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A. J. AVELÃS NUNES
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra

OS SISTEMAS ECONÓMICOS
GÉNESE E EVOLUÇÃO DO CAPITALISMO

COIMBRA – 2011
2
3

INTRODUÇÃO
4
5

1. - A teoria dos sistemas económicos

A vida dos homens em sociedade e a sua organização com vista à satisfação das
necessidades materiais tem apresentado características diversas ao longo da sua
evolução histórica, correspondendo a cada período e a cada lugar um certo sistema de
organização económica e social.
Na verdade, toda a economia é um sistema, no sentido em que toda a economia é
um conjunto de elementos (pessoais e materiais), de processos e relações (de produção,
de distribuição, v.g.) interligados de acordo com um princípio orientador, um princípio
de unidade, que assegura uma certa coerência e estabilidade à estrutura constituída por
aqueles elementos, processos e relações económicas.
Mas a expressão sistema económico ganhou originariamente estatuto científico
na acepção de tipo de economia, capaz de integrar uma multiplicidade de economias
concretas, distintas de outros conjuntos históricos por determinadas características
fundamentais. Na verdade, a ideia de sistema económico liga-se à distinta realidade das
economias historicamente concretizadas.
Diferente é o conceito de forma económica, que se refere aos vários modos
(tipificados) de manifestação de um determinado sistema, modos que se distinguem
segundo critérios como o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a forma e a
dimensão das unidades de produção, a organização dos sujeitos económicos, o modo de
coordenação da economia, etc.
Particularmente importante é o modo de coordenação: em função dele que
costumam distinguir-se as várias formas históricas do capitalismo: capitalismo de
concorrência, capitalismo monopolista, capitalismo monopolista de estado.
O conceito de forma económica não existe independentemente do conceito de
sistema económico, porque a forma económica é sempre a forma de um determinado
sistema. O conceito de forma económica é, pois, uma qualificação do conceito de
sistema económico, sendo certo também que nenhum sistema económico existe em si
mesmo: qualquer sistema económico apresenta-se sempre, historicamente, sob
determinada(s) forma(s). Como escreve Vital Moreira, “os sistemas económicos e as
6

formas económicas não existem. O que existe são as economias concretas que os
‘efectivam’ (:’revelam’)”. 1
Na prática, nenhuma economia concreta se apresenta como a realização de um
único sistema económico ou de uma única forma económica. Cada economia
corresponde, ao invés, a uma determinada combinação de vários sistemas, um dos quais
emerge como sistema dominante, imprimindo carácter àquela economia, moldando a
sua estrutura ordenadora, definindo-a como ordem económica.
Pois bem. A questão que se põe à teoria dos sistemas económicos reside
exactamente em identificar o tecido estrutural de cada economia em concreto, o
princípio de ordem que há-de permitir dar uma resposta adequada a três interrogações
fundamentais:
1) como se processa, em cada situação histórica concreta, a direcção e o
funcionamento da economia?
2) qual o critério que preside à distribuição do produto social?
3) qual o elemento dinamizador do desenvolvimento, i. é, qual o princípio que
explica a (e dá sentido à) sucessão dos sistemas que a história regista?
Esta problemática foi ignorada pela chamada Escola Clássica Inglesa, cujos
autores concebiam a ordem económica como um mecanismo comandado por leis
naturais de validade absoluta e universal (em tudo idênticas às leis da Física) e viam na
ordem capitalista não uma fase transitória na marcha da humanidade, mas a forma
absoluta e definitiva da actividade económica e da organização social (o fim da
história).
Contra esta concepção reagiu a Escola Histórica Alemã (teoria dos estádios de
desenvolvimento) e Karl Marx (materialismo histórico e teoria dos modos de
produção). A teoria dos sistemas económicos surge, pois, como reacção contra a
postura universalista a-histórica da Escola Clássica, à qual se contrapôs uma visão
evolucionista e historicista.

2. – As soluções

2.1. - A teoria dos “estádios económicos” 2

1
Sobre esta problemática, ver V. MOREIRA, A Ordem Jurídica…, cit., especialmente, 17-35 e
Economia e Constituição, cit., 46-49.
2
Ver TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., e V. MOREIRA, Economia e Constituição, cit.
7

A análise dos estádios de evolução constituiu a preocupação fundamental dos


autores que integram a Escola Histórica Alemã.3 Partindo do princípio de que, ao
contrário do que acontece na natureza, nas sociedades humanas não existem
uniformidades, os autores da Escola Histórica recusaram à Economia Política a natureza
de ciência teórica, reduzindo-a a uma ciência histórica. Passaram, por isso, a operar
com base em critérios históricos, pressupondo uma sucessão regular dos vários
sistemas ao longo dos séculos, em conformidade com a sua concepção evolucionista.4
Resumiremos a seguir as mais importantes dessas tentativas de distinção e
classificação das várias fases pelas quais passariam, mais ou menos obrigatoriamente,
segundo os autores da Escola Histórica, todas as sociedades humanas.

a) Friedrich List propôs o critério da actividade dominante. A vida económica


desenvolver-se-ia, historicamente, ao longo de quatro fases: pastorícia; agricultura;
agricultura e indústria; agricultura, indústria e comércio. Para esta última,
correspondente à nação normal, tenderiam as economias de todos os povos.

b) Bruno Hildebrandt atende aos sucessivos instrumentos de troca como critério


distintivo das três etapas que distingue com base nele: a da economia natural
(caracterizada por um sistema de troca directa - produtos por produtos); a da economia
monetária (caracterizada pela prática da troca monetária, funcionando a moeda como

3
É frequente distinguir-se a Primeira Escola Histórica da Jovem Escola Histórica, apontando
como fundadores e expoentes da 1ª Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrandt e Karl Knies, e destacando
entre os autores da 2ª Gustav Schmoller, A. Wagner, L. Brentano, Karl Bücher, Max Weber e Werner
Sombart.
4
As teses evolucionistas dos primeiros históricos parecem ter renascido com a obra de Colin
CLARK (The Conditions of Economic Progress, 1ª ed. 1940). Segundo este autor, o progresso económico,
nos países capitalistas como nos socialistas, caracterizar-se-ia por uma deslocação progressiva da
população activa do sector da agricultura para o sector da indústria e deste para o dos serviços. Esta tese
tem servido para justificar a conclusão de que o que distingue as economias dos vários países é o facto de
se encontrarem em uma ou outra fase deste processo evolutivo que, a partir de um primeiro estádio de
predomínio da agricultura, encaminharia os países para a situação de economias terciárias.
A concepção evolucionista transparece também no livro de Walter Whitman ROSTOW, The
Stages of Economic Growth - A Non Communist Manifesto, Cambridge, Mass., 1960 (editado no Brasil
pela Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1966 – Etapas do Desenvolvimento Econômico (Um manifesto não-
comunista). Defende o autor que é possível distinguir no processo de evolução económica e social, por
que teriam de passar todas as sociedades, cinco etapas distintas: a sociedade tradicional, as condições
prévias para arranque, o arranque (take off), o progresso para a maturidade, a era do consumo de massa.
Em tais termos se concebe este processo, que a situação dos chamados países subdesenvolvidos,
entendida como mero atraso no percurso das várias etapas assinaladas, só seria susceptível de vencer-se
fazendo percorrer aos ‘países atrasados’ as etapas que lhes falta percorrer, daquelas por que passaram os
países capitalistas desenvolvidos.
8

intermediário geral nas trocas); a da economia creditícia (caracterizada pela importância


do recurso às vendas a crédito e ao empréstimo de dinheiro).

c) Para Karl Bücher, por sua vez, critério distintivo das várias fases da evolução
histórica seria o âmbito territorial dentro do qual se circunscreve a actividade
económica. Nas palavras de Bücher, o critério essencial é “a relação existente entre
produção e consumo dos bens ou, para ser mais exacto, a extensão do caminho que os
bens percorrem, na passagem do produtor ao consumidor”.5
De acordo com este critério, a humanidade passaria por três fases na sua
evolução: a economia doméstica (reduzida, sucessivamente, à família, à tribo, ao
domínio senhorial e feudal - confinada a um âmbito territorial bastante restrito); a
economia urbana (centrada na actividade artesanal das cidades, que entravam em
relações de troca com as populações agrícolas vizinhas); a economia nacional
(resultante do desenvolvimento das relações de troca entre os vários núcleos urbanos).
Gustav Schmöller acrescentou às anteriores a fase da economia mundial, que
corresponderia a um novo período de relações económicas estabelecidas entre as várias
comunidades nacionais.

2.2. - A teoria dos modos de produção

A teoria dos sistemas económicos enquanto teoria dos modos de produção foi
enunciada em primeiro lugar por Karl Marx, influenciando depois, em alguma medida,
os trabalhos de Werner Sombart e de Mex Weber, em especial o primeiro. Segundo esta
concepção, a estrutura fundamental de cada sistema económico assenta nas relações
sociais de produção, i.é, nas relações que entre si desenvolvem as várias categorias de
agentes económicos, podendo definir-se estas relações, no plano jurídico, pela relação
(de apropriação ou de separação) que se estabelece entre os trabalhadores e os meios de
produção.
Em termos muito genéricos, poderemos ilustrar a afirmação anterior
distinguindo estas três situações:
1) se os produtores directos são eles próprios, simultaneamente, proprietários
dos meios de produção, estamos perante um sistema de produção de mercadorias

5
Apud M. DOBB, A Evolução…, cit., 17.
9

simples ou sistema de produção independente: o produto do trabalho produtivo pertence


por inteiro ao produtor autónomo;
2) se os meios de produção pertencem a pessoa diferente do produtor directo,
esta circunstância vai permitir ao proprietário dos meios de produção, em certas
condições históricas, assumir a direcção do processo produtivo, contratar trabalhadores
assalariados e apropriar-se do sobreproduto social (é esta a essência do sistema
capitalista);
3) se não existir propriedade privada dos meios de produção e estes pertencerem
a toda a comunidade, a esta caberá a direcção do processo produtivo, revertendo o
produto social para a colectividade dos produtores (é esta a essência do sistema
socialista).

2.2.1. - A concepção de Marx


O materialismo dialéctico ganha, em Marx, um sentido diferente do da dialéctica
hegeliana. O próprio Marx distingue assim o seu método do método de Hegel:

“O meu método dialéctico não só difere na base do método hegeliano, mas é-lhe mesmo
exactamente oposto. Para Hegel o movimento do pensamento, que ele personifica sob o nome
de Ideia, é o demiurgo da realidade, a qual não é mais que a forma fenomenal da Ideia. Para
mim, ao contrário, o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real,
transportado e transposto para o cérebro do homem”.

Marx explica o processo histórico a partir do desenvolvimento das forças


produtivas, ele mesmo fruto da acção consciente dos homens para dominar a natureza,
afeiçoando-a à satisfação das suas necessidades (ou dos seus objectivos). E a evolução
histórica dos modos de produção assenta no facto de o desenvolvimento das forças
produtivas conduzir, a certa altura, a uma contradição entre estas e as relações sociais de
produção, por tal forma que estas passam a constituir obstáculos ao pleno
desenvolvimento daquelas.
Para que um determinado sistema de organização económica e social seja um
todo coerente, para que um dado modo de produção, enquanto conjunto das relações de
produção e das forças produtivas, possa assegurar o livre desenvolvimento e o pleno
aproveitamento da técnica e dos meios de produção, é necessário que as relações sociais
de produção estejam em correspondência com as forças produtivas. Se esta
correspondência deixar de se verificar, isso significa, nos quadros da teoria de Marx,
que o sistema económico, essencialmente caracterizado pelo modo de produção, está
10

prestes a desagregar-se, para dar lugar a um outro sistema económico. É esta uma das
leis fundamentais da teoria económica marxista, que à frente enunciaremos: a lei da
necessária correspondência entre a natureza das relações de produção e o carácter das
forças produtivas.

Antes de prosseguir, vale a pena esclarecer o significado de alguns termos e


expressões muito usados na literatura marxista e que aparecerão a seguir no texto.
Por meios de produção entende-se, na teoria marxista, o conjunto dos objectos
de trabalho e dos meios de trabalho.
Objecto de trabalho é tudo aquilo sobre que vai incidir a força de trabalho do
homem (actividade inteligente do homem em sociedade, destinada a transformar e
adaptar as forças da natureza, com o fim de alcançar o objectivo em vista).
Meios de trabalho são todos os objectos de que os homens se servem para
transformar a realidade física sobre a qual actuam (a terra, os edifícios, as estradas, etc.).
Os mais importantes de entre eles são os instrumentos de produção (desde a pedra e o
cajado do homem primitivo até às máquinas complexas de hoje), dos quais depende,
fundamentalmente, o domínio do homem sobre a natureza.
Por forças produtivas entende-se o conjunto dos instrumentos de produção
(elemento mais importante na dinâmica do processo histórico), dos objectos de trabalho
(cuja importância se compreende quando se atenta no relevo que, ao longo dos tempos,
foi assumindo a descoberta de novas matérias-primas e de novas fontes de energia 6) e
ainda o próprio homem, com a sua força de trabalho, os seus conhecimentos
(informação) e a sua técnica (elementos estes que permitem a utilização dos
instrumentos de produção e o seu contínuo aperfeiçoamento, o qual vai, por sua vez,
aumentar a produtividade do trabalho, num processo ininterrupto de desenvolvimento
das forças produtivas).
Para o marxismo, as forças produtivas são o elemento mais dinâmico e
revolucionário da produção, embora reconhecendo que as relações de produção entre os
homens, desenvolvendo-se em resultado do progresso das forças produtivas, exercem,
por sua vez, influência activa sobre estas.

6
Depois dos moinhos de vento vem a roda hidráulica (que marcou o início da industrialização),
as máquinas a vapor (primeiro consumindo lenha, depois carvão de coque), o petróleo, a energia eléctrica,
a energia nuclear.
11

Relações de produção são as relações que os homens mantêm entre si no quadro


do processo produtivo, as quais se manifestam na relação entre os ‘sujeitos’ ou ‘agentes’
económicos e os meios de produção, e que têm a sua expressão jurídica nas formas de
propriedade sobre os meios de produção.
Segundo o entendimento de Marx, é a natureza da propriedade sobre os meios de
produção que determina a posição relativa dos homens no sistema de produção social,
que marca a divisão da sociedade em classes e define a natureza da relação entre elas
(relação de antagonismo ou relação de cooperação, conforme a estrutura de classes da
sociedade).
A natureza das relações sociais de produção - elemento que distingue, na sua
essência, os modos de produção - é que determina a titularidade do poder de direcção
do processo produtivo e explica o critério que preside a essa direcção, o móbil que
orienta a actividade social de produção e o critério segundo o qual se opera a
distribuição do produto social, entendendo-se que produção, distribuição, troca e
consumo formam uma unidade cujo factor determinante é a produção.
Toda a produção pressupõe uma qualquer forma de propriedade, i. é, uma forma
social e historicamente determinada de apropriação dos meios de produção. E a
distribuição do produto social depende exactamente da forma por que se apresenta essa
apropriação dos meios de produção, embora se reconheça que as formas de distribuição,
troca e consumo actuam, por sua vez, sobre a produção, estimulando ou entravando o
seu desenvolvimento.
Assim se explica que Marx caracterize os sistemas económicos pelo modo de
produção e distinga os modos de produção (comunismo primitivo, esclavagismo,
feudalismo, capitalismo e socialismo) pela natureza das relações de produção.

Visão económica da história, como se vê, o marxismo é também uma visão


histórica da economia, visão que faz da luta de classes o motor do processo histórico,
do processo de evolução das várias formações económicas e sociais que a humanidade
tem conhecido: “A história de todas as sociedades até aos nossos dias é a história da luta
de classes” – assim começa o Manifesto Comunista.
E, no prefácio à edição alemã do Manifesto (1883), Engels explica qual o
princípio fundamental do documento, devido à elaboração teórica de Marx:7

7
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 98/99.
12

“Em cada época histórica, os modos de produção e de troca – e a estrutura social que daí
deriva necessariamente – são os fundamentos sobre os quais se constrói a história política e
intelectual da época, que encontra neles a chave da sua explicação; consequentemente, toda a
história da humanidade (desde o desaparecimento da organização primitiva com a propriedade
comum do solo e da terra) é a história da luta de classes, luta entre os exploradores e os
explorados, as classes dominantes e as classes oprimidas; a história desta luta de classes
constitui um processo no decurso do qual se atingiu actualmente o momento em que a classe
explorada e oprimida (o proletariado) não pode libertar-se do jugo da classe exploradora e
dominante (a burguesia) sem libertar ao mesmo tempo e definitivamente toda a sociedade de
toda a exploração, de toda a opressão, de todas as diferenças de classes e de todas as lutas de
classes”.

Compreende-se agora a diferença entre a perspectiva de Marx e a dos autores da


chamada Escola Histórica Alemã. Ao contrário destes, que renunciam a explicar o
desenvolvimento histórico, Marx faz da história uma histoire raisonnée e traz a história
para o seio da teoria económica, convertendo a teoria económica em análise histórica,
como salientou Schumpeter:8

“Marx atingiu efectivamente um objectivo de importância fundamental do ponto de


vista da metodologia económica. Sempre os economistas actuaram como historiadores
económicos ou utilizaram a contribuição dos trabalhos históricos de outrem, mas os dados da
história económica eram classificados num compartimento distinto. Só tinham assento
(eventualmente) na teoria a título de ilustração, se não de confirmação das conclusões
elaboradas em abstracto. Só eram abrangidas por um processo de mistura mecânica. Ora a
mistura de Marx é química; por outras palavras, ele inseriu os dados históricos na própria
argumentação de que faz derivar as suas conclusões. Foi ele o primeiro economista de grande
classe a reconhecer e a ensinar sistematicamente como a teoria económica pode ser convertida
em análise histórica e como a exposição histórica pode ser convertida em histoire raisonnée”.

Nesta mistura química da história com a teoria económica Marx rejeita o carácter
natural e a-histórico das categorias económicas e das leis da Economia Política
clássica, pondo em evidência o seu carácter de categorias históricas e de leis históricas,
que só ganham significado em relação a um determinado sistema económico e social,
historicamente localizado.
Nas palavras do próprio Marx, “o que caracteriza a economia política burguesa é
que ela vê na ordem capitalista não uma fase transitória do processo histórico, mas a
forma absoluta e definitiva da produção social”. Ora, para Marx, “as categorias da
economia burguesa são formas do intelecto que têm uma verdade objectiva enquanto
reflectem relações sociais reais, mas estas relações são próprias daquela época histórica
determinada em que a produção de mercadorias é o modo de produção social. Se, por

8
Cfr. Capitalism…, cit, 44.
13

conseguinte, considerarmos outras formas de produção, veremos desaparecer todo este


misticismo que obscurece os produtos do trabalho no período actual”.
Na polémica com Proudhon, Marx rejeita a compreensão das relações económicas
como “leis imutáveis, princípios eternos, categorias ideais (…) anteriores aos homens
activos e actuantes, (…), como leis, princípios e categorias que, desde a origem dos
tempos, tivessem adormecido na razão imperfeita da humanidade”. E comenta: “com
todas estas epernidades imutáveis e imóveis, deixa de haver história”. “Essas ideias,
essas categorias são tão pouco eternas como as relações que elas exprimem. Elas são
produtos históricos e transitórios. Há um movimento contínuo de crescimento nas
forças produtivas, de destruição nas relações de produção, de formação nas ideias;
imutável só a abstracção do movimento – mors immortalis”.9

A construção teórica de Marx pretende, acima de tudo, explicar o processo


global da evolução social, evolução que, a seu ver, resulta de uma interacção dialéctica
de factores de vária ordem (naturais, técnicos, sociais), e que se traduz num movimento
dialéctico (não linear), em que cada estádio do processo evolutivo é superior ao estádio
que o antecede, e em que cada novo modo de produção encontra o seu fundamento e a
sua ‘explicação’ no desenvolvimento histórico das contradições imanentes ao anterior.
É conhecido o célebre trecho de Marx:10

“O resultado geral que se me ofereceu e que, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos
meus estudos, pode ser formulado assim, sucintamente: na produção social da sua vida, os
homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações
de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da
sociedade, a base concreta sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material
é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua
consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas
uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham
movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações
transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a
transformação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a
imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre
entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o qual é verificável
rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o
resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si
próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua
consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida
9
Cfr. Misère de la Philosophie, ed. cit., 119 e 124/125.
10
“Prefácio…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 530/531.
14

material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma
formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas
para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e
superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas
no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas
as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre
que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar,
as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção
asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas
progressivas da formação económica e social. As relações de produção burguesas são a
última forma antagónica do processo social de produção, antagónica não no sentido de
antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos
indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa
criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com
esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.” [sublinhados
nossos. AN].

À luz da teoria marxista, a estrutura política (o poder político, o estado) faz parte
da superestrutura, sendo esta determinada pela base económica, a infraestrutura.
O que constitui problema é a questão de saber em que consiste essa
determinação e em que medida a superestrutura é determinada pela base económica ou
dela depende. Marx não abordou expressamente a questão. No entanto, os seus estudos
sobre a Revolução Francesa pressupõem a ideia de que a estrutura política (e mesmo a
estrutura ideológica) goza de uma autonomia relativa. Não faltam, porém, trechos em
que parece repassar uma concepção economicista (determinação absoluta da
superestrutura - especialmente da estrutura política, do estado - pela infraestrutura).
Na conhecida polémica com Proudhon, escreveu Marx:

“O senhor Proudhon economista compreendeu muito bem que os homens fazem os


panos, os tecidos de seda, no quadro de relações de produção determinadas. O que ele não
compreendeu, porém, é que essas relações sociais determinadas são tão produzidas pelos
homens como o pano de algodão, o linho, etc. As relações sociais estão intimamente ligadas às
forças produtivas. Ao alcançarem novas forças produtivas, os homens mudam o seu modo de
produção, e, ao mudarem o modo de produção, a modo de ganhar a sua vida, eles mudam todas
as suas relações sociais. O moinho movido à mão dar-vos-á a sociedade com o suserano; o
moinho a vapor, a sociedade com o capitalismo industrial”. 11

À visão economicista estreita (a que se associam os nomes de Edouard Bernstein


e de Karl Kautsky) opõe-se a concepção voluntarista, que atribui autonomia e eficácia
absolutas à acção política e à luta de classes. Estes são os dois pólos extremos dentro
dos quais se tem desenvolvido a discussão no quadro do pensamento marxista.
11
Cfr. Misère de la philosophie, ed. cit. , 119. O sublinhado é nosso, com o objectivo de chamar
a atenção para esta formulação bastante mecanicista, algo caricatural, que cremos não corresponder à
essência do pensamento marxista, explicando-se, talvez, por se inscrever no quadro de uma polémica
azeda e ‘violenta’ com Proudhon. Ver infra, nota 12.
15

O ponto de partida desta discussão continua a ser uma carta de Engels a Joseph
Bloch, escrita em Setembro de 1890:12

“Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância


determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma
vez afirmámos mais. Se alguém agora torce isso [afirmando] que o momento económico é o
único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstracta,
absurda. A situação económica é a base, mas os diferentes momentos da superestrutura - formas
políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa
uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos de todas estas lutas reais
nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões religiosas e o seu
ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas - exercem também a sua influência sobre o
curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas. Há
uma acção recíproca de todos estes momentos, em que, finalmente, através de um conjunto
infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota
ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não existente, a podemos
negligenciar), o movimento económico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da
teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples
equação do primeiro grau.
Nós fazemos a nossa história nós próprios, mas, em primeiro lugar, com
pressupostos e condições muito determinados. Entre eles, os económicos são finalmente os
decisivos. Mas também os políticos, etc., mesmo a tradição que assombra as cabeças dos
homens, desempenham um papel, se bem que não o decisivo.
(...) a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre de conflitos de
muitas vontades individuais, em que cada uma delas, por sua vez, é feita aquilo que é por um
conjunto de condições de vida particulares; há, portanto, inúmeras forças que se entrecruzam,
um número infinito de paralelogramas de forças, de que provém uma resultante - o resultado
histórico -, que pode ele próprio, por sua vez, ser encarado como o produto de um poder que,
como todo, actua sem consciência e sem vontade. (...)
Marx e eu temos, nós próprios, que ser culpados, em parte, de que, por vezes, seja pelos
mais jovens dado mais peso ao lado económico do que o que lhe cabe. Nós tínhamos de
acentuar, perante os adversários, que o negavam, este princípio principal e nem sempre havia
tempo, lugar e oportunidade para dar a devida importância aos restantes momentos participantes
na acção recíproca. Mas, assim que se tratava da exposição de uma secção histórica, portanto,
da aplicação prática, as coisas alteravam-se, e aí nenhum erro era possível. Infelizmente, é,
porém, demasiado frequente alguém acreditar que entendeu completamente uma teoria nova e
que a pode manejar sem mais logo que se apoderou dos seus principais princípios, e deles
também nem sempre correctamente. E eu não posso poupar a esta censura muitos dos novos
‘marxistas’, e também aqui se cometeram coisas espantosas...” [sublinhdos nossos. AN]

O debate continua acerca destes pontos suscitados e não resolvidos pelo texto de
Engels: 1) em que consiste a “determinação em última instância”?; 2) em que consiste a
eficácia específica dos elementos superestruturais?; 3) em que condições pode ser
preponderante a acção da superestrutura?13

12
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., III, 547/548. Em O 18 Brumário de Louis
Bonaparte, escreve Marx: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre
vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas” (MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 417). Esta afirmação de
princípio é, a nosso ver, uma clara manifestação de Marx e Engels contra as acusações de determinismo
feitas ao materialismo histórico.
13
Uma síntese destas questões pode ver-se em A. HESPANHA, História…, cit., 89-91.
16

2.2.2. - A concepção de Sombart


Mais tarde, Werner Sombart (1863-1941), elaborou a sua própria construção
teórica assente em bases claramente diferentes das de Marx, apesar de reconhecer a
influência que sobre ele exerceu a obra deste último. 14 Superando certas dificuldades
dos autores da Primeira Escola Histórica, Sombart propõe outro critério histórico,
fazendo apelo a três elementos que, a seu ver, distinguiriam os vários sistemas
económicos:
1) o espírito (o móbil, o objectivo fundamental da produção);
2) a forma (ou seja, o conjunto dos elementos sociais, jurídicos e institucionais,
que constituem o quadro dentro do qual se desenvolve a actividade económica, as
relações entre sujeitos económicos - regime da propriedade, estatuto dos trabalhadores,
papel do estado);
3) a substância (que fundamentalmente se refere à técnica utilizada).

Com base neste critério, distingue Sombart três sistemas económicos: o sistema
de economia fechada, o sistema de economia artesana e o sistema de economia
capitalista.
“A ideia fundamental da minha obra – escreve Sombart – é a de que nas várias
épocas históricas tem predominado um espírito económico diferente, sendo este espírito
que dá uma forma apropriada e modela em conformidade a organização económica”. A
passagem da economia feudal-corporativa para a economia capitalista explicar-se-ia
pela acção de um conjunto complexo de factores que provocou a mudança do espírito
da época e não pelas contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
relações de produção feudais: “Do espírito de empreendimento e do espírito citadino
surgiu, como uma unidade homogénea, aquela disposição do espírito que chamamos
espírito do capitalismo. Assim surgiu o capitalismo”15
14
“Marx sabia pôr as questões magistralmente, e nisso residia a sua mais alta qualidade -
escreveu Sombart. Dos seus problemas vivemos nós ainda hoje. Com o seu génio em colocar as questões,
indicou à ciência económica o caminho de uma fecunda investigação para todo o século. Todos os
economistas que não procuraram fazer seus os problemas por ele postos foram condenados à esterilidade
científica, como já hoje podemos afirmar com certeza”. A influência de Marx revela-se na própria noção
de capitalismo apresentada por Sombart: “é a organização baseada na economia de troca, na qual em
regra cooperam – relacionando-se através do mercado – dois grupos sociais: os proprietários dos meios de
produção (que são também os dirigentes e os sujeitos da economia) e os trabalhadores privados da
propriedade (enquanto objectos da economia). Nesta organização prevalecem os princípios do lucro e da
racionalidade económica”. Citações colhidas em O. LANGE, Economia Politica, I, cit., 260.
15
Também Max Weber explica o aparecimento do capitalismo como consequência do
aparecimento de uma nova ética económica trazida pela Reforma, ao negar a velha teologia medieval que
valorizava a pobreza, condenando o juro e o enriquecimento, substituindo-a pela afirmação das virtudes
17

No caso concreto do capitalismo (mas o seu raciocínio é o mesmo para qualquer


dos outros sistemas que considera), Sombart não procurou o elemento caracterizador
fundamental em qualquer dos aspectos da estrutura económica ou do funcionamento,
nem considerou que a essência do capitalismo reside na natureza das relações de
produção que lhe são próprias. Na óptica de Sombart, o capitalismo distingue-se
essencialmente pelo seu espírito de busca do lucro: “este novo espírito, defende
Sombart, estende-se a toda a vida económica, ultrapassando as barreiras da estagnada
economia artesano-feudal, baseada na satisfação de necessidades limitadas, e lançando o
homem nas ondas da economia para o lucro”. 16 Este espírito do capitalismo que tem as
suas raízes na totalidade dos aspectos representados no espírito da época, o espírito da
Europa moderna, aquele “espírito que nos deu o Renascimento nas letras, o
protestantismo na religião, o novo estado na política e o método experimental na
ciência”. 17
Pois esse mesmo espírito da Europa moderna ter-se-ia concretizado, na esfera
económica, no espírito de lucro do capitalismo, como síntese do ‘espírito burguês’ (de
ponderação, de laboriosidade, de cálculo e racionalidade) do artesano medieval e do
espírito de aventura e de empreendimento (espírito de Fausto, já se lhe chamou) do
homem moderno.
O homem pré-capitalista era um “homem natural”, que via na actividade
económica o meio de satisfazer as suas necessidades naturais. Segundo a perspectiva de
Sombart, no período pré-capitalista, “no centro de todo o esforço e preocupação estava
o homem, medida de todas as coisas”. Ao contrário, o ‘homem capitalista’ veio alterar
todos os valores do “homem natural”, orientando-se por um novo espírito, uma nova
atitude (“aquela atitude que busca o lucro, racional e sistematicamente”, como diria
Max Weber), à qual passou a subordinar-se tudo o mais, desumanizando a economia,
deixando de ver no homem a mensura omnium rerum.18

do trabalho, da poupança e do lucro e dignificando a riqueza como sinal da graça divina. Transferido o
ideal católico da ascese dos conventos para a vida quotidiana dos cristãos, a Reforma teria dado lugar a
uma espécie de ascese laica (Max Weber).
16
As citações de Sombart são colhidas em O. LANGE, Economia Politica, cit., I, 261-263.
17
TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit.,164.
18
Como escreve TEIXEIRA RIBEIRO, últ. ob. cit.,165/166, “o capitalismo [também] desumanizou
a economia. Ele arrancou do mundo das relações económicas um sentimento e a palavra que o exprimia: a
piedade. Só interessa o lucro. ‘Se tens fome e tens dinheiro, vendo-te; mas se tens fome e não tens
dinheiro, não te vendo nem te dou’. Não foi apenas sob este aspecto – continua Teixeira Ribeiro – que o
capitalismo desumanizou a economia. Também procurou criar um homem condizente com os seus fins e
distante, por isso, da natureza que o modelara. O que interessa é o lucro. O que interessa, pois, é que os
consumidores sintam necessidades, para que, sentindo-as, comprem produtos e os capitalistas lucrem,
vendendo-os. As necessidades deixam de ser, portanto, o fim da actividade económica; transformam-se
18

2.3. - A teoria dos “tipos de coordenação”

Atitude diversa é a de autores como Walter Eucken, que, abstraindo da sucessão


histórica, e negando mesmo a existência de uma sucessão regular, pretendeu construir,
na esteira dos “tipos ideais” de Max Weber (feudalismo, economia artesana,
capitalismo), os tipos abstractos de organização económica, as ‘ordens económicas’
puras, às quais seriam susceptíveis de reconduzir-se todos os sistemas ou organizações
concretas, passados ou presentes.
Eucken parte do princípio de que a actividade do homem enquanto produtor se
desenvolve de acordo com um plano orientador daquela actividade19 e defende que o
importante é saber quem dita o plano: se é o mercado, onde se encontram a oferta e a
procura dos vários sujeitos económicos, ou se é alguma entidade exterior ao mercado e
à economia. Assim chega à distinção entre economia de mercado e economia de
direcção central.
Nas economias de mercado, os indivíduos traçam autonomamente os seus
planos, cuja coordenação se opera no mercado, através da concorrência entre os vários
operadores económicos. No mercado formam-se os preços e é o sistema de preços
relativos que vai servir de critério orientador das opções e das decisões de cada um dos
agentes económicos (compradores e vendedores). É no mercado, portanto, que se define
a lógica segundo a qual funciona a economia. O mercado é o mecanismo que dita o
plano segundo o qual funciona a economia.
Nas economias de direcção central, a economia é dirigida a partir do centro,
com base num plano único imposto pelo estado (ou por uma entidade central) às
unidades técnicas de produção e aos consumidores, cabendo ao estado (ou à entidade
central) determinar os objectivos a prosseguir, os meios a utilizar, os preços a fixar.
Estes seriam os dois tipos de coordenação que, embora não se encontrassem na
sua forma pura, permitiriam explicar o funcionamento de qualquer economia, pois as
economias concretas seriam sempre uma composição (em proporções e modalidades
diversas) daqueles dois tipos puros.

em simples meio de obter lucros. Não há necessidades? Se as não há, criam-se, isto é, convencem-se os
consumidores a comprar os produtos. Daí a publicidade, o reclamo, que são fruto do capitalismo”.
19
Isto mesmo quer significar Friedrich HAYEK quando escreve (The American Economic Review,
1945, 520): “Na linguagem corrente, designamos pela palavra plano o complexo de decisões
interrelacionadas acerca da alocação dos nossos recursos disponíveis. Neste sentido, toda a actividade
económica obedece a um plano”.
19

3. - Apreciação crítica

3.1. - Comecemos pela Escola Histórica.


Foi mérito dos seus fundadores denunciar a construção da economia clássica
com base no homo oeconomicus, entidade concebida como alguém que prossegue
exclusivamente o objectivo da maximização dos ganhos, comportando-se sempre de
acordo com padrões de racionalidade universais. Segundo os autores da Escola
Histórica, esta atitude configurava uma fuga à realidade, uma vez que os homens de
carne e osso actuam não apenas em função do objectivo de maximizar racionalmente os
ganhos, mas também em função de sentimentos diversos, como o desejo de glória, o
sentimento do dever, o amor do próximo, o costume, etc.
Foi igualmente importante o facto de os autores da Escola Histórica terem vindo
pôr em causa o carácter de leis absolutas, eternas e universais, que a Escola Clássica
atribuía às leis naturais (decorrentes da natureza humana imutável) reguladoras da vida
económica (integrada na ordem natural) e terem vindo defender que os estudos
económicos devem ser encarados numa perspectiva histórica: todas as instituições
económicas e sociais são consideradas categorias históricas, inscritas num certo tempo
e num certo espaço, em permanente devir, que só podem compreender-se se analisadas
enquanto produtos históricos da evolução das sociedades humanas, variáveis conforme
o tempo e o espaço.

Tendo em conta, especialmente, os autores da Primeira Escola Histórica, é


indispensável compreender que, embora divirjam - nos termos apontados - quanto à
determinação do elemento definidor dos vários estádios de evolução, eles partilham a
ideia de que todas as economias passam por um processo evolutivo de algum modo
idêntico ao processo de crescimento de um corpo orgânico, podendo distinguir-se várias
fases (estádios) nesse processo evolutivo, apresentando-se cada um desses estádios
como um novo marco (idade) do crescimento orgânico, linear, da economia (que
evoluiria por acrescentamentos sucessivos, à semelhança do que acontece com o tronco
das árvores).
Tais critérios admitem (postulam) uma evolução histórica, mas cortam essa
evolução em fases, em secções, esperando os autores que os propõem descobrir, para
cada uma das fases (ou estádios), uniformidades ou ‘leis’ que não seriam válidas para as
20

fases anteriores ou posteriores. Não podem servir, portanto, como método de abordagem
da evolução das sociedades humanas, uma vez que não fornecem qualquer explicação
para a própria evolução histórica. São critérios meramente descritivos, exteriores ao
próprio processo evolutivo, incapazes de compreender os factores que explicam a
passagem de um sistema a outro e o sentido da linha evolutiva que a história regista.
Concebendo os vários estádios como outras tantas idades no processo de crescimento
das economias, aos adeptos da Escola Histórica nem sequer se coloca a necessidade de
explicar essa evolução, esse crescimento, que se verificaria por si, tal como um corpo
orgânico cresce em virtude do seu próprio princípio vital.
Os critérios de List, Hildebrandt e Bücher - que referimos atrás -, atendo-se
apenas a elementos da estrutura económica da sociedade, somente dão conta da
evolução (linear) das forças produtivas, mas não podem apreender o processo
(dialéctico) de evolução da economia nem explicar a sua dinâmica.
Esta só resulta inteligível quando se tem em conta a relação dialéctica entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações sociais de produção no
seio das quais aquelas se desenvolvem e com as quais entram em contradição. E é esta
contradição que, acentuando-se, abre uma “época de revolução social”, no termo da
qual surgirá, a partir do anterior (do seu desenvolvimento), um novo estádio superior de
desenvolvimento.
As próprias limitações do seu método impediram os autores da Primeira Escola
Histórica de ir além da mera acumulação de dados relativos à actividade económica.
Afirmando a existência de uma oposição absoluta entre a ciência da História e as
ciências exactas, a Escola Histórica acabou por negar a possibilidade de qualquer teoria
da história.
Com efeito, o método histórico-genético praticado pela Escola Histórica
renuncia à elaboração teórica, limitando-se os seus autores à reunião, descrição e
sistematização dos factos da vida económica e sua sequência histórica, sem capacidade
para apreender as mudanças qualitativas das formas de organização económico-social
ao longo do processo histórico. Cada autor propõe um esquema das várias fases pelas
quais passariam mais ou menos obrigatoriamente todas as sociedades. E cada uma
dessas fases é considerada independente das outras, na medida em que cada fase
substitui inteiramente a fase anterior, sem consideração por aquilo que, em cada
‘sistema', permanece do ‘sistema’ anterior e por aquilo que, em cada ‘sistema',
prenuncia elementos do ‘sistema’ futuro. Neste quadro, resulta impossível a explicação
21

do processo de passagem de um estádio a outro e a compreensão das causas da evolução


histórica.
Renunciando à teoria, os adeptos da Escola Histórica limitam-se a uma história
dos factos económicos. Negando a possibilidade de uma teoria da história, tornaram
inconsistente a sua posição metodológica, dada a impossibilidade de desenvolvimento
da ciência sem teoria. 20 Por isso se falou já, a seu respeito, de “nihilismo teórico”, de
“ciência morta”.21

3.2. - O critério de Sombart, ao incluir na forma - como acima se refere - certos


elementos institucionais que não se confinam à simples estrutura económica, ultrapassa
algumas das dificuldades que se apontaram aos autores da Primeira Escola Histórica.
O problema da transição dos sistemas é por ele encarado numa perspectiva
culturalista e explicado, portanto, não a partir de factores económicos (ou da
contradição entre a evolução das forças produtivas e as relações de produção mais
estáveis), mas de factores de ordem cultural ou espiritual: o que, essencialmente,
mudaria era o espírito da época, dentro de um processo de evolução cultural global. A
ideia fundamental da sua obra é, nas palavras do próprio Sombart, a de que, “em épocas
diferentes vigoraram sempre atitudes económicas diferentes, e que esse espírito é que
tem criado a forma adequada para si próprio e com ela uma organização económica”.22
Em certa medida, poderá dizer-se que este critério ‘culturalista’ de Sombart e de
Weber antecipa as linhas mestras do homo oeconomicus em que assenta a teoria clássica
e a economia marginalista. Assim como o homo oeconomicus deriva os princípios do
seu comportamento (o seu código genético) da natureza humana (insensível às
mudanças da história), assim também o homem feudal ou o homem capitalista extraem
os seus princípios do seu ‘comportamento’ do espírito da época.
Só que esta concepção culturalista, ‘espiritualista', idealista (comum a Sombart e
a Max Weber), de que o capitalismo, como forma económica, é uma criação do espírito
capitalista, implica que se explique a génese deste último. Desta exigência surgiu o
debate (que se afigura de todo inconcludente) quanto à questão de saber se foi a
20
O próprio Werner Sombart sublinhou este aspecto: “OS factos são como as pérolas: necessitam
de um fio que as mantenha juntas”. Este fio unificador é a teoria, porque os factos só ganham sentido
quando são analisados à luz de uma teoria. Sem ela não se conseguirá nada mais do que “compilações
sem valor”. As citações de Sombart são colhidas em C. M. CIPOLLA, Introdução…, cit., 84-86.
21
Ironizando, um autor escreveu que a obra prinicipal de Gustav Schmoller, dada a ausência de
uma visão teórica, pode perfeitamente ser lida tanto do fim para o início como do início para o fim ( apud
O. LANGE, Economia Politica, ed. italiana, cit., I, 259)
22
Apud M. DOBB, A Evolução…, cit., 16).
22

Reforma e o protestantismo que geraram o espírito capitalista (como quer Max Weber,
A ética protestante e o espírito do capitalismo) ou se, diversamente, o espírito do
capitalismo foi em grande parte criação dos judeus (como pretendeu Sombart, que mais
tarde temperou esta sua ideia).
A esterilidade de tal debate é um pouco a imagem da esterilidade do critério de
Sombart, ao sobrestimar os elementos ‘espirituais’ e ao subestimar os elementos
materiais, os elementos económicos, que verdadeiramente imprimem carácter aos vários
sistemas.23 Ele revela-se, por isso mesmo, incapaz de detectar os aspectos essenciais que
verdadeiramente distinguem os sistemas económicos uns dos outros e as leis históricas
que regulam o processo social de produção e distribuição dos bens necessários à
satisfação das necessidades humanas, e incapaz de compreender a dialética da evolução
das várias formações sociais e as leis que explicam o processo histórico de passagem de
uma forma de sociedade a outra.
Talvez assim se compreenda a dificuldade de Sombart em distinguir a essência
do capitalismo e do socialismo, o que explica a sua conclusão de que “entre um
capitalismo estabilizado e regularizado e um socialismo racionalizado que utilize todos
os recursos da técnica a diferença não é muito grande.”
Em 1934, viria a defender uma noção de socialismo na qual caberia
inclusivamente o regime nazi.24 O socialismo seria para Sombart, “um estado de vida
social em que o comportamento dos indivíduos é determinado em princípio por normas
obrigatórias que radicam numa razão universal, intimamente ligada à comunidade
política, e que encontram a sua expressão na lei (nomos)”.
Como o próprio Sombart reconhece, trata-se de definir o socialismo como um
puro “normativismo social”, de “libertá-lo de qualquer determinação de conteúdo e de
concebê-lo de modo puramente formal”, em termos tais que, identificando o nomos com
o socialismo, considera socialismo as simples prescrições de “não fumar”, “circular pela
direita”, “é proibido colher flores”, etc.25
Por nós, acompanhamos Teixeira Ribeiro quando defende que, mesmo que o
socialismo aspirasse à normalização de toda a vida social, não podem “confundir-se sob
o mesmo nome doutrinas, movimentos e sistemas que têm um sentido histórico muito

23
Engels sublinha que “é necessário indagar as causas últimas de todas as transformações sociais
e de todas as revoluções políticas (…) não na filosofia, mas na economia de cada época” ( Anti-Dühring,
ed. cit., 328).
24
Em Deutscher Sozialismus (há uma trad. it. de 1941: Il Socialismo Tedesco, Vallechi Editore,
Firenze).
25
Cfr. L’Apogée…, cit, II, 526.
23

diverso e cujas finalidades são muito diferentes.” 26 A normalização de toda a vida social
foi sem dúvida uma aspiração do nazismo. Mas a verificação disto mesmo não pode
autorizar a conclusão (a que Sombart pretendia chegar) de que, afirmando-se essa
normalização como a característica essencial do socialismo, o nazismo podia
considerar-se também como socialismo (nacional-socialismo).

3.3. - A teoria dos tipos de coordenação (ou formas de organização) tem a


indiscutível vantagem de permitir o enquadramento de qualquer economia concreta em
um dos seus tipos, fornecendo assim indicações acerca da teoria do seu funcionamento.
A teoria de Eucken oferece, assim, aquilo que a noção de sistema económico não
faculta: o conhecimento sobre o funcionamento global concreto da economia.
Esta teoria poderá mesmo ‘ler-se’ em paralelo com a teoria marxista. Na
verdade, parece correcto afirmar-se que a economia capitalista, embora compatível com
uma certa planificação estadual, não comporta uma economia inteiramente e
imperativamente planificada pelo estado; do mesmo modo, uma economia socialista
pode consentir uma certa margem para o funcionamento do mercado e da sua lógica de
direcção da economia, mas não pode abdicar de uma planificação global da economia a
cargo do estado, que se encarregue de definir e assegurar o cumprimento dos critérios
de direcção da economia.
Noutra perspectiva, uma economia de mercado, embora tolere um certo espaço
de propriedade pública, não pode dispensar o domínio da propriedade privada dos meios
de produção, assim como uma economia de direcção central pode tolerar uma certa área
de propriedade privada, mas não pode dispensar a propriedade colectiva dos principais
meios de produção, solos e recursos naturais.
Isto significa que a teoria de Eucken subordina a propriedade dos meios de
produção aos tipos de coordenação, fazendo depender aquela destes: é o tipo de
coordenação que determina o tipo de propriedade dos meios de produção (expressão
jurídica das relações de produção) e, em último termo, o modo de produção. Ao invés, a
teoria marxista subordina a coordenação, a forma de organização, o funcionamento da
economia aos diferentes tipos de relações de produção: o tipo de coordenação é
determinado basicamente pelo modo de produção (definido essencialmente pela
natureza das relações sociais de produção).

26
Cfr. A Nova Estrutura…, cit., 36.
24

Mas não parece correcto fazer do diferente modo de funcionamento (forma de


organização) de cada economia em concreto o elemento distintivo dos sistemas
económicos.27 A nosso ver, não é possível dizer-se, sem mais, que, se a economia for
uma economia de direcção central, estaremos perante um sistema socialista, do mesmo
modo que, se a economia for uma economia de mercado, estaremos perante um sistema
capitalista. Noutra perspectiva, não parece aceitável a conclusão de que, conforme se
opte por um modelo de economia de direcção central ou por um modelo de economia de
mercado, assim se optará pela propriedade colectiva ou pela propriedade privada dos
meios de produção, ou seja, respectivamente, pelo socialismo ou pelo capitalismo.
É que o mesmo tipo de coordenação é compatível com sistemas económicos
diversos. Economias centralizadas, v.g., foram as economias esclavagistas (antigas e
modernas), e foram também as economias dos senhorios feudais. Mas foram-no também
a economia da Alemanha nacional-socialista, e, em larga medida, as economias dos
restantes países capitalistas durante a Segunda Grande Guerra (o período do chamado
“comunismo de guerra”). Em certo sentido, foi-o também, nas décadas imediatamente
posteriores a 1945 - através da planificação pública -, o capitalismo dos países mais
industrializados, que progressivamente se foi afastando da forma clássica das economias
de mercado. E foi economia centralizada a dos países que, na Europa e em outras
paragens, integraram, até à sua derrocada, a chamada comunidade socialista.
À luz destes exemplos, parece claro que a teoria dos tipos de organização não é
capaz de fornecer um critério de distinção entre sistemas tão diversos (esclavagismo,
feudalismo, capitalismo, socialismo) que podem incluir-se num dos dois tipos
considerados. Nem parece que ela seja capaz de explicar por que é que, em épocas tão
diferentes e em circunstâncias tão diversas, foi idêntico o tipo de organização. Se bem
vemos, estas são questões que só poderão compreender-se através de uma análise feita
numa perspectiva histórica, à luz da história económica, através da história dos sistemas
económicos, caracterizados pelos respectivos modos de produção.
O critério de Eucken afasta, em suma, qualquer perspectiva histórica do
desenvolvimento dos povos, negando que da história possa colher-se qualquer sentido

27
Esta parece ser, porém, a tese sustentada no influente manual de Francisco Pereira de MOURA
(Lições, cit, 55ss): “ (…) temos de destacar os grandes problemas económicos que sempre se apresentam
seja qual for o sistema, correspondendo exactamente as diferenças entre estes à diversidade de técnicas
sociais para resolver tais questões”. [sublinhado no original] Quer dizer: o que distingue os sistemas é a
diversidade das formas (técnicas) de organização social (de funcionamento da economia) que em cada
caso são utilizadas para resolver os problemas fundamentais (afectação dos recursos disponíveis, volume
e estrutura da produção, repartição do produto).
25

de desenvolvimento ou de progresso. E, ao sustentar que a história é constituída por um


conjunto de avanços e recuos insusceptíveis de explicação teórica, acaba por fazer da
história algo de contrário à histoire raisonée de que fala Schumpeter a respeito da teoria
de Marx.
Por isso, enquanto a teoria dos modos de produção (nomeadamente a teoria
marxista) é capaz de fornecer uma explicação para o desenvolvimento histórico, o
critério dos tipos de coordenação, como concepção anti-histórica, é incapaz de
esclarecer acerca das causas e do sentido da evolução de um sistema económico para
outro, encarando o problema numa perspectiva funcional, como se se tratasse de
alternativas abertas à livre escolha, em qualquer tempo e lugar, comparando-se
‘soluções técnicas’ possíveis, na sua eficiência, nas suas dificuldades e facilidades, nos
seus prós e contras, como que na mira de esclarecer uma opção entre eles.
A teoria dos tipos de coordenação permite relevar, na análise das formas
concretas em que os sistemas se manifestam (já que, como se diz acima, os sistemas
puros não existem, ou não esgotam a realidade), certos elementos importantes para a
compreensão da dinâmica interna do sistema (nomeadamente o papel do estado perante
o económico) e que poderiam não ser devidamente ponderadas numa análise que apenas
se ativesse às relações de produção. Mas não pode substituir a teoria (histórica) dos
sistemas económicos, pela simples razão de que “as formas económicas são sempre
formas de um determinado sistema”.28

3.4. - Por nossa parte, utilizando a formulação de Teixeira Ribeiro 29,


consideramos que “o que imprime carácter a qualquer economia e a individualiza como
tipo é o modo de produção e repartição dos bens.” Quer dizer, o que distingue os
sistemas é o modo de produção, i.é, a natureza das relações de produção (propriedade
privada ou propriedade colectiva dos meios de produção?) e a forma de repartição do
produto (há rendimentos da propriedade? ou só rendimentos do trabalho? ou
rendimentos de ambas as origens?). Só depois virá o móbil da actividade económica
(produz-se com vista à satisfação das necessidades do produtor ou dos titulares dos
meios de produção? para obter lucros? para satisfazer as necessidades colectivas?).
Poderá mesmo dizer-se que é a natureza das relações sociais de produção (a posição

28
V. MOREIRA, Economia e Constituição, cit…, 114.
29
Lições de Direito Corporativo, cit., 114. Ver também A Nova Estrutura…, cit., 5-6.
26

relativa dos homens no que toca aos meios de produção) que, em último termo,
distingue os sistemas.
Nesta lógica é que se fala do socialismo como sistema caracterizado pela
propriedade colectiva dos meios de produção e do capitalismo como sistema que assenta
na propriedade privada (capitalista) dos meios de produção. Esta é uma propriedade
perfeita, absoluta, que exclui os não-proprietários do respectivo poder de disposição,
vendo-se estes obrigados a vender aos donos dos meios de produção a própria força de
trabalho transformada em mercadoria, assim se configurando as relações capitalistas de
produção entre os produtores não-proprietários e os donos do capital.30
Conforme a natureza das relações de produção, assim varia a forma que assume
o excedente social e a titularidade do controlo desse excedente. No capitalismo, o
sobreproduto social assume a forma de lucro (rendimento sem trabalho) que cabe aos
proprietários dos meios de produção, aos quais pertence também decidir do destino a
dar-lhe, não só para consumo pessoal dos próprios capitalistas mas também para
investimento em novos meios de produção. No socialismo, o excedente assume a forma
de fundo social que será distribuído por consumo e investimento por decisão da própria
colectividade através das instituições políticas que a representem.31
Já se vê como a distinção dos sistemas económicos com base nos modos de
produção, i.é, a partir da natureza das relações sociais de produção, permite caracterizar
também, para cada um deles, o modo como se processa a direcção da economia e o
critério que preside à distribuição do produto social (a relação entre o trabalho social e
o produto social), a natureza e o destino do excedente social, e permite ainda explicar o
sentido da evolução histórica dos modos de produção. Esta teoria dos modos de
produção afigura-se-nos, por isso, a mais adequada para a análise dos sistemas
económicos e da sua evolução.
Os sistemas distinguem-se uns dos outros pela afirmação de determinadas forças
produtivas e determinadas formas de organização material da produção, a base
económica (estrutura económica ou infraestrutura) no seio da qual se desenvolvem
determinadas relações sociais de produção e a partir da qual se erguem e instalam
determinadas estruturas políticas, jurídicas, culturais, ideológicas (superestrutura).

30
Como Marx salienta, “na base do sistema capitalista está a separação radical do produtor
relativamente aos meios de produção” (Cfr. Le Capital, Ed. J. Roy, cit., 528.
31
No sentido do texto, cfr. S. TSURU, Aonde vai o capitalismo, cit., 41ss.
27

O que nos vai interessar aqui é a questão de saber quais os elementos estruturais
que permitem distinguir entre si os vários sistemas económicos, como se processou a
evolução que a história regista e que factores a podem explicar.
28
29

CAPÍTULO I

DO COMUNISMO PRIMITIVO
AO CAPITALISMO
30
31

Depois das breves considerações introdutórias que ficam nas páginas


antecedentes, vamos acompanhar a evolução das sociedades humanas, desde as
comunidades primitivas até aos nossos dias, numa tentativa de esclarecer o sentido
dessa evolução, do comunismo primitivo ao esclavagismo, do esclavagismo ao
feudalismo e deste ao capitalismo32, com o propósito de tornar claro:

1) que a transição de um sistema para o outro é fruto de “um processo contínuo


de transformação” (Teixeira Ribeiro);
2) que cada sistema económico que a história regista é produto da evolução
dialéctica do sistema que o precedeu;
3) que há uma racionalidade na ordem cronológica da sucessão: o capitalismo
não poderia ter precedido o feudalismo, do mesmo modo que o feudalismo não poderia
preceder o esclavagismo, já que foi a evolução do esclavagismo que, evidenciando as
suas contradições, abriu o caminho à ordem feudal e ao modo de produção feudal, e foi
a evolução do feudalismo que, perante a impossibilidade de manter a servidão pessoal,
criou as condições para o desenvolvimento das relações de produção capitalistas;
4) que a evolução se tem verificado de tal modo que – na lição de Teixeira
Ribeiro33 - “nenhum sistema conseguiu substituir integralmente o anterior”, em termos
tais que, em cada época histórica, o dizer-se que em determinado país ou região se nos
depara o sistema capitalista ou o sistema feudal, por exemplo, só pode significar que aí
são dominantes os elementos definidores essenciais do capitalismo ou do feudalismo,
sendo certo que a predominância dos elementos que informam um dado sistema não

32
Tendo em conta as formações sociais (o modo de produção e a superestrutura), poderíamos
considerar (à semelhança de vários autores, entre so quais Marx), poderíamos analisar, além das que
ficam referidas, a sociedade asiática (despotismo oriental), a sociedade antiga e a sociedade germânica.
Deixaremos apenas uma brevíssima caracterização. Na sociedade asiática, há um embrião de estado,
representado por um déspota, para o qual reverte o sobreproduto social, de cuja distribuição ele decide
autoritariamente; a sociedade antiga assenta na cidade e na dicotomia cidade/campo, surgindo a
propriedade privada e a divisão social do trabalho, juntamente com a divisão da sociedade em classes,
nomeadamente senhores e escravos; a sociedade germânica é uma sociedade rural, constituída por
camponeses autónomos, fundada na posse individual da terra, com predoínio da propriedade comum
(gemeinschaft), sendo muito esbatida a divisão em classes, o que justifica um estado muito rudimentar.
Sobre a sociedade germânica pode ler-se F. ENGELS, A Origem da Família…, cit. , 344ss;
sobre o modo de produção asiático, ver C.E.R.M., O modo…, cit.
33
Cfr. Economia Política, cit., 185-189. Nas palavras de Marx (Le Capital, Livre Premier, t. II,
Éd. Sociales, Paris, 1948, 58): “ (…) Para as épocas históricas, como para as épocas geológicas, não há
linha de demarcação rigorosa”.
32

afasta a sobrevivência de elementos de sistemas anteriores e a emergência de factores


que prenunciam já um estádio superior de evolução.
Em cada época histórica e em cada país ou região, modo de produção dominante
é aquele cujas relações de produção caracterizam e enquadram o desenvolvimento
económico e social. Seguindo o critério de François Perroux, poderá dizer-se que um
determinado país será capitalista ou viverá sob o sistema feudal, v.g., quando “a maior
parte dos valores económicos que nele se obtêm ou a maior parte desses valores nos
sectores estratégicos” resultar de produção desenvolvida mediante relações de produção
de tipo capitalista ou de tipo feudal.34

34
Cfr. F. PERROUX, Le Capitalisme, cit., 17.
33

1. - O comunismo primitivo 35

A qualidade de produtor distingue o homem dos outros animais, na medida em


que só o homem é capaz de fabricar instrumentos (de trabalho) que utiliza na actividade
de produção, actividade inteligente que visa colocar a natureza ao serviço das suas
necessidades e dos seus objectivos.
Durante séculos, as forças produtivas foram muito rudimentares e as condições
materiais de vida muito precárias, pois os frutos do trabalho do homem mal bastavam
para garantir a sobrevivência diária. O homem começou por utilizar as pedras e os paus
para procurar os seus meios de subsistência; só mais tarde passou a confeccionar
instrumentos muito simples, com a ajuda dos quais caçava e colhia os alimentos de
origem vegetal, a tanto se resumindo a actividade económica, neste período em que o
homem era simples colector.
Nesses primeiros tempos do processo de domínio e adaptação da natureza, os
homens viviam e trabalhavam juntos, em comunidades que caçavam em grupo e
partilhavam em conjunto os resultados da caça. Esta forma comunitária de vida explica-
se, aliás, facilmente, se tivermos presente que os homens primitivos precisavam de se
unir e de actuar em grupo, quer para se defenderem dos animais selvagens quer para
poderem prover à sua alimentação, tarefas que tinham de levar a cabo com instrumentos
mais que rudimentares. Como Marx salienta numa carta para Vera Zassoulitch, é a
necessidade do trabalho colectivo inerente às condições de vida próprias das
comunidades primitivas que explica a propriedade comum da terra, e não o contrário.
Não fazia sentido, então, falar-se de propriedade (privada) dos meios de
produção, que eram utilizados, bem como as terras, por toda a colectividade, para
satisfazer as necessidades de todos. Não havia, portanto, diferenciação social, nem
divisão da sociedade em classes, nem exploração de uma classe de homens por outra.
Nestas sociedades primitivas, em que a organização colectiva e a disciplina do trabalho
resultavam da força do costume, do prestígio e do poder de que gozavam certos
elementos da comunidade (os chefes de clãs), que não raras vezes eram mulheres. Não
havia, por isso, necessidade de qualquer aparelho de coerção destinado a garantir a
‘exploração do homem pelo homem’, o domínio de uma classe social sobre outra(s)

Cfr., sobre este período, J. EATON, Manual…, cit., 6-9; E. MANDEL, Traité…, cit., I, cap. 1º;
35

HINDESS/HIRST, Modos de Produção…, cit., 28ss; C. GOMES, Economia do Sistema Comunitário, cit.
34

classe(s) social (sociais). Não havia lugar para o estado enquanto aparelho de poder
(político, judiciário e miliar).
No período colector, a única divisão do trabalho conhecida era a que se fazia em
função do sexo: os homens, mais virados para o fabrico de armas e para a caça; as
mulheres, encarregadas da defesa das habitações e da colheita e confecção de alimentos
vegetais.
Entretanto, a lenta acumulação de invenções foi aumentando a produtividade do
trabalho. A invenção do arco e da flecha como instrumentos de caça e do arpão como
instrumento de pesca vieram permitir maior regularidade e maior abundância no
abastecimento de géneros, reduzindo-se a importância da simples colheita de frutos, que
passou a ser uma actividade meramente suplementar das demais.
O homem começou a trabalhar a pele, os ossos, os chifres dos animais caçados
regularmente. A descoberta de zonas de caça ou de pesca particularmente abundantes
veio permitir que nelas se fossem fixando as primeiras tribos, pois a abundância da caça
e da pesca, aliada ao uso de instrumentos mais perfeitos, permitiu o abandono
progressivo do nomadismo, enquanto prática imposta pela necessidade de procurar
novas regiões onde pudessem encontrar alimentos. O próprio regime sedentário, por seu
turno, contribui para o aumento da produtividade do trabalho, através da produção de
mais e melhores instrumentos de trabalho.
Assim se foram criando condições para que as comunidades primitivas
produzissem, além do necessário à sobrevivência, um excedente (sobreproduto social).
Assim se puderam constituir reservas de alimentos, reduzindo o risco da ocorrência de
períodos de fome. Assim foi possível uma divisão do trabalho mais avançada e o
consequente aumento da população (fenómeno que é, ele próprio, revelador da
existência de um excedente social). Este aumento da população abre, por sua vez, novas
possibilidades de especialização e de divisão do trabalho, ampliando a quantidade e a
eficiência das forças produtivas à disposição da humanidade.
A existência de um excedente regular e permanente de alimentos foi a base
material necessária para que pudesse acontecer a grande revolução económica e social
do período neolítico - a revolução neolítica, como justamente lhe chamam os autores.
Foi o início da agricultura, da domesticação e da criação de animais, actividades que
pressupõem necessariamente a existência de uma certa reserva de alimentos.
Em primeiro lugar, porque é preciso dispor de alimentos para se lançarem à terra
e de animais para criar com vista à reprodução, ou seja, é preciso dispor de alimentos
35

que possam não ser consumidos no presente com vista à obtenção de maiores
quantidades de alimentos no futuro.
Em segundo lugar, porque são necessários alimentos para a comunidade subsistir
no intervalo de tempo que medeia entre as sementeiras e as colheitas. Daí que estas
formas de actividade produtiva só progressivamente fossem sendo adoptadas pelos
povos, primeiro como actividades secundárias, em relação à caça e à colheita de frutos,
mais tarde como actividades principais, durante muito tempo complementadas por
aquelas.

O que fica dito permite compreender a importância do excedente social, surgido


pela primeira vez na história da humanidade como resultado do aumento da
produtividade do trabalho agrícola. A existência de um excedente agrícola e a
capacidade de produzir esse excedente de forma regular e permanente permitiram ao
homem do neolítico iniciar a prática da agricultura, da domesticação e da criação de
animais, potenciando deste modo a capacidade de produção de alimentos e, por isso
mesmo, lançando as bases da civilização.
Se as comunidades humanas fossem obrigadas a consagrar todo o seu tempo à
obtenção dos meios de subsistência dos seus elementos, seria impossível o
desenvolvimento de qualquer outra actividade (comercial, industrial, científica ou
artística), uma vez que todo o tempo de todas as pessoas tinha de ser dedicado à
obtenção dos alimentos necessários à subsistência. Sem a possibilidade de dispor
regularmente de um excedente agrícola não seria possível a nenhuma sociedade garantir
a subsistência das pessoas que não produzissem elas próprias os seus alimentos (i.é, que
se dedicassem a quaisquer outras actividades que não a de obtenção dos próprios
alimentos). Assim se explica a tese de Ernest Mandel, segundo a qual “o sobreproduto
agrícola é a base de todo o sobreproduto e, portanto, de toda a civilização”.36
O desenvolvimento implica, com efeito, a criação de um excedente social, i.é,
exige que a sociedade produza mais do que aquilo de que necessita para estar em
condições de renovar a produção em períodos seguintes. Quando esse excedente atinge
proporções consideráveis, há saltos no desenvolvimento. Foi o que aconteceu com a

36
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 112. Sobre a noção de excedente (sobreproduto social) e sua
importância, ver, além de E. MANDEL, últ. ob.cit., cap. I; P. BARAN, A Economia…, cit., 22-34; C.
BETTELHEIM, Planification…, cit., 51ss; C. FURTADO, Prefácio…, cit., 13-70.; R. LÓPEZ-SUEVOS,
Excedente Económico…, cit.
36

passagem do comunismo primitivo para o esclavagismo; foi o que significou, mais


tarde, a revolução industrial - um grande salto no desenvolvimento dos povos.
Em certas condições históricas, o crescimento do excedente pode não resultar
directamente do aumento da produtividade. Ele pode verificar-se porque se sujeitam as
populações a esquemas de acentuada poupança forçada, recorrendo a formas de trabalho
escravo ou de trabalho forçado, a políticas deliberadas de inflação, de salários baixos e
de congelamento de salários, ao pedido de sacrifícios por razões patrióticas (situação
frequente em períodos de imediato após-guerra) ou por razões revolucionárias (por
exemplo, no período de acumulação na URSS).

Mas regressemos à revolução neolítica. Ela trouxe pela primeira vez ao homem
a possibilidade de controlar a produção dos seus meios de subsistência, ao mesmo
tempo que veio abrir novas perspectivas de desenvolvimento do artesanato profissional,
com o consequente aperfeiçoamento dos instrumentos de produção, acarretando
profundas modificações no modo de vida e nas relações entre os homens.
Então surgiu uma grande diferenciação entre as tribos que continuaram uma vida
nómada, vivendo essencialmente da caça, e aquelas que adoptaram uma actividade
económica que permitiu (e exigiu) a sedentarização, ao mesmo tempo que surgiu a
primeira importante divisão social do trabalho entre as tribos que se dedicaram à
pastorícia e as que se dedicaram à cultura da terra.
O nomadismo foi sendo progressivamente abandonado, transformando-se as
tribos em comunidades mais ou menos estáveis. A produtividade do trabalho aumentou
nestas comunidades, que passaram a poder produzir regularmente um excedente em
relação às suas necessidades, ampliando assim o excedente social.37
Com a sedentarização, começaram as famílias a reservar normalmente as
mesmas terras para a sua agricultura, assim se generalizando a utilização particular das
terras na posse de cada família, embora, durante muito tempo, esta posse continuasse a
ter como pressuposto a existência da comunidade e a propriedade colectiva da terra.
A agricultura desenvolveu-se, passando a adequar-se as sementeiras e as
colheitas às estações do ano, uma vez compreendida a importância da energia do sol.
Por outro lado, nos vales do Nilo, do Tigre e do Eufrates reconheceu-se o valor das

37
O gado constituiu o primeiro meio de acumulação de riqueza A função de acumulação de
riqueza é uma das funções da moeda. E a verdade é que o gado foi um dos primeiros bens que
funcionaram como moeda. A palavra latina pecus (gado) é a raiz de palavras como pecúlio, pecuniário,
etc.
37

águas como reconstituinte da fertilidade das terras e iniciou-se a prática da irrigação. A


produção de alimentos aumentou de tal forma que, entretanto, com a descoberta dos
metais (cobre e estanho - o ferro só bastante mais tarde), da arte de trabalhá-los e de
fazer ligas (bronze), foi possível operar-se uma nova divisão do trabalho entre a
agricultura e o artesanato (a indústria). A sociedade estava agora em condições de
alimentar milhares de homens que não tinham de produzir alimentos, podendo dedicar-
se exclusivamente a actividades ‘industriais’ ou a outras actividades (a guerra, as artes,
a filosofia, a ‘ciência’). Foi o período em que se descobriram a roda de cerâmica, os
carros de rodas, o arado com ponta de metal, os barcos à vela, a técnica do fabrico de
tijolos (com importantes consequências ao nível da construção, tanto para fins civis
como para fins religiosos). Com a técnica da irrigação, surgiu, verdadeiramente, a
civilização.
A utilização de novos e mais aperfeiçoados instrumentos de trabalho e de novas
técnicas agrícolas aumenta enormemente a produtividade do trabalho. Nos tempos
primitivos, o homem não era capaz de produzir mais que a sua subsistência; agora
produz-se um excedente, que se transforma em objecto de trocas entre os homens, assim
se iniciando a troca de mercadorias.
Mas, se cada homem pode produzir, com o seu trabalho, mais que o necessário
para a sua subsistência, ganha sentido a exploração do homem pelo homem. Nos tempos
primitivos era corrente a prática do infanticídio, bem como o abandono ou a morte dos
deficientes e dos velhos (aqueles que não eram capazes de assegurar a sua própria
subsistência), com o fim de evitar a população excessiva, a fome e o possível extermínio
de toda a comunidade. Por isso mesmo as tribos vencedoras matavam (e às vezes
comiam) os seus prisioneiros de guerra. Agora, torna-se vantajoso fazê-los escravos e
obrigá-los a trabalhar para que os senhores possam apropriar-se do excedente criado
pelo trabalho escravo. A primitiva comunidade de vida e de trabalho foi assim destruída
pelo progresso das técnicas, pela divisão do trabalho e pelas consequências desta: a
divisão da sociedade em classes e o aparecimento do estado como instrumento de
domínio de um grupo social sobre outro. Assim escreveu Engels [sublinhado nosso.
AN]:

“O aumento da produção em todos os ramos - criação de gado, agricultura, ofícios


domésticos - deu à força de trabalho humana a capacidade de conseguir um produto maior do
que o necessário para a sua subsistência. (...) A introdução de novas forças de trabalho
tornou-se desejável. A guerra forneceu-as: os prisioneiros de guerra foram transformados em
escravos. A primeira grande divisão social do trabalho, com o seu aumento da produtividade do
38

trabalho, e portanto da riqueza, e o alargamento do campo da produção, trouxe consigo,


necessariamente, naquelas condições históricas, a escravatura. Da primeira grande divisão social
do trabalho resultou a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e
escravos, exploradores e explorados”.38
O modo de produção e a organização social próprios do comunismo primitivo
deram lugar a um novo modo de produção e a uma diferente organização social: o
esclavagismo.

38
Cfr. “A Origem da Família…, ed. cit., 357/358.
39

2. - O esclavagismo 39

O esclavagismo, enquanto modo de produção, assenta na exploração do trabalho


forçado da mão-de-obra escrava: os senhores alimentam os seus escravos e apropriam-
se do (restante) produto do trabalho destes. Surgiu nos vales do Nilo e do Eufrates, na
Índia e na China, conformando mais tarde as civilizações grega e romana.
Com esta divisão da sociedade em classes surge o estado (o estado esclavagista)
como aparelho permanente de coerção e de domínio: sem ele não teria sido possível
obrigar a maioria dos membros da sociedade (a classe dos trabalhadores escravos) a
trabalhar sistematicamente em benefício da classe minoritária dos donos de escravos e
titulares dos outros meios de produção (a terra, nomeadamente).40
A exploração do trabalho escravo tornou possível a produção de grandes
excedentes e uma enorme acumulação de riquezas, estando, assim, na base do
desenvolvimento económico e cultural que a humanidade então conheceu: construíram-
se diques e canais de irrigação, exploraram-se minas, abriram-se estradas, construíram-
se pontes e fortificações, desenvolveram-se as artes e as letras.
Mas a civilização esclavagista da Grécia e de Roma não tardaria a entrar em
declínio, primeiro a Grécia, subjugada por Roma, e depois o próprio Império Romano,
e, com ele, a civilização do mundo antigo.
Nas civilizações esclavagistas, não era pela via do aperfeiçoamento dos métodos
de produção que os senhores de escravos procuravam aumentar a sua riqueza; e os

39
Cfr. J. EATON, ob.cit., 9-10; H. DENIS, História…, cit., 83-84; HINDESS/HIRST, ob. cit., 127ss.
40
Engels traduz muito bem esta ideia (A Origem da Família…, ed. cit., 366-369): “o estado não
existiu desde a eternidade. Houve sociedades que passaram sem ele, que não faziam nenhuma ideia do
estado nem do poder de estado”. O estado “é um produto da sociedade num estádio determinado de
desenvolvimento; é o reconhecimento de que esta sociedade está enredada numa insolúvel contradição
consigo própria, que se cindiu em oposições inconciliáveis de que ela é incapaz de se livrar. (…) Para que
essas oposições, classes com interesses económicos em conflito não se comsumam a si próprias e à
sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade
para abafar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’; e esse poder surgido da sociedade mas
que se coloca acima dela e se aliena cada vez mais dela é o estado”. E como o estado “surgiu no meiodo
conflito enter classes, ele é, em regra, o estado da classe mis poderosa, economicamente dominante, e
que, por seu intermédio, se torna também a classe politicamente dominante, obtendo assim novos meios
para a subjugação e exploração da classe oprimida. Assim, o estado da Antiguidade era, antes de tudo, o
estado dos donos de escravos para a subjugação dos escravos, tal como o estado feudal era o órgão da
nobreza para a subjugação dos camponeses servos e dependentes e o moderno estado representativo é o
instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital”.
40

escravos, sem qualquer interesse nos resultados do seu trabalho, não se empenhavam na
descoberta de técnicas mais produtivas.41
O aumento de riqueza realizava-se mediante a conquista de novos territórios,
capazes de fornecer escravos em maior número e mais impostos ao fisco. Daí a
expansão colonial da Grécia e de Roma.
As conquistas militares de Roma enriqueciam os poderosos donos de escravos e
grandes proprietários de terras. Mas arruinavam os pequenos proprietários livres que,
mobilizados para o serviço militar obrigatório, eram forçados a abandonar as suas terras,
das quais acabavam por ser expulsos, por dívidas, indo elas engrossar as grandes
propriedades cultivadas por mão-de-obra escrava; e arruinavam também os pequenos
artesanos das cidades, em virtude do recurso a artífices escravos. Assim se criaram
enormes massas empobrecidas e sem meios de ganhar a vida, que os senhores de Roma
iam entretendo distribuindo pão e circo (panem et circensis).
As novas conquistas e os novos escravos que elas propiciavam (trabalhando de
má vontade, com produtividade reduzida em comparação com as necessidades)
começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração
romana. Os conflitos no seio das classes de homens livres começam a abalar as
estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre
latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruinados,
aliados aos proletarii das cidades.
Ao mesmo tempo, começa a manifestar-se o movimento de revolta dos escravos
contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu o ponto
mais alto com a revolta de Espártaco (73-71 A. C.). Os escravos foram vencidos, mas a
República romana cairia pouco depois. Em 27 A. C. Augusto inicia o período do
Império.
A partir do século II P. C., a necessidade de obter receitas leva o estado romano
a organizar grandes explorações nas suas terras e a encorajar a concentração das
propriedades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista. As classes
41
Recorde-se, aliás, que a escravatura - renascida mais tarde como consequência das viagens
atlânticas de portugueses e espanhóis e do desenvolvimento do comércio capitalista - viria a ser abolida
no séc. XIX por pressão das potências capitalistas, principalmente a Inglaterra e os estados industriais do
norte dos EUA, em oposição aos estados rurais e esclavagistas do sul (a Guerra da Secessão poderá
entender-se, aliás, como uma espécie de revolução burguesa contra a ‘aristocracia’ rural e plantadora dos
estados sulistas). É que ao capitalismo interessava o trabalho livre: 1.°) porque a produtividade do
trabalhador livre é maior que a dos escravos; 2.°) porque o capitalismo precisa de consumidores e os
escravos não o eram, pois não recebiam rendimentos monetários e os donos gastavam com eles apenas o
indispensável; 3.°) porque a própria subsistência dos trabalhadores deixava de ser um encargo para o
capital.
41

médias, arruinadas, integravam as grandes massas inactivas das cidades, onde o recurso
ao trabalho escravo impedia - como nos campos - qualquer melhoria de produtividade.
Esmagada por Caracala, no início do século III, uma revolta da aristocracia, a
classe dominante em todo o Império passará a ser a dos curiales (colectores de
impostos), responsáveis directamente perante o imperador, e cuja autoridade se
transmite hereditariamente. Os imperadores organizam as artes em corporações
obrigatórias e passam a intervir cada vez mais na economia.
Com Diocleciano, generaliza-se o pagamento em espécie aos funcionários,
utilizando o estado directamente os produtos da terra, sem os deixar passar pelo
mercado, cuja importância diminui, justificando a tendência dos grandes proprietários
para se constituírem em economias fechadas, de dimensões cada vez maiores,
colocando-se os pequenos proprietários - desarmados perante o fisco - sob a protecção
dos grandes.
Por outro lado, com vista a facilitar a cobrança dos impostos (frequentemente
pagos em géneros), o estado procurou fixar à terra que cultivavam os pequenos
agricultores livres das aldeias, instituindo o regime de colonos. Estes não podiam deixar
a terra à qual estavam adstritos e por cujo uso pagavam uma quantia determinada,
podendo mesmo ser vendidos com a sua parcela. Assim se institui um regime de grande
propriedade, mas sem bases técnicas capazes de proporcionar índices razoáveis de
produtividade do trabalho agrícola.
Embora tenha, em alguma medida, prefigurado as relações de produção feudais,
o colonato não passou de uma “forma de declínio sem esperança do mundo antigo”,
sem capacidade para servir de “ponto de partida de um desenvolvimento novo”. O
estatuto dos colonos acabou por se aproximar do dos escravos, reproduzindo os
obstáculos que o esclavagismo representava para o desenvolvimento das forças
produtivas.
Minado por dificuldades internas, o império romano caiu num verdadeiro
impasse. Exangue, sem qualquer “capacidade de desenvolvimento” e de “poder
criador”, a sociedade esclavagista parecia incapaz de encontrar dentro de si o princípio
de uma transformação positiva.42 Sucumbirá à invasão dos bárbaros do norte (em 476
P.C.), que, ao destruírem a sociedade esclavagista e o seu estado, funcionaram como o

42
Cfr. F. ENGELS, “A Origem da Família…, cit., 344ss. Esta obra de Engels é, sem dúvida, o
trabalho mais importante dos clássicos do marxismo sobre os problemas da passagem do esclavagismo ao
feudalismo e sobre o papel dos povos bárbaros neste processo.
42

factor externo que desencadeou a mudança: “só os bárbaros são capazes de rejuvenescer
um mundo que sofre de uma civilização agonizante”. 43
A historiografia marxista reconhece que a passagem do esclavagismo ao
feudalismo não foi, directamente, o resultado de uma revolução social levada a cabo
pelos escravos e pelos colonos.44 Mas a verdade é que, em virtude das suas próprias
contradições, o modo de produção esclavagista tornou-se incapaz de progredir: as
relações de produção esclavagistas não acompanharam o desenvolvimento das forças
produtivas e passaram a constituir um impedimento ao seu desenvolvimento. A certa
altura, “a escravatura tornou-se economicamente impossível e o trabalho dos homens
livres era moralmente desprezado. Uma já não podia e o outro ainda não podia ser a
forma fundamental da produção social. Aqui a única coisa que podia ajudar era uma
revolução social completa”.45
As debilidades da “civilização agonizante” do império romano permitiram que
os povos bárbaros se instalassem perto das suas fronteiras e desenvolvessem contactos
comerciais relevantes com os povos do império, e permitiram mesmo que alguns
daqueles povos se fixassem dentro das fronteiras do império. Estas populações bárbaras
desenvolveram contactos comerciais relevantes com os povos do império e introduziram
naquele corpo social agonizante alguns focos de vitalidade tecnológica.
Por outro lado, a progressiva degradação das condições de vida dentro do
império levaram os administradores imperiais a abusar nas exigências de novos
impostos e novas prestações aos cidadãos romanos já depauperados. O estado romano
tinha-se transformado numa máquina gigantesca, que sugava quase tudo aos seus
cidadãos, muitos dos quais se foram refugiando nas regiões já ocupadas pelos bárbaros,
transferindo para eles a propriedade das suas terras, em troca de protecção contra o
próprio estado romano, visto como o pior inimigo e opressor por muitos dos seus
cidadãos, que esperavam os bárbaros como salvadores, que os libertavam da asfixia
imposta pelo seu próprio estado.46
Em dado momento histórico, os povos bárbaros acabaram por tomar o império
romano, sendo que a interacção estabelecida ao longo dos tempos entre o mundo
primitivo dos bárbaros vindos do norte e o mundo romano antigo (esclavagista) facilitou
o processo de (auto)destruição do modo de produção esclavagista e abriu os caminhos
43
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 354.
44
Já Engels sublinhava esta ideia: “a Antiguidade não conhece a abolição da escravatura por
meio de uma rebelião vitoriosa” (A Origem da Família…, cit., 354).
45
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 348.
46
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 346-348.
43

da rotura e da mudança, que conduziram à síntese que é o modo de produção feudal.


Recorremos, para concluir, a A. Pelletier e J.-J. Roblot: “A civilização antiga, cujo
desenvolvimento asenta no esclavagismo, esgotou de tal forma a sua vitalidade nesse
mesmo desenvolvimento que acabou por ficar incapaz de se renovar com base nas suas
próprias forças; mas, ao mesmo tempo, ela introduziu no movimento da história uma
série de povos bárbaros cuja organização social, muito mais primitiva, era, por isso
mesmo, muito mais apta para evoluir: por uma espécie de ricochete, Roma recebeu o
golpe de misericórdia pela mão dos povos bárbaros, e estes, no terreno que Roma tinha
preparado e que o seu desmantelamento deixara livre, encontraram o ponto de partida
de um desenvolvimento novo”.47
Não conhecendo a propriedade privada das terras, os povos invasores, à medida
que vão penetrando nos territórios do império romano, constituem-se em comunidades
de aldeia, sendo as terras periodicamente repartidas entre os habitantes, restabelecendo
aí um campesinato livre organizado em comunidades rurais.
Paralelamente, a apropriação pelos chefes bárbaros dos grandes domínios dos
romanos vencidos dá origem a uma nova aristocracia fundiária, sob cuja protecção se
viriam colocar os camponeses livres das aldeias, ameaçados permanentemente pelo
clima de insegurança que marcou o período entre o século V e o século IX: a obrigação
de cumprirem o serviço militar obrigava-os a abandonar por longos períodos as suas
terras, cujas colheitas eram, muitas vezes, saqueadas e destruídas.
Em troca do compromisso de fidelidade pessoal e (em regra) da entrega dos seus
bens, os camponeses pobres passavam a integrar a ‘família’, a ‘casa’ dos grandes donos
de terras, que, por sua vez, se obrigavam a protegê-los e a garantir-lhes o sustento. Por
este processo, os camponeses livres transformam-se em servos, começando a delinear-se
assim os domínios senhoriais característicos da Idade Média.48
Nas regiões menos afectadas pelas invasões bárbaras, os servos tomaram
também o lugar dos escravos, dada a impossibilidade de manter a exploração agrícola
com um tipo de relações de produção cuja ineficácia se vinha acentuando
progressivamente.
47
Cfr. PELLETIER/GOBLOT, ob. cit., 187/188. Poderá dizer-se que as tribos germânicas, ao
destruirem a estrutura económica, social e política em que assentava o império romano esclavagista,
passaram de uma sociedade sem classes para o feudalismo, sem terem conhecido a etapa intermédia do
esclavagismo. Este desenvolvimento terá sido possível graças aos condicionalismos históricos resultantes
das relações de vizinhança e do convívio desses povos com a civilização esclavagista romana.
48
Sobre a génese das relações de dependência pessoal, cfr. M. BLOCH, A Sociedade Feudal, cit.,
171ss. Em geral sobre a transição da ‘sociedade antiga’ para o período feudal, ver: P. ANDERSEN,
Passagens…, cit., e F. LOT, O fim…, cit.
44

Entretanto, as cidades espalhadas pelo império romano eram assaltadas,


saqueadas e abandonadas, arruinando-se por completo a actividade ‘industrial’ que
nelas se localizava, desaparecendo com a indústria antiga a escravatura em que ela se
apoiava. Regressava-se a uma actividade económica quase exclusivamente rural.
Com as invasões normandas, no século IX, os delegados das administrações
reais constroem fortificações a cuja protecção se acolhem as populações indefesas e
tornam-se praticamente independentes da autoridade dos reis, considerando-se apenas
vassalos a quem os reis concedem poderes sobre uma parte dos seus domínios,
concedendo eles, por sua vez, direitos idênticos aos seus subordinados. Assim se
constitui a hierarquia da sociedade feudal e se desmembra o estado.
As invasões dos povos germânicos vieram acentuar e acelerar tendências já em
marcha no sentido da perda de importância da actividade industrial e comercial e da
economia monetária, reforçando a base rural da economia e da sociedade e provocando
a rotura das estruturas económicas, sociais e políticas, com a consequente fragmentação
do espaço económico e do espaço político.49
Concluímos com Charles Parain: “A destruição do estado esclavagista (na
Europa ocidental, a do Império Romano) suprime um obstáculo decisivo para a
formação de novas relações de produção. Todavia, não acarreta o seu desenvovlimento
automático e rápido. Na ausência de uma classe verdadeiramente revolucionária,
portadora de ideias revolucionárias, a passagem de um regime social a outro só pode
operar-se de forma extremamente lenta, depois de um longo e doloroso tactear no
escuro. Assim se passa com o regiem feudal, cuja formação resulta de adpatações
espontâneas, inconscientes perante neccessidades novas, todas elas de igual natureza e
conduzindo a um resultado final comum, mas obedecendo a ritmos e sob formas muito
diferentes, consoante as condições locais”.50

3. - O feudalismo 51
49
Cfr. A. HESPANHA, História das Instituições, cit., 81/82.
50
Cfr. Ch. PARAIN, “Evolução do sistema feudal europeu”, em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo,
cit., 22.
Sobre o feudalismo, ver: TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 147ss.; M. DOBB, A
51

Evolução…, cit., 49ss; P. SWEEZY, M. DOBB e outros, ob. cit.; PARAIN/VILAR e outros, ob. cit.;
HINDESS/HIRST, Modos de Produção, cit., 260ss; A. HESPANHA, História..., cit., 88ss; G. CONTE, Da
45

3.1. - Caracterização geral

Na sociedade feudal toda a vida social era marcada por um elemento comum, a
subordinação de indivíduo a indivíduo, a relação de dependência pessoal, a
circunstância de cada um “ser o homem de outro homem”, na expressão de Marc
Bloch.52 Esta relação de dependência pessoal caracterizava todo o tecido da sociedade
feudal, independentemente da natureza jurídica exacta do vínculo e sem distinção de
classes: o conde era o ‘homem’ do rei, do mesmo modo que o servo era o ‘homem’ do
senhor da terra onde vivia e trabalhava.
As formas deste laço humano apresentavam, porém, algumas singularidades,
conforme os níveis sociais em que se verificavam. No grau inferior, as relações de
dependência encontraram o seu enquadramento natural no senhorio rural, que é,
fundamentalmente, uma terra habitada e os seus súbditos. No âmbito do senhorio, o
vínculo de dependência pessoal tinha no aspecto económico o seu campo de iniciativa
primordial: o objectivo do senhor era, preponderantemente, o de obter rendimentos,
através da apropriação dos frutos do trabalho gratuito dos servos.
Tradicionalmente, a designação feudalismo vem associada a determinadas
estruturas jurídicas e políticas (a “vassalagem”), que apontam para um entendimento do
feudalismo como regime jurídico-político (superestrutura política). Por nós, utilizá-la-
emos aqui no sentido de modo de produção feudal ou sistema económico-social feudal,
no qual a actividade económica assenta na agricultura e o poder político é exercido
directamente pela classe dos proprietários de terra, aceitando o ponto de vista de Charles
Parain, segundo o qual “existe uma unidade profunda entre as relações de produção
estabelecidas entre senhores e camponeses em torno da terra e a hierarquia feudal que
durante tanto tempo sancionou e garantiu o próprio mecanismo dessas relações”.53

Crise…, cit., 12-40; C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit.


52
Cfr. Marc BLOCH, A Sociedade Feudal, cit., 169.
53
Cfr. Ch. PARAIN, “Caracteres gerais do feudalismo”, em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit.,
19. Cfr. também Ch. HILL, A Revolução…, cit., 8. Durante muito tempo, os historiadores da Idade Média
distinguiram entre feudalismo e senhorio. Mas esta distinção foi sendo abandonada pela historiografia
mais recente, graças, sobretudo, aos trabalhos de inspiração marxista. Reconhece-se, por um lado, que
não é fácil isolar, no contexto económico, social e político das sociedades medievais, aquelas duas
realidades (feudalismo e senhorio), e salienta-se, por outro lado, que ambas relevam na conformação de
um mesmo sistema económico-social (o sistema feudal, o feudalismo, na acepção em que aqui se utiliza
esta palavra).
Alguns historiadores (sobretudo franceses) ensaiaram a distinção entre feudalismo e feudalidade.
A expressão feudalismo traduziria o entendimento tradicional de regime jurídico-político caracterizado
pelas relações de vassalagem entre o rei e os grandes vassalos, que disporiam de poderes majestáticos
bastante amplos. A expressão feudalidade traduziria a concepção alargada de regime senhorial,
46

No início da Idade Média as terras, na Europa Ocidental, encontravam-se


divididas em três partes:
1) as terras que o senhor reservava para si (o domínio, a reserva) e que explorava
utilizando o trabalho não pago dos servos e colonos obrigados à corveia (prestação, não
paga, de certos dias de trabalho ou de certos serviços);
2) as terras que os senhores colocavam à disposição dos camponeses para eles
cultivarem com vista à satisfação das suas próprias necessidades (tenures, concessões);
3) as terras comunais, utilizáveis livremente pelos camponeses e pelo senhor,
que forneciam essencialmente lenha, madeira para as construções e pastos para os
gados.
Os proprietários (monopolistas) da terra controlam, portanto, o processo
produtivo, na medida em que dispõem do poder de decidir qual a porção de terra a
atribuir aos produtores directos e do poder de revogar esta atribuição, bem como o
poder de exigir uma renda (em dias de trabalho, em géneros ou em dinheiro) pelo uso
da terra, e ainda outros poderes, como o de impor ou proibir certas culturas ou de
reservar para si o monopólio dos moinhos e dos lagares para produção de azeite ou de
vinho. Aos servos cabia apenas o domínio útil das terras que cultivavam, de acordo com
a decisão do respectivo senhor (titular do domínio directo).
Enquanto os colonos podem abandonar as terras para ir servir outros senhores,
os servos encontram-se hereditariamente ligados às terras do seu senhor, não podendo
abandoná-las. Mas estes deveres de servidão têm como contrapartida o direito dos
servos de permanecer nas terras do senhor e de cultivar uma parcela delas, para aí
proverem à satisfação das suas necessidades. Na expressiva síntese que Fustel de
Coulanges faz do estatuto do servo, “la terre le tient et il tient la terre”.54
Este ‘direito’ hereditário das famílias servas constitui um limite ao direito de
propriedade do senhor. Por isso se diz que a propriedade feudal é uma propriedade
imperfeita: os proprietários da raiz não podem expulsar os servos das terras que eles
habitam e que lhes garantem o sustento.

caracterizado este pela existência de laços de dependência económica, política e social fundados na posse
da terra e extensivos a toda a sociedade e não apenas ao topo da escala social. Este entendimento da
feudalidade enquanto estrutura social complexa marcada por laços de dependência em que o proprietário
da terra era também senhor e em que os produtores directos eram também servos não é substancialmente
diferente do entendimento que fazemos do feudalismo como modo de produção feudal ou sistema
económico-social feudal. Cfr. A. HESPANHA, História..., cit., 84ss.
54
Apud E. MANDEL, Traité…, cit., III, 116.
47

Servos e colonos estão sujeitos ao estatuto de servidão pessoal: sobre eles


recaem idênticas obrigações pessoais de prestar ao senhor certos serviços ou dias de
trabalho gratuitos, de entregar uma parte das colheitas, ou, mais tarde, de pagar uma
dada renda em dinheiro. Esta relação de servidão pessoal é, sem dúvida, a característica
fundamental do modo de produção feudal. Parece não haver, porém, um modelo de
servidão válido em todo o período medieval e em todas as regiões da Europa feudal: no
século X verificaram-se situações em que “o servo podia abandonar a sua exploração
ainda que permanecendo o homem próprio do seu senhor; ao invés, no século XIV, em
algumas regiões, “o antigo homem livre, sem qualquer laço pessoal para com um
senhor, está, em contrapartida, ligado à sua exploração agrícola, que não pode
abandonar livremente”. Para além das diferenças registadas no estatuto da servidão, em
diferentes tempos e lugares, ela desapareceu por vezes episodicamente, reconstituindo-
se sob novas modalidades.55
Seguindo Maurice Dobb, podemos defini-la como “a obrigação imposta ao
produtor pela força e independentemente da sua própria vontade, para que satisfaça
certas exigências económicas de um senhor, quer tais exigências tomem a forma de
serviços a prestar, ou de tributos a satisfazer em dinheiro ou em espécies - em trabalho
ou no que o Dr. Nielson chamou ‘presentes para a despesa do senhor’. Essa força
coerciva pode ser a força militar, detida pelo senhor feudal, a do costume apoiado por
uma espécie de processo judicial, ou a força da lei.”56
Nas condições do feudalismo, a força de trabalho não é uma mercadoria
autónoma, porque os servos, não sendo homens livres, não são livres de vender a sua
própria força de trabalho: têm de a exercer nas terras do senhor, em parte para garantir a
sua própria sobrevivência e reprodução, em parte, obrigatória e gratuitamente, em
benefício do senhor. Como contrapartida, os servos têm direito a trabalhar as terras
indispensáveis para obter os meios de subsistência para si e para as suas famílias.
Como se diz acima, os poderes inerentes à propriedade da terra garantem aos
senhores feudais a organização e o controlo do processo produtivo e de todo o processo
da vida social. Mas esta realidade não apaga esta outra: os servos não estão separados
dos meios de produção, uma vez que têm garantido o usufruto de uma certa porção de
terra, situação que lhes permite viver do seu trabalho utilizando os instrumentos de
produção que lhes pertencem: eles estão em condições de conseguir, por si próprios, os
55
Cfr. Charles PARAIN, “Evolução do sistema feudal europeu”, em C.E.R.M., Sobre o
Feudalismo, cit., 24/25.
56
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 35-36.
48

meios materiais necessários à sua existência. O que significa que eles não são
economicamente obrigados a trabalhar nas terras do senhor. São as várias coerções
extra-económicas decorrentes da estatuto jurídico-político da servidão que os obrigam a
trabalhar gratuitamente nas terras do senhor, limitando a sua liberdade e a sua
propriedade de tal forma que nem a sua força de trabalho nem o produto do seu trabalho
são ainda mercadorias, porque não podem ser por eles trocadas ou vendidas.57
E este estatuto é respeitado porque os senhores têm o direito e o poder (político,
militar e judicial) de os compelir a isso, e porque os próprios servos se sentem
obrigados a respeitar o seu estatuto, na medida em que aceitam a ideologia dominante,
veiculada principalmente pela Igreja Católica, que advoga uma sociedade hierarquizada,
em que tudo e todos estão no seu lugar e não podem deixar de estar, sob pena de se pôr
em risco o equilíbrio indispensável à própria sobrevivência do edifício social.58
Neste sentido, pode dizer-se que as relações de produção são, no quadro do
feudalismo, relações entre os produtores directos e o seu suserano, verificando-se a
exploração dos produtores através de uma compulsão político-legal directa (Maurice
Dobb): a apropriação do trabalho excedente pelos senhores feudais efectua-se
directamente, por coerção extra-económica, sem a mediação das leis económicas de
troca de mercadorias. E esta coerção extra-económica “devia a sua eficácia
simultaneamente ao monopólio do armamento ofensivo e defensivo e à solidariedade de
classe dos exploradores põe meio da organização política feudal. (…) A expoloração
económica (através das várias formas de apropriação do sobretrabalho camponês) e o
aparelho jurídico-político encontram-se portanto intimamente ligados”. 59
57
Cfr. G. CONTE, Da Crise..., cit., 12ss e A. GUERREAU, O Feudalismo…, cit., 215ss.
58
No capítulo I de A Ideologia Alemã (MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I, 4ss,
especialmente 38/39) Marx e Engels põem em destaque o conceito e a importância da ideologia
dominante. “As ideias da classe dominante – escrevem eles – são, em todas as épocas, as ideias
dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante. A classe que tem à sai disposição os meios para a produção material dispõe
assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo
tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As
ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações
materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante
uma classe, portanto, as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também
têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como
classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua
extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias,
regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo, que, portanto, as suas ideias são as ideias
dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a
burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia
dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma ‘lei eterna’”.
59
Cfr. Ch. PARAIN, “Caracteres gerais do feudalismo”, em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit.,
18-21. G. CONTE (últ. ob. cit., 15) leva esta interpretação à expressão extrema: “A possibilidade de
apropriação do sobreproduto por parte do senhor reside unicamente no poder de impor o seu direito,
49

Nos tempos feudais, como sublinha Galbraith, “a propriedade era uma fonte
duradoura de poder temporal.”60 A propriedade da terra era a fonte do poder económico
(do poder de direcção do produtivo: partilha das terras, decisão sobre o que se produzia
nas terras reservadas para os senhores) e era também a origem e o fundamento do poder
político. O poder político era um poder descentralizado e fragmentado, disperso por
uma pluralidade de titulares, dando a ideia do desaparecimento do estado. Mas o poder
político (o estado) existe, exercendo-se a sua autoridade de pessoa para pessoa. Charles
Parain observa que “o facto essencial, sob este aspecto, é que a justiça é exercida pelo
‘suserano’ sobre os seus vassalos e pelo ‘senhor’ sobre os camponeses. A exploração
das prestações económicas e o aparelho jurídico-político encontram-se, por isso mesmo,
muito estreitamente unidos”.61
A natureza de classe do estado aparece, nestas condições, sem qualquer dúvida
nem disfarce: o poder político e a violência que ele representa são exercidos pela classe
dominante (que dispõe do poder militar e administra a justiça através de tribunais
nomeados pelos senhores e responsáveis perante eles) para garantir a apropriação do
sobreproduto criado pelos trabalhadores servos e, em último termo, para defesa dos seus
interesses de classe, que exige a manutenção do estatuto de servidão e das relações de
produção servis.
Acompanhemos a lição de Marx: 62
“É precisamente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que todas as
relações sociais aparecem como relações entre pessoas. Os trabalhos diversos e os seus produtos
não carecem, por isso, de adoptar uma figura fantástica distinta da sua realidade. Apresentam-se
como serviços, prestações e entregas in natura. A forma natural do trabalho, a sua
particularidade - e não a sua generalidade, o seu carácter abstracto, como na produção de
mercadorias - é também a sua forma social. A corveia é medida pelo tempo do mesmo modo
que o trabalho que produz mercadorias; mas cada prestador da corveia sabe muito bem, sem
recorrer a um Adam Smith, que é uma quantidade determinada da sua força de trabalho pessoal
que ele despende ao serviço do seu senhor. (...) De qualquer maneira que se julguem as
máscaras que os homens trazem nesta sociedade, as relações sociais das pessoas nos seus
trabalhos afirmam-se nitidamente como as suas próprias relações pessoais, em vez de se
disfarçarem sob a forma de relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho”.

Durante uma grande parte da Idade Média, o excedente social (o que os


trabalhadores produziam para além do necessário à sua sobrevivência) foi apropriado
pelos senhores feudais sob a forma de renda (que coincidia com a mais-valia), da qual
enquanto proprietário nominal da terra, pela coerção jurídica ou pela pura violência”. Esta leitura do
processo de apropriação do excedente no quadro do feudalismo é contestada por HINDESS/HIRST (ob.
cit., 260ss), cuja tese é resumida por A. HESPANHA em História…, cit., 95/96.
60
Cfr. J. K. GALBRAITH, Anatomia do Poder, cit., 110.
61
Cfr. PARAIN e outros, cit., 26.
62
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 73.
50

viviam, uma vez que não participavam na actividade produtiva.63 A grande massa dos
produtores limitavam-se a consumir o que produziam nos dias em que trabalhavam para
si nas terras que os senhores afectavam à subsistência dos trabalhadores. Estes não
aparecem no mercado, nem a comprar nem a vender. A produção era essencialmente
produção para uso e não para venda.
As trocas eram essencialmente trocas internas, trocas directas de produtos e
serviços entre os produtores. Só os senhores dispunham de bens para vender e só eles
podiam comprar os produtos de ‘luxo’ da produção artesanal, ela mesma sem estímulos
para o seu desenvolvimento, dada a falta absoluta de poder de compra da grande
maioria da população e a consequente exiguidade do mercado. Daí que a agricultura
fosse a actividade dominante da economia feudal. Daí que praticamente não houvesse
trocas entre o domínio senhorial e o exterior. Daí que a economia feudal fosse uma
economia fechada, em que o domínio senhorial era a unidade de produção e de
consumo, produzindo-se no seu seio tudo o que se consumia e consumindo-se tudo o
que se produzia.
Por outro lado, o modo de produção feudal criou condições propícias à
estagnação da técnica, que se manteve rudimentar e rotineira: os instrumentos de
trabalho eram muito simples e o acto de produção era geralmente de carácter individual,
quase não havendo divisão do trabalho.
Pelo que toca aos servos, qualquer melhoria nos resultados da produção era
sempre pretexto para novas exigências do senhor, o que ‘matava’ qualquer iniciativa no
sentido de beneficiar as terras ou melhorar as técnicas de cultivo e os instrumentos de
trabalho.
Na óptica da classe senhorial, os senhores não têm interesse em promover o
desenvolvimento da produção nas suas terras para além do limite resultante da sua
própria capacidade de consumo. Em virtude da quase inexistência de mercado, os bens
tinham apenas valor de uso e a acumulação teria de ser acumulação de valores de uso
(alimentos, vestuário, madeira, etc.) ou assumir formas ‘irracionais’, improdutivas, do
ponto de vista da sua utilização para aumentar a capacidade de produção (construção de
grandes castelos, de grandes edifícios religiosos, constituição de grandes tesouros em
mosteiros e catedrais). Daqui deriva a ausência de incentivo ao desenvolvimento das
forças produtivas. Daqui deriva também que o móbil da actividade produtiva, imposto
63
Sobre as várias formas de renda feudal, ver HINDESS/HIRST, ob. cit., 260-305 e A.
HESPANHA, História…, cit., 96-101. Vale a pena ler o Capítulo XLVII de O Capital (Éditions Sociales,
Vol. III, tomo III, 164-192).
51

pelo senhor, consistisse na satisfação das necessidades elementares de consumo do


senhor do domínio, dos que viviam na sua roda e dos que trabalhavam as terras do
senhor.

3.2. - A desagregação da sociedade feudal 64

3.2.1. – Enunciado do problema


Caracterizada, em traços gerais, a economia feudal, centrada sobre os domínios
senhoriais, veremos agora como se processou a sua evolução e que factores poderão
explicar a sua desagregação e o advento do capitalismo.
O problema da passagem do feudalismo ao capitalismo é um problema
controvertido, desde logo quanto à questão de saber se deve ou não reconhecer-se
autonomia ao que Sombart chamou sistema de economia artesana e quanto à relevância
a atribuir ao período do chamado capitalismo comercial.
Ao contrário de Sombart (em Portugal seguido por Teixeira Ribeiro), Marx e a
historiografia marxista não reconhecem como modo de produção autónomo a economia
artesana, i.é, a economia industrial que se desenvolveu nas cidades em sentido
económico, como agregados populacionais cujos habitantes vivam apenas do seu ofício,
sem trabalharem a terra.65
Este é, também, o nosso ponto de vista.
Com efeito, a economia artesana nunca teve, verdadeiramente, um carácter
dominante. Não pode dizer-se que os artesanos tenham dominado a produção social
daquela época: os núcleos urbanos da Idade Média aparecem como autênticas ilhas no
grande mar da economia rural dos domínios senhoriais, cujas relações sociais de
produção definiram a essência da sociedade medieval.
Por outro lado, a verdade é que as cidades se integravam na estrutura hierárquica
da sociedade medieval. Como ensina Pierre Vilar, “as cidades dependiam dos senhores.
Foram, porém, mais fortes do que as aldeias para discutir com os seus amos, rebelar-se,
obter ou impor ‘cartas de franquia’. Colectivamente, mantinham-se vinculadas ao
sistema feudal, já que reconheciam suseranos e elas próprias possuíam senhorios.

64
Ver: A. HESPANHA, “O Estado absoluto…, cit.; G. CONTE, Da Crise...,cit.
65
Também não nos parece que possa reconhecer-se autonomia, como modo de produção, ao
chamado capitalismo comercial, que se desenvolveu, a partir dos séculos XIV/XV, em algumas cidades
italianas e da Flandres. O comércio foi, por essa altura (tal como a actividade financeira) uma fonte de
enriquecimento para uma certa elite da população, mas não constituiu um modo de produção, nem os
comerciantes e ‘banqueiros’ dominaram o processo social de produção dessa época.
52

Contudo, no seu território, e sobretudo no recinto amuralhado, os habitantes eram livres


e participavam da organização colectiva”.66
As novas actividades económicas (indústria e comércio) desenvolvidas nas
cidades e a partir delas exigiam uma liberdade de movimentos incompatível com as
‘regras da vida’ feudal. Por isso os habitantes das cidades começaram a lutar, a partir do
século XII, pela obtenção de direitos e privilégios (liberdades, foros, franquias), contra a
oposição dos senhores, em especial os senhores-bispos. Os resultados acabaram por
chegar, umas vezes na sequência de revoltas mais ou menos sangrentas, outras vezes
como recompensa pelos serviços prestados aos senhores nas guerras que entre si
travavam.67
Os privilégios das cidades eram privilégios territoriais (de todos os que viviam
no seu território) e eram de natureza idêntica aos que os senhores feudais já tinham nas
relações com o suserano, nos vários níveis da escala social. As cidades foram os
primeiros entes colectivos a adquirir o estatuto de sujeitos políticos dotados de um
“estatuto jurídico-político diferenciado”, seguindo-se as corporações dos mesteres, as
corporações religiosas, as universidades e outras instituições culturais e determinadas
profissões.
Por outro lado, esta “revolução comunal”, apesar da importância adquirida pelas
cidades, não foi suficiente para alterar o m odod e produção e as relações de produção
nos campos, que permaneceram intocadas.
A sociedade medieval estava longe da unidade característica do estado romano,
sendo constituída por uma série de corpos, ordens ou estados cada um com o seu
estatuto jurídico-político próprio. Esta realidade, caracterizada por uma enorme
fragmentação do direito e do poder político, viria a ser mais tarde substituída por uma
“realidade social global”, na qual o estado (nacional) se liberta dos limites resultantes da
estrutura feudal e o indivíduo emerge como o fundamento da sociedade, com um
estatuto jurídico-político uniforme perante o estado centralizado. As revoluções
burguesas constituíram o culminar de um longo processo de transformação.68
Mas também é verdade que não pode negar-se a importância do
desenvolvimento da indústria urbana como elemento de desagregação da ordem feudal:
a liberdade das cidades atraía as populações camponesas e o território livre dentro de
muralhas oferecia refúgio seguro aos que fugiam dos campos.
66
Cfr. C. PARAIN e outros, ob. cit., 56.
67
Cfr. A VACHET, ob. cit., 38.
68
Cfr. A. HESPANHA, História…, cit., 199ss.
53

O desenvolvimento das cidades é igualmente relevante no processo que levou à


criação dos estados modernos na Europa, quadro dentro do qual surgiu e se desenvolveu
o capitalismo dos primeiros tempos.
Trata-se, portanto, de fenómeno que é preciso ter em conta para se compreender
a dialéctica do processo de gestação do capitalismo. E importante se apresenta também,
do mesmo ponto de vista, o desenvolvimento do comércio e do capital mercantil que a
partir de certa altura se verificou nas economias europeias (ou a partir delas).

3.2.2. – Produção para uso/produção para a troca


Melhor será, porém, tentarmos acompanhar as grandes linhas da evolução do
feudalismo, para vermos como as contradições da ordem feudal abriram caminho ao
capitalismo.
A evolução do feudalismo veio a traduzir-se na ocorrência de conflitos e
dificuldades de vária ordem que acabariam por minar as relações de servidão que
constituíam a base da sobrevivência de toda a estrutura feudal. E da interacção destes
conflitos internos com factores externos ao sistema mas que condicionam o seu
desenvolvimento (incremento do comércio e desenvolvimento das cidades) é que
resultou o lento processo de desagregação do feudalismo. Afasta-se assim a explicação
simplista e mecanicista do declínio da sociedade feudal exclusivamente a partir
daquelas contradições internas ou exclusivamente como consequência da acção dos
referidos factores externos.
Na verdade, não parece que seja correcta a tese dos autores (Paul Sweezy, v.g.)
que pretendem que a decadência do feudalismo se deve ao facto de o comércio,
acarretando o desenvolvimento das cidades e da economia urbana, ter originado o
aparecimento de um sistema de produção para troca que, entrando em conflito com o
sistema de produção para uso (com o qual se identificaria o feudalismo), terá causado a
dissolução deste, uma vez que “produção de mercadorias e feudalismo são conceitos
que mutuamente se excluem”.
A nosso ver, a busca do que há de essencial num sistema não deve fazer-se ao
nível das relações de troca mas ao nível das relações de produção. O que importa
averiguar, perante uma dada economia, não é a questão de saber se nela se verifica a
produção de mercadorias (valores de troca) e se a moeda é utilizada, mas antes a
questão de saber como são produzidas as mercadorias (qual a forma social de existência
54

dos produtores directos e o modo social da reprodução da força de trabalho) e qual a


função que a moeda desempenha.
Vem de muito longe, com efeito, o uso da moeda, mas só em certas
circunstâncias históricas a moeda passou a funcionar como capital (capital-dinheiro).
Por outro lado, a troca de mercadorias é compatível com a escravatura, com a servidão,
com o trabalho livre de trabalhadores independentes, com o trabalho assalariado. Os
produtos dos latifúndios romanos eram mercadorias produzidas por escravos; os
produtos que advinham aos senhores feudais em resultado do trabalho gratuito prestado
em seu benefício pelos servos ou dos tributos que estes pagavam em espécie eram, em
parte, trocados como mercadorias produzidas por servos; os produtos trocados pelos
pequenos agricultores e artesanos independentes são mercadorias produzidas por
trabalhadores livres e autónomos; os produtos vendidos pelos empresários capitalistas
são mercadorias produzidas por trabalhadores assalariados.
Em síntese: o que caracteriza o feudalismo são as relações de produção de tipo
servil, segundo as quais os produtores imediatos se encontram ligados à terra que
trabalham e da qual extraem os seus meios de subsistência (os meios de reprodução da
força de trabalho) e se encontram obrigados a entregar aos senhores (que, sendo
proprietários da terra, não participam na produção) o sobreproduto que lhes garante a
existência como classe dominante. E o sobreproduto (trabalho não pago) pode consistir,
como vimos, em dias de trabalho gratuito, em prestações em espécie, numa renda em
dinheiro. O feudalismo parece, pois, indissociável da servidão, como acima se disse.
A história ensina-nos, de resto, que o desenvolvimento do comércio e a
expansão da economia monetária não têm que implicar necessariamente o declínio da
servidão. Com efeito, parece certo que foi nas regiões mais atrasadas da Inglaterra que a
servidão desapareceu mais cedo, ao menos sob a forma de prestação de trabalho
gratuito, permanecendo até mais tarde nas regiões do sudoeste, mais próximas dos
centros comerciais, das artérias pelas quais fluía o dinheiro. Este não é, afinal, ao
contrário do que sustentam os autores que consideram o desenvolvimento do comércio a
causa principal da decadência do feudalismo, “o solvente mais destruidor do poder
senhorial”.69

69
No sentido do texto, cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 39 e E. MANDEL, Traité…, cit., I,
116/117. Poderá também observar-se que, em outro contexto, o recrudescimento do esclavagismo nos
EUA e em certos países da América Latina (produtores de algodão, café e outros produtos de exportação),
bem como a intensificação da servidão na Europa central e de leste a partir dos séculos XV e XVI e a sua
permanência até praticamente à Revolução de Outubro (1917), são explicáveis exactamente como
resultado da inserção desses produtos e dessas regiões no circuito comercial do capitalismo.
55

3.2.3. - As contradições internas: a fuga dos servos


O que fica dito não pretende significar que a expansão do comércio e o
desenvolvimento das cidades não tenham desempenhado nenhuma função no processo
de desagregação do feudalismo. A sua influência traduziu-se, porém, no facto de
contribuirem para acentuar as contradições e os conflitos internos do modo de produção
feudal e da correspondente organização social. Ao agravamento destas contradições
(que tornou impossível a manutenção da servidão pessoal) deverá atribuir-se a maior
relevância no conjunto dos factores cuja interacção explica o declínio do feudalismo.
Com efeito, o que fez ruir o feudalismo foi a sua ineficiência como modo de
produção, perante as necessidades crescentes de rendimento por parte das classes
senhoriais. Já vimos que eram rudimentares as técnicas de produção e os instrumentos
utilizados no cultivo das terras. A produtividade do trabalho era baixa e era miserável a
condição de vida dos trabalhadores camponeses. Como os senhores feudais viviam do
sobreproduto que cobravam da classe servil, o único modo de aqueles aumentarem os
seus proventos era o do aumento do trabalho excedente exigido dos servos. O teor de
vida destes, porém, era já tão baixo que qualquer exigência suplementar os colocava
numa situação intolerável.
Ora a luta pelo domínio da terra provocava guerras frequentes entre os senhores
feudais, de tal modo que a guerra e o banditismo que lhe andava inerente foram uma
característica marcante da Idade Média. Ao mesmo tempo que a pilhagem e a destruição
arruinavam os camponeses pobres e produziam a morte de muitos deles, as exigências
militares aumentavam as despesas dos senhores feudais, que por isso careciam de
maiores rendimentos.
Por outro lado, a necessidade de fortalecer o poderio militar dos grandes
senhores levou à prática corrente do sub-enfeudamento, que aumentou muito o número
de vassalos, sobretudo na Europa Continental. Assim aumentava o número dos que não
participavam na produção e tinham de ser sustentados pelo sobreproduto exigido à
classe servil, dizimada e empobrecida pelas guerras.
O desenvolvimento da cavalaria trouxe consigo a emulação entre as casas da
nobreza, que gastavam fortunas em festins e extravagâncias, os quais constituíam,
juntamente com as guerras, a esfera onde se fazia sentir a ‘concorrência’ entre os
senhores feudais. Assim se dissipava o excedente social, insusceptível então, dada a sua
56

natureza não monetária, de ser aforrado com vista à posterior utilização no


desenvolvimento da capacidade produtiva.
Acresce que as Cruzadas constituiram uma ‘empresa’ que exigiu grande
dispêndio de rendas feudais e desviou muita gente do trabalho dos campos, embora
viessem a trazer riquezas importantes à Europa, fruto da violência sobre as populações
árabes, vítimas do saque e da pilhagem das suas cidades.
Estes foram alguns dos factores que contribuíram para acentuar as exigências
feitas aos servos, cuja situação se agravou para o final do século XIII. Esse agravamento
não será alheio, aliás, à diminuição da população que por essa altura se verificou,
provocando a retracção das rendas feudais e abrindo a situação de crise aguda que
caracterizou a economia feudal no século XIV, crise acentuada pela ocorrência de
pestes particularmente destruidoras em virtude da subnutrição das populações
camponesas e da carência de reservas alimentares (em 1348/1349, a peste negra
dizimou cerca de um terço da população europeia).
A própria crise (sentida em grande parte da Europa) levou os senhores (cada vez
mais seduzidos pelos bens de luxo) a agravar as exigências sobre as massas
camponesas, obrigadas também a pagar impostos aos novos estados modernos que então
procuravam organizar-se. Incapazes de arcar com a carga destas duas fiscalidades, por
impossibilidade de desenvolvimento das forças produtivas, os camponeses promoveram,
em várias regiões da Europa, revoltas mais ou menos violentas, na França do norte
(1358), na Inglaterra (1381), em várias regiões da Espanha (meados do século XIV), na
Alemanha (1525).70
As dificuldades da economia feudal e as crescentes exigências dos senhores (que
não podiam subsistir sem as prestações extorquidas aos servos, cada vez mais pobres e
em menor número) tiveram como resultado, nas palavras de Maurice Dobb, “não só
exaurir a galinha que punha os ovos de ouro para o castelo, mas provocar, em virtude de
um total desespero, um movimento de emigração ilegal das propriedades senhoriais -
uma deserção em massa por parte dos produtores, que viria retirar do sistema o seu

70
Não obstante, Ch. PARAIN (“Evolução do sistema feudal europeu”, em C.E.R.M., Sobre o
Feudalismo, cit., 35) sustenta que “as revoltas camponesas, as guerras camponesas que que marcaram
este longo período de crise tiveram resultados diversos mas apresentam uma característica comum:
nenhuma logrou provocar uma transformação social revolucionária, um novo modo de produção, neste
sentido, elas assemelham-se às revoltas de escravos do tempo de Roma, elas não são portadoras nem dos
meios nem da concepção de um novo regime social”.
57

sangue vital e provocar a série de crises em que a economia feudal se veria envolvida
nos séculos XIV e XV”.71
Estes ‘emigrantes’, que em parte se acolhiam às cidades então em período de
crescimento, alimentaram também bandos de marginais e vagabundos e estiveram na
base das jacqueries, tão frequentes na Idade Média. Como à frente se verá, este
movimento de fuga dos servos marca o início do processo que havia de subtrair ao
modo de produção feudal o elemento indispensável à sua sobrevivência: os
trabalhadores servis.
Em algumas regiões e países legislou-se no sentido de proibir o abandono dos
domínios senhoriais por parte dos servos, mas o movimento não cessou. Apesar dos
acordos celebrados de início entre os senhores no sentido de se ajudarem mutuamente
na captura dos servos fugidos, a carência de mão-de-obra veio provocar acesa
competição entre os senhores feudais para atrair e furtar os servos do domínio vizinho.
Nesta perspectiva, o declínio do feudalismo na Europa Ocidental deveu-se à
incapacidade da classe senhorial dominante para conservar o controlo sobre (para
explorar) a força de trabalho servil.

3.2.4. - Factores externos: a expansão do comércio e o desenvolvimento das


cidades.
É claro que nesta ‘fuga aos campos’ as cidades exerceram a função
relativamente importante de centros de atracção das populações servis desejosas de
abandonar os domínios senhoriais e as suas penosas condições de vida. Não obstante, o
efeito especial que tal fuga dos servos teve no desenvolvimento da ordem feudal resulta
do carácter específico da relação que, no seio do feudalismo, ligava os produtores aos
senhores feudais.
Na verdade, este movimento de fuga dos servos decorre paralelamente ao
desenvolvimento das cidades medievais, por volta dos séculos XII e XIII. Por um lado,
as cidades ofereciam melhores condições de vida e ofereciam, sobretudo, liberdade
(“Stadtluft machts frei”, o ar das cidades liberta, dizia-se nas cidades alemãs). Por outro
lado, os próprios burgueses que nelas habitavam, necessitando de mais trabalhadores e
de mais soldados, actuaram no sentido de incitar os servos a abandonar as terras
senhoriais.72

Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 46.


71

Numa carta a Engels, Marx observa: “passa-se frequentemente algo de bastante patético com o
72

modo como os burgueses no século XII incitaram os camponeses a fugir para a cidade”.
58

Vimos que a actividade económica dominante nos senhorios feudais era a


agricultura. Mas é certo que o trabalho industrial não estava totalmente ausente, embora
a princípio se tratasse de uma indústria meramente subsidiária e complementar da
agricultura: era com matérias-primas de origem agrícola e nas horas de folga do
trabalho dos campos que os camponeses manufacturavam certos produtos (tecidos e
vestuário, calçado, alfaias agrícolas, etc.).
O aumento da população que se verificou nos países da Europa até ao século
XIII é índice de que a produtividade do trabalho agrícola ia aumentando também. E foi
este facto que permitiu a constituição, dentro dos próprios domínios senhoriais, de
núcleos de indivíduos que se dedicavam exclusivamente ao trabalho industrial, dele
fazendo o seu modo de vida: o rendimento do trabalho agrícola era agora suficiente para
a alimentação de camponeses e ‘industriais’, apesar de estes não cuidarem de tarefas
agrícolas. Com o agravamento das exigências dos senhores e com a progressiva
degradação do teor de vida dos habitantes dos domínios senhoriais, não admira que
estes artesanos (que já viviam sem ter de trabalhar a terra) tenham estado entre os
primeiros a fugir às peias institucionais da economia feudal. 73 “E quando os
trabalhadores industriais abandonam o campo em grande número e se fixam no burgo
ou na civitas, escreve Teixeira Ribeiro74, começam a generalizar-se as cidades em
sentido económico, aqueles grupos de pessoas que vivem apenas do seu ofício ou
mester”.
Por outro lado, as economias dos domínios rurais não eram exclusivamente
(embora fossem essencialmente) economias de produção para uso. No seu seio
conhecia-se a troca (embora fundamentalmente troca de produtos por produtos), que
mais se terá desenvolvido a partir da altura em que, dentro do domínio, alguns
indivíduos passaram a dedicar-se exclusivamente a actividades industriais.
E também não eram economias absolutamente fechadas sobre si mesmas, pois
uma parte do sobreproduto entregue aos senhores era por estes vendida para comprar
artigos de luxo (os únicos que inicialmente eram objecto de comércio, já porque a massa
dos camponeses não tinha poder de compra, já porque só produtos caros podiam

73
A legislação inglesa punia severamente a fuga dos servos ao ‘serviço’ feudal, havendo mesmo
penas para a prendizagem de um ofício (actividade artesanal) por parte daqueles que estivessem ligados a
um senhorio (manor), sendo proibido a qualquer homem dono de terra de rendimento anual inferior a £
20 tornar um filho aprendiz de um ofício. Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 16, nota 3.
74
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 152.
59

suportar os custos elevados dos transportes). As cidades funcionaram como entrepostos


desse comércio a longa distância, que fornecia aos senhores os bens que o domínio lhes
não dava. E não há dúvida de que o desenvolvimento das cidades acompanhou em regra
a sua importância como centros comerciais.75
O comércio (mediterrânico) fora, no período de formação do feudalismo na
Europa Ocidental (do século VII ao século X), quase inteiramente controlado pelos
árabes (Império de Bagdad, Califado de Córdova). A partir das invasões turcas na Ásia
Menor (século XI) e do declínio da civilização muçulmana, o comércio passou a fazer-
se através das cidades italianas, vindo as Cruzadas (século XII) confirmar o seu domínio
sobre as rotas mediterrânicas. A partir das cidades italianas, este comércio de bens de
luxo desenvolve-se por toda a Europa, em centros situados ao longo dos rios e das
grandes vias de comunicação. E o comércio estimulou novas artes, novas técnicas de
trabalho industrial, novas forças de produção, factores que contribuíram para aumentar
o poder e a importância das cidades onde se localizava essa indústria artesana.

Lembremos, porém, que, como Marx sublinha, por alturas do início da “era
capitalista” associada à revolução comercial do século XVI, “a abolição da servidão era
um facto consumado desde há muito, e o regime das cidades soberanas, glória da idade
média, estava já em plena decadência”. E sem dúvida que para o advento do capitalismo
(para a transformação dos produtores em assalariados) foi essencial “a libertação dos
trabalhadores da servidão e da coacção das corporações”. Na verdade,

“o produtor imediato, a trabalhador, só podia disporda sua pessoa a partir do momento


em que deixara de estar preso à gleba e de ser servo e vassalo de uma outra pessoa. Para se
tornar vendedor livre de força de trabalho,o qual leva a sua mercadoria a toda a parte em que ela
encontra um mercado, ele tinha além disso de ter escapado ao domínio das corporações, às suas
ordenações sobre aprendizes e oficiais e aos preceitos de trabalho inibitivos”.

No entanto, o factor que verdadeiramente abriu o caminho à nova classe


capitalista que haveria de liderar o processo de afirmação do modo de produção
capitalista foi “o esbulho das grandes massas camponesas dos seus meios de produção e
de existência tradicionais, oferecidos pela antiga ordem de coisas”. Foi esta
expropriação dos camponeses que os lançou no mercado de trabalho, e “a história desta

75
Ver: J. KUCKZYNSKI, Pequena História…, cit., 171-195; G. FOURQUIN, História
Económica…, cit., 221ss e 239ss.
60

expropriação está escrita nos anais da humanidade em letras indeléveis de sangue e de


fogo”.76

3.2.5. - Síntese

Procurámos dar conta da história dos factores de cuja complexa interacção


resultaria a destruição do feudalismo. A fuga dos servos não significou apenas mudança
na condição dos que partiam, acelerou também o fim da condição servil dos que
ficavam nos domínios. Sob a pressão das dificuldades, os senhores foram obrigados a
conceder maior liberdade aos servos e a transformar em rendas em dinheiro as
prestações de trabalho directo e as rendas em espécie.
Mas a verdade é que, com a maior liberdade, vinha também a separação dos
produtores directos dos meios de produção. Os servos, ao ganharem o direito de deixar
as terras do seu senhor, perdiam, ao mesmo tempo, o direito de nelas permanecer,
começando assim a alterar-se a forma social de existência e de reprodução da força de
trabalho típica do feudalismo. Dialeticamente, a emancipação dos servos foi também,
em certo sentido, a ‘libertação’ dos proprietários fundiários, que não tinham de respeitar
o direito dos servos a permanecer nas suas terras e a nelas prover à sua subsistência.
Tendo agora perante si homens livres não adstritos à terra, os senhores começaram a
poder dispor desta última, recorrendo a contratos de arrendamento de duração
relativamente curta, o que lhes permitia aumentar periodicamente a respectiva renda.

76
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 528/529 (também em MARX/ENGELS, Obras
Escolhidas, ed. cit., II, 104-107).
No capítulo do Livro III de O Capital, dedicado à compreensão histórica do capital mercantil,
Marx deixa muito clara esta ideia: “O desenvolvimento do comércio e do capital mercantil favorece a
orientação em geral da produção no sentido do valor de troca; ele aumenta o seu volume, diversifica-o e
internacionaliza-o, transforma a moeda em moeda universal. O comércio comporta sempre, por isso
mesmo, uma acção mais ou menos dissolvente sobre as organizações existentes da produção que, em toda
a diversidade das suas formas, são principalmente orientadas no sentido do valor de uso. Mas a medida
em que ele destrói o antigo sistema de produção depende em primeiro lugar da solidez e da estrutura
interna deste. Não é de modo nenhum do comércio, mas da natureza do antigo modo de produção, que
depende o resultado do processo de dissolução, isto é, o modo de produção novo que substituirá o
antigo”. “Não sofre dúvida – continua Marx – que as grandes revoluções dos séculos XVI e XVII que as
descobertas geográficas provocaram no comércio, arrastando consigo o rápido desenvolvimento do
capital mercantil, constituem um factor essencial que acelerou a passagem do modo de produção feudal
ao modo capitalista. (...) A brusca ampliação do comércio mundial, a multiplicação das mercadorias em
circulação, a emulação entre as nações europeias para se tornarem senhoras dos produtos asiáticos e dos
tesouros americanos, o sistema colonial contribuíram em larga medida para fazer saltar os limites feudais
da produção. Entretanto, o modo de produção moderno, no seu primeiro período, o das manufacturas,
desenvolveu-se apenas onde, durante a Idade Média, se criaram condições para isso. Basta comparar o
exemplo da Holanda com o de Portugal”. Quer dizer: o elemento decisivo não está no capital mercantil
mas no desenvolvimento das contradições internas do velho modo de produção. Cfr. K. MARX, Le
Capital, Livro III, t. I, Éd. Sociales, cit., 340/341.
61

A renda em dinheiro continua a ser uma renda feudal, i.é, trabalho excedente
obrigatoriamente entregue ao senhor, agora sob a forma de dinheiro obtido pela venda
do produto excedente.77 E pode dizer-se que ela representou mesmo uma adaptação
imposta pela necessidade de sobrevivência do sistema. Com efeito, ela foi, muitas
vezes, o único meio de os senhores ‘quebrarem’ a revolta dos camponeses, concedendo-
lhes maior liberdade. Por outro lado, conhecida que era a pouca produtividade do
trabalho obrigatório prestado ao senhor, em comparação com o trabalho efectuado pelos
servos nas terras cujo domínio útil lhes era confiado, o sistema da renda em dinheiro
permitiu aos senhores beneficiar da maior produtividade do trabalho não compulsório,
através do aumento das rendas no momento da renovação dos contratos de
arrendamento.
O pagamento das rendas em dinheiro trouxe consigo, porém, a necessidade de os
camponeses venderem os seus produtos no mercado, assim entrando a economia
fechada dos domínios rurais na roda das relações de comércio. A produção agrícola para
uso (dos produtores e dos senhores feudais) começa a dar lugar a uma produção para
venda. E o desenvolvimento do comércio, melhorando as possibilidades de venda dos
produtos agrícolas nos mercados locais, provocou um processo de diferenciação social
entre os pequenos produtores, levando ao aparecimento da Yeomanry, uma classe de
camponeses livres (Yeomen), por um lado, e de um semi-proletariado rural, por outro,
lançando assim as bases da divisão tripartida entre os senhores da terra, os rendeiros
capitalistas e os jornaleiros sem terra, característica da agricultura capitalista,
especialmente na Inglaterra.78
A exploração agrícola assente no trabalho servil foi substituída pela exploração
feita pelo rendeiro (ligado ainda por vínculos feudais ao dono das terras), que
progressivamente iria recorrendo ao trabalho assalariado dos seus vizinhos mais pobres.
Para estes, ainda não de todo libertos do domínio senhorial, o salário era, muitas vezes,
uma forma suplementar de subsistência, embora não fosse a única.
Assim surgia o embrião de relações capitalistas na agricultura.79
77
Cfr. H. K. TAKAHASHI, em P. SWEEZY e outros, ob. cit., 95ss.
78
Cfr. M. DOBB, A evolução…, cit., 60ss.
79
Como escreveu MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 530), “na Inglaterra a servidão tinha
desaparecido de facto por volta do final do século XIV. A imensa maioria da população compunha-se
então, e mais inteiramente ainda no século XV, de camponeses libres que cultivavam as suas próprias
terras, quaisquer que fossem os títulos feudais com que se encobrisse o seu título de posse. (...) Os
assalariados rurais eram em grande parte camponeses - que, durante o tempo disponível deixado pela
cultura dos seus campos, se alugavam ao serviço dos grandes proprietários-, em parte uma classe
particular e pouco numerosa de jornaleiros. Mesmo estes eram em certa medida cultivadores por conta
própria, pois além do salário fazia-se-lhes concessão de campos de pelo menos quatro acres, com casa de
62

O desenvolvimento do comércio e das actividades artesanais nas cidades teve


ainda a consequência de trazer consigo uma quantidade e uma variedade cada vez maior
de bens, despertando nas classes dominantes o desejo de os adquirir. Aqui residirá uma
outra razão explicativa das crescentes necessidades de rendimentos monetários por parte
da classe dos senhores feudais e das crescentes exigências que faziam aos camponeses.
O pagamento das rendas em dinheiro, para além de ter permitido o aumento das
rendas, tornou mais fácil o acesso ao mercado e a realização de grandes despesas em
consumos sumptuários e improdutivos, que não poderiam ter tido outra consequência
que não fosse o empobrecimento da classe dos produtores e, porventura, a acumulação
de valores de uso, perfeitamente inúteis do ponto de vista do desenvolvimento das
forças produtivas.
Entretanto, o comércio veio enriquecer os comerciantes das cidades, que foram
acumulando riqueza, “não - como nota Sweezy80 - segundo a forma absurda de
amontoar bens perecíveis, mas de forma mais fácil e volúvel em dinheiro e valores.”

Ficam indicadas as linhas de força da evolução da economia feudal. O


agravamento das suas contradições internas estimulou a fuga dos servos. Esta conduziu,
por um lado, ao desaparecimento da servidão, forma específica de relações sociais que
assegurava a manutenção do feudalismo como modo de produção e dos senhores
feudais como classe dominante nas condições do feudalismo. E conduziu, por outro
lado, à separação dos produtores da terra a que estavam ligados (servidão da gleba),
criando deste modo o embrião de uma classe de trabalhadores livres, que não têm outro
meio de prover à própria subsistência que não seja a venda da sua força de trabalho.81
Por outra via, o desenvolvimento do comércio e a expansão e consolidação das
cidades (a “revolução comunal” de que falam alguns autores), além de agravarem os
conflitos internos da sociedade feudal, permitiram a acumulação de capitais que mais
tarde seriam aplicados na produção, mediante a contratação de trabalhadores

habitação; além disso, participavam, juntamente com os camponeses propriamente ditos, no usufruto dos
bens comunais”.
80
Cfr. P. SWEEZY e outros, ob. cit., 35.
81
“Trabalhadores livres – esclarece Marx, em O Capital, cap. XXIV, em MARX/ENGELS,
Obras Escolhidas, ed. cit., II, 105) no duplo sentido de que nem eles próprios pertencem imediatamente
aos meios de produção, como os escrevos, servos, etc., nem também os meiso de produção lhes
pertencem, como no caso do camponês que trabalha a sua propriedade, antes estão livres deles, livres e
sem responsabilidades”.
63

assalariados. Quando isto se verifica, estamos perante um novo tipo de relações de


produção, as relações de produção próprias do modo de produção capitalista. 82
Factores vários geraram no século XV um poderoso surto de progresso científico
e de invenções tecnológicas, pondo em marcha o processo que havia de levar a
indústria (não já a indústria artesana das cidades medievais) ao primeiro plano das
actividades produtivas, deixando para trás a economia de base rural (característica da
economia feudal).
Uma última nota para salientar que, assim como a servidão nasceu em alguns
casos da atenuação da condição de escravo (abrandamento do regime da escravatura) e
em outros casos (talvez a maioria) da sujeição dos camponeses livres (que aceitavam
subordinar-se a chefes, conquistadores ou defensores), assim também “a sua própria
atenuação, o seu desaparecimento dependem simultaneamente das condições objectivas
em cada região, do vigor e do desenlace das lutas de classes. O desaparecimento da
servidão jurídica pode, por outro lado, deixar subsistir numerosos emcargos, numerosos
laços nascidos do modo de produção feudal”.83

82
No Manifesto Comunista (Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I, 111) pode ler-
se a visão marxista deste processo: “Os meios de produção e de intercâmbio sobre cuja base se formou a
burguesia foram criados na sociedade feudal. Numa certa etapa do desenvolvimento destes meios de
produção e de troca, as relações no quadro das quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização
feudal da agricultura e da manufactura – numa palavra, as relações de produção feudais – deixaram de
corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a fomentarem.
Transformaram-se em outros tantos grilhões. Tinham de ser quebradas e foram quebradas”. E em O
Capital (MARX/ENGELS, ult. ob. cit., II, 106): “A estrutura económica da sociedade capitalista saiu da
estrutura económica da sociedade feudal. A dissolução desta libertou os elementos constitutivos daquela”.
83
Cfr. Ch. PARAIN, “Evolução…, cit., em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit., 26.
64

4 . – A transição para o capitalismo.

4.1. - A acumulação primitiva do capital. 84

Na senda das concepções que alimentaram o movimento religioso da Reforma,


Adam Smith explicou, com base nas qualidades dos homens, a acumulação do capital
que serviu de base ao arranque do capitalismo. À partida, todos têm o mesmo ‘direito’
(a mesma oportunidade) de enriquecer. Mas verdade é que uns são trabalhadores
84
Sugestões para leitura: Adam SMITH, Riqueza das Nações, ed. cit., I, 581ss (Cap. III, Livro
III); K. MARX, O Capital, vol. XXIV (em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, 104-158, e Le
Capital (trad. J. Roy), cit., 527-529 e caps. XXVI a XXXI; R. THOMPSON, ob. cit., III, 963-966; P. VILAR,
Desenvolvimento Económico…, cit., 104-106; J. de VRIES, A economia…, cit., 185-192 ; O. LANGE e
outros, Problemas…, cit., 18/19 e 36ss.
65

(industriosos), frugais (parcimoniosos) e inteligentes, enquanto outros são indolentes


(preguiçosos), perdulários e incapazes de gerir bem o dinheiro que ganham. Assim se
explicaria que uns tivessem ficado ricos e outros pobres.85
Marx sintetiza deste modo a leitura smithiana da previous accumulation: 86

“Num tempo remoto, havia, de um lado, uma elite diligente, inteligente, e, sobretudo,
frugal, e, do outro, uma escumalha preguiçosa, que dissipavam tudo o que tinha e mais. (…)
Assim, aconteceu que os primeiros [a elite diligente, frugal e inteligente] acumularam riqueza e
os últimos [a escumalha preguiçosa e perdulária], por fim, nada tinham para vender a não ser a
sua própria pele. E deste pecado original datam a pobreza da grande massa, a qual continua, a
despeito de todo o trabalho, a não ter nada para vender a não ser a si própria, e a riqueza de uns
poucos, a qual cresce continuamente, embora eles há muito tenham deixado de trabalhar”.

Partilhamos com Marx a ideia de que “esta acumulação originária desempenha


na economia política aproximadamente o mesmo papel que o pecado original
desempenha na teologia”: “A lenda do pecado original teológico conta-nos, certamente,
como o homem foi condenado a comer o pão ganho com o suor do seu rosto; a história
do pecado original económico, porém, revela-nos como é que há pessoas que não precisam de o
fazer”.
Pois bem. Para sair deste plano ‘teológico’, é necessário, a nosso ver, recorrer à
história para tentar explicar como se concretizaram as duas condições que tornaram
possíveis as relações de produção capitalistas:
1) por um lado, a acumulação de capitais nas mãos de uma nova classe social;
2) por outro lado, a separação dos produtores dos meios de produção e a
emergência de uma nova classe social de trabalhadores livres.87
85
Na última categoria de pessoas incluíam-se os trabalhadores: no século XVIII teve muita voga
a tese da preguiça natural das classes trabalhadoras, que, por isso (por ‘culpa sua’), eram pobres.
Começavam a fazer o caminho as concepções deterministas que mais tarde vieram a informar as teorias
que procuram ‘legitimar’ o racismo e que tentaram (e tentam) ‘explicar’ o subdesenvolvimento como um
fenómeno perfeitamente natural, dadas as características ‘naturais’ dos povos dos países
‘subdesenvolvidos’ e das regiões em que habitam.
86
Cfr. K. MARX, O Capital, Edições Avante, cit., T. III, Cap. XXIV, 807/808.
87
Em Salário, Preço e Lucro (em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 57) Marx
define assim este conceito: “esta chamada acumulação original não significa senão uma série de
processos históricos, resultantes numa Decomposição da União Original existente entre o Homem de
Trabalho e os seus Instrumentos de Trabalho. (…) Uma vez estabelecida a Separação entre o Homem de
Trabalho e os Instrumentos de Trabalho, semelhante estado de coisas manter-se-á e reproduzir-se-á numa
escala constantemente crescente, até que uma ova e fundamental revolução no modo de produção o
derrube de novo e restaure a união original numa forma histórica nova”.
E no Cap. XXIV de O Capital (em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 145) escreve
Marx: “Os diferentes métodos de acumulação primitiva que a era capitalista criou distribuem-se em
primeiro lugar, por ordem mais ou menso cronológica, por Poretugal, Espanha, Holanda, França e
Inglaterra, até que esta os combina todos, no último terço do século XVII, num conjunto sistemático que
abrange simultaneamente o regime colonial, o crédito público, a finança moderna e o sistema
proteccionista. Alguns destes métodos assentam no emprego da força bruta, mas todos sem excepção
exploram o poder do estado, a força concentrada e organizada da sociedade, a fim de precipitar
66

Tentaremos explicar a acumulação de capitais analisando vários acontecimentos


históricos: as Cruzadas, a prática da especulação e da usura, as viagens atlânticas de
portugueses e espanhóis (a mundialização do comércio, a exploração colonial, a
“revolução dos preços”). E pondo em relevo a importância da Reforma.
Para compreender a separação dos produtores dos meios de produção e a
emergência do salariato, estudaremos o processo das enclosures como forma mais
sistemática e radical de expulsar os camponeses pobres (servos ou não) das terras que
cultivavam e nas quais garantiam a sua subsistência, separando-os dos meios de
produção, libertando-os dos vínculos feudais e condenando-os à proletarização (à
condição de “mercenários”, como foram então designados). E estudaremos também o
processo de transformação dos produtores artesanos em operários industriais
assalariados: da indústria artesana à indústria assalariada no domicílio; desta às
manufacturas e à maquinofactura capitalista.
A compreensão global deste processo de génese do capitalismo (do capitalismo
industrial de base nacional) exige também um olhar sobre a formação dos estados
modernos na Europa e a compreensão da chamada ‘revolução inglesa’ (a ‘revolução
agrícola’, a ‘revolução industrial’ e a ‘revolução política’) e da Revolução Francesa.

4.1.1. – A acumulação do capital

 As Cruzadas
Foi com as Cruzadas (séc. XII) que se restabeleceram as relações entre o
Ocidente e o Próximo Oriente, reabrindo a rota do Mediterrâneo, desenvolvendo-se
intenso tráfego comercial, feito através das Repúblicas Italianas e dos Países Baixos
para o norte da Europa. Deste comércio de produtos de luxo (especiarias e produtos do
Oriente, tecidos italianos e flamengos) provieram grandes lucros, de que aproveitaram
sobretudo os mercadores italianos (que tinham, aliás, financiado parcialmente as
expedições à Terra Santa) e flamengos, que dominaram - principalmente os primeiros -
a vida económica europeia até ao séc. XV. E foram os lucros deste comércio
internacional de bens apenas ao alcance das classes dominantes que propiciaram - a par
das riquezas que à Europa afluíram como resultado directo das Cruzadas - a primeira
grande acumulação de capitais na Europa, capitais que fizeram a fortuna de uma nova

violentamente a passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista e abreviar as fases
de transição. E, com efeito, a Força é a pateira de toda a velha sociedade em trabalho de parto. A Força é
um agente económico”.
67

classe de comerciantes que assim se apropriava de uma parte do sobreproduto agrícola


que os camponeses entregavam à classe dominante dos senhores feudais.

 O capital usurário e a especulação


Mas foi sobretudo a partir dos sécs. XIV e XV que esta acumulação primitiva de
capital se acentuou e, com ela, o enriquecimento e o poderio de açambarcadores,
usurários, comerciantes, especuladores e banqueiros.
Como ainda hoje acontece em economias pré-industriais, a acumulação de
dinheiro provinha então do empréstimo a juros elevados aos camponeses pobres (para
pagarem os impostos, comprarem sementes ou alfaias) e aos grandes senhores da
nobreza (para manterem o seu teor de vida).88
Provinha da especulação com os preços dos produtos, perante os frequentes
períodos de penúria. Nestas alturas, os açambarcadores vendiam os cereais e os
produtos alimentares acumulados a quem mais desse, a preços elevadíssimos.
Provinha ainda, lá para finais do séc. XV e séc. XVI, da especulação comercial
propiciada pelo tráfego que, a partir de Lisboa, Cádiz e Sevilha, se estabeleceu com o
Extremo Oriente e com a América. Os primeiros conquis-tadores e colonos pagavam
somas fabulosas em ouro e prata (que para eles eram mercadorias baratas), em troca do
azeite, do vinho e dos panos idos da Europa. Foi o período áureo do poderio da
Península Ibérica, a cujas feiras acorriam os mercadores de toda a Europa.
Os comerciantes e banqueiros, que assim absorviam em seu proveito as rendas
dos senhores feudais, não se comportavam antagonicamente em relação à nobreza, cedo
se tendo verificado, em vários países, uma aproximação notória e estratégica entre a
nobreza e a nova burguesia comercial.

 As viagens atlânticas de portugueses e espanhóis. O comércio mundial. O capital


mercantil. A primeira onda de globalização.
Entretanto, ao longo do século XV, surgem invenções importantes, com
acentuada repercussão no desenvolvimento das forças produtivas. Estudos recentes
levaram à conclusão de que o número de inventos foi maior no século XV do que no
século XVIII, o que significa que “houve transformações importantes nas forças de

88
Foi o tempo de banqueiros famosos, como os Médici, os Fugger, os Welser, o francês Jacques
Coeur. Este chegou a emprestar dinheiro ao rei de França a juros que atingiam por vezes 50%; calcula-se
que a sua fortuna equivalia, por volta de 1450, a cerca de 22 milhões de francos com o poder de compra
de meados do século XX (H. DENIS, História…, cit., 89).
68

produção, mesmo no dealbar do capitalismo, quando este ainda se desenvolvia no


invólucro de uma sociedade predominantemente feudal”.89
Funcionou no século XV o primeiro alto forno; a utilização da artilharia
impulsionou a metalurgia, com a introdução e novoa processos de fundição do fero e do
cobre e de estiragem dos metais; introduziram-se novos processos na extracção do sal,
no fabrico do papel, na refinação do açúcar, na produção da pólvora; a ciência náutica e
os feitos que permitiu vieram trazer novos horizontes no campo científico e
revolucionar a concepção do homem e do mundo, que a invenção da imprensa, como
poderoso veículo de difusão do pensamento, viria consolidar. “Pela primeira vez
técnicas industriais e técnicas de comunicação equiparam-se com a técnica agrícola. É o
começo de um processo que situará a indústria no primeiro plano do progresso”, como
salienta Pierre Vilar.90
Os novos conhecimentos (astronomia, cartografia, estudos dos ventos e marés) e
as novas técnicas utilizadas na arte de navegar marcam o início das grandes expedições
marítimas de portugueses e espanhóis. Nos finais do século XV, Bartolomeu Dias dobra
o Cabo da Boa Esperança (1487); Cristóvão Colombo alcança a América (1492); Vasco
da Gama chega à Índia pela rota atlântica (1498); Pedro Álvares Cabral desembarca em
terras de Vera Cruz (1500).
As viagens atlânticas dos povos peninsulares, ao mesmo tempo que tornaram
conhecidas novas terras e novas gentes, abriram novos mercados para os produtos
exportados pela Europa e trouxeram novos produtos para a Europa: o açúcar, o chá, o
café, o tabaco, o cacau, o milho, as especiarias, os escravos negros. 91 Criou-se um
89
Cfr. M. DOBB, Capitalismo Ontem e Hoje, cit., 33.
90
Ver em C. PARAIN e outros, ob. cit., 58.
91
Não foram, evidentemente, os portugueses que iniciaram o tráfego de escravos, já praticado
nas civilizações africanas; mas o contacto dos navegadores lusos com os povos africanos foi o factor
decisivo do desenvolvimento desse comércio, a partir dos séculos XV e XVI. Logo na primeira viagem
dos portugueses às Canárias (1341) foram feitos cativos, sendo os escravos canários utilizados na
colonização e no cultivo do açúcar na Madeira, a par de escravos mouros, negros e mulatos. Quanto aos
escravos africanos, as primeiras exportações por mar destinaram-se às plantações de cana de açúcar da
Madeira e, depois, de S. Tomé. Os primeiros escravos negros chegaram a Portugal, vindos da Guiné, em
1441. Deste acontecimento faz Zurara um impressivo relato no cap. XXV da Crónica dos Feitos de Guiné
(edição da Agência Geral do Ultramar, II, 1949, 124-127). Mais tarde chegaram escravos negros
provenientes de Cabo Verde, de Angola e de Moçambique, além de ‘japões’, ‘chins’ e ‘índios’ (da Índia),
calculando-se que havia em Lisboa, por volta de 1551, uns 10.000 escravos (num total de 100.000
habitantes), existindo também na capital 12 corretores de escravos, que eram simultaneamente corretores
de cavalos, e 60 a 70 mercadores que se dedicavam ao tráfico de escravos. A grande maioria dos escravos
negros saiu de Angola, com destino ao Brasil e às colónias espanholas. Calcula-se que, a partir da criação
da capitania de Angola (1571), tenham saído pelos seus portos, todos os meses, entre 9.000 e 12.000
escravos, sendo estes escravos, “durante séculos, a única mercadoria de tomo que manteve a presença do
comércio português naquelas paragens, pois o marfim, que se lhe segue em importância, ocupou sempre
uma posição muito secundária”. Só por Decreto de 10.XII.1836, viria a ser proibida a exportação e a
importação de escravos nas colónias portuguesas ao sul do equador, o que equivale, praticamente, à
69

mercado mundial, que proporcionou ao comércio mundial fabulosas oportunidades de


lucro, transformando-o numa actividade próspera, rapidamente monopolizada por
grandes sociedades por acções então constituídas: a Oost-Indische Companie, nos
Países Baixos; a East India Company e a Hudson Bay Companie, na Inglaterra; a
Compagnie des Indes Orientales, na França. Verdadeiras companhias majestáticas,
constituídas por carta régia, elas foram extensões dos estados onde surgiram, reunindo
atributos próximos da soberania, como o direito de recrutar, treinar e utilizar tropas
próprias nas suas actividades comerciais. Os navios partiam da Europa para a África,
onde carregavam escravos, que pagavam com panos, armas, pólvora, bebidas e artigos
de uso doméstico; seguiam depois para as Caraíbas e para as Américas, onde vendiam
os escravos e produtos manufacturados europeus (nomeadamente panos baratos para
uso dos escravos) e onde carregavam acúcar, tabaco e outros bens, destinados ao
mercado europeu.
E foi de tal modo importante a viragem operada por esta mundialização do
comércio, que há quem fale de “revolução comercial”, da “mais importante
transformação na história da humanidade desde a revolução metalúrgica”, do “maior
boom histórico do capital mercantil”. 92 Marx põe em evidência este aspecto: “A
descoberta do ouro e da prata na América, o extermínio, a escravização e o
enterramento nas minas da população aborígene, o início da conquista e o saque das
Índias Orientais, a transformação da África numa coutada para a caça comercial de

abolição do tráfico de escravos em todo o território sob jurisdição portuguesa. Finalmente, em


23.11.1869, foi abolida a escravatura em todos os domínios portugueses.
As estimativas mais divulgadas apontam no sentido de terem sido transaccionados cerca de de 11
milhões de escravos. Se admitirmos que, por cada escravo que chegava ao destino final, morriam cinco na
caça aos escravos e durante as viagens (por doença, motim ou inadaptação), o tráfego de escravos terá
imposto ao continente africano uma hemorragia de uns 60 milhões de pessoas.
Sobre o objecto desta nota, ver J. A. NOGUEIRA, ob. cit.; V. ALEXANDRE, Origens…, cit., 21ss;
P. R. ALMEIDA, ob.cit.
92
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 130 e P. VILAR, últ. ob. cit., 64. Um ponto de vista diferente
é sustentado por Jan de VRIES, A Economia…, cit, 185-193. Este autor procura mostrar que não foi
lucrativa a actividade das companhias europeias que se dedicaram ao comércio com as colónias,
inclinando-se para a tese de que foi mais importante o dinamismo próprio da actividade económica na
Europa (cuja produção se destinava em boa parte ao mercado intra-europeu), bem como os efeitos de
imitação de determinadas importações vindas do Oriente, que estimularam o desenvolvimento de
actividades idênticas na Europa. Refere a influência das porcelanas chinesas e japonesas, do chá, do café
e do tabaco, bem como os panos de algodão da Índia, que criaram uma procura que depois seria coberta
pelos tecidos ingleses, quando a Inglaterra proibiu a importação destes produtos.
Razão tem De Vries quando defende que a influência das enormes riquezas vindas do Novo
Mundo não foi automática: essas riquezas só estimularam o desenvolvimento económico nos países onde
havia condições internas para aproveitar as oportunidades criadas. Não foi o caso de Portugal e da
Espanha, como é sabido. Os grandes aproveitadores foram a Inglaterra, a Holanda e a França.
70

pretos, asinalaram a rósea aurora da era da produção capitalista. Estes idílicos


comportamentos são os principais impulsos da acumulação primitiva”.93

 A exploração colonial e a ‘revolução dos preços’


Como consequência imediata das viagens e das conquistas de portugueses e
espanhóis, afluem à Europa tesouros fabulosos, produto do saque a que foram sujeitos
os povos autóctones, nomeadamente os tesouros dos Incas e dos Maias. Grande parte
dessas riquezas imensas foi gasta em despesas sumptuárias e em aventuras militares,
mas acabou por cair nas mãos dos grandes mercadores e banqueiros da época, que
desde cedo se tornaram poderosos intermediários dos negócios coloniais.
A pirataria e a pilhagem dos navios espanhóis em breve passaram a constituir
importante fonte de réditos da corte de Inglaterra, país que mais tarde (século XVIII)
aplicaria na Índia os métodos de usurpação violenta que primeiro foram usados nas
Américas e que os holandeses igualmente tinham adoptado no Extremo Oriente (século
XVII).
A colonização e a exploração sistemática dos territórios colonizados vieram em
seguida substituir este primeiro período de saque desenfreado. Além de utilizarem
mão-de-obra escrava, as potências colonizadoras impuse-ram aos povos indígenas das
colónias pesados tributos, pagáveis em dinheiro, que apenas poderiam obter se traba-
lhassem para os colonizadores. Com este mesmo objectivo, foram utilizados outros
meios de coerção, como a proibição de os povos colonizados cultivarem produtos
comercializáveis, o confisco das suas terras de cultivo, o encargo cometido aos chefes
tradicionais das colónias de enviarem jovens para trabalhar nas minas e nas
plantações.94
A dureza das condições de trabalho impostas aos povos colonizados (escravos
ou não) foi de tal ordem que populações inteiras foram dizimadas (v.g. os índios de
São Domingos e de Cuba) e outras, destruídas as bases da sua civilização, foram
forçadas a render-se (v.g. as populações do México).
Era muito baixo, nestas condições, o custo de produção do ouro e da prata, que
afluíram à Europa, ao longo do século XVI, em grande quantidade. O valor destes
metais obtidos nas colónias das Américas ficava diminuído em relação ao valor dos
restantes bens, que viram subir os seus preços em termos dos metais usados como

93
Citado por J. de VRIES, A Economia…, cit., 185/187.
94
Cfr. W. A. LEWIS, ob. cit., 38-39.
71

moeda. Os lucros provenientes desta subida de preços devem-se, pois, em primeiro


lugar, à exploração das riquezas mineiras do Novo Mundo e do trabalho das suas
populações. De tal forma assim é, que no século XVII a acumulação de capital foi
menos intensa, na Europa, do que no século XVI, dado que a subida do custo de
produção do ouro a partir de 1600 provocou a sua revalorização e a baixa dos preços
em ouro dos produtos europeus. Só no século XVIII o processo de acumulação de
capitais retomaria o seu ritmo, pois o aumento demográfico veio permitir a
reorganização da exploração colonial, o que, a par da descoberta de novas minas no
México e no Brasil, provocou uma nova baixa do valor do ouro e da prata.95
Marx referia-se assim, em 1847, a este fenómeno da revolução dos preços:96

“No século XVI, a quantidade de ouro e prata em circulação na Europa aumentou em


consequência da descoberta das minas americanas, mais ricas e mais fáceis de explorar. O
resultado foi que o valor do ouro e da prata diminuiu em relação ao dos outros bens de
consumo. Os trabalhadores continuaram a receber o mesmo dinheiro pela sua força de
trabalho. O seu salário monetário manteve-se estável e no entanto o seu salário tinha baixado,
pois em troca da mesma quantidade de dinheiro recebiam uma quantidade menor de outras
mercadorias. Este foi um dos factores que favoreceram o crescimento do capital, a ascensão da
burguesia no século XVI”.
Esta diminuição do poder de compra da moeda 97, paralelamente à acumulação
de capitais que propiciou, está, sem dúvida, na base da profunda crise social que
abalou a Europa de então.
A situação das classes sociais, do ponto de vista da riqueza de cada uma,
alterou-se consideravelmente em favor da burguesia comerciante e em desfavor da
nobreza rural e das classes trabalhadoras. Vivendo de rendas fixas a longo prazo, a
nobreza vê-se arruinada, na exacta medida em que a propriedade da terra se degrada
como forma e fonte de riqueza, perdendo assim a posição dominante de que gozava
desde os alvores da civilização. Os comerciantes ricos acabaram por comprar muitas
das terras, adquirindo por vezes os títulos nobiliárquicos inerentes à propriedade delas.
A verdadeira riqueza, aliás, deixa de consistir na propriedade das terras, para
passar a residir na titularidade dos papéis de crédito. São as acções das sociedades
anónimas; são as letras que, de meros instrumentos de câmbio que inicialmente foram,
95
“Deste modo - conclui P. Vilar (em C. PARAIN e outros, ob. cit., 63) - vemos que a intensidade
da acumulação monetária na Europa, condição para a instalação do capitalismo, dependeu do grau de
exploração do trabalhador americano. Isto não vale apenas para as minas. O ouro e a prata são
mercadorias. O açúcar, o cacau, o café podem provocar fenómenos análogos. A acumulação primitiva do
capital europeu dependeu tanto do escravo cubano como do mineiro dos Andes”.
96
Ver K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 89.
97
Calcula-se que foi de 80% a redução do poder de compra na França, entre 1462 e 1602. Na
Inglaterra, entre 1500 e 1602, o índice de preços passou de 95 para 243, enquanto o índice dos salários
subiu apenas de 95 para 124 (cfr. H. DENIS, História…, cit., 92 e E. MANDEL, Traité…, cit., I, 131).
72

se transformam - com a descoberta da técnica do endosso - em instrumentos poderosos


de mobilização da riqueza; são os títulos representativos de hipoteca (nos quais o
devedor reconhece a dívida e oferece certos imóveis como garantia de pagamento), que
facilitam a circulação dos créditos. Desmaterializando-se, a riqueza torna-se mais
facilmente mobilizável e o comércio ganha novas possibilidades de desenvolvimento.
As classes trabalhadoras, dos campos e do artesanato, sofrendo duramente a
diminuição do poder de compra da moeda, viram ainda a sua situação dificultada em
virtude da intervenção dos poderes públicos, preceituando certas regras de fixação dos
salários ou negando o direito de coalizão e de associação.98

4.1.2. - A proletarização dos camponeses pobres: as enclosures e a ‘revolução


agrícola’.

A sorte das massas camponesas, ligadas à terra que cultivavam em virtude de


direitos feudais que limitavam a propriedade dos senhores, havia de sofrer
profundamente as consequências do afluxo de capitais à agricultura.
Um pouco por toda a parte, na França e em Castela, os campos são ocupados
com rebanhos de gado lanígero, para aproveitar da subida do preço da lã, resultante do
desenvolvimento da manufactura de panos, impulsionado pelas novas dimensões que o
comércio adquirira. Foi uma primeira especialização na agricultura, de sentido e
efeitos favoráveis ao capitalismo: produção para o grande comércio, êxodo rural e
afluxo de mão-de-obra às cidades, proletarização dos camponeses. “Em todos os países
da Europa ocidental produziu-se o mesmo movimento - escreve Marx 99 - embora varie
a sua cor local ou se encerre num círculo mais estreito, ou apresente um carácter menos
pronunciado ou siga uma ordem de sucessão diferente”.
Na Inglaterra, em consequência da Guerra das Duas Rosas (a rosa branca da
Casa de York e a rosa vermelha da Casa de Lancaster), entre 1455 e 1485, verificou-se
98
Recorde-se o remoto Statute of Labourers (promulgado na Inglaterra em 1349), no qual, a
pretexto da diminuição acentuada do número de trabalhadores em consequência da peste, se fixava um
horário de doze horas de trabalho por dia e se proibia que os salários ultrapassassem um máximo
determinado, mas não se previa qualquer salário mínimo. Na França, ficaram célebres as Ordonnances de
Villers-Cotterêts (1539), que tiveram paralelo na Inglaterra em uma disposição de 1630. As referidas
Ordonnances, cujos princípios foram passando para sucessivas disposições legais, até à Lei Le Chapelier
(1791), proibiam “a todos os mestres, aos companheiros e serviçais de todos os mestres realizar qualquer
congregação ou assembleia, grande ou pequena, seja para que assunto for, fazer qualquer monopólio e ter
ou tomar qualquer combinação uns com os outros por causa da sua profissão, sob pena de confisco de
corpo e bens”. Na Inglaterra, de resto, desde o século XIV que as coalizões de trabalhadores eram
consideradas entre os crimes mais graves (e assim se mantiveram as coisas até 1824/1825, com a
promulgação das leis que vieram autorizar a constituição de sindicatos e o recurso à greve).
99
Ver K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), 529.
73

o aniquilamento das antigas casas feudais e o início da monarquia absoluta dos Tudor.
A nova nobreza saída da guerra compreendeu que a riqueza era agora a fonte do
prestígio e do poder. E tratou de se lançar também na constituição de unidades
agrícolas de grande dimensão, reunindo parcelas até aí dispersas por vários pequenos
camponeses, transformando as terras de cultura em terras de pastagens para criação de
ovinos (quintas de capital ou quintas de comerciantes).
Ao mesmo tempo, os grandes proprietários de terras começaram a apropriar-se
das terras comunais, cercando-as para nelas fazerem pastar os seus rebanhos. Assim se
iniciava a prática conhecida por enclosures, que haveria de revigorar-se mais tarde e
que tão importante foi na evolução da economia inglesa para o capitalismo.

Na verdade, foi na Inglaterra que o movimento das enclosures encontrou a sua


mais clara expressão e só aí (no século XVIII) o processo se radicalizou. O processo
iniciou-se em finais do século XV, acentuando-se após a Glorious Revolution, em
1689. A usurpação pela força da propriedade comunal (tradicionalmente utilizada em
comum e livremente pelos povos de uma certa região para nelas se abastecerem de
lenha e de madeira para a construção da casas e de alfaias agrícolas e para aí
apascentarem o seu gado) e a apropriação privada dos domínios do estado (quase
sempre por meios ilegítimos) foram acompanhadas da transformação das terras de
cultivo em terras de pastagem.
As terras caem nas mãos de uma nova aristocracia fundiária, transformando-se
em puro objecto de comércio, como convinha à burguesia emergente, interessada em
alargar o domínio da grande empresa agrícola, para tirar das terras produtos que
pudesse comerciar e para dispor do grande número de trabalhadores expulsos das terras
de onde extraíam o seu sustento e que agora ficavam sem eira nem beira, à mercê de
quem lhes desse trabalho. O desenvolvimento da indústria de panos na Flandres
garantia mercado para a lã, a preços compensadores: não tardou, por isso, que a
Inglaterra se transformasse num país “onde os cordeiros comem os homens” (Thomas
Morus).100
Uma lei de Henrique VII (1498) ainda veio proibir a demolição das casas de
camponeses que agricultassem pelo menos 20 acres de terra, proibição renovada com
Henrique VIII, que ordenou mesmo a reconstrução de casas de camponeses destruídas

100
Em 1533, um texto oficial referia haver proprietários que possuíam 24.000 carneiros (cfr. K.
MARX, últ. ob. cit., 532).
74

e fixou a proporção entre terras de pastagem e terras de trigo. Proibições platónicas,


pois o processo não cessou.
A criação de gado dispensava grande número de trabalhadores (depopulating
pasture) e implicava a diminuição da área disponível para a produção de alimentos
(além de que as terras mais férteis eram destinadas a pastagens). A ocupação das terras
comunais (depopulating enclosures) impedia que os camponeses continuassem a usá-
las para satisfazer as necessidades da economia familiar. 101
A Reforma, a separação da Inglaterra da Igreja de Roma e a extinção dos
conventos traduziram-se na expropriação dos bens da Igreja Católica, a maior
proprietária feudal de Inglaterra. Grande número de camponeses foram assim
separados das terras e ficaram sem trabalho, o mesmo acontecendo a muitos
agricultores independentes (Yeomen), afastados da posse das terras.
Em A Ideologia Alemã, chama-se a atenção para as raízes deste fenónemo:102
“Com o começo das manufacturas coincidiu um período de vagabundagem,
ocasionado pela dissolução dos séquitos feudais, pela desmobilização dos populosos
exércitos que tinham servido os reis contra os vassalos, pelo aperfeiçoamento da
agricultura e pela transformação de grandes extensões de solo arável em pastagens. Já
por aqui se vê como esta vagabundagem se encontra em rigorosa conexão com a
dissolução do feudalismo. Já no século XIII ocorreram algumas épocas desta natureza,
mas no fim do século XVI é que esta vagabundagem suge como um fenómeno geral e
permanente”.

Estas grandes massas de ‘mendigos’ e ‘vagabundos’ (desempregados) são


condenadas à maior miséria e entregues a si próprias, sem possibilidades de proverem
à sua subsistência a não ser que encontrassem trabalho como assalariados, o que não
era fácil, dada a abundância de mão-de-obra desocupada e o desenvolvimento
incipiente das manufacturas.
Por isso, como explica Marx, as pessoas expulsas das terras
“transformaram-se massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por
inclinação, na maioria dos casos por constrangimento das circunstâncias. Daqui, no fim do
século XV e durante todo o século XVI, em toda a Europa ocidental, uma legislação sangrenta

101
Marx cita vários trechos de autores ingleses da época que compreenderam correctamente o
significado do processo em curso. Entre esses autores destaca-se um tal Dr. Price: “a vedação de terras
pesa muito sobre os pobres, privando-os de uma parte da sua subsistência e apenas vai no sentido de
aumentar quintas já muito grandes”. Os produtores expulsos das terras “serão convertidos num corpo de
homens que ganham a sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade de ir ao
mercado para tudo o que quiserem. (…) No geral, as circunstâncias das camadas mais baixas de homens
são alteradas, sob quase todos os aspectos, para pior. De pequenos ocupantes de terra, são reduzidos ao
estado de trabalhadores a dias e estipendiados; e, ao mesmo tempo, a sua subsistência em tal estado
tornou-se mais difícil” (Apud O Capital, Cap. XXIV, em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II,
117-119).
102
Cfr. A Ideologia Alemã, ed. cit., 49.
75

contra a vagabundagem. Os pais da classe operária actual foram, antes do mais, castigados pela
transformação, a que foram sujeitos, em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como
criminosos ‘voluntários’ e pressupunha que dependia da boa vontade deles que continuassem a
trabalhar nas velhas condições que já não existiam mais”. 103

Assim se inicia um longo período de perseguições que se abateram sobre esses


desgraçados, às quais se refere Thomas Morus na Utopia (1516). Esses ‘vagabundos’,
forçados a mendigar e a roubar, podiam sofrer castigos corporais, ser reduzidos a
escravos de quem os denunciasse, ou mesmo ser executados. 104 Em 1551 instituem-se
as famosas Workhouses, instituições onde se recolhem os ‘vagabundos’ (que assim
perdem a sua liberdade), que depois são forçados a trabalhar.105
Entretanto, tinham-se descoberto novas técnicas de cultivo das terras, que
vieram favorecer a grande propriedade fundiária. Trata-se da substituição da prática do
pousio e do afolhamento trienal pela cultura periódica de luzerna e outras plantas
forraginosas, com aptidões para renovar a produtividade das terras. Oriundas da
Flandres e da Lombardia, as novas técnicas agrícolas acabaram por se espalhar pelos
outros países, incluindo a Inglaterra. O sobreproduto agrícola aumenta enormemente e
os proprietários, para poderem aproveitar os ganhos da maior produtividade
conseguida, modificam o sistema de arrendamento, transformando o antigo
arrendamento enfitêutico (em geral por noventa e nove anos) por arrendamentos a
prazo mais ou menos curto, no máximo nove anos (tenance at will). Assim era possível
aumentar periodicamente as rendas, processo que viria a contribuir para a liquidação
dos pequenos camponeses independentes (Yeomen) que entretanto tinham surgido e,
em alguns casos, prosperado.
A prática das enclosures ganhou nova força no início do século XVIII. Agora, a
ocupação e a vedação das terras comunais passa a ser autorizada por lei do Parlamento
(Bill for enclosures of commons, 1730): “no século XVIII – vejam o progresso!- a

103
Cfr. O Capital, Cap. XXIV, últ. ed. cit., 126.
104
Só no reinado de Henrique VIII teriam sido executados 72 000 (cfr. K. MARX, O Capital,
Cap. XXIV, últ. ed. cit., 126-131, onde podem ver-se pormenores elucidativos da natureza da legislação
contra estes mendigos-vagabundos). Também na França, no último terço do século XVIII, a
mendicidade atingiu proporções consideráveis, verificando-se o afluxo às cidades das massas de
indivíduos que o campo, saturado, não podia albergar. Considerada a ‘mendicidade’ um delito punido
pelo estado, propunham alguns que esses ‘mendigos’ fossem enviados para as galés por toda a vida,
enquanto outros propunham que se desenvolvessem as manufacturas para absorver a força de trabalho
dos ‘vagabundos’ (produzir era resolver os problemas). Esses ‘vagabundos’ do século XVIII estiveram
na base do proletariado moderno. Como nota M. PERROT, ob. cit., 74, “ces errants se sont fixés, ces
insolents se sont combés, ces indolents se sons hâtés, ces braillards se sont tus. Ils ont gagné du pain et
perdu la  route”.
105
Acerca da atitude adoptada, na filosofia e na prática social e política, relativamente a estes
‘vagabundos’, cfr. R. SOARES, ob. cit., 60-62.
76

própria lei torna-se instrumento de espoliação, o que não impediu, de resto – ensina
Marx 106 -, que os grandes proprietários tivessem recorrido também a pequenas práticas
particulares, extra-legais”.
E a prática das enclosures mostrou então em larga escala os seus efeitos:
1) acabou com o livre acesso às terras comunais, transformando em quintas
privadas mais de três milhões de terrenos baldios;107
2) reduziu as terras de cultivo;
3) privou os camponeses pobres dos meios de subsistência;
4) favoreceu o desenvolvimento da grande propriedade;
5) provocou a subida dos preços dos produtos alimentares;
6) conduziu ao despovoamento dos campos;
7) transformou os pequenos proprietários e rendeiros em jornaleiros, em
“vendedores de si próprios”, em “mercenários”.108
Estes efeitos foram de tal forma claros que, segundo a generalidade dos autores,
por meados do séc. XVIII a Yeomanry tinha sido liquidada na Inglaterra, dando o lugar
a grandes agricultores capitalistas que passam a recorrer à mão-de-obra assalariada.109

106
Cfr. Le Capital (trad. de J. Roy), cit., 535.
107
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 208.
108
Assim escreveu, em meados do século XVIII, o célebre Dr. Price (citado por MARX, O
Capital, Cap. XXIV, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 118): “Os próprios escritores que defendem as
enclosures convêm em que elas reduzem as culturas, fazem subir os preços das subsistências e conduzem
ao despovoamento. (...) E, mesmo quando se trata de terras incultas, a operação, tal como se pratica hoje,
retira aos pobres uma parte dos seus meios de subsistência e acelera o desenvolvimento de quintas que já
são demasiado grandes. (...) Quando a terra cai na mão de grandes agricultores, os pequenos rendeiros
[que noutro lugar - esclarece Marx - tinha designado como pequenos proprietários e tenentes (tenants -
possuidores da terra) que vivem, eles e as suas famílias, do produto da terra que cultivam, dos carneiros,
das aves, dos porcos, etc., que põem a pastar nas terras comunais] serão transformados em outras tantas
pessoas forçadas a ganhar a sua subsistência trabalhando para outrem e comprando no mercado o que lhes
é necessário. Trabalhar-se-á mais talvez, porque a pressão das necessidades é maior (...) As cidades e as
manufacturas crescerão porque aí se apanharão mais pessoas em busca de emprego. É neste sentido que a
concentração das quintas opera espontaneamente e assim vem operando neste reino desde há bastantes
anos. (...) Os pequenos proprietários e rendeiros foram reduzidos à condição de jornaleiros e mercenários,
ao mesmo tempo que se lhes tornou mais difícil ganhar a vida nesta condição.”
109
Fenómeno análogo verificou-se nas Highlands da Escócia, mais para o final do século XVIII:
os povos aí fixados, que viviam da agricultura, são expulsos para as terras - pouco férteis - junto ao mar,
proibindo-se-lhes a emigração para o estrangeiro, a fim de os obrigar a afluir a Glasgow e a outros centros
manufactureiros. Movimentos idênticos de ocupação das terras comunais ocorreram, embora com atraso
no tempo em relação à Inglaterra, na generalidade dos países da Europa, sendo de referir a França
(sobretudo a partir de 1789), a Alemanha e a Bélgica. Na Espanha, pode referir-se a Real Pragmática de
1793 sobre distribuição de terras comunais e a lei de desamortização de 1855, que permitiu que fossem
postos à venda os bens comunais dos povos (cfr. J. V. VIVES, ob. cit., 576ss).
Alain Touraine refere práticas idênticas na América Latina, no início da industrialização. Para
salvaguardar o seu nível de vida, nas condições resultantes do desenvolvimento da economia industrial,
os grandes proprietários do Perú apropriaram-se pela violência das terras dos comuneros e cercaram-nas,
provocando a desagregação das comunidades camponesas. Cfr. “La marginalidad urbana”, em Revista
Mexicana de Sociología, vol. XXXIX, nº 4, Dez/1977, 1.123.
77

Os efeitos das enclosures convergiram com as consequências da chamada


revolução agrícola. Esta (e o aumento do excedente agrícola que ela permitiu) foi um
factor importante na criação das condições que tornaram possível o processo contínuo
de desenvolvimento económico, técnico e científico que caracteriza o mundo moderno,
depois da revolução industrial inglesa.
E não terá sido por acaso que a Inglaterra foi o país que primeiro conheceu a
revolução agrícola, que aqui assumiu grande importância na preparação da revolução
industrial, podendo talvez considerá-la como ‘modelo’, caracterizado essencialmente
pelos seguintes elementos:
1) supressão progressiva do pousio, substituído por um sistema de rotação
contínua das culturas;
2) introdução ou extensão de culturas novas;
3) melhoramento dos utensílios tradicionais e introdução de novos instrumentos;
4) selecção das sementes e dos reprodutores animais;
5) extensão e melhoramento das terras aráveis;
6) extensão do uso dos cavalos nos trabalhos agrícolas.
No espaço de 40 a 60 anos, o aumento da produtividade na agricultura inglesa
veio permitir que o excedente agrícola passasse de cerca de 25% para algo acima dos
50%. Ultrapassado assim o risco de fome em consequência de más colheitas, a
revolução agrícola veio romper o ‘engarrafamento’ que tal risco constituía, tornando
possível a aventura da industrialização.
Importa pôr em relevo o facto de, na Inglaterra, onde o início da revolução
industrial costuma situar-se à volta de 1760, se ter verificado anteriormente (primeiros
anos do século XVIII) uma revolução agrícola, tanto mais que o mesmo poderá ter
acontecido, de uma forma ou de outra, na generalidade dos países que depois se
industrializaram.110
Paul Bairoch estudou esta questão, pondo em relevo a importância da revolução
agrícola no desencadear do processo de industrialização.111 A revolução agrícola
110
Sobre esta problemática, cfr. R. LÓPEZ-SUEVOS, O excedente…, cit., 157ss. Colocando-se na
perspectiva de quem pretende traçar uma estratégia de desenvolvimento para os actuais países
subdesenvolvidos, Paul Baran sustenta que, tal como no século XVIII, só a industrialização pode permitir
uma ‘revolução tecnológica’ na agricultura e o aumento da produtividade deste sector. É certo. Mas o que
se pretende dizer no texto é que a industrialização só pode ser levada a cabo autonomamente
(soberanamente) com base no excedente mobilizável a partir da agricultura, o que implica uma ‘revolução
agrícola’ que modifique, desde logo e para além de outros factores, as estruturas da propriedade da terra.
Cfr. P. BARAN, A Economia…, cit., 359ss.
111
Cfr. P. BAIROCH, Le Tiers-Monde…, cit., 19ss. Cfr. Também E. HOBSBAWM, A Era das
Revoluções, cit., 48/49. Marx sublinha que “no final do século XVI a Inglaterra possuía uma classe de
78

significou o aumento da produtividade e da produção na agricultura, o que permitiu


alimentar, sem aumento significativo dos salários, uma população crescente que não
trabalhava a terra; libertou a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento das indústrias
urbanas; permitiu (ou mesmo provocou) a revolução demográfica; forneceu, sobretudo
no início da industrialização, uma fracção dominante dos capitais e dos empresários
que animaram os sectores mais dinâmicos da nova actividade industrial.

4.1.3. - A proletarização dos trabalhadores da indústria: da ‘indústria


artesana’ à indústria capitalista 112

 A indústria artesana
Vimos como, a partir dos séculos XII e XIII, se desenvolveram na Europa as
cidades em sentido económico. A actividade industrial levada a cabo pelos habitantes
das cidades realizava-se em pequenas oficinas cuja propriedade, bem como a dos
instrumentos de trabalho, pertencia ao próprio artesano que nelas trabalhava com os
familiares ou com um número reduzido de companheiros e aprendizes, considerados
como se fossem pessoas de família. Fala-se, a respeito desta forma de organização da
actividade produtiva, de produção de mercadorias simples ou pequena produção
mercantil.
Estes artesanos eram pequenos produtores autónomos, que viviam dos
rendimentos do seu trabalho, realizados pela venda - que eles próprias faziam, sem
intermediários - dos produtos que manufacturavam, nas suas oficinas. Não havia, por
isso, nas ‘cidades corporativas’ diferenças sociais relevantes: no fim da aprendizagem,
os companheiros ascenderiam à categoria de mestres e ninguém auferia rendimentos
que não proviessem do trabalho próprio, desenvolvido com vista à satisfação das
necessidades do agregado familiar.
O artesano produzia muitas vezes por encomenda ou então para os mercados
locais. De qualquer modo, tinha em vista um quadro de consumidores sensivelmente
estável, até porque a população se manteve mais ou menos estacionária ao longo da
Idade Média (deficientes condições higiénicas nas cidades, epidemias, guerras e fomes
serão as principais razões explicativas do fenómeno).

rendeiros capitalistas muito rica para a época”, enriquecida à custa dos trabalhadores assalariados e dos
proprietários rurais, uma vez que, por essa altura, os contratos de arrendamento de terras eram ainda
celebrados por um período de 99 anos, correndo contra os proprietários a desvalorização das rendas pagas
em dinheiro. Cfr. Le Capital (trad. J. Roy), cit., 551.
112
Sobre este ponto, cfr. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 153-161 e 178-185 e E.
MANDEL, Traité…, cit., I, 136ss.
79

Perante a ausência de estímulos ao aumento da produção, não admira, pois, que


a técnica utilizada fosse em geral rudimentar e pouco progressiva. As necessidades de
defesa perante a exiguidade do mercado levaram os artesanos a agruparem-se em
corporacões de artes e ofícios e a fazer das corporações o elemento básico da força e
da autonomia das suas cidades. Dentro das cidades, as próprias corporações foram
levadas a adoptar um comportamento de tipo monopolístico, tornando cada vez mais
difíceis as condições de acesso à condição de mestre. O aumento do número de
artesanos, perante a rigidez do mercado, haveria mesmo de conduzir a acesa
concorrência entre as cidades, que adoptaram rigorosas medidas proteccionistas.

 A indústria assalariada no domicílio


Entretanto, como vimos, o comércio desenvolveu-se por toda a Europa. E a
constituição dos estados modernos, por volta do século XVI, viria alterar a situação das
cidades e dos seus artesanos. Para poderem exercer a sua autoridade em todo o
território nacional, e assim derrubarem as últimas manifestações de autoridade dos
senhores feudais, os reis promoveram a abertura de pontes e estradas que facilitassem
as comunicações. As relações entre as cidades tornaram-se mais fáceis e frequentes.
E este alargamento da zona de trocas, a expansão do mercado e o
distanciamento dos consumidores iriam trazer novos problemas aos pequenos
produtores artesanos. Por um lado, para trabalharem na sua oficina não podiam
deslocar-se às feiras e mercados, cada vez mais distantes; por outro lado, dilatava-se o
período de tempo entre o início da produção e o momento da venda; finalmente, era
necessário produzir em mais larga escala e era necessário suportar as elevadas e
crescentes despesas de transporte. E os artesanos não tinham capital para financiar tudo
isto.
Daí que, a certa altura, os artesanos passassem a vender os seus produtos, não
directamente aos consumi-dores, mas a um intermediário - o comerciante. Este é que
fica em contacto com o mercado, conhece as necessidades e o poder de compra. Não
tarda que o artesano passe a produzir, não para o mercado, mas para o comerciante que
lhe encomenda a produção. Quando isto acontece, o pequeno produtor perde o
controlo do produto do seu trabalho, embora continue a dispor dos meios de produção.
Mas as necessidades de capital acentuar-se-ão com o progressivo
desenvolvimento do comércio e a ampliação dos mercados (a população aumenta e a
melhoria da rede de comunicações abre novos mercados). O comerciante passará a
80

fornecer ele próprio ao artesano as matérias-primas e os instrumentos de produção


necessários para produzir as quantidades correspondentes à procura acrescida.
Quando isto se verifica, o artesano acaba de perder a sua independência como
produtor, pois passa a não dispor dos meios de produção: labora matérias-primas que
outrem lhe fornece com instrumentos de produção que não são seus; passa a ter um
‘patrão’ (o dono dos meios de produção) a quem entrega as mercadorias produzidas,
mediante uma remuneração em dinheiro que é, de facto (não de direito), o seu
‘salário’. O produtor artesano continua, juridicamente, a vender os produtos que
fabrica ao comerciante. Mas o comerciante-patrão deduz ao preço a importância que
cobra pelo adiantamento dos instrumentos de trabalho e das matérias-primas, não
restando para o trabalhador artesano mais do que a remuneração da sua força de
trabalho (o seu ‘salário’). O produtor autónomo deu lugar ao ‘assalariado’, que
continua a trabalhar no seu domicílio para um ‘patrão’ que tem vários outros
‘assalariados’, dispersos, a produzir por sua conta. Começa assim a penetração do
capital na produção. Fala-se de indústria assalariada no domicílio.
Como elemento novo, o facto de esta indústria assa-lariada no domicílio
começar a surgir fora das antigas cidades corporativas, pois os comerciantes, para
fugirem à complexa regulamentação das corporações e aos ‘salários’ relativamente
elevados cobrados pelos mestres artesanos, começaram a encomendar os produtos a
artífices que viviam nos campos, aos quais forneciam as matérias-primas e os meios de
produção: estes artesanos trabalhavam também no próprio domicílio a troco de um
‘salário’.
Esta forma de actividade industrial - que terá começado a espalhar-se a partir do
século XV na Bélgica, na Itália, na França e na Grã-Bretanha, sobretudo nas indústrias
de panos e na tapeçaria - evoluiu muito lentamente e só no século XVIII se generalizou
a situação de os produtores não disporem dos meios de produção, que pertenciam
agora ao capitalista.
A separação dos produtores dos seus meios de produção verificou-se mais cedo,
porém, nas actividades mineira e metalúrgica, em que são mais caros os meios de
produção. Nalguns casos, por volta de finais do século XVI, as mais importantes dessas
actividades eram já desenvolvidas com mão-de-obra assalariada concentrada num
mesmo local de trabalho, efectuando-se a produção em termos semelhantes aos da
manufactura que mais tarde surgiria na indústria transformadora.
81

Como Marx observou, a emergência do modo de produção capitalista a partir do


modo de produção feudal pode efectuar-se de dois modos: 113
1) “O produtor torna-se comerciante e capitalista, em oposição à economia agrícola
natural e ao artesanato corporativo da indústria urbana medieval. Esta é a via
verdadeiramente revolucionária”.
2) “O comerciante adquire directamente a produção. Esta última via desempenha
historicamente um papel de transição, mas, verdadeiramente, ela não chega a
revolucionar o antigo modo de produção, que conserva como a sua base” (…),
“continuando os artesanos o seu trabalho nas velhas condições”. (…) “Sem subverter o
velho modo de produção, ela limita-se a agravar a situação dos produtores directos,
transformando-os em simples assalariados e proletários em condições ainda mais
desfavoráveis do que as dos operários submetidos directamente ao capital, e
apropriando-se do sobretrabalho deles na base do antigo modo de produção”.
Esta última via corresponde à indústria assalariada no domicílio.114
 As manufacturas.
A iniciativa da produção por parte dos próprios capitalistas, fora do âmbito das
antigas indústrias corporativas, haveria de verificar-se, porém, sobretudo a partir do
aparecimento das manufacturas. No século XVIII, com efeito, começou a desenvolver-
se uma nova forma de organização da actividade produtiva, que antecipa e cria as
bases para as grandes fábricas modernas: a manufactura.
Com Ernest Mandel, poderemos dizer que “a manufactura é a reunião, debaixo
do mesmo tecto, de operários que trabalham com meios de produção que lhes são
fornecidos e com matérias-primas que lhes são entregues. Mas, em vez de serem pagos
pelo valor total do produto acabado, do qual se deduz o preço da matéria-prima
adiantada e o preço da locação dos instrumentos de trabalho, como aconteceu na
indústria no domicílio, a ficção da venda do produto acabado ao empresário é

113
Cfr. Le Capital, Éd. Sociales, cit., Livro III, t. 1, 342/343.
114
Esta prática manteve-se em Portugal até muito tarde: no início do século XX tinha ainda um
peso dominante. Em meados do século XIX, poderá estimar-se, a partir de um inquérito limitado levado a
cabo por Oliveira Marreca, que, na indústria têxtil, cerca de 2/3 dos trabalhadores (especialmente
mulheres) trabalhavam no domicílio (cfr. F. A. ALMEIDA, Operários de Lisboa…, cit., 82). Esta forma
de trabalho – que isola os trabalhadores dos seus sindicatos; que não obriga a contrato de trabalho nem a
descontos para a segurança social; que não tem riscos de greve ou de outras formas de contestação; que
obriga os trabalhadores a trabalhar mais horas e mais intensamente para ganharem um salário idêntico ao
que poderiam auferir através de um contrato de trabalho no quadro do contrato colectivo - ainda hoje tem
expressão em Portugal, especialmente nas indústrias tradicionais do vestuário e calçado, a ela recorrendo
muitas grandes empresas, mesmo multinacionais de marcas conceituadas.
82

abandonada. Ao operário cabe apenas aquilo que, de facto, ele já ganhava no sistema
da indústria assalariada no domicílio: um simples salário”.115
E as manufacturas depressa se desenvolveram e se sobrepuseram à indústria no
domicílio, dadas as vantagens por elas oferecidas aos novos industriais capitalistas:
1) em primeiro lugar, suprimiram os intermediários que o anterior sistema
exigia, para a distribuição das matérias-primas e a recolha dos produtos acabados;
2) em segundo lugar, reduziram os custos de produção, ao permitirem o controlo
directo do patrão relativamente ao uso das matérias-primas e dos instrumentos de
produção, evitando ‘fugas’ e desperdícios;
3) por último - e principalmente -, trouxeram consigo elevados ganhos de
produtividade em virtude da especialização interna e da sujeição dos trabalhadores a
um ritmo de trabalho e a um horário de trabalho impostos pelo empresário.
O advento da indústria artesana marcara um relativo progresso em relação às
economias dos domínios senhoriais, pois tornara possível a especialização em
produtores agrícolas e produtores industriais e, nas cidades, a especialização dos
artesanos, cada um em seu ofício (especialização externa). Cada artesano efectuava,
porém, todas as operações atinentes ao processo produtivo dos bens que
confeccionava: não havia, pois, especialização no interior de cada ofício ou mester
(condições que não se alteraram com a indústria assalariada no domicílio).
Com as manufacturas surgiu a empresa como organização produtiva. Ao
concentrar os trabalhadores no mesmo local de trabalho, esta forma de organização da
produção permitiu a subdivisão do processo produtivo de cada produto numa série de
operações parcelares, encarregando-se cada operário de apenas uma destas operações,
tarefa que em breve realizará quase automaticamente, com grande rapidez e perfeição,
sem ter que perder tempo em deslocações dentro da própria oficina e na adaptação a
cada uma das várias tarefas. Esta especialização interna veio, sem dúvida, aumentar o
“poder produtivo do trabalho”, na expressão de Adam Smith. Paralelamente, a
diferenciação e a especialização dos instrumentos de trabalho, impostas pela
parcelização do processo produtivo, é outra característica das manufacturas.
Mas esta subdivisão do processo produtivo de cada bem em um grande número
de operações parcelares vem tornar cada uma destas operações muito simples, podendo
ser perfeitamente realizada por trabalhadores sem qualquer qualificação. E esta foi
outra vantagem da manufactura para os empresários: permitiu a utilização de mão-de-
115
Crf. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 141-142.
83

obra não qualificada, a mão-de-obra barata das mulheres e das crianças e até de
pessoas com deficiências mentais. E isto proporcionou uma redução substancial dos
custos de produção, uma vez que, durante o período das manufacturas, o trabalho
manual continuou a predominar na actividade industrial, constituindo os salários a
maior parte das despesas totais da indústria.
Na óptica dos trabalhadores da indústria, os velhos artesanos perderam o que
lhes restava da sua autonomia: passaram a trabalhar fora da sua casa ou da sua oficina;
ficaram sujeitos a um horário de trabalho fixado pelo patrão; perderam o controlo do
processo técnico de produção (a especialização interna, assente na fragmentação do
processo de produção, veio desvalorizar o monopólio do conhecimento dos antigos
mestres artesãos); passaram a ter de se sujeitar ao poder de direcção do dono da
empresa. O produtor autónomo da indústria urbana medieval transformou-se em
‘mercenário’, em trabalhador assalariado, vendendo a sua força de trabalho em troca de
um salário. A propriedade capitalista e as relações de produção capitalistas (assentes
na relação entre o empregador capitalista e o trabalhador assalariado excluído do
acesso directo aos meios de produção) penetram assim na indústria.

As manufacturas resultaram em alguns casos do processo de transformação da


antiga indústria artesana. Mas surgiram principalmente com a criação de novas
indústrias, já sob a forma capitalista.
As classes burguesas tinham, entretanto, ocupado posições de maior destaque
nos países mais avançados e o seu poderio económico foi-lhes propiciando um
crescente poder político. Não admira, por isso, que o estado se tenha empenhado em
incentivar e proteger a criação e o desenvolvimento das novas manufacturas
capitalistas. Umas vezes, o estado criava manufacturas que adminis-trava
directamente: as manufacturas reais. Outras vezes, o estado fomentava a constituição
de manufacturas privadas às quais concedia privilégios monopolistas: as manufacturas
privilegiadas. Foi esta, como se sabe, a política desenvolvida por Colbert na França,
pelos Stuarts na Inglaterra e, em Portugal, pelo Marquês de Pombal.116
116
Prosseguindo a política de ‘industrialização’ iniciada por D. Luís da Cunha (Conde da
Ericeira) no tempo de D. João V, o Marquês de Pombal criou a Junta do Comércio e, em colaboração com
a Direcção da Real Fábrica das Sedas, promoveu a criação de manufacturas do estado, instaladas nas
Amoreiras em regime experimental; apoiou a criação de manufacturas privadas, concedendo-lhes crédito
através da Junta de Comércio, conferindo-lhes estatuto de monopólio e privilégios vários,
designadamente fomentando a formação de técnicos capazes, para o que mandou vir especialistas
estrangeiros (holandeses, franceses, italianos e ingleses) que ensinavam nos estabelecimentos das
Amoreiras, a que o Marquês chamava Real Colégio das Manufacturas. Acerca deste período da nossa
84

O apoio do estado às indústrias nacionais foi, aliás, um factor importantíssimo


no arranque da indústria capitalista.
O estado concedeu especial protecção aos novos centros (fora das ‘cidades
corporativas’) onde se instalavam as manufacturas capitalistas, desejosas de se
desenvolverem, livres das restrições impostas pela organização corporativa, à medida e
ao ritmo exigidos pelo mercado mundial criado pela descoberta das rotas atlânticas.
O estado concedeu crédito em boas condições às novas indústrias: o recurso,
generalizado, à dívida pública alimen-tou os fundos das grandes sociedades anónimas,
incentivou o comércio de títulos e a especulação e impulsionou a banca moderna (o
Banco de Inglaterra foi criado em 1694).
O estado empenhou-se em assegurar mercados às novas indústrias, quer através
da celebração de tratados de comércio na Europa, quer através da conquista de
territórios coloniais.
Por outro lado, o proteccionismo foi prática generalizada, já através do
lançamento de direitos alfandegários protectores, já pela concessão de prémios à
exportação, já pela garantia do monopólio de venda no mercado interno e de
monopólios coloniais, já pela ‘liquidação’ das indústrias nos territórios dominados pela
‘metrópole’ industrial.117
O estado promulgou, em todos os países, legislação que proibia e considerava
crimes as coligações operárias, as associações profissionais e o recurso à greve.118

história económica, ver J. BARBOSA, ob. cit.; A. CASTRO, ob. cit. (estudos onde poderá colher-se
indicação de outra bibliografia) e J. B. MACEDO, ob. cit.
117
Basta recordar o que a Inglaterra fez à manufactura de lã na Irlanda. Eis o comentário de um
antigo professor da Faculdade de Direito de Coimbra: “Um rei da Inglaterra, Guilherme III, respondeu a
uma ignóbil representação do Parlamento contra as manufacturas florescentes da Irlanda com o
programa ainda mais ignóbil  Eu hei-de fazer tudo o que em mim estiver para desanimar toda e
qualquer manufactura na Irlanda. À América proibiu-se-lhe construir forjas e fornos para fabricar aço;
proibiu-se-lhe fazer um prego, uma argola, uma ferradura. Foi esta proibição da indústria e não uma
questão de impostos, pensa Leroy-Beaulieu, que fez revoltar os Estados Unidos.
Com relação à Irlanda, o ignóbil plano de Guilherme III, seguido com a tenacidade e com o
egoísmo de tigre da Inglaterra, tornou aquela desgraçada ilha exclusivamente agrícola, horrorosamente
miserável. Por fim, julgou-se que a emigração era o único remédio, e dos púlpitos começou-se a pregar:
 Emigrai. E em cinco anos emigrou com efeito a oitava parte da população total” ( Cfr. J. F. LARANJO,
ob. cit., 89). Segundo informação colhida em K. MARX, Le Capital, Annexe X, em Oeuvres (ed. de
Maximilien Rubel, cit.) I, 1.389, a população da Irlanda passou de 8.222.664 habitantes em 1841 para
cerca de 5 milhões e meio em 1866.
118
Para além de outras medidas legislativas anteriores, acima referidas, tais proibições resultam,
na Inglaterra, das Combinations Acts (1789 e 1800) e, na França, da Lei Le Chapelier (1791). Estas
disposições só viriam a ser revogadas em 1824, na Inglaterra; na França, em 1864 (direito à greve) e em
1884 (direito de constituir sindicatos). Em Portugal, os sindicatos vieram a ser reconhecidos por um
diploma legal de 1891 e o direito à greve só mais tarde, com a legislação da República (1910).
85

O estado - Sombart refere variadíssimos exemplos 119 - obrigou as populações a


um verdadeiro trabalho forçado nas manufacturas, nomeadamente na Espanha, na
França, na Alemanha, na Holanda, na Suíça, na Áustria, na Inglaterra e na Rússia (país
onde a servidão ainda subsistia). E sabe-se também como o estado favoreceu o
recrutamento de trabalho infantil, num tempo em que multidões de crianças, a partir
dos seis anos de idade, trabalhavam nas manufacturas durante 17 e 18 horas em cada
dia, em turnos diurnos e nocturnos.120
Assim foi ganhando terreno a indústria capitalista, ‘matando’ os pequenos
produtores independentes, que tentaram reagir até ao fim: em 1794, esses pequenos
produtores de Leeds ainda tiveram força e ânimo para mandarem uma deputação ao
Parlamento a pedir que fosse promulgada uma lei que proibisse os comerciantes de se
tornarem fabricantes.121

E foram estas transformações económicas, operadas entre o século XVI e o


século XVIII, foi todo este processo evolutivo que originou o aparecimento do
proletariado moderno, classe de indivíduos aos quais, uma vez desligados da terra
enquanto meio de produção da sua subsistência, só restava a alternativa de se deixarem
contratar como mão-de-obra assalariada. E capitais não faltavam, que o comércio e a

119
Apud E. MANDEL, Traité…, cit., 1, 144.
120
Em Portugal, o art. 1427º do Código Civil de 1867 dispunha, a respeito do contrato de
aprendizagem: “Nenhum aprendiz, antes dos catorze anos, pode ser obrigado a trabalhar mais de nove
horas em cada vinte e quatro, nem, antes dos dezoito, mais de doze”. A realidade talvez ainda pior do que
o autorizado por lei. Calcula-se que, em meadosdo século XIX, nas indústrias sediadas em Lisboa, cerca
de 21% dos trabalhadores tinham menos de 16 anos de idade (25,8% na indústria de tecidos; 37,6% na
estamparia); por vezes, as crianças começavam a trabalhar nas fábricas com 6, 7 e 8 anos, em alguns
casos entregues aos manufactureiros pelo Governo Civil, para as furtar à ociosidade e ao vício. Sabe-se
também que o horário de trabalho não era inferior a 11/12 horas por dia; mas, em certos casos extremos, o
trabalho começava às 04.00 horas da manhã e acabava às 12.00 horas da noite. Cfr. F. A. ALMEIDA,
Operários de Lisboa…, cit., 47/48, 59, 73, 91 e 145-147.
Recorde-se que, na Inglaterra, John Locke (1632-1704), o teórico da ‘revolução’ de 1684, propôs
um sistema de educação compartimentado: uma educação superior para os ricos e o que ele chamava
uma “escola de trabalho” para os “filhos dos trabalhadores”, salientando que assim “se acostumarão ao
trabalho desde a infância, o que não é de pouca importância dentro do objectivo de os tornar
parcimoniosos e industriosos durante toda a vida”. Na França, Colbert fazia trabalhar nas manufacturas
crianças de seis anos, inspirado pela ideia de que “l’oisiveté des premières années est la source des
désordres du reste de la vie”. A partir do pré-juízo, tão corrente no século XVIII, que dava como assente a
“preguiça natural das classes trabalhadoras”, compreende-se esta sentença de Arthur Young (apud R.
SOARES, ob. cit., 60): “Every one but an idiot knows that the lower classes must be kept poor, or they
never will be industrious”.
Particularmente desumana foi a situação em que foram colocadas as crianças inglesas recolhidas
nas Workhouses e depois cedidas aos manufactureiros. Os contramestres das manufacturas inglesas
recebiam salários variáveis em função do rendimento obtido nas oficinas, razão por que o chicote era
usado com frequência para castigar as crianças que chegavam atrasadas à oficina, depois de longas
distâncias percorridas a pé, ou que, exaustas de fome e de sono, adormeciam no trabalho.
121
Informação colhida em K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 557.
86

exploração coloniais tinham propiciado a acumulação de lucros fabulosos à burguesia


mercantil da Holanda, da França e principalmente da Inglaterra.122
O capitalismo, porém, só se instalaria como sistema dominante quando a
burguesia logrou tomar o poder político e, a partir dele, realizar o enquadramento
político e instaurar uma estrutura de poder que lhe permitiu aplicar na produção os
capitais acumulados e a mão-de-obra disponível, desenvolvendo a indústria à margem
dos obstáculos institucionais do feudalismo. Só então o capitalismo se afirmaria como
um modo de produção específico. Tal aconteceria pela primeira vez na Inglaterra,
como veremos.

4.1. – Síntese.

O processo que tínhamos surpreendido no início da desagregação do feudalismo


continuou o seu curso, proporcionando a concretização das duas condições sem as quais
não teria sido possível a emergência das relações de produção capitalistas:
1) Por um lado, verificou-se uma grande acumulação de capitais por parte da nova
burguesia comercial;
2) Por outro lado, a rotura do vínculo de servidão pessoal deu origem a uma nova
classe de trabalhadores livres, sujeitos de direito, com capacidade para contratar, com
capacidade para comprar e vender. Estes trabalhadores livres (“livres de todos os
vínculos sociais e livres de toda a propriedade”, nas palavras de Engels 123) constituíram
grandes reservas de mão-de-obra disponível para ser contratada em regime de salariato,
uma vez que não dispunham de outro meio de subsistência (libertos da servidão da

122
Em A Ideologia Alemã (ed. cit., 49/50) sublinha-se o significado e importância das
manufacturas, do ponto de vista salientado no texto: “Com a manufactura, as diferentes nações entram
numa relação de concorrência, numa luta comercial, que se travou em guerras, protecções alfandegárias
e proibições, ao passo que anteriormente as nações, tanto quano estavam em ligação entre si, tinham
prosseguido uma troca inofensiva umas com as outras. De ora em diante, o comércio tem importância
política.
Com a manufactura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação diferente do operário com
quem lhe dá trabalho. Nas corporações continuava a existir a relação patriarcal entre os oficiais e o
mestre; na manufactura, ocupa o lugar daquela a relação de dinheiro entre operário e capitalista; uma
relação que, no campo e em pequenas cidades, conservou uma cor patriarcal, mas que nas cidades
maiores, nas cidades realmente manufactureiras, desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.
(…) A expansão do comércio e da manufactura acelerou a acumulação do capital móvel,
enquanto nas corporações (…) o capital natural permaneceu estável ou diminuiu mesmo. O comércio e a
manufactura criaram a grande burguesia, nas corporações concentrava-se a pequena burguesia, a qual
agora já não dominava nas cidades e tinha de se dobrar ao domínio dos grandes comerciantes e
proprietários de manufacturas. Daí e declínio das corporações assim que entraram em contacto com a
manufactura”. [sublinhados nossos. AN]
123
Cfr. Anti-Dühring, ed. cit., 260.
87

gleba, ficaram do mesmo passo separados das terras que até aí cultivavam por direito
próprio e nas quais obtinham os meios de subsistência).
A essência das relações de produção capitalistas reside na “separação radical dos
produtores relativamente aos meios de produção”, e foi este, precisamente, o papel
histórico do processo de acumulação primitiva do capital: “separar o trabalho das suas
condições exteriores”.
Do que fica dito poderemos concluir, acompanhando Marx:
“a ordem económica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A
dissolução de uma libertou os elementos constitutivos da outra”.
“Quanto ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor da sua própria pessoa,
precisava, em primeiro lugar, de deixar de estar ligado à gleba ou de estar enfeudado a uma
outra pessoa. Ele não tinha também qualquer possibilidade de se tornar vendedor livre de
trabalho, oferecendo a sua mercadoria onde haja um mercado para ela, sem se libertar primeiro
do regime das corporações, com a sua hierarquia, as suas regras…O movimento histórico que
converteu os produtores em assalariados apresenta-se, portanto, como a sua libertação da
servidão e da hierarquia industrial corporativa”.

Mas “a metamorfose da exploração feudal em exploração capitalista” baseou-se


essencialmente na “expropriação dos camponeses, na espoliação das grandes massas
dos seus meios de produção e de existência tradicionais”. Com efeito, os trabalhadores,
libertos da servidão e das teias corporativas, “só se tornam vendedores de si próprios
depois de terem sido despojados de todos os seus meios de produção e de todas as
garantias de existência oferecidas pela antiga ordem”.

“Quanto aos capitalistas empreendedores, estes novos potentados tinham que anular não
apenas os mestres artesanos mas também os detentores feudais das fontes de riqueza. Deste
ponto de vista, a sua emergência é o resultado de uma luta vitoriosa contra o poder senhorial e
as suas prerrogativas revoltantes e contra o regime corporativo e os entraves que ele levantava
ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem”. 124

Só que - como salienta Pierre Vilar 125


- “a acumulação primitiva do capital
provoca a sua própria destruição”. Numa primeira fase, a subida dos preços, o aumento
dos impostos reais, os empréstimos vultuosos a que recorriam os reis e os grandes
senhores da nobreza, asseguraram ganhos fartos a usurários e especuladores. Depois,
124
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 528/529. Marx interroga-se sobre as razões que
levam os trabalhadores a celebrar um contrato pelo qual não só se colocam ao serviço do empregador
capitalista e na dependência dele, mas pelo qual “renunciam também a qualquer título de propriedade
sobre o seu próprio produto”. A resposta é esta: “porque os trabalhadores não possuem nada a não ser a
sua força pessoal, o trabalho em estado de potência, enquanto todas as condições externas necessárias
para dar corpo a esta potência, a matéria e os instrumentos necessários para o exercício útil do trabalho, o
poder de dispor das subsistências necessárias à manutenção da força de trabalho e à sua conversão em
movimento produtivo, tudo isso se encontra do outro lado”.
125
Cfr. P. Vilar, em Ch. PARAIN e outros, ob. cit., 64-65.
88

as perspectivas de acumulação por via da usura esgotaram-se: quando o dinheiro


circula em abundância é mais difícil exigir juros elevados. Por fim, a realidade do
mercado mundial saído da descoberta das rotas atlânticas reduziu as ocasiões de
grande especulação comercial: as taxas médias de juro e de lucro tendem a igualar-se e
a diminuir.
Torna-se necessário encontrar novas vias de reprodução do capital, o que só virá
a alcançar-se quando a nova classe burguesa assegurar, a par do controlo da produção,
o controlo do poder político.

4.2. - A Reforma.

Para além desta acumulação de capital, e em estreita relação com ela, importa
ter em conta outros factores cujo significado não pode ignorar-se quando se pretende
compreender a ascensão da burguesia e a consolidação do capitalismo.
Começamos pela Reforma, que Engels considera uma das “três grandes batalhas
decisivas” na ”longa luta da burguesia contra o feudalismo”. 126 A Igreja Católica,
enquanto proprietária de terras (“possuía seguramente um terço do mundo católico”),
cobradora de dízimos e centro produtor de ideologia, era a pedra angular da sociedade
e da economia feudais. A Igreja Católica (que organizara a sua própria hierarquia
segundo o modelo feudal) era “o grande centro internacional do feudalismo”, que
“unificava a Europa Ocidental” e “envolvia as instituições feudais com a auréola da
consagração divina”. A derrota do sistema feudal passava, pois, pela destruição do
poder da Igreja Católica Romana.
Engels refere ainda outro aspecto relevante para explicar o advento da Reforma,
chamando a atenção para o facto de, paralelamente à ascensão da burguesia, se ter
verificado “o grande renascimento da ciência”, com o desenvolvimento da astronomia,
da mecânica, da física, da anatomia e da fisiologia. Durante a Idade Média, a ciência foi
“uma servidora humilde da Igreja”: “não lhe fora permitido ultrapassar os limites
impostos pela fé, e por essa razão jamais tinha sido ciência nenhuma”. Por isso “a
ciência revoltou-se contra a Igreja”.127 E como, “para o desenvolvimento da sua
126
Cfr. F. ENGELS, Do Socialismo…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, 114-
117. As outras duas batalhas referidas por Engels são aquilo a que poderemos chamar a ‘revolução
inglesa’ e a Revolução Francesa, a que à frente nos referiremos.
127
Para ilustrar a reacção violenta da Igreja ao progresso científico, basta recordar que os
trabalhos de Copérnico foram colocados no índex, que Galileu teve de responder perante a Inquisição e
que a teoria de Darwin sobre a origem e a evolução das espécies ainda hoje não é abertamente aceite pela
Igreja Católica oficial.
89

produção industrial, a burguesia precisava de uma ciência que lhe asseverasse as


propriedades físicas dos objectos naturais e os modos de acção das forças da natureza
(…), a burguesia não podia passar sem a ciência”, ela “teve de aderir à rebelião”.
Na época a que nos reportamos, “todas as lutas contra o feudalismo tinham de
ser dirigidas antes de mais contra a Igreja”. E não há dúvida de que a classe mais
directamente interessada nesta luta era a burguesia. Até porque, “se os primeiros a
soltar o grito de guerra foram as universidades e os comerciantes das cidades”, era
inevitável que tal grito encontrasse, como encontrou, “um forte eco nas massas da
população rural, nos camponeses, que em toda a parte tinham de lutar pela sua própria
existência contra os senhores feudais, espirituais e temporais”.
Embora nos pareça inconsistente a tese já referida de Max Weber segundo a
qual o protestantismo teria gerado o espírito capitalista e este ‘espírito’ teria dado
origem ao capitalismo,128 a verdade é que não pode ignorar-se a importância da
Reforma e da teologia do protestantismo quando se analisa o processo que acabaria por
levar à tomada do poder pela burguesia e à implantação do capitalismo como sistema
económico dominante.
O pensamento medieval, por força do magistério da Igreja Católica, submetia a
actividade económica às leis da moral religiosa: condenava-se, em geral, o exercício do
comércio como modo de vida; considerava-se pecado o desejo de enriquecer para cada
um elevar a sua condição social e a da sua família; proibia-se o empréstimo de dinheiro
a juros.
Não falta mesmo quem veja nesta proibição ditada pela Igreja Católica uma
reacção de defesa da sociedade feudal perante a importância adquirida pelos novos
burgueses ricos e desejosos de valorizar o seu dinheiro. 129 Simplesmente, a partir do
século XII, o desenvolvimento do comércio mediterrânico alargou as ocasiões de
enriquecer; a própria Igreja passou a ter interesses nesse comércio e a participar nos
empréstimos a juros. “À medida que se acumulava, a riqueza ia-se tornando mais

128
Karl Kautsky procurou mostrar que o “espírito capitalista” de que fala Weber era o espírito
burguês dos artesanos medievais, muito anterior ao calvinismo. Esse modo de pensar que Weber pretende
ser uma criação do calvinismo encontrar-se-ia, segundo Kautsky, no ‘comunismo’ dos anabatistas e dos
predecessores (que não se inclinavam para o capitalismo). “Trata-se – escreve Kautsky, citado por O.
LANGE, Economia Politica, I, ed. cit., 264/265 – de um espírito de rebelião do artesano contra a
exploração e o desperdício do feudalismo, da Igreja, dos príncipes e dos usurários; um espírito de
sobriedade, de assídua laboriosidade, mesmo de poupança e de acumulação produtiva”. E este “espírito
ético religioso” explicar-se-ia, segundo Kautsky, “não pelo desenvolvimento autónomo da religião e da
ética, mas pelas condições de vida do artesano, que possuía a força e a vontade para se subtrair ao
domínio da nobreza feudal e de todos os seus acessórios económicos, políticos e éticos”.
129
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 124.
90

respeitável - salienta W. A. Lewis 130


- e, muito antes da Reforma, os teólogos cristãos
dedicavam-se a rever os seus preceitos de maneira a provar que o comércio e a usura
não eram forçosamente actividades condenáveis. Na época em que surge a Reforma,
no século XV, esta revisão estava já bastante adiantada.”
Sendo assim, uma vez que as religiões reflectem alterações verificadas ao nível
das realidades económicas, não fará sentido pretender-se explicar os fenómenos
económicos exclusivamente em função da religião. Mas também não poderá esquecer-
se a influência das crenças religiosas na definição do comportamento económico dos
povos.
Como Marx enfatizou, “o protestantismo é essencialmente uma religião
burguesa”.131 E se é certo que o luteranismo se transformou, segundo Engels, numa
“religião adaptada à monarquia absoluta”, tornando-se um “joguete nas mãos dos
príncipes alemães”, poderemos dizer que, “onde Lutero falhou, Calvino triunfou”.132
Com efeito, pela via do calvinismo, ela vem legitimar o juro e vem dar outro
significado ao trabalho enquanto meio de enriquecimento e factor justificativo da
riqueza. Enquanto Lutero considerou o trabalho como remedium peccati, Calvino
glorifica o trabalho como instrumento de realização do plano divino. Para o
puritanismo, o trabalho é uma “disciplina activa” e os bens materiais são um “dom de
Deus”. Como Kautsky sublinhou, o puritanismo da pequena burguesia constituída
pelos artesanos urbanos valorizava o trabalho como “fonte da sua força, orgulho e
honra”. E este modo de pensar contaminou todos os trabalhadores,
“independentemente do facto de trabalharem na sua própria oficina ou na de outrem”.
133

130
Cfr. W. A. LEWIS, ob. cit., 27-28. No capítulo III deste seu livro, LEWIS estuda, em termos
gerais, as relações que podem ocorrer entre as alterações de ordem religiosa e de ordem económica.
131
K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, ed. cit.), 533.
132
Engels (últ. ob. cit., 116) invoca duas ordens de razões: 1ª) “a doutrina da predestinação era a
expressão religiosa do facto de no mundo comercial da concorrência o êxito ou o fracasso não
dependerem da actividade ou da esperteza de um homem, mas de circunstâncias por ele incontroláveis.
Não é do que ele quer ou persegue, mas da mercê de forças económicas superiores desconhecidas; e isto
era especialmente verdade num período de revolução económica, quando todas as velhas rotas e centros
comerciais foram substituídos por outros novos, quando a Índia e a América foram abertas ao mundo e
quando até os mais sagrados artigos de fé económicos – o valor do ouro e da prata - começaram a abrir
fendas e a ruir”; 2ª) “a constituição da Igreja da Calvino era toda ela democrática e republicana; e, sendo
o reino de Deus republicanizado, poderiam os reinos deste mundo permanecer sujeitos a monarcas, bispos
e senhores?”
133
Apud O. LANGE, op. loc. ult. cit.
Talvez esta glorificação do trabalho explique que o calvinismo tenha dado uma contribuição
importante para a génese do capital, desde logo “por ter transformado quase todos os dias festivos
tradicionais em dias de trabalho”, como observa Marx (citado por LANGE, ibidem).
91

Calvino e os puritanos anglo-saxões defendem que o desejo de enriquecer


deixou de ser condenável em si mesmo. Os homens devem esforçar-se por ser ricos,
para Deus, não para a carne e o pecado.134 Com o calvinismo, lançou-se o fermento do
lema que viria a ser tornado célebre por Guizot (1847): “enrichissez-vous par le travail
et par l’épargne”. A riqueza é entendida como sinal da bênção de Deus: o sucesso
comercial revela a protecção divina. Esta filosofia inspirará o mito individualista do
self-made-man, típico do pensamento sócio-político do século XIX e ainda hoje
bastante arreigado no sentimento popular norte-americano.135 A doutrina calvinista
conduziria, no fim de contas, à ideia de que “não deve querer-se o lucro pelo próprio
lucro, mas sim para desenvolver a actividade económica”. 136 A vida económica
ganhava assim uma ‘moral’ própria, conquistava autonomia relativamente à teologia
católica. Àqueles que dispunham de capitais, à burguesia enriquecida, ficava aberto o
caminho para a valorização desses capitais.

4.3. - A formação dos estados modernos da Europa.

Por volta dos séculos XV e XVI assiste-se também na Europa à constituição dos
modernos estados nacionais, unificando, sob a autoridade do soberano, o território e o
poder político fragmentados característicos do período feudal. Foi um movimento em
que os soberanos se apoiaram na burguesia e que a burguesia apoiou de bom grado,
pois se tratava de abolir as últimas regalias da feudalidade e o poderio das ‘cidades
corporativas’, com a sua actividade industrial realizada por produtores autónomos. A
Inglaterra realizou a sua unificação com Henrique VII (1485-1509); a França, com
Luís XI (1461-1483); a Espanha, em 1469, com o casamento de Fernando de Aragão e
Isabel de Castela. Os Países Baixos só em 1609 se libertaram da Espanha. A Alemanha
e a Itália atingiriam a unificação bastante mais tarde.

134
Assim se exprimia Richard Baxter, pastor puritano (1615-1691): “Se Deus vos designa um
dado caminho no qual podeis legalmente ganhar mais do que em outro (e isso sem prejuízo para a vossa
alma nem para a de outrem) e se recusais o mais proveitoso para escolher o caminho que o é menos, estais
a contrariar um dos fins da vossa vocação, recusais fazer de vós o intendente de Deus e aceitar os seus
dons e empregá-los ao seu serviço se ele o exigir. Trabalhai, pois, para ser ricos para Deus e não para a
carne e o pecado” (apud H. DENIS, História…, cit., 96).
135
Destas ideias puritanas que concebem a riqueza como bênção de Deus – invoca-se S. Paulo:
“tudo é para os eleitos” -, “viria a resultar que a indigência assinalava indelevelmente uma denegação da
Graça. Por isso se percebe - continua R. SOARES, Direito Público…, cit., 60 - que no sistema das
‘Manufacturas’, onde se impunha a ascese do trabalho aos criminosos e vagabundos, também os pobres
fossem tratados da mesma desapiedada maneira”.
136
Ver J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 172-173.
92

Já referimos o enorme apoio que os modernos estados nacionais deram ao


grande comércio e à indústria capitalista nascente, apoiando as burguesias nacionais na
luta acesa travada na exploração colonial e protegendo de vários modos as
manufacturas capitalistas, quer perante as prerrogativas das cidades, quer perante a
concorrência dos produtores estrangeiros.

4.4. - A ‘Revolução Inglesa’.

A Inglaterra foi, como se sabe, a primeira grande potência capitalista. E por


‘revolução inglesa’ designa-se aqui precisamente o lento e longo processo que levou a
burguesia inglesa a tomar conta do comércio, a controlar a actividade produtiva
(nomeadamente a indústria) e a ocupar o poder político.
Tendo como ponto de partida a doutrina calvinista, a ‘revolução’ foi obra,
essencialmente, da classe média das cidades e dos camponeses remediados
(yeomanry), que a impuseram pelas armas. Como Engels põe em relevo, sem a acção
dos plebeus das cidades e da yeomanry, a burguesia não teria levado a luta até ao fim,
levando Carlos I ao cadafalso.137

Lisboa e Cádis desalojaram Florença, Génova e Veneza da posição de centros


do comércio [mediterrânico] entre o século XII e o século XVI e tornaram-se, no
século XVI, graças às viagens marítimas dos navegadores ao serviço de Portugal e da
Espanha e à consequente expansão ultramarina, os verdadeiros centros do comércio do
mundo, por onde passaram as especiarias e outros produtos exóticos do Oriente, a prata
e o ouro da América e da África.

137
“É curioso verificar – escreve ENGELS, últ. ob. cit., III, 116 – que nas três grandes
insurreições da burguesia é o campesinato que fornece o exército que tem de combater; e o campesinato é
justamente a classe que, uma vez alcançada a vitória, é com toda a certeza arruinada pelas consequências
económicas dessa vitória”. E a verdade é que, cem anos depois de Cromwell, a yeomanry tinha
praticamente desaparecido.
93

Foi efémero, porém, o ‘reinado’ português: em 1580, com a união das duas
coroas na pessoa do rei de Espanha, os interesses portugueses passaram a segundo
plano. E não durou muito mais o domínio espanhol, cujo declínio terá tido o seu início
logo em 1588, com a derrota da Invencível Armada.
Pouco depois, em 1609, os Países Baixos tornam-se independentes da Espanha.
No século XVII, a República das Províncias Unidas (Holanda) torna-se o pólo de
atracção do comércio mundial. Revoltada contra a Espanha, a Holanda ficava privada
do comércio dos produtos que iam de Lisboa e de Cádis para o norte da Europa. Pois a
Holanda partiu à conquista dos mares e foi buscar as especiarias aos países de origem.
Apoderou-se de Java, das ilhas de Sonda e das Molucas, negociou com a China e o
Japão e os navios holandeses em breve passaram a transportar as especiarias para a
Europa e a fazer o comércio de escravos.
Verdadeira iniciadora do regime de exploração económica dos territórios
coloniais, a Holanda atingiu o seu apogeu por volta de 1648. Controlava então quase
em exclusivo o comércio das Índias Ocidentais e as comunicações entre o sudoeste e o
nordeste da Europa. Auferindo enormes lucros da sua posição monopolista, os
holandeses não hesitaram, sempre que baixavam na Europa os preços das especiarias,
em recorrer à destruição das respectivas culturas e ao massacre das populações para
que estas não plantassem mais árvores.138 Em meados do século XVII, a sua frota de
pesca, a sua marinha e as suas manufacturas ultrapassavam as dos outros países e
Amesterdão (cuja Bolsa data de 1513) foi então (sucedendo a Antuérpia) o maior porto
comercial do mundo.
A supremacia comercial assegurou à Holanda a supremacia no domínio das
manufacturas e a nova burguesia acumulou enormes somas de capitais, fruto do
comércio e da exploração coloniais. “A Holanda - escreveu Marx 139
- era no século
XVII a nação capitalista por excelência. (...) Os capitais da República eram talvez mais
importantes que todos os do resto da Europa em conjunto”.

A Inglaterra iria, por sua vez, afastar a Holanda desta posição de supremacia.
Vejamos como, no século XVIII, a burguesia inglesa chegou ao domínio do comércio
mundial, ao longo de um processo que “é a própria história da subordinação do capital
mercantil ao capital industrial”.140
138
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 133-134.
139
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 558/559.
140
Cfr. K. MARX, Le Capital, Éd. Sociales, cit., Livro III, t. 1, 341.
94

Referimos atrás que no final do século XV (após o termo da Guerra das Duas
Rosas) a aristocracia inglesa começou a abandonar as formas tradicionais de
exploração das terras, para poder beneficiar do comércio da lã. A velha aristocracia
tentava transformar-se no primeiro burguês da Inglaterra. Vimos também como a nova
burguesia comercial se vinha aliando à nobreza, comprando algumas das suas terras e
convertendo-as em pastagens para criação de gado lanígero. Vimos como a prática das
enclosures começou a minar a posição dos pequenos camponeses independentes,
criando legiões de desempregados.
Afastando-se de Roma e fazendo-se chefe supremo da Igreja de Inglaterra por
volta de 1530-1532, Henrique VIII procederá à distribuição das terras da Igreja
Católica, que era o maior proprietário feudal da Inglaterra, dando origem a uma nova
burguesia rural, que se apressou a cercar as terras (enclosures) e a expulsar os
camponeses das terras que cultivavam, aumentando deste modo o número de famílias
separadas da posse das terras e acrescentando as levas de ‘vagabundos’ (assalariados
potenciais).
Entretanto, a nova classe rica (nobreza-burguesia) entra em conflito com a
dinastia dos Tudor, empenhada em manter o seu poder absoluto e em salvar a ordem
feudal. O agravamento do conflito levará à Revolução de 1648, que culmina com a
execução de Carlos I e a instauração da ditadura de Cromwell.
Este, compreendendo que a vitória sobre a Holanda exigia a constituição de uma
poderosa marinha mercante, não tardou a levar por diante a política conveniente aos
interesses da burguesia inglesa. Este foi o objectivo dos Actos de Navegação, que só
seriam revogados em 1849, durante o período áureo do laissez-faire na Grã-Bretanha.
Em 1651, determinou-se que as mercadorias europeias só podiam ser
descarregadas na Inglaterra se transportadas em barcos ingleses ou em barcos do país
de origem desses produtos (sujeitos, em regra, ao pagamento de elevadas tarifas
alfandegárias), reservando-se aos barcos sob pavilhão britânico o transporte para
Inglaterra de produtos coloniais.
Em 1660, obrigaram-se a registo todos os barcos mandados construir no
estrangeiro por cidadãos ingleses, impondo-se aos navios ingleses um comandante
inglês e a nacionalidade britânica de 3/4 da tripulação.
Finalmente, em 1663 o Staple Act obrigou os colonos a comprar na Inglaterra os
produtos europeus de que carecessem, os quais deveriam ser transportados em barcos
sob pavilhão britânico.
95

Por força dos Actos de Navegação, a Holanda perdeu o mercado inglês, pois os
navios holandeses não podiam transportar para Inglaterra os produtos vindos do
Oriente e de outros países europeus. A Inglaterra criou assim as condições para
constituir a sua própria frota, à qual se reservava desde logo o monopólio do transporte
para a Inglaterra dos produtos coloniais. Com essa frota iria a Inglaterra bater o pé à
Holanda (entre 1652 e 1674 registaram-se três guerras entre os dois países) até ocupar
o lugar que a esta pertenceu no século XVII. Com a conquista da colónia holandesa da
América do Norte (New Amesterdam) em 1664, a Inglaterra afirmou-se como senhora
dos mares e, portanto, senhora do comércio mundial.
Cromwell e os mercantilistas britânicos deram-se conta da importância estratégica
do comércio externo como condição prévia do desenvolvimento no quadro do
capitalismo nascente, nomeadamente como mercado de colocação de produtos
mnufacturados. Daí a defesa da expansão colonial e o empenhamento do estado na
prossecução deste objectivo estratégico para o capitalismo nascente.
Os territórios coloniais foram sujeitos ao regime do pacto colonial, regime que,
em termos gerais, visava estabelecer circuitos comerciais fechados, transformando
aqueles territórios em ‘reserva’ da metrópole. Para tanto:
a) proibiram-se as colónias de produzir os bens que a metrópole podia fornecer;
b) obrigaram-se as colónias a vender os seus produtos exclusivamente à
metrópole e a comprar na metrópole todos os produtos de que careciam, os quais seriam
transportados apenas em navios sob pavilhão da metrópole;
c) obrigou-se o comércio das colónias com o estrangeiro, quando existisse, a
passar por um porto metropolitano, tanto para as exportações como para as importações;
d) reservou-se à metrópole o poder de determinar os preços, a política monetária
e os direitos alfandegários.

O crescente poderio da classe burguesa vai dar-lhe alento para impor novas
alterações no aparelho do estado, que se traduziriam, naturalmente, em maior poder
político para ela. Em 1689 ocorreu o movimento revolucionário que os autores
normalmente designam por Glorious Revolution. Ao novo rei, Guilherme III, príncipe
de Orange, é imposto o Bill of Rights, que valoriza o papel do Parlamento (onde a nova
classe burguesa começava a dominar), ao qual passa a caber o poder de fazer as leis e
de discutir e aprovar o orçamento do estado (separado o erário público do património
pessoal do rei).
96

Dentro do compromisso que marca a Revolução de 1689, os quadros da


administração pública e as sinecuras políticas continuavam a ser ocupados pelas
grandes famílias da nobreza, mas a burguesia foi já suficientemente forte para confiar
ao Parlamento poderes bastantes para que a política geral da nação passasse a ser
conduzida de acordo com os interesses dessa mesma burguesia comercial, industrial e
financeira. “A burguesia torna-se, a partir de então - como salienta Engels 141
-, um
elemento modesto, mas oficialmente reconhecido, das classes dominantes de
Inglaterra, tendo, com as outras fracções, um interesse comum na manutenção da
sujeição da grande massa trabalhadora da nação.”
A burguesia ia penetrando no seio da nobreza e as grandes famílias da
aristocracia rural compreendiam que a sua prosperidade económica estava
irrevogavelmente ligada à da burguesia comerciante e industrial. “A nova aristocracia
fundiária - anota Marx142 - era a aliada natural da nova bancrocracia, da alta finança de
fresca data e dos grandes manufactureiros, então fautores do proteccionismo”. Não
admira, portanto, que tenha havido perfeito entendimento entre estes grupos sociais a
respeito da apropriação dos bens do domínio público e da pilhagem dos bens da Igreja
Católica, que então prosseguiu aceleradamente.143 Como em todas as revoluções
burguesas, também aqui a expropriação dos bens das velhas classes dominantes ajudou
a alterar as condições económicas e sociais em favor da burguesia, que assim se foi
aproxiamndo do controlo do poder político.

O Tratado de Methwen (1703) mostra bem a preocupação do estado inglês em


assegurar mercados para os produtos manufacturados britânicos, conferindo à

141
Ver F. ENGELS, Do socialismo utópico…, cit., III, 118.
142
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 535. O Partido Whig representou então esta
‘aliança’ estratégica entre a nova burguesia e a aristocracia rural.
143
As revoluções burguesas (e a ‘revolução inglesa’ é um caso típico, a este respeito) podem
acontecer num quadro de compromisso entre as velhas e as novas classes dominantes, até ao ponto de se
manterem estruturas de poder político não resultantes do sufrágio (a Realeza e a Câmara dos Lordes). Isto
porque o decisivo, para a burguesia ascendente, era o domínio da economia e do poder económico, a par
da afirmação dos seus interesses no enunciado da ideologia burguesa dominante. E isso foi conseguido
em vários países, em que as velhas classes aristocráticas adoptaram a ideologia burguesa e começaram a
fazer o necessário para se tornarem o ‘primeiro burguês do reino’.
Processo idêntico não parece viável quando se tratar da passagem do capitalismo ao socialismo.
Neste caso, a condição primeira indispensável para se começar a construir o socialismo será o controlo do
poder político, porque só a partir dele se podem destruir as estruturas da propriedade burguesa e se podem
pôr de pé as novas formas de propriedade, de produção e de acumulação. Alguns defendem, com
Gramsci, que, antes da tomada do poder político, é indispensável que o proletariado assegure a
hegemonia na sociedade civil, assumindo a direcção ‘cultural’ (ideológica) da sociedade.
97

Inglaterra uma posição praticamente monopolista no que respeita ao comércio de


panos em Portugal e nas colónias, designadamente o Brasil.
Por altura da Paz de Utrecht (1713), a Inglaterra conseguiu da Espanha o
privilégio de fazer o tráfego de escravos entre a África e a América espanhola, negócio
que ditaria a prosperidade do porto de Liverpool e proporcionaria elevados lucros aos
negreiros ingleses.144
Mas a Inglaterra tinha ainda a França como sua concorrente. No início do século
XVII, com Richelieu, constituíram-se na França grandes companhias coloniais
(algumas das quais acabariam por falir).
Em 1628, os franceses estabeleceram-se em Argel e em 1631 instalam-se em
Marrocos, expulsando os portugueses; em 1633, a Compagnie du Cap- Vert
estabelece-se no Senegal com vista ao tráfego de escravos; em 1635, a Compagnie des
Illes d’ Amérique instala-se na Martinica, em Guadalupe e Dominique; em 1642 os
franceses dominam Madagascar. Mais tarde, sob o governo do cardeal Fleury, os
estabelecimentos das Antilhas, das Índias e da Luisiana conhecem um período de
prosperidade.
A Inglaterra tinha interesse em desalojar a França de todos estes territórios. E
vai fazê-lo, aproveitando a guerra que a França (ao lado da Prússia) mantinha contra a
Áustria, para se lançar à conquista das colónias francesas. Em 1763, pelo Tratado de
Paris, a França vê-se obrigada a ceder à Inglaterra o Canadá, uma parte das Antilhas,
todas as possessões das Índias, a feitoria do Senegal.
Assim, no século XVIII, a Inglaterra ficava senhora do grande comércio
mundial.

144
Na sequência deste Tratado foi constituída a Companhia de Inglaterra, tendo como sócios, a
título privado, o rei de Inglaterra e o rei de Espanha, cada um com 25% do capital (cfr. C. FURTADO,
Prefácio…, cit., p. 31, n. 19). Segundo informa MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 563-564), o número
de navios ingleses utilizados no comércio de escravos passou de 15, em 1730, para 132, em 1792. De
acordo com dados colhidos em E. MANDEL, Traité…, cit., 1, 135, os negreiros de Liverpool venderam, de
1783 a 1793, 300 000 escravos por 15 milhões de libras.
98

4.5. - A revolução industrial.

A expressão Revolução Industrial começou a ser utilizada por autores franceses


por volta de 1820, com o intuito de sublinhar que as mudanças sociais provocadas na
Inglaterra pela industrialização eram tão profundas como as operadas na França pela
Revolução Francesa. Engels utilizou-a também em 1845, defendendo que a revolução
industrial teve “para a Inglaterra a mesma importância da revolução política para a
França e da revolução filosófica para a Alemanha”. Mais tarde, Arnold Toynbee falaria
de revolução industrial nas suas Lectures (1887), entendendo-se em geral que foi a
partir de então que o uso da expressão se generalizou.145
A compreensão do complexo fenómeno que foi a chamada revolução industrial
inglesa obriga a enquadrar e a valorizar devidamente alguns pontos que ajudam a
caracterizá-la como revolução:
1) É preciso, em primeiro lugar, ter em conta a importância da chamada
‘revolução agrícola’;
2) Deve sublinhar-se, depois, a ‘revolução tecnológica’ e a substituição da
energia humana e animal por outras formas de energia (sucessivamente, a energia da
água corrente, a energia do valor, a energia eléctrica, o petróleo, a energia nuclear);
3) É essencial pôr em relevo o aumento da produtividade, o elevado ritmo do
crescimento económico e a tomada de consciência deste fenómeno;
4) Importante é também o crescimento demográfico e o aumento do número de
pessoas a viver nas cidades e da percentagem da população urbana;
5) Igualmente importante é o reconhecimento de que o capitalismo surgiu como
“civilização das desigualdades”, desigualdades que a industrialização tornou tão
patentes como a capacidade de produzir riqueza;
6) Um último ponto fundamental a realçar é o aparecimento do novo operariado
e a luta pela organização desta nova classe operária industrial, nomeadamente no plano
sindical, através de um processo histórico que poderemos escalonar deste modo:

145
Cfr. A. GERSCHENKRON, Atraso…, cit., 95/96 e F. ENGELS, A Situação…,
cit., 18.
99

a) uma primeira fase de proibição dos sindicatos e de criminalização de todas as


formas de associação;
b) admissão e legalização das associações mutualistas;
c) tolerância dos sindicatos;
d) legalização dos sindicatos (1824-25) e criação do primeiro partido dos
trabalhadores (o Partido Cartista – 1834);
e) aceitação da participação dos sindicatos na contratação colectiva;
f) reconhecimento constitucional da liberdade sindical (na Constituição de
Weimar, 1919).

4.5.1. - Nos finais do século XVIII o capitalismo instala-se decisivamente na


produção industrial. Vários factores ajudarão a compreender que tenha sido a
Inglaterra o berço da primeira revolução industrial.146
A Inglaterra conhecera a sua ‘revolução agrícola’ nos primeiros anos do século
XVIII; por volta de 1750, a maior parte dos ‘camponeses’ eram trabalhadores
assalariados e não pequenos proprietários dedicados a uma agricultura de subsistência,
que tinha praticamente desaparecido, situação que facilitou a transferência desta mão-
de-obra para actividades económicas não agrícolas mais atractivas. Em 1800, os que
viviam da agricultura não iam além de um terço da população e a sua contribuição para
o rendimento nacional era da mesma grandeza.
Esta situação não significou, porém, durante muito tempo, uma correspondente
perda de poder político por parte dos landlords, que, por volta de 1790, eram
proprietários de cerca de três quartos da terra cultivável, sendo que a qualidade de
proprietário rural continuava a ser um requisito quase indispensável para se entrar no
Parlamento e nas esferas da alta política. Por outro lado, os custos dos transportes
(apesar da acessibilidade fácil das ilhas britânicas por mar) continuavam a dificultar a
importação de alimentos, o que fazia da agricultura uma actividade altamente lucrativa,
num país cuja população crescia a ritmos elevados e se dedicava cada vez mais a
actividades não agrícolas. Por volta de 1830, mais de 90% dos alimentos consumidos
no país (com uma população duas ou três vezes maior do que em meados do século
XVIII) eram produzidos internamente, e a situação pouco se modificou nos anos que
seguiram à abolição das Corn Laws (1846). Para tal contribuiu também a capacidade
da agricultura britânica para melhorar as condições de produção e a produtividade,
146
Sobre esta questão, ver E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I.
100

nomeadamente depois da constituição da Royal Agricultural Society (1838) e da


criação de uma estação experimental em Rothamsted (1843). Neste mesmo ano foi
inventado o tubo de drenagem cilíndrico, que veio melhorar muito a técnica de
drenagem das terras argilosas e húmidas, utilizada a partir de 1820 e indispensável para
tornar estas terras cultiváveis; em 1842 foi registada a patente do superfosfato, o que,
com o aumento da importação de guano do Perú, permitiu um recurso mais intenso à
adubação das terras.147

A marinha de guerra inglesa dominava o Oceano Atlântico e a marinha


mercante dominava o comércio mundial, dispondo de um frota de seis mil navios,
várias vezes superior à marinha mercante francesa, a sua rival mais próxima; as
encomendas do estado para a marinha de guerra e para a marinha mercante,
fortemente apoiada pelo estado, representavam uma procura ampla e sólida para um
bom conjunto de actividades potenciadoras do desenvolvimento tecnológico; entre
1700 e 1750, a produção das indústrias britânicas aumentou cerca de 7%, mas a
produção das indústrias voltadas para a exportação aumentou 76%, situação que
oferecia um mercado alargado às novas indústrias; dispunha de capitais abundantes e
de um grande número de artesanos com grande domínio das técnicas ‘industriais’ e
habituados a produzir para o mercado; tinha um subsolo rico em carvão e em ferro;
beneficiava de um sistema de transportes fáceis e baratos, nomeadamente através do
mar e de redes fluviais, que unificava o mercado interno; tinha visto, nos finais do
século XVII, a sua ‘revolução burguesa’ dar um importante passo em frente. Reunia,
por isso, todas as condições para se tornar, no século XVIII, o primeiro país a conhecer
uma importante indústria capitalista e uma estrutura jurídico-política capaz de
assegurar as condições exigidas para a afirmação e o pleno desenvolvimento do
capitalismo.
A Inglaterra dominava o comércio mundial, o que então significava o controlo
das fontes de abastecimento de matérias-primas e dos mercados de colocação dos
produtos industriais. A política do estado britânico no sentido de garantir um mercado
externo para as suas indústrias foi um poderoso factor do pioneirismo da

147
Cfr. E. J. HOBSBAWM, últ. ob. cit., 137-153. Esta situação confortável dos proprietários de
terras e dos rendeiros capitalistas britânicos assentava no monopólio natural da terra, num país onde a
custo dos transportes marítimos tornava economicamente inviável a importação de produtos alimentares.
Só o desenvolvimento da navegação a vapor e a ligação dos portos ao interior nos vários países
produtores fora da Europa (entre 1870 e 1880) abriram o mercado externo para o trigo americano,
canadiano, argentino e russo, regiões onde a produção de cereais se desenvolveu com vista à exportação.
101

industrialização inglesa. Em 1700 foi proibida a importação de tecidos de algodão da


Índia, reservando o mercado interno britânico para a sua indústria algodoeira em
gestação, que começou por produzir tecidos mais baratos do que os indianos, porque só
estes eram de algodão puro (os ingleses produziam fustão, resultante da mistura do
algodão com linho europeu). Por outro lado, a indústria têxtil inglesa duplicou as suas
exportações entre 1750 e 1770, sendo que, no final do século XIX, exportava cerca de
90% da sua produção (constituindo a Índia e o Extremo Oriente, a partir de meados do
século XIX, o seu principal mercado externo). A indústria têxtil britânica impunha-se
não apenas pela sua superioridade tecnológica mas também pelo monopólio de que
gozava nos mercados coloniais ingleses, situação que era garantida pela política do
estado britânico, incluindo a supremacia militar da sua Marinha de Guerra.148
Depois de ter afastado a Holanda e a França do domínio dos mares, a Inglaterra
conseguiu uma enorme acumulação de capitais, que permitiria a sua rápida
industrialização: em 1688, com 5,5 milhões de habitantes, 4,5 milhões eram ainda
agricultores (81,8%); em 1768, a Inglaterra conta apenas 3 milhões de agricultores em
8,5 milhões de habitantes (35,2%); em 1810, apenas 35% dos activos se ocupavam na
agricultura inglesa, percentagem que baixou em 1850 para cerca de 20% (a agricultura
gerava cerca de 20% do produto), enquanto na Europa Ocidental a agricultura ocupava
entre 40% a 50% da força de trabalho e produzia cerca de 20% do produto .149
No que se refere ao domínio da ciência e da técnica, porém, a Inglaterra não
ocupava, ao iniciar-se o século XVIII, o primeiro lugar na Europa. No plano científico,
estavam mais avançadas a Itália, a França, e talvez mesmo os Países Baixos. No
domínio das técnicas, a Inglaterra só tinha supremacia no ramo da construção naval. Os
holandeses iam na vanguarda no sector da tecelagem e na construção de canais; os
alemães e os suecos, no campo da metalurgia do ferro e do chumbo; os italianos, no
respeitante ao vidro e à seda; quanto às técnicas de construção, iam na dianteira a Itália,
a França, a Suíça.150
148
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 79/80. A concentração da propriedade
fundiária na Grã-Bretanha, sem paralelo em qualquer outro país industrializado, permitiu, no entanto, que
os ladnlords mantivessem um estatuto económico, político e social muito elevado (em 1885, a maioria
absoluta dos membros do Parlamento era constituída por proprietários de terras). E. J. HOBSBAWM (últ.
ob. cit., II, 42/43) refere que, em 1850, 4/7 das terras cultiváveis pertenciam a cerca de 4 mil
proprietários, que as arrendavam a 250 mil rendeiros, que empregavam cerca de 1.250.000 trabalhadores
assalariados.
149
Cfr. H. DENIS, História…, cit., 137 e P. BAIROCH, “Structure…, cit., 962. À escala mundial,
calcula-se que, em 1860, se ocupava no sector primário 76,5% da população, percentagem que, em 1970,
ainda se mantinha em 54,5%.
150
Com base nestes dados, não falta quem sustente que “o desenvolvimento da ciência europeia e
o nascimento da revolução industrial só muito levemente tiveram relações directas”. Só mais tarde, em
102

Mas foi na Inglaterra que se verificaram os inventos que haveriam de


revolucionar as técnicas de produção logo que foram aplicados à indústria, o que
também se verificou pela primeira vez neste país. Na esteira de Toynbee, costuma
referir-se o ano de 1760 como o início da revolução industrial inglesa, por se terem
começado a utilizar nesse ano os altos fornos de Carron. Mas foi na Inglaterra que se
inventaram a máquina a vapor, a máquina de fiar e a máquina de tecer. Em 1765,
Hargreaves (tecelão e carpinteiro) inventa uma máquina de fiar (a célebre spinning-
jenny), espécie de fuso movido manualmente que podia fiar oito fios simultaneamente;
em 1769, Arkwright cria uma fiação onde aplica a Water-Frame, máquina de fiar que
utiliza como energia a força da água corrente; em 1769 James Watt regista a patente da
sua máquina a vapor, que começou a ser utilizada na indústria algodoeira em 1785; 151
ainda em 1785, Cartwright construiu um tear mecânico que viria revolucionar a
indústria têxtil algodoeira.152
Foi importante a invenção destas máquinas. Mas o que é uma máquina? “A
máquina define-se pelo automatismo; ela executa movimentos por si, aproveitando a
força que lhe é transmitida. É o automatismo, na verdade, que distingue a máquina do
instrumento: este executa apenas os movimentos que lhe imprimimos”. A aplicação
das máquinas à indústria leva à substituição das manufacturas pelas fábricas, que são
- na definição de Teixeira Ribeiro - “oficinas onde a actividade dos operários se
conjuga mediante a especialização interna e é potenciada pelas máquinas”.153
Assim como o grande salto representado pela revolução neolítica se deveu à
descoberta da força produtiva da energia solar, também agora poderemos dizer que a
revolução energética resultante da descoberta da energia do vapor de água, ao permitir a
utilização das máquinas em larga escala (o que começou a verificar-se por meados do
século XVIII), provocou a substituição progressiva da energia humana e animal pela
energia do vapor de água, estando na base de outro grande salto na história da

meados do século XIX, a ciência e a indústria se teriam conjugado. Ver P. BAIROCH, Le Tiers Monde
dans l’impasse, cit., 25. Cfr. também E. HOBSBAWM, A era das revoluções, cit., 46-48. Outro parece ser o
ponto de vista de Oskar LANGE (cfr. Economia Politica, ed. cit., I, 276): “A história do capitalismo é a
história do desenvolvimento triunfal das ciências naturais e das suas aplicações práticas, apesar de todas
as resistências das classes e grupos sociais dominantes da sociedade feudal, ou – na primeira fase do
capitalismo – de uma parte do aparelho estatal, eclesiástico e escolástico herdado da sociedade feudal. Em
síntese, poderemos dizer que a burguesia apoiou o desenvolvimento das ciências naturais, ao passo que as
classes e grupos sociais pré-capitalistas o refrearam”.
151
Segundo Eric HOBSBAWM (Indústria e Império, cit., I, 82), em 1838, mesmo no Reino
Unido, um quarto da energia utilizada na indústria têxtil era ainda fornecida pela água (roda hidráulica).
Nos altos-fornos, a máquina a vapor só começou a ser utilizada em 1788.
152
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 312ss.
153
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 181/182.
103

humanidade: a revolução industrial.154 Como Marx põe em relevo, com a máquina a


vapor de Watt “foi descoberto o primeiro motor capaz de gerar ele mesmo a sua própria
força motriz, que consome água e carvão e cuja potência é inteiramente regulada pelo
homem. Móvel e meio de locomoção, citadino e não camponês, como a roda hidráulica,
ele permite concentrar a produção nas cidades em vez de a disseminar pelos campos”.155
Com a generalização do uso das máquinas (que nos fins do século XIX abarcava
toda a indústria), o processo de produção ganhava definitivamente o carácter de um
processo colectivo, social, de dezenas ou centenas de pessoas. A maquinofactura abre
a era da indústria capitalista urbana e realiza a revolução industrial.

4.5.2. - A indústria têxtil inglesa foi a primeira grande indústria capitalista e


Manchester foi a sua capital.156 A mecanização da fiação do algodão, que se iniciou na
década de 70 do século XVIII, progrediu de tal forma que, em 1810, Robert Owen
calculou que 2500 operários asseguravam uma produção equivalente à de 600 000
operários meio século antes.157 Os custos de produção baixaram, nomeadamente depois
que o americano Eli Whitney inventou o descaroçador de algodão, que estimulou o
desenvolvimento acelerado da produção de algodão no sul dos EUA, com a
consequente baixa do preço da matéria-prima; na Grã-Bretanha a produção aumentou
enormemente, tendo-se proibido a importação de tecidos de algodão e concedido
prémios à exportação. No final do século XVIII, a indústria algodoeira britânica
exportava a maior parte da sua produção (cerca de dois terços em 1805); o valor destas
exportações passou de cerca de 200 000 libras em 1764 para 73 milhões de libras em
1871.158

154
À escala do mundo, porém, em 1850, a energia mecânica representava apenas 6% do total da
energia utilizada, cabendo 79% à energia animal e 15% à energia do homem. Em 1900, estes valores
eram: 38% para a energia mecânica (84% em 1930; 96% em 1960); 52% para a energia animal (12% em
1930 e 1% em 1960); 10% para a energia humana (4% em 1930; 3% em 1960). Dados colhidos em V.
PRÉVOT, ob. cit., 12. No que toca aos EUA, calcula-se que ainda em 1850 a energia humana e animal
representava 94% da energia utilizada na indústria transformadora; um século depois, essa percentagem
era inferior a 1%, apesar de, entretanto, a população ter triplicado (Time, 14.7.1975).
155
Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, cit., 275.
156
Tendo em conta os vários países, em 1860 o têxtil e o vestuário representavam ainda cerca de
65% do emprego na indústria transformadora (P. BAIROCH, “Structure…, cit., 962). Isto apesar de os
preços elevados do trigo obrigarem a uma permanente inovação tecnológica visando substituir mão-de-
obra por máquinas nas várias etapas da indústria (fiação, tecelagem, etc.): segundo E. J. HOBSBAWM
(Era das Revoluções, cit., 63), entre 1800 e 1820 registaram-se 39 patentes na fiação de algodão; 51 na
década de 1820; 86 na década de 1830 e 156 na década de 1840.
157
Cfr. P. BAIROCH, “Les écarts…, cit., 499.
158
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 66 e E. MANDEL, Traité…, cit., I, 149.
104

Nas minas e na metalurgia, já no período das manufacturas se tinham registado


progressos assinaláveis: foi no século XV que se construiu o primeiro alto-forno e foi
nas minas que se utilizaram os primeiros modelos de equipamento de transporte por
caminho de ferro. Mas foi a aplicação das máquinas a vapor nas minas de carvão que
permitiu a baixa dos preços desta fonte energética e o aumento da produção (em 1800
a Grã-Bretanha cobria 90% da produção mundial de carvão, seguida da França, cuja
produção era menos de um décimo da produção britânica).159 Este salto permitiu a
substituição da madeira pelo coque como combustível nos altos-fornos160 e só então a
indústria de produção do ferro se desenvolveu: a produção de minério de ferro
aumentou, de 12 a 17 mil toneladas anuais por volta de 1750, para 455.000 toneladas
em 1823, tendo triplicado entre 1830 e 1850, ano em que atingiu 2.250.000
toneladas.161
A tecnologia das minas (em especial as de carvão, que utilizaram as máquinas a
vapor antes da indústria têxtil) contaminou e alimentou o desenvolvimento das
caminhos de ferro na Grã-Bretanha. A linha Stockton-Darlington (construída em 1825
para ligar a mina de carvão de Durham ao litoral) foi a primeira linha moderna deste
revolucionário meio de transporte.
A partir de 1825, a construção dos caminhos de ferro (mais de 100 000 km de
vias em exploração por volta de 1860) marca o início de uma nova fase da revolução
industrial, centrada agora no carvão e no ferro (um quilómetro de via férrea precisava
de 200 toneladas de ferro, só para os carris), cimentando a vitória da máquina e do
modo de produção capitalista. Os comboios – que na década de 1830 atingiam
velocidades próximas dos cem quilómetros por hora - representavam o que havia de
mais avançado na tecnologia industrial apoiada na ciência (por exemplo, o uso do
telégrafo eléctrico). A construção de vias férreas (primeiro na Inglaterra – que em 1850
tinha já construída a sua rede básica de vias férreas - , depois nos restantes países da
Europa, até chegar à América e ao mundo todo 162) constituiu um mercado de grandes
159
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Era das Revoluções, cit., 65-67. Mas, graças aos caminhos de ferro,
a produção de carvão triplicou, na Grã-Bretanha, entre 1830 e 1850.
160
Segundo P. BAIROCH (“Les écarts…, cit., 499), em 1770, provavelmente mais de 50% do
ferro produzido na Inglaterra provinha de altos-fornos que utilizavam carvão como combustível, taxa que
a maior parte dos outros países europeus só atingiria na 2ª metade do século XIX.
161
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., 1, 149 e E. J. HOBSBAWM, Era das Revoluções, últ. ob.cit..
À escala mundial, P. BAIROCH (últ. ob. cit., 500) calcula que a produção de ferro andaria por 0,6 milhões
de toneladas em 1770, tendo atingido 12 milhões de toneladas em 1870. No mesmo período, o consumo
de carvão teria multiplicado por 30.
162
Em 1830, a maior linha de caminho de ferro era a que ligava Manchester a Liverpool; mas em
1840 a Grã-Bretanha tinha mais de 6 mil quilómetros de vias férreas e, em 1850, a “mania dos caminhos
de ferro” tinha construído 30 mil quilómetros. As primeiras linhas de curta distância começaram a ser
105

dimensões para as indústrias do carvão, do aço e da metalurgia. Por outro lado, ligando
o campo à cidade, facilitando o transporte das pessoas (durante o ano de 1845, os
caminhos de ferro britânicos transportaram 48 milhões de passageiros!), das matérias-
primas e dos produtos acabados, os caminhos de ferro vieram ampliar enormemente o
mercado dos bens de consumo e dos bens de capital em geral.
A penetração do capital na esfera da produção, a introdução das máquinas na
produção e nos transportes marcam o triunfo definitivo do modo de produção
capitalista (primeiro na indústria e depois na agricultura, ela própria ‘industrializada’
com a introdução da maquinaria agrícola).
Marx salienta bem este aspecto163:

“O capital industrial é o único modo de existência do capital, em que este tem por
função não só a apropriação da mais-valia ou do trabalho excedente, mas também a sua
criação. Ele é, por conseguinte, a condição do carácter capitalista da produção; a sua existência
implica o antagonismo de classes entre capitalistas e trabalhadores. À medida que ele se
apodera da produção social, a técnica e a organização social do processo de trabalho são
revolucionadas, e com elas o tipo económico e histórico da sociedade. As outras espécies de
capital, que tinham aparecido antes do capital industrial, no seio de relações de produção já
ultrapassadas ou em declínio, não só ficam subordinadas a ele e vêem o mecanismo das suas
funções adaptar-se às necessidades dele, como também só na base dele podem doravante
mover-se; e é com esta base que elas vivem e morrem, persistem e caem”.

A revolução industrial significou, essencialmente, a transição de um


capitalismo ainda não realizado em todas as suas potencialidades para um novo estádio
em que a ‘revolução’ das técnicas de produção permitiu que o capitalismo atingisse o
seu próprio processo específico de produção, centrado na fábrica enquanto unidade de
produção colectiva e em larga escala, o que se traduziu na separação definitiva e total
do produtor relativamente aos meios de produção e no estabelecimento de uma relação
simples e directa entre empregadores capitalistas e trabalhadores assalariados.164

4.5.3. - Por outro lado, a revolução industrial trouxe consigo, pela primeira vez
na história da humanidade, a possibilidade de os homens comandarem o crescimento
da produção (que se julgou sem limites) e a tomada de consciência dessa possibilidade.
O desenvolvimento da produção deixou de ser limitado pelas forças naturais, sobre as
quais o homem tinha conseguido definitivo domínio. Por volta de 1780, a economia
inglesa começou a crescer a uma taxa tão elevada, que “foi como se a economia
construídas nos EUA em 1827; na França em 1828; na Alemanha e na Bélgica em 1835 e na Rússia em
1837. Quase sempre com capitais, técnicos, máquinas e ferro britânicos.
163
Cfr. K. MARX, Oeuvres… (ed. Maximilien Rubel), cit., II, 556/557.
164
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 19.
106

levantasse voo”. “Este foi porventura - conclui Eric Hobsbawm - o acontecimento mais
importante da história mundial, pelo menos desde a invenção da agricultura e das
cidades”.165
As necessidades de consumo das classes possidentes deixaram de marcar os
limites do desenvolvimento das forças produtivas. As novas estruturas económicas e
sociais do capitalismo obrigavam a uma permanente valorização do capital, ilimitada
por natureza, revolucionando as condições de desenvolvimento económico de toda a
humanidade, e fazendo do capitalismo uma economia susceptível de progredir em
todas as direcções, compreendida a agricultura, mas que encontra na indústria a sua
esfera de acção privilegiada.
Nas sociedades pré-capitalistas o excedente social assumia, fundamentalmente,
a forma de valores de uso e as classes a quem cabia a direcção da economia só
desenvolviam a produção enquanto tivessem interesse em apropriar-se desses valores
de uso. Este um dos factores que pode explicar as baixas taxas de crescimento
económico e o ritmo muito lento de desenvolvimento das forças produtivas (taxas e
ritmo marcados pela capacidade de consumo das classes dominantes).
Com o advento do capitalismo verifica-se uma mudança radical. O excedente
social assume a forma monetária e é apropriado pelos proprietários dos meios de
produção. Estes, porque dispõem agora de mão-de-obra livre que podem contratar,
convertem o dinheiro em capital. O excedente, em vez de ser integralmente utilizado
para alimentar o consumo improdutivo dos membros das classes dominantes, passa a
ser parcialmente destinado à acumulação. A concorrência entre as empresas e as lutas
dos trabalhadores obrigam a classe capitalista a transformar uma parte do excedente
em capital adicional.
Em outro plano, a concorrência obrigava as empresas a vender ao mais baixo
preço possível; por outro lado, como consequência do aumento da produção, a procura
de trabalhadores poderia ser superior à oferta e provocar a subida dos salários.
Exactamente por isso é que a concorrência, ameaçando as margens de lucro,
estimulava o sistema a reagir, introduzindo novas técnicas aptas a propiciar custos
mais baixos e economia de mão-de-obra. Com este sentido é que no Manifesto
Comunista se diz que “a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente
os instrumentos de produção”. Na verdade, o capitalismo é o primeiro modo de
produção que traz inscrito nas suas leis de desenvolvimento uma tendência para o
165
Cfr. A Era das revoluções, cit., 45/46.
107

progresso contínuo da técnica e para a aplicação das conquistas da ciência à actividade


produtiva.
Até meados do século XVIII, os aumentos de produtividade eram tão baixos
que não se tinha sequer consciência da possibilidade de progresso (o aumento do
rendimento per capita ter-se-á verificado, a partir da Idade Média, a uma taxa próxima
de 0,1% ao ano): era o resultado do carácter atrasado e rotineiro da técnica utilizada e
da impossibilidade de acumulação do capital. Com a revolução industrial tudo mudou:
em poucos anos, a produção industrial atingiu níveis nunca alcançados anteriormente,
em toda a história da humanidade. Os dados relativos aos EUA permitem a conclusão
de que a produtividade do trabalho aumentou 25% durante a primeira metade do século
XIX, 100% durante a segunda metade e 200% durante os primeiros 50 anos do século
XX.
Este salto da produtividade, esta ‘revolução’ no ritmo do desenvolvimento
justificam que o próprio Manifesto Comunista se refira nestes termos entusiásticos à
vitória da burguesia sobre as antigas classes dominantes: 166

“A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário (...).


Foi ela que mostrou aquilo de que a actividade humana era capaz. (...) No decurso de um
domínio de classe de um século apenas, criou forças produtivas mais numerosas e mais
colossais do que o que tinham feito todas as gerações passadas. O controlo das forças da
natureza, o maquinismo, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a
vapor, os caminhos de ferro, os telégrafos eléctricos, o desbravamento de continentes inteiros,
a navegabilidade dos rios...: que século anterior teria suspeitado que semelhantes forças
produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social?”

Em vários campos, aliás, se fizeram sentir as consequências da revolução


industrial: “tudo se passava - escreve Teixeira Ribeiro 167 - como se tivesse havido uma
revolução nos costumes, nos modos de vida, na mentalidade”. A industrialização, tal
como ela se processou na Inglaterra, arrastou consigo uma revolução económica, uma
revolução social e uma revolução nos costumes, que um autor apresenta nestes termos
expressivos:168
166
Ver Manifesto…, em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I, 106ss.
167
Cfr. Economia Política, cit., 180.
168
Cfr. M. PERROT, ob. cit., 74. As transformações da época da revolução industrial não
passaram despercebidas a Eça de Queirós, que sobre elas escreveu em 1888 (Notas Contemporâneas, Ed.
Livros do Brasil, Lisboa, s/d, 144/145): “ (…) E depois a crise social, pela consequente conversão das
classes rurais em classes industriais: a lavoura abandonada pela fábrica; uma afluência tumultuária às
cidades, fazendo que o trabalho cada vez rareie mais, sob a indefinida multiplicação da plebe operária; e
daí a formação dessas turbas esquálidas de proletários esfomeados e regelados, sem lugar na sociedade e
sem conforto na Natureza, rolando do meeting, onde a polícia os espanca, à taverna, onde o gin os
embrutece. (…) E ainda por cima, como complemento, a crise moral, a inquietadora degradação dos
costumes: as altas classes aristocráticas e plutocráticas refazendo a sociedade leviana e galante dos
108

“Transformar os costumes, os hábitos, os valores e os sonhos de uma população


camponesa ou artesana de ritmos solares e ociosos; destruir comunidades familiares para
sujeitar indivíduos isolados às hierarquias da ordem industrial; amontoar essas pessoas
habituadas ao ar livre em sombrios tugúrios de bairros infectos, de cuja pavorosa
sobremortalidade falam todos os médicos dos anos 1830; fechá-las quinze horas (ou mais) por
dia em fábricas sujas, poeirentas, alternadamente geladas ou sufocantes, pois, em certas
fábricas, nunca se abre uma janela, invadidas pelo barulho que condena ao silêncio; amarrá-las
a um lugar, reduzi-las a um gesto, cada vez mais parcelar e repetido; persuadi-las, ao mesmo
tempo, de que este trabalho odioso é a única salvação, neste mundo e no outro, e de que um
indivíduo não somente vive apenas pelo seu trabalho, mas ainda de que só vale em função dele;
acrescentar assim ao peso arrasante da realidade a tremenda insinuação de discursos portadores
de ideologias alienantes; tal é o imenso drama da industrialização, a outra face do crescimento”.

4.5.4. - As novas técnicas da indústria moderna – particularmente as novas


fontes de energia utilizadas e o desenvolvimento dos transportes 169 - ajudam a
compreender que a indústria se concentrasse nas cidades. E aos centros industriais
afluiu uma enorme massa de gente miserável, atraída pela mira de conseguir emprego
na indústria, onde os salários eram de início mais elevados que na agricultura.
A revolução industrial provocou, com efeito, uma autêntica explosão
demográfica (um crescimento decenal de 10% no final do século XVIII e de 14% na
primeira década do século XIX, percentagens elevadíssimas, se recordarmos que o
maior aumento, numa década, antes de 1751, tinha sido de 3%), que provocou a
duplicação da população inglesa em 50 anos. A população do Reino Unido (cerca de
seis milhões e meio em 1750) mais que triplicou entre 1750 e 1850 e duplicou entre
1800 (dez milhões e meio de habitantes) e 1850 (cerca de 21 milhões).
Paralelamente, regista-se um crescimento acelerado da população urbana. Em
1750, Londres (a maior cidade da Europa) tinha 750 mil habitantes, e Edimburgo
rondava os 50 mil habitantes, mas nenhuma outra chegava a esta cifra; em 1801, oito
cidades tinham mais de 50.000 habitantes, passando a ser 29 em 1851 (das quais nove
Stuarts; a sensualidade bruta, que é o fundo do temperamento inglês, irrompendo, quebrando todas as
barreiras, as mais fortes, mesmo as da respeitabilidade; o amor do luxo, do gozo, da ostentação e do
dinheiro que os compra, tornado o supremo motor da existência; o jogo adoptado como a profissão
melhor por essa imensa classe, composta da ‘bela gente’, que aposta pelo jockey, pelo remador, pelo
atleta, pelo andarilho e pelo boxador; a honestidde apagando-se nos sentimentos como nas transacções – o
negociante falsificando tudo o que vende, as famílias desfazendo-se no tribunal do divórcio, os filhos das
velhas casas históricas roubando nos campos de corridas…”.
169
Marx realça, a este respeito, a importância da máquina a vapor de Watt: só com ela se
conseguiu “um primeiro motor capaz de produzir por si a sua própria força motriz consumindo água e
carvão, e cuja potência é inteiramente controlada pelo homem. Móvel e meio de locomoção, citadino e
não campestre como a roda hidráulica, permite concentrar a produção nas cidades em vez de a disseminar
pelos campos. Finalmente, é universal na sua aplicação técnica e o seu uso depende relativamente pouco
das circunstâncias locais” (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 275). Deve salientar-se, porém, que, em 1815, a
máquina a vapor ainda não era correntemente utilizada fora da indústria mineira (que a lançara), embora
fosse já utilizada em várias indústrias (Cfr. E. J. HOBSBAWM, Era das Revoluções, cit., 57).
109

com mais de cem mil habitantes); em meados do século XVIII metade da população
vivia nas regiões rurais; em 1851,o número de citadinos ultrapassou pela primeira vez o
dos camponeses: entre 1801 e 1851, a população de Manchester aumentou de 35.000
para 353.000 habitantes; a de Leeds, de 53.000 para 152.000; a de Sheffield, de 46.000
para 111.000; a de Birmingham, de 23.000 para 181.000; em 1881, dois em cada cinco
ingleses e galeses habitavam em seis áreas urbanas.170
A indústria, cada vez mais mecanizada, não absorvia toda aquela massa de
trabalhadores em busca de emprego. As condições de trabalho nas fábricas eram
péssimas e os salários eram muito baixos para longas jornadas de trabalho: os
trabalhadores estavam ainda sujeitos aos castigos e às multas com que os patrões
impunham as ‘normas de produção’, e eram muitas vezes forçados a habitar em ‘casas’
arendadas pelo patrão e a deixar o que restava do seu salário na loja do patrão, a troco
de alimentos, que eram obrigados a comprar nessa loja. As doenças profissionais (um
produto da indústria capitalista) atingiam percentagens elevadas dos trabalhadores de
várias indústrias.171 A pobreza material atingia a grande massa das populações
trabalhadoras, de tal forma que, ainda em 1851, cerca de 10% da população inglesa era
consituída por indigentes.
As cidades não estavam preparadas nem tinham condições para receber tanta
gente. Dada a poluição do ar e da água, morria-se nas cidades de doenças respiratórias
e intestinais, sendo frequentes as epidemias de cólera e de tifo. A única forma de ajuda
era o regulado pelas Poor Laws, muitas vezes reveladoras de grande impiedade para
com os pobres.172 O resultado foi a degradação humana e a generalização das situações
de miséria moral e social, com o alcoolismo, a prostituição, as doenças mentais
frequentes, a violência e a criminalidade crescentes, o infanticídio e o suicídio em
grande escala. A intervenção urbana para melhorar as condições de vida deste
proletariado miserável só começou depois de 1848, quando as epidemias saídas dos

170
Cfr. F. BÉDARIDA, “Le Socialisme…, cit., I, 259; M. DOBB, A Evolução..., cit., 314;
MORTON/TATE, O movimento operário…, cit., 16; E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 28, 33,
121 e 226. Em 1830, Londres era a maior cidade europeia, com mais de um milhão de habitantes. No
continente europeu, Paris tinha pouco mais de 500 mil hbitantes e, fora da Grã Bretanha, apenas 19
cidades europeias tinham mais de cem mil habitantes (cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções,
cit., 230).
171
Eric Hobsbawm dos amoladores nas cutelarias de Sheffield: em 1841, tinham os pulmões
arruinados 50% destes trabalhadores na casa dos trinta anos, 70% na casa dos quarenta e 100% dos que
tinham50 anos ou mais (A Era das Revoluções, cit., 282).
172
A Poor Law Act de 1834 – informa E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 125 –
“confinava os trabalhadores em oficinas semelhantes a prisões, separando violentamente os maridos das
mulheres e dos filhos, a fim de punir os pobres pela sua miséria e de os desencorajar da perigosa tentação
de procriarem futuros indigentes”.
110

bairros pobres começaram a matar também os ricos, tomados de pânico também pelos
sinais de revolução social que começavam a sair desses mesmos bairros, generalizando
o temor de que os seus habitantes, como bárbaros, invadissem a cidade…173

4.5.5. – Na verdade, estudos prospectivos de autores como Paul Bairoch vieram


mostrar que, nos finais do século XVII, o nível do rendimento dos países hoje ditos
desenvolvidos era idêntico, ou mesmo, em certos casos e em certos domínios, inferior
ao da maioria dos países hoje designados de subdesenvolvidos. Deixando de lado as
sociedades primitivas (cerca de 15% a 20% da população mundial), as diferenças entre
os vários países não andariam, em 1700, mais de 50% a 70% acima ou abaixo da média.
Por volta de 1750, segundo os cálculos de Paul Bairoch, o PNB per capita (em dólares e
a preços de 1960) rondaria os US$ 182 para os actuais países desenvolvidos e os US$
188 para os actuais países subdesenvolvidos. Estes valores atingiram, neste último
grupo de países, US$174 em 1860 e US$192 em 1913; nos países hoje ‘desenvolvidos’
os valores atingidos foram US$324, em 1860 e US$662, em 1913. O PIB per capita
cifrou-se, em 1980, em US$3000 para os ‘países desenvolvidos’ e em US$ 410, para os
‘países subdesenvolvidos’.
Esta realidade traduz uma outra: a destruição das estruturas produtivas dos
países colonizados, a partir da implantação do capitalismo à escala mundial. Com efeito,
o PNB mundial reparte-se assim, entre os actuais países desenvolvidos e o actualmente
chamado Terceiro Mundo, entre 1750 e 1990 (em milhares de milhões de dólares, com
o poder de compra de 1960): 1750 (35/112); 1860 (118/159); 1900 (297/184); 1928
(568/252); 1970 (2450/810); 1990 (4350/1730). Como se vê, o valor do produto dos
actuais países desenvolvidos só em 1900 ultrapassou o valor do produto dos actuais
países do Terceiro Mundo.174
A ‘revolução industrial’ trouxe consigo um enorme aumento da produtividade e
da capacidade de criação de riqueza (foi como se a economia levantasse voo, na síntese
de Eric Hobsbawm175). Mas ela trouxe também a miséria degradante para milhões de
173
Com efeito, de vários lados surgiam sinais da consciência da exploração dos trabalhadores.
Eric Hobsbawm refere uma revista da época (Lancashire Co-operator) em que se escreve que “não pode
haver riqueza sem trabalho” e que “ o trabalhador é a fonte de toda a riqueza”, lançando este conjunto de
perguntas e respostas: “Quem produziu os alimentos? O trabalhador mal alimentado e empobrecido.
Quem construiu todas as casas e armazéns, e os palácios, que são propriedade dos ricos, que nunca
trabalham nem produzem nada? O trabalhador. Quem fia o fio e tece o pano? O fiandeiro e o tecelão.
Todavia, o trabalhador continua pobre e destituído, ao passo que aqueles que não trabalham são ricos e
possuem abundância em excesso”. (A Era das Revoluções, cit., 285).
174
Cfr. P. BAIROCH, Mitos…, cit., 134.
175
Cfr. A Era das revoluções, cit., 45.
111

trabalhadores e um enorme fosso entre os ricos e os (trabalhadores) pobres (em 1867,


77% dos 24 milhões de ingleses eram trabalhadores manuais, em geral pobres).176
“Na realidade – sublinha Paul Samuelson -, nenhum dos romances de Dickens
exagerou as condições do trabalho infantil, da duração do trabalho diário ou da
segurança e sanidade vigentes nas fábricas do princípio do século XIX. A regra eram 84
horas de trabalho semanal. Exigia-se já bastante trabalho de uma criança de seis anos e,
quanto aos homens, se um perdia dois dedos numa máquina, ainda lhe restavam oito
para trabalhar”.177
Os ‘sociólogos’ do tempo falavam de “escravos brancos”, condenados a
“trabalhar até à morte”, morte que chegava por volta dos 37 anos (“death for simple
overwork”, na expressão do Dr. Richardson, um médico de Londres). Articulistas do
jornal Times comparavam a situação dos trabalhadores ingleses com a dos escarvos
americanos e o comportamento dos empresários ingleses com o comportamento dos
donos de escravos (aqueles alugam os seus trabalhadores quotidianamente, estes
alugam-nos por toda a vida) e parecem considerar mais favorável a situação dos
escravos. Porque os empregadores capitalistas fazem trabalhar os seus assalariados até à
morte, durante dezasseis horas por dia, usando o aguilhão da fome em vez do chicote,
pagando um “salário que um cão recusaria”, enquanto muitos donos de escravos
alimentam bem os seus escravos e fazem-nos trabalhar moderadamente.178
Ao penetrar na indústria, o capitalismo afirmou-se plenamente como civilização
das desigualdades, radicalizando a estrutura social e tornando patentes as suas
contradições aos olhos dos observadores atentos. Na síntese de Hobsbawm, “a fome da
população era a contrapartida da acumulaçõs dos ricos”.179
E em um número de 1813 escrevia-se na Edimburgh Review:180 “Nunca em toda
a história do mundo se verificou um fenómeno comparável ao progresso da Inglaterra
no decurso do século passado; nunca e em parte alguma houve uma tal multiplicação
de riqueza e de luxo; nunca as artes conheceram tão admiráveis invenções; nunca a
ciência e a técnica produziram tanto; nunca a cultura do solo progrediu tanto; nunca o
comércio se expandiu assim - e contudo este mesmo século viu o número dos

176
Cfr. E. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 221.
177
Cfr. P. SAMUELSON, Economia…, cit., 154.
178
Para mais indicações acerca das condições de vida que marcaram as classes trabalhadoras
após a revolução industrial, na Inglaterra e na França, ver K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 194,
204-212, 562/563 e 616, onde se transcrevem documentos e depoimentos da época; VILLERMÉ, ob. cit.
179
E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 68/69.
180
Apud F. BÉDARIDA, ob. cit., 258.
112

indigentes quadruplicar na Inglaterra para atingir hoje um décimo da população total;


apesar das somas enormes vindas do imposto ou de donativos privados e consagradas à
assistência pública, apesar da destruição das guerras que arrebanharam muita gente, a
tranquilidade do país está perpetuamente ameaçada pela violência de multidões
esfomeadas”.
Após uma visita a Manchester, em 1835, Tocqueville comentou: “Deste imenso
esgoto jorra a maior corrente de actividade humana para fertilizar todo o mundo. Desta
suja sarjeta corre ouro puro. Aqui a humanidade atinge o seu mais absoluto
desenvolvimento e o auge da brutalidade. Aqui a civilização opera os seus milagres e o
homem civilizado quase se torna num selvagem”.181
Em 1845, caracterizando a situação na Inglaterra, Engels escreveu que a
burguesia e o proletariado “são dois povos bem diferentes”.182 publicou o seu estudo
sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra) o Primeiro Ministro
Benjamin Disraëli publicou Sybil: or the Two Nations, trabalho em que reconhece:
“Não existe comunidade na Inglaterra, existe apenas um agregado... A nossa rainha...
reina sobre duas nações... Duas nações entre as quais não há relação nem simpatia;
que são tão ignorantes dos costumes, dos pensamentos e dos sentimentos uma da outra
como se morassem em zonas diferentes ou fossem habitantes de planetas diferentes;
181
Apud E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 43. Eric Hobsbawm fala de um país de
“homens famintos vivendo numa sociedade em que reinava a abundância, escravizados num país que se
orgulhava da sua liberdade, procurando pão e esperança e recebendo em troca pedras e desespero” (cfr.
Indústria e Império, cit., I, 134, obra em cujo capítulo IV o autor analisa os efeitos sociais da
industrialização).
182
Cfr. A Situação…, cit, 50 e 133. Engels cita o relatório do pároco de um dos bairros operários
mais populosos de Londres: “Esta paróquia tem mil e quatrocentas casas habitadas por 2.795 famílias, ou
seja, cerca de 12.000 pessoas. O espaço ocupado por esta numerosa população não atinge 400 jardas
quadradas e, num tal amontoado, não é raro encontrar um homem, a mulher, quatro ou cinco filhos e, por
vezes, também o avô e a avó, numa única divisão de dez a dize pés quadrados, onde trabalham, comem e
dormem. Julgo que antes de o bispo de Londres ter atraído a atenção do público para esta paróquia tão
miserável, ela era tão desconhecida da parte ocidental da cidade como o são os selvagens da Austrália ou
ilhas do mar do sul”. E cita também Thomas Carlyle:”Quem não vê que os trabalhos que xigem apenas
força física não são pagos de acordo com as tabelas inglesas, mas a um preço próximo do sal´rio irlandês,
quer dizer, a pouco mais do que aquilo que é necessário para não morrer de fome trinta semanas por ano,
comendo batatas da pior qualidade? Quem não vê que a diferença ainda existente diminui com a chegada
de cada novo vapor vindo da Irlanda?”. É que os trabalhadores irlandeses viviam no limiar da pura
susbsitência fisiológica e eram utilizados como exército industrial de reserva para forçar os trabalhadores
ingleses a aceitar salários ainda mais baixos. No livro em referência, Engels cita um outro relatório da
época referindo a situação dos trabalhadores irlandeses em Manchester (ob. cit., 97): “É frequente todos
os membros de uma família irlandesa estarem amontoados num mesmo leito; muitas vezes, um monte de
palha suja e de velhos sacos servem de coberta a um amontoado confuso de seres, atingidos pela
necessidade, pelo embrutecimento e pela licenciosidade. É frequente os inspectores encontrarem duas
famílias numa casa de duas divisões. Uma das divisões serve de quarto de dormir para todos e a outra de
casa de jantar e de cozinha comum. Encontrou-se muitas vezes mais de uma família habitando numa cave
húmida, onde doze a dezasseis pessoas se amontoavam numa atmosfera pestilencial. A esta e outras
formas de doença se associava a criação de porcos, aí se deparando com situações verdadeiramente
abjectas e das mais revoltantes”.
113

que são formadas por uma educação diferente; que se alimentam de alimentos
diferentes, que se regem por costumes diferentes, que não são governadas pelas
mesmas leis”.183[itálico nosso. AN]

4.5.6. – À medida que ia vivendo a sua própria revolução económica e social,


com a implantação e o desenvolvimento da indústria capitalista, a Inglaterra sofria a
influência da independência da América (1775-1783) e da Revolução Francesa. Uma e
outra foram acolhidas de modo diferente pelas elites e pelo povo, em especial a
Revolução Francesa.184
Em 1790, Edmund Burke publicou o seu Reflections on the French Revolution,
livro em que atacava a Revolução Francesa e as ideias democráticas que chegavam do
outro lado da Mancha, nomeadamente o ideário jacobino. Em resposta a Burke, Tom
Paine veio defender os ideais revolucionários, num livro que deixou marcas (apesar de
ter sido imediatamente proibido), The Rights of Man. Paine ridiculariza a monarquia e
defende a República e o direito à revolução, fazendo propostas particularmente

183
Apud T. W. HUTCHISON, ob. cit., 20. Referindo-se à Rússia de 1905, Lénine fala
igualmente de duas nações, para marcar a diferença entre os ricos e os pobres.
Guardadas as devidas distâncias, algo de semelhante se passa hoje: graças aos prodigiosos
avanços da ciência e da tecnologia, nunca a produtividade do trabalho foi tão elevada como nos nossos
dias. Apesar disso, as desigualdades não cessam de aumentar, a pobreza extrema atinge milhões de seres
humanos, a exclusão social (a “nadificação do outro”, na expressão terrível do cineasta brasileiro Walter
Salles) é uma vergonha do tempo que vivemos. Perante estas realidades (de ontem e de hoje), ganha pleno
sentido o que um dia escreveu Aneurin Bevan: “grande parte do montante do capital de que dispomos
actualmente não é mais do que o resultado dos salários que os nossos pais não receberam” (apud P.
BARAN, A Economia Política…, cit., 367).
De duas nações pode falar-se ainda hoje para caracterizar a situação daqueles países em que a
desigualdade é tão grande que uma boa parte da população como que se encontra excluída da
comunidade. Entre estes contam-se vários países da América Latina, aqueles que o economista brasileiro
Edmar Bacha caracterizou através da expressão países tipo Belíndia (The Belgium in India Situation –
países onde, ao lado de um pequena Bélgica de muito ricos, subsiste uma grande Índia de gente
miserável).
Na verdade, a exclusão social leva porventura ainda mais longe a separação entre as duas nações.
Porque a “nadificação do outro” (na expressão certeira e terrível do cineasta brasileiro Walter Salles)
como que significa, nestes países, a eliminação dos excluídos, reduzindo-os a nada. Os explorados, apesar
de o serem, estão dentro do ‘sistema’, porque, por definição, sem explorados não podem viver os
exploradores. Por isso mesmo, em alguma medida, estes não podem ignorar em absoluto a necessidade de
sobrevivência daqueles. Ao invés, os excluídos não contam para o ‘sistema’: eles não são trabalhadores e
muito menos são clientes das estruturas produtivas dominantes. De facto, é como se não existissem: se
desaparecessem todos, da noite para o dia, o ‘sistema’ não notava qualquer diferença. Talvez até ficasse
aliviado do pesadelo resultante do temor de que um dia os excluídos da cidade resolvam invadir a cidade,
como se temia, nos séculos XVIII e XIX, a invasão dos bárbaros que habitavam as periferias das cidades
industriais.
Recordando a tese kantiana de que a pessoa humana não tem preço, tem dignidade, Fábio Konder
COMPARATO (ob. cit., 8) comenta que, nas sociedades capitalistas actuais, “muitos seres humanos nem
preço têm; perdem até mesmo a sua condição desprezível de mercadoria. São pesos mortos para a
organização econômica capitalista, e o seu desaparecimento em massa produz benefícios evidentes ao
funcionamento do sistema”.
184
Ver MORTON/TATE, ob. cit., 23-39.
114

avançadas no que concerne ao papel do estado. O estado democrático deveria gastar


menos dinheiro com as forças armadas, deveria abolir as sinecuras em benefício das
elites dominantes e devria dar combate à corrupção. Deste modo, poderia eliminar os
impostos indirectos (que afectavam sobretudo os mais pobres185) e poderia cobrar mais
receitas, através de um imposto progressivo sobre o rendimento, receitas que lhe
permitiriam garantir educação e outros serviços públicos para todos e pagar pensões de
velhice aos que, por força da idade, deixavam de poder ganhar a sua vida através do
trabalho.
Os radicais britânicos foram-se organizando em sociedades (quase sempre
constituídas em reuniões realizadas em tabernas) que visavam “esclarecer o povo por
que motivo um homem que trabalha durante treze ou catorze horas por dia durante toda
a semana não pode manter a sua família” (palavras de um operário de Sheffield,
membro de uma destas sociedades, a mais avançada de entre elas). A partir de 1792, as
várias sociedades deste tipo existentes na Inglaterra, na Escócia, na País de Gales e na
Irlanda decidiram federar-se à volta da London Corresponding Society, que tinha, neste
ano, três mil membros. Estas sociedades, em cujas iniciativas se comemorava a
Tomada da Bastilha ao som da Marseillaise, tinham como primeiro objectivo o
sufrágio universal, na convicção de que, se as “classes baixas” (os “homens sem
propriedade”) participassem no Parlamento, era possível transformar a sociedade.
O Governo reagiu de imediato e com violência, reprimindo não só os dirigentes
e os membros destas sociedades, mas também os taberneiros que deixavam usar os
seus estabelecimentos para reuniões políticas, e os tipógrafos, os editores e os livreiros
que produziam e vendiam literatuta sediciosa. Tendo-se verificado que, em alguns
locais, a tropa simpatizava com os ‘sediciosos’, o Governo contratou mercenários
(sobretudo alemães) para os combater e infiltrou nas organizações dos trabalhadores
provocadores e espiões. A acusação pública defendia em tribunal que o simples facto
de se defender a reforma do Parlamento, ainda que por meios legais e pacíficos, já era
suficientemente perigoso para justificar a condenação dos dirigentes das referidas
sociedades (acusados de serem agentes do jacobinismo estrangeiro…). Apesar de
alguns tribunais (especialmente em Londres) se recusarem a condená-los, a
generalidade dos juízes fazia frente comum com o Governo e muitos daqueles
dirigentes foram condenação a pesadas penas de prisão e à deportação.
185
Foram estes que suportaram os custos elevados das guerras com a França (1790-1815),
calculando-se que um trabalhador que ganhasse 10 shillings por semana pagava cerca de 50% de
impostos indirectos. Cfr. MORTON/TATE, ob. cit., 41.
115

O ano de 1795 foi um ano de grandes dificuldades, ao nível do emprego e da


diminuição do poder de compra dos salários, graças ao aumento acentuado do custo do
trigo.186 Neste contexto, as sociedades federadas à volta da London Corresponding
Society foram perdendo influência. Em 1796/97, falhou uma planeada tentativa de
desembarque do exército francês; em 1797 houve mesmo revoltas da Marinha de
Guerra em Spithead e em The Nore; o Governo reagiu com repressão violenta e o
Parlamento aprovou, em Julho deste ano, uma lei que proibia e suprimia “as
sociedades dos Ingleses Unidos, dos Escoceses Unidos, dos Irlandeses Unidos, dos
Bretões Unidos (…), a London Corresponding Society e as suas equivalentes em
qualquer cidade ou localidade”; em 1798, graças a um espião infiltrado, o Governo
teve conhecimento de um levantamento nacional que seria apoiado pela intervenção de
tropas francesas: os massacres habituais anularam esta última tentativa de revolta.

Mas a história da organização dos trabalhadores britânicos, quer com objectivos


meramente sindicais, quer com objectivos políticos, não acaba aqui. Apesar da
ilegalidade a que as remetiam as Combinations Acts (aprovadas logo em 1799 e 1800),
várias organizações da classe operária foram surgindo, ao longo do primeiro quartel do
século XIX, sob a forma de lojas, clubes ou sociedades mutualistas (estas últimas
legalmente reconhecidas pela Friendly Societies Act, de 1793).187
O objectivo destas organizações, cujos membros provinham muito mais das
indústrias tradicionais (tipógrafos, alfaiates, chapeleiros, carpinteiros, etc.) do que das
indústrias modernas saídas da ‘revolução industrial’, era não só o de assegurar
186
A situação atingiu tal gravidade que os juízes de Berkshire, perante a evidência de que a
generalidade dos trabalhadores não podia, com o salário recebido, alimentar as suas famílias, decidiram
adoptar o que hoje chamaríamos uma escala móvel de salários (a famosa escala de Speenhamland), que
se traduzia em subsidiar os salários com fundos comunais, em função do preço do trigo. Cfr.
MORTON/TATE, ob. cit., 34/35.
187
Estas leis proibiam também as associações de patrões. Mas, apesar de estas serem muito
frequentes, não se conhece nenhum caso em que os patrões tenham sido condenados. Sobre a aplicação
destas leis aos trabalhadores, ver MORTON/TATE, ob. cit., 39ss. Adam Smith deixou este ponto muito
claro: “Tem-se dito – escreveu ele em Riqueza das Nações, cit., I, 177/178 - que é raro ouvir-se falar de
coligações de patrões, enquanto se ouve com frequência falar nas dos operários. Mas quemquer que, com
base nesse facto, imagine que os patrões raramente se coligam é tão ignorante do mundo como deste
assunto. Os patrões mantêm sempre e por toda a parte uma espécie de acordo tácito, mas constante e
uniforme, tendente a que os salários do trabalho se não elevem para além da taxa que vigora no momento.
A violação de tal acordo é, em toda a parte, considerada como o mais impopular dos actos e constitui uma
espécie de motivo de censura a qualquer patrão entre os seus próximos e iguais. É raro, na verdade,
ouvirmos falar desse acordo porque ele corresponde à situação habitual, pode mesmo dizer-se natural, que
jamais é comentada. Às vezes, os patrões entram também em coligações específicas para fazer descer os
salários do trabalho ainda abaixo dessa taxa. Estas são sempre organizadas debaixo do maior silêncio e
segredo, até serem postas em prática e, quando os trabalhadores cedem, como por vezes acontece, sem
opor resistência, as outras pessoas nunca chegam a ouvir falar delas, por muito gravemente que pesem
sobre os trabalhadores”.
116

protecção aos seus aderentes mas também o de fazer frente à baixa dos salários, por
vezes mediante o recurso à greve. No que se refere às friendly societies, a sua primeira
grande preocupação era muitas vezes a de proporcionar um funeral digno aos seus
associados, uma vez que os funerais e os velórios eram caros, dentro da tradição rural,
a que estes trabalhadores continuavam fiéis, de prestar tributo aos mortos.188
Perante as condições de miséria em que viviam, a primeira atitude dos operários,
principalmente nos momentos de crise, foi a de culparem as máquinas pelo desemprego,
o que levou à sua sabotagem e destruição, numa fúria de que foram primeiras vítimas as
Jennies de Hargreaves e, mais tarde, durante a grande revolta dos camponeses do Sul,
em 1832, também as máquinas agrícolas. Aliás, os pequenos comerciantes e os
lavradores sempre estiveram solidários com as acções dos operários tendentes à
destruição ou à sabotagem das máquinas, convencidos de que a inovação afectava a
estabilidade das suas vidas. Como bem observa Marx, “é preciso tempo e experiência
antes que os operários, tendo aprendido a distinguir entre a máquina e o seu emprego
capitalista, dirijam os seus ataques não contra o meio material de produção mas contra o
seu modo social de exploração”.189
Em certas actividades, porém, a organização dos trabalhadores, ao longo da
segunda metade do século XVIII, visava abertamente a luta por melhores salários, pela
diminuição da jornada de trabalho e por melhores condições de trabalho. Foi o caso dos
mineiros, dos cuteleiros, dos trabalhadores da construção naval, dos alfaiates,
chapeleiros, moleiros, marceneiros e tipógrafos, que desencadearam várias greves,
muitas vezes acompanhadas de actos de violência e de destruição de matérias-primas e
de máquinas, para pressionar os patrões e impedir o trabalho dos fura-greves, na
tentativa de obter resultados a curto prazo. É que não havia organização nem fundos
capazes de apoiar os trabalhadores grevistas, e estes não podiam passar muito tempo
sem trabalhar (isto é, sem o salário). Por isso, uma greve que não fosse ganha
rapidamente era uma greve perdida.190
Em 1804/1805, os tecelões escoceses desencadearam uma greve por melhores
salários, que mobilizou trabalhadores de toda a Escócia e que só terminou após violenta
repressão, que culminou com a prisão e a condenação de todos os membros do comité
de greve. Vendo que todas as acções que desenvolvessem para melhorar a sua situação
eram consideradas ilícitas e que os trabalhadores envolvidos eram considerados
188
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 124.
189 ?
Cfr. K. MARX, Le Capital, trad. J. Roy, cit., 307.
190 ?
Cfr. MORTON/TATE, ob. cit., 19-23.
117

“perigosos agitadores que era necessário vigiar e, se possível, esmagar”, os


trabalhadores mais organizados e mais esclarecidos recorreram com frequência a formas
de organização e de luta secretas e clandestinas, utilizando meios violentos a par das
acções legais.
Entre estas organizações assumiu papel importante o chamado Movimento dos
Luditas (cujo principal dirigente foi Ned Ludd, um tecelão especializado), que
desenvolveu a sua acção entre 1811 e 1817, semeando o pânico entre as elites
dominantes. A acção dos luditas traduziu-se ainda, pela última vez na Grã Bretanha, na
destruição de máquinas (principalmente na indústria de malhas), mas adquiriu já o
significado mais fundo de uma revolta contra o regime social existente.
Em 1812 o Parlamento aprovou uma lei que veio considerar a destruição de
máquinas um crime passível da pena de morte. O Governo recorreu à força (utilizando
mais soldados do que os enviados para a Península Ibérica para enfrentar os generais
de Napoleão). Mas os luditas aguentaram-se, porque as autoridades (apesar dos espiões
infiltrados), não conseguiam identificar os membros das organizações secretas do
movimento, e porque, com frequência, os soldados confraternizavam com aqueles que
deviam perseguir.191
Liderados pelo ‘General’ Ludd, os luditas publicaram panfletos ameaçando os
patrões que não destruíssem ou pusessem de lado as “tosquiadoras mecânicas”
(máquinas que executavam uma operação até aí a cargo de trabalhadores altamente
especializados), prometendo abater o “velho imbecil, George III, o seu filho ainda mais
idiota, todos os seus pérfidos ministros, todos os nobres e tiranos”, e manifestando o
desejo de que “o imperador francês nos ajude a sacudir o jugo do governo mais
corrompido e mais tirânico que jamais existiu”. Como se diz acima, estas esperanças
não se concretizaram.
A aprovação da Lei dos Cereais em 1815 veio mostrar aos trabalhadores que o
Parlamento estava ao serviço dos grandes proprietários. Seguiu-se um período de
revoltas em várias regiões da Grã Bretanha, que denotaram uma tomada de consciência
política por parte das massas trabalhadoras. Em 1817, os tecelões de Manchester
organizam uma marcha de protesto com destino a Londres, que ficou conhecida como

191
MORTON/TATE (ob. cit., 46) transcrevem uma interessante declaração do Duque de
Newcastle a este propósito: “A grande dificuldade reside nesta quase impossibilidade de obter
informações sobre os movimentos e as intenções dos revoltosos: está tudo tão bem organizado e agem de
uma forma tão secreta, além do facto de ninguém ousar opor-se-lhes com receio de arriscar a vida, que é
difícil descobri-los… Neste momento, está a realizar-se uma espécie de negociações entre os comités
formados pelos delegados dos operários descontentes da indústria de malhas, os chapeleiros e os patrões”.
118

a Marcha dos Blanketeers (de blankets, os cobertores que eles produziam e que
levavam sobre os ombros durante a marcha), atacada com violência e terminou com a
habitual onda de prisões.192

4.5.7. - Em 1824 e 1825 são aprovadas duas leis que autorizam a criação de
sindicatos e o recurso à greve, embora punindo a intimidação e o uso da violência (só
em 1871 e 1875 seriam promulgadas leis que reconheciam maior liberdade aos
sindicatos).193 No espaço de alguns meses, apesar dos esforços do patronato e do poder
político par destruir os jovens sindicatos, assistiu-se a uma autêntica explosão de
organizações sindicais e em 1827 surgiu o primeiro jornal sindical, o Trades’
Newspaper.
Os sindicatos tinham, porém, regras muito apertadas de recrutamento, efectuado
sobretudo entre os operários qualificados. Só depois de 1829 se inicia, a partir dos
distritos de implantação da indústria têxtil, no Lancashire, o movimento que levaria à
organização de sindicatos modernos, movimento que conheceu o seu ponto alto em
1830, com a fundação, por John Doherty, da National Association for the Protection of
Labour (NAPL), que em 1831 afirmava ter 100 000 associados (não só trabalhadores
da indústria têxtil, mas também mecânicos, moldadores, mineiros, operários cerâmicos
e da indústria de lanifícios). O seu semanário (The Voice of People) atingiu uma
tiragem de 3 mil exemplares, tendo a NAPL organizado e apoiado várias greves e
manifestações a favor da lei da dez horas de trabalho diário. Como muitas
organizações deste tipo naquela época, viria a soçobrar em 1832.
Por esta altura, começa a ser utilizada, na Grã-Bretanha e na França, a
expressão classe trabalhadora e, na década de 1820, surgiu o conceito e o termo
socialismo. Também por volta de 1830 começam a desenvolver-se iniciativas no
sentido da formação de sindicatos gerais, de âmbito nacional, abrangendo na
solidariedade operária um número crescente de trabalhadores de todo o país. O
propósito deste movimento sindical era o de criar as condições para a greve geral, que
o Partido Cartista analisou também como método de acção política. Mesmo depois do

192
Os tecelões manuais (cerca de meio milhão) foram uma das classes profissionais que
sofreram com o advento de industrialização: “morriam progressivamente de fome na esperança vã de
competirem com as novas máquinas, trabalhando mais por menos dinheiro” (E. J. HOBSBAWM,
Indústria e Império, cit., I, 131).
193
Segundo E. J. HOBSBAWM (últ. ob. cit., I, 174), a legislação de 1824 ficou a dever-se ao
empenho dos Filósofos Radicais, convencidos de que, uma vez autorizados, os sindicatos cedo
evidenciariam a sua ineficácia, o que levaria os trabalhadores a não mais se interessarem por eles.
119

colapso dos sindicatos gerais em 1834, permaneceu muito viva no mundo do trabalho
a ideia de que a grande arma dos trabalhadores era a solidariedade operária
permanente, um código moral, que condenava, em primeiro lugar, os fura-greves
(blacklegs).194
Paralelamente, regista-se, a partir de 1824, uma grande expansão do movimento
cooperativo, com base nos ensinamentos e no impulso de Robert Owen. Este regressou
da América em 1829, após o fracasso da sua colónia New Harmony. Para Owen, o
primeiro objectivo de toda a existência é ser feliz, sendo que, para este admirador de
Bentham, “ a felicidade não se pode alcançar individualmente, porque é inútil esperar
uma felicidade isolada: todos têm de participar dela ou os poucos que a alcancem
nunca hão-de disfrutá-la”. 195
No quadro do socialismo utópico, Owen concebeu uam
sociedade em que os próprios sindicatos se encarregassem de organizar a produção nas
indústrias cujos trabalhadores eles representavam, constituindo uma poderosa rede de
cooperativas cuja estrutura substituiria o estado. Mas o facto de Owen rejeitar qualquer
ideia de luta de classes levantou dificuldades na relação com os sindicatos e com os
dirigentes operários caldeados nas lutas contra o novo capitalismo industrial.

Entretanto - como observa A. Sedas Nunes196 - a burguesia industrial via-se


“envolvida num longo e rude conflito colectivo com os detentores tradicionais do
poder económico e político: os senhores da terra, que em seu próprio benefício haviam
legislado de modo a manterem artificialmente elevados os preços dos produtos
agrícolas e a limitarem severamente a importação de cereais”. Mas a verdade é que a
riqueza e o poderio económico da burguesia industrial eram agora bastante superiores
aos da aristocracia rural e mesmo da oligarquia financeira. Não admira, por isso, que o
velho compromisso de 1689 (mesmo com as alterações, favoráveis à burguesia, que lhe
foram sendo introduzidas) começasse a ser posto em causa a partir de 1815, exigindo a
burguesia industrial uma participação no poder político e nos benefícios daí
decorrentes em conformidade com a sua riqueza e a sua importância na economia do
país. Este movimento a favor da ‘reforma’ veio a traduzir-se no Reform Bill (1832),
que reflecte a nova composição de interesses e a consequente alteração do xadrez das
forças políticas, acabando com o monopólio político da aristocracia e da burguesia

194
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 286-289.
195
Apud E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 329.
196
Cfr. A. SEDAS NUNES, ob. cit., 289.
120

financeira, e outorgando à nova classe dirigente industrial o direito de representação no


Parlamento.
As classes trabalhadoras e a pequena burguesia, que tinham apoiado a luta pela
reforma, continuavam afastadas da participação política. Só que o proletariado
industrial não era agora o mesmo que, durante os primeiros tempos do capitalismo
industrial, tinha encarado a sua situação ora passivamente, ora desesperadamente.
Reduzidos à miséria os membros da antiga aristocracia operária (os trabalhadores
especializados) e empurrados para as cidades os camponeses sacrificados pelo
peocesso das enclosures (que por esta altura chegava ao fim), o aumento da dimensão
das novas unidades industriais provocou a concentração deste novo proletariado na
periferia das cidades industriais. E foi este proletariado que “organizou a reivindicação,
desencadeando-se, assim, uma luta de classes, não já (como antes) na parte alta da
estrutura social, entre industriais e latifundiários, mas entre operários e capitalistas”.197
Como reacção ao Reform Bill, 1833 foi um ano de violenta agitação por parte
dos trabalhadores. O grande prestígio de Owen levou muitos militantes da causa dos
trabalhadores a acreditar que a organização sindical a nível nacional poderia assegurar
às classes trabalhadoras “o domínio completo do fruto do seu trabalho”. Um jornal que
defendia os interesses dos trabalhadores escrevia, em 1834: “Se todos os membros do
sindicato forem eleitores e se este se conveter num órgão vital do Estado, erigir-se-á
omediatamente em Câmara do Trabalho. Tomará assim o lugar da actual Câmara dos
Comuns e orientará os problemas comerciais do país segundo os interesses dos ramos
que compõem as associações industriais. Esta é a escada de acesso que nos leva ao
sufrágio universal; começa nas nossas lojas, estende-se ao nosso sindicato geral,
abrange a direcção do comércio e absorve, finalmente, todo o poder político”.198
Dentro deste espírito, é criada, por iniciativa de Owen e John Doherty (o antigo
presidente da NAPL), a Society for Promoting National Regeneration, cujo objectivo
fundamental era a defesa da jornada de oito horas. No plano sindical, em Fevereiro de
1834 criou-se um grande sindicato geral, o Grand National Consolidated Trades
Union (GNCTU).199 Sucedem-se as greves e os lock-out, mas a acção adversa dos

197
Cfr. A SEDAS NUNES, op. loc. cit.
198
Citações colhidas em MORTON/TATE, ob. cit., 92/93.
199
Um jornal da época (citado por MORTON/TATE, ob. cit., 93) escreveu: “Há actualmente dois
Parlamentos em Londres, mas não hesitamos em dizer que o dos Trabalhadores é de longe o mais
importante e que dentro de um ou dois anos terá a maior influência. Este Parlamento é mais nacional do
que aquele e apresenta um corpo eleitoral muito mais vasto. O Sindicato compõe-se de cerca de um
milhão de membros que gozam do sufrágio universal”.
121

empresários e a repressão do governo, a par de dificuldades internas, levarão à


dissolução da GNCTU logo em Agosto de 1834, não sem antes ter animado uma
manifsetação que reuniu em Londres cem mil pessoas para protestar contra a
condenação e a deportação para a Austrália de seis trabalhadores que tinham criado
ilegalmente um sindicato de trabalhadores agrícolas.200 Por esta altura, acentuaram-se
as lutas pela fixação de um horário de trabalho máximo e registam-se os primeiros
sinais (ténues, é certo) de aceitação da contratação colectiva e da ideia de um salário
mínimo legal.201

4.5.8. - Historicamente, o aumento da jornada de trabalho verificou-se com o


advento do capitalismo. Nos séculos XVIII e XIX, os operários da indústria
trabalhavam por vezes 17 horas por dia, todos os dias, incluindo os domingos.202
A pretexto das dificuldades resultantes da baixa acentuada da população em
consequência da peste que assolou a Europa no século XIV, o primeiro Statute of
Labourers, de 1349, vem fixar a jornada de trabalho entre as cinco da manhã e as sete
ou oito da tarde, para todos os trabalhadores ‘industriais’ ou agrícolas, situação que se
manteve nos Estatutos de 1496 e de 1562.
No auge da revolução industrial, crianças e adolescentes trabalhavam nas
fábricas de dia e de noite, situação que se agravava nas épocas de crise da indústria, em
que o desemprego se acentuava ainda mais. Uma lei de 1819, que pretendia restringir o
trabalho das crianças, não chegou a ser aplicada. O regime legal não sofreu grande
alteração com o Factory Act de 1833, nos termos do qual a jornada de trabalho
ordinária nas fábricas (mesmo para crianças entre os 13 e os 18 anos) começa às 5.30
horas da manhã e acaba às 20.30 horas da tarde.203
No que se refere às mulheres, o Factory Act de 1844 veio limitar a doze horas o
respectivo horário de trabalho diário.204 Em 1847 uma outra lei aprovou a jornada de

200
Só em 1865 viria a ser criado, sem ser considerado ilegal, o primeiro sindicato de
trabalhadores agrícolas (inicialmente limitado à Escócia), facto que Marx considerou um “verdadeiro
acontecimento histórico”. Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 615.
201
Cfr. M. DOBB, A evolução…, cit., 389/390.
202
É conhecida a boutade de Napoleão: “como o povo come todos os dias, deve ser-lhe
permitido trabalhar todos os dias”.
203
Antes da aprovação desta lei, um médico de Londres defendeu, em depoimento prestado na
Câmara dos Comuns, a necessidade de “legislação para impedir que possa infligir-se a morte sob
qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é corrente nas fábricas) deve ser seguramente considerada
como um dos métodos mais cruéis de a infligir” (citado por K. MARX, O Capital, trad. J. Roy, cit, 209).
204
Em 1838, os homens adultos representavam apenas 23% do operariado fabril da indústria
têxtil (o grosso da mão-de-obra era constituído por mulheres e crianças). Informação colhida em E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 94.
122

trabalho de dez horas (regime que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1848, após um
período de transição desde 1.7.1847, em que vigorou a jornada de 11 horas). Mas só
em 1853 seria respeitada a lei que veio fixar em 60 horas o horário semanal máximo
para os homens adultos, na indústria têxtil e em algumas outras.
Em 1847, o Ten Hours Bill veio consagrar o horário de dez horas de trabalho
diário. Fizeram-se ouvir os clamores – que sempre acompanharam as leis do trabalho –
de que se tratava de uma intromissão inadmissível e ruinosa do estado na liberdade do
mercado e na liberdade contratual. E um economista como William Nassau Senior
alegou mesmo que o lucro dos patrões era obtido na última hora de trabalho, pelo que a
redução do horário de trabalho traria consigo fatalmente a diminuição da taxa de lucro,
pondo em causa a saúde da economia. Apesar de tudo, esta legislação acabou por ser
aceite e o Economist realçava, em 1867, “a sabedoria destas medidas”.205
Estes avanços são, manifestamente, o resultado das lutas dos trabalhadores e das
suas organizações a respeito de uma das questões mais sensíveis de sempre, o horário
de trabalho. Mas a aprovação destas leis poderá também ter contado com o apoio da
aristocracia rural, com o propósito de criar dificuldades à nova burguesia industrial, e
ainda com o apoio de um sector mais esclarecido e mais progressista dos industriais.
Estes compreenderam que não era de seu interesse deixar que o mercado livre e a livre
contratação individual, impondo horários de trabalho absurdos, provocassem a
exaustão dos trabalhadores e a sua incapacidade para desenvolver as suas
competências.
Para este segmento do patronato, a limitação do horário de trabalho passou a ser
considerada uma exigência do bom funcionamento do sistema capitalista, no estádio de
desenvolvimento alcançado em meados do século XIX. Análises da época referem que,
perante a restrição do horário de trabalho diário, os trabalhadores ficavam menos
exaustos e mais capazes de aprender e de utilizar novas técnicas, o que contribuía
parao aumneto da produtividade e para a prosperidade da indústria. Nesta lógica,
começou a ganhar terreno, mesmo entre alguns industriais, a ideia de que o bom
desempenho do capitalismo requer a intervenção do estado. Por outro lado, impunha-se
a ideia de que, nas relações industriais, o direito deve proteger a parte mais fraca. Lê-se
num relatório de 1864 da inspecção do trabalho: “o trabalho livre (se podemos
designá-lo assim), mesmo num país livre, exige o braço forte da lei para o proteger”.

205
Apud E. J. HOBSBAWM, últ. ob. cit.,177.
123

Foi neste contexto que se começou a praticar, nas décadas de 1840 e 1850, em
algumas indústrias e em algumas regiões da Grã-Bretanha, o sistema que ficaria
conhecido por semana inglesa (sem trabalho nos domingos e nos sábados da parte da
tarde). Ao mesmo tempo, desenvolveram-se outros métodos de melhoria dos lucros
diferentes dos que resultavam do aumento do horário de trabalho e da diminuição dos
salários, nomeadamente os ritmos mais intensivos de trabalho (para acompanhar
máquinas cada vez mais rápidas) e a remuneração em função dos resultados.206

4.5.9. - No plano político, começaram a desenvolver-se, com base na teoria do


valor-trabalho de Ricardo, novas ideias socialistas, expostas em livros e panfletos com
razoável repercussão. Em 1830 foi fundado o mais influente dos jornais empenhados
na difusão dos ideais socialistas, o The Poor Man’s Guardian. O aparecimento deste
periódico marca um ponto importante na história da luta ideológica. Para tornar a
imprensa inacessível aos leitores operários, o Governo lançou uma taxa sobre os
jornais. O Guardian recusou-se a aplicá-la, inscrevendo nas suas páginas esta
mensagem: “Publicado a despeito da Lei, para experimentar a força do Direito contra o
Poder”. Ao fim de alguns anos de luta e várias prisões, a taxa foi reduzida em 1836 (já
o Guardian tinha desaparecido, em 1835) e abolida em 1855. 207
Em 1834 constitui-se o primeiro partido operário que a história regista, o
Partido Cartista (constituído e dirigido, em grande parte, por operários industriais),
que haveria de desenvolver uma importante luta de massas (promoveu a primeira greve
geral da história, em 1842) até à sua dissolução em 1848.208
As reivindicações do Partido constavam da Carta do Povo (Peoples Charter) e
resumiam-se a estes seis pontos: sufrágio universal para os homens (as mulheres
continuavam fora da cidadania…) 209
; abolição da qualificação com base na

206
Sobre estas questões, ver E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 173.177 e G.
HODGSON, The Democratic Economy, cit., 81ss.
207
Em 1825 Johm Gray publicou Lecture on Human Hapiness; no mesmo ano, Thomas
Hodgskin publicou Labour Defended; em 11827, foi a vez de William Thompson publicar Labour
Rewarded; em 1838/1839, John Francis Bray publicaria Labour’s Wrongs and Labour’s Remedy. Uma
análise da literatura socialista desta época na Grã Bretanha pode ver-se em MORTON/TATE, ob. cit.,
68ss.
208
Um semanário próximo do cartismo (o Northern Star, dirigido pelo irlandês Fergus
O’Connor, uma das grande figuras do Cartismo) tinha em 1839 uma tiragem de 60.000 exemplares e um
número de leitores muito maior (cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 176). Sobre o
movimento cartista, ver P. SWEEZY, Socialismo, cit., 111-114; F. BÉDARIDA, “Le socialisme en
Angleterre…, cit., 319-328 e “Le socialisme anglais…, cit., 558-567; MORTON/TATE, ob. cit., 64ss e
102ss.
209
Por esta altura, só cerca de 840 mil homens, de entre os seis milhões de homens adultos,
tinham direito de voto. E as circunscrições eleitorais estavam organizadas de tal modo que cerca de 150
124

propriedade; parlamentos eleitos anualmente; igualdade dos colégios eleitorais; salário


para os parlamentares210; voto secreto.
Este programa foi na altura considerado revolucionário (subversivo), pois o
sufrágio universal era então encarado como autêntica ‘revolução permanente’,
acreditando-se que, mal os trabalhadores gozassem de poderes políticos, estaria em
perigo o elemento básico da sociedade capitalista - a propriedade privada dos meios de
produção.211 A maioria dos cartistas admitia também, aliás, que a adopção do sufrágio
universal se viria a traduzir na instauração de uma sociedade socialista: “Com o poder
sobre a lei – escreveu O’Brien, um dos cérebros do Cartismo, no Poor Man’s
Guardian de 30 de Novembro de 1833 -, o povo pode fazer tudo o que não é
naturalmente impossível; sem ele, não pode fazer nada”.
Os anos do Cartismo foram marcados por altos e baixos. O último fôlego dos
cartistas foi em 1847, ano em que Fergus O’Connor foi eleito para o Parlamento, e em
que foi aprovada a Lei das Dez Horas, após uma longa luta popular. A luta dos
cartistas foi sempre inspirada pela ideia de que “a democracia significa o poder dos
trabalhadores”. O Cartismo não conseguiu levar os trabalhadores ao poder (nem sequer
conseguiu o sufrágio universal), mas ele constituiu o primeiro movimento político
organizado da classe operária em todo o mundo, marcando a passagem a uma nova
forma de acção política, centrada na luta, à escala nacional, pelo controlo do estado
com vista à sua utilização no interesse dos trabalhadores.
Engels – que juntamente com Marx viveu na Inglaterra durante quase todo o
período de influência do Cartismo, tendo tido relações estreitas com alguns dos seus
mil eleitores controlavam a maioria dos lugares no Parlamento. Por outro lado, já então só ganhava uma
eleição quem tinha muito dinheiro para ‘investir’ no rentável ‘negócio’ de ser membro do Parlamento.
Nos anos 1820 e 1830, calcula-se que havia candidatos que gastavam, numa só eleição, entre dez e vinte
mil libras (muito dinheiro!). Um manual radical da época faz este comentário: “Não há no reino meia
dúzia de localidades em que um homem honesto, de competência e carácter reconhecidos, possa esperar
vencer outro que esteja preparado para despender uma fortuna para o conseguir”. Informação colhida em
MORTON/TATE, ob. cit., 80 e 102.
210
O problema da manutenção dos parlamentares durante o período de funcionamento do
parlamento colocou-se desde muito cedo, logo que nos parlamentos começaram a entrar deputados
oriundos das camadas populares. Mas foi sempre um problema ‘delicado’, de tal modo que a Assembleia
Nacional francesa votou um subsídio por actidade legislativa logo em 1 de Setembro de 1789, mas o voto
nem foi registado na acta das sessões… Com o regime do sufráguio censitário foi excluído o pagamento
de qualquer subsídio. Mas o subsídio regressou em 1848 com o regime do sufrágio universal. Na
Inglaterra, o pagamento deste subsídio só foi legalizado em 1911. Ver A. GARRIGOU, ob. cit.
211
Em 1842 – ano de grave crise económica e de enormes dificuldades de sobrevivência para os
trabalhadores, que desencadearam uma vaga grevista sem precedentes – o cartismo perdeu uma
oportunidade de ver aprovadas no Parlamento algumas das suas reivindicações. Justificando o seu voto
contra o sufrágio universal, um deputado declarou: ”Eu oponho-me ao sufrágio universal. (…) Considero
que a civilização assenta na segurança da propriedade. (…) Por conseguinte, não podemos de maneira
nenhuma, sem correr um terrível risco, confiar o governo supremo do país a uma classe que, sem dúvida,
fará incursões graves e sistemáticas contra a segurança da propriedade”.
125

dirigentes – reconhece que a luta pela Carta do Povo foi vencida, mas observa que “a
luta impressionou de tal modo a classe média vitoriosa, que, a partir desse momento, se
sentiu feliz por poder comprar um armistício prolongado, através de sucessivas
concessões aos trabalhadores”.212 Na verdade, anulado o perigo do Cartismo em 1848,
o descontentamento manifesto dos trabalhadores foi parcialmente atendido, num
período em que os movimentos de massas rareavam, porque os mais esclarecidos de
entre as classes dominantes compreenderam que o sufrágio universal não seria capaz
de anular o peso da ideologia dominante, podendo ser aproveitado, por isso mesmo,
como factor de ‘anestesia’ da contestação operária, de ‘integração’ dos contestatários
dentro do ‘sistema’, de ‘apólice de seguro’ contra o perigo de revolução. Em 1867, o
Parlamento aprovou o Reform Act que veio consagrar o sufrágio universal, apesar de
muitos continuarem a insistir na tese de que “a democracia significava socialismo”.213

Perante a agitação social que então se verificou, o estado viu-se forçado a


adaptar o aparelho repressivo. Até essa altura, a única força de repressão eram os
exércitos. Mas a intervenção do exército na repressão dos trabalhadores (que vinham
lutando nas ruas de Londres e de Paris) acabava quase sempre em massacre e deixava
de pé o fantasma da guerra civil. Tornou-se clara a desadequação do aparelho
repressivo, reduzido na prática às forças armadas. A não existência de polícias
favorecia as acções de rua das classes trabalhadoras por falta de uma actuação
preventiva. Em Londres e em Paris a dimensão e a violência das manifestações
alimentavam o receio de que poderia estar em causa a ordem burguesa. Em Londres, na
sequência da violenta agitação dos anos 1833 e 1834 (contra o Reform Bill de 1832 e
contra a dissolução do GNCTU), entremeados de greves e de lock-outs, a polícia
londrina foi criada em 1835. Medida idêntica foi adoptada em Paris pouco depois. Por
outro lado, as ruas estreitas facilitavam a acção de massas por parte dos trabalhadores.
Em Paris, o arquitecto Mansard foi encarregado de organizar um novo traçado da
cidade, com ruas largas e direitas. A guerra de classes passava a ser tratada como um
problema de polícia, de segurança pública, e não como guerra civil.

212
Apud MORTON/TATE, ob. cit., 135.
213
Venceu o ponto de vista expresso nesta história (verdadeira ou inventada, pouco importa), que
relata uma conversa entre dois membros da nobreza. Um deles diz ao seu amigo não poder compreender
como é que ele aceita que o seu cocheiro possa ter um voto igual ao dele, ao que este último respondeu: é
que, assim, posso dispor do meu voto e também do voto do meu cocheiro. De todo o modo, segundo
informa E. J. HOBSBAWM (últ. ob. cit., I, 178), só em 1914 o Times veio reconhecer a democracia como
um sistema aceitável.
126

4.5.10. - Do lado das classes dominantes, o sentido da evolução acabaria por


consagrar a supremacia da burguesia industrial. Enquanto deteve o poder político, a
aristocracia rural legislou de modo a proibir ou a limitar fortemente a importação dos
cereais, a fim de beneficiar dos preços altos do trigo. Este foi o escopo das famosas
Corn Laws, promulgadas em 1815.
Com o desenvolvimento da industrialização, as necessidades crescentes de
produtos alimentares para corresponder à procura de uma população em aumento
levaram ao cultivo de novas terras menos férteis e ao cultivo intensivo das terras até aí
cultivadas. O resultado foi o aumento dos custos de produção dos produtos agrícolas
(nomeadamente do trigo), cujo preço subia até ao nível do custo de produção (mais
elevado) das terras menos férteis (de outro modo, ninguém cultivaria estas terras
marginais). Subia o preço de todo o trigo, mesmo do trigo produzido a custos mais
baixos nas terras mais férteis. Daqui resultava um ganho para aqueles que exploravam
as terras mais férteis (a renda diferencial), correspondente à diferença entre o custo de
produção nas terras menos férteis (custo marginal = preço) e o custo de produção
(mais baixo) das terras mais férteis.
Este ganho (esta ‘renda’) cabia, num primeiro momento, aos rendeiros
capitalistas que promoviam o cultivo das terras mais férteis. Só que, terminado o
contrato de arrendamento, a concorrência entre os rendeiros para obter o direito de
tratar as terras mais férteis permitia aos proprietários das terras beneficiar do aumento
da renda da terra, aumento que tendia a coincidir com a diferença acima referida (para
ganharem ou manterem o direito de cultivar as terras mais férteis, os rendeiros
dispunham-se a pagar a mais, a título de renda da terra, o montante da renda
diferencial).
Assim se explicava o aumento das rendas da terra, em benefício dos grandes
proprietários, que viviam apenas dessas rendas, sem participar, de qualquer modo, na
actividade produtiva. Por outro lado, o aumento do preço do trigo arrastaria consigo,
necessariamente, o aumento dos salários pagos não só pelos rendeiros capitalistas mas
também pelos empresários industriais. Admitindo que os salários tendiam a coincidir
com um valor correspondente ao mínimo de subsistência, a subida do preço do trigo
(base da alimentação) implicava um aumento do custo de vida (do custo da
subsistência). Para que os operários pudessem manter o seu poder de compra a este
127

nível mínimo (abaixo do qual os salários não poderiam manter-se duradouramente), era
indispensável que aumentassem os salários nominais.
Esta, muito sumariamente, a explicação de Ricardo para o facto de, nas
condições da Inglaterra do tempo e em virtude da vigência das leis dos cereais,
subirem as rendas das terras e a prosperidade dos landlords, enquanto a jovem
indústria capitalista se ia debatendo com dificuldades, agravadas nos períodos de crise,
claramente reflectidas na baixa das taxas de lucro.
David Ricardo, justamente considerado “o profeta económico da burguesia
industrial”, considerava um ‘absurdo’ inadmissível o facto de ser afinal a classe
ociosa dos proprietários de terras a ganhar com o desenvolvimento da indústria. Por
isso desencadeou uma luta sem tréguas contra este estado de coisas, advogando a
revogação das Leis dos Cereais e a prática do livrecambismo, de modo a permitir a
entrada livre de trigo importado na Inglaterra a preços mais baixos, assim evitando a
subida das rendas, a subida do preço do trigo, a alta dos salários monetários e a
consequente redução da taxa de lucro.
Se “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente como a Santa Inquisição
tinha conquistado a Espanha” (como Keynes sublinhou), não admira que as suas teses
livrecambistas tenham encontrado eco no Parlamento inglês, que, ao decidir a
revogação das Corn Laws, em 1846, decreta, efectivamente, a vitória definitiva da
burguesia industrial sobre a aristocracia rural inglesa. Como Marx salientava, logo em
1848, no seu Discurso Sobre a Questão do Livre-Câmbio, “a abolição das leis dos
cereais na Inglaterra foi o maior triunfo que o livrecambismo alcançou no séc. XIX”.214
A classe operária aliou-se inicialmente com os free-traders no combate aos
últimos vestígios da feudalidade, até à abolição das Corn Laws. A velha aristocracia
procurou tirar desforço desta derrota, viabilizando a aprovação no Parlamento, em
Junho de 1847, da lei que impôs a redução do horário de trabalho para dez horas,
aspiração por que os operários vinham lutando havia mais de trinta anos. À medida,
porém, que o proletariado se ia afirmando como força social e política, e uma vez
ultrapassada a luta que a burguesia industrial, como classe que aspirava ao poder, teve
de travar contra a aristocracia feudal, podemos dizer - com Sedas Nunes 215
- que
“latifundiários e industriais foram-se aproximando uns dos outros, tendendo a fundir-
se, através de vínculos políticos, financeiros, matrimoniais e outros, numa só classe

214
O texto vem publicado como Anexo em Misère de la Philosophie, ed. cit., 197ss.
215
Cfr. A. SEDAS NUNES, ob. cit., 290.
128

dominante; do mesmo passo, o livre comércio por sobre a fronteira das nações e o
imperialismo colonial abriam à indústria britânica insuspeitadas perspectivas de
incremento e prosperidade”. Como escreveu Joan Robinson, o livrecambismo “foi,
verdadeiramente, uma projecção dos interesses nacionais britânicos”.216

216
Cfr. J. ROBINSON, Filosofía…, cit., 127.
129

4.6. - A Revolução Francesa

4.6.1. - O seu carácter exemplar como revolução burguesa.

Antes da Revolução Francesa de 1789 verificaram-se as revoluções burguesas


na Holanda (século XVI), na Inglaterra (século XVII) e na América (século XVIII). Já
no século XIX, ocorreram as revoluções burguesas na Alemanha e na Itália.217
Simplesmente, a Grande Revolução Francesa apresenta, perante todas elas, um
carácter exemplar que explica a sua universalidade e a distingue do jogo de
compromissos que levaram a burguesia a partilhar o poder, na Holanda, na Inglaterra,

217
Como releva A. SOBOUL, “La Révolution Française…, cit., 27, “os movimentos de unificação
nacional que a Europa conheceu no século XIX devem, a mais de um título, ser considerados como
revoluções burguesas. Qualquer que seja, com efeito, a importância do factor nacional no Risorgimento
ou na unificação alemã, as forças nacionais não teriam podido atingir a criação de uma sociedade
moderna e de um estado unitário, se a evolução económica interna não tivesse tendido para o mesmo
objectivo.”
130

na América, na Itália, na Alemanha e no Japão. Com Eric Hobsbawm, diremos que ela
foi “a única revolução ecuménica”.218
No entanto, mesmo no caso da Revolução Francesa, a tomada das estruturas do
poder político representou apenas a conquista pela burguesia da única esfera do poder
que ainda lhe escapava. Na verdade, a burguesia era já a força económica dominante,
era a classe mais rica e mais culta, as relações capitalistas e a ideologia burguesa já
eram dominantes no seio das sociedades feudais em profunda desagregação. Como
vimos já, o processo de desenvolvimento do capitalismo já vinha de trás; as revoluções
burguesas foram o ponto culminante desse processo, ponto a partir do qual a
implantação da nova ordem económica, social e política se acelerou.
Comparando a ‘revolução inglesa’ com a Revolução Francesa, Jaurès não
hesitou em designar aquela de “estreitamente burguesa e conservadora” e em qualificar
esta de “largamente burguesa e democrática”. A diferença de condições em que um e
outro movimento surgiram poderão, aliás, explicar a sua diferente natureza.
Na Inglaterra, a nobreza tinha poucos privilégios (v. g. os seus membros
pagavam impostos como toda a gente) e só os lords constituíam uma ordem legalmente
distinta.
Com a Guerra das Duas Rosas, quase desapareceu a antiga aristocracia que se
realizava no exercício das virtudes militares, e a nova nobreza reconstituída pelos
Tudor não sentia qualquer preconceito que a impedisse de se dedicar aos negócios (a
riqueza passou muito cedo a definir a situação social das pessoas).
As necessidades da expansão marítima e colonial originariam, por sua vez, um
certo grau de solidariedade de interesses entre a aristocracia rural e a burguesia.
Nestas condições, aceitando a aristocracia a nova ordem burguesa, foi fácil um
compromisso de partilha do poder, sem ter que ser reivindicada pela burguesia a
igualdade de direitos entre todos os homens. As liberdades fundamentais eram
reclamadas como uma conquista, a partir da Magna Carta (1215), sem necessidade de
apelar para o direito natural. Como salienta Albert Soboul, “a Constituição britânica
reconhecia não os direitos do homem, mas os dos Ingleses: faltava o universalismo às
liberdades inglesas”.219
Diversa era a situação na França do Ancien Régime:

218
Cfr. A Era das Revoluções, cit., 79.
219
Cfr. A. SOBOUL, últ. ob. cit., 16.
131

1) O desenvolvimento do comércio e da indústria artesana, a partir dos séculos


X e XI, conferiram importância à riqueza mobiliária e esta veio promover socialmente
a burguesia, que no século XIV seria admitida nos Estados Gerais. Em 1789, a
burguesia era, em grande parte, constituída por grandes comerciantes estabelecidos
sobretudo nas cidades portuárias (Nantes, La Rochelle, Bordéus, Marselha), pelos
banqueiros e financeiros (especialmente em Paris e em Lyon) e pela elite culta dos
membros das profissões liberais (advogados, médicos, notários). Menos importrante
era a burguesia industrial, num país onde a indústria principal era a indústria têxtil (de
tecnologia rudimentar) e onde as modernas técnicas de produção nas minas e na
metalurgia davam apenas os primeiros passos.
2) No século XVIII, não obstante, os camponeses representavam 85% da
população total (cerca de 25 milhões). A maioria eram amponeses livres, pois a
servidão pessoal subsistia apenas em algumas regiões do Centro e do Leste. 220 A
população urbana (maiormente constituída por pequenos produtores independentes)
não ia além de 15%.
3) A propriedade das melhores terras encontrava-se fortemente concentrada nas
mãos da pequena minoria do clero e da nobreza, cabendo apenas 35% das terras aos 22
ou 23 milhões de camponeses que viviam em condições particularmente duras,
obrigados a pagar rendas em dinheiro e em géneros e a pagar pela utilização dos
fornos, moinhos e lagares, que permaneciam monopólio dos senhores.221
4) A miséria desta grande massa de pessoas agravou-se ainda pelo aumento da
população que marcou o século XVIII francês e pela acentuada subida do custo de vida
que então se verificou (62% entre 1726-1741 e 1785-1789) e que provocou uma baixa
de 25% no poder de compra das camadas populares, em cujo orçamento de despesas o
pão representava em média 50%, chegando a atingir 88% em 1789.222 Sobre esta

220
Em outras regiões da Europa a servidão só viria a ser oficialmente abolida bastante mais tarde:
na Prússia, em 1807 (mantendo-se a obrigação de corveia até 1861); na Boémia e na Hungria, em 1848;
na Rússia, em 1861.
221
É conhecida a descrição de La Bruyère: “Vêem-se certos animais ferozes, machos e fêmeas,
espalhados pelos campos, negros, lívidos e todos queimados pelo sol, agarrados à terra que revolvem e
remexem com invencível obstinação; possuem algo como uma voz articulada e, quando se equilibram
sobre os pés, mostram um rosto humano; e, com efeito, são homens. À noite retiram-se para covis, onde
vivem de pão negro, água e raízes”.
222
Cfr. A. SOBOUL, “La Révolution Française…, cit., 9. Segundo uma conhecida lei económica
(a lei de Engel), a percentagem do rendimento gasta em bens de primeira necessidade diminui à medida
que aumenta o rendimento disponível das famílias. Se as estatísticas indicam que os bens alimentares
absorvem uma parcela importante do rendimento disponível, esse é um sinal inequívoco de pobreza
acentuada.
132

grande maioria de franceses pobres recaía todo o custo da sobrevivência do Ancien


Régime, que se lhes tornava dia a dia mais odioso.
5) Por sua vez, a nobreza (cerca de 400 mil pessoas em 23 milhões de
franceses), perante a crise que afectou a agricultura francesa durante toda a década de
70 do século XVIII e perante a subida do custo de vida, aumentou as suas exigências
junto dos camponeses, muitos dos quais, arruinados e miseráveis, abandonaram os
campos, constituindo grandes grupos de vagabundos, que frequentemente se
revoltaram, incendiando e saqueando os castelos senhoriais e executando mesmo, em
alguns casos, os senhores dos respectivos domínios.
6) Ao mesmo tempo, nas vésperas da Revolução de 1789, a burguesia dominava
a finança, o comércio e a indústria, fornecendo ao estado os quadros administrativos e
os recursos financeiros de que este carecia.
7) Entretanto, o comércio tinha-se desenvolvido, ocupando o comércio com as
colónias uma posição importante. Bordéus, Marselha, Le Havre e Nantes conheciam a
prosperidade como portos de comércio, ao mesmo tempo que neles se desenvolvia a
indústria de construção naval.
8) A indústria francesa adquiria também um certo relevo. Em 1785, os produtos
industriais representavam metade do valor das exportações francesas. Nas vésperas da
Revolução, Paris tinha mais de 500 mil habitantes, dos quais cerca de 20% (100.000)
seriam operários assalariados. Em Rouen e em Le Havre desenvolvera-se a indústria
têxtil algodoeira; em Lyon, a das sedas; a metalurgia florescia na Alsácia, na Lorena e
nas Ardenas; na indústria de vidros, a Saint-Gobain era, na época, talvez a empresa de
técnica mais avançada. Já não eram raras as manufacturas que empregavam entre 50 a
100 operários, principalmente na indústria metalúrgica e nas minas (4000 operários
trabalhavam nas minas de carvão da Compagnie de Anzin). A exigência dos novos
processos técnicos não deixava de se fazer sentir (recorde-se que foi na França que
Denis Papin experimentou a sua marmita a vapor em 1690 e construiu o primeiro barco
a vapor em 1707).
9) Contudo, o sistema das corporações medievais mantinha-se de pé, com as
suas tradições conservadoras e técnicas rotineiras. Apesar do razoável
desenvolvimento das manufacturas, estas eram em geral de pequena dimensão e nelas
predominava o trabalho manual. O tipo de organização mais corrente era ainda o da
indústria assalariada no domicílio, com centros de produção dispersos, utilizando
trabalhadores que muitas vezes não estavam ainda totalmente separados dos seus
133

instrumentos de produção e que frequentemente conservavam a posse de uma pequena


porção de terra, situação que não tornava possível ao capitalista exercer um controlo
directo sobre a produção nem impor aos trabalhadores a sua própria disciplina.
Em conclusão. Com o desenvolvimento do comércio e da indústria, a
agricultura tinha perdido importância como fonte de riqueza e de poderio económico,
que agora eram apanágio, não da nobreza rural, mas da burguesia comerciante e
industrial. Como se salienta no Manifesto Comunista, “os meios de produção e de
troca que serviram de base à constituição da burguesia foram produzidos na sociedade
feudal”.
Diferentemente do que aconteceu na Inglaterra, a nobreza e o clero ocupavam o
aparelho de estado e mantiveram até mais tarde os seus privilégios, resistindo a todas
as tentativas de os diminuir. Guizot refere-se à “rivalidade cega das classes altas” e diz
que, em vez de se unirem quer para se defenderem do despotismo quer para praticarem
a liberdade, a nobreza e a burguesia mantiveram-se separadas, ardentes na exclusão
mútua, não querendo uma delas aceitar qualquer igualdade e outra qualquer
superioridade. (…) Não souberam agir concertadamente para serem livres e poderosas
juntas; entregaram-se e entregaram a França às revoluções”.
Durante muito tempo, a grande aspiração da burguesia francesa consistiu em
alcançar um título de nobreza, aspiração que, a partir do século XVI, muitos dos seus
membros conseguiram concretizar, adquirindo os cargos públicos que a monarquia
vendia, atribuindo-lhes privilégios corporativos ou títulos de nobreza pessoais ou
hereditários.
No século XVIII, porém, a filosofia das Luzes deitava por terra a base
ideológica do Ancien Régime, ao mesmo tempo que a burguesia se ia engrandecendo
em número, em poder económico, em bagagem cultural, em consciência de classe:
“classe ascendente, crente no progresso, tinha a convicção de representar o interesse
geral e de assumir a responsabilidade da nação; classe progressiva, exercia uma
atracção decisiva tanto sobre as massas populares, como sobre os sectores dissidentes
da aristocracia”.223
Enquanto a nobreza feudal invocava os seus direitos históricos para reclamar,
perante o absolutismo monárquico, maior dose de poder e de liberdade, a fim de
aumentar e consolidar os seus privilégios feudais, a burguesia culta do século XVIII,

223
Cfr. A. SOBOUL, últ. ob. cit., 6.
134

inspirada na filosofia de John Locke, invocava a razão e o direito natural para


reclamar a abolição dos privilégios e a igualdade de direitos.
Perante a obstinada resistência das classes privilegiadas a qualquer
compromisso que admitisse a burguesia como sua associada no poder, à burguesia só
restava, para sair vitoriosa, a aliança com as camadas populares, predominantemente
camponesas, unidas na sua miséria e no seu ódio à feudalidade.224
No famoso ensaio escrito em finais de 1788 e publicado em Janeiro de 1789
(Qu’est-ce que le Tiers État?), o abade Sieyès denunciava: “A usurpação é completa;
eles [os nobres] reinam verdadeiramente”. A detenção desses privilégios verificava-se,
aliás, em termos perfeitamente desajustados relativamente à distribuição social da
riqueza e do poder económico, porque – como clamava Sieyès – “o terceiro estado
contém em si tudo o que é preciso para formar uma nação completa”. Era necessário
apenas promover a “abolição do privilégio”, destruir a ”ordem privilegiada”, liquidar a
aristocracia como classe dominante.225
E a revolução andava no ar. Rousseau (Emílio, 1762): “aproximamo-nos do
estado de crise e do século das rvoluções:quem poderá afirmar no que vocês se
transformarão nessa altura?”. E Voltaire (carta a Chauvelier, 2.4.1764): “Tudo o que
vejo lança as sementes de uma revolução que chegará infalivelmente e da qual não
terei o prazer de ser testemunha”.

Pois foi contra os privilégios da nobreza e do clero que se fez a Revolução


Francesa, esse “oceano popular” (Romain Rolland), fruto do descontentamento da
burguesia rica e culta e da revolta das camadas populares (do campo e das cidades),
obra do Terceiro Estado, à frente do qual se colocou a burguesia revolucionária, a
única classe que então estava em condições de dirigir a luta contra a ordem feudal.
Anti-feudal, a Grande Revolução Francesa é, porém, essencialmente, uma
revolução burguesa (a revolução burguesa exemplar), levada a efeito sob a liderança
da burguesia revolucionária (a única classe que então estava em condições de dirigir a
224
Dado o peso das populações camponesas e a violência das jacqueries, não admira que a
questão agrária tenha ocupado uma posição importante no quadro do movimento revolucionário, que, em
17 de Julho de 1793, aboliria definitivamente todos os privilégios feudais.
225
Na sessão da Assembleia Nacional de 4 de Agosto de 1789, durante a qual foram votados os
textos que destruíram o ancien régime social e aboliram todo o sistema feudal, lançando as bases do novo
direito burguês, assente na igualdade e na liberdade de empreendimento, um membro da nobreza
interveio paradefender a abolição dos “títulos que humilham a espécie humana, exigindo que homens
sejam atrelados a carroças como animais da lavoura”, (…) títulos que obrigam os homens a passarem a
noite a percorrer os pântanos, para que as rãs não incomodem o repouso dos seus amos vuluptuosos”.
(citação colhida em M. VOVELLE, ob. cit., 29).
135

luta contra a ordem feudal), um momento importante - e dos mais importantes,


atendendo à repercussão que iria ter em vários outros países, talvez mesmo em todos
os países - no longo processo que permitiu à nova burguesia abolir os privilégios das
antigas classes feudais, ocupar o poder e realizar, através do controlo do poder de
estado, as mudanças institucionais capazes de assegurar as condições favoráveis ao
livre desenvolvimento do capitalismo.226
Na transição do feudalismo para o capitalismo, e comparada com as demais
revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, a Revolução Francesa representa a via
realmente revolucionária, centrada no terreno abertamente político da luta pela tomada
do poder, luta que se arrastou até à derrota de um dos contendores (as classes feudais)
e à vitória do outro (a burguesia), que destruiu a base económica do poder dos senhores
feudais e liquidou fisicamente uma boa parte dos membros da velha classe
dominante.227
A Revolução destruiu a propriedade feudal sobre a terra e libertou os
camponeses de todas as sujeições, abrindo o caminho da liberdade aos pequenos
produtores e criando as condições para a divisão das massas camponesas em
proprietários capitalistas e trabalhadores assalariados. A liberdade pessoal é, com
efeito, condição do salariato. Só quando os trabalhadores adquiriram o estatuto de
homens livres ficaram em condições de poder contratar, podendo então vender a sua
força de trabalho. A emergência de trabalhadores livres permitiu o aparecimento da
força de trabalho como mercadoria autónoma.
A Revolução aboliu as corporações e os monopólios corporativos; substituiu as
muitas medidas de peso e de comprimento vigentes no território francês (cerca dde
800) por um sistema uniformizado de pesos e medidas (uma comissão de cientistas,
entre os quais Laviosier, Lagrange e Condorcet, propôs o sistema adoptado, o sistema
decimal e o princípio do metro – sistema métrico); eliminou as alfândegas no interior
do espaço geográfico da França. Com estas medidas, ficou muito facilitada a

226
“É com razão que se lhe chama grande - escreveu Lenine, citado por A. MANFRED, A
Revolução Francesa, cit., 377. Pela sua classe, em proveito da qual trabalha, pela burguesia, fez tanto
que todo o século XIX, esse século que deu a civilização e a cultura a toda a humanidade, decorreu sob
o signo da Revolução Francesa. De um extremo ao outro do mundo, nada mais foi preciso do que pôr
em prática, realizar parcialmente, acabar o que os grandes revolucionários franceses da burguesia tinham
criado ...”.
227
Como salienta Michel Vovelle, a Revolução Francesa traduziu-se na “subversão total, em
menos de dez anos, de todo um antigo edifício político, institucional e social (…), uma imensa subversão
social, o derrube de um edifício multissecular e a afirmação de novas relações de classe” (cfr. M.
VOVELLE, ob. cit., 7/8).
136

unificação do mercado nacional e garantiu-se à burguesia industrial a liberdade


económica de que ela carecia.
A par desta alteração das estruturas económicas e sociais, a Revolução veio
proclamar todos os cidadãos livres e iguais em direitos; eliminou antigas autonomias e
privilégios locais e regionais; consolidou a unidade nacional ainda imperfeita em 1789;
dotou a nação francesa de um aparelho de estado moderno e de uma administração
racionalizada e provocou alterações profundas nas estruturas políticas do país.
Por tudo isto, é com inteira razão que os autores destacam o significado e a
importância da Revolução Francesa na criação de condições favoráveis ao
desenvolvimento de novas relações sociais de tipo capitalista.

4.6.2. - A nova ordem burguesa.

Vitoriosa a revolução, os revolucionários burgueses procuraram consolidar a


vitória, lançando as bases de uma nova ordem jurídica burguesa, começando pela
edificação do novo estado burguês, cujas raízes podem ir buscar-se aos filósofos e aos
economistas do século XVIII, tendo uns e outros caracterizado, sem qualquer disfarce,
como é sabido, o novo estado burguês emergente como estado de classe.228

Graças ao apoio das massas camponesas, a Revolução Francesa permitiu à


burguesia dominar a única esfera do poder que ainda lhe escapava, uma vez que, no
seio da velha sociedade em profunda desagregação, na qual as relações de produção
capitalistas e a ideologia burguesa eram já dominantes, a burguesia era já a classe mais
rica, mais culta e mais progressiva, com forte consciência de classe, convicta de que os
seus interesses correspondiam ao interesse de toda a sociedade.
Por outro lado, a filosofia do Iluminismo, que, pela via dos enciclopedistas,
haveria de marcar toda a nova ordem burguesa, constituiu o fundamento da
racionalidade e da universalidade do projecto revolucionário. O sistema consagrado nas
leis saídas da Revolução foi, com efeito, a concretização das concepções filosóficas que
vinham de Voltaire e dos enciclopedistas.
D’Holbach escreveu que “só o proprietário é um verdadeiro cidadão”. E Diderot
sustentou que “é a propriedade que faz o cidadão”. E Rousseau defendeu, na 9ª das
suas Lettres de la Montagne (1762), que “o direito de propriedade é o mais sagrado de

228
Ver A. J. AVELÃS NUNES, Uma Volta ao Mundo…, cit.
137

todos os direitos dos cidadãos” e que “a própria propriedade é apenas um meio para a
aquisição sem entraves e posse segura”.
Os artigos de Voltaire no Dictionnaire Philosophique sobre Egalité, Économie
Publique e Propriété são um verdadeiro guia da acção da burguesia revolucionária na
transformção do estado feudal em estado burguês. Segundo o filósofo, a sociedade tem
de estar necessariamente dividida em duas classes, “uma dos ricos que mandam, outra
dos pobres que servem”, porque “o género humano, tal como é, só pode subsistir se
existir uma infinidade de homens úteis que não possuam absolutamente nada, já que,
com toda a certeza, um homem que não tenha dificuldades não deixará a sua terra para
vir trabalhar na vossa; e, se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um
mestre de cerimónias que vo-lo fará”.229
Vale a pena determo-nos na análise deste último trecho, porque ele é
particularmente significativo: os homens cujas concepções alimentaram os ideais dos
revolucionários de 1789 entendiam que a nova ordem burguesa devia assentar no
postulado de que a propriedade de uns implica a exclusão da propriedade de todos os
outros (a infinidade dos homens úteis que não possuem absolutamente nada). Aqui
transparece o conceito da propriedade burguesa, propriedade perfeita, absoluta e
exclusiva, implicando a separação completa dos não-proprietários relativamente aos
meios de produção. Aqui transparece também o reconhecimento da estrutura de classes
própria da sociedade capitalista.
No dia 14 de Julho de 1789 o povo toma a Bastilha, símbolo do poder arbitrário
do rei absoluto e, em geral, do Antigo Regime. A revolução saía dos Estados Gerais
para a rua. Foi o momento simbólico da vitória do movimento revolucionário. Em 26
de Agosto a Assembleia Constituinte aprovou os dezassete artigos da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.230
O art. 1.° proclama que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, e
o art. 2º dispõe que “a finalidade de toda a associação política é a preservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem”, esclarecendo que esses direitos são “a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Assim se aboliam
todos os privilégios pessoais e todas as servidões, para se encarar o homem em geral e
os seus direitos em geral.

229
O mesmo Voltaire defende, em 1737 (La Défense du Mondain), que “o luxo dos ricos faz
viver os pobres e é um índice da prosperidade dos impérios” e afirma, no artigo “Égalité” da
Enciclopédia, que “se a canalha se põe a pensar está tudo perdido”.
230
O texto completo está publicado em M. VOVELLE, ob. cit., 70-72.
138

Como se vê, porém, a propriedade vem logo a seguir à liberdade, ficando


‘esquecida’ a fraternidade e remetida a igualdade para outro artigo. Da discussão
havida na Assembleia resultou vitoriosa a tese dos que defendiam a prioridade à
liberdade e à propriedade, contra a daqueles que entendiam que, perante a
reivindicação da igualdade, podia justificar-se a limitação do direito de propriedade. 231
E o art. 17º consagra o direito de propriedade como “direito inviolável e sagrado”,
acrescentando que “ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade
pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia
indemnização”. A liberdade e a igualdade têm de confinar-se nos quadros impostos
pelo reconhecimento da propriedade (privada) como um dos direitos sagrados e
invioláveis, decorrente de uma espécie de direito natural geral à liberdade.
Proclamando que “o exercício dos direitos naturais de cada homem só conhece como
limites aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos
direitos”, a Declaração de 1789 explicita que “todo o cidadão é livre de empregar os
seus braços, a sua indústria e os seus capitais como como ele julgar bom e útil para si
mesmo (…) e pode fabricar o que lhe agradar e como lhe agradar”.
Isto não impediu que a Assembleia Nacional votasse, logo em 2 de Novembro
de 1789, a colocação dos bens do clero à disposição da nação: “a nação passará ser
proprietária da totalidade dos fundos do clero e dos dízimos”, apropriando-se também
“dos bens das comunidades religiosas a suprimir, assegurando a subsistência dos
indivíduos que as compõem”.232 Por Lei de 14 de Maio de 1790 foi regulada a venda
dos bens da Igreja. Mais tarde (1792) foram confiscados os bens dos emigrados (os
membros das antigas classes dominantes que tinham fugido para o estrangeiro), que
começaram a ser vendidos a partir de 3 de Junho de 1793. Em geral, estes bens foram
adquiridos por gente abastada (burgueses ricos, grandes agricultores e gente
endinheirada da cidade, especialmente na região de Paris). Sobretudo a partir de 1793
(com a divisão em pequenos lotes dos bens dos emigrados), os pequenos camponeses
231
A igualdade é referida no art. 6º, ao proclamar que a lei ”deve ser a mesma para todos, seja
para proteger, seja para punir”, e acrescentando que “todos os cidadãos são iguais a seus olhos e
igualmente admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, segundo a sua capacidade e
sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e talentos”.
232
O texto pode ver-se em M. VOVELLE, ob. cit., 206/207. Na sequência deste medida, a
Assembleia viria a atribuir um novo estatuto ao clero, assegurando um salário aos seus membros, como
funcionários públicos, obrigados a jurar respeitar a Constituição. Foi a chamada Constituição Civil do
Clero, votada em 12 de Julho de 1790. A divisão foi enorme: só quatro bispos prestaram juramento e só o
Cardeal Talleyrand aceitou consagrar os novos bispos eleitos. Só 52% dos sacerdotes aceitaram o estatuto
de sacerdotes constitucionais. Um breve do Papa Pio VI, de 10.3.1791, veio condenar duramente a
Constituição Civil do Clero e toda a filosofia inspiradora da Revolução como atentatória da ordem divina.
Estavam lançadas as bases de um forte movimento anti-clerical (cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 208ss).
139

conseguiram alguns ganhos modestos destas operações. Apesar de tudo, a venda dos
bens nacionais permitiu a constituição de uma classe de pequeno e médio campesinato,
com algum peso na vida económica e social francesa.
Destas medidas resultou a destruição da base económica do poder da Igreja
(cujos bens - cerca de 10% das terras - foram integralmente expropriados, para além da
perda do dízimo) e a liquidação do clero como ordem (ou classe), até porque muitos
dos seus membros foram mortos, outros emigraram e outros ainda abdicaram. O
mesmo não se terá passado com a nobreza. Os seus membros perderam, é claro, os
rendimentos que resultavam dos direitos senhoriais; mas terão perdido apenas um
quarto das suas terras, o que permitiu à nobreza manter o seu estatuto, agora como
elemento da nova aristocracia dos ricos.233

Os burgueses revolucionários eram liberais, mas não eram um democratas. Eram


também adversários do absolutismo, defendendo o constitucionalismo, assente num
Estado secular com liberdades cívicas e garantias para a iniciativa privada e num
governo de proprietários/contribuintes. Este espírito ficou patente na famosa
interpelação de Mirabeau (que vinha da nobreza) durante uma sessão da Assembleia
Nacional, algumas semanas após a abertura dos Estados Gerais, dirigindo-se ao rei
nestes termos: “Senhor, sois um estranho nesta Assembleia, não tendes o direito de falar
aqui”. Começou neste momento a guerra aberta contra o absolutismo, que terminaria,
simbolicamente, com a Tomada da Bastilha (14 de Julho de 1789).234
Ao proclamar a igualdade como igualdade de direitos e ao consagrar o direito
de propriedade entre os direitos naturais e imprescritíveis, a Assembleia Constituinte
abria uma contradição que a manutenção da escravatura e a organização censitária
do sufrágio vieram pôr a claro (todos eram iguais, mas alguns eram menos iguais do

233
As desigualdades nas condições de acesso à propriedade dos bens do clero e da nobreza e o
facto de não ter sido resolvido o problema dos bens comunais poderão explicar (juntamente com a divisão
resultante da Constituição Civil do Clero) a passagem de uma parte dos camponeses, em algumas regiões
da França, para o lado da contra-revolução. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 178-190.
234
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 85-88: “Aquilo que transformou uma
epidemia de agitação camponesa numa convulsão irreversível foi um conjunto de sublevações em cidades
de província e uma onda de pânico geral, que se propagou obscura mas rapidamente a vastas regiões do
país: a chamada Grande Peur de fins de Julho e princípios de Agosto de 1789. No espaço de três semanas
após o 14 de Julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França real
estavam em fragmentos”.
140

que outros, nomeadamente as mulheres, os economicamente dependentes, os pobres,


os escravos, os judeus e os povos colonizados).235
Dentro deste espírito, compreende-se que, cinco dias depois da aprovação da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Assembleia Constituinte come-
çasse a discutir uma proposta de Mounier, que retomava a tese, já advogada em Julho
por Sieyès, da instituição do regime do sufrágio censitário e da divisão dos cidadãos
em cidadãos activos e cidadãos passivos, proposta que viria a ser transformada em
diploma legal em Dezembro de 1789.
Cidadãos passivos eram todos os que não pagassem determinado montante de
imposto, excluídos do direito de votar e de ser eleito.
Cidadãos activos eram aqueles que tinham determinado montante mínimo de
rendimento e dividiam-se em três categorias, conforme a contribuição que pagavam: os
que designavam os eleitores; os eleitores, a quem competia nomear os deputados; os
que podiam ser eleitos deputados.
O movimento revolucionário, que começara com a rejeição do sistema de
votação por ordens ou estados, considerado discriminatório por assegurar a maioria à
nobreza e ao clero, vem afinal a adoptar um sistema de sufrágio igualmente
discriminatório, mas agora em proveito dos proprietários e dos ricos e em desfavor dos
pobres e dos não proprietários. De acordo com este critério, apenas 4 milhões de
franceses (de um total de cerca de 25 milhões) eram considerados cidadãos activos e só
uma pequena minoria de possidentes - a “nova aristocracia dos ricos” de que falava
Marat - ficava a ter acesso às cadeiras da Assembleia Nacional.236
Poderemos sintetisar deste modo a ‘filosofia’ inspiradora do sufrágio censitário,
‘legitimadora’ da ditadura da nova aristocracia do capital: 237 “Participar na publicidade
significa ser produtor, e ser produtor equivale a ter uma família independente, em cujo
seio pode alcançar-se a dimensão de sujeito crítico da coisa pública. Só vale como homo
235
Os negros não escravos viram serem-lhes negados os direitos civis em Março e em Outubro
de 1790; só em 15 de Março de 1791, graças à influência de Robespierre e de Dupont de Nemours, lhes
foram concedidos os direitos civis, mas com restrições, só retiradas em Março de 1792. A escravatura só
foi abolida, para os negros das colónias francesas, por lei de 4 de Fevereiro de 1794, aprovada por
aclamação, no seguimento de revoltas de escravos na Ilha de S. Domingos. Só por esta mesma lei foi
reconhecida a igualdade civil dos judeus. A mulher casada continuou sujeita à autoridade do marido,
“segundo a ordem natural”. Avançou-se, no entanto, no sentido da laicização do casamento, do
reconhecimento do direito ao divórcio e da admissão do princípio da adopção (Janeiro e Setembro de
1792). Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 148ss.
236
Como sublinha A. SOBOUL, ob.cit., 197, “os direitos que a burguesia constituinte tinha
concedido ao homem e ao cidadão foram apenas os do homem burguês, continuaram abstractos e teóricos
para a massa dos cidadãos passivos”.
237
Cfr. Rogério SOARES, ob. cit, 58-62. Também na Inglaterra do século XVIII apenas uma
pequena minoria de 300.000 homens gozava do direito de voto.
141

politicus o pai de família dono de empresa”. Daí a conclusão de que “as representações
políticas da burguesia impõem uma forma de Estado Liberal que não é outra coisa
senão uma aristocracia” (por outras palavras: uma ditadura, a ditadura da burguesia).
Entendia-se, por um lado, que só aqueles que tivessem um certo rendimento
seriam capazes da independência e do esclarecimento exigidos a um sujeito político
racional. Daí o afastamento do sufrágio imposto às mulheres, aos filhos e a todos os
economicamente dependentes, cujos interesses se supõem idênticos aos do pai de
família e do patrão, só a estes cabendo representar aqueles. A única excepção a esta
regra eram os funcionários públicos, porque, em relação a eles, não pode aplicar-se a
regra de que a sua representação cabe ao patrão.
Aceitava-se, por outro lado, que, garantida a liberdade para todos (a liberdade de
empresa), qualquer um podia tornar-se burguês; por isso, excluir os que o não
conseguissem significava apenas o afastamento dos incapazes.
Repare-se nesta proclamação eloquente feita na Assembleia Nacional, durante a
discussão do projecto de Constituição do ano III, pelo deputado Boissy d’Anglas
(23.6.1795):
“Deveis garantir a propriedade do rico. A igualdade civil, eis tudo o que o homem
razoável pode exigir... Devemos ser governados pelos melhores: os melhores são os mais
instruídos e os mais interessados na manutenção das leis; ora, com bem poucas excepções, só
encontrareis tais homens entre os que, possuindo uma propriedade, estão ligados ao país que a
contém, às leis que a protegem, à tranquilidade que a conserva, e que devem a esta propriedade
e às vantagens que ela propicia a educação que os tornou aptos a discutir leis que fixam a sorte
da pátria. O país governado pelos proprietários vive na ordem social, aquele em que os não-
proprietários governam está no estado de natureza”.

Por vezes a justificação coloca mesmo os destituídos de propriedade num plano


idêntico ao do inimigo interno: “aqueles que, pela sua pobreza, se vêem condenados a
uma dependência constante, ou ao trabalho à jorna, não possuem mais inteligência do
que as crianças, nem estão mais interessados do que os estrangeiros no bem-estar
nacional”.238

Fica assim esclarecido o significado da Igualdade e da Liberdade proclamadas


na famosa Declaração de 1789. E o seu sentido ficará ainda mais cabalmente elucidado
se atentarmos numa outra lei saída da Assembleia Constituinte, a Lei Le Chapelier (16-
6-1791), que informou o quadro jurídico do jovem capitalismo francês durante quase

238
Benjamin Constant, apud V. S. POKROVSKI, ob. cit., III, 75. Não admira que Benjamin
Constant fosse um dos mais acérrimos adversários do sufrágio universal.
142

um século. Na sequência do espírito da chamada Lei de Allarde (14-3-1791), que


abolira as corporações medievais, o art. 1.° da Lei Le Chapelier dispõe: “Sendo uma
das bases fundamentais da Constituição francesa a liquidação de todas as espécies de
corporações dos cidadãos do mesmo estado e profissão, é proibido restabelecê-las de
facto, qualquer que seja o pretexto e qualquer que seja a forma”. Assim se fechava, no
respeitante aos sindicatos operários, a porta aberta por diploma de 21-8-1790, no qual
se concedia a todos os cidadãos o direito de livremente se reunirem e formarem entre si
sociedades e associações livres.
O art. 2.° da Lei Le Chapelier veio proibir qualquer forma de coalizão ou
combinação (entre cidadãos de um mesmo estado ou profissão, entre empreendedores,
aqueles que têm loja aberta, os operários e aprendizes de qualquer arte), proibindo-os
igualmente de “estabelecer acordos sobre os seus pretensos interesses comuns”
[sublinhado nosso]. E o art. 4.° dispunha deste modo: “Se, contra os princípios da
liberdade e da constituição, os cidadãos ligados às mesmas profissões, artes e ofícios
tomarem entre si deliberações e convenções tendentes a recusar concertadamente ou só
a um preço determinado fornecer o concurso da sua indústria [leia-se: do seu trabalho]
ou das suas actividades, as ditas deliberações e convenções, acompanhadas ou não de
juramento, serão declaradas inconstitucionais, atentatórias da liberdade e da
declaração dos direitos do homem e de nenhum efeito (...)” [sublinhados nossos. AN].
Os arts. 7.° e 8.°, finalmente, proibiam qualquer actuação “contra os operários que
usassem da liberdade concedida pelas leis constitucionais ao trabalho e à indústria” e,
em geral, “contra o livre exercício da indústria e do trabalho que assiste a todas as
espécies de pessoas”.
Este o regime necessariamente postulado pelos princípios individualistas
invocados pelo advogado Le Chapelier no relatório que acompanhava a sua proposta
de lei.
No plano filosófico-político, aí se afirmava, na esteira de Rousseau: “Não há
corporações dentro do Estado. Há apenas o interesse particular de cada indivíduo e o
interesse geral. Não é permitido a ninguém inspirar aos cidadãos um interesse
intermédio, separá-los da coisa pública por um espírito de corporação”. Daí a conclusão
lógica de que “cabe às convenções livres de indivíduo para indivíduo fixar o salário de
cada trabalhador.” É a afirmação do contratualismo como um dos pontos basilares do
pensamento liberal.239 O mercado de trabalho, como todos os mercados, deveria
239
Sobre o significado ideológico do contratualismo, ver A. HESPANHA, Prática Social…, cit.
143

funcionar ‘livremente’, isto é, tudo se deveria resolver através de contratos livremente


celebrados entre indivíduos que, por serem formalmente livres, se pressupunha serem
iguais. Ora, na óptica dos trabalhadores, os sindicatos permitiriam que eles negociassem
em bloco, ganhando alguma força e poder para enfrentar a situação desigual em que se
encontravam perante o patronato. Na perspectiva da burguesia liberal, ao invés, os
sindicatos representavam uma rotura com aquela visão liberal das coisas, quebrando o
isolamento dos trabalhadores perante os seus patrões.
Apesar de reconhecer que os salários praticados eram demasiado baixos e de
entender que “numa nação livre os salários devem ser bastante consideráveis para que
aquele que os recebe esteja livre desta dependência absoluta que produz a privação dos
bens de primeira necessidade e que é quase a da escravatura”, o que o deputado Le
Chapelier pretendia, em nome de uma presumida igualdade, era desarmar os
trabalhadores, obrigando-os a uma luta desigual com os seus empregadores.
Mas a oposição da burguesia à livre organização dos trabalhadores não asentava
apenas em motivações ideológicas. No plano mais estritamente económico, a
ponderação dos interesses de classe foi determinante. Vejamos como o deputado Le
Chapelier justificava a necessidade de combater as associações e organizações
operárias. Invocava, é claro, que elas eram um atentado contra “a liberdade dos
empregadores” (“entrepreneurs de travaux”) e que elas visavam “recriar as corporações
aniquiladas pela revolução”. Mas não esquecia o jogo dos interesses: “o objectivo
destas assembleias que se propagam no reino (...) é forçar os empresários, os atrás
referidos mestres, a aumentar o preço da jornada de trabalho, impedir os operários e os
particulares que os ocupam nas suas oficinas de celebrar entre si convenções por
mútuo consenso, obrigá-los a aceitar a obrigação de se submeterem à jornada de
trabalho fixada por essas assembleias e a outros regulamentos que eles se permitem
estipular. Emprega-se mesmo a violência para fazer executar os acordos assim
estabelecidos”.
Já se vê como o individualismo se ocupa dos indivíduos em abstracto e não dos
homens em concreto e como as abstracções filosóficas de Liberdade e Igualdade,
traduzidas no preceito que proclama todos os indivíduos iguais em direitos, acabaram
por conduzir à proibição do recurso à greve e da constituição dos sindicatos
operários. Os trabalhadores já se encontravam, objectivamente, em situação de
dependência, coagidos (não juridicamente - como os escravos ou os servos -, mas
economicamente - por não possuírem os meios de produção) a trabalhar por conta dos
144

titulares dos meios de produção. Esta legislação veio colocá-los à mercê dos interesses
dos empresários (titulares da liberdade de empresa), interesses com os quais se fazia
coincidir o interesse geral.
O padre Jacques Roux, um dos defensores dos interesses populares, clamaria
perante a Convenção, em fins de Julho de 1793,240 que “a liberdade não passa de um
fantasma quando uma classe de homens pode reduzir outra à fome, impunemente. A
igualdade não passa de um fantasma quando os ricos, através do monopólio, exercem
um direito de vida e morte sobre o seu semelhante. A república não passa de um
fantasma vazio quando a contra-revolução se opera, dia a dia, pelo preço dos produtos,
aos quais três quartos dos cidadãos não podem aceder sem verterem lágrimas” e
denunciava a aristocracia mercantil, ”mais terrível do que a aristocracia nobiliária e
sacerdotal”.
A verdade, porém, é que as bases (os interesses) subjacentes à Lei Le Chapelier
eram tão fortes que nem durante o período do Terror eles foram postos em causa. Só na
segunda metade do século XIX, graças às lutas dos trabalhadores, estes conquistaram o
direito de coalizão, ficando aberta a possibilidade legal de recurso à greve, embora a
medida fosse de reduzido alcance, por continuar a não existir liberdade de associação
(lei de 25/5/1864).241
Só vinte anos mais tarde, um século depois (e muitas lutas depois) da vitória da
revolução burguesa, a lei de 21/3/1884 veio reconhecer a liberdade de associação
profissional, tornando legais os sindicatos operários. O ministro do interior do governo
de Jules Ferry, Waldeck-Rousseau, justifica a cedência à reivindicação dos
trabalhadores com o argumento de que esse era o melhor meio para enquadrar a acção
sindical no esforço de melhoria da condição humana e afastá-la do pendor
revolucionário.242

240
Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 163/164.
241
Apesar dos obstáculos levantados, registaram-se várias greves em 1790 e 1791, especialmente
nas profissões mais estruturadas (carpinteiros, pedreiros, vestuário). O movimento grevista esteve
presente durante o período do Directório: apesar do aumento generalizado dos salários, as dificuldades
acentuaram-se em consequência da inflação e de situações de penúria e carestia de bens essenciais,
nomeadamente em 1792 e 1793. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 184/185.
242
É particularmente significativo verificar que a luta da nova classe operária industrial pela
liberdade de associação, nomeadamente no plano sindical, se desenvolveu através de um processo
histórico que poderemos escalonar deste modo, elucidativo dos muitos obstáculos que a ditadura da
burguesia levantou aos trabalhadores, e que estes tiveram que vencer à custa de duras lutas, através das
quais foram conquistando, um a um os seus direitos: a) uma primeira fase de proibição dos sindicatos e
de criminalização de todas as formas de associação; b) admissão e legalização das associações
mutualistas; c) tolerância dos sindicatos; d) legalização dos sindicatos (1824-25) e criação do primeiro
partido dos trabalhadores (o Partido Cartista – 1834); e) aceitação da participação dos sindicatos na
contratação colectiva; f) reconhecimento constitucional da liberdade sindical (na Constituição de
145

É certo que na proibição eram abrangidos também os sindicatos de patrões; mas


o Código Penal previa penas mais leves na repressão das associações patronais. Esta
desigualdade efectiva, que a lei legitimava como ordem estabelecida e que os artigos
do Código Penal reflectiam, era muito mais patente ainda na vida real do que nos
textos da lei.243
Na proclamação (sem dúvida revolucionária) de que todos os homens são livres
e iguais em direitos reflecte-se a filosofia individualista que justifica a concepção
atomística da sociedade (concebida como o mero somatório de indivíduos isolados) e
que serve de fundamento ao contratualismo, que foi um dos pilares do liberalismo
económico e do estado liberal: o estado não deve intrometer-se na vida económica,
porque todos os negócios (e todas as relações sociais) devem ser regulados através de
contratos livremente celebrados entre indivíduos livres e iguais em direitos. O estado
liberal consolida-se como estado burguês, constituindo o Code Civil de 1804 (Code
Napoléon) o ponto final deste processo de consolidação da ditadura da burguesia.

O contratualismo é uma das marcas do pensamento liberal e do estado de direito


liberal. É justo salientar, porém, a capacidade de Adam Smith para se aperceber de que o
‘contrato de trabalho’ (o contrato em que assentavam as novas relações de produção
capitalistas) não era um contrato como os outros e para se aperceber da cumplicidade do estado
com os interesses da parte mais forte neste contrato.
Vale a pena registar aqui as ideias-base do filósofo escocês a este respeito:

“Por toda a parte se entende por salários do trabalho - escreve Smith - aquilo que eles são
habitualmente, isto é, quando o trabalhador é uma pessoa e o proprietário do capital, que o
emprega, é outra.”
“Os salários correntes do trabalho - acrescenta o autor 244  - dependem de contrato
habitualmente celebrado entre duas partes, cujos interesses não são de modo algum idênticos.
Os operários pretendem obter o máximo possível, os patrões procuram pagar-lhes o mínimo
possível.”

Weimar, 1919).
243
“A desigualdade é evidente, mas ela não existia apenas nos textos, foi muito mais nítida ainda
nos factos, pois os poderes jurídicos hesitaram sempre em perseguir as coligações de empregadores. Os
relatórios das autoridades de polícia e dos órgãos de justiça explicam esta atitude pelo receio de que as
suas perseguições constituíssem um mau exemplo para os assalariados revelando a existência de
coligações patronais. Prefere-se tolerar as actuações dos empregadores e não as divulgar, porque se
considera que os patrões não têm interesse em comprometer a riqueza e a prosperidade da nação,
enquanto os operários representam apenas elementos de desordem social e de agitação política” (cfr.
DOLLÉANS/DEHOVE, ob. cit., I, 163). Tendo em vista a realidade da Inglaterra, Adam Smith denunciou
abertamente esta desigualdade de tratamento e a hipocrisia dominante na abordagem desta problemática.
Cfr. A. J. AVELÃS NUNES, Uma Volta ao Mundo…, cit, especialmente 220ss.
244
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176.
146

Adam Smith revela, neste trecho, uma clara compreensão da natureza do salário nas
relações de produção de tipo capitalista e do enquadramento jurídico do ‘contrato de trabalho’,
expressamente apontado como um contrato entre duas partes cujos interesses não são idênticos e
cuja posição relativa não é de igualdade, mas de acentuada desigualdade, como veremos a
seguir, apoiados em trechos de Riqueza das Nações.
Considerando o contrato como um acordo celebrado entre duas pessoas livres e iguais em
direitos, o pai fundador do liberalismo vem dizer, abertamente, que o ‘contrato de trabalho’ não
é um contrato como os outros, assim desmitificando um dos pilares fundamentais de toda a
construção liberal. E não é, porque as duas partes que intervêm nesse ‘contrato’ não estão nele
em posição de igualdade e porque uma delas (os trabalhadores) não são, verdadeiramente, livres
de contratar ou não contratar (economicamente, são obrigados a trabalhar para sobreviver,
porque, nada tendo de seu, além da “sua força e habilidade de mãos”, “vivem dos salários”).
Mas Adam Smith leva ainda mais longe as suas reflexões: 245
Em primeiro lugar, observa que

“não é difícil prever qual das partes, em circunstâncias normais, levará sempre a melhor
nesta disputa [a disputa entre os operários que “pretendem obter o máximo possível” e os
patrões que “procuram pagar-lhes o mínimo possível”] e obrigará a outra a aceitar os seus
próprios termos. Os patrões, sendo em menor número, têm muito maior facilidade em associar-
se; além disso, a lei autoriza, ou pelo menos não proibe, as suas coligações, enquanto proibe as
dos trabalhadores. Não temos qualquer lei do parlamento contra as coligações destinadas a
baixar o preço do trabalho, mas temos muitas contra aquelas que pretendam elevá-lo. Em todas
as disputas desse género, os patrões podem resistir por muito mais tempo. Um proprietário, um
rendeiro, um dono de fábrica, ou um comerciante, poderiam normalmente subsistir um ou dois
anos sem empregar um único trabalhador, com base no pecúlio previamente acumulado. Muitos
trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana, poucos subsistiriam um mês, e
praticamente nenhum sobreviveria um ano sem emprego. A longo prazo, o operário pode ser tão
necessário ao patrão como o patrão é necessário a ele, mas a necessidade não é tão imediata”.

Em segundo lugar, chama a atenção para o diferente tratamento que o estado (a lei)
concede aos trabalhadores e aos patrões:

“Tem-se dito que é raro ouvir-se falar de coligações de patrões, enquanto se ouve com
frequência falar nas dos operários. Mas quem quer que, com base nesse facto, imagine que os
patrões raramente se coligam é tão ignorante do mundo como deste assunto. Os patrões mantêm
sempre e por toda a parte uma espécie de acordo tácito, mas constante e uniforme, tendente a
que os salários do trabalho se não elevem para além da taxa que vigora no momento. A violação
de tal acordo é, em toda a parte, considerada como o mais impopular dos actos e constitui uma
espécie de motivo de censura a qualquer patrão entre os seus próximos e iguais. É raro, na
verdade, ouvirmos falar desse acordo porque ele corresponde à situação habitual, pode mesmo
dizer-se natural, que jamais é comentada. Às vezes, os patrões entram também em coligações
específicas para fazer descer os salários do trabalho ainda abaixo dessa taxa. Estas são sempre
organizadas debaixo do maior silêncio e segredo, até serem postas em prática e, quando os
trabalhadores cedem, como por vezes acontece, sem opor resistência, as outras pessoas nunca
chegam a ouvir falar delas, por muito gravemente que pesem sobre os trabalhadores.”
245
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176-178.
147

Em terceiro lugar, Adam Smith reconhece que, perante a desigualdade e a injustiça, é


natural a reacção dos trabalhadores:246

“Muitas vezes os trabalhadores organizam uma coligação defensiva para se lhes oporem; e
também, às vezes, se organizam de moto-próprio, sem que se tivesse verificado qualquer
provocação desse género, para elevarem o preço do seu trabalho. As suas pretensões habituais
incidem, umas vezes, sobre o alto preço das provisões, outras vezes, sobre o elevado lucro que
os patrões auferem à custa do seu trabalho. Mas, quer estas coligações tenham carácter ofensivo,
quer defensivo, ouve-se sempre falar delas em abundância. Para conseguirem uma decisão
rápida, os trabalhadores recorrem sempre ao mais alto clamor e, em certos casos, à mais
chocante violência e desacato. Sentem-se desesperados, e actuam com o delírio e imoderação de
homens desesperados, a quem só resta morrer de fome ou, pelo medo, obrigar os patrões a acei -
tar imediatamente as suas reivindicações. Em tais circunstâncias, os patrões erguem, pelo seu
lado, idêntico clamor, reivindicando incessantemente o auxílio das autoridades civis e o
rigoroso cumprimento das leis destinadas a, com tanta severidade, se oporem às coligações de
criados, trabalhadores e jornaleiros.”

Perante homens desesperados, a quem só resta morrer de fome, é natural que os patrões
tirem vantagem, até porque contam com o apoio do estado (“o auxílio das autoridades civis”),
que não só faz leis que proibem com severidade as coligações de trabalhadores, mas impõe pela
força o seu rigoroso cumprimento. Nestas condições, a relação de forças é claramente favorável
aos empregadores capitalistas, que acabam sempre por obrigar a outra parte a “aceitar os seus
próprios termos”, conseguindo os patrões o seu objectivo de pagar aos operários “o mínimo
possível.”
A vantagem (o poder) dos patrões vem reforçada nos “anos de carestia”, com “elevado
preço das provisões.” E Adam Smith explica porquê: 247
1) porque, em anos destes, “os trabalhadores independentes pobres são, muitas vezes,
obrigados a consumir os pequenos capitais que habitualmente utilizavam para o seu sustento e
na compra de matéria-prima para o seu trabalho, o que os leva, para verem assegurada a
subsistência, a tornarem-se assalariados”;
2) porque, até por efeito desta proletarização de camadas sociais cada vez mais amplas, “a
procura de emprego é superior à oferta, muitos trabalhadores sujeitam-se a aceitá-lo em
condições inferiores às normais.” E os salários baixam;
3) porque - como finamente observa Smith -, sendo altos os preços das provisões, os
proprietários e os rendeiros não só ficam mais fortes (aumentam as rendas e os lucros) como
vêem reforçada a sua vantagem na negociação salarial com os trabalhadores, que a necessidade
torna “mais humildes e dependentes.”248

246
Cfr. Riqueza das Nações, I, 178.
247
Cfr. Riqueza das Nações, I, 203/204.
248
Um exemplo, colhido de Riqueza das Nações, I, 207: “Em 1740, um ano de extraordinária
carestia, muitas pessoas estavam dispostas a trabalhar em troca da simples subsistência.”
148

Como se escrevesse nos nossos dias, o filósofo-economista começa por sublinhar que o
estado não é neutro quando regula questões relativas às ‘relações industriais’: 249

“sempre que a legislação procura regular os diferendos entre os mestres e os seus


operários, é dos mestres que toma conselho.” Resultado: “Sempre que a lei tem procurado regu-
lamentar os salários dos trabalhadores, tem sido mais para os baixar do que para os subir.” Mais.
Segundo Adam Smith, “quando a legislação favoreça os operários, ela é quase sempre justa e
equitativa, o que nem sempre acontece quando é favorável aos mestres.” Exemplo de uma lei
“perfeitamente justa e equitativa”, que favorece os operários, é, segundo Smith, “a lei que
obriga os mestres de vários ofícios a pagar aos respectivos operários em dinheiro e não em
géneros. Não impõe qualquer dificuldade real aos mestres. Apenas os obriga a pagar o valor em
dinheiro daquilo que pretendiam pagar em bens, embora nem sempre o fizessem.”
Muitas vezes - salienta Smith - os patrões associam-se “a fim de reduzir os salários dos
operários, estabelecem normalmente entre si uma coligação ou acordo no sentido de não
pagarem salários superiores a certo montante, sob determinadas penas.” 250  E há leis - denuncia
Adam Smith - que se limitam a “dar força de lei àquela mesma regulamentação que os mestres
por vezes tentam impor por via de acordos privados.” Como exemplo de lei injusta e não
equitativa deste tipo, refere ele uma lei que “proibe, sob pena de pesados castigos, a todos os
mestres-alfaiates de Londres, ou de cinco milhas em redor, o pagarem, e a todos os oficiais o
receberem, mais de dois xelins e sete dinheiros e meio por dia.”

O estado não está, pois, ao serviço dos interesses dos trabalhadores e a voz destes “é pouco
ouvida e menos considerada nas deliberações públicas, excepto em casos particulares, quando o
seu clamor é animado, incitado e apoiado pelos patrões, não com o fim de servir os interesses

dos trabalhadores, mas os seus.”251 


Dito isto, não surpreende a conclusão do autor:252

“Desse modo, os trabalhadores raramente tiram qualquer vantagem da violência dessas


coligações tumultuosas que, em parte por força da intervenção das autoridades civis, em parte
devido à maior resistência dos patrões, e ainda em parte devido à necessidade em que a maior
parte dos trabalhadores se vê de se submeter para garantir a sua subsistência imediata,
geralmente ficam em nada, salvo pelo que respeita à punição ou ruína dos chefes do
movimento.”

4.6.3. - Os sans-culottes e o jacobinismo. A Constituição de 1793.

As camadas populares, que tinham participado activamente na eclosão e na


vitória do movimento revolucionário, de manifestavam-se agora contra a nova
aristocracia do dinheiro (a ditadura da burguesia, que substituíra a ditadura das

249 ?
Cfr. Riqueza das Nações, I, 283 e 302/303.
250
Cfr. Riqueza das Nações, I, 303. E Smith acrescenta: “fossem os trabalhadores a estabelecer
uma combinação do mesmo género em sentido contrário, ou seja, a de não aceitarem certos salários sob
determinada pena, a lei puni-los-ia severamente; ora, se ela fosse imparcial, trataria os mestres da mesma
forma.” O que não acontecia.
251 ?
Cfr. Riqueza das Nações, I, 476.
252
Cfr. Riqueza das Nações, I, 178/179.
149

classes feudais), quase sempre mais sob a forma de movimentos espontâneos do que
sob a forma de movimentos revolucionários organizados.
O grupo mais activo era constituído pelos sans-culottes, assim designados
porque não usavam os calções justos (culottes) habitualmente vestidos pela nobreza;
usavam as calças, o colete, a boina e o laço (indumentária que os distinguia e igualava,
bem como o tratamento por tu). Não constituíam uma classe social, mas um grupo
social heterogéneo (homens casados, de 40 a 45 anos, maioritariamente alfabetizados),
constituído por pequenos produtores independentes (artesanos e lojistas, cerca de
metade da sans-culotterie), uma parte da pequena burguesia e uma minoria de
assalariados. Não eram um partido nem uma estrutura organizada, mas um movimento
informe, predominantemente urbano, animado por gente solidária, que defendia
princípios igualitários, expressos na reivindicação do direito à vida e à subsistência para
todos. Os sans-culottes respeitavam a pequena propriedade privada, mas manifestava
grande hostilidade para com os ricos; defendiam uma democracia igualitária e libertária,
próxima da democracia directa; sustentavam que o estado devia garantir aos pobres o
direito a trabalho, um salário e a segurança social. Em nome destes princípios, foram
eles que trouxeram a revolução para a rua.253
A participação activa e as iniciativas de rua das camadas populares não estava,
certamente, nas previsões dos revolucionários burgueses. Mas ela tornou-se inevitável
perante o medo (fundamentado) da contra-revolução, estimulada pelas monarquias
europeias, animada no exterior pelos exilados e com vários focos no interior da França.
As acções de rua assustaram dirigentes da Revolução, que temiam a “subversão
social”, mas os historiadores reconhecem que, em 1791, a alternativa era a de
radicalizar a revolução, dando campo às massas populares, ou a abrir o flanco à contra-
revolução. A Constituição sancionada em 13 de Setembro de 1791 marcou os limites
da revolução burguesa enquadrada pela monarquia constitucional.254
253
Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 198-202 e E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 90/91.
À luz do que se diz no texto, compreende-se a justeza do retrato que do sans-cullote nos dá Prudhomme:
“Nenhum sans-culotte se torna ou se mantém rico; respeita o são direito de propriedade; morreria de fome
em vez de arrancar pela força a subsistência de uma família honesta e próxima do nível das suas
necessidades; mas é sem quartel para essas fortunas rápidas e insolentes, obra da intriga e da avidez.
Então ele toma os seus bens e restabelece o equilíbrio, sem o qual não há igualdade e, portanto, não há
República.”
254
Michel Vovelle refere o Grande Medo do verão de 1789, resultante de uma série de boatos
que, na sequência da Tomada da Bastilha, se espalharam por toda a França, anunciando a chegada de
bandidos que pilhariam e queimariam as colheitas. Este medo esteve na origem da decisão de abolir a
feudalidade, votada na noite de 4 de Agosto. Estas ondas de medo terão gerado explosões e violência
colectiva incontrolada (como o massacre de Setembro de 1792 de milhares de membros da aristocracia e
do clero, detidos em prisões da capital). Mas a verdade é que certas facções da burguesia revolucionária
150

Em 1792, a declaração de guerra da França à Áustria suscita novo fervor


revolucionário. Por pressão dos sans-culottes de Paris, inicia-se o período do Terror,
que durante dois anos concretizou a realização de algumas aspirações das camadas
populares e a esperança de estas imporem à França o seu programa. Em 10 de Agosto
de 1792 o povo toma de assalto o Palácio das Tulherias, e o rei é detido. Em Setembro
de 1792 a Convenção (eleita por sufrágio universal) proclama a República e decide
dotar a França de uma nova Constituição. Luís XVI foi executado em 21 de Janeiro de
1793.
As monarquias europeias fazem a guerra contra a França revolucionária. A
acção dos sans-culottes não se faz esperar, afastando da Convenção os principais
deputados girondinos e forçando a constituição de um Comité de Salvação Pública
presidido por Robespierre.
Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (aprovada em 24 de Julho
de 1793, como Preâmbulo à nova Constituição posterior à queda da monarquia) o
direito de propriedade é confirmado (arts. 1º e 2º) como direito natural e imprescritível,
mas é referido em último lugar, depois da liberdade, da igualdade e da segurança (a
segurança da propriedade). E o art. 1º começa por enunciar que “o objectivo da
sociedade é a felicidade comum”. Talvez em nome deste princípio geral, o art. 21º
consagra uma espécie de estado social avant la lettre: “As ajudas públicas são uma
dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos infelizes, quer dando-lhes
trabalho, quer assegurando os meios de subsistência àqueles que estão impossiblitados
de trabalhar”.
Em coerência com estes princípios, as primeiras medidas adoptadas pela
Convenção caracterizaram-se por uma feição ‘socializante’: instituição da partilha
igual das heranças, mesmo a favor dos filhos naturais, de modo a promover a
fragmentação da riqueza; criação de um imposto sobre os ricos; divisão em pequenos
lotes dos bens comunais e dos bens dos emigrados (cerca de 300 mil, entre 1789 e
1795); atribuição aos ‘patriotas indigentes’ dos bens dos ‘suspeitos’255;

caucionaram a violência revolucionária das massas contra os membros das antigas classes dominantes.
Marat escreveu no L’Ami du Peuple que “é dos fogos da subversão que nasce a liberdade”; e Robespierre,
ao defender a teoria do governo revolucionário, sustenta que “o governo revolucionário deve aos bons
cidadãos toda a protecção nacional; aos inimigos do povo, deve apenas a morte”. A necessidade de
recorrer à violência revolucionária para salvar a Revolução parece ser um aspecto marcante do
pensamento da burguesia revolucionária. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 192-198.
255
Suspeito, segundo a definição de 1793 era aquele “que não fez acto de adesão formal à
Revolução” (ver M. VOVELLE, ob. cit., 199).
151

institucionalização de um esquema de segurança social, com assistência médica


garantida no domicílio, pensões por doença e velhice, subsídios às famílias numerosas;
proclamação do carácter obrigatório, gratuito e laico do ensino básico; tentativa de
direcção da economia, para harmonizar os preços com os salários e garantir assim a
subsistência de todos; nacionalização da produção de guerra e do comércio externo,
etc..
Como se diz atrás, a sans-culotterie, mesmo a de feição mais revolucionária (a
de Paris), não era essencialmente constituída por operários industriais, mas por uma
coligação de pequenos comerciantes e mestres artesãos, juntamente com os
‘companheiros’ que com eles trabalhavam e viviam. Daí, a mentalidade pequeno-
burguesa das suas aspirações e das suas actuações. Nem pelo pensamento nem pela
acção, os trabalhadores assalariados constituíam, ainda, um corpo autónomo, actuante
e influente na sociedade francesa.
O elemento fundamental desta mentalidade popular era o igualitarismo,
reflectido na égalité des jouissances, que não exigia a supressão do direito de
propriedade consagrado nos textos constitucionais, implicando apenas a sua limitação
enquanto direito absoluto e o dever da República de “assegurar a todos os meios de
obter os géneros de primeira necessidade, a quantidade sem a qual não se poderá
conservar a existência”.
Neste sentido é que uma brochura anónima da época (1793) proclamava o
indigente comproprietário imprescritível dos bens do rico. A ideia da felicidade
comum implica que o rico não deve viver melhor que o pobre e por isso aquele deve
ceder o supérfluo e este tem direito a ele: “Tomai tudo o que um cidadão tem de inútil -
afirma-se nos textos políticos da sans-culotterie. (...) Todo o homem que tem mais que
o necessário não pode usá-lo, mas só abusar dele: assim, salvaguardando o que lhe é
estritamente necessário, tudo o resto pertence à República e aos seus membros
infortunados.” Acima do direito de propriedade afirmava-se o direito à existência: “A
primeira propriedade é a existência; é preciso comer não importa a que preço”
(Hébert).
O mesmo projecto igualitarista é o que transparece nas obras e na acção dos
Enragés, sobretudo em Leclerc e em Jacques Roux, o padre vermelho. Este visionava
que em breve “o século da idade do ouro sucederá finalmente ao século de ferro”. Com
este objectivo, propunha a criação, em todos os centros importantes, de ‘armazéns
152

públicos’, nos quais os ricos seriam obrigados a entregar os seus géneros, “oferecendo
a França, por toda a parte, o espectáculo e os recursos de um celeiro imenso”.
Esta santa igualdade foi uma constante no pensamento francês do século XVIII,
de Montesquieu a Rousseau, iluminando o anseio de uma República onde nenhuma
pessoa se encontrasse “sob a dependência directa e não recíproca de qualquer outro
particular”. Este objectivo igualitarista e o objectivo de assegurar a subsistência de
todos marcaram a actuação dos Jacobinos, o pensamento de Robespierre e de Saint-
Just, centrado no ideal de uma sociedade de pequenos produtores inde-pendentes, em
que a propriedade seria sempre fundada no trabalho pessoal.
Ideal impossível, em contradição com a realidade, que eles próprios ajudaram a
construir, de uma sociedade em que a força de trabalho de trabalhadores livres adquiriu
a categoria de mercadoria, em que a propriedade (ou a apropriação) de uns implica a
não-propriedade (ou a não-apropriação) de outros, cimentando-se a propriedade
daqueles no recurso ao trabalho assalariado destes. Uma sociedade em que a
concentração da propriedade nas mãos de um pequeno estrato da burguesia arrasta
consigo a liquidação dos pequenos produtores independentes, substituindo a
propriedade fundada no trabalho pessoal pela propriedade fundada no regime do
salariato.
O projecto igualitarista e as suas contradições estão patentes em vários escritos
de Robespierre: “O primeiro direito é o de existir – escreveu ele em 1793; a primeira
lei social é a que garante a todos os membros da sociedade os meios de existir; todas as
outras estão subordinadas a esta”.
Daí a sua crítica ao direito de propriedade, tal como o consagrava a Declaração
de 1789:

“Definindo a liberdade como o primeiro dos bens do homem, o mais sagrado dos
direitos que ele recebe da natureza, dissestes com razão que ela tinha por limites os direitos de
outrem. Porque não aplicastes este princípio à propriedade que é uma instituição social?...
Multiplicastes os artigos para assegurar a mais ampla liberdade ao exercício da propriedade e
não dissestes uma palavra para determinar a sua legitimidade; de maneira que a vossa
Declaração parece feita, não para os homens, mas para os ricos, para os açambarcadores e para
os tiranos”.

Daí o seu entendimento do direito de propriedade, não como direito natural e


imprescritível, anterior à própria organização social, mas como uma instituição social,
um direito inscrito em determinada realidade histórica, definido e limitado pela lei: “a
153

propriedade é o direito que têm todos os cidadãos de gozar e de dispor da porção de


bens que lhes é garantida pela lei”.
Sustentando que “a extrema desproporção de fortunas é a origem de muitos
males e de muitos crimes”, Robespierre teve no entanto a consciência de que “a
igualdade dos bens é uma quimera” (como afirmou na Convenção em 24.4.1793), o
que esclarece o sentido desta sua frase-programa: “II s’agit bien plus de rendre la
pauvreté honorable que de proscrire l’opulence”. Não se tratava, portanto, de
subverter a ordem social nem de pôr em causa a predominância da burguesia,
conquistadas em 1789.
Os jacobinos entendiam, nas palavras de Saint-Just, que “a opulência está nas
mãos de número bastante grande de inimigos da Revolução” e que “as necessidades
colocam o povo que trabalha na dependência dos seus inimigos.” Este diagnóstico da
situação e a força das circunstâncias - as necessidades da guerra, os imperativos da
defesa nacional, a defesa dos valores da Revolução - empurraram os jacobinos para uma
ligação mais estreita com as massas populares, cientes de que “um povo que não é feliz
não tem pátria” e de que a Revolução não poderia manter-se “se as relações civis
favorecem aqueles que são contrários à forma de governo”, como afirmou Saint-Just na
Convenção.
O mesmo Saint-Just que, em 6 de Fevereiro de 1794, reconhecia perante a
Convenção, que “a força das coisas nos [aos jacobinos] conduziu talvez a resultados
em que não tínhamos pensado”. Mas o ‘programa jacobino’ transparece em vários
passos do seu discurso: “Só tem direitos, na nossa Pátria, quem cooperou para a
libertar” “As propriedades dos patriotas são sagradas, mas os bens dos conspiradores
são para todos os desafortunados. (...) Não sofrais que haja um infeliz ou um pobre no
Estado”. Daí a sua proposta: “Aboli a mendicidade que desonra um estado livre”. E nas
suas obras doutrinárias. Nas Institutions Républicaines (1794), Saint-Just define de
modo paradigmático o espírito que vimos analisando: “Il ne faut ni riches ni pauvres...
L’opulence est une infamie”. Por isso o bom cidadão seria “o que não possui mais bens
do que aqueles que as leis lhe permitem possuir”. Daí que o objectivo da Revolução
fosse o de “dar a todos os franceses os meios de satisfazer as primeiras necessidades
sem outra dependência que não fosse a das leis e sem dependência mútua no estado
civil”. “É preciso que o homem viva independente”!
154

Sempre presente - como se vê - o ideal jacobino de uma sociedade constituída


por pequenos proprietários e produtores independentes, ideal cujas ressonâncias
utópicas são particularmente notórias nos escritos de Saint-Just.

A Constituição de 1793 não consagrou todas as teses acabadas de referir. Mas


ela terá sido a primeira constituição verdadeiramente democrática da história do
constitucionalismo. Ela aboliu, sem qualquer indemnização, os direitos feudais ainda
existentes; melhorou as condições de acesso dos pequenos à aquisição das terras dos
emigrados; consagrou o sufrágio universal, o direito ao trabalho ou à subsistência e o
direito à insurreição, proclamando que a felicidade de todos é o objectivo do estado e
que os direitos do povo devem ser cumpridos na prática.

Em Abril de 1794, porém, Robespierre fazia executar, ao mesmo tempo que


Danton e os adversários do Terror, alguns dos dirigentes das camadas populares. Com
a vitória sobre a coligação das nações europeias em Fleurus (Junho de 1794), afastado
o perigo de uma derrota da França, a reacção viu chegada a sua hora e o Comité de
Salvação Pública é afastado pela Convenção em 27-7-1794 (9 Thermidor do ano II).
No dia seguinte, Robespierre e os seus colaboradores são executados, terminando deste
modo o período de dois anos em que a revolução burguesa, com a ‘ditadura jacobina’
de Robespierre, mais se aproximara, nas suas realizações, dos anseios populares.256

Assim chegavam ao fim as duas revoluções que alguns distinguem no seio da


Grande Revolução Francesa: a primeira, de 1789 a 1791, é obra da burguesia,
empenhada em pôr de pé a nova ordem burguesa; a segunda, entre 1792 e 1794, foi
obra das camadas populares, que agiram com violência contra as resistências (internas e
externas) à marcha da Revolução.257

256
Perante o ataque da reacção europeia, a jovem República revolucionária recorreu à guerra
total, mobilizando todos os recursos da nação através do recrutamento obrigatório para o serviço militar,
da abolição virtual da distinção entre soldados e civis, do racionamento e do controlo apertado da
economia. “Só hoje nos apercebemos – escreve E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 95 – de
que muitas coisas da República e do ‘Terror’ de 1793/1794 apenas fazem sentido em termos do esforço
total de guerra”. Neste contexto, o governo jacobino aboliu a escravatura nas colónias francesas, com o
objectivo de animar os negros da colónia de S. Domingos a lutar pela República contra os ingleses.
257
Cfr. Albert SOBOUL, em Vértice, Julho de 1989, 15.
Como escreveu o historiador Mignet (1824), “os privilegiados quiseram impedir a Revolução; a
Europa tentou submetê-la e, forçada à luta, não pôde nem medir os seus esforços nem moderar a sua
vitória. A resistência interna conduziu à soberania da multidão; a agressão externa, ao domínio militar.
No entanto, o objectivo foi alcançado, apesar da anarquia e do despotismo: a antiga sociedade foi
destruída durante a Revolução, a nova ergueu-se sob o Império”.
155

Robespierre foi um dos dirigentes jacobinos que aceitou a necessidade da


violência revolucionária e da ditadura da burguesia para liquidar a velha ordem e
construir a nova. Em 5.XI.1792, afirmava na Convenção: “Cidadãos, quereis uma
revolução sem revolução? As prisões são ilegais? Porque não nos censurais por termos
desarmado os cidadãos suspeitos? Por termos afastado das nossas assembleias os
inimigos reconhecidos da Revolução? Todas essas coisas eram ilegais, tão ilegais com a
Revolução, como a queda do trono e da Bastilha, tão ilegais como a própria liberdade...
(...) A força só se fez para proteger o crime?”. E em 25.12.1793, apresentando a sua
teoria do governo revolucionário, Robespierre escreveu: “o governo revolucionário
deve aos bons cidadãos toda a protecção nacional; aos inimigos do povo, deve apenas a
morte”.258
E Saint-Just, num texto célebre de 6.2.1794, avisava que não há império que
possa existir “se as relações civis forem dominadas por aqueles que são contrários à
forma do governo” e que “os que fazem revoluções incompletas limitam-se a cavar a
sua própria sepultura”.259
Robespierre compreendeu, porém, os perigos dos excessos da violência. Por
isso, em 5.2.1794, apresentou à Convenção um relatório “Sobre os princípios de moral
política que devem guiar a Convenção”. Aí propõe como correctivo a virtude, a virtude
cívica, “essa virtude que não é mais do que o amor da pátria e das suas leis”, virtude que
não pode ser posta em prática sem a rectidão da vida privada (“um homem
revolucionário – escreveu Saint-Just – é um herói de bom senso e de probidade”).260

4.6.4. - O Directório. Babeuf e a “Conspiração dos Iguais”.

Afastados os jacobinos e dissolvida a Convenção, iniciou-se, com a reacção do


9 Thermidor do ano II, um período de Terror Branco, sob a responsabilidade do
Directório (Abril de 1795 a Outubro de 1799). A Declaração dos Direitos de 1795
suprimiu o artigo da Declaração de 1789 em que se afirmava que “os homens nascem e
são livres e iguais em direitos”; confinou-se a ideia de igualdade à abolição das
distinções de nascimento; foi retirada a referência aos direitos naturais do homem;
258
Citação colhida em M. VOVELLE, ob. cit., 85.
259
Ver M. VOVELLE, ob. cit., 107/108.
260
Um dos mais destacados deputados jacobinos da Montanha (os que ficavam nas filas de trás,
as mais altas, da sala das sessões), Levasseur, escreve sobre Robespierre: ele “criticou Léonard Bourdon
por ter aviltado a Convenção ao introduzir o costume de falar de chapéu na cabeça e outras formas
indecentes. (…) Robespierre mostra-se sempre amigo da virtude, da religião e até da decência. (…) Sente
que o homem só pode ser republicano se for, antes de tudo, moral e religioso” (cfr. M. VOVELLE, ob.
cit., 48).
156

desapareceram os direitos sociais proclamados em 1793; coloca-se a ênfase na defesa


da ordem, desaparecendo a norma que considerava a resistência à opressão uma
consequência dos outros Direitos do Homem e aquela que consagrava a ideia de que,
perante um governo que viola os direitos do povo, “a insurreição é, para o povo e para
cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
A miséria abatia-se sobre as classes populares e um grupo de homens, à frente
dos quais Graccus Bafeuf, dispõe-se a organizar uma sublevação armada, com o
objectivo de instituir a igualdade perfeita, o “viver e morrer iguais como nascemos”.
Foi a chamada Conspiração dos Iguais.
Babeuf deu de si próprio a ideia de um homem “que o universo inteiro bendirá e
que todas as nações, todos os séculos olharão como o salvador do género humano”.
Animado deste espírito messiânico, acreditava bastar que a ordem social merecesse ser
substituída para que essa substituição se pudesse operar em qualquer momento, desde
que houvesse um grupo de homens dispostos a tomar o poder e a instaurar o regime da
igualdade, tal como os Jacobinos tinham conquistado o poder e implantado a
República, em 1793. Para Babeuf, como observa Albert Soboul, “o comunismo deixou
de ser simples exercício literário, sonho sentimental ou sistema moral: é uma sociedade
a construir”.
Desmistificando a igualdade de direitos consagrada no art. 1.° da Constituição
de 1791, os seguidores de Babeuf pretendiam a igualdade real (não a mera igualdade
civil), objectivo da República dos Iguais: “Queremos a igualdade real ou a morte; eis
aquilo de que precisamos. E tê-la-emos, esta igualdade real, não importa a que preço.
Desgraçados daqueles que encontrarmos entre ela e nós!”.
Philippe Buonarroti (1761-1837) foi um dos discípulos de Babeuf e resumiu
assim, num livro publicado em 1828 (La Conspiration pour l’Égalité dite de Babeuf), os
princípios fundamentais da República dos Iguais:

“Art. 1º - A natureza deu a todos os homens um direito igual ao gozo de todos os bens.
Art. 2º - O fim da sociedade é defender esta igualdade, muitas vezes atacada pelo forte e pelo
mau no estado da natureza, e aumentar, pelo concurso de todos, os benefícios comuns. Art. 3.º -
A natureza impôs a todos a obrigação de trabalhar; ninguém pode, sem crime, subtrair-se ao
trabalho. Art. 4.º - Os trabalhos e os benefícios devem ser comuns. Art. 5.º - Há opressão quando
um se esgota pelo trabalho e tem falta de tudo, enquanto outro nada na abundância sem
trabalhar. Art. 7.º - Numa verdadeira sociedade, não deve haver nem ricos nem pobres. Art. 10.º
- O fim da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer a felicidade comum. Art. 11.º - A
revolução não acabou, pois os ricos absorvem todos os bens e só eles mandam, enquanto os
pobres trabalham como autênticos escravos, definham na miséria e não são nada dentro do
Estado.”
157

Dentro da tradição jacobina (Robespierre e Saint Just), Babeuf proclamava


como objectivo social a “felicidade comum”, associando-a à “égalité des jouissances”,
à “égalité de fait”. Este objectivo vem esclarecido pelas propostas contidas no
Manifeste des Égaux (redigido pelo jornalista Sylvain Maréchal e publicado por
Babeuf no jornal que dirigia, o Tribun du Peuple, em 30.XI.1795), as quais resumem a
filosofia social do babouvismo: ”Nós provaremos que tudo o que um indivíduo
açambarca para além do que o pode alimentar é um roubo social (...)”. E logo a seguir
adianta que a solução para os males sociais não reside na loi agraire (i.é, na repartição
das terras em parcelas iguais), pois que, a seu ver, “a lei agrária não pode durar mais
que um dia; e, desde o dia seguinte ao do seu estabelecimento, a desigualdade
reapareceria”.
Por isso o Manifeste des Égaux proclama que “o único meio de lá chegar (à
igualdade de facto) é estabelecer a administração comum, suprimir a propriedade
particular, ligar cada homem às suas aptidões, à indústria que ele conhece, obrigá-lo a
depositar o respectivo fruto em espécie no armazém comum; e estabelecer uma simples
administração de distribuição, uma administração das subsistências que, registando
todos os indivíduos e todas as coisas, fará repartir estas dentro da mais escrupulosa
igualdade”.
Com razão os autores qualificam as teses de Babeuf como um comunismo de
repartição e de consumo e apontam-lhes um certo pessimismo económico, traduzido
no facto de não haver nenhuma referência a uma sociedade comunista alicerçada na
abundância dos bens de consumo (a França de 1795 não permitia ainda a confiança no
industrialismo, que viria a caracterizar a obra de Saint-Simon).
Mas a verdade, por outro lado, é que Babeuf foi além do pensamento da sans-
culotterie e dos jacobinos, ultrapassando o apego destes à propriedade privada fundada
no trabalho pessoal, deixando para trás aquilo a que um autor chamou “a ilusão
burguesa do pequeno proprietário”. E é por isso que Albert Soboul sublinha nestes
termos a importância de Babeuf e dos Iguais:

“Pelo pensamento e pela acção, ultrapassou o seu tempo e afirmou-se como iniciador
de uma sociedade nova. (...) A importância da Conjuration des Égaux e do babouvismo só
pode medir-se à escala do séc. XX. Na história da Revolução e do Directório, constituem um
simples episódio que modificou sem dúvida o equilíbrio político do momento, mas sem
ressonância social profunda. Entretanto, pela primeira vez, a ideia comunista tinha-se
158

transformado em força política: daí, a importância de Babeuf, do babouvismo e da


Conspiração dos Iguais na história do socialismo.”261

Na leitura de Babeuf, a situação da França em 1795 revelava “uma guerra


declarada entre os nobres e os plebeus, entre os ricos e os pobres”. Neste quadro de
“guerra de classes”, a revolução violenta seria inevitável “quando as instituições
tendem a que uns fiquem com tudo e nada reste para os outros”, “quando a existência
da maioria se tornou de tal modo penosa que já não a pode suportar por mais tempo.”
Em 30.XI.1795 o Tribun du Peuple publica o Manifesto dos Plebeus.262 Aí se
conclama o povo a que “derrube todas as antigas instituições bárbaras e as substitua
por aquelas que são ditadas pela natureza e pela eterna justiça”.
Aos que rejeitavam a violência Babeuf respondia: “E que guerra civil há mais
revoltante do que aquela que mostra todos os assassinos de um lado e todas as vítimas
sem defesa do outro? (...) Não é preferível a guerra civil em que os dois partidos
possam defender-se reciprocamente?”
Por isso Babeuf defendia a subversão total: “Todos os males chegaram ao
cúmulo; não podem piorar mais; só podem reparar-se por uma subversão total! Que
tudo então se confunda! Que todos os elementos se misturem, não se destrincem e se
entrechoquem! Que tudo volte ao caos e que do caos saia um mundo novo e
regenerado!”.
Em 27 de Maio de 1797, Babeuf foi condenado à morte e executado. A
‘conspiração’ sonhada pelo “salvador do género humano” ficou adiada.

4.6.5. - Do 18 Brumário aos movimentos revolucionários da década de 1830.

Pouco antes do termo do século XVIII, o golpe de estado de 18 Brumário


(9.XI.1799) afasta o Directório e instala no poder Napoleão Bonaparte (que apoiara os
governos jacobinos).
Em 15.XII.1799, o Primeiro Cônsul proclamará: “Citoyens! La Révolution est
fixée aux principes qui l’ont commencée, elle est finie”. Assim se pretendia consagrar
como ordem estabelecida o conjunto de valores saídos da Revolução de 1789.263

261
Cfr. A. SOBOUL, “Utopie…, cit., 245 e 252. O próprio Lenine reconheceu que “a Revolução
Francesa construiu as ideias do comunismo (Babeuf) que, elaboradas de modo consequente, continham a
ideia da ordem nova do mundo” (apud V. M. DALINE, ob. cit., 63).
262
Cfr. A. SOBOUL, Vértice, Julho/1989, 13/14.
263
Como refere Michel Vovelle, “conclui-se a história da Revolução. Começa a aventura
napoleónica” (Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 65).
159

Em 1804, Napoleão é proclamado Imperador dos Franceses. Durante o seu


governo foram promulgados dois documentos jurídicos de excepcional importância na
consolidação da ordem burguesa: o Code Civil (1804), ainda hoje conhecido por Code
Napoléon, modelo dos códigos civis do liberalismo, e o Code de Commerce (1808).
Foi também Napoleão que criou o Banco Nacional da França.
A partir de 1794-95, Napoleão desenvolve uma série de campanhas militares,
que permitiram à França revolucionária derrotar algumas das coligações monárquicas
contra a França e ocupar uma boa parte da Europa, desde Portugal até à Rússia. Em
1814, Paris foi ocupada e em 6 de Abril de 1814 o Imperador resignou, chegando ao
fim o Primeiro Império. Derrotado Napoleão, sobe ao trono Luís XVIII e inicia-se a
Restauração. Napoleão tentou o regresso ao poder, em 1815, mas o seu governo foi
apenas o Governo dos Cem Dias, tendo terminado com a derrota das tropas de
Napoleão na batalha de Waterloo (Junho de 1815). Apesar da derrota, as campanhas
napoleónicas contribuiram fortemente para a difusão dos ideais revolucionários por
todo o continente, e a França regressou ao convívio europeu em 1818.264

Os anos imediatamente anteriores a 1830 foram férteis em manifestações


populares nos campos (em virtude da alta de preços dos cereais) e nas cidades, onde se
sucederam as greves, as revoltas, a sabotagem das máquinas, as manifestações de
protesto contra a baixa de salários, contra o alongamento da jornada de trabalho e
contra a introdução das máquinas (responsabilizadas pelo desemprego reinante).
Em Julho de 1830, os trabalhadores pobres de Paris e de outras cidades
construíram barricadas por todo o lado. Esta revolução das barricadas permitiu que
estes trabalhadores se identificassem e assumissem cada vez mais como a classe
operária. Na sequência da guerra das barricadas de Paris, Luís XVIII é apeado do trono,
chegando ao fim a dinastia dos Bourbon e iniciando-se a Monarquia de Julho. Em certo
sentido, poderá dizer-se que “a Revolução de 1789 só acabou verdadeiramente em 1830,
quando a burguesia, tendo conduzido ao poder um rei que aceitava os seus princípios,
tomou definitivamente posse da França”.265

264
Neste início do século XIX, os revolucionários do continente europeu estavam unidos na luta
contra o inimigo comum, a frente dos reis e príncipes absolutistas, sob aliderança do czar da Rússia.
“Todos consideravam a revolução una e indivisível: um só fenómeno europeu, e não um conjunto de
libertações nacionais ou locais” (E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 160).
265
Cfr. A. SOBOUL, “La Révolution…, cit., 26.
160

No momento da subida ao poder do Duque de Orleães (o rei Luís Filipe), o


banqueiro Laffitte proclamava: “Agora, o reino dos banqueiros vai começar”. E a
verdade é que, sob a Monarquia de Julho, a oligarquia financeira passa a controlar
efectivamente o poder económico e o poder político: “elle se logea dans toutes les
places”, reconhece Tocqueville. E Marx:

“quem dominava era apenas uma fracção da burguesia: banqueiros, reis da Bolsa, reis do
caminho de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro e de florestas e uma parte dos
proprietários fundiários aliados a estes – a chamada aristocracia financeira. (…) A burguesia
industrial propriamente dita constituía uma parte da oposição oficial, isto é, estava representada
nas Câmaras apenas como minoria. (…) Tanto a pequena burguesia, em todas as suas
gradações, como a classe camponesa estavam totalmente excluídas do poder político. (…) a
Monarquia de Julho não passava de uma sociedade por acções para explorar a riqueza nacional
da França, cujos dividendos eram distribuídos por ministros, Câmaras, 240 000 eleitores e o seu
séquito”.266

Mas quem foi o sujeito histórico desta ‘revolução’? Parece correcta a resposta
de Alexandre Dumas (pai): “Quem fez a Revolução de 1830 foi essa juventude ardente
do proletariado heróico, que provoca o incêndio, é verdade, mas que o extingue com o
seu sangue”.
Mas o povo, como então observava Lamennais, “pergunta-se para quem é que
ele venceu, e se não tem nada a esperar de uma vitória que pagou tão ricamente; se
deve arrastar-se eternamente na mesma miséria, na mesma baixeza. Não! Tal é a sua
resposta. Então põe-se a grande questão, começa a grande luta”. Com efeito, apesar de,
na análise de Augusto Blanqui, a ‘revolução’ pouco mais ter sido do que simples
“mudança de efígie nas moedas que os proletários vêem raramente”, a verdade é que a
classe operária começa a reconhecer-se e começa a ser reconhecida como tal.
Em Novembro de 1831, os operários da indústria da seda de Lyon
desencadearam uma revolta que teve como lema o célebre “vivre libre en travaillant,
ou mourir en combattant”. Uma parte dos empresários, com o apoio do Governo,
recusava-se a aplicar as novas tarifas salariais convencionadas em Outubro. Daí a
revolta dos canuts, que chegaram a constituir um governo provisório em Lyon, mas
acabaram por ser vencidos em 3 de Dezembro por um exército de vinte mil soldados.
Justificando a revogação do acordo de Outubro, o chefe do Governo, Casimir
Périer (ele próprio industrial), declarava na Câmara dos Deputados em 25.XI.1831,
numa clara invocação da filosofia social inspiradora da Lei Le Chapelier: “Essa
medida era ilegal, uma vez que as leis não permitem de modo algum fixar o preço do
266
Cfr. C. MARX, As lutas de classes…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I,
210-212.
161

trabalho, e que este preço deve ser sempre o resultado de um acordo inteiramente
voluntário entre o fabricante e o operário”. Esmagada a revolta, o mesmo Casimir
Périer declarava abertamente: “É preciso que os operários saibam bem que não há
remédio para eles que não seja a paciência e a resignação”.
Apesar do fracasso, a insurreição dos canuts de Lyon é tida como um ponto de
viragem na história do movimento operário, não só na França mas no mundo inteiro:
“Ela revelou - escrevia-se em Le Journal des Débats, de 8.XII.1831 - um grave
segredo, o da luta interna que se verifica na sociedade entre a classe que possui e a que
não possui (...). Os bárbaros que ameaçam a sociedade não estão no Cáucaso, nem nas
estepes da Tartária; estão nos arrabaldes das nossas cidades manufactureiras”. Resulta
deste trecho uma clara consciência da luta de classes, na medida em que os interesses
da “classe que possui” (os interesses da burguesia) são identificados com o interesse
da sociedade, ao passo que a “classe que não possui” é identificada com os bárbaros
que ameaçam a sociedade (o inimigo da sociedade, o inimigo interno).
Entretanto, a agitação operária não cessou e as reivindicações iam ganhando um
grau crescente de politização. Ainda em 1831, Victor Hugo escreveu que ouvia “o som
opaco da revolução, ainda nas profundezas da terra, avançando sob as galerias
subterrâneas dos reinos da Europa a partir do poço central da mina, Paris”. Em 1832
houve luta nas ruas da capital francesa. Em 1834, os operários de Lyon tiveram forças
para organizar uma greve, a qual viria a ser dominada depois de seis dias de luta com
as tropas da realeza, cuja intervenção deixou claro aos operários que “la royauté est
liée à la fabrique”. A natureza de classe do estado (a ditadura da burguesia) começava
a tornar-se clara aos olhos do novo operariado.
No período que vai de 1830 a 1848, as movimentações de massas na França
foram ainda dominadas predominantemente por artesanos e artífices urbanos e por
mestres das indútrias tradicionais. A organização destes trabalhadores não ia muito
além da associações mutualistas, bastante generalizadas. O dirigente mais destacado
deste período, Louis Auguste Blanqui (1805-1881), era discípulo de Buonarroti,
continuando a tradição do jacobinismo e do babouvismo. Em termos de organização
política, o blanquismo recorria à estratégia conspiratória das organizações secretas
muito frequentes na época, não só na França, mas em toda a Europa a ocidente dos
Balcãs, destacando-se entre elas a carbonária, inspiradora de insurreições várias, que a
sua anarquia condenava ao fracasso.
162

Os blanquistas defendiam, porém, que a acção revolucionária deveria ter como


objectivo a tomada do poder político e a implantação da ditadura do proletariado,
expressão que, segundo Hobsbawm, foi cunhada por blanquistas.267

4.6.6. - A industrialização e a situação social da França nas vésperas de 1848.

A realidade económica da França ia-se alterando em relação ao que era nos anos
que antecederam a Revolução de 1789. As máquinas penetram em todos os sectores da
indústria francesa. Aplicam-se novas técnicas na indústria têxtil, na metalurgia e na
siderurgia, conhecendo estas últimas um período de acentuado desenvolvimento com o
arranque dos caminhos de ferro. O coque vai substituindo a madeira nos altos fornos.
O fenómeno da concentração começa a ser notório na indústria mineira (a Compagnie
des Mines de la Loire, constituída em 1845, gozava de verdadeiro monopólio), o
mesmo acontecendo na indústria algodoeira (sobretudo em Mulhouse) e na metalurgia
(sector onde sobressaíam os grupos Creusot e De Wendel), embora as grandes
empresas não sejam ainda muito frequentes.
Este desenvolvimento industrial produziu efeitos notórios sobre a estrutura da
sociedade francesa: em 1847 ocupavam-se na indústria cerca de seis milhões de traba-
lhadores franceses, embora apenas pouco mais de um quarto trabalhassem em fábricas.
A crescente utilização das máquinas veio, por outro lado, permitir a utilização da força
de trabalho das mulheres e das crianças, desvalorizando a qualificação profissional e o
estatuto social dos antigos artesanos.
Às cidades industriais afluíam grandes massas de trabalhadores, que a indústria
não podia ocupar permanentemente e que, por isso, se mantinham, como uma espécie
de ‘exército camponês de reserva’, à mercê dos empregadores.
As condições de vida e de trabalho das famílias operárias eram verdadeiramente
alarmantes, como o comprova a leitura dos inquéritos à situação das classes
trabalhadoras que então se efectuaram, o mais conhecido dos quais é o do médico
Louis-René Villermé (1782-1863), tornado público em 1840.268
“Em Mulhouse – escreve o Dr. Villermé - as oficinas abriam às cinco horas,
com uma hora e meia para o almoço (...) Em Ruão, a jornada normal é de 15 horas e
meia e os operários da tecelagem do algodão chegam a trabalhar 17 horas”.

267
Cfr. A Era das Revoluções, cit., 171.
268
Ver P. VILLERMÉ, ob.cit. Em 1829, este médico francês fundou a revista Annales d’Higiène
Publique, na qual colaboraram, além de outros médicos franceses, vários médicos ingleses e alemães.
163

Na fiação de algodão, cerca de 30% dos operários são crianças, metade das
quais com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos. 269 Nem por isso, segundo o
relato de Villermé, a sua situação era mais favorecida:

“permanecem 16 a 17 horas de pé por dia, das quais treze pelo menos numa divisão
fechada, quase sem mudança de lugar ou de posição. Não se trata de um trabalho, de uma
função: é uma tortura; e é infligida a crianças de 6 a 8 anos, mal alimentadas, mal vestidas,
obrigadas a percorrer, desde as cinco horas da manhã, a distância enorme que as separa das
oficinas, e que o regresso, à noite, dessas mesmas oficinas, acaba por esgotar completamente.”

Acresce que eram péssimas as condições de trabalho nas fábricas. Os acidentes


no trabalho eram frequentíssimos, sobretudo com as crianças. As doenças profissio-
nais cedo começaram a minar a saúde dos trabalhadores, em cujo espírito se ia
acentuando o ódio à fábrica.
O espectáculo desta gente que todos os dias vem dos arrabaldes para os locais
de trabalho nas cidades é narrado de forma impressionante no referido relatório de
Villermé:
“É preciso vê-los chegar todas as manhãs e partir à noite. Há entre eles uma multidão
de mulheres pálidas, magras, caminhando descalças no meio da lama, as quais, por não terem
guarda-chuva, trazem o avental ou a saia voltada sobre a cabeça, quando chove (...), e um
número ainda maior de crianças não menos sujas, não menos macilentas, cobertas de andrajos
engordurados pelo óleo que das máquinas cai sobre eles quando trabalham (...). Trazem na
mão ou escondem sob a roupa, como podem, o pedaço de pão que os alimentará até à hora do
regresso a casa.”

Para evitar as longas caminhadas a pé dos subúrbios até às oficinas da cidade,


muitas famílias preferiam albergar-se de qualquer modo nas cidades, em bairros
sombrios e superlotados, habitando tugúrios insalubres em condições da maior
promiscuidade: “(...) na maior parte dos leitos de que acabo de falar – relata Villermé -
vi deitados juntos indivíduos dos dois sexos e de idades muito diferentes, a maioria das
vezes num estado de sujidade repelente. Pai, mãe, adultos, todos aí se acumulavam.”
Não admira que proliferassem a degradação moral e o alcoolismo e que a
prostituição constituísse o ganha pão de muitas meninas de 12 a 14 anos, oriundas dos
meios operários.
Os salários eram tão baixos que a alimentação absorvia entre 70% e 80% dos
orçamentos das famílias operárias, sendo certo que, em muitos casos, não cobriam

269
Um Primeiro Ministro inglês, William Pitt, dava este bom conselho aos empregadores: “se os
salários são muito elevados, contratem as crianças” (apud J. MARCHAL, Cours…, cit., 103.). Em Portugal,
ainda em 1910 teve lugar uma greve de ‘trabalhadores’ com idades entre os 6 e os 11 anos.
164

sequer as necessidades da simples sobrevivência fisiológica. De novo nos socorremos


de Villermé:

“É necessário admitir (...) que a família cujo trabalho é mal retribuído só subsiste graças
aos seus ganhos na medida em que o marido e a mulher tenham saúde, estejam empregados
durante todo o ano, não tenham nenhum vício e não tenham outros encargos além do que
representam dois filhos de tenra idade. Suponham um terceiro filho, o desemprego, uma doença,
a falta de espírito de economia, hábitos ou apenas uma ocasião fortuita de intemperança e esta
família encontra-se na maior dificuldade, numa miséria horrível.”

Acrescente-se que as taxas de desemprego eram elevadíssimas, chegando a


atingir, em média e para certas indústrias, entre 30% e 50% dos trabalhadores. As altas
taxas de mortalidade, a calamidade da epidemia de cólera (1832) alarmaram toda a
gente. Por esta época, Ramazzini inicia o estudo das doenças profissionais, que
atingiam percentagens muito elevadas dos trabalhadores de várias profissões ligadas à
indústria moderna. A realidade comprovava a acusação de Fourier: “En civilisation, la
pauvreté naît de l’abondance même”. A miséria dos trabalhadores acompanhava o
progresso do capitalismo, a acumulação do sofrimento andava de par com a
acumulação do capital.
Em 1837, Villermé denunciava “o definhamento assustador da generação que se
desenvolve”.  A consciência desta delapidação do ‘capital humano’ e a consciência de
que o trabalho precoce das crianças estava a gerar uma “sociedade ameaçada por uma
população desamparada e sem princípios” foi-se generalizando. E foi esta necessidade
de preservar a ‘galinha dos ovos de ouro’ que levou o estado a deixar a sua atitude de
não-intervenção para promulgar, em 1841, a primeira lei social, que regulamentava o
trabalho das crianças nas oficinas. Eis o comentário de um dos membros da Câmara dos
Pares em 4.3.1840:

“Se um tirano, um conquistador estrangeiro, tivesse ocupado a França e nos tivesse


falado deste modo: logo que se consigam manter sobre as pernas, centenas de milhares das
vossas crianças ser-vos-ão retiradas, serão introduzidas em estabelecimentos onde a sua
organização física será degradada, enfraquecida de ano a ano, onde, em vez de conhecerem as
brincadeiras, a alegria, a liberdade da sua idade, serão iniciadas em tudo o que há de mais
deplorável na depravação humana, onde serão primeiro moralmente e depois intelectualmente
embrutecidas, para serem em seguida fisicamente debilitadas, onde as vossas filhinhas perderão
a inocência antes mesmo da idade núbil, se um tirano - dizia eu - tivesse agido assim com a
França não haveria ódio e injúrias suficientes para lançar sobre a sua cabeça. Pois bem! O juízo
da indústria é esse”.270

270
Tendo em conta a realidade inglesa, Marx cita o depoimento de um médico de Londres
perante a Câmara dos Comuns, pouco antes da aprovação do Factory Act de 1833: “É necessária
legislação para impedir que possa infligir-se a morte sob qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é
corrente nas fábricas) deve ser seguramente considerada como um dos métodos mais cruéis de a infligir”
165

A lei aprovada fixava nos oito anos a idade de admissão das crianças num posto
de trabalho e proibia o desempenho de trabalho nocturno ou perigoso, permitindo,
porém que, a partir dos 12 anos de idade, as crianças trabalhassem 72 horas por
semana. Com esta lei pioneira - que não chegou, aliás, a ser aplicada, por a ela se
oporem os industriais e todos os defensores da liberdade de empresa - inicia a
legislação do trabalho a sua orientação no sentido da protecção do trabalhador
enquanto parte mais fraca da relação laboral (favor laboratoris), antecipando a lição do
abade Lacordaire, em plena revolução de 1848, segundo a qual “entre le fort et le
faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui
opprimme et la loi qui affranchit.”271
O curso da industrialização continuou, ao longo da década de 1840, a acentuar
os seus efeitos na sociedade francesa, concentrando um número crescente de operários
em empresas cada vez maiores e em centros urbanos polarizadores da actividade
industrial, nos quais os operários viviam em grande número, em bairros miseráveis
que, com o tempo, lhes foram ficando ‘reservados’. Assim se foram criando condições
para que os trabalhadores, se apercebessem da identidade dos seus problemas e dos
seus interesses e fossem tomando consciência da sua existência como classe social.
Embora se continuassem a verificar, sobretudo por parte dos trabalhadores recém-
chegados dos campos, revoltas espontâneas que eram apenas fruto do desespero
(autênticas jacqueries prolétariennes, como alguém lhes chamou), a verdade é que a
necessidade de tomadas de posição colectivas, organizadas, começou a sobrepor-se às
revoltas individuais, mais ou menos desarticuladas. A década de 1840 marcou, neste
aspecto, uma profunda mudança.
Num inquérito publicado em 1840 (tal como o de Villermé, já referido) chama-
se a atenção para que “os operários (...), isolados da nação, afastados da comunidade
social e política, sozinhos com as suas necessidades e as suas misérias, agitam-se para
sair desta solidão desesperada e, como os bárbaros, aos quais já foram comparados,
meditam talvez uma invasão.” Perante esta leitura da situação social na França, não
espanta que o autor do relatório concluísse que “esperar pôr cobro à miséria pela
caridade é tentar tolamente esvaziar o oceano”.

(cfr. Le Capital, trad. J. Roy, cit., 209). Por esta altura, num baile de máscaras no palácio do Duque de
Orleáns, a baronesa Rothschild exibia jóias no valor de meio milhão de francos (informação colhida em
E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 281).
271
Apud R. BARRE, ob. cit., II, 102.
166

O grau de compreensão da realidade francesa desse tempo é expresso por Buret


nesta sua interrogação: “A acumulação dos capitais nas mãos de um pequeno número
de indivíduos, o aparecimento dessas grandes entidades mercantis que chamamos
capitalistas, não correspondem naturalmente à constituição regular dessas famílias
privilegiadas dos tempos feudais que absorviam em seu proveito toda a independência
e todos os direitos?”

Na esteira do movimento babouvista (por influência do livro, atrás referido, de


Buonarroti, velho companheiro de Babeuf), expande-se por toda a França o ideário
comunista. Um conhecido industrial francês, Daniel Legrand, observava em 1847 que
“as ideias comunistas e socialistas começam a expandir-se e a ganhar raízes com uma
rapidez assustadora e poderão transformar-se em factos de um dia para o outro e pôr
em perigo toda a sociedade, na medida em que ela não tenha posto cobro a esses
intoleráveis abusos”.
Em Janeiro de 1848, Tocqueville perguntava na Câmara dos Deputados: “Não
vedes que se expandem pouco a pouco no seu seio [no seio das classes trabalhadoras]
opiniões que não visam apenas substituir determinadas leis, um dado ministério,
mesmo um certo governo, mas a sociedade, subvertendo as bases sobre as quais ela
assenta hoje? (…) estamos a dormir em cima de um vulcão… Não vedes que a terra
recomeça a tremer? Sopra um vento de revolução, a tempestade surge no horizonte”.272
Pouco depois, no dia 24 de Fevereiro de 1848, foi publicado em Londres, sem
indicação do nome dos autores, o Manifesto Comunista, que começa exactamente com
esta observação: “Anda um espectro pela Europa – o espectro do comunismo”.

4.6.7. - A Revolução de 1848.

Entretanto, a miséria das camadas trabalhadoras, acima ilustrada através das


conclusões de Villermé, não cessou de agravar-se. O poder de compra, embora muito
baixo, manteve-se mais ou menos estacionário entre 1840 e 1845, ano em que
começou a baixar acentuadamente, de tal modo que em 1847 caiu para um nível
inferior ao de 1834.
Entretanto, três outros factores vieram agravar a situação:

272
Citação colhida em E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 21.
167

1) a aliança da Monarquia de Julho com a alta finança degenerou em corrupção


generalizada, com a utilização do aparelho de estado ao serviço dos interesses dos
magnates da banca e dos caminhos de ferro, beneficiários do progressivo
endividamento do estado e da especulação desenfreada que se lhe seguiu;
2) as más colheitas agrícolas e a doença da batata nos anos de 1845 e 1846, que
contribuíram decisivamente para a carestia da vida, particularmente acentuada em
1847;
3) a crise económica que provocou a falência de vários bancos e o encerramento
de muitas fábricas na Inglaterra (onde atingiu o seu ponto alto em 1847) e que não
deixou de afectar as economias capitalistas do Continente, incluindo a da França, onde
a falência atingiu grande número de pequenos industriais e comerciantes.

E a revolução anunciada aconteceu: a Revolução de Fevereiro de 1848.


A Monarquia de Julho e o seu governo tiveram que ceder o lugar a um Governo
Provisório, composto fundamentalmente por elementos da pequena e média burguesia
republicana, no meio dos quais Louis Blanc e o operário mecânico Albert
representavam os interesses populares, e o poeta Lamartine - como alguém escreveu -
“não representava nenhum interesse real, nenhuma classe determinada; era a própria
revolução de Fevereiro, o levantamento comum, com as suas ilusões, a sua poesia, o
seu conteúdo imaginário e as suas frases”.
Apesar da oposição de Lamartine à implantação da República antes que a
maioria dos franceses o decidisse através do voto, o povo fazia pressão nas ruas no
sentido da proclamação imediata da República. Em 25 de Fevereiro, Raspail, em nome
dos trabalhadores da capital, apresentava ao Governo Provisório um autêntico ultimato
para que proclamasse a República dentro de duas horas, caso contrário regressaria à
frente de 200 mil homens. A República foi proclamada e restabelecido o sufrágio
universal. O proletariado de Paris afirmava-se como força política, desejoso de novas
conquistas.
Blanqui proclamava que “a República seria uma mentira se se limitasse a ser a
substituição de uma forma de governo por outra. Não basta mudar as palavras: é
preciso mudar as coisas”. E Tocqueville, num texto de 1850-1851, não deixava de
observar:
168

“desde 25 de Fevereiro, mil sistemas estranhos saíram impetuosamente do espírito


perturbado da multidão... Era como se, com o choque da revolução, a própria sociedade tivesse
sido reduzida a pó e tivesse sido posta a concurso a nova forma que era necessário dar ao
edifício que se ia construir em seu lugar (...). O socialismo ficará como a característica
essencial e a lembrança mais terrível da revolução de Fevereiro. A República só aparecerá de
longe como um meio, não como um fim”.

Senhores da sua força, os trabalhadores levaram o Governo Provisório a


reconhecer legalmente o direito ao trabalho (e o consequente dever do estado de
garantir a todos os trabalhadores a existência pelo trabalho), reivindicação que, a partir
da Revolução de 1848, substituiu a reivindicação da liberdade de trabalhar, que
marcara o século anterior e tinha sido alcançada como corolário do fim da servidão e
do reconhecimento dos trabalhadores como seres livres, sujeitos de direitos e de
deveres.
Em 27 de Fevereiro começaram a funcionar os ateliers nationaux. No dia
seguinte os trabalhadores clamavam pela constituição de um Ministério do Trabalho.
Não o conseguiram, mas desta reivindicação saiu a Comissão do Luxemburgo (assim
chamada por estar sediada no Palais du Luxembourg), que integrava representantes
das várias artes e ofícios e representantes patronais, sob a presidência de Louis Blanc e
Albert. Em outras cidades (Lyon, por ex.) foram-se criando comissões idênticas a esta
Comissão do Luxemburgo. O seu objectivo era o de procurar os meios de melhorar a
condição das classes trabalhadoras. O governo (o poder efectivo) continuava nas mãos
da burguesia e a Comissão do Luxemburgo viria a revelar-se impotente para resolver
os problemas dos trabalhadores. Como Marx salienta em A Luta de Classes em
França, “a classe operária francesa (...) era ainda incapaz de fazer a sua própria
revolução.”
Em resultado do compromisso que presidira à constituição do Governo
Provisório (“um governo que - nas palavras de Lamartine - suspende esse mal
entendido terrível que existe entre as classes”), as classes trabalhadoras iam alcançando
alguns benefícios, como a redução da jornada de trabalho: para dez horas em Paris
(onze horas na província). A Comissão do Luxemburgo, por sua vez, ia tentando criar
sociedades de produção de tipo cooperativo, procurando resolver pela arbitragem os
conflitos entre patrões e trabalhadores.
A influência das ideias de Louis Blanc é patente no principal projecto de lei
saído da Comissão: a proposta de aquisição pelo estado dos caminhos de ferro e das
minas, de transformação do Banco de França em Banco do Estado, de centralização
169

dos seguros nas mãos do estado, etc.. Como o próprio Louis Blanc escreveu, “o estado
chegaria à realização desse plano através de medidas sucessivas. Não se trata de
violentar ninguém”. Dentro deste espírito, os trabalhadores concedem ao Governo três
meses, na esperança de verem realizados os seus anseios (“trois mois de misère au
service de la République”).
Neste entretanto, difundiam-se os clubes e os jornais de feição socialista,
animados pela acção de Dézamy, Blanqui, Cabet, Lamennais, Proudhon. Em Abril
realizaram-se as eleições para a Assembleia Constituinte, abertas, pelo sufrágio
universal, a mais de nove milhões de eleitores (em vez dos 250.000 do regime
censitário).
Blanqui bem avisara que “a eleição imediata da Assembleia Nacional seria um
perigo para a República”. Com efeito, os resultados da eleição vieram mostrar que os
socialistas eram largamente minoritários na França de meados do século XIX. Mesmo
em Paris, apesar da eleição de Louis Blanc, a chamada lista do Luxemburgo foi
derrotada.
Em Maio, Louis Blanc e Albert abandonaram a presidência da Comissão do
Luxemburgo (suprimida pouco depois) e foram afastados da Comissão Executiva, que
sucedeu ao Governo Provisório e que em breve começaria a tomar medidas de reacção
às conquistas populares que se seguiram a Fevereiro. Pouco depois, Blanqui, Raspail e
Albert (talvez os mais avançados e os mais lúcidos dos representantes dos
trabalhadores) são presos e os clubes socialistas são encerrados. “Trata-se apenas de
reconduzir o trabalho - proclamava na Assembleia o ministro Trelat - às suas antigas
condições” Desfaziam-se as ilusões de Fevereiro: a República que os operários de
Paris obrigaram a proclamar, na esperança de alcançarem uma república democrática e
social,273 afirmava-se definitivamente como república burguesa, apostada na
consolidação do poder da burguesia, de acordo com o lema de que “a burguesia não
tem rei, a verdadeira forma da sua dominação é a república”.274
Os ateliers nationaux, desviados dos objectivos que Louis Blanc lhes assinalara,
em breve se transformaram numa nova edição dos ateliers de charité do Ancien
Régime. Como nas workhouses inglesas, neles eram acolhidos os trabalhadores
lançados no desemprego em virtude da crise económica e da revolução, os quais iam
removendo a terra no Campo de Marte, num trabalho fastidioso e improdutivo, a troco
273
“O que se devia entender por república social ninguém sabia ao certo, nem mesmo os
operários”, comenta Engels na Introdução a A Guerra Civil em França.
274
Cfr. K. MARX, As lutas de classes… cit., 239.
170

de um salário de subsistência. Os meios da burguesia não deixavam de identificar essa


criação do Governo Provisório com as ideias socialistas de Louis Blanc, para depois
poderem concluir: “Uma pensão do Estado para uma aparência de trabalho, eis o
socialismo”. Assim se preparava o caminho para futuras medidas que levaram
praticamente à dissolução dos ateliers nationaux, com os quais se foram as últimas
esperanças de um socialismo realizado pela organização do trabalho.
De 22 a 26 de Junho desse ano de 1848, lutou-se duramente nas ruas de Paris:
assim se iniciava “a primeira grande batalha entre as duas classes que dividem a
sociedade moderna”. Os operários revoltados, cujo lema era du pain ou du plomb (ou
pão ou chumbo) receberam o chumbo disparado pelas armas dos homens comandados
pelo general Cavaignac, que assumira poderes ditatoriais após a dissolução da
Comissão Executiva. Vários milhares de mortos e mais de 25 mil presos dizem bem de
quanto tinha sido utópica a revolução de Fevereiro, “a revolução da simpatia geral”:

“a fraternidade – escreveu Marx - durou justamente o tempo durante o qual o interesse


da burguesia era irmão do interesse do proletariado.(...) A fraternidade das classes antagónicas,
uma das quais explora a outra, essa fraternidade proclamada em Fevereiro, inscrita em grandes
letras por toda a Paris, em todas as prisões, em todos os quartéis - a sua expressão verdadeira,
autêntica, prosaica, é a guerra civil, a guerra civil na sua forma mais horrenda, a guerra entre o
trabalho e o capital.”275
O significado histórico das lutas de 1848 residirá exactamente em que, como
alguém escreveu, “até então as classes não se conheciam. A partir dessa altura,
tornaram-se inimigas”.276
Em toda a Europa Ocidental e Central, os anos 1846-1848 foram anos maus, e a
generalidade da população vivia ao nível da mera subsistência, num tempo de grande
tensão. Neste contexto, o ano de 1848 foi, na Europa, o ano de todas as revoluções, o
ano da “revolução da história da Europa moderna caracterizada pelas maiores
esperanças, pelo maior âmbito e pelo mais imediato êxito inicial”. Em pouco tempo, as
barricadas das cidades francesas tomaram lugar por quase toda a Europa, arrastando os
povos das regiões mais desenvolvidas e das mais atrasadas, ficando de fora apenas a
Península Ibérica, a Inglaterra, a Grécia, a Rússia e a Suécia: “jamais algo se
aproximara tanto da revolução mundial com que os revoltosos desse período
sonhavam”. 277

275
Cfr. K. MARX, nº de 29.6.1848 da Neue Rheinische Zeitung.
276
Cfr. A. DANSETTE, ob. cit., 32.
277
Cfr. E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 28 e A Era das Revoluções, cit., 156/157.
171

Por toda a Europa, a revolução foi alimentada pelos trabalhadores pobres (da
indústria e da agricultura), que montaram as barricadas e nelas morreram. Na
Alemanha e na Itália, porém, a unificação dos dois países foi um dos objectivos da
revolução, o que mobilizou a burguesia.
Aclamada como a Primavera dos Povos, a revolução fracassou rapidamente em
toda a Europa. Hobsbawm diz que o único resultado perdurável da “última revolução
generalizada no Ocidente” foi a abolição da servidão no Império Austro-Húngaro. Mas
não deixa de rconhecer que “1848 não foi um breve episódio histórico sem
consequências”.278

4.6.8. - Os anos que se seguiram à derrota dos revolucionários de 1848.

Mas regressemos à França após 26 de Junho de 1848. Em Julho, Proudhon -


eleito para a Assembleia Nacional em eleições parciais de 4 de Junho - propõe um
plano de reforma financeira e social em que aparece a sua ideia dos banques
d’échange.
Tal plano obteve apenas dois votos na Assembleia, que pouco depois decretava
o regresso à jornada de doze horas, restabelecia a prisão por dívidas, afastava um
projecto de imposto progressivo e transformava o direito ao trabalho (reivindicação
que esteve por detrás dos movimentos de Junho) em pouco mais que um simples dever
de assistência.
Em Novembro, foi proclamada a Constituição da Segunda República e em
Dezembro de 1848 Luís Napoleão (apoiado pelo Partido da Ordem, de Thiers) seria
eleito, por sufrágio universal, Presidente da República.
Entretanto, em 10 de Março de 1850 foram eleitos três deputados socialistas em
Paris, propostos por um comité eleitoral controlado por membros do operariado. E
logo os jornais do Partido da Ordem clamaram ser necessário “que os defensores da
ordem tomem a ofensiva contra o partido vermelho”, acrescentando-se que “entre o
socialismo e a sociedade [sociedade = (grande) burguesia] existe um duelo de morte,
uma guerra impiedosa, sem quartel; neste duelo desesperado, é necessário que um ou
outro desapareça; se a sociedade não liquida o socialismo, será o socialismo a liquidar
a sociedade”.

278
Cfr. E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 21-43.
172

O sufrágio universal, de onde tinha nascido a Segunda República, era posto em


causa: “é preciso romper o círculo de ferro de uma legalidade asfixiante”. Os homens
do Partido da Ordem viam a questão com clareza: “a nossa vitória manteve-se até aqui
pela vontade do povo; é preciso afirmá-la agora contra a vontade do povo”. A “vil
multidão” era afastada da participação democrática na vida da cidade: cerca de 1/3 da
população francesa, 2/3 da população de Paris.
Em 1851, um golpe de estado pôs termo à Segunda República. Em 1852,
começou, com Luís Napoleão (Napoleão III), o Segundo Império, que duraria até
1870.
No decurso destes anos, o capitalismo francês não deixou de se desenvolver,
apesar das crises, principalmente as de 1857 e 1867. A indústria francesa começou a
adoptar em larga escala as máquinas a vapor (pouco mais de 5 mil, desenvolvendo 16
mil cavalos, em 1850; mais de 43 mil máquinas, totalizando 544 mil cavalos, em
1880). As novas necessidades tecnológicas favorecem a concentração, especialmente
na siderurgia e na metalurgia pesada. Os caminhos de ferro conheceram um
incremento espectacular (1.900 Km em 1849; 24.450 Km em 1875). Particularmente
activo neste período foi o sector da banca, tendo-se desenvolvido os bancos de
depósitos e os bancos de investimento, centros de mobilização do aforro e da sua
canalização para as actividades económicas.
Uma lei de 24-7-1867 vem propiciar ao capitalismo esse “maravilhoso
instrumento” que são as sociedades por acções. Inicialmente, a sua criação exigia carta
régia de autorização, caso por caso. Mesmo o Code de Commerce (1808) só permitia a
sua constituição mediante autorização prévia do governo. A lei de 1867 veio dar um
passo em frente muito importante na afirmação da liberdade de empresa. Partindo do
princípio (expresso no relatório) de que “a autoridade não deve de modo nenhum
intrometer-se nas transacções privadas”, a lei de 24-7-1867 determina que, “de futuro,
as sociedades anónimas poderão constituir-se sem autorização do Governo”.279 Esta
nova liberdade não tardaria a fazer sentir os seus efeitos, pois, de 1880 a 1895,
constituíram-se na França mais de 500 sociedades anónimas por ano (cerca de mil em
1907; à roda de dois mil em 1911).280

279
No Estado de Nova York, uma lei de 1811 autorizava já a constituição de sociedades
anónimas sem necessidade de prévia autorização do estado. Na Inglaterra, até 1844, a constituição de
sociedades anónimas dependia de lei expressa do parlamento para cada caso. E, até 1862, a emissão de
acções ao portador e o regime de responsabilidade limitada continuaram sujeitos a autorização individual
do parlamento. Cfr. C. FURTADO, Prefácio…, cit., 31 e V. MOREIRA, A Ordem Jurídica…, cit., 82.
280
Cfr. G. RIPERT, Aspects…, cit., 59ss.
173

O incremento da industrialização trouxe consigo, naturalmente, o aumento


numérico da classe operária. Embora com dados algo imprecisos, o recenseamento
efectuado em 1866 indica 4.700.000 empregados na indústria, no comércio e nos
transportes (em Paris, com 1.799.980 habitantes, mais de 900 mil pessoas integram
famílias de operários e empregados). Os sectores tradicionais (têxteis e vestuário,
indústrias alimentares) ocupam a maior parte das pessoas, que se distribuem, na grande
maioria, por pequenos estabelecimentos de comércio ou pequenas unidades industriais
de tipo artesanal, apesar do desenvolvimento das indústrias modernas (no Creusot,
v.g., as fábricas Schneider empregavam em 1870 cerca de 12.500 trabalhadores, mas
não chegava a 10% a percentagem de empresas com mais de 10 trabalhadores).
Embora progressivamente concentrados em centros industriais de certa
importância, os operários da indústria, muitas vezes recém-chegados dos campos,
incultos e sem experiência política, mostravam-se pouco atraídos para a luta social. Os
elementos mais combativos eram os operários-artesanos das indústrias tradicionais,
ciosos da sua independência e adeptos do socialismo associacionista.
Em 1852, uma lei vem permitir as associações de socorros mútuos, que ficam,
porém, sujeitas a apertada vigilância e às quais é proibido conceder subsídios de
desemprego. Pelo menos até 1860, a subida dos salários nominais é insuficiente para
acompanhar o ritmo de subida dos preços. Nas grandes cidades, os bairros operários
começam a distinguir-se nitidamente da cidade burguesa.
Com excepção de Proudhon e Blanqui, deixaram de dar sinais de vida quase
todos aqueles que tinham animado as várias correntes do pensamento socialista na
França de antes de 1848. Em 1854, um autor pode escrever: “O socialismo morreu,
falar dele é fazer a sua oração fúnebre”. Com efeito, apesar de algumas greves e da
conversão das associações de socorros mútuos em autênticos organismos de
resistência, o movimento operário francês foi bastante débil até 1860. Não obstante, o
procurador-geral de Lyon descrevia assim, em 1854, o que parecia estar por detrás da
aparente acalmia: “o operário é hoje comunista e igualitário como o burguês era
filósofo antes de 1789”, observação que condiz com o ponto de vista expresso no
Manifesto Comunista (1848), segundo o qual “o comunismo já é reconhecido por todas
as potências europeias como uma potência”.

4.6.9. - A Associação Internacional dos Trabalhadores.


174

A partir de 1860, pode observar-se alguma mudança na situação política e


social. Napoleão III, a braços com certas dificuldades internas, provocadas pela crise
económica de 1857, pela Campanha da Crimeia e pela guerra com a Itália, foi levado a
procurar apoio junto das camadas populares. Por alturas da Exposição Industrial de
Londres, em 1862, o Imperador patrocinou a visita à Exposição de uma delegação de
183 trabalhadores franceses, todos eles pertencentes às indústrias tradicionais. Durante
três meses, os delegados puderam tomar contacto com o bem organizado movimento
operário inglês. Nos relatórios que depois apresentaram, um ponto comum: a
reivindicação do direito à greve e do direito de organização sindical.
Ao longo dos anos de 1862, 1863 e 1864, as greves sucedem-se com tal força,
em Paris e na província, que os poderes públicos se sentiram incapazes de aplicar as
leis que as proibiam para reprimir os grevistas. Em Fevereiro de 1864, em apoio a
candidaturas de representantes dos trabalhadores nas eleições legislativas parciais
então realizadas, aparece o chamado Manifeste des Soixante, entre cujos subscritores
figuram alguns nomes que viriam a destacar-se entre os revolucionários da Comuna.
Os resultados eleitorais foram um fracasso, mas o conteúdo do Manifeste des Soixante
é significativo. Aí se reivindica, além do mais, a revogação da legislação que proíbe as
greves, a liberdade de criação de sindicatos, o alargamento da competência das
associações de socorros mútuos, a regulamentação do trabalho das mulheres, a
instituição da instrução primária gratuita... Não é por acaso que o direito à greve vem a
ser reconhecido por uma lei de 25 de Maio desse ano de 1864.
Em 1867, por ocasião da Exposição Universal de Paris, volta a ser reposta a
reivindicação da liberdade sindical. O Governo pronuncia-se, a instâncias de uma
comissão operária, no sentido de tolerar a existência de sindicatos.281 Tanto bastou
para que, de 1868 a 1870, se constituíssem algumas dezenas de sindicatos, se
organizassem as primeiras federações nacionais e se constituísse em Paris o esboço de
uma confederação de todas as associações operárias, que entabulou os primeiros
contactos com a Associação Internacional dos Trabalhadores, cuja criação foi
decidida em Londres (no Saint Martin’s Hall, em 28.9.1864), tendo-se realizado em
Genebra (Setembro de 1866) o Congresso constituinte.282

281
Só mais tarde, como acima se diz, a lei Waldeck-Rousseau, de 21/3/1884, virá a reconhecer
plenamente o direito de associação dos trabalhadores.
282
A AIT duraria até ao Congresso de Filadélfia (1876). O primeiro contacto da Secção
Portuguesa com o Conselho Central da AIT teve lugar em 10 de Março de 1872, data da adesão oficial da
Secção Portuguesa à Associação Internacional dos Trabalhadores.
175

Entre 1867 e 1870, ganha força a acção grevista, 283 reprimida por vezes com
violência, ao mesmo tempo que se instauram processos contra a A.I.T., a pretexto de
complots que a própria polícia organizava para justificar os ataques a uma instituição
que vinha ganhando ascendente entre os meios operários. Num dos processos
instaurados contra a Internacional, o procurador imperial acusava: “as greves surgem
em diversos pontos, suscitadas ou pelo menos encorajadas ou apoiadas pela
Associação Internacional”. A verdade é que, em finais de 1870, os adeptos da Secção
Francesa da Internacional representam a principal força do movimento operário
francês. Significativamente, é em finais do Segundo Império que a actuação dos
trabalhadores ganha mais acentuadamente um carácter político, a par da actuação
sindical. Por essa altura começa a andar no ar a ideia de constituir um partido operário.
Em 1870, aparece, aliás, um livro de Vermorel intitulado Le Parti Socialiste.
Em 1872, no Congresso da Haia, a Internacional aprova uma proposta de Marx
e Engels no sentido da criação de partidos políticos operários em cada país. Os
delegados portugueses votaram a favor, e em 1875 fundou-se em Portugal um Partido
Socialista (no mesmo ano da fundação do Partido Social-Democrata Alemão).

4.6.10. - A Comuna de Paris.

A derrota das forças imperiais francesas na guerra franco-prussiana dita a queda


do Segundo Império e gera amplo e profundo descontentamento popular, perante a
humilhação que significou para o patriotismo francês a assinatura do Armistício de
Versalhes (28-1-1871), após as capitulações de Sédan, Estrasburgo, Metz e Paris, onde
o cerco das tropas de Bismark fez reinar a fome.
Numa comunicação do Conselho Geral da A.I.T. (Setembro/1870), Marx
aconselhava os operários franceses a evitar qualquer tentativa de levantamento e a
“aproveitar da liberdade republicana para proceder metodicamente à sua própria
organização de classe”. Simplesmente, as dificuldades económicas, o patriotismo
ferido, o carácter impopular de certas medidas adoptadas pela Assembleia Nacional
eleita em Fevereiro de 1871 e dominada pelos adeptos da realeza, tudo contribuiu, para
que, em 18 de Março, estalasse em Paris uma insurreição que levou os operários e o

283
Em 1867, verificou-se ainda, em Roubaix, por parte dos operários da fiação e da tecelagem,
uma das últimas manifestações do recurso ao método primitivo de luta, a destruição das máquinas, atitude
que os adeptos franceses da A. I. T. condenaram, embora simultaneamente organizassem o movimento de
solidariedade com os grevistas.
176

povo da capital a proclamar a Comuna de Paris, a qual haveria de manter-se durante


72 dias (até 28 de Maio de 1871).
Dos 65 membros do Conselho Geral da Comuna, 25 eram operários, a maior
parte artesanos das indústrias tradicionais, embora o peso dos operários dos novos
ramos industriais fosse maior que em 1848. No seio da Comuna não havia separação
de poderes, pois a Comuna não foi concebida como um organismo de tipo parlamentar,
mas antes como um corpo actuante, simultaneamente legislativo e executivo.
De entre os objectivos proclamados e as medidas adoptadas na sua curta
vigência, alguns relevam do simples ideário democrático (separação do Estado e da
Igreja; instituição da instrução laica, obrigatória e gratuita; carácter electivo,
responsável e revogável dos servidores públicos, incluídos os juízes); outros
apresentam-se com intenções socialistas. Estas intenções transparecem claramente em
várias proclamações da Comuna: “Trabalhadores, não vos enganeis, é a grande luta, é a
luta entre o parasitismo e o trabalho, entre a exploração e a produção (...)” - afirma-se
num manifesto do Comité Central da Guarda Nacional, de 5 de Abril de 1871.
Este diagnóstico explica algumas das medidas tomadas pela Comuna:
dissolução do exército permanente, substituído por uma Guarda Nacional cuja base era
constituída por operários; entrega aos Sindicatos da tarefa de elaborar uma estatística
dos ateliers abandonados pelos antigos donos, com o objectivo de entregar a sua
administração aos trabalhadores neles empregados, associados em cooperativas.
Em Abril, numa Déclaration au Peuple Français, a Comuna propõe-se “o fim
do velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionalismo, da
exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios aos quais o proletariado
deve a sua servidão, a pátria as suas desgraças e os seus desastres”; em Maio, é
apresentada a proposta de expropriar, mediante indemnização, “todos os grandes
ateliers dos monopolistas”.
Acerca do significado e importância da Comuna de Paris muito se tem escrito.
Bakunine exaltou-a como “uma negação audaciosa e inequívoca do Estado”, como
manifestação da “acção espontânea e contínua das massas”, espírito de que iriam
alimentar-se as correntes de tipo anarquista. Marx, pelo contrário, considera a Comuna
“essencialmente um governo da classe operária”, “a primeira revolução em que a
classe operária era abertamente reconhecida como a única capaz de iniciativa social,
mesmo pela grande massa da classe média de Paris (...), exceptuados apenas os ricos
capitalistas”. E o facto é que as teses marxistas conheceram, depois da Comuna, uma
177

audiência crescente. Lenine, por sua vez, valorizou na Comuna de Paris “a intenção de
aniquilar, de destruir até aos seus fundamentos o aparelho de estado burguês, com os
seus funcionários, os seus juízes, o seu exército e a sua polícia, substituindo-o por uma
organização autónoma das massas operárias que não conhecia a divisão entre o poder
legislativo e o executivo”.284
No entanto, como alguém escreveu, “a grande medida social da Comuna foi a
sua própria existência”: “o movimento operário e o socialismo não podem continuar a
ser o que eram na manhã de 18 de Março”.285
Em 28 de Maio de 1871, os communards acabaram por ser vencidos pelas
tropas de Mac-Mahon, seguindo-se uma repressão que afectou sobretudo os elementos
operários e se traduziu em cerca de 25 mil fuzilados, umas 40 mil prisões e umas 14
mil condenações a pesadas penas de prisão e deportação.
Decretado o estado de sítio em 28 de Maio de 1871, a situação manter-se-ia até
Abril de 1876. Em Março de 1873, a lei Dufaure veio prescrever que “constituirá um
atentado contra a paz pública, pelo simples facto da sua existência e da sua ramificação
em território francês, toda a associação internacional que, sob qualquer designação,
nomeadamente sob a de Associação Internacional dos Trabalhadores, tiver por fim
incitar à suspensão do trabalho, à abolição do direito de propriedade, da família, da
pátria ou dos cultos reconhecidos pelo Estado”.

Com esta breve referência à Comuna de Paris, terminamos o estudo que nos
propusemos dos aspectos mais importantes da Revolução Francesa, ao longo de um
processo cuja evolução, a partir de 1789, ilustra a consolidação da burguesia (e, cada
vez mais claramente, da grande burguesia) no poder.
E com este apontamento sobre o significado da Revolução Francesa na história
do capitalismo damos por concluída a análise que vínhamos fazendo dos factores que
conduziram o capitalismo à posição de sistema dominante à escala mundial.

284
Cfr. Relatório ao I Congresso da Internacional Comunista (Março/1919) “Sobre a democracia
Burguesa e a Ditadura do Proletariado”, em Obras Escogidas, Editorial Progeso, Moscovo, 1970, t. 3,
147.
285
Cfr. J. BRUHAT, “Les socialistes…, cit., 533.
178
179

CAPÍTULO II

DO CAPITALISMO DE CONCORRÊNCIA
AO
CAPITALISMO MONOPOLISTA DE ESTADO
180
181

1. - Apresentação

Vimos que o capitalismo só se afirmou verdadeiramente como modo de


produção autónomo quando as relações de produção capitalistas penetraram na
indústria, o que aconteceu quando esta atingiu a fase da maquinofactura, período a
partir do qual o capitalismo se instalou como sistema económico dominante.
Referimos acima o processo de industrialização da Inglaterra, país pioneiro da
indústria capitalista. Só mais tarde os outros países foram conhecendo a sua ‘revolução
industrial’. Poderemos escalonar deste modo o início da industrialização nos vários
países capitalistas: 1760 - Inglaterra; 1800 - Bélgica, França, EUA, Suíça, Escócia; 1860
- Alemanha, Itália, Suécia, Áustria, Checoslováquia; a partir de 1900, os restantes países
industrializados.
E será importante observar-se que a industrialização foi em geral acompanhada
(precedida ou logo seguida) pelo desmantelamento das fronteiras aduaneiras internas,
última reminiscência do feudalismo: em 1776, com a constituição dos Estados Unidos
da América; em 1795, na França; em 1800, no Reino Unido; em 1816, na Prússia; em
1824, na Suécia-Noruega; em 1834, constituía-se entre os estados alemães a união
aduaneira conhecida por Zollverein (a unificação política só se verificaria em 1871); em
1835, na Suíça; nos anos 50, na Rússia e na Áustria-Hungria; em 1861, teve lugar a
unificação italiana. Foi nestes espaços económicos, protegidos pela adopção de medidas
proteccionistas, que se foram instalando e consolidando os capitalismos nacionais do
século XIX, protagonistas dos conflitos que dariam lugar às duas guerras mundiais que
marcariam o século XX.
É fora de dúvida que o capitalismo dos dias de hoje se distingue, sob certos
aspectos, do capitalismo que o mundo conheceu durante quase todo o século XIX; e
também não há dúvida de que, na segunda metade do século XX, vários factores novos
vieram alterar a fisionomia típica do capitalismo dos primeiros anos do século e dos
últimos anos do século XIX.
Na verdade, desde a afirmação do capitalismo como modo de produção
dominante até aos nossos dias, operaram-se, no seio do capitalismo, certas
transformações que importa caracterizar e explicar, de modo a que fique claro o
significado e o alcance das mudanças verificadas, para se poder compreender porque é
que, apesar dessas mudanças, a essência do sistema não foi afectada.
182

Cremos que será pacífico considerar três fases distintas na história do


capitalismo: 1ª fase - capitalismo de concorrência; 2ª fase - capitalismo monopolista; 3ª
fase - capitalismo monopolista de estado.
Não iremos tratar aqui dos problemas teóricos que esta divisão do capitalismo
em diversas fases ou estádios de desenvolvimento pode levantar e efectivamente tem
levantado.286 Tentaremos apenas delimitar historicamente cada uma delas (sabendo que
o desenvolvimento do capitalismo não se processou ao mesmo ritmo em todos os
países), definir-lhes as características essenciais e encontrar um sentido, uma explicação
para a evolução verificada.

286
Sobre esses problemas, cfr. V. T. MOREIRA, em A. CASTRO e outros, Sobre o capitalismo…,
cit, 5-68 e Ch. PALLOIX, A economia mundial…, cit.
183

2. - O capitalismo de concorrência

2.1. – A economia, esfera de acção exclusiva dos particulares.


A expressão capitalismo de concorrência (a par de outras também utilizadas
com o mesmo sentido: capitalismo liberal, atomístico, individual, etc.) costuma
utilizar-se para referir a realidade económica característica dos países onde, nos fins do
século XVIII ou durante o século XIX, se verificou a revolução industrial.
Como características desse período do capitalismo, podemos referir:
a) A existência de um grande número de pequenas empresas, muitas vezes
empresas individuais ou familiares, gozando os empresários de absoluta liberdade de
iniciativa com vista à obtenção do máximo lucro tendo em conta o preço formado no
mercado;
b) livre concorrência entre as empresas, pois, sendo pequenas, nenhuma delas
poderia exercer influência sensível sobre a oferta e, sendo muito numerosas em cada
indústria, não tinham possibilidade de estabelecer acordos entre elas com vista ao
controlo dos preços e do mercado; por outro lado, nenhuma das empresas estava em
condições de conquistar e conservar uma clientela (procura) própria e mais ou menos
segura, porque os bens produzidos e vendidos no mercado são homogéneos e porque se
considera existir plena transparência no mercado (em cada momento, todos os agentes
económicos tanto os vendedores como os compradores/consumidores dispõem de todas
as informações possíveis acerca das condições do mercado);
c) as condições em que essa concorrência se desenrolava faziam que o mercado
se apresentasse como um mecanismo por meio do qual os consumidores orientam a
produção, de modo que se produzem precisamente aqueles bens, daquela qualidade e
naquela quantidade que corresponde à procura que eles efectivamente fazem.
O consumidor era, pois, considerado o último detentor do poder económico:
esta a essência da chamada soberania do consumidor. O mercado era tido como o
instrumento automático de controlo e direcção da economia. Como as empresas eram
pequenas, os capitais necessários para abrir uma nova fábrica não eram muito
avultados287 e como o mercado era aberto (nenhuma empresa podia controlar a
287
Considerando a Inglaterra (1810), a França (1850), a Bélgica (1850), os EUA (1880) e o
Japão (1905), P. BAIROCH (Le Tiers-Monde…, cit., 57) conclui que, salvo o caso dos EUA, em que eram
muitas as terras disponíveis, nestes países, à volta das datas apontadas, a venda de uma empresa agrícola
média que ocupasse um activo proporcionava os capitais suficientes para pôr de pé uma empresa
industrial capaz de ocupar oito operários.
184

clientela), sempre apareceriam novas empresas no mercado enquanto a indústria fosse


atractiva para os investidores em busca de lucro. O aumento do número de empresas
provocava aumento da oferta e este conduzia à diminuição dos preços do mercado,
eliminando os ineficientes e obrigando as empresas que quisessem manter-se e
aumentar os seus lucros a um permanente esforço de inovação técnica (só deste modo,
baixando os custos, poderia uma qualquer empresa aumentar os seus lucros, perante um
preço que não podia controlar, antes tinha de aceitar como um dado).
Assim, nas condições da concorrência perfeita, o mercado e o mecanismo dos
preços eram tidos como os garantes da eficiência social do sistema. O mecanismo dos
preços forneceria aos agentes económicos a informação necessária para que eles
pudessem decidir racionalmente, e o respeito pelos princípios do cálculo económico
garantiria que as empresas que permanecem no mercado produziriam a maior
quantidade de bens possível, ao mais baixo custo possível, vendendo-as ao mais baixo
preço possível, proporcionando o grau máximo de satisfação das necessidades dos
consumidores. Se se produzem mercadorias inúteis ou extravagantes, tal só pode
acontecer em resposta a uma procura extravagante do consumidor. Só o comportamento
errado ou o desequilíbrio das pessoas (ou as políticas erradas do estado), não as
deficiências do sistema económico, podem explicar os desequilíbrios, os desvarios ou as
crises do capitalismo.
d) A economia funcionaria por si, segundo as suas próprias leis, à margem da
política. A economia é a esfera de acção dos particulares, uma esfera da vida
inteiramente separada da política, do estado.
Cada indivíduo actua com vista à realização do seu próprio interesse; mas, se
assim fizer, “cada indivíduo é guiado por uma mão invisível, a aingir um objectivo que
ele não tinha de modo algum visado. Prosseguindo o seu interesse particular, cada
indivíduo serve o interesse social mais eficazmente do que se tivesse realmente o
objectivo de o servir” (Adam Smith). As ‘leis naturais’ da economia, o livre jogo das
forças do mercado encarregar-se-iam de fazer convergir espontaneamente e
automaticaamente a actuação de todos na realização da racionalidade económica, da
eficiência e do equilíbrio económico. Qualquer intervenção estranha só poderia ser fonte
de perturbação e de desperdício.

2.2. – O estado enquanto pura instância política, separada da economia.


185

De acordo com os cânones do liberalismo – como acabamos de ver -, a


economia funciona por si, segundo as suas próprias leis, à margem da política: a
economia é a esfera de acção dos particulares, inteiramente separada da política, do
estado.
Assim se justifica a concepção liberal de rigorosa separação entre o estado e a
economia, entre a economia e a política. Só esta última diria respeito ao estado, cabendo
aos cidadãos, em último termo, o poder político. A esfera económica diria respeito
apenas à esfera privada dos indivíduos, enquanto produtores/vendedores e consumido-
res/compradores.
Assim se justifica a ideia de que o direito (o estado) deve parar à porta das
fábricas. O estado (o estado capitalista liberal do século XIX) foi, por isso, remetido
para a posição de simples estado guarda-nocturno, apenas lhe cabendo intervir para
garantir a defesa da ordem social, para assegurar a cada um (contra a eventual
prepotência do estado) o pleno exercício da liberdade individual e para criar e manter
certas instituições e serviços públicos necessários à vida em sociedade e que o simples
jogo dos interesses individuais não realizaria. O estado deveria, pois, manter-se dentro
dos limites do estado mínimo, intervindo o menos possível na economia e reduzindo ao
essencial o seu aparelho administrativo, para assim reduzir ao máximo as suas despesas
e poder cobrar a título de imposto aos seus cidadãos apenas o mínimo indispensável, na
proporção dos haveres de cada um.288

Sabe-se hoje que não é ‘neutro’ o sistema proporcional adoptado como critério
de tributação e sabe-se que à burguesia aproveitava a ‘igualdade’ tributária através dele
realizada. E é claro também que o papel relativamente ‘passivo’ atribuído ao estado
liberal não o impediu de desempenhar a sua função de estado capitalista.
Internamente, o estado não deixou de legislar no sentido de ‘disciplinar’ os
trabalhadores (adaptando-os às exigências da indústria capitalista), de ampliar a jornada
de trabalho, de fixar o salário máximo (sem fixar o mínimo…), de proibir e criminalizar

288
São as ideias de Adam Smith em matéria de impostos: estes devem ser certos, a sua cobrança
deve ser cómoda e não dispendiosa, todos os cidadãos devem pagar impostos (se se admitissem grupos
privilegiados, isentos do seu pagamento, os outros cidadãos seriam obrigados a pagar também por
aqueles), todos devem ser tributados na proporção dos respectivos haveres. Aqui encontra raízes a
concepção das chamadas finanças clássicas ou finanças neutras, que transparece com clareza na
conhecida síntese de Gaston Jèze: “II y a des dépenses publiques, il faut les couvrir”. Quer dizer: só
porque o estado tem que fazer certas despesas se admite que ataque, com a cobrança de impostos, a
riqueza privada de cada um; mas - por isso mesmo - só se admite que o faça nos limites do indispensável
para cobrir aquelas despesas.
186

a constituição de sindicatos operários. E não deixou de actuar também, no âmbito das


suas funções de polícia, no sentido de reprimir todos os movimentos colectivos das
classes trabalhadoras.
A história ensina que a liberdade burguesa, utilizada no século XVIII como arma
na luta contra os privilégios feudais (contra a ditadura da feudalidade), se transformou,
no século XIX, numa arma da ditadura da burguesia contra as reivindicações operárias.
Um exemplo significativo é o da lei aprovada em 1841 sobre a admissão das
crianças no mercado de trabalho e as condições em que estas poderiam trabalhar.
Como vimos atrás, o objectivo último dos proponentes desta lei era o de proteger os
interesses de longo prazo dos empresários, evitando a profunda delapidação do ‘capital
humano’ que se vinha registando. No entanto, apesar destas ‘boas intenções’, os
patrões opuseram-se, com êxito, à sua efectiva aplicação, invocando que ela
representava uma ingerência do estado na economia e constituía um atentado
inadmissível (inconstitucional) contra a liberdade (a liberdade de empresa, claro).289
Os interesses da burguesia comandavam a actuação do estado liberal, pondo a claro
que este era, de facto, uma ditadura da burguesia.
Externamente, o estado não deixou de levar por diante a política colonial exigida
pelo desenvolvimento da indústria, nem deixou de aplicar medidas proteccionistas (de
defesa da indústria nacional perante as indústrias estrangeiras, como aconteceu na
Alemanha, nos EUA, etc.) ou de impor às colónias o livrecambismo favorável às
indústrias da metrópole (caso da Inglaterra relativamente à Índia, v.g.).
O que se passava nesses primeiros tempos do capitalismo era que a estrutura
social apresentava, do lado da burguesia, uma multidão de pequenos empresários, com
fraca e igual capacidade de pressão (quer perante os concorrentes, quer perante os
poderes públicos). Por isso não havia necessidade de o estado intervir a regular os
conflitos de interesse entre o empresariado, que assegurava por si só um certo equilíbrio
de forças. O estado-polícia-sinaleiro não tinha que intervir de forma sistemática a
regular o trânsito (dos interesses); bastava que interviesse esporadicamente quando
algum acidente mais grave o justificasse. O estado podia manter-se neutro, limitando-se
a defender a ordem capitalista (em linguagem marxista, o domínio de classe da
burguesia), os interesses de classe da burguesia como um todo, dos ataques do ‘inimigo
289
Vale a pena recordar, porém, que, até aos anos trinta do século XX, a Suprema Corte dos
EUA considerou inconstitucionais, por contrárias ao direito de propriedade e à liberdade de contratar,
todas as tentativas legislativas de acautelar certos direitos dos trabalhadores, como a fixação de um
horário máximo de trabalho ou a garantia de um salário mínimo.
187

interno’. A confiança nas virtudes do livre jogo das forças do mercado justificava a
separação estado/economia (ou estado/sociedade civil) e a afirmação da neutralidade do
estado no quadro da democracia liberal burguesa.

2.3. – O estado de direito liberal.


Esclarecio o significado e o alcance das representações liberais do estado e do
direito, que reduziam o estado ao papel de defensor da ordem, cometendo ao direito a
função de sancionar as relações sociais decorrentes do exercício da liberdade
individual, podemos agora enunciar os três princípios essenciais sobre os quais assenta
o conceito de estado de direito:
1) o princípio democrático, que, por oposição ao princípio monárquico do
estado absolutista, pressupõe a soberania popular;
2) o princípio liberal, implicando a ideia da separação entre o estado e a
sociedade (a sociedade civil, no seio da qual se desenvolve a economia, como
actividade que apenas diz respeito aos privados);
3) o princípio do direito, que implica a sujeição do estado ao direito, i.é, às leis
aprovadas no parlamento.
Daqui decorre o estatuto constitucional dos direitos fundamentais,
nomeadamente a liberdade e a propriedade (talvez na ordem inversa, porque a
propriedade é o fundamento da liberdade e só o proprietário é um verdadeiro cidadão),
sendo que a liberdade é entendida como a liberdade de adquirir e possuir sem entraves,
a liberdade do indivíduo enquanto agente económico, enquanto sujeito (privado) da
economia. Na ordem liberal, os direitos fundamentais destinam-se a garantir aos
indivíduos a defesa contra a ‘agressão’ do estado.
Daqueles princípios decorre também a reserva da lei, a legalidade da
administração, a separação dos poderes. Os parlamentos dominados pela burguesia
faziam as leis que o estado (o Executivo) se limitava a executar. As leis exprimiam a
“vontade geral” expressa no parlamento, o que teve alguma correspondência na
realidade, durante o período em que a burguesia desempenhou o seu papel histórico de
classe revolucionária, período durante o qual os interesses e os valores da burguesia
coincidiram, em boa medida, com o interesse geral, com os objectivos imediatos das
massas populares.
Estas leis respeitariam também a ordem natural da economia privada (auto-
regulada por leis naturais), mantendo o estado e o direito separados da economia, para
188

que a economia, baseada na propriedade burguesa e nas relações de produção a ela


associadas, se pudesse desenvolver imune às interferências externas, assim se
garantindo a ‘perenidade’ da ordem social saída das revoluções burguesas, pondo-se fim
à história (como ironizou Marx em comentário a Ricardo290), conclusão inevitável
perante o pressuposto de que são leis naturais as leis que regem a economia e de que o
homem e as sociedades em que se inserem fazem parte da natureza e estão sujeitos às
mesmas leis naturais (tão naturais, tão absolutas, tão objectivas e tão intemporais como
as leis da física).
Em certo sentido, talvez possamos afirmar que, mesmo no período do chamado
capitalismo liberal, o direito (o direito legislado pelos parlamentos dominados pela
burguesia vitoriosa) nunca deixou de regular o mercado e a economia. O papel do
direito na ordem jurídica burguesa foi exactamente, desde o início, o de definir as regras
do jogo, garantindo a segurança, a previsibilidade, a calculabilidade e a racionalidade no
trânsito dos interesses económicos privados.
O direito positivo (as leis gerais e abstractas aprovadas no parlamento pelos
deputados eleitos pelos cidadãos eleitores) veio substituir a vontade do soberano
enquanto fonte legitimadora das soluções jurídicas concretas: o Leviathan de Hobbes
deu o lugar ao estado liberal.
As leis gerais aprovadas pelos parlamentos garantiam o cumprimento das
obrigações assumidas através de contratos livremente celebrados entre pessoas livres e
iguais em direitos, gerando o clima de confiança indispensável a uma ordem económica
assente na liberdade individual e na propriedade privada. Como Voltaire salientara, “a
liberdade consiste em depender apenas das leis”.
O princípio da generalidade das leis funciona como meio de defesa dos
indivíduos (proprietários) perante o estado: subordinando-se o próprio estado às leis
gerais aprovadas pelos parlamentos, as leis não podiam ter aplicação retroactiva.
E o princípio da não retroactividade das leis foi (e é) particularmente
importante em matéria tributária e em matéria penal.
Este governo através das leis serviu também o objectivo ideológico de encobrir
a natureza de classe do novo estado burguês: este não governava por meio de actos
individuais que visassem proteger (ou atacar) os interesses de determinados indivíduos

“Com todas essas eternidades imutáveis e imóveis – escreve Marx – deixou de haver história.
290

(…) Houve história, mas deixou de haver”. Cfr. Miséria da Filosofia, ed. cit., 125 e 129.
189

ou grupos sociais, mas através de leis gerais não retroactivas, aplicadas a todos por
igual.
O princípio da separação dos poderes e o princípio da independência dos juízes
no exercício da função de ‘aplicar as leis’ completam a estrutura do estado liberal
burguês, num tempo em que a organização económica assentava em um grande número
de empresas relativamente pequenas com poder económico (e político) equivalente.
Neste quadro, compreende-se que o liberalismo seja avesso às ideias de justiça e
de equidade e não deixe espaço para a actuação dos tribunais e para a interpretação das
leis como instrumentos de criação de direito. A previsibilade e a calculabilidade são
essenciais à segurança dos negócios, pelo que os juízes devem limitar-se a aplicar as leis
de acordo com o seu teor literal: só os parlamentos podem aprovar leis gerais e só estas
constituem o direito; os juízes são meros aplicadores das leis, segundo uma leitura
extrema do princípio da separação dos poderes.
O estado de direito (o estado de direito liberal) foi a bandeira da burguesia na
luta contra o estado aristocrático-absolutista, foi um instrumento de que, em dado
momento histórico, a burguesia revolucionária se serviu para conseguir o controlo do
poder político, afastando da esfera do poder as velhas classes dominantes do
feudalismo. Mas ele foi também, como se diz atrás, um instrumento da ditadura da
burguesia, empenhada, agora, em consolidar e perpetuar a sua posição de classe
dominante, numa sociedade em que novas relações sociais de produção assentam numa
nova estrutura de classes, a burguesia capitalista e os trabalhadores assalariados, o
capital e o trabalho (nas palavras de Adam Smith, uma sociedade em que “o
trabalhador é uma pessoa e o proprietário do capital, que o emprega, é outra”291).

291
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176.
190
191

3. - O capitalismo monopolista

No último quartel do século XIX, começa a ser notório um fenómeno que Marx
considerara em O Capital inerente à lógica da acumulação do capital. Referimo-nos à
concentração capitalista e à consequente ‘monopolização’ da economia, que marca
uma nova fase da história do capitalismo, o capitalismo monopolista, que se prolongará
até à Primeira Guerra Mundial.
A expressão capitalismo monopolista e o significado que em geral se lhe associa
são originários da teoria económica marxista, nomeadamente com os trabalhos de
Rudolf Hilferding (1910), Rosa Luxemburgo (1913), Nicolai Bukarine (1915) e Lenine
(1916).292 Esta nova fase do capitalismo assinala uma alteração nas estruturas
económicas do sistema, agora caracterizadas pelo domínio de um pequeno número de
grandes empresas, à volta das quais, em posição de subordinação, vai crescendo um
grande número de pequenas empresas sem qualquer capacidade de influenciar o
mercado, substituído pela ‘mão visível’ das ‘empresas monopolistas’.
Ao falarmos aqui de monopólio ou de concentração monopolista não queremos
significar que os sectores onde a concentração se verifica venham necessariamente a
ficar confiados a uma única empresa. Com aquelas expressões pretendemos qualificar
as situações em que uma indústria passa a ser controlada por um número muito reduzido
de grandes empresas que estão em condições de impor os seus preços aos consumidores,
em termos tais que o mercado deixa de ser o instrumento de orientação e de controlo das
empresas para passar a ser dirigido por elas. As ‘empresas monopolistas’, exactamente
por serem muito grandes, nem sequer terão que recear que a sua situação se altere em
virtude do aparecimento de eventuais novas concorrentes: a existência de situações
monopolistas significa, desde logo, que os de fora não têm liberdade de (ou têm muita
dificuldade em) entrar na indústria.
Estas grandes empresas, além de virem acentuar o carácter social do processo
produtivo (que a maquinofactura apontou definitivamente – já o dissemos - como uma
característica do modo de produção capitalista), vêm também conferir carácter social à
propriedade dos meios de produção.

292
Mais recentemente (1966), foi importante o livro de Paul BARAN e Paul SWEEZY, Monopoly
Capital – An Essay on the American Economic and Social Order, cit.
192

Com efeito, as novas técnicas implicam a utilização de equipamentos muito


caros e as grandes empresas exigem investimentos que envolvem somas elevadíssimas,
fora do alcance de um único indivíduo, o que obriga à reunião de capitais de várias
pessoas (dezenas, centenas ou até milhares). Esta exigência está na base da enorme
expansão que de então para cá têm conhecido as sociedades por acções, especialmente
aptas para mobilizar capitais tanto de grandes como de pequenos aforradores.293 As
empresas individuais dão lugar à sociedade. E a sociedade por acções – essa
“maravilhosa invenção do capitalismo”, como lhe chamou George Ripert - é a
sociedade comercial capitalista por excelência. O capital deixa de estar individualmente
apropriado para passar a ser objecto de propriedade social, corporativa (do conjunto dos
sócios da sociedade). Como Marx observa, estas “empresas sociais” representam, por
oposição às “empresas privadas”, “a abolição do capital enquanto propriedade privada
dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista”.294

Analisaremos, em traços gerais, as características deste período do capitalismo,


chamando a atenção para três pontos fundamentais: 1) concentração monopolista ao
nível das empresas privadas em vários dos mais importantes sectores da economia; 2)
exportação de capitais privados e recrudescimento do colonialismo; 3) afirmação da
importância extraordinária do capital financeiro, que marca posição de relevo, como
veremos, tanto no processo de concentração, como no movimento de exportação de
capitais e na exploração das colónias.

3.1. - A concentração capitalista.

293
A constituição das sociedades por acções só no séc. XIX começou a poder realizar-se livremente,
desde que observados os requisitos estabelecidos em lei geral: na França (Lei de 24-7-1867), em Portugal (Lei
de 22-6-1867), na Espanha (1869), na Alemanha (1870), na Bélgica (1873), na Itália (1882).
294
Cfr. Le Capital, Livro III, t. II, Cap. XXVII (Éditions Sociales).
193

Que factores poderão explicar o processo de concentração 295 que se verificou a


partir dos anos 70 do século XIX?

a) A concentração é, pode dizer-se, a consequência directa da concorrência. Esta


centra-se na busca incessante de novas condições de produção, capazes de permitir
custos de produção mais baixos, única maneira de poderem aumentar os seus lucros as
pequenas empresas impossibilitadas de exercer qualquer acção relevante sobre as
condições globais do mercado ou directamente sobre os preços. Exactamente por isso, a
concorrência era incompatível com a ineficiência, e as empresas que não
acompanhassem os progressos técnicos estavam condenadas a desaparecer, fechando as
portas ou sendo absorvidas por outras, que iam engrandecendo progressivamente, assim
ganhando, por força do seu próprio crescimento, mais amplas possibilidades de
desenvolvimento da sua capacidade de produção e do seu poderio, num processo de
efeitos cumulativos. As leis próprias do modo de produção capitalista conduzem, pois, à
concentração do capital.296
b) O progresso técnico aparece como pano de fundo no qual se enquadra o
fenómeno da concentração capitalista. Não é por acaso que este fenómeno se afirma

295
Estamos a referir-nos ao processo de concentração ao nível das empresas, mas a verdade é que
a própria concentração da produção em grandes unidades originou a concentração dos operários e
facilitou a tomada de consciência dos seus interesses de classe. Não admira, por isso, que a maior força
dos operários organizados tenha provocado, nas últimas décadas do século XIX ou até à 1ª Grande
Guerra, o reconhecimento legal dos seus sindicatos (o direito dos trabalhadores à livre constituição de
sindicatos foi consagrado pela primeira vez, em texto constitucional, na Constituição de Weimar, de
1919). Neste período surgiu, pois, um elemento novo nas economias capitalistas: o sindicalismo (a que se
seguiria a constituição de partidos políticos ligados à classe operária). E com a expansão do sindicalismo
tendeu também a mitigar-se, em alguma medida, a concorrência no mercado da força de trabalho. Perante
as grandes concentrações monopolistas, aparece agora o sindicato representativo dos trabalhadores.
Assim se dizia numa resolução sobre os sindicatos, tomada no 1.° Congresso da Associação Internacional
dos Trabalhadores (Genebra, 1866): “A dispersão dos operários é provocada e mantida pela sua inevitável
concorrência. Os sindicatos nasceram acima de tudo para suprimir ou pelo menos restringir esta
concorrência”. Reconhecer a mudança resultante da contratação colectiva (um golpe importante no
‘contratualismo’ liberal) não significa concordar com os autores que falam de monopólio bilateral para
traduzir a ideia de que também a mercadoria força de trabalho passa a ser negociada num mercado onde
se verifica monopólio do lado da procura e do lado da oferta. Alguns pretenderam mesmo aplicar aos
sindicatos (ditos monopolistas) a legislação anti-monopolista…
296
Quando a concentração começou a dar nas vistas, a primeira reacção de alguns foi a de
desvalorizar o ‘problema’, alegando que a concentração era uma invenção de Marx. Mas a realidade
impôs-se e surgiu o dilema: deixar funcionar a economia segundo as suas próprias leis e aceitar a
concentração, que é um resultado da concorrência, ou matar a concentração, porque ela anula a
concorrência, que é a fonte de todas as virtudes do capitalismo laisser-faire, maximizador da utilidade
para o maior número? Autores como Fank Knight atacaram a legislação anti-monopolista, alegando que
ela punha em causa a liberdade individual, outros preferiram tentar salvar a concorrência recorrendo à
intervenção legislativa do estado. Comentário de Joan ROBINSON (Filosofia…, cit., 156): “Acaso não é
a concorrência a causa principal do monopólio? Como pode considerar-se algo de bom baixar os preços,
ampliar o mercado, superar as vendas dos competidores e, ao mesmo tempo, qualificar de malvada
monopolista a empresa que consegue vencer estas dificuldades e permanecer dona da situação?”
194

decisivamente num período (último quartel do século XIX) em que, como se verá mais
à frente, importantes conquistas da técnica vêm alterar toda a actividade industrial (fala-
se de segunda revolução industrial). As novas tecnologias, não rentáveis a não ser em
unidades de grande dimensão, capazes de produzir em muito larga escala, exigiam
capitais cada vez cada vez mais vultuosos.
Por outro lado, o progresso técnico favoreceu a concentração na medida em que
se traduziu no alargamento do mercado: quer porque favoreceu o crescimento
demográfico (sobretudo em resultado da diminuição das taxas de mortalidade, obtida
graças aos progressos da medicina, associados em boa parte ao desenvolvimento da
indústria química), quer porque os novos meios de comunicação e de transporte
possibilitaram o seu alargamento geográfico, consagrando definitivamente o
capitalismo como um sistema mundial.
c) As crises cíclicas, que começaram a verificar-se nas economias capitalistas a
partir do primeiro quartel do século XIX, provocam o desaparecimento de muitas
empresas e estimulam a cartelização das empresas maiores, constituindo assim outro
factor importante da concentração (embora esta não seja um fenómeno que ocorra
apenas em períodos de depressão).
d) O capital bancário desempenhou neste processo um papel importante
(lembrem-se os irmãos Pereire, os Rothschild, John P. Morgan, etc.). Dada a sua
natureza de instituições de centralização de capitais, os grandes bancos de investimento
puderam fornecer à indústria os capitais de que esta carecia. A esta união entre o capital
bancário e o capital industrial chamou Hilferding capital financeiro, ao qual atribuiu -
exageradamente - tanta importância, que chegou a defender, em 1913, que o confisco de
meia dúzia dos mais importantes bancos berlinenses equivaleria ao confisco da quase
totalidade da indústria alemã.297
Neste contexto, o capital bancário desempenhou um papel decisivo. Ele actuou
como instrumento de ‘extermínio’ das pequenas e médias empresas, ‘asfixiadas’ nos
mecanismos do crédito; ele promoveu a constituição de poderosos grupos financeiros,
297
Esta perspectiva – algo utópica, que a realidade posterior viria a desmentir – chegou a ser
defendida por Lenine, em escritos de 1917 (A Catástrofe Iminente e outros): “Os grandes bancos são o
’aparelho de estado’ que é necessário para a realização do socialismo, que nós tomamos pronto a usar ao
capitalismo”.
Saliente-se, porém, que Hilferding evoluiria para concepções que nunca foram as de Lenine.
Começando por admitir que o socialismo só poderia alcançar-se através da luta revolucionária do
proletariado contra o capitalismo e o imperialismo, o autor de Finanzkapital viria a defender, a partir de
1919, que a “tendência histórica do capital financeiro” para se tornar um cartel geral permitiria uma
passagem pacífica ao socialismo: o capitalismo financeiro deixava de ser a última fase do capitalismo
para se tornar no início do capitalismo organizado. Cfr. D. GRISONI, ob. cit., vol. 2, 11-47.
195

associando a actividade bancária à actividade industrial e comercial; ele permitiu a


concentração e a centralização dos meios financeiros indispensáveis à definição e
execução da estratégia imperialista do capitalismo.
Em muitos casos, deve-se aos bancos a iniciativa de acordos, fusões e
associações de vária natureza entre empresas industriais, e mesmo a iniciativa da
constituição dos primeiros monopólios internacionais, que então começaram a repartir
entre si o mercado mundial, criando zonas reservadas ou esferas de influência.298
A acção do capital bancário foi particularmente importante na criação e na
expansão das grandes empresas ferroviárias, que conheceram, no período a que estamos
a reportar-nos, uma expansão extraordinária. 299 A presença do capital bancário foi
também de muito destaque na constituição de empresas coloniais (lembrem-se os casos
da Société Générale, na Bélgica; o Banque de Paris et des Pays-Bas e o Banque
d’Indochine, na França).
Ficou claro e acelerou-se neste período o processo de ‘expropriação’ de grande
número de pequenos empresários pelo pequeno número das grandes empresas que
foram chamando a si a parte de leão do excedente social, fenómeno que constitui “a
primeira negação da propiedade privada” e confirmaria, na leitura de Marx, que o
capitalismo “gera a sua própria negação, com a fatalidade que preside às metamorfoses
da natureza”.300
e) O facto de vários países se terem industrializado na segunda metade do século
XIX, quando outros (principalmente a Inglaterra, a Bélgica e a França) conheciam já
algumas décadas de industrialização, não deixou de ter importância no alastrar da
concentração a todo o mundo capitalista.
Nos países que primeiro conheceram a revolução industrial, o grande número de
pequenas empresas que entretanto se desenvolveram constituiu a base de uma pequena e
média burguesia que procurou resistir e que entravou enquanto pôde a marcha da
concentração, ao mesmo tempo que a existência de um grande número de pequenos

298
E. MANDEL, Traité…, cit., III, 159, indica a existência de 40 cartéis internacionais em 1897.
299
A primeira linha de caminho de ferro construiu-se em 1825 na Inglaterra, entre Stockton e
Darlington. Pois a rede ferroviária construída por empresas britânicas passa de 800 Kms em 1876 para 24
000 Kms em 1910; de 1850 a 1900, os investimentos na construção de caminhos de ferro excederam os
investimentos no conjunto das indústrias transformadoras; calcula-se que no último quartel do século XIX
cerca de 40% a 50% da formação de capital privado se tenha verificado no sector ferroviário, o que
representa uma concentração de capital numa só indústria sem paralelo na história económica. Igualmente
de salientar é o facto de cerca de 80% da rede ferroviária existente em 1913 se concentrar nas cinco
potências de então: EUA, Império Britânico, Rússia, Alemanha e França (cfr. LENINE, Imperialismo, cit.,
130/131; H. DENIS, História…, cit., 600; BARAN/SWEEZY, Capitalismo monopolista, cit., 220/221).
300
Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, Livro 1, 566/567.
196

proprietários rurais (principalmente na França, onde foi mais longe a liquidação da


aristocracia fundiária como força política e como força económica) não favorecia a
centralização do capital.
Diversamente, os países que só mais tarde se industrializaram (Alemanha, EUA,
Rússia, Japão) não conheciam uma classe burguesa antiga, numerosa e mais ou menos
organizada como existia nos outros países da Europa ocidental. Não havia, pois, uma
classe de pequenos proprietários que remassem contra a constituição de grandes
unidades capazes de criar situações de tipo monopolista. Por outro lado, os países
recém-chegados à industrialização, para poderem competir com as indústrias dos países
mais avançados, foram naturalmente levados a lançar mão das técnicas mais modernas e
a alicerçar a sua industrialização em unidades de grande dimensão, para poderem colher
as vantagens inerentes à produção em grande escala.
A estas considerações de ordem geral acrescem razões específicas, sobretudo em
relação aos EUA, à Alemanha e ao Japão, países onde a indústria nasceu já fortemente
concentrada.
● No caso dos EUA, não existia uma aristocracia fundiária e a vitória na Guerra
da Secessão (1861-1865) consolidou muito cedo o poder da burguesia comerciante e
industrial do norte. Depois, tratava-se de explorar territórios imensos (foi o período da
conquista do Oeste, em busca da “nova fronteira”, uma espécie de ‘colonialismo
interno’) e riquezas enormes, num país onde a escassez de mão-de-obra tornava os
salários altos e a amplitude dos empreendimentos exigia vultuosos capitais. A
necessidade de economizar mão-de-obra e a dimensão das explorações impulsionavam,
pois, no sentido da mecanização. O afluxo de grande quantidade de capitais europeus
completa o quadro que explica o aparecimento de empresas gigantes nos EUA, logo no
início da industrialização.301

301
Vale a pena recordar que os territórios que viriam a ser os EUA tinham menos de 300 mil
habitantes em 1701; em 1790 (pouco depois da independência dos EUA) não chegavam a quatro milhões
(cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 73). Por isso, tão importante como o afluxo de
capitais foi, sem dúvida, a entrada de imigrantes, em grande maioria originários da Europa. Entre 1821 e
1915 emigraram para os territórios apetecíveis para a colonização da América, Oceânia e África do Sul
cerca de 45 milhões de europeus, com particular intensidade nas três décadas anteriores à 1ª Guerra
Mundial, durante as quais o número de imigrantes europeus nestas regiões rondou um milhão por ano
(dados apresentados por Aldo FERRER, em El Trimestre Económico, 1975, 1016). Especificamente para
os EUA, calcula-se que, entre 1800 e 1870, terão emigrado cerca de 8 milhões de europeus (cfr. E. J.
HOBSBAWM, últ. ob. cit., 198). Sobre a importância da imigração para os EUA, ver L. NEAL e P.
USELDING, “Immigration, a neglected source of american economic development”, em Oxford Economic
Papers, Março/1972, 68-88.
197

● Na Alemanha, a indústria capitalista quase não conheceu a fase de livre


concorrência. A pequena burguesia liberal nunca aí gozou da prosperidade e do poder
político que conquistou na França e na Inglaterra. Pelo contrário, a sua derrota em 1848
permitiu à nobreza prussiana cimentar a sua posição de classe dominante. A
industrialização operou-se, pois, num ambiente de estreita aliança entre os empresários
da indústria e a alta nobreza senhora da máquina estadual. Assim surgiu, logo de início,
a ligação entre os grandes Konzern alemães e o militarismo prussiano das esferas
governamentais, aliança que a história dos grandes grupos alemães bem documenta e
que haveria de marcar uma característica mais ou menos constante no capitalismo
alemão (emblematicamente, a Krupp armou os exércitos alemães na Guerra Franco-
Prussiana de 1870, na 1ª Grande Guerra e na 2ª Guerra Mundial).
● Finalmente, o Japão, o único país, para além dos países europeus e dos EUA,
que conseguiu iniciar o seu processo de industrialização no século XIX.
Em 1858, por pressão dos EUA, os portos japoneses abriram-se ao comércio
externo, conseguindo a Inglaterra, em 1864, que o Japão reduzisse a 5% os direitos
alfandegários sobre as mercadorias europeias.
No reinado do jovem imperador Matsu Hito, o Japão iria encaminhar-se para
novos rumos. Como primeiro passo para a liquidação do feudalismo, em 1869 são
confiscados os bens das ordens religiosas; em 1871, são suprimidos os senhorios; em
1872, é conferida aos camponeses a propriedade da terra que cultivam, embora os
antigos senhores feudais sejam indemnizados pelo estado, recaindo sobre os
camponeses, em vez das prestações feudais, um imposto que terá absorvido cerca de
34% do produto das colheitas e que representou, entre 1893 e 1897, cerca de 80% da
carga fiscal total (mantendo-se à roda de 50% ainda entre 1913-1917); em 1889, é
instituída uma monarquia constitucional.
Paralelamente, inicia-se a industrialização em moldes capitalistas, com a
participação de capitais ingleses e com acentuada intervenção do estado, alimentada
pelas receitas dos impostos pagos pelos agricultores, que financiaram mais de 50% do
investimento total entre 1895 e 1910. O estado japonês fez elevados investimentos
estruturais na educação, na investigação e em infraestruturas físicas, como os caminhos
de ferro, além de promover a criação de fábricas-modelo e de apoiar a criação da
indústria naval e da marinha mercante.
198

Em 1870 começou a funcionar a primeira fiação mecânica; em 1890, são


proibidas por lei as coligações operárias; em 1893, a indústria ocupa já cerca de 380 mil
operários. E logo em 1894 o capitalismo japonês lança-se numa política imperialista,
submetendo a Coreia ao regime de protectorado e obrigando a China, em 1895, a ceder-
lhe a Formosa e outras ilhas pequenas, bem como o direito de estabelecer feitorias
comerciais e manufacturas em vários portos.302
Aqui, como se vê, a industrialização iniciou-se logo a seguir à liquidação do
feudalismo. Na ausência de uma classe burguesa digna desse nome, foi o próprio estado,
dominado pela grande burguesia de ricos comerciantes e privilegiados, que tomou a
iniciativa da implantação dos enormes estabelecimentos industriais (principalmente na
siderurgia e na indústria de armamento), que mais tarde passariam para as mãos do
pequeno número de famílias que continuam a controlar os grandes grupos industriais e
financeiros japoneses (Zaibatsus).

3.2. - A emergência do imperialismo: a corrida às colónias e a exportação de


capitais privados. A segunda onda de globalização.
A concentração torna possível o entendimento entre as grandes empresas no
sentido de não baixarem os preços, o que muitas vezes implica a limitação da produção.
Os lucros monopolistas constituem, assim, um capital em busca de campos de
investimento. Com efeito, os capitais acumulados não podem ser aplicados em
investimentos nos sectores monopolizados, pois investir significa exactamente aumentar
a capacidade produtiva, tornar possível o aumento da produção e, portanto, a baixa dos
preços.
Embora os monopolistas aufiram elevados lucros globais, podem não ter
interesse em investir mais na sua própria indústria: é que a taxa global de lucro pode ser
alta, mas ser baixa (ou até negativa) a taxa marginal de lucro (a taxa de lucro de
investimento adicional). Daí o interesse em investir em sectores ainda não
monopolizados (nos quais se espera obter uma taxa de lucro superior à taxa marginal de
lucro do sector monopolizado) ou em ampliar a área de investimento, por meio da
exportação de capitais, para territórios onde não se verifiquem ainda situações
monopolistas.

Cfr. H. DENIS, História…, cit., 603/604 e, sobre o significado da restauração Meiji, H. K.


302

TAKAHASHI, em P. SWEEZY e outros, Do Feudalismo…, cit., 74-85. Cfr. também JOHNSTON/MELLOR, ob.
cit., 566-593.
199

A sobreacumulação do capital origina um excedente de capitais à procura de


novos campos de investimento, situação que não se verificara nos primeiros tempos da
revolução industrial, marcada por um grande apetite de capital novo. Então, como
ensina Maurice Dobb, “acumulava-se o capital que proporcionava os meios de
modernizar; e, ao mesmo tempo, as inovações da técnica permitiam uma aplicação e um
escoamento do capital, mesmo quando este se acumulava com maior rapidez do que
aumentava a oferta de trabalho assalariado (tendência que começava a manifestar-
se)”.303
É esta nova situação que explica o movimento de exportação de capitais
privados, que se iniciou no final do século XIX, em paralelo com a retracção dos
investimentos nos países europeus industrializados.304
A exportação de capitais privados (a par da forte concentração registada no
sector da produção industrial e da emergência do capital financeiro), a corrida às
colónias e a partilha dos territórios coloniais entre as grandes potências, num processo
em que os estados nacionais desempenharam um papel central, são as características do
imperialismo neste final do século XIX.

Durante os primeiros tempos da revolução industrial, a burguesia liberal dos


países já industrializados, forte do seu monopólio tecnológico, era em regra partidária
do livrecambismo extremo (de 1793 é o célebre panfleto de Bentham “Emancipai as
vossas colónias”!). Sem terem de enfrentar concorrentes sérios dos restantes países, os
empresários industriais (principalmente na Inglaterra) procuravam por todos os meios
novos capitais para aplicar na produção, considerando desperdício as despesas públicas
efectuadas com as colónias.
À medida que o processo de concentração se foi acentuando e que as situações
monopolistas se foram estabilizando, a antiga fome de capitais deu lugar a uma situação
de excesso de capitais e de carência de campos de investimento. Estas as raízes do novo
período de exploração colonial iniciado nas décadas de 70-80 do século XIX,
intimamente ligado às novas exigências do capitalismo monopolista, caracterizado por
uma forte exportação de capitais para as regiões pouco povoadas do Império Britânico

Cfr. M. DOBB, Capitalismo…, cit., 38.


303

Alguns autores (Marshall e Wicksell, v.g.) explicam em função deste fenómeno a depressão
304

que afectou o capitalismo europeu de 1873 a 1896. Não faltou quem, à maneira de Bentham, reclamassem
porque “ foram dedicados recursos ao investimento no exterior, ao invés de aplicá-los na reconstrução das
cidades imundas da Grã-Bretanha, simplesmente porque aquela actividade parecia mais remuneradora”
(Assim, Clapham, citado por M. DOBB, A Evolução…, cit, 386).
200

(Canadá, África do Sul, Austrália, Nova-Zelândia), para os territórios coloniais da


África e da Ásia e para os países semi-colonizados da América Latina e da Europa
Oriental.305
Como sublinha Ernest Mandel, “a época do capitalismo dos monopólios torna-se
rapidamente uma época de revalorização do colonialismo. Dominar territórios
estrangeiros e fechá-los à concorrência estrangeira como mercados de produtos
acabados, fontes de matérias-primas e de mão-de-obra barata ou campos de
investimento de capitais a exportar, isto é, como fonte de super-lucros: eis o que se
converteu no motivo central da política externa dos países capitalistas a partir dos anos
80 do século passado” [século XIX].306
A expansão colonial foi, por sua vez, mais um factor a favorecer a concentração
e a centralização do capital, na medida em que abriu novos mercados e propiciou vastos
campos de acção, permitindo a constituição de grandes empresas para explorar os
transportes entre as metrópoles e as colónias, para explorar as riquezas agrícolas e
mineiras dos territórios coloniais, para rasgar as redes ferroviárias que facilitassem o
acesso daqueles bens aos portos de embarque.
Neste negócio especializaram-se os banqueiros ingleses (Rothschild, v.g.) e só
os investimentos britânicos no estrangeiro passaram de 800 milhões de libras em 1871
para cerca de 3500 milhões em 1913.307 Como observa G. Hobson, “parece que os
obstáculos ao investimento vitorioso no exterior nos sectores industriais estão a ser
removidos”; e muitos passaram a acreditar que “as raízes da prosperidade estavam no
ultramar” (Clapham).308 Na França, o Presidente do Governo, Jules Ferry, afirmava na
Câmara dos Deputados (28.7.1885): “Para os países ricos, as colónias constituem uma
das formas mais vantajosas de colocação de capitais. (…) A questão colonial é, para os
países impulsionados pela própria natureza da sua indústria a uma grande exportação, a
própria questão dos mercados”.309
Em geral, as potências europeias empenharam-se numa grande campanha
ideológica para apresentar o imperialismo como uma espécie de desígnio nacional,
305
Maurice DOBB (A Evolução…, cit., 362) chama a atenção para o facto de a exportação de
capitais ter desempenhado um papel importante logo a partir de meados do século XIX, não tanto sob a
forma de investimento privado directo, mas sob a forma de empréstimos a governos estrangeiros, muitas
vezes destinados a financiar a construção de vias férreas, o que constituiu um campo de aplicação muito
lucrativo para os capitais ingleses, mas também um modo de facilitar a exportação de bens de capital
produzidos pela indústria inglesa.
306
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., III, 137.
307
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., III, 132.
308
Apud M. DOBB, A Evolução…, cit, 384-386.
309
Apud H. PÉREZ, ob.cit., 61.
201

capaz de resolver os problemas sociais das metrópoles (com base na diminuição do


custo de vida resultante dos alimentos baratos vindos dos territórios coloniais e no
alargamento dos mercados externos, que multiplicaria o emprego e aumentaria os
salários) e de reduzir a tensão entre as classes sociais. Cecil Rhodes defendeu
abertamente que “o Império é uma questão de pão com manteiga. Se quiserem evitar a
guerra civil, têm de tornar-se imperialistas”. Este ‘discurso’ tocou uma boa parte das
classes médias e até alguns sectores da ‘aristocracia operária’. Mas os militantes mais
conscientes não aderiram a estas teses.310

Este foi o período da chamada segunda revolução industrial, que proporcionou


as condições ‘técnicas’ para o desenvolvimento da segunda onda da globalização,
consolidando definitivamente o capitalismo como sistema mundial e facilitando o que
Nicolai Bukarine designou por internacionalização do capital. O capitalismo passou à
fase do imperialismo, de que a corrida às colónias constituiu um elemento importante.
Em 1800, Volta inventou a bateria eléctrica; em 1831 Henry inventou o motor
eléctrico; a primeira locomotiva eléctrica é de 1851; em 1875 fica operacional o motor a
gasolina para automóvel, e em 1898 foi construído o primeiro motor diesel. A produção
de aço foi objecto de uma verdadeira revolução tecnológica com a invenção do
transformador de Bessemer (1856), da fornalha aberta de Siemens-Martin (1867) e do
processo básico de Gilchrist-Thomas (1877/78), e com a introdução, a partir de 1870, de
novos minerais na produção de ligas (volfrâmio/tungsténio, manganés, crómio e níquel).
Na indústria de máquinas-ferramentas introduzem-se novas tecnologias (o torno de
revólver, 1845; a máquina de fresar universal, 1861; o torno mecânico automático,
1870).
À descoberta da electricidade veio juntar-se a do petróleo, configurando ambos
uma profunda revolução no que toca às fontes de energia: o petróleo e a electricidade

310
Falando em 1900 no Congresso da Segunda Internacional, um delegado britânico defendeu
uma posição clara: “Assiste-se neste momento na Inglaterra a um grande esforço para convencer os
sindicalistas de que a plítica colonial serve os seus interesses, visto que cria novos mercados e aumenta,
desse modo, as possibilidades de emprego, assim como os salários. Mas os sindicalistas ingleses não se
deixam levar por estas belas palavras e respondem: enquanto houver na Inglaterra crianças que vão com
fome para a escola e operários esfarrapados que morrem na miséria, os trabalhadores ingleses não têm
nenhum interesse em exportar para as colónias as mercadorias que produzem. E se os chauvinistas se
regozijam com o facto de a Inglaterra se ter tornado um grande país em que o sol nunca se põe, eu direi
que, na Inglaterra, há milhares de lares onde o sol nunca nasceu” (citação colhida em MORTON/TATE,
ob. cit., 197).
202

vão aplicar-se à indústria e aos transportes, provocando rapidamente a substituição do


motor a vapor pelo motor de explosão interna e pelo motor eléctrico.311
A utilização da energia eléctrica veio permitir a sincronização do trabalho, a
produção em cadeia, favorecendo as grandes empresas. As novas técnicas siderúrgicas
vieram condenar definitivamente os pequenos altos fornos que utilizavam a madeira
como combustível e obrigar à constituição de grandes empresas capazes de suportar os
enormes encargos financeiros impostos pela adopção da tecnologia moderna.
Em meados do século XIX começou a desenvolver-se, sobretudo nos EUA – que
depois a aplicariam na indústria automóvel -, a técnica da produção em série de bens
industriais estandardizados, começando pela indústria de armamento (o revólver Colt
em 1835) e passando depois para a produção de máquinas de escrever (1843), de
máquinas de costura (Singer, 1846-1850) e de fechaduras (Yale, 1855).
A indústria do aço, a indústria de construção mecânica, a construção naval e a
indústria automóvel tornam-se, em substituição dos têxteis e do carvão, nos principais
ramos de actividade económica, alicerçados em empresas de grande dimensão. As
indústrias novas (química, alumínio, aparelhos eléctricos) surgem também a partir de
grandes empresas, aquelas que melhor respondem às exigências da amortização de
enormes somas de capitais fixos, em período de acelerado desenvolvimento tecnológico.
A “organização científica do trabalho” dentro das empresas industriais,
desenvolvida pelo engenheiro americano F. W. Taylor a partir de 1880, afirmou-se na
década de 1890 na indústria de embalagem de carne em Chicago, e atingiu a maturidade
nas fábricas de automóveis Ford, no início do século XX.
Entretanto, o alumínio ganha importância como matéria-prima industrial; a
indústria química desenvolve-se a partir dos subprodutos do carvão e do petróleo; as
indústrias eléctricas ganham importância crescente, sendo que, nestas indústrias
modernas (nomeadamente na indústria eléctrica e na indústria química), os novos
inventos começaram a andar associados ao conhecimento científico e ao saber
alicerçado em formação académica de nível superior.312
311
No que se refere à situação em Portugal, eis o testemunho de José ACÚRCIO DAS NEVES, em
1820: “É lastimoso o estado em que nos achamos a respeito de máquinas. Fazemos tudo à força de braços
e de animais, enquanto nos outros países a força dos elementos quase dispensa a mão do homem nos
trabalhos manuais pesados e aumenta prodigiosamente os frutos da indústria. Numa parte da Europa e nos
Estados Unidos da América, já os rios e até os mares se navegam pelo agente do fogo, sem mastros, sem
velas e sem remos; e, entre nós, ainda se não acha estabelecida uma só máquina de vapor nas nossas
fábricas” (ob. cit., 111/112).
312
A consciência disto mesmo permite avaliar melhor a situação da Grã-Bretanha relativamente à
Alemanha no que se refere ao número de estudantes universitários (em 1913, 9 mil na Grã-Bretanha e 60
mil na Alemanha) e ao número de licenciados em engenharia (3 mil por ano na Alemanha, apenas 350 na
203

A descoberta da técnica do frio permite o transporte a longa distância de bens


até então dificilmente transaccionáveis de um lado do Atlântico para o outro: é o caso
da carne e dos frutos tropicais. Abriu-se um novo campo para a exploração económica
dos territórios ‘ocupados’ pelas grandes potências (nomeadamente países da América
Latina).

O extraordinário incremento que então conheceram os meios de transporte


(navegação a vapor, caminhos de ferro, abertura de novos portos) e de comunicação
(telégrafo) veio unificar definitivamente o mercado mundial.
Em 1845 os comboios britânicos transportaram 48 milhões de passageiros, numa
rede que em 1850 atingiu dez mil quilómetros. Aquilo que poderemos chamar uma
verdadeira rede europeia de caminhos de ferro ganhou corpo em poucos anos, graças
aos túneis que pemitiram vencer a barreira dos Alpes (o túnel de Brenner estava
concluído em 1867, o de Mont-Cenis em 1870 e o de Gothard em 1880). Nos EUA, em
1850 estavam em funcionamento 14 mil quilómetros de vias férreas e em 1869
juntaram-se em Ogden duas locomotivas, uma que partira da costa atlântica e outra da
costa do Pacífico. Na Rússia construíam-se entretanto o transcaspiano e o transsiberiano
(que chegou a Vladivostoque em 1902). Por esta altura foi inventado o Wagon-lit.
No que toca ao transporte marítimo, a navegação à vela, que em 1876 era
largamente predominante, quase tinha desaparecido em 1913, em benefício da
navegação a vapor. Em 1869, o Canal do Suez passou a ligar o Mediterrâneo ao Índico
(a Europa ocidental à Índia e a todo o Extremo Oriente); em 1915, o Canal do Panamá
permitiu a ligação entre o Atlântico e o Pacífico). Em meados do século XIX, carreiras
regulares de navios a vapor asseguravam o transporte de passageiros e de mercadorias
entre a Europa e a América, entre a Europa e as Índias. Num ano de grave crise na Grã-
Bretanha e na Europa industrial (1842), Lord Palmerston declarava que o comércio
internacional é “uma dádiva da Providência” e manifestava o seu optimismo, baseado
na confiança em que “o comércio possa avançar livremente, conduzindo com uma das
mãos a civilização e com a outra a paz, a fim de tornar a humanidade mais feliz, mais
sabedora e melhor”.313
Em 1836/1837 o americano Samuel Morse (que deu o nome ao famoso Código
Morse) inventou o telégrafo eléctrico, pouco depois utilizado nos caminhos de ferro; em

Grã-Bretanha). Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, II, cit., 21ss.


313
Citação colhida em E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 405.
204

1839 generalizou-se o uso da franquia postal (inventada por Rowland Hill), a qual, em
conjunto com a invenção do selo adesivo (1841), revolucionaram os serviços postais;
em 1851, o primeiro cabo submarino atravessou o Canal da Mancha, ligando a
Inglaterra a Calais; nesse mesmo ano, Julius Reuter fundou a agência de notícias Reuter,
abrindo uma nova era na comunicação social; em 1858 foi lançado o primeiro cabo
submarino no Atlântico, ficando concluída em 1860 a ligação por cabo entre a Inglaterra
e o Novo Mundo; em 1872 era possível telegrafar de Londres para Tóquio ou para a
Austrália, o telégrafo ligava praticamente o mundo inteiro. Em 1896 regista-se a
invenção do sistema Marconi de T.S.F.. As notícias correm mais depressa e a rapidez
das comunicações permite que os negócios se desenvolvam à escala mundial; o
desenvolvimento das comunicações exigiu novas formas de estandardização e de
coordenação internacional (em 1865, foi criada a União Telegráfica Internacional; em
1875 constituiu-se a União Postal Internacional; em 1878, foi a vez da Organização
Meteorológica Internacional, três organismos que ainda hoje existem.
O mundo do capitalismo ficou mais pequeno. Mas as crises cíclicas passaram
também a ser crises mundiais: o colapso da banca nova-iorquina em 1857 desencadeou
a primeira grande crise do capitalismo à escala mundial. 314

No último quartel do século XIX a Europa dominava o mundo como nunca


antes. Mas começava a chegar ao fim o período de hegemonia da Inglaterra como
potência industrial, pois os EUA, já lançados na industrialização, foram os principais
beneficiários da nova revolução energética (petróleo).
Neste mesmo período, os EUA avançam no alargamento das fronteiras internas
(integrando a Califórnia, o Arizona, o Utah, Colorado e Novo México) e recebem (entre
1848 e 1875) vários milhões de europeus. A descoberta de ouro na Califórnia (1848) e
depois a descoberta do petróleo, a construção das grandes vias férreas ligando as costas
leste e oeste, a vitória dos estados do norte sobre os estados esclavagistas do sul (1861)
foram factores que acabaram por transformar os EUA, antes de findar o século XIX,
num sério concorrente das potências europeias.
Mas a unificação do mercado mundial veio colocar novos problemas às
potências capitalistas, agora concorrentes umas das outras, quer nos mercados de venda
dos produtos industriais, quer nos mercados de abastecimento de matérias-primas ou de
mão-de-obra barata, quer na busca de campos de investimento. Por isso, a exportação
314
Cfr. J. MARCHAL, Cours…, cit., 155/156 e E. J. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 80ss.
205

de capitais não fez esquecer a exportação de mercadorias. Antes pelo contrário, aquela
é muitas vezes um meio de impulsionar esta. Umas vezes, condicionam-se os
empréstimos a conceder a governos ou a empresas privadas estrangeiras à compra dos
produtos necessários (bens de produção ou outros) no país exportador de capitais; outras
vezes, a exportação efectua-se através do expediente da constituição de filiais que,
naturalmente, comprarão à empresa-mãe ou a outras empresas da metrópole a
tecnologia e a maquinaria de que careçam e até os bens de consumo para o seu
pessoal.315

São exemplares, a este respeito, as relações comerciais entre a Inglaterra e a


Índia. Em 1814, a Índia exportava para a Inglaterra cerca de um milhão e trezentas mil
peças de pano de algodão, enquanto a Inglaterra exportava para a Índia pouco mais de
oitocentas mil peças; em 1835, a situação inverte-se: a Índia exporta para a Inglaterra
pouco mais de trezentas mil peças de algodão, enquanto a Inglaterra exportava para a
Índia cerca de cinquenta e oito milhões de peças.
Entre 1870 e 1913, o valor das exportações de produtos industriais britânicos foi
superior ao valor do investimento interno total, correspondendo a cerca de 1/5 do
rendimento nacional e a cerca de 1/3 do valor da produção industrial. Em meados do
século XIX as exportações têxteis representavam à roda de 80% do valor total das
exportações britânicas. Os têxteis de algodão exportaram em média 57% da produção
entre 1841 e 1845 e 74% entre 1871 e 1875; a indústria de lanifícios exportou 17% da
produção nos anos 1840 e cerca de 50% na década de 1870.
Com o desenvolvimento dos caminhos de ferro, a revolução industrial toma
conta das indústrias pesadas, e a estrutura das actividades produtivas e das exportações
sofreu alterações significativas, tanto na Grã-Bretanha como em outros países. Na Grã-
Bretanha, o número de trabalhadores ocupados na fileira ligada à construção de
máquinas e veículos aumentou cerca de 40% entre 1841 e 1851. Entre 1850 e 1880,
produção de carvão, lingotes de ferro e aço aumentou 200%. A tonelagem construída de
barcos a vapor de casco de ferro ultrapassou, na década de 1880, a tonelagem construída
de barcos à vela.
Novas indústrias passaram a depender fortemente dos mercados ultramarinos.
No que toca à Inglaterra, as exportações de ferro e aço representaram 27% da produção
315
Cfr. P. LÉON, ob. cit., vol. III, t. I, 225 e E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 156-
204.
206

entre 1841 e 1845 e 45% da produção entre 1871 e 1875. A exportação de novos bens
de capital representou cerca de 11% do valor das exportações de produtos
manufacturados em 1857-1859, mas representava já 27% desse valor em 1882-1884 e
39% nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. O ritmo de construção de novas vias de
caminho de ferro diminuiu na Grã-Bretanha a partir de 1850, mas aumentou na Europa,
na América e em outras partes do mundo, tendo passado, fora das Ilhas Britânicas, de 14
mil milhas na década de 1840-1850 para cem mil milhas na década de 1870-1880. A
necessidade de exportação de capitais e a conquista de mercados externos passou a ser
ainda mais vital para a Inglaterra, cujas exportações representavam 13% do rendimento
nacional em finais do século XVIII, mas correspondiam a 22% por volta de 1870.
Entretanto, a hegemonia britânica era cada vez mais posta em causa pela
Alemanha e pelos EUA, mesmo naquelas indústrias ‘modernas’ em que os britânicos
tinham sido pioneiros (indústria química, corantes de anilina, electrotecnia, lâmpadas de
filamento de carbono incandescente, máquinas-ferramentas, ferro e aço).316 Em meados
do século XIX, a Grã-Bretanha dispunha de cerca de 1/3 da energia a vapor mundial e a
sua produção industrial correspondia a cerca de 1/3 da produção mundial de produtos
manufacturados; produzia cerca de 2/3 do carvão produzido em todo o mundo, ½ do
ferro, 5/7 do aço, ½ dos tecidos de algodão e cerca de 2/3 dos produtos de metal. Em
1840, a produção americana de têxteis, de lingotes de ferro e de produtos metálicos
correspondia a cerca de 1/6, 1/5 e 1/6 da produção britânica, respectivamente; para a
produção alemã destes bens, as cifras eram de 1/5, 1/8 e 1/6 da produção britânica. Mas,
por volta de 1870, a energia a vapor produzida na Grã-Bretanha era pouco mais de 1/5
da produção mundial e a sua produção de aço era menos de metade da produção
mundial, tendo sido ultrapassada, neste domínio, entre 1890 e 1895, tanto pelos EUA
como pela Alemanha. Era agora claro que estes outros países (cuja industrialização
assentou, desde o início, em empresas de grande dimensão, muitas vezes sob a forma de
trusts ou cartéis, situação que não se podia reproduzir na indústria britânica) tinham
estruturas industriais capazes não só de produzir bens de consumo e bens de capital para
se bastarem, mas eram também capazes de concorrer nos mercados externos, deixando
para trás o tempo em que só a Inglaterra tinha capacidade para exportar este tipo de
bens.

316
Um exemplo expressivo: a primeira linha inglesa de metropolitano foi financiada, construída e
electrificada, em 1905, em grande parte por uma empresa americana, a Westinghouse. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, II, cit., 19.
207

Por esta altura, a Inglaterra e o mundo sofreram as consequências da chamada


Grande Depressão 1873-1896, que afectou mais profundamente a economia britânica
(que já tinha sofrido as consequências da grande crise de 1841/1842) do que a dos
outros países. “Durante a ‘Grande Depressão’, a Grã-Bretanha deixou de ser a ‘oficina
do mundo’, para se tornar apenas numa das três maiores potências industriais, em
alguns aspectos cruciais a mais fraca das três” (Eric Hobsbawm).

No contexto de um sistema mundial do capitalismo assente em economias


nacionais com interesses conflituantes, a concorrência entre as várias ‘indústrias
nacionais’, mais ou menos monopolizadas, obrigou, por isso, a ir mais longe. A
salvaguarda das posições monopolistas das empresas nacionais leva os vários países,
por um lado, a adoptar medidas proteccionistas para impedir (ou pelo menos dificultar)
a entrada de mercadorias estrangeiras no mercado interno; leva, por outro lado, a
defender as empresas nacionais da invasão de capitais e mercadorias estrangeiras nos
territórios coloniais; e leva as grandes potências a demarcar novas regiões de influência
imperial, furtando-as à concorrência de outros países. “A era da Grande Depressão deu
início à era do imperialismo: o imperialismo formal da ‘repartição’ da África, na década
de 1880; o imperialismo semi-formal de grupos nacionais ou internacionais
supervisando a administração financeira de países fracos; o imperialismo não formal
dos investimentos estrangeiros”.317
Mais uma vez, o papel dos estados nacionais é determinante. Como sublinha
François Perroux, “a concorrência dos grandes capitalismos nacionais no mercado
mundial deve entender-se essencialmente como a concorrência de poderosos
monoplólios privados apoiados pelas armas e pela diplomacia dos seus Estados”, o que
mostra que “a nação é muito mais que o quadro no qual operam as empresas e as
famílias; ela é um centro de poder”. 318 A política internacional ganha uma nova
dimensão, que haveria de conduzir o mundo para um tempo de guerras, com destaque
para as duas guerras mundiais do século XX.

Adiantemos uma data: a Conferência de Berlim, da qual viria a resultar a


partilha da África entre as potências capitalistas da Europa, realizou-se em 1884-1885.
A Inglaterra lançara-se decisivamente numa política imperialista desde a subida ao

317
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I., 186.
318
Cfr. F. PERROUX, Le capitalisme, cit., 43/44.
208

poder do governo conservador de Benjamin Disraëli (1874). Em 1876, a rainha Vitória


adopta o título de Imperatriz das Índias; no mesmo ano, a Inglaterra obriga a China a
abrir seis novos portos ao comércio inglês e a aceitar a construção da primeira via férrea
em território chinês.
A Inglaterra estabelece depois o seu domínio, de uma forma ou de outra, em
várias regiões da África, de Port-Said ao Cabo (o projecto de Cecil Rhodes): no Egipto
(1862); no Sudão (1882); na Somália (1884); no Uganda e em Zanzibar (1890). Em
1899, é a Guerra dos Boers, movida pela Inglaterra aos Boers (colonos de origem
holandesa que anos antes os ingleses tinham expulso da África do Sul e que se tinham
estabelecido nos estados de Transval e de Orange), depois da descoberta das minas de
ouro do Transval em 1884. A guerra terminou com a transformação dos dois estados
Boers em domínios do Império Britânico.
A Inglaterra estabeleceu-se ainda na Birmânia, no Bornéu, na Nova-Guiné e na
Malásia, além de penetrar economicamente em vários países da América Latina, ao
mesmo tempo que mantinha as suas posições na América do Norte, na Austrália e na
Nova Zelândia. A parte de leão na partilha do mundo coube, portanto, à Inglaterra.
Mas a França, sob o impulso de Jules Ferry, fixou-se na Tunísia, no Tchad, no
Congo, em Madagáscar e na Indochina. A Bélgica constituiu o seu ‘Estado
independente do Congo’, por iniciativa do próprio rei Leopoldo. A Holanda consolida a
sua posição na Indonésia e nas Índias Ocidentais. A Itália fixa-se na região dos Somalis.
Na Alemanha, a pressão das cidades industriais do norte empurrará também Bismark
para a expansão colonial, cabendo-lhe, na África, o Togo, os Camarões, a África
Oriental alemã e territórios no Sudoeste Africano. Os EUA, ocupado todo o território do
Oeste (por volta de 1870), lançam-se em busca de ‘novas fronteiras’, passando do
colonialismo interno ao colonialismo externo: em 1896, declaram guerra à Espanha e
tomam Cuba, Porto Rico e as Ilhas Filipinas; depois, anexam as ilhas Hawai,
estabelecem-se no Panamá e na República Dominicana e intervêm militarmente na
Nicarágua (1912), nas Honduras (1911) e no México (1914). Em páginas anteriores,
apontámos já o rumo tomado pelo imperialismo japonês.
Esta corrida às colónias a partir do último quartel do século XIX constitui, sem
dúvida, um dos acontecimentos que mais fundo havia de marcar a história
contemporânea. Em primeiro lugar, pelos conflitos que gerou entre as potências
capitalistas (em último termo, os dois grandes conflitos mundiais deste século tiveram
origem em conflitos inter-imperialistas na luta por “espaço vital”). Em segundo lugar,
209

pela situação que criou aos territórios dominados, sejam ou não formalmente
independentes no plano político.
Com efeito, o regime colonial e a exploração económica das colónias trouxeram
consigo uma divisão do trabalho à escala mundial que fez dos países dominados
produtores e exportadores de bens primários (produtos minerais, alimentos ou matérias-
primas de origem agrícola), muitas vezes em regime de monocultura. E esta degrada os
solos, reduz a produção de géneros alimentares e torna os países produtores
inteiramente dependentes do mercado de um único produto, às vezes monopsonizado
pelo país dominante.
Por outro lado, os países primário-exportadores ficam reduzidos à posição de
consumidores de produtos manufacturados produzidos pelas empresas das metrópoles,
objectivo que acarretou a liquidação das indústrias existentes em algumas das regiões
colonizadas (o exemplo da indústria têxtil na Índia é o mais flagrante).
Acresce que a exportação de capitais trouxe consigo uma nova faceta do
imperialismo, que se traduz no investimento directo nas minas e plantações, nas obras
públicas e, mais tarde, em empresas industriais. Só que esta penetração de capitais
significou que a direcção da economia dos países dominados passou a ser feita a partir
de centros de decisão estrangeiros, que actuam em consonância com os interesses
económicos das metrópoles e não com as exigências de um desenvolvimento
equilibrado dos territórios coloniais. Estes perdem a independência económica, sem a
qual não é possível autêntica independência política, mesmo quando formalmente
aqueles territórios sejam independentes. Os investimentos orientam-se em regra para
sectores que produzem para exportação; e é por demais conhecida a anemia provocada
pela exportação dos lucros nos países dominados, bem como a dependência em que os
coloca e as dificuldades que lhes levanta a sua posição de devedores de capitais.
Em suma: a internacionalização do capital e a unificação do mercado mundial a
que se assistiu no período do capitalismo monopolista vieram lançar as bases da
hierarquia que hoje caracteriza o sistema mundial do capitalismo. Um pequeno grupo de
países (inicialmente apenas a Inglaterra, depois acompanhada ou mesmo ultrapassada
por outros países da Europa Ocidental e pelos EUA, e, actualmente, incluindo também o
Japão, a Austrália, a Nova Zelândia) ocupa o vértice da pirâmide, dominando todo o
resto do globo. Em posição intermédia, os países que são a um tempo dominados e
dominantes. Na parte inferior da escala hierárquica, vêm os chamados países
210

subdesenvolvidos (países dominados, países dependentes, países de desenvolvimento


impedido).319

A colonização do século XVI (na sequência das viagens atlânticas de


portugueses e espanhóis, que operaram a primeira onda de mundialização dos
mercados) teve consequências desastrosas para as populações de várias regiões
colonizadas, em particular da América Central e do Sul: a população passou de 80-100
milhões de habitantes por volta de 1500 para 10 milhões apenas por alturas de 1650,
com o caso limite do México Central (25 milhões em 1500, um milhão por volta de
1605).
Vimos que o capitalismo surgiu como a “civilização das desigualdades”. Com o
capitalismo surgiu também a desigualdade entre países, desigualdade que se tem vindo a
acentuar como decurso dos tempos. E muitos autores defendem que o capitalismo se
consolidou como civilização das desigualdades com o desencadear desta nova ofensiva
do capitalismo em meados do século XIX e com a segunda onda de globalização que a
caracterizou: foi então que se começou a cavar o fosso que hoje separa os países ditos
desenvolvidos dos países ditos subdesenvolvidos o que obriga a equacionar a relação
entre o ‘subdesenvolvimento’ e a colonização, processo indissociável do próprio
desenvolvimento do capitalismo.

319
Keynes dá-nos um expressivo retrato do mundo visto da Inglaterra imperial (cfr. “The Europe
before the War”, cit., 6): “Que episódio extrordinário do progresso económico do homem esse período
que terminou em Agosto de 1914! (…) O habitante de Londres [é claro que Keynes quer dizer alguns
habitantes de Londres…] poderia pedir pelo telefone, enquanto tomava o chá da manhã na cama, os mais
variados produtos de todo o mundo, na quantidade que considerasse adequada, e esperar, com certeza, a
pronta entrega dos mesmos à sua porta; simultaneamente, e pelos mesmos meios, poderia investir a sua
riqueza em recursos naturais e em novas empresas de qualquer parte do mundo, e participar, sem esforço
ou mesmo preocupação, dos seus prováveis resultados e vantagens; ou então poderia resolver combinar a
segurança da sua fortuna com a boa fé dos cidadãos de qualquer municipalidade importantye em qualquer
continente que lhe fosse proposto pela fantasia ou pela informação. Se desejasse, poderia garantir sem
demora meios de transporte baratos e confortáveis para qualquer país ou clima, sem passaporte ou
qualquer outra formalidade, poderia mandar o seu criado à agência vizinha de um banco para buscar a
quantidade de metais precioso que lhe parecesse adequada, e, então, seguir para o estrangeiro. Mas o mais
importante de tudo é que ele considerava esta situação normal, certa e permanente… (…) os projectos e a
política do militarismo e do imperialismo, das rivalidades raciais e culturais, de monopólios, restrições e
privilégios, que deveriam desempenhar o papel de serpente neste paraíso, eram pouco mais do que
divertimentos no seu jornal diário, e quase nem pareciam exercer qualquer influência no curso normal da
vida social e económica, cuja internacionalização se tornava quase completa na prática”.
211

4. - O capitalismo monopolista de estado.


A Primeira Guerra Mundial é considerada, em regra, o marco que assinala o
início de uma nova fase no desenvolvimento do capitalismo, a qual vem até aos nossos
dias. Os autores utilizam para a designar expressões várias: economia mista, economia
concertada, neo-capitalismo, capitalismo organizado, capitalismo popular, capitalismo
de estado, entre outras. Preferimos a designação de capitalismo monopolista de estado,
por nos parecer aquela que melhor traduz a mudança que se verificou a partir da
Primeira Grande Guerra e que melhor caracteriza a realidade do capitalismo no período
em referência, em que o estado assume cada vez mais o estatuto de “capitalista
colectivo”: numa economia monopolizada, cabendo ao estado a função de proteger a
estrutura económico-social dominante, o estado é o estado do capitalismo monopolista,
em correspondência com a nova estrutura do capitalismo, o capitalismo monopolista de
estado.320
Vimos que a passagem do capitalismo de concorrência ao capitalismo
monopolista significou uma transformação na estrutura económica do capitalismo,
traduzida na substituição da multidão de pequenas empresas por um número reduzido de
grandes empresas que ocupam posições monopolistas ou quase monopolistas; na
substituição do pequeno capitalista individual pela grande sociedade anónima; na
substituição do operário isolado pelo sindicato, etc. Pois no capitalismo actual estes
elementos continuam presentes: por isso será ainda capitalismo monopolista. Mas há um
elemento novo, que traduz uma transformação no modo de articulação da estrutura
económica com a estrutura política.
É que o estado saiu da sua tradicional esfera política de actuação, despiu o manto
que procurava apresentá-lo como instituição que nada tinha que ver com a economia e
com os negócios e invadiu às claras a esfera económica, emergindo muitas vezes como

320
Parece dever-se a Lenine (Prefácio à 1ª ed. de O Estado e a Revolução, 1917) a expressão
capitalismo monopolista de estado, que tem sido adoptada por alguns autores marxistas (e também por
alguns não-marxistas). Esta designação e o seu significado não têm sido pacíficos, mesmo no campo
marxista. Não é o momento para a análise desta problemática. Utilizamos aqui esta formulação pelas
razões e com o sentido que explicamos no texto. Sobre este ponto, ver: BARAN/SWEEZY, Capitalismo
Monopolista, cit., 73ss ; C. PALLOIX, A Economia Mundial, 115ss; V. T. MOREIRA, em A. CASTRO e
outros, Sobre o capitalismo…, cit.; 5-68; S. TSURU e outros, Aonde vai o capitalismo…, cit.; TENDENZE
del Capitalismo Europeo, cit.; Économie et Politique, nºs 143-144 e 145-146 (Julho-Setembro/1966),
onde se publicam os textos apresentados numa conferência internacional realizada em Choisy-Le-Roy,
20-29 de Maio de 1966) ; LE CAPITALISME Monopoliste d'État, cit.; P. MATTICK, ob. cit., 80-90.
212

o maior produtor, o maior investidor, o maior consumidor, o agente que movimenta a


parte mais importante do rendimento nacional.
Por outro lado, a própria política é hoje - e cada vez mais - política económica. E
o próprio direito vem-se ocupando cada vez mais com a regulação da economia (em vez
de ‘parar à porta das fábricas’), sendo a ordem económica um elemento relevante da
ordem jurídica. É este novo estatuto do estado no seio do capitalismo que aqui se
pretende relevar com a expressão capitalismo monopolista de estado.321

321
Esta é, a nosso ver, a alteração mais significativa operada neste período nas estruturas do
capitalismo. Mas deve realçar-se também o facto de se assinalar por esta altura o nascimento da chamada
sociedade de consumo, como à frente diremos.
213

4.1. - A Primeira Guerra Mundial e suas consequências.

O desenvolvimento da indústria em vários países e a constituição, em alguns


deles, de grandes empresas nos sectores mais importantes são características do
capitalismo dos primeiros anos do século XX, como vimos. Conquistados os mercados
internos dos respectivos países e partilhado o mundo colonial, o aumento da produção
que as novas técnicas permitiam e o alargamento do mercado exigido pelas grandes
empresas impuseram às potências capitalistas a necessidade de alargar a sua esfera de
acção, o que, num mundo mais ou menos ‘ocupado’, não poderia deixar de provocar
lutas violentas em busca de “espaço vital”.322
O conflito tornou-se particularmente agudo entre a Alemanha e a Inglaterra, esta
habituada a dominar a cena do capitalismo mundial, aquela - com um desenvolvimento
industrial aceleradíssimo a partir de 1870 - carecida de novos mercados externos para a
sua poderosa indústria pesada. 323
Antes da Guerra, a Alemanha era o maior comprador de produtos exportados
pela Rússia, Itália, Áustria-Hungria, Holanda, Noruega, Suíça e Bélgica; era o segundo
maior cliente da Grã-Bretanha, da Suécia e da Dinamarca, e o terceiro maior comprador
de produtos franceses- Por outro lado, a Alemanha era o maior vendedor da
generalidade dos países da Europa central e do norte (incluindo a Rússia) e o segundo
maior vendedor à Grã-Bretanha e à França; e o investimento estrangeiro alemão tinha
integrado na órbitra da indústria alemã toda a Europa a leste do Reno.

322
A eclosão desta primeira guerra inter-imperialista veio comprovar a desadequação da análise
de Karl Kautsky (1914) sobre o imperialismo. Tal como Hilferding, Bukarine e Lenine, Kautsky assenta a
sua análise do imperialismo na concentração industrial e na formação de grandes trusts e cartéis
internacionais sob a égide do capital bancário. Mas, ao contrário de Bukarine e de Lenine, Kautsky
acreditava que o pequeno número de grandes trusts internacionais que controlavam a maior parte da
produção mundial promoveriam um capitalismo organizado e planificado à escala mundial, gerido
racionalmente como uma só empresa gigante. A racionalidade económica substituiria a anarquia do
mercado e as guerras resultantes da concorrência, anunciando um período de felicidade para a
humanidade. Cfr. Ch.-A. MICHALET, ob. cit., 101/102.
323
Estes números são elucidativos: a produção alemã de carvão passou de 30 milhões de
toneladas em 1871 para 70 milhões em 1890, 110 milhões em 1900 e 190 milhões em 1913; no período
de 1880 a 1884, as exportações anuais da indústria alemã do ferro e do aço representavam cerca de 40%
das exportações das indústrias inglesas correlativas; no período de 1909 a 1913, o volume das
exportações alemãs tornou-se sensivelmente igual ao das inglesas, nas indústrias referidas. E não admira
que assim tenha acontecido, se soubermos que a produção alemã de ferro fundido, que em 1870 era
apenas 1/5 da inglesa, igualou esta em 1905, tendo-a ultrapassado em 1910; em 1912 a Alemanha
produzia 17,6 milhões de toneladas, contra apenas 9 milhões produzidos na Inglaterra. Entretanto, a
população da Alemanha passou de cerca de 40 milhões em 1870 para 50 milhões em 1892 e para pouco
menos de 70 milhões em meados de 1914 (cfr. LENINE, O imperialismo, ed. cit., 131; J. M. KEYNES,
“Europe before the War”, cit., 6; H. DENIS, História…, cit., 604).
214

A Alemanha iria concorrer com a Inglaterra na tomada de posições dentro do


império turco, conseguindo que fosse adjudicada à indústria alemã a construção do
caminho de ferro de Bagdad. Em 1905, a Alemanha fixou-se em Tânger, entrando em
competição com a França, que então já dominava Marrocos. E foi a tentativa da
Alemanha de penetrar na região dos Balcãs, com o apoio do imperador da Áustria, que
conduziu à 1ª Grande Guerra entre potências capitalistas. De um lado, a Alemanha e a
Áustria (que naquela zona estava em conflito com a Rússia); do outro lado, aqueles que
mais sofriam a concorrência da Alemanha (a Inglaterra e a França) e o adversário da
Áustria (a Rússia, onde, aliás, havia grandes interesses de capitais franceses).
Deste jogo de interesses resultou a guerra, que viria destruir as estruturas
económicas e sociais que poderiam dar algum sentido às teses defendidas pelo
liberalismo económico. E com ela muita coisa mudou.
As exigências da guerra, não só em armamento e em outros equipamentos
militares, mas também em vestuário, calçado e alimentação para a tropa, condicionaram
a orientação da produção e conduziram ao estreito controlo da economia por parte do
estado. A necessidade de disciplina pública da economia forçou a ampliação das
funções do estado e conduziu ao desenvolvimento de estruturas administrativas, de
formas organizativas e de modelos de direcção coerciva da economia privada, uma vez
que os sectores mais relevantes da actividade económica estavam sob o controlo directo
da administração estadual, que tomava as decisões fundamentais em matérias como a
fixação dos preços, o abastecimento de matérias-primas e de bens essenciais, o
investimento, as importações.324
Terminadas as hostilidades, as estruturas produtivas apresentavam distorções
acentuadas, com sobredimensionamento dos sectores e actividades mais directamente
ligados à produção para fins militares e défice nas actividades destinadas a produzir
para fins civis. A generalidade dos sectores sobredimensionados carecia de profunda
reestruturação para se adaptar à nova realidade, o que obrigou à intervenção do estado e
324
Tomando como exemplo a Grã-Bretanha, ainda antes de 1914 o estado assumiu posições
fortes no capital da Companhia do Canal do Suez, da Companhia de Petróleos Anglo-Persa, da
Companhia de Navegação Cunard e na Companhia de Rádio e Telégrafo Marconi, praticamente
nacionalizada ao ser adquirida pelos Correios ingleses em 1912. A influência do estado era muito forte,
no final da Guerra, nos transportes aéreos e na radiodifusão (monopólio público), intervindo também no
sentido da fusão das empresas de caminhos de ferro, e da concentração das empresas do ferro, do aço, do
carvão e do abastecimento de electricidade. Na síntese de E. J. HOBSBAWM (Indústria e Império, cit.,
II, 106), “em 1918 o estado tinha tomado em mãos várias indústrias, controlava outras, requisitando a sua
produção ou despedindo pessoal, organizava o grosso das compras no estrangeiro, punha restrições às
despesas de capitale ao comércio externo, fixava os preços e controlava a distribuição de bens de
consumo. (…) Doravante, seria possível detestar a intervenção estatal, mas já não alegar de uma forma
fundamentada que ela não podia funcionar”.
215

ao recurso a capitais públicos para evitar a falência das empresas e o desemprego dos
que nela trabalhavam.
A Guerra destruiu na Europa boa parte das infra-estruturas ferroviárias e
rodoviárias, unidades industriais, marinha mercante, minas de ferro e de carvão,
condutas de água, habitações, reduzindo pelo menos 30% o potencial agrícola e 40% a
capacidade de produção industrial. No que toca à sangria humana, calcula-se que, entre
mortos e desaparecidos, incluindo os cinco milhões de mortos da Rússia (Guerra,
revolução, contra-revolução e guerra civil) e os mortos da gripe espanhola de 1918
(cerca de um milhão), a Europa perdeu cerca de 15 milhões de habitantes. As difíceis
condições de vida, a separação de casais provocada pela Guerra, bem como os fluxos
migratórios intra-europeus fizeram aumentar a taxa de mortalidade infantil e baixar a
taxa de natalidade. O declínio económico da Europa era inevitável. A Grande Depressão
do final dos anos 1920 e início da década de 1930 só veio agravar este quadro.
A Europa imperial perdeu o seu ceptro e deixou de ser o centro financeiro do
mundo, onde se jogava o destino dos povos à escala mundial. A Grã-Bretanha e outros
países europeus tiveram que vender participações financeiras em vários negócios fora
da Europa (nomeadamente nos EUA) e viram-se obrigados a recorrer ao crédito, em
especial junto dos EUA, país que substituiu a Grã-Bretanha como maior credor mundial
e emergiu como um grande exportador de capital privado, especialmente para a
América Latina, velha ‘reserva’ do capital britânico.
Em Setembro de 1931, a Grã-Bretanha foi obrigada a abandonar o padrão-ouro,
desvinculando-se da obrigação de assegurar a livre convertibilidade da libra em ouro.
Dois meses depois, o jogo da oferta e da procura provocou a desvalorização da libra em
cerca de 40%. Vários outros países foram obrigados a abandonar o padrão-ouro e a
desvalorizar de imediato as suas moedas (os países da Commonwealth, os países
escandinavos, o Egipto, a Argentina, Portugal e os EUA); em 1993, foi a vez da
Estónia; em 1934, a Checoslováquia, a Itália e a Áustria; em 1935, a Bélgica, o
Luxemburgo e a Roménia; em 1936, a França, a Holanda, a Suíça e a Letónia.
Perante o fraccionamento do mercado internacional, desenvolveu-se uma atitude
generalizada de nacionalismo económico, de proteccionismo e de luta por mercados
externos, o que provocou o retraimento do comércio internacional: do índice 100 em
1913, passos para 129 em 1929 e baixou para 112,8 em 1938.325

325
Para mais informação sobre este período, cfr. P. MILZA, ob. cit.
216

Os EUA viram reforçado o seu poder relativo no concerto das nações, poder que
se acentuaria com o colapso do padrão-ouro como sistema monetário internacional, com
as consequências da Grande Depressão e com as sequelas da Segunda Guerra Mundial.
Em finais de 1920, a Europa ainda respondia por 45% das exportações mundiais (15,4%
para os EUA) e 52% das importações mundiais (12,2% para os EUA). Mas em 1928 a
produção industrial dos EUA representava 42% da produção mundial (35,8% em 1913),
e o seu peso no comércio internacional passou de 20% em 1913 para 27,6% em 1928.
Fora da Europa, também o Japão começou a emergir como potência regional,
quintuplicando a sua produção industrial e ‘ocupando’ os mercados da China, da Índia e
dos países do sueste asiático.

Do ponto de vista que aqui nos interessa, o que mais importa sublinhar é que a
Guerra veio tornar claro, fundamentalmente, que o estado não podia continuar na
posição do sinaleiro que, do seu pedestal, se limitava a regular o trânsito dos interesses
particulares, intervindo apenas em caso de colisão mais ou menos grave. Na grande
corrida económica que conduziu à Guerra (e que esta exigiu depois aos beligerantes),
tornou-se necessária a presença do estado, considerada indispensável para evitar
‘acidentes’ e para manter a funcionar a máquina capitalista. Ao contrário do que antes
se admitia, ao estado era agora atribuída a posição de primeiro responsável pela
economia.326
Até então, o estado só esporadicamente intervinha na economia e em relação a
certos aspectos ou questões restritas. A um nível global, a mais importante tomada de
posição do estado talvez tenha sido a legislação anti-trust que se iniciou nos EUA com o
Sherman Act (1890). Perante o perigo em que a concentração monopolista vinha
colocando a ‘livre concorrência’ (com cujas virtudes se identificavam as virtudes do
capitalismo), hesitou-se acerca da atitude que o estado devia tomar. Devia não se
intrometer, cumprindo assim a sua função? Ou deveria intervir por só assim poder
cumprir essa função? Assumindo que salvar a concorrência era salvar o próprio
capitalismo, o estado interveio, proibindo todas as formas susceptíveis de prejudicar a
livre concorrência, para assegurar as condições que se consideravam indispensáveis ao
bom funcionamento do sistema. É claro que o capitalismo continuou a sua evolução e as
leis não foram suficientes para impedir a concentração.
326
O próprio Lenine escreveu que a 1ª Guerra Mundial tinha “acelerado extraordinariamente a
transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de estado” (apud Ph. ZARIFIAN,
Inflação…, cit., 110).
217

Em 1924 Keynes proferiu na Universidade de Oxford a célebre conferência


subordinada ao título (significativo) The end of laissez-faire, na qual afirma, logo no
terceiro período: “We do not dance even yet a new tune. But a change is in the air”.
218

4.2. - A Revolução de Outubro e suas sequelas.


219

Foi particularmente difícil o período que se seguiu a 1918, em especial na


Europa enfraquecida pela guerra, agora obrigada a enfrentar um concorrente de peso no
mercado mundial, os EUA.
O número de desempregados aumentou, com particular incidência nas indústrias
voltadas para a exportação. A hiperinflação foi particularmente violenta na Alemanha,
mas atingiu outros países europeus, com picos em Agosto/1922 (Áustria),
Novembro/1923 (Polónia), Janeiro/1924 (Rússia) e Fevereiro/1924 (Hungria).
A subida dos preços em espiral provocou a desvalorização do marco e
inviabilizou o funcionamento do mecanismo dos preços de mercado, tornando
impraticável o cálculo económico, destruindo a ‘racionalidade’ própria da economia
capitalista, que ficou completamente fora do controlo. As notas de marco não tinham
qualquer valor: eram usadas com frequência para acender fogões, mas ninguém as
queria guardar, nem sequer por um minuto, porque com elas não se adquiria qualquer
bem.327
Generalizou-se o fenómeno da fuga à moeda (a moeda deixou de funcionar
como instrumento de troca, meio de pagamentos e reserva de valor). A troca directa
tornou-se prática corrente e a poupança perdeu sentido. Milhões de pessoas perderam as
suas poupanças e cairam, dramaticamente e quase de um momento para o outro, em
situações de miséria sem saída. Não falta quem defenda que Hitler é filho da inflação,
por se acreditar que foi a desorganização económica, social e moral gerada pela
hiperinflação que abriu as portas do poder à irracionalidade do nacional-socialismo.
Ainda em plena guerra e em grande medida como resultado dela e das
contradições que ela evidenciou no seio do capitalismo, eclodiu na Rússia a revolução
bolchevista (Outubro de 1917), que se consolidou como revolução socialista ao cabo de
três anos de guerra civil.

Em Novembro de 1923 os preços correntes na Alemanha eram 1.422.900.000.000 de vezes


327

superiores aos preços de antes da Guerra, e um dólar valia 4.200 milhões de marcos. Entre Janeiro/1922 e
Novembro/1923, o índice de preços aumentou na Alemanha de 1 para 100.000.000.000. Um dólar valia,
em Outubro de 1923, 4.200 milhões de marcos. Em certos períodos, os salários eram fixados todos os
dias.
Num livro de 1941, Stefan Zweig refere alguns aspectos da vida quotidiana na Alemanha e na
Áustria durante este período. “Ninguém sabia quanto custava um objecto, escreve ele. Os preços
aumentavam arbitrária e desmesuradamente; uma caixa de fósforos custava numa loja onde os preços
eram actualizados 20 vexes mais do que em outra, em que um vendedor honesto (ou inocente) tivesse
mantido o preço do dia anterior”. Graças ao congelamento das rendas, “a renda anual de um apartamento
médio custava o preço de uma refeição. De certo modo, os austríacos estiveram alojados cinco a dez anos
gratuitamente”. “Um ovo custava tanto depois da guerra como um automóvel de luxo antes da guerra; e
na Alemanha um ovo comprava-se por mil milhões de marcos, o que antes da guerra permitiria comprar
todos os edifícios da Grande Berlim” (referências colhidas em M. Jacinto NUNES, cit.).
220

E o exemplo da Revolução de Outubro, no ambiente escaldante da época, não


deixou de se fazer sentir em outras paragens, confirmando os receios de muitos
responsáveis políticos. Numa carta que dirigiu a Clemenceau e a Woodrow Wilson,
Lloyd George advertia (25.3.1919):

“Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução. Existe um sentimento profundo


não só de insatisfação mas também de raiva e indignação entre os operários em relação às
condições existentes antes da guerra. Toda a ordem vigente, nos seus aspectos políticos, sociais
e económicos, está a ser posta em causa pela massa da população de um extremo ao outro da
Europa”.328

Na Alemanha, mal se iniciou a guerra, organizou-se, à volta de Rosa


Luxemburgo e de Karl Liebknecht, o Spartakusbund, expressão organizada da ala
esquerda do Partido Social-Democrata Alemão, que se tinha oposto à guerra e ao
abandono do princípio da luta de classes, contrariando a orientação adoptada pela
direcção daquele partido. Sob a influência da revolução russa, o Grupo Spartakus
defendeu a instauração da ditadura do proletariado e a implantação do socialismo na
Alemanha. Transformando-se em 1918 no Partido Comunista Alemão, o grupo
spartakista envolveu-se, logo em 1919, num conflito armado com as forças no poder em
Berlim. Dominada a tentativa revolucionária e assassinados R. Luxemburgo e K.
Liebknecht, o movimento revolucionário sofreu, na Alemanha, um rude golpe.
Também na Hungria ocorreu, no imediato após-guerra, uma tentativa de
implantação de um estado socialista. A República foi aqui proclamada em Novembro
de 1918. Em Março de 1919, perante a amputação do território imposta pelos Aliados, o
governo demitiu-se. Num período em que as dificuldades económicas favoreciam a
adesão ao ideário comunista, a multidão conduz ao poder Bela Kun. A República
Soviética Húngara duraria apenas 133 dias, após os quais os contra-revolucionários
confiaram a regência ao Arquiduque José, que inicia um período de terror branco.
Na Itália, os operários das indústrias metalúrgicas, culminando o período de
reivindicações que se arrastou pelos anos 1919-1920 (o famoso biennio rosso), ocupam
as fábricas e começam a eleger conselhos operários, à semelhança dos sovietes russos.
Falhada esta tentativa revolucionária, as classes médias, afectadas duramente
pela inflação e adversárias da solução pretendida pelas organizações representativas da
classe operária, deram força ao partido de Mussolini, que, em Outubro de 1922, após a
Marcha sobre Roma dos ‘camisas negras’, foi convidado a formar governo, que em

328
Cfr. Vértice, nº 51, Nov-Dez/92, 46.
221

1925 se assumiu formalmente como ditadura, começando um novo ciclo com a


dissolução dos sindicatos operários.
Em outros países da Europa, o falhanço das tentativas revolucionárias inspiradas
na revolução soviética ocorridas em 1918 e em 1919 deu lufar à implantação de regimes
de tipo fascista: Itália,1922; Bulgária, 1923; Espanha (Gen. Primo de Rivera), 1923;
Albânia, 1925; Polónia (Pilsudski), 1926.
Em 1928, Estaline decide colectivizar a agricultura e acelerar a industrialização,
com prioridade à indústria pesada, lançando os famosos planos quinquenais, para
mobilizar e organizar, em favor do investimento na indústria, a poupança interna gerada
na agricultura. O Comité Executivo da Internacional Comunista reconhece a “relativa
estabilidade do capitalismo” e proclama o objectivo de construir o “socialismo em um
só país”.329

329
Cfr. A. V. MARTINS, ob. cit., 144/145 e J. ELLEINSTEIN, ob. cit., I, 183.
222

4.3. – A emergência do estado social.


223

4.3.1. - A vida mostraria não ser confirmada pela realidade a velha tese liberal de
que a economia e a sociedade, se deixadas a si próprias, confiadas à mão invisível ou às
leis naturais do mercado, proporcionam a todos os indivíduos, em condições de
liberdade igual para todos (a igualdade perante a lei), as melhores condições de vida,
para além do justo e do injusto.330
Este pressuposto liberal falhou em virtude de vários factores: progresso técnico;
aumento da dimensão das empresas; concentração do capital; fortalecimento do
movimento operário (no plano sindical e no plano político) e agravamento da luta de
classes; aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo, que começaram a
afirmar-se como alternativas a ele.331
Falhado aquele pressuposto – que justificava a tese de que o estado deveria estar
separado da sociedade e da economia -, impôs-se a necessidade de confiar ao estado
(ao estado capitalista) novas funções, no plano da economia e no plano social. A
emergência do estado social - poderemos antecipar já esta ideia - significou uma
diferente representação do estado e do direito, aos quais se comete agora a missão de
realizar a ‘justiça social’, proporcionando a todos as condições de uma vida digna,
capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um. A mão
visível do direito começava a substituir a mão invisível da economia.
No quadro do capitalismo monopolista, o conceito de estado social trouxe
consigo, por isso mesmo, maior autonomia da instância política e um certo domínio do
político sobre o económico, também com o objectivo de satisfazer determinadas
aspirações sociais, na tentativa de reduzir a campo de acção dos movimentos

330
Defendiam os fisiocratas: o que é natural é justo (François Quesnay: “a desigualdade do
direito natural não admite justo nem injusto no seu princípio: ela resulta da combinação das leis da
natureza”). E Hayek, como os liberais do século XVIII, entende que o mercado é uma instituição que
“não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não são planeados nem previstos e dependem de
uma multidão de circunstâncias que não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja”. Por
isso insiste em que a expressão justiça social deveria ser abolida da nossa linguagem.
331
Em 1965, escreve Rudolf Huber (apud J. GOMES, ob. cit., 213/214): “As características da
sociedade industrial altamente desenvolvida a que pertence o conceito de estado social são: em primeiro
lugar, um sistema económico com alta concentração de capital, técnica de máquinas aperfeiçoada,
processos de trabalho racionalizados e necessidades de massa ‘estandardizadas’; em segundo lugar, um
sistema social no qual a velha hierarquia das corporações cedeu perante o conflito de classes, pelos
mesmos direitos da classe possidente; em terceiro lugar, um sistema cultural, de educação popular geral
com possibilidades de acesso para todos aos bens culturais e aquisições da civilização, através de
organizados sistemas de cultura e civilização; em quarto lugar, um sistema com um aparelho
administrativo preparado para as necessidades económicas, sociais e culturais das massas industriais; em
quinto lugar, e sobretudo, um sistema de estado que se desligou do princípio da não intervenção nos
termos da máxima liberal laisser-faire, laisser-passer, para transitar para um sistema de intervenções
sociais, protegendo as classes e os grupos mais fracos”.
224

revolucionários (nota esta que já estava presente no estado bismarckiano, talvez a


primeira manifestação do que viria a ser o estado social).

4.3.2. - A generalização e o aprofundamento dos conflitos sociais nos países


capitalistas e a emergência de experiências socialistas vieram perturbar o equilíbrio da
ordem económica do liberalismo, a ordem da liberdade individual e da propriedade
privada (configurada na mão invisível de Adam Smith e no seu conceito de Civil
Government) e conduziram a um novo papel do estado e do direito, muitas vezes por
pura cedência táctica e oportunista.
As lutas da nova classe operária (os trabalhadores assalariados das “indústrias
novas”) constituíram a forma mais visível e mais profunda de contestação do direito
clássico (do direito burguês). A burguesia, porém, aprendeu a lição da discussão sobre o
sufrágio universal, considerado inicialmente como reivindicação subversiva dos
trabalhadores, como uma espécie de ‘revolução permanente’, e aplaudido depois (até
com o acrescento do voto obrigatório) como um factor de integração social e um
instrumento de ‘anestesia’ das organizações dos trabalhadores, uma espécie de apólice
de seguro contra os riscos de subversão social.
Por isso foi mais fácil avançar para soluções de compromisso que implicaram a
integração, na nova ordem jurídica do capitalismo, de princípios contrários aos dogmas
da ordem liberal, mas, logicamente, não contrários à essência do capitalismo. O
qualificativo social, que tempos antes carregava algo de subversivo, assume agora, aos
olhos da burguesia, um ar protector e tranquilizador.
Se o direito civil napoleónico foi a expressão mais acabada de um direito de
classe (o direito da burguesia revolucionária vitoriosa), o direito social surgiu, no
quadro do estado social, como um direito de compromisso (‘compromisso’ que não
traduz, necessariamente, um equilíbrio de forças).
Compromisso necessário para garantir a paz social: não faltam razões aos
autores que põem em relevo a natureza ideológica e mistificatória do conceito de estado
social, apontando-o como “um ídolo para apresentar às classes não capitalistas com o
objectivo de as anestesiar”.332
Compromisso necessário perante os resultados positivos do desenvolvimento do
ideário socialista e das experiências socialistas, que influenciaram e mobilizaram os
trabalhadores e a opinião pública contra o capitalismo, obrigando a uma nova

332
Cfr. M. GIANNINI, ob. cit.
225

conformação da ordem jurídica do capitalismo contemporâneo, tornada inevitável para


fugir à derrocada iminente na sequência do cataclismo da Grande Depressão. A
economia passou a constituir a principal preocupação do estado e o terreno determinante
da acção política, assumindo o estado (e o direito) um papel de relevo na regulação do
equilíbrio do sistema social, a partir da aceitação de que o sistema económico não se
regula por si próprio e muito menos pode livrar o sistema social das tensões e
desequilíbrios que têm origem na economia.

4.3.3. - As primeiras manifestações do estado social poderão assinalar-se no


período imediatamente posterior à 1ª Guerra Mundial, marcado por uma profunda crise
económica, por violentos conflitos de classe, pela subversão do estado de direito liberal
e dos princípios da democracia.333
A expressão estado social de direito data de 1930 (Hermann Heller), mas as suas
raízes podem ir buscar-se a Saint Simon, a Lorenz von Stein, a Lassalle (e aos
“socialistas de estado”), aos fabianos (e aos teóricos da “democracia económica”) e aos
adeptos do socialismo reformista.334
Em 1848 já se falava na França de democratas socialistas e o estado
democrático e social foi então considerado como o compromisso possível entre os
grupos mais radicais (socialistas) do operariado francês e os partidos representativos da
pequena burguesia, implicando o reconhecimento, em favor dos trabalhadores, de certos
direitos sociais e económicos. Mas foi na Alemanha, durante o consulado de Bismarck
(1883-1889), que se criou o primeiro sistema público de pensões de reforma e de
seguros de trabalho e de saúde. Muitos vêem aqui a primeira manifestação do que viria
a ser o estado social.
Até hoje, o conceito de estado social tem mantido esta natureza de solução de
compromisso, que se traduz na adaptação das estruturas sociais e políticas da sociedade
capitalista aos ventos da história e às exigências do tempo histórico, uma espécie de
“evolução na continuidade” (J. Gomes), com o objectivo de suavizar as contradições do
sistema, ‘anestesiar’ os contestatários e afastar os riscos de rupturas revolucionárias.
Ameaçada a estabilidade da ordem burguesa, a ruptura da sociedade capitalista
só podia ser evitada (adiada) a partir do estado. Esta é, aliás, a missão última do estado

333
Para acompanhar e compreender a evolução do estado liberal até ao estado social enquanto
estado repartidor, passando pelo estado produtor de serviços públicos, vale a pena ler Rogério SOARES,
Direito Público…, cit., especialmente 81ss.
334
Cfr. V. MOREIRA, “Estado capitalista…, cit.
226

nas sociedades de classe. Como o estado liberal não podia continuar a assegurar esta
missão, o estado capitalista teve de assumir outra veste: assim nasceu o estado social.
É claro que este não se propõe a construção de uma nova ordem social, mas a
salvação e a consolidação da ordem burguesa, mudando alguma coisa para que tudo
continue na mesma, segundo a conhecida máxima de Il Gattopardo. Nas novas
condições da sociedade capitalista (acentuado progresso técnico e concentração do
capital, a par do aprofundamento da conflitualidade social), o estado social propõe-se os
mesmos objectivos últimos do estado liberal (a primeira forma do estado burguês):
assegurar a coesão social, i.é, o equilíbrio do sistema económico e social, condição
essencial para que as suas estruturas se mantenham, nomeadamente a estrutura de
classes e o estatuto da classe dominante.
Desfeito o mito de que a sociedade civil (a ordem económica natural) garantiria
por si própria a ordem social e a justiça social, o estado social veio traduzir e assumir a
necessidade de intervir de forma sistemática na economia, deixando esta de ser, para o
estado e para os cidadãos, um dado da ordem natural, para se tornar num objecto
susceptível de conformação pelas políticas públicas. Aceitando-se que “nenhuma
questão política pode ser separada das suas repercussões económicas e, inversamente,
que nenhum problema económico pode ser resolvido sem meios políticos” 335, o estado
social assume-se como estado económico, cuja principal função é a de proporcionar as
condições de funcionamento de uma economia bem sucedida.
E, no período histórico de que estamos a falar, entendia-se que este objectivo só
poderia alcançar-se se o estado garantisse um certo grau de satisfação de determinadas
necessidades sociais e um certo grau de justiça social. Só deste modo, atenuando os
conflitos de classe, se conseguiria a ‘paz social’ indispensável à estabilidade das
sociedades capitalistas e à sobrevivência do próprio capitalismo, sem pôr em causa os
princípios do estado de direito. Em nome desta lógica é que o próprio conceito de
democracia passou a integrar o reconhecimento e a garantia dos direitos económicos,
sociais e culturais, porque este reconhecimento e esta garantia são agora considerados
essenciais para que sejam efectivos os clássicos direitos, liberdades e garantias
(princípio da indissociabilidade dos direitos fundamentais).
Para responder às novas exigências que se lhe colocam, o estado social,
enquanto estado económico, perfilou-se como estado-empresário, mas assumiu-se
também como estado prestador de serviços, estado redistribuidor do rendimento, estado-
335
Cfr. J. GOMES, ob. cit., 216.
227

providência, estado de bem-estar.336 Estas novas preocupações do estado capitalista


exigiram, por outro lado, mudanças na sua estrutura organizatória, agora marcada pela
prevalência do Executivo sobre o Legislativo e da Administração perante a lei (v.g. os
contratos de investimento, a isenção de impostos concedida pelo Administração, a
concessão de subsídios a fundo pedido, os apoios em espécie, etc.).
Num outro enquadramento, os defensores da tese segundo a qual a tecnostrutura
(Galbraith) vinha substituindo os proprietários capitalistas advogaram uma solução do
mesmo tipo para as estruturas do estado: a nova ‘economia planificada’ exige
continuidade da orientação política e capacidade técnica incompatível com a ‘anarquia’
parlamentar e a incompetência dos deputados. Por isso o estado tecnocrático, cada vez
mais liberto dos mecanismos de controlo popular, começa a ocupar o lugar do estado
democrático. A nova elite do poder (C. Wright Mills), e os seus representantes (ou
mandantes), os grupos monopolistas, os grandes conglomerados transnacionais,
“confiscam a democracia” (J. Gomes), procurando esbater a capacidade de intervenção
política das classes trabalhadoras e das suas organizações e limitando mesmo a
autonomia política dos estados nacionais dos países mais débeis.

4.3.4. - O conceito de estado social carregou consigo, desde o início, uma


enorme ambiguidade, obtendo consagração em constituições tão diferentes como a
Constituição de Weimar, a Lei Fundamental de Bona e a Constituição da V República
Francesa e cobrindo realidades tão diferentes como o estado fascista e o estado-
providência.
Apesar de tudo, poderemos talvez enunciar alguns pontos relativamente
consensuais na sua caracterização, os quais dão sentido à ideia de responsabilidade
social do estado enquanto responsabilidade social colectiva (de toda a comunidade):
a) o estado social assume-se como estado acima das classes e dos conflitos
sociais e afirma-se empenhado na prossecução da paz social e na garantia a todos os
cidadãos dos meios necessários a uma vida digna, criando condições para que cada um
atinja este objectivo pelo seu trabalho ou fornecendo ele próprio os bens ou serviços
indispensáveis a tal desiderato (saúde, educação, segurança social, etc.);
b) o estado social propõe-se oferecer a todos oportunidades iguais de acesso ao
bem-estar, nomeadamente através de políticas de redistribuição do rendimento em favor
dos mais pobres e de investimentos públicos de que aproveitem maiormente as camadas

336
Cfr. V. MOREIRA, “Estado capitalista…, cit.
228

sociais de rendimentos mais baixos (habitação, creches e escolas de ensino básico,


serviços públicos de saúde, v.g.);
c) o estado social deve proporcionar a todos os indivíduos e a todos os grupos
sociais a possibilidade de participar no poder social, nomeadamente no quadro da
concertação social, envolvendo o estado e os chamados parceiros sociais.

Analisaremos a seguir o significado do compromisso político contido na


Constituição de Weimar e nas políticas que configuraram o New Deal, experiências
marcadas pela defesa de uma intervenção sistemática do estado na economia.
Deixaremos de lado a (curtíssima) experiência do Governo de Frente Popular na
Espanha e faremos uma breve referência à evolução registada na França e no Reino
Unido, países onde o ideário liberal imperou praticamente até a Segunda Guerra
Mundial, se exceptuarmos o curto período da governação do Front Populaire na França.
229

4.4. – O compromisso político da Constituição de Weimar.

O ano de 1918 foi, na Europa, como vimos, o ano de todas as revoluções. O seu
falhanço abriu, quase sempre, o caminho a soluções de tipo fascista. Na Alemanha,
porém, à derrota do movimento spartakista sucedeu uma solução de compromisso,
traduzida na Constituição de Weimar (1919).
Vale a pena recordar que, quando, de um lado e de outro, se preparava a guerra,
as centrais sindicais da França e da Alemanha reuniram-se e proclamaram que os
trabalhadores estavam contra a guerra, que souberam caracterizar como conflito inter-
imperialista, denunciando as suas motivações e os seus objectivos, que os trabalhadores
consideravam contráriso aos seus interesses.
Terminadas as hostilidades, os horrores dessa “guerra que pôs fim às guerras”
(como então se acreditava) deram razão às estruturas representativas dos trabalhadores,
que, como sempre acontece, morreram na guerra e sofreram as suas misérias. Esta
‘autoridade moral’ (e a consciência de classe que ela representa) veio reforçar o poder
resultante do aumento numérico da classe operária e do reforço das suas estruturas
organizativas, o que se traduziu em aumento do seu peso político e da sua capacidade
para influenciar o sentido da intervenção do estado. Daí o compromisso weimariano,
considerado pelas classes dominantes um mal menor, perante a ameaça de contágio da
vitoriosa Revolução de Outubro.337
A Grundgesetz de 1919 é o primeiro texto constitucional (num país capitalista
industrializado) que põe abertamente em causa a tese liberal da autonomia das forças
económicas (do ‘governo’ da economia por ‘leis naturais’), assumindo que a
intervenção do estado na economia deve visar não apenas a ‘racionalização’ da
economia, mas também a ‘transformação’ do sistema económico, integrando a
economia na esfera da política, fazendo da economia um problema político, lançando
deste modo as bases da passagem do estado de direito ao estado social. A partir das
soluções consagradas na Constituição de Weimar, acabaria por se construir na
Alemanha a noção de direito público da economia (Ernst Rudolf Huber).
A constituição económica de Weimar inspira-se claramente no princípio de que
não pode confiar-se ao capital privado a gestão de determinados sectores da actividade
337
Mais à frente falaremos do New Deal, igualmente caracterizado pelo objectivo de salvar o
capitalismo preservando a democracia, embora neste caso, como veremos, a intervenção sistemática do
estado na economia tenha convivido com algumas soluções do receituário corporativo.
230

económica, nomeadamente os que representam uma intrínseca e irrecusável utilidade


social (a produção e distribuição da energia é apontada como o exemplo mais
relevante). A nacionalização das “empresas susceptíveis de socialização” (§ 1º do art.
156º) é um dos meios previstos na Constituição para colocar sob a alçada do estado
aqueles bens económicos de utilidade social e ainda as empresas que laboram em
situação de monopólio (cuja ‘perigosidade’ era apontada mesmo por alguns teóricos do
estado liberal, preocupados com o facto de o monopólio pôr em causa as ‘virtudes’
económicas e éticas da concorrência, com as quais se identificavam as ‘virtudes’ do
capitalismo).
Mas o compromisso weimariano marca a diferença entre o estado social e o
estado socialista, na medida em que se recusava o confisco puro e simples da
propriedade privada, garantindo sempre aos expropriados uma qualquer contrapartida,
embora não necessariamente uma compensação tanto por tanto, em termos civilísticos
(igual ao valor dos bens expropriados), admitindo-se que a ‘indemnização’ devida
poderia traduzir-se na manutenção dos antigos proprietários na administração da
empresa, após a sua passagem para a titularidade do estado.
Na Constituição de Weimar tem origem a ideia de programação económica,
bem como o desenvolvimento da planificação urbanística e a elaboração em bases
científicas das políticas de ordenamento do território e do seu enquadramento jurídico.
Nela emergem também novos direitos, com a categoria de direitos sociais: o direito à
habitação, o direito à educação, o direito à saúde. E nela é reconhecida, pela primeira
vez em termos constitucionais, a liberdade de organização sindical como direito
fundamental dos trabalhadores.338
A par da nacionalização como instrumento mais ‘radical’, a Constituição de
Weimar consagrava outros instrumentos que permitiam a intervenção do estado na
economia, ou, se preferirmos, a disciplina da propriedade privada. É o caso, típico, do
princípio da função social da propriedade, consagrado no § 3º do art. 153º: “A
propriedade obriga. O seu uso deve estar ao serviço não só do interesse privado mas
também do bem comum”.
Assim se tentava uma outra via de ‘socializar’ a propriedade privada, não só
retirando aos proprietários o direito de abusar da sua propriedade, mas também
cominando-lhes o dever de a colocar ao serviço dos interesses da colectividade. Na

338
A Constituição pioneira na consagração dos direitos sociais como direitos fundamentais é a
Constituição mexicana de 1917.
231

interpretação mais ‘avançada’, aquela norma constitucional não se limitava a consagrar


um mero limite negativo ao direito de propriedade, antes impunha aos proprietários
comandos positivos quanto ao modo e ao sentido da utilização dos bens de sua
propriedade.
Nesta mesma linha de orientação podemos incluir a consagração (art. 165º) do
princípio da co-gestão, através do qual se garantia, em determinadas circunstâncias, a
participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Trata-se de uma outra limitação
à liberdade absoluta do capital, de um instrumento que, mais uma vez, visava ‘amarrar’
as empresas privadas às suas responsabilidades sociais, através da participação dos
trabalhadores no processo de tomada de decisões das próprias empresas.
Como já dissemos, a Constituição de Weimar foi uma solução de compromisso,
com o objectivo de refrear as aspirações revolucionárias de uma parte do operariado
alemão, que permaneciam mesmo depois da derrota do movimento spartakista em 1918.
Neste quadro, a instituição da co-gestão (ou co-decisão) traduz precisamente o
propósito de anular o projecto conselhista tentado em 1918 (inspirado nos soviets
implantados na Rússia na sequência da Revolução de Outubro), alterando em certa
medida o estatuto da empresa privada, mas deixando intocada a propriedade capitalista
dos meios de produção. O objectivo último da co-gestão era, manifestamente, o de
reduzir a conflitualidade social, ‘anestesiar’ o movimento sindical e as lutas operárias e,
em última instância, diluir a luta de classes.
No ambiente conturbado da época, estas ideias de participação e de co-gestão
casavam-se bem com a ideologia de colaboração de classes que informava a doutrina
social da Igreja e as doutrinas corporativistas então em voga. Não admira, por isso, que,
entre 1919 e 1921, aquelas ideias tivessem encontrado eco na legislação de outros países
(Áustria, Luxemburgo, Noruega, Checoslováquia, Itália).
Esta era, aliás, uma ‘técnica’ com tradição na Europa, apoiada na consciência de
uma parte das classes dominantes de que certas formas de participação dos
trabalhadores nos lucros da empresa podem constituir um factor de paz social e de
aumento da produtividade do trabalho em benefício dos empregadores capitalistas. 339
339
Em 1844 (sob o reinado de Luís Filipe), já se defendia na França, na conservadora Société
d’Économie Politique, a participação dos trabalhadores (na gestão e nos lucros das empresas) como “um
meio de evitar as greves” e de “tornar o operário proprietário e, por conseguinte, conservador”.
A doutrina social da Igreja inspirou também, a partir da Rerum Novarum (1891), algumas
experiências nesse sentido, nomeadamente a lei francesa de 26.4.1917, na qual se admitia a participação
dos trabalhadores nos lucros das empresas.
Ainda na França, um dos defensores da participação dirigia-se ao patronato nestes termos (em
1920): “Em nome dos vossos dividendos, em nome dos vossos lucros, em nome da paz social, introduzi
232

Esta (longa) história poderá ajudar a compreender que o movimento sindical (de todas
as orientações) nunca tivesse visto com bons olhos tal instituto.
No quadro da luta ideológica, foi grande o esforço para apresentar a participação
como uma ‘revolução’ capaz de ultrapassar os limites do capitalismo e do socialismo,
do ‘absolutismo patronal arcaico’ e do ‘estatismo burocratizante’. Mas as forças
políticas da esquerda e o movimento sindical sempre denunciaram tal solução como
neo-corporativa, empenhada em institucionalizar a colaboração de classes. Nesta
óptica, os objectivos da co-gestão são claros: convencer os trabalhadores de que a
melhoria do seu bem-estar e da sua condição está ligada à sorte da empresa em que
trabalham; levar os trabalhadores a trabalhar mais intensamente sem exigir aumento de
salários, na esperança de virem depois a participar nos lucros; pulverizar o movimento
sindical e distrair os trabalhadores da luta pela transformação da sociedade. Na perspec-
tiva dos interesses dos trabalhadores, diz-se que estes, imaginando estar a participar nos
lucros da empresa ao lado dos exploradores, estão afinal a intensificar a sua própria
exploração.

4.5. – A situação em outros países da Europa.

A Constituição de Weimar influenciou os países bálticos e alguns países do leste


da Europa, mas os grandes países da Europa Ocidental, nomeadamente o Reino Unido e
a França, continuavam fiéis ao modelo liberal de conomia e de estado.

nas vossas empresas a participação, para que não haja necessidade de vo-la imporem”.
No que se refere à co-gestão, interrompida na Alemanha durante o período de vigência do
nacional-socialismo, voltaria a ser consagrada na RFA em leis de 1951 e 1952, considerando os sindicatos
que a co-gestão lhes poderia assegurar um certo controlo sobre o patronato alemão, fortemente
comprometido com a política do nazismo. Perante uma nova lei de 18.3.1976, os próprios sindicatos
alemães começaram a dar sinais de reacção negativa a este compromisso com o patronato.
No que se refere mais directamente à participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, foi a
França, durante o período gaullista, o país onde mais sistematicamente se tentou institucionalizar essa
prática. Uma Ordonnance de 7.1.1959 autorizava a participação dos trabalhadores na vida da empresa,
quer através da sua participação nos lucros, quer mediante a participação no capital graças à atribuição de
títulos de participação a trabalhadores que reunissem certas condições (em regra uma determinada
antiguidade na empresa, pelo menos), quer pela via da participação nos ganhos de produtividade, sob a
forma de prémios.
Não teve muitos resultados práticos esta lei. Mas uma nova Ordonnance de 17.8.1967 veio tornar
obrigatório o sistema da participação nas empresas com mais de 100 trabalhadores. De Gaulle saudou
esta lei como o início de “uma ordem social nova”, caracterizada pela “participação directa dos
trabalhadores nos resultados, no capital e nas responsabilidades das empresas”.
O patronato admitia a associação do pessoal da empresa às responsabilidades da gestão,
ressalvando, porém, que a participação não poderia conduzir à diluição do poder de decisão da empresa
(no preâmbulo da Ordonnance já se acautelava, aliás, que a participação não devia “diminuir em nada a
autoridade da direcção”).
233

4.5.1. - Em resultado da Primeira Grande Guerra, o Reino Unido perdeu o


estatuto de potência hegemónica que detinha no plano político e no plano económico;
um sector industrial tão estratégico como o sector mineiro entrou em crise profunda em
consequência do desenvolvimento da energia hidroeléctrica e do petróleo, que viriam a
dominar o mercado da energia; o desemprego atingiu níveis elevados (mais de dois
milhões de trabalhadores)340; o número de filidos nos sindicatos filiados no TUC (Trade
Unions Congress) passou de 2.250.000 em 1914 para 4.500.00 em 1918 e 6.500.000 em
1920; as greves multiplicaram-se (com particular intensidade em 1919), respondendo o
patronato com o lock out; o movimento operário começou a reivindicar nas ruas a
nacionalização das minas e de outros sectores estratégicos; a votação no Partido
Trabalhista (ligado aos sindicatos) passou de 500 mil em 1910 para 4,5 milhões em
1922.
Em 1926, uma greve geral de grandes dimensões foi apontada como uma
tentativa de implantação de um regime de tipo soviético, o que abriu caminho a uma
violenta repressão por parte do Governo. Os cerca de quatro milhões de grevistas
sofreram uma pesada derrota, foram abandonados pelas direcções sindicais e a greve
terminou em poucos dias, salvo por parte dos mineiros, que mantiveram a greve durante
mais sete meses.
Foi uma vitória dos defensores das soluções liberais, que propugnavam a baixa
dos salários para repor a competitividade da economia britânica. 341 Apesar do
desemprego e da Grande Depressão já em marcha, um autor como Keynes acreditava,
em 1931 (apenas cinco anos antes da publicação da General Theory), que “para a Grã-
Bretanha a crise foi superada. Hoje, outono de 1931, estamos repousando num tranquilo
lago de água no meio de duas cascatas”.342

340
Entre 1921 e 1938, 10% dos indivíduos em idade de trabalhar não tinham emprego, sendo esta
percentagem ainda maior em algumas regiões, nomeadamente nos anos 1931/1932. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 61.
341
Mas a baixa dos salários dos funcionários do estado em 1931 foi tão impopular, que provocou a
revolta da própria Marinha de Guerra, a primeira desde 1797. Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e
Império, cit., II, 108.
342
Citação colhida em CAVALLO/DI PLINIO, ob. cit., 36. Isto apesar do declínio do comércio
internacional à escala mundial a partir de 1913, tanto de produtos primários como de produtos
manufacturados e de muitas indústrias britânicas (têxtil, carvão, construção naval, marinha mercante)
registarem uma diminuição acentuada, quer ao nível da produção quer ao nível da exportação. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 61-64.
234

4.5.2. - Algo diferente foi a situação na França, no imediato após-guerra. Vários


planos de reconstrução, apoiados numa boa dose de despesa pública, conseguiram, em
grande medida, evitar o desemprego. Num ambiente de conflitualidade social muito
menos acentuado do que na Grã-Bretanha, o movimento sindical conseguiu a fixação da
jornada de trabalho de oito horas e a aplicação a todos os trabalhadores de cada sector
do regime estipulado nos contratos colectivos celebrados. Apesar da intervenção do
estado concretizada nos planos de reconstrução, a França manteve-se, porém, fiel ao
modelo liberal.
Em meados dos anos trinta, os efeitos da onda de choque provocada pelo crash
da bolsa de Wall Street vieram, no entanto, tornar evidente a incapacidade do estado
liberal para lidar com a situação. A ameaça dos movimentos fascistas facilitou a
formação de uma Frente Popular (socialistas, comunistas e radicais), que, com base
num Programa Comum de Governo, ganhou as eleições em Maio de 1936.
Este Programa, que inspirou o Governo liderado pelo socialista Léon Blum,
assentava no combate ao fascismo, defendendo as liberdades civis e a criação de
condições para a sua efectivação, e na defesa da paz, perante a ameaça de uma nova
guerra, que pairava sobre a Europa. No plano económico, a prioridade era a defesa do
emprego e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores: anunciou-se um plano
de financiamento público de grandes infraestruturas; criou-se um fundo nacional de
desemprego; introduziu-se um sistema de pensões moderno; fixou-se em quarenta horas
a duração máxima do trabalho semanal; consagrou-se o direito dos trabalhadores a
férias pagas (o que originou uma verdadeira revolução nos costumes).
Em matéria de nacionalizações, o Programa limitou-se, porém, à indústria de
armamento, em nome da defesa da paz. Apesar da preocupação revelada relativamente
ao sistema bancário (dominado pelas famosas deux cents familles de muito ricos, que, a
partir dele, dominavam a indústria), a intervenção do estado foi modesta, do ponto de
vista do controlo público do crédito e da utilização da poupança nacional (ficou aquém
da reforma operada na Itália fascista em 1936).
Fragilizado pelas diferenças ideológicas entre os partidos que o apoiavam, o
Governo da Frente Popular não conseguiu operar a transformação do estado de direito
liberal em estado social. Mesmo assim, as forças da direita fascizante e o grande
235

patronato moveram-lhe uma guerra sem quartel, proclamando em alto e bom som:
“Plutôt Hitler que le Front Populaire”. Hitler fez-lhes a vontade, ocupando a França.343

343
Mais limitada foi ainda a experiência do Governo de Frente Popular na Espanha (vitorioso
também nas eleições de 1936), confrontado muito cedo com a guerra civil, em que a Alemanha nazi e a
Itália fascista apoiaram militarmente os sediciosos fascistas comandados por Franco, perante a
passividade comprometedora das democracias europeias.
236

4.6. – A década de 1920.

A década que se iniciou em 1920 foi uma época de ouro do capitalismo à escala
mundial. Costuma dizer-se que, em 1913, com o início da produção em série do famoso
237

Ford Model T, começou a sociedade de consumo, a época da produção em massa e do


consumo de massa, sociedade que fez da indústria automóvel o seu centro dinâmico e
que transformou o automóvel no seu ‘deus’ mais venerado.
Em 1919, um Ford Model T só estava ao alcance, mesmo nos EUA, de um
número relativamente pequeno de ricos. Mas as novas técnicas de produção em série e o
aumento enorme da quantidade de bens produzidos levaram Ford e os responsáveis mais
capazes a perceber a necessidade de tornar acessível também aos operários a compra
dos automóveis e dos demais bens de consumo duradouros. Daí a defesa das vantagens
(para o sistema) da melhoria dos salários e das condições de vida dos trabalhadores, que
começaram a ser vistos não apenas como um elemento dos custos, mas também como
compradores dos bens que era preciso vender para assegurar a realização da mais-valia.
A sociedade de consumo não está, porém, ao serviço dos consumidores, antes
serve os interesses das grandes estruturas produtivas, que precisam de vender, a quem
lhas possa pagar, todas as mercadorias que lançam no mercado. Daí a publicidade, a
criação de necessidades, o aprofundamento do desejo de consumir. Daí a necessidade de
facilitar as compras às pessoas de rendimentos médios e baixos: o crédito ao consumo
tem desempenhado, desde então, este papel, levando as famílias a endividar-se para
além do que seria razoável.
Entretanto, o fordismo permitiu reduzir substancialmente os custos de produção
e os preços dos automóveis baixaram de modo sensível, tornando o automóvel, por
volta de 1926, um bem de consumo de massa na sociedade americana. O boom da
indústria automóvel (especialmente nos EUA) é uma marca deste tempo.344
O crescimento da indústria automóvel arrastou consigo, por efeito de
arrastamento, o crescimento de outras actividades com ela relacionadas, nomeadamente
as indústrias mecânica, do petróleo e da borracha. Mas também provocou o incremento
da construção civil, dada a necessidade de construir novas estradas, pontes e viadutos
nas cidades. Acresce que a maior facilidade de deslocação levou milhões de pessoas a
abandonar o centro das cidades, para construir habitações maiores nos arrabaldes. O
boom da construção civil provocou, por sua vez, efeitos de arrastamento em vários
outros sectores, a montante e a jusante, e levou a um aumento dos salários, mesmo dos
trabalhadores menos qualificados.

344
Em 1917 a indústria automóvel americana produziu 1.750.000 automóveis, número que passou
para 4.301.100 em 1926 e para 5.358.000 em 1929 (ano em que a indústria automóvel absorveu 15% do
aço produzido nos EUA, empregava 7% do total da mão-de-obra e representava 13% do valor da
produção industrial.
238

A difusão da energia eléctrica permitiu e estimulou o acesso a novos bens de


consumo duradouros, em especial os aparelhos de rádio (produziram-se 190 mil em
1923, cifra que ultrapassou os 5 milhões em 1929) e uma gama razoável de
electrodomésticos, tudo isto a justificar o aumento de certos serviços, especialmente nas
áreas da manutenção e reparação.
Em 1930 o número de automóveis registados nos EUA ultrapassava os
26.500.000 (apenas cerca de 5 milhões em toda a Europa). Em contrapartida, metade
das dívidas das famílias americanas tinham sido contraídas para comprar automóveis.345
A euforia dos negócios foi um fenómeno contagiante, alimentado pelo aumento
acentuado das cotações dos títulos negociados na bolsa. Os rendimentos das aplicações
financeiras ultrapassaram em muitos casos o rendimento dos investimentos produtivos;
as actividades puramente especulativas cresceram exponencialmente, atraindo mesmo
uma boa parte do crédito concedido pelas instituições financeiras. No terreno da
economia, a ‘livre concorrência’ deu o lugar à luta oligopolística. A concentração
monopolista tornou-se indisfarçável. Foi o tempo em que Joseph Schumpeter teorizou
as vantagens da produção em grande escala e Edward Chamberlin e Joan Robinson
criaram as teorias da concorrência monopolista e da concorrência imperfeita.
As actividades especulativas favoreceram a concentração económica e as
práticas oligopolistas, e estas encorajaram e alimentaram aquelas. Os negócios
prosperaram enquanto foi possível manter o crescimento do consumo das famílias a
uma taxa idêntica à do aumento da produção, o que aconteceu até finais de 1926. Mas
em 1929 a capacidade de produção instalada na economia americana ultrapassava em
20% a capacidade de escoamento das mercadorias produzidas. Ficava a descoberto a
instabilidade estrutural da economia capitalista.
Entretanto, no início de 1929 (quando o volume da produção era cerca de 65%
superior ao de 1913), a euforia marcava ainda um relatório oficial apresentado nos
EUA: ”economicamente, temos um terreno sem limites à nossa frente; há necessidades
novas que abrirão incessantemente caminho para outras mais novas ainda, à medida que
forem satisfeitas. (…) Parece termos apenas tocado na orla das nossas
potencialidades”.346

345
Cfr. S. LOMBARDINI, La grande crisi…, cit., 38ss.
346
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 393 e 404.
239
240

4.7. – A Grande Depressão. O New Deal.

Com o crash na bolsa de Nova York, na célebre quinta-feira negra (29.X.1929),


teve início a mais séria crise do capitalismo no século XX, a Grande Depressão, que
depois se propagaria à Europa capitalista e a todo o mundo capitalista. Os preços
241

baixam (deflação), as falências sucedem-se, a produção diminui enormemente 347, o


desemprego alastra: mais de 30 milhões de desempregados no conjunto dos países
capitalistas (cerca de 6 milhões só na Alemanha).
A crise veio confirmar que a dinâmica das economias capitalistas não é
assegurada pelo objectivo da satisfação das necessidades. A lógica do processo de
acumulação do capital é a maximização do lucro. Quando este objectivo não é
alcançado, interrompe-se a acumulação, baixa a produção, destrói-se capital existente,
deixam de se utilizar os recursos disponíveis, com sacrifício do consumo e da satisfação
das necessidades de milhões de pessoas.
Há quem defenda que a Grande Depressão é a continuação de uma crise não
resolvida, anterior a 1914, crise que foi deixada de lado graças à Primeira Guerra
Mundial, ela própria a expressão política dessa crise, que levou as potências capitalistas
a lutar entre si para conseguirem uma quota maior na exploração do mundo. Os EUA
saíram da guerra com um aparelho produtivo muito reforçado, o que abriu um período
de expansão, facilitado pela entrada no mercado, em grande escala, de novos bens
(automóveis, telefones, rádios, frigoríficos), numa euforia que só terminou com o crash
da bolsa de Nova York em 1929. Na Europa, porém, as destruições da guerra viram os
seus efeitos potenciados por processos inflacionistas de grandes proporções. A crise
europeia não trouxe consigo a baixa dos preços e a destruição do capital indispensável
ao início de um novo período de prosperidade, com um grau de concentração e de
centralização do capital ainda maior. As dificuldades na Europa afectaram
negativamente o desenvolvimento do comércio internacional (factor agravado ainda
com a adopção de medidas proteccionistas).
Neste quadro, ficou patente que a prosperidade não poderia manter-se,
isoladamente, nos EUA. As dificuldades ao nível da economia terão levado a desviar
muitos fundos do investimento produtivo para a especulação bolsista, alimentada por
uma enorme expansão do crédito. Muita da prosperidade assentava em lucros fictícios,
resultantes de capitais fictícios, criados na bolsa, sem nenhuma relação com a actividade
produtiva. Aos primeiros sinais de quebra de confiança no andamento da economia,
muitos quiseram salvar o dinheiro que tinham apostado na bolsa e, ao tentarem vender a
qualquer preço, originaram o grande crash: várias empresas e instituições financeiras
347
Tomando como base a produção de 1929 (= 100), são estes os índices da produção de 1932:
EUA - 53,8; Alemanha - 53,5; França - 71,6; Grã-Bretanha - 83,5 (cfr. H. DENIS, História…, cit., 606). O
comércio no mundo capitalista reduziu-se enormemente e a produção global diminuiu cerca de 1/3. Um
dado muito expressivo: o preço do barril de crude baixou entre 1926 e o final de 1930 de 2,31 dólares
para dez cêntimos (informação colhida em P. MATTICK, ob. cit., 123).
242

sucumbiram à baixa das cotações bolsistas; muitos bancos entraram em colapso, porque
os seus empréstimos tinham servido para financiar actividades especulativas e não
investimentos produtivos; a corrida aos bancos fez o resto. “A Grande Depressão teve a
sua ‘partida’ na América – conclui Paul Mattick - porque nos outros países a depressão
do pós-guerra não tinha realmente acabado”.348
À medida que o tempo passava, as pessoas encaravam a situação com se tivesse
havido uma catástrofe natural: assim como veio, há-de ir-se embora. Entretanto, por não
poderem pagar a renda da casa e a conta do gás, muitas famílias foram despejadas, e
milhões de pessoas passaram a viver em campos de tendas e barracas. As epidemias de
desinteria e de pelagra alastraram, como a prostituição e o crime. O exército foi
chamado a intervir para reprimir manifestações.
E a Administração Hoover nada fazia para combater a crise, agarrada à velha
tese de que as finanças sãs (o equilíbrio das contas públicas) eram a primeira exigência
da confiança necessária para o regresso à prosperidade e de que a intervenção do estado,
ao substituir as leis económicas pelo arbítrio do Governo, equivaleria à destruição do
capitalismo. Numa comunicação ao país, o Presidente Hoover dizia (1931) que a crise
só poderia ser enfrentada através da “manutenção do espírito de ajuda mútua através de
donativos voluntários. Isto é de infinita importância para o futuro da América. Nenhuma
acção do estado, nenhuma doutrina económica, nenhum projecto ou plano económico
pode substituir a responsabilidade que Deus impôs a cada homem e a cada mulher para
com os seus vizinhos”.349
Em Março de 1932, Franklin Roosevelt sucedeu a Herbert Hoover na
Presidência dos EUA. Por esta altura, como escreveu Averell Harriman, “os bancos
estavam fechados e gente de bem vendia maçãs na rua. As companhias de caminhos de
ferro reclamavam auxílio. Wall Street estava ansiosa por ‘descer’ a Washington para
conseguir esse auxílio”.350 E Roosevelt parece ter pressentido o perigo da revolução, a
menos que os desejos de mudança fossem atendidos dentro dos limites da ordem
estabelecida. Truman confirmaria mais tarde esta ideia: “Em 1932 o sistema de livre

348
Cfr. P. MATTICK, ob. cit., 115-121.
349
Pela mesma altura, o Presidente da National Association of Manufacturers imputa aos
desempregados e aos pobres a responsabilidade pela sua própria miséria, porque “eles não praticam o
hábito da poupança, antes perdem as suas poupanças nos jogos da bolsa. Com que razão culpam o nosso
sistema económico, o governo ou a indústria?” (Citações colhidas em P. MATTICK, ob. cit., 126/127).
350
Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 35.
243

empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo
norte-americano adoptasse um outro sistema”.351
Neste quadro, a Administração Roosevelt assumiu como objectivo essencial o de
evitar o colapso da ordem capitalista, através de um conjunto de medidas de política
activa (que ficaram conhecidas por New Deal), uma orientação de sentido diferente do
adoptado pelo Partido Republicano.352 No início, mais do que um programa de estímulo
à recuperação da economia e do emprego através do aumento da despesa pública, o New
Deal foi um conjunto de operações de salvamento (envolvendo dezenas de milhares de
milhões de dólares) de que beneficiaram maiormente a banca, os caminhos de ferro,
alguns estados federados e governos locais, a par de proprietários de casas adquiridas a
crédito e de empresas agrícloas endividadas. 353 O montante das despesas do estado em
obras públicas só em 1936 atingiu o montante de 1929 (antes da crise), porque,
entretanto, os estados federados e os governos locais diminuiram muito este tipo de
despesas, e o estado federal não compensou esta diminuição.
Em regra, os estudiosos deste período da história dos EUA realçam que este
novo curso da política americana procurou ir ao encontro das necessidades mais
prementes dos trabalhadores, com o propósito de os furtar à tentação revolucionária e de
conseguir o apoio popular para as suas políticas. Neste sentido, o Governo atribuiu
subsídios aos desempregados e aos idosos e pensões aos veteranos de guerra, concedeu
apoios aos agricultores, desvalorizou o dólar e abandonou o padrão-ouro (o que a
Inglterra já tinha feito em 1931), baixou as taxas de juro, apoiou a recuperação e a
reestruturação de empresas, instituiu o salário mínimo, reconheceu a liberdade de
organização sindical e o direito à contratação colectiva, lançou grandes programas de
obras públicas para combater o desemprego.
Mas o New Deal procurou também satisfazer os (grandes) empresários,
regulando a actividade bancária e o mercado financeiro e fazendo deles parceiros
privilegiados do estado no ‘governo da economia’. Na leitura de Arthur Schlesinger,
foram estes os princípios orientadores do New-Deal: “a revolução tecnológica tornara
inevitável o gigantismo; não era possível continuar a confiar na concorrência para
proteger os interesses sociais; as grandes unidades eram uma oportunidade a aproveitar

351
Citado por GAMBLE/WALTON, El capitalismo…, cit., 280.
352
Um dos principais conselheiros económicos de Roosevelt escrevia em 1935: “Não há mão
invisível. Nunca houve. Nós temos agora de oferecer uma mão real e visível que oriente a tarefa que a
mítica e inexistente invisível agência deveria desempenhar e que nunca desempenhou” (citação colhida
em P. MATTICK, ob. cit., 134).
353
Cfr. H. HANSEN, ob. cit., 85-87.
244

e não um perigo a combater; a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deve ser
combinação e cooperação sob uma autoridade federal ampliada”.354
Coerentemente, em Junho de 1933, com a promulgação do National Industrial
Recovery Act, o estado concede às associações profissionais (ao jeito das soluções
corporativas na Europa) o poder de elaborar e fazer aplicar coercivamente regulamentos
que podem determinar as condições da produção, os limites e as formas de concorrência
(em última instância, os preços) nos vários sectores. Nesta medida, a economia
americana passou a ser uma economia organizada corporativamente, com base nas
associações profissionais autónomas, às quais era confiado o ‘governo’ do respectivo
sector de actividade económica.
Ainda em 1933, foi criada a National Recovery Administration, entidade a que
foram atribuídos, entre outros, poderes para obrigar a indústria a reorganizar-se, para
fixar os preços, para distribuir quotas de produção. A NRA foi uma estrutura de
planificação económica centralizada de tipo moderno, significando a rejeição do
capitalismo do velho estilo, que marcou os primeiros tempos da política rooseveltiana.
Com a declaração de inconstitucionalidade e consequente dissolução da National
Recovery Administration (1935), desapareceu o organismo de cúpula da intervenção do
estado na economia.355 Cortadas assim as ambições mais ‘radicais’ do New-Deal, nem
por isso este deixaria de ser um dos episódios mais importantes na evolução do
capitalismo e do estado capitalista.
Alguns autores valorizam particularmente o por vezes designado “segundo New
Deal”, a fase que se iniciou após a vitória esmagadora de Roosevelt nas eleições de
354 ?
Andrew SHONFIELD (Capitalismo Moderno…, cit., 306, 311 e 447/448, onde podem colher-
se mais indicações acerca do significado e alcance do New Deal) sustenta, aliás, que “o New Deal não
significou uma brusca rotura com a tradição americana, mas, simplesmente, uma continuação, num ritmo
bastante mais acelerado, de um processo que se iniciara nos alvores do século XIX e afectou tanto os
governos republicanos como os democráticos”. E ilustra abundantemente a ampla e continuada tradição
intervencionista do estado na economia americana, com particular realce na primeira metade do século
XIX, mas ainda suficientemente importante até finais do século XIX, apesar da reacção verificada no
terceiro quartel do século, que forçou os governos estaduais a abrir mão da sua participação no capital e
na gestão de numerosas empresas, especialmente de serviços de utilidade pública. Esta intervenção
pública na economia é mesmo apontada como um dos mais importantes factores da concentração operada
nas décadas de 1880 e 1890.
355
Esta decisão do Supremo Tribunal americano, com base na ideia de que a Constituição
americana não permitia o socialismo, veio mostrar que não há constituições neutras: afinal, mesmo a mais
neutra das constituições, proclamadamente aberta a todos os programas políticos resultantes da
alternância democrática, veicula um projecto político que exclui qualquer outro. Mas ela veio mostrar
também a resistência à (e a incompreensão da necessidade de) mudança do papel do estado capitalista
para poder cumprir a sua função de estado de classe. Um banqueiro que viveu o problema por dentro
(Averell Harriman) oferece-nos, a este respeito, o seguinte comentário: “Depois de Roosevelt ter salvo os
banqueiros, Wall Street deu provas de um ódio absoluto contra ele. O que censuravam fundamentalmente
a Roosevelt era ter feito deslocar de Wall Street para Washington o controlo das finanças da nação”
(Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 36).
245

1936. Com efeito, só a partir de então o New Deal privilegiou as políticas activas de
promoção do emprego e de apoio aos trabalhadores, em resposta, aliás, às pressões
sindicais, que se faziam sentir, de forma sistemática, desde o início da década.
Neste período foi instituído o subsídio de desemprego, a segurança social, o
direito de livre organização sindical eo direito à contratação colectiva (os sindicatos
penetraram em indústrias que até aí os tinham mantido afastados dos respectivos
trabalhadores: aço, borracha, têstil, auomóvel).
Em especial a Works Progress Administration financiou obras públicas
(estradas, auto-estradas, pontes, etc.) que deram emprego a 8,5 milhões de
trabalhadores, financiou concertos musicais e espectáculos de teatro, contratou artistas
para pintar murais, instituiu o programa federal de dar almoço às crianças das escolas.356
A verdade, porém, é que, mesmo no âmbito desta nova orientação, permaneceu
a preocupação com o equilíbrio do orçamento federal, o que traduziu na redução da
despesa pública consagrada nos orçamentos para 1937 e 1938. Daqui resultou a
travagem do processo de recuperação da economia que se vinha registando desde 1933:
no final de 1937 a produção de aço tinha baixado de 80% da capacidade instalada para
19%; a produção baixou mais em 1937 do que em 1930 e a taxa de desemprego
aumentou de 14% (1937) para 19% (1938), lançando de novo milhões de trabalhdores
no desemprego.
Só perante este novo quadro de recessão a Administração Roosevelt abandonou
a tese clássica do equilíbrio orçamental, passando a adoptar a proposta keynesiana de
combater a crise compensando a quebra do investimento e do consumo privados com o
aumento das despesas públicas financiadas mediante o recurso ao défice (deficit
financing).357
Em poucos anos, o clima de euforia, mesmo no plano teórico, deu lugar às teses
estagnacionistas de Alvin Hansen (1941) e de Joseph Steindl (1952), mais condizentes

356
Um dos grandes empreendimentos da Administração Roosevelt foi a aprovação do Tenessee
Valley Authority Act, que viria modificar a estrutura e a mentalidade da administração pública americana.
Através de processos impositivos semelhantes aos da planificação imperativa adoptada na URSS, a
entidade (Authority) à qual foi confiada a execução do plano de reconversão do Vale do Tenessee (que
afectou sete estados americanos e mais de 20 milhões de pessoas) assumiu plenos poderes para desviar o
curso do rio (destruindo cidades e deslocando grandes quantidades de pessoas para novas cidades
construídas), para reconverter as suas actividades económicas, para decidir sobre a habitação, a educação,
as relações de trabalho.
357
Paul MATTICK (ob. cit., 140) chama a atenção para o facto de a teoria keynesiana não ter
sido desenvolvida com base na experiência do New Deal. Isto porque – alega o autor – a prática do deficit
financing é mais antiga que o próprio capitalismo, sempre se utilizou em tempos de guerra, pelo que era
óbvio que poderia utilizar-se também na ‘guerra’ contra a depressão.
246

com o espectro da estagnação permanente que marcou a década de trinta, até 1939. Este
‘pessimismo teórico’ assumiu uma outra face: a dos autores que defendem que a
depressão não foi ultrapassada graças a medidas de política económica que tenham sido
adoptadas com esse objectivo, mas como consequência do rearmamento e da economia
de guerra que marcaram o mundo capitalista (com a Alemanha à frente) até ao final da
2ª Guerra Mundial e que se prolongou após o fim da Guerra com a corrida aos
armamentos alimentada pela ‘guerra fria’ e por várias ‘guerras quentes’.
“A grande Depressão dos anos 30 – escreve J. K. Galbraith 358 - nunca chegou ao
fim. Desapareceu simplesmente com a grande mobilização dos anos 40”. No mesmo
sentido vai a análise de Paul Baran e Paul Sweezy, em livro também publicado em
1966.359 Segundo estes últimos autores, o New Deal não conseguiu obter uma taxa de
desemprego inferior a 15%, o que justifica que, “ao aproximar-se o fim do segundo
mandato de Roosevelt, um sentimento profundo de frustração e inquietação se tenha
apossado país”. O ponto de vista de Baran/Sweezy é o de que o jogo dos interesses
dominantes nos EUA não permitia que as despesas públicas civis fossem além dos
valores atingidos em 1938 e 1939 (14,5% e 14,4% do PIB, respectivamente) e, sem um
grau maior de responsabilidade do estado, a crise não seria resolvida. A ‘salvação’ veio
com o aumento das despesas militares decorrente da participação dos EUA na Segunda
Guerra Mundial e com a corrida aos armamentos no âmbito da guerra fria,
complementada com outras guerras (Coreia, em 1950-1953, e Indochina, logo a
seguir).360
Num interessante estudo sobre a Grande Depressão e o New Deal, Paul Mattick
aduz argumentos no mesmo sentido, defendendo que a depressão não foi ultrapassada
em resultado das medidas timadas no âmbito do New Deal: em 1939, havia ainda nos
EUA 10 milhões de desempregados e o investimento privado era ainda cerca de 17#
inferior ao de 1929, antes da crise. O desencanto e a apatia eram tais que o Presidente da
Works Progress Administration (uma das principais agências do New Deal) chegou a

358
Cfr. American Capitalism, cit., 69.
359
Cfr. Capitalismo Monopolista, ed. cit., capítulo 6, especialmente 164-179. Sobre esta questão,
ver também GAMBLE/WALTON, El Capitalismo…, cit., 119ss.
360
J. BELLAMY FOSTER e R. W. MCCHESNEY (ob. cit.) vieram recentemente apoiar a tese
de Baran/Sweezy Segundo a qual, “devido à estrutura de poder do cpitalismo monopolista dos Estados
Unidos, o aumento das despesas civis alcançara os seus limites extremos em 1939”. Neste sentido,
mostram que, apesar do enorme aumento das despesas militares, as despesas civis de consumo e de
investimento do estado sofreram uma quebra nos anos 1940, em resultado do esforço de guerra, mas
recuperaram nos anos 1950, 1960 e 1970, tendo atinigido o seu máximo em 1975 (15,4% do PIB). Nos
anos seguintes, as despesas públicas civis estabilizaram á roda dos 14% do PIB (14,6% em 2007,
sensivelmente o mesmo que em 1938/1939).
247

escrever o que parece impossível, vindo de quem tinha as responsabilidades daquele


cargo: “As pessoas estão fartas dos pobres e dos desempregados”. Esta gente “não conta
para o bem-estar da população como um todo. São uma casta fora dos grupos que estão
dentro do sistema económico. Elas não têm mercado para o seu único bem económico, a
sua competência e o seu trabalho. (…) O que é natural é que a sociedade ignore esta
classe de pessoas e as abandone. Existirão como uma não-entidade, ninguém se
preocupará com o que lhes acontece. Os seus membros roubarão, pedirão esmola e
viverão na miséria como os seus irmãos na Índia”.361
A Grande Depressão ficou para trás graças à Segunda Guerra Mundial, i. é,
esclarece Paul Mattick, “graças à colossal destruição de capital à escala mundial” que o
conflito significou. “A morte, o maior de todos os keynesianos”, conclui o autor, é que
resolveu o problema.362

361
Citação colhida em P. MATTICK, ob. cit., 139.
362
Cfr. P. MATTICK, ob. cit., 141.
248

4.8. – O estado nazi-fascista e a solução corporativa.

4.8.1. - O estado social weimariano propunha-se realizar os seus objectivos no


respeito pelas regras da democracia política e pelos princípios democráticos. Mas, em
determinadas condições históricas, esta nova forma do estado capitalista revelou-se
insuficiente para resolver os graves problemas levantados pela crise económica, social e
política que marcou o período particularmente complexo e contraditório entre as duas
guerras mundiais do século XX e que ameaçou seriamente a ordem capitalista.
Apesar das dificuldades, este período ficou marcado pelo ganho de causa que os
trabalhadores obtiveram em alguns domínios, graças ao bom aproveitamento do ‘crédito
moral’ que as suas organizações ganharam por se terem oposto à Guerra. Talvez esta
circunstância ajude a compreender que se tenha verificado neste período a consagração
249

de alguns direitos pelos quais os trabalhadores lutavam há muitos anos. Basta recordar
que o direito à greve foi então reconhecido legalmente em alguns países que ainda o não
reconheciam; que se generalizou o recurso à contratação colectiva no âmbito das
relações de trabalho; que em vários países foi fixada por lei a duração máxima da
jornada de trabalho e o número de horas de trabalho semanal; que em alguns países foi
estipulado o salário mínimo garantido e começaram a pôr-se de pé os primeiros sistemas
públicos de segurança social; que a liberdade sindical e outros direitos dos trabalhadores
tiveram consagração constitucional pela primeira vez na Constituição de Weimar.
Nos países de economia mais debilitada (como era a economia alemã nessa
altura, ainda por cima sobrecarregada com o peso das indemnizações de guerra impostas
pelo Tratado de Versalhes) e nos países pobres e atrasados (Itália, Espanha, Portugal e
outros países do sul da Europa), afectados também pela profunda e prolongada crise
económica, que se generalizara a todo o mundo capitalista, as condições económicas e
sociais não permitiam resposta fácil às reivindicações dos trabalhadores e das suas
organizações de classe.
No plano social, a tensão era crescente: as greves e a contestação social estavam
na ordem do dia, opondo por vezes os trabalhadores às forças armadas. A solução
adoptada foi a de silenciar as organizações dos trabalhadores (partidos e sindicatos) e
condenar os trabalhadores a prosseguir o ‘bem comum’, de mão dada com os grandes
empresários monopolistas no seio das organizações corporativas.
No plano político, as dificuldades agudizavam-se, dada a ‘contaminação’
provocada pela marcha, aparentemente vitoriosa, da Revolução de Outubro. Muitos
responsáveis recearam que a revolução alastrasse a toda a Europa, nomeadamente aos
países industrializados e desenvolvidos.
Nestas condições, para cumprir o seu papel, o estado capitalista assumiu então a
forma de estado fascista, anti-liberal, anti-democrata e anti-socialista, apesar de gostar
de se apresentar como estado social. Em certa medida, era o regresso ao figurino inicial
do estado bismarckiano do século XIX, filho da tese segundo a qual só o estado
autoritário poderia realizar a reforma social, ainda que à custa da democracia política,
tese que justificou o apoio de Lassalle (“socialismo de estado”) e dos “socialistas
catedráticos” ao estado prussiano do Chanceler de Ferro. E a verdade é que, em algumas
das suas versões, o fascismo (o nacional-socialismo) se assumiu abertamente como anti-
capitalista, procurando superar o capitalismo e o comunismo com base na cooperação
250

entre as classes em busca do bem comum, o único admissível em sociedades nas quais
se aboliram por decreto as classes sociais.363

4.8.2. - Na Alemanha, a solução de compromisso consagrada na Constituição de


Weimar esgotou-se dramaticamente com a ascensão do Partido Nacional-Socialista e o
fim da República de Weimar, o que significou que a 1ª Guerra Mundial e a crise
económica e social se traduziram aqui em resultados políticos radicalmente diferentes
dos que, nos EUA, tiveram tradução no New Deal.
Em Março de 1933, Hitler é nomeado chanceler. Neste mesmo ano, foram
dissolvidos os sindicatos existentes, substituídos por organizações conjuntas de
empresários e de trabalhadores (Deutsche Arbeitsfront), com funções distintas das que
historicamente cabem aos sindicatos: formação profissional, doutrinação política,
organização dos tempos livres.
Em 1934, a pretexto do incêndio do Reichstag (provocado pelos nazis, para o
imputarem aos comunistas), inicia-se uma violenta perseguição contra as organizações e
os partidos operários. Uma lei de 25 de Julho de 1933 vem generalizar a cartelização
obrigatória anteriormente aplicada apenas em alguns sectores. Em Novembro de 1934,
determina-se a criação, nos vários sectores da produção, de associações profissionais
(Reichsgruppen), às quais se atribuem amplos poderes de regulamentação e direcção do
respectivo sector, podendo ir até ao encerramento das empresas que não cumprissem os
regulamentos promulgados pelo Reichsgruppe ou julgadas excedentes.

4.8.3. - O estado fascista foi anti-liberal. O indivíduo dilui-se nos corpos sociais
(a família, a corporação, o estado)364; a concepção orgânica da sociedade substitui a
ideia de sociedade como o somatório de indivíduos isolados (concepção atomística); o
contratualismo dá lugar ao institucionalismo: o ‘estatuto’ definido e imposto pelo estado
ou pela entidade hierarquicamente superior (führerprinzip) substitui a solução
contratual.365

363
A Carta del Lavoro italiana é de 1927; o Estatuto do Trabalho Nacional foi promulgado em
Portugal em 1933; o Fuero del Trabajo espanhol é de 1938.
364
Mas todas estas estruturas eram postas essencialmente ao serviço do poder do estado, do
totalitarismo e do nacionalismo, ideia reflectida no famoso slogan do fascismo italiano “Tutto perl o
Stato, nulla al di fuori dello Stato” (traduzido em Portugal pelo lema salazarista “Tudo pela Nação, nada
contra a Nação”).
365
Fica, para ilustrar, um pequeno trecho de um discurso de Oliveira Salazar na Assembleia
Nacional (25.5.1940): “Quanto a nós, afirmamo-nos, por um lado, anticomunistas e, por outro,
antidemocratas e antiliberais, autoritários e intervencionistas (…)” (Discursos, Vol. 2º).
251

No que se refere à economia, esta deixa de ser considerada terreno privado,


separado do estado e regulado pelas regras da livre concorrência entre os actores
privados. A economia passa a integrar a esfera da política: as corporações foram
pensadas como órgãos simultaneamente reguladores da economia e detentores do poder
político, ultrapassando assim o dogma liberal da separação entre o estado e a economia;
o estado assume o direito (e o dever) de intervir na economia, para a promoção do ‘bem
comum’, substituindo a concorrência pela ‘planificação corporativa’.366
Mas a direcção corporativa da economia foi entregue ao grande capital, que
controlava as estruturas corporativas, sem os constrangimentos resultantes da acção dos
sindicatos (proibidos ou ‘corporativizados’) e dos partidos de esquerda (empurrados
para a clandestinidade e condenados como ‘inimigos internos’ por imposição do partido
único) e com o apoio, sem limites, do aparelho repressivo do estado fascista.
Como já se vê, o estado fascista foi, essencialmente, anti-trabalhadores, porque
foi anti-democrata e anti-socialista.
Foi anti-democrata, porque proibiu o sufrágio universal e os partidos políticos, e
anulou a liberdade de reunião e de associação, a liberdade de manifestação e a liberdade
de expressão; porque, recusando os princípios universalistas do racionalismo que vinha
do século XVIII, negou a igualdade entre os homens, exaltou o nacionalismo e o
racismo.
Foi anti-socialista, porque congelou todos os direitos económicos e sociais
entretanto conquistados pelos trabalhadores e anulou todas as políticas públicas que
pudessem acautelar ou garantir estes direitos; porque ‘matou’ as classes por decreto e
proibiu a luta de classes, nomeadamente através da proibição dos sindicatos livres e do

Ainda este excerto de uma entrevista de Oliveira Salazar a Le Figaro, 3.9.1950: “Não creio no
sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Não creio na
igualdade, mas na hierarquia. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero
perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos” (Discursos, Vol. 6º).
366
A verdade, porém, é que a organização corporativa não conseguiu, em nenhum país, assegurar
o governo global da economia e, muito menos, conseguiu assumir o poder político (na Itália, na Espanha
e na Áustria, a organização corporativa chegou a partilhar o poder legislativo). Só na Itália, porém, o
parlamento foi substituído (em 1939) pela Camera dei Fasci e delle Corporazioni, mas esta unificação
formal do poder económico e do poder político não teve correspondência na realidade. O próprio estado
fascista criou, em 1931, o Istituto Mobiliare Italiano (IMI), ao qual foi confiado importante papel na
concessão de crédito industrial, e criou, em 1933, o Istituto per la Ricostruzione Industiale (IRI), com o
objectivo de concentrar todas as participações accionistas das empresas em crise.
Em Portugal, a Câmara Corporativa nunca passou de órgão (quase técnico) de consulta da
Assembleia Nacional e do Governo, e, quando o Governo decidiu lançar o I Plano de Fomento (1953),
criou na dependência da Presidência do Conselho de Ministros um organismo específico para levar por
diante a planificação pública (estadual) da economia, pondo a claro o papel secundário das corporações.
252

direito de greve; mas não pôs em causa a propriedade privada nem a liberdade de
empresa, embora condicionadas à sua ‘função social’ de promover o ‘bem comum’.

4.8.4. - Neste novo quadro, o corporativismo representou a intervenção


organizada do estado nazi-fascista na economia, com o objectivo de ultrapassar as
contradições do capitalismo, ‘matando’ a luta de classes e de evitar a derrocada do
capitalismo (que muitos temiam poder estar para breve), resolvendo os dois problemas
fundamentais que então se colocavam: o govermo da economia e a questão social.367
A necessidade de garantir o governo da economia surgiu com os primeiros sinais
da crise do capitalismo, num tempo de capitalismo concentrado em estruturas
empresariais fortemente concentradas e muito poderosas, que controlavam boa parte da
economia dos países mais desenvolvidos. Aos olhos de muitos, foi-se impondo a
necessidade da intervenção do estado no sentido de ‘governar’ a economia.
A solução do corporativismo e do estado fascista foi a de promover uma
estreita aliança entre o poder fascista e os grandes grupos empresariais aos quais foi
entregue a direcção das estruturas corporativas (dotadas de um estatuto de direito
público), que, por sua vez, assumiram a tarefa de ‘organizar’ e ‘controlar’ a economia.
De certo modo, os grandes grupos económicos já faziam isto mesmo; agora passavam a
fazê-lo com o aval do estado, proclamando-se que este ‘governo privado da economia’
(esta planificação corporativa da economia) estava ao serviço do bem comum.
Em regra, eram as grandes empresas monopolistas que dirigiam as associações
profissionais, através das quais passou a ser controlada, em estreita ligação com o
estado nazi-fascista, toda a economia.

“Os grandes industriais - escreve um autor, tendo em conta a Alemanha nazi 368 -
tinham-se tornado em muitos casos os verdadeiros dirigentes da nação, e não é muito certo que
tenham actuado sempre no interesse geral”. E o mesmo autor dá conta do que lhe declarara, em
1937, um pequeno industrial alemão: “Agora tudo está regulamentado: dizem-me o que devo
produzir e a que preço; fornecem-me matérias-primas cujo valor é fixado pelo governo. Não
tenho qualquer possibilidade de intervir seja no que for, na marcha da economia geral ou do
meu negócio. Tornei-me um funcionário inútil”.

367
Sobre a caracterização do corporativismo, ver V. MOREIRA, Direito Corporativo, cit. Sobre
a constituição económica na Constituição salazarista de 1933, ver A. SOUSA FRANCO/G.
D’OLIVEIRA MARTINS, ob. cit., nomeadamente pp.120ss.
368
Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 64/65.
253

A questão social era um dos temas centrais da doutrina social da igreja católica,
desde a Rerum Novarum (1891), actualizada por Pio XII em 1931 (Quadragesimo
Anno), em bases essencialmente anti-liberais, anti-individualistas e anti-socialistas.
Assente na defesa da propriedade privada como um instituto de direito natural, a
doutrina social da igreja defendia que o estado só deveria intervir na economia se os
indivíduos e as suas comunidades não pudessem servir correctamente o ‘bem comum’
(princípio da subsidiariedade’); e advogava, por outro lado, o regresso ao espírito das
corporações medievais, através da instituição de associações profissionais no seio das
quais patrões e trabalhadores deveriam unir-se na prossecução do ‘interesse colectivo’.
Estas preocupações e estas propostas tiveram eco no ideário corporativo e
caracterizaram a prática dos estados corporativos.

4.8.5. - É hoje inequívoco que o estado fascista e os partidos nazi-fascistas foram


instrumentos do grande capital. O nazismo não foi o resultado da ‘loucura’ de um
homem complexado e fanático, que encontrou – é certo - ambiente favorável às suas
‘loucuras’ numa Alemanha ferida no seu orgulho pela paz ditada que lhe foi imposta
em Versalhes (a Alemanha perdeu, com a 1ª Guerra Mundial, 10% do seu território e
10% da sua população, e foi condenada a pagar, a título de indemnização aos países
vítimas da agressão alemã, 132 mil milhões de marcos-ouro em trinta anuidades, sem
ter sido autorizada a participar nos trabalhos da conferência de paz nem a discutir as
suas conclusões) e pelos efeitos dramáticos da hiperinflação dos anos posteriores à
Guerra, que destruiu a economia e o tecido social da Alemanha. O nazi-fascismo foi a
solução friamente construída pelo grande capital para, naquelas condições concretas,
resolver os problemas da economia e da sociedade capitalistas. 369 Em termos gerais, o
nazi-fascismo representou a forma extrema da ditadura do grande capital monopolista,
que não hesitou em recorrer à repressão e à guerra para pôr na ordem os inimigos
internos e para conquistar aos inimigos externos o “espaço vital” indispensável à
expansão imperialista, dando origem à Segunda Guerra Mundial, o segundo conflito

369
Em tempos posteriores à 2ª Guerra Mundial, o recurso a regimes totalitários de tipo fascista
foi uma solução corrente do imperialismo americano e dos seus aliados autóctones em vários países,
especialmente na América Latina, desde o início dos anos 50 até à década de 80 do século passado.
Mesmo na Europa, o pretexto da ‘guerra fria’ serviu para que os vencedores do nazi-fascismo aceitassem
a condenação dos povos de Portugal e de Espanha a mais três décadas de fascismo e, em período mais
limitado, tivessem apoiado a ditadura militar na Grécia.
254

mundial inter-imperialista do século XX, com origem nas contradições e conflitos de


interesses entre os capitalismos nacionais europeus.370

4.9. - A Segunda Guerra Mundial. O capitalismo contemporâneo.

4.9.1. – A Guerra e as suas consequências imediatas.


Depois de um período de preparação, a Alemanha lança-se à conquista de
“espaço vital” (lebensraum). Em 1937, anexa a Áustria; em 1938, foi a vez da região
dos Sudetas, na Checoslováquia, por cedência das democracias europeias no Pacto de
Munique (conhecido por pacto da vergonha). A invasão da Polónia, em 1 de Setembro
de 1939, marca o início formal da Segunda Guerra Mundial, em que a Alemanha teve
como aliados dois países igualmente empenhados na anexação de novos territórios (a

370
É significativo que os exércitos alemães tenham bombardeado Paris, em 1871 (Guerra Franco-
Prussiana), em 1914-18 e em 1939-45, armados com canhões produzidos pelas mesmas fábricas Ktupp
(um dos gigantes da indústria pesada alemã, a que mais exigia “espaço vital”).
255

Itália, que em 1935 fizera guerra à Etiópia, e o Japão, que em 1931 conquistara a
Manchúria e em 1937 invadira a China).
A Guerra exigia de todos um enorme esforço no terreno da economia. Neste
contexto, o estado teve de ocupar-se directamente não só da distribuição dos alimentos e
do controlo da utilização da mão-de-obra e dos recursos disponíveis, mas também da
produção, ao menos nos sectores mais directamente ligados às necessidades bélicas. Os
autores falam de planificação económica de guerra (comunismo de guerra), não apenas
na URSS, mas na generalidade dos países beligerantes.
Dos adversários capitalistas da Alemanha, a Inglaterra foi talvez o país onde se
foi mais longe neste caminho: no exercício de 1942-1943, as despesas do estado inglês
representaram cerca de 80% do rendimento nacional. Mesmo nos EUA, a guerra
obrigou o estado a tomar a iniciativa da produção. O receio de que, perante as
contingências do conflito, não fosse possível amortizar os capitais que investissem -
apesar de serem em geral muito lucrativos os negócios e apesar de haver capitais
disponíveis -, levava as empresas privadas a não investir em determinados sectores.
Embora as fábricas já existentes não estivessem a utilizar toda a capacidade instalada, o
governo americano foi obrigado a construir, com fundos públicos, fábricas que depois
viriam a ser exploradas por aqueles que tinham recusado construí-las.371
Muito mais do que a 1ª Guerra Mundial, este segundo conflito foi, por parte da
Alemanha, uma guerra de ocupação, de extermínio de populações civis, de pilhagem de
estruturas fabris e de recursos naturais, de exploração dos cidadãos dos países ocupados
como mão-de-obra escrava. Para além dos que eram forçados a trabalhar para a
economia de guerra alemã nos seus próprios países, em Setembro de 1944 trabalhavam
na Alemanha, em regime de trabalho forçado, cerca de 7,5 milhões de cidadãos
provenientes de países ocupados pelo exército nazi (21% da força de trabalho do país).
Nesta Guerra, as estruturas económicas tornaram-se alvos militares prioritários
para cada um dos beligerantes. E a destruição foi brutal. Cidades inteiras foram
arrasadas: 25 milhões de pessoas na URSS e 20 milhões na Alemanha ficaram sem

371
Os industriais americanos, com efeito, procuraram confinar a sua produção para fins bélicos
às fábricas construídas pelo governo, produzindo nas suas próprias fábricas bens não especificamente
destinados à nação em guerra, mas “utilizáveis em tempo de guerra e previstos para o tempo de paz”,
como salienta Jean Romeuf, que conclui deste modo: “De facto o Estado dirige bem a economia, mas nas
condições mais onerosas e menos rentáveis possíveis. Encontra-se sensivelmente na situação do indivíduo
que, tendo necessidade absoluta de um objecto, dá ‘carta branca’ a um fornecedor para lho conseguir num
prazo determinado. Não poderá, portanto, falar-se de planificação relativamente à indústria” (Cfr. J.
ROMEUF, ob. cit., 59/60).
256

casa.372 No que se refere a infra-estruturas, instalações e equipamentos de interesse


económico, foi dramática a destruição de vias férreas, e de material circulante
ferroviário, de estradas, pontes, canais, portes, marinha mercante, aviação,
estabelecimentos industriais, terras de cultivo, rebanhos de gado. Neste domínio, a
ocupação alemã foi particularmente bárbara na Europa de Leste (Grécia, Jugoslávia,
Ucrânia), onde os guerrilheiros locais opuseram uma resistência duríssima às tropas
nazis, atrasando (talvez fatalmente, para os desígnios alemães) a sua progressão a
caminho da URSS.
Mais dramáticas ainda foram as perdas humanas: pelo menos 36,5 milhões de
mortos entre 1939 e 1945, a maioria dos quais mortos civis. O maior número, quer em
mortos civis quer em mortos militares, pertence à União Soviética (cerca de 25 milhões,
entre os quais se calcula mais de 16 milhões de civis). 373 Mas a Polónia perdeu cerca de
20% da sua população anterior à Guerra (uma em cada 5 pessoas); a Jugoslávia perdeu
um em cada oito dos seus habitantes; a Grécia um em cada 14; a Alemanha perdeu um
em 15; a França um em 77; a Grã-Bretanha um em 125 habitantes. Foi toda uma
geração que se perdeu. E a estas perdas temos de acrescentar a das crianças que não
nasceram por causa da Guerra e dos problemas que tiveram de enfrentar, no final da
Guerra, os muitos milhões de pessoas deslocadas (civis e militares) em vários países,
uma boa parte das quais não teve condições de regressar ou não quis regressar (por
várias razões) aos seus países e/ou às suas terras de origem. 374

4.9.2. – O Plano Marshall. A “ajuda ligada”.


372
Segundo dados colhidos em T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 36 e 110, a área metropolitana de
Londres foram destruídos 3,5 milhões de habitações; 90% das habitações de Varsóvia ficaram
sempréstimo; quase 75% das habitações em Budapeste; na Itália, ficaram inutilizadas 1,2 milhões de
habitações urbanas; perderam-se 40% das habitações alemãs, 30% na Inglaterra e 20% na França.
373
Uma nota, colhida em T. JUDT, últ. ob. cit., 39: dos 5,5 milhões de soldados soviéticos
capturados pelos exércitos alemães, 3,3 milhões morreram nos campos alemães de frio, fome e maus
tratos; só em Kiev (Setembro/1941) os alemães capturaram 750 mil soldados soviéticos, dos quais apenas
22 mil sobreviveram; ao invés, a maioria dos 3,5 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos regressaram
a casa no final da Guerra.
374
Perante este quadro (a realidade foi incomensuravelmente mais dura!), é particularmente
impressionante sabermos que, entre 1945 e 1949, uma maioria significativa dos alemães da Alemanha
Ocidental defendesse que “o nazismo foi uma boa ideia mal aplicada” e que 37% dos alemães da zona
americana de ocupação defendessem que “o extermínio dos judeus, dos polacos e de outros não arianos
foi necessário para a segurança dos alemães”, sendo que, em 1952, 25% dos alemães ocidentais admitiam
ter uma “boa opinião” sobre Hitler. Talvez assim se compreenda melhor que, neste mesmo ano, a filial
alemã da Ford, fosse de novo administrada por todos os gestores de topo dos anos do nazismo. E talvez
possamos entender o Chanceler eleito em 1966 tenha sido o democrata cristão Kurt-Georg Kiesinger, que
foi funcionário do partido nacional-socialista de Hitler durante doze anos. Em 1969, o líder da União
Social-Cristã da Baviera, Franz-Joseph Strauss, que foi a segunda figura do Governo da RFA, dizia em
público que “um povo que alcançou um tal sucesso económico tem o direito de não continuar a ouvir
falar de ‘Auschwitz’” (cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 8, 480 e 918).
257

A consciência desta realidade levava as pessoas em geral e os responsáveis


políticos a admitir que a Europa iria sofrer algumas décadas de pobreza e de sacrifícios
pesados. O próprio De Gaulle dizia aos franceses, em Outubro de 1945, que a
recujperação da França exigiria vinte e cinco anos de “trabalho encarniçado”.375
Perante o rumo que os acontecimentos começavam a tomar na Europa de Leste,
esta perspectiva não servia os interesses dos EUA e, na Europa, de todos os que queriam
evitar a expansão do mundo socialista. Foi neste contexto que surgiu o Plano Marshall,
o primeiro programa de auxílio a países estrangeiros organizado por um país capitalista
(neste caso, auxílio dos EUA à Europa).376
Sem dúvida que a ajuda americana (13 mil milhões de dólares entre 1947 e
1951) permitiu à Europa uma recuperação mais rápida e com menos sacrifícios,
proporcionou condições que facilitaram a cooperação entre os países europeus
(vencedores e vencidos), evitando a imposição à Alemanha do dever de pagar
indemnizações compensatórias e o recurso a políticas de autarcia semelhantes às
adoptadas no período posterior à 1ª Guerra Mundial, beneficiando o desenvolvimento
do comércio intra-europeu e o desenvolvimento económico na Europa.
Mas o Programa de Recuperação da Europa foi claramente enquadrado nos
objectivos estratégicos dos EUA, que assumiram como potência hegemónica do mundo
capitalista. A convicção, desde o início, de que o Plano Marshall era um instrumento
para isolar a URSS é que terá levado a União Soviética e os países que viriam a
constituir a comunidade socialista europeia a recusarem a ajuda americana.
A Administração americana acreditava que o Plano Marshall era “uma
oportunidade de reconstruir a Europa à imagem da América”, tendo financiado estágios
de milhares de gestores, técnicos e sindicalistas europeus para poderem apreciar in loco
as virtudes da organização económica americana e do american way of life.
O Plano Marshall foi, também, um programa de auxílio à indústria americana,
que o esforço de guerra dotara de uma capacidade de produção sobredimensionada e,
por isso mesmo, carecida de mercados alternativos ao da guerra, condição indispensável
para evitar a falência de muitas empresas e para fugir à séria ameaça de depressão que
se fez sentir no imediato após-guerra. O Director da CIA, Allen Dulles, reconhece isto
mesmo abertamente: “O Plano pressupõe que desejamos ajudar a recuperar a Europa
(…), que poderá comprar uma quantidade substancial dos nossos produtos”. Uma das
375
Apud T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 118.
376
Sobre o Plano Marshall, ver T. JUDT, últ. ob. cit., 118-129, onde colhemos muitos dos dados
referidos a seguir.
258

condições da ajuda era, aliás, a de que todos os bens enviados para a Europa a partir dos
EUA deveriam ser transportados e bandeira americana, carregados por estivadores
filiados na AFL-CIO. Como Tony Judt observa, “o Plano Marshall iria beneficiar os
Estados Unidos ao recuperar o seu maior parceiro comercial, em vez de reduzir a
Europa a uma dependência imperial”.
Este foi também um expediente que facilitou aos EUA a imposição do
livrecambismo nas relações comerciais em todo o mundo capitalista, solução que se
adequava aos seus interesses como potência hegemónica. Do mesmo modo que servira
os interesses da Inglaterra imperial antes da 1ª Guerra Mundial.
Mas o Plano Marshall foi também concebido como um instrumento do domínio
americano no quadro da ‘guerra fria’. Um relatório de um comité coordenador dos
Departamentos de Estado, da Guerra e da Marinha (21.4.1947) não deixa dúvidas a este
respeito: “É importante manter em mãos amigas as áreas que contenham ou protejam
fontes de metais, petróleo e outros recursos naturais, onde se integrem objectivos
estratégicos ou locais estrategicamente situados, que tenham um grande potencial
industrial, que possuam efectivos importantes de mão-de-obra ou de forças militares
organizadas ou que, por razões políticas ou psicológicas, permitam aos Estados Unidos
exercer uma influência mais significativa a favor da estabilidade, da segurança e da paz
mundiais”.377
A exportação de capitais públicos, sobretudo com destino aos países
subdesenvolvidos, no quadro do que se designou por neo-colonialismo, é uma das
novidades do período imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial. Trata-se de
empréstimos e financiamentos de vária ordem concedidos em regra no âmbito de
programas de auxílio aos países subdesenvolvidos (ajuda ao desenvolvimento). E as
características do Plano Marshall acabaram por marcar todos os programas de auxílio
aos países subdesenvolvidos que mais tarde se seguiriam: assegurar a manutenção das
condições de domínio económico-político dos países exportadores de capitais sobre os
países ‘beneficiários’ desse auxílio.
Na origem destes programas de auxílio, está uma doutrina formulada em 1957
por um grupo de especialistas americanos sob a orientação de Walter Whitman Rostow,
“segundo o qual os objectivos da política exterior dos Estados Unidos poderiam ser
melhor alcançados mediante uma bem orientada ‘ajuda externa’ aos países
subdesenvolvidos”. Analisando esta doutrina, Celso Furtado salienta “que o objectivo
377
Apud T. JUDT, últ. ob. cit., 124/125.
259

da política dos Estados Unidos é conservar integrada a sua esfera de influência e que o
desenvolvimento deste ou daquele país deve ser considerado como um meio para
alcançar esse fim.”378
O que se diz a respeito dos EUA poderá dizer-se a respeito dos outros países
empenhados em programas de auxílio público aos países subdesenvolvidos, programas
cujo objectivo não é, em regra, o desenvolvimento dos países ‘beneficiários’, mas,
segundo muitos especialistas, “a manutenção e o reforço do poderio dos países
dominantes”379, sendo certo que “é essencialmente o aspecto ‘subvenção à sua própria
indústria’ que orienta a maioria dos países doadores.”380
Este é um aspecto que se torna patente se atentarmos na prática corrente da
ajuda ligada (ou ajuda vinculada), que obriga o país beneficiário a aceitar certas
condições impostas pelo país que concede o auxílio, ou, muitas vezes, pelo FMI e pelo
Banco Mundial (v.g., a obrigação de gastar as verbas na aquisição de bens produzidos
no país dominante, para além de ‘obrigações’ de ordem política: privatizações,
‘facilidades’ ao investimento estrangeiro, não tributação dos rendimentos do capital,
liberalização do comércio e dos movimentos de capitais, ‘flexibilização’ da legislação
laboral, domesticação dos sindicatos, etc.).

4.9.3. – A nova geografia política do mundo.


Terminada a Guerra (9 de Maio de 1945), a geografia política do mundo
registava uma profunda alteração.
Durante a Guerra o PNB dos EUA duplicou; em 1945 a América possuía
metade da capacidade de produção industrial instalada em todo o mundo; dispunha da
maioria dos excedentes alimentares; controlava a quase totalidade das reservas
financeiras; tinha uma frota maior do que as dos outroa países em conjunto; dispunha da
única moeda que podia funcionar como meio de pagamentos internacionais. Dentro do
mundo capitalista, os EUA emergem como potência hegemónica, nos planos
económico, política e militar381, o que significou “rebaixar a Grã-Bretanha e a França
378
Cfr. C. FURTADO, “A hegemonia…, cit., 592.
379
J. M. ALBERTINI, ob. cit., 123.
380
M. GUERNIER, ob. cit., 122.
381
Paul Lindau, Director do Instituto de Estudos Políticos, faz esta análise da situação: ”Graças à
Guerra, os EUA concentraram nas suas mãos todas as cartas do jogo da economia capitalista à escala
mundial. Para que o jogo continue, há que redistribuir as cartas, em especial com a Europa Ocidental, sob
pena de a vermos afastar-se da órbita da livre empresa. O sistema de redistribuição das cartas será o
Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Plano Marshall, etc. Até então, tínhamos possessões
fora dos EUA, mas não um império formal, à semelhança da França e da Inglaterra. Tivemos de
concretizar essa ideia do império sem nunca termos tido administração colonial e sem querermos admitir
260

(para não falar na Bélgica, na Holanda e em Portugual) à posição de sócios menores do


imperialismo norte-americano”. Assim se exprime Paul Baran, que cita esta análise da
revista londrina Economist (17.12.1956):382 “Devemos aprender que que já não somos
iguais aos americanos, e nem podemos sê-lo. Temos o direito de determinar os nossos
interesses nacionais mínimos e esperamos que os americanos os respeitem. Isto feito,
porém, devemos procurar a sua liderança”. As acções do império britânico passaram
para o controlo de outro accionista, e os EUA iniciaram o processo que visa garantir
para si “o papel do Estado do sistema do capital em si”.383
Com o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima (6 de Agosto de 1945),
ou, como outros pretendem, com o famoso discurso em que Churchill falou da cortina
de ferro (Fulton, Missouri, 5.3.1946), teve início a guerra fria, a política de “contenção
do comunismo” e a consequente corrida aos armamentos.384 De 1949 para 1950, o
montante das despesas militares dos EUA quase quintuplicaram, e em 1952/1953 as
despesas militares absorvem 17,8% do PIB (contra 4,7% em 1949). O arsenal nuclear
americano passou de 9 abombas atómicas em 1946 para 50 em 1948, 170 em 1950 (ano
que o Presidente Truman deu ordens para que fosse acelerado o processo conducente à
produção da bomba de hidrogénio), 841 em 1952, 2000 em 1955 e 28.000 em 1962;
paralelamente, o número de aviões bombardeiros, estacionados em várias bases aéreas
dos EUA e em vários pontos do mundo, aumentou de 50 em 1948 para mais de mil em
1953, e o primeiro bombardeiro intercontinental (o famoso B-52) ficou operacional em
Junho de 1955. A URSS, apesar das condições difíceis de vida da população, seguiu
caminho idêntico: o número de armas nucleares passou de cinco em 1950 para cerca de
para nós que estávamos a desempenhar um papel anti-democrático. Tínhamos de justificar esse papel.
Isso será feito a coberto do conceito de ‘segurança nacional’. Doravante teremos de fazer face a um
perigo comunista que deverá estar sempre presente e ser sempre ameaçador”. [apud J. ARNAULT, ob.
cit., 37. Sublinhados nossos]
382
Cfr. P BARAN, A Economia…, cit., 11.
383
Cfr. I. MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 41.
384
Os poderosos interesses daquilo que Eisenhower viria a designar por complexo militar-
industrial impuseram a política militarista, apesar da oposição dos membros mais destacados da
comunidade científica americana e mundial, com destaque para Albert Einstein, que em 1946 se
pronunciava deste modo: ”É apavorante perceber que o veneno do militarismo ameaça trazer mudanças
indesejáveis à atitude política dos Estados Unidos. (…) O que estamos vendo não é uma expressão de
sentimentos do povo norte-americano; pelo contrário, reflete a vontade de uma poderosa minoria que usa
a sua força económica para controlar os órgãos da vida política. Se o governo se mantiver nesse curso
catastrófico, nós, cientistas, devemos recusar a submissão às suas exigências imorais, ainda que apoiadas
por aparato legal. Existe uma lei não escrita, a da nossa consicência, que é muito mais impositiva que
qualquer outra que venha a ser inventada em Washington. E, naturalmente, existem armas definitivas à
nossa disposição: a não cooperação e a greve”.
Até hoje, os círculos dirigentes norte-americanos continuam fiéis à ideia de que, na síntese de um
almirante Americano, é “do melhor interesse dos Estados Unidos ter um grande inimigo”, qual papão
inventado para justificar, junto da opinião pública, a militarização da economia e da política americanas.
(citações colhidas, respectivamente, em I. MÉSZÁROS, últ. ob. cit., 84/85 e 67).
261

1700 no final dos anos 1950. Antecipando-se aos EUA, a URSS ensaiou com êxito o
primeiro míssil balístico inetrcontiental em Agosto de 1957 e no dia 4.10.1957 lançou o
primeiro satélite artificial (o Sputnik).385
Na Europa, o esforço de guerra e a persistência da Inglaterra em manter o seu
estatuto de potência colonial e de grande potência mundial transformaram o Reino
Unido de maior credor mundial em maior devedor, de tal modo que o país se encontrava
insolvente em 1945, ano em que dez milhões de britânicos (de um total de 21,5 milhões
de adultos empregados) estavam no serviço militar ou fabricavam armamento. Em 1946
foi imposto o racionamento do pão (que nunca fora imposto durante a Guerra) e quase
todos os bens de primeira necessidade estavam racionados. O racionamento dos
produtos limentares só terminaria em 1954, mais tarde do que no resto da Europa
Ocidental. Apesar da penúria, o RU viu-se obrigado a destinar quase todos os fundos
provenientes do Plano Marshall ao pagamento dos encargos da dívida externa contraída
junto dos EUA. Entre 1946 e 1948 emigraram mais de 150 mil britânicos. Como único
consolo, o facto de praticamente não haver desemprego e de a distribuição da riqueza se
ter tornado menos desigual (a parte do rendimento arrecadado pelo núcleo de 1% mais
ricos baixou de 56% em 1938 para 43% em 1954).386
A França tinha sido afastada das grandes conferências (nomeadamente Postdam
e Ialta) em que se traçou o destino do mundo depois de a Guerra terminar, embora tenha
conseguido a vitória diplomática de lher ser atrbuída uma zona de ocupação na
Alemanha e de se ver incluída no pequeno leque dos membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU. Mas o seu estatuto de potência colonial ficou
desvalorizado e, como consequência da ocupação do seu território pela Alemanha,
perdeu o estatuto de potência europeia. Ao contrário do que a França pretendia, a
Alemanha não foi obrigada a pagar indemnizações de guerra à França e muito menos
desmantelada e anulada economicamente, com a separação da Alemanha das regiões do
Ruhr, do Sarre e de algumas áreas da Renânia, cujos recursos seriam colocados à
disposição da França. Pouco depois da rendição da Alemanha, os interesses dos EUA
cedo apontaram no sentido da recuperação económica, política e até militar da
Alemanha.

385
Uma evolução semelhante verificou-se no Reino Unido e na França e, depois de 1949, na
generalizade dos países membros da NATO. O Reino Unido lançou com êxito a sua primeira bomba
atómica em Outubro de 1953. A França só entraria no ‘clube’ em Fevereiro de 1960. Cfr. T. JUDT, PÓS-
GUERRA, cit., 188, 292/293.
386
Cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 198-201.
262

Mas o Plano Monnet para a reconstrução da França contava com o carvão e o


coque alemães para alimentar a indústria do aço francesa, uma vez que a França era
tradicionalmente grande importadora destes materiais. A pressão das circunstâncias
obrigou a França a ter que dar a mão à Alemanha, através da proposta que ficou
conhecida por Plano Schuman (nome do Ministro dos Negócios Estrangeiros francês
Robert Schuman), apresentado publicamente no dia 9 de Maio de 1950, cinco anos
depois da rendição da Alemanha: “o governo francês propõe que toda a produção
franco-germânica de carvão e de aço seja colocada sob uma alta autoridade conjunta no
quadro de uma organização que estaria também aberta à participação de outros países
países da Europa”. O Governo francês viu nesta proposta a possibilidade de partilhar o
controlo do Ruhr e os recursos mineiros alemães do carvão e do coque, mas,
ironicamente, ela abriu a porta à entrada da Alemanha, “pela primeira vez, muma
organização internacional em igualdade de condições com outros estados
independentes”.387 Na sequência da aceitação desta proposta pela Alemanha Ocidental,
pela Itália e pelos países do Benelux, foi constituída a Comunidade Europeia do Carvão
e do Aço, pelo Tratado de Paris (Abril de 1951).
A Alemanha, como é natural, saiu da Guerra militarmente aniquilada,
economicamente debilitada e politicamente dependente e dividida (em breve, em dois
estados separados, solução que ninguém tinha preconizado até Maio de 1945). Cedo,
porém, americanos e ingleses começaram a pensar que o melhor era recuperar a
Alemanha economicamente, para os alemães contribuíssem para o seu sustento e
recuperação e também para a recuperação das demais economias europeias, para as
quais o mercado alemão era importante.
O problema da Alemanha revelou-se o mais importante e o mais difícil de
resolver, tanto nas relações entre os aliados ocidentais, como nas relações entre estes e
a URSS. Em 1 de Junho de 1948 os EUA, RU e França anunciaram o propósito de criar
um estado independente na zona ocidental da Alemanha e em 18 de Junho foi anunciada
a criação da moeda deste futuro estado, o Deutsche Mark, que veio substituir o velho e
desacreditado Reichmark. A URSS respondeu criando um novo marco na zona oriental
e dificultando as comunicações por terra com Berlim Ocidental. Os EUA e o RU
responderam com uma ponte aérea, e estava de pé a agudíssima crise de Berlim. Em
Janeiro de 1949, a URSS propôs o levantamento do bloqueio em troca do adiamento dos
planos de criação do estado alemão ocidental; os aliados ocidentais aceitaram apenas a
387
Cfr. T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 193/194.
263

realização de uma conferência para discutir o assunto; a URSS levantou o bloqueio em


12 de Maio de 1949. A conferência realizou-se, mas, entretanto, em Junho de 1949, era
aprovada em Bona a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Uma semana
depois, a URSS anunciou, por sua vez, a criação de um estado alemão oriental na zona
de ocupação que lhe estava confiada, criação que se concretizou em 7 de Outubro de
1949.
Neste contexto, foi criada a NATO, em Abril de 1949.388 Pouco depois, o Plano
Marshall foi dado como concluído, dando lugar a um programa de assistência militar,
que, no final de 1951, se traduziu na transferência dos EUA para a Europa, para fins de
ajuda militar, de cinco mil milhões de dólares, cifra que ganha significado se
recordarmos que o total da ajuda ao abrigo do Plano Marshall se ficou pelos 13 mil
milhões de dólares, entre 1947 e 1951.389
Em 1952, a URSS insistia na proposta de assinatura de um Tratado de Paz que
reconhecesse a Alemanha como estado independente, unificado, desmilitarizado e
neutral (a solução consensual antes do final da Guerra); mas os EUA tinham começado,
em 1950, conversações separadas com o RU e a França sobre a remilitarização da
Alemanha, e não tomaram em consideração as propostas soviéticas. O problema alemão
tendeu a centrar-se na questão de Berlim, que culminou com a construção do famoso
Muro de Berlim (Agosto de 1961), a separar as duas partes da cidade, para impedir a
fuga de cidadãos de Leste para Ocidente. Como então reconheceu a Administração
Kennedy, “em termos realistas, é provável que [o muro] torne mais fácil um acordo
sobre Berlim”. Esse acordo nunca chegou, mas, como reconhece Tony Judt, “o muro
pôs fim à carreira de Berlim como zona de crise das questões europeias e mundiais” e
“mostrou que as duas grandes potências tinham mais em comum do que era
publicamente reconhecido”.390
Entretanto, a recuperação económica da RFA acelerou-se: em finais de 1949, a
produção industrial atingiu os níveis de 1936, níveis que foram ultrapassados em um
terço no final de 1950. A Guerra da Coreia veio dar novo alento a este processo.
388
O Pacto de Varsóvia (incluindo a URSS, Polónia, Checoslováquia, Hungria, Roménia,
Bulgária, Albânia e a República Democrática da Alemanha – RDA -, cuja plena soberania foi então
proclamada pela URSS) foi criado em 15 de Maio de 1955, a seguir à integração da RFA na NATO, o
que implicava a remilitarização da Alemanha (o novo exército alemão, a Bundeswher, foi criado em
1956, apenas onze anos após a rendição incondicional da Alemanha nazi). Talvez não seja simples
coincidência o facto de, no dia aseguinte, as quatro potências vencedoras da Guerra terem assinado o
Tratado que determinou a retirada dos quatro exércitos ocupantes do território austríaco e reconheceu a
independência da Áustria, que seria um país neutral, fora da NATO e do Pacto de Varsóvia.
389
Cfr. T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 189.
390
Cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 298/299.
264

Em vários países do centro e do leste da Europa e na China instauram-se regimes


socialistas de democracia popular. A URSS – que logo no início de 1946 anunciou que
não se integraria nos mecanismos resultantes dos Acordos de Bretton Woods - afirmou-
se como segunda superpotência, nos planos político, económico e militar. Em 1945
dispunha da maior força militar que a Europa alguma vez tinha conhecido, e, em
Novembro de 1949, testou com êxito a bomba atómica, ganhando o estatuto de potência
nuclear, quebrando o monopólio dos EUA.391 Em 4 de Outubro de 1957 colocou no
espaço o primeiro satélite artificial, o famoso Sputnik, evidenciando uma posição
proeminente nos domínios da matemática, da física, da informática, da electrónica, das
telecomunicações, da biologia, as bases da indústria aero-espacial e do domínio do
espaço.
Nos territórios coloniais, os movimentos pró-independência começaram a
manifestar-se, e, logo em Novembro de 1945, Sukarno proclamou unilateralmente a
independência da Indonésia; iniciativas várias condiziram à Conferência de Bandoeng
(1955) e, progressivamente - em muitos casos, após sangrentas guerras, a independência
das colónias avançou, culminando, pode dizer-se, com a derrota americana no Vietnam
(1973), ficando de fora as colónias portuguesas e a África do Sul, cujo povo era
colonizado pela minoria branca através do regime do apartheid.

4.9.4. – A vitória do livrecambismo.


 Terminada a Guerra, os EUA ‘impuseram’ os princípios do livrecambismo nas
relações de comércio internacionais. Esta orientação prevalesceu nos Acordos de
Bretton Woods (de onde resultou o sistema monetário internacional, o Fundo Monetário
Internacional e o Banco Mundial) e no GATT (General Agreement on Trade and
Tariffs) e serviu de modo particular os interesses dos EUA, com uma indústria
sobredimensionada que não poderia confinar-se nos limites do seu espaço nacional. O
dólar emergeu, por outro lado, como o único meio de pagamentos internacionais,
porque, nas condições do final da Guerra, era a única moeda convertível em ouro (a
391
O alcance destas mudanças para a história da humanidade ganhará relevo se recordarmos a
doutrina oficial dos EUA quanto à utilização da bomba atómica, expressa em 1951, pelo Presidente
Eisenhower, nestes termos brutais: “a utilização da bomba atómica seria decidida pela questão: ela ser-
me-á vantajosa ou não…? Se acreditasse que a vantagem estaria do meu lado, usá-la-ia imediatamente”
(apud P. BARAN, A Economia Política…, cit., 337). Com o galope da ‘guerra fria’, em Janeiro de 1953
foi decidida a nuclearização da NATO e, em Abril de 1954, os EUA anunciavam um novo passo na
escalada: ”Os Estados Unidos consideram que a capacidade de usar armas atómicas é essencial para a
defesa da área da NATO, em face da ameaça actual. Eu suma, tais armas devem ser agora consideradas
como se se tivessem tornado convencionais” (citação colhida em T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 293).
265

uma paridade fixa de 35 dólares por onça troy de ouro, segundo o acordado em Bretton
Woods em 1944), e porque os EUA eram, então, praticamente a única economia que
poderia exportar o que todos os países pretendiam e que não produziam, graças à
destruição operada pelo conflito. Estas circunstâncias facilitaram a expansão dos EUA
em todo o mundo capitalista, no plano económico e no plano militar.
Como sempre aconteceu desde a Inglaterra do tempo de Ricardo, o
livrecambismo tem sido utilizado como um instrumento ao serviço dos países
dominantes e dos interesses dominantes, aspecto que se acentuou com a passagem do
sistema de negociação permanente que caracterizava o GATT para o modelo de agência
reguladora do livre comércio internacional, que é a OMC (Organização Mundial do
Comércio), muito mais facilmente dominável pelos EUA (e pelas outras grandes
potências), à semelhança do que vem acontecendo com outras agências da ONU, como
o FMI e o Banco Mundial.
Ao contrário da ‘filosofia’ inspiradora da OMC, que vê na liberdade absoluta das
trocas, na plena abertura dos mercados e no simples desenvolvimento do comércio a
solução para todos os problemas dos países de desenvolvimento impedido ou marcados
por um desenvolvimento dependente ou desenvovlimento maligno, muitos autores
aparecem hoje a defender que as relações comerciais internacionais devem inspirar-se
nos princípios da solidariedade e do desenvolvimento sustentável e no reconhecimento
do direito dos povos à auto-suficência alimentar. Entretanto, os valores do comércio
mundial aumentam sem cessar, mas as desigualdades e a exclusão social aumentam a
um ritmo ainda maior.

4.9.5. - Novos aspectos da concentração capitalista


Começaremos por acentuar que a concentração tem continuado presente como
um dos aspectos importantes da dinâmica do capitalismo, acerca do qual deixaremos
aqui simplesmente apontados alguns dos traços que mais o têm marcado nas últimas
décadas.
a) Sobretudo a partir de 1930, as grandes empresas aparecem com frequência
comprometidas num processo de diversificação, i. é, a produção pela mesma empresa
de bens com diferentes utilidades, dificilmente substituíveis uns pelos outros.
Nuns casos (sobretudo quando os bens participam das mesmas técnicas de
produção ou são elaborados na sequência do mesmo processo produtivo), a
diversificação é o resultado da integração das fases produtivas (vertical ou horizontal),
266

praticada pelas empresas de grande dimensão e imposta por exigências de ordem


técnica.392
Noutros casos, a diversificação aparece como o caminho lógico a seguir pelas
empresas que, a partir de certa dimensão, vêem dificultado o seu crescimento horizontal
(aumento da quantidade produzida do mesmo produto), pois este é limitado pela
extensão do mercado, no qual cada uma delas tem, porventura, de competir com outras
empresas igualmente grandes que não serão facilmente elimináveis.
Por outro lado, atingido que seja um grau elevado de concentração numa dada
indústria, a(s) empresa(s) que gozem de uma posição monopolista não terão interesse
em aumentar os investimentos no sector, para não se sujeitarem, com o aumento da
produção, a uma baixa de preços (que poderá significar redução dos lucros). Nestas
condições, se a empresa tem fundos para investir, a diversificação da produção para
novos sectores é uma das soluções possíveis (a par da exportação de capitais).
Acresce que a diversificação - como como se verificou durante a Grande
Depressão - torna as empresas menos vulneráveis às crises cíclicas (e sazonais). A
diversificação apresenta-se também como a melhor saída para a expansão de uma
empresa que dispõe de capacidade de produção não utilizada. Em outras circunstâncias,
a diversificação constitui uma autêntica reconversão da actividade das empresas, por
forma a assegurar a sua subsistência, quando a respectiva empresa (ou mesmo o sector
de actividade em que se integra) se encontra em declínio.
b) A partir da década de 1950, assistiu-se ao desenvolvimento e à predominância
das grandes empresas (que à guerra total - que todas temem - preferem uma política de
entendimento com as rivais, ainda que em campos suficientemente delimitados) e ao
domínio dos sectores mais importantes por um reduzido número de empresas,
interessadas em se defenderem, no seu conjunto, da concorrência eventual de novos
produtores.

392
Fala-se de integração (ou concentração vertical) quando uma empresa, actuando em certo
sector, estende a sua acção a outros campos da actividade económica; fala-se de concentração (ou
concentração horizontal) quando uma empresa amplia a sua produção, passando a produzir uma
percentagem cada vez mais elevada do bem que vinha produzindo, com o objectivo de controlar o
respectivo mercado.
Na integração, distingue-se a integração horizontal (integração de fases paralelas de fbrico (a
partir da refinação do petróleo, várias linhas de produção na área da petroquímica) da integração vertical
(integração de fases sucessivas do processo produtivo o mesmo bem (plantação de algodão, fiação,
tinturaria, tecelagem, vestuário, pronto a vestir). No âmbito da integração vertical, pode ainda distinguir-
se a integração vertical ascendente (integração de estádios anteriores do processo produtivo) e a
integração vertical descendente (integração de estádios posteriores do processo produtivo).
267

Esta situação permitirá explicar a prática frequente da celebração de acordos de


vária ordem entre grandes empresas, acordos que, para além dos objectivos tradicionais
dos cartéis, visam organizar a colaboração das empresas associadas no que respeita a
problemas de ordem técnica (investigação; normalização de produtos; serviços de
vendas; trocas de licenças, patentes, modelos industriais, etc.).
E, à luz das características actuais do capitalismo, não espantará que tais acordos
se tenham realizado também, em certa época, sobretudo nos países mais desenvolvidos,
entre empresas públicas e empresas privadas (nomeadamente como forma de contornar
os obstáculos políticos e jurídicos à fusão entre elas).
c) A concentração ganha hoje relevância especial na perspectiva dos grupos de
sociedades. Ora, ao nível das empresas, para além das formas de integração
(concentração vertical), a concentração horizontal, tal como em regra se apresenta,
aparece fundamentalmente como concentração homogénea (i.é, respeitante a empresas
que produzem bens homogéneos ou sucedâneos próximos, que fabricam o mesmo
produto). Ao nível dos grupos, porém, a concentração horizontal apresenta-se já como
concentração heterogénea (reunião, no mesmo grupo, de empresas que fabricam
produtos diferentes), modalidade que já não pode justificar-se por motivos de ordem
técnica, i.é, fazendo apelo ao princípio das economias de escala.
Esta prática da concentração heterogénea visa reunir, sob o controlo de um
mesmo grupo, o maior número possível de empresas especializadas e dominantes em
diferentes ramos de actividade económica, integrando-se perfeitamente na lógica da
concorrência entre grandes colossos, tal como ela se apresenta na actual fase do
capitalismo, procurando enfrentar as exigências dessa mesma concorrência.
A lógica da concorrência impõe a especialização; mas a especialização torna as
empresas mais vulneráveis, colocando-as na dependência do mercado de um único
produto, situação arriscada numa época em que as inovações tecnológicas se sucedem a
um ritmo particularmente acelerado. A via acima indicada - cuja meta é a criação de
condições de multimonopólio - tem em vista, portanto, eliminar o aspecto negativo da
especialização, pela especialização em vários sectores diferentes.
d) Só que, no âmbito deste processo de concentração horizontal heterogénea,
podem ainda distinguir-se duas situações diferentes: a concentração funcional e o
conglomerado.
No primeiro caso, trata-se de associação entre empresas que fabricam produtos
diferentes, mas que são susceptíveis de preencher a mesma função (de satisfazer a
268

mesma necessidade) ou são complementares do ponto de vista de uma mesma função. A


concentração funcional pode, portanto, entender-se como semi-heterogénea ou
complementar.
O conglomerado, porém, é uma forma de concentração totalmente heterogénea.
O conglomerado caracteriza-se, na verdade, pela existência de uma única direcção
económica (que não é incompatível com uma relativa autonomia de gestão dos vários
profit centers, desde que estes se mantenham dentro dos objectivos e assegurem as taxas
de lucro planificadas pelos órgãos de topo), a par de uma diversificação multilateral
(produção e venda de bens que, na perspectiva do produtor, não têm que apresentar
entre si qualquer relação de ordem técnica e que, na perspectiva do consumidor, não são
directamente substituíveis nem complementares). Este processo de concentração opera
essencialmente através de sucessivas aquisições de empresas já existentes nos vários
sectores de actividade económica.
Trata-se de um tipo de concentração que se iniciou na economia americana e
que, a partir de 1945, conheceu, nos EUA, na Europa e no mundo capitalista em geral,
um acentuado ritmo de desenvolvimento, a ponto de poder considerar-se o
conglomerado como a forma de concentração mais corrente hoje em dia nos países
industrializados.
e) A par desta diversificação funcional da produção, representada pelos
conglomerados, tem-se acentuado aquilo a que por vezes se chama diversificação
geográfica da produção, como consequência da expansão das empresas multinacionais.
Adoptando a designação mais divulgada, chamaremos empresa multinacional
àquela empresa a cuja direcção e controlo estão sujeitas várias outras empresas filiais,
que entre si cooperam na planificação das suas actividades e no intercâmbio comercial,
de informações e de serviços técnicos, sem prejuízo da conveniente e necessária
descentralização. O controlo pode ser assegurado pela empresa-mãe a partir da
propriedade directa de empresas no estrangeiro, de simples tomadas de participação
minoritárias, da concessão de licenças de fabrico, etc.
Já em 1915 Bukarine falava da internacionalização do capital, de que o ”trust
internacional” seria o mais elevado grau de organização. 393 O que agora é novo,
portanto, não é a exportação de capitais privados, nem a existência de empresas que
estendem a sua actividade produtiva a vários países. O que é novo é a
internacionalização do próprio processo produtivo, traduzida na realidade das empresas
393
Cfr. N. BUKARINE, ob. cit.
269

multinacionais com a sua rede de produção e de comercialização e com os canais de


mobilização e de centralização dos meios de financiamento espalhados por diversas
partes do mundo, estabelecendo uma divisão internacional do trabalho à medida dos
seus interesses, fraccionando o processo produtivo e localizando em regiões ou países
diversos cada uma das fases do processo produtivo. E isto não apenas no que se refere
às indústrias tradicionais trabalho-intensivas, mas também quanto a indústrias que
exigem simultaneamente uma razoável intensidade de mão-de-obra (v.g. quando a
montagem assume importância especial) e uma tecnologia relativamente avançada
(exportada pela empresa-mãe para as suas várias filiais).
Os efeitos do fenómeno a que nos vimos referindo não deixam de se fazer sentir
no campo económico, político e social dos países de origem das empresas
multinacionais e (sobretudo) dos países onde elas se instalam, bem como nas relações
económicas e políticas internacionais.

4.9.6. – As nacionalizações. Significado do sector público empresarial.


No contexto europeu e na esfera económica, merece referência especial o
importante surto de nacionalizações (e consequente formação de um significativo
sector empresarial do estado) que se registou nas ‘duas europas’ que resultaram da
Guerra.
Na Europa capitalista, a nacionalização dos sectores industriais mais importantes
era uma reivindicação dos partidos operários já antes da 1ª Grande Guerra, como vimos.
Mas a verdade é que nenhuma nacionalização foi efectuada na Alemanha ao abrigo da
lei de socialização ou da Constituição de Weimar, e muito poucas (e de pouca duração)
se registaram na Áustria; na França, o Governo da Frente Popular nacionalizou apenas
algumas empresas produtoras de material de guerra e promoveu a constituição de
sociedades de economia mista na indústria aeronáutica, ficando o estado a deter a
maioria do capital.
Mas em 1945 as nacionalizações e a intervenção (planificada) do estado na
economia impunham-se desde logo por razões pragmáticas: acreditava-se que a
reconstrução só poderia ser levada a cabo por uma instância central que controlasse o
aforro disponível e decidisse sobre a prioridade dos investimentos. Daí a inevitabilidade
da nacionalização da banca e dos seguros. Mas também a inevitabilidade da
transferência para o estado dos sectores estratégicos (energia, transportes, minas,
construção naval, siderurgia, etc.), nos quais era preciso arrancar praticamente do zero.
270

No mesmo sentido de chamar o estado a uma posição importante no seio da


economia actuou também a revolução tecnológica que se operou a partir desta 2ª Guerra
Mundial, aquela em toda a história em que mais se apostou na supremacia científica e
tecnológica como arma para derrotar militarmente o inimigo. Falou-se de Terceira
Revolução Industrial394 para traduzir a importância do aparecimento da energia nuclear,
da automação, da electrónica e da indústria espacial, ‘revolução’ que, de algum modo,
pode considerar-se como sequela do conflito e do esforço de investigação e de produção
a que ele obrigou. Abriu-se então um período de intensa inovação científica e de rápida
aplicação das novas conquistas da ciência, tornada esta uma força produtiva de primeira
importância, elemento fundamental do desenvolvimento económico (mais do que a
posse de matérias-primas, que a redução no custo dos transportes colocou ao alcance
dos vários países). Em última instância, é a valorização do homem como elemento
produtivo, enquanto produtor, depositário e utilizador de conhecimento e de
informação.
As nacionalizações foram também, na Europa do após-guerra, uma exigência
das forças de esquerda, fortalecidas pela sua participação nos movimentos da
Resistência ao nazi-fascismo. E a verdade é que, nas eleições realizadas no final da
Guerra, a esquerda (o PCF, o MRP e a SFIO) obteve na França quase 75% dos votos 395
e o Labour Party ganhou as eleições no Reino Unido. Por outro lado, sectores
significativos da Democracia Cristã defendiam, na Itália e na Alemanha, posições
bastante à esquerda, falando-se de “socialismo de responsabilidade cristã”. Em
Dezembro de 1945, Gustav Radbruch considerava “evidente que a reconstrução da
Alemanha só será possível na base de uma economia organizada nos moldes de uma
qualquer forma de socialismo e mediante a socialização de, pelo menos, alguns
importantes ramos da sua vida económica, como os bancos, as minas e as indústrias
capitais”.396 Estas circunstâncias ajudarão a perceber que, mesmo na zona ocidental da
394
Num relatório do Research Institute of America (Junho de 1964), afirmava-se: “Está em curso
uma terceira revolução industrial tão espectacular como as que resultaram da utilização da máquina a
vapor e da expansão da electricidade. Tem na origem a libertação da energia nuclear e termo-nuclear, a
transformação electrónica da energia em trabalho e a utilização da cibernética e das calculadoras para
libertar a energia humana das decisões rotineiras. Por volta de 1980 - concluía o relatório -, o mundo
industrial será tão diferente do mundo actual como este é diferente do mundo do século XIX” (apud A.
BERLE, “Propriété…, cit., 231).
395
PCF – 26,2%; MRP (Movimento Republicano Popular, que agrupava os resistentes cristãos) –
23,9%; SFIO – 23,4%. Nas eleições de 1951, o PCF obteve 27% dos votos, seguido dos gaulistas, com
22%.
396
Artigo no Rhein Neckarzeitung, de 1.12.1945, colhido em Filosofia do Direito, Vol. II, 4ª
edição (tradução de L. Cabral de Moncada), Coimbra, 1961. Joseph Schumpeter escreveu também que a
“a opinião quase geral parece ser a de que os métodos capitalistas não estarão à altura das tarefas da
reconstrução” (citado por T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 88).
271

Alemanha, tenham sido promulgadas, em 1946/47, leis que, em matéria de


nacionalizações, eram mais avançadas do que as previstas na Constituição de Weimar.
Em outros países, como a Checoslováquia, as nacionalizações (bancos, seguros,
transportes e outros serviços públicos, minas, aço, química, indústrias alimentares, todas
as grandes empresas) e a planificação pública da economia começaram logo no final da
Guerra, antes de os comunistas assumirem o poder.
Por toda a Europa, o surto de nacionalizações então registado esteve na base da
constituição de um sector empresarial do estado relativamente significativo. Pela sua
amplitude e significado, as nacionalizações enquadraram-se, mesmo, em objectivos de
transformação económica e social. “Findas as hostilidades – escreve Teixeira Ribeiro –,
as vozes dos povos vencedores ou libertados consonaram em exigir a nacionalização das
indústrias básicas ou das maiores empresas. De tudo houve um pouco: falou-se em
nome da ideologia socialista; reagiu-se contra o colaboracionismo dos grandes
industriais; pretendeu subtrair-se a política à pressão dos potentados financeiros e
libertar-se de monopólios a economia; sentiu-se a maravilha das coisas novas...”.397
397
Cfr. A Nova Estrutura…, cit., 7.
A problemática das nacionalizações ganharia projecção internacional mais relevante a partir do
momento em que nos países do chamado Terceiro Mundo se começaram a desenhar movimentos no
sentido de tais países chamaram a si a soberania sobre os seus próprios recursos naturais, mesmo que para
tanto houvesse que nacionalizar as empresas estrangeiras que até aí as exploravam. Tal aconteceu nos
países recém-chegados à independência, mas também em outros países, constituindo casos pioneiros a
nacionalização do petróleo persa pelo governo de Mossadegh (1951) e a nacionalização do Canal do Suez
pelo governo de Nasser (1956). Mossadegh acabou por ser morto; O Egipto só não foi atacado
militarmente pelo Reino Unido e pela França porque a URSS anunciou ao mundo que, se tal acontecesse,
colocaria as suas Forças Armadas ao lado das do Egipto.
Apesar da reacção, por vezes violenta, dos países capitalistas dominantes, estas ideias foram
ganhando terreno e acabaram por ser consagradas em importantes textos da ONU que hoje integram o
direito internacional, embora não tenham recolhido o apoio das potências capitalistas.
É o caso da Revolução 1.803 da Assembleia Geral da ONU, de 14-12-1962, acerca da Soberania
Permanente sobre os Recursos Naturais, onde se prescreve que “a nacionalização, a expropriação ou a
requisição deverão basear-se em razões ou motivos de utilidade pública de segurança ou de interesse
nacional, reconhecidos como prevalecentes sobre os simples interesses particulares ou privados, tanto
nacionais como estrangeiros. Nestes casos, o proprietário receberá uma indemnização adequada, de
acordo com as regras em vigor no estado que adoptar estas medidas no exercício da sua soberania e em
conformidade com o direito internacional. Sempre que o problema da indemnização dê lugar a
controvérsia, deverão esgotar-se os meios de recursos nacionais do estado que toma essas medidas. No
entanto, por acordo entre os estados soberanos e outras partes interessadas, o diferendo poderá ser
submetido à arbitragem ou a decisão judicial internacional”.
Este foi um dos argumentos invocados pelo Governo de Salvador Allende para justificar o seu
direito de nacionalizar as empresas americanas que exploravam as principais minas de cobre chilenas.
Não lhe valeu de nada, como é bem sabido: um golpe violento da CIA apeou-o do poder que ganhara em
eleições livres. Já depois deste crime contra o direito dos povos a dispor de si mesmos, a Assembleia
Geral da ONU aprovou, em 12.12.1974, a Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, que
ultrapassou certas limitações constantes daquela Resolução de 1962.
Nesta Carta, proclama-se que “cada estado tem o direito soberano e inalienável de escolher o seu
sistema económico, bem como os seus sistemas político, social e cultural, de acordo com a vontade do
seu povo, sem ingerência, pressão ou ameaça exterior de qualquer espécie” (art. 1º), acrescentando o nº 1
do art. 2º que “cada estado detém e exerce livremente uma total e permanente soberania sobre todas as
272

Foi assim em países que vieram a integrar a comunidade socialista, nomeadamente


na Checoslováquia (nacionalização total das indústrias de guerra e das minas, bem
como das grandes empresas nas restantes indústrias), na Polónia (nacionalização das
empresas com mais de 50 operários) e na Jugoslávia (nacionalização de 80% da in-
dústria, com base no confisco da propriedade dos alemães e dos italianos e dos que
tinham colaborado com o nazi-fascismo).
Mas também no Reino Unido e na França as nacionalizaçõe atingiram dimensão
considerável: o Banco de Inglaterra, as minas de carvão, as telecomunicações, o gás e a
electricidade, no 1º caso; o Banco de França, o Banco da Argélia e os quatro maiores
bancos comerciais, os seguros, o gás e a electricidade, as minas de carvão e os
transportes aéreos, no 2º caso. No que se refere à Itália, o estado italiano assimiu a
propriedade ou o controlo das empresas de vários sectores da economia (energia,
transportes, construção, química e produção alimentar), nomeadamente através de
algumas holdings públicas, em especial o IRI (Instituto per la Ricostruzione
Industriale), o INPS (Instituto Nacional para a Segurança Social) e o ENI (Instituto
Nazionale Idrocarburi), os dois primeiros criados pelos governos fascistas, o terceiro
criado já no início dos anos 1950, Mesmo na RFA, o estado federal e os Länder
controlavam, no início dos anos 1950, a maioria dos bancos, três quartos das fábricas de
alumínio, dois terços das centrais eléctricas, 40% da produção de carvão e de ferro.
Naquele primeiro grupo de países, porém, praticamente só escaparam à
nacionalização empresas médias ou pequenas, e os proprietários expropriados nada
receberam a título de compensação pela propriedade de que foram privados (em regra
por serem acusados de colaboracionismo). Ao invés, nos países europeus que
permaneceram na órbita do capitalismo continuaram no sector privado capitalista muitas
empresas de grande dimensão cuja actuação poderia opor-se à prossecução dos ob-
jectivos definidos pelo estado para o sector nacionalizado. Daí a possibilidade de este
vir a funcionar como fonte de custos baixos e de lucros elevados dos grandes

suas riquezas, recursos naturais e actividades económicas, incluindo a sua posse e o direito de as utilizar e
de delas dispor”, e especificando a alínea c) do nº 2 que “cada estado tem o direito de nacionalizar, expro-
priar ou transferir a propriedade de bens estrangeiros, casos em que deverá pagar uma indemnização
adequada, tendo em conta as suas leis e regulamentos e todas as circunstâncias que julgue pertinentes.
Sempre que a questão da indemnização dê lugar a diferendo, este será decidido de acordo com a
legislação interna do estado que tomou as medidas de nacionalização e pelos tribunais desse mesmo
estado, salvo se todos os estados interessados acordarem livremente em procurar outros meios pacíficos,
na base da igualdade soberana dos estados e em conformidade com o princípio da livre escolha dos
meios”. [O texto destes dois documentos da ONU vem publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº
245, Abril/1975, 79-82 e 376-393].
273

monopólios privados, fortalecidos com as importantes somas pagas, pelas próprias


empresas nacionalizadas ou pelo estado, a título de indemnização.398
Muitos acreditaram, naquela altura, que “as nacionalizações na França e na In-
glaterra podem bem servir do primeiro degrau do socialismo”, por se entender que ”o
significado profundo das nacionalizações” residia em que “elas traduzirão sempre esse
propósito firme, que os povos caldearam durante a guerra, de impregnar de humanidade
a economia” e por se esperar que as circunstâncias conduzissem a Europa para uma “era
em que, de um modo ou de outro, a economia vai ser posta efectivamente ao serviço do
homem”. (Teixeira Ribeiro)
E a verdade é que, conjunturalmente, as condições resultantes dos dois conflitos
mundiais que dilaceraram a Europa num intervalo de trinta anos (1914-1944/45)
obrigaram o estado a ocupar-se das pessoas. Como escreve Rogério Soares, “os
sobressaltos das duas guerras e dum modo particular da última, lançaram sobre o Estado
a responsabilidade de minorar o sofrimento de milhões de indivíduos particularmente
tocados pelo conflito. A sorte dos refugiados, as cidades destruídas, a manutenção de
legiões de estropiados hão-de fazer com que o ente público se veja a braços com uma
tarefa nova: a de se constituir numa garantia contra a injustiça do destino”. O estado
teve de assumir-se, perante os cidadãos, como a garantia de um certo padrão de vida,
porque, neste “século militante”, a revolução igualitária impôs o reconhecimento da
primazia da democracia material sobre a democracia formal, sob o lema de que
“ninguém tem a obrigação de ser infeliz” e “ninguém tem o direito de ser infeliz”.399

Mas a expectativa colocada nas nacionalizações como uma etapa preparatória e


anunciadora de uma sociedade socialista na Europa ocidental não veio a confirmar-se. A
este respeito, era inteiramente correcta, a nosso ver, a alternativa formulada em 1947
por Teixeira Ribeiro: “ou as nacionalizações prosseguem até eliminar do sector privado
todas as grandes empresas, ou as grandes empresas hão-de ameaçar permanentemente a
política do sector público”.
Se as perspectivas abertas com as nacionalizações tivessem conduzido à utilização
do sector público empresarial claramente ao serviço de uma política global de
desenvolvimento económico e social com vista à satisfação das necessidades individuais
e colectivas das populações, numa lógica não capitalista, poderia esperar-se que elas
398
O caso mais conhecido de nacionalização sem indemnização foi o das Usines Renault, cujos
proprietários tinham colaborado ostensivamente com o ocupante alemão.
399
Ver, a este propósito, as belas páginas de Rogério SOARES, ob. cit., especialmente 88-92.
274

abrissem o caminho para uma economia não capitalista, uma “economia ao serviço do
homem”. Mas a orientação adoptada traduziu-se em colocar o sector empresarial do
estado ao serviço dos lucros privados, numa solução de capitalismo de estado, em que a
propriedade pública se afirmou como uma nova forma de propriedade capitalista
(propriedade do estado capitalista).
É claro, hoje, que as nacionalizações verificadas em vários países da Europa
Ocidental não constituíram o “primeiro degrau do socialismo”, porque as
nacionalizações não prosseguiram “até eliminar do sector privado todas as grandes
empresas”, mas, fundamentalmente, porque, nesses países, se manteve inalterada a
natureza capitalista do estado, um estado que, nas palavras de François Perroux, “nunca
é neutro” (e “não é certamente independente dos grandes interesses: estes assediam-no e
ocupam-no mesmo”), antes é a “expressão das classes dominantes”, “largamente de-
pendente do capitalismo dos monopólios”.400
Neste quadro institucional, a propriedade estadual dos meios de produção
afirmou-se como uma nova (e a mais recente) forma jurídica da propriedade capitalista
(a propriedade do estado capitalista) a par da propriedade individual e da propriedade
corporativa.401 Por isso, como salienta Andrew Shonfield, “a empresa particular acabou
por considerar o grandemente reforçado sector público menos como um perigoso rival
do que como um aliado útil, de facto quase como uma garantia – pois era agora tão
vasto e maciço que não poderia mover-se na direcção errada, por um instante sequer,
sem fazer encalhar o barco todo”.402
400
Cfr. L’économie du XXe Siècle, cit., 378 e 382.
401
No Anti- Dühring (ed. cit., 342) Engels observa que “de quanto mais forces produtivas (o
estado capitalista) se apropria, tanto mais se converte num verdadeiro capitalista colectivo.(…) O
capitalismo nõ se suprime, muito pelo contrário, acentua-se; mas, chegado ao ponto máximo, muda de
direcção e o estado, proprietário das forças produtivas, não é a solução do conflito, mas tem o meio, a
chave da solução”, que só pode realizar-se “tomando a sociedade posse, de um modo aberto e sem
rodeios, das forças produtoras que se subtraíram à sua direcção”.
402
Cfr. Capitalismo Moderno…, cit., 224. Em 1978, durante a discussão do Programa do
Governo na Assembleia da República, o então Ministro das Finanças, Doutor Manuel Jacinto Nunes,
explicava: “ As nacionalizações, a menos que o seu fim seja o estabelecimento de uma direcção central
total, destinam-se a coordenar e dirigir com o mínimo de burocracia as actividades para as quais a
iniciativa privada é inadequada ou politicamente perigosa. É uma das técnicas de controlo da economia e
uma ‘última ratio’ em relação ao poder económico quando o poder político não consegue dominá-lo por
outros meios”.
Algo de específico aconteceu relativamente às nacionalizações operadas em Portugal na sequência
da Revolução de 25 de Abril de 1974. Não porque o sector empresarial do estado fosse, em Portugal,
superior ao de outros países, no que toca à sua dimensão, aos sectores abrangidos, à percentagem do
investimento que representava no investimento agregado, ao peso no PIB do País, ao volume do emprego,
etc. Mas porque a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte em 1976 proclamava que “o
desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos
principais meios de produção” (art. 10º, nº 2), com o objectivo de “abolir a exploração do homem pelo
homem” (art. 9º); e afirmava que o objectivo da República era a “transição para o socialismo mediante a
criação de condições para o exercício do poder pelas classes trabalhadoras (art. 2º), com vista à sua
275

Foi neste pano de fundo que, no início da década de 1950, o capitalismo (europeu)
recuperou o fôlego, graças ao clima da guerra fria (e consequente corrida aos
armamentos), à acção do Plano Marshall, aos resultados das políticas keynesianas, aos
ganhos da política neocolonialista.

4.9.7. – A planificação da economia nos países capitalistas.

● A ‘planificação’ ao nível das grandes empresas privadas.


A coerência e o significado da planificação estadual nas economias capitalistas
só se compreenderão inteiramente depois de se explicarem as razões que levaram as
grandes empresas a planificar a sua actividade antes mesmo de os estados capitalistas
planificarem a sua intervenção na esfera económica.
A reacção contra a própria palavra ‘planificação’ perdeu força quando a
utilização de novas tecnologias altamente evoluídas e dispendiosas (só viáveis para
elevados volumes de produção) e a consequente necessidade de tempo e de capital
forçaram a grande indústria a planificar a sua actividade. Só então a planificação
adquiriu, em determinados meios, um certo grau de respeitabilidade.
Enquanto o estado da técnica e a situação geral do capitalismo se revelaram
compatíveis com a existência de numerosas empresas relativamente pequenas em cada
ramo industrial, o mecanismo dos preços e a regulação ex post pelo mercado entendiam-
se suficientes para assegurar a conveniente satisfação das necessidades dos
consumidores, para prover as empresas da mão-de-obra, das matérias-primas e dos
equipamentos necessários à produção e para lhes permitir, sem grandes riscos, a venda
dos produtos fabricados. Quando esse processo deixou de ser seguro, surgiu a
planificação como necessidade imposta às empresas pelo próprio desenvolvimento do
capitalismo.403
A evolução tecnológica passou a exigir investimentos cada vez mais vultuosos e
a obrigar as empresas a antecipar de meses ou de anos as previsões acerca do
comportamento da procura - o que, para além do risco maior, obriga a efectuar
avultadas despesas preparatórias dos próprios investimentos. Trata-se dos estudos de
prospecção de mercados (internos e externos), da elaboração de protótipos, da previsão
acerca da rentabilidade do investimento projectado, da localização das unidades de
“transformação numa sociedade sem classes” (art. 1º). Daí o ataque cerrado às nacionalizações e à
reforma agrária e o ataque a uma constituição dirigente que veiculava um tal projecto político.
403
Sobre a problemática da “planificação industrial”, cfr. J. K. GALBRAITH, The New
Industrial…, cit., especialmente o cap. III, 22ss.
276

produção, da análise da situação no que toca à existência das matérias-primas


necessárias, da mão-de-obra especializada e das disponibilidades financeiras (a obter
por autofinanciamento ou mediante recurso ao crédito) requeridas para financiar o
empreendimento durante o período (longo, bastante longo, por vezes) que medeia entre
o início das despesas e a percepção dos lucros. Trata-se, depois de iniciado o processo
produtivo, de assegurar a sua execução e de organizar os circuitos de distribuição de
modo a garantir o conveniente escoamento da produção.
Já se vê que estas exigências só podem ser satisfeitas por grandes empresas, o
que permite compreender como a evolução das técnicas de produção fez, a certa altura,
‘rebentar’ os quadros do capitalismo atomístico assente numa multidão de pequenas
empresas, para abrir caminho à concentração do poder económico num pequeno número
de grandes empresas, características do capitalismo monopolista.
A evolução tecnológica foi, pois, a causa primeira da introdução da planificação
económica ao nível das grandes empresas. Como salienta Galbraith404, “the planning
itself, is inherent in the industrial system”. E os planos das empresas visam, sem dúvida,
reduzir ao mínimo a incerteza e as suas consequências: “a planificação - escreve o
economista americano405 - consiste na previsão das acções exigidas entre o início e o
termo da produção e na preparação para levar a cabo essas acções. Consiste também na
previsão e na organização de medidas para enfrentar quaisquer ocorrências não
programadas, favoráveis ou não, que possam acontecer ao longo do processo”.
Mas a evolução tecnológica foi também um poderoso factor de concentração e
de centralização do capital. E a verdade é que a planificação económica das empresas
capitalistas só foi ‘exigida’ quando se chegou ao estádio do capitalismo monopolista,
como também é verdade que só poderosas empresas, que gozem de um poder de
monopólio mais ou menos acentuado, estão em condições de elaborar planos que lhes
ofereçam boas perspectivas de ser realizados.
Só as empresas ‘monopolistas’ (em razão do seu pequeno número e da sua
grande dimensão) podem aspirar, com efeito, a controlar o mercado, e o controlo do
mercado (até à destruição da sua lógica) é, no fundo, uma das faces da planificação
levada a efeito por essas empresas. “Estas devem substituir o mercado pelo plano” -
escreve Galbraith406 - no sentido de que o plano das empresas deve substituir o
mecanismo dos preços (como mecanismo determinante dos bens e das quantidades a
404
Cfr. J. K. GALBRAITH, últ. ob. cit., 197.
405
Cfr. J. K. GALBRAITH, últ. ob. cit., 25.
406
Cfr. J. K. GALBRAITH, últ. ob. cit., 24-26.
277

produzir e dos preços de venda) pela fixação prévia, por parte das empresas, dos bens e
das quantidades a produzir, dos preços a pagar pelos consumidores e das próprias
margens de lucro. Esta a explicação dada pelo próprio Galbraith: “uma empresa não
pode, utilmente, prever e programar a acção futura ou preparar-se para as contingências
se não souber quais serão os seus preços e as suas vendas, assim como os seus custos,
inclusive os custos do trabalho e do capital e se não souber o que estará disponível a
esses custos. Se o mercado é inseguro, não poderá conhecer esses dados. E não poderá,
por isso, estabelecer os seus planos (...), a menos que o mercado também ceda ante a
planificação. Muito daquilo que a empresa considera como planificação consiste em
tornar mínimas ou em fazer desaparecer as influências do mercado”.
A concluir o Capítulo III de The New Industrial State, Galbraith é muito claro na
afirmação de que “nas economias ocidentais, os mercados são dominados pelas grandes
empresas. Estas estabelecem os preços e tentam garantir uma procura para o que têm
para vender”. E, dentro da lógica da teoria da convergência dos sistemas, defende que
“a grande empresa moderna e o aparelho de planificação socialista são adaptações
diferentes da mesma realidade”, querendo com isto significar que a ‘morte do mercado’
é ditada pela tecnologia e não pela ideologia.

Através de acordos (expressos ou tácitos, mas igualmente eficientes), as


empresas ‘monopolistas’ controlam os preços que impõem aos consumidores. Assim
evitam as flutuações derivadas de variações da oferta e da procura, sendo certo que a
estabilidade dos preços é um elemento importante para se poder planificar com
segurança. Através do controlo da utilização das patentes de invenção, através da
publicidade e das técnicas de vendas, as empresas monopolistas conseguem colocar no
mercado a espécie de produtos que mais lhes interessa produzir e nas quantidades mais
convenientes.
Nos primeiros tempos do capitalismo industrial, a taxa de lucro das empresas
dependia do nível dos custos que cada uma delas conseguia, uma vez que os preços se
estabeleciam no mercado por força do jogo da oferta e da procura e da concorrência
entre um grande número de pequenas empresas, cada uma das quais não tinha qualquer
poder para influenciar o mercado e os preços. Uma vez atingida a fase do capitalismo
monopolista, os consumidores (o ‘mercado’) passaram a ser comandados pelos planos
das grandes empresas monopolistas e a planificação transformou-se em instrumento
necessário da prossecução dos objectivos próprios das empresas capitalistas.
278

● Os primórdios da planificação pública.


Se a planificação levada a efeito pelas grandes empresas que controlam os
sectores altamente concentrados da economia é uma característica fundamental do
capitalismo na sua fase monopolista, a planificação da economia assumida como tarefa
dos estados capitalistas é, sem dúvida, o ponto mais alto e mais acabado da intervenção
do estado tal como ela se processou (por força de exigências resultantes da própria
evolução do capitalismo e da sua salvaguarda), particularmente a partir da Primeira
Grande Guerra.407
De início, porém, assim como a concentração foi combatida e negada durante
muitos anos, em razão da paternidade marxista da respectiva teoria e em homenagem às
virtudes do capitalismo de concorrência (identificado com o próprio capitalismo), assim
também a planificação foi proscrita nos países capitalistas, por se entender que
planificação significava socialismo, e por se julgar a sua prática incompatível com a
liberdade de empresa, considerada esta como ponto fundamental da ‘filosofia’
inspiradora do capitalismo.
Esta era, contudo, uma atitude ‘idealista’, que não resistiria à prova dos factos. A
partir da última década do século XIX, o movimento de concentração acelerou-se, nos
termos e por força dos factores que atrás referimos. Neste quadro, a expansão colonial
suscitou a primeira reflexão de conjunto acerca do apoio que o estado podia prestar ao
grande capital privado.
Com a Guerra de 1914-18, as múltiplas intervenções do estado na vida
económica passam a tomar uma forma global, e a necessidade de ‘planificar’ a
intervenção do estado faz-se sentir, principalmente na Rússia e na Alemanha. No
contexto de uma economia militarizada, a planificação consiste então,
fundamentalmente, em repartir concertadamente entre os principais ‘monopólios’ as
matérias-primas e os recursos disponíveis, bem como as encomendas do estado. A
guerra ‘empurrou’ definitivamente o estado para o campo da economia, exigindo do
estado novas e múltiplas formas de presença e intervenção na ordem económica para
poder preencher a sua função nos quadros do sistema. As dificuldades que o capitalismo
vinha experimentando, bem como a complexidade e a importância das intervenções
estaduais, impunham que o sector privado (altamente ‘monopolizado’) e o estado
concertassem as suas actuações e que o estado planificasse as suas políticas, em
407
Em vez de falar de planificação pública nos países de economia capitalista, Maurice Dobb
prefere falar de regulamentação ou de programação. Cfr. M. DOBB, Pianificazione, cit., 1123.
279

articulação com as grandes empresas, obrigadas a planificar a sua própria actividade, à


medida que progredia a tecnologia e a concentração do capital. Falam alguns de
administração concertada e de economia concertada.
E é claro que a situação real do capitalismo não escapava aos autores mais
lúcidos, empenhados em o salvar. Em 1926, escrevendo sobre as crises do capitalismo,
Keynes defendia:

“a cura para estas questões deve ser procurada, em parte, no controlo deliberado da
moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, na compilação e divulgação, em
larga escala, de dados relativos à situação dos negócios (...). Estas medidas envolveriam a
sociedade no exercício de uma inteligência directiva, através de um apropriado órgão de acção
sobre muitas das complexidades intrínsecas dos negócios privados, mas que, entretanto,
deixaria a iniciativa e as empresas privadas livres de obstáculos”.408

Na General Theory (1936) sublinha a necessidade de “uma acção


inteligentemente coordenada” para assegurar a utilização mais correcta do aforro
nacional, a necessidade da “existência de órgãos centrais de direcção”.409
Em 1939 Keynes abordou especificamente a questão do planeamento público,
defendendo que “nas condições actuais nós precisamos, se queremos prosperidade e
lucros, (…) muito mais planeamento central do que temos presentemente. (…) A
intensificação das crises cíclicas e o crescente carácter crónico do desemprego
mostraram que o capitalismo privado está em declínio como meio de resolver o
problema económico”. E em 1943 insiste: “Se dois terços ou três quartos do
investimento total são levados a cabo ou podem ser influenciados por entidades públicas
ou semi-públicas, um programa de longo prazo de natureza estável poderá ser capaz de
reduzir a amplitude potencial das flutuações para limites bastante mais estreitos do que
antes.”410
A crise económica que nos anos trinta quase prostrou o capitalismo levou os
vários governos a lançar mão de todos os meios de salvação, entre eles a planificação.
Na França, surgem o Plano Tardieu (1929) e o Plano Marquet (1934). Na Itália, foi
apresentado o plano de secagem dos pântanos da planície aluvial do Tibre. Nos EUA, o
New Deal lançaria, em 1933, o Tenessee Valley Authority, vasto plano de
desenvolvimento agrícola e industrial do vale do Tenessee. Na Alemanha, com a subida

408
Cfr. J. M. KEYNES, The End…, cit., 47/48 [Sublinhados nossos].
409 ?
Cfr. Notas Finais com que encerra a General Theory, em J. KEYNES, The General Theory…,
cit., 378/379. Ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 81/82.
410
São trechos colhidos em H. J. SHERMAN, ob. cit., 388.
280

do nacional-socialismo ao poder, acelerou-se a cartelização obrigatória (tal como na


Itália de Mussolini) e a regulamentação da economia foi confiada ao Ministério da
Economia (1934) e, depois de 1936, a um gabinete chefiado por Goering, encarregado
da elaboração do Plano de Quatro Anos (o primeiro plano público de alcance nacional
concebido para uma economia capitalista).
Pode dizer-se, em geral, que todas as experiências corporativas posteriores aos
anos 1930, reunindo no seio de organismos profissionais de constituição obrigatória
representantes patronais e trabalhadores de cada profissão (muitas vezes na companhia
de um representante do estado) e atribuindo às profissões organizadas um poder
regulamentar, representam a ambição de coordenar uma economia essencialmente
concentrada e de harmonizar os interesses de grupos animados por tendências
monopolís-ticas. Aos organismos profissionais (corporações) era atribuída não só a
função de decidir da orientação da economia (e em alguns casos a produção foi
submetida a um regime rigoroso de disciplina e de organização), mas ainda a de
determinar o nível dos preços e dos rendimentos, assim se chegando a uma espécie de
planificação corporativa.411

Apesar do que fica dito, Jean Romeuf pôde escrever que “em 1939, os nossos
manuais de economia política ignoravam ainda deliberadamente a existência de uma
ciência da planificação, e só alguns especialistas conheciam os nomes, e mais raramente
as obras, dos peritos soviéticos da planificação”.412
Nem por isso a evolução do capitalismo deixava de se verificar. A eclosão da
Segunda Guerra Mundial haveria de marcar, também neste aspecto, um passo decisivo.
O progresso tecnológico e a concentração capitalista aceleraram-se.
Por força das circunstâncias, o estado capitalista adquiriu, em certas condições, a
propriedade de indústrias ou ramos em dificuldades financeiras, ou cuja exploração
apresenta riscos excessivos ou baixas taxas de lucro, ou que só dão lucro ao fim de
vários anos, ramos pouco atractivos para o sector privado, mas necessários para o
desenvolvimento da produção em geral.413

411
Cfr. A. MARCHAL, Sistemas…, cit., 221-225.
412
Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 55.
413
Eric Hobsbawm põe em evidência os resultados altamente positivos (quanto à área cultivada e
quanto à produtividade) da planificação governamental sistemática levada a cabo no âmbito da
agricultura durante o período da Segunda Guerra Mundial na Grã-Bretanha: “A agricultura britânica –
conclui E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 55/56 – deixou de constituir um modo de vida
para se tornar, de acordo com os os padrões internacionais, uma indústria eficiente”.
281

Pelas razões que atrás enunciámos, o estado tornou-se proprietário de empresas


fornecedoras de matérias-primas (sector mineiro, v.g.) ou de serviços diversos (energia,
transportes) de que as grandes empresas privadas são os principais clientes,
beneficiando, enquanto tais, de condições e tarifas particularmente favoráveis. O estado
controlou, em alguns países, uma parte importante dos sectores bancário e segurador.
Em vários países da Europa capitalista o surto de nacionalizações levou à
constituição de sectores empresariais públicos relativamente importantes, a justificar e a
exigir que o estado planificasse a sua actividade como produtor.
As necessidades de reconstrução levaram à elaboração de planos nacionais de
reconstrução e desenvolvimento (por exemplo, na França, na Itália, na Holanda). A
pressão do capitalismo americano, embalado pela produção de guerra, as necessidades
dos países capitalistas da Europa destruídos pelos bombardeamentos e as exigências da
‘guerra fria’ explicam a elaboração do Plano Marshall, administrado, no quadro
europeu, pela Organização Europeia de Cooperação Económica (O.E.C.E.), que exigiu
dos países beneficiários a elaboração e a coordenação de projectos de aplicação dos
fundos (uma espécie de planificação).
Depois, o desenvolvimento do comércio internacional, a importância crescente
das exportações para assegurar o desenvolvimento económico, a internacionalização da
presença dos grandes monopólios tudo obrigou à intervenção planificada do estado, no
sentido de efectuar previsões, de recolher e organizar informações, de modo a comple-
mentar a programação privada, em correspondência com as exigências da nova
dimensão da economia. Por outro lado, a competição entre o capitalismo e o socialismo
activou-se e o êxito dos planos quinquenais soviéticos não deixou de pesar no
convencimento dos países capitalistas a adoptarem também a técnica da planificação.

● O significado da planificação indicativa.


A planificação levada a efeito pelos estados dos países capitalistas explica-se, no
fundo, pela mesma lógica, atrás exposta, que levou as grandes empresas a planificar as
suas actividades, tentando reduzir as incertezas do mercado, destruindo-o como
mecanismo de direcção e comando da economia.
Com o progresso técnico, foi aumentando a dimensão das empresas dominantes,
aumentando do mesmo passo as exigências da produção em massa: maiores somas de
capitais, recursos técnicos mais sofisticados, matérias-primas mais diversificadas, mão-
282

de-obra mais qualificada, mercados mais vastos. O que significa maiores incertezas, que
obrigam a uma planificação mais cuidada e a prazos mais longos.
O carácter social da produção e das forças produtivas foi-se acentuando. As
empresas e mesmo os sectores de actividade económica tornam-se cada vez mais
interdependentes, a tal ponto que começa a ficar clara a necessidade de ‘organizar’, de
‘concertar’ a economia. Ao fim e ao cabo, tratava-se de ‘concertar’ entre si os ‘planos’
dos grandes grupos ‘monopolistas’, até porque a ‘planificação’ ao nível das empresas
exige uma certa ‘coerência’ entre os vários sectores de actividade, isto é, exige uma
certa ‘coordenação’ ou ‘planificação’ da economia nacional no seu conjunto.
Alguns autores sustentam mesmo que, para o planeamento ser eficaz, a
distribuição da produção na indústria deve ser de tal ordem que cerca de 80% da
produção provenham de 20% das empresas, considerando impossível a direcção da
economia quando 60% da produção couber a 40% das empresas.414 A planificação
(pública ou privada) não seria possível em economias capitalistas cuja estrutura
económica assentasse em uma multidão de pequenas e médias empresas. Nos países de
economia capitalista, a planificação não foi uma opção livre dos economistas ou dos
políticos, antes foi uma ‘exigência’ da concentração monopolista.
Toda a intervenção do estado nas economias capitalistas adquire em regra um
sentido em larga medida coincidente com os objectivos da ‘planificação’ e do ‘controlo’
do mercado pelas grandes empresas. Com efeito, certas medidas que os estados adoptam
vêm frequentemente contribuir (directamente ou através da acção sobre os custos) para
que as empresas ‘monopolistas’ possam praticar preços fixados à margem das condições
que seriam ditadas pelo jogo da oferta e da procura. Lembre-se, a título de exemplo, a
actuação do estado na orientação da política de salários; na fixação das taxas de juro; na
concessão de subvenções e benefícios (ou isenções) fiscais; na fixação de tarifas
preferenciais por parte das empresas e serviços públicos (de que beneficiam em maior
medida os principais clientes - as grandes empresas privadas); na organização de
esquemas de crédito e de seguro de crédito à exportação; na concessão de subsídios às
empresas exportadoras e no estabelecimento de direitos alfandegários protectores; no
financiamento da investigação, quer seja realizada em centros públicos quer nas
empresas privadas, etc.
O progresso técnico tem que ver com o processo da planificação económica.
Como salienta François Perroux:
414
Cfr. A. SHONFIELD, últ. ob. cit., 138.
283

“ (o progresso técnico) já não é entendido como uma variável que seria subtraída à
decisão dos poderes públicos: estes estimulam a investigação fundamental e aplicada; formam
investigadores e trabalhadores qualificados; dedicam-se a prever, por mais imperfeitamente que
seja, as grandes vagas de transformações técnicas, a tornar mais curtos os períodos que separam
a invenção da aplicação experimental e do uso generalizado na indústria. Tendo em conta a
natureza de alguns grandes progressos do século XX, na exploração das novas energias, por
exemplo, a acção directa dos poderes públicos é insubstituível; ela desdobra-se em subvenções,
em participação nos riscos e no financiamento da inovação das empresas privadas e dos seus
grupos”.

O estado actua, por outro lado, no sentido de reduzir as dificuldades e incertezas


da própria planificação das empresas, reunindo e divulgando informações 415; actuando
sobre as taxas de crescimento da população e sobre a percentagem da população activa
em relação à população total; promovendo a adequada preparação de mão-de-obra e
intervindo para assegurar a sua conveniente distribuição pelos vários ramos de
actividade; procurando assegurar a necessária coerência no desenvolvimento das
chamadas infra-estruturas sociais (planos de urbanização, parques industriais, estradas,
portos, vias férreas, etc.).
Neste contexto, a intervenção do estado na ordem económica torna-se um
elemento essencial para que possa prosseguir-se a lógica do modo de produção
capitalista. Naqueles sectores do “sistema industrial” onde a tecnologia avançada, com
uma investigação e exploração demoradas, acarreta para as empresas a necessidade de
suportar um período de produção muito longo e um vultuoso investimento de capitais, é
necessária a intervenção do estado em larga escala para estabelecer os preços e garantir
a procura, ‘suspendendo’ assim o funcionamento do mercado e eliminando a sua
incerteza: “o estado - escreve Galbraith 416
- garante um preço mínimo com uma
margem conveniente para cobrir os custos. E compromete-se a adquirir o que for
produzido ou a compensar integralmente a empresa em caso de cancelamento do
contrato”.
E compreende-se que este complexo esquema de intervenção do estado careça
de ser ele próprio coordenado, ‘planificado’, até para que as empresas fiquem a saber
com mais segurança aquilo com que podem contar. Daí a planificação pública da
economia. Daí também que, continuando a citar Galbraith, “a economia inteiramente

415
Acerca da importância económica da informação no mundo actual, ver F. PERROUX, “Le
Quatrième…, cit., 4ª parte, L’information économique, 347ss.
416
Cfr. J. K. GALBRAITH, The New Industrial…, cit., 31.
284

planificada, longe de ser impopular, é carinhosamente encarada por aqueles que melhor
a conhecem”.417
Foram as pequenas empresas, mais ou menos condenadas pela lógica da
concentração monopolista, as que mais protestaram contra os ‘abusos’ da intervenção
do estado, porque esta não se desenvolve ao sabor dos seus interesses. É que o estado
intervém a ‘planificar’ uma economia já de certo modo planificada ao nível das grandes
empresas (que controlam os sectores mais importantes da actividade económica), e não
admira, por isso, que a planificação pública se traduza numa tentativa de tornar
coerentes entre si os planos dos grandes grupos monopolistas, limando as dificuldades
que possam resultar da concorrência entre eles e conjugando-os, numa base ‘realista’,
com as possibilidades de intervenção e de apoio do estado.
Fala-se, a este propósito, de economia contratual para significar a existência de
um sistema de compromissos colectivos entre os vários grupos monopolistas e entre
estes e o estado, assentes em princípios de boa fé idênticos aos que regulam as relações
contratuais privadas (do ponto da vista da administração pública, fala-se de
administração contratual), algo que vai além do mero diálogo entre o sector privado e o
estado, que caracterizaria a economia concertada.418
No quadro da planificação levada a cabo pelo estado capitalista, “o plano é antes
de mais uma informação sobre o possível”, desempenhando, “no domínio económico, o
mesmo papel de um mapa de estradas no domínio dos transportes”. 419 Os empresários
recorrerão ou não a esse mapa, conforme o seu interesse. A razão parece estar, pois, do
lado dos que entenderam que “esta ingerência do estado na vida económica conduz a
subtrair, primeiro os indivíduos e depois as empresas, a certos riscos. Economicamente
falando, esta atitude identifica-se com um princípio de segurança [sublinhado
nosso].”420 Andrew Shonfield sabe do que fala quando afirma que “as grandes
sociedades anónimas estão interessadas na planificação como um meio de reduzir as

417
“Quando Selwyn Lloyd (ministro das Finanças conservador) entrou no Governo, já defendia
que uma planificação das despesas a longo prazo era, como outras coisas em que ele acreditava, algo que
relevava do senso comum”. Assim se exprime Samuel Brittan (apud E. MANDEL, Le Troisième Âge…,
cit., 3, 207/208), que explica ter sido na Conferência organizada em Brighton pela Federação das
Indústrias Britânicas (Novembro/1960) que se traçaram os planos para relançar a indústria britânica nos
cinco anos seguintes. Daí saiu a ideia de que “valia a pena reunir as previsões e os planos com base nos
quais as empresas vinham já trabalhando, cada uma por si, para ver se todos eram compatíveis”.
418
Cfr. J.-P. COURTHÉOUX, “Problèmes…, cit., 795.
419
Cfr. FOURASTIÉ/COURTHÉOUX, La planification …, cit., 40.
420
Ugo Papi, citado por E. MANDEL, Traité…, cit., III, 206.
285

incertezas do investimento e de realizar o desenvolvimento ordenado dos seus


mercados.”421
Manuel Jacinto Nunes resume assim o essencial deste ponto:422

“o plano indica aos produtores as condições indispensáveis para que os seus objectivos
particulares sejam compatíveis entre si. Ao mesmo tempo, procura assegurar por meios
indirectos a realização das finalidades desejáveis do ponto de vista nacional. O plano não se
apresenta portanto como rival do lucro, mas sim como instrumento da sua realização, pelo
esforço de eliminação dos riscos da incoerência dos planos individuais e pelas ajudas, financeira
e de outra natureza, que os poderes públicos proporcionam às empresas cujos projectos se
integram nos objectivos do plano. O plano funciona, na expressão de Pierre Massé, como um
redutor de incerteza”. [sublinhado nosso]

Têm razão, a nosso ver, todos os que entendem que é esta a verdadeira natureza
da ‘planificação’ levada a cabo pelos estados capitalistas: em relação às grandes
empresas, funciona como uma garantia de segurança, serve-lhes como um largo estudo
do mercado, esforçando-se por evitar ‘engarrafamentos’ da produção e duplos empregos
e procurando conciliar os antagonismos porventura existentes entre grupos capitalistas
rivais, ao mesmo tempo que salvaguarda a liberdade das empresas em matéria de
investimentos e de orientação da produção.
O poder dessas grandes empresas sobre os órgãos de planificação é de tal ordem,
que François Perroux pôde escrever que “nas estruturas actuais, a moeda e o Plano são a
favor das unidades de produção e dos grupos económicos e financeiros mais
poderosos”.423 E Shonfield afirma sem rodeios que “o Plano (francês) reflecte, em
grande parte, as suas ideias [as ideias das grandes sociedades anónimas] ou, pelo menos,
um compromisso entre os seus desejos e os dos funcionários responsáveis pela política
económica do Governo”, acrescentando que os funcionários “provenientes do ministério
de tutela de um determinado ramo de comércio ou indústria actuam, com bastante
frequência, como se fossem, em certo sentido, os representantes desses interesses
sectoriais, em vez de funcionários nomeados para exercer vigilância sobre os mesmos,
em nome do interesse público.” E conclui: “não há dúvida de que a actividade da
planificação, tal como se pratica na França, reforçou a influência sistemática exercida
pelos grandes grupos de interesses (“large-scale business”) sobre a política eco-
nómica”.424

421
Cfr. A. SHONFIELD, ob. cit., 139.
422
Cfr. M. JACINTO NUNES, “A lógica…, cit., 26.
423
Cfr. F. PERROUX, “Le quatrième Plan…, cit., 8.
424
Cfr. A. SHONFIELD, Capitalismo Moderno, cit., 139.
286

Referindo-se, em geral, à planificação tal como foi sendo praticada na Europa


Ocidental do após-guerra, Shonfield escreve que “os principais grupos de interesses são
reunidos e encorajados a concluir uma série de negociações sobre o seu futuro
comportamento, o que terá como efeito a progressão dos eventos económicos pelos
rumos desejados. O plano - conclui o professor de Londres - indica a direcção geral em
que os grupos de interesses, incluindo o estado nas suas diversas vestes económicas,
concordaram que queriam seguir”.425
Pelo que toca a Portugal, é F. Pereira de Moura quem afirma que “a ‘audiência
dos interessados’ nos trabalhos do planeamento industrial português reduz-se, entre nós,
à prestação de informações pelas empresas e, em certos casos, ao aproveitamento dos
mecanismos do plano para a defesa de posições particulares”, concluindo pela
existência de uma “espécie de ‘conluio’ tácito entre políticos, empresários e técnicos,
que transforma o Plano e o planeamento quase que numa frustração para a generalidade
dos portugueses”.426

● Planificação indicativa e planificação imperativa.


Do que não há dúvida é de que a planificação se tornou prática corrente nos
países capitalistas (consagrada mesmo em alguns textos constitucionais), tendo deixado
de questionar-se a sua necessidade, como cúpula da intervenção do estado, tal como ela
se processou nos ppaíses capitalistas após a Segunda Guerra Mundial.
A problemática da planificação ganhou relevo no conjunto dos temas da
ideologia económica. Passou a ser ‘útil’ afirmar que o sistema é planificado e que o
estado, actuando como representante dos interesses da colectividade, organiza não
apenas a vida económica, mas toda a estrutura social. O mito da planificação
transformou-se, a certa altura, num dos pontos de apoio de um certo cientismo, típico da
mentalidade tecnocrática característica da filosofia política do capitalismo
contemporâneo. A técnica da planificação passou a andar associada à ideia de que a
colectividade pode organizar projectos razoáveis e realistas e promover o
desenvolvimento, mediante a actuação do estado, desde que nesse sentido se mobilizem
bons técnicos, se disponha de um bom governo e se organize uma boa administração. O
desenvolvimento é assim apresentado como um problema técnico, e a planificação
apontada como um instrumento técnico indispensável ao serviço do desenvolvimento.

425
Cfr. A. SHONFIELD, últ. ob. cit., 231.
426
Cfr. F. P. MOURA, “As indústrias…, cit., 62.
287

Fala-se de planificação indicativa para significar que ela não pode aspirar a ser
um instrumento imperativo de direcção do processo económico. Em sistema capitalista,
o estado não pode impor os seus planos, não pode pôr em causa os direitos que derivam
da propriedade privada, nomeadamente a liberdade de empresa.
Mas o estado dispõe de meios indirectos que lhe permitem influenciar
(condicionar) o comportamento das (grandes) empresas privadas, de modo a conseguir
alcançar os objectivos planificados. O estado não dispõe do chicote, mas dispõe da
cenoura: através da disciplina jurídica da economia, o estado consegue que o sector
privado actue em conformidade com o previsto no plano (para o conseguir, oferecem-se
às empresas que colaborarem com o estado benefícios fiscais, crédito bonificado,
subsídios a fundo perdido, programas de construção de infra-estruturas e de formação
de mão-de-obra, podendo mesmo o estado assumir o compromisso de proceder a
alterações legislativas no que toca à legislação laboral, aos descontos para a segurança
social, etc.).
Por outro lado, nos países de economia capitalista, a planificação pública tem de
operar dentro dos limites e da lógica do próprio sistema, o que significa que ela só terá
viabilidade de execução se for ‘realista’ e só será ‘realista’ se respeitar e favorecer os
interesses dos grandes grupos monopolistas, se, de uma forma ou de outra, criar
condições mais favoráveis de lucro e de segurança naqueles sectores ou naquelas
regiões onde pretende incrementar os investimentos.427

No que se refere à planificação imperativa, ela é, em regra, considerada pelos


autores como um elemento essencial do socialismo. Poderá dizer-se que o elemento
definidor do socialismo é a natureza das relações de produção. É claro, porém, para os
clássicos do marxismo, que as contradições do modo de produção capitalista só serão
ultrapassadas pela abolição da propriedade capitalista e pela transferência dos meios de
produção para a propriedade social, uma vez conquistado o estado pelo proletariado
revolucionário.

427
Mesmo assim, a planificação pública no quadro do capitalismo pode permitir a adopção de
modelos de desenvolvimento assentes em opções idênticas às que foram adoptadas nos países da Europa
de Leste depois da 2ª Guerra Mundial. No fnall dos anos 1940, os planos do governo democrata-cristão de
Alcide De Gasperi deram clara preferência ao investimento em infraestruturas, sacrificando a produção de
bens de consumo, incluindo os consumos alimentares, mantidos em níveis inferiores aos de antes da
Guerra. Cfr. T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 125.
288

Engels é suficientemente claro a este respeito. No Anti-Dühring fala da


sociedade superadora do capitalismo como “uma sociedade que consiga organizar
harmonicamente as suas forças produtivas segundo um único e amplo plano”.
Em outro trabalho, é ainda mais explícito:

“O proletariado conquista o poder público e transforma, por força deste poder, os meios
de produção sociais, que se escapam das mãos da burguesia, em propriedade pública. Por este
acto liberta os meios de produção da qualidade de capital que tinham até aqui e dá ao seu
carácter social plena liberdade para se afirmar. Torna-se agora possível uma produção social de
acordo com um plano pré-estabelecido”.428

Parece claro que, uma vez estabelecida a propriedade pública dos meios de
produção sociais, a economia funcionará de acordo com um plano pré-estabelecido: “a
anarquia no interior da produção social é substituída – continuamos a citar Engels - pela
organização consciente e planificada”. De resto, ao referir-se à planificação levada a
cabo pelas grandes empresas capitalistas nas economias fortemente ‘monopolizadas’,
Engels é ainda mais claro ao identificar o socialismo com a planificação: “Com os trusts
– escreve ele - a produção não planificada da sociedade capitalista capitula diante da
produção planificada da sociedade socialista que desponta”, a tal “organização
consciente e planificada” de que falavano trecho atrás citado.
Fiel à sua ideia de não fazer a cozinha do futuro, Marx não aborda
sistematicamente a problemática do plano. Mas ela tem na sua obra um ou outro
afloramento. É o que acontece no Livro I, 1ª Secção, Capítulo I de O Capital, onde faz
referência à sociedade socialista, caracterizada por “uma reunião de homens livres,
trabalhando com meios de produção comuns e despendendo, segundo um plano
concertado, as suas numerosas forças individuais como uma única e a mesma força de
trabalho social”.429 Referências mais mais extensas e mais explícitas encontram-se no
Livro III de O Capital, onde Marx se refere à futura sociedade socialista “organizada
como associação consciente e sistemática”, na qual “os produtores regularão a sua
produção em conformidade com um plano previamente elaborado” e na qual “a
428
Cfr. Anti-Dühring, ed. cit., 359-363, e “Do Socialismo Utópico…”, cit., 160-167. Deste
último trecho ressalta a ideia de que, diferentemente do que aconteceu com a burguesia – que conseguiu ir
preparando, em pleno feudalismo, as condições materiais que permitiram a passagem ao modo de
produção capitalista -, na passagem ao socialismo, os trabalhadores só podem preparar a passagem ao
novo modo de produção socialista depois de ocuparem o estado, que tem de ser utilizado para destruir a
base material própria das relações de produção capitalista, nomeadamente a propriedade capitalista dos
meios de produção.
429
Cfr. Le Capital, Éd. Rubel, cit., 613. Cfr. também O Capital (Livro I, vol. 1), Centelha,
Coimbra, 1974, 123, e O Capital, Livro Primeiro, Tomo I, Editorial Avante-Edições Progresso,
Lisboa/Moscovo, 1990, 94 (esta última versão é menos clara, a este respeito, do que as anteriores).
289

produção ficará sob o controlo consciente e pré-organizado da sociedade”, que


“estabelecerá uma relação entre a quantidade de tempo-trabalho social empregado na
produção de determinadas mercadorias e a natureza da produra das mesmas mercadorias
feita pela sociedade”.430 Também em uma carta para Ludwig Kugelmann (8.7.1868) fala
da sociedade burguesa como uma sociedade na qual “a priori não existe qualquer
regulação social consciente da produção”, deixando perceber que esta regulação social
consciente da produção é uma característica da sociedade socialista.431

Actuando o estado proletário como proprietário dos meios de produção, ele não
pode deixar de planificar a actuação das empresas de que é proprietário, e pode fazê-lo
de modo cogente, através de um plano imperativo, como “instrumento para regular
toda a economia”.432 Nestas condições – observa Oskar Lange -, a planificação
“expressa o facto de que a economia socialista não se desenvolve de um modo
elementar, antes é dirigida e orientada conscientemente pela sociedade. A planificação é
um meio para submeter a actuação das leis económicas e o desenvolvimento económico
da sociedade à vontade humana”.433
Para cumprir a sua função de direcção consciente da economia, o plano deve ser
imperativo para todas as actividades de produção e deve dispor dos meios capazes de
determinar o ritmo de crescimento e a orientação do desenvolvimento. Todas as
unidades de produção são obrigadas legalmente a cumprir o plano (havendo sanções
para o não-cumprimento), e o plano deve estabelecer qual a parte do rendimento da
colectividade que irá ser destinada ao consumo e a parte a aforrar, bem como o destino a
dar ao aforro em investimentos nos vários sectores da produção (v.g. na produção de
bens de produção ou na produção de bens de consumo), sectores cuja actividade o plano
deve coordenar de modo a eliminar os ‘estrangulamentos’ e a fazer corresponder o
poder de compra da colectividade corresponda à produção de bens que hão-de ser
destinados ao consumo privado (com vista a afastar os riscos de inflação).
Foram estes os objectivos da planificação levada a cabo pelo poder soviético,
uma vez consolidada a vitória da revolução, tendo em conta as tarefas difíceis da

430
Citações colhidas no artigo de Maurice Dobb sobre Pianificazione, no Dizionario di
Economia Politica (coordenado por Claudio Napoleoni), 1107-1134.
431
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 456.
432
Cfr. O. LANGE (Org.), Problemas…, cit., 21. Sobre a planificação socialista, podem ver-se
os dois artigos de Oskar Lange incluídos nesta obra, págs. 7-35.
433
Cfr. O. LANGE, A economia…, cit., 37.
290

reconstrução e do desenvolvimento, até para salvaguarda da própia revolução. 434 Na


“Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado” da República Federativa
Russa (1918) não constava qualquer referência ao plano. Mas uma resolução do
Conselho Económico de finais de 1918 reclamava já “um plano económico único” e o
programa do Partido Bolchevique (Março de 1919) defendia a “máxima concentração
possível de toda a actividade económica do país num plano unitário elaborado para o
país inteiro”. Antes do fim da guerra civil não houve condições para equacionar esta
problemática: o GOSPLAN (a Comissão do Estado para o Plano) só foi criado em
Fevereiro de 1921, tendo elaborado o 1º plano anual para 1925/1926. O primeiro Plano
Quinquenal foi elaborado para o período 1928-1933.
Só na Lei Fundamental da URSS, de 1924, se afirma, pela primeira vez,
pertencer aos órgãos supremos da URSS “estabelecer os princípios e o plamo geral de
toda a economia nacional”, mencionando-se, entre os membros do Conselho dos
Comissários do Povo da URSS, o Presidente da Comissão do Plano de Estado. Na
Constituição Soviética de 1936, o art. 11º estabelecia que “a vida económica da URSS é
determinada e dirigida pelo Plano de Estado da Economia Nacional, com vista a
aumentar a riqueza social, a elevar de modo constante o nível material e cultural dos
trabalhadores, a fortalecer a independência nacional da URSS e a reforçar a sua
capacidade de defesa”. Mais tarde, na Constituição Soviética de 1977, o art. 16º
abordava deste modo questão do Plano:

“A economia da URSS constitui um complexo económco único que engloba todos os


elos da produção social, da distribuição e da troca dentro do território do país.
A economia é dirigida com base nos planos estaduais de desenvolvimento económico e
social, tendo em conta a direcção centralizada com a autonomia e a iniciativa económica das
empresas, uniões de empresas e outras organizações. Para tal efeito, recorrer-se-á amplamente
ao cálculo económico, ao lucro, ao preço de custo e a outros instrumentos e estímulos
económicos”.

A nacionalização das principais empresas e dos principais sectores de actividade


económica permitiu à URSS aproveitar as potencialidades da coordenação ex-ante de
toda a economia proporcionada pela planificação centralizada à escala nacional, com o
desaparecimento das crises e flutuações periódicas, com a consequente redução da
incerteza que acompanha as decisões económicas e a actividade económica, com a

Em 1931, Estaline escrevia: “Estamos atrasados em relação aos países desenvolvidos em 50


434

ou 100 anos. Temos de percorrer essa distância em dez anos. Se não o conseguirmos, seremos
esmagados” (apud P. BARAN, A Economia Política…, cit., 357).
291

redução do desperdício de recursos e com o melhor aproveitamento da poupança


disponível e das capacidades empresariais.435
O socialismo “reproduz, potenciado, o esquema de acumulação do primitivo
capitalismo industrial: na verdade, este restringiu, e ao máximo, os consumos das
classes trabalhadoras para aumentar os investimentos; só com a diferença de ter
respeitado o consumo das outras, enquanto o socialismo os eliminou, o que, para o
mesmo nível de rendimento, se traduz em maior formação de capitais.”436 Foi
exactamente o que aconteceu na URSS: utilizou-se o aforro forçado imposto à
agricultura para financiar a industrialização; sacrificou-se a produção de bens de
consumo (durante anos, não se produziram – nem se importaram - automóveis, nem
frigoríficos, nem muitos outros bens de consumo duradouros437) e deu-se prioridade à
construção de infra-estruturas (electrificação e rede ferroviária) e à produção de
equipamentos para acelerar o desenvolvimento industrial centrado na indústria pesada.
Aqui reside a explicação dos elevados ritmos de crescimento económico registados na
União Soviética, com base nos Planos Quinquenais.

À luz destas características da planificação socialista, importa averiguar se as


reformas económicas introduzidas nos países da Europa de Leste e na URSS a partir de
1965 vieram pôr em causa os princípios e os objectivos da planificação socialista. Ao
contrário do que afirmam alguns autores, a nossa resposta é negativa.438
Vejamos as alterações introduzidas, que se reflectem claramente no texto da
Constituição da URSS de 1977:
a) abandonaram-se as práticas da planificação quantitativa, julgada
tecnicamente inadequada perante a realidade, por dificultar a cabal mobilização de todos

435
Como salienta E. H. CARR (apud M. DOBB, Pianificazione, cit., 1116), “o conceito de
planificação implica que a sociedade tenha o direito e o dever de decidir, mediante um acto colectivo, o
que é bom para a sociedade no seu conjunto, e de tornar tal decisão imperativa para todos os indivíduos.
(…) Parece impossível negar que os homens e as mulheres, durante o desenvolvimento das suas
actividades económicas e sociais, formulem exigências que não podem ser medidas em termos de procura
individual, e para cuja satisfação eles estão prontos a sacrificar-se do mesmo modo que o estão para
satisfação dos interesses individuais. A diferença essencial entre o laissez-faire e o socialismo reside em
que o socialismo reconhece explicitamente a existência de fins sociais colectivos e o direito que, em
última instância, assiste á sociedade de dar uma definição autoritária desses fins sociais”.
436
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 23/24.
437
A participação na 2ª Guerra Mundial obrigou, naturalmente, a sacrificar muitos outros bens de
consumo, para produzir, aviões e navios de guerra, carros de combate, peças de artilharia, espingardas,
munições, fardamento e alimentos para os soldados, sacrifício mais acentuado ainda graças à destruição
de cidades inteiras, de instalações fabris, de campos de cultura.
438
Para maiores desenvolvimentos sobre a discussão deste ponto, cfr. A. J. AVELÃS NUNES,
“Alguns aspectos…, cit., 36ss.
292

os recursos, prejudicar o progresso técnico e provocar desperdícios e estrangulamentos


na produção;
b) organizou-se um novo sistema de indicadores de êxito, passando a aferir-se o
cumprimento do plano, fundamentalmente, pelos resultados úteis da exploração, pelo
‘lucro’, hoc sensu (para cumprir o plano, não bastava produzir, era necessário vender a
produção realizada de acordo com o plano);
c) concedeu-se maior margem de liberdade às unidades de produção, para que
pudessem criar condições de custos mais baixos e produzir os bens correspondentes às
necessidades efectivas da comunidade.
Estas alterações - muito esquematicamente apontadas - não puseram em causa, a
nosso ver, a essência dos planos socialistas. O carácter social da propriedade dos meios
de produção não foi posto em causa, nem o estado abandonou a sua vontade de
planificar a produção e o desenvolvimento económico. O princípio da planificação
centralizada conservou toda a sua força, continuando o estado senhor da política
económica geral, cabendo-lhe determinar as proporções macroeconómicas essenciais da
economia (v.g. planificação dos investimentos e determinação dos objectivos de
produção fundamentais) e determinar ainda a política de desenvolvimento científico e
tecnológico, a política dos salários, a política dos preços.
A autonomia concedida às unidades de produção e a fuga à planificação
demasiado pormenorizada não significou a restauração da propriedade privada dos
meios de produção, nem da apropriação privada do sobreproduto social, nem sequer a
atribuição a entidades privadas do poder de decidir acerca da utilização deste
sobreproduto. Todos estes atributos continuaram a caber ao estado socialista.
A adopção do lucro como índice de cumprimento do plano não equivaleu à
restauração do lucro, enquanto rendimento capitalista privado, sem relação com o
trabalho. O lucro não passou a ser o critério orientador das decisões económicas
(nomeadamente das decisões de investimento) nem da actividade económica, pois a
obrigação e o objectivo principal das unidades de produção continuou a ser a realização
das metas definidas no plano central.439
Do mesmo modo, a autonomia (relativa) concedida às empresas socialistas não
as subtraiu aos comandos imperativos do plano central, visando tão só criar-lhes

439
“O uso do lucro  escreve M. KAYSER, em PROBLEMI…, cit., 95  é dirigido a melhorar a
conformidade com as determinações centrais essenciais, não a desviar-se delas, embora se possa observar
uma certa flexibilidade na escolha da direcção.”
293

condições mais favoráveis à prossecução dos objectivos últimos da planificação


socialista: racionalização da produção e sua adequação às necessidades da comunidade.
Tanto bastará para se poder concluir que as reformas operadas nos países
socialistas da Europa não poderiam legitimar a conclusão dos defensores da
convergência dos sistemas de que tanto o Ocidente como a União Soviética tinham
superado o estádio da economia de mercado, adoptando ambos os sistemas um tipo
comum de planificação, marcado por um poder crescente das empresas produtoras.
E é claro, finalmente, que a planificação pública levada a efeito nos países
capitalistas não poderá considerar-se como um elemento de socialismo. É bom não se
esquecer a prevenção de Pigou de que economia socialista e economia planificada não
são uma e a mesma coisa, acrescentando: “Há várias espécies possíveis de economia
planificada. Podemos, por exemplo, imaginar um pequeno grupo aristocrático que
domine uma comunidade de escravos e planifique a indústria do país exclusivamente no
seu próprio interesse, sem em nada atender ao dos escravos. Ninguém chamaria a isso
socialismo.”440

● O significado do mercado em economias ‘planificadas’


À luz do que fica dito nas páginas anteriores, fazia sentido colocar a questão de
saber qual o significado do mercado e do mecanismo dos preços em economias
capitalistas assim estruturadas.
A verdade é que os preços fugiam, em muitos casos, às ‘regras’ normais do
mercado.
As unidades de produção da indústria moderna tendiam (e tendem) a ser de
dimensão cada vez maior, em consequência de factores vários, entre os quais o
desenvolvimento das tecnologias de produção e de distribuição. E a concentração
capitalista arrastou consigo a necessidade da planificação (“a planificação é inerente ao
sistema industrial”, como sublinha J. K. Galbraith). Esta planificação levada a cabo
pelas grandes empresas (The Visible Hand, de que fala Alfred Chandler) e não já o
mercado passou a determinar o volume da produção e a estrutura dos preços. Por isso se
falou de decadência do mercado. Por isso Galbraith veio sustentar que a soberania do
consumidor só existe nos livros de texto da mainstream economics.
O mercado perdeu, assim, a sua feição tradicional, o papel dos consumidores
passou a ser puramente passivo e o lucro perdeu a capacidade de servir como símbolo

440
Cfr. A. C. PIGOU, ob. cit., 8.
294

de eficiência, nos termos que lhe atribuía a teoria económica, à luz dos cânones do
capitalismo de concorrência.
As grandes empresas ‘monopolistas’, em vez de estarem dependentes dos preços
do mercado (price takers), passaram elas próprias a controlar o ‘mercado’ (price
makers), sincluindo nos seus planos de investimento uma determinada taxa de lucro
pré-estabelecida (mark up).
Este fenómeno andou, aliás, associado a uma relativa liberdade das grandes
empresas perante a taxa de juro do mercado. Na verdade, tais empresas passaram a ter
condições de determinar os seus preços de modo a constituir os fundos necessários para
o reinvestimento, e a possibilidade de autofinanciamento colocou-as fora da
dependência de fundos alheios agravados pelo juro. Muitas vezes, o aforro interno
excedia as necessidades de capitais para investimento próprio, sendo transferido para
sociedades subsidiárias com o objectivo dce conceder crédito para financiar o consumo
dos bens produzidos pelas empresas principais.
Invocava-se (e invoca-se) por vezes que esta situação de domínio das grandes
empresas tinha o significado positivo de uma superação do ‘carácter anárquico’ do
mercado. Em contrapartida, poderá dizer-se que este fenómeno, como inerência do grau
crescente de ‘monopólio’ e do declínio da eficácia do mecanismo dos preços, não é
motivo de orgulho para o capitalismo.441
Na verdade, o reverso da medalha consiste em se admitir que o mercado deixou
de funcionar como o mecanismo de auto-adaptação sempre proclamado como a grande
virtude do capitalismo: assegurar a maior eficiência das empresas, o maior volume de
produção, a produção orientada no sentido dos gostos dos consumidores, com base no
mecanismo dos preços, que forneceria a informação indispensável à tomada das
decisões de investimento e de produção das empresas e das decisões de consumo e de
aforro dos particulares, assegurando, assim, a realização automática da racionalidade
económica para a sociedade no seu conjunto.
Nas condições de crescente monopolização da economia, as grandes empresas,
que por si só ou juntamente com um pequeno número de outras, dominam os mercados
das indústrias mais importantes,passaram a impor os preços ao consumidor. Mas isto
significa que o mecanismo dos preços deixou de realizar a função que se entendia ser
por ele desempenhada dentro dos pressupostos teóricos do capitalismo de concorrência.
441
Cfr. S. TSURU, Aonde vai o capitalismo, cit., 14-16.
295

Por outro lado, as próprias características dos mercados concentrados num


pequeno número de grandes empresas asseguram a estas a vantagem de não correrem o
risco de ver a sua situação posta em perigo por eventuais concorrentes, dada a
dificuldade (se não mesmo a impossibilidade) de novas empresas entrarem no mercado.
E esta circunstância propicia às empresas existentes autênticas situações de tipo
monopolista, permitindo-lhes estabelecer acordos entre si (expressa ou tacitamente), no
que toca à fixação dos preços, à distribuição do mercado, etc., e elaborar e concretizar
com segurança os seus planos a longo prazo.
A produção em série de grandes quantidades de bens de consumo implica, por
sua vez, a existência de um consumo de massa, pois as empresas capitalistas produzem
para realizar lucros e só alcançam o seu objectivo se venderem os bens que produzem.
A sociedade de consumo é, na sua essência, uma forma de organização da vida
económica e social e um ideologia ao serviço das grandes estruturas produtivas
capitalistas, já que, como escreveu um autor,442 o mito da sociedade de consumo não
passa de um alibi da sociedade de produção com mira no lucro. As várias técnicas ao
serviço da sociedade de consumo permitem às grandes empresas não só fixar os preços
como também ‘fabricar’ os consumidores que lhes interessam, ‘produzir’ a procura de
que carecem para esgotar as quantidades que lhes convém produzir e oferecer, aquelas
em que podem realizar maiores margens de lucro (sacrificando, tantas vezes, por não
serem rentáveis ou por serem pouco rentáveis, muitas necessidades fundamentais).
Criar necessidades e estimular o desejo de consumir são as missões que cabem à
publicidade, à moda, ao expediente das vendas a prestações e outras técnicas de crédito
ao consumo, a toda a panóplia das modernas ‘técnicas de venda’.443 Tudo isto para
‘viciar’ os indivíduos a consumir determinados bens que às empresas interessa vender,
para envelhecer periódica, rápida e programadamente os bens (“contrived obsolescence”
- obsolescência programada), para que os bens ‘envelhecidos’, antiquados, fora de
moda, sejam substituídos por outros, para criar condições favoráveis ao consumo de
certos bens mediante facilidades de crédito para a sua aquisição.
Paralelamente, a actuação do estado passou a apresenta-se, para as grandes
empresas, “como um meio de reduzir as incertezas do investimento e de realizar o

442
Cfr. H. BROCHIER, ob. cit., 870ss.
443
Repare-se neste sugestivo anúncio, colocado, segundo Josué de CASTRO, A estratégia…, cit.,
22, na fachada de um grande armazém: “Se ainda não sabe o que deseja, pouco importa. Entre! Nós
temos”.
296

desenvolvimento ordenado dos seus mercados.” 444 Este o significado coerente e


‘razoável’ da planificação pública em economias que assentam a sua lógica interna na
propriedade privada dos meios de produção. Estes os objectivos que as (grandes)
empresas passaram a esperar e a exigir da planificação estadual.
Por outros meios, aliás, o estado passou a assegurar, muitas vezes de antemão,
um certo volume de vendas e a cobrir os riscos do investimento. Basta recordar que os
dinheiros públicos pagam boa parte da investigação de base e aplicada, mesmo quando
esta é efectuada em centros privados; e lembrar a importância das encomendas do
estado, particularmente as que se destinam a fins militares; e atentar no significado das
sociedades de economia mista e de outras explorações públicas; e não esquecer as
possibilidades oferecidas pela política fiscal, pela intervenção do estado no mercado do
trabalho, pela actuação da política de rendimentos (da política de salários…), pela
prática de incentivos de vária ordem à exportação, etc. Mais recentemente, devem
destacar-se os chamados contratos de investimento, celebrados entre o estado (ou
agências do estado) e grandes empresas (nacionais ou multinacionais) para atrair
investimentos privados ‘pagos’ com subsídios, isenções fiscais e outros incentivos e
vantagens. E também as parcerias público-privadas, tantas vezes apontadas como
instrumento privilegiado para transferir os lucros para os privados e deixar os encargos
para o estado.
Acresce ainda que a presença do estado se foi concretizando também no
estabelecimento de uma zona progressivamente alargada de preços fixados à margem do
mercado (preços administrados), i.é, fruto de outros factores que não a simples actuação
dos empresários e dos consumidores. Com efeito, o estado passou a intervir de formas
várias na fixação dos preços dos produtos agrícolas, já para proteger os proprietários, já
para evitar a subida dos preços de bens de primeira necessidade. Alargou-se a gama de
bens e serviços originários de explorações do sector público, com preços fixados
segundo uma lógica diferente da lógica privada inerente ao jogo da oferta e da procura.
Ganhou também importância a intervenção do estado, por meios jurídicos e políticos, na
fixação do salário, preço da força de trabalho, uma mercadoria essencial em economia
capitalista. Em muitos países, o estado (ou instâncias públicas) controlavam ou
influenciavam, sob várias formas, a fixação das taxas de juro. O estado - especialmente
depois da crise de 1929 e da Segunda Guerra Mundial – interveio no processo de
444
Cfr. A. SHONFIELD, ob. cit., 139.
297

fixação dos preços de uma variedade crescente de produtos, quer directamente


(tabelamento), quer indirectamente, actuando sobre a oferta (realização de campanhas
de publicidade, concessão de prémios, facilidades fiscais, etc.) e sobre a procura
(racionamento, medidas fiscais e outras tendentes à expansão ou limitação do poder de
compra, etc.).
Perante economias capitalistas com estas características, em que sentido poderá
continuar a falar-se delas como economias de mercado?
As economias capitalistas sempre poderão definir-se como economias de
mercado, porque a lógica do capitalismo, assente na propriedade privada dos meios de
produção, é a de a iniciativa da produção pertencer às empresas capitalistas, que
produzem com vista à obtenção de lucros, à valorização do capital, e não com vista à
satisfação das necessidades individuais ou colectivas.
Economias de mercado porque, na mira do lucro, as empresas produzem para o
mercado, produzem para vender e tudo fazem para vender, ainda que se trate de bens
socialmente supérfluos, sumptuários ou inúteis e ainda que tal implique um pesado
encargo para o consumidor, na medida em que os enormes custos de venda despendidos
se vão transferir para os preços dos produtos.
Economias de mercado porque não conseguiram ultrapassar as contradições
inerentes ao seu carácter ‘anárquico’, patente na abundância e na facilidade de obtenção
de certos bens e serviços que não ocupam os primeiros postos numa escala racional de
prioridades (v.g., automóveis, televisões, ‘espectáculos desportivos’, viagens de
turismo, armamentos, etc.), em comparação com a penúria de outros bens de primeira
necessidade à luz de uma escala de prioridades inspirada por uma outra racionalidade
(habitação, higiene e saúde pública, educação e cultura, vestuário e até bens de
alimentação) e patente também na permanência das crises cíclicas, do desemprego, da
inflação. De tudo isto nos dão exemplos elucidativos os mais avançados de entre os
países de economia de mercado.
298

4.10. – A ‘revolução keynesiana’. O estado-providência.

4.10.1. – A Grande Depressão veio deitar por terra os mitos liberais veiculados
pela teoria económica burguesa ao longo dos séculos XVIII e XIX.
Keynes mostrou que a Grande Depressão não poderia explicar-se em termos
monetários (porque o banco central americano emitiu menos moeda do que a que
devedria ter emitido). Contra a teoria dominante, veio defender que os factores
determinantes das crises do capitalismo (e, portanto, também da Grande Depressão) são
as forças reais da economia (os planos do estado, dos empresários e dos consumidores),
e não a oferta de moeda. Nestes termos, a crise só podia entender-se como o reflexo de
um colapso no investimento privado e/ou de uma situação de escassez de oportunidades
de investimento e/ou de um excessivo espírito de economia por parte dos consumidores,
o que legitimava a sua conclusão de que a política monetária, baseada no controlo da
oferta de moeda, poderia talvez suster a inflação, mas era inadequada para estancar a
depressão e relançar o crescimento da economia.
299

A rejeição da lei de Say e do mito do equilíbrio espontâneo da economia (com


pleno emprego em todos os mercados) constituem pontos fulcrais do pensamento
keynesiano e encerram o núcleo central da “revolução keynesiana”.445
A lei de Say pressupõe que o móbil das economias capitalistas é a satisfação das
necessidades das pessoas (dos produtores): cada pessoa produz para satisfazer as suas
necessidades, consumindo directamente os bens que produz ou, nas economias mais
complexas, troca a totalidade ou uma parte dos bens que produz por moeda, que vai de
imediato utilizar para adquirir bens de que necessita e que são produzidos por outrem. É
o que se traduz no esquema M-D-M: quem tem mercadorias vai trocá-las por moeda (D
= dinheiro) para com ela adquirir imediatamente outras mercadorias de que precisa e
que não produz. A moeda funcionaria aqui tão só como intermediário geral nas trocas,
permitindo ultrapassar as dificuldades da troca directa em economias razoavelmente
diversificadas. Se as economias funcionassem segundo esta lógica, as crises de
sobreprodução generalizada seriam impossíveis, porque cada produtor ou consome tudo
o que produz ou troca o que lhe sobra por bens produzidos por outrem.
Ora o professor de Cambridge defendeu que nas economias capitalistas a
circulação se faz segundo o modelo marxista D–M–D’: quem tem dinheiro acumulado
vai comprar mercadorias, incluindo a força de trabalho assalariada, para produzir
mercadorias que se destinam a ser vendidas par obter mais dinheiro. E mostrou que nas
economias que funcionam segundo a lógica do lucro e não segundo a lógica da
satisfação das necessidades “uma situação próxima do pleno emprego é tão rara como

445
A ideia de ‘revolução’ foi de algum modo anunciada pelo próprio Keynes, numa carta famosa
a George Bernard Shaw (1.1.1935) em que ele declara: “acredito que estou a escrever um livro sobre
teoria económica que revolucionará amplamente (…) o modo como o mundo pensa os problemas
económicos. (…) Não consigo prever qual será o resultado final do seu efeito sobre os negócios. Mas
haverá uma grande mudança e, em particular, os fundamentos ricardianos do marxismo serão fortemente
abalados”. Não deixa de ser esclarecedor sobre a posição ideológica de Keynes a admiração que
manifesta por Malthus e a aversão que dedica a Ricardo (o 1º foi o defensor dos proprietários feudais, o 2º
foi o profecta da burguesia industrial).
Não faltam razões aos que negam este carácter ‘revolucionário’ à General Theory não apenas
por as suas teorias e propostas de política visarem salvar o capitalismo, mas também pelo facto de, antes
ou ao mesmo tempo que Keynes e sem conhecimento dos trabalhos dele, outros economistas
desenvolverem, nos anos trinta do século passado, teses muito idênticas ás que Keynes apresentou na
General Theory. Basta recordar os nomes de Gunnar Myrdal e Bertil Ohlin, na Suécia, e de Michael
Kalecki, na Polónia, e recordar que, ao nível das políticas, nem o New Deal nem a política da Alemanha
nazi após a nomeação de Hitler como Chanceler podem considerar-se influenciadas pela General Theory,
pela simples razão de que são anteriores a ela. Esta nova visão das coisas parece ter surgido como uma
resposta necessária à salvação do capitalismo, num período em que muitos recearam que não sobreviveria
à crise profunda que o abalou. Cfr. G. PILLING, ob. cit., 52.
300

efémera”, considerando inerentes a este tipo de economias as situações de equilíbrio


com desemprego involuntário.446

4.10.2. - Para explicar as situações de desemprego involuntário, que considera o


problema mais grave das economias capitalistas, Keynes lança mão do conceito de
procura efectiva, que foi buscar a Malthus: o montante das despesas que se espera a
comunidade faça – por ter capacidade para as pagar – em consumo e em investimento
novo. Se esta procura efectiva não for suficiente para absorver toda a produção a um
preço compensador, haverá desemprego de recursos produtivos.
Este desemprego será desemprego involuntário, no sentido de que há pessoas sem
emprego desejosas de trabalhar por um salário real inferior ao praticado.
Isto significa que, ao contrário do que defendiam os “clássicos”, o nível de
emprego não depende do jogo da oferta e da procura no mercado de trabalho, antes é
determinado por um factor exterior ao mercado de trabalho, a procura efectiva.
E significa também que é o volume do emprego que determina, de modo
exclusivo, o nível dos salários reais, e não o contrário. Ou seja: não é o facto de os
salários serem altos que provoca elevado nível de desemprego, do mesmo modo que o
facto de os salários serem baixos não arrasta consigo, necessariamente, um baixo nível
de desemprego. Ao invés: os salários tendem a baixar quando a taxa de desemprego é
elevada, e tendem a subir quando a taxa de desemprego é baixa.
Partindo do princípio de que as economias capitalistas são instáveis por natureza,
Keynes sustentou que elas careciam de ser equilibradas e podiam ser equilibradas.
Para tanto, era necessário assumir a economia como um problema político de curto
prazo, como uma das preocupações fundamentais do estado (do estado capitalista).
A necessidade de ultrapassar as situações de insuficiência da procura efectiva para
combater o desemprego exigia, na óptica de Keynes, uma intervenção mais ampla e
mais coordenada do estado, apoiada na política financeira de controlo das receitas e das

446
Eis o que Keynes escreveu (Cfr. J. KEYNES, The General Theory…, cit., 249/250): “Uma das
propriedades essenciais do sistema económico em que vivemos é a de não ser violentamente instável,
embora esteja sujeito a flutuações severas no que se refere à produção e ao emprego. Na verdade, este
sistema parece apto a permanecer durante um lapso de tempo considerável num estado de actividade
inferior ao normal, sem que haja tendência marcada para o relançamento da actividade económica ou para
o afundamento completo. Além disso, resulta claramente que o pleno emprego ou mesmo uma situação
próxima do pleno emprego é tão rara como efémera. As flutuações podem amortecer-se bruscamente, mas
parece que elas se amortecem antes de terem adquirido uma amplitude extrema; e a nossa sorte normal
consiste numa situação intermédia que não é nem desesperada nem satisfatória”.
301

despesas do estado.447 Esta fiscal policy seria a única capaz de influenciar as forças reais
da economia (os planos do estado, dos empresários e dos consumidores), sendo por isso
considerada o instrumento fundamental para estabilizar as flutuações da economia, para
promover o crescimento económico e para prosseguir os objectivos do pleno emprego,
da estabilidade dos preços e do equilíbrio da balança de pagamentos, a par da
redistribuição do rendimento em benefício dos mais pobres (i.é, em sentido favorável à
propensão ao consumo, e, portanto, ao aumento da procura efectiva), objectivos que os
governos passaram a assumir na sequência da ‘revolução keynesiana’.
Nomeadamente em períodos de crise (quando os empresários não investem e os
consumidores são obrigados a reduzir as despesas de consumo), Keynes defendeu o
recurso ao deficit financing, isto é, ao financiamento das despesas públicas mediante o
recurso à dívida pública e/ou à emissão de moeda, argumentando que a riqueza criada
poor essas despesas públicas (em valor muito superior ao seu próprio, graças ao efeito
multiplicador) permitiria depois amortizar os empréstimos contraídos e/ou evitar a
inflação.

4.10.3. – Keynes veio defender, por outro lado, que a compreensão das economias
capitalistas não se confina ao estudo do ‘comportamento racional’ de um imaginário
homo oeconomicus, antes exige a análise das instituições sociais e políticas enquanto
expressão das forças económicas em presença, Keynes sublinhou a importância do
estado e a necessidade do alargamento das suas funções para salvar da “completa
destruição as instituições económicas actuais” [leia-se: capitalistas]. E como as crises e
os seus efeitos perniciosos se fazem sentir a curto prazo, Keynes veio defender que a
política económica tem que adoptar uma perspectiva de curto prazo: “in the long run we
are all dead” (“a longo prazo estamos todos mortos”) como escrevia em 1923.
Em 1924, na famosa conferência sobre The End of Laissez-faire,448 Keynes
apresentou pela primeira vez este ‘discurso’ contra os princípios “metafísicos” em que
se fundamenta o laissez-faire:

447
A política monetária sempre apresentaria fortes limitações: as taxas de juro nunca poderão ser
negativas (nem sequer iguais a zero), mas as expectativas de lucros podem ser (fortemente) negativas.
Nestas condições, que são as que caracterizam as situações de crise, a política monetária não consegue
fazer aumentar as despesas dos particulares (é o que se costuma exprimir através do aforismo “you can
lead a horse to water but you can not make it to drink.” De todo o modo, a política monetária não deveria
nunca basear-se na óptica quantitativista do controlo da quantidade de moeda, devendo antes centrar-se
no controlo das condições de acesso ao crédito e na política de dinheiro barato (a eutanásia do rendista).
448 ?
Cfr. J. KEYNES, The End…, cit., 291/292.
302

“Não é verdade que os indivíduos disponham de uma inquestionável ‘liberdade natural’


nas suas actividades económicas.
Não existe nenhum ‘contrato’ que confira direitos perpétuos aos que têm ou aos que
adquirem.
O mundo não é governado a partir de cima de modo que os interesses privados e os
interesses sociais sempre coincidam.
E não é gerido a partir de baixo de modo que, na prática, eles coincidam.
Não é uma dedução correcta dos princípios da economia que o interesse próprio
esclarecidamente entendido opere sempre no interesse público.
Nem é verdade que o interesse próprio seja em regra esclarecidamente entendido; a maior
parte das vezes os indivíduos que actuam isoladamente para prosseguir os seus próprios
objectivos são demasiado ignorantes ou demasiado fracos, mesmo para atingir estes objectivos.
A experiência não mostra que, quando os indivíduos formam uma unidade social, sejam
sempre menos esclarecidos do que quando actuam separadamente”.

Em conformidade com esta ‘leitura’, Keynes advogou a necessidade de uma certa


coordenação pelo estado do aforro e do investimento de toda a comunidade. Por duas
razões fundamentais:
em 1º lugar, porque as questões relacionadas com a distribuição do aforro pelos
canais nacionais mais produtivos “não devem ser deixadas inteiramente à mercê de
juízos privados e dos lucros privados”;
em 2º lugar, porque “não se pode sem inconvenientes abandonar à iniciativa
privada o cuidado de regular o fluxo corrente do investimento”.
Daí a necessidade de “uma ampla expansão das funções tradicionais do estado”,
a necessidade de “uma acção inteligentemente coordenada” para assegurar a utilização
mais correcta do aforro nacional, a necessidade da “existência de órgãos centrais de
direcção”, a necessidade de “medidas indispensáveis de socialização”, de uma certa
socialização do investimento (“a somewhat comprehensive socialization of
investment”), nota fundamental do pensamento keynesiano tal como resulta da General
Theory.449
Em 1939 Keynes abordou especificamente a questão do planeamento público,
defendendo que “nas condições actuais nós precisamos, se queremos prosperidade e
lucros, (…) muito mais planeamento central do que temos presentemente. (…) A
intensificação das crises cíclicas e o crescente carácter crónico do desemprego

449
Cfr. Notas Finais com que encerra a General Theory, em J. KEYNES, The General Theory…,
cit., 378/379. Cfr. também A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 81/82. Keynes acreditava que
a socialização do investimento tornaria o capital abundante e baixaria as taxas de juro para valores
próximos de zero dentro de um prazo de 25 anos, operando-se assim, gradualmente, sem necessidade de
qualquer revolução, o que ele chamou a eutanásia do rendista e do capitalista sem profissão
(“functionless investor” – cap. XXIV da General Theory). Diferentemente, as políticas que vêm sendo
levadas a cabo nas últimas décadas na generalidade dos países capitalistas empenham-se activamente em
criar as condições favoráveis à especulação e em proteger os que vivem das ‘rendas’ da especulação
bolsista e das ‘rendas’ da especulação imobiliária.
303

mostraram que o capitalismo privado está em declínio como meio de resolver o


problema económico”. E em 1943 insiste: “Se dois terços ou três quartos do
investimento total são levados a cabo ou podem ser influenciados por entidades públicas
ou semi-públicas, um programa de longo prazo de natureza estável poderá ser capaz de
reduzir a amplitude potencial das flutuações para limites bastante mais estreitos do que
antes.”450
Keynes continua a encarar as medidas que propõe como uma forma de
salvaguardar e garantir as condições para a obtenção de lucros privados e não diz qual a
parte do investimento global que deve estar a cargo de entidades públicas e que parte
do investimento global poderá ser levada a cabo por empresas privadas, sob a influência
de entidades públicas (nem esclarece que tipo de influência é esta). Mas estes
apontamentos justificam uma leitura de Keynes que não se confine às interpretações
redutoras (fala-se de “keynesianismo bastardo”, de “keynesianismo sem lágrimas”, de
“keynesianismo hidráulico”) que procuraram fazer passar a mensagem de Keynes como
“uma hábil política orçamental e monetária” capaz de levar as economias capitalistas a
libertar-se das suas contradições, continuando a funcionar segundo os cânones do
modelo liberal.
Não se trata, porém, de propostas anti-capitalistas: os novos agenda cometidos
ao estado destinam-se a fornecer a este os meios para salvar o sistema capitalista, “como
o único meio de evitar uma completa destruição das instituições económicas actuais e
como a condição de um feliz exercício da iniciativa privada”. 451 São, pois, propostas de
natureza conjuntural (stop-go) no sentido de reforçar o estado capitalista, embora
Keynes pressuponha que o estado (como “órgão central de direcção”) é uma instância
política neutra, acima das classes, representando a vontade geral e prosseguindo o
interesse comum.452

4.10.4. - A Grande Depressão arrastara consigo a miséria de milhões de pessoas


em todo o mundo e a ameaça de morte iminente que pesou sobre o capitalismo à escala
mundial estimulou Keynes a procurar soluções para o salvar. Estas as motivações da
‘revolução keynesiana’, que esteve na base das transformações que conduziriam ao
estado-providência, transformações que não podem separar-se, por outro lado, das lutas

450
São trechos colhidos em H. J. SHERMAN, ob. cit., 388.
451
É um trecho do cap. XXIV da General Theory.
452
A estrutura de classes da sociedade está fora da análise de Keynes. Há quem defenda que “ele
tendia para assumir uma identidade de interesses entre trabalhadores e industriais contra o seu inimigo
comum – o rentier e banqueiro” (assim R. Skidelsky, citado por G. PILLING, ob. cit., 55).
304

dos trabalhadores, no plano sindical e no plano político, e da emulação que exerceu, na


generalidade dos países capitalistas (perante a falência da ‘solução’ nazi-fascista), o
simples facto da existência da URSS e da comunidade socialista europeia e mundial
constituída após a 2ª Guerra Mundial.
Admirador de Malthus, Keynes tomou dele, como dissemos atrás, o conceito de
procura efectiva e a ideia de que é possível combater a depressão e o desemprego. No
seu tempo, Malthus sugeriu o aumento da procura efectiva, com base no estímulo ao
consumo dos ricos: se o luxo dos ricos faz a felicidade dos pobres (ideia largamente
aceite nos séculos XVIII e XIX), deixem-se os ricos consumir sem limitações (por
exemplo, reduzindo os impostos sobre os rendimentos dos proprietários rurais e
revogando as leis sumptuárias), e tanto bastará para que o rendimento gasto absorva
todos os bens produzidos.
Só que, na era da ‘sociedade de consumo’, perante uma produção em massa, o
consumo dos ricos (mesmo que esbanjador) não consegue assegurar o escoamento de
toda a produção. O aumento do consumo dos pobres (entre eles os trabalhadores), o
consumo de massas é uma necessidade, resultante do próprio desenvolvimento
tecnológico proporcionado pela ‘civilização burguesa’.
Um dos méritos de Keynes foi ter compreendido e enquadrado teoricamente esta
problemática. Para assegurar mais estabilidade às economias capitalistas, de modo a
evitar sobressaltos como o da Grande Depressão, é necessário que os desempregados
não percam todo o seu poder de compra (daí o subsídio de desemprego), que os doentes
e inválidos recebam algum dinheiro para gastar (subsídios de doença e de invalidez),
que os idosos não percam o seu rendimento quando deixam de trabalhar (daí o regime
de aposentação, com a correspondente pensão de reforma).453

4.10.5. - Na General Theory Keynes identifica os dois “vícios” que considera mais
marcantes das economias capitalistas: a possibilidade da existência de desemprego
involuntário, e o facto de que a “repartição da riqueza e do rendimento é arbitrária e
carece de equidade.” E defende que a correcção destes ‘vícios’ constitui a principal
responsabilidade do estado.

453
Na Grã-Bretanha existia desde 1911 um seguro obrigatório de desemprego, constituindo-se,
logo após a 1ª Guerra Mundial, um sistema público de pensões de reforma. O modelo de welfare state
erigido depois da 2ª Guerra Mundial tem por base um relatório de Sir William Beveridge publicado ainda
durante a Guerra (Novembro de 1942) para ser aplicado após o termo do conflito.
305

Embora reconhecendo que a propriedade privada e o aguilhão do lucro possam ser


factores estimulantes do progresso económico, Keynes defende, por um lado, que “a
sabedoria e a prudência exigirão sem dúvida aos homens de estado autorizar a prática do
jogo sob certas regras e dentro de certos limites”. E defende, por outro lado, que a
acentuada desigualdade de rendimentos contraria mais do que favorece o
desenvolvimento da riqueza, negando assim uma das principais justificações sociais da
grande desigualdade de riqueza e de rendimento: “Podem justificar-se, por razões
sociais e psicológicas, desigualdades significativas de riqueza, mas não - sublinha o
professor de Cambridge - desigualdades tão marcadas como as que actualmente se
verificam”.454
Ficava assim legitimada a intervenção do estado na busca de mais justiça social, de
maior igualdade entre as pessoas, os grupos e as classes sociais. A ‘equação keynesiana’
foi uma tentativa de conciliar o progresso social e a eficácia económica. E o discurso
keynesiano tornou claro que a conciliação destes dois objectivos (em vez da pro-
clamação da sua natureza conflituante) é uma necessidade decorrente das estruturas
económicas e sociais do capitalismo contemporâneo.
A esta necessidade respondeu a criação do estado-providência, assente na
intervenção sistemática do estado na economia, na redistribuição da riqueza e do
rendimento, na regulamentação das relações sociais, no reconhecimento de direitos
económicos e sociais aos trabalhadores, na implantação de sistemas públicos de
segurança social, em nome do princípio da responsabilidade social colectiva.
As bases (keynesianas) do welfare state são, pois, essencialmente, de natureza
económica, ligadas à necessidade de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas

próprias do capitalismo, e motivadas pelo objectivo de salvar o próprio capitalismo.


Na verdade, estes novos agenda do estado não pretendiam subverter (nem
subverteram) o sistema, nem visavam promover (nem promoveram) nenhuma revolução
social (apesar de se falar de “revolução keynesiana”), antes se enquadram na lógica do
capitalismo e da sua racionalidade intrínseca.455
Daí que eles não tenham resolvido o problema do ‘subdesenvolvimento’; não
tenham impedido o alargamento do fosso entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países
subdesenvolvidos’; não tenham acabado com as crises cíclicas do capitalismo; não
tenham posto cobro à desigualdade na distribuição do rendimento, cujo agravamento
454 ?
Cfr. J. KEYNES, The General Theory…, cit., 372-374.
455
Ver A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo…, cit.
306

leva a que se fale já da necessidade de incluir no elenco dos direitos fundamentais o


direito a uma igualdade razoável; não tenham acabado, evidentemente, com o regime
do salariato e com o tipo de relações de que lhe são inerentes.

4.10.6. - As políticas que se traduzem no financiamento público dos chamados


consumos sociais são um bom exemplo da ‘integração’ das políticas keynesianas na
lógica do capitalismo. Com efeito, além de assegurar as despesas com o aparelho de
poder destinado à defesa da ordem estabelecida (forças armadas, polícias, sistema de
justiça, etc.), o estado financia as despesas necessárias ao conveniente desenvolvimento
das forças produtivas sociais: despesas com a educação, a saúde e a segurança social, a
habitação, etc. Trata-se de despesas que se enquadram na chamada política de
redistribuição do rendimento.456
Esperou-se que elas reduzissem significativamente e duradouramente as
desigualdades, permitindo ao capitalismo ganhar maior resistência às crises e apagar o
ferrete que o acompanha desde o início de ser a civilização das desigualdades. A
verdade, porém, é que os resultados não corresponderam às expectativas, mesmo nos
países onde essas políticas foram levadas mais a sério.
É claro que em muitos países o estado-providência nunca foi concretizado. Em
outros, foi uma verdadeira mistificação. Desde logo, porque os sistemas fiscais não são
verdadeiramente progressivos, apesar de haver impostos com taxa progressiva; porque a
fuga aos impostos, a evasão e a fraude fiscal são práticas correntes, que, ao menos de
facto, escapam à sanção do direito; porque quase só os trabalhadores por conta de
outrem (trabalhadores do estado ou de empresas privadas) pagam imposto sobre o
rendimento; porque alguns países não cobram imposto sobre o lucro das empresas e, nos
restantes, as taxas não são muito elevadas; porque a desregulamentação dos mercados
financeiros e a livre circulação de capitais, juntamente com os paraísos fiscais,
permitem com facilidade a fuga ao fisco por parte das grandes empresas e das grandes
fortunas; porque a maioria das receitas fiscais provêm de impostos indirectos, que têm
efeitos claramente regressivos do ponto de vista da justiça fiscal.
A verdade, porém, é que, mesmo quando cobertas com receitas provenientes de
impostos cobrados em maior medida às camadas sociais de rendimentos elevados (que

456
Para maiores desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo…, cit., 30-42 e
64-74.
307

em geral coincidem com os rendimentos do capital), acabam por repercutir-se


favoravelmente sobre o aparelho produtivo privado.
Não há dúvida de que estas despesas irão aproveitar individualmente, em maior
ou menor medida, àquelas pessoas que consomem gratuitamente os respectivos bens ou
serviços, e, entre elas, a maioria pertencerá, porventura, a camadas de baixos
rendimentos (em geral, trabalhadores assalariados). Esses consumos irão, porém,
beneficiar, por outro lado, os donos das empresas (em regra pertencentes ao escalão dos
rendimentos elevados).
Desde logo, porque o facto de esses consumos serem pagos com as receitas do
estado permite que as classes trabalhadoras vão satisfazendo as exigências históricas da
sua subsistência, variáveis de país para país e de época para época, sem ter que
aumentar correspondentemente o ‘salário directo’: parte do que os ricos desembolsam a
título de imposto poupá-lo-ão nos salários que pagam aos que trabalham nas suas
empresas, que, assim, podem ser mais baixos.
Depois, o facto de esses consumos serem gratuitos liberta um montante
equivalente de rendimentos, que podem ser utilizados na compra dos bens que as
empresas produzem para vender no mercado, aumentando, portanto, a procura solvável,
o poder de compra efectivo das populações e, consequentemente, o volume de vendas e
os lucros globais das empresas.
Finalmente, as referidas despesas do estado, realizadas no âmbito da política de
redistribuição, aproveitam ainda, por outra via, aos proprietários dos meios de produção.
Na verdade, essas despesas - apesar de os bens e serviços que elas propiciam serem,
para quem os utiliza pessoalmente, autênticos bens de consumo - são correntemente
designadas como investimentos em homens (investimentos em capital humano),
pretendendo significar-se que tais despesas vão propiciar trabalhadores mais sãos, mais
fortes, mais cultos, mais sabedores, numa palavra mão-de-obra mais qualificada, capaz
de produzir mais, de dar maior ‘rendimento’ aos empregadores.
Sabe-se como o avanço das técnicas exige mão-de-obra cada vez mais instruída
e com melhor preparação científica, profissional e cultural. Por isso se proclama que os
estados, para promoverem o desenvolvimento das respectivas populações, não podem
descurar os sectores do ensino, da saúde, da segurança social, da habitação. Por isso se
compreende que tais despesas propiciem vantagens aos donos do capital, que assim
acabam por ‘amortizar’ uma parte do que pagam a título de impostos.
308

E de tal modo essas despesas são rentáveis que, quando a actuação do estado não
satisfaz, muitas são as empresas que, embora a custos mais elevados, suportam
directamente o encargo de centros próprios de formação profissional, cantinas, centros
de saúde e de recreio, bairros para o pessoal, etc.

4.11. - Os “trinta anos gloriosos”.

Até ao início da década de 1970, a chamada Curva de Phillips funcionou como um


“menu for policy choice”: se se queria combater o desemprego e promover o emprego,
bastava aceitar um pouco mais de inflação, ‘aquecendo’ a economia através de políticas
expansionistas; se se queria travar a inflação, havia que aceitar um pouco mais de
desemprego, ‘arrefecendo’ a economia através de políticas contraccionistas. E a verdade
é que, sobretudo na Europa e nos EUA, o período que decorreu entre 1945 e 1975
caracterizou-se por um bom ritmo de crescimento económico sem oscilações
significativas da actividade económica, com baixas taxas de desemprego e taxas
aceitáveis de inflação, justificando que Jean Fourastié tivesse falado de trinta anos
gloriosos e de revolução invisível, num livro que publicou em 1979 (Les trente
glorieuses ou La révolution invisible de 1946 à 1975).457
457
Ao longo da década de 1950, o PIB per capita cresceu à taxa média anual de 6,5% na RFA;
5,5% na Itália; 3,5% na França, cifras que ganham relevo se lembrarmos que essas percentagens foram,
entre 1913 e 1950, respectivamente, 0,4%, 0,6% e 0,7%. Para o conjunto da Europa Ocidental, o PIB per
capita mais do que triplicou, em termos reais, entre 1950 e 1973. Informações colhidas em T. JUDT,
309

Alguns chegaram mesmo a falar de “obsolescência dos ciclos económicos” (Arthur


Okun) e de capitalismo post-cíclico (que já não seria verdadeiro capitalismo, mas algo
como a sociedade post-industrial, de Daniel Bell, ou algo próximo do socialismo, como
sustentaram os defensores da teoria da convergência dos sistemas). 458 Este contagiante
‘optimismo teórico’ explica, por outro lado, o florescimento de uma vasta literatura
científica sobre a sociedade da abundância.
A ideia de que a deficiência da procura efectiva (a causa das crises segundo
Keynes) poderia ser compensada por adequadas políticas públicas que impediriam a
ocorrência de situações de desemprego involuntário passou a ser a nova ortodoxia no
domínio da ciência económica e das políticas económicas (foi este o consenso
keynesiano). O ambiente da época, nos círculos políticos e académicos europeus mais
importantes, é bem sintetizado por Tony Judt nestes termos: “O Estado, era a convicção
geral, faria sempre um trabalho melhor do que o mercado sem restrições: não só na
aplicação da justiça e na segurança, ou na distribuição de bens e serviços, mas também
no planeamento e aplicação de estratégias para a coesão social, amparo moral e
vitalidade cultural”.459 Os mais optimistas sustentaram que, graças a estes resultados, a
ciência económica tinha, finalmente, adquirido direito de cidadania, tornando-se uma
ciência tão rigorosa como as “ciências não-físicas”460 e que a “revolução keynesiana”
tinha desacreditado e tornado obsoleto o marxismo.461
Em 1945 a maior parte da Europa vivia ainda numa fase de pré-industrialização,
nomeadamente os países da Europa de Leste, os países mediterrânicos, a Escandinávia e
a Irlanda. Mesmo na França e na Alemanha, 30% e 23% dos activos, respectivamente,
PÓS-GUERRA, cit., 379/380.
458 ?
Entretanto, nos EUA, os sindicatos mobilizaram oa trabalhadores para a luta por melhores
salários e melhores condições e por garantias contra o desemprego. Entre Outubro de 1945 e Dezembro
de 1946 tiveram lugar várias e importantes greves. Tanto bastou para que a direita republicana
desencadasse uma cruzada contra “a tirania despótica dos sindicatos”, fazendo aprovar no Congresso, em
1947, a famosa Lei Taft-Hartley, que vem sujeitar a controlo apertado os fundos dos sindicatos, que vem
introduzir fortes limitações ao exercício do direito de greve e vem obrigar os dirigentes sindicais a
declarar, sob juramento, que não pertenciam ao Partido Comunista ou a qualquer organização que tivesse
como objectivo derrubar o governo pela força e pela violência. O autor de uma declaração falsa a este
respeito incorria em pena de prisão até cinco anos e/ou multa de dez mil dólares, podendo o respectivo
sindicato ficar impedido de participar em negociações colectivas. Perante este clima de intimidação, os
comunistas (ou suspeitos de o serem) foram afastados das direcções dos sindicatos e, em alguns casos,
foram mesmo impedidos de se sindicalizarem. Pouco tempo depois, com o apoio aberto do Presidente
Truman (Vice-Presidente de Roosevelt), começava o período da caça às bruxas, que atingiu o apogeu nos
anos seguintes a 1950, sob a liderança do senador Joseph McCarthy. Cfr. H. ALLEG, ob. cit., 53ss.
459
Cfr. T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 419.
460
Assim, Eric Roll, citado por G. PILLING, ob. cit., 4.
461
Neste sentido, v.g., J. K. Galbraith e Stuart Holand, citados por G. PILLING, ob. cit., 2-4.
Talvez por isso alguns autores que se reclamam da inspiração marxista abandonaram as preocupações do
Marx economista para se centrarem no estudo de outros problemas que interessaram Marx (a alienação,
v.g.), desvalorizando O Capital e sobrevalorizando os Manuscritos de 1844.
310

estavam ligados à agricultura. Só no RU e na Bélgica esta percentagem era de 5% e de


13%, respectivamente. Em meados dos anos 70 do século passado, o panorama tinha
mudado radicalmente: só 16% dos activos trabalhavam a terra na Itália; 12% na Áustria;
9,7% na França; 6,8% na RFA; 3,3% na Bélgica; 2,7% no RU; mesmo na Espanha, esta
percentagem baixou de 50% para 20%; em Portugal a evolução foi mais lenta (de 50%
em 1950 para 33,2% em 1970). Paralelamente, o peso da procução agrícola no PIB
diminuiu pelo menos na mesma proporção. Em 1982, no conjunto dos países que então
constituíam a CEE, 56% dos trabalhadores ocupavam-se nos serviços e apenas 8% na
agricultura. Em 1988, só Portugal e a Grécia não eram ainda economias terciárias.462
Aproveitando a circunstância de ter de se partir praticamente do zero, o processo
de industrialização, centrado na prioridade às infra-estruturas (estradas, caminhos de
ferro, energia, estabelecimento fabris e habitação), aproveitou a revolução tecnológica
potenciada pela própria guerra, lançando indústrias modernas e competitivas (a
produtividade do trabalho cresceu três vezes mais do que a média dos oitenta anos
anteriores). O desenvolvimento do comércio internacional e a escassez de dólares
permitiu o fortalecimento das relações comerciais entre os vários países da Europa
capitalista, criando um mercado alargado para as indústrias nacionais, mesmo antes da
criação do mercado comum em 1957.
Discute-se, porém, se as políticas seguidas durante o período referido representam
ou não uma correcta aplicação dos ensinamentos de Keynes, sendo que vários autores
sustentam que este keynesianismo bastardo ou keynesianismo hidráulico, baseado
essencialmente nas leituras neo-clássicas de John Hicks, Alvin Hansen e Paul
Samuelson, está longe de corresponder às análises teóricas de Keynes e às suas
propostas de política económica. Outros autores sustentam que a recuperação
económica após a 2ª Guerra Mundial não pode explicar-se pela influência dos
ensinamentos de Keynes, mas antes pelo enorme crescimento do investimento
privado.463 A verdade, porém, é que a parte das despesas públicas no PNB aumentou a
uma escala sem precedentes. Alguns exemplos: entre 1950 e 1973, a despesa pública
passou de 27,6% do PNB para 38,8% na França; de 30,4% para 42% na Alemanha
Ocidental; de 34,2% para 41,4% no Reino Unido; de 26,8% para 45,5% na Holanda.
Mais expressivo ainda foi o aumento das despesas na segurança social, saúde, educação
e habitação (nos três países da Escandinávia, as despesas do estado com a segurança
462
Em T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 381-411, podem ver-se mais informações interessantes
sobre a evolução do poder de compra e dos padrões de consumo.
463
Ver mais informações em G. PILLING, ob. cit., 11ss e 46-49.
311

social triplicaram). Tony Judt conclui: “A história de sucesso do capitalismo europeu do


pós-guerra foi por todo o lado acompanhada por um papel crescente do sector público”,
“o estado, então, era uma coisa boa”.464
Durante o período marcado pela influência da ‘revolução keynesiana’, Keynes
foi a referência ideológica do socialismo reformista (representado no Reino Unido pelo
Partido Trabalhista e, na Europa continental, pelos partidos socialistas e sociais-
democratas); o “capitalismo social” aproximou-se do “socialismo democrático” (ou
vice-versa), reduzido este último a um indefinido “socialismo do possível” 465,
renunciando à socialização dos principais meios de produção.
Um momento marcante desta ‘evolução’ foi sem dúvida o Congresso do Partido
Social Democrata Alemão (SPD), realizado em Bad Godesberg, em 1959, no qual se
aprovou um programa em que não figura qualquer referência a nacionalizações e se
proclama que a propriedade privada merece a protecção da sociedade, desde que não
impeça a realização da justiça social.466 Para quem entenda que o socialismo tem de
traduzir-se, essencialmente, na eliminação dos rendimentos não provenientes do
trabalho (o que pressupõe a apropriação social dos principais meios de produção), esta
opção dos partidos socialistas e sociais-democratas europeus “apenas significa que tais
partidos desistiram de implantar um sistema económico socialista”.467
A partir desta altura, a aspiração maior destes partidos passou a ser a de ganhar
‘respeitabilidade’, para poderem fazer valer a sua vocação governamental, o que
pressupunha a capacidade de se afirmarem como “gestores leais do capitalismo”, sem
porem em causa o próprio sistema. Este capitalismo social, disfarçado ou não de
socialismo democrático, e invocando objectivos socialistas, foi apenas o capitalismo
possível nas (ou o capitalismo exigido pelas) circunstâncias do tempo: um capitalismo
que se limitou, como bem observa Henri Janne, a ”transformar os fins maiores do
socialismo em meios de realizar outros fins, i.é, a manutenção do lucro, da iniciativa
privada, dos grupos privilegiados”.468
“Reduzidos a meios de fins bem determinados – continua H. Janne – os
objectivos socialistas alteram-se inevitavelmente. Crescimento económico, sim, mas
para o lucro e pelo lucro. Maior poder de comprar das massas, mas para permitir a

464
Cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 419.
465
Título de um livro coordenado por François Mitterrand (Paris, Seuil, 1970).
466
Tony Judt vai mais longe: “o SPD deixou de ter ambições genuinamente revolucionárias o
mais tardar em 1914, se é que de facto alguma vez as teve” (últ. ob. cit., 316).
467
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 57.
468
Cfr. H. JANNE, Le Temps de Changement, cit., 218.
312

realização do lucro. Pleno emprego, mas para assegurar a manutenção do poder de


compra global. Segurança social, mas para tornar psicologicamente possível o gasto
total dos salários. Democracia parlamentar, porque é condição de arbitragem do estado
com vista às negociações indispensáveis a um crescimento ordenado. Democratização
dos estudos, para produzir as elevadas qualificações necessárias ao funcionamento do
aparelho produtivo, mas limitada até ao ponto de não comprometer as posições
privilegiadas dos membros das famílias dos grupos dirigentes”.
O período de crescimento económico continuado do apogeu das políticas
keynesianas, a necessidade de ganhar vantagem no confronto com a URSS e os países
da comunidade socialista e uma presença mais significativa dos partidos dos
trabalhadores e dos sindicatos nas esferas do poder facilitaram uma certa ‘generosidade’
dos estados capitalistas e do sistema capitalista como um todo, permitindo, nos países
mais desenvolvidos, o alargamento dos direitos económicos e sociais dos trabalhadores,
em resposta às lutas sociais e políticas travadas com este objectivo.
Alguns chegaram a sonhar com um capitalismo post-cíclico, acreditando que o
capitalismo tinha esconjurado as suas contradições e tinha afastado o risco do
socialismo como sistema económico e social que sairá do próprio capitalismo, segundo
as suas próprias leis de movimento.

4.12. – A teoria da convergência dos sistemas.

4.12.1. - As transformações operadas nas relações entre a instância política e a


economia no quadro do capitalismo monopolista de estado e do estado social foram
interpretadas pela chamada teoria da convergência dos sistemas , uma constante do
discurso ideológico da social-democracia europeia a partir de meados do século XX e
até à emergência da perestroika ou até ao desaparecimento da comunidade socialista
europeia.
Apoiada em certos aspectos do capitalismo contemporâneo e em certos aspectos
das reformas económicas efectuadas nos países socialistas da Europa a partir de 1965, a
teoria da convergência dos sistemas defendia que o ‘novo capitalismo’ é um capitalismo
diferente ou nem já será verdadeiro capitalismo, assistindo-se a um movimento de
convergência dos dois sistemas.
Esta foi, a nosso ver, mais uma tentativa de ‘matar’ a alternativa socialista ao
capitalismo, com o argumento de que o capitalismo tinha sido ultrapassado graças à
313

incorporação de “elementos de socialismo” e de que o socialismo vinha dando mostras


de se aproximar de alguns pontos essenciais do capitalismo. Perante esta rota de
convergência, a opção correcta seria a de ‘escolher’ um sistema misto, a meio caminho
entre os dois sistemas que aspiravam a governar o mundo ou sistema superador de
ambos, acolhendo o melhor de um e outro.469
Keynes tinha deixado claro que aquilo a que depois se chamou a ‘revolução
keynesiana’ nunca pretendeu ser uma revolução a caminho do socialismo e sempre se
afirmou como a política indispensável para salvar o capitalismo do colapso que, nos
primeiros anos da década de 1930, parecia iminente.
Por isso, os referidos ‘elementos socialistas’ (sector empresarial do estado,
planificação pública, políticas de redistribuição do rendimento, todos os instrumentos do
estado-providência) só aparentemente poderiam negar o capitalismo. Na sua essência,
eles integram-se, como não poderia deixar de ser, na lógica do capitalismo, actuando
como elementos de ‘racionalização’, como factores de estabilização, como instrumentos
de segurança e anestésicos das tensões sociais. Tal como Keynes tinha deixado claro: a
‘revolução keynesiana’ nunca pretendeu ser uma revolução anti-capitalista (a caminho
do socialismo) e sempre se afirmou como a solução política indispensável para salvar o
capitalismo do colapso que, nos primeiros anos da década de 1930, parecia iminente.
Mais uma vez, usando agora a cenoura em vez do chicote, 470 o que se pretende é
negar a existência das classes sociais e dos conflitos sociais: passou a falar-se de
parceiros sociais, que dialogam em conselhos de concertação social, com vista à
prossecução dos interesses superiores do país. É o estado social a cumprir a sua função
de integração social, de ‘dissolução’ das estruturas de classe da sociedade e de
encobrimento da natureza de classe do estado.
É mais uma fase de um processo contínuo desde finais do século XIX, período a
partir do qual o movimento social-democrata proclamou uma mudança na “arquitectura
institucional do Estado”, que teria feito dele um “espaço de integração social e

469
Sobre a teoria da convergência dos sistemas, cfr. A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo,
cit.
470
Entretanto, o chicote não foi posto de parte. Mesmo na Europa, a violência fascista não
desapareceu com a vitória sobre o nazi-fascismo. Portugal e Espanha foram ‘condenados’ pelas
democracias vitoriosas em 1945 a sofrer mais trinta anos de opressão e de atraso económico e social. No
coração da Europa democrática, a Grécia não foi poupada à violência de uma ditadura militar. E o mesmo
(ou pior) aconteceu em vários pontos do chamado Terceiro Mundo. Basta recordar o que se passou com a
Guerra da Indochina e depois com a Guerra do Vietnam, com a Guerra da Argélia e as guerras coloniais
desencadeadas pelo fascismo português; o que se passou na Guatemala e no ex-Congo belga, com os
vários regimes militares da América Latina, o bloqueio contra Cuba, a guerra contra a Nicarágua
sandinista, etc.
314

intervenção política para as organizações vinculadas ao movimento operário”. Como


salienta um dos seus teóricos em Portugal, a “esquerda democrática” “mudou
radicalmente de atitude face ao Estado”, tendo abandonado, ao longo do século XX, a
“posição libertária de querer destruí-lo, como dominação e factor de dominação
burguesa”, para adoptar um programa reformista, que levou a considerar o estado (o
estado capitalista, porque é dele que estamos a falar) como “comunidade política
nacional”, como “espaço de pertença de toda a colectividade”, como “expressão da
comunidade política nacional”, como “representação política de toda a sociedade”.471
Esta é sem dúvida um das marcas actuais da social-democracia: o abandono da
tese de que o estado é sempre, nas sociedades de classes, um estado de classe, deixando
para trás não só Marx, mas os grandes clássicos do século XVIII. Basta recordar Adam
Smith: o estado foi instituído logo que surgiram “propriedades valiosas e vastas”; foi
“instituído com vista à segurança da propriedade”, para garantir aquele “grau de
autoridade e subordinação” sem o qual não é possível manter o statu quo; foi instituído
com vista “à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres”.
Se não é a negação das classes, aquela teoria do estado é a defesa da
colaboração de classes no seio de um estado que representa toda a sociedade. Esta é
uma ideia velha, que integra a doutrina social da Igreja e que o fascismo utilizou,
afeiçoando-a à prossecução dos seus próprios objectivos: concebido o estado como uma
entidade acima das classes, que se ocupava apenas do bem comum, ficava assim
‘legitimado’ para ‘dissolver’ as classes sociais por decreto e, mesmo que pela violência,

471
As transcrições são de Augusto SANTOS SILVA, ob. cit., 22, 32-34, 38. O estado seria algo
parecido como um clube onde todos os cidadãos poderiam entrar, se para isso tivessem os votos
suficientes dos cidadãos-eleitores. Não vamos analisar a questão do condicionamento das votações pela
ideologia dominante (foi a consciência disto mesmo que, a certa altura, levou a burguesia dominante a
deixar de ver no sufrágio universal não uma ameaça de revolução permanente, mas um instrumento de
anestesia, de integração e de prevenção da contestação revolucionária), cuja produção é rigorosamente
controlada pelo núcleo duro das classes dominantes. Basta lembrar o que se passa na “grande democracia
americana”: como é sabido, há décadas que vêm sendo eleitos presidentes os candidatos que conseguem
reunir mais fundos para a campanha eleitoral e que esses fundos provêm, em larguíssima medida, do Big
Business. É óbvio que nenhum candidato ou nenhum partido que se apresente como representante dos
interesses trabalhadores consegue entrar neste estado-para-todos, porque é o dinheiro que comanda e
garante a eleição do Presidente e a eleição dos Representantes e dos Senadores. E todos sabemos que não
há almoços grátis… O direito a participar no estado transformou-se num bem que tem de se ‘comprar’ no
mercado, e este mercado, como todos os outros, é controlado pelo grande capital. A soberania do
consumidor (a soberania do cidadão!) é pura fantasia, como em todos os mercados.
Esta questão é, aliás, tão antiga como as eleições nas sociedades capitalistas. Por volta de 1832,
um candidato ao Parlamento britânico calculava ter de gastar, numa única eleição, entre dez mil e vinte
mil libras (uma fortuna!). E numa publicação da época escrevia-se: “Não há no reino meia dúzia de
localidades em que um homem honesto, de competência e de carácter reconhecidos, possa esperar vencer
outro que esteja preparado para despender uma fortuna para o conseguir” (informação colhida em
MORTON/TATE, ob. cit., 80/81).
315

obrigar todos (trabalhadores e capitalistas) a colaborar, dentro do estado, na


prossecução deste bem comum, que dizia respeito a toda a toda a nação.
Não podemos partilhar esta visão do estado, sobretudo num tempo, como aquele
que vivemos, em que a actuação do estado capitalista como estado de classe nos parece
particularmente evidente: a fidelidade aos cânones do neoliberalismo configura mesmo
um certo regresso aos bons velhos tempos do século XVIII.

4.12.2. - Acompanhemos um pouco mais de perto os argumentos dos defensores


da tese da convergência dos sistemas.

“Em minha opinião - escreve Jan Tinbergen 472, um dos defensores da tese da
‘convergência’ - o sistema ocidental actual não é capitalista como o era em 1850”. Ora, a
verdade é que entre o capitalismo de concorrência de 1850 e o capitalismo monopolista de
estado dos nossos dias se notam sensíveis diferenças em vários domínios. Mas cremos que as
alterações verificadas não configuram mudanças qualitativas suficientemente relevantes para,
com base nelas, se dizer que o sistema que hoje enquadra as relações económicas, sociais e
políticas no mundo ocidental - o “sistema ocidental actual” de que falava Tinbergen - já não
pode definir-se como capitalista. Se a nossa análise está correcta, essas alterações não afectaram
a essência definidora do capitalismo, e não oferecem suporte à afirmação de Tinbergen, segundo
o qual, “pela minha [dele, Tinbergen] parte, já não chamo capitalista ao sistema existente nos
países do Ocidente.”473

As afirmações de que o sistema dominante nestes países é um sistema misto


podem ir filiar-se na corrente de pensamento iniciada com Bernstein, cujo sentido é o de
negar a alternativa socialista para o capitalismo, uma vez que este entrou numa nova
fase, qualitativamente diferente, em que as contradições se atenuam a tal ponto que este
novo ‘capitalismo’ já não é algo de oposto ou de diferente em relação ao socialismo.
E esta é, bem entendida, a filosofia inerente à tese da convergência dos sistemas,
cujas raízes directas poderão ir buscar-se a Comte (o primeiro ideólogo da tecnocracia e
da sociedade industrial), a Rudolf Hilferding (com a sua teoria do “capitalismo
organizado”), a Max Weber e a Werner Sombart 474
, passando por toda a teoria

472
Cfr. J. TINBERGEN, “O essencial…, cit., 48.
473
Cfr. J. TINBERGEN, Entrevista…, cit., 11.
474
Na 3ª parte de Der Moderne Kapitalismus escreve W. SOMBART (L’apogé…, cit., II, 526):
“Devemos, entretanto, habituar-nos à ideia de que, entre um capitalismo estabilizado e regularizado e um
socialismo racionalizado que utilize todos os recursos da técnica, a diferença não é muito grande (...)”
[sublinhado nosso]. Mais tarde (Il socialismo…, cit., 83ss.), viria a defender uma noção de socialismo na
qual caberia inclusive o regime nazi. O socialismo seria, efectivamente, para Sombart, “um estado de vida
social em que o comportamento dos indivíduos é determinado em princípio por normas obrigatórias que
radicam numa razão universal, intimamente ligada à comunidade política, e que encontram a sua
expressão na lei (nomos).” Trata-se, como o próprio Sombart reconhece, de definir o socialismo como um
puro “normativismo social”, de “libertá-lo de qualquer determinação de conteúdo e de concebê-lo de
modo puramente formal”, em termos tais que, identificando o nomos com o socialismo, considera
316

sociológica da sociedade industrial (Raymond Aron, George Friedmann, Herbert


Marcuse, Ralph Dahrendorf, entre outros), ao mesmo tempo que a sua filosofia inspira
economistas de mentalidade liberal, como Galbraith, ou adeptos de um socialismo
reformista, como Tinbergen ou John Strachey,

4.12.3. – Os defensores da teoria da convergência dos sistemas procuram passar


a ideia de que, nas condições actuais, seria possível escolher um sistema misto, que
reunisse as vantagens do capitalismo e do socialismo. Algumas das críticas mais fortes
apontam, por sua vez, como um dos pontos mais fracos desta teoria da convergência a
falta de perspectiva do processo histórico de evolução dos modos de produção, como se
a evolução dos sitemas económicos, a passagem de um sistema para outro fosse uma
questão dependente da escolha, da opção que se faça entre um leque de possibilidades.
Maurice Dobb desvaloriza esta “solução de meias tintas”, sublinhando que “modificar
todo um sistema económico não é o mesmo que cozinhar um sucolento guizado ou fazer
um pastel, actividades que permitem misturar livremente os ingredientes segundo o
gosto de cada um”.475
Esta atitude perante a dinâmica do processo histórico é que explicará que, à luz
das mutações verificadas nos países em que o capitalismo é o sistema dominante e nos
países onde foi tentada a via socialista, se tenha incorrido no vício de análise de abstrair
das características essenciais dos dois sistemas, para concluir que o capitalismo já não
existe ou superou as suas contradições próprias e que o socialismo evidencia(va)
tendência para regressar a fórmulas capitalistas, vindo a encontrar-se os dois sistemas
num ponto intermédio, numa fórmula híbrica capitalismo-socialismo.
Ora a verdade é que, como salienta P. Pitta e Cunha 476, “a menos que se
generalize a privatização no domínio das economias socialistas ou se acentue a
estatização no âmbito das economias ocidentais, para além do que é razoavelmente
previsível, persistirá a diferença de raiz quanto à propriedade dos meios de produção,
não obstante o paralelismo formal na consagração de soluções mistas de mercado e de
plano.” [sublinhado nosso]
O propósito referido de ‘matar’ o socialismo como alternativa ao capitalismo
transparece claramente nos escritos dos defensores da tese da convergência.

socialismo as simples prescrições de “não-fumar”, “circular pela direita”, “é proibido colher flores”, etc.
475
Cfr. M. DOBB, Argumentos…, cit., 65.
476
Cfr. P. PITTA e CUNHA, “As reformas…, cit., 30.
317

Num artigo de 1965 477, escrevia Tinbergen que “os dois sistemas estão em evolução” e
que “as alterações revelam uma tendência para a aproximação. Há mesmo provas indicativas -
acrescenta - de que os dois sistemas evoluem no sentido de um optimum, de uma ordem que é
melhor, ao mesmo tempo, que o capitalismo puro e o socialismo puro”. Daí que, em outro texto
publicado pela mesma altura 478, concluísse, coerentemente, que apresentar o litígio ideológico
entre os EUA e a URSS “de maneira simplista, como o litígio entre o ‘capitalismo’ e o
‘socialismo’” era uma forma ultrapassada de ver a questão, pois, em seu entender, “tudo mostra
como a controvérsia sobre o sistema social e económico óptimo se tornou, de controvérsia
absolutamente qualitativa, em problema de natureza relativa e quantitativa (...)”.

Alguns autores levaram esta lógica bastante mais longe. Adolf Berle, v.g.,
conclui da análise das grandes corporations americanas, que

“o aparecimento e o desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a


propriedade como instituição quase tão profundamente como o fazem a doutrina e a prática
comunistas” e não hesitou em afirmar “que o sistema económico americano baseado na
propriedade privada se tornou, no fim de contas, tão socialista como muitos sistemas
socialistas”.479

Finalmente, esta amostra das conclusões a que pode levar (e tem levado) a lógica
que subjaz e os elementos em que se apoia a teoria da convergência dos sistemas: “O
conceito de comunismo de Marx - escreve um professor americano, Robert Tucker 480 - seria
aplicável hoje, com rigor, à América; o seu conceito de capitalismo está absolutamente
antiquado e ultrapassado”.

4.12.4. - Equacionada em termos gerais a tese da convergência dos sistemas,


importará esclarecer agora quais os elementos essenciais na caracterização do
capitalismo e do socialismo para depois se averiguar em que medida eles se ajustam à
realidade dos países capitalistas e dos países que apostaram na construção do
socialismo.
Vimos atrás quais os elementos que verdadeiramente imprimem carácter a um
sistema económico. Dentro do esquema enunciado, não será difícil distinguir o
capitalismo do socialismo.
4.12.4.1. - Seguindo a lição de Teixeira Ribeiro481 e de A. C. Pigou482, parece
poder afirmar-se que as características essenciais do capitalismo se traduzem na
propriedade privada dos meios de produção e no recurso ao trabalho assalariado (o
477
Cfr. J. TINBERGEN, “Face à l’avenir”, cit., 11-12.
478
Cfr. J. TINBERGEN,”Idéologies…, cit., 6.
479
Cfr. A. A. BERLE, “Les grandes unités”, cit.
480
Cfr. R. TUCKER, Philosophie…, cit., 200.
481
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura…, cit., 15/16 e Capitalismo e socialismo…, cit.,
2.
482
Cfr. A. C. PIGOU, Socialism…, cit., cap. I.
318

que permite aos donos do capital a obtenção de rendimentos sem trabalho), cabendo a
iniciativa da produção a empresas que se propõem a obtenção de lucros.
Como elemento fundamental, aparece um certo tipo de relações sociais de
produção, cuja expressão no plano jurídico é a apropriação dos meios de produção por
uma classe (os capitalistas), com a consequente separação da outra classe (os
trabalhadores assalariados) dos meios de produção. Este tipo de relações sociais de
produção é que permite aos detentores do capital a organização da podução com base na
contratação de trabalhadores assalariados e a apropriação do sobreproduto social.
“Porque os capitalistas ganham a título de propriedade - escreve Teixeira Ribeiro 483 -,
enquanto os trabalhadores recebem em paga do esforço, cria-se uma diferenciação
social entre os que, por serem proprietários, podem viver sem trabalhar e os que, por
não o serem, têm de trabalhar para viver.” A essência do capitalismo reside
precisamente nesta diferenciação social, diferenciação que arranca directamente da
posição social que cada uma das classes ocupa nas relações sociais de produção.
4.12.4.2. - Quanto ao socialismo, poderá dizer-se, com Teixeira Ribeiro 484, que
são os seguintes os seus traços fundamentais:
1) que os meios de produção pertençam à colectividade ou ao estado
(propriedade social dos meios de produção);
2) que só se distribuam rendimentos a título de trabalho;
3) que as explorações laborem em obediência a um plano, organizado com vista
à satisfação das necessidades individuais, ou colectivas, objectivamente avaliadas pelos
poderes públicos.
Uma concepção de socialismo muito próxima da que fica enunciada é a exposta
no ensaio citado de Pigou. Para o professor inglês, o socialismo implica:
1) a propriedade colectiva ou pública dos meios de produção;
2) a eliminação da obtenção privada de lucros, no sentido da existência de
homens ou grupos de homens que contratam outros homens e vendem depois o produto
do trabalho destes, com o objectivo de obter lucros;
3) planificação com vista ao bem comum, i.é, com o objectivo de beneficiar não
a uma classe determinada, mas sim a “comunidade como um todo.”
Admitindo que uma das características essenciais do socialismo é a distribuição
de rendimentos apenas como remuneração do trabalho, Teixeira Ribeiro sustenta que o
483
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política…, cit., 168.
484
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura…, cit.; Capitalismo e socialismo…, cit., e
Sobre o socialismo, cit..
319

único processo admissível de realizar esta finalidade “é a apropriação social dos meios
de produção”. Antecipa este autor o argumento de parecer estranha esta sua conclusão
tendo em conta o facto de que “muitos dos partidos que se reclamam do socialismo (…)
têm nos últimos decénios renunciado, expressa ou tacitamente, à apropriação social da
maior parte dos meios de produção”. A sua resposta é incisiva: “isso apenas significa
que tais partidos desistiram de implantar um sistema económico socialista”.485
Relativamente à satisfação das necessidades enquan-to móbil específico do
socialismo, o mesmo professor comenta: “claro que a economia capitalista também
satisfaz necessidades, e nenhuma economia atingiu até hoje tanto êxito como ela em tal
domínio”. No entanto, Teixeira Ribeiro põe em relevo esta diferença, que considera
essencial: “na economia capitalista a satisfação de necessidades é um meio, e não um
fim; é o meio de a empresa, vendendo os seus artigos, ganhar nessa venda, obter lucros;
enquanto na economia socialista a satisfação de necessidades é ela própria o fim da
actividade económica”. E porque “a satisfação de necessidades é um meio e não um
fim”, no quadro do capitalismo, conclui o autor, “sempre que seja conveniente sacrifica-
se o meio à realização do fim, procurando alcançar-se mais lucro mesmo à custa de
satisfazer menos necessidades”.486
E poderia alargar-se a indicação de autores e obras que apontam a propriedade
social dos meios de produção como um elemento essencial para se poder falar de
socialismo, incluindo, portanto, na caracterização do socialismo, aquela que foi a
principal reivindicação dos autores do Manifesto Comunista: a “abolição da propriedade
privada” dos meios de produção: “o que caracteriza o comunismo não é a abolição da
propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. Ora a propriedade
privada de hoje, a propriedade burguesa, é a última e a mais perfeita expressão do modo
de produção e de apropriação baseado em antagonismos de classes, na exploração de
uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem resumir a sua teoria nesta fórmula
única: ‘abolição da propriedade privada’”.487

485
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 56/57.
486
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 48/49.
487
Marx insiste frequentemente na distinção entre propriedade privada (a propriedade privada
que assenta no trabalho pessoal do proprietário) e propriedade capitalista (a propriedade que assenta no
trabalho de outrm que não o proprietário): “a privada capitalista pressupõe a aniquilação da propriedade
privada fundada no trabalho pessoal; a sua base é a expropriação do trabalhador” (Cfr. O Capital, trad. J.
Roy, cit., 568-575). No Anti-Dühring (ed. cit., 343) Engels caracteriza deste modo a apropriação
característica do socialismo: “de um lado, a apropriação social directa como meio de manter e
desenvolver a produção e, de outro lado, a apropriação individual directa como meio de vida e de bem-
estar”.
320

4.12.4.3. - A respeito do sistema dominante no ‘mundo ocidental’, fala-se de


sistema misto “com numerosos elementos socialistas.”
Que elementos socialistas serão estes?
a) Em primeiro lugar, são os chamados direitos sociais dos trabalhadores,
obtidos, e que, em regra, se traduzem na actuação do estado no domínio da segurança
social, assistência, educação, lazer, campos que fundamentalmente integram a base do
estado social (ou estado providência).
Trata-se de direitos obtidos na sequência de duzentos anos de lutas dos
trabalhadores e das suas organizações, enfrentando a oposição violenta e sistemática do
estado capitalista, à custa de milhões de vítimas. Trata-se de direitos que os
trabalhadores tiveram de conquistar um a um, a começar pela liberdade sindical e a
limitação da jornada de trabalho, melhores salários, melhores condições de trabalho e
melhores condições de vida.
A alteração da correlação de forças obrigou o estado capitalista a assumir como
suas algumas metas dos programas socialistas. Mas elas foram rapidamente ‘integradas’
na lógica do sistema, que transformou em meio o que deveria considerar-se um fim em
si mesmo. Henri Janne coloca a questão nestes termos:

“o significado do neocapitalismo é claro sobre este ponto: transformar os fins maiores


do socialismo em meios de realizar outros fins, isto é, a manutenção do lucro, da iniciativa
privada, dos grupos privilegiados. Reduzidos a meios de fins bem determinados, os objectivos
alteram-se inevitavelmente. Crescimento económico, sim, mas para e pelo lucro. Maior poder
de compra das massas, mas para criar o lugar ao mecanismo de realização do lucro. Pleno
emprego, mas para assegurar a manutenção do poder de compra global. Segurança social, mas
para tornar psicologicamente possível a despesa total dos salários individuais.” 488

b) Em segundo lugar, integrarão o núcleo dos elementos específicos do


capitalismo contemporâneo v.g. o financiamento pelo estado de certas actividades, a
propriedade pública de certos sectores ou empresas, a planificação pública da economia,
questões que analisámos atrás.

4.12.5. - A análise destes novos traços do capitalismo tem levado os defensores


da teoria da convergência dos sistemas a determinadas conclusões que apontam no
sentido de que a propriedade privada (capitalista) perdeu o seu significado e deixou de
poder adoptar-se como elemento caracterizador do capitalismo. Sobre estes aspectos
incidem as páginas que seguem.
488
Cfr. H. JANNE, ob. cit., 218.
321

4.12.5.1. - Diz-se que “a propriedade privada de hoje só representa uma fracção


da liberdade de acção característica de 1850”. Eis uma afirmação a que não poderá
negar-se alguma verdade, embora desta verdade não possa concluir-se que a natureza da
propriedade sobre os meios de produção não é já elemento relevante para a
caracterização do sistema capitalista (ou socialista).
É claro que não vivemos hoje no regime de pequena empresa que caracterizou os
primeiros tempos do industrialismo, em que o capitalista era também o empresário, o
dirigente da sua empresa. As coisas mudaram de então para cá: o progresso técnico foi
enorme e por vezes a um ritmo vertiginoso. Daí que as empresas, para poderem
acompanhar a evolução das forças produtivas, carecessem de grande volume de capitais.
Compreende-se, por isso, que as sociedades por acções fossem ganhando importância
crescente, pois elas constituem um instrumento jurídico-económico que facilita a
centralização de capitais e a concentração do poder económico nos grandes accionistas,
além de que, sendo grandes empresas, vêem acrescidas as possibilidades de
concentração de capitais, em resultado da sua própria acumulação. Para caracterizar esta
situação em que os mais importantes sectores da actividade económica estão nas mãos
de sociedades por acções cotadas e transaccionadas nas bolsas de valores falou-se de
corporate economy.489
Daí que o conhecimento e o controlo dos mercados actuais e potenciais, o
conhecimento e o controlo das inovações tecnológicas tenham adquirido importância
decisiva na gestão da empresa capitalista. Daí, naturalmente, as transformações
espectaculares nas técnicas de gestão, a importância dos gabinetes de estudo, de
concepção, de marketing, a necessidade de organização e de programação a longo
prazo. Daí que o capitalista-proprietário-dirigente de outrora não pudesse sobreviver.
Daí, a importância crescente do organizador e gestor industrial e a necessidade de
separar a propriedade da gestão.
Este fenómeno não é novo. Adam Smith já o anotou, ao esclarecer que o lucro
não podia confundir-se com o salário devido pelo trabalho de direcção e inspecção.
“Nas grandes fábricas – escreve Smith – quase todo o trabalho desse género [o trabalho
de inspecção e direcção] é, muitas vezes, entregue a um empregado superior. O salário
deste é que, na verdade, exprime o valor desse trabalho de inspecção e direcção.
Embora, ao fixá-lo, se tome normalmente em consideração, não só o seu trabalho e

489
A expressão é utilizada pela primeira vez por R. MARRIS e Adrian WOOD (eds.), The
Corporate Economy, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1971.
322

perícia, mas também a confiança que nele se deposita, esse salário não apresenta uma
relação fixa com o capital cuja administração ele tem a seu cargo; e o proprietário do
capital, embora fique assim livre de quase todo o trabalho, não deixa, por isso, de contar
com um lucro proporcional ao respectivo capital”.490
Marx previu-o em O Capital, ao analisar as consequências da expansão das
sociedades por acções. Como se escrevesse no tempo de Berle e de Burnham, Marx fala
da “transformação do capitalista que exerce realmente as suas funções num simples
manager (de capital de outrem), e dos proprietários de capital em simples proprietários,
em simples financeiros”, acrescentando que a propriedade do capital “se encontra então
completamente separada da sua função no processo real da reprodução, do mesmo
modo que esta função, na pessoa do director, está separada da propriedade do
capital.”491
As alterações que ficam sumariamente apontadas contribuíram, na verdade, por
um lado, para substituir a propriedade individual por uma nova forma de propriedade, a
propriedade social (a propriedade da sociedade, como pessoa colectiva cujo substracto
pessoal é constituído por um grupo maior ou menor de sócios), e, por outro lado, para
separar, institucionalmente, as funções de director e de proprietário.
Daqui até à conclusão de que a propriedade dos meios de produção perdeu todo
o significado, de que a propriedade privada dos meios de produção deixou de poder
considerar-se elemento essencial do sistema dominante nos países industrializados do
ocidente e de que este sistema sofreu, por isso, uma mutação qualitativa fundamental,
uma mudança na sua natureza e na sua lógica interna - até esta conclusão, vai um
grande passo, importando averiguar da legitimidade para o dar.
4.12.5.2. - Defendem alguns que o capitalismo sofreu uma mudança essencial
pela via da difusão da propriedade accionista, da democratização do capital resultante
da emissão de acções adquiridas por milhares ou mesmo milhões de pessoas. Assim se
criaria uma situação de capitalismo popular, fenómeno que arrastaria consigo um
nivelamento das classes e um clima de ‘harmonia social’ e de ‘paz social’.492

490
Cfr. Riqueza das Nações, cit., I, 149/150.
491
Cfr. K. MARX, Le Capital, em Oeuvres (ed. de M. RUBEL, cit.), II, 1175. Também Engels
refere este aspecto, em consequência do desenvolvimento das sociedades por acções: “Todas as funções
sociais do capitalista são hoje exercidas por empregados remunerados. O capitalista já não tem nenhuma
actividade social a não ser embolsar rendimentos, cortar cupões e jogar na bolsa, que é onde os diversos
capitalistas tiram o capital uns dos outros” (cfr. “Do Socialismo Utópico…, cit., 161).
492
Nesta lógica se inserem, aliás, as tentativas de fazer participar os operários no capital e nos
lucros das empresas (accionariado operário e outras técnicas de participação, que, em regra, não têm
colhido o favor dos sindicatos).
323

Nesta lógica se inserem, aliás, as tentativas de fazer participar os operários no


capital e nos lucros das empresas (accionariado operário e outras técnicas de
participação493). A verdade, porém, é que compromissos deste tipo não têm colhido, em
regra, o favor dos sindicatos. Com efeito, tais empresas não deixam de ser capitalistas:
os ‘operários-accionistas’ limitam-se, na maior parte dos casos, a receber títulos de
participação que lhes dão direito a receber uma certa percentagem do lucro da empresa
(como recompensa da sua antiguidade ou dos seus bons serviços), mas sem direito a
voto e muito menos a ser eleito para a administração. Estes ‘accionistas’ não passam a
decidir dos fins da produção nem do destino do sobreproduto, decisões que continuam a
caber quase por inteiro aos grandes accionistas que controlam a sociedade e controlam a
aplicação do sobreproduto, com a vantagem de que, interessando os trabalhadores na
empresa (fazendo-os crer que a empresa também é deles e que o futuro deles está ligado

Mas a verdade é que não é por isso que tais empresas deixam de ser capitalistas: os operários-
accionistas limitam-se, em regra, a receber títulos de participação que lhes dão direito a receber uma certa
percentagem do lucro da empresa (como recompensa da sua antiguidade ou dos seus bons serviços), mas
sem direito a voto e muito menos a ser eleito para a administração. Estes ‘accionistas’ não passam a
decidir dos fins da produção nem do destino do sobreproduto, decisões que continuam a caber quase por
inteiro aos grandes accionistas que controlam a sociedade e controlam a aplicação do sobreproduto, com a
vantagem de que, interessando os trabalhadores na empresa (fazendo-os crer que a empresa também é
deles), asseguram maior estabilidade da mão-de-obra e maior rendimento do trabalho.
493
Num texto de 1894, Edouard Bernstein foi dos primeiros a glorificar o accionariado operário
como meio para democratizar o capitalismo. Esta ideia, bem como a tese de Rudolf Hilferding (1915)
sobre o “capitalismo organizado” enquanto estádio de transição para o socialismo, constituíram um dos
apoios teóricos para a adopção pelo Partido Social-Democrata Alemão da tese segundo a qual o
socialismo (só) pode ser atingido pelos caminhos da democracia parlamentar, por meios não
revolucionários, no pressuposto que o aparelho de estado capitalista se manterá neutro na luta de classes e
não impedirá a passagem ao socialismo pela via reformista. (Cfr. W. GOTTSCHALCH, ob. cit., 30ss).
Esta questão foi objecto de polémica entre Rosa Luxemburgo, por um lado, e Edouard Bernstein
e Conrad Schmidt, por outro. Contra a tese de C. Schmidt segundo a qual o obtenção de uma maioria de
deputados social-democratas no parlamento seria a forma directa da socialização gradual da sociedade,
Rosa Luxemburgo argumentou (em 1899) que “tão logo a democracia mostra disposição de negar o seu
carácter de classe e tornar-se um instrumento dos verdadeiros interesses do povo, as formas democráticas
são sacrificadas pela burguesia e pelos seus representantes no estado”. Perante a barbárie nazi-fascista,
Otto Bauer (dirigente de topo dos socialistas aubstrícos e uma das figuras mais destacadas da social-
democracia europeia da época, escreveu em 1936 que a experiência do nazi-fascismo “destrói a ilusão do
socialismo reformista de que a classe trabalhadora pode encher as formas da democracia de um conteúdo
socialista e desenvolver a ordem capitalista até transformá-la numa ordem socialista, sem um salto
revolucionário” (citações colhidas em P. SWEEZY, Teoria.., cit., 296.
A questão mantinha-se actual nos anos 30 do século XX e o professor Oskar Lange ocupa-se
dela num livro publicado pela Universidade de Minnesota em 1938 (Economic Theory of Socialism):
“Não pode levar-se a cabo um programa de ampla socialização através de etapas graduais. Um governo
socialista autenticamente decidido a implantar a socialização tem de decidir entre realizar o seu programa
de uma só vez ou renunciar completamente a ele. Inclusivamente, a chegada do dito governo ao poder
pode originar um pânico financeiro e um colapso económico. Nestes termos, um governo socialista tem
que escolher um dos dois termos deste dilema: ou garante a imunidade da empresa e da propriedade
privada a fim de assegurar o funcionamento normal da economia capitalista, renunciando ao socialismo
que propugna, ou segue resolutamente em frente, levando a cabo com toda a rapidea o seu programa de
socialização. Qualquer dúvida, qualquer indecisão provocaria uma catástrofe económica inevitável. O
socialismo não é uma política económica para os pusilânimes” (citação colhida em M. DOBB,
Argumentos…, cit., 113/114).
324

ao futuro da empresa), asseguram maior estabilidade da mão-de-obra, maior grau de


‘paz social’ e maior rendimento do trabalho.494

Ora a verdade é que o capitalismo popular, resultante da difusão das sociedades


anónimas e da dispersão das acções, não deixa de ser capitalismo e nem sequer será
‘popular’. Assim como a concentração ao nível das empresas - enquanto fenómeno que
traduz a polarização crescente dos capitais e do poder económico, o ‘monopólio’ das
grandes empresas - em nada é afectada pela sobrevivência e até pelo aumento do
número das pequenas empresas, assim também o grande número de pequenos
accionistas não é decisivo para pôr em causa o poder dos grandes, que decidem da vida
da empresa com o mesmo à vontade com que as grandes empresas decidem das
condições da indústria (esta pretensa ‘democratização do capital’ accionista não afecta o
‘monopólio’, a ‘ditadura’ da grande burguesia). Antes pelo contrário: a difusão das
sociedades por acções e, mais recentemente, da vária gama dos investidores
institucionais e das sociedades holding (sociedades gestoras de participações sociais),
tem sido o meio mais eficaz de ‘radicalização’ do sistema, de proletarização de largas
camadas da pequena e média burguesia, de centralização de capitais e de concentração
do poder económico (e, portanto, do poder político) nas mãos da grande burguesia,
muito para além da sua própria capacidade de acumulação.
De resto, o ‘capitalismo popular’ nunca deixaria de ser capitalismo (pois sempre
subsistiriam os rendimentos sem trabalho), a menos que se identificasse o socialismo
com a ‘generalização da condição burguesa’ e se admitisse a hipótese absurda de todas
as pessoas a ela ascenderem... (absurda, porque a subsistência da condição burguesa
implica a existência de pessoas na condição proletária).
Acresce que todos os estudos realizados sobre esta problemática mostram que
não tem qualquer fundamento a ideia de uma distribuição realmente ampla da
propriedade accionista. Sendo os EUA o país onde foi mais longe, por razões várias, a
difusão da propriedade accionista, os dados disponíveis evidenciam que, após anos de
propaganda da ‘revolução’ do capitalismo popular, em 1988 0,5% das famílias

494
A ideia de fazer os trabalhadores participar no capital das empresas em que trabalhavam teve
eco em Portugal em uma proposta de Programa de Governo apresentada publicamente pelo Partido
Socialista em 1987. A sua concretização passaria pela criação de um Fundo Empresarial de Investimento,
financiado através de descontos obrigatórios nos salários dos trabalhadores, em percentagem a negociar
em sede de concertação social (Cfr. Expresso, 20.6.1987). O PS não ganhou as eleições e a ideia perdeu-
se.
325

americanas detinham 46,5% das acções ao portador; os 10% mais ricos açambarcavam
89,3%, cabendo aos restantes 90% apenas 10,7% das acções; na parte mais pobre da
população, 55% das famílias americanas não detinham qualquer propriedade e muitas
delas estavam sobre-endividadas. Os 20% mais ricos de entre os americanos
arrecadavam 43,7 do rendimento nacional, cabendo aos 20% mais pobres apenas 4,6%
(15,5 % para os 40% mais pobres, menos do que os 16,7% arrecadados pelos 5% mais
ricos). No que toca à riqueza total, os 0,5% mais ricos dos americanos chamavam a si
45,4% (25,4% em 1963), cabendo aos 10% mais ricos 83,2% de toda a riqueza (65,1%
em 1963), sendo que os restantes 90% das famílias americanas se contentavam com
16,7% da riqueza total (34,9% em 1963).495
Fica assim reduzida à sua verdadeira natureza a tese da democratização do
capital: um mero slogan publicitário veiculando publicidade enganosa em proveito do
grande capital ‘produtor’ e aproveitador da ideologioa dominante. Além disso, é
evidente que não passa de pura ficção considerar co-proprietários todos os que possuem
uma ou duas (ou de dez, ou cem…) acções das sociedades que enquadram juridicamente
as grandes empresas ‘monopolistas’, e considerar ‘capitalistas’ todos os accionistas.
Como tal só devem considerar-se os que recebem rendimentos do seu capital que sejam
pelo menos suficientes para lhes permitir viver sem ter que vender a sua força de
trabalho.
O que fica dito parece ser o bastante para que não possam tomar-se a sério
afirmações como as de Berle, segundo o qual a difusão das acções “constitui, por um
curioso paradoxo, uma forma imprevista de socialização da indústria, desenvolvendo-se
rapidamente, mas sem a intervenção do estado”, pelo que “o aparecimento e o
desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a propriedade enquanto
495
Cfr. J. KLOBY, ob. cit. e Le Monde Diplomatique, Maio/1988. A moda da democratização do
capital acabou por chegar a Portugal. Todos os opinion makers com lugar nos grandes meios de
comunicação social alimentaram a campanha destinada a destacar o caráter revolucionário da
democratização do capital e da transformação dos trabalhadores das empresas desnacionalizadas em
accionistas das ‘suas’ empresas. Curiosamente, porém, os jornais e as televisões mostraram o outro lado
da realidade: junto dos locais onde os subscritores recebiam os documentos representativos da titularidade
de um certo número de acções, funcionavam guichets onde ‘alguém’ propunha aos novos accionistas a
compra das suas acções por mais algum dinheiro do que aquele que os subscritores tinham pago. A maior
parte dos trabalhadores accionistas ficavam logo ali reduzidos à sua condição própria de trabalhadores
assalariados. A ‘revolução’ mal saía à rua…
Por outro lado, os mesmos fazedores de opinião cedo esclareceram que a difusão das acções por
um grande número de accionistas facilitava o controlo das novas sociedades anónimas com cerca de 35%
do capital, pelo que seria conveniente que as operações de desnacionalização incluíssem um lote de 35%
do capital que só poderia ser licitado em conjunto. É claro que o objectivo desta medida não era o de
consolidar a transformação ‘revolucionária’ dos trabalhadores em capitalistas. Bem pelo contrário: o seu
propósito confesso era o de entregar aos grandes grupos económicos (muitas vezes estrangeiros) o
controlo das empresas desnacionalizadas. E foi isto que aconteceu, como é sabido.
326

instituição quase tão profundamente como o fazem a doutrina e a prática comunista”.496


Estamos no domínio da pura mistificação.
A maior operação no sentido de fazer do capitalismo popular uma bandeira
política foi a protagonizada pelo Partido Conservador britânico sob a liderança da Srª
Thatcher. Em plena campanha eleitoral de Junho /1983, ela anunciava: “Quero fazer de
cada britânico um capitalista”. A demagogia do slogan (não pode chamar-se a isto um
projecto político) era por demais evidente. Já no Governo, a Primeira Ministra britânica
justificava o seu vastíssimo programa de desnacionalizações com o argumento de criar
no RU uma “democracia de accionistas e de pequenos proprietários”. É o regresso do
velho mito jacobino, agora vestido de saia e casaco.
O espectáculo atingiu o clímax com a desnacionalização da British Telecom.
Após uma enorme campanha publicitária, 96% dos trabalhadores da empresa
adquiriram os títulos que lhes tinham sido reservados e cerca de dois milhões de
britânicos compraram acções do gigante das telecomunicações, especialmente atraídos
pela promessa de tarifas mais leves para os accionistas da nova empresa privada.
Segundo os jornais da época, o Governo apressou-se a proclamar: “criámos, de um
golpe, um exército de capitalistas” e “lançámos uma verdadeira revolução cultural”.
Entre 1979 e 1987, o número de pequenos accionistas passou, no RU, de 2,5 milhões
para cerca de 8,5 milhões, situação que se foi diluindo com o decorrer do tempo, como
era de esperar.
No entanto, por trás desta verdade de opereta, a realidade era outra: o número de
britânicos a viver abaixo da linha oficial de pobreza duplicou entre 1979 e 1987
(atingindo neste ano 12 milhões de pessoas); neste intervalo de tempo, desapareceram
cerca de 2 milhões de postos de trabalho na indústria; em 1987 o desemprego atingia
11% da população activa.497
4.12.5.3. - Um outro caminho que tem sido percorrido para concluir pela
irrelevância da propriedade dos meios de produção é o que anda à volta da chamada
revolução dos managers (ou revolução dos gerentes), ‘revolução silenciosa’ que se
traduziria na expropriação dos antigos expropriadores pelos seus gerentes assalariados e
pela substituição do poder que deriva da propriedade por um poder sem propriedade: a
property without power era substituída pelo power without property (expressão cunhada
por Adolf Berle 498).
496
Cfr. A. BERLE, “Les grandes unités”, cit., 9.10.2.
497
Cfr. Expresso, 10.6.1987.
498
Cfr. A. BERLE, The Twentieth…, cit. e Power Without Property, cit.
327

Este ponto de vista, que transparece já no Keynes de The End of Laissez-Faire


(1926)499, apareceu pela primeira vez equacionado e desenvolvido, em 1932, num livro
de Adolf Berle e Gardiner Means (Modern Corporation and Private Property), sendo
definitivamente lançado como ‘revolução’ por James Burnham (The Managerial
Revolution, 1941500), reaparecendo mais tarde, sob uma nova capa (a tecnostrutura), nos
trabalhos de J. K. Galbraith (particularmente em The New Industrial State, 1968).
Poderá dizer-se que os defensores desta tese arrancam do desenvolvimento
tecnológico e das exigências crescentes ao nível da organização e da gestão das
empresas para tentar mostrar a impossibilidade de o proprietário individual controlar as
informações necessárias à direcção das empresas e, a partir daí, explicar a crescente
importância dos managers e o seccionamento da (antiga) propriedade absoluta em
propriedade (uma propriedade limitada, uma propriedade sem poder, que caberia aos
accionistas) e em poder de direcção sem propriedade (que caberia aos directores). Estes
é que dirigiriam as empresas e a vida económica, actuando de acordo com uma lógica
diferente da que era típica do proprietário-capitalista-director do século XIX.501
A lógica dos managers, da tecnostrutura, não seria já a da valorização do
capital, a da maximização dos lucros, mas uma lógica própria, com fins próprios,
independentes dos interesses e da posição de proprietário. Uma lógica que se traduziria
em promover o crescimento da empresa, o aumento da sua dimensão e do seu poder,
num compromisso que procuraria ir ao encontro não só dos interesses dos accionistas e
dos gerentes, mas também dos interesses dos trabalhadores, do estado e do público em
geral e até dos interesses da “própria empresa como instituição”. A lógica derivada da
propriedade privada dos meios de produção estaria ultrapassada, sendo esta ‘revolução’
a consequência inevitável (automática) da revolução tecnológica, sem tocar em nada o
fundamental (a natureza das relações de produção e do sobreproduto e a classe a quem

499
“Um dos desenvolvimentos mais interessantes e desconhecidos das últimas décadas tem sido
a tendência das grandes empresas para se socializarem a si próprias. Chega-se um ponto no crescimento
de uma grande instituição (…) em que os titulares do capital, os accionistas, são quase inteiramente
separados da direcção, com o resultado de que o interesse pessoal directo em alcançar o lucro mais
elevado se torna completamente secundário” (The End…, cit., 42-43).
500
Uma análise crítica do livro de Burnham pode ver-se em P. SWEEZY, Ensaios…, cit., 40ss.
As debilidades da sua tese levaram Burnham a defender que o sistema económico implantado na
Alemanha pelo partido nacional-socialista “deixou a base do capitalismo e entrou pela estrada de uma
nova forma de sociedade”, invocando como justificação o facto de a Alemanha nazi ter eliminado o
desemprego (cfr. P. SWEEZY, ob. cit., 47).
501
A. D. CHANDLER (The Visible Hand…, cit., 81-121) procura mostrar que já nos finais do
século XIX a organização (a administração constituída por técnicos) se afirmava como fonte de poder no
contexto do capitalismo industrial, substituindo a propriedade como fonte dominante do poder
económico. Fala-se mesmo de revolução organizacional (Kenneth Boulding, The Organizational
Revolution, N. York, Harper, 1953).
328

cabe o controlo deste, e, portanto, a iniciativa da produção, a direcção da produção e a


definição dos seus objectivos).
A antiga classe dominante (proprietários dos meios de produção) teria sido
substituída nos EUA (e tendencialmente sê-lo-ia nos outros países capitalistas) por uma
tecnocracia puramente neutral (“a purely neutral technocracy”), que “equilibra
exigências diversas de diferentes grupos na comunidade, atribuindo a cada qual uma
parte do fluxo de rendimento, à base da política pública e não da cupidez privada”. 502
Daí resultaria uma nova lógica do sistema, pois essa tecnocracia iria adoptar um
“comportamento que pode ser considerado ‘responsável’: não há demonstração de
cobiça ou ganância; não há tentativa de transferir para os trabalhadores ou para a
comunidade grande parte dos custos sociais da empresa”. A grande empresa moderna -
conclui Carl Kaysen 503 - é uma empresa dotada de alma (“a soulful corporation”).
Segundo esta tese (a tese da empresa dotada de alma), as grandes sociedades
anónimas e os seus administradores “não podem ignorar a sua responsabilidade
determinante para com o público” (A. Berle). Esta ideia de afirmar a grande empresa
como instituição responsável não apenas perante os accionistas, mas também perante os
seus trabalhadores, os consumidores e o público em geral faria dela uma espécie de
‘serviço público’, superando, de algum modo, a principal contradição apontada ao
capitalismo (a que resulta do confronto entre a propriedade privada dos meios de
produção e a apropriação privada dos lucros e o carácter social da produção).
As modernas sociedades anónimas seriam administradas por um corpo de
directores que tenderiam a perpetuar-se no poder, sem dependerem da vontade dos
accionistas, afastados da direcção efectiva das empresas. Estas poderiam prosseguir e
prosseguiriam efectivamente fins e interesses diferentes dos que derivariam da lógica da
propriedade privada dos meios de produção. Os managers sentir-se-iam responsáveis
perante a opinião pública e o peso da opinião pública faria nascer nesse corpo todo-
poderoso de directores profissionais uma noção de responsabilidade que os levaria a não
abusar dos seus poderes e a conformar-se com os ideais da colectividade. Adolf Berle
vai a ponto de considerar as grandes empresas como organizações para-políticas.504
A Profª Joan Robinson analisou esta ‘moda’: “Hoje em dia, os Directores (os
que escrevem com D maiúsculo) gostam de se considerar a si próprios como
desempenhando um serviço público”. E dá conta de um Manifesto publicado durante a
502
Cfr. A. BERLE e G. MEANS, Modern Coporation…, cit., 356.
503
Cfr. C. KAYSEN, ob. cit., 313/314.
504
Últ. ob. cit.
329

2ª Guerra Mundial em que 120 empresários ‘confessavam’ em público as suas enormes


enormes responsabilidades sociais.505 Reconhecendo que são os (grandes) empresários
quem, na realidade, controla a afectação dos recursos e a distribuição do rendimento,
comenta a Professora de Cambridge: “Isto parece arrogante e presunçoso. Quem deu a
estes indivíduos o direito de fixar a distribuição do rendimento nacional e que tipo de
sabedoria sobre-humana pretendem possuir para fazer uma correcta distribuição?”
Para acalmar os espíritos desencantados como os da Senhora Robinson, têm sido
tentados vários caminhos. Um deles é o que decorre da chamada teoria do
countervailing power, que J. K. Galbraith introduziu em 1952 (American Capitalism:
the Concept of Countervailing Power) e que ele próprio resume assim: “Há na
sociedade moderna um razoável equilíbrio entre os que exercem o poder e os que a ele
se opõem. (…) O poder gera a sua própria resistência e age no sentido de limitar a sua
própria eficácia”.506
Este efeito compensador da opinião pública faria equilibrar o poder dos
directores das grandes empresas com uma espécie de conscience du roi que os
colocaria, não ao serviço da valorização do capital, mas ao serviço dos interesses da
colectividade. Sob o impulso dessa ‘consciência’, as próprias empresas deixariam de
‘comportar-se’ em obediência ao espírito de maximização do lucro, para ganharem elas
próprias uma ‘alma’ que as levaria a prosseguir o interesse público: “A grande empresa
- escreve Adolf Berle507 - não pode fazer da acumulação um fim em si, nem tem
qualquer razão para o fazer. Não pode ser Crésus nem Harpagon. Tem de continuar a
engrandecer-se à medida que a população e os níveis de vida se elevam. A sua função é,
assim, a de estar do serviço de uma comunidade mais extensa”.508
505
Vale a pena dixar este trecho, colhido em J. ROBINSON, Filosofia…, cit., 154/155: “A
Indústria [com maiúscula…] tem três responsabilidades públicas: para com as pessaos que consomem os
seus produtos, para com aqueles que nela trabalham e para com aqueles que proporcionam o capital com
o qual ela funciona e se desenvolve. (…) A obrigação dos que dirigem a Indústria é manter um justo
equilíbrio entre os diferentes interesses do público como consumidor; do pessoal administrativo e dos
operários como empregados da empresa; e dos accionistas co mo investidores, assim como contribuir no
maior grau possível para o bem-estar da nação”.
506
Cfr. Anatomia do Poder, cit., 88/89.
507
Cfr. A. BERLE, “Les grandes unités”, cit., 9.08.16.
508
Em contraponto, talvez valha a pena contar uma história que li não sei onde há um bom par de
anos (há uma referência a este episódio em H. ALLEG, ob cit., 96). Após vários dias de greve dos
trabalhadores da indústria americana do aço, o Presidente da U. S. Steel (que produzia então cerca de
80% do aço americano e era a maior empresa do mundo neste sector) deu uma conferência de imprensa
em que declarou que, se o governo não interviesse e a greve prosseguisse, a empresa encerraria a
produção. Um jornalista perguntou como era isso possível, uma vez que tal comportamento iria afectar
gravemente toda a economia americana, fortemente dependente do aço produzido pela U. S. Steel
(automóvel, contrução naval, aviação, armamento, construção civil, etc.). O dito Presidente teria
respondido de imediato:“estamos no mercado para ganhar dinheiro, não para produzir aço”. Um Big Boss
desmente assim, com toda a lógica, a teoria dos que querem fazer ‘santos’ os administradores das grandes
330

Se o mundo funcionasse desta sorte, seria caso para acreditar numa espécie de
mão invisível colectiva, uma vez que este efeito compensador galbraithiano significa
algo de semelhante à mão invisível de Adam Smith: se cada grupo de interesses
organizados puder prosseguir livremente os seus próprios interesses, desta actuação
resultará a limitação do poder de outros grupos, gerando-se um equilíbrio que,
independentemente da vontade dos protagonistas, promoverá da melhor maneira
possível o interesse e o bem-estar colectivos.509
Toda a questão está, porém, em saber se aquele poder compensador, que se
afirma derivar da existência de uma opinião pública vigilante, será capaz de produzir a
referida conscience du roi, se será capaz de limitar a liberdade de decisão das grandes
empresas. Embora não rejeitando o ponto de vista que apresentou em 1952, o próprio
Galbraith veio reconhecer ter adoptado, naquele livro, “um ponto de vista
indevidamente optimista quanto ao equilíbrio resultante”.510
Na esfera da actividade económica dominada pelas sociedades por acções, o
sentido da presença da propriedade privada seria muito diferente do que lhe seria
próprio no seio do modo de produção capitalista. No mundo das grandes sociedades por
empresas.
509
Cfr. M. J. ULMER, ob. cit., 264/265. Transferindo este raciocínio para as classes sociais e
para a luta de classes, dir-se-ia que, perante o poder de uma das classes (a classe dominante), a acção da
classe explorada, prosseguindo o seu próprio interesse de classe, daria lugar a um equilíbrio de poderes
que se traduziria na promoção do interesse de toda a comunidade. A luta de classes perderia todo o
sentido. O paraíso ficaria ao alcance de um toque desta varinha mágica que é countervailing power. Na
dialéctica marxista, a dinâmica da conflitualidade em sociedades constituídas por classes sociais com
interesses antagónicos conduz à agudização das contradições até que chegue o tempo da revolução social
e da passagem de um sistema a outro; segundo a tese de Galbraith, o conflito de interesses gera uma
dinâmica de adaptação, através do efeito compensador, que acaba por conduzir aumaticamente,
espontaneamente, a uma posição de equilíbrio que realiza o interesse geral. E a história acabaria aqui.
Também por esta via o capitalismo teria garantida a eternidade. Galbraith não é propriamente um
representante da mainstream economics. Mas, neste aspecto, deixou-se enlear nas teias da ideologia do
equilíbrio geral
510
Cfr. Anatomia do Poder, cit., 89. É interessante, por outro lado, atentar-se em que este apelo
à função social da grande empresa, considerada como uma espécie de unidade económica ao serviço da
Pátria  apelo que constitui ponto importante das teses de quantos proclamam a sociedade dos gerentes
ou a sociedade industrial como sistema superador do capitalismo e (também) do socialismo  foi também
um ponto-chave dos teóricos do sistema corporativo, igualmente apontado como síntese superadora do
liberalismo capitalista (tese) e do socialismo (antítese). Vale a pena recordar, a este respeito, que o art. 2.°
do Estatuto do Trabalho Nacional (diploma estruturante do corporativismo salazarista) atribuía às
empresas, como pilares da organização económica da Nação, “realizar o máximo de produção e de
riqueza socialmente útil e estabelecer uma vida colectiva de que resultem poderio para o Estado e justiça
entre todos os cidadãos”. Compreende-se agora esta observação de V. MOREIRA (“Sobre o poder…, cit.,
780, nota 7): a própria “concepção da ‘consciência social’ dos managers não deixa de manter um curioso
parentesco com as proclamações nazis e fascistas que viram no empresário o ‘funcionário do bem
comum’, o ‘curador dos interesses económicos nacionais’, etc. A responsabilidade social do empresário
faz parte também do ideário do ‘estado social’, outro dos grandes títulos da teoria política
contemporânea.” Ao fim e ao cabo, trata-se de enquadrar, num outro contexto, a quimérica função social
da propriedade, que foi consagrada na Constituição de Weimar.
331

acções (o sub-sistema industrial de que fala Galbraith, por contraposição ao sub-sistema


do mercado), “a propriedade privada - defende Adolf Berle - é em grande medida
motivada pelo desejo de evitar que a totalidade dos poderes seja concentrada nas mãos
do estado, assegurando assim um grau de liberdade individual que seria reduzido se
houvesse confusão da função económica e da função política”. Para explicar (justificar)
a realidade neste tempo de ‘monopólios’, recorre-se à velha tese liberal da separação da
política (a esfera do estado) e da economia (a esfera dos particulares), separação que
seria a garantia da liberdade dos indivíduos perante o estado.
Quer dizer: a propriedade privada dos meios de produção não teria hoje o
significado ‘económico’ e social da propriedade capitalista. Berle fala de “erosão do
conceito clássico de propriedade privada”. E Schumpeter vai mais longe ainda: em seu
entender, a evolução do capitalismo “desvitaliza a noção de propriedade”, opera a
“evaporação do que podemos chamar a substância material da propriedade”, “afrouxa o
domínio, outrora tão forte, do proprietário sobre o seu bem”, tudo isto de tal forma que,
dentro da estrutura das sociedades anónimas gigantes (dirigentes assalariados, grandes e
pequenos accionistas), “ninguém adopta sem reserva a atitude que caracteriza o curioso
fenómeno, tão pleno de sentido, mas em vias de desaparecimento tão rápido, que a
palavra Propriedade exprime” - “a figura do proprietário e, com ela, o olho do patrão
desapareceram de cena”.511 No mesmo sentido é a opinião sustentada por Tinbergen:
“(...) toda uma série de componentes da propriedade foram já nacionalizados. Como
dizem outros economistas, a propriedade privada já foi creusée”.512
Tudo isto para concluir, afinal, que, se é o poder que conta e não a propriedade,
capitalismo e socialismo se encontram superados por um novo modo de produção (a
sociedade dos gerentes, a sociedade de tecnostrutura), para o qual convergiriam aqueles
dois.513
Como consequência do progresso tecnológico – concluem paralelamente os
ideólogos da sociedade industrial -, acontece que o verdadeiro salto qualitativo não é o

Cfr. J. SCHUMPETER, Capitalism…, cit., 141/142.


511
512
Cfr. J. TINBERGEN, Entrevista, cit.
?

513
A tese de que perdeu significado e importância a propriedade (privada) dos meios de
produção aparece também claramente formulada num livro de G. ADLER-KARLSSON (ob. cit., 7), onde o
autor sustenta que, “actualmente, a propriedade formal dos meios de produção é uma questão secundária,
tal como tem sido amplamente provado pela experiência socialista sueca. O que é de primeira importância
- defende Karlsson - é a distribuição na sociedade das funções políticas e económicas que se ocultam
debaixo da propriedade formal”. Fica de pé a questão de saber se poderá classificar-se como socialista a
economia e a sociedade visadas pela governação social-democrata na Suécia.
332

que distingue o socialismo do capitalismo, mas o que distingue e contrapõe a sociedade


industrial a todas as outras formas de organização económico-social.
Augusto Comte afirmara já que “pouco importa aos interesses populares em que
mãos se encontram habitualmente os capitais.” E Sombart, no seu livro sobre o
Deutscher Sozialismus, põe o problema desta forma claríssima:

”O problema da propriedade para o socialismo alemão não é um problema em si


mesmo. O dilema propriedade privada ou propriedade colectiva, à volta do qual se vem
batalhando há tantos séculos e se batalha ainda aqui e ali, para o socialismo alemão não existe.
(...) Propriedade privada e propriedade colectiva conviverão uma ao lado da outra, com a
condição, naturalmente, de que a propriedade privada não tenha um alcance ilimitado, mas
tenha, ao menos no que se refere aos meios de produção e à terra, o carácter de uma investidura
feudal. Posso associar-me plenamente a Othmar Spann - continua Sombart - quando escreve
‘formalmente há propriedade privada, substancialmente só propriedade social’. O direito de
propriedade - conclui o economista alemão - já não determina as directrizes da economia; mas
são estas que determinam a amplitude e a espécie do direito de propriedade: eis o ponto
fundamental”.”514

Também Keynes sustentou que “o estado não tem interesse em chamar a si a


propriedade dos meios de produção. Se ele é capaz de determinar o volume global dos
recursos consagrados ao aumento desses meios e a taxa-base da remuneração concedida
aos seus detentores, terá realizado tudo o necessário. As medidas indispensáveis de
socialização podem, aliás, ser aplicadas de modo gradual e sem revolucionar as
tradições gerais da sociedade”.515 Quer dizer: o estado não carece de chamar a si a
propriedade dos meios de produção para poder realizar a função que lhe cabe. Só que
Keynes não sustenta que as suas propostas conduzem ao socialismo. Antes pelo
contrário: deixa bem claro que o “alargamento das funções do estado” que ele propõe,
as tais “medidas indispensáveis de socialização”, são o “único meio de evitar uma
completa destruição das instituições [capitalistas] actuais.” Para realizar um tal
objectivo, o estado não precisará, evidentemente, de abolir a propriedade privada dos
meios de produção.
À luz do que fica dito, poderá dizer-se que as grandes empresas prosseguem
agora, como resultado da gestão levada a cabo pelos directores profissionais, objectivos
diferentes daqueles que são próprios de uma acumulação fundada na propriedade
privada dos meios de produção?
Esta é a tese de Berle, de Burnham, de Kaysen e de todos aqueles que tendem a
identificar a actuação dos managers das grandes empresas capitalistas com a que
514
Cfr. W. SOMBART, Il socialismo…, cit., 374.
515
Cfr. J. M. KEYNES, General Theory…, cit., 378.
333

caracterizava a dos directores das explorações públicas nos países da ex-comunidade


socialista europeia, por exemplo (ou da URSS). Parece ser igualmente a tese de
Tinbergen, que reconhece diferenças apenas quanto ao “grau de liberdade nas decisões
da produção. Os managers que dirigem as organizações industriais no Ocidente –
escreve ele - têm, sob este aspecto, uma liberdade bastante maior do que aquela que têm
os managers dos países comunistas, onde um número de problemas ainda assás
considerável vem planificado do centro”.516
Galbraith, por sua vez, fala dos “fins próprios da tecnostrutura”, construindo a
partir deles um “sistema regido pela lei do crescimento”, por contraposição a um outro
“sistema regido pela lei do lucro” (capitalismo); ainda concede que “o seu [da
tecnostrutura] primeiro fim é, na verdade, assegurar um mínimo de lucros para garantir
a sua independência”. Mas, a partir daí, entende que “o seu interesse é muito mais o de
assegurar o crescimento da empresa do que o de aumentar os lucros, pois os lucros
advêm aos accionistas, dos quais a tecnostrutura já não depende”.517
Contra tal tese poderá logo objectar-se que esta “lei do crescimento”, de que fala
Galbraith, quer se considere um crescimento pelo crescimento (inspirado por uma
qualquer misteriosa ideia de grandeza...), quer se trate de um crescimento destinado a
enfrentar o aumento da população ou a corresponder à elevação dos níveis de vida, não
encontra explicação possível nos quadros de um sistema cuja finalidade é “a
transformação de certa soma de dinheiro em uma soma de dinheiro maior” (Teixeira
Ribeiro518). Dito de outra maneira: num modo de produção em que a iniciativa da
actividade económica cabe aos detentores do capital, o crescimento da empresa não
poderá conceber-se como um fim em si mesmo, só ganhando sentido como meio de
valorização do capital.
4.12.5.4. - Se tivermos em conta o estatuto dos managers, poderá dizer-se que a
diferença entre a posição dos managers das grandes sociedades anónimas capitalistas e
a dos directores das unidades de produção da ex-comunidade socialista residia
fundamentalmente no maior ou menor grau de liberdade de manobra de que gozavam
uns e outros? Não nos parece que o essencial esteja aí. Se bem vemos, o que importa é
saber a quem pertence a propriedade das empresas, a quem pertence o sobreproduto, a
quem cabe decidir do seu destino. E ninguém duvidará de que as respostas a estas

516
Cfr. J. TINBERGEN, “Una ipotesi…, cit., 28.
517
Cfr. J. K. GALBRAITH, Entrevista, cit.
518
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura… cit., 11.
334

questões não podem ser as mesmasse estivermos a pensar em sociedades assentes em


economias capitalistas ou em economias socialistas.
A liberdade de decisão de que gozam os managers de grandes empresas
capitalistas é a liberdade de actuar por forma a conseguir a máxima valorização do
capital (próprio ou do ‘patrão’); a liberdade de decisão dos directores das empresas
públicas numa economia socialista é a liberdade de adequarem a actuação destas à
melhor realização das determinações planificadas fundamentais, pois a propriedade
social dos meios de produção (e a consequente apropriação e controlo social do
sobreproduto) torna possível fazer da satisfação das necessidades socialmente
planificadas o móbil da actividade económica, afastando a valorização do capital, a
obtenção de lucros, da posição de ‘motor’ e fim primeiro da produção.
Se assim se não entender, então a coerência obriga a levar o discurso até onde o
levou Burnham, incluindo na sua “sociedade dos gerentes” as economias da União
Soviética, dos EUA e da Alemanha nazi. 519 Levado o raciocínio a este ponto extremo,
talvez se conceda que, na verdade, se estão a misturar e a confundir situações
radicalmente diversas.
Nesta perspectiva é que interessará estudar qual o verdadeiro estatuto dos
managers (da tecnostrutura) numa sociedade capitalista. Serão uma classe neutra?520
Integrarão a classe capitalista (monopolista) dominante e/ou esta-rão ao serviço dela?
Não pode negar-se que a realidade das sociedades por acções significa que a sua
administração não está sob o controlo efectivo de todos os accionistas. O poder de
controlo escapa, na prática, aos pequenos accionistas, o que, aliás, representa uma
vantagem para os grandes, que ficam a dispor do dinheiro dos pequenos e beneficiam da
concentração do poder económico nas suas mãos, em medida muito superior à que
derivaria apenas do seu próprio capital. Não se nega tal fenómeno, mas cremos que não
tem fundamento sério a tese de que o poder económico cabe agora a indivíduos que não
detêm a propriedade dos meios de produção, a tese que afirma como dominante o poder
sem propriedade.
A verdade é que os administradores que controlam as sociedades por acções (the
managerial stratum) constituem “o grupo mais activo e influente da classe dos
proprietários”, como salientam Baran e Sweezy: “os managers estão entre os maiores

519
Para uma perspectiva crítica das teses sustentadas por Burnham em The Managerial
Revolution, cfr. P. SWEEZY, Ensaios…, cit., 40.
520
Tese que tem a sua expressão mais acabada em BERLE/MEANS, ob. cit.; J. BURNHAM, ob. cit.,
e em obras posteriores de A. BERLE (The Twentieth…, cit.).
335

proprietários; e, em virtude das posições estratégicas que ocupam, eles funcionam como
protectores e porta-vozes de toda a propriedade em grande escala. Longe de serem uma
classe à parte, constituem na realidade o escalão principal da classe dos
proprietários”.521 E a experiência mostra que, em regra, os administradores de categoria
mais elevada (top managers) pertencem ao mesmo grupo social dos proprietários,
desenvolvendo estreitas relações uns com os outros, na sociedade e no mundo dos
negócios.
E quando assim não for (i.é, quando os managers não são eles próprios
accionistas e até grandes accionistas) sempre acontecerá que os directores não passam
de instrumentos mais ou menos eficientes (mas sempre subordinados) dos detentores do
grande capital, em relação aos quais se comportam, pura e simplesmente, como ‘guarda
avançada’, ‘burgomestres’, feitores e porta-vozes.
A lógica do lucro continua, pois, a marcar o comportamento dos managers e das
grandes sociedades anónimas. O capital só aspira à sua máxima valorização, aspiração
que se concretizará não na obtenção de um optimum absoluto, mas na obtenção do
máximo lucro possível em função do futuro (numa lógica de médio-longo prazo) e não
apenas de cada momento considerado.
A necessidade de crescimento das empresas (imposta pelas exigências do
progresso técnico e da concorrência) e a sua crescente autonomização relativamente ao
financiamento externo (pela via do autofinaciamento) levam as empresas a promover a
acumulação em ritmo e volume cada vez mais acentuados. Parece correcta, portanto, a
conclusão de Baran e Sweezy no sentido de que “não pode haver dúvida de que a
obtenção e a acumulação dos lucros ocupam hoje uma posição mais dominante do que
nunca”, de que a actual “economia de grandes empresas é mais, e não menos, dominada
pela lógica do lucro do que alguma vez o foi a economia de pequenos empresários”.522
Do que fica dito poderá concluir-se que a expansão das (grandes) sociedades por
acções não trouxe, como consequência, a ‘morte’ da propriedade privada dos meios de
produção nem a sua ‘destruição’ enquanto elemento caracterizador do modo de
produção capitalista. Antes pelo contrário: o desenvolvimento das sociedades por
acções significa o desenvolvimento de uma das leis fundamentais do capitalismo, a lei
da concentração capitalista. Tais sociedades têm-se revelado, efectivamente, um
poderoso instrumento de centralização de capitais e um meio altamente potenciador da

521
Cfr. BARAN/SWEEZY, Capitalismo Monopolista, cit., 34/35.
522
Cfr. BARAN/SWEEZY, últ. ob. cit., 28 e 43/44.
336

concentração do poder económico em um número reduzido de grandes empresas e, no


seio destas, em um número reduzido de grandes accionistas.
O fenómeno da dissociação entre a propriedade e o poder tem, assim, o
significado de uma ‘expropriação’ do grande número de pequenos accionistas (afastados
do poder) por um número restrito de grandes accionistas, nos quais se concentra todo o
poder, acrescentando aos poderes que lhes advêm da sua propriedade aquilo a que um
autor chamou “o poder sobre a propriedade de outrem”.
Tal fenómeno não tem, portanto, nada de extravagante na lógica do capitalismo,
antes é perfeitamente paralelo ao movimento de ‘monopolização’ ao nível das empresas,
concretizado na ‘expropriação’ ou no ‘domínio’ das pequenas empresas pelas grandes.
Cumpre-se a lógica da acumulação capitalista, não se subverte nem se anula a
importância da propriedade privada dos meios de produção.
O comportamento dos managers é, pois, um comportamento enfeudado à lógica
do capital, não fazendo qualquer sentido falar-se de conflito entre os interesses dos
managers e os interesses dos proprietários (accionistas), conflito em que prevaleceriam
os interesses específicos da tecnostrutura desligada da propriedade dos meios de
produção.
A actuação dos gerentes profissionais tem, pois, de entender-se na dinâmica de
um processo de expropriação de facto dos pequenos accionistas em favor dos grandes,
processo que a actuação dos managers favorece objectivamente, abrindo um conflito
que não é, seguramente, entre managers e proprietários (accionistas), mas sim entre os
grandes accionistas (que os managers são ou representam) e os pequenos accionistas,
entre aqueles que Joan Robinson523 chama os insiders (grandes accionistas que
controlam a empresa) e os outsiders (pequenos accionistas passivos, proprietários de
acções que consideram apenas como títulos de rendimento).
Há uns anos atrás, argumentava-se que o gerente (o organization man) pugnva
mais no sentido de aumentar os fundos para autofinanciamento da empresa do que os
lucros a distribuir pelos accionistas e conclundo-se que os gerentes estavam ao serviço
de outros interesses que não os dos proprietários dos meios de produção.
Ora, vendo bem, é fácil compreender que esse comportamento dos managers
acaba por coincidir com os interesses dos grandes accionistas que auferem grossos
rendimentos mesmo com a distribuição de uma pequena percentagem dos lucros e que
são os maiores beneficiários desse aforro forçado imposto aos pequenos accionistas.
523
Cfr. J. ROBINSON, The Accumulation…, cit., 8.
337

Dado o elevado nível dos seus rendimentos, os grandes sempre destinariam a aforro um
montante pelo menos correspondente ao que a sociedade retém, e o aforro organizado
pela própria sociedade vai aumentar a cotação das acções (ganho de capital em regra
tributado com taxas mais baixas do que as que incidem sobre os rendimentos recebidos
a título de dividendos). Em princípio, só os pequenos accionistas, interessados nas
acções apenas como títulos de rendimento, pugnam por elevadas taxas de dividendos.
O menos que poderá dizer-se, a este respeito, é o que escreve Sargant Florence:
“(...) a direcção e a decisão definitiva acerca das grandes linhas de acção (top policy)
continuam a pertencer, em numerosas sociedades, aos maiores capitalistas detentores de
acções”, havendo “razões para acreditar que a revolução dos gerentes não foi tão longe
como por vezes se pensa (ou se afirma sem pensar).” 524
Para dizer a verdade toda, será necessário acrescentar que a realidade dos tempos
que vivemos revela, sem margem para dúvida, quão falaciosa é toda esta construção
(que já o era nos de 1970…). Hoje são os próprios managers (os administradores
profissionais dos grandes grupos económicos) que vêm a público justificar as
remunerações, prebendas e pensões milionárias que se atribuem (ofensivas para quem
vive do seu trabalho), com o aval dos grandes accionistas, alegando que estes as votam
porque eles (os tais administradores das empresas dotadas de alma…) proporcionam
aos accionistas ganhos elevadíssimos (ganhos de capital e dividendos chorudos),
cumprindo e ultrapassando as metas que se propõem no exercício das suas funções, que
consistem em dar muito dinheiro aos accionistas e em pagar-se principescamente a si
próprios.525
Os accionistas, por sua vez, querem ganhar muito dinheiro, se possível em pouco
tempo (o próprio autofinanciamento das empresas com fundos resultantes de lucros não
distribuídos cheira a romantismo passadista). Por isso pagam bem aos seus servidores.

524
Cfr. S. FLORENCE, The Logic…, cit., 193.
525
Segundo o Relatório da OIT sobre a situação do trabalho no mundo referente a 2008
(acessível em www.ilo.org), os ganhos totais dos gestores de topo das quinze maiores empresas em seis
países analisados foram 521 vezes superiores à remuneração média nos EUA e 103 vezes superiores na
Holanda, sendo que os ganhos resultantes de acções atribuídas a esses gestores subiram, entre 2004 e
2008, 70% nos EUA e mais de 5000% na Holanda.
Ao longo de 2010 debateu-se em Portugal a situação do presidente do conselho executivo de
uma grande empresa do sector da energia (em cujo capital o Estado português mantém uma pequena
participação), que recebeu de prémios (ditos de desempenho) referentes a 2009 (ano de crise grave…)
algo acima de 3 milhões de euros, dinheiro que um trabalhador português que receba o salário médio
levaria cerca de 250 anos a ganhar. Quando alguns autores admitem que, nas condições actuais de fácil
circulação da informação, se justifica acrescentar à tábua dos direitos fundamentais o direito a uma
igualdade razoável, situações como esta (e há muitos milhares de situações idênticas em todo o mundo)
não permitem que se esqueçam as questões da igualdade e da justiça social.
338

A necessidade de obter lucros muito elevados para poder contentar a ‘gula’ de


accionistas e gestores justifica, segundo a generalidade dos especialistas, a atracção
destes últimos por operações de alto risco fora da economia real, que podem
proporcionar ganhos especulativos que as ‘actividades normais’ não permitem. Por
vezes, algumas destes ‘jogos de casino’ correm mal… Mas os grandes accionistas e os
gestores ao seu serviço sabem que estes ‘pecados’ contra as boas práticas de gestão e
contra a chamada ética dos negócios de que agora tanto se fala são sempre cometidos
com boas intenções (a intenção de lhes dar a eles muito dinheiro a ganhar) e sabem
também que, quando as coisas correm mal, o estado intervirá para cobrir os prejuízos,
em nome do interesse nacional.
339
340

4.13. - A “contra-revolução monetarista”.

No início da década de 1970, as economias capitalistas geraram um fenómeno


novo: situações caracterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação
crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e
crescente e de taxas decrescentes (por vezes nulas ou mesmo negativas) de crescimento
do PNB. Começava a era da estagflação.
Este fenómeno da estagflação veio pôr em causa alguns dos quadros teóricos do
keynesianismo e veio perturbar a solução até então utilizada com relativa facilidade,
baseada no trade-off inflação/desemprego (traduzido na famosa Curva de Phillips): as
políticas financeiras expansionistas ‘aqueciam’ a economia, resolvendo o problema do
desemprego à custa de um pouco mais de inflação; as políticas restricionistas
‘arrefeciam’ a economia, resolvendo o problema da inflação à custa de um pouco mais
de desemprego.
Aproveitando a confusão no seio dos keynesianos, surpreendidos pelo “paradoxo
da estagflação” (J. Stein) e hesitantes perante o “dilema da estagflação” (Samuelson), os
monetaristas passaram ao ataque. Hayek veio proclamar que a inflação é o caminho
para o desemprego526 e, parafraseando o título de um célebre opúsculo de Keynes,
defende que a inflação e o desemprego são “the economic consequences of Lord
Keynes”527, acusando as políticas de inspiração keynesiana de todos os males do mundo
e colocando no pelourinho Keynes e o estado keynesiano.
Em Agosto de 1971 a Administração Nixon tomou a decisão unilateral de
romper o compromisso assumido em Bretton Woods de garantir a conversão do dólar
em ouro à paridade de 35 dólares por onça troy de ouro. Daqui resultou a adopção do
sistema de câmbios flutuantes (uma velha reivindicação dos monetaristas), primeiro
entre os EUA e os seus parceiros comerciais, e logo de imediato aplicado em todo o
mundo. Assim se entregava às ‘leis do mercado’ (e, sobretudo, à acção dos
especuladores) um preço tão importante como o das divisas utilizadas nos pagamentos
internacionais. A “irmandade dos bancos centrais” (a expressão é de James Tobin)
apoiou abertamente as teses monetaristas, começando o ‘combate’ pelo reconhecimento
da independência dos bancos centrais enquanto entidades reguladoras do mercado do

526
“The Path to Unemployment” é o título de um conhecido artigo de Hayek (ver F. HAYEK,
“Inflation…, cit.).
527
Ver F. HAYEK, Studies…, cit.
341

crédito, reivindicando-se para eles a titularidade da política monetária e a capacidade de


decisão nesta área sem qualquer interferência dos órgãos políticos legitimados
democraticamente e sem qualquer controlo por parte das instâncias do estado.
Este foi um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. Pode dizer-se que
começa então, na prática, a “ascensão do monetarismo”. Do ponto de vista político-
económico (no plano teórico o trabalho dos liberais e monetaristas tinha começado
antes), foi o início da “contra-revolução monetarista”.528
Paralelamente, uma enorme operação de propaganda, com o apoio dos grandes

centros de produção ideológica, assegurou a difusão do “ideological monetarism” como


ideologia do império e do pensamento único, operação que culminou em 1976 (ano do
bicentenário da primeira edição de Riqueza das Nações) com a atribuição do Prémio
Nobel da Economia a Milton Friedman.
Poderemos dizer que começou então a história da terceira onda de glabalização, a
que à frente nos referiremos.

4.13.1. – A noção de desemprego voluntário.


Os monetaristas vieram recuperar a velha lei de Say, defendendo a impossibilidade
de crises gerais e duradouras nas economias de mercado, porque os mecanismos de
mercado asseguram espontaneamente o equilíbrio em todos os mercados.
E vieram relançar também a tese de que o desemprego é sempre desemprego
voluntário.529 Desde logo porque, se o mercado de trabalho funcionar sem entraves,
quando a oferta de mão-de-obra for superior à sua procura o preço da mão-de-obra
(salário) baixará até que os empregadores voltem a considerar rentável contratar mais
trabalhadores. Nestas condições, as economias tenderiam para uma determinada taxa
natural de desemprego, que traduziria o equilíbrio entre a oferta e a procura de força de
trabalho, qualquer que fosse a taxa de inflação.
Segundo a óptica monetarista, as variações conjunturais do nível de desemprego
nas actuais economias capitalistas são explicáveis fundamentalmente através das
variações da procura voluntária de emprego (trabalho) e de lazer (não-trabalho) por
parte dos trabalhadores e não através das variações da oferta de postos de trabalho por
parte das empresas.

528 ?
Cfr. M. FRIEDMAN, The Role…, cit. e H. G. JOHNSON, “The Keynesian…, e Inflation…, cits.
529 ?
Mais desenvolvidamente, ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 109ss.
342

Numa outra perspectiva, os monetaristas partem do princípio de que os


trabalhadores assalariados podem escolher livremente entre aceitar uma redução do seu
salário e deixar o seu actual posto de trabalho. Colocados nesta situação, se pensarem
que a baixa do salário real não é geral e que podem encontrar trabalho em outras
empresas à anterior taxa de salário, escolherão a segunda alternativa e lançam-se numa
actividade de procura de emprego (“searching for a better job”). Assim sendo, estas
situações de desemprego temporário (“search unemployment”) não representariam
verdadeiro desemprego (resultante da deficiente criação de postos de trabalho por parte
da economia), antes reflectiriam um maior grau de mobilidade dos trabalhadores.
Nesta óptica, o desemprego é desemprego voluntário mesmo nos casos em que os
trabalhadores estão desempregados por razões independentes da sua vontade, uma vez
que eles podem determinar livremente o tempo de procura de um novo posto de
trabalho, e que a eles cabe decidir entre procurar e não procurar um novo posto de
trabalho. Se o não procuram, isso significa, para os monetaristas, que esses
trabalhadores preferem o lazer ao rendimento real que poderiam receber se
trabalhassem.
É o regresso às concepções pré-keynesianas, que consideravam o desemprego
(neste sentido, desemprego voluntário) como a consequência de salários reais
demasiado elevados, em virtude de os trabalhadores não aceitarem uma redução dos
salários suficiente para que a sua remuneração igualasse a produtividade marginal do
seu trabalho e os empregadores tivessem interesse em os contratar. Por outras palavras:
quem não tiver emprego poderá sempre encontrar um posto de trabalho, se aceitar um
salário mais baixo que o corrente. Se o não aceitar é porque prefere continuar sem
emprego, optando por procurar um novo posto de trabalho (voluntary searching for a
better job).530
530 ?
Um dos teóricos do desemprego voluntário vai mesmo ao ponto de afirmar que os
despedimentos são um ‘véu’ cuja aparência é enganadora: os trabalhadores que são despedidos perdem o
emprego por, implicitamente, rejeitarem a opção que lhes seria oferecida de continuarem a trabalhar por
um salário mais baixo. Antecipando a objecção de que estas situações são muito raras na prática, A. L.
Alchian (apud J. R. SHACKLETON, “Economists…, cit., 7) nega que tal acontece porque a experiência
ensinou aos empregadores que não teriam êxito quaisquer propostas e negociações com esse objectivo...
Se fosse caso para fazer ironia, dir-se-ia que Milton Friedman quase sugere que só estarão
empregados os trabalhadores que não se comportarem racionalmente. Na verdade, ele defende que
“muitas pessoas podem ter, estando desempregadas, um rendimento em termos reais tão elevado como o
que poderiam ter estando empregadas”. Sendo assim, se “o desemprego é uma situação com muitos
atractivos”, como Friedman sustentava em 1976, compreender-se-á que os trabalhadores optem por estar
desempregados... E compreender-se-á também que o estado não se preocupe em remediar as situações de
desemprego (consideradas, nas palavras mordazes de Modigliani, uma espécie de epidemia de “preguiça
contagiosa”), antes devendo deixar correr, como insinua o humor azedo de S-C. Kolm, para “respeitar a
livre escolha das pessoas” de entrar em período, mais ou menos longo, de “férias voluntárias”, na
343

Desvalorizado assim o desemprego, ele deixou de constar das preocupações dos


responsáveis, até porque, segundo a nova/velha teoria, as economias se encaminhariam
espontaneamente para a situação de pleno emprego, desde que se deixassem funcionar
livremente os mecanismos do mercado. A inflação surgiu como o inimigo público
número um, inimigo perante o qual se deveria actuar como perante o terrorismo: não
ceder nem um milímetro. No combate prioritário à inflação (porque ela afecta o sistema
de preços e, portanto, o funcionamento do ‘mercado livre’ e a ‘racionalidade’ das
economias capitalistas) devem sacrificar-se (e têm-se sacrificado) todos os demais
objectivos de política económica, nomeadamente os introduzidos por Keynes para
conciliar o capitalismo com a democracia.
Esta política anti-inflacionista opera através da contracção da actividade
económica e do aumento do desemprego, esperando os seus defensores que daqui
resulte uma redução dos salários reais capaz de assegurar às empresas uma taxa de
lucro suficientemente elevada para estimular o aumento dos investimentos privados e o
relançamento posterior da economia, com o consequente aumento do volume do
emprego. Essencial é que se entregue a economia ao livre jogo das ‘leis do mercado’, se
reduza a intervenção do estado na economia e se anulem os “monopólios sindicais.”
Defendendo que a inflação é sempre um puro fenómeno monetário - resultante de
um aumento da quantidade de moeda em circulação em maior medida do que aquela em
que aumenta a produção -, o monetarismp teórico não pode, por uma questão de

coerência, culpar directamente os sindicatos pela inflação.531 Mas considera-os


responsáveis pelo desemprego, dada a resistência que oferecem à baixa dos salários
nominais.
Com efeito, os monetaristas sobrelevam, entre os factores susceptíveis de explicar
o aumento da referida taxa natural de desemprego 532 o fortalecimento do que designam
por “poder monopolista” dos sindicatos, a legislação que impõe o salário mínimo, a
expressão de Robert Solow (Cfr. F. MODIGLIANI, The Monetarist..., cit., 6; R. SOLOW, “On Theories…,
cit., 7-10 e S. KOLM, Le Libéralisme…, cit., 106). À ideia de que, se não optar por não procurar um novo
emprego (ou por não trabalhar), o trabalhador que perde o seu emprego sempre encontrará um posto de
trabalho em um qualquer ponto da economia apetece mesmo reagir deste modo: “Na óptica de Lucas,
uma pessoa despedida de um emprego pode, presumivelmente, engraxar sapatos numa estação de
caminho de ferro ou vender maçãs numa esquina” (A. BLINDER, “Keynes, Lucas…, cit., 131).
531 ?
Cfr. F. HAYEK, “Unions…, cit., 281/282.
532 ?
No plano político, a aceitação deste aumento é muito clara: os conselheiros económicos de
Truman consideravam natural (= pleno emprego) uma taxa de desemprego entre 1,5 % e 2,5 %; os de
Eisenhower apontaram como tal uma taxa de 2,5% a 3,5%; os de Nixon referiram uma taxa entre 4,5 % e
5,5 %; em 1982, a administração Reagan considerou a taxa de 6,5 % como nível de pleno emprego; em
1986, tendia-se para aceitar como tal uma taxa à volta dos 7%. Cfr. SHERMAN/EVANS, ob. cit., 245 e A.
BLINDER, “Keynes, Lucas…, cit., 123.
344

instituição dos subsídios de desemprego e outras contribuições da segurança social em


benefício dos desempregados, e/ou a sua aplicação a categorias mais amplas de
trabalhadores, o aumento do seu montante e da sua duração.
Há quem lembre, naturalmente, o que história ensina: aquelas medidas constituem,
historicamente, uma resposta ex post ao aumento do desemprego para níveis económica,
política e socialmente intoleráveis.533 Os neoliberais insistem, porém, nos malefícios
resultantes da existência de um sistema público de segurança social.
Invocam, por um lado, que ele contribuiu para tornar mais atractiva a entrada no
mercado de trabalho, o que terá provocado um aumento da população trabalhadora
enquanto percentagem da população total. Mas realçam, sobretudo, que a existência
desse sistema permite uma diminuição do custo relativo do lazer perante o trabalho,
exactamente porque as pessoas temporariamente sem emprego continuariam, durante
um período de tempo mais ou menos longo, a ver satisfeitas as suas necessidades
básicas. Daí que os trabalhadores desempregados possam aguardar mais tempo sem
procurar novo posto de trabalho e ser mais exigentes na aceitação de postos de trabalho
alternativos.
De acordo com este raciocínio, a maior mobilidade e o grau crescente de exigência
dos que procuram emprego é que seriam responsáveis pelo aumento das taxas de
desemprego. Também por esta via os neoliberais sustentam que o desemprego é,
essencialmente, desemprego voluntário, defendendo que, em mercados de trabalho
concorrenciais, o emprego e o desemprego efectivos revelariam as verdadeiras
preferências dos trabalhadores entre trabalhar e dedicar o seu tempo a usos
alternativos.534
Ao fim e ao cabo, o que os monetaristas pretendem é que, como nos primeiros
tempos do industrialismo, o reequilíbrio (com o inerente pleno emprego, acreditam eles)
se faça à custa da diminuição dos salários reais.
A verdade, porém, é que o liberalismo económico funcionou nas condições
históricas dos séculos XVIII e XIX, consideravelmente diferentes das actuais. Vejamos:
a) a tecnologia industrial era relativamente rudimentar e adaptada a empresas de
pequena dimensão;
b) a concentração capitalista era inexistente ou pouco relevante;

533
Cfr. J. TOBIN, “Stabilization…, cit., 26.
534 ?
Às teses neoliberais pode bem aplicar-se o que Keynes observou acerca da teoria “clássica”:
“muitas pessoas tentam solucionar o problema do desemprego com uma teoria baseada no pressuposto de
que não há desemprego” (cfr. J. KEYNES, “The Means to Prosperity”, cit., 350).
345

c) os trabalhadores não estavam organizados (ou dispunham de organizações de


classe de existência precária, débeis e inexperientes) e não gozavam da totalidade dos
direitos civis e políticos (o que lhes dificultava e reduzia o acesso ao aparelho de estado
e ao poder político e, consequentemente, a obtenção das regalias económicas e sociais
de que hoje desfrutam);
d) os governos – imunes às exigências e aos votos populares – podiam, por isso
mesmo, ignorar impunemente os sacrifícios (e os sacrificados) das crises cíclicas da
economia capitalista, qualquer que fosse a sua duração e intensidade.
É claro que a ‘solução’ de impor aos trabalhadores o ónus de ‘pagar a crise’ só
funcionou porque o capitalismo era então, sem disfarces, “um sistema em que os que
não podiam trabalhar também não podiam comer”.535 Resta saber se esta ‘solução’ fará
sentido em economias que usam tecnologias avançadas. A resposta só pode ser
negativa. Com efeito, ninguém admitirá que uma unidade de produção informatizada e
utilizando robots e outras técnicas de automação vai deitar fora os equipamentos
(caríssimos) compatíveis com estas tecnologias apenas porque, conjunturalmente, os
salários estão baixos. E ninguém admitirá que um empresário responsável vá lançar um
novo empreendimento com tecnologia trabalho-intensiva ultrapassada, apenas porque,
conjunturalmente, os salários estão baixos.
Parece inegável, por outro lado, que, à medida que os trabalhadores foram
conquistando o direito ao sufrágio universal e a generalidade dos direitos civis e
políticos (liberdade de expressão, direito de associação, liberdade sindical, etc.), o
laissez-faire começou a experimentar dificuldades crescentes, que culminaram com a
Grande Depressão dos anos 1929-1933 e o risco de um colapso iminente do próprio
capitalismo. Resta saber, por isso mesmo, se aquela ‘solução’ será compatível com a
realidade social e política dos actuais países capitalistas industrializados, em que os
trabalhadores assalariados – que por certo não se deixarão facilmente convencer a votar
numa política de desemprego em massa – constituem a grande maioria da população e
dominam (talvez só numericamente...) os ‘mercados políticos’. Se se respeitarem as
regras democráticas (entre as quais o reconhecimento das liberdades sindicais), os
governos, dependentes do voto popular, não poderão continuar alheios às vicissitudes
do ciclo económico. Não falta quem defenda que uma das marcas do génio de Keynes
residiu, precisamente, no reconhecimento da necessidade (e na tentativa) de conciliar,
com base no estado providência, a democracia política com a economia de mercado
535
Cfr. SAMUELSON/NORDHAUS, Economia, cit., 312/313.
346

capitalista. Vemos, por isso, com preocupação que, em vários países da Europa e
mesmo no quadro comunitário, o ideário neoliberal tenha vindo a enquadrar as políticas
de promoção do emprego e de combate ao desemprego e, em geral a atitude
relativamente ao estado providência, tanto à escala nacional como ao nível comunitário,
como veremos à frente quando analisarmos o processo de construção europeia.

4.13.2. – O ataque ao movimento sindical.


Ignorando as lições da história, os neoliberais vêm insistindo na necessidade de
expurgar o mercado de trabalho das “imperfeições” que lhe foram sendo introduzidas (o
subsídio de desemprego, a garantia do salário mínimo, os direitos decorrentes da
existência de um sistema público de segurança social) e na necessidade de imputar aos
sindicatos toda a responsabilidade pela criação das condições para o pleno emprego da
mão-de-obra. Quer dizer: enquanto houver trabalhadores desempregados, os sindicatos
têm de aceitar a redução dos salários nominais.536
Colocada assim a questão, um pequeno passo basta para concluir pela necessidade
de domesticar (ou mesmo desmantelar) os “agressivos monopólios sindicais”, que
Friedman acusa de provocarem a restrição do número de postos de trabalho, por
exigirem salários elevados e resistirem à baixa dos salários nominais, acusação que
refina ao proclamar que “as vitórias que os sindicatos fortes conseguem para os seus
membros são obtidas acima de tudo à custa dos outros trabalhadores”.537
Outra linha de ‘argumentação’ põe em relevo que “os sindicatos começam a
tornar-se incompatíveis com a economia de livre empresa” e que, “se se quer preservar
o sistema de livre empresa, será necessário (...) reduzir o poder monopolístico dos
sindicatos operários”.538 O fantasma da ‘ingovernabilidade’ (que sempre justifica o
apelo a um qualquer leviathan) vem sendo agitado contra os sindicatos.
As ideias de Hayek são elucidativas a este respeito.
Por um lado, condena a ideia de que é do interesse público que os sindicatos sejam
restringidos o menos possível na prossecução dos seus objectivos, porque foi em nome
536 ?
Friedrich Hayek afirma abertamente: “é necessário que a responsabilidade de estabelecer um
nível de salários compatível com um nível de emprego elevado e estável seja de novo firmemente
colocada onde deve estar: nos sindicatos” (Cfr. F. HAYEK, “Inflation…, cit., 298).
537 ?
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade para escolher, cit., 305-307. Os neoliberais não pro-
põem, porém, a eliminação dos monopólios empresariais, dos grandes conglomerados transnacionais, que
têm reforçado o seu poder (poder de mercado, poder financeiro, poder político) e que ‘governam’ o
capitalismo à escala mundial, apesar de todas as legislações ‘anti-monopolistas’. E nenhum deles
acreditará que a simples força das suas ideias faça regressar o mundo ao ‘paraíso perdido’ do capitalismo
de concorrência.
538 ?
Cfr. G. HABERLER, “Inflación…, cit., 90/91 e “Politica…, cit., 165-173.
347

dessa ideia que os ‘monopólios sindicais’ acabaram por adquirir “privilégios únicos, de
que não goza qualquer outra associação ou indivíduo”. Aceitar aquela ideia equivaleria
a aceitar que, no domínio das relações de trabalho, os fins justificam os meios.
Por outro lado, ele considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos
sindicatos, que se traduziria na “coerção de homens sobre outros homens”, na “coerção
de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só porque se tem admitido –
argumenta Hayek - que eles exerçam um tal poder de coerção “sobre aqueles que
querem trabalhar em condições não aprovadas pelos sindicatos” é que estes se tornaram
capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os empregadores.
“Pessoalmente – conclui –, estou convencido de que o poder dos monopólios sindicais
é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal factor de
desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.”
A aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta os
aumentos da produtividade - hoje geralmente considerada socialmente justa e
economicamente vantajosa - significa, para Hayek, o reconhecimento do direito de
expropriar uma parte do capital das empresas. Vejamo-lo nas suas próprias palavras:

“O reconhecimento do direito do trabalhador de uma empresa de participar, enquanto


trabalhador, numa quota dos lucros, independentemente de qualquer contribuição que ele tenha
feito para o seu capital, faz dele proprietário de uma parte da empresa. Neste sentido, tal
exigência é, sem dúvida, puramente socialista e, o que é mais, não baseada em qualquer teoria
socialista do tipo mais sofisticado e racional, mas no mais grosseiro tipo de socialismo,
vulgarmente conhecido por sindicalismo.”

À luz do que fica dito, compreende-se que Hayek pergunte “até onde se permitirá
que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coercivo que
adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições fundamentais em
que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma tal ‘subversão’ das
instituições, compreende-se que responda:

“Há um momento em que todos os que desejam a preservação do sistema de mercado


baseado na livre empresa têm que desejar e apoiar sem ambiguidade uma recusa frontal
daquelas exigências [as exigências sindicais], sem vacilar perante as consequências que esta
atitude possa ter a curto prazo”.539

Mesmo no Reino Unido, país onde o movimento sindical era tradicionalmente


considerado uma instituição quase tão intocável como a realeza, a Srª. Thatcher,

539
Cfr. F. HAYEK,“Unions…, cit., 281ss.
348

enquanto Primeira Ministra, não hesitou em acusar os sindicatos de quererem “destruir


o estado”, erigindo-os desse modo em inimigo interno sobre o qual toda a repressão se
pretende legitimada. Tal como nos primórdios da revolução industrial, quando os novos
assalariados industriais eram apontados e tratados como “bárbaros que ameaçam invadir
a cidade”. As consequências, no plano político e sindical, são preocupantes,
especialmente depois das políticas da “terceira via” de Tony Blair: o Partido Trabalhista
tinha em 1950 um milhão de filiados, não indo hoje além de duzentos mil; desde 1970,
o número de trabalhadores sindicalizados no RU reduziu-se a metade (boa parte no
sector público).540

4.13.3. – A liquidação do sistema público de segurança social.


O ideário liberal rejeita o objectivo de redução das desigualdades, em nome de um
qualquer ideal de equidade e de justiça: as políticas que buscam realizar a justiça social
distributiva são sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual. É o
regresso à tese smithiana de que o mecanismo do mercado realiza “a concordância
admirável do interesse e da justiça”, tornando indissociáveis a liberdade (económica), a
eficiência económica e a equidade social.
Milton Friedman é muito claro: “a este nível, a igualdade entra vivamente em
conflito com a liberdade”. E ele escolhe a liberdade, confiando em que esta assegure o
maior grau de igualdade possível. Por um lado, porque “uma sociedade que põe a
igualdade - no sentido de igualdade de resultados - à frente da liberdade acabará por
não ter nem igualdade nem liberdade”. Por outro lado, porque “uma sociedade que põe a
liberdade em primeiro lugar acabará por ter, como feliz subproduto, mais liberdade e
mais igualdade”.541
Neste domínio da filosofia social, o neoliberalismo exclui da esfera da
responsabilidade do estado as questões atinentes à justiça social, negando, por isso, toda
a legitimidade das políticas de redistribuição do rendimento, que referimos atrás.

540
Cfr. R. GOTT, “Inglorioso fim…, cit. Deve salientar-se, aliás, que a legislação anti-sindical foi
iniciada, no Reino Unido, no início da década de 1960, pelo governo trabalhista de Harold Wilson, tendo
prosseguido com o governo conservador de Edward Heath e depois com os governos trabalhistas de H.
Wilson e de James Callaghan, dez anos antes da era Thatcher, que lhe deu o verniz neoliberal (cfr. I.
MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 95). As receitas prescritas por conservadores (abertamente neoliberais)
e por trabalhistas (especialmente os adeptos da chamada ‘terceira via’, igualmente neoliberais) reduziram
o sindicalismo britânico a um corpo anémico. Parecem notar-se alguns sinais de que os germes de um
sindicalismo de classe começam a ganhar terreno junto de uma nova geração de dirigentes sindicais,
agora organicamente desligados do Partido Trabalhista.

541 ?
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade para escolher…, cit., 202.
349

Considerando os descontos obrigatórios para a segurança social um atentado contra


a liberdade individual, os neoliberais sustentam que esse atentado é tanto mais grave e
intolerável quanto é certo que, na sua perspectiva, o objectivo que se pretende alcançar
ficará melhor acautelado (com menores custos financeiros e menores custos sociais) se
cada pessoa (ou cada família) o assumir, como responsabilidade própria, tomando, em
conformidade, as medidas adequadas.
Milton Friedman não hesita em classificar o princípio da responsabilidade social
colectiva como “uma doutrina essencialmente subversiva.” A seu ver, o “deprimente
esbanjamento de recursos financeiros” é ainda o menor de todos os males resultantes
dos sistemas públicos de segurança social:

“O maior de todos os seus males é o efeito maligno que exercem sobre a estrutura da
nossa sociedade. Eles enfraquecem os alicerces da família; reduzem o incentivo para o trabalho,
a poupança e a inovação; diminuem a acumulação do capital; e limitam a nossa liberdade. Estes
são os principais factores que devem ser julgados”. 542

Entre “os custos maiores da extensão das governmental welfare activities”,


Friedman destaca ainda “o correspondente declínio das actividades privadas de
caridade”, que proliferaram no Reino Unido e nos EUA no período áureo do
laissez-faire, na segunda metade do século XIX. Esta é uma opinião só compreensível à
luz do entendimento segundo o qual “a caridade privada dirigida para ajudar os menos
afortunados” é “o mais desejável” de todos os meios para aliviar a pobreza e é “um
exemplo do uso correcto da liberdade”.
O Professor de Chicago está a pensar, evidentemente, na liberdade daqueles que
‘fazem’ a caridade. Mas menospreza a liberdade dos que se vêem na necessidade de
‘estender a mão à caridade’. No entanto, estes são, justamente, os que mais se vêem
privados da sua dignidade e da sua liberdade como pessoas, o mais elevado dos valores
a proteger, segundo o ideário liberal. Ao defender que a única igualdade a que os
homens têm direito é “o seu igual direito à liberdade”, o liberalismo friedmaniano não
pode garantir a todos os homens a liberdade e a dignidade a que cada um tem direito. É
uma proposta de regresso ao passado, que não contém a promessa de nenhum ‘paraíso’,
mas contém a ameaça de nos fazer regressar ao ‘inferno perdido’ do apogeu do laissez-
faire, do tempo em que, pura e simplesmente, quem não encontrava trabalho não comia
e quem não comia morria.

542
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, últ. ob. cit., 172-178.
350

Um dos discípulos do “Ayathola de Chicago”, o Presidente dos EUA Ronald


Reagan defendeu, nesta qualidade, que “os programas sociais comportam a longo prazo
o risco de frustrar os americanos na sua grande generosidade e espírito de caridade, que
fazem parte da sua herança”. 543 Se bem entendemos, parece que este Presidente dos
EUA defende que não se pode acabar com os pobres, para não frustrar os americanos
ricos que gostam de fazer caridade. É ir longe demais.

Num outro registo, os monetaristas sustentam que as transferências sociais,


reduzindo o custo do ócio (do não-trabalho), são uma autêntica subvenção à preguiça.
Utilizando o comentário de Galbraith perante as opções da Administração Reagan neste
domínio, talvez possamos sintetizar deste modo a ‘filosofia’ dos neoliberais: “os ricos
não trabalham o suficiente porque não ganham o suficiente; os pobres trabalham pouco
porque ganham demasiado”.
Fiel à sua matriz ideológica, Friedman defende, com toda a clareza, a necessidade
de “derrubar definitivamente este estado-providência ao serviço dos ricos e das classes
médias”, advogando a ideia de que, em vez dele, “é altura de as democracias ocidentais
retomarem os incentivos para produzir, empreender, investir”. 544 As vantagens da sua
proposta seriam as vantagens do estado liberal:

“A extinção do actual sistema de Segurança Social eliminaria os efeitos que


presentemente se fazem sentir relativamente à falta de incentivo para a procura de trabalho, o
que representaria, igualmente, um maior rendimento nacional corrente. Conduziria à poupança
individual e, portanto, à formação de taxas de capital mais elevadas e de uma taxa de
crescimento do rendimento mais acelerada. Estimularia o desenvolvimento e a expansão de
planos de pensões privados, aumentando deste modo a segurança de muitos trabalhadores”. 545

Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura democrática e igualitária da época


contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e política para
todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os indivíduos no
plano económico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de libertar a
sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo que está na base dos
sistemas públicos de segurança social.

543
Citação colhida em H. ALLEG, ob. cit., 107.
544
Entrevista ao Nouvel Observateur, Abril de 1981.
545
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade …, cit., 172-174.
351

4.13.4. – Da neutralidade da política económica à “morte da política


económica”.
As concepções dos monetaristas e dos neoliberais em geral diferem das propostas
de Keynes também no que concerne ao entendimento da economia e da sociedade e, de
modo particular, no que tange ao papel do estado perante a economia e perante a
sociedade.

Fiéis ao ideário liberal do laisser-faire, da mão invisível e da lei de Say, os


neoliberais dos nossos dias defendem que as economias capitalistas tendem
espontaneamente para o equilíbrio de pleno emprego em todos os mercados, pelo que
não precisam de ser equilibradas, sendo desnecessárias as políticas anti-cíclicas e sendo
desnecessárias e inconsequentes as políticas de combate ao desemprego, que não
conseguem eliminá-lo e geram inflação.
No plano da economia, o liberalismo de Milton Friedman assenta na confiança
absoluta no mercado livre e no mecanismo dos preços, justificando, também neste
aspecto, o retrato que dele fez Galbraith: “é um economista do século XVIII”.
Pois este “economista do século XVIII” defende o seguinte:

“O sistema de preços permite que as pessoas cooperem pacificamente numa fase da sua
vida enquanto cada uma trata daquilo que lhe interessa. A ideia luminosa de Adam Smith foi
reconhecer que os preços que emergiam de transacções voluntárias entre compradores e
vendedores - em resumo, um mercado livre - podiam coordenar a actividade de milhões de
pessoas, cada uma à procura dos seus próprios interesses”. 546

Em coerência com o seu projecto de sociedade, Milton Friedman considera que


se deve impedir que o estado controle, sob qualquer forma, a actividade económica,
para impedir a concentração de mais poder nas mãos do estado. Ao invés, deve
assegurar-se a disseminação da propriedade e da riqueza pelas pessoas, que assim
ficarão mais livres e mais aptas para enfrentar o poder político do estado.

Mais papista que o papa, Milton Friedman não hesita, como vimos, em considerar
demasiado permissivo o critério de Adam Smith para delimitar a esfera de acção do
estado (o estado mínimo).
Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração (“monetarists mark II”,
como lhes chama James Tobin), defensores da chamada teoria das expectativas
racionais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma
informação que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes
546
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade…, cit., 42.
352

económicos racionais, antecipam plena e correctamente quaisquer políticas públicas. As


políticas económicas sistemáticas deixariam, pois, de ter qualquer efeito sobre a
economia, restando aos governos ‘enganar’ os agentes económicos através de medidas
de surpresa, incompatíveis com o cientismo e a programação de que se reclama a
política económica.547
Desta neutralidade da política económica passa-se, quase sem solução de
continuidade, à defesa da morte da política económica, porque esta seria desnecessária,
perniciosa e sem sentido. Assim estamos de regresso ao velho mito liberal da separação
estado/economia e estado/sociedade: a economia seria coisa exclusiva dos privados (da
sociedade civil, da sociedade económica), cabendo ao estado simplesmente garantir a
liberdade individual (a liberdade económica, a liberdade de adquirir e de possuir sem
entraves), que proporcionaria igualdade de oportunidades para todos.

547 ?
Para maiores desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 125ss.
353

4.14. – Os processos de integração económica regional.


Para além do processo de integração europeia – que analisaremos a seguir com
particular atenção -, em várias outras regiões do mundo registaram-se múltiplas
experiências de integração económica regional. Segue uma nota breve sobre as mais
relevantes.
Na África salientamos estas:
354

União Árabe do Magrebe: O Tratado que instituiu a UAM foi assinado em Marraquexe
em Fevereiro de 1989 e entrou em vigor em Julho do mesmo ano. São Estados-membros a
Líbia, Marrocos, Mauritânia, Tunísia e Argélia. Tem como propósito a constituição de uma
união aduaneira e de um mercado comum.

Comunidade Económica da África Ocidental (West African Economic Community): O


Tratado que instituiu a CEAO foi assinado em Abril de 1973, tendo entrado em vigor em
Janeiro de 1974. São Estados-membros o Benin, Burkina-Faso, Costa do Marfim, Mali,
Mauritânia, Níger e Senegal. Anteriormente, alguns destes Estados tinham constituído a União
Aduaneira dos Estados da África Ocidental. Os objectivos são os de promover a circulação
preferencial ou mesmo livre dos bens originários de cada um dos Estados nos demais e a
instituição de uma pauta aduaneira comum face ao exterior.

Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (Economic Community of


West African States - ECOWAS): O Tratado que instituiu esta Comunidade foi assinado em
Lagos em Maio de 1975 e foi revisto em Julho de 1993. São Estados-membros o Benin,
Burkina-Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Ghana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria,
Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo. Tem como objectivo o estabelecimento de
uma união económica e conta com um quadro institucional de algum relevo (uma Autoridade,
um Parlamento e várias comissões técnicas especializadas).

Comunidade Económica dos Estados da África Central (Economic Community of


Central African States - ECCAS): Instituída em Dezembro de 1981. Conta com a participação
dos seguintes países: Angola, Burundi, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo,
Guiné Equatorial, Gabão, Ruanda, S. Tomé e Príncipe e Zaire. A intenção é a de constituir uma
união aduaneira.

União Aduaneira e Económica da África Central (Union Douanière et Économique de


l’Afrique Centrale - UDEAC): Entrou em vigor em 1966, com revisões em 1974 e em 1991. Os
seus membros iniciais foram os Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo, Guiné
Equatorial e Gabão. Os objectivos são o da constituição de uma união aduaneira (com uma
circulação interna de mercadorias baseada em preferências alfandegárias) e o estabelecimento
gradual de um mercado comum.

Zona de Comércio Preferencial da África Oriental e da África Austral (Preferential


Trade Area – PTA): O Tratado constitutivo é de 1981. Engloba cerca de metade dos países do
continente africano (incluindo Angola e Moçambique). A partir de Dezembro de 1994 esta zona
de comércio preferencial foi substituída pelo Mercado Comum dos Estados da África Oriental e
da África Austral (COMESA), tendo-se previsto uma consolidação gradual deste último.

Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (Southern African Development


Community – SADC): O Tratado constitutivo foi assinado em Agosto de 1992. São membros da
SADC: Angola, Botswana, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Moçambique, Namíbia, África do Sul,
República Democrática do Congo, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia, Zimbabué e Maurício. A
África do Sul tem um papel preponderante. Entre outros objectivos, procura-se estimular o
comércio intra-regional.

União Aduaneira da África Austral (Southern African Customs Union – SACU):


Compreende a África do Sul, Botswana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia. O acordo original data
de 1969 e foi revisto várias vezes.
355

Na América, registamos:
Mercado Comum da América Central: Entrou em vigor em Junho de 1961, abrangendo
inicialmente a Costa Rica, São Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Procurava-se a
instituição de uma união aduaneira. Em 1975 determinou-se a criação da Comunidade
Económica e Social da América Central, prevendo-se a adopção progressiva de medidas
configuradoras de um mercado comum.

Mercado Comum das Caraíbas (Caribbean Community and Common Market –


CARICOM): Reúnem-se neste mercado países da área das Caraíbas, desde 1973 (antes vigorava
um acordo de comércio livre). Determinou-se a instituição de uma união aduaneira, entre outras
medidas de coordenação e de cooperação.

Comunidade Andina: Esta Comunidade tem actualmente como membros a Bolívia,


Colômbia, Equador e Peru e entrou em vigor (como Pacto Andino) em Outubro de 1969. A
partir de 1988 iniciou-se um programa de liberalização comercial regional e de adopção de uma
pauta aduaneira comum, que se consolidou nos anos 1990.

Associação Latino-Americana de Livre-Comércio e Associação Latino-Americana de


Integração (LAFTA e LAIA/ALADI): A primeira associação foi estabelecida em 1960, sendo
substituída pela segunda em Março de 1981. Assumem-se actualmente como membros a
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e
Venezuela. Contemplou-se a instituição de tratamento pautal preferencial e a celebração de
acordos sectoriais de cooperação.

Mercosul: Acordo de integração regional de 1991, que reúne o Brasil, a Argentina, o


Paraguai e o Uruguai. Procura actualmente aperfeiçoar-se como união aduaneira. São membros
associados a Bolívia, o Chile e o Peru (o México já manifestou a intenção de solicitar este
estatuto). O Mercosul negociou um acordo que visa, a prazo, o livre comércio com a Colômbia,
o Equador e a Venezuela.

Associação de Livre-Comércio da América do Norte (North American Free Trade


Association - NAFTA): Zona de comércio livre antecedida pelo CUSFTA (Canada and United
States Free Trade Agreement). Engloba os EUA, o Canadá e o México. Contempla, para além
do livre comércio de mercadorias, uma liberalização muito substancial das transacções de
serviços, alguma liberalização dos mercados públicos, a mobilidade de capitais e standards
comuns para certos produtos.

Na Ásia- Pacífico, referimos:


Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo: Acordo assinado em 1981,
abrangendo o Bahrain, o Kuwait, Oman, Qatar, Arábia Saudita e Emiratos Árabes Unidos. Em
1992 foi enunciado o objectivo de estabelecer até 2000 um mercado comum, tendo-se no ano
seguinte unificado o sistema pautal da região.

Associação de Cooperação Regional da Ásia do Sul: O tratado de associação foi


assinado em Dezembro de 1985, para efeitos de cooperação económica (com estímulo ao
comércio intra-regional) e social, pelos seguintes países: Bangladesh, Butão, Índia, Maldivas,
Nepal, Paquistão e Sri Lanka.
356

Acordo Comercial de Aproximação Económica entre a Austrália e a Nova Zelândia


(Australia-New Zealand Closer Economic Relations Trade Agreement – ANZCERTA ou CER):
Criado em 1983 e revisto em 1988, é um dos espaços de integração regional mais avançados.
Trata-se de uma zona de comércio livre, com liberalização adicional nos domínios do comércio
de serviços e dos mercados públicos. Existe também alguma convergência em políticas
sectoriais (v.g. da concorrência).

Associação das Nações do Sudeste Asiático (Association of South-East Asian Nations –


ASEAN): Esta associação foi constituída em 1967, tendo actualmente como membros a
Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Filipinas, Singapura, Tailândia, Camboja, Brunei e
Vietname. Em 1992 enunciou-se a intenção de criar progressivamente uma “zona de comércio
livre asiática”.
357

4.15. – A construção europeia: a Europa neoliberal.

4.15.1. - Na Europa o processo de integração que foi tomando forma a partir de


1948.548
Em 1 de Janeiro de 1948 começou a funcionar o Benelux (união aduaneira entre
a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo), cujo Acordo fora assinado pelos governos no
exílio destes países antes do fim da Guerra.
Em 1950, no 5º aniversário da rendição da Alemanha nazi, foi constituída a
primeira das comunidades europeias, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(CECA). As lições da história mostram que à volta destes dois produtos e das indústrias
a eles associadas (entre as quais as indústrias de armamento) se desenvolveram os
conflitos de intereses antagónicos inter-imperialistas que estiveram na base das duas
guerras mundias que o século XX conheceu. Já na Guerra Franco-Prussiana
(1870/1871) os canhões fabricados pela Krupp tinham bombardeado Paris, episódio que
se repetiu na 1ª Guerra Mundial e depois na 2ª Guerra Mundial. O objectivo da CECA
era, pois, o de colocar o carvão e do aço sob a gestão de uma autoridade comum, de
modo a não deixar de novo a Alemanha entregue a si própria.
Pouco depois, à margem das preocupações de paz dos projectos pan-europeístas
surgidos entre as duas Guerras, os EUA conseguiram que fosse assinado em Paris
(15.2.1951) o Tratado que pretendia criar a Comunidade Europeia de Defesa, projecto
que viria a falhar porque o voto de gaulistas e comunistas impediu a sua ratificação pela
Assembleia Nacional francesa.

548
Sobre a história dos projectos de construção de uma entidade europeia, ver AVELÃS
?

NUNES, A. J., A Constituição Europeia…, cit., e T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 190ss.


358

Em 25.3.1957 foi assinado o Tratado de Roma, que criou a Comunidade


Económica Europeia (vulgarmente conhecida por Mercado Comum), simultaneamente
com a criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom), a terceira das
comunidades europeias.
A CEE não se limitou a uma zona de comércio livre, embora definisse como
objectivo a criação de um mercado comum, com a abolição de todas as restrições à livre
circulação de bens e serviços dentro do espaço comunitário. O Tratado de Roma
instituiu também uma união aduaneira entre os países signatários, i.é, um espaço com
uma fronteira alfandegária comum, cobrando os mesmos direitos sobre produtos
provenientes de terceiros países.549
Num tempo em que o conjunto das multinacionais americanas na Europa era por
muitos considerado a segunda (ou terceira) potência económica à escala mundial, parece
óbvio o interesse dos EUA na constituição do então vulgarmente chamado Mercado
Comum (a CEE). Mas uma certa corrente de pensamento considerou (ou
propangandeou) a CEE como “la réponse européenne au défi américan” (título de um
livro de Jean-Jacques Servan-Schreiber). Esta uma ideia que até hoje vem alimentando
o ‘mito europeu’.
Entretanto, o Tratado de Roma foi sendo alterado: em 1986, pelo Acto Único
Europeu (que veio promover a implantação efectiva, até 31.12.1992, do mercado
interno único de mercadorias, capitais, serviços e pessoas); em 1992, pelo Tratado de
Maastricht (que criou a União Europeia e decidiu instituir a União Económica e
Monetária, assente na criação do Banco Central Europeu, na adopção de uma política
monetária e cambial únicas e na adopção do euro como moeda única dos países
aderentes ao Eurosistema); em 1997, pelo Tratado de Amesterdão (que tentou a
definição de uma estratégia não vinculativa no domínio do emprego); ainda em 1997, os
estados da zona euro estabeleceram o Pacto de Estabilidade e Crescimento (que veio
enfeudar a política monetária e a política orçamental a rigorosos critérios monetaristas,
sacrificando todos os outros objectivos económicos e sociais das políticas públicas ao
objectivo primordial da estabilidade monetária); em 2000, pelo Tratado de Nice (que
reorganizou os poderes políticos no seio da UE, tendo em vista o futuro alargamento); à

549
Em 1959 viria a constituir-se a EFTA (European Free Trade Association). Liderada pelo RU
(e integrando também a Áustria, a Dinamarca, a Noruega, Portugal, a Suécia e a Suíça), era uma
organização que pretendia constituir tão só uma zona de comércio livre para produtos industriais,
afastando, ao contrário da CEE, qualquer projecto de integração política, que não agradava ao RU, à
Dinamarca e à Noruega e que era incompatível com o estatuto de neutralidade da Áustria, da Suécia e da
Suíça e com o regime de tipo fascista que permanecia em Portugal como subproduto da guerra fria.
359

margem deste Tratado foi aprovada a Carta dos Direitos Fundamentais, objecto de
mera declaração política, porque o RU se opôs a que ela fosse incorporada no Tratado e
dotada de força jurídica vinculativa; inviabilizada (pelo voto de franceses e holandeses)
a chamada Constituição Europeia (assinada pelos Chefes de Estado e de Governo em
Outubro de 2004), viria a ser aprovado e assinado em Lisboa no dia 13 de Dezembro de
2007 o chamado Tratado de Lisboa, que adoptou soluções novas no plano institucional
e no plano das competências do Parlamento Europeu, do Conselho Europeu e da
Comissão Europeia, mantendo, no plano das políticas económicas e sociais, as soluções
marcadamente neoliberais consagradas nos tratados anteriores.
Algumas das alterações introduzidas nos Tratados foram justificadas pela
necessidade de adaptar as instituições comunitárias ao aumento do número de membros
da Europa comunitária. De facto, aos seis membros fundadores da CEE foram-se
juntando novos estados. Em 1973 aderiram o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca; em
1986, entraram Portugal e a Espanha; em 1995, a CEE acolhia a Áustria, a Finlândia e a
Suécia; em 2004, a União Europeia passou a integrar 25 estados, depois da entrada de
Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e
República Checa; no início de 2007, entraram a Bulgária e a Roménia.

4.15.2. - A síntese da “contra-revolução monetarista” que deixamos nas páginas


anteriores permitir-nos-á enquadrar e compreender melhor o que se vem passando na
Europa no âmbito do processo que conduziu à União Europeia, identificando o peso das
concepções neoliberais na construção da Europa comunitária.
Segundo a nossa análise, a marca neoliberal acompanha o processo de construção
da ‘Europa’ desde o seu início, com o Tratado de Roma (1957), apesar de estarmos
ainda, em 1957, no período áureo do keynesianismo e das políticas keynesianas. 550
A
criação da Comunidade Económica Europeia significou, deste ponto de vista, uma
primeira vitória do liberalismo alemão sobre o intervencionismo francês, construído no

550
Por mais estranho que pareça, a verdade é que foram as concepções liberais em matéria de
políticas económicas as inspiradoras do Tratado de Roma. Com rara clarividência, Pierre Mendès-France,
um dos poucos deputados que acompanharam os comunistas franceses no voto contra a ratificação do
Tratado, justificou assim o seu voto na Assembleia Nacional (Fev/1957): “O projecto do mercado
comum, tal como nos é apresentado, baseia-se no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a
concorrência pura e simples regula todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode assumir
duas formas, seja a de uma ditadura interna que entrega todos os poderes a um homem ‘providencial’,
seja a delegação dos seus poderes a uma autoridade exterior, que, em nome da técnica, exercerá na
realidade o poder político, pois em nome de uma economia sã chega-se facilmente à imposição de uma
política monetária, orçamental, social, em suma, uma política, no sentido mais amplo do termo, nacional e
internacional” (citação colhida em ATTAC, ‘Constitution’…, cit., 7).
360

após-guerra (forte sector empresarial do estado, planificação pública da economia e


sistema público de segurança social). Concordamos que o projecto ‘Europa’ “se
apresentou desde o primeiro dia como uma máquina para liberalizar” 551, embora o
liberalismo consagrado no Tratado de Roma fosse uma espécie de liberalismo do
possível.

A marca do neoliberalismo (à moda de Milton Friedman e de Friedrich Hayek)


viria a acentuar-se com o Acto Único Europeu (1986) e com o Tratado de Maastricht
(1991), culminando com a chamada Constituição Europeia. Esta foi, sem dúvida, a
tentativa mais ousada de ‘constitucionalizar’ o neoliberalismo. Mas o Tratado de Lisboa
manteve intacta a matriz neoliberal da União Europeia.
Nas páginas seguintes, procuraremos salientar alguns dos aspectos em que é mais
visível a influência da ideologia neoliberal na conformação dos Tratados estruturantes
da União Europeia.

4.15.3. - Desde o Tratado de Roma vem-se acatando o princípio de que o direito


comunitário não põe em causa o regime de propriedade dos estados-membros. Mas a
verdade é que a força hegemónica do dogma da concorrência livre numa economia de
mercado aberto e de livre concorrência (cfr., v.g., arts. 119º, 120º e 127º TSFUE) e o
regime dos auxílios concedidos pelos estados (arts. 107º a 109º) condenam as empresas
públicas a comportar-se como empresas capitalistas, não podendo os estados seus
proprietários utilizá-las segundo uma lógica diferente da que decorre das leis do
mercado.552
A natureza dirigente dos Tratados estruturantes da UE é manifesta: admite-se a
propriedade pública de certas empresas desde que o estado se comporte como um
capitalista. Esta propriedade pública, tolerada se ela não puder ser nada mais do que
uma outra forma de propriedade capitalista, não pode, pois, ser utilizada como ponto de
partida para a construção de uma economia e de uma sociedade negadoras do
capitalismo. Os Tratados ‘constitucionais’ da União são tudo menos liberais, no sentido
de permitirem um projecto político decorrente da alternância democrática: se em algum
país da UE ganharem as eleições partidos que queiram construir uma sociedade
socialista, só poderão fazê-lo em ruptura com os Tratados.
Cfr. B. CASSEN, “Ressurreição…, cit.
551 ?
552 ?
As empresas públicas estão, como quaisquer outras, sujeitas às regras da concorrência e ao
regime dos auxílios concedidos pelos estados (arts. 106º, nº 1, 107º a 109º TSFUE).
361

As linhas orientadoras definidas pela Comissão Europeia para as ajudas públicas


com vista à recuperação ou reestruturação de empresas (públicas ou privadas) em
dificuldade são igualmente reveladoras: só autorizam a intervenção do estado nas
situações em que um investidor privado racional, actuando numa economia de mercado,
adoptasse uma idêntica decisão de apoio financeiro. Obriga-se o estado a actuar de
acordo com a lógica do capital privado, como se a natureza e os fins do estado fossem
os mesmos dos de um empresário privado, como se a racionalidade do estado tivesse de
ser a do capital privado, como se o estado (mesmo o estado capitalista) não devesse
intervir quando o capital privado o não faz ou quando a lógica do mercado (a busca do
lucro) provocou uma crise a que é necessário pôr cobro. É o neoliberalismo mais
extremo, puro e duro, inspirado no que alguém chamou “teologia da concorrência”.553

4.15.4. – Uma outra área em que a influência neoliberal tem sido muito forte é a
dos serviços públicos, cujo conceito foi elaborado na França (Duguit) e na Alemanha
(Forstoff), a par da ideia de que a Administração Pública deveria assumir como missão
fundamental a prossecução do bem comum, orientando a sua actividade essencialmente
para a prestação de serviços públicos, passando a segundo plano a Administração que
pratica actos de autoridade (estado polícia). Os destinatários destes serviços públicos
prestados pelo estado no cumprimento das suas responsabilidades eram os próprios
cidadãos. Não será incorrecto afirmar que aqui radica a origem do chamado modelo
social europeu.
Constituía uma boa e longa tradição no Velho Continente a assunção pelo estado
(administração central, regiões ou autarquias locais) do dever de prestar aos cidadãos
um conjunto de serviços que correspondem a necessidades básicas das populações. Para
além dos serviços de algum modo decorrentes da soberania (defesa, segurança e
justiça), estão em causa os serviços de água e saneamento, de electricidade e gás, os
correios, telefones e telecomunicações, os transportes urbanos, os serviços de educação
e de saúde e, mais recentemente, os serviços relacionados com a segurança social, a
cultura e o desporto.
Em geral, o estado prestava directamente estes serviços (através de
estabelecimentos da própria administração pública, de serviços municipalizados, de
empresas públicas, muitas vezes em regime de monopólio), gratuitamente em alguns

553
A expressão é de G. SARRE, ob. cit., 66.
362

casos, cobrando em outros casos um preço inferior ao preço de mercado. Este conjunto
de serviços ficava, pois, à margem do mercado.
Por se entender que a satisfação, nestas condições, de determinadas necessidades
colectivas básicas é um pressuposto essencial para garantir a todos o próprio exercício
dos direitos e liberdades fundamentais.
E por se entender que os serviços públicos constituem o “cimento da sociedade”
e um factor decisivo do desenvolvimento económico e social, da melhoria das
condições de vida das populações, da coesão social e do desenvolvimento regional
equilibrado. O objectivo político e social em vista era, claramente, o de garantir a todos,
no tocante a esses serviços, a sua universalidade (acesso generalizado), a certeza da
continuidade do seu fornecimento, a qualidade do serviço, um preço acessível (que não
exclua da sua fruição os economicamente débeis e os que habitam em locais ou regiões
onde a sua prestação não é rentável em termos capitalistas).
Pois bem. Desde o Tratado de Roma, os Tratados estruturantes do que hoje é a
União Europeia afirmaram a primazia do mercado e da concorrência, encarados como
os únicos caminhos para o crescimento económico, o progresso, a abundância e a
equidade. Mas também desde o Tratado de Roma se vem falando da possibilidade de os
serviços públicos gozarem de um regime especial, que os colocasse fora do jogo do
mercado e da alçada das regras da concorrência. Cumprir este objectivo seria respeitar a
referida tradição europeia.
Não foi isto, porém, o que sucedeu. Sob a influência dos ventos do
neoliberalismo, assistiu-se a uma onda de privatizações de empresas públicas, mesmo
na área dos serviços públicos.
O processo de desmantelamento dos serviços públicos terá começado, na Europa
comunitária, com uma Directiva de 25.7.1980, adoptada pela Comissão Europeia com
base no poder que lhe conferia o nº 3 do art. 90º do Tratado de Roma de endereçar
directivas às empresas públicas para que elas se submetessem às regras da concorrência.
Vários Estados membros questionaram a legalidade desta Directiva, invocando falta de
competência da Comissão. Mas o TJCE deu razão à Comissão, abrindo caminho às
políticas liberalizantes que se seguiram, mesmo nos países onde os serviços públicos
tinham uma tradição mais longa e arreigada. 554 Este processo viu o seu ritmo acelerado a
partir de 1986, com o Acto Único Europeu, no qual se proclamou solenemente o famoso

554
Cfr. G. SARRE, ob. cit., 114.
363

princípio da concorrência livre e não falseada como a essência do mercado interno


único.
Com a integração europeia, os estados nacionais acabaram por perder a
soberania no âmbito da política agrícola e de pescas, da política de concorrência, da
política monetária e cambial, e, na prática, também no âmbito da política orçamental,
bem como no âmbito da política de energia, transportes e comunicações (sectores
privatizados e liberalizados). E perderam também a capacidade de intervir
soberanamente na economia, como estados-empresários (isto é, como titulares de
empresas públicas a operar nos sectores estratégicos da economia e nos serviços
públicos) e como estados prestadores de serviços públicos.555 A liberalização do
mercado dos serviços públicos foi o remate desta teia que enredou e ‘matou’ os
tradicionais serviços públicos (fornecidos aos cidadãos, à margem do mercado),
substituídos por Serviços de Interesse Económico Geral (SIEG), colocados à disposição
dos seus clientes-consumidores pelo estado ou por grandes empresas privadas,
indistintamente.
As razões desta nova orientação são claras. O progresso científico e tecnológico,
o welfare state e a melhoria das condições de vida transformaram em necessidades
básicas das pessoas o acesso a determinados bens e serviços, como a educação, a saúde,
as prestações da segurança social, o acesso domiciliário à energia eléctrica e ao gás, à
água e ao saneamento, os correios, as telecomunicações, etc. Estes bens e serviços
constituem, pois, mercados que valem milhões, apetitosos para o grande capital
financeiro, que joga na privatização destes sectores. As seguradoras querem a saúde e o
serviço de pensões; os correios têm-se transformado em prósperas instituições
financeiras com sacrifício da sua missão originária; a água e o saneamento apresentam-
se como o grande negócio do século XXI; o Banco Mundial vem produzindo vasta
literatura sobre a “indústria do ensino superior”.

4.15.4.1. – Dado carácter exemplar da ‘história’ dos serviços públicos, vale a


pena analisar com algum pormenor o que dizem os Tratados actuais sobre os Serviços
de Interesse Económico Geral (SIEG).

555
Em países como Portugal, a Constituição da República cometia ao estado a responsabilidade
de garantir a subordinação do poder económico ao poder político democrático e atribuía ao estado as
competências e os meios para satisfazer cabalmente esta incumbência. Em resultado da integração
europeia, a soberania portuguesa perdeu esta capacidade e aquele objectivo estratégico da democracia
portuguesa ficou vazio.
364

Começaremos por salientar que a expressão serviço público desapareceu do


vocabulário das instituições e do direito da UE, tendo-se inventado, para a substituir, a
designação serviços de interesse económico geral, que nunca foi definida com rigor e
que a opinião pública desconhece.556
Ao contrário do texto do Tratado de Amesterdão (que incluía os SIEG entre “os
valores comuns da União”), os Tratados actuais não incluem os SIEG entre os valores
da União, nem incluem a sua prestação entre os objectivos da União, embora apontem a
promoção da coesão económica, social e territorial como objectivo da União (art. 3º, nº
3 TUE).
Deles não decorre a criação de um qualquer direito de matriz comunitária aos
serviços públicos garantidos pela União ou pelos Estados membros, no respeito pela
missão de serviço público.
O art. 36º CDF limita-se a proclamar, piamente, que “a União reconhece e
respeita o acesso a serviços de interesse económico geral tal como previsto nas
legislações e práticas nacionais, de acordo com os Tratados, a fim de promover a coesão
social e territorial da União”.
O art. 14º TSFUE refere-se, eufemisticamente, à “posição que os serviços de
interesse económico geral ocupam no conjunto dos valores da União” e ao “papel que
desempenham na promoção da coesão social e territorial”. Mas não diz nada mais para
qualificar essa posição e esse papel. O que diz, com toda a clareza, é que o regime dos
SIEG fica sujeito às regras da concorrência e dos auxílios concedidos pelo estado. O
que é uma maneira indirecta de dizer que essa posição e esse papel são pouco ou nada
relevantes, na óptica dos construtores destes Tratados.
O texto deste artigo limita-se a prescrever que a União e os estados-membros
“zelarão por que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições,
nomeadamente económicas e financeiras, que lhes permitam cumprir as suas missões”.
E acrescenta que “o Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de regulamentos
adoptados de acordo com o processo legislativo ordinário, estabelecem esses princípios
556
Cientes disto mesmo, os defensores dos SIEG esforçam-se por fazer crer que SIEG “significa
serviço público na linguagem europeia”. Mas o Livro Branco publicado pela Comissão Europeia em 2004
é muito enfático ao afirmar que os serviços de interesse económico geral não podem confundir-se com
serviços públicos. Os documentos da Comissão deixam claro, além do mais, que os SIEG só podem ser
criados pelo estado (em sentido genérico) se a iniciativa privada não fornecer o serviço, exigindo, por
outro lado, que a produção dos SIEG se faça respeitando as regras da concorrência. A alteração da
designação não é, pois, uma pura alteração semântica, antes significa a negação do núcleo essencial do
conceito de serviço público: é público o que não interessar aos privados, por não dar lucro... (Cfr. J.-P.
CHEVÈNEMENT, ob. cit., 32/33).
365

e definem essas condições, sem prejuízo da competência dos Estados membros para, na
observância dos Tratados, prestar, mandar executar e financiar esses serviços” (art. 14º
TSFUE).

Ora, é sabido que, desde a entrada em vigor dos Tratados de Amesterdão e de


Nice, a Comissão pode propor ao Conselho de Ministros a adopção de uma Directiva
neste sentido. A verdade, porém, é que a Comissão nunca o fez, e o preceito acima
referido não dá nenhuma garantia de que algo de novo venha a ser feito. O essencial já
está nos Tratados, dito e repetido: os serviços públicos (melhor: os SIEG…) são
‘mercadorias’ com quaisquer outras, sujeitas às regras do mercado aberto e de livre
concorrência.
O art. 106º TSFUE insiste na proclamação de que “as empresas encarregadas da
gestão de serviços de interesse económico geral (…) ficam submetidas ao disposto nos
Tratados, designadamente às regras da concorrência”. E acrescenta-se que é assim, “na
medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de
direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada”. Parece um simples jogo
de palavras, porque é evidente que a sujeição das empresas que prestam serviços
públicos às regras da concorrência constitui um obstáculo – e um obstáculo decisivo –
ao cumprimento da sua missão histórica. Por isso é que, na longa tradição europeia, os
serviços públicos sempre foram considerados bens à margem do mercado, não sujeitos
às regras e (aos interesses) do mercado.

4.15.4.2. - Esta questão é tão clara que, durante o período de discussão pública
da ‘Constituição Europeia’, um grupo de personalidades (entre as quais Jacques Delors
e António Guterres, antigo Presidente da Comissão Europeia e antigo Primeiro Ministro
de Portugal, respectivamente) trouxe a público, através da internet,557 um documento em

557
Cfr. http://www.europesociale.com/petition.php. A Petição para um Verdadeiro Tratado da
Europa Social defendia a inclusão nos Tratados de um artigo com esta redacção: “A construção da União
não pode fazer-se apenas através do mercado. O interesse geral não pode ser a soma dos interesses
privados que o mercado exprime. A longo prazo, o desenvolvimento sustentável, o respeito pelos direitos
fundamentais, bem como a coesão dos territórios não podem ser assegurados de forma duradoura pelas
regras da concorrência. Por isso a União reconhece, em igualdade com o princípio da concorrência, o
princípio do interesse geral e a utilidade dos serviços públicos. A União vela pelo respeito pelo princípio
da igualdade no acesso aos serviços de interesse geral para todos os cidadãos e residentes. Esforça-se,
juntamente com os estados-membros, cada um no quadro das suas competências, por promover os
serviços de interesse geral enquanto garantes dos direitos fundamentais, elementos do modelo social
europeu e vínculos de pertença à sociedade do conjunto de cidadãos, cidadãs e residentes. Cada estado-
membro é chamado a assegurar o seu funcionamento e o seu financiamento. Uma lei-quadro europeia
precisará estes princípios ao nível da União. A União vela para que se respeite o princípio da
subsidiariedade e da livre administração das colectividades locais”.
366

que se procura abrandar o radicalismo neoliberal, propondo tão só o respeito pela


tradição europeia e pelo chamado modelo social europeu, que, evidentemente, não pode
garantir-se através do mercado, nem pode construir-se com base nas regras da
economia de mercado aberto e de livre concorrência, o santo e a sanha dos novos
Tratados, em substituição da celebérrima concorrência livre e não falseada, expressão
que agora se deixou cair, talvez por soar demasiado a falso… 558 Pois bem: nem no
projecto de ‘constituição europeia’ nem no chamado Tratado de Lisboa, herdeiro directo
daquela, os responsáveis pela sua aprovação, fiéis ao ideário e às soluções neoliberais,
levaram minimamente em conta a proposta daquelas personalidades.
Entretanto, estudos feitos após a privatização e liberalização dos serviços
públicos mostram que, em muitos casos, a qualidade dos serviços prestados piorou e o
seu preço aumentou, com sacrifício claro da missão de serviço público. Como era de
esperar: as empresas privadas buscam o lucro máximo para os seus capitais, não têm
vocação para prosseguir o interesse público, não se pode pensar que elas o vão
prosseguir, nem se lhes pode pedir (muito menos exigir) que o façam.

4.15.5. – A influência neoliberal é igualmente notória no tratamento dado nos


Tratados estruturantes da UE à problemática que envolve os direitos fundamentais,
nomeadamente os direitos económicos e sociais. É o que analisaremos a seguir.

4.15.5.1. – A generalidade dos autores sublinha que os Tratados estruturantes da


UE ficam aquém das tábuas de direitos (nomeadamente direitos económicos, sociais e
culturais) consagradas nas constituições de alguns estados-membros e mesmo em
documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem
(10.12.1948), a Carta Social Europeia (Conselho da Europa, 18.10.1961) e a Carta

Considerações do mesmo género constavam já do Livro Branco sobre Serviços de Interesse


Geral, da responsabilidade do Comité Económico e Social Europeu (JO C221/17). Aí se proclama que
“os SIEG são elementos constitutivos do modelo social europeu”, reconhecendo-se que eles não podem
ser assegurados apenas pelo mercado e pela concorrência, pressupondo uma intervenção pública
adequada para garantir a coesão social. Mas estas boas intenções logo se dissolvem quando se admite que
a intervenção do estado tem de fazer-se no quadro das políticas pró-concorrenciais, devendo buscar a
combinação harmoniosa entre mecanismos de mercado e missões de serviço público. É, verdadeiramente,
a quadratura do círculo, sabendo-se, como todos sabem, que a lógica do mercado não é compatível com a
lógica do serviço público.
558
O objectivo da “concorrência livre e não falseada” deixou de constar, expressamente, dos
objectivos da União. Não se vê, porém, que outra coisa possa pretender uma economia de mercado aberto
e de livre concorrência. Mas a verdade é que, escondido o rabo, ficou o gato de fora. O Protocolo
Relativo ao Mercado Interno e à Concorrência, anexo ao TSFUE, vem recordar, em devido tempo, que o
mercado interno, um dos objectivos previstos no art. 3º TUE, “inclui um sistema que assegura que a
concorrência não seja falseada”.
367

Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (9.12.1989). Estas


duas últimas são referidas apenas no Preâmbulo, mas a DUDH nem sequer referida no
texto dos Tratados, apesar de todos os estados-membros da UE terem reafirmado o seu
respeito por ela em 10.12.1998 (Resolução da ONU comemorativa dos 50 anos da
DUDH) e em 8.9.2000 (três meses antes da aprovação, em Nice, da Carta dos Direitos
Fundamentais, que constitui a Parte II da CE), na Declaração do Milénio.559
Com o Tratado de Lisboa, a Carta dos Direitos Fundamentais (CDF) deixou de
integrar o texto dos Tratados (ao contrário do que acontecia na ‘constituição’ europeia),
embora conste da Declaração nº 29 do novo Tratado Sobre o Funcionamento da União
Europeia (TSFUE), com força jurídica idêntica à do Tratado. Mas ela não prevê a
criação de nenhum direito social europeu, não cria nenhuma nova competência
(responsabilidade) para a União, não dando nenhum passo em frente na construção da
Europa Social.560
Em termos genéricos, os Tratados não garantem direitos fundamentais dos
trabalhadores, como o direito ao trabalho, o direito a um rendimento mínimo, o direito a
um subsídio de desemprego, o direito a uma pensão de reforma, o direito à habitação,
direitos sociais colectivos reconhecidos em várias constituições modernas (de alguns
estados-membros da UE) e na DUDH.
O direito ao trabalho foi substituído pelo “direito de trabalhar”, a “liberdade de
procurar emprego em qualquer Estado membro” e o “direito de acesso gratuito a um
serviço de emprego” (arts. 15º e 29º CDF). Ora o direito de trabalhar foi uma conquista
das revoluções burguesas, uma vez que ele não é mais do que a outra face da liberdade
de trabalhar inerente ao estatuto jurídico de homens livres reconhecido aos
trabalhadores após a abolição da escravatura e a extinção da servidão pessoal. O direito
ao trabalho (com o correlativo dever do estado de garantir a todos os trabalhadores uma
existência digna através do trabalho) começou a ser consagrado na Constituição
francesa de 1793 e consolidou-se após a revolução de 1848. Estamos, também neste
ponto, a querer regressar ao século XVIII.
Como novidade – que contraria disposições expressas das constituições de
alguns Estados-membros -, surge, para nosso espanto, o reconhecimento do direito de

559
Ver P. LUSSEAU, Constitution…, cit., 10, 67 e 106.
Alguns críticos mais duros sustentam que o chamado modelo social europeu se transformou em
560

mero ornamento do discurso político dos defensores do “pensamento único euro-beato” (Jacques
Généreux), considerando outros que a destruição do modelo social europeu equivale à “americanização
da Europa”, à “terceiro-mundização lenta dos povos da Europa”. (Assim, Didier Motchane, apud G.
SARRE, ob. cit., 127).
368

greve às entidades patronais ou direito ao lock out (art. 28º CDF e art.153º, nº 5 do
TSFUE).
O direito a um sistema público e universal de segurança social foi substituído
pelo “direito de acesso às prestações de segurança social” (art. 34º, nº 1 CDF). O direito
à habitação deu lugar ao “direito a uma ajuda à habitação, destinada a assegurar uma
existência condigna” (art. 34º, nº 3 CDF).
O art. 14º CDF reconhece que “todas as pessoas têm direito à educação”. Mas,
no nº 2 deste artigo, a CDF limita-se a dizer que este direito inclui “a possibilidade de
frequentar gratuitamente o ensino obrigatório”. Seria de esperar que se dissesse que o
ensino obrigatório é gratuito para todos. Ora o que se diz no nº 2 não é tão claro como
seria desejável: reconhece-se a possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino
obrigatório; mas aceita-se a impossibilidade de ser assim, ou seja, admite-se a
possibilidade de as pessoas terem que pagar o ensino obrigatório? Não nos parece uma
redacção muito feliz.
Tudo em consonância com a prática da generalidade dos estados-membros e das
instituições da União, que vem apontando no sentido do nivelamento por baixo. Por
alguma razão o Tratado de Amesterdão retirou do texto dos Tratados a referência que
neles se fazia à harmonização do direito social no sentido do progresso. E nada nos
actuais Tratados permite esperar que se queira caminhar no sentido da harmonização no
progresso. Antes pelo contrário: a tónica dominante é no sentido de afirmar a
“necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União” e de deixar
claro que a harmonização dos sistemas sociais há-de decorrer fundamentalmente do
“funcionamento do mercado interno”. As críticas surgem, naturalmente, por parte
daqueles que defendem terem sido os mecanismos do mercado que fizeram do
capitalismo a “civilização das desigualdades”.

4.15.5.2. - Num tempo de crise como aquele em que vivemos, torna-se mais
visível e preocupante a incapacidade da União Europeia de definir e executar uma
política efectiva de promoção do pleno emprego, de combate ao desemprego e de
protecção social aos desempregados. O próprio Parlamento Europeu vem insistindo há
anos na incapacidade da União para definir uma estratégia coordenada em matéria de
emprego, a não ser no que toca ao objectivo neoliberal, há longo tempo estatuído nos
Tratados, de promover “mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças
económicas”.
369

Nos documentos que antecederam a criação da União Económica e Monetária


(UEM) surgiu uma proposta francesa no sentido da centralização do sistema de seguro
de desemprego, de modo a reduzir as consequências de eventuais choques assimétricos.
Dada, sobretudo, a oposição britânica, a proposta não foi por diante.
Em Amesterdão (1996/1997) conseguiu-se que o RU aderisse à Carta Social
aprovada em Maastricht, ficando ela incorporada nos Tratados constitutivos da UE. Mas
Blair e Kohl opuseram-se à criação de um Fundo Europeu de Luta contra o
Desemprego, como pretendia a França.
O objectivo do pleno emprego nunca foi levado a sério pelos Tratados que vêm
dando corpo ao projecto europeu. No Título dedicado ao emprego dos Tratados
actualmente em vigor não se fala de pleno emprego nem de desemprego; os Tratados só
falam de pleno emprego no art. 3º do Tratado da União Europeia (TUE), considerando-
o como uma das metas a atingir. Mas este objectivo, bem como o do progresso social,
vêm indicados no nº 3 deste art. 3º, que começa com esta declaração: “A União
estabelece um mercado interno”. Este é que é o objectivo estratégico: o resto há-de
decorrer do funcionamento do mercado interno.
Efectivamente, o art. 151º TSFUE, que se ocupa da Política Social, volta a
referir, como objectivos da União e dos estados membros, a promoção do emprego, um
nível de emprego elevado e duradouro e a melhoria das condições de vida e de trabalho.
Lendo bem, porém, fica a ideia de que se espera alcançar estes objectivos, não em
resultado de políticas comunitárias activas nesse sentido, mas apenas do “diálogo entre
parceiros sociais” e do “desenvolvimento dos recursos humanos”. O significado deste
artigo é, na prática, o de anunciar que a União Europeia não tem qualquer política a este
respeito, limitando-se a falar, em linguagem cifrada, de “acções que tenham em conta a
diversidade das práticas nacionais, em especial no domínio das relações contratuais”. O
texto dos Tratados é, porém, muito claro ao proclamar a “necessidade de manter a
capacidade concorrencial da economia da União”. Dizendo-o em linguagem entendível:
o que é importante é manter a capacidade concorrencial da economia da União (ainda
que à custa dos salários, das condições de trabalho e da segurança do emprego); a
promoção (e a garantia) do emprego e a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores têm de subordinar-se ao que é importante.
Isto mesmo resulta da leitura atenta dos arts. 145º e 146º do TSFUE, que se
ocupam do Emprego, proclamando o empenho da União e dos Estados membros em
desenvolver uma estratégia concertada em matéria de emprego. O que significa que a
370

União ainda não conseguiu desenvolver nenhuma estratégia concertada em matéria de


emprego. Os Tratados prometem agora o empenho em o conseguir. A história passada,
porém, não ajuda a acreditar nesta promessa: passados mais de cinquenta anos sobre o
Tratado de Roma, a única estratégia coordenada que tem sido levada à prática, de forma
sistemática e empenhada, pela União e pelos Estados membros, é aquela que apenas tem
assegurado – como o Parlamento Europeu sublinhou - a criação de “mercados de
trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas”. Esta a estratégia conforme
à ideologia neoliberal.
Tudo em consonância com o objectivo estratégico (não confessado) do
nivelamento por baixo. Por alguma razão o Tratado de Amesterdão retirou do texto dos
Tratados a referência que neles se fazia à harmonização do direito social no sentido do
progresso. O art. 151º TSFUE fala de harmonização, no parágrafo 1º, quando refere o
objectivo da melhoria das condições de vida e de trabalho, mas no parágrafo 2º logo
recorda a “necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União” e,
no parágrafo 3º, é suficientemente claro na afirmação de que a harmonização dos
sistemas sociais há-de decorrer, não apenas (diz o texto do TSFUE), mas
fundamentalmente (dizemos nós), do “funcionamento do mercado interno”.
As críticas vêm, naturalmente, daqueles que consideram dever-se aos
mecanismos do mercado a afirmação e a consolidação do capitalismo como a
civilização das desigualdades. O dogma segundo o qual a melhoria do bem-estar de
todos só pode esperar-se do livre funcionamento do mercado integra o clássico
catecismo liberal. Mas ele ilumina os Tratados estruturantes da UE, num compromisso
praticamente tão antigo como o próprio processo de construção europeia.561

4.15.6. - Não é fácil desmentir os que sustentam que “a Europa social é o parente
pobre deste modo de construção europeia”.562
Em 1983 Miterrand confessava estar “dividido entre duas ambições, a da
construção da Europa e a da justiça social” 563, afirmação que parece assentar no
pressuposto de que a justiça social não tinha lugar na ‘Europa’ em construção desde
561
É sabido que o Livro Branco da Comissão presidida pelo socialista Jacques Delors, que
serviu de base ao Acto Único Europeu (1986) recebeu directamente a inspiração de um memorando
elaborado e editado em 1984 pela ERT (a Mesa Redonda Europeia dos patrões europeus). Georges Sarre,
um dos dirigentes socialistas que fez campanha pelo NÃO à Constituição Europeia, não teve dúvidas em
considerar aquele Tratado de 1986 como “um contrato de casamento entre a Europa e o liberalismo, sem
divórcio nem repúdio possíveis” (cfr. G. SARRE, ob. cit., 117/118).
562
Cfr. A. LECHEVALIER e G. WASSERMAN, ob. cit., 12.
563 ?
Apud Jacques ATTALI, ob. cit., 399.
371

1957, ou, pelo menos, que a construção da Europa poderia exigir o ‘sacrifício’ do
modelo social europeu.
Alguns anos mais tarde, num texto escrito pouco após a queda do Muro de
Berlim (9.11.1989), Michel Rocard reconhecia isto mesmo: “As regras do jogo do
capitalismo internacional impedem qualquer política social audaciosa. Para fazer a
Europa, é preciso assumir as regras deste jogo cruel” [as regras do jogo impostas pelo
que designa por capitalismo internacional]. É, a nosso ver, a aceitação do fatalismo
thatcheriano de que não há alternativa ao mercado, é a aceitação da lógica implacável
da mercadização da economia e da vida, “feita pela Europa, graças à Europa e por causa
da Europa”, como reconhece Pascal Lamy, Director-Geral da OMC.564
O fundamentalismo neoliberal inspirador da União Económica e Monetária
(UEM) e do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) vieram agravar as dificuldades
de sobrevivência do ‘modelo social europeu’ no seio desta União Europeia.
Recordaremos, em primeiro lugar, que o objectivo primordial do Banco Central
Europeu (BCE), responsável pela política monetária única dos países que adoptaram o
euro como moeda é o da estabilidade dos preços, a ele devendo ser sacrificados todos
os outros objectivos de política económica, nomeadamente o crescimento económico, a
promoção do pleno emprego e a luta contra o desemprego, a redistribuição do
rendimento e o combate às desigualdades sociais crescentes e à exclusão social. É esta
fidelidade às propostas monetaristas mais radicais que justifica a classificação dos
estatutos do BCE como “uma regressão política sem precedente histórico”.565
Recordaremos, em segundo lugar, as exigências do PEC (débito público não
superior a 3% do PIB; dívida pública não superior a 60% do PIB; inflação não superior,
a médio prazo, a cerca de 2% ao ano), exigências que significam um regresso às
concepções e políticas pré-keynesianas, que conduzem ao prolongamento e ao
aprofundamento das crises, obrigando os trabalhadores a pagar, com a baixa dos salários
reais, a solução que se espera resulte da actuação livre das leis do mercado.
Por isso mesmo, e com justa razão, já alguém lhe chamou “Pacto de
Estagnação”.566 Por mais estranho que possa parecer, altos responsáveis da Comissão

564
Citações colhidas em S. HALIMI, “As promessas…, cit., 3.
565
Por estas e outras razões, J.-P. CHEVÈNEMENT (ob. cit., 36) não hesita em afirmar que “a
constitucionalização dos estatutos do Banco Central Europeu – peso bem as minhas palavras – é algo de
verdadeiramente criminoso”.
566
J.FERREIRA DO AMARAL, em Seara Nova, Out-Dez/2002, 20.
372

Europeia já lhe chamaram (em 2005) estúpido e medieval. No entanto, nada mudou: os
dogmas neoliberais não foram postos em causa.
Apesar do veto à Constituição Europeia resultante dos referendos realizados na
França e na Holanda, o receituário neoliberal continua a impregnar os Tratados
estruturantes da União Europeia. A Parte III da chamada Constituição Europeia
desapareceu, enquanto tal, do texto aprovado em Lisboa em 13 de Dezembro de 2007.
Mas os seus princípios essenciais continuam nos Tratados (nomeadamente no TUE),
porque eles já estavam consagrados nos Tratados anteriores (Tratado de Roma, Acto
Único e Tratado de Maastricht) e permaneceram intocados no Tratado de Lisboa. Como
explicou V. Giscard d’Estaing (que presidiu à Convenção que elaborou o texto
originário da ‘constituição europeia’), “são exactamente os mesmos instrumentos. Só se
mudou a forma como estão arrumados”.567

4.15.7. – Esta envolvente estrutural claramente marcada pelo neoliberalismo –


que continua a ser a matriz da ideologia dominante, apesar do seu descrédito no plano
teórico – tem alimentado, por um lado, um excessivo ‘pragmatismo’ no domínio da
ação política, que tende a identificar-se com o apagamento das ideologias e com a
‘morte’ da política. E tem inspirado, por outro lado, um contagiante pessimismo teórico,
que equivale à negação da nossa capacidade para construir alternativas ao
neoliberalismo nas suas várias modalidades e à aceitação de que o fim do estado social é
uma fatalidade do nosso tempo (apesar de vivermos num tempo em que a produtividade
do trabalho humano, graças aos efeitos exponenciais da revolução científica e
tecnológica, atingiu níveis inimagináveis ainda há poucas décadas atrás). 568
Numa conferência proferida no Recife em 1996, Gomes Canotilho parece ceder
a esta onda anunciadora da ‘morte’ do estado social.
No que se refere aos países que não chegaram a aproximar-se dos limiares
mínimos do estado social, Canotilho entende que “o catálogo generoso dos direitos
económicos, sociais e culturais é apenas uma narrativa emancipadora ilusória ou uma
sequela de uma leitura socialista dos direitos, hoje reconhecida e experimentalmente
falhada”.

567
Em Le Monde, 27.10.2007.
568
Para uma análise da problemática do estado social e das dificuldades que se invocam para
justificar a sua insustentabilidade pode ver-se João LOUREIRO, ob. cit., especialmente 9 -138.
373

Não podemos subscrever esta ‘condenação’ dos povos dos países menos
desenvolvidos à impossibilidade de acesso aos direitos habitualmente associados ao
estado social. A inscrição dos direitos económicos, sociais e culturais nas constituições
desses países como direitos fundamentais não pode reduzir-se a um mero exercício para
enganar os povos com narrativas emancipadoras ilusórias ou a uma simples invocação
de um ideário socialista que se diz ter ‘falhado’.
Estamos muito conscientes de que as constituições não substituem a vida (não
substituem a luta de classes) e muito menos fazem revoluções. E nem sequer garantem,
por si próprias, a efectica concretização dos direitos fundamentais nelas consagrados:
elas não são a árvore do paraíso, a fonte milagrosa de onde jorra com abundância o leite
e o mel. Mas esta consciência de que as constituições não são varinhas mágicas, nem
são o motor da história não pode negar a importância da consagração daqueles direitos
nas constituições dos países em referência, no plano jurídico, no plano político e no
plano civilizacional. Esta consagração significa, desde logo, que o povo soberano quer
que aqueles direitos sejam tratados como direitos fundamentais e significa, por outro
lado, que os órgãos do poder político democrático devem sentir-se politica e
juridicamente vinculados a actuar no sentido da sua efectiva concretização.
Em outros países (aqueles em que se verificou uma elevada concretização dos
objectivos do estado social), Canotilho considera que este “é vítima do seu próprio
sucesso”. «As constituições socialmente amigas - escreve ele - sofrem as críticas
amargas da “crise de governação”, do “flagelo do bem”, do “fim da igualdade”, da
“bancarrota do estado”». Em geral, o autor conclui que, nos tempos que correm, “a
cidadania social conquista-se não através da estatalização da socialidade na esteira de
Bismarck ou Beveridge mas sim através da civilização da política.” [sublinhados
nossos. AN]
Qualquer que seja o entendimento do autor sobre o sentido desta “civilização da
política”, parece que ela não salvará o estado-providência da morte anunciada: “Já não é
o Estado-Providência – escreve Gomes Canotilho - que tenta resolver os problemas
ligados à distribuição dos recursos: é o Estado-ativo tutelar ou supervisionador que tem
apenas a responsabilidade pela produção de bens coletivos indispensáveis à sociedade
quando se trate da segurança de bens essenciais no seu núcleo básico. A estratégia é a
do Estado preceptor que deve substituir as ideias rectoras da intervenção estatal por
374

ideias directas da mudança numa sociedade heterárquica e contextualizada”. 569[os


sublinhados são nossos. AN]

Não parece fácil descortinar o perfil deste estado-activo-tutelar-supervisionador,


desde logo porque não é claro o conteúdo dos referidos bens colectivos indispensáveis à
sociedade quando se trate da segurança de bens essenciais no seu núcleo básico.
E também não é inequívoco o sentido que poderemos atribuir à expressão
civilização da política. Se com ela se quer significar a entrega da política à chamada
sociedade civil, esta proposta de “civilização da política” só pode assentar no
pressuposto de que a sociedade civil (enquanto ordem económica natural) é capaz de
garantir, por si própria, sem necessidade de quaisquer políticas públicas, a ordem social
e a justiça social. Ou assentar na convicção de que, nas actuais condições do
capitalismo, estas preocupações com a ordem social e a justiça social não fazem
qualquer sentido e podem deitar-se para trás das costas.
Se assim for, esta civilização da política é apenas uma outra face da morte da
política económica e da morte da política social, ou da morte da política, sem mais.
Como defendem os monetaristas mais radicais.
O que parece claro, se bem interpretamos o seu pensamento, é que Gomes
Canotilho rejeita as ideias rectoras da intervenção estatal no que se refere à efectivação
dos direitos económicos, sociais e culturais, preferindo o que chama ideias directas da
mudança. Mas fica na sombra, em nosso entender, o significado destas ideias directas e
o sentido da mudança, ou seja, não resulta inequívoco o conteúdo destas ideias directas
da mudança.
Também parece claro que Gomes Canotilho prefere à estatalização da
socialidade a civilização da política. Fica por apurar o sentido desta rejeição da
“estatalização da socialidade”. Significará ela a rejeição do princípio da
responsabilidade social colectiva enquanto princípio basilar do estado-providência,
princípio que Milton Friedman considerou “uma doutrina essencialmente subversiva”?
E a “civilização da política” significará, aqui, a afirmação do princípio liberal de que
cabe a cada cidadão proteger-se dos riscos do presente e das incertezas do futuro?

569
Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, “O tom…, cit., 122/123.
375

Ao estado-providência (ou estado social) Canotilho prefere o estado activo e o


estado preceptor. Mas não densifica a natureza e os objectivos deste estado activo ou
estado preceptor, limitando-se a remeter para um autor alemão.570
O pessimismo a que aludimos atrás parece levar Gomes canotilho a negar
qualquer viabilidade às políticas sociais desenvolvidas dentro do quadro definido pelas
constituições: “A ideia de uma política social constitucionalizada – escreve o autor 571

pressupõe, ainda, um Estado soberano quando já não existe Estado soberano”.
No que nos diz respeito, preferimos acompanhar István Mészáros quando refere
“a dominação continuada dos Estados nacionais como estrutura abrangente de comando
da ordem estabelecida” e sublinha que “o Estado nacional continua sendo o árbitro
último da tomada de decisão sócio-económica e política abrangente, bem como o
garantidor real dos riscos assumidos por todos os empreendimentos económicos
transnacionais”.572
O desenrolar da presente crise do capitalismo tem mostrado – parece-nos - que o
estado aí está a anunciar que a notícia da sua morte terá sido um tanto exagerada. O que
acontece é que, como sempre, alguns estados são mais soberanos do que outros…

4.16. – As privatizações. O estado regulador.


4.16.1. - A onda privatizadora, desencadeada, fundamentalmente, em nossa
opinião, por razões ideológicas, veio levantar novas questões, obrigando a reequacionar
o papel do estado capitalista nas condições entretanto criadas.
Os mais moderados (ou realistas) logo se aperceberam de que as privatizações
arrastavam consigo a necessidade de garantir a salvaguarda de determinados interesses
públicos e a consequente imposição às empresas privadas que forneçam ‘serviços
públicos’ de um conjunto de obrigações de serviço público. O objectivo anunciado é o
de acautelar o interesse público, que pode consistir na defesa do ambiente, na defesa dos
consumidores em geral. No que toca aos serviços públicos, o interesse público a
proteger consiste, como se diz atrás, na garantia da sua qualidade, universalidade,
segurança, continuidade e acessibilidade ao conjunto da população (evitando a exclusão
por razões económicas, com base num ‘preço razoável’).

570
Na nota 19 (p. 123) da obra citada refere Helmut WILKE, Ironie des Staates, Frankfurt/M,
1992.
571
“O tom…, cit., 131.
572
Cfr. I. MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 33.
376

A ideia de que os sectores assim privatizados deveriam ser objecto de regulação


passou a ser defendida pelos autores e pelas correntes políticas que têm apoiado as
privatizações e o esvaziamento do papel do estado na economia.
Uns, por puro oportunismo: a defesa da regulação ajudava a passar mais
facilmente junto da opinião pública a política de privatizações. São os que, agora,
alcançados os objectivos que pretendiam, clamam contra a regulação, acusando-a de
constituir um impecilho ao domínio absoluto do ‘mercado’, das suas ‘leis naturais’ e da
sua ‘racionalidade’ superior.
Outros, por entenderem que o mercado, deixado a si próprio, não salvaguarda
inteiramente o interesse público, não garante as condições indispensáveis a um
funcionamento ‘organizado’ do capitalismo e à ‘paz social’ capaz de viabilizar o
funcionamento do sistema sem o recurso a práticas abertamente anti-democráticas.
Assim começou a ganhar corpo o conceito de economia de mercado regulada
(ou economia social de mercado), conceito sobre o qual se construiu o conceito de
estado regulador, contra o ‘estado keynesiano’, contra a presença do estado na
economia e contra o estado social. Em nome das virtudes da concorrência e do primado
da concorrência, ‘liberta-se’ o estado económico das suas competências e das suas
responsabilidades e esvazia-se o estado social, o estado responsável pela prestação de
serviços públicos. Como compensação, oferece-se a regulação do mercado, sempre que
se verifiquem determinadas situações.
Em primeiro lugar, sempre que haja falhas de mercado, como nas situações de
monopólio natural, em que a concorrência não é praticável por não se justificar mais do
que um operador (é o caso, por exemplo, das redes de transporte ferroviário e das redes
de transporte e de distribuição de electricidade, de gás, de água potável, de saneamento).
Em segundo lugar, sempre que seja necessário garantir o respeito, por parte das
empresas privadas, de certas obrigações de serviço público (como vem acontecendo nos
sectores dos transportes públicos, dos correios, dos telefones, das telecomunicações),
obrigações que de outro modo não seriam respeitadas por serem incompatíveis com a
lógica do lucro.
Finalmente, sempre que seja necessário proteger os consumidores ou tentar
evitar ou reduzir os chamados custos sociais do desenvolvimento (o caso mais típico é o
dos danos ambientais resultantes de uma economia cujo móbil é o lucro).
377

No âmbito da CEE/UE, a entrega das funções referidas a entidades reguladoras


independentes decorre, em grande medida, do quadro legal comunitário e da actuação
da Comissão Europeia. Já vimos que os Tratados não proibem a presença de empresas
públicas nos vários sectores de actividade económica. Mas as empresas públicas são
obrigadas a actuar de acordo com a lógica das empresas privadas e ficam sujeitas às
regras da concorrência.
Isto significa que, mesmo na área dos serviços públicos, não pode haver sectores
reservados às empresas públicas. Imposta pelas instituições comunitárias, a
liberalização do mercado dos serviços públicos (designação que, desde logo, colide com
o conceito tradicional de serviços públicos como bens e serviços à margem do
mercado), acabou por conduzir à privatização das empresas públicas produtoras e
distribuidoras de serviços públicos, servindo a regulação como capa protectora deste
recuo histórico, pelas razões atrás expostas.573
4.16.2. – Este o quadro em que surgiu, a partir dos anos 80 do século XX, o
novo figurino do estado capitalista, o estado regulador.574 A defesa da concorrência é

573
Para atestar a ‘paternidade’ comunitária da regulação e das entidades reguladoras
independentes, bastará recordar que, em Portugal, a legislação que instituiu as primeiras entidades
reguladoras independentes resulta da transposição para a ordem jurídica portuguesa de Directivas
comunitárias. É o caso da ERSE (Entidade Reguladora do Sector Eléctrico, depois convertida em
Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, passando a abranger também o gás natural), imposta pelas
Directivas nº 96/92/CE do Parlamento e do Conselho, de19 de Dezembro, e nº 98/30/CE, de 22 de Junho.
Este é também o caso da ANACOM (Autoridade Nacional das Telecomunicações), criada por imposição
da Directiva nº 2002/21/CE do Parlamento e do Conselho, de 7 de Março. Cfr. E. PAZ FERREIRA, ob.
cit., 37/38.
574 ?
Poderemos sintetizar a noção de regulação económica invocando a definição que consta do
Glossário de economia industrial e de direito da concorrência divulgado pela OCDE em 1993 (versão
colhida em J. VASCONCELOS, ob. cit.):
“Em sentido lato, a regulação económica consiste na imposição de regras emitidas pelos poderes
públicos, incluindo sanções, com a finalidade específica de modificar o comportamento dos agentes
económicos no sector privado. A regulação é utilizada em domínios muito diversos e recorre a numerosos
instrumentos, entre os quais o controlo dos preços, da produção ou da taxa de rentabilidade (lucros,
margens ou comissões), a publicação de informações, as normas, os limiares de tomada de participação.
Diferentes razões têm sido avançadas a favor da regulação económica. Uma delas é limitar o poder de
mercado e aumentar a eficiência ou evitar a duplicação de infra-estruturas de produção em caso de
monopólio natural. Outra razão é proteger os consumidores e assegurar um certo nível de qualidade assim
como o respeito de certas normas de comportamento (…). A regulação pode também ser adoptada para
impedir a concorrência excessiva e proteger os fornecedores de bens e serviços”.
Mais sinteticamente, E. PAZ FERREIRA (“Em torno…, cit., 32): a regulação económica é “uma
forma de intervenção através da qual se procura essencialmente preservar o equilíbrio económico de
determinado sector que não seria logrado sem essa intervenção”.
Em termos gerais, tendo em conta toda a actividade reguladora, P. GONÇALVES (ob. cit., 540):
a regulação “consiste na definição das condições normativas de funcionamento da actividade regulada e
no controlo da aplicação e observância de tais condições”.
Para uma análise da regulação económica, tendo em vista particularmente o sector eléctrico, ver.
S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 408ss e 449ss.
378

entregue a agências (ou autoridades) de defesa da concorrência; a regulação sectorial


dos vários mercados regulados é confiada a agências reguladoras.575
Apesar destas alterações, os defensores do estado regulador sustentam que ele
não abandonou inteiramente a sua veste de estado intervencionista, invocando qie o seu
propósito é exactamente o de condicionar ou balizar a actuação dos agentes
económicos, em nome da necessidade de salvaguardar o interesse público.
Argumenta-se que não é conveniente deixar o mercado entregue a si próprio e
proclama-se a necessidade de o estado definir o estatuto jurídico do mercado. Esta
responsabilidade pública de regular (ou responsabilidade pública de garantia) seria,
ainda, uma forma de intervenção do estado na economia, permitindo apresentar o estado
regulador como um estado activo (até mesmo um estado dirigista) no domínio da
economia, que passaria a ser, como dissemos, uma economia de mercado regulada, ou
uma economia social de mercado.
Segundo este ponto de vista, apesar de prestados por empresas privadas, os
serviços públicos continuariam na esfera da responsabilidade pública. A regulação do
mercado representaria, assim, o modo de o estado assegurar a realização do interesse
público e o respeito da ordem pública económica, apresentando-se o direito da
regulação como a “disciplina jurídica do mercado e da economia, como o novo direito
público da economia”.576 Perante o crescente esvaziamento da responsabilidade do
estado no terreno da economia e da sua capacidade de intervenção como operador nos
sectores estratégicos e na área dos serviços públicos, pretende-se salvar a ideia de que,

575
Há quem fale de regulação sectorial a propósito da regulação de um determinado sector de
actividade (sector económico ou sector social) e de regulação transversal a propósito da regulação da
concorrência, uma vez que o direito da concorrência é de aplicação transversal a toda a economia. Cfr. P.
GONÇALVES, ob. cit., 543.
Em Portugal, existem entidades reguladoras independentes para actividades não directamente
económicas (a comunicação social, a saúde e o ensino superior) e existe uma Autoridade da
Concorrência, encarregada da regulação transversal no âmbito da aplicação do Direito da Concorrência
(que é, essencialmente, direito comunitário, emanado dos organismos da União Europeia). A regulação
sectorial, no âmbito da actividade económica, exerce-se no sector financeiro (banca, seguros e mercado
de valores mobiliários), no sector da energia, no sector postal e das comunicações electrónicas, no sector
da água e dos resíduos, no sector do transporte ferroviário, no sector da aviação civil e nos mercados das
obras públicas e particulares e do imobiliário. À excepção do Instituto dos Mercados de Obras Públicas e
Particulares e do Imobiliário, todas as demais entidades reguladoras são entidades independentes.
Para além destas formas de hetero-regulação (regulação exercida por uma entidade exterior à
actividade regulada), o estado português reconhece ainda certas formas de auto-regulação. É o caso das
ordens profissionais (ordem dos advogados, ordem dos médicos, etc.), para as quais o estado transfere a
competência para regular o exercício das respectivas profissões, no plano deontológico, disciplinar,
económico e social. Há ainda certos casos de regulação exercida por organismos privados (as federações
desportivas, certas entidades certificadoras de produtos agrícolas, a Caixa Central de Crédito Agrícola
Mútuo).
576
Cfr. P. GONÇALVES, ob. cit., 536-542.
379

com o estado regulador, os serviços públicos continuariam na esfera da


responsabilidade pública.
É diferente a nossa ‘leitura’ do estado regulador: ele foi ‘inventado’ para
encobrir a política que visa exactamente retirar ao estado a competência, o poder e os
meios para assumir cabalmente esta responsabilidade pública, correspondendo,
basicamente, ao modelo do estado liberal, visando, em última instância, assegurar o
funcionamento de uma economia de mercado, que inclua os serviços públicos, e na qual
a concorrência seja livre e não falseada (para usar a expressão consagrada na UE até ao
Tratado de Lisboa).
Com efeito, desde muito cedo o pensamento liberal impôs a ideia de que esta
função de regulação, embora justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse
público, deveria ser prosseguida, não pelo estado enquanto tal, mas por agências (ou
entidades, ou autoridades) reguladoras independentes. Estas são uma invenção norte-
americana (fortemente activada no quadro do New Deal) e que chegou à Europa há uns
trinta anos, através do Reino Unido. 577 Com uma diferença. Nos EUA, a regulação foi,
desde finais do século XIX, uma forma de ampliar a intervenção do estado na economia.
Ao invés, a sua presença na cena europeia significou um retrocesso relativamente à
importância do papel do estado enquanto estado económico, em especial no que se
refere à produção e prestação de serviços públicos. Esta solução só tem justificação
para quem entenda que o estado (o estado democrático), declarado, quase sempre por
puro preconceito ideológico, incapaz de administrar o sector público da economia
(incluindo a prestação de serviços públicos, com longa, profunda e positiva tradição na
Europa), é também considerado incapaz de exercer bem esta função reguladora. 578
Ao substituirem o estado no exercício desta função reguladora (que dir-se-ia não
poder deixar de constituir o ‘conteúdo mínimo’ do ‘estado mínimo’), estas agências
concretizam uma solução que respeita o dogma liberal da separação entre o estado e a
economia: o estado deve manter-se afastado da economia, não deve intervir na
economia, deve estar separado dela, porque a economia é área privativa dos privados. A

577
Cfr. MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 17-22 e J. L. CARDOSO, ob. cit.
578 ?
O próprio Adam Smith parece ter sido menos papista que os ‘papas’ modernos do
neoliberalismo, ao admitir que é dever do soberano “a criação e a manutenção daqueles serviços e
instituições que, embora possam ser altamente benéficos para uma sociedade, são, todavia, de uma natureza
tal que o lucro jamais poderia compensar a despesa para qualquer indivíduo ou pequeno número de
indivíduos, não se podendo, portanto, esperar a sua criação e manutenção por parte de qualquer indivíduo
ou pequeno número de indivíduos. A concretização deste dever exige despesas de variadíssimos graus nos
diferentes períodos da sociedade”. Ao menos nestes domínios, até o patriarca do liberalismo admitia que o
estado produzisse e fornecesse determinados bens e serviços. Por isso Milton Friedman o criticou.
380

manutenção de algumas empresas públicas só é tolerada se elas se comportarem como


se fossem empresas privadas.
Como reconhece Pedro Gonçalves, “é ao princípio liberal da ‘separação entre
política e administração’ que se reconduz o fenómeno da criação de entidades
administrativas independentes”.579 Partindo do princípio de que as funções das entidades
reguladoras são funções meramente técnicas e não-políticas, o que se pretende é subtrair
à esfera da política (isto é, à competência dos órgãos políticos democraticamente
legitimados) a acção destas entidades ditas independentes, alegando-se que só assim se
consegue a sua neutralidade.
Esta ideia de subtrair a administração à acção da política parece pressupor que
a política é uma coisa feia ou uma doença perigosa, que é preciso isolar. Ora a política é
a administração da cidade, o governo da res publica, o exercício da cidadania e da
soberania.
Tal ideia traz consigo a substituição do estado democrático por um estado
tecnocrático, que se pretende fazer passar por um estado neutro (acima das classes),
governado por pessoas competentes, que não pensam em outra coisa que não o interesse
público. Só que tal ‘estado’ tem um pecado original: não é um estado democrático e é, a
nosso ver, mais permeável à influência dos grandes interesses privados do que o estado
democrático, pela simples mas decisiva razão de que as entidades em que assenta esse
tal estado tecnocrático não prestam contas a ninguém nem respondem politicamente
pela sua acção.
A entrega das tarefas de regulação económica às autoridades reguladoras
independentes só pode entender-se como uma cedência às teses neoliberais do
esvaziamento do estado e da morte da política, em nome da ideia de que não pode
confiar-se ao estado nem sequer a tarefa de assegurar, por si próprio, a prossecução e a
protecção do interesse público. Mesmo em áreas tradicionalmente consideradas fora do
mercado, como é o caso da saúde e da educação.580
Parece óbvio que não pode esperar-se de uma entidade neutra (que age segundo
critérios técnicos e rejeita as opções políticas) a definição e a execução de políticas
públicas (que visam, é claro, promover interesses públicos relevantes). Esta tarefa

579
Cfr. ob. cit., 549.
580
Susana TAVARES DA SILVA (ob. cit., 69) dá conta de que já se ensaiam soluções que
tendem a confiar inteiramente aos mecanismos do mercado domínios típicos da socialidade, como é a
caso da saúde. A vida vai confirmando isto mesmo todos os dias. Em Portugal, a recente luta dos colégios
privados pelo ‘direito’ a subsídios do estado (por vezes mais avultados do que os fundos concedidos às
escolas públicas) insere-se nesta estratégia.
381

implica escolhas políticas que comprometam o estado. Ora o chamado estado regulador
revela-se, afinal, um estado pseudo-regulador (ou um pseudo-estado regulador), um
estado que renuncia ao exercício, por si próprio, dessa ‘função reguladora’, inventada
para responder à necessidade de, perante a ‘privatização’ do próprio estado,
salvaguardar o interesse público. E, como se tal não bastasse, transfere essa função
reguladora para entidades independentes, que se querem ‘politicamente puras’, actuando
apenas em função de critérios técnicos.

4.16.3. – Os defensores deste estado regulador sublinham que as agências


reguladoras independentes são organismos técnicos, politicamente neutros, acima do
estado, pondo em relevo que “o seu ethos radica na neutralidade da actuação sobre o
mercado através da promoção da eficiência”.581 Pretende-se deste modo justificar o facto
de elas não prestarem contas perante nenhuma entidade legitimada democraticamente
nem perante o povo soberano. Tanto esforço despendido para acentuar a natureza
técnica destas agências e das funções que desempenham só pode entender-se pela
consciência que todos temos – mesmo os defensores do estado regulador – de que a
prestação de contas é a pedra de toque da democracia. Sem ela, será a morte da política.
E uma ameaça à democracia, tal como a entendemos.
É, a nosso ver, um esforço inglório, porque nos parece evidente que essas
agências exercem funções políticas e tomam decisões políticas com importantes
repercussões sociais. Na verdade, as autoridades reguladoras independentes vêm
chamando a si parcelas importantes da soberania, pondo em causa, no limite, a
sobrevivência do próprio estado de direito democrático, substituído por essa espécie de
estado oligárquico-tecnocrático, que, em nome dos méritos dos ‘técnicos especialistas
independentes’ que ‘governam’ este tipo de ‘estado’, não é politicamente responsável
perante ninguém, embora tome decisões que afectam a vida, o bem-estar e os interesses
de milhões de pessoas.
Por isso contestamos a legitimidade deste poder tecnocrático, sustentando que as
suas funções deveriam ser confiadas a entidades legitimadas democraticamente e
politicamente responsáveis. A política não pode ser substituída pelo mercado, nem o
estado democrático pode ser substituído por um qualquer estado tecnocrático, em nome
da velha ideia liberal de que a democracia se esgota na liberdade individual e de que a
liberdade só é garantida pelo mercado e só se realiza no mercado.
581
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 430.
382

As personalidades que integram as autoridades reguladoras independentes são


escolhidas pelos méritos que lhes são reconhecidos pelos políticos que as escolhem (o
que não é garantia de que tais ‘méritos’ sejam reais). E quem garante a independência
dessas personalidades? Serão elas independentes dos políticos que as escolhem? Diz-se
que a sua independência decorre do respectivo estatuto, que não permite a sua
destituição pelo poder político antes do termo do mandato e que não permite ao
Executivo dar-lhes ordens ou instruções sobre matérias inerentes à sua esfera de
competências.
Mas a política – todos o sabemos - é um complicado jogo de influências que se
jogam muitas vezes para lá das aparências e dos estatutos formais. Por isso o juízo
político não se confunde com o juízo jurídico, nem a responsabilidade política se
confunde com a responsabilidade jurídica (civil ou criminal). Por isso os órgãos que
detêm ‘poder político’ e exercem ‘funções políticas’ devem estar sujeitas ao controlo
político democrático e à prestação de contas pelas suas decisões.
É claro, por outro lado, que as pessoas ‘competentes’ em certo sector trabalham
normalmente nas empresas do sector. Não surpreende, por isso, que as personalidades
escolhidas pela sua experiência e competência na matéria saiam muitas vezes das
empresas reguladas para integrar as entidades reguladoras. Bem sabemos que não vão
para lá como ‘embaixadores’ (ou representantes) dos seus antigos ‘patrões’ (seria o
regresso do corporativismo sem disfarce), mas como especialistas independentes e de
elevados méritos.
Mas cremos ser de prima evidência que a actividade reguladora se exerce “em
domínios sectoriais onde a pressão dos lobbies é sentida com particular intensidade”. 582
Se tivermos presente esta realidade, parece difícil negar que se correm sérios riscos de
os interesses e as pressões dos regulados (as poderosas empresas que dominam os
sectores regulados e as suas associações representativas) exercerem uma influência
sensível (dominante?) sobre os reguladores. Até porque estes, terminado o mandato e
passado algum eventual período de ‘impedimento’, terão, naturalmente, o desejo (ou a
ambição) de regressar aos seus antigos locais de trabalho, e certamente a lugares mais
destacados e melhor remunerados do que aqueles que ocupavam antes de se
transferirem para as entidades reguladoras.

582
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 430.
383

4.16.4. - Vários argumentos têm sido invocados para justificar esta regulação
“amiga do mercado” e a sua entrega a entidades independentes. 583 Mas não faltam
razões para legitimar as múltiplas reservas que vêm sendo levantadas a esta concepção
da função reguladora e ao modo como é exercida.
Muito agitada tem sido a questão do défice democrático da solução que entrega a
regulação a entidades independentes e dos perigos que ela representa para o estado
democrático e para a democracia.
Particularmente acesa tem sido, a este propósito, a discussão à volta da
problemática da independência dos bancos centrais, enquanto titulares da política
monetária (subtraída à soberania do estado) e autoridades reguladoras independentes do
mercado do crédito.584
A discussão acentuou-se na Europa, especialmente a partir da entrada em vigor
da União Económica e Monetária (consagrada no Tratado de Maastricht, assinado em
1992), com a criação do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central
Europeu (o mais ‘independente’ dos bancos centrais em todo o mundo) e a entrada em
circulação do euro como moeda única dos países da União Europeia que a ela aderiram,
depois de cumprirem os apertados critérios de convergência.585
Entretanto, as políticas neoliberais foram amputando o estado democrático das
competências, dos meios e dos poderes que foi assumindo à medida que as sociedades
se tornaram mais complexas e que os interesses e as aspirações dos trabalhadores
conquistaram um pequeno espaço no seio do poder político. E não falta quem entenda
que, nestas novas condições, a regulação da economia (ou a economia de mercado
regulada) não significa mais do que a tentativa de tapar o sol com a peneira. Porque a
mão invisível do mercado deu o lugar à mão visível dos grandes conglomerados
transnacionais. O mercado são eles. E são eles que ‘mandam’ no mercado e nas
entidades que se propõem regular os mercados.
Num texto de 2003 escreveu Michel Rocard: “numa economia mundialmente
aberta, não há lugar para a regulação nem limites para a violência da concorrência”.586
[sublinhado nosso. AN] É uma confissão particularmente embaraçosa para os
defensores da economia de mercado regulada (ou economia social de mercado). Pela
nossa parte, só podemos estar de acordo com a conclusão de Rocard, segundo a qual, na
583
Ver MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 10-12.
584
Para mais desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, “Nota…, cit.
585
Cfr. A. J. AVELÃS NUNES, “A institucionalização…, cit., “Algumas incidências…, cit., e A
Constituição Europeia…, cit.
586
Cfr. Le Monde, 19.6.2003 [sublinhdo nosso].
384

nossa leitura, em um mundo governado pelas políticas neoliberais, não há lugar para a
regulação nem limites para a violência dos grandes conglomerados internacionais.
385

4.17. – Do estado regulador ao estado garantidor.


4.17.1. - O estado regulador vem sendo acusado de “excessiva ingerência na
vida das empresas e no mercado”, excesso que “acabou por impedir o funcionamento do
mercado”.587 Esta acusação assenta no pressuposto de que a eficiência do mercado é o
único caminho para promover o bem-estar das populações, pressuposto com base no
qual se funda a tese de que as necessidades da hora presente exigem o fim do estado
regulador, exigem mais desregulação.
O estado regulador parece não gozar, por outro lado, de muito bom ambiente no
seio da União Europeia e da legislação comunitária. Fala-se de “tensão entre regulação
económica e regulação social, entre estado neutro e estado social, entre eficiência e
promoção de valores sociais”. E adianta-se que se trata de “uma dimensão dificilmente
extrinsecável [sic] dos documentos jurídicos europeus, como se comprova pela
discussão sobre o sentido e extensão do ‘estado social europeu’, e no qual a intervenção
directa dos estados é sempre analisada sob a suspeita do incumprimento dos critérios do
mercado interno”.588 [sublinhados nossos. AN] Está lançada a suspeita de que o estado
regulador não satisfaz as exigências do mercado interno único, nomeadamente as
exigências do mercado livre e da famosa concorrência livre e não falseada…

4.17.2. - A solução apontada para ultrapassar esta contradição parece residir no


estado incentivador do mercado, estado orientador de comportamentos, estado
garantidor do bem-estar, ou seja, reside na incentivação do mercado, na orientação de
comportamentos, na garantia dos direitos sociais.589 É este o último traje inventado para
vestir um estado que se quer cada vez mais despido das suas funções sociais, enterrando

587
Ver notícia destas críticas em S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 68, 432 e 442. Mas os
adversários do estado regulador não o poupam a outras críticas: a falta de transparência na actuação das
entidades reguladoras alimenta dúvidas quanto à legitimidade meritocrática dos reguladores, que
cometem erros e se deixam por vezes ‘capturar’ (pelos regulados ou pelo estado); acrescem os custos da
regulação, que constituem um encargo extra, sem qualquer benefício social, antes em prejuízo dos
consumidores e da capitalização do seu montante para novos investimentos por parte das empresas
reguladas.
588
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 430.
589
Desenvolvidamente sobre o estado garantidor, ver S. TAVARES DA SILVA, ob. cit..
386

definitivamente o que resta da soberania económica do estado e da sua capacidade para


intervir em áreas vitais da política económica (empenhada em garantir a subordinação
do poder económico ao poder político democrático) e da política social (promotora da
solidariedade e da justiça social, em nome do princípio da responsabilidade social
colectiva, que subjaz ao estado social de matriz keynesiana).
Em Portugal, deve-se a Gomes Canotilho a primeira apresentação da
problemática envolvida por este novo figurino do estado capitalista, o estado
garantidor.590
O Autor começa por salientar que este conceito surgiu no seio da social-
democracia europeia, nomeadamente por obra da corrente apostada na renovação do
pensamento social-democrata que ficou conhecida por terceira via, da qual são figuras
de proa, no plano teórico, Anthony Giddens (The Third Day. The Renewal of Social
Democracy, 1998) e, no campo da acção política, Tony Blair, ex-Primeiro Ministro
britânico.
Em termos gerais, o estado garantidor é apresentado, por um lado, como “um
Estado ‘desconstrutor’ de serviços encarregados de prestações essenciais do cidadão”, e,
por outro lado, como “um Estado ‘fiador’ e ‘controlador’ de prestações dos serviços de
interesse geral por parte de entidades privadas”.
No plano teórico, Gomes Canotilho aponta várias “ambiguidades” ao conceito
de estado garantidor:
a) ele é frequentemente “um conceito descritivo das transformações do estado”:
o estado garantidor afasta a responsabilidade de produzir determinados serviços
públicos e de prosseguir activamente determinadas tarefas estaduais, pretendendo
“assumir apenas a responsabilidade pelo cumprimento das mesmas através de outras
estruturas, a maior parte das vezes privadas”, correndo o risco de se transformar em uma
“terra de ninguém jurídica”, sem um recorte rigoroso da sua dimensão normativa (não
se sabe muito bem qual a responsabilidade deste estado garantidor, nem o que ele
garante);
b) este estado garantidor tem alma de ‘estado social’ e corpo de empresa (ou ao
contrário: tem corpo de ‘estado social’ e alma de empresa): “pretende ainda garantir a
socialidade, ou seja, os serviços sociais essenciais – desde a saúde, as telecomunicações,

590
Cfr. “O Estado garantidor…, cit.. Em certa medida, esta problemática está já pressuposta em
?

outro estudo do Autor, tornado público também em 2008: «”Bypass” social…, cit..
387

energia, transportes, água – mas confia a serviços privados ou de gestão privada a


prossecução directa desses serviços”;
c) perante esta equação, o estado garantidor só pode “garantir” aos cidadãos
(agora considerados utentes, consumidores ou clientes ) a prestação por empresas
591

privadas daqueles serviços sociais essenciais se, como “Estado activador”, “apoiar
activamente a economia e a saúde económica das empresas [privadas] encarregadas de
produzir os serviços e os bens indispensáveis à efectivação da socialidade” [o itálico é
nosso. AN];
d) estas tarefas de garantir e activar constituem “uma operação de charme
destinada a sugerir que, por um lado, o Estado garantidor é um Estado social e, por
outro lado, que ainda é uma tarefa pública social garantir a capacidade de prestação das
empresas [privadas] fornecedoras de serviços de interesse geral” [os velhos serviços
públicos deixam de ser serviços públicos essenciais para se transformarem em serviços
de interesse geral]; Canotilho acrescenta que “o charme desta operação é tanto maior
quando se insinua tratar-se (…) de uma situação de win-win entre Estado e sujeitos
privados”;
e) a actuação de um estado que pretende garantir, simultaneamente, “a
socialidade a favor dos utentes dos serviços” e “o equilíbrio económico das empresas”
pode não conduzir a uma situação de win-win, isto é, a uma situação em que há ganhos
para o estado (para os cidadãos) e para as empresas privadas (daí que, nestas situações,
seja frequente o recurso ao aumento das tarifas dos serviços públicos ou ao pagamento
de compensações aos privados pelo estado);
f) ao estado garantidor-activador é confiada a responsabilidade de garantir a
prestação efectiva dos serviços de interesse geral, mas também a responsabilidade pela
garantia da “lógica económica do mercado”, o que significa que só o estado assume
responsabilidades, não cabendo nenhuma aos privados.

4.17.3. - A nosso ver, estas não são ambiguidades. São, verdadeiramente, as


características inscritas no código genético deste estado garantidor: este estado não tem
corpo nem alma de estado social, antes pretende transformar em mercado lucrativo
(com lucros garantidos pelo estado ‘garantidor’!) os serviços públicos tradicionalmente
591
No quadro do estado social, as prestações sociais a cargo do estado são consideradas bens
públicos. Segundo a perspectiva neoliberal, o novo conceito de serviços de interesse económico geral “é
uma fórmula de manutenção do acesso a bens essenciais (…), não já na qualidade de cidadão social, mas
na qualidade de utente ou de consumidor” (J. J. Gomes CANOTILHO, «”Bypass…, cit., 248).
388

prestados pelo estado, de acordo com princípios que os colocavam à margem do


mercado. Mais do que uma operação de charme, talvez deva falar-se de uma operação
de publicidade enganosa.
Por isso, ao contrário do que parece defender Gomes Canotilho, nós entendemos
que não é possível “legitimar” estas “novas formas e esta nova qualidade da actividade
do Estado”, que pretendem fazer dele “um Estado tendencialmente subsidiário”.
Canotilho reconhece que esta transformação esvazia o estado da sua responsabilidade
“pela prestação de serviços públicos essenciais à realização de grande número de
direitos sociais”, pelo que ela só pode operar-se “à revelia da Constituição”. Mas parece
não resistir à “pressão da privatização” (que “legitima o primado da concorrência”), à
“crise do Estado Social” e ao “triunfo esmagador do globalismo neoliberal”, que vieram
pôr em causa “não apenas a gradualidade [na realização dos direitos sociais], mas
também a reversibilidade das posições sociais”, admitindo mesmo que “a actual pressão
no sentido de transformar os serviços públicos em indústrias de serviços não tem
necessariamente de ser remetida para o campo dos malefícios económicos do
neoliberalismo”.592 [sublinhados nossos. AN]
No âmbito do direito à educação, o Autor reconhece que a orientação neoliberal
conduz à “transformação de todo o sistema de ensino numa empresa educacional,
centrada em problemas da utilização racional dos recursos e da gestão da qualidade” e
sublinha que “a ideologia intrínseca da liberdade de aprender e de ensinar através da
escola pública dá lugar a uma outra compreensão finalística”, que reduz o direito à
escola ao “direito à aprendizagem das leges artis de uma profissão inserida no mercado
de trabalho”.
Mas parece aceitar como factor positivo o facto de passar a entender-se a rede
de estabelecimentos de ensino como um todo (colocando as escolas privadas e
cooperativas no mesmo plano das escolas públicas), reconhecendo-se como serviço
público o ensino ministrado em todos estes estabelecimentos de ensino, sistema que
teria a vantagem de transformar as famílias em “árbitros do mercado de ensino, através
do exercício do direito à escolha de escola”.
Canotilho recorda o imperativo constitucional que impõe ao estado o dever de
criação de uma rede de estabelecimentos públicos estatais de ensino público”,
defendendo que esta é “a matriz republicana de ensino constitucionalmente
consagrada”.
592
Citamos, na parte final, J. J. Gomes CANOTILHO, «”Bypass…, cit., 245 e 248-250.
389

Ora, a nosso ver, esta matriz republicana da escola pública não é compatível
com a relegação do estado e da escola pública para uma posição subsidiária, sujeitando
o sistema público de ensino às regras da concorrência no mercado de ensino. Nem
parece compatível com o reconhecimento de um qualquer direito das famílias –
transformadas em “árbitros do mercado de ensino” - a escolher entre a escola pública e
a escola privada, exigindo do estado o pagamento das despesas resultantes da opção
pela escola privada.
Este “direito à escolha de escola” não está consagrado na nossa Constituição,
pelo que o estado só deve apoiar financeiramente as escolas privadas (em montantes
idênticos aos fundos concedidos às esolas públicas equivalentes) naquelas localidades
em que – por incumprimento do preceito constitucional – não exista ainda escola
pública. Trata-se, nestes casos, de garantir o direito à educação e não qualquer direito à
escolha de escola.
A matriz republicana da escola pública retira também, a nosso ver, qualquer
base ao argumento dos que, dentro da lógica do ‘mercado’, venham alegar razões de
eficiência e de ‘racionalidade’ para considerar injustificáveis a criação ou a manutenção
de estabelecimentos públicos onde já existirem estabelecimentos privados. A existência
de escolas privadas não pode impedir o cumprimento cabal do preceito constitucional
que obriga o estado a criar um sistema público de ensino acessível a todos os cidadãos
portugueses, constituído por escolas livres, iguais e laicas, onde todos, sem distinção,
podem aprender e ensinar com inteira liberdade.
Se aceitamos que as escolas se transformem em empresas educacionais, não
tardará que alguém venha defender, em nome dos princípios do mercado e da
sacrossanta concorrência, que os estados nacionais da UE não podem financiar nem
ajudar financeiramente estas ‘empresas’, do mesmo modo que não podem ajudar
quaisquer outras empresas (públicas ou privadas, sobretudo as públicas…). Alguns
poderão mesmo invocar que os estabelecimentos públicos, por serem financiados com
dinheiros públicos, violam as regras da concorrência… Um pequeno passo bastará para
que se defenda que a solução é confiar a escola pública (paga com o dinheiro dos
contribuintes) a parceiros privados, no quadro dos negócios das parcerias público-
privadas.
A matriz republicana da escola pública também não nos parece compatível
com a aceitação de que a escola serve apenas para preparar profissionalmente os
trabalhadores exigidos pelo mercado de trabalho, menosprezando a concepção da
390

educação como factor essencial de desenvolvimento e valorização da personalidade


humana e de libertação do homem. Seria reduzir o sistema público de ensino a um puro
mecanismo de reprodução das estruturas capitalistas de produção e da estratificação
social que lhes é inerente.

Gomes Canotilho fala da “pressão da privatização”. E, do nosso ponto de vista, o


que está em causa é, precisamente, a pressão dos interesses privados representados pelos
grandes grupos económico-financeiros, que pretendem ‘matar’ o estado social,
substituindo-o pelo estado garantidor.593 No plano jurídico, Canotilho tem consciência
de que é preciso resistir, dando sentido ao projecto constitucional: «O que se exige,
hoje, ao jurista – escreve ele 594 - é que, sem deixar de ser um pessimista metodológico,
dê positividade à sua retórica, abrindo caminhos hermenêuticos capazes de auxiliarem a
extrinsecação do direito constitucional. Ora, a nosso ver, “a floresta tem caminhos”. É
preciso descobrir os caminhos da floresta…».
Por nossa parte, pensamos que o fundamental é evitar que os caminhos da
floresta conduzam ao ‘jardim neoliberal’, onde se aceita que “a chamada tese da
irreversibilidade de direitos sociais adquiridos se deve entender com razoabilidade e
racionalidade, pois poderá ser necessário, adequado e proporcional baixar os níveis de
prestações essenciais para manter o núcleo essencial do próprio direito social” [itálico
nosso. AN]. Tomemos o direito à saúde. Se o SNS não assegurar a todos (princípio da
universalidade), de forma tendencialmente gratuita, prestações compatíveis com o
estado actual dos conhecimentos científicos, é claro que aqueles que podem pagar não
se contentam com um serviço que proporciona apenas uma espécie de ‘mínimo vital’, e
vão procurar os serviços de saúde privados, pagando para terem o melhor. Por este
caminho o serviço público de saúde transformar-se-á em um serviço para os pobres
(aqueles que não podem pagar, ’condenados’ a ter que provar a sua ‘indigência’), que
rapidamente se degradará ao nível de um serviço pobre.
Mesmo assumindo que a Constituição deixou de ser uma norma dirigente,
Gomes Canotilho entende que “não está demonstrado que não tenha capacidade para ser
uma norma directora”, “um instrumento fiável e incontornável de comando numa
sociedade”. Mas esta direcção do estado só faz sentido, a seu ver, no quadro de “uma
593
Como Canotilho observa, “o terceiro capitalismo, com a sua sociedade aberta”, pretende
substituir o “Estado Social constitucionalmente conformado” pelo mercado, em nome da tese segundo a
qual “a empresa privada, a actuar no mundo global, será o único sujeito capaz de responder a um modelo
de acção social universal” (cfr. «”Bypass…, cit., 251).
594
Cfr. «”Bypass…, cit., 257ss.
391

nova arquitectura do estado”, caracterizada por “novas formas institucionalizadas de


cooperação e de comunicação” entre o estado, por um lado, e “os actores sociais mais
importantes e os interesses politicamente organizados”, por outro lado.595
Se bem vemos, estamos conduzidos ao estado garantidor, cuja acção “deve
compreender esquemas múltiplos de mecanismos accionados por vários actores
sociais”. Num estado de direito democrático – conclui Gomes Canotilho – deve
reconhecer-se “a centralidade directora do direito, (…) mas não a sua exclusividade”
[sublinhados nossos. AN]. O conceito de direcção é, segundo o Autor, “um conceito
analítico que engloba vários meios de direcção ao lado do direito (mercado, finanças,
organizações)”.
Independentemente do que se entenda por finanças e por organizações, parece
que este estado garantidor-activador terá de ‘dirigir’ em cooperação com o mercado,
intervindo como que em veste privada, negociando com os actores sociais mais
importantes (as grandes empresas privadas, certamente) as ‘medidas de direcção’
convenientes para elas e contratando com elas (nos termos do direito privado) o destino
dos dinheiros públicos, nomeadamente através das chamadas parcerias público-
privadas, por muitos consideradas o instrumento perfeito para garantir ao grande capital
lucros avultados com risco zero, socializando as responsabilidades, os riscos e os
prejuízos e privatizando os ganhos (prática que não poderá deixar de ser considerada, a
nosso ver, uma verdadeira gestão danosa dos dinheiros públicos).

4.17.4. - Este estado incentivador-garantidor coloca-se ao nível dos agentes


privados (assumindo-se como uma espécie de primus inter pares) e subordina-se às
regras do direito privado, para, deste modo, garantir a prossecução do interesse geral.
Na síntese feliz de Susana Tavares da Silva, “o estado incentivador é,
fundamentalmente, aquele que adopta a roupagem privada e prossegue o interesse
público a partir do mercado”.596 O seu objectivo é o de garantir a prestação dos serviços
públicos essenciais, à luz dos padrões civilizacionais da nossa época, num quadro em
que a sua produção é inteiramente entregue a empresas privadas actuando segundo os
mecanismos do mercado.
À maneira do século XVIII, o mercado (o mercado optimizado) fica senhor
absoluto da economia, afastando dela o estado, ‘matando’ o estado económico e o

595
Cfr. últ. ob. cit., 251ss.
596
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 59 e 67 [sublinhados nossos. AN].
392

estado social. O mercado substitui o estado nas tarefas de ‘governo’ da economia e de


redistribuição do rendimento. Em contrapartida, o estado ‘paga’ às (grandes) empresas
prestadoras de ‘serviços públicos’ o desempenho daquelas tarefas, garantindo-lhes os
lucros que o mercado não poderia garantir-lhes.597
À luz deste entendimento, o ‘estado regulador’ deixa de regular o mercado.
Porque a ‘regulação’, apesar de levada a cabo por entidades independentes (e não pelo
estado) e apesar de ser politicamente neutra e tecnicamente competente, impede que o
mercado actue livremente, impedindo, afinal, o progresso e a melhoria do bem-estar
para todos. Para dar a ideia de que a regulação se mantém, os defensores do mercado
insistem nas vantagens de se abrir caminho a uma “regulação inteligente”, uma
regulação de diálogo e de garantia, que funcione como instrumento de participação
dos interessados na produção das normas de comando (em última instância: uma
regulação que seja auto-regulação, abertamente levada a cabo pelas grandes empresas
monopolistas, que, verdadeiramente, são ‘donas do mercado’).
Apoiando-nos em Susana Tavares da Silva, diremos que este estado garantidor
surge como um “estado orientado para a garantia dos direitos (dos utentes, mas também
dos actores do mercado)”, levando a cabo uma regulação de garantia “orientada para a
protecção da liberdade de iniciativa económica e de garantia das posições jurídico-
patrimoniais das empresas, as quais, desenvolvendo a sua actividade em plena
liberdade (sem as ineficiências geradas pela regulação) hão-de convergir na promoção
do interesse público, o que significa que o estado deve reduzir (ou anular) a intervenção
reguladora e promover instrumentos de orientação das actividades privadas para que
estas se ajustem ao nível adequado de protecção individual definido segundo
instrumentos de colaboração público-privada e fixado em standards de direitos sociais
e ambientais, bem como à promoção da inovação tecnológica”. Só esta função de
garantia (ou regulação de garantia) permanece ainda como “domínio exclusivo do
estado”.598

597
A. La Spina e G. Majone - citados por S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 438 - defendem que
“o papel do estado deixa de ser o de redistribuir riqueza para passar a ser o de promover e fomentar a
criação de riqueza e o acesso a esta através dos mecanismos de redistribuição do mercado e da dinâmica
própria da Sociedade”. Aqueles autores falam de “uma passagem de um modelo de soma nula – modelo
de redistribuição em que o estado exige a uns para dar a outros – para um modelo de ganho mútuo (win-
win) – modelo de optimização do mercado em que ganham os agentes do mercado e os cidadãos”.
[sublinhados nossos. AN] Adam Smith não desdenharia subscrever este ponto de vista. Estamos
regressados ao mundo mágico da mão invisível e da confiança absoluta nos mecanismos do mercado (este
mercado optimizado, seja lá o que for, não deve ser o mesmo que mercado regulado) para assegurar o
crescimento económico e o bem-estar para todos.
598
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 102 e 431/432 [sublinhados nossos. AN].
393

Partindo do ponto de vista de que não tem qualquer relevância o facto de os


serviços públicos essenciais serem produzidos pelo estado e por ele fornecidos às
populações, a solução do estado incentivador-orientador-garantidor assume-se como
“o modelo mais eficiente, sustentável e socialmente justo de garantia da efectiva
prestação desses serviços à população”.599
Em síntese, a ideia é esta: o estado (o estado capitalista) não só não tem que ser
(não pode ser) um estado-empresário, nem sequer um estado-prestador-de-serviços-
públicos, apesar da sua longa tradição neste domínio, ao menos na Europa. O estado
tem apenas de garantir que estes serviços sejam colocados à disposição dos utentes
(clientes). Que sejam empresas públicas (ou serviços públicos) ou empresas privadas a
fazê-lo é, a esta luz, perfeitamente indiferente. Levando o raciocínio até ao fim, o que se
pretende, em boa verdade, é que, para evitar as ineficiências geradas pela regulação, o
melhor é o estado não fazer regulação nenhuma, confiando a vida e o bem-estar das
pessoas à eficiência do mercado.600
Um pequeno passo basta para, nesta lógica, se isentar o estado garantidor do
dever de organizar e manter um serviço público geral e universal de educação
(nomeadamente no que toca ao ensino obrigatório e gratuito) que a todos garanta a
liberdade de aprender e de ensinar, sem distinção de credos ou ideologias. O mesmo
poderá admitir-se quanto ao serviço nacional de saúde, aos serviços de segurança social
(as seguradoras privadas estão desejosas de os prestar), aos serviços de água e de
saneamento básico, aos serviços prisionais, até aos serviços de segurança (não há por aí
importantes multinacionais que já prestam estes serviços e inclusive serviços militares,
em palcos de guerra?).

599
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 3.
600 ?
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 354/355. O ‘mago’ da finança, Alan Greenspan,
escrevendo em 2007, já com a crise à porta, garantia que a mão invisível smithiana continua viva e bem
viva: “Na minha visão, de 1995 em diante, os mercados globais, em grande parte não-regulamentados,
com algumas notáveis exceções, parecem avançar com tranquilidade de um para outro estado de
equilíbrio. A mão invisível de Adam Smith está presente em escala global. (…) A aparente estabilidade
do comércio e do sistema financeiro globais é a reafirmação de um princípio simples, consagrado pelo
tempo, que foi promulgado por Adam Smith em 1776: os indivíduos que comerciam livremente uns com
os outros, seguindo seus interesses próprios, geram uma economia estável e crescente. O modelo de
mercado perfeito, típico de livro-texto, realmente funciona, se suas premissas básicas forem observadas:
as pessoas devem ter liberdade para agir em busca de seus interesses individuais, sem as restrições de
choques externos ou de políticas económicas. (…) Mesmo durante as crises, as economias sempre
parecem corrigir-se a si mesmas (embora o processo às vezes demore um pouco)”. Afinal o ‘paraíso
terrestre’ existe. Só precisamos de ter fé na mão invisível (agora presente à escala global…) e no mercado
perfeito (que não é apenas coisa de livros de texto…).
394

4.17.5. – Os defensores do estado incentivador-orientador-garantidor


reconhecem que “a necessidade de garantir a saúde económica das empresas que
operam nos sectores dos serviços públicos essenciais é fundamental para garantir os
resultados pretendidos e, sobretudo, para garantir a prestação de um serviço essencial”
[sublinhado nosso. AN]. Mas entendem que a solução está na “adopção preferencial de
instrumentos de contratualização e de negociação” e na “auto-regulação privada”. Ao
estado bastará proporcionar as condições para a “optimização do mercado”, “adoptando
comandos específicos de corporate governance e responsabilidade social no direito das
sociedades”. Tudo se resolverá, portanto, se for o mercado a resolver. Ao estado bastará
conseguir, através de regras e procedimentos adequados, que “as empresas são geridas
de forma adequada, que contam com os administradores adequados cujas tarefas estão
bem definidas e que estes actuam no mais rigoroso respeito pela lei e pelas boas práticas
empresariais”.601

Os (neo)liberais mais ‘ortodoxos’ não deixam que outros concluam por eles:
proclamam abertamente que o seu estado garantia assenta na “aceitação do papel
fundamental e insubstituível do mercado e da propriedade privada na organização
económica e social”, e afirmam, como verdade absoluta, que só o mercado livre garante
a concorrência, que só a concorrência garante a eficiência económica e que só esta
assegura o bem-estar de cada um e de todos.602
É a saudade incurável do que nunca existiu: os mercados de concorrência
perfeita.
E não escondem que a função essencial do estado garantia é, a seu ver, a de
fomentar a concorrência, isto é, a de deixar funcionar o mercado, passando de uma
lógica da oferta para uma lógica da procura.
É o regresso ao laisser-faire. É a insistência na tecla gasta da soberania do
consumidor, como se alguém pudesse acreditar que, ao escolher o que quer, no
exercício da sua liberdade de escolha, é o consumidor que determina, também no que
toca aos serviços públicos que satisfazem direitos fundamentais (educação, saúde,
segurança social, justiça), o que se produz, como se produz e para quem se produz.
A liberdade de escolha – axioma segundo o qual cada indivíduo é o melhor juiz
dos seus interesses e da melhor forma de os prosseguir, com vista à maximização do seu

601
Ver as referências em S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 438/439.
602
Cfr. A. A. ALVES, ob. cit.
395

bem-estar – é, pois, o princípio em que assenta este estado garantia, que se anuncia
como “o estado social do século XXI”, embora não passe de uma reinvenção do estado
liberal dos séculos XVIII e XIX.
Partindo do princípio de que o estado garantia existe para promover e garantir a
liberdade de escolha, os puristas do neoliberalismo apresentam-no como estado social
subsidiário. À cautela, não deixam de falar de estado social, mas distinguem-no do que
chamam estado social burocrático, assim batizado porque os seus padrinhos sabem bem
que a burocracia suscita a aversão de toda a gente.603
E, como estado subsidiário, ele só deve intervir supletivamente: por exemplo, só
deve criar escolas públicas onde não houver escolas privadas e onde não se conseguir
estimular a sociedade civil a criá-las.604 A este estado subsidiário cabe – isso sim –
estimular e apoiar a sociedade civil e os “corpos sociais intermédios” nela existentes,
‘enfraquecidos’ pelo referido estado social burocrático.
É, mais uma vez, a atitude dos que, sob a bandeira pretensamente libertária da
liberdade de escolha, pretendem impor o regresso a tempos antigos, tempos em que,
sem qualquer sofisma, a liberdade de escolha não existia, nem a liberdade de
pensamento, nem – para a grande maioria das pessoas - qualquer espécie de liberdade.
Do mesmo modo, as lágrimas derramadas pelo enfraquecimento dos ditos
corpos sociais intermédios parecem anunciar a saudade dos tempos em que, à falta de
direitos sociais, a caridade era a única forma de assistência aos pobrezinhos.
Milton Friedman não esconde isto mesmo quando defende que entre “os custos
maiores da extensão das governmental welfare activities” está “o correspondente
declínio das actividades privadas de caridade”, que proliferaram no Reino Unido e nos
EUA no período áureo do laissez-faire, na segunda metade do século XIX. Este é um
ponto de vista que só podemos compreender se tivermos presente que, para Friedman,

603
Há quem designe este estado garantia por “estado social regulador”, para o distinguir do “estado
social prestador”, o ’perigoso’ estado social de matriz keynesiana, em que o estado, em sentido lato, se
assume como prestador de serviços públicos. Cfr. F. V. SOUSA, ob. cit., 15.
604
Em Capitalism and Freedom, Milton Friedman – o grande defensor da liberdade de escolha na
segunda metade do século XX - defende abertamente que o estado não deve ocupar-se com a oferta de um
serviço público de educação, porque o mercado pode perfeitamente oferecê-lo. Na mesma onda (quase
provocatória), defende que deveriam ser privatizados os parques nacionais de Yellowston e de Grand
Canion, com este argumento: ”Se o público deseja este tipo de actividade o suficiente para aceitar pagar
por ele, as empresas privadas terão todos os incentivos para oferecer tais parques”. Salve-se a franqueza
brutal com que diz o que pensa, ‘virtude’ que não ostentam os seus seguidores destes tempos de crise,
sempre propícios aos pescadores de águas turvas…
396

“a caridade privada dirigida para ajudar os menos afortunados” é “o mais desejável” de


todos os meios para aliviar a pobreza e é “um exemplo do uso correcto da liberdade”.605
É claro que o ilustre laureado com o Prémio Nobel da Economia está a pensar na
liberdade daqueles que fazem a caridade. Mas menospreza a liberdade dos que se vêem
na necessidade de estender a mão à caridade. No entanto, estes são, justamente, os que
mais se vêem privados da sua dignidade e da sua liberdade como pessoas, os mais
elevados dos valores a proteger, segundo o ideário liberal. Ao defender que a única
igualdade a que os homens têm direito é “o seu igual direito à liberdade”, o liberalismo,
escudado nesta liberdade e igualdade formal, não pode garantir a todos os homens a
liberdade e a dignidade a que cada um tem direito. É uma proposta de regresso ao
passado, que não contém a promessa de nenhum ‘paraíso’, mas contém a ameaça de nos
fazer regressar ao ‘inferno perdido’ do apogeu do laissez-faire.
A defesa deste estado garantia (ou estado de direito subsidiário) assenta no velho
mito individualista de que cabe a cada indivíduo (como seu direito e como seu dever)
organizar a sua vida de modo a poder assumir, por si só, o risco da existência (o risco
da vida) e acautelar o seu próprio futuro. Deste modo, os (neo)liberais voltam as costas
à cultura democrática e igualitária da época contemporânea, caraterizada não só pela
afirmação da igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução
das desigualdades entre os indivíduos no plano económico e social, no âmbito de um
objetivo mais amplo de libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do
risco, objetivo que está na base dos sistemas públicos de segurança social.
Tirando todas as consequências deste discurso, Milton Friedman defende, com
toda a clareza, a necessidade de “derrubar definitivamente o estado-providência”. Não
são tão claros os (neo)liberais de hoje, embora se pressinta que desejam o mesmo que o
seu mentor ideológico. Com efeito, se Friedman defende que os descontos obrigatórios
para a segurança social são um atentado contra a liberdade individual, os liberais
portugueses defendem que “os custos indiretos do trabalho” (os descontos para a
segurança social) “são um dos principais entraves ao crescimento do emprego e à
integração social”.606 Perante este juízo tão severo, será difícil não concluir que também
605
Cfr. M. e R. FRIEDMAN, ob. cit., 172-1178. O Ayathola de Chicago fez discípulos. Um deles
(Ronald Reagan) chegou a Presidente dos EUA e, nesta qualidade, defendeu que “os programas sociais
comportam a longo prazo o risco de frustrar os americanos na sua grande generosidade e espírito de
caridade, que fazem parte da sua herança” (citação colhida em H. ALLEG, ob. cit., 107). Tudo lógico:
para não frustrar os americanos ricos que gostam de fazer caridade, não se pode acabar com os pobres,
objetivo ímpio do estado social.
606
Cfr. A. A. ALVES, ob. cit.
397

eles defendem a necessidade de destruir rapidamente o estado providência prestador do


serviço público de segurança social.

4.17.6. - É diferente a leitura que fazemos sobre o sentido e o conteúdo do estado


garantidor ou estado garantia. Para além de ser, a nosso ver, uma capa para encobrir a
tentativa de fazer recuar duzentos anos o relógio da história, o estado garantidor tem,
segundo pensamos, uma outra face, a sua face oculta (embora cada vez mais visível,
qual rabo escondido com gato de fora…).
Pretende-se que o estado capitalista deixe de prestar ele próprio os serviços de
utilidade pública, mas defende-se que ele não poderá alhear-se da sua efectiva produção,
o que significa que tem o dever de garantir ao capital privado as condições para que ele
possa produzir esses serviços (o mesmo é que dizer: possa desenvolver o seu negócio)
sem solução de continuidade, i.é, à margem das incertezas da vida económica, que
podem conduzir à falência das empresas. Para evitar que tal aconteça, o estado
capitalista deve garantir às empresas privadas que produzem tais serviços lucros certos
e bastantes para que elas possam viver sem sobressaltos.
Neste sentido, é a vez de o estado (o estado capitalista) substituir o mercado,
garantindo os lucros aos ‘investidores’, mas libertando-os do risco de eventuais
prejuízos e da possibilidade de falência que as regras do mercado poderiam implicar.
Como um super-estado feudal, o estado garantidor assegura aos novos senhores feudais
(os parceiros privados das parcerias público-privadas) verdadeiras rendas feudais: em
vez de lhes conceder terras, o estado garantidor concede-lhes direitos de exploração de
bens e serviços públicos, obrigando os ‘súbditos’ a pagar as rendas devidas pela
utilização daqueles bens e serviços e comprometendo-se a pagar ele próprio (com o
dinheiro dos impostos cobrados aos ‘súbditos’ que os pagam 607) o que faltar para
perfazer os lucros contratados, se aquelas rendas não forem bastantes.
No feudalismo, os servos pagavam rendas pelo uso da terra (vários dias de
trabalho não pago nas terras do senhor) e pelo uso dos moinhos ou dos lagares (rendas
pagas em espécie); agora, pagam rendas em dinheiro (para além dos impostos) pelo uso
das pontes, das estradas, dos hospitais, dos serviços de fornecimento de energia,
607
É pertinente esta reserva, porque, como nos estados de ancien régime, actualmente só o ‘terceiro
estado’ (os trabalhadores por conta de outrem) paga impostos. O ‘clero’ e a ‘nobreza’ ou estão isentos ou
fogem aos impostos (estão nesta situação os rendimentos do capital, a banca e os serviços financeiros, os
rendimentos do trabalho de muitos profissionais liberais, os rendimentos da economia paralela – à roda
de ¼ do rendimento nacional -, os capitais que buscam refúgio nos paraísos fiscais, os rendimentos das
empresas, das quais cerca de 2/3 não pagam IRC).
398

entregues em concessão aos parceiros privados do estado nas parcerias público-


privadas. E se estas ‘rendas’ não chegarem, o estado (isto é, os ‘súbditos’ que pagam
impostos) paga o resto, para garantir aos ‘senhores’ as rendas e o estatuto privilegiado
que lhes são devidos. É, em última instância, uma verdadeira privatização do estado.
A ‘justificação’ do lucro como compensação do risco assumido pelo empresário-
investidor é recorrentemente utilizada desde Adam Smith, que, apesar de considerar o
lucro como dedução ao valor acrescentado às matérias-primas pelos trabalhadores
produtivos, acabou por ‘legitimá-lo’, enquanto rendimento que cabe àquele que “arrisca
o seu capital nessa aventura” [a aventura do investimento e da contratação de
trabalhadores assalariados].
Pois bem. Este estado garantidor propõe-se garantir enormes lucros ao grande
capital, dispensando-o de assumir riscos. A teoria ‘legitimadora’ de Adam Smith fica
sem utilidade. Mas a ‘justificação teórica deste estado garantidor não passa, a nosso
ver, de uma máscara mais, das muits que o estado capitalista tem utilizado ao longo dos
tempos para disfarçar a sua natureza de estado de classe que o próprio Adam Smith
deixou tão clara.
Se vier a ter êxito, o estado garantidor ficará como uma das mais brilhantes
invenções do capitalismo, o capitalismo dos verdadeiros ‘negócios da China’. Mas a
verdade é que a sua actuação já é corrente em áreas como a construção de hospitais, de
pontes e de auto-estradas, a produção de energias alternativas e todos os negócios
cobertos pelo manto diáfano das parcerias público-privadas.608 E, no âmbito da crise

608
Na prática, é isto o que vem acontecendo no que se refere às empresas do sector financeiro:
como a sua saúde é essencial à saúde das economias e à coesão do tecido social, não podem ir à falência.
Quando têm lucros astronómicos, pagam menos impostos do que um cidadão vulgar que vive do
rendimento do seu trabalho; quando o ‘jogo’ corre mal, o estado (verdadeiramente estado garantidor) é
chamado para pagar os custos.
O Tribunal de Contas português tem chamado a atenção para a autêntica gestão danosa de
dinheiros públicos em que esta política se tem traduzido, dando o exemplo da parceria público-privada
que enquadra a construção e a exploração da Ponte Vasco da Gama (Lisboa), na sequência da qual o
estado transferiu já para o seu parceiro privado dinheiro que dava para construir três pontes como aquela.
E o contrato ainda não saiu do adro, tem ainda um longo e brilhante futuro à sua frente…
Esta problemática é analisada num livro recente por alguém que as conhece por dentro, um Juiz do
Tribunal de Contas jubilado. Neste livro são serenamente analisadas todas as PPP (relacionadas com auto-
estradas, estradas, pontes, hospitais, infra-estruturas de transporte ferroviário, estruturas portuárias), bem
como a negligência (ou a diligência?) e a incompetência (será? Em alguns casos, o governo decidiu contra
o interesse público, apesar de sucessivas chamadas de atenção do Tribunal de Contas…) dos responsáveis
governamentais. Num dos casos, após 18 anos de experiência neste campo, houve um governo que fez
um contrato particularmente ruinoso para o interesse público, chegando a garantir um lucro mais elevado
do que o inicialmente proposto pelo parceiro privado, num contrato com um prazo escandalosamente
longo, assinado sem concurso público, apesar de a lei portuguesa e as regras comunitárias o imporem. As
coisas passaram de tal forma as marcas que o Ministério Público, habitualmente ‘pacato’, defendeu a
inconstitucionalidade de tal contrato e o Parlamento acabou por revogar o diploma que o tinha
homologado. Sobre estes assuntos, ver Carlos MORENO, ob. cit., 99ss.
399

que se iniciou em 2007/2008, a actuação do estado capitalista tem comprovado esta sua
natureza de estado garantidor, gastando somas fabulosas para salvar da falência as
instituições financeiras que, graças à desregulação imposta pela política de globalização
neoliberal, arriscaram o dinheiro dos seus depositantes e dos pensionistas dos fundos de
pensões por elas geridos em actividades especulativas, verdadeiros ‘jogos de casino’,
muitas vezes de natureza criminosa.609

609
A OCDE calcula que, em todo o mundo, foram mobilizados, nestas operações de salvamento,
11, 4 mil milhões de dólares, o que equivale a dizer que cada habitante do planeta contribuiu com 1.676
dólares para salvar da bancarrota os que utilizaram a poupança colectiva para jogar na roleta dos jogos da
bolsa e em outros ‘jogos’, à margem da economia real e à custa dela, e mesmo à margem da lei (Cfr. F.
LORDON, ob.cit., 6).
400

4.18. – Uma nota sobre a globalização


401

Há quem diga que os portugueses foram os pais da globalização. E a verdade é


que faz sentido defender que as viagens oceânicas dos portugueses, a partir do século
XV, deram origem à primeira onda de mundialização e de globalização, marcada pela
colonização e pela pilhagem de vários povos e pelo tráfico de escravos.
A segunda onda de globalização teve lugar por força e por ocasião da corrida às
colónias que, como vimos, acompanhou a ‘segunda revolução industrial’ no último
quartel do século XIX e que teve como ponto alto a célebre Conferência de Berlim
(1884/1885), que abriu o processo de partilha dos territórios colonizados entre as
grandes potências capitalistas.
Esta luta entre os estados capitalistas nacionais, muitas vezes apoiada pelas
armas e pela diplomacia, acabou por conduzir o mundo às duas guerras mundiais inter-
imperialistas, que marcaram dramaticamente o século XX.
Entretanto, ela traduziu-se no recrudescimento do colonialismo e na exploração
económica sistemática das colónias, integradas, como economias dominadas, nas teias
do mercado mundial unificado, subordinadas à lógica da acumulação do capital à
escala mundial, no quadro do processo que Bukarine designou por “internacionalização
do capital” (ou no quadro do imperialismo, na construção de Lenine).
Os povos colonizados foram as grandes vítimas destas duas ondas de
mundialização e globalização. Eles estão a ser igualmente as vítimas da actual onda de
globalização e do neoliberalismo que a orienta e condimenta. Eles pagam, com a sua
dependência, com o seu desenvolvimento impedido, uma parte importante dos custos do
desenvolvimento das potências capitalistas e da sua ‘sociedade da abundância’.
Neste nosso tempo marcado pela terceira onda de globalização, a produtividade
do trabalho humano e a produção efectiva de riqueza têm aumentado como em nenhum
outro período da história, incluindo o período da primeira revolução industrial, período
durante o qual, quiçá pela primeira vez na sua história, os homens tomaram consciência
de que podiam transformar o mundo, tal o ritmo do crescimento económico (era como
se a economia levantasse voo, escreveu um autor da época). Hoje, a economia levantou
mesmo voo. E, no entanto, a miséria alastra e a desigualdade cresce.

4.18.1. – Ideia geral


Como caracterizar a globalização de que todos os dias ouvimos falar,
considerando-a uns como uma maldição e outros como uma oportunidade a não perder?
402

Poderíamos dizer, parafraseando Amartya Sen, que a globalização é um mundo


em que “o sol nunca se põe no império da Coca-Cola”. E todos entenderiam do que se
trata. Mas valerá a pena tentar ir um pouco mais fundo na compreensão deste fenómeno.
a) Uma primeira nota para adiantar que a globalização é um fenómeno
complexo, que se apresenta sob múltiplos aspectos (incluindo de ordem filosófica,
ideológica e cultural), mas que tem no terreno da economia a chave da sua compreensão
e a área estratégica da sua projecção.
b) Uma segunda nota para sublinhar que a globalização é um fenómeno cultural
e ideológico, marcado pela afirmação decisiva dos ‘aparelhos ideológicos’ como
instrumento de domínio por parte dos produtores da ideologia dominante, a ideologia do
pensamento único, a ideologia da massificação dos padrões de consumo, dos padrões de
felicidade, a ideologia que impõe a ‘sociedade de consumo’ como paradigma de
desenvolvimento, a ideologia que pretende anular as culturas e as identidades nacionais.
c) Uma terceira nota para subscrever a tese daqueles autores para quem a
globalização neoliberal em curso é muito mais uma política de globalização do que um
processo espontâneo e inevitável (incontornável, como é moda dizer-se). Uma política
que visa essencialmente a implantação de um mercado mundial unificado, controlado
pelo capital funanceiro e orientado para governar a economia mundial e impor um
determinado modelo de sociedade.
d) Uma quarta nota para salientar que esta política de globalização se tornou
possível graças aos desenvolvimentos operados nos sistemas de transporte (que
tornaram quase negligenciável o custo do transporte por unidade de produto, reduzindo
a pouco a resistência ao transporte) e nas tecnologias da informação, que permitem
controlar a partir do ‘centro’ uma estrutura produtiva dispersa por várias regiões do
mundo e permitem obter informação e actuar com base nela, em tempo real, em
qualquer parte do planeta, a partir de qualquer ponto do planeta.
Neste mundo de comércio livre de barreiras físicas ou legais pretende-se que
circulem livremente todo o tipo de bens (matérias-primas, semi-produtos e produtos
acabados da indústria e da agricultura), serviços (incluindo os chamados “produtos
financeiros”), capitais e tecnologia. Mas esta liberdade já não se aplica aos
trabalhadores. Quanto a estes, os grandes centros imperiais procuram barricar-se nas
suas fortalezas armadas, para evitar esta nova ‘invasão dos bárbaros’. Parafraseando
Galileu, diremos que, no entanto, as pessoas movem-se: estudos da ONU estimam que
cerca de 160 milhões de pessoas se desloquem do Sul para o Norte até 2025.
403

e) Uma outra nota para recordar que uma das características da política de
globalização em curso é a que se relaciona com o esbatimento do papel do estado na
economia e com a anulação do estado nacional.

Este está em risco de perder os tradicionais atributos da soberania e já perdeu -


diz-se - a capacidade de controlar a vida económica e o poder económico. Os
capitalismos nacionais, que constituiram o quadro de desenvolvimento do primeiro
capitalismo, teriam sido submersos pela onda globalizadora.

Alguns procuram dar a entender que, à semelhança do capitalismo liberal,


também o actual capitalismo quer ignorar o estado, fazendo da economia um assunto
regulado pelas ‘leis naturais’ do mercado. Assim se regressaria à separação entre o
estado e a economia, cabendo ao estado as funções atinentes à organização política e
administrativa, e cabendo aos agentes económicos privados (à sociedade civil) a
organização das tarefas produtivas reguladas pelo mercado.610

f) Uma nota mais para sublinhar, porém, que não pode correr-se o risco de
interpretar a globalização como um regresso aos tempos do ‘capitalismo de
concorrência’, agora projectado à escala mundial. Neste nosso tempo, os protagonistas
quase exclusivos são os grandes conglomerados transnacionais, orientados por uma
estratégia planetária, apoiados num poder económico (e político) que anula em absoluto
os mercados tal como os entendia a teoria da concorrência, e apostados em controlar o
processo de desenvolvimento económico à escala mundial.

g) Uma última nota para pôr em relevo que a globalização se caracteriza


também – segundo alguns essencialmente - pelo domínio do capital financeiro,
justificando perfeitamente o epíteto de capitalismo de casino, que Susan Strange
inventou para caracterizar o estádio actual do capitalismo, situação que Keynes
denunciar já no Capítulo 12 da General Theory, ao comparar a um casino a bolsa de
Nova York, dado o peso das actividades puramente especulativas nela desenvolvidas.611
610
Por nossa parte, cremos que um dia destes o estado nacional soberano talvez venha a público
anunciar que a notícia da sua morte terá sido um tanto exagerada…
Acompanhamos István Mészáros quando refere “a dominação continuada dos Estados nacionais
como estrutura abrangente de comando da ordem estabelecida” e sublinha que “o Estado nacional
continua sendo o árbitro último da tomada de decisão sócio-económica e política abrangente, bem como o
garantidor real dos riscos assumidos por todos os empreendimentos económicos transnacionais”. Cfr. I.
MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 33.
611
Desta equiparação entre as bolsas e os casinos extraiu Keynes a necessidade de restringir e
encarecer o acesso às bolsas, tal como se faz com os casinos. Daí a sua proposta – que poderemos
considerar o antepassado da famosa Taxa Tobin – no sentido de tributar fortemente os ganhos das
transacções bolsistas, com o objectivo de dissuadir os ‘jogos de casino’ (as operações de pura especulação
404

Com efeito, o processo de globalização financeira assume uma importância


fundamental no quadro da globalização, traduzindo-se, grosso modo, na criação de um
mercado único de capitais à escala mundial (no seio do qual rege o princípio da
liberdade de circulação de capitais), que permite aos grandes conglomerados
transnacionais colocar o seu dinheiro e pedir dinheiro emprestado em qualquer parte do
mundo.

A desintermediação, a descompartimentação e a desregulamentação são as três


características essenciais deste processo.

- A desintermediação traduz-se na perda de importância da tradicional


intermediação da banca nos mecanismos do crédito. Os grandes investidores
institucionais (empresas multinacionais, empresas seguradoras, bancos, fundos de
pensões e mesmo os Tesouros nacionais de alguns países) têm acesso directo e em
tempo real aos mercados financeiros de todo o mundo para a colocação dos fundos
disponíveis e para a obtenção de crédito, dispensando o recurso aos intermediários
financeiros e evitando os respectivos custos de intermediação (o financiamento directo e
autofinanciamento substituem o financiamento indirecto).

- A descompartimentação significa a perda de autonomia de (a abolição das


‘fronteiras’ entre) vários mercados até há pouco separados (mercado monetário,
mercado financeiro, mercado de câmbio, mercados a prazo) e agora transformados em
um mercado financeiro único, não só à escala de cada país mas também à escala
mundial.

- A desregulamentação consiste na plena liberalização dos movimentos de


capitais, processo que teve início nos anos 70 do século passado nos EUA, a que se
seguiu a abertura do sistema financeiro japonês em 1983/84 (em grande parte por
imposição dos EUA), o desmantelamento dos sistemas nacionais de controlo de
câmbios na Europa (nomeadamente com a criação do Mecanismo de Taxas de Câmbio
do Sistema Monetário Europeu e a liberalização completa dos movimentos de capitais,
no início da década de 1990) e a liberalização ‘imposta’ aos países da Europa Central,
da América Latina e da Ásia do Sudoeste.

financeira) e de fazer das bolsas um instrumento de recrutamento de capitais para financiar o investimento
produtivo, reduzindo, simultaneamente, os riscos de instabilidade inerentes aos jogos de casino. Sobre o
objecto desta nota, cfr. J. M. QUELHAS, ob. cit., 702-705.
405

Os membros do chamado G7 desempenharam neste processo um papel decisivo,


ao imporem a todo o mundo a lógica ‘libertária’ que adoptaram para si próprios no que
toca aos movimentos de capitais. O FMI (controlado, de facto, desde há muito, pelas
grandes potências capitalistas, e, em particular, pelos EUA) foi o instrumento escolhido
para, em nome da ‘comunidade internacional’, executar esta ‘cruzada’. A partir da
década de 70 do séc. XX, sempre que um país recorre aos serviços do FMI, este tem
condicionado o apoio pretendido à aceitação, pelo país em dificulades, dos princípios da
livre convertibilidade da moeda e da livre circulação internacional de capitais.612

4.18.2. – A liberdade de circulação de capitais.


Esta ‘liberdade’ tem permitido uma enorme aceleração da mobilidade geográfica
dos capitais, facilitando a acção predadora dos grandes operadores financeiros que
jogam na especulação e colocando muitos países situados na ‘reserva de caça’ dos
especuladores à mercê da chantagem da retirada dos capitais para países mais atractivos.
Vários destes países já nem ousam tributar os rendimentos do capital, o que é um bom
contributo para os escandalosos super-lucros dos especuladores.

Segundo os cânones do liberalismo, esta liberdade de circulação dos capitais,


este mercado livre dos capitais deveria ter como consequência a melhoria da eficácia do
sistema financeiro, com a consequente redução dos custos do financiamento e a
distribuição mais equilibrada e mais racional (mais eficiente) do capital entre os vários
países e os vários sectores de actividade, promovendo um crescimento mais igual e mais
harmonioso da economia mundial. Como era de esperar, porém, a realidade não
corresponde ao modelo.613
612
Na sequência da reunião anual do FMI em 2004, foi atribuído a esta Agência da ONU o
mandato para analisar os desequilíbrios comerciais que contribuem de forma significativa para a
instabilidade global. O problema reside em que os EUA são o país que mais contribui para esta
instabilidade geral, abusando dos privilégios que resultam da utilização do dólar como moeda utilizada
nos pagamentos internacionais. Com efeito, os EUA – que fazem figura de país mais rico do mundo –
contraem diariamente empréstimos, concedidos por países mais pobres, em valor superior a 2 mil milhões
de dólares, “enquanto lhes passa sermões sobre boa administração e responsabilidade fiscal”, observa
Joseph Stiglitz. Por outro lado, tomando os dados de 2005, o défice comercial dos EUA atingiu os 805
mil milhões de dólares (valor que ganha expressão se soubermos que os défices somados da Europa, do
Japão e da China atingiram nesse ano um valor de 325 mil milhões de dólares). Conclusão de J.
STIGLITZ (“O problema americano do FMI”, em O Globo, 19.5.2006): “Se a análise dos desequilíbrios
globais pelo FMI não for equilibrada, se nãp identificar os EUA como grandse culpado, e não chamar a
atenção para a necessidade de que os défices fiscais americanos sejam reduzidos – por meio de impostos
mais elevados sobre os mais ricos e gastos menores em defesa – a relevância do Fundo no século XXI
inevitávelmente declinará”.
613
Por volta de 2001, os dados disponíveis apontavam no sentido de que os EUA absorviam
cerca de 80% da poupança mundial (Le Monde Diplomatique, Maio/2001), estimando-se que, nos dez
406

A liberdade concedida aos especuladores deu origem à economia de casino,


divorciada da economia real e da vida das pessoas comuns: o montante das transacções
financeiras internacionais é dezenas de vezes superior ao valor do comércio mundial;
milhões e milhões de dólares circulam diariamente no ‘mercado cambial único’ em
busca de lucro fácil e imediato, sem qualquer relação com a actividade produtiva ou o
comércio. O resultado está à vista: grande instabilidade das taxas de juro e das taxas de
câmbio, turbulência nas bolsas de valores e nos mercados de câmbios, crises recorrentes
nas economias de vários países.

A especulação acentuou a instabilidade e a incerteza, o que significa um


agravamento dos custos de funcionamento da economia. Em contrapartida, os grandes
especuladores acumulam enormes ganhos de capital. Basta recordar que, segundo as
melhores estimativas, a tributação das transacções especulativas nos mercados de
divisas à taxa de 0,1% (a chamada taxa Tobin) permitiria mobilizar mais de mil milhões
de dólares por ano.

Por outro lado, só os grandes conglomerados transnacionais têm beneficiado


com a baixa dos custos do financiamento directo, porque só eles têm acesso à utilização
plena dos novos instrumentos financeiros. À margem dos ganhos do ‘mercado livre’
têm ficado as pequenas e médias empresas (que constituem, na generalidade dos países,
a base da estrutura produtiva e do emprego) e têm ficado também os países mais fracos
e menos desenvolvidos, muitos deles enleados na teia infernal da dívida externa, uma
espécie de ‘prisão perpétua por dívidas’.614

4.18.3. – A ‘financeirização’ da economia.


Os factos dão razão ao velho Keynes, que, há mais de 50 anos, advertia para os
perigos de paralisação da actividade produtiva em consequência do aumento da
importância dos mercados financeiros e da finança especulativa.

anos anteriores, os 11 países mais ricos do mundo teriam acolhido 78% do investimento estrangeiro
global, cabendo aos cem países mais pobres apenas 1% (Folha de S. Paulo, 1.7.2001).
614
Perante as contradições desencadeadas pela própria globalização neoliberal, muitos acreditam
que a globalização, saudada pelos defensores do sistema como a solução para os seus problemas, “aciona
forças que colocam em relevo não somente a incontrolabilidade do sistema por qualquer processo
racional, mas também, e ao mesmo tempo, a sua própria incapacidade de cumprir as funções e controlo
que se definem como sua condição de existência e legitimidade” (cfr. I. MÉSZÁROS, O Século XXI, cit.,
105).
407

Talvez por isso a ideologia dominante se tenha apressado a decretar a “morte de


Keynes” e a construir o império neoliberal. Nas últimas quatro décadas, as chamadas
‘forças do mercado’ têm dominado toda a área financeira, sobrepondo-se,
nomeadamente, às políticas nacionais de regulação das taxas de câmbio, uma vez que as
autoridades competentes da generalidade dos países não têm meios para se defender
eficazmente da acção dos especuladores. Basta recordar que o montante das reservas
detidas pelos bancos centrais de todo o mundo (principal meio de defesa das moedas
nacionais) é sensivelmente igual ao montante das transacções diárias no mercado
cambial (em grande parte puramente especulativas).
A aceleração do processo de inovação financeira, nomeadamente o
desenvolvimento dos mercados de produtos derivados, tem acentuado os perigos
referidos. Criados como instrumentos de gestão dos riscos inerentes à instabilidade das
taxas de juro e das taxas de câmbio, estes novos ‘produtos financeiros’ tornaram-se
rapidamente, dada a pequena percentagem do capital investido em relação aos ganhos
possíveis, o objecto preferido da actividade especulativa e um novo e poderoso factor de
instabilidade dos mercados financeiros.615

O recurso abusivo à emissão e comercialização destes produtos financeiros


derivados conduziu rapidamente à especulação e à manipulação dos ‘mercados’, através
da emissão e negociação de ‘produtos’ criados não para cumprir qualquer função de
cobertura ou compensação de riscos mas apenas para alimentar as ‘apostas’ na bolsa, o
grande casino do capital financeiro. Chamam-lhe produtos para criar a ilusão de que
resultam de uma qualquer ‘indústria’ (também se fala da indústria bancária…) ou de
outra actividade produtiva, mas essa é, a todas as luzes, uma designação falsa,
enganadora e não inocente.
Os contornos e os riscos que esses ‘produtos’ incorporam nem sempre são
facilmente identificáveis, mesmo pelos habituais frequentadores deste ‘casino’ (como os
bancos), que compram muitas vezes ‘produtos financeiros’ tão isotéricos que não sabem
o que estão a comprar.
Trata-se de produtos virtuais, cujo valor global se calcula em cerca de mil
biliões de dólares (o equivalente a vinte anos da produção mundial!), mal conhecidos,
que não têm qualquer relação com a economia real e com as actividades produtivas
(criadoras de riqueza). É capital puramente fictício, cujo valor é fixado em função dos

Para uma visão um pouco mais ampla sobre este processo de inovação financeira, ver A. J.
615

AVELÃS NUNES, O Crédito, cit., 201-239.


408

ganhos que os ‘apostadores’ prevêem que podem obter, chamando a si uma parte da
riqueza criada pela economia real. Estes ‘produtos, cada vez mais sofisticados, servem
apenas para ganhar dinheiro com a especulação, atraindo bancos, seguradoras,
sociedades gestoras de fundos de investimento e de fundos de pensões.
Na última década do século XX, o volume das transacções sobre os mais
perigosos deste ‘produtos’, os chamados derivados negociados em mercado fora de
bolsa (“over-the-counter derivative markets”), aumentou de 24,6 mil milhões de dólares
em 1992 para 94,6 mil milhões de dólares em 1999. Os especialistas avisaram que este
fenómeno, para além de expor as instituições financeiras aos riscos máximos inerentes à
natureza volátil destes ‘produtos’, tornava muito mais difícil o controlo pelas
autoridades de supervisão e a auditoria das contas daquelas instituições.616 Os seus
defensores, porém, não se cansavam de proclamar as ‘virtudes globais’ de tais produtos:
“Formas inteiramente novas de instrumentos financeiros tiveram de ser inventadas ou
desenvolvidas – derivativos de crédito, títulos lastreados em ativos, futuros de petróleo e
congéneres, que criam condições para o funcionamento muito mais eficiente do sistema
de comércio mundial”.617

Para além dos riscos inerentes à proliferação dos produtos derivados, a


liberalização dos movimentos de capitais, ao serviço do objectivo de criar um mercado
único de capitais à escala mundial, arrastou consigo um conjunto de alterações que
vieram potenciar fortemente a ameaça de risco sistémico.618

Com efeito, a internacionalização dos mercados de valores imobiliários veio


colocar em rede mercados muito diferentes, cada um com as suas regras de
funcionamento e os seus riscos específicos, abrindo caminho à propagação contagiosa
dos factores de risco.

Por outro lado, a ausência de controlo dos mercados financeiros e dos


movimentos de capital pelos estados nacionais (amputados dos poderes de soberania
que tal controlo exige) provocou uma onda sem precedentes de concentrações, de fusões
e de aquisições de empresas financeiras, com a redução acentuada do número de
bancos, a concentração nos maiores deles da parte de leão dos depósitos bancários, e a
preponderância dos grandes bancos nas operações de fusão e aquisição de empresas do
sector financeiro. E este fenómeno, para além de outras consequências relevantes ao
616
Cfr. J. M. QUELHAS, ob. cit., 442.
617
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 355 [usamos a tradução brasileira].
618
Para maiores desenvolvimentos, ver J. M. QUELHAS, ob. cit., 439-441.
409

nível da prevalência do capital financeiro sobre o capital produtivo, veio facilitar o


contágio dos riscos entre os vários componentes do mesmo grupo, propiciando a
convergência e a acumulação do risco em um núcleo mais restrito de centros de decisão.

Igualmente relevantes, para a problemática que vimos analisando, são as


consequências da desregulação da actividade bancária, da actividade seguradora e das
actividades que decorrem nos mercados de valores mobiliários. 619 O chamado princípio
da banca universal veio permitir aos bancos alargar a sua actividade para além das áreas
tradicionais do ‘comércio bancário’, tendo-se multiplicado os produtos mistos
(bancassurance) e tendo-se verificado uma integração crescente dos vários mercados
financeiros (banca, seguros, moedas e títulos). O desenvolvimento de poderosos
conglomerados financeiros (na UE, só entre 1995 e 2000 criaram-se mais de 250 destes
conglomerados) veio aumentar o poder destes gigantes (incluindo o seu ‘poder
político’) e veio tornar muito mais complexas e difíceis as actividades de regulação e de
supervisão de cada um dos sectores de actividade financeira, o que constitui mais um
factor a potenciar o risco sistémico.

Os mais reputados especialistas têm alertado para os perigos do risco sistémico


inerente à disseminação dos produtos financeiros derivados, no quadro de um mercado
financeiro único de dimensões planetárias, onde impera a plena liberdade de circulação
de capitais. À semelhança do que a teoria refere para os mercados de oligopólio,
também neste mercado financeiro global os operadores tendem a actuar em função
daquilo que eles pensam irá ser o comportamento dos demais operadores. A turbulência
causada pela especulação em um dado país ou região tende a propagar-se a todo o
sistema financeiro mundial graças ao comportamento mimético dos grandes
especuladores. O risco sistémico é, assim, o risco global de desmoronamento do sistema
financeiro à escala mundial. A consciência disto mesmo é que dá sentido à tese dos que
entendem que tais ‘produtos’ ameaçam transformar-se em “armas de destruição
maciça”.

619
A onda da desregulação terá começado com a abolição das restrições à definição e exploração
das rotas da aviação comercial, obra da Administração Carter, nos EUA. A seguir, um verdadeiro tsunami
desregulador atingiu outros sectores da actividade económica, entre os quais as telecomunicações, os
media e os serviços financeiros. Durante a Administração Clinton, os bancos comerciais e os bancos de
investimento (obrigatoriamente separados por força de legislação promulgada na sequência da Grande
Depressão) foram autorizados a juntar-se, dando origem a poderosíssimos supermercados de serviços
financeiros. O desregulador de serviço na Secretaria do Tesouro era Lawrence Summers, que é hoje o
principal conselheiro económico de Obama. Cfr. J. CASSIDY, ob. cit., 7.
410

4.19. – As crises recorrentes das últimas décadas


411

As crises recorrentes das últimas décadas foram claros anúncios da crise


actual.620

4.19.1. Um primeiro sinal da crise estrutural do capitalismo foi a rotura


unilateral dos Acordos de Bretton Woods por parte dos EUA (1971) e a chamada crise
do petróleo, entre 1973 e 1975, à qual se seguiria uma outra ‘crise do petróleo’ em
1978-1980. Estes dois episódios, no início e no fim da década de 1970, anunciaram a
‘crise’ do keynesianismo, apanhado de surpresa pelo aparecimento da estagflação,
estranho fenómeno que, contrariando o modelo histórico das crises do capitalismo,
mostrava que taxas de crescimento próximas de zero (ou mesmo negativas) e níveis
elevados de desemprego podiam coexistir com taxas elevadas e crescentes de inflação.

Ficou patente que a capacidade de produção instalada no mundo capitalista era


excessiva relativamente ao poder de compra agregado da população e ficou patente
também que as grandes empresas monopolistas tinham suficiente poder de mercado
para impedir a queda dos preços, mantendo a sua espiral ascendente, com a cobertura da
subida dos preços do petróleo.621

O alarme foi tal que Henry Kissinger, então ao leme da diplomacia americana,
chegou a ameaçar com a intervenção militar dos EUA se os países exportadores de
petróleo não aceitassem baixar os preços do ouro negro. A estratégia imperial americana
de domínio das rotas da produção e da distribuição do petróleo e do gás natural tem aqui
a sua origem, tendo desembocado na invasão do Iraque, na guerra do Afeganistão, na
ameaça de guerra contra o Irão, no congelamento da solução do problema do Médio
Oriente.
4.19.2. - No rescaldo das dificuldades da primeira metade da década de 1970 que
acabamos de sintetizar, e rompido o consenso keynesiano, surgiu um novo consenso, o
chamado Consenso de Washington, expressão que traduz o consenso entre os EUA (as
grandes empresas multinacionais americanas) e as agências internacionais relacionadas
com a economia (FMI, Banco Mundial e GATT, este substituído em 1995 pela OMC,
que veio acentuar o peso do livrecambismo enquanto ideologia das potências

620
Poderíamos talvez considerar 1967 (com o crash da bolsa de Nova York) como ano de início
de um grande número de crises, que não deram descanso, de então até à actualidade.
621
Estudos vários mostram que a indústria americana utilizava em 1975 apenas 74% da sua
capacidade de produção. E mostram também que os grandes ganhadores com a subida do preço do
petróleo não foram os países produtores e exportadores, mas foram, acima de todos, as grandes empresas
multinacionais que controlam a refinação, o transporte e a distribuição do petróleo e seus derivados.
412

dominantes, abrangendo agora, para além dos produtos industriais e agrícolas, os


serviços, os investimentos e a propriedade intelectual).
Trata-se de um consenso no sentido de impor ao mundo os cânones monetaristas
e neoliberais: a liberdade plena de circulação de capitais; a desregulação dos mercados
de capitais, incluindo o mercado de divisas; o combate prioritário à inflação e a
desvalorização das políticas de promoção do emprego; a flexibilização do mercado de
trabalho e a contenção ou redução dos salários reais (facilitadas pela política de
deslocalização de empresas, que alargou enormemente o exército industrial de reserva,
através da mundialização do mercado de trabalho); a privatização das empresas
públicas, incluindo as que produzem e fornecem serviços públicos; a adopção de
políticas tributárias favoráveis aos muito ricos e às grandes empresas; a manutenção dos
paraísos fiscais.
A reaganomics nos EUA e o thatcherismo no Reino Unido marcam, a partir de
1979, o início deste novo ciclo, em que a ideologia neoliberal se confirmou como a
ideologia dominante, a ideologia das classes dominantes (talvez mesmo a ideologia do
sector dominante das classes dominantes: o sector financeiro). Em 1987, Alan
Greenspan assume o comando do Sistema de Reserva Federal dos EUA, posto em que
se mantém até 2006. Ao menos a partir dos anos 1990, os fundamentos teóricos e
filosóficos neoliberais contaminaram, até hoje, os partidos socialistas e sociais-
democratas, sobretudo na Europa. A criação da União Económica e Monetária em
Maastricht (1991), com a moeda única, o Banco Central Europeu e o Pacto de
Estabilidade e Crescimento, é o ponto crítico da conquista da ‘Europa’ pelo espírito do
Consenso de Washington.622
4.19.3. - Lembraremos a seguir a crise dos países em desenvolvimento em 1982;
a crise dos mercados de acções nos EUA em 1987; a crise (também nos EUA) dos
mercados de obrigações de alto risco e das caixas económicas (savings and loans), em
1989/1990; a crise bancária dos países escandinavos no início da década de 1990; a
crise que atravessou o Japão ao longo desta década; a crise do Sistema Monetário

622
J. CASSIDY (ob. cit., 7) sublinha que, “por volta dos anos 1990, Bill Clinton, Tony Blair e
muitos outros políticos progressistas adoptaram a linguagem da direita”. Talvez convencidos de que, nas
condições da época, o respeito pelo deus mercado era uma condição de ‘respeitabilidade’ política, muitos
‘políticos progressistas’ adoptaram também, para além da linguagem, as políticas da direita. Como o
próprio Cassidy reconhece: “Muitos governos em todo o mundo desmantelaram programas sociais,
privatizaram empresas públicas e desregularam indústrias que antes estavam sujeitas à supervisão do
estado”.
413

Europeu em 1992/93; em 1994, nova crise no mercado obrigacionista americano; ainda


em 1994, a crise do peso mexicano (“a primeira grande crise dos mercados
globalizados”, segundo o então Director-Geral do FMI, Michel Camdessus, crise que
fez tremer o sistema financeiro dos EUA e, por reflexo, o sistema financeiro de todo o
mundo capitalista); a crise das moedas asiáticas em 1997/98; a crise do rublo em
1998/99; a crise (2000-2002) que afectou a chamada ‘nova economia’ (a economia das
novas tecnologias: biotecnologia, informática, computação, telecomunicações); a crise
do real brasileiro em 1999; a grave crise financeira, económica, política e social da
Argentina (2001/2002), por muitos considerada o maior desastre das receitas neoliberais
impostas pelo FMI.

Em 1995, no rescaldo da crise que teve o peso mexicano como protagonista,


Michel Camdessus escreveu que o mundo é dominado por um poder político sem
controlo, à mercê de uma “classe composta por agentes globais que manipulam divisas e
acções e dirigem um fluxo de capital de investimento livre, fluxo esse que todos os dias
se torna mais importante, praticamente ao abrigo de todos os controlos estaduais”.
Referindo-se a estes especuladores profissionais, Camdessus não hesitou em afirmar
que “o mundo está nas mãos destes tipos”. E John Major, então Primeiro-Ministro
britânico, observava que o jogo dos especuladores assume “dimensões que o colocam
fora de qualquer controlo dos governos e das instituições internacionais”. O Primeiro-
Ministro italiano, Lamberto Dini, proclamava que “não se pode permitir aos mercados
[uns malandros, estes mercados!] minarem a política económica de todo um país”. Mais
radical foi o Presidente francês Jacques Chirac (Outubro/1955): os especuladores são a
“a sida da economia mundial”. 623

4.19.4. – Crise após crise, acumulando desemprego, desigualdade e exclusão


social, trabalho precário e com menos direitos, a sida tomou conta da economia
mundial. O tratamento será caro e o resultado incerto. Se não houver uma mudança
radical, a receita fornecida pela farmácia neoliberal é conhecida: os ‘pobres do costume’
pagarão um preço muito elevado para sanar a crise de que não são responsáveis.

Apesar do alarme, a verdade é que nada se fez para pôr cobro a esta vertigem
libertária, nem sequer com o pretexto de salvar a economia mundial desta espécie de
‘sida’ que vai diminuindo as suas resistências. Perante o evidente risco de pandemia,
623
Sobre esta mtéria, cfr. MARTIN/SCHUMANN, A Armadilha…, cit., e A. J. AVELÃS NUNES,
Neoliberalismo, Globalização…, cit.
414

estes tipos que vêm dominando a política e a economia mundiais, os defensores do


mercado livre, da liberalização, da desregulamentação e da desregulação não abrandam
os seus esforços no sentido de salvaguardar os seus espaços privados, protegidos por
fronteiras artificiais, muito mais invioláveis e intransponíveis do que as fronteiras dos
estados nacionais soberanos que se dizem coisa do passado.
Referimo-nos, é claro, aos chamados paraísos fiscais ou paraísos bancários, que são
também (e cada vez mais) sobretudo paraísos judiciários, espaços sem lei, sem
impostos, sem polícia, sem tribunais, pelos quais se estima que passem mais de 50% dos
fluxos financeiros mundiais. Eles constituem o maior escândalo deste mundo da
globalização financeira: trata-se de verdadeiros “estados mafiosos” ou “estados
bandidos”, ‘reservas’ criadas por medida para garantir refúgio seguro, em nome da
liberdade e do mercado, a capitais especulativos de todo o tipo, muitas vezes oriundos
de (e promotores de) negócios escuros e criminosos. Neste mundo à margem da lei os
ganhadores são precisamente os que não respeitam qualquer lei.

Por estes e outros canais passa diariamente o branqueamento de milhões e


milhões de dólares provenientes do crime organizado, de cujos lucros globais –
calculados em cerca de 500 mil milhões de dólares anuais – sobra muito dinheiro para
corromper dirigentes e comprar partidos políticos e também – ao que se diz – para
financiar o terrorismo internacional. Fazendo ironia, há quem defenda, por isso mesmo,
que os traficantes de droga foram os verdadeiros pioneiros da moderna globalização.624

Em quase todos estes ‘paraísos’ há mais sociedades fictícias registadas do que


habitantes. Por eles passam grandes operações de lavagem de ‘dinheiro sujo’, com a
(inevitável) cumplicidade dos grandes bancos e dos grandes conglomerados
transnacionais. E, naturalmente, das grandes potências, que, em nome da liberdade do
capital e em honra ao ‘deus mercado’, não querem pôr em causa a ‘soberania’ destes
“estados bandidos”, mesmo neste nosso tempo em que tanto se fala e se pratica o direito
de ingerência em certos países, em nome dos valores que integram o “estado de direito”.
A ‘soberania’ destes estados mafiosos é a única respeitada por todos os
624
Num Colóquio realizado em Paris, em finais de 2008, por iniciativa de uma entidade do
Governo francês no âmbito da luta contra a droga e a toxicodependência, vieram a lume informações
impressionantes: o volume anual dos negócios de traficantes de droga a nível mundial representa entre
200 mil e 500 mil milhões de euros; só as máfias italianas investem na economia europeia 100 mil
milhões de euros por ano, dinheiro sujo ‘lavado’ pelo sistema bancário internacional, com particular
destaque para os bancos suíços, luxemburgueses e de Monte Carlo (Cfr. Le Monde, 21.11.08). Estes
números ajudam a compreender as razões pelas quais se protege tão ciosamente a ‘soberania’ destes
‘estados’, cujo negócio é vender soberania, negócio em que não podem deixar de estar comprometidos o
sistema financeiro e as estruturas do poder político por ele ‘capturadas’.
415

‘globalizadores’. E eles vivem dela, utilizando a sua ‘soberania’ como objecto de


comércio, permitindo, em nome dela, regras de vida especiais para o grande capital e
para o crime organizado, regras que subvertem princípios elementares de qualquer
estado de direito e impedem o respeito destes princípios em muitos outros países.

Nenhum argumento sério pode invocar-se para justificar os paraísos fiscais, que a
generalidade dos especialistas associa à evasão e à fraude fiscais, ao crime organizado e
à lavagem de dinheiro. Como alguém escreveu, no contexto da luta contra o crime
global e contra o terrorismo global anunciada após os ataques às torres gémeas de Nova
York, se a(s) potência(s) hegemónica(s) não acabar(em) com estes “estados bandidos”,
não pode levar-se a sério a vontade proclamada de acabar com o crime organizado e
com o terrorismo global.625

Contra os interesses dominantes, de muitos lados se vem proclamando a


necessidade de lutar contra os perigos desta “ditadura dos mercados”, denunciando “a
natureza liberticida das ‘liberdades’ do capital” (já em 1980 Samuelson falava dos
perigos do “fascismo de marcado”), e se vem denunciando essa espécie de Declaração
Universal dos Direitos do Capital, muito mais eficaz do que a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da ONU. O esquema
é conhecido e poderia ser desmantelado. É apenas necessária vontade política para
tanto, o que pressupõe que seja o poder político a controlar o poder económico e não o
contrário.

4.19.5. – A substituição do GATT pela OMC representou como que a


institucionalização do liberalismo mais extremo e constituiu um passo importante ao
serviço dos agentes da globalização. Desde logo, porque alargou o seu âmbito à
agricultura, aos têxteis, aos serviços e à área da propriedade intelectual e científica.
Depois, porque os países mais fracos deixaram de beneficiar das vantagens de um
processo de negociação multilateral permanente (que era a essência do GATT) para
ficarem sujeitos às deliberações de uma instituição reguladora do comércio mundial na
qual os países dominantes (principalmente os EUA, mas também a União Europeia e o
Japão) tenderão a ganhar um peso decisivo, à semelhança do que se passa com o FMI e
o Banco Mundial.

625 ?
São palavras de um jornalista português (Francisco Sarsfield Cabral, jornal Público, 6.10.01):
“Será na determinação de pôr fim aos off-shores que teremos a prova real quanto à vontade política de
combater o terrorismo e os seus aliados. Por aí, mais do que por acções militares, se verá se a campanha
antiterrorista é mesmo a sério”. Pelo que se vê, parece que não é a sério…
416

A OMC coloca acima de tudo a liberdade das trocas comerciais e considera o


‘comércio livre’ quase como uma panaceia capaz de resolver todos os problemas. Mas a
verdade é que, apesar do considerável crescimento do comércio mundial, a desigualdade
entre os ‘países ricos’ e os ‘países pobres’ não cessa de aumentar.

Alguns especialistas temem que a situação venha a piorar, para os países menos
desenvolvidos, com a generalização do regime de plena liberdade das trocas
internacionais aos produtos agrícolas, como pretende a OMC. Este é o regime já
previsto na Convenção de Cotonou (Junho de 2000) para as relações entre a
Comunidade Europeia e 40 países ACP (africanos, na sua maioria), com início marcado
para 2008.

Neste quadro, as exportações dos países subdesenvolvidos terão de ser feitas aos
‘preços internacionais’, controlados pelas grandes multinacionais do agro-business,
preços que são, em regra, (muito) mais baixos que os custos de produção praticados
pelas pequenas e médias explorações agrícolas, que asseguram emprego à maior parte
da população rural e respondem pela maior parte da produção agrícola daqueles países.

Este regime de liberdade significa que as grandes multinacionais do sector


tomarão conta (ainda mais rigidamente do que hoje) do comércio agrícola (e,
consequentemente, da produção agrícola) à escala mundial. Os recursos agrícolas dos
países subdesenvolvidos ficarão ainda mais sujeitos à sobre-exploração com vista ao
lucro rápido da agricultura voltada para a exportação, acentuando os riscos da
monocultura (dependência das receitas de um só produto, degradação dos solos,
desertificação). Isto pode significar, em último termo, o agravamento da dependência
alimentar destes países, com a diminuição da produção de alimentos para as populações
locais, em favor da chamada agricultura de sobremesa, voltada para a exportação. Não
falta quem recorde que o acordo NAFTA (North American Free Trade Agreement -
Acordo de Comércio Livre Norte-Americano, entre os EUA, o Canadá e o México) já
arruinou a agricultura mexicana, do mesmo modo que a integração de Portugal na CEE
destruiu a agricultura portuguesa.

Uma visão alternativa será precisamente aquela que assenta na defesa do direito
de todos os países à soberania alimentar, i.é, à auto-suficiência alimentar no que toca
aos produtos básicos. Alguns autores recordam que o princípio da auto-suficiência
alimentar foi - e continua a ser - um dos princípios orientadores da PAC (Política
Agrícola Comum) desde a constituição da CEE.
417

À luz deste princípio, muitos defendem que a melhor forma de proteger os


agricultores dos países menos desenvolvidos é o recurso a medidas proteccionistas,
talvez a única política acessível a estes países. Sobretudo no domínio dos produtos
agrícolas, ganha sentido a posição dos que defendem que as soluções livrecambistas
entre países ou regiões com níveis de desenvolvimento muito diferentes só podem
traduzir-se na acentuação da hegemonia dos mais fortes e da dependência dos mais
fracos, impedindo estes de adoptar as medidas mais adequadas para garantir
prioritariamente a satisfação das necessidades alimentares dos seus povos.
418

4.20. – O florescimento do capitalismo de casino.

Entretanto, o processo de inovação financeira continuou a fazer o seu caminho,


sem qualquer controlo: a progressiva liberalização e desregulação dos mercados
financeiros, juntamente com a absoluta liberdade de circulação de capitais,
419

escancararam as portas da especulação e a especulação ameaça afundar a economia, à


escala mundial, como é próprio deste mundo ‘globalizado’.
A verdade é que os receios de uma crise financeira mundial de consequências
imprevisíveis já tinham chegado à reunião do G7 de Fevereiro/2007, na qual foi
abordada a eventual necessidade de regulamentar a actividade dos chamados hedge
funds, fundos de investimento puramente especulativos, inteiramente desregulados, que
operam à escala mundial, muitas vezes com sede em off-shores, que escapam às regras
da transparência e ao controlo das autoridades de supervisão, e que actuam com base em
estratégias de investimento que buscam a máxima rentabilidade investindo em
‘produtos’ de alto risco, constituindo, por tudo isso, elementos fortemente
desestabilizadores do sistema financeiro e propagadores de elevado potencial das crises
financeiras.
Os mais avisados já então admitiam que o colapso de um deles pudesse arrastar
consigo uma crise mundial de grandes dimensões. Mas os ‘donos’ do ‘casino’ (com
destaque para os EUA e o Reino Unido, que constituem o ninho acolhedor de cerca de
dez mil hedge funds626) opuseram-se a qualquer intervenção. A roleta continuou a rodar,
até que a crise rebentou.
Os apóstolos das liberdades do capital, aliás, sempre proclamaram o seu carinho
por estes fundos de investimentom geradores de “altos lucros financeiros”, capazes de
atrair “um grande aparato de pessoas e de instituições altamente qualificadas”. E Alan
Greespan – que estamos a citar 627
– sublinha que “as estratégias de investimento dos
fundos de hedge continuam a ser úteis para a eliminação de spreads anormais nos
mercados e, talvez, até para a superação de muitas ineficiências”. Por isso Greenspan
regozija-se: tais fundos “não estão sujeitos a qualquer regulamentação pelo governo, e
espero que continuem assim. (…) Os fundos de hedge [“vibrante setor trilionário,
dominado por empresas americanas”] e os fundos de private equity parecem representar
as finanças do futuro”. Para que tal aconteça, Greenspan deixa a receita: “Qualquer
restrição normativa às estratégias e às táticas de investimento dessas entidades (que é o
626 ?
Reunindo dados de Van Hedge Fund Advisors International, Inc. (colhidos em
http://www.hedgefund.com), J. M. QUELHAS (ob. cit., 516) mostra que o número de hedge funds
aumentou de 1373 para 7500, entre 1988 e 2002, passando o valor dos activos geridos por estes fundos,
no mesmo período, de 42 mil milhões de dólares para 650 mil milhões de dólares.
627 ?
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 357-359 (citamos a tradução brasileira). O autor
reconhece, porém, que mesmo os administradores de um dos mais ‘ilustres’ destes fundos (entre os quais
dois economistas americanos galardoados com o Prémio Nobel) “se transformaram em jogadores
compulsivos, fazendo grandes apostas que tinham pouco que ver com seu plano de negócios original”.
Resultado: “Em 1998, a LTCM [o referido hedge fund] perdeu as calças”. Os seus prejuízos foram
absorvidos por empresas seguradoras, fundos de pensões e instituições semelhantes.
420

que fazem os regulamentos) limitaria a assunção de riscos, que é parte integrante da


contribuição dos fundos de hedge para a economia global e, principalmente, para a
economia dos Estados Unidos. Por que circunscrever o voo das abelhas polinizadoras de
Wall Street?”. O esforço ‘teorizador’ de Greenspan continua: “A inovação é tão
importante para nossos mercados financeiros globais quanto para a tecnologia, para os
bens de consumo e para a assistência médica. Para acompanhar a expansão da
globalização, nosso sistema financeiro precisará manter sua flexibilidade. O
protecionismo, qualquer que seja o pretexto, político ou económico, não importa qual
seja seu impacto, sobre o comércio ou sobre as finanças, é receita certa para a
estagnação económica e para o autoritarismo político”.628
Pois bem. Hoje não é fácil negar a pesada responsabilidade desta política no
desencadear da grave crise financeira que anunciou e desencadeou a crise económica
profunda e global que hoje se vive no mundo capitalista: a progressiva desregulação dos
mercados financeiros, a liberdade absoluta de circulação de capitais à escala mundial e a
deficiente (ou cúmplice) actuação das entidades reguladoras e das sociedades (privadas)
de rating são alguns dos factores que conduziram o ‘casino’ à bancarrota.
Esta crise veio tornar evidentes as consequências dramáticas do capitalismo de
casino, da predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo, do corte entre
a especulação financeira e a economia real, pondo em xeque, de modo irrecusável, o
pensamento neoliberal. Perante a gravidade da crise instalada, não parece que seja
suficiente criticar os ‘excessos’ do mercado e a falta de ética do capital financeiro. É
necessário mudar as regras do jogo.

O desenvolvimento do processo de inovação financeira sem qualquer controlo, a


liberalização e a desregulação dos mercados de capitais e a plena liberdade de
circulação de capitais escancararam as portas à especulação e a especulação ameaça
afundar a economia, à escala mundial, como é próprio deste mundo ‘globalizado’.
Uma das mais celebradas invenções da ‘inovação financeira’ é a titularização de
créditos, cuja importância cresceu exponencialmente a partir do início da década de
2000 (em 2007, o valor envolvido correspondia a pouco menos de metade do produto
mundial). Ela tem sido um dos instrumentos da financeirização do sistema capitalista
(que se acentuou a partir dos anos 80 do século XX). Ela está na base da crise financeira
que começou nos EUA no sector do crédito hipotecário ligado à compra de casas por
628
Cfr. A. GREENSPAN, A Era.., cit., 363.
421

quem não tinha capacidade financeira para as pagar e por quem as comprava apenas
com fins especulativos (ganhar, a curto prazo, com a valorização dos imóveis).
A banca começou a vender pacotes desses créditos menos fiáveis, transformados
em produtos derivados (títulos obrigacionistas negociáveis) adquiridos por investidores
institucionais, nomeadamente os atrás referidos hedge funds. Disperso o risco pela
grande quantidade de titulares de unidades de participação nestes fundos, os fautores
deste ‘jogo’ talvez tenham acreditado terem resolvido a quadratura do círculo, supondo
que poderiam vender esses créditos titularizados sem limitações, criando a ilusão de que
a dispersão dos riscos como que os fazia desaparecer.
O aforro disponível excedia a capacidade de investimento na economia real, pelo
que os grandes gestores da banca se convenceram de que podiam ganhar muito dinheiro
emprestando-o ou lançando-o no jogo sem acautelar minimamente o seu reembolso
(alguns bancos chegaram a emprestar o equivalente a trinta vezes o montante dos seus
depósitos). E se bem o pensaram melhor o fizeram, montando um ‘esquema’ assente
nos chamados empréstimos subprime, assim designados porque são concedidos sem
respeitar as regras técnicas no que toca às garantias exigidas a quem recorre ao crédito
no que concerne à sua capacidade para cumprir atempadamente os encargos da dívida
(juros e amortização do capital). Muitos desses empréstimos foram, de resto, designados
por empréstimos tipo ninja, i.é, empréstimos concedidos a quem não tinha rendimentos,
nem emprego nem activos – “No Income, no Job or Asset”.
Num país em que o endividamento das famílias, graças ao ‘estímulo’ do crédito
ao consumo, representa 120% do rendimento disponível, a fantasia desfez-se quando, no
primeiro trimestre de 2007, cerca de 15% das pessoas que tinham recorrido a
empréstimos subprime deixaram de pagar os seus encargos. O risco rapidamente afectou
não só os bancos mas também as companhias de seguros que tinham feito o seguro (e
até o resseguro) dos créditos concedidos, bem como os fundos de investimento
controlados por aqueles e por estas, tanto mais que o valor de mercado dos prédios
hipotecados baixou consideravelmente, por excesso de oferta e baixa da procura.
Quando os produtos derivados resultantes da titularização dos créditos hipotecários,
embora teoricamente negociáveis, deixaram de ser negociados na prática, porque
ninguém os queria, chegou-se ao fim do caminho: a banca do ‘casino’ ficou sem fundos.
Tudo corria no melhor dos mundos, até que a crise rebentou. Para quem não
esquece as lições da história, era inevitável que ela viesse, porque as crises são inerentes
ao capitalismo (as situações de pleno emprego são “raras e efémeras”, como reconheceu
422

Keynes), porque todos sabemos que o carnaval acaba sempre em quarta-feira de


cinzas…

4.21. – A natureza da crise actual do mundo capitalista.

4.21.1. - Garantem alguns que esta é uma crise do neoliberalismo, querendo


fazer passar a ideia de que ela não é uma crise do capitalismo. Talvez por se entender
que o capitalismo não tem nada que ver com as crises, e que, de todo o modo, não há
alternativa ao capitalismo. Assim sendo, o que é preciso é abandonar o neoliberalismo.
423

Esta parece ser a posição da social-democracia europeia, cujos principais


dirigentes afirmam defender o capitalismo no que se refere às estruturas e às relações de
produção e soluções socialistas no que respeita à distribuição. 629 Seja como for, a avaliar
pelas políticas levadas a cabo na Europa, por governos socialistas, sociais-democratas
ou conservadores, e pelas medidas impulsionadas e patrocinadas pela União Europeia,
não se vêm sinais de que se esteja a levar Keynes a sério.
Com efeito, ele veio recordar ao mundo, como já referimos, o que considerava
os dois vícios fundamentais do capitalismo: 1) a possibilidade de ocorrência de
situações de desemprego involuntário; 2) as enormes desigualdades na distribuição do
rendimento, que dificultam o desenvolvimento económico e potenciam o desemprego.
Como já vimos, o economista inglês não foi um revolucionário e nunca se
afirmou socialista, assumindo-se como um elemento da burguesia culta. Mas entendia
que aqueles dois ‘vícios’ punham em causa a ‘paz social’ indispensável ao
funcionamento do capitalismo dentro das regras da democracia política. Por isso
defendeu a necessidade de os combater seriamente (para salvar o próprio capitalismo,
não para o subverter).
Ora as políticas que vêm sendo adoptadas, em especial nos países da UE, são,
basicamente, políticas neoliberais, que provocam mais recessão, aumentam o
desemprego, reduzem duramente os rendimentos dos mais pobres (incluindo os
desempregados) e aumentam as já gritantes desigualdades sociais.
Insinua-se por vezes que, em boa verdade, a crise actual é uma espécie de crise
de costumes, fruto da actuação desregrada e imoral de uns quantos gestores da alta
finança. A Chanceler alemã (jornais de 13.1.2009) chegou a explicar a crise como
resultado de “excessos do mercado”, algo que parece não estar de acordo com a
natureza de mecanismo natural, portador da única racionalidade possível nas sociedades
humanas. A solução residiria em transformar o mercado no que chamou de “mercado
económico-social”, em impor a moral nos negócios, em introduzir a ética no mercado,
para que este não volte a cometer excessos. Resta saber se a ética e o mercado, a moral e

629
Esta postura de ‘gestão do capitalismo’ representa, porém, em nosso entender, uma equação
teórica e política tão difícil de resolver como a da quadratura do círculo, sabendo-se como se sabe, desde
os fisiocratas, ser ponto assente na teoria económica que as estruturas de distribuição do rendimento e da
riqueza não podem considerar-se separadas das estruturas e das relações sociais da produção. Por outras
palavras: a estrutura de classes da sociedade e as relações de produção que lhe são inerentes são os
factores determinantes da distribuição da riqueza e do rendimento.
424

os negócios, o mercado e a regulação serão conceitos que possam conjugar-se ou se


serão conceitos tão separados uns dos outros como o azeite da água.630
Dizem outros, de muitos lados: o que falhou foi a regulação e a supervisão
(apesar da suposta altíssima competência técnica dos reguladores…), o que é uma boa
maneira de dizer que não se podem pedir responsabilidades a ninguém, porque os
reguladores são independentes e não respondem politicamente perante ninguém.
É caso para perguntar: amputada a soberania do estado desta função reguladora,
poderá esperar-se que ela tenha êxito, uma vez confiada às tais agências reguladoras
ditas independentes? A desregulação de toda a economia e, em especial, do sector
financeiro, conseguiu o que queria: a entrega dos chamados ‘mercados’ aos
especuladores, e estes, muito naturalmente, cumprem o seu papel.
Cabe ainda outra pergunta: a ‘independência’ destas agências será mesmo
independência de verdade, ou não passará de uma falácia, inventada para as tornar mais
vulneráveis à influência dos interesses económicos dominantes, libertando-as do dever
de prestar contas perante os órgãos do poder político legitimados democraticamente e
do escrutínio político do povo soberano? A verdade é que foi sob a ‘autoridade’ destas
agências reguladoras que os bancos e o sistema financeiro em geral, libertos do controlo
do estado, se lançaram no aventureirismo mais irresponsável (para usar linguagem
diplomática), comprometendo nos ‘jogos de casino’ não só os interesses dos seus
clientes, mas todas as actividades produtivas e criadoras de riqueza.631

4.21.2. - Quanto a nós, pensamos que o estado (regulador ou desregulador)


cumpriu o seu papel de deixar o campo aberto à livre circulação de capitais, à livre
criação de produtos financeiros derivados, inventados com todo o carinho dos seus
criadores para alimentar as apostas no casino em que transformaram o mundo.
O Sr. Alan Greenspan, o grande apóstolo da desregulação (que se classifica a si
mesmo como “defensor ferrenho do livre funcionamento dos mercados” 632), sempre
defendeu, como Presidente do Banco Central dos EUA, que quanto mais liberdade para

630
Alguns, mais radicais, não hesitam em afirmar que “a moralização do capitalismo é, em rigor,
impossível, visto que este é, em si mesmo, imoral: coloca-se ao serviço de uma minoria afortunada,
instrumentaliza a grande massa dos trabalhadores e nega a sua autonomia. Exigir a sua moralização
conduziria, na realidade, à exigência da sua supressão, seja qual for a dificuldade da tarefa”. São palavras
do filósofo francês Yvon QUINIOU (ob. cit.).
631
Em 2003, como já lembrámos atrás, Michel Rocard bem tinha avisado que “numa economia
mundialmente aberta [esta economia dominada pelo capital financeiro especulador] não há lugar para a
regulação nem limites para a violência da concorrência”…
632
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 359.
425

o capital financeiro melhor para os negócios (e melhor para o mundo). Foi durante o seu
consulado como ‘papa’ do mundo financeiro que foi revogada nos EUA uma lei do
tempo do New Deal que proibia os bancos de ‘investir’ na bolsa, isto é, de jogar no
casino.633 A onda liberalizadora e desreguladora abriu as portas do casino aos bancos, e
estes, como jogadores compulsivos, queimaram na jogatina, criminosamente, o dinheiro
dos depositantes.
As suas responsabilidades foram-lhe recordadas numa Comissão do Congresso,
perante a qual, já em plena crise, Greenspan prestou declarações. “O senhor – disse-lhe
o Presidente da Comissão634 - tinha autoridade para evitar práticas irresponsáveis que
conduziram à crise dos empréstimos subprime. Foi avisado por muita gente para actuar
nesse sentido. Agora a nossa economia como um todo está a pagar o preço”. Na
sequência do interrogatório, o Congressista recordou afirmações públicas de Greenspan
enquanto Presidente do FED 635
e perguntou-lhe se se sentia pessoalmente responsável
pelo que aconteceu. Greenspan não respondeu directamente e o Presidente da Comissão
continuou a citá-lo: “Eu tenho uma ideologia. O meu juízo é que mercados livres e de
concorrência são, de longe, o melhor modo de organizar as economias. Tentámos as
regulações. Nenhuma delas funcionou minimamente”. Como quem diz: eu tenho uma
ideologia e actuei em conformidade com ela, porque só o mercado livre funciona e
merece crédito.
Foi a vez de o Congressista insistir: “O senhor acha que a sua ideologia o
empurrou para tomar decisões que o senhor gostaria de não ter tomado?”, “O senhor
enganou-se?” Resposta de Greenspan: “Eu cometi um erro ao presumir que os interesses
próprios de organizações, especificamente bancos e outras, eram tais que constituíam o
modo mais capaz de proteger os seus próprios accionistas e as suas acções nas empresas
(…) Na realidade, um pilar crítico da concorrência e do mercado livre quebrou. E penso
que isso me chocou. Ainda não compreendi inteiramente porque é que isso aconteceu, e,
obviamente, na medida em que eu veja claro o que aconteceu e porquê, eu mudarei os
meus pontos de vista”.

633
O Glass-Steagall Act (1933), que proibiu os bncos comerciais de negociar com títulos
mobiliários, foi revogado em 1999 pelo Gramm-Leach-Bliley Act, que veio libertar o sector financeiro
das ‘peias’ da regulação. O FED, liderado por A. Greenspan, estimulou e aplaudiu a mudança. Cfr. A.
GREENSPAN, A Era…, cit, 362/363.
634
Elementos extraídos de J. CASSIDY, ob. cit., 4-6.
635 ?
Eis algumas delas: “Nada na regulação levada a cabo pelo estado a torna superior à
regulação do mercado”, pelo que “não é necessária qualquer regulação pública”, mesmo quando se trata
de “transacções de produtos derivados fora de bolsa” (“off-exchange derivative transactions”).
426

Em outro momento das suas declarações, Greenspan afirmou: “Encontrei uma


falha no modelo que eu considerava como a estrutura crítica de funcionamento que
define o modo como o mundo funciona, se posso dizer assim”. Tentando concluir, o
Presidente da Comissão interpelou Greenspan: “Por outras palavras, o senhor acha que a
sua concepção do mundo, a sua ideologia, não era correcta”? Ao que Greenspan
respondeu: “Precisamente”. Mas não deixou de invocar que uma ideologia é, a seu ver,
um quadro conceptual para lidar com a realidade e que, para existir, precisamos de uma
ideologia (“To exist, you need an ideology”).
É um diálogo curioso e elucidativo, que merece madura reflexão, num tempo
em que de muitos lados se ouvem vozes a proclamar o fim das ideologias. A ideologia
neoliberal, pelos vistos, está viva e actuante. Sendo assim, não podemos aceitar a tese
dos que afirmam, insistentemente, que não há alternativa às políticas que vêm sendo
adoptadas, em geral inspiradas pela ideologia neoliberal. Cremos que se trata de uma
questão de inteligência assumir que há uma alternativa à ideologia dominante.
Como se diz acima, há anos que os especialistas na matéria chamam a atenção
dos responsáveis políticos para o perigo de os novos produtos financeiros,
nomeadamente os produtos derivados, se transformarem em “armas de destruição
maciça”. O Sr. Greenspan não ignorava estes estudos. Mas, em nome da sua ideologia,
defendeu até ao fim que o estado não devia meter-se em assuntos de economia. Quando
o ‘negócio’ faliu, mesmo os mais fervorosos neoliberais lembraram-se de que o estado
existia e chamaram-no para salvar os especuladores falidos.636
A verdade é que, desde os escritos de Malthus, de Marx e de Keynes, sabemos
que o capitalismo, enquanto existir, há-de sempre passar por ciclos alternados de
crescimento económico e de depressão, porque as crises cíclicas são inerentes ao
capitalismo. Marx explicou tudo isto muito bem. Perante a evidência da Grande
Depressão, o próprio Keynes reconheceu – já o dissemos atrás - que, nas sociedades
capitalistas, as situações de pleno emprego são raras e efémeras.

4.21.3. - Esta é, pois, mais uma crise do capitalismo.

636
Só para salvar da falência as duas ‘estrelas’ do crédito hipotecário (a Fannie Mae e a Freddie
Mac) o Governo norte-americano injectou dinheiro público no valor de 200 mil milhões de dólares
(Setembro/2008), substituindo dívida privada por dívida pública. A Administração de G. W. Bush, que
sempre considerou a intervenção do estado na economia como um dos sinais da existência do império do
mal, acabaria por protagonizar a mais dispendiosa intervenção do estado na economia desde os anos
trinta. As voltas que o mundo dá…
427

Tentando ir além das bolhas especulativas e dos jogos de casino que vieram
tornar a crise indisfarçável, as causas da crise radicam na própria essência do
capitalismo e foram-se acentuando à medida que se iam consolidando os resultados da
mundialização feliz de que falam os apóstolos da política de globalização neoliberal
dominante.
Toda a construção neoliberal assenta na ideia de que o melhor dos mundos se
atinge, graças à mão invisível inventada por Adam Smith (para fazer, na história para
adultos, o papel da varinha mágica nas histórias para crianças), deixando funcionar o
mercado e confiando no crescimento económico que dele resultará espontaneamente, se
a taxa de lucro crescer, para que possa aumentar o investimento e, com ele, o
crescimento económico e o bem-estar para todos.
Esta confiança dos clássicos ingleses na tese do crescimento sem limites e da
consequente melhoria do bem-estar para todos vinha reforçada pela confiança na Lei de
Say, segundo a qual não são possíveis crises generalizadas de sobreprodução, e pela
convicção de que, em virtude de leis naturais, os salários nunca poderiam,
duradouramente, ultrapassar o valor correspondente ao mínimo de subsistência. Este o
enquadramento que justificava o paraíso liberal (o mesmo dos neoliberais dos nossos
dias).
Malthus foi o primeiro a pôr em causa a lei de Say e, depois dele, Marx e
Keynes (entre outros) vieram mostrar o que a vida confirmaria: as crises de
sobreprodução são inerentes ao capitalismo. Os neoliberais de hoje, como os
neoliberais de ontem, entendem, porém, que as crises não existiriam se se deixasse o
mercado funcionar livremente, sem imperfeições (nomeadamente no mercado de
trabalho). E sustentam que as crises só poderão ultrapassar-se com base no
funcionamento do mercado livre, que provocará a baixa dos salários reais indispensável
para assegurar o equilíbrio com pleno emprego em todos os sectores da economia.
Compreende-se, assim, que o objectivo último das políticas de inspiração
neoliberal tenha sido, ao longo das últimas quatro décadas, o de baixar o nível dos
salários reais, na tentativa de parar a baixa das taxas de lucro que a crise de 1973-1975
evidenciara.
Num contexto de acentuado desenvolvimento científico e tecnológico
(rapidamente incorporado na actividade produtiva) e consequente aumento da
produtividade, tratava-se de fazer reverter os ganhos da produtividade em benefício do
capital, impedindo os trabalhadores de beneficiar condignamente da riqueza que
428

criavam. O objectivo referido foi prosseguido combatendo o movimento sindical;


esvaziando os sistemas públicos de segurança social e procurando desmantelar o estado-
providência; destruindo o sector empresarial do estado; privatizando os serviços
públicos; impondo a liberalização e a flexibilização das relações laborais (com o
consequente aumento da jornada de trabalho e a intensificação do ritmo de trabalho);
deslocalizando empresas; suprimindo postos de trabalho; impondo a liberdade absoluta
de circulação de capitais e a livre circulação de mercadorias. A ‘globalização’ e, no
contexto europeu, o alargamento da UE aos países da Europa central e de leste
aumentaram enormemente o exército industrial de reserva em benefício das grandes
empresas dos países liderantes à escala mundial e acentuaram a concorrência entre os
trabalhadores.637
E aquele objectivo foi plenamente conseguido. O aumento da parte do capital na
partilha do valor criado pelo trabalho produtivo atingiu proporções escandalosas. A
distorção, em favor do capital, da chamada distribuição funcional do rendimento
significa o agravamento da exploração e o empobrecimento relativo (e mesmo absoluto)
da grande massa dos trabalhadores, tanto nos chamados ‘países ricos’ como nos ditos
‘países pobres’.638
637
Há mesmo quem defenda que “a principal consequência social da mundialização foi a
emergência de um mercado mundial do trabalho”, no seio do qual “os trabalhadores de todos os países,
independentemente do seu grau de desenvolvimento industrial e do sistem social, estão doravante em
concorrência entre si, em todos os domínios da economia, com um leuqe salarial entre um e 50 ou mais”
(Cfr. D. GALLIN, ob. cit., 103).
638
Mesmo na rica UE, 80 milhões de pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza, incluindo 19
milhões de crianças (são considerados pobres aqueles que auferem rendimento inferior a 60% do salário
médio do país onde vivem); cerca de 17% dos europeus não têm recursos suficientes para satisfazer as
suas necessidades básicas (são dados colhidos nos jornais, por ocasião de uma Conferência sobre esta
matéria, promovida pela Comissão Europeia e pela Presidência espanhola da UE em 21.1.2010). Na
Inglaterra, as políticas seguidas pelos últimos Governos conservadores e trabalhistas colocaram o país
“perante o risco de regressar a níveis de pobreza idênticos aos da era vitoriana” (conclusão de um estudo
da Fabian Society, referido em The Independent, de 30.11.2009). Também aqui, é o regresso ao século
XVIII.
Os trabalhadores continuam, por outro lado, a pagar um dramático “imposto de sangue” (Ignacio
Ramonet, Le Monde Diplomatique, ed. port., Junho/2003), traduzido no elevado número de vítimas de
acidentes de trabalho e de doenças profissionais. Segundo dados da OIT, todos os anos 270 milhões de
trabalhadores são vítimas de acidentes de trabalho e 160 milhões contraem doenças profissionais. Os
acidentes de trabalho provocam todos os dias pelo menos 5 mil mortos (mais de dois milhões por ano!).
Mesmo num país como a França, todos os anos morrem 800 trabalhadores vítimas de acidentes de
trabalho, registando-se cerca de dez feridos por minuto.
Um Relatório da OIT elaborado no âmbito do Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho
(28.4.2010) refere que o stress, enquanto doença profissional, atinge gravemente mais de 20% dos
trabalhadores da UE, sendo a causa de mais de metade dos dias de trabalho perdidos.
Neste mundo antropofágico, em estado de guerra civil permanente, há ainda que contabilizar os
que morrem de fome e outras vítimas da fome. Há pouco tempo, o Prof. Jean Ziegler, membro do Comité
Consultivo do Conselho de Direitos Humanos da ONU, tornava público que, de 5 em 5 minutos, morre
uma criança com menos de dez anos; que mil milhões de pessoas são subalimentadas; que todos os dias
morrem 47 mil pessoas de fome (cfr. Público, 4.4.2010). Se a estes juntarmos os que morrem de doenças
evitáveis, muitas vezes resultantes da fome, o número de mortos provocados por esta guerra civil é, em
429

Alan Greenspan reconhecia, em finais de 2007: “A parte dos salários no


rendimento nacional nos EUA e em outros países desenvolvidos atingiu um nível
excepcionalmente baixo segundo os padrões históricos, ao invés da produtividade, que
vem crescendo sem cessar.”639
Um documento de trabalho apresentado na reunião de Julho/2010 do Banco de
Pagamentos Internacionais faz uma longa análise crítica deste mesmo fenómeno: “A
parte dos lucros é hoje invulgarmente elevada, e a parte dos salários invulgarmente
baixa. De facto, a dimensão desta evolução e o leque dos países a que diz respeito não
têm precedentes nos últimos 45 anos”.
No Relatório sobre o Trabalho no Mundo/2008, a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) sublinha que “em 51 dos 73 países para os quais existem dados
disponíveis, a parte dos salários no rendimento nacional tem diminuído ao longo dos
últimos vinte anos”, especificando que “o declínio mais forte da parte dos salários no
PIB teve lugar na América Latina e nas Caraíbas (-13 pontos percentuais), seguindo-se a
Ásia e o Pacífico (-10 pontos percentuais) e as economias desenvolvidas (-9 pontos
percentuais)”.
Segundo os dados que conseguimos apurar, na UE/15, a parte dos rendimentos
do trabalho no rendimento nacional passou de 65% em 1980 para 57% em 2005,
sabendo-se que, em vários países da UE, entre os quais Portugal, esta percentagem é
ainda (consideravelmente) mais baixa. Para o conjunto da UE, a Comissão Europeia
regista uma diminuição da parte dos salários de 8,6% entre 1983 e 2006 (9,3% na
França). E, para o conjunto dos países do G7, o FMI aponta, para o mesmo período,
uma diminuição de 5,8%.640
À escala mundial, calcula-se que, nos últimos dez anos, a produtividade
aumentou cerca de 30%, enquanto o aumento dos salários não foi além de 18%. Esta
partilha desigual dos ganhos de produtividade dá lucros (e muitos) a curto prazo aos que
“vivem do lucro” (para usar a expressão de Adam Smith), mas agrava as contradições
dentro do capitalismo como um todo. Os ganhos da revolução científica e tecnológica
cada ano, muito próximo dos mortos causados pela Segunda Guerra Mundial.
639
Cfr. Finantial Times, 17.9.2007. Greenspan não esconde a sua preocupação, invocando que
“esta desproporção entre fracos níveis salariais e lucros historicamente muito elevados faz temer um
aumento da animosidade contra o capitalismo e o mercado, tanto nos EUA como em outras zonas do
mundo”. É capaz de ter razão. Mas é curioso que Greenspan não tenha sequer aludido ao risco de uma
crise grave do capitalismo, como consequência do fenómeno que regista. Talvez porque ele é um fiel da
Lei de Say e acredita que as crises de sobreprodução não são possíveis nas sociedades capitalistas.
640
Cfr. F. RUFFIN, ob cit.
430

servem, essencialmente, para aumentar os lucros, quando deveriam ajudar à progressiva


libertação dos trabalhadores, não só através do aumento dos salários, mas, sobretudo,
proporcionando garantias mais sólidas no que toca aos direitos no âmbito da segurança
social, melhores condições de vida e de trabalho, redução do horário de trabalho,
melhores serviços públicos de educação e de saúde, universais, gerais e gratuitos.

4.21.4. - Pois bem. Parece-nos que esta contradição é a questão central que está
por detrás da crise (desta e de todas as outras crises do capitalismo). Historicamente,
quando o medo do aumento da “animosidade contra o capitalismo e o mercado” (A.
Greenspan) atingiu níveis preocupantes, o capitalismo cedeu a algumas reivindicações
dos trabalhadores.
Como vimos, foi esta a inspiração de Keynes (preocupado, acima de tudo, em
salvar o capitalismo), foi esta a raiz do estado social e do estado-providência. Mas, com
a implosão da URSS e da comunidade socialista europeia, a contra-revolução
monetarista ganhou novo fôlego, o pensamento único conquistou mais adeptos, a
ideologia neoliberal acentuou o seu domínio, e os poderes dominantes acreditaram que
não havia razão para medos e que estavam reunidas as condições para fazer andar para
trás o relógio da história.
O peso enorme que os fundos de pensões e outros fundos de investimento, bem
como os investidores institucionais em geral adquiriram no capital accionista das
grandes empresas cotadas em bolsa é um dos aspectos da ‘financeirização’ das
economias capitalistas, especialmente depois da consolidação da “contra-revolução
monetarista”. E é um dos factores que tem contribuído para empurrar os gestores das
grandes empresas para lógicas de gestão que permitam elevados lucros a curto prazo,
lucros que não são destinados a investimento produtivo que favoreça o crescimento
económico e o emprego, antes são lançados na especulação financeira, que é a forma de
“enriquecer a dormir” (Miterrand). São estes mesmos interesses e actores que
pressionam os governos no sentido de darem primazia ao combate à inflação (para não
ficarem em risco as cotações dos valores mobiliários) e de desvalorizarem as políticas
activas de crescimento da economia, bem como no sentido do arrocho salarial, que tem
provocado a diminuição acentuada da participação dos trabalhadores (dos salários) no
valor acrescentado à escala mundial.641

641
Cfr. P.-A. IMBERT, ob. cit., e M. HUSSON, ob. cit.
431

O problema é que os trabalhadores não são apenas os produtores da riqueza, são


também a esmagadora maioria dos que têm de adquirir, pagando-as a um preço
lucrativo para o capital, as mercadorias produzidas com o único objectivo de serem
vendidas no mercado. O salário pago aos trabalhadores não é apenas um elemento dos
custos de produção, é também o rendimento que alimenta o poder de compra da grande
maioria da população que há-de comprar as mercadorias que têm de ser vendidas para
que os empresários capitalistas possam recuperar o dinheiro investido e acrescentar o
lucro (a mais-valia, em linguagem marxista).
Se o capital reduz os salários aumenta a sua taxa de mais-valia (em termos
absolutos e relativos). Mas, ao fazê-lo, reduz o poder de compra dos trabalhadores, que
constituem a grande massa dos consumidores, colocando em risco a realização da mais-
valia. As crises de sobreprodução, próprias do capitalismo são, precisamente, crises de
realização da mais-valia.
Pode aumentar o consumo de luxo e de super-luxo dos ricos (e ele tem
aumentado, aliás, escandalosamente, de forma explosiva, ‘queimando’ para
investimentos produtivos e investimentos sociais uma parte significativa da riqueza
criada); mas isso não basta (como já Henry Ford e Keynes tinham percebido) para
resolver o problema da deficiência da procura global, introduzindo, ainda por cima,
distorções nas estruturas produtivas que se traduzem em desperdício de importantes
recursos (humanos, tecnológicos, materiais e financeiros) do ponto de vista da
satisfação das necessidades básicas da grande massa das pessoas.
Pode aumentar a pressão consumista, usando e abusando dos instrumentos ao
serviço da sociedade de consumo; mas isso também não basta. E leva ao sobre-
endividamento das famílias, com todos os problemas que daí decorrem, incluindo a
impossibilidade de pagar as suas dívidas, o aumento do crédito mal parado, etc…
Historicamente, o capitalismo tem registado níveis relativamente elevados e
estáveis de crescimento económico nos períodos em que, em virtude da correlação de
forças nas lutas sociais, os trabalhadores têm conseguido participar na partilha da
riqueza criada e melhorar o seu poder de compra. O empobrecimento dos trabalhadores
acaba, mais cedo ou mais tarde, por gerar uma crise de sobreprodução, pondo em causa
o processo de reprodução do capital e ‘destruindo’ o capital em excesso (equipamentos,
edifícios, recursos materiais, conhecimento, trabalhadores ‘condenados’ ao desemprego
em massa). Foi o que aconteceu, mais uma vez. Este excesso de aforro sem aplicação
rentável em investimentos na área produtiva é também um dos factores que pode ajudar
432

a explicar a financeirização do sistema e a entrada do grande capital financeiro no


mundo obscuro dos jogos de casino. Estes, como já se disse atrás, fizeram o resto.

4.22. – Perspectivas.
As previsões em Economia nunca são fáceis. Perante a situação actual, talvez
ninguém saiba o que vai acontecer.

4.22.1. - Alguns ultra-liberais de ontem defendem hoje que o estado capitalista


mude de máscara mais uma vez, intervindo na economia para tentar manter tudo na
mesma. Os mais fundamentalistas garantem que o (neo)liberalismo não está em causa:
passada a onda, tudo vai regressar ao paraíso das liberdades do capital. A verdade é que,
apesar de desacreditado no plano teórico, o neoliberalismo não saiu de cena como
ideologia dominante.
433

Os banqueiros e os especuladores que provocaram a crise receberam milhões e


milhões para continuarem a fazer o que sempre fizeram. O grande capital financeiro,
que esteva na origem da crise, parece não ter perdido as suas posições de comando, sob
a protecção do estado garantidor.
Alan Greenspan esquece a sua história de apóstolo do mercado livre e
absolutamente desregulado e admite que “pode vir a ser necessário nacionalizar
temporariamente alguns bancos, de forma a facilitar uma reestruturação rápida e ordeira
(…), permitindo ao Governo transferir os títulos tóxicos para um banco mau [leia-se:
um banco público] sem ter o problema de lhes atribuir um preço”. 642 É a confissão da
mais completa cumplicidade entre o grande capital financeiro e os círculos do poder
político, dando corpo ao que alguém já chamou de “croney capitalism” (capitalismo de
compadrio).
“Este sucedâneo de capitalismo – vaticina o Prémio Nobel Joseph Stiglitz -, no
qual se socializam as perdas e privatizam os lucros, está condenado ao fracasso”. Na
verdade – continua Stiglitz -, a Administração americana “pouco ou nada fez para
ajudar os milhões de americanos que têm vindo a perder a sua casa. Os trabalhadores
que perdem o emprego só têm direito a subsídio durante 39 semanas. Depois, ficam por
sua conta e risco. Mas o mais grave é que, perdendo o emprego, perdem também o
seguro de saúde. (…) Enquanto os ricos e os poderosos pedem ajuda ao governo sempre
que podem, os necessitados praticamente não têm acesso ao sistema de segurança
social”.643Acompanhamo-lo neste voto/previsão. Mas somos obrigados a concluir que o
‘sistema’ continua de pé e que o estado garantidor continua a cumprir a sua função de
garantir a ‘boa vida’ das grandes instituições financeiras, porque elas não podem falir…
À escala europeia, foi também o dinheiro dos contribuintes que salvou as
instituições financeiras do ‘lixo tóxico’ com que se envenenaram graças aos negócios
irresponsáveis e às práticas criminosas a que se dedicaram. Mas nada de essencial
mudou quanto às regras do seu funcionamento. “Sem controlo, elas especulam contra o
euro, agravando o custo da dívida e os défices dos Estados membros, mas garantindo
poder e lucros fabulosos”.644

Apesar dos enormes ganhos da produtividade do trabalho (a uma escala sem


comparação com os séculos anteriores) decorrentes do desenvolvimento científico e
642
Cfr. Finantial Times, 18.2.2009.
643
São observações de J. Stiglitz, colhidas em Diário Económico, 15.6.2009.
644
Cfr. A. Carlos SANTOS, ob. cit.
434

tecnológico e da sua rápida aplicação na esfera da produção, o capitalismo acentuou as


desigualdades e condenou à extrema pobreza milhões de seres humanos, espalhando,
como uma nódoa, a chaga da exclusão social (a “nadificação do outro”, na expressão
terrível do cineasta brasileiro Walter Salles), que é uma vergonha do tempo que
vivemos.
Como se isso não bastasse, a onda da crise está a ser aproveitada para tentar
convencer o mundo de que não é possível manter os ‘privilégios’ do estado-providência,
nomeadamente os sistemas públicos de segurança social e o direito a um sistema
público de saúde e a um sistema público de educação, universais e gratuitos, acentuando
o ‘argumento’ de que os sistemas públicos de segurança social começam a não ser
sustentáveis porque o dinheiro não chega para tudo e porque as pessoas idosas são cada
vez em maior número. Como se os trabalhadores não criassem hoje mais riqueza do que
em qualquer período anterior na história. Como se o aumento da esperança de vida, em
vez de um ganho civilizacional, fosse uma condenação para a humanidade.645
Os ganhos de produtividade têm servido, historicamente, para ajudar a libertar o
homem trabalhador. Nesta nossa sociedade do conhecimento, da ciência e da técnica
não faz sentido que os enormes ganhos da produtividade do trabalho sirvam apenas para
engrossar os lucros do capital e não para melhorar a qualidade de vida das pessoas. É
uma questão de inteligência fazer aumentar os salários mais que os lucros 646 e efectuar
os descontos patronais para a segurança social segundo o volume de negócios (ou a
massa dos lucros) e não segundo o número de trabalhadores empregados.

4.22.2 - Dizem outros: o neoliberalismo morreu. O mundo não poderá continuar


a ser o que foi nas últimas décadas.
Admitem alguns a necessidade de ir às gavetas do velho Keynes em busca de
algumas ferramentas que entretanto enferrujaram por falta de uso. Mas a tónica
dominante continua a ser posta, no quadro europeu, na fidelidade aos dogmas aprovados
645
É arrepiante lermos o que diz Alain Minc (conselheiro do Presidente Sarkozy) sobre o direito
das pessoas idosas a aceder aos cuidados do sistema público de saúde. Relatando o caso do seu próprio
pai, refere que ele esteve internado num serviço de ponta durante quinze dias, tendo gasto cem mil euros
de dinheiros públicos. Escandalizado com este desperdício (para tratar de uma pessoa de 102 anos de
idade), defende que têm de se repensar “as despesas médicas feitas com os muito velhos, indo buscar uma
contribuição ao seu património ou ao dos seus herdeiros”. Quem os manda cometer o crime de viver
muitos anos? Esta história edificante é relatada por Serge Halimi no editorial de Le Monde Diplomatique,
Dezembro/2010.
646
Na França, calcula-se que o valor perdido pelos trabalhadores pelo facto de a parte dos
rendimentos do trabalho no rendimento nacional ter diminuído 9,3% nos últimos 30 anos corresponde a
um montante dez vezes superior ao défice da Segurança Social e vinte vezes superior ao défice do
Sistema de Pensões. Cfr. F. RUFIN, ob. cit.
435

em Maastricht: a plena liberdade de circulação internacional de capitais; o Pacto de


Estabilidade e Crescimento; a independência do Banco Central Europeu; a
impossibilidade absoluta de os Estados membros financiarem as suas políticas mediante
o recurso à emissão de moeda; o regime do (não) auxílio dos estados às empresas
nacionais em dificuldades ou com projectos de expansão de interesse nacional; a
prioridade dada à estabilidade dos preços e a secundarização da promoção do
crescimento económico e do emprego.
Como é sabido, a consolidação do mercado interno, a construção da União
Económica e Monetária e a densificação da União Europeia têm-se traduzido, para os
Estados membros, na perda de soberania (fala-se de soberania partilhada) em alguns
domínios (política monetária e cambial, política financeira, política de concorrência,
política agrícola e de pescas, política comercial, etc.). E esta perda tem sido agravada
pela alienação do sector empresarial do estado, que retira aos estados nacionais
qualquer possibilidade de intervenção directa na economia enquanto titulares de
empresas com presença relevante em sectores estratégicos, com fortes efeitos de
irradiação em outros sectores da economia.
Importa ter presente, porém, que, apesar das perdas de soberania atrás referidas, a
UE não é uma federação, não tem um governo federal e não tem um orçamento federal,
um orçamento com capacidade redistributiva, embora goze, agora, de personalidade
jurídica.647
Isto significa que as competências perdidas pelos estados-membros não são
transferidas para as instituições da União. E como estas não são órgãos de soberania
não dispõem da chamada competência das competências, i.é, não podem atribuir a si
próprias novas competências. Quer dizer: à luz dos Tratados estruturantes da UE,
nenhuma das instituições comunitárias tem a competência para (ou a responsabilidade
de) definir políticas anti-cíclicas, nem existem no orçamento da UE os recursos
necessários para as financiar.
Em caso de crise grave (especialmente nos países mais débeis), não se vê que
políticas (nacionais ou comunitárias) poderão ser mobilizadas para a ultrapassar. No
âmbito das negociações que conduziram à UEM, chegou a ser proposto um esquema
baseado na transferência de verbas do orçamento comunitário para ajudar (sobretudo) os
pequenos países afectados por choques externos (v.g. uma baixa significativa das

O orçamento da União para 2010 não foi além de 1,04% do PIB comunitário. Apesar da crise,
647

em nome da qual se cortaram cerca de 2.500 milhões de euros nas despesas de coesão.
436

exportações) a desencadear políticas destinadas a ultrapassar a crise. Esta solução não


foi adoptada, tendo-se sacrificado a economia real e a solidariedade comunitária aos
equilíbrios financeiros.
Com a criação do euro, vários países adoptaram a moeda única com paridades que
sobrevalorizaram muito as moedas nacionais substituídas pelo euro. Estes países (entre
os quais Portugal) passaram a exportar em moeda forte (tornando mais caros os seus
produtos) e perderam a soberania sobre a política monetária e sobre a política cambial
(ficando impedidos de recorrer à desvalorização da moeda para ocorrer a dificuldades
conjunturais das suas balanças de pagamentos). Resultado: a estes países, quando
afectados por crises graves, só resta acatar a ortodoxia monetarista, que impõe o
sacrifício do crescimento económico, o aumento do desemprego, a privatização das
empresas públicas (ainda por cima a preços vis), a redução do investimento público, o
congelamento (ou a redução) de salários e a anulação dos direitos sociais dos
trabalhadores (o arrocho salarial).

Recordemos: segundo os cânones monetaristas mais radicais, o objectivo


primordial do BCE, responsável pela política monetária única dos países que adoptaram
o euro como moeda é o da estabilidade dos preços, a ele devendo ser sacrificados todos
os outros objectivos de política económica, nomeadamente o crescimento económico, a
luta contra o desemprego e a promoção do pleno emprego, a redistribuição do
rendimento, o desenvolvimento regional equilibrado.
Embora a UE não seja um estado federal, o BCE é uma instância supranacional,
de facto, um verdadeiro banco central federal.
Enquanto o Sistema de Reserva Federal dos EUA (Fed) é uma agência
governamental entre outras, independent within the Government, obrigado a trabalhar
no sentido de adequar a sua acção não só ao objectivo da estabilidade dos preços como
aos objectivos do crescimento económico e da promoção do emprego, o BCE, ao invés,
está impedido de solicitar ou receber instruções das instituições comunitárias ou dos
governos dos estados-membros, cabendo aos bancos centrais nacionais dos países do
euro um protagonismo inferior ao dos bancos centrais dos estados federados da União
americana.
Por outro lado, enquanto os EUA podem financiar as políticas públicas
recorrendo à via monetária, a União Europeia e os Estados membros estão impedidos de
beneficiar de qualquer tipo de crédito concedido pelo BCE, ao qual é igualmente vedado
437

garantir obrigações da União ou dos Estados membros, bem como a compra directa de
títulos de dívida emitidos pela União ou pelos Estados membros.
Mas o BCE pode emprestar (e tem emprestado) dinheiro aos bancos privados,
fornecendo-lhes a liquidez de que precisam para desenvolver os seus negócios a taxas
de juro à volta de 1%, dinheiro que eles agora emprestam à Grécia, a Portugal à Irlanda
e a outros países em dificuldades a taxas que já chegaram a ultrapassar os 7%.

No início de 2010, o Conselho Europeu (que reúne os Chefes de Estado e de


Governo dos países da União) proclamou solenemente que este ano seria ainda um ano
em que a prioridade tinha de ser o combate ao desemprego, a protecção dos que mais
sofrem com a crise e o apoio à recuperação da economia. Toda a gente entendeu que
não poderia ser de outro modo.
Acontece que, uns dois meses depois, o mesmo Conselho Europeu, com a mesma
solenidade, mas agora em tom mais grave, anunciou exactamente o contrário: a
prioridade tem que ser, sem qualquer contemplação, o combate ao défice público e a
redução da dívida externa, o que implica, como se está a ver por toda a Europa, a
adopção de políticas contraccionistas (é o que manda o cânone neoliberal), que vão
acentuar ainda mais a recessão da economia e aumentar o número de desempregados,
condenando a pagar a crise aqueles que mais sofrem com ela.
Porquê esta mudança? Porque os especuladores (os tais que são – Jacques Chirac
dixit - a sida da economia mundial) lançaram um forte e concertado ataque especulativo
contra o euro, escolhendo como alvo a Grécia, a Irlanda, Portugal e a Espanha.
As agências privadas de rating americanas vieram anunciar que aumentara o risco
de estes países não pagarem atempadamente as suas dívidas (a dívida soberana e as
dívidas privadas, dos bancos e das empresas não financeiras) aos credores
internacionais.648 “Os mercados” – diz-se - ficaram nervosos e reagiram elevando os
juros que cobram aos países visados (estados e empresas).649
648
Estas agências prestam serviços a quem lhos paga, porque elas vivem desse negócio. Por isso
mesmo, vários autores têm sugerido que as agências de rating (em vez de serem todas privadas e todas
americanas, ao menos as que dão cartas no ‘casino’) passem a ser empresas públicas (nacionais) ou que a
sua função seja desempenhada por agências internacionais. Tem-se falado da criação de uma agência
europeia de rating. Alguns propõem mesmo que esta actividade seja vedada a empresas privadas. Nada
mudou, porém.
649
No caso da Grécia, “os mercados” (i. é, os credores internacionais) são, em cerca de 80%, os
grandes bancos franceses, holandeses e alemães. No caso – menos recente – da Islândia, “os mercados”
eram sobretudo bancos ingleses e holandeses, que conseguiram convencer o Governo daquele país a
adoptar um rigoroso plano de austeridade. Mas tal plano (que previa o pagamento de 2,5 milhões de euros
ao RU e 1,3 milhões de euros à Holanda) foi submetido a referendo (Março/2010), e, por esmagadora
maioria (93% dos eleitores), tal plano foi ‘chumbado’, porque o povo islandês se recusou a pagar uma
438

A situação é preocupante: para este efeito, a soberania dos estados (a política


soberana) deixou de contar, e a da UE nem existe. Quem manda neste mundo da
globalização neoliberal são as agências de rating privadas (e americanas) e “os
mercados” (i. é, os especuladores).

Diz-se que a dívida externa grega anda à roda dos 130% do PIB. Mas ninguém
fala do Japão, cuja dívida soberana ronda os 200% do PIB. Com uma diferença: é que
os credores da dívida soberana do Japão são, em mais de 90%, os próprios japoneses. O
Japão está, por isso, em condições de resolver politicamente os problemas da sua dívida
soberana. O mesmo acontece, em boa medida, na Europa, com a Alemanha e a Itália.
Na generalidade dos países, porém, os meios ao dispor da sociedade de consumo
conduziram à quase anulação da poupança privada e até ao sobre-endividamento das
famílias. Os próprios estados retiraram todos os atractivos aos instrumentos de
poupança ao alcance das pequenas bolsas (lembre-se o que se passou entre nós com os
certificados de aforro) e desistiram de desenvolver políticas sérias de estímulo à
poupança.
Acresce que as receitas neoliberais, nomeadamente a que se traduz na
independência dos bancos centrais, retiraram aos estados a possibilidade de se
financiarem através da emissão de moeda (de empréstimos concedidos pelos bancos
centrais respectivos).
As grandes empresas, em vez de fazerem poupanças com vista ao auto-
financiamento, pagam honorários faraónicos aos seus administradores e distribuem
dividendos não menos faraónicos aos seus accionistas, dinheiro que vai para os paraísos
fiscais ou é ‘investido’ nos jogos de bolsa. Em muitos países (incluindo Portugal), as
bolsas de valores não têm nada que ver com o financiamento das empresas (através da
emissão de acções ou obrigações no mercado primário), funcionando como meros
casinos para gente com muito dinheiro.
Muitos bancos, sociedades gestoras de fundos de pensões, companhias de seguros
e outras instituições financeiras utilizam muitos dos fundos que administram (incluindo
os depósitos que recebem, quando é o caso), não para financiar o investimento
produtivo, mas apostar nos jogos de casino, em operações especulativas, na aquisição de
‘produtos estruturados’ que nem eles sabem muito bem o que seja.650
dívida de jogo contraída pela banca privada, com a cooperação dos actuais credores.
650
Para evitar que tal aconteça, alguns especialistas têm vindo a advogar a vantagem de instituir
de novo (como se fez nos EUA na sequência do crash da bolsa de 1929) a separação rigorosa entre
439

Resultado: famílias, empresas, estados, estão todos nas mãos dos ‘mercados’, i. é,
do capital financeiro.

A sensação que fica é que, salvaguardado o respeito devido aos dogmas


plasmados nos seus Tratados estruturantes, a UE continua sem saber bem o que é e sem
saber o que quer ser: navega à vista e responde obedientemente às orientações das
agências americanas de rating e aos sinais dos “mercados”.
Como já dissemos, depois da crise do peso mexicano (1995), vários responsáveis
do topo do mundo capitalista vieram dizer que os especuladores (i. é, os mercados,
porque “os mercados” e os especuladores são uma e a mesma coisa) são “a sida da
economia mundial” (Jacques Chirac), pelo que não se pode permitir que eles “minem a
política económica de todo um país” (Lamberto Dini, Primeiro Ministro italiano), que
eles continuem “fora de qualquer controlo dos governos e das instituições
internacionais” (John Major, Primeiro Ministro britânico). Ora “o mundo está nas mãos
destes tipos”, como admitiu então o Director-Geral do FMI. Ontem como hoje. Porque
nada tem sido feito para pôr termo a esta situação.
E, no entanto, parece óbvia a necessidade de acabar com este estado de coisas.
Tal como os estados nacionais, a União Europeia não pode ser dominada pelos bancos,
tem que ser ela a dominar os bancos (a começar pelo BCE). “Os Estados – escreveu
recentemente o professor americano James Galbraith 651
- não podem permitir-se perder
o combate que os opõe aos mercados financeiros: a sobrevivência de um sistema mais
ou menos civilizado depende disso”. Se Keynes não tivesse sido ‘morto’, ele diria o
mesmo, para salvar o capitalismo e permitir que este possa coexistir com as regras do
jogo democrático: é necessário que as decisões que cabem às instâncias políticas
democraticamente legitimadas não possam ser substituídas pelos “mercados”; é
necessário impedir que o mercado substitua a política; é necessário libertar a política
dos dogmas neoliberais, que tudo subordinam ao mercado. Dentro da lógica capitalista,
a solução só pode ser a de deitar fora os dogmas neoliberais e as políticas que neles se

bancos comerciais e bancos de investimento, para impedir que estes últimos recebam depósitos que vão
depois utilizar na especulação, invocando depois os interesses dos depositantes (que eles desprezaram)
para justificar a intervenção salvadora do estado, ‘socializando’ as dívidas contraídas no ‘jogo’. As
mesmas preocupações ditam a sugestão de outros autores no sentido de separar claramente a função
bancária da função seguradora, impedindo os bancos de exercer actividades próprias das empresas
seguradoras. Mas não há sinais de que os políticos estejam a pensar nestas coisas. A liberdade de
circulação de capitais parece ser o valor supremo a acautelar.
651
Cfr. James K. GALBRAITH, ob cit.
440

inspiram, não a de acrescentar mais neoliberalismo ao neoliberalismo, como está a


acontecer.652

4.22.3. - Ainda ninguém conseguiu demonstrar ser verdade a existência de uma


relação positiva entre a flexibilização da legislação laboral e os baixos salários, por um
lado, e o aumento da ‘competitividade’ ou a redução do desemprego, por outro lado. A
vida nega todos os dias esta pretensa relação, que não passa de uma criação da ideologia
dominante. Os neoliberais teimam em esquecer o que Keynes (depois de Marx) deixou
claro: os salários sobem quando o desemprego diminui e diminuem quando o
desemprego aumenta, e não o contrário. O desemprego não diminui quando os salários
baixam nem aumenta quando os salários sobem, porque o nível do emprego (e o nível
dos salários) depende de um factor externo ao mercado de trabalho: a procura efectiva.
Mas as agências internacionais (FMI, OCDE) insistem na tese de que a salvação
está na maior facilidade dos despedimentos, na redução dos direitos decorrentes do
sistema público de segurança social, no corte das despesas sociais, na baixa dos salários,
no aumento dos impostos que afectam, de modo regressivo, os titulares de rendimentos
mais baixos. Em contrapartida, não se fala dos paraísos fiscais nem se tributam os
milhares de milhões de euros que para lá se transferem; a banca continua a pagar menos
IRC do que as mercearias de bairro; não se anulam ou reduzem os benefícios fiscais;
não se pede nenhum sacrifício relevante, em termos de IRC e de IRS, às empresas com
lucros muito avultados e às pessoas que auferem rendimentos muito elevados ou são
titulares de grandes fortunas; não se tributam as operações realizadas na bolsa e vai-se
adiando a tributação a sério das mais-valias bolsistas e de outras mais-valias.
Os sacrifícios impostos aos trabalhadores e aos mais desfavorecidos, se medidos
em termos do PIB, são, sem dúvida, muito mais pesados do que a contribuição
timidamente requerida aos que recebem rendimentos elevados e aos titulares de
rendimentos do capital (o sector bancário, esse, continua intocável nos seus privilégios).
De alguns sectores ideologicamente à esquerda vem surgindo de quando em vez
a defesa da nacionalização da banca e dos seguros. Com o seguinte fundamento:

652
“Alguém poderá duvidar de que a arquitectura neoliberal da Europa está em vias de entrar em
colapso? A alternativa é simples: radicalidade desastrosa do rigor orçamental [imposta pelo TUE e pelo
PEC] ou radicalidade construtiva do pleno emprego. Radicalidade bancária ou radicalidade social” (James
K. GALBRAITH, ob. cit.).
441

- se a saúde do sistema financeiro, nomeadamente do sistema bancário, é


essencial à saúde da economia e à salvaguarda da coesão social e, no limite, à defesa da
soberania nacional (evitando a bancarrota do estado);
- se, por isso mesmo, quando os banqueiros levam os bancos à falência porque
comprometeram na especulação as poupanças que a comunidade lhes confia, o estado é
chamado a investir milhares de milhões de euros;
- se, como alguns autores defendem, a estabilidade do sistema financeiro é um
bem público;
Se isto é verdade,
- então a única conclusão lógica é a de que deve caber ao estado a propriedade e
a gestão do sistema financeiro, a gestão da poupança nacional, a definição das
prioridades do investimento a realizar com ela, a responsabilidade pela ‘produção’
daquele bem público, chamando a si o controlo dos operadores financeiros, para acabar
com os ‘jogos de casino’ e garantir que estes actuam tendo apenas em vista o interesse
público.
Não tem tido grande eco esta argumentação, apesar do coro de críticas que, por
todo o mundo, se ouviram contra o comportamento imoral, irresponsável e até
criminoso de muitos responsáveis pela administração de grandes bancos, companhias de
seguros, sociedades gestoras de fundos de pensões e outras instituições financeiras, por
muitos considerados os principais responsáveis pela actual crise mundial.

4.22.4. - O que resta do estado-providência ajudará a compreender que, apesar


deste quadro, a Europa vá sobrevivendo, até hoje, sem graves convulsões sociais,
embora, “pela primeira vez na história recente da Europa, exista um temor generalizado
de que as crianças de hoje terão uma situação menos confortável do que a geração dos
seus pais”.653
Entretanto, talvez comecem a divisar-se algumas brechas na fortaleza do
capitalismo globalizado. “Os que protestam contra a globalização - escrevia The
Economist, de 23.9.2000 - têm razão quando dizem que a questão moral, política e
económica mais urgente do nosso tempo é a pobreza do Terceiro Mundo. E têm razão
quando dizem que a onda de globalização, por muito potentes que sejam os seus

653
Esta é uma das conclusões do Grupo de Reflexão constituído no âmbito do Conselho Europeu e
presidido por Felipe González (Diário Económico, 10.5.2020, 3).
442

motores, pode ser travada. É o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que torna os
que protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos”.

Pois bem. Em Maio de 1997 reuniu em Belo Horizonte a Aliança Social


Continental (englobando estruturas várias e organizações sindicais, incluindo a
americana AFL-CIO), contra a Zona de Comércio Livre das Américas e o
livrecambismo fundamentalista da ordem mundial globalizada. Com o objectivo de
construir alternativas viáveis e concretas à ALCA, foi aprovado um programa chamado
Alternativa para as Américas. Para um Acordo entre os Povos do Continente. O seu
princípio basilar é o de que “o comércio e o investimento não devem constituir fins em
si mesmos, mas sim meios susceptíveis de nos conduzir a um desenvolvimento justo e
duradouro”. Neste sentido, “ é essencial que os cidadãos e as cidadãs exerçam o seu
direito de participação na formulação, na aplicação e na avaliação das políticas sociais e
económicas do continente”, (…), cujos objectivos centrais “devem ser a promoção da
soberania económica, o bem-estar colectivo e a redução das desigualdades a todos os
níveis”.

É importante a observação de que o comércio não deve constituir um fim em si


mesmo, porque o comércio não é a estrada real para o desenvolvimento, e o
livrecambismo tem sido, historicamente, uma arma ao serviço das potências
hegemónicas. O comércio mundial e a liberdade de comércio devem ser um instrumento
ao serviço do desenvolvimento. Era esta a orientação da Conferência das Nações
Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCED), criada em meados dos anos
60 do século XX na sequência de uma proposta da URSS, apoiada pelo Grupo dos Não-
Alinhados. Ao invés, o objectivo da OMC (talvez não por acaso só viabilizada após o
colapso da URSS e da comunidade socialista europeia) é o de afirmar a liberdade de
comércio como valor absoluto (ou lei suprema), transformando tudo em mercadorias
transaccionáveis segundo as leis do ‘mercado livre’. Uma liberdade que aproveita
sobretudo aos países capitalistas dominantes, que representam mais de 70% do
comércio mundial, e, sobretudo, aos grandes conglomerados transnacionais, que
respondem por 60% das exportações de bens e serviços que são objecto desse comércio.

Outro ponto alto desta luta para enfrentar a globalização neoliberal e para
construir alternativas viáveis tem sido o Forum Social Mundial, nascido também no
Brasil. Uma das mais importantes reuniões deste Forum teve lugar em Porto Alegre
443

(25-30 de Janeiro de 2001), em contraponto a mais um dos famosos encontros de


Davos.

Com base em elementos elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), o Forum analisou esta onda de globalização que tem
acentuado dramaticamente a desigualdade, a miséria e a exclusão social e tem
transformado a própria vida numa mercadoria como qualquer outra. E apontou
alternativas às receitas liberais e globalizadoras.

O Forum afirmou o direito dos povos a organizarem-se livremente em vastas


comunidades de nações solidárias, com o objectivo de evitar o domínio dos mais
poderosos sobre os mais fracos; o direito de se protegerem por meio de barreiras de
preferências comunitárias; o direito de controlarem os movimentos de capitais
especulativos, que arruinam as actividades produtivas e mergulham as populações na
incerteza, na crise e na miséria.

O Forum defendeu o direito dos povos à protecção das suas actividades vitais; o
direito à livre escolha do modo de valorizar o seu território e os seus recursos; o direito
a promover e a preservar a sua auto-suficiência alimentar.

O Forum rejeitou a lógica globalizadora que reduz à dimensão de simples


mercadorias os valores sociais, as culturas e todos os valores que constituem a essência
da identidade dos povos.

4.22.5. – Se não erramos, por aqui hão-de passar os caminhos do futuro.


Amartya Sen tem inteira razão quando defende que o facto de haver pessoas que passam
fome - e que morrem de fome... - só pode explicar-se pela falta de direitos e não pela
falta de bens. O problema fundamental que se nos coloca não é, pois, o da escassez
(dado fundamental e incontornável da vida segundo a teoria marginalista), mas o da
organização da sociedade.

Comentando este ponto de vista de Sen, pergunta Ralf Dahrendorf: “Porque é


que os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmente
para si aquilo em que supostamente não devem tocar mas que está ao seu alcance?
Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes que o ser ou não ser?”
Acompanhando Amartya Sen, poderemos dizer que a resposta está na falta de direitos.
Ou na falta de poder. Talvez seja este o problema decisivo, não o problema da escassez.
444

Ao equacionar esta problemática, é natural a pergunta de Dahrendorf: “o que


seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém
tivesse fome?” Esta é uma pergunta que a ciência económica dominante não faz, porque
não se consente analisar as consequências de uma mudança de ordem social. Mas a
própria pergunta parece encerrar a ideia de que é necessário modificar as estruturas de
direitos (i.é, as estruturas do poder), sendo certo que também o poder, as relações de
poder e as estruturas do poder estão fora da análise da mainstream economics.

Neste nosso tempo de profundas contradições (tempo de grande esperança e de


grande desespero), o desenvolvimento da produtividade resultante do progresso
científico e tecnológico permite que a humanidade produza mais do que o necessário
para satisfazer condignamente as necessidades de todos e que haja mais tempo para as
actividades libertadoras do homem, em vez de o afectar a produzir cada vez mais bens
para ganhar cada vez mais dinheiro para comprar cada vez mais bens. Por isso, a
ciência económica não pode continuar a adiar a busca de um outro padrão de
racionalidade. A ciência económica tem de assumir-se de novo como economia
política, como um ramo da filosofia social, porque “a economia contemporânea tem
mais necessidade de filósofos do que de econometristas” (Ch. Stoffaës).

Mas há uma outra face da história que importa ter em conta. Porque também é
verdade que, após o advento do capitalismo, o trabalho dos homens provocou um
enorme desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, um extraordinário
desenvolvimento do próprio homem, enquanto produtor, titular, depositário e utilizador
de ciência, de tecnologia, de informação, de conhecimento, o que faz do homem (e não
do capital) o principal (estratégico) factor de produção. Este desenvolvimento das
capacidades produtivas tem libertado o homem trabalhador do seu fardo milenar de
besta de carga; tem proporcionado ao homem trabalhador condições de trabalho mais
dignas; tem aumentado a produtividade do trabalho para níveis até há pouco
insuspeitados; tem permitido significativa redução da jornada de trabalho.

Hoje sabemos que o conhecido aumento do número de famintos não apaga a


consciência que temos de que a capacidade de produzir alimentos - e mesmo a produção
efectiva de alimentos - é superior às necessidades da humanidade. A vida mostra que o
homem não deixou de ser o lobo do homem, mas temos razões para acreditar que
podemos viver num mundo de cooperação e de solidariedade, num mundo capaz de
responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes do
445

planeta. Um dia destes, talvez saibamos construir uma alternativa ao caos suicidário a
que nos querem condenar.

A crítica da globalização não pode, pois, confundir-se com a defesa do regresso a


um qualquer ‘paraíso perdido’, negador da ciência e do progresso. Os adversários da
globalização predadora que marca o nosso tempo só podem apoiar a revolução científica
e tecnológica. Não podem confundi-la com a globalização nem ver nesta o resultado
inevitável daquela. Seria indesculpável que cometêssemos hoje o erro dos primeiros
operários da revolução industrial inglesa, que destruíram e sabotaram as máquinas por
verem nelas o seu inimigo. O que está mal na globalização actual é o neoliberalismo que
a alimenta, a estrutura dos poderes em que ela se apoia, os interesses que serve, não a
revolução científica e tecnológica que torna possíveis alguns dos instrumentos da
‘política neoliberal globalizadora’.

E o neoliberalismo não é um fruto exótico que nasceu nos terrenos do capitalismo,


nem é o produto inventado por uns quantos ‘filósofos’ que não têm mais nada em que
pensar. O neoliberalismo é o reencontro do capitalismo consigo mesmo, depois de
limpar os cremes das máscaras que foi construindo para se disfarçar. O neoliberalismo é
o capitalismo puro e duro do século XVIII, mais uma vez convencido da sua eternidade.
A globalização neoliberal tem de ser entendida, pois, como um projecto político levado
a cabo de forma consciente e sistemática pelos grandes senhores do mundo, apoiados,
com nunca antes na história, pelo poderoso arsenal dos aparelhos produtores e difusores
da ideologia dominante, responsáveis pelo totalitarismo do pensamento único.

A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança


no homem e nas suas capacidades. Tem que partir da rejeição da lógica de uma qualquer
inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a política
neoliberal dominante, uma das marcas incontornáveis desta civilização fim da história.
Para isso, é necessário que o mercado não substitua a política, é necessário que o estado
democrático não ceda o lugar a um qualquer estado tecnocrático.

E é fundamental não esquecer a lição de António Gedeão no belíssimo poema


cantado por Manuel Freire. O sonho “é tela, é cor, é pincel, base, fuste ou capitel, arco
em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia (…),
florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e arlequim” – tudo criações
do homem. Mas é também “retorta de alquimista, rosa dos ventos, infante, caravela
quinhentista, é cabo da Boa Esperança (…), passarola voadora, pára-raios, locomotiva,
446

barco de proa festiva, alto forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão na superfície lunar”. Este é sonho alimentado pelo
desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Este é o sonho que comanda
a vida, porque sempre que os homens sonham um sonho assim “o mundo pula e
avança”.

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456

ÍNDICE
INTRODUÇÃO
Pág.

1. - A teoria dos sistemas económicos………………………………. .. 5


2. - As soluções…………………………………………………………...6
2.1 . – A teoria dos estádios económicos…………….………………… 6
2.2. – A teoria dos modos de produção………………… . ………………. 8
2.2.1. - A concepção de Marx…………………………… 9
2.2.2. - A concepção de Sombart. ………………………………………… 16
2.3. – A teoria dos tipos de cooordenação 18
3. – A preciação crítica 19

CAPÍTULO I

DO COMUNISMO PRIMITIVO AO CAPITALISMO

1. – O comunismo primitivo 33
2. – O esclavagismo 39
3. – O feudalismo 45
3.1. – Caracterização geral 45
457

3. 2. A desagregação da sociedade feudal 51


3.2.1. – Enunciado do problema 51
3.2.2.- Produção para uso/produção para a troca 53
3.2.3. - As contradições internas: a fuga dos servos 55
3.2.4. - Os factores externos: a expansão do comércio e o desenvolvimento
das cidades 57
3.2.5. - Síntese 61

4. – A transição para o capitalismo 65


4.1. - A acumulação primitiva do capital 65
4.1.1. – A acumulação do capital 67
● As Cruzadas 67
● O capital usurário e a especulação 67
● As viagens atlânticas de portugueses e espanhóis. O capital mercantil.
O comércio mundial. A primeira onda de globalização 68
● A exploração colonial e a ‘revolução dos preços’ 70
4.1.2. – A proletarização dos camponeses pobres: as enclosures
e a ‘revolução agrícola’ 72
4.1.3. – A proletarização dos trabalhadores da indústria: da indústria
artesana à indústria capitalista 78
● A indústria artesana 78
● A indústria assalariada do domilílio 79
● As manufacturas 82
4.1.4. - Síntese 87
4.2. – A Reforma 88
4.3. – A formação dos estados modernos na Europa 92
4.4. – A ‘Revolução Inglesa’ 93
4.5. – A ‘Revolução Industrial’ 99
4.6. – A ‘Revolução Francesa’ 131
4.6.1. - O seu carácter exemplar como revolução burguesa 131
4.6.2. - A nova ordem burguesa 137
4.6.3. - Os sans-culottes e o jacobinismo. A Constituição de 1793 150
4.6.4. - O Directório. Babeuf e “Conspiração dos Iguais” 157
4.6.5. - Do 18 Brumário aos movimentos revolucionários
da década de 1830 160
4.6.6. - A industrialização e a situação social na França
na véspera de 1848 163
4.6.7. - A Revolução de 1848 169
4.6.8. - Os anos posteriores à derrota dos revolucionários de 1848 172
4.6.9. - A Associação Internacional dos Trabalhadores 175
4.6.10. - A Comuna de Paris 177

CAPÍTULO I I

DO CAPITALISMO DE CONCORRÊNCIA AO
CAPITALISMO MONOPOLISTA DE ESTADO

1. – Apresentação 183
458

2. – O capitalismo de concorrência 185


2.1. - A economia, esfera de acção exclusiva dos particulares 185
2.2. – O estado enquanto pura instância política, separada da economia 187
2.3. - O estado de direito liberal 189
3. – O capitalismo monopolista 193
3.1. – A concentração capitalista. 194
3.2. – A emergência do imperialismo: a corrida às colónias e a
exportação de capitais privados. A segunda onda de globalização 200
4. – O capitalismo monopolista de estado 213
4.1. – A Primeira Guerra Mundial e suas consequências 215
4.2. – A Revolução de Outubro e suas sequelas 221
4.3. – A emergência do estado social 225
4.4. – O compromisso político da Constituição de Weimar 231
4.5. – A situação em outros países da Europa 235
4.6. – A década de 1920 239
4.7. – A Grande Depressão. O New Deal 243
4.8 . – O nazi-fascismo e a solução corporativa 251
4.9. – A Segunda Guerra Mundial. O capitalismo contemporâneo 257
4.9.1. – A Guerra e as suas consequências imediatas 257
4.9.2. – O Plano Marshall e a “ajuda ligada” 259
4.9.3. – A nova geografia política do mundo 261
4.9.4. – A vitória do livrecambismo 267
4.9.5. - Novos aspectos da concentração capitalista 268
4.9.6. – As nacionalizações. Significado do sector público empresarial 272
4.9.7. – A planificação pública da economia nos países capitalistas 277
● A ‘planificação’ ao nível das grandes empresas privadas 277
● Os primórdios da planificação pública 280
● O significado da planificação indicativa 284
● Planificação indicativa e planificação imperativa 288
● O significado do mercado em economias‘planificadas’ 295
4.10. – A ‘revolução keynesiana’. O estado providência 301
4.11. - Os “trinta anos gloriosos” 311
4.12. – A teoria da convergência dos sistemas 315
4.13. – A contra-revolução monetarista 343
4.13.1. – A noção de desemprego voluntário 344
4.13.2. – O ataque ao movimento sindical 349
4.13.3. –A liquidação do sistema público de segurança social 351
4.13.4. – Da neutralidade da política económica à“morte da
política económica” 354
4.14.- Os processos de integração económica regional 357
4.15. – A construção europeia: a Europa neoliberal 361
4.16. – As privatizações. O estado regulador 377
4.17. – Do estado regulador ao estado garantidor 387
4.18. – Uma nota sobre a globalização 397
4.18.1. - Ideia geral 397
4.18.2. – A liberdade de circulação de capitais 401
4.18.3. – A‘financeirização’ da economia 402
4.19. – As crises recorrentes nas últimas décadas 407
4.20. – O florescimento do capitalismo de casino 415
4.21. - A natureza da crise actual do capitalismo 419
4.22. – Perspectivas 429
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 443
459

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