ao adquirirem uma importante carga simbólica.

1.1. Definição de mito:


Em O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade considerou que o Mito constitui uma narração
imaginária, cortada do Real e diz respeito ao passado, à origem das coisas (ex: ao aparecimento
do Homem no Mundo, à origem da vida, às relações com o sobrenatural). Grande parte dos
discursos mitológicos remontam a um tempo antepassado, muitas vezes primordial e não são
mais do que um discurso especulativo, que visa a narração dessa origem. Os mitos narram as
acções dos Deuses criadores e as origens Humanas. Qualquer discurso sobre as origens do
Mundo e da Vida constitui um discurso imaginário retirado do Real, precisamente porque o
Homem não pode remontar até às origens, não existindo factos para verificação ou
comprovação científica. O mito constitui uma tentativa de explicação do Mundo num contexto
onde, normalmente, não se recorre ao conhecimento científico. O mito contém, por isso, um
carácter ambivalente. Por um lado, trata-se de um discurso sobre a realidade (ainda que não
científico) mas, por outro, trata-se de um discurso que é considerado verdadeiro por aqueles
que acreditam no mito. Os mitos estão por isso carregados de subjectividade. O facto de
produzir um discurso explicativo sobre o sobrenatural, sobre os Deuses ou as origens Humanas
confere-lhe um carácter sagrado e, portanto, grande autoridade e legitimidade (ex.: poucos se
atrevem a questionar a palavra do padre, do pastor ou do curandeiro). Para Mircea Eliade, para
os homens que acreditam e vivem no mito (e do mito), este transforma-se numa história
verdadeira, num modelo de acção. A força dos mitos é mais evidente nas sociedades rurais,
menos expostas ao discurso científico, pois o mito constitui o único saber objectivo que estas
sociedades dispõem sobre si próprias. Não tendo outro nível de conhecimento sobre a sua
origem, para muitas populações o mito é real.

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Leia a seguinte notícia publicada no jornal de notícias de 7.2.2009:
EMPREENDEDORES VIOLENTADOS POR ALEGADA “PRISÃO DA CHUVA”
“TRÊS mortos, doze feridos, vinte e cinco casas queimadas, cento e três pessoas desalojadas,
infra-estruturas sabotadas e doze cidadãos detidos constitui o balanço preliminar da onda de
linchamento e escaramuças que se registam desde há duas semanas em diferentes regiões da
província da Zambézia resultantes de acusações de “prisão” da queda de chuvas. As principais
vítimas desses linchamentos são negociantes, jovens empreendedores e proprietários das
salinas ou outros cidadãos que gozam de uma estabilidade social nas comunidades onde
residem, acusados de “amarrarem a chuva” para prejudicar os pobres”

Nesta notícia, na região de Mixixine, distrito de Namacurra, a 95 quilómetros da capital


provincial da Zambézia, Quelimane, um grupo de cidadãos organizados queimou casas e
motorizadas de negociantes, os principais suspeitos que, através de suposta magia negra,
estariam a impedir a queda de chuvas, agravando a fome dos camponeses, para que os produtos
que comercializam sejam comprados sem dificuldades. Perante a falta de chuva e seca, perante
ameaças de fome, sem acesso a conhecimentos meteorológicos (relacionados com os efeitos do
clima, temperatura, vento e ou da humidade) os camponeses vivem em ansiedade, resultante da
ameaça de fome em si, como da incapacidade de explicar a origem dessa fome. As crenças
tradicionais (assentes em mitos locais) fornecem uma explicação para a realidade. Ao contrário
da ciência (que normalmente procura responder à questão “como foi?” no mito procura-se
responder à questão “quem foi?”. Frequentemente procura-se um culpado, bode expiatório,
“invejoso” responsável pelos males e perturbação da normalidade. Os mitos são relembrados
pelos rituais periódicos que relembram ao povo a sua origem e mantém a coesão e a vivacidade
da comunidade. O mito levanta, sobretudo, questões existenciais (de onde venho e para onde
vou?) e não tanto, intelectuais. Qualquer narração que se debruce sobre a origem do Mundo ou
da Humanidade, por mais científica que seja, não deixa de ser imaginada. Qualquer discurso
sobre o Real ou suas origens contém em si uma interpretação Humana. Trata-se, por isso, de
uma invenção e um produto da imaginação Humana. A ciência debruça-se sobre aquilo que é
observável e empírico, o mito dedica-se à compreensão do que é metafísico, que vai além da
física e se dedica ao estudo dos Deuses, espíritos, almas… e que não é observado com recurso
aos sentidos.

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1.2. Dois exemplos de mitos:
Os dois exemplos que se apresentam em seguida, constituem tentativas de produção de
conhecimento, desencadeadas nos séculos XVII e XVIII, mas que assumiram uma forte
componente mitológica. Escrita no século XVI, na sua obra Leviathan Thomas Hobbes
distingue dois estados nos indivíduos: O estado de Natureza e o estado civil. Para Hobbes,
inicialmente o homem vivia naquilo que ele designou de estado de natureza. Nesse estado
imperava a leis do mais forte, e era o mais forte que acabava por vingar. No seu estado de
natureza, os homens têm um comportamento não social, ditado pela selvajaria, pela falta de
organização e de compromissos. De facto, na sua concepção, o Homem constitui uma criatura
naturalmente indisciplinada, egoísta, pérfida e cruel, pelo que no estado de natureza o sistema
de organização era completamente anárquico. Tomando consciência das dificuldades e da
impossibilidade de viverem nesse estado de natureza ingovernável, os homens decidiram que
era melhor realizar um pacto entre si, de forma a socializarem-se e viverem em conjunto. Deste
modo, Hobbes considerou que os homens resolveram nomear uma pessoa a quem atribuíram os
poderes de regulação e de governação da sociedade. Deste modo, os homens abdicaram dos
seus direitos (visto que inicialmente eram completamente livres no seu estado de anarquia total),
mas adquiriram, em troca, uma forma de organização e uma possibilidade de vida em sociedade.
A vida em sociedade tornou-se tolerada. Com base neste mito sobre a origem das sociedades,
Hobbes tentou dar uma explicação para a origem e surgimento de sistemas de organização
política e social (ex: monarquias). Hobbes tentou demonstrar a origem da sociedade a partir de
um suposto contrato que os homens realizaram entre si. As sociedades eram, assim, construções
sociais. Para Hobbes, a sociedade não constitui um produto divino, algo de natural, mas sim
algo inventado pelo Homem. Esta tentativa de explicação da realidade a partir de uma
concepção pessimista da natureza Humana, acabou por inspirar muitos sistemas políticos
totalitários e ditatoriais. Um século mais tarde, Jean- Jacques Rousseau produziu a obra
Contrato Social que procurou dar uma explicação para o surgimento das sociedades. Rousseau
tinha uma concepção mais optimista acerca da natureza humana. Para ele, o Homem no estado
de natureza era puro e foi a sociedade que o degradou. Rousseau desenvolveu assim o mito do
Homem Bom Selvagem, que só se tornou associal a partir do momento que se integrou na
sociedade. Para Rousseau, os Homens nasceram livres e iguais e resolveram realizar um
contrato social entre si, no qual todos os indivíduos não renunciavam aos seus direitos naturais
mas, pelo contrário, estavam precisamente a

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demonstrar o seu acordo em relação à protecção desses direitos. Desta forma, os indivíduos
criaram os Estados e os Governos, que tinham precisamente a obrigação de preservar e proteger
os seus direitos. O Estado representa, assim, a unidade e, aquilo que Rousseau designou de
“vontade geral”, que era bem mais do que a soma das vontades de todos os indivíduos. Ao
contrário da teoria de Hobbes, a teoria de Rousseau serviu para legitimar a formação de muitos
estados democráticos. Ambos os pensamentos (de Hobbes e de Rousseau) podem ser
considerados mitológicos, porque qualquer narração que se debruce sobre as origens (neste caso
das sociedades) só pode ser imaginada. Ambos, não apresentam provas documentais que
comprovam as teorias que apresentavam, que não passaram de meras especulações, de meras
tentativas de compreensão da origem das sociedades. Importa saber que qualquer tentativa de
análise das formas de organização social de sociedades pré- históricas (sem escrita) é uma tarefa
complexa e propícia a explicações de cariz mitológico.

1.3. A renovação dos mitos:


Seria errado pensar que no presente, com a modernização das economias e estilos de vida, se
assiste a uma diminuição dos mitos. Não só as sociedades tradicionais e rurais crêem nos mitos,
como nas sociedades modernas e urbanas se desenvolveu a crença na ciência e no progresso,
que é a crença na realização do mito prometeico. Prometeu, uma personagem da mitologia
grega, utilizada para personificar valores como esforço, dedicação e sacrifício, bem como a
respectiva importância para o progresso das sociedades. Não se assiste a uma diminuição da
mitologia, mas sobretudo a uma reactualização dos mitos. Tal como para a mitologia
tradicional, predominante nas sociedades rurais, a mitologia urbana é um discurso imaginário,
separado do Real. As sociedades urbanas são compostas por muitas populações oriundas de
meios rurais, que transportam para os novos espaços seus valores e tradições, recriando-os nas
cidades e desenvolvendo novos mitos.

1.4. A mitologia política:


É possível assistir a um conjunto de mitologias políticas, todas elas contendo um carácter
bastante nacionalista, recuperando e recriando a importância de acontecimentos e figuras
históricas. Figuras como Gungunhane em Moçambique, Rainha Ginga em Angola ou Viriato
em Portugal são apresentados, na historiografia mais nacionalista, de forma bastante mitificada.
Todos os países e regimes políticos utilizam a mitologia política. Esta conjuga o

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discurso sobre as origens com visões escatológicas, relacionadas com o destino, com o futuro
do país e dos seus cidadãos. A mitologia política concilia o discurso das origens, conjugado
com o discurso sobre o futuro. Barel considera que o mito político encerra uma imagem global
de matriz irracional e inconsciente, que permite mobilizar massas com vista à acção política. O
mito político pode ser utilizado pela ideologia ou, transformar-se em tal, assemelha-se ao mito
religioso por gerar um sentimento de evidência e verdade absoluta. Instala uma comunhão num
grupo de carácter irracional e inconsciente. O presente é explicado a partir do passado originário
e transforma-se num modelo que justifica o presente.

EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO DO CAPÍTULO I:


1. Leia com atenção o seguinte texto:
“A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) (…) apoiada por uma possante rede audiovisual
(rádio Miramar, RTK e o jornal Folha Universal) e assistencial (Associação Beneficente
Cristã) inicia e sistematiza o que considero ser o mais rápido, possante e eficaz fenómeno de
crença religiosa de massa jamais aparecido em Moçambique (…). Um bispo metodista
apresentou da seguinte maneira o programa da IURD: exorcizar os demónios, curar
enfermidades e oferecer prosperidade financeira (…) mas o IURDISMO não é apenas
«a primeira grande expressão religiosa quase cristã da sociedade urbana industrial». Em
Moçambique ele está a provar poder ser, também, uma expressão religiosa mediática de países
«quarto-mundistas» ” dispõe em Maputo do monopólio das antigas casas de cinema. (…) O
IURDISMO cria também as províncias da identidade e do estigma. As pessoas sentem- se
unidas, sentem-se IURDistas, partilham a mesma esperança, segregam instintivamente a
mesma identidade. E fazendo-o segregam também a intolerância para com aqueles que põe em
causa as suas crenças ou que são de crenças concorrentes (…) é indispensável prestar atenção,
também, à natureza quotidiana dos milagres. Vejamos, a propósito, este curto extracto de um
diálogo difundido na Rádio Miramar, cujo conteúdo estereotipado preenche uma parte dos
chamados «testemunhos de fé»:
(Pastor) - Qual é o nome da Sra.?
(Senhora) - …
(Pastor) - D…, como era a Sra. antes de a Sra. ser baptizada com o Espírito Santo?
(Senhora) – Antes de…, eu era uma pessoa nervosa, não conseguia comunicar… Depois de
ter sido baptizado com o Espírito Santo, tornei-me diferente. Agora…

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(Pastor) – Houve uma transformação!
(Senhora) – Houve uma grande transformação, sim!
(Pastor) – Quem fez essa transformação?
(Senhora) – Foi o Senhor Jesus!
(Pastor) – Graças a Deus!”
In Carlos Serra (2003). Combates pela mentalidade sociológica. Maputo: Imprensa
Universitária.
a) Neste excerto da obra do sociólogo moçambicano Carlos Serra é analisado um discurso
mitológico que se tem desenvolvido em meios urbanos. Explique porque é que o discurso desta
religião pode ser considerado um discurso mitológico.
b) Explique qual é a função social deste mito urbano em questão.

2. Escolha um mito existente em Moçambique e identifique:


a) Que características tem esse pensamento que o levam a ser considerado mitológico?
b) Qual é a função social desse mito para as comunidades que o partilham?

3. Comente a seguinte afirmação:


“O mito dedica-se ao estudo daquilo que não é empírico” (ver no glossário o significado de
empírico).
4. Explique por que motivo os mitos têm um carácter subjectivo (veja no glossário o
significado de “objectivo” e de subjectivo”).

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2. CAPÍTULO II – A IDEOLOGIA:

2.1. Definição de Ideologia:

A Ideologia constitui um conceito que possui diferentes significados: um significado mais


neutral e um outro mais crítico. Na sua concepção mais neutra, a ideologia representa um
conjunto de ideias, pensamentos, doutrinas ou visões do mundo, partilhadas por um indivíduo
ou por um grupo e orientado para acções sociais, principalmente políticas. Na sua concepção
mais crítica, a ideologia é considerada como um instrumento de dominação que age por meio

da persuasão, alienando assim a consciência humana. Para Karl Marx, a ideologia constituiu
um meio de deformação da realidade e, portanto, uma falsa consciência, geradora de uma visão
deturpada da realidade, de acordo com os interesses e ideais da classe dominante. A ideologia
não deixa de constituir um discurso ficcional, que exagera e deforma o Real. Os sistemas de
justificação ideológica sempre existiram, mas o conceito só adquiriu uma maior força no século
XIX, visto que tinha uma teoria científica por base. De facto, o racismo, o nazismo ou o
comunismo, basearam-se em teorias biológicas, económicas e sociais, conferindo à ideologia
um carácter bem mais complexo e elaborado.

2.1. Características da Ideologia:

Podemos afirmar que a ideologia tem um conjunto de 5 características, relacionadas com a) a


sua orientação para acção; b) com o seu cariz colectivo; c) com a sua dimensão totalitária; d)
com a sua parcialidade e e) com a sua atitude dissimuladora.
A ideologia é um pensamento que diz respeito aos fins. A ideologia contém em si um
interesse (de um grupo, de uma classe), o que a faz privilegiar certos aspectos da realidade em
detrimento de outros. Uma doutrina filosófica não é necessariamente ideológica. Ela torna-se
ideológica quando é recuperada politicamente com vista à acção. De facto, segundo Jean
Baechler a ideologia constitui um discurso ligado à acção política. É simplesmente a finalidade
do discurso e a sua orientação política que distingue o discurso ideológico do discurso não
ideológico – a ideologia coloca as ideias ao serviço da acção política. A importância da
ideologia reside na eficácia prática da ideia. A ideologia não se interessa tanto pela sua
coerência interna, mas, sobretudo, pela eficácia prática. Quando se interessa pela primeira é,
normalmente, com o objectivo de melhorar a segunda e não o faz de um ponto de vista crítico
e racional. Como referia Lenine, quando os revolucionários precisam de uma educação teórica
não é tanto com o objectivo de fortalecer de maneira crítica o marxismo mas, sobretudo, para
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conduzir eficazmente a luta prática.
A ideologia constitui um pensamento que surge de um grupo. Trata-se normalmente de uma
representação colectiva e não individual. A força da ideologia reside na sua capacidade de
envolvimento de massas populares, de forma acrítica, dogmática e militante. A ideologia
assenta em visões do mundo normalmente dicotómicas, assentes na contradição de dois grupos
sempre em oposição (ex. capitalistas e operários; estrangeiros e nacionais;

colonialistas e colonizados; fascistas e comunistas). Todas as ideologias necessitam da


existência de um inimigo do grupo para fortalecer o próprio grupo. Esse inimigo constitui uma
ameaça do nosso grupo e o sentimento de receio e de ansiedade daí resultante mais não serve
que unir as massas em torno desse consenso: a sobrevivência do grupo contra o Outro invasor.
Nesta dicotomia Nós-Eles, o Nós constitui eternamente a vítima inocente e os Outros a parte
agressora e culpada.
A ideologia tende a assumir uma dimensão totalitária. Em As origens do totalitarismo,
Hannah Arendt considerou que todas as ideologias são totalitárias, havendo segundo a mesma
três elementos ditatoriais em cada uma delas:
i) A pretensão de querer explicar tudo. A ideologia confere respostas alegadamente
verdadeiras a todos os fenómenos da vida social, muitas dessas respostas de carácter
particularmente simplista e populista. Ao contrário, no pensamento científico, mesmo quando
elaborada racionalmente, uma teoria permanece sempre como hipótese. Para merecer o
adjectivo de científica, uma teoria deve ser experimentada, demonstrada e verificada.
ii) A afirmação de uma realidade oculta, escondida e dissimulada, realidade que seria mais
verdadeira do que a realidade que percebemos através dos sentidos – a denúncia dessa realidade
oculta acontece não tanto para servir o conhecimento científico, mas sobretudo para servir a
acção política.
iii) A pretensão de transformar a realidade a todo o custo. A ideologia contém uma
orientação para a acção e para a intervenção na sociedade. Quando os factos sociais contradizem
os pressupostos teóricos das ideologias, estas sentem-se impotentes para transformar a
realidade. Nesses momentos, a ideologia compensa essa incapacidade de transformar os factos,
com uma valorização teórica da ideia. Como referia Arendt, a ideologia insiste na existência de
uma coerência que não existe na realidade.
A ideologia constitui um pensamento de valorização e não tanto de avaliação. Enquanto a
ciência avalia, a ideologia privilegia (valoriza). Avaliar significa realizar uma apreciação, mais
ou menos científica de uma determinada ideia, normalmente por comparação com outros
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elementos de um determinado sistema. Já numa valorização realiza-se uma análise onde se
privilegiam determinados elementos em detrimento de outros. A ideologia tem a tendência a
deformar os factos, pelo que se torna problemático comparar ou confrontar as teorias
ideológicas (ex: nazismo e comunismo). As ideologias impõem-se pela força das ideias, e não
de forma racional. Os fins impõem-se pela luta e não pela razão. A ideologia não precisa de

ser coerente, contendo muitas vezes elementos contraditórios. A ideologia não visa a coerência
lógica, tal como a ciência, mas antes a facilitação da acção do grupo, bem como justificar os
meios de acção com vista à obtenção de determinados fins. É por este motivo que o valor da
ideologia não provém da sua coerência lógica, mas antes do sucesso que pode ter. A força da
ideologia não reside na análise dos factos, mas no entusiasmo colectivo que ela suscita.
Enquanto a ciência tem como objectivo interpretar o mundo, a ideologia tem como objectivo
transformá-lo. O grau de elaboração intelectual da ideologia varia do slogan até ao sistema
filosófico complexo, mas a ideologia tem sempre uma componente dogmática. A ideologia não
admite uma revisão crítica do seu pensamento procurando, pelo contrário, ser ela própria a
controlar as orientações da ciência e dos cientistas. A ideologia necessita de dar a impressão de
ser racional, para esconder o seu dogmatismo. É neste sentido que a ideologia deve ser racional
para convencer, mas é irracional na medida em que tem como único objectivo vencer. É por
isso que a ideologia é também contemporânea do desenvolvimento da técnica e da ciência. Na
ideologia, a ciência não é considerada por si só como meio de aproximação da verdade, mas
simplesmente como meio de justificação da acção. É por este motivo que a ideologia não
constitui uma ciência, mesmo quando, alegadamente, se apoia na ciência. Assim, o nazismo
baseia-se numa pretendida ciência biológica da raça e o marxismo evoca uma ciência
sociológica e económica.

A ideologia constitui um pensamento de dissimulação. Não conseguindo constituir uma


ciência e filosofia credível, a ideologia procura esconder as suas próprias motivações de origem
e as suas próprias intenções. Como demonstra Arendt, a ideologia constitui um processo que
permite às classes dominantes defender seus próprios interesses. Todo o pensamento serve para
justificar e velar relações sociais e de poder. A título de exemplo, e como demonstra Pareto, o
marxismo constitui uma crítica ideológica da ideologia. Ao afirmar que todo o comportamento
é explicado unicamente pela base material, pelas condições económicas de existência ou pelos
interesses de classe, o pensamento marxista não deixa, ele próprio, de ser ideológico (ou pelo
menos de ser apropriado politicamente como tal). A ideologia tem como condições de

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aparecimento a existência de turbulências sociais, causadas pela instabilidade e decadência
(desemprego, desigualdades sociais, sentimento de insegurança, instabilidade política, crises
económicas...). A ideologia começa por assumir uma atitude bastante contestatária em relação
ao sistema. Contudo, a ideologia constitui um pensamento polémico, uma vez que nasceu da
crítica, mas que nega a crítica interna dentro da própria ideologia. Este sistema de pensamento
pressupõe a existência de um inimigo, que deve ser convencido e vencido. Na ciência também
existem polémicas, mas a finalidade da ciência é outra: ela quer aproximar-se da verdade e
desse modo a teoria científica cede cada vez que os factos ou outras teorias demonstram o
contrário. Pelo contrário, a ideologia é bem mais intransigente, procurando eliminar as
evidências que a contradizem (incluindo, por vezes, a eliminação moral e física dos oponentes).
2.2. Dois exemplos de pensamentos ideológicos:
Poderiam ser dados inúmeros exemplos de pensamentos e de ideologias. Do comunismo ao
fascismo, do socialismo ao capitalismo, do colonialismo aos movimentos de libertação os
cidadãos do planeta tiveram contacto diário com ideologias políticas. Como vimos
anteriormente não existem ideologias certas ou erradas e, de certa forma, em todas elas, o tipo
de pensamento acaba por assentar nos mesmos erros fundamentais: na pretensão que têm um
carácter justo e verdadeiro. Em seguida veremos dois exemplos que não deixaram de afectar o
continente africano em geral e os PALOP’s em particular: a ideologia luso-tropicalista e a
negritude. Ambos os pensamentos nasceram de pressupostos pretensamente científicos e ambos
serviram à acção política, acabando por assumir uma dimensão ideológica:
a) O Luso-tropicalismo - Mito alimentado pelo Estado Novo (regime político que vigorou em
Portugal de 1928 a 1974) relacionou-se com a existência de uma forma portuguesa de estar nos
trópicos mais humanista e sociável, por oposição à colonização inglesa, mais separatista e
racista. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1958, 1961) constitui a principal referência dos
defensores dessa convivência harmoniosa, entre portugueses e africanos, sul- americanos e
asiáticos. Em Integração Portuguesa nos Trópicos (1958) e no O Luso e o Trópico (1961),
Freyre considerou que as baixas qualificações e as origens pobres e rurais dos colonos
portugueses não lhes conferiram um sentimento de superioridade, possibilitando-lhes maior
facilidade de convivência com os povos das colónias. O autor construiu uma representação
mítica de ser lusitano, de um povo que se expandiu nos trópicos de uma forma cristã e menos
etnocêntrica que outros congéneres europeus (ingleses e holandês e em especial na África do
Sul). Um dos principais argumentos, justificativos desta teoria do não racismo português,
relacionava-se com a comunidade de mulatos existente nas diversas colónias, o que
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demonstrava a miscigenação promovida. Ainda que esta teoria científica tenha sido muito
criticada, a realidade é que foi utilizada politicamente por António Salazar, com

vista a legitimar a presença colonial portuguesa em Angola e Moçambique. Contudo, em Lutar


por Moçambique, Eduardo Mondlane (1996: 49-53) demonstrou a existência de atitudes
racistas por parte dos colonos portugueses, particularmente evidentes nos estratos sociais mais
baixos da população. O facto de deterem um nível de qualificação mais reduzido colocava-os,
à chegada a Moçambique, em competição directa com a comunidade africana, que passava a
constituir para eles uma ameaça. Esta camada populacional era “muitas vezes mais racista do
que o próprio Governo”. O fundador da Frelimo, diz que apesar da existência de uma
comunidade de mulatos nas colónias, os casamentos mistos era, raros, o que induz uma rejeição
social desses compromissos. E em quase todas as situações era o pai que era português. As
relações entre mulher portuguesa e homem africano não eram aceites com a mesma tolerância
e era uma característica que remontou, a períodos históricos e regiões onde não existiam
condições para as mulheres acompanharem os homens ou maridos. No entanto, como refere o
próprio Mondlane (1996:49), os descendentes herdavam muitas vezes a riqueza e o estatuto
social dos pais, o que constituía mais o resultado da assimilação dos portugueses à cultura
africana do que o inverso. “Os proprietários de terras na Zambézia do século XVIII mais
pareciam chefes africanos degenerados do que senhores portugueses”.
b) Negritude – Conceito de origem francófona, desenvolvido por indivíduos de descendência
africana, nascidos nas ex-colónias francesas (Léopold Sénghor do Senegal, Leon Damas da
Guiana francesa e Aimée Césaire da Martinica). Estes criaram um movimento cujo objectivo
se orientava para a união dos “negros”, de forma a combater a discriminação e a revalorizar o
seu papel político e sociocultural. Traduzia um conjunto de traços que se defendia serem
característicos do “negro”, como a solidariedade, capacidade de emoção e importância
conferida ao simbólico e sagrado. Defendia a ideia de que a cor da pele origina uma identidade
comum. Foi criticada por de veicular um essencialismo africano, imaginado por uma elite
intelectual, alheia à heterogeneidade das populações. À semelhança das teorias racistas
colonialistas, caiu no erro de explicar as diferenças socioculturais entre indivíduos a partir de
características biológicas - cor da pele. A negritude é, por isso, uma reacção e extensão das
ideologias racistas coloniais. Ambos os discursos são ainda utilizados politicamente por
inúmeros actores sociais na África Austral, ainda que cientificamente contestados. Contudo, no
dia-a-dia das populações, nos locais de trabalho, na estruturação de grandes negócios, nas
relações diplomáticas entre países e na comunicação social, elementos de ambas as ideologias
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são frequentemente recorrentes, conforme os interesses dos actores.

EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO:
1. Observe com atenção a seguinte imagem e explique de que forma é que ela pode
constituir uma crítica ao pensamento ideológico:

(imagem retirada de
http://www.hugocristo.com.br/old/ma.imagem.php?imagem=128)

2. Identifique as grandes diferenças entre o mito e a ideologia.

16
CAPÍTULO III – A UTOPIA

3.1. Definição de Utopia:

A palavra utopia deriva do latim utopus que significa que não tem lugar. Trata-se, portanto, de
um discurso ficcional e imaginário. A palavra utopia foi utilizada por Thomas More, quando
no século XVI publicou a sua obra intitulada precisamente Utopia, mas a ideia de sociedades
perfeitas ou de populações era anterior (ex: República de Platão). A utopia contém em si uma
dupla definição: A utopia tanto pode constituir uma obra de pura imaginação, que reflecte um
simples exercício do espírito e do pensamento, como um projecto alternativo para uma
sociedade. Deste modo, há uma necessidade de distinguir as representações utópicas enquanto
descrições de sociedades imaginadas das utopias sociais realizadas. A utopia tem constituído
um género literário que, contrariamente aos romances, não procura descrever seres que vivem
na nossa realidade, mas antes seres que escapam à nossa realidade e ao nosso tempo. Os seres
que a utopia descreve são irreais, não podem existir e não têm uma realidade sociológica. Trata-
se de seres puramente imaginados. A utopia constitui assim uma previsão do futuro. Contudo,
a utopia não é realizável, pois não se enquadra nas características e constrangimentos sociais,
económicos, políticos, culturais e temporais de uma determinada sociedade. As principais
diferenças entre a utopia e o mito prendem-se com as seguintes:
- O mito constitui um facto social colectivo, suscita as crenças e a adesão e inscreve-se nas
instituições que o transmitem. Já a utopia constitui uma produção individualista, de um ser
sonhador e por vezes desenquadrado ou incompreendido pela sociedade.
- O mito ultrapassa em complexidade a utopia. Os mitos são interdependentes e servem para
traduzir uma linguagem concreta às respostas que uma sociedade precisa para os seus problemas
existenciais. A Utopia limita-se à visualização de estruturas sociais fixas e imaginárias.
- O mito enquadra-se num conjunto de instituições sociais que o produzem e o transmitem para
o legitimar. Os mitos são transmitidos aos indivíduos através da religião, das redes de
parentesco e de vizinhança,.. Por conseguinte, o mito reforça as estruturas mentais e sociais
tradicionais, enquanto a utopia introduz uma distância crítica em relação à ordem existente. A
utopia, de facto, conduz a uma ruptura com os consensos sociais dos mitos e introduz
alternativas, alterações e, consequentemente, instabilidades.

17
3.2. As diversas correntes do conhecimento utópico:
Distinguem-se três correntes do conhecimento utópico, desenvolvidas em épocas específicas e
com consequências muito particulares, a) Clássicas (Thomas More e Tommaso Campanella);
b) Experimentais (Morelly) e, c) Contra-utopia (George Orwell e Aldous Huxley)

a) Utopias clássicas:
Um dos autores clássicos que mais se debruçou no pensamento utópico foi Thomas More. A
sua obra Utopia divide-se em duas partes.
- Numa primeira, descreve a miséria social da sociedade onde estava inserido (no seu caso a
Inglaterra do séc. XVI)
- Num segundo momento realiza uma crítica social, onde procura expôr a sua utopia. Na sua
obra, Thomas More imaginou uma ilha fantástica, com uma organização social perfeita e sem
conflitos sociais. No seu exercício de imaginação, demonstrou a possibilidade de um mundo
invertido, sem muitos dos problemas que afectavam a sua sociedade. Contudo, a sua intenção
nunca foi a de alterar a sua sociedade, pelo que não constituiu propriamente um revolucionário.
Procurou, de facto, interligar a sua utopia com uma crítica social. De facto, a descrição de uma
sociedade irreal tem sempre efeitos sobre a maneira de considerar a sociedade actual. Ou seja,
ao imaginar-se uma sociedade perfeita e sem problemas sociais mais não estamos do que,
implicitamente, a realizar uma crítica indirecta ao sistema onde estamos inseridos. A utopia de
More não constitui, por isso, um mero exercício de fantasia, mas uma acção de reflexão sobre
a sua própria sociedade. Por outro lado, o impacto do pensamento utópico (neste caso de More),
não deixou de ter uma influência directa e indirecta sobre a sociedade onde esteve inserido.
Tratou-se de uma forma de colocar em questão uma dada organização, estrutura social ou
sistema político. Apesar de se tratar de um mero exercício de imaginação, a utopia pode ter
consequências políticas e sociais. As utopias clássicas, concebidas como um género literário
têm as seguintes características:
i) Trata-se de um pensamento insular (relativo a ilha). Uma vez que se trata de descrever uma
sociedade que nunca existiu em nenhum tempo nem em nenhum lugar, a utopia constitui uma
figura ideal. Tanto em Utopia de Thomas More, como em Cidade do Sol de Campanella a
sociedade imaginária localizava-se numa ilha. A atracção da utopia pelas ilhas explica-se por
vários motivos:

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- a ilha constitui um espaço fechado e permite uma organização minuciosa. Modelo reduzido
de uma estrutura social, portanto uma miniatura política, que facilita a construção do protótipo
de sociedade perfeita. Ao contrário das utopias modernas, que pretendem revolucionar as
sociedades (aproximando-se por esse motivo da ideologia), as clássicas não têm essa
necessidade de intervenção social e de propagação do modelo civilizacional.
- a ilha permite construir uma sociedade perfeitamente autárcita, fechada sobre si própria, e sem
contactos com o exterior. A ilha ilustra de facto o carácter a-histórico e irreal da ilha, uma vez
que traduz uma sociedade idilicamente pacífica e por isso irreal. De facto, com a ausência de
fronteiras, não existem relações externas, conflitos ou guerras com outros povos. A natureza
insular da utopia exclui qualquer política com o exterior o que significa que toda a política se
reduz a uma política interior. Como não existe qualquer confronto com o exterior, e portanto
qualquer possibilidade de comparação, os naturais dessa ilha consideram que a sua sociedade
constitui a mais perfeita. Assim, a solução insular protege as utopias de qualquer crítica, uma
vez que não existe qualquer ameaça exterior ou concorrência internacional. Esta insularidade
foi também utilizada por muitas utopias que se transformaram em ideologia. Tanto o
estalinismo e o maoismo (com o seu auto-isolamento em relação ao Ocidente) e o salazarismo
(com o famoso slogan “orgulhosamente sós”) mais não fizeram do que gerar a insularidade das
suas ditaduras, precisamente por não estarem dispostos à crítica (tanto interna como externa).
ii) trata-se de um exercício de inversão - Opera sempre com base na inversão do modelo
instituído. Em vez da propriedade privada idealizam sempre um comunitarismo dos bens, em
vez da desigualdade económica propõe a igualdade económica.
iii) Proposta de racionalização - Todos os ramos da vida aparecem fortemente organizados e
racionalizados, nomeadamente: racionalização da demografia, inclusivamente, a repartição
interna da população, racionalização dos espaços (todas as cidades obedecem aos mesmos
princípios geométricos). Racionalização do tempo e a divisão do trabalho cuidadosamente
pensadas e definidas. Racionalização da vida social, em que todos os pormenores da vida dos
indivíduos, seus rituais aparecem cuidadosamente pensados e planificados.

Algumas críticas que têm sido apresentadas aos utopistas clássicos:


- A grande crítica realizada aos utopistas clássicos é a idealização de uma sociedade estática e
não dinâmica. Ignoram que a principal característica das sociedades é a mudança ao longo do

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tempo, em função dos conflitos e dinâmicas sociais. As sociedades que idealizam aparecem
acabadas, num estado supremo e final de perfeição.
- Por outro lado, os utopistas ignoram a existência de desigualdades e conflitos entre os actores
sociais, inclusivamente no seio das próprias comunidades. De facto, os utopistas ignoram que
os conflitos são, inclusivamente, o motor das sociedades.
- Ao procurarem uma imagem racional das sociedades (plenas de perfeição), caem na
irracionalidade, ao não admitirem a possibilidade de erro, comum nas sociedades humanas.

b) Utopismo experimental
Na utopia clássica, cada autor inventava a sua utopia. Estas não comportavam um projecto
colectivo, visto que assentavam na imaginação de cada utopista – individualista e particularista.
A partir de meados do século XVIII assiste-se a uma mudança nas utopias. Em 1755, Morelly
escreveu Código da Natureza, no qual já não esteve tão interessado em descrever uma sociedade
irreal, mas na elaboração de uma legislação abstracta, concebida para ser aplicada à sociedade.
A utopia torna-se agora experimental. Ao contrário de Thomas More, que nunca procurou
implementar as suas ideias, todas as utopias do século XIX constituíram utopias experimentais.
Na corrente do socialismo utópico, vários autores tentaram implementar sociedades idílicas,
muitos dos quais gastando as suas próprias fortunas. Todos esses projectos acabaram por
fracassar:
- Eugene Cobet em Viagens a Icária criou uma utopia que tentou implementar, seleccionando
inclusivamente uma comunidade que procurou dinamizar durante cerca de 2 anos.
- Charles Fourier seleccionou igualmente uma comunidade experimental (com cerca de 1600
pessoas) que denominou de Phalanstère. Os cidadãos de fora da cidade eram obrigados a pagar
para visitar a mesma.
- Owen seleccionou uma comunidade experimental que denominou New Harmony

A ideia central das novas utopias prendia-se precisamente com a transformação do meio no qual
vive o Homem. De facto, acreditava-se que através da modificação do sistema social em que o
Homem vivia seria possível transformar o próprio Homem. A transformação do social e das
instituições tinha como objectivo a regeneração do próprio Homem, pelo que a natureza
Humana mudaria à medida que mudassem as instituições. Assim, a partir do século XIX, a
utopia deixou de ser tanto um simples processo de imaginação e de recriação para se

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transformar num processo social: passou a ser um processo colectivo dizendo agora respeito às
representações sociais das comunidades. Qualquer utopia, seja ela clássica ou experimental,
elimina os elementos negativos do Homem e das sociedades, enfatizando unicamente os
aspectos positivos. No seu esforço de conceber sociedades perfeitas e instituições perfeitas, as
utopias vêem-se obrigadas a combater o mal, o erro, os vícios e as paixões Humanas. As utopias
experimentais omitem a natureza Humana. A partir do momento em que enfrenta dificuldades
no processo de experimentação, a utopia experimental corre sérios riscos de passar a prestar
mais atenção à implementação prática e à luta política do que à própria construção teórica da
utopia. Nestes casos, a utopia corre sérios riscos de se transformar em ideologia.

c) A contra-utopia (George Orwell e Aldous Huxley)


Foi precisamente contra destas limitações da utopia – relacionadas com a omissão da
consciência Humana – que surgiu, ao longo do século XX, uma terceira corrente da utopia.
George Orwell com os seus livros 1984 e O Triunfo dos Porcos e Aldous Huxley em Admirável
Mundo Novo constituem os dois grandes representantes desta corrente. Ambos os autores
demonstraram como um Mundo hiper-racionalizado e perfeito pode ser extremamente
opressivo. Como demonstram, uma vez realizada uma utopia, um facto é que ela acaba por se
virar contra os cidadãos. Ou seja, assim que a utopia se realiza deixa de haver lugar para a
imaginação, para a esperança utópica e, consequentemente, para a própria utopia. Deste modo,
apesar de diferentes, estas duas contra-utopias acabam por chegar à mesma conclusão: a utopia
realizável conduz ao terror.
i) Aldous Huxley e O Admirável Mundo Novo
A sociedade imaginada por Huxley é hedonista (virada para o prazer). No seu Mundo, o sexo,
o consumo e a diversão constituem práticas inteiramente livres e estimuladas, exclusivamente
viradas para o prazer. No entanto, esta liberdade que se diz total acaba por ser constrangedora,
oprimindo o Homem. Uma vez que todo o homem era obrigado a divertir-se e a demonstrar- se
feliz, neste quadro utópico a espontaneidade dos sentimentos deixou de existir e os sentimentos
já não se podiam manifestar livremente. Todos os indivíduos da comunidade que Huxley
descreve partilham a mesma identidade. Na sua sociedade, todas as classes sociais são
concebidas geneticamente o que faz com que todos os cidadãos se encontrem satisfeitos com

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a classe social a que pertencem. Nesta contra-utopia, o Homem perde, inclusivamente, a
capacidade de se revoltar, neste caso contra a sua situação de classe.
ii) George Orwell e 1984 e O Triunfo dos Porcos
O mundo imaginado por Orwell é completamente diferente do de Huxley. O mundo de Orwell
é governado por um ditador que assenta o seu poder no controlo da informação e dos mass
media. Aqui, os homens são condicionados pelos próprios meios de comunicação. Graças a
estes é possível fazer acreditar os homens que a paz e guerra constituem a mesma coisa, ou que
liberdade e servidão constituem a mesma coisa. Esse mundo super-organizado conduz o homem
a pensar unilateralmente, precisamente da forma como o poder pretende que o Homem pense.
Já em O Triunfo dos Porcos Orwell desenvolveu uma fábula, em torno da história dos animais
de uma mashamba. A história começa com o sacrifício que todos os animais tinham que realizar
para satisfazer as necessidades produtivas do dono, que vivia numa boa casa, enquanto todos
os animais tinham que viver nas capoeiras e currais. Mais inteligentes, os porcos começaram
por organizar encontros, durante a noite, com os restantes animais, onde imaginavam uma
mashamba livre da dominação do Homem, e onde todos os animais fossem iguais e tivessem
uma vida digna. A dada altura realizou-se inclusive uma revolução e expulsaram o dono da
quinta, tendo-se escrito nas paredes “todos os animais são iguais”. Contudo, com o decorrer dos
tempos, os animais acabaram por trabalhar bem mais do que o faziam durante o período anterior
e os porcos viviam cada vez melhor, na casa do antigo senhor. O sistema social manteve-se
tendo-se realizado, simplesmente, uma alteração da elite dirigente. O antigo slogan acabou por
ser alterado: “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que outros”. As contra-
utopias destes dois autores demonstram que não existem instituições e sociedades perfeitas. As
instituições não podem ser instauradas sem contar com a imperfeição Humana. Ou seja, não
adianta instaurar instituições supostamente perfeitas, uma vez que a natureza do Homem é
inalterável. O Homem é Homem com as suas paixões, vícios, sentimentos e obsessões. Deste
modo, as contra-utopias constituem reflexões de ordem sociológica e, embora indirectamente,
a sua crítica contribui para um melhor conhecimento das sociedades existentes. Orwell e Huxley
demonstram que a liberdade, justiça ou felicidade, têm fatalmente de coexistir com forças
negativas, e tentar eliminá-las por completo constitui um risco muito grave. Por conseguinte, o
reino da virtude pura e da perfeição é irrealizável. A utopia é, por isso, uma utopia. O que nos
demonstram os contra- utopistas é que não existe liberdade perfeita e total, mas antes limitada
e condicionada.

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Quando a tentamos colocar em prática caímos na pior das opressões. Deste modo consegue-se
assemelhar à ideologia e à propaganda. A utopia distingue-se da ciência por três motivos:
Apesar de ambos conterem uma certa crítica, a utopia é ficcional, enquanto a ciência é real. Por
outro lado, a utopia assume um carácter insular e isolado do mundo enquanto a ciência é aberta
e exposta à crítica. Realce-se, ainda, que a utopia é por norma uma sociedade acabada e perfeita,
não transformável, enquanto o pensamento científico se pretende sempre em contestação.

EXERCICIOS DE APLICAÇÃO:
1. Identifique as diferentes correntes ao nível do pensamento utópico.

2. Explique as diferenças existentes entre a utopia clássica e a utopia experimental.

3. Explique de que forma é que os movimentos da contra-utopia realizaram uma crítica


à utopia experimental.

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CAPÍTULO IV- O CONHECIMENTO CIENTÍFICO

4.1. Definição de Ciência:


A palavra ciência deriva do latim scientia, que significa conhecimento. A palavra ciência refere-
se a um sistema de aquisição de conhecimento baseado num método científico, baseado na
verificação e na testagem rigorosa e sistemática. O discurso científico opõe-se, assim, ao mito,
à superstição, ao obscurantismo, assentes sobretudo na fé. A ciência constitui a actividade mais
impermeável ao imaginário. Newton dizia “não tenho hipóteses”, visto pensar o conhecimento
tão rigoroso e, como tal, não podia aceitar uma mera hipótese, apenas sólidas teorias,
perfeitamente sustentadas. No entanto Lakatus e Khun têm demonstrado que a ciência é uma
construção social e, portanto, cada teoria científica é um produto de determinada época, de
determinada escola científica e de determinado paradigma científico. A ciência constitui a
forma de conhecimento que tem como objectivo discernir o Real o melhor possível, na base de
propostas verificáveis e controláveis pelo investigador. De qualquer das formas, nestas formas
de discernir o Real não deixa de intervir o imaginário, nomeadamente nos processos de
formulação de conceitos e de hipóteses. É importante realçar que a ciência não constitui uma
cópia do real, mas uma construção (e portanto uma interpretação) do mesmo por parte do
cientista. É por isso importante ter em consideração que os cientistas que tiveram maior impacto
se distinguem dos restantes precisamente pelo facto de terem maior imaginação. De facto, a
invenção no domínio da ciência processa-se de um modo idêntico aos restantes domínios do
conhecimento. Processa-se com o recurso à imaginação. Por conseguinte, a ciência constitui
um instrumento de reflexão teórica. A teoria científica constitui uma construção de conceitos
coerentes, com vista a explicar as diversas observações isoladas. Portanto a ciência tem sempre
um carácter hipotético. Um facto científico deve ter validade na teoria em que foi definido.

4.2. As características do conhecimento científico:


A ciência tem, em si, um conjunto de especificidades, nomeadamente:
a) A ciência assume-se como um tipo de conhecimento existente no meio de outros. A
arte, o mito ou a ideologia constituem outras formas de conhecimento paralelas ao
conhecimento científico e a ciência não pode invalidar a legitimidade de outros tipos de
conhecimento. Deste modo a ciência condena o cientismo, que constitui um ponto de vista,

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segundo o qual a ciência é o único tipo de conhecimento válido. Na sequência do movimento
iluminista do final do século XVIII desenvolveu-se uma concepção segundo a qual a ciência
em geral (e as ciências exactas em particular) deveria conduzir à felicidade generalizada e ao
aperfeiçoamento do Homem. Portanto, a perfeição da espécie Humana dependeria da extensão
e da generalização dos métodos das ciências exactas. Augusto Comte considerou que a história
humana estava dividida em três épocas: a teológica, caracterizada pelo dogmatismo religioso;
a metafísica, caracterizada pelo pensamento filosófico; e a positivista, caracterizada pelo triunfo
da ciência. Da mesma forma Immanuel Kant considerava, inclusive, que o progresso científico
conduziria ao progresso moral, pelo que a ciência se deveria sobrepor a todos os tipos de
conhecimento. O cientismo constitui, por isso, algo a evitar, uma vez que o cientista deve
reconhecer a existência de várias verdades. De facto, a ciência não deve cumprir a finalidade
de outras formas de conhecimento, uma vez que cada forma de conhecimento tem a sua
finalidade específica. A ciência deve de facto aceitar os seus limites e restringir-se à realização
da sua própria finalidade. A ciência tem sobretudo vocação para ajudar a compreender e a
explicar diversos fenómenos ou problemas políticos e religiosos, mas não tanto para os resolver.
b) A ciência difere dos restantes tipos de conhecimento pelas seguintes
características:
i) A ciência tem um objectivo próprio, que é a busca do conhecimento e da compreensão
da realidade. Ao contrário da ideologia, a ciência não visa a acção política, mas sim a análise
da realidade.
ii) A ciência tende a assentar num conhecimento empírico. De acordo com o empirismo, as
teorias científicas são objectivas e empiricamente testáveis. O empirismo significa que qualquer
teoria deve ser constantemente verificada através de resultados empíricos, objectivamente
verificáveis e observáveis em contextos experimentais (o mais próximos possível de um
laboratório). Neste processo de observação empírica, deverão ser afastados todos e quaisquer
elementos subjectivos de análise. Deste modo, neste conhecimento empírico e factual:
- todo o cientista está empenhado na recolha de provas empíricas, factuais, com vista a
comprovar ou a negar uma determinada teoria científica.
- o cientista procura comparar as representações e as imagens de uma determinada realidade,
com a própria realidade. Ou seja, ele procurar comparar os resultados da análise de um

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determinado fenómeno (ex: um sismo, uma tempestade, uma crise económica), com a forma
como outros cientistas representavam esse mesmo fenómeno.
- o trabalho diário de um cientista é procurar confirmar ou refutar determinadas teorias sociais,
confrontando-as com os objectos de estudo e com os dados que vai recolhendo para, a partir
daí, reformular (novas) teorias científicas.
iii) O conhecimento científico é factual. Os objectos das ciências factuais são factos,
realidades exteriores ao sujeito (ex: sismo, tempestade, uma estatística sobre desemprego, etc.).
Os factos desencadeiam o processo de conhecimento porque o sujeito quer obter conhecimento
desses factos, nomeadamente as suas causas e consequências.
iv) O conhecimento científico não resulta da simples recolha de dados e de factos. O
conhecimento científico produz teorias, que mais não são do que representações sobre os factos,
e não factos em si
v) Uma teoria científica é metódica. De facto, existem vários procedimentos para produzir
conhecimento válido. O cientista está sujeito a determinadas regras e a determinados métodos.
Trata-se de um trabalho com regras, que determina as suas escolhas ao longo da investigação
(que amostra analisar? Durante quanto tempo? Com que profundidade? De que forma? Sob a
orientação de que teoria?). O método científico constitui um processo que implica o
planeamento e um rigor ao nível da tomada de decisões.
vi) o conhecimento científico é sistemático, onde todos os elementos do processo de
conhecimento interagem entre si (o investigador, a teoria, o objecto de estudo e o método). Por
outro lado, existe sempre uma relação entre o conhecimento anterior e um novo conhecimento.
Deste modo, ao longo das investigações científicas existem sempre duas hipóteses: ou o
conhecimento e a teoria anterior são consolidados, ou o conhecimento apresenta falhas e, por
consequência, avançam-se para novas perguntas para verificar se o novo conhecimento é
sustentável.
vii) Uma teoria científica é demonstrável. Ao contrário do mito, as teorias científicas podem
ser objectivamente observadas na realidade.
viii) Uma teoria científica é verificável, isto é, as propostas científicas podem ser testadas. A
objectividade científica depende da possibilidade de verificação das hipóteses. A ciência admite
por isso a crítica e a falsificação das suas teorias. Ao contrário da ideologia, a ciência encontra-
se, inclusive, aberta à contestação e ao debate interno.
ix) A ciência tem uma finalidade própria que é a busca da verdade.

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c) A ciência assume que tem limitações, nomeadamente relacionados com a construção das
suas teorias e com a fragilidade das mesmas.
i) A ciência é feita de conceitos teóricos construídos e imaginados pelos cientistas. De facto
não há conhecimento científico sem conceitos. O conceito (ex: classe social; depressão; alegria;
violência) constitui a única maneira que dispomos para aprender cientificamente a realidade.
Essa realidade é infinita e o conceito é forçosamente limitado. Assim, não existe nenhum
conceito (inclusivamente a sua totalidade) que possa dar plenamente conta da realidade. Assim,
sendo a realidade infinita, o cientista é obrigado a operar uma selecção, a qual dependerá sempre
do sujeito que analisará a realidade. Em qualquer estudo científico, o indivíduo privilegiará
alguns aspectos negligenciando outros. Por outro lado, qualquer conceito é sujeito a diversas
interpretações, consoante a cultura de cada sociedade ou as experiências de cada indivíduo. A
título de exemplo, a noção do que é violento varia de uma sociedade urbana (onde os indivíduos
trabalham sobretudo em escritórios e exercem funções intelectuais) para uma sociedade rural
(onde os indivíduos trabalham sobretudo na agricultura e onde exercem, à partida, maiores
esforços físicos), de um cidadão que experimentou uma situação de guerra, de um outro que
viveu sempre em paz. Deste modo, um conhecimento científico não deixa de constituir um
ponto de vista de um cientista, que terá sempre de ser demonstrado e verificado. Uma análise
científica tem como ponto de partida determinados valores pelo que, ao longo de qualquer
trabalho científico, deparamo-nos com diversos momentos arbitrários. Trata-se de períodos em
que determinados aspectos são considerados importantes para o cientista, em detrimento de
outros. Por exemplo, não existe uma maneira única de explicar a guerra dos 16 anos que
decorreu em Moçambique a partir de finais da década de 1970. Cada explicação é condicionada
pela existência prévia de valores e orientações políticas, de crenças, de motivações e de
expectativas políticas e sociais, que por sua vez condicionam a selecção de factos, ou a
enfatização de informações com vista à análise do fenómeno. A neutralidade axiológica
constitui, por este motivo, um mito, uma vez que qualquer investigador é portador das suas
próprias convicções e é condicionado pela época em que viveu. Neste sentido, os resultados de
qualquer estudo científico só adquirem validade na dimensão espácio-temporal em que foram
estabelecidos. Não existe explicação científica que seja independente das condições sociais e
económicas que a suportam. Os nossos valores constituem a base de qualquer trabalho, mas
esta inevitável subjectividade é compensada pelo reconhecimento dos limites desse trabalho.
Ou seja, é precisamente a partir do momento que

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reconhecemos os limites do nosso trabalho e que demonstramos e verificamos os nossos
pressupostos de partida que o nosso trabalho adquire objectividade. Com o evoluir dos tempos,
os problemas alteram-se e os novos valores vão surgindo e condicionando novas pesquisas.
Como dizia Max Weber, a ciência é eternamente jovem, pelo que não há ciência acabada ou
definitiva.
ii) O problema da crítica. Como referia Karl Popper, a ciência tem como principal objectivo
colocar-se incessantemente em questão. No entanto, a crítica não deve ser entendida como um
simples meio para destruir “inimigos”, como o é no caso da ideologia. Ao contrário da ciência,
o mito não tem necessidade de aperfeiçoar os seus métodos e preconceitos. A fé num mito não
precisa de crítica, uma vez que o crente acredita no carácter incontestável da revelação. Já a
ciência tem necessidade de aperfeiçoar os seus métodos e conceitos, uma vez que estes estão
permanentemente expostos à crítica e à verificação. Para Popper, o princípio da ciência reside
precisamente nessa auto-crítica e refutação. Assim, a ciência consiste num conjunto de
conjecturas, na base das quais analisamos a realidade. Deste modo, para que uma teoria ou
hipótese seja considerada como científica, serão necessários dois requisitos:
- Por um lado a hipótese deve ser refutável e aceitar a refutação. Uma teoria só se torna
científica e válida a partir do momento em que aceite e resista às críticas e às refutações.
- Por outro lado, uma teoria não é suficientemente válida enquanto não for infirmada e
contrariada. Assim, a validação da ciência faz-se pela crítica, pela negativa. Uma ciência nunca
é válida de uma vez por todas. Não existem verdades absolutas e definitivas, mas unicamente
aproximações lentas à verdade. É precisamente o erro e a crítica que permitem o progresso
científico. A ciência progride ao eliminar os seus próprios erros e, consequentemente, ao vencer
e resistir às críticas.

4.3. O método científico:


Como vimos, o objectivo da ciência prende-se com a compreensão e com a explicação. O
método constitui um caminho para chegar a esse objectivo. Trata-se de um meio e não de um
fim. O método científico constitui apenas mais uma condição, entre outras, para a produção do
conhecimento científico. O método científico constitui uma maneira de ordenar o pensamento
e a recolha de dados, com visto à produção de um conhecimento considerado científico. Ainda
que exista uma metodologia geral e abrangente, cada ciência tem a sua própria metodologia
científica. Assim, mesmo nas ciências sociais, cada ciência utiliza a sua

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própria metodologia (ex: a sociologia tende a privilegiar o inquérito por questionário; a
antropologia tende a adoptar o trabalho de campo; a história tende a privilegiar a consulta
documental, etc.), pelo que cada uma das ciências enfrenta desafios específicos. Podemos
avançar com a seguinte definição de método: “conjunto de actividades sistemáticas e
racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar um determinado
objectivo, nomeadamente a produção de conhecimentos válidos e verdadeiros, traçando o
caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”

A partir da definição anterior, podemos constatar que um método constitui:


- Conjunto de actividades: não é um procedimento particular e concreto nem uma soma de
procedimentos; trata-se de um conjunto ordenado de processos interdependentes entre si.
- Actividade sistemática: Actividades relacionadas entre si. Há de facto uma interacção entre
as diversas etapas do método
- Actividade racional: Todas as etapas do método são comandadas e ordenadas pela razão.

Deste modo a razão confere, ao método, uma coerência e sistematização do processo:


- Segurança e economia: O método científico foi construído com o objectivo de se obter uma
maior segurança e um uso racional (óptimo) dos recursos – económicos (financiamento da
investigação), temporais (disponibilidade do cientista) e físicos (disponibilidade dos
instrumentos de análise (laboratórios, utensílios para realização de experiências e para a recolha
de dados, gravadores para gravação de entrevistas, etc.). De facto, qualquer investigação está
dependente de uma série de recursos (temporais, financeiros), pelo que importa maximizar a
disponibilidade dos sujeitos envolvidos, bem como dos recursos económicos.
- Mapeamento da investigação: O método traça caminhos. De facto, o método fornece ao
cientista uma sequência de passos que ele deve seguir, para o nortear ao longo da investigação.
O método constitui um ponto de referência para o produtor de conhecimento. Trata-se de um
mapa que o auxilia ao longo do processo de investigação. O método permite ao cientista ir
detectando erros ao longo da investigação
- Produção de eficácia: O método foi construído para produzir eficácia. Ou seja, o caminho
traçado traz um conjunto de vantagens para o investigador, pelo que é recomendado que esse
caminho seja seguido, ainda que possa ser alterado, de acordo com as circunstâncias e

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dificuldades. Importa salientar que o cientista deve expor o método que utilizou e tem de estar
sujeito à contestação do método. De facto, em qualquer investigação, a metodologia utilizada
deve ser claramente demonstrada, com vista a dar credibilidade à investigação. Se o método
não for aplicado, o conhecimento pode ser invalidado. De uma forma simplista, e como os
estudantes poderão verificar nas unidades da disciplina de Métodos e Técnicas de Investigação,
o método científico contém as seguintes etapas:
1. Escolha do tema de investigação: trata-se de escolher o assunto em torno do qual se
pretende realizar uma pesquisa (ex.: insucesso escular, desenvolvimento, impacto ambiental…)
2. Definição da pergunta de partida: consiste em definir uma questão, à qual se pretende dar
resposta. Ex.: “Quais são as causas de reprovação dos estudantes da Escola Secundária
Joaquim Chissano em Xai-Xai?”; “Qual o impacto da exploração de hidrocarbonetos para os
empresários do sector do turismo em Pemba?”; “Qual seria o impacto ambiental da construção
de uma barragem em Mpanda Nkuwa?”
3. Formulação das hipóteses: Nesta fase o investigador deverá elaborar a tese que pretende
comprovar ou refutar ao longo da sua investigação, após a recolha dos dados. Vejam-se os
seguintes exemplos: “A má nutrição constitui a principal causa de insucesso escolar dos
estudantes”; “Os empreendimentos com maior qualidade hoteleira constituem aqueles que mais
beneficiam da exploração dos hidro-carbonetos”; “A construção da barragem em Mphanda
Nkuwa irá afectar significativamente as espécies aquáticas do rio Zambeze”. Após a recolha
de dados, o investigador irá testar as hipóteses inicialmente estabelecidas.
4. Definição dos conceitos a utilizar:. Nesta fase o investigador procura operacionalizar os
conceitos que vai utilizar, distinguindo as suas dimensões e procurando identificar indicadores
concretos. Por exemplo, o investigador poderá ter que definir o que significa exactamente “má
nutrição” ou “qualidade hoteleira”, definindo concretamente indicadores de medição. Por
exemplo, para o conceito de má nutrição, o investigador deverá criar indicadores concretos de
medição da qualidade nutritiva, como por exemplo os seguintes: “quantidade de calorias
ingeridas”, “número de refeições diárias”, “variedade de alimentos consumidos”, etc..
5. Escolha da metodologia: Nesta fase o investigador define o método que vai utilizar para
realizar a sua pesquisa. Quanto ao método o investigador pode optar pela aplicação de inquéritos
por questionário, pela realização de entrevistas, pela pesquisa de terreno, pela realização de
grupos focais, entre outros. Uma vez que o investigador não poderá entrevistar,

30
inquirir ou observar todas as pessoas, terá que optar pela realização de uma amostra de
indíviduos em torno dos quais irá recolher as informações.
6. Análise dos resultados recolhidos e comprovação das hipóteses: Nesta fase o investigador
irá interpretar a informação recolhida, por exemplo através de métodos estatísticos e, com ela,
confirmar ou refutar a hipótese inicialmente construída.

4.4. Classificação das Ciências:


Os critérios de classificação das ciências assentam na metodologia de investigação que utilizam
(análise de laboratório, realização de entrevistas, aplicação de questionários, etc.), do objecto
de estudo (plantas e animais, solos agrícolas, comportamento do homem em sociedade, etc.),
bem como na maneira de validação do conhecimento. Deste modo, é comum proceder-se a uma
divisão das ciências entre ciências naturais e ciências sociais:
a) As ciências naturais procuram sobretudo encontrar e trabalhar em torno de leis exactas,
assentes em fórmulas químicas ou matemáticas. Estas ciências são chamadas as ciências
exactas, onde predomina sobretudo a objectividade (medição de quantidades, etc.) e onde se
utiliza sobretudo a experimentação (em laboratório). Entre as ciências naturais podemos dar
como exemplo a biologia, a química ou a física.
b) As ciências sociais abordam sobretudo o estudo do homem e das sociedades. Por motivos
éticos, as ciências sociais não realizam a experimentação laboratorial, pelo menos com tanta
frequência. De facto, é bastante problemático isolar os indivíduos em laboratório, isolando-os
dos seus meios de pertença, com vista a realizar experiências científicas sobre os seus
comportamentos. De qualquer das formas, sobretudo no âmbito da psicologia social têm sido
realizadas algumas experiências laboratoriais sobre as temáticas do conformismo ou da
imitação. Entre as ciências sociais podemos distinguir a sociologia, a psicologia, a história, a
antropologia ou a geografia, entre outras. De qualquer das formas, as ciências sociais não fazem
experimentação com tanta frequência, caracterizando-se pelos seguintes aspectos:
- As ciências sociais observam os fenómenos sociais, onde muitas vezes o cientista está
inserido.
- A realidade social é o laboratório. Assim, o próprio habitat do cientista social pode constituir
o seu próprio local de trabalho. Como veremos nos capítulos seguintes, este aspecto levanta um
conjunto de questões relacionadas com a sua neutralidade na produção de conhecimento, uma
vez que ele está imerso nos fenómenos que está a estudar.

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- Capacidade de observação sistemática através de um método. Pelos motivos anteriores, e com
o objectivo de garantir o rigor e a objectividade, o cientista procura adoptar métodos científicos
de análise dos fenómenos sociais, através da definição de amostras representativas e de
processos objectivos e imparciais de recolha de dados.
- A observação não é espontânea: é controlada pela teoria e está sujeita a um método.
- Normalmente a experimentação não é usada pois, excepto no caso da Psicologia Social, é
problemático provocar factos sociais.

EXERCICIOS DE APLICAÇÃO:
1. Explique a diferença entre ciência e cientismo

2. Explique quais são as características da ciência que a distinguem das restantes formas de
conhecimento previamente analisadas.

3. Explique a importância da crítica para o conhecimento científico

4. Explique as vantagens do método científico

5. Explique as diferenças entre ciências sociais e ciências naturais

GLOSSÁRIO:

Ciência: Forma de conhecimento sistematizado, que se debruça sobre aquilo que é


empiricamente observável, fundado sobre princípios evidentes e observáveis e que é permeável
à crítica. Aceita a crítica com vista ao respectivo desenvolvimento. Implica a existência de um
método científico.
Crítica científica: atitude característica do conhecimento científico de duvidar (quer das
observações, das experimentações, quer das teorias), de problematizar e de procurar o erro.
Dogma: crença estabelecida na sociedade (numa religião, numa ideologia, etc.) que é
considerada indiscutível e irrefutável. Trata-se de princípios fundamentais que se considera que
não devem ser respeitados. Por exemplo, em qualquer religião existem princípios

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fundamentais (existência de Deus, frases proferidas por profetas) que são considerados básicos,
impedindo-se desta forma a respectiva discussão.
Empírico: tudo aquilo que pode ser observado pelos sentidos, ou seja, através da observação e
da experiência. Opõe-se desta forma à metafísica (ver definição). A ciência utiliza o empirismo
uma vez que se debruça sobre a análise de tudo o que pode ser observado pelos sentidos, bem
como na experimentação e verificação, contrariamente ao mito, que assenta para além de
assentar em dogmas (logo não há experimentação/verificação possível) se debruça sobre a
análise do que é metafísico.
Epistemologia: ramo da filosofia que se debruça sobre as origens e validade do conhecimento.
De uma forma simplista pode-se dizer que a epistemologia é uma ciência que estuda a própria
ciência, ou seja, que estuda a forma como o conhecimento científico é processado.
Fé: Firme convicção que algo é verdadeiro sem qualquer tipo de prova ou critério objectivo e
empírico de verificação. Assenta simplesmente na absoluta confiança que temos numa
determinada ideia, sem que essa ideia ter dado provas concretas de ser verdadeira (ex.: um
crente acredita em Deus sem nunca ter visto Deus).
Ideologia: Forma de conhecimento, de cariz político, que tem como objectivo a conquista do
poder e a transformação da realidade. Agindo por intermédio da persuasão e da dissuasão,
manipulando a realidade, a ideologia pode ser considerada um instrumento de dominação.
Lógica: trata-se do estudo filosófico do raciocínio válido. Examina de forma genérica as formas
que a argumentação pode tomar, quais são válidas e quais são falaciosas.
Metafísica: Trata-se de uma disciplina da filosofia que se debruça sobre grandes questões
abstractas relacionadas com o sobrenatural, nomeadamente com a existência do mundo, com a
existência de outros mundos, com a existência de Deus, com a existência de espíritos e de almas
ou com a vida além da morte, entre outras questões. Os objectivos da metafísica não são por
isso acessíveis à investigação empírica (ver definição).
Método Científico: trata-se de um conjunto de regras básicas de como se deve proceder a um
conhecimento tido como científico, baseado na observação sistemática e controlada, analisado
de forma lógica.
Mito: primeira tentativa de explicar o mundo (nomeadamente os fenómenos naturais, a origem
do Mundo ou o surgimento dos Homens, bem como Deuses) em contextos, particularmente
presente (mas não apenas) em contextos onde a ciência ainda não penetrou. O

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mito está associado ao rito (rituais), que se trata da forma de colocar em acção os mitos do
homem. Apesar de não deixar de ter uma função social (de explicar a realidade, de reduzir a
ansiedade das populações, de dar significados aos fenómenos e de permitir uma aprendizagem
social), o mito tem sido utilizado de forma pejorativa, para se referir às crenças comuns das
comunidades.
Objectividade: A objectividade significa ausência de tendenciosidade (ser tendencioso)
quando se interpreta um determinado fenómeno. Significa por exemplo fazer uma pergunta que
não encoraje os entrevistados a dizer o que queremos ouvir; levar em conta todas as informações
confiáveis que se relacionam com a pesquisa e não apenas aquelas que confirmam a nossa
opinião; avaliar os dados de acordo com critérios claros. A objetividade é contrária da
subjetividade. Uma informação objetiva poderia ser: estão 25 graus centígrados (trata-se de
algo que é interpretado da mesma forma por qualquer pessoa). Uma informação subjectiva seria
“Está a fazer muito calor” (para determinados indivíduos pode não estar assim tanto calor,
enquanto outros podem estar a sofrer com o calor, ou seja, depende de pessoa para pessoa.
Razão: Capacidade da mente humana que lhe permite chegar a conclusões e dar explicações
de causa-efeito. A razão permite identificar e operar conceitos em abstracto, encontrar coerência
e contradições, formando assim novos conceitos. A razão distingue-se assim da emoção e da
fé.
Ritual: Forma de comportamento, padronizado, usado para manter um determinado sistema
social, e relembrar uma determinada tradição. Nas cerimónias religiosas, o ritual serve para
lembrar as obras de um determinado profeta, bem como a relação social entre os crentes
(lembrando as normas sociais dessa comunidade) ou entre os crentes e as forças sobrenaturais.
Através do ritual processa-se uma aprendizagem dos valores de uma determinada comunidade.
Senso Comum: trata-se de formas simplistas de compreensão do mundo, resultantes das
tradições e da influência dos grupos sociais onde estamos inseridos, não sujeitas à verificação,
à demonstração ou à crítica. No senso comum não existe uma análise profunda, mas apenas
uma análise espontânea e não aprofundada, resultante das experiências do dia-a-dia e das
interacções quotidianas que temos com a realidade.
Subjectividade: relaciona-se com o mundo interno e íntimo (crenças e valores pessoais, que
resultam da sua educação e experiência de vida) através do qual ele se relaciona com o mundo

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social, resultando daí numa interpretação pessoal e única dos fenómenos sociais Exemplo: a
minha opinião sobre a actual governação é subjectiva, porque depende dos meus valores e das
minhas atitudes políticas relativamente ao partido que está no poder.
Subjectivo: a subjectividade é entendida como o espaço íntimo de cada indivíduo, com o qual
ele se relaciona com o mundo social que o rodeia, resultando por isso da sua cultura (dos seus
valores, das suas crenças, dos seus preconceitos, da sua experiência única de vida, que varia de
pessoa para pessoa). Na subjectividade há assim interpretações únicas. (ver o conceito de
objectivo)

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CAPÍTULO V – QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS
Aqui pretende reflectir-se sobre uma série de questões relacionadas com os obstáculos
epistemológicos à produção de conhecimento, a importância da crítica e do falsificacionismo e os
conflitos entre paradigmas de investigação, iremo-nos concentrar assim em apenas uma dessas
formas de conhecimento abordadas anteriormente: a ciência. A epistemologia é uma ciência que
estuda a própria ciência, que estuda a forma como o conhecimento científico é processado. Trata-
se assim de conhecer os obstáculos que os investigadores enfrentam no processo de conhecimento,
que deturpam o principal objectivo da ciência: que é a descoberta da verdade. Trata-se de
identificar diversos elementos subjectivos inerentes a cada investigador (paixões, expectativas,
valores,.), compreender a importância do falsificacionismo na produção de conhecimento e, de
entender a produção de conhecimento científico como um processo político e social. Iremos
analisar 4 autores que influenciaram, a forma de produção de conhecimento científico, Gaston
Bachelard, Karl Popper, Thomas Kuhn e Emri Lakatos.

5.1. GASTON BACHELARD E A PSICANÁLISE DA CIÊNCIA


Introduziu no século XX noções e conceitos que revolucionaram o conhecimento científico: ultra-
racionalismo; epistemologia descontínua; o obstáculo à construção da ciência e o inconsciente
científico ou psicanálise do conhecimento científico.

5.1.1. Breve biografia:

O filósofo e ensaísta francês Gaston Bachelard nasceu em 1884. Na década de 1920 foi professor
do ensino secundário de física e química. Aoss 35 anos iniciou os estudos de filosofia, que também
leccionou. Em 1940 foi leccionar na Sorbonne em Paris. Em 1955 ingressa na Academia das
Ciências Morais e Políticas em França. Em 1961 recebeu o grande prémio nacional das letras.
Bachelard faleceu em 1962, com 78 anos.

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5.1.2. Os obstáculos epistemológicos:
O conceito de obstáculo epistemológico é um dos mais centrais conceitos da filosofia da ciência
de Bachelard. De acordo com Bachelard é em termos de obstáculos epistemológicos e necessidade
de ultrapassagem que se deverá colocar o problema do progresso do conhecimento científico. O
conceito de obstáculos epistemológicos é composto por duas palavras:
a) Obstáculos: barreiras, entraves, algo que prejudica, neste caso a verdade.
b) Epistemológicos: Epistemologia constitui uma ciência que estuda a própria ciência. É o
estudo da forma como o conhecimento científico é feito, erros mais frequentes dos investigadores,
forma como realizam as críticas, forma como arrumam suas teorias. Juntando as duas palavras
poderemos concluir que os obstáculos epistemológicos são barreiras à produção de conhecimento,
que interferem no processo de descoberta da verdade, deturpam a interpretação dos fenómenos e
levam os investigadores a tirarem conclusões erradas. Podem ser de carácter externo ou interno:
 Obstáculos externos estão relacionados com a complexidade e fugacidade dos fenómenos (ex.:
estou a estudar os vulcões, mas não aconteceu nenhum vulcão para eu estudar), a falta de recursos
financeiros que me obrigam a encurtar o período de análise, o receio das pessoas em responder às
questões etc. Temos apenas a experiência sensível do imediato e do directo. Diversos fenómenos
apresentam-se de forma complexa e, por vezes, contraditória, o que constitui um obstáculo ao
conhecimento, externo ao indivíduo. Assim, a primeira observação ou a primeira experiência são
muitas vezes enganadoras, uma vez que não houve ainda uma testagem exaustiva e profunda. Um
outro exemplo prende-se com a generalização. A generalização apressada e fácil proporciona um
perigoso prazer intelectual que leva o pensamento à imobilidade e à preguiça.
 Os obstáculos internos estão ligados aos problemas interiores do próprio sujeito cognoscente
(que conhece, que investiga) que, como ser sensível e portanto influenciável por afecções ou
opiniões, desperta, no próprio acto de conhecimento, os seus estados de alma. Os obstáculos
internos estão relacionados com o mundo interior do indivíduo, com seus valores e preconceitos,
suas expectativas, toda a sua subjectividade e influenciam ao nível da compreensão de um
determinado fenómeno.

5.1.3. O inconsciente científico:


O conceito de inconsciente científico divide-se em duas palavras:

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 Inconsciente: também designado de subconsciente é um termo psicológico que designa os
processos mentais que se desenvolvem sem a intervenção da consciência ou da razão. Os
processos mentais inconscientes são aqueles que nós não conseguimos controlar através da razão,
por exemplo o medo, paixões ou criatividade. Estes processos resultam muitas vezes de
experiências traumáticas decorridas ao longo da vida, de acordo com as correntes da psicologia da
psicanálise.
 Científico: Como foi visto na unidade anterior trata-se do processo de procura da verdade com
base em métodos empíricos e usando a razão e sujeito à crítica.

Concluímos assim, que o Inconsciente Científico é todo o mundo interior do investigador,


composto por toda a sua subjectividade, por valores, crenças e preconceitos, ambições e
expectativas, sua experiência de vida, educação primária que teve e que interferem ao nível da
produção de conhecimento, constituindo por isso um obstáculo epistemológico. Os obstáculos
epistemológicos internos encontram-se no inconsciente dos cientistas, intrínsecos às suas
fantasias, preferências emotivas e educacionais, preconceitos sociais, inclinações religiosas e
mesmo suas condições ou convicções políticas. Diversos fenómenos, os grupos de pertença ou
grupos de referência dos indivíduos condicionam uma série de valores e atitudes, que influenciam
uma série de aspectos associados à produção de conhecimento científico: escolha do objecto de
estudo, teoria de partida, formulação de hipóteses, metodologia utilizada. Estas imagens do
inconsciente entravam o progresso da razão e do conhecimento objectivo, formando o que se
designa de “reino da imaginação poética”.

5.1.4. A psicanálise da ciência:


A psicanálise constitui um conceito introduzido por Sigmund Freud. Trata-se de um procedimento
de investigação de processos mentais (paixões, medo, criatividade), que são quase inacessíveis de
outro modo, usados para o tratamento de distúrbios neuróticos, decorrentes do inconsciente do
indivíduo. A Psicanálise debruça-se sobre o estudo e tratamento de fenómenos que se encontram
no inconsciente humano, muitas vezes de análises através dos sonhos. O conceito de psicanálise
da ciência foi introduzido por Gaston Bachelard, inspirando-se em Sigmund Freud e constitui
precisamente o processo de consciencialização do inconsciente científico de cada investigador.
Trata-se de um processo auto-reflexivo de cada investigador sobre si próprio, sobre seus medos e
paixões, sobre seus grupos de pertença e de referência, sobre suas expectativas e ambições, sobre
suas convicções políticas e religiosas, bem como sobre

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o respectivo impacto ao nível da produção de conhecimento e sobre a interferência na descoberta
da verdade. A psicanálise da ciência designa um processo de auto-reflexão interior, de expurgação
e «tratamento» dos elementos subjectivos e do inconsciente científico do indivíduo, para que não
interfiram no processo de investigação e na descoberta da verdade. Como resultado das
contribuições de Sigmund Freud no campo da psicanálise, o período em que Bachelard viveu foi
algo confuso ao nível da epistemologia das ciências. O inconsciente científico constituía um reino
recém-descoberto mas que se provava constituir a base dos entusiasmos e convicções subjectivas,
que formam obstáculos à ciência e à produção de conhecimento. Por estes motivos, Bachelard
declara que, inspirando-se em Sigmund Freud, é necessário psicanalisar a dinâmica do
conhecimento. Trata-se de separar do conhecimento científico os elementos recalcados (que em
grande parte constituem os obstáculos epistemológicos), fortemente impregnados de afecto
libidinal, decorrente da infância dos cientistas, mostrando-os racionalmente, ou seja, elevando-
os a um estado consciente. O conhecimento objectivo deve constituir um conhecimento
psicanalisado, de onde todos os elementos fantasiosos, emotivos, preconceituosos e sentimentais
devem ser expurgados (eliminados, tratados, psicanalisados). Trata-se com efeito de descortinar a
influência dos valores inconscientes na própria base do conhecimento científico. Para Bachelard,
o espírito científico precisa de se libertar de maus hábitos, pelo que toda a cultura científica deveria
começar por uma autêntica “catarse intelectual e afectiva”. A psicanálise do conhecimento
científico revela-se como uma verdadeira pedagogia científica, um instrumento do conhecimento
objectivo útil para desmitificar as opiniões enganadoras e os obstáculos epistemológicos. A
psicanálise permitirá compreender e curar: a cura neste caso consiste em pôr em evidência o erro
e a sua génese para o eliminar. Trata-se de um verdadeiro exorcismo do erro. Neste sentido, a
crítica científica deve partir do próprio sujeito cognoscente - auto-crítica - e dirigir-se de uma
forma inteiramente racionalista e objectiva à sensação, às convicções primeiras, ao senso comum,
à opinião, à própria linguagem e significação das palavras e, sobretudo, ao inconsciente do
cientista: “Trata-se da primazia da reflexão sobre a percepção”. Para Bachelard, mais importante
que analisar um determinado objecto de estudo (ex.: o desemprego), é importante analisar o próprio
investigador e as relações afectivas (ex.: medo de ficar desempregado, preconceito que se as
pessoas não trabalham é porque são preguiçosas, revolta em relação ao governo.) que ele tem com
esse objecto de estudo. Precisamente porque essas relações afectivas podem condicionar o
percurso da investigação. Mais importante que analisar um objecto de estudo é auto-analisar o
inconsciente científico do cientista. O grande contributo de Bachelard relacionou-se com o facto
de que mais importante que analisar um determinado objecto de estudo passou a ser analisarmo-
nos a nós mesmos, como investigadores.

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Na prática, tal reflexão interior traduzir-se-ia num desvio da ciência do seu trabalho positivo e da
sua vontade de objectividade para descobrir o que resta de subjectivo nos métodos mais severos:
questões de aparência psicológica ou postulados metafísicos subjacentes em todo o espírito
humano, mas que falseiam qualquer tentativa de trabalho rigorosamente científico. Todo o
conhecimento é construído por um sujeito com emoções, sentimentos, experiências e valores
pelo que importa, antes de mais, analisar esses próprios elementos subjectivos, que condicionam
o processo de conhecimento. O papel da filosofia científica torna-se, portanto muito claro:
“...psicanalisar o interesse, arruinar todo o utilitarismo, por mais disfarçado que se revele e por
mais elevado que se pretenda, desviar o espírito do real para o artificial, do natural para o
humano, da representação para a abstracção (...). O amor da ciência deve ser um dinamismo
psíquico autónomo. No estado de pureza realizada por uma psicanálise do conhecimento
objectivo, a ciência é a estética da inteligência”.

Vejamos os seguintes exemplos:


Exemplo 1: De nacionalidade alemã, Hannah Arendt foi uma cientista social que se destacou no
século XX no campo da filosofia e da sociologia. Em 1933, com a chegada de Adolf Hitler ao
poder, sua origem judia passou a constituir um problema. Conseguiu escapar da Alemanha e
passou por Praga de onde se mudou mais tarde para Paris. Em França trabalhou durante 6 anos
com crianças judias expatriadas. Durante a ocupação nazi da capital francesa foi presa pela polícia
alemã, em 1941 fugiu para os Estados Unidos, onde viveu até à sua morte, em 1975. A experiência
que viveu neste período de ascensão do nazismo condicionou o seu trabalho científico futuro a
vários níveis:
 Na escolha do próprio objecto de estudo e do tema de investigação. Arendt investiu grande
parte do seu trabalho científico a analisar os sistemas totalitários em geral e o regime nazista em
particular. A escolha do seu objecto de estudo respondia claramente a uma questão existencial:
compreender a atitude dos antigos agressores do seu povo.
 Na escolha dos próprios conceitos. Introduziu um conjunto de conceitos impregnados das
emoções que sentiu durante a sua infância. A título de exemplo, o conceito de “terror” foi
constantemente explorado ao longo dos seus ensaios.

Exemplo 2: A historiografia do período colonial varia bastante consoante a experiência dos


cientistas. Entre os contributos historiográficos de autores africanos, que sentiram directamente a
exploração colonial é tendencialmente sensível a utilização de conceitos mais emotivos (“jugo
colonial”), o destaque dos aspectos opressores do colonialismo (escravatura, trabalho forçado,

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processo de assimilação, expropriação de terras, racismo). O assunto em análise (presença
colonial) constituiu algo que teve consequências negativas directas para o cientista (e respectiva
família) o que, influencia o seu processo de análise e conhecimento. Em termos comparativos, os
contributos de autores oriundos das antigas potências colonizadores conferem maior destaque a
outros temas, relacionados com viagens marítimas e terrestres anteriores ao século XIX ou com a
influência das culturas e das línguas europeias. Para um estudante de história em Moçambique,
determinadas figuras históricas (ex. Vasco da Gama) podem ser interpretadas como exploradores
ou racistas. Mas a mesma personagem, para um aluno de história na Europa pode ser interpretada
como herói, alguém que fez um feito único. A realidade é que, em ambas as historiografias, é
perceptível que a produção de conhecimento cumpre uma série de funções identitárias, tanto a
nível pessoal como nacional. Ambas as análises estão carregadas de elementos subjectivos,
nacionalistas, que enviesam a análise e deturpam uma compreensão clara e real dos fenómenos.
Na linha de Bachelard, estes fenómenos mais polémicos carecem de psicanálises do conhecimento
científico, por parte dos investigadores. Observa-se que:
 Os obstáculos epistemológicos podem ser externos (ao indivíduo) ou internos.
 Os obstáculos internos estão relacionados com o inconsciente científico: todo o mundo
subjectivo do sujeito, seus valores, preconceitos, receios e expectativas, etc.
 O inconsciente científico interfere ao nível da descoberta da verdade, condiciona a escolha
do objecto de estudo (não neutral e influenciado pelo mundo interior do indivíduo), a definição
das hipóteses de investigação. Influencia a escolha dos conceitos. Por ex.:, um estudo sobre
relações laborais, o investigador que seja operário tenderá a utilizar expressões como “sofrimento”,
“maus tratos”, “direitos”. Já um patrão usará expressões como “produtividade”, “eficácia” e
“desempenho”. Ou seja, as expectativas de cada um condiciona a escolha dos conceitos, a
interpretação dos resultados e conclusões do estudo, não existe neutralidade axiológica.

EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO:
1. Clarifique o significado do conceito de inconsciente científico e explique de que forma é
que pode constituir um obstáculo epistemológico ao nível da produção de conhecimento

2. Realize o seguinte exercício de auto-reflexão:


a) Identifique um fenómeno social que gostasse de analisar (ex.: desemprego, stress no trabalho,
criminalidade, combate à pobreza, acidentes rodoviários, etc.)
b) Reflicta em seguida sobre:

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i) A sua experiência (bem como das pessoas mais próximas de si) com esse fenómeno social
ii) Todos os seus valores em relação a esse fenómeno social (e a sua opinião pessoal sobre o
assunto)
iii) Todas as suas expectativas em relação a esse fenómeno social (o que gostaria que mudasse ou
se mantivesse)
c) Explique de que forma é que todos os aspectos enumerados na alínea b) poderiam influenciar
o seu processo de conhecimento, bem como as conclusões do seu estudo.

5.2. A FALSIFICAÇÃO DA CIÊNCIA (KARL POPPER)


Tal como o filósofo grego Sócrates, Popper não colocou a ênfase no saber que já existe ou que já
foi construído, mas sim no processo de crítica e de melhoramento do mesmo. De facto, Sócrates
adoptou um princípio assente na humildade científica, expresso na máxima “só sei que nada sei”.
Popper salientou a importância de estudo dos erros da ciência, enfatizando os processos de
refutação e de falsificacionismo do conhecimento científico. Foi contemporâneo de uma série de
pensamentos científicos que se transformaram em ideologias de carácter totalitário. A reacção de
Popper foi bastante benéfica para a produção de debate e de crítica interna dentro de cada teoria,
de forma a refutar todo um conjunto de verdades, tidas como absolutas pelos chamados ismos
(nazismo, marxismo, estalinismo, fascismo, maoismo, comunismo, capitalismo, etc.)

5.2.1. Breve biografia:

Karl Popper nasceu em Viena de Áustria em 1902. Em 1918, ingressou na Universidade de Viena.
Estudou matemática, física, filosofia, psicologia e história da música. De início, simpatizou com
as ideias marxistas, vindo mais tarde a afastar-se dessas doutrinas, por considerá-las demasiado
dogmáticas. Em 1923 terminou a licenciatura e, dois anos mais tarde, ingressou no recém-formado
instituto de Viena como assistente social. Foi professor do ensino secundário e conviveu com o
célebre Circulo de Viena, formado na década de 1920, um grupo filosófico de orientações
positivistas, que pretendia eliminar conceitos alegadamente sem sentido

42
bem como o que designavam de quimeras metafísicas. Em 1934 conclui a primeira versão da sua
mais importante obra A Lógica da Descoberta Científica. Devido às suas origens judaicas, foi
vítima da perseguição dos nazis, refugiando-se na Grã-bretanha e Nova Zelândia, onde entre 1938
e 1946 ensinou Filosofia na Universidade da Nova Zelândia. Neste período escreveu obras de
conteúdo político: a Pobreza do Historicismo e A Sociedade Aberta e os seus Inimigos. Regressou
a Inglaterra prosseguindo a carreira universitária. Em 1969 concentrou-se nos seus estudos e
conferências. Faleceu em Londres em 1994.

5.2.2. O método indutivo e o método dedutivo:


Um processo de investigação científico pode seguir um método indutivo ou um método dedutivo:
- Indução resulta de um processo de realização de observações científicas (em determinado
ambiente físico ou social) e a partir desses resultados, constroi uma teoria abrangente e explicativa
dos fenómenos. É um processo que parte do particular para o geral, passa de um caso (um juízo
particular) para todos os casos (um juízo universal).
- A dedução inicia com a proposição de uma teoria não comprovada e, em seguida, a compara com
factos que a testam ou não.

Popper considera que a ciência moderna emergiu de uma forma indutiva. Trata-se de uma
actividade que a partir de umas tantas observações e experiências avança hipóteses e formula leis
sobre os fenómenos, procedendo depois à sua generalização e verificação. Popper tenta reconstruir
a lógica da ciência de forma a que somente a lógica dedutiva seja suficiente para avaliar as
proposições científicas. Popper nega que os cientistas começem com observações e procurem
depois realizar generalizações para uma teoria geral. Veja o seguinte exemplo:
- Numa experiência assente num método de investigação indutivo, constou-se que todas as
crianças que bebem leite apresentaram melhores índices de crescimento pelo que se concluiu que
o leite favorece o crescimento.
- Numa experiência assente num método de investigação dedutivo propôs-se uma teoria,
apresentando-a como uma conjectura inicialmente não corroborada (ex.: o leite favorece o
crescimento). Posteriormente compararam-se as suas previsões com observações para verificar se
a teoria resiste aos testes (ex.: testar se uma determinada população de crianças saudáveis bebe
leite com regularidade). Se esses testes se mostrarem negativos, então a teoria será
experimentalmente falsificada e os cientistas irão procurar uma nova alternativa. Se, pelo

43
contrário, os testes estiverem de acordo com a teoria, então os cientistas continuarão a mantê-la
não como uma verdade provada, é certo, mas ainda assim como uma conjectura não refutada. Para
Popper, os cientistas optam geralmente pelo segundo método de investigação. Ao se entender a
ciência desta maneira então constatamos que a ciência não precisaria de indução. Para Popper, as
inferências que interessam à ciência são refutações (falsificações, testes contínuos da sua
veracidade), que tomam uma previsão falhada como premissa e concluem que a teoria que está por
detrás da previsão é falsa. Estas inferências não são indutivas, mas dedutivas.

5.2.3. Refutação e falsificação:


O conhecimento científico é feito de rupturas. Todas as teorias deverão ser criticáveis e só
sobrevivem aquelas que conseguirem sobreviver às críticas. As restantes deverão ser abandonadas
ou reformuladas, mais resistentes à refutação e à falsificação. Deste modo:
a) Qualquer hipótese tem de ser potencialmente falsificável
Para Popper só há uma condição fundamental para que qualquer hipótese tenha o estatuto de teoria
científica, essa hipótese tem de ser falsificável. Uma hipótese só pode ser falsificada se na sua
enunciação existir um conjunto de afirmações que sejam incompatíveis com a sua teoria de base e
que falsifiquem a hipótese. Vejamos os dois seguintes enunciados:
i) “existem condições climatéricas para que amanhã chova” – é possível analisar as condições
climatéricas e verificar a pluviosidade, o que poderá falsificar ou não o enunciado, logo, esta
hipótese reúne condições para ser considerada científica;
ii) “amanhã ou chove ou não chove” – nesta hipótese não existe hipótese de contestação. O
enunciado não pode ser falsificado visto que a hipótese foi construída de uma forma que se protege
da crítica e da contestação. O clima pode comportar-se de qualquer forma sem entrar em conflito
com o enunciado.

b) Qualquer teoria científica tem que ser falsificável


O facto de uma teoria científica poder ser falsificável determina a sua cientificidade, esta
característica distingue a teoria científica de outro tipo de conhecimento. As formas de
conhecimento que se pretendem científicas mas que não se sujeitam à falsificação Popper
denominou de pseudo-científicas. Estas teorias, embora possam conseguir realizar predições
correctas, são formuladas de tal modo que se torna impossível qualquer tentativa de falsificação,
logo não são consideradas teorias científicas.

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Vejamos dois exemplos:
- Astrologia: É impossível falsificar os sistemas de crenças da Astrologia pois estes apresentam-
se irremediavelmente vagos. A astrologia pode prever que os escorpiões irão prosperar nas suas
relações à quinta-feira. Contudo, quando são confrontados com um escorpião cuja mulher o
abandonou numa quinta-feira, os defensores da astrologia respondem que, considerando todos os
factos, o fim do casamento provavelmente acabou por ser melhor. Por causa disto, nada forçará
alguma vez os astrólogos a admitir que a sua teoria está errada. A teoria apresenta-se em termos
tão imprecisos (favorecendo a retórica) que nenhumas observações actuais poderão falsificá-la.
- Leis de Newton: Ao invés, as leis de Newton, por exemplo, dizem-nos exactamente onde certos
planetas aparecerão em certos momentos. E isto significa que, se tais previsões fracassarem,
poderemos ter a certeza de que a teoria que está por detrás delas é falsa. Segundo Popper, a ciência
constitui uma sequência de conjecturas. As teorias científicas são propostas como hipóteses e são
substituídas por novas hipóteses quando são falsificadas. Se as teorias científicas são sempre
conjecturais, então o que torna a ciência melhor do que a astrologia, a religião ou qualquer outra
forma de superstição? A resposta é que a ciência, ao contrário da astrologia, pelo menos é
falsificável, mesmo que não possa ser provada. Uma vez propostas, qualquer teoria (que segundo
Popper no início não passa de especulação) terão que ser comprovadas rigorosa e implacavelmente
pela observação e a experimentação. As teorias que não superam as provas observáveis e
experimentais devem ser eliminadas e substituídas por outras conjecturas especulativas. A ciência
progride graças ao ensaio e ao erro, às conjecturas e refutações. Como referia Popper, "o método
da ciência é o método de conjecturas audazes e engenhosas seguidas de tentativas rigorosas de
falseá-las”. Popper diminuiu o risco de proliferação de teorias especulativas, na medida em que
aquelas que representam descrições inadequadas do mundo podem ser eliminadas drasticamente
em função do resultado da observação ou de outras provas. A exigência da verificação das teorias
obriga as próprias teorias a estabelecerem-se e formularem-se com precisão e clareza. O conceito
de verificação não perde a sua ligação umbilical à verdade: verificar é tornar verdadeiro ou ver a
verdade de algo. Popper utilizou este critério de falsificabilidade na análise do marxismo ou da
psicanálise. Para Popper, as teses centrais dessas teorias são tão irrefutáveis como as da astrologia.
Os marxistas prevêem que as revoluções proletárias serão bem sucedidas quando os regimes
capitalistas estiverem suficientemente enfraquecidos pelas suas contradições internas. Contudo,
quando são confrontados com revoluções proletárias fracassadas, respondem simplesmente que as
contradições desses regimes capitalistas particulares ainda não os enfraqueceram suficientemente.
De maneira semelhante, os teóricos psicanalistas defendem que todas as

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neuroses adultas se devem a traumas de infância, mas quando são confrontados com adultos
perturbados que aparentemente tiveram uma infância normal dizem que ainda assim esses adultos
tiveram que atravessar traumas psicológicos privados quando eram novos. Para Popper, estes
truques são a antítese da seriedade científica. Segundo o mesmo, cientistas genuínos diriam de
antemão que determinadas descobertas e observações os fizeram mudar de ideias, abandonando as
suas teorias perante essas descobertas. Mas os teóricos marxistas e psicanalistas apresentam as
suas ideias de forma que nenhumas observações possíveis os fazem modificar o seu pensamento.

5.2.4. Consequências do modelo epistemológico de Popper:


Este método científico de Popper acarreta, inevitavelmente, duas consequências.
- Só sobrevivem as teorias mais sólidas, rigorosas e resistentes à crítica.
- Em segundo lugar, torna-se ilegítimo afirmar que uma teoria é verdadeira. Quanto muito pode-
se dizer com algum optimismo que se trata da melhor teoria disponível e que é melhor que qualquer
das que existiam antes. Com Popper, a verdade científica absoluta deixa de existir, mas unicamente
aproximações à verdade absoluta.
- Para Popper, o erro é mais importante do que a verdade. Ao descobrirmos que a nossa conjectura
era falsa, aprendemos muito sobre a verdade e chegaremos mais perto dela. Aprendemos com os
nossos erros. Quanto maior for o número de teorias conjecturadas que procuram enfrentar a
realidade maiores serão as oportunidades de realizarmos importantes avanços. Para Popper, é
mediante o ensaio e o erro que a ciência progride. O progresso da ciência, tal como o vê Karl
Popper poderá resumir-se da seguinte forma.
- A ciência começa com problemas associados à explicação do comportamento de alguns aspectos
do mundo;
- O cientista propõe hipóteses falsificáveis para solucionar os problemas;
- As hipóteses são criticadas e comprovadas;
- Algumas hipóteses são eliminadas rapidamente, outras podem ter mais êxito;
- As hipóteses são novamente submetidas a mais críticas, provas cada vez mais rigorosas;
- Quando finalmente se falsifica uma hipótese que tenha superado com sucesso uma grande
variedade de testes, surge um novo problema, que é a invenção de novas hipóteses, seguidas de
novas críticas e provas;
- Este processo continua indefinidamente.

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- Por este motivo, por muitas provas rigorosas que tenha superado nunca se pode afirmar que uma
teoria é verdadeira. Somente podemos afirmar que a teoria em vigor é superior a anteriores, porque
foi capaz de superar testes que as falsificaram. Será considerada corroborada uma teoria que até
então tenha resistido com êxito aos testes mais severos e não tenha sido substituída com vantagem
por uma teoria rival. Mas cuidado. Uma hipótese corroborada é uma hipótese aceite
provisoriamente pela comunidade científica, mas cujo destino natural é ser, um dia, desmembrada
pela descoberta de novos factos. Para Popper, as teorias mais válidas nunca são teorias verdadeiras,
mas apenas teorias que ainda não são falsas. O conhecimento é sempre imperfeito e perfectível. A
verdade absoluta não está ao nosso alcance; e, ainda que a alcançássemos, não poderíamos sabê-
lo. O real é uma espécie de ideia da razão, mas temos motivos para pensar que a ciência se
aproxima progressivamente dele. Para Popper: “As teorias científicas são de tudo o que mais
violentamente está exposto à crítica”. Saliente-se as teorias deste filósofo que se opôs ao nazismo
são aplicáveis a ele próprio. Assim, no dia em que alguém redigir uma melhor definição de teoria
científica, as ideias de Popper humildemente sairão de cena para tomar seu lugar na história da
ciência.

EXERCICIOS DE APLICAÇÃO:
Depois de ter lido os textos anteriores aplique agora os seus conhecimentos respondendo às
seguintes questões:

Leia a seguinte afirmação de Karl Popper:


“(...) só há um caminho para a ciência: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se
por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte nos separe – a não ser que obtenhamos uma
solução. Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para nosso
deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez
difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos nossos dias”.
No texto anterior, Popper estabelece uma comparação entre o bem-estar de uma família e o
processo de produção científica. Explique em que medida é que a existência de um problema pode
ser benéfico para a ciência.

2 - Leia com atenção as duas seguintes teorias:


a) Os modelos de desenvolvimento propostos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário
Internacional, na sequência dos Planos de Reajustamento Estrutural de finais da década de 1980
desencadearam a privatização de muitas empresas, o consequente aumento do desemprego e das

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desigualdades sociais. Em reacção, a partir de meados da década de 1990 desenvolveram-se
inúmeras críticas em Moçambique. De acordo com essas vozes mais falsificacionistas, o país
seguia os planos de desenvolvimento propostos por especialistas internacionais, sem se auscultar,
com atenção, os actores socioeconómicos nacionais.
b) Quando aparecem críticas internas em Moçambique, sobretudo dirigidas aos grupos
dominantes, tende a surgir um conjunto de reacções, segundo as quais, as mesmas vozes são
manipuladas por uma “mão externa”, não nacionalista e que servem “agendas não nacionais”.
Comente ambas as afirmações sob um ponto de vista epistemológico popperiano.

5.3. O CONFRONTO DE PARADIGMAS (THOMAS KUHN)


Thomas Kuhn constitui um marco importante na perspectiva do desenvolvimento científico.
Desenvolveu as suas teorias epistemológicas num contacto mais estreito com a história das
ciências, com uma abordagem de cariz mais político e social sobre o processo de produção de
conhecimento científico, que veio enriquecer a epistemologia das ciências. Um dos aspectos mais
importantes da sua teoria reside na ênfase conferida ao carácter revolucionário do próprio
progresso científico. A evolução do conhecimento processa-se mediante rupturas e não de forma
contínua, vê que o progresso científico implica a abordagem de alguns conceitos fundamentais:
“paradigma”, “ciência normal”, “anomalia” e “revolução”.

5.3.1. Breve biografia:

Nasceu em 1922 em Ohio nos Estados Unidos. Em 1943 formou-se em Física pela universidade
de Harvard, onde recebeu, em 1946, o grau de mestre e, em 1949, o grau de Doutor, ambos na área
de Física. Kuhn for professor em Harvard e leccionou uma disciplina de Ciências para alunos de
ciências humanas, onde analisava precisamente o tema de história das ciências. A partir de 1956
Kuhn leccionou a disciplina de história da Ciência na Universidade da Califórnia e, em 1964,
Filosofia e História das Ciências na Universidade de Princeton. A partir de 1971 Thomas Kuhn foi
leccionar para o MIT, onde permaneceu até terminar a sua carreira. Kuhn faleceu em 1996, vítima
de cancro.

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5.3.2. Definição de paradigma:
Para Thomas Kuhn um paradigma constitui um conjunto de teorias e orientações metodológicas,
aceites por um conjunto de cientistas, que pertencem a um determinado centro de investigação,
escola ou comunidade de cientistas. Uma comunidade científica partilha um mesmo paradigma.
Vejamos o seguinte exemplo: A aplicação do paradigma newtoniano à astronomia implicou a
utilização de todo um conjunto de telescópios, juntamente com técnicas que permitam corrigir os
dados recolhidos com a ajuda daqueles. O paradigma e as respectivas orientações teóricas e
metodológicas partilhadas pelos cientistas coordenam e dirigem a actividade dos cientistas e
grupos de cientistas que nele trabalham. Cada centro de investigação, escola ou grupo de cientistas
desenvolveu e adoptou um determinado paradigma e os paradigmas não são necessariamente
coincidentes entre si. por vezes podem estar em oposição.

5.3.3. O conceito de ciência normal:


Para Kuhn, a produção científica constitui um processo político e social. No seu processo de
interacção diária nos centros de investigação, os cientistas são socializados e incorporam, junto
dos seus pares, pressuposições científicas e rotinas metodológicas que, por intermédio de um
processo consciente ou inconsciente vai condicionar o seu processo de produção científica. Como
referia Kuhn: “Não houve nenhum período desde a antiguidade mais remota até aos fins do século
XVII em que existisse uma opinião única, generalizada e aceite sobre a natureza da luz. Em vez
disso, havia numerosas escolas (…) competidoras e todas realçavam como observações
paradigmáticas, o conjunto particular de fenómenos ópticos que lhes podia explicar a sua teoria”.
Na sua análise, Thomas Kuhn distingue dois períodos científicos:
a) Períodos de pré-ciência: A fase que precede a formação da ciência é caracterizada por
actividades dispersas e desorganizadas. Nesta fase, não havia paradigmas ou escolas de
pensamento, pelo que existiam quase tantas teorias científicas como cientistas.
b) Período de ciência madura: Como vimos, a actividade científica só adquire organização
mediante o aparecimento de um paradigma, uma estrutura mental, assumida pela comunidade de
cientistas, que serve para classificar o real antes do estudo ou investigação mais profunda, o que
comporta elementos de natureza metodológica e científica. A ciência normal constitui, por isso, o
período em que se trabalha num determinado paradigma, adoptado por uma determinada
comunidade científica. Neste período formam-se as diversas escolas científicas, cada uma delas
estruturada em torno de um único paradigma. Assim, os cientistas pressupõem que o paradigma
em que estão inseridos lhes forneça os meios para resolver os puzzles. Uma falha ou uma

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dificuldade na resolução destes puzzles não é entendida como uma fragilidade do paradigma mas
antes como uma falha do próprio cientista. Tal como quando num jogo de xadrez um jogador
perde, a culpa é atribuída a ele e não ao jogo de xadrez, também na ciência de Kuhn a falha é
atribuída a um erro do cientista e não do seu paradigma. Tal como num paradigma, num jogo de
xadrez o fracasso de um jogador é explicado pelas falhas que cometeu e não nas regras do jogo
que são perfeitamentas. Neste período enfrentam-se problemas bem definidos que contêm
implicitamente as suas soluções.

5.3.4. Anomalias e crise da ciência normal:


Durante um período de ciência normal, o cientista exerce sua actividade confiante nos pressupostos
do seu paradigma, que lhe conferem um conjunto de métodos e de respostas que ele acredita
poderem resolver os problemas científicos com que se depara. Inevitavelmente, durante o processo
de construção científica são encontradas anomalias que se podem tornar sérias, constituindo-se
uma crise para o paradigma. Contudo, para Kuhn a crise de um paradigma não resulta unicamente
de uma simples anomalia ou dificuldade, ou de um puzzle não resolvido – “para que uma anomalia
provoque uma crise, deve ser algo mais do que uma anomalia”. De facto, os cientistas tendem a
realizar todas as variações possíveis para adaptar o seu paradigma à anomalia, pelo que muitas são
resolvidas dentro do próprio paradigma. De facto, a primeira reacção de um cientista perante uma
anomalia consiste em aplicar, ainda com mais insistência e convicção, as regras do seu paradigma
e da ciência normal, mesmo dando-se conta que elas não estão absolutamente correctas. Perante
uma anomalia, o cientista procura construir instrumentos mais potentes e eficazes, mas de acordo
com as instruções ditadas pelo seu paradigma, o que conduz a uma espécie de “variação em torno
do mesmo”. Como referia Kuhn, “a característica mais surpreendente dos problemas de
investigação normal (…) é a de tão pouco aspirarem a produzir novidade”. A existência de
anomalias dentro de um determinado paradigma conduz à introdução de novos detalhes dentro
desse paradigma, que tendem a fortalecer a sua coerência e aplicabilidade. Tal como em Popper,
segundo o qual o falsificacionismo conduz ao fortalecimento de uma teoria, também para Kuhn o
surgimento de anomalias acaba por ter um efeito benéfico sobre os paradigmas. Deste modo,
poderíamos supor que, tal como em Popper, o conhecimento e o progresso científico adquiririam
um carácter contínuo e cumulativo. Contudo, para Kuhn, à medida que vão surgindo mais e mais
anomalias, instala-se uma crise dentro do paradigma.

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5.3.5. Problematização e substituição de paradigmas:
Importa colocar as seguintes duas questões:
- Que características deve ter uma anomalia que levem à substituição de paradigma? Uma
anomalia só é tida como verdadeiramente séria se ameaçar os fundamentos de um paradigma, se
resistir às tentativas empreendidas pela comunidade científica para a remover.
- Como reagem os cientistas à crise? Ao não conseguirem resolver ou explicar uma anomalia
mais grave, os cientistas perdem a confiança no paradigma anteriormente perfilhado e esta perda
manifesta-se nas discussões filosóficas sobre os fundamentos e os métodos desse paradigma. Essas
discussões expressam um descontentamento dos cientistas que, no fundo, traduzem a crise da
ciência normal.

Cada teoria científica existe como reacção à anterior e manifesta-se incompatível com a mesma.
Veja-se o seguinte exemplo:
Ao nível da produção académica, se até à década de 1980 as atenções dos analistas do
desenvolvimento de África se centravam nas questões de política macroeconómica
(tendencialmente de orientações marxistas) e no impacto dos grandes projectos Estatais, ou na
formação e exploração da classe operária africana (em Moçambique leiam-se, por exemplo, os
trabalhos de Jeanne Penvenne ou de Ruth First), com a liberalização dos mercados, inúmeras
atenções orientaram-se para a análise da empresa africana. De facto, o paradigma de
desenvolvimento neo-marxista confrontou-se com um conjunto de anomalias (ex.: que
inicialmente foram explicados com um reforço da teoria marxista. Contudo, a persistência das
anomalias conduziu a uma ruptura e a uma crise profunda dentro do próprio paradigma. No novo
paradigma de desenvolvimento, a empresa privada deixou de ser concebida como um lugar de
exploração da classe proletária mas como um motor de progresso socioeconómico. O novo
paradigma de desenvolvimento introduziu os chamados planos de reajustamento estrutural.
Contudo, o novo paradigma acabou por gerar diversas anomalias, relacionadas com o
encerramento de inúmeras empresas e com o aumento do desemprego ou da precariedade da
economia urbana. Estas anomalias suscitaram um reforço de investigações, de certa forma
inseridas no mesmo paradigma, a propósito daquilo que a Organização Internacional do Trabalho
designou de sector informal. É neste contexto que a antropologia do trabalho multiplicou uma série
de estudos a propósito do que se designa de “economia popular” de “economia espontânea”, de
“economia moral” ou de “economia do afecto”. De uma forma geral, passou-se a conferir um
particular enfoque ao mundo das microempresas africanas, dos pequenos empresários informais,
inclusive das mulheres. Note-se que as mudanças de discurso operadas

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nas últimas décadas, que vulgarizam expressões como “corrupção” ou “boa governação”,
sugerem que as prioridades das agendas de investigação se encontram em processo de
transformação. Em suma, nos últimos 35 anos, é possível encontrar pelo menos 3 paradigmas sobre
o desenvolvimento:
um primeiro orientado por pressupostos neo-marxistas e anti-coloniais;
 um segundo influenciado por pressupostos capitalistas e neo-liberais e, mais tarde, adoptando
uma linha de investigação mais antropológica;
 um terceiro influenciado por pressupostos relacionados com a ética e com a boa governação.

5.3.6. Comparação da epistemologia de Thomas Kuhn com a de Karl Popper:


Há quatro comparações entre a epistemologia de Thomas Kuhn e a de Karl Popper:
 Enquanto Kuhn salienta a lealdade dos cientistas em relação aos paradigmas, Popper realça a
importância da crítica em relação a essa teoria científica. Para Kuhn, toda a investigação é feita
com base num paradigma, não se produz ciência sem uma teoria científica por detrás.
 Para além de sublinhar a importância concedida à teoria, Kuhn também questiona a concepção
contínua da ciência, como a entende Popper. Segundo a perspectiva popperiana a história da
ciência consiste numa série de conjecturas. Trata-se de formular hipóteses e em segundo lugar de
as refutar. Para Popper começa com problemas referentes à explicação do mundo ou universo, mas
para resolver estes problemas são formuladas hipóteses que posteriormente são reformuladas, à
medida que são falsificadas. Existe crescimento contínuo e constante das ciências. Pelo contrário,
para Kuhn, a ciência avança por rupturas e substituição completa de um paradigma.
 No falsificacionismo de Popper existe um pressuposto racionalista que se poderá traduzir na
preocupação da ciência em procurar a verdade. Para Kuhn a verdade de cada teoria funciona
apenas dentro de cada paradigma, põe em causa o conceito de verdade como objecto da ciência.
 Para Popper, a falsificação de uma teoria científica conduz a uma reformulação das hipóteses
de partida dessa teoria, o que tem como consequência a aproximação dessa teoria à verdade. Da
mesma forma, para Kuhn o surgimento de anomalias dentro de um paradigma conduz a um
investimento nos fundamentos teóricos desse paradigma, o que tende a ter um efeito benéfico sobre
o mesmo.

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EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO:
Depois de ter lido os textos anteriores aplique agora os seus conhecimentos respondendo às
seguintes questões:

1. Problematize a seguinte afirmação:


Com Thomas Khun as dinâmicas dos centros de investigação científica são comparadas às
dinâmicas de partidos políticos.

2. Explique as principais diferenças existentes entre o pensamento de Thomas Kuhn e o


pensamento de Karl Popper.

5.4. OS PROGRAMAS DE PESQUISA (EMRI LAKATOS)


O pensamento de Imre Lakatos foi seriamente influenciado por Karl Popper. Mesmo considerando
que “as ideias de Popper constituem o desenvolvimento filosófico mais importante do século XX”,
Lakatos teve em consideração as críticas que Popper recebeu de Thomas Kuhn. Na sua análise da
metodologia dos programas de pesquisa científica, Lakatos tem o mérito de conseguir articular as
teorias de Popper com Thomas Kuhn.

5.4.1. Breve biografia:

Imre Lakatos nasceu em 1922 na Hungria. Graduou-se em matemática, física e filosofia na


Universidade de Debrecen em 1994. Conseguiu escapar à perseguição nazi, alterando o nome para
Molnár, mas uma boa parte da sua família não sobreviveu ao campo de concentração de
Auschwitz. Durante a segunda guerra mundial tornou-se um comunista activo. No final da guerra
o filósofo estudou na universidade de Moscovo, tendo posteriormente regressado à Hungria, onde
trabalhou como oficial sénior no Ministério da Educação Húngaro. Acusado de “revisionismo” foi
preso em 1950 e libertado em 1953. Depois da sua libertação regressou à vida académica e mudou
diversos pontos de vista políticos. Na sequência da invasão da Hungria pela União Soviética,
Lakatos exilou-se em Inglaterra e doutorou-se em filosofia pela Universidade

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de Cambridge. Em Inglaterra leccionou no London School of Economics onde foi colega de Karl
Popper. Lakatos permaneceu nesta universidade até falecer, em 1974, com 51 anos de idade.

5.4.2. Os programas de pesquisa:


Para Lakatos, a evolução do conhecimento científico deve ser interpretado em termos de
mudanças, progressivas ou regressivas, para novas teorias científicas, mas sempre dentro de um
“programa de pesquisa”. Toda a ciência está estruturada em programas de pesquisa que, ao longo
dos tempos, foram sucessivamente falsificados, de forma a tornarem-se mais coerentes que os
anteriores. Assim, a história da ciência deve ser vista como a história dos programas de pesquisa
e não de teorias isoladas. O conceito de programas de pesquisa é claramente influenciado pelo
conceito de paradigma de Thomas Kuhn. Um programa de pesquisa continua a ser um conjunto
de orientações teórico-metodológicas que estruturam o trabalho de uma comunidade científica.
Contudo, enquanto para Kuhn o cientista não adopta, no seu dia-a-dia, uma atitude crítica em
relação ao paradigma, para Lakatos já não é necessariamente assim. Como veremos em seguida,
se para Lakatos existem elementos relativamente intocáveis (aquilo que ele chama de “núcleo
duro” do programa de pesquisa) e que permanecem mais estáveis, há outros que se apresentam
bem mais abertos à refutação e à falsificabilidade.

5.4.3. O núcleo duro:


Todos os programas de pesquisa têm um “núcleo duro”, que constitui uma teoria ou uma conjunto
de hipóteses nas quais não é aplicada a crítica ou refutação. Aceite por todos os membros e,
portanto, é irrefutável, pelo menos de forma provisória. Vejamos os seguintes exemplos na área
das ciências naturais:
- Para Lakatos, o programa Copérnico continha no seu “núcleo duro” a proposição de que as
estrelas constituem o sistema de referência fundamental para a física.
- O programa de pesquisa de Newton continha as três leis do movimento e a Lei da Gravitação
Universal.
- No programa de pesquisa de Pasteur encontra-se a hipótese que a fermentação constitui um
fenómeno relacionado com a vida.

Vejam-se os seguintes exemplos:


Quando os seguidores do programa de pesquisa de Newton observaram que a órbita prevista para
o planeta Urano era discordante das observações astronómicas, não refutaram a teoria da mecânica
de Newton. De facto, atribuíram tal discordância à existência de um planeta ainda não

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conhecido (o planeta Neptuno) e, portanto, não levado em consideração no cálculo da órbita de
Urano.

5.4.4. A cintura protectora:


A “cintura protectora” constitui um conjunto de hipóteses e de teorias auxiliares, relativamente
flexíveis, que têm como objectivo a protecção do núcleo duro. Com o objectivo de assegurar a
sobrevivência do núcleo duro, a cintura protectora pode ser constantemente modificada consoante
as dinâmicas das críticas e das refutações. De facto, as anomalias levam a modificações na cintura
protectora, de forma por vezes tão criativa que acaba por conseguir transformar as anomalias em
confirmações. Ou seja, a cintura protectora reestrutura-se de tal forma que consegue não só
explicar essas anomalias, como inclusive integrá-las no próprio programa de pesquisa.

5.4.5. Resumo e análise comparativa:


Lakatos teve o mérito de integrar as teorias de Popper e de Kuhn, completando desta forma a
perspectiva falsificacionista do primeiro, com a perspectiva sociológica do segundo. A ciência
continua a ser estruturada em torno de comunidades homogéneas, com os seus pressupostos
teóricos e metodológicos (expressos no núcleo duro), consciente e inconscientemente apreendidos
pelos cientistas ao longo do seu trabalho diário. A socialização dos cientistas dentro das respectivas
comunidades continua a ser um elemento a ter em consideração na análise da produção de
conhecimento. Os cientistas não perdem o carácter racionalista e falsificacionista de Popper. Muito
pelo contrário, no processo de busca de conhecimento continua a existir a permanente atenção pela
busca e descoberta de anomalias, para enriquecer e reestruturar a cintura protectora e conferir
maior coerência ao núcleo duro e a todo o programa de pesquisa.
Veja-se a seguinte figura resumo:

Assim, um programa de pesquisa constitui uma ampla estrutura teórica e metodológica em torno
da qual os cientistas orientam as suas investigações. No centro de um programa de pesquisa

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encontra-se o núcleo duro. O núcleo duro de um programa de pesquisa é um conjunto de teorias e
metodologias centrais que determinam os pressupostos mais importantes de todo o programa de
pesquisa. Dificilmente é falsificável e refutável. De carácter elástico e flexível, a cintura protectora
é um conjunto de hipóteses e procedimentos complementares. É facilmente transformável de forma
a dar resposta às inúmeras anomalias que surgem ao longo de uma investigação, sem colocar em
causa os pressupostos centrais do programa de pesquisa.

EXERCÍCIOS DE APLICAÇÃO:
Depois da leitura dos textos anteriores, procure agora responder às seguintes questões:
1- Explique a função da cintura protectora num programa de investigação científica.

2- Explique de que forma é que Emri Lakatos conseguiu integrar as perspectivas de Thomas
Khun e de Karl Popper.

GLOSSÁRIO:
Anomalias: Anomalias são factos que não conseguem ser explicados pelas teorias de um
paradigma.
Ciência: Forma de conhecimento sistematizado. Debruça-se sobre o empiricamente observável,
fundado em princípios evidentes e permeável à crítica. Aceita-a com vista ao respectivo
desenvolvimento e implica a existência de um método científico.
Consciente: Capacidade que temos de perceber a relação entre nós e o ambiente que nos rodeia,
através de processos racionais. O consciente é por isso um produto do pensamento humano e opõe-
se ao conceito de inconsciente ou subconsciente.
Crítica científica: atitude característica do conhecimento científico de duvidar (quer das
observações, das experimentações e das teorias), de problematizar e procurar o erro.
Dogma: crença estabelecida na sociedade (numa religião, numa ideologia..) que é considerada
indiscutível e irrefutável. Por exemplo, em qualquer religião existem princípios fundamentais
(existência de Deus, frases proferidas por profetas) que são considerados básicos, impedindo-se
desta forma a respectiva discussão.
Empírico: aquilo que pode ser observado pelos sentidos, ou seja, através da observação e da
experiência. Opõe-se desta forma à metafísica. A ciência utiliza o empirismo uma vez que se
debruça sobre a análise de tudo o que pode ser observado pelos sentidos, bem como na
experimentação e verificação, contrariamente ao mito, que assenta para além de assentar em

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dogmas (logo não há experimentação/verificação possível) se debruça sobre a análise do que é
metafísico.
Epistemologia: ramo da filosofia que se debruça sobre as origens e validade do conhecimento. É
uma ciência que estuda a própria ciência, que estuda a forma como o conhecimento científico é
processado.
Fé: Firme convicção que algo é verdadeiro sem qualquer tipo de prova ou critério objectivo e
empírico de verificação. Assenta na absoluta confiança que temos numa determinada ideia, sem
que essa ideia ter dado provas concretas de ser verdadeira (ex.: um crente acredita em Deus sem
nunca ter visto Deus).
Grupo de pertença: Grupo ao qual pertence o indivíduo (moradores de um determinado bairro,
trabalhadores de uma empresa, clientes de uma barraca.), que não coincide necessariamente com
o seu grupo de referência.
Grupo de referência: Grupo ao qual um indivíduo gostaria de pertencer (trabalhadores de uma
determinada empresa, moradores de um bairro) e que não coincide necessariamente com o seu
grupo de pertença. Quando essa coincidência não se verifica o indivíduo tem expectativas de
mudança social, que podem interferir ao nível da produção de conhecimento, constituindo por isso
um obstáculo epistemológico interno colocado no seu inconsciente científico.
Hipóteses de Investigação: Enunciados colocados por um investigador, no início de uma
pesquisa, que serão testados no final da mesma. Essas hipóteses podem ser confirmadas (se após
a recolha e interpretação de dados assim se concluir) ou refutadas.
Ideologia: Forma de conhecimento, de cariz político, que tem como objectivo a conquista do poder
e a transformação da realidade. Agindo por intermédio da persuasão e da dissuasão, a ideologia
pode ser considerada um instrumento de dominação.
Inconsciente: ou por vezes subconsciente é um termo psicológico que designa todos os processos
mentais que se desenvolvem sem a intervenção da consciência ou da razão. Os processos mentais
inconscientes são aqueles que nós não conseguimos controlar através da razão, como por exemplo
o medo, as paixões ou criatividade e resultam por vezes de experiências traumáticas decorridas ao
longo da vida, para a psicanálise.
Inconsciente Científico: Mundo interior do indivíduo, toda a sua subjectividade, composto pelos
seus valores, suas crenças e preconceitos, suas ambições e expectativas, sua experiência de vida,
educação primária que teve e que interferem ao nível da produção de conhecimento, constituindo
por isso um obstáculo epistemológico.
Lógica: trata-se do estudo filosófico do raciocínio válido. Examina de forma genérica as formas
que a argumentação pode tomar, quais são válidas e quais são falaciosas

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Metafísica: Disciplina da filosofia que se debruça sobre questões abstractas relacionadas com o
sobrenatural: existência do mundo e de outros mundos, de Deus, de espíritos e almas. Os objectivos
não são por isso acessíveis à investigação empírica.
Método Científico: Conjunto de regras básicas de como se deve proceder a um conhecimento
tido como científico, baseado na observação sistemática e controlada, analisado de forma lógica.
Mito: Tentativa de explicar o mundo (os fenómenos naturais, origem do Mundo e o surgimento
dos Homens e dos Deuses), particularmente presente em contextos onde a ciência ainda não
penetrou. O mito está associado ao rito (rituais), que se trata da forma de colocar em acção os
mitos do homem. Apesar de não deixar de ter uma função social (de explicar a realidade, reduzir
a ansiedade das populações, dar significados aos fenómenos e permitir uma aprendizagem
social), tem sido utilizado de forma pejorativa, para se referir às crenças comuns das
comunidades.
Neutralidade Axiológica: Conceito introduzido por Max Weber para explicar que na ciência não
se consegue atingir uma objectividade total, uma vez que qualquer pesquisa está condicionada
pelas escolhas subjectivas dos investigadores. Parte-se do pressuposto que há uma interferência
dos valores, crenças e convicções ideológicas dos investigadores na construção dos conceitos, na
definição das hipóteses e na interpretação dos resultados. A neutralidade axiológica é assim
condicionada pelo inconsciente científico do investigador.
Núcleo Duro: Núcleo duro constitui a parte de um programa de pesquisa que é inquestionável
pelos respectivos investigadores, protegido da crítica por uma cintura protectora. Muitas vezes
utilizado no campo da ideologia e da política para designar os membros mais influentes de um
partido (fundadores, membros do comité central), cuja autoridade é inquestionável e que definem
as linhas programáticas do partido. Quer na ciência, quer na ideologia, os princípios do núcleo
duro são vistos quase como dogmas.
Objectivo: A objectividade significa ausência de tendenciosidade (ser tendencioso) quando se
interpreta um determinado fenómeno. Significa fazer uma pergunta que não encoraje os
entrevistados a dizer o que queremos ouvir; levar em conta todas as informações confiáveis que se
relacionam com a pesquisa e não apenas aquelas que confirmam a nossa opinião, avaliar os dados
de acordo com critérios claros. A objectividade é contrária da subjectividade. Uma informação
objectiva é: estão 25 graus centígrados (é algo que é interpretado da mesma forma pelas pessoas).
Uma informação subjectiva é “Faz muito calor” (para determinados indivíduos pode não estar
assim tanto, enquanto outros podem estar a sofrer, ou seja, depende de pessoa para pessoa.

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Obstáculos Epistemológicos: Trata-se de barreiras que existem à descoberta da verdade, que
interferem no processo de conhecimento, deturpando a descoberta da verdade. Bachelard distingue
os obstáculos epistemológicos em externos ao indivíduo (relacionados por exemplo com
dificuldades de financiamento, falta de tempo, receio dos entrevistados em falar, com a não
repetição dos fenómenos.), dos internos (relacionados com o inconsciente, os valores, as
expectativas e os preconceitos dos próprios investigadores).
Paradigma: trata-se de um conjunto de teorias e de modelos metodológicos que são partilhados e
considerados verdadeiros por um conjunto de cientistas que compõem uma determinada equipa de
investigação. Esses investigadores tendem a considerar essas teorias e métodos como irrefutáveis
(não criticáveis). Todos os fenómenos são explicados por recorrência aos princípios divulgados no
paradigma. Perante o aparecimento de anomalias, os investigadores em vez de criticarem e
abandonarem o paradigma, procuram no mesmo (através de uma releitura mais atenta dos
princípios do paradigma) uma resposta para a anomalia, sendo assim, vistos quase como dogmas.
Psicanálise: Para a Sigmund Freud a psicanálise é um procedimento de investigação por exemplo
da análise dos sonhos) de processos mentais (ex.: paixões, medo, criatividade), que são quase
inacessíveis de outro modo, podendo assim ser usado para o tratamento de distúrbios neuróticos,
decorrentes do inconsciente do indivíduo. De uma forma simplista, poderíamos dizer que se
debruça sobre o estudo e tratamento de fenómenos que se encontram no inconsciente humano.
Psicanálise da Ciência: Conceito introduzido por Bachelard, inspirado em Freud.
Razão: Capacidade da mente humana que permite chegar a conclusões e explicações de causa-
efeito. Que identificaa e operaa conceitos em abstracto, encontra coerência e contradições,
formando novos conceitos, e distingue-se por isso da emoção e da fé.
Ritual: Forma de comportamento, padronizado, usado para manter um determinado sistema
social, e relembrar uma determinada tradição. Nas cerimónias religiosas, o ritual serve para
lembrar as obras de um determinado profeta, bem como a relação social entre os crentes
(lembrando as normas sociais dessa comunidade) ou entre os crentes e as forças sobrenaturais.
Através do ritual processa-se uma aprendizagem dos valores de uma determinada comunidade. Os
rituais são formas de relembrar os mitos.
Senso Comum: trata-se de formas simplistas de compreensão do mundo, resultantes das tradições
e da influência dos grupos sociais onde estamos inseridos, não sujeitas à verificação, à
demonstração ou à crítica. No senso comum não existe uma análise profunda, mas apenas uma

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análise espontânea e não aprofundada, resultante das experiências do dia-a-dia e das interacções
quotidianas que temos com a realidade.
Subjectividade: relaciona-se com o mundo interno e íntimo (crenças e valores pessoais, que
resultam da sua educação e experiência de vida) através do qual ele se relaciona com o mundo
social, resultando daí numa interpretação pessoal e única dos fenómenos sociais
Subjectivo: Espaço íntimo de cada indivíduo, com o qual ele se relaciona com o mundo social que
o rodeia, resultando por isso da sua cultura (valores, crenças, preconceitos, da sua experiência
única de vida, que varia de pessoa para pessoa).

SUGESTÕES DE LEITURA:
ARENDT, Hannah As origens do totalitarismo. Lisboa: Dom Quixote.
 BACHELARD. Gaston. A Psicanálise do Fogo. Lisboa. Estúdios Cor.
 BACHELARD. Gaston. A Filosofia do Não. Filosofia do Novo Espírito Científico. Lisboa.
Editorial Presença.
 BACHELARD. Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa. Edições 70
 CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do Sol. Disponível em
http://www.scribd.com/doc/43983/Cidade-do-Sol-A-Tommaso-Campanella (consultado a
9.3.2010)
 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano – a essência das religiões. Lisboa: Livros do
Brasil
 FREYRE, Gilberto. Integração Portuguesa nos Trópicos. Colecção Estudos de Ciências
Políticas e Sociais, nº6, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar.
 FREYRE, Gilberto. O Luso e o Trópico, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do
V Centenário da Morte do Infante D. Henrique.
 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Mem-Martins. Publicações Europa-América.
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: Univ. of Chicago.
 LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70.
 LAKATOS, Imre. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Cientifica.
Lisboa: Edições 70.

 MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Maputo, Centro de Estudos Africanos,


Universidade Eduardo Mondlane.
 MORE, Thomas. Utopia. Mem Martins: Publicações Europa-América.

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 MORELLY Código da Natureza. São Paulo. Unicamp.
ORWELL, George. 1984. Lisboa. Antigona.
 ORWELL, George. O Triunfo dos Porcos. Mem-Martins. Publicações Europa-América.
POPPER, Karl, Sociedade Aberta e os seus Inimigos.
POPPER, Karl, Para um Mundo Melhor.
POPPER, Karl. Connaissanse Objective. Paris: Flammarion.
 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.
 SERRA, Carlos. Combates pela mentalidade sociológica. Maputo: Imprensa Universitária
 SANTAELLA, Lúcia. Produção de Linguagem e Ideologia. São Paulo: Cortez.

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