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A. J. AVELÃS NUNES
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra
OS SISTEMAS ECONÓMICOS
GÉNESE E EVOLUÇÃO DO CAPITALISMO
COIMBRA – 2011
2
3
INTRODUÇÃO
4
5
A vida dos homens em sociedade e a sua organização com vista à satisfação das
necessidades materiais tem apresentado características diversas ao longo da sua
evolução histórica, correspondendo a cada período e a cada lugar um certo sistema de
organização económica e social.
Na verdade, toda a economia é um sistema, no sentido em que toda a economia é
um conjunto de elementos (pessoais e materiais), de processos e relações (de produção,
de distribuição, v.g.) interligados de acordo com um princípio orientador, um princípio
de unidade, que assegura uma certa coerência e estabilidade à estrutura constituída por
aqueles elementos, processos e relações económicas.
Mas a expressão sistema económico ganhou originariamente estatuto científico
na acepção de tipo de economia, capaz de integrar uma multiplicidade de economias
concretas, distintas de outros conjuntos históricos por determinadas características
fundamentais. Na verdade, a ideia de sistema económico liga-se à distinta realidade das
economias historicamente concretizadas.
Diferente é o conceito de forma económica, que se refere aos vários modos
(tipificados) de manifestação de um determinado sistema, modos que se distinguem
segundo critérios como o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a forma e a
dimensão das unidades de produção, a organização dos sujeitos económicos, o modo de
coordenação da economia, etc.
Particularmente importante é o modo de coordenação: em função dele que
costumam distinguir-se as várias formas históricas do capitalismo: capitalismo de
concorrência, capitalismo monopolista, capitalismo monopolista de estado.
O conceito de forma económica não existe independentemente do conceito de
sistema económico, porque a forma económica é sempre a forma de um determinado
sistema. O conceito de forma económica é, pois, uma qualificação do conceito de
sistema económico, sendo certo também que nenhum sistema económico existe em si
mesmo: qualquer sistema económico apresenta-se sempre, historicamente, sob
determinada(s) forma(s). Como escreve Vital Moreira, “os sistemas económicos e as
6
formas económicas não existem. O que existe são as economias concretas que os
‘efectivam’ (:’revelam’)”. 1
Na prática, nenhuma economia concreta se apresenta como a realização de um
único sistema económico ou de uma única forma económica. Cada economia
corresponde, ao invés, a uma determinada combinação de vários sistemas, um dos quais
emerge como sistema dominante, imprimindo carácter àquela economia, moldando a
sua estrutura ordenadora, definindo-a como ordem económica.
Pois bem. A questão que se põe à teoria dos sistemas económicos reside
exactamente em identificar o tecido estrutural de cada economia em concreto, o
princípio de ordem que há-de permitir dar uma resposta adequada a três interrogações
fundamentais:
1) como se processa, em cada situação histórica concreta, a direcção e o
funcionamento da economia?
2) qual o critério que preside à distribuição do produto social?
3) qual o elemento dinamizador do desenvolvimento, i. é, qual o princípio que
explica a (e dá sentido à) sucessão dos sistemas que a história regista?
Esta problemática foi ignorada pela chamada Escola Clássica Inglesa, cujos
autores concebiam a ordem económica como um mecanismo comandado por leis
naturais de validade absoluta e universal (em tudo idênticas às leis da Física) e viam na
ordem capitalista não uma fase transitória na marcha da humanidade, mas a forma
absoluta e definitiva da actividade económica e da organização social (o fim da
história).
Contra esta concepção reagiu a Escola Histórica Alemã (teoria dos estádios de
desenvolvimento) e Karl Marx (materialismo histórico e teoria dos modos de
produção). A teoria dos sistemas económicos surge, pois, como reacção contra a
postura universalista a-histórica da Escola Clássica, à qual se contrapôs uma visão
evolucionista e historicista.
2. – As soluções
1
Sobre esta problemática, ver V. MOREIRA, A Ordem Jurídica…, cit., especialmente, 17-35 e
Economia e Constituição, cit., 46-49.
2
Ver TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., e V. MOREIRA, Economia e Constituição, cit.
7
3
É frequente distinguir-se a Primeira Escola Histórica da Jovem Escola Histórica, apontando
como fundadores e expoentes da 1ª Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrandt e Karl Knies, e destacando
entre os autores da 2ª Gustav Schmoller, A. Wagner, L. Brentano, Karl Bücher, Max Weber e Werner
Sombart.
4
As teses evolucionistas dos primeiros históricos parecem ter renascido com a obra de Colin
CLARK (The Conditions of Economic Progress, 1ª ed. 1940). Segundo este autor, o progresso económico,
nos países capitalistas como nos socialistas, caracterizar-se-ia por uma deslocação progressiva da
população activa do sector da agricultura para o sector da indústria e deste para o dos serviços. Esta tese
tem servido para justificar a conclusão de que o que distingue as economias dos vários países é o facto de
se encontrarem em uma ou outra fase deste processo evolutivo que, a partir de um primeiro estádio de
predomínio da agricultura, encaminharia os países para a situação de economias terciárias.
A concepção evolucionista transparece também no livro de Walter Whitman ROSTOW, The
Stages of Economic Growth - A Non Communist Manifesto, Cambridge, Mass., 1960 (editado no Brasil
pela Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1966 – Etapas do Desenvolvimento Econômico (Um manifesto não-
comunista). Defende o autor que é possível distinguir no processo de evolução económica e social, por
que teriam de passar todas as sociedades, cinco etapas distintas: a sociedade tradicional, as condições
prévias para arranque, o arranque (take off), o progresso para a maturidade, a era do consumo de massa.
Em tais termos se concebe este processo, que a situação dos chamados países subdesenvolvidos,
entendida como mero atraso no percurso das várias etapas assinaladas, só seria susceptível de vencer-se
fazendo percorrer aos ‘países atrasados’ as etapas que lhes falta percorrer, daquelas por que passaram os
países capitalistas desenvolvidos.
8
c) Para Karl Bücher, por sua vez, critério distintivo das várias fases da evolução
histórica seria o âmbito territorial dentro do qual se circunscreve a actividade
económica. Nas palavras de Bücher, o critério essencial é “a relação existente entre
produção e consumo dos bens ou, para ser mais exacto, a extensão do caminho que os
bens percorrem, na passagem do produtor ao consumidor”.5
De acordo com este critério, a humanidade passaria por três fases na sua
evolução: a economia doméstica (reduzida, sucessivamente, à família, à tribo, ao
domínio senhorial e feudal - confinada a um âmbito territorial bastante restrito); a
economia urbana (centrada na actividade artesanal das cidades, que entravam em
relações de troca com as populações agrícolas vizinhas); a economia nacional
(resultante do desenvolvimento das relações de troca entre os vários núcleos urbanos).
Gustav Schmöller acrescentou às anteriores a fase da economia mundial, que
corresponderia a um novo período de relações económicas estabelecidas entre as várias
comunidades nacionais.
A teoria dos sistemas económicos enquanto teoria dos modos de produção foi
enunciada em primeiro lugar por Karl Marx, influenciando depois, em alguma medida,
os trabalhos de Werner Sombart e de Mex Weber, em especial o primeiro. Segundo esta
concepção, a estrutura fundamental de cada sistema económico assenta nas relações
sociais de produção, i.é, nas relações que entre si desenvolvem as várias categorias de
agentes económicos, podendo definir-se estas relações, no plano jurídico, pela relação
(de apropriação ou de separação) que se estabelece entre os trabalhadores e os meios de
produção.
Em termos muito genéricos, poderemos ilustrar a afirmação anterior
distinguindo estas três situações:
1) se os produtores directos são eles próprios, simultaneamente, proprietários
dos meios de produção, estamos perante um sistema de produção de mercadorias
5
Apud M. DOBB, A Evolução…, cit., 17.
9
“O meu método dialéctico não só difere na base do método hegeliano, mas é-lhe mesmo
exactamente oposto. Para Hegel o movimento do pensamento, que ele personifica sob o nome
de Ideia, é o demiurgo da realidade, a qual não é mais que a forma fenomenal da Ideia. Para
mim, ao contrário, o movimento do pensamento não é senão o reflexo do movimento real,
transportado e transposto para o cérebro do homem”.
prestes a desagregar-se, para dar lugar a um outro sistema económico. É esta uma das
leis fundamentais da teoria económica marxista, que à frente enunciaremos: a lei da
necessária correspondência entre a natureza das relações de produção e o carácter das
forças produtivas.
6
Depois dos moinhos de vento vem a roda hidráulica (que marcou o início da industrialização),
as máquinas a vapor (primeiro consumindo lenha, depois carvão de coque), o petróleo, a energia eléctrica,
a energia nuclear.
11
7
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 98/99.
12
“Em cada época histórica, os modos de produção e de troca – e a estrutura social que daí
deriva necessariamente – são os fundamentos sobre os quais se constrói a história política e
intelectual da época, que encontra neles a chave da sua explicação; consequentemente, toda a
história da humanidade (desde o desaparecimento da organização primitiva com a propriedade
comum do solo e da terra) é a história da luta de classes, luta entre os exploradores e os
explorados, as classes dominantes e as classes oprimidas; a história desta luta de classes
constitui um processo no decurso do qual se atingiu actualmente o momento em que a classe
explorada e oprimida (o proletariado) não pode libertar-se do jugo da classe exploradora e
dominante (a burguesia) sem libertar ao mesmo tempo e definitivamente toda a sociedade de
toda a exploração, de toda a opressão, de todas as diferenças de classes e de todas as lutas de
classes”.
Nesta mistura química da história com a teoria económica Marx rejeita o carácter
natural e a-histórico das categorias económicas e das leis da Economia Política
clássica, pondo em evidência o seu carácter de categorias históricas e de leis históricas,
que só ganham significado em relação a um determinado sistema económico e social,
historicamente localizado.
Nas palavras do próprio Marx, “o que caracteriza a economia política burguesa é
que ela vê na ordem capitalista não uma fase transitória do processo histórico, mas a
forma absoluta e definitiva da produção social”. Ora, para Marx, “as categorias da
economia burguesa são formas do intelecto que têm uma verdade objectiva enquanto
reflectem relações sociais reais, mas estas relações são próprias daquela época histórica
determinada em que a produção de mercadorias é o modo de produção social. Se, por
8
Cfr. Capitalism…, cit, 44.
13
“O resultado geral que se me ofereceu e que, uma vez ganho, serviu de fio condutor aos
meus estudos, pode ser formulado assim, sucintamente: na produção social da sua vida, os
homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações
de produção que correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura económica da
sociedade, a base concreta sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material
é que condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina a sua
consciência. Numa certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas
uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham
movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, estas relações
transformam-se em grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a
transformação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a
imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem de se distinguir sempre
entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o qual é verificável
rigorosamente como nas ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em suma, ideológicas, em que os homens ganham consciência deste conflito e o
resolvem. Do mesmo modo que não se julga o que um indivíduo é pelo que ele imagina de si
próprio, tão-pouco se pode julgar uma tal época de revolucionamento a partir da sua
consciência, mas se tem, isso sim, de explicar esta consciência a partir das contradições da vida
9
Cfr. Misère de la Philosophie, ed. cit., 119 e 124/125.
10
“Prefácio…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 530/531.
14
material, do conflito existente entre forças produtivas e relações de produção sociais. Uma
formação social nunca decai antes de estarem desenvolvidas todas as forças produtivas
para as quais é suficientemente ampla, e nunca surgem relações de produção novas e
superiores antes de as condições materiais de existência das mesmas terem sido chocadas
no seio da própria sociedade velha. Por isso a humanidade coloca sempre a si mesma apenas
as tarefas que pode resolver, pois que, a uma consideração mais rigorosa, se achará sempre
que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão no processo de se formar,
as condições materiais da sua resolução. Nas suas grandes linhas, os modos de produção
asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas
progressivas da formação económica e social. As relações de produção burguesas são a
última forma antagónica do processo social de produção, antagónica não no sentido de
antagonismo individual, mas de um antagonismo que decorre das condições sociais da vida dos
indivíduos; mas as forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa
criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a resolução deste antagonismo. Com
esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.” [sublinhados
nossos. AN].
À luz da teoria marxista, a estrutura política (o poder político, o estado) faz parte
da superestrutura, sendo esta determinada pela base económica, a infraestrutura.
O que constitui problema é a questão de saber em que consiste essa
determinação e em que medida a superestrutura é determinada pela base económica ou
dela depende. Marx não abordou expressamente a questão. No entanto, os seus estudos
sobre a Revolução Francesa pressupõem a ideia de que a estrutura política (e mesmo a
estrutura ideológica) goza de uma autonomia relativa. Não faltam, porém, trechos em
que parece repassar uma concepção economicista (determinação absoluta da
superestrutura - especialmente da estrutura política, do estado - pela infraestrutura).
Na conhecida polémica com Proudhon, escreveu Marx:
O ponto de partida desta discussão continua a ser uma carta de Engels a Joseph
Bloch, escrita em Setembro de 1890:12
O debate continua acerca destes pontos suscitados e não resolvidos pelo texto de
Engels: 1) em que consiste a “determinação em última instância”?; 2) em que consiste a
eficácia específica dos elementos superestruturais?; 3) em que condições pode ser
preponderante a acção da superestrutura?13
12
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., III, 547/548. Em O 18 Brumário de Louis
Bonaparte, escreve Marx: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre
vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas” (MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, 417). Esta afirmação de
princípio é, a nosso ver, uma clara manifestação de Marx e Engels contra as acusações de determinismo
feitas ao materialismo histórico.
13
Uma síntese destas questões pode ver-se em A. HESPANHA, História…, cit., 89-91.
16
Com base neste critério, distingue Sombart três sistemas económicos: o sistema
de economia fechada, o sistema de economia artesana e o sistema de economia
capitalista.
“A ideia fundamental da minha obra – escreve Sombart – é a de que nas várias
épocas históricas tem predominado um espírito económico diferente, sendo este espírito
que dá uma forma apropriada e modela em conformidade a organização económica”. A
passagem da economia feudal-corporativa para a economia capitalista explicar-se-ia
pela acção de um conjunto complexo de factores que provocou a mudança do espírito
da época e não pelas contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as
relações de produção feudais: “Do espírito de empreendimento e do espírito citadino
surgiu, como uma unidade homogénea, aquela disposição do espírito que chamamos
espírito do capitalismo. Assim surgiu o capitalismo”15
14
“Marx sabia pôr as questões magistralmente, e nisso residia a sua mais alta qualidade -
escreveu Sombart. Dos seus problemas vivemos nós ainda hoje. Com o seu génio em colocar as questões,
indicou à ciência económica o caminho de uma fecunda investigação para todo o século. Todos os
economistas que não procuraram fazer seus os problemas por ele postos foram condenados à esterilidade
científica, como já hoje podemos afirmar com certeza”. A influência de Marx revela-se na própria noção
de capitalismo apresentada por Sombart: “é a organização baseada na economia de troca, na qual em
regra cooperam – relacionando-se através do mercado – dois grupos sociais: os proprietários dos meios de
produção (que são também os dirigentes e os sujeitos da economia) e os trabalhadores privados da
propriedade (enquanto objectos da economia). Nesta organização prevalecem os princípios do lucro e da
racionalidade económica”. Citações colhidas em O. LANGE, Economia Politica, I, cit., 260.
15
Também Max Weber explica o aparecimento do capitalismo como consequência do
aparecimento de uma nova ética económica trazida pela Reforma, ao negar a velha teologia medieval que
valorizava a pobreza, condenando o juro e o enriquecimento, substituindo-a pela afirmação das virtudes
17
do trabalho, da poupança e do lucro e dignificando a riqueza como sinal da graça divina. Transferido o
ideal católico da ascese dos conventos para a vida quotidiana dos cristãos, a Reforma teria dado lugar a
uma espécie de ascese laica (Max Weber).
16
As citações de Sombart são colhidas em O. LANGE, Economia Politica, cit., I, 261-263.
17
TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit.,164.
18
Como escreve TEIXEIRA RIBEIRO, últ. ob. cit.,165/166, “o capitalismo [também] desumanizou
a economia. Ele arrancou do mundo das relações económicas um sentimento e a palavra que o exprimia: a
piedade. Só interessa o lucro. ‘Se tens fome e tens dinheiro, vendo-te; mas se tens fome e não tens
dinheiro, não te vendo nem te dou’. Não foi apenas sob este aspecto – continua Teixeira Ribeiro – que o
capitalismo desumanizou a economia. Também procurou criar um homem condizente com os seus fins e
distante, por isso, da natureza que o modelara. O que interessa é o lucro. O que interessa, pois, é que os
consumidores sintam necessidades, para que, sentindo-as, comprem produtos e os capitalistas lucrem,
vendendo-os. As necessidades deixam de ser, portanto, o fim da actividade económica; transformam-se
18
em simples meio de obter lucros. Não há necessidades? Se as não há, criam-se, isto é, convencem-se os
consumidores a comprar os produtos. Daí a publicidade, o reclamo, que são fruto do capitalismo”.
19
Isto mesmo quer significar Friedrich HAYEK quando escreve (The American Economic Review,
1945, 520): “Na linguagem corrente, designamos pela palavra plano o complexo de decisões
interrelacionadas acerca da alocação dos nossos recursos disponíveis. Neste sentido, toda a actividade
económica obedece a um plano”.
19
3. - Apreciação crítica
fases anteriores ou posteriores. Não podem servir, portanto, como método de abordagem
da evolução das sociedades humanas, uma vez que não fornecem qualquer explicação
para a própria evolução histórica. São critérios meramente descritivos, exteriores ao
próprio processo evolutivo, incapazes de compreender os factores que explicam a
passagem de um sistema a outro e o sentido da linha evolutiva que a história regista.
Concebendo os vários estádios como outras tantas idades no processo de crescimento
das economias, aos adeptos da Escola Histórica nem sequer se coloca a necessidade de
explicar essa evolução, esse crescimento, que se verificaria por si, tal como um corpo
orgânico cresce em virtude do seu próprio princípio vital.
Os critérios de List, Hildebrandt e Bücher - que referimos atrás -, atendo-se
apenas a elementos da estrutura económica da sociedade, somente dão conta da
evolução (linear) das forças produtivas, mas não podem apreender o processo
(dialéctico) de evolução da economia nem explicar a sua dinâmica.
Esta só resulta inteligível quando se tem em conta a relação dialéctica entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a natureza das relações sociais de produção no
seio das quais aquelas se desenvolvem e com as quais entram em contradição. E é esta
contradição que, acentuando-se, abre uma “época de revolução social”, no termo da
qual surgirá, a partir do anterior (do seu desenvolvimento), um novo estádio superior de
desenvolvimento.
As próprias limitações do seu método impediram os autores da Primeira Escola
Histórica de ir além da mera acumulação de dados relativos à actividade económica.
Afirmando a existência de uma oposição absoluta entre a ciência da História e as
ciências exactas, a Escola Histórica acabou por negar a possibilidade de qualquer teoria
da história.
Com efeito, o método histórico-genético praticado pela Escola Histórica
renuncia à elaboração teórica, limitando-se os seus autores à reunião, descrição e
sistematização dos factos da vida económica e sua sequência histórica, sem capacidade
para apreender as mudanças qualitativas das formas de organização económico-social
ao longo do processo histórico. Cada autor propõe um esquema das várias fases pelas
quais passariam mais ou menos obrigatoriamente todas as sociedades. E cada uma
dessas fases é considerada independente das outras, na medida em que cada fase
substitui inteiramente a fase anterior, sem consideração por aquilo que, em cada
‘sistema', permanece do ‘sistema’ anterior e por aquilo que, em cada ‘sistema',
prenuncia elementos do ‘sistema’ futuro. Neste quadro, resulta impossível a explicação
21
Reforma e o protestantismo que geraram o espírito capitalista (como quer Max Weber,
A ética protestante e o espírito do capitalismo) ou se, diversamente, o espírito do
capitalismo foi em grande parte criação dos judeus (como pretendeu Sombart, que mais
tarde temperou esta sua ideia).
A esterilidade de tal debate é um pouco a imagem da esterilidade do critério de
Sombart, ao sobrestimar os elementos ‘espirituais’ e ao subestimar os elementos
materiais, os elementos económicos, que verdadeiramente imprimem carácter aos vários
sistemas.23 Ele revela-se, por isso mesmo, incapaz de detectar os aspectos essenciais que
verdadeiramente distinguem os sistemas económicos uns dos outros e as leis históricas
que regulam o processo social de produção e distribuição dos bens necessários à
satisfação das necessidades humanas, e incapaz de compreender a dialética da evolução
das várias formações sociais e as leis que explicam o processo histórico de passagem de
uma forma de sociedade a outra.
Talvez assim se compreenda a dificuldade de Sombart em distinguir a essência
do capitalismo e do socialismo, o que explica a sua conclusão de que “entre um
capitalismo estabilizado e regularizado e um socialismo racionalizado que utilize todos
os recursos da técnica a diferença não é muito grande.”
Em 1934, viria a defender uma noção de socialismo na qual caberia
inclusivamente o regime nazi.24 O socialismo seria para Sombart, “um estado de vida
social em que o comportamento dos indivíduos é determinado em princípio por normas
obrigatórias que radicam numa razão universal, intimamente ligada à comunidade
política, e que encontram a sua expressão na lei (nomos)”.
Como o próprio Sombart reconhece, trata-se de definir o socialismo como um
puro “normativismo social”, de “libertá-lo de qualquer determinação de conteúdo e de
concebê-lo de modo puramente formal”, em termos tais que, identificando o nomos com
o socialismo, considera socialismo as simples prescrições de “não fumar”, “circular pela
direita”, “é proibido colher flores”, etc.25
Por nós, acompanhamos Teixeira Ribeiro quando defende que, mesmo que o
socialismo aspirasse à normalização de toda a vida social, não podem “confundir-se sob
o mesmo nome doutrinas, movimentos e sistemas que têm um sentido histórico muito
23
Engels sublinha que “é necessário indagar as causas últimas de todas as transformações sociais
e de todas as revoluções políticas (…) não na filosofia, mas na economia de cada época” ( Anti-Dühring,
ed. cit., 328).
24
Em Deutscher Sozialismus (há uma trad. it. de 1941: Il Socialismo Tedesco, Vallechi Editore,
Firenze).
25
Cfr. L’Apogée…, cit, II, 526.
23
diverso e cujas finalidades são muito diferentes.” 26 A normalização de toda a vida social
foi sem dúvida uma aspiração do nazismo. Mas a verificação disto mesmo não pode
autorizar a conclusão (a que Sombart pretendia chegar) de que, afirmando-se essa
normalização como a característica essencial do socialismo, o nazismo podia
considerar-se também como socialismo (nacional-socialismo).
26
Cfr. A Nova Estrutura…, cit., 36.
24
27
Esta parece ser, porém, a tese sustentada no influente manual de Francisco Pereira de MOURA
(Lições, cit, 55ss): “ (…) temos de destacar os grandes problemas económicos que sempre se apresentam
seja qual for o sistema, correspondendo exactamente as diferenças entre estes à diversidade de técnicas
sociais para resolver tais questões”. [sublinhado no original] Quer dizer: o que distingue os sistemas é a
diversidade das formas (técnicas) de organização social (de funcionamento da economia) que em cada
caso são utilizadas para resolver os problemas fundamentais (afectação dos recursos disponíveis, volume
e estrutura da produção, repartição do produto).
25
28
V. MOREIRA, Economia e Constituição, cit…, 114.
29
Lições de Direito Corporativo, cit., 114. Ver também A Nova Estrutura…, cit., 5-6.
26
relativa dos homens no que toca aos meios de produção) que, em último termo,
distingue os sistemas.
Nesta lógica é que se fala do socialismo como sistema caracterizado pela
propriedade colectiva dos meios de produção e do capitalismo como sistema que assenta
na propriedade privada (capitalista) dos meios de produção. Esta é uma propriedade
perfeita, absoluta, que exclui os não-proprietários do respectivo poder de disposição,
vendo-se estes obrigados a vender aos donos dos meios de produção a própria força de
trabalho transformada em mercadoria, assim se configurando as relações capitalistas de
produção entre os produtores não-proprietários e os donos do capital.30
Conforme a natureza das relações de produção, assim varia a forma que assume
o excedente social e a titularidade do controlo desse excedente. No capitalismo, o
sobreproduto social assume a forma de lucro (rendimento sem trabalho) que cabe aos
proprietários dos meios de produção, aos quais pertence também decidir do destino a
dar-lhe, não só para consumo pessoal dos próprios capitalistas mas também para
investimento em novos meios de produção. No socialismo, o excedente assume a forma
de fundo social que será distribuído por consumo e investimento por decisão da própria
colectividade através das instituições políticas que a representem.31
Já se vê como a distinção dos sistemas económicos com base nos modos de
produção, i.é, a partir da natureza das relações sociais de produção, permite caracterizar
também, para cada um deles, o modo como se processa a direcção da economia e o
critério que preside à distribuição do produto social (a relação entre o trabalho social e
o produto social), a natureza e o destino do excedente social, e permite ainda explicar o
sentido da evolução histórica dos modos de produção. Esta teoria dos modos de
produção afigura-se-nos, por isso, a mais adequada para a análise dos sistemas
económicos e da sua evolução.
Os sistemas distinguem-se uns dos outros pela afirmação de determinadas forças
produtivas e determinadas formas de organização material da produção, a base
económica (estrutura económica ou infraestrutura) no seio da qual se desenvolvem
determinadas relações sociais de produção e a partir da qual se erguem e instalam
determinadas estruturas políticas, jurídicas, culturais, ideológicas (superestrutura).
30
Como Marx salienta, “na base do sistema capitalista está a separação radical do produtor
relativamente aos meios de produção” (Cfr. Le Capital, Ed. J. Roy, cit., 528.
31
No sentido do texto, cfr. S. TSURU, Aonde vai o capitalismo, cit., 41ss.
27
O que nos vai interessar aqui é a questão de saber quais os elementos estruturais
que permitem distinguir entre si os vários sistemas económicos, como se processou a
evolução que a história regista e que factores a podem explicar.
28
29
CAPÍTULO I
DO COMUNISMO PRIMITIVO
AO CAPITALISMO
30
31
32
Tendo em conta as formações sociais (o modo de produção e a superestrutura), poderíamos
considerar (à semelhança de vários autores, entre so quais Marx), poderíamos analisar, além das que
ficam referidas, a sociedade asiática (despotismo oriental), a sociedade antiga e a sociedade germânica.
Deixaremos apenas uma brevíssima caracterização. Na sociedade asiática, há um embrião de estado,
representado por um déspota, para o qual reverte o sobreproduto social, de cuja distribuição ele decide
autoritariamente; a sociedade antiga assenta na cidade e na dicotomia cidade/campo, surgindo a
propriedade privada e a divisão social do trabalho, juntamente com a divisão da sociedade em classes,
nomeadamente senhores e escravos; a sociedade germânica é uma sociedade rural, constituída por
camponeses autónomos, fundada na posse individual da terra, com predoínio da propriedade comum
(gemeinschaft), sendo muito esbatida a divisão em classes, o que justifica um estado muito rudimentar.
Sobre a sociedade germânica pode ler-se F. ENGELS, A Origem da Família…, cit. , 344ss;
sobre o modo de produção asiático, ver C.E.R.M., O modo…, cit.
33
Cfr. Economia Política, cit., 185-189. Nas palavras de Marx (Le Capital, Livre Premier, t. II,
Éd. Sociales, Paris, 1948, 58): “ (…) Para as épocas históricas, como para as épocas geológicas, não há
linha de demarcação rigorosa”.
32
34
Cfr. F. PERROUX, Le Capitalisme, cit., 17.
33
1. - O comunismo primitivo 35
Cfr., sobre este período, J. EATON, Manual…, cit., 6-9; E. MANDEL, Traité…, cit., I, cap. 1º;
35
HINDESS/HIRST, Modos de Produção…, cit., 28ss; C. GOMES, Economia do Sistema Comunitário, cit.
34
classe(s) social (sociais). Não havia lugar para o estado enquanto aparelho de poder
(político, judiciário e miliar).
No período colector, a única divisão do trabalho conhecida era a que se fazia em
função do sexo: os homens, mais virados para o fabrico de armas e para a caça; as
mulheres, encarregadas da defesa das habitações e da colheita e confecção de alimentos
vegetais.
Entretanto, a lenta acumulação de invenções foi aumentando a produtividade do
trabalho. A invenção do arco e da flecha como instrumentos de caça e do arpão como
instrumento de pesca vieram permitir maior regularidade e maior abundância no
abastecimento de géneros, reduzindo-se a importância da simples colheita de frutos, que
passou a ser uma actividade meramente suplementar das demais.
O homem começou a trabalhar a pele, os ossos, os chifres dos animais caçados
regularmente. A descoberta de zonas de caça ou de pesca particularmente abundantes
veio permitir que nelas se fossem fixando as primeiras tribos, pois a abundância da caça
e da pesca, aliada ao uso de instrumentos mais perfeitos, permitiu o abandono
progressivo do nomadismo, enquanto prática imposta pela necessidade de procurar
novas regiões onde pudessem encontrar alimentos. O próprio regime sedentário, por seu
turno, contribui para o aumento da produtividade do trabalho, através da produção de
mais e melhores instrumentos de trabalho.
Assim se foram criando condições para que as comunidades primitivas
produzissem, além do necessário à sobrevivência, um excedente (sobreproduto social).
Assim se puderam constituir reservas de alimentos, reduzindo o risco da ocorrência de
períodos de fome. Assim foi possível uma divisão do trabalho mais avançada e o
consequente aumento da população (fenómeno que é, ele próprio, revelador da
existência de um excedente social). Este aumento da população abre, por sua vez, novas
possibilidades de especialização e de divisão do trabalho, ampliando a quantidade e a
eficiência das forças produtivas à disposição da humanidade.
A existência de um excedente regular e permanente de alimentos foi a base
material necessária para que pudesse acontecer a grande revolução económica e social
do período neolítico - a revolução neolítica, como justamente lhe chamam os autores.
Foi o início da agricultura, da domesticação e da criação de animais, actividades que
pressupõem necessariamente a existência de uma certa reserva de alimentos.
Em primeiro lugar, porque é preciso dispor de alimentos para se lançarem à terra
e de animais para criar com vista à reprodução, ou seja, é preciso dispor de alimentos
35
que possam não ser consumidos no presente com vista à obtenção de maiores
quantidades de alimentos no futuro.
Em segundo lugar, porque são necessários alimentos para a comunidade subsistir
no intervalo de tempo que medeia entre as sementeiras e as colheitas. Daí que estas
formas de actividade produtiva só progressivamente fossem sendo adoptadas pelos
povos, primeiro como actividades secundárias, em relação à caça e à colheita de frutos,
mais tarde como actividades principais, durante muito tempo complementadas por
aquelas.
36
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 112. Sobre a noção de excedente (sobreproduto social) e sua
importância, ver, além de E. MANDEL, últ. ob.cit., cap. I; P. BARAN, A Economia…, cit., 22-34; C.
BETTELHEIM, Planification…, cit., 51ss; C. FURTADO, Prefácio…, cit., 13-70.; R. LÓPEZ-SUEVOS,
Excedente Económico…, cit.
36
Mas regressemos à revolução neolítica. Ela trouxe pela primeira vez ao homem
a possibilidade de controlar a produção dos seus meios de subsistência, ao mesmo
tempo que veio abrir novas perspectivas de desenvolvimento do artesanato profissional,
com o consequente aperfeiçoamento dos instrumentos de produção, acarretando
profundas modificações no modo de vida e nas relações entre os homens.
Então surgiu uma grande diferenciação entre as tribos que continuaram uma vida
nómada, vivendo essencialmente da caça, e aquelas que adoptaram uma actividade
económica que permitiu (e exigiu) a sedentarização, ao mesmo tempo que surgiu a
primeira importante divisão social do trabalho entre as tribos que se dedicaram à
pastorícia e as que se dedicaram à cultura da terra.
O nomadismo foi sendo progressivamente abandonado, transformando-se as
tribos em comunidades mais ou menos estáveis. A produtividade do trabalho aumentou
nestas comunidades, que passaram a poder produzir regularmente um excedente em
relação às suas necessidades, ampliando assim o excedente social.37
Com a sedentarização, começaram as famílias a reservar normalmente as
mesmas terras para a sua agricultura, assim se generalizando a utilização particular das
terras na posse de cada família, embora, durante muito tempo, esta posse continuasse a
ter como pressuposto a existência da comunidade e a propriedade colectiva da terra.
A agricultura desenvolveu-se, passando a adequar-se as sementeiras e as
colheitas às estações do ano, uma vez compreendida a importância da energia do sol.
Por outro lado, nos vales do Nilo, do Tigre e do Eufrates reconheceu-se o valor das
37
O gado constituiu o primeiro meio de acumulação de riqueza A função de acumulação de
riqueza é uma das funções da moeda. E a verdade é que o gado foi um dos primeiros bens que
funcionaram como moeda. A palavra latina pecus (gado) é a raiz de palavras como pecúlio, pecuniário,
etc.
37
38
Cfr. “A Origem da Família…, ed. cit., 357/358.
39
2. - O esclavagismo 39
39
Cfr. J. EATON, ob.cit., 9-10; H. DENIS, História…, cit., 83-84; HINDESS/HIRST, ob. cit., 127ss.
40
Engels traduz muito bem esta ideia (A Origem da Família…, ed. cit., 366-369): “o estado não
existiu desde a eternidade. Houve sociedades que passaram sem ele, que não faziam nenhuma ideia do
estado nem do poder de estado”. O estado “é um produto da sociedade num estádio determinado de
desenvolvimento; é o reconhecimento de que esta sociedade está enredada numa insolúvel contradição
consigo própria, que se cindiu em oposições inconciliáveis de que ela é incapaz de se livrar. (…) Para que
essas oposições, classes com interesses económicos em conflito não se comsumam a si próprias e à
sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade
para abafar o conflito e mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’; e esse poder surgido da sociedade mas
que se coloca acima dela e se aliena cada vez mais dela é o estado”. E como o estado “surgiu no meiodo
conflito enter classes, ele é, em regra, o estado da classe mis poderosa, economicamente dominante, e
que, por seu intermédio, se torna também a classe politicamente dominante, obtendo assim novos meios
para a subjugação e exploração da classe oprimida. Assim, o estado da Antiguidade era, antes de tudo, o
estado dos donos de escravos para a subjugação dos escravos, tal como o estado feudal era o órgão da
nobreza para a subjugação dos camponeses servos e dependentes e o moderno estado representativo é o
instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital”.
40
escravos, sem qualquer interesse nos resultados do seu trabalho, não se empenhavam na
descoberta de técnicas mais produtivas.41
O aumento de riqueza realizava-se mediante a conquista de novos territórios,
capazes de fornecer escravos em maior número e mais impostos ao fisco. Daí a
expansão colonial da Grécia e de Roma.
As conquistas militares de Roma enriqueciam os poderosos donos de escravos e
grandes proprietários de terras. Mas arruinavam os pequenos proprietários livres que,
mobilizados para o serviço militar obrigatório, eram forçados a abandonar as suas terras,
das quais acabavam por ser expulsos, por dívidas, indo elas engrossar as grandes
propriedades cultivadas por mão-de-obra escrava; e arruinavam também os pequenos
artesanos das cidades, em virtude do recurso a artífices escravos. Assim se criaram
enormes massas empobrecidas e sem meios de ganhar a vida, que os senhores de Roma
iam entretendo distribuindo pão e circo (panem et circensis).
As novas conquistas e os novos escravos que elas propiciavam (trabalhando de
má vontade, com produtividade reduzida em comparação com as necessidades)
começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração
romana. Os conflitos no seio das classes de homens livres começam a abalar as
estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre
latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruinados,
aliados aos proletarii das cidades.
Ao mesmo tempo, começa a manifestar-se o movimento de revolta dos escravos
contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu o ponto
mais alto com a revolta de Espártaco (73-71 A. C.). Os escravos foram vencidos, mas a
República romana cairia pouco depois. Em 27 A. C. Augusto inicia o período do
Império.
A partir do século II P. C., a necessidade de obter receitas leva o estado romano
a organizar grandes explorações nas suas terras e a encorajar a concentração das
propriedades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista. As classes
41
Recorde-se, aliás, que a escravatura - renascida mais tarde como consequência das viagens
atlânticas de portugueses e espanhóis e do desenvolvimento do comércio capitalista - viria a ser abolida
no séc. XIX por pressão das potências capitalistas, principalmente a Inglaterra e os estados industriais do
norte dos EUA, em oposição aos estados rurais e esclavagistas do sul (a Guerra da Secessão poderá
entender-se, aliás, como uma espécie de revolução burguesa contra a ‘aristocracia’ rural e plantadora dos
estados sulistas). É que ao capitalismo interessava o trabalho livre: 1.°) porque a produtividade do
trabalhador livre é maior que a dos escravos; 2.°) porque o capitalismo precisa de consumidores e os
escravos não o eram, pois não recebiam rendimentos monetários e os donos gastavam com eles apenas o
indispensável; 3.°) porque a própria subsistência dos trabalhadores deixava de ser um encargo para o
capital.
41
médias, arruinadas, integravam as grandes massas inactivas das cidades, onde o recurso
ao trabalho escravo impedia - como nos campos - qualquer melhoria de produtividade.
Esmagada por Caracala, no início do século III, uma revolta da aristocracia, a
classe dominante em todo o Império passará a ser a dos curiales (colectores de
impostos), responsáveis directamente perante o imperador, e cuja autoridade se
transmite hereditariamente. Os imperadores organizam as artes em corporações
obrigatórias e passam a intervir cada vez mais na economia.
Com Diocleciano, generaliza-se o pagamento em espécie aos funcionários,
utilizando o estado directamente os produtos da terra, sem os deixar passar pelo
mercado, cuja importância diminui, justificando a tendência dos grandes proprietários
para se constituírem em economias fechadas, de dimensões cada vez maiores,
colocando-se os pequenos proprietários - desarmados perante o fisco - sob a protecção
dos grandes.
Por outro lado, com vista a facilitar a cobrança dos impostos (frequentemente
pagos em géneros), o estado procurou fixar à terra que cultivavam os pequenos
agricultores livres das aldeias, instituindo o regime de colonos. Estes não podiam deixar
a terra à qual estavam adstritos e por cujo uso pagavam uma quantia determinada,
podendo mesmo ser vendidos com a sua parcela. Assim se institui um regime de grande
propriedade, mas sem bases técnicas capazes de proporcionar índices razoáveis de
produtividade do trabalho agrícola.
Embora tenha, em alguma medida, prefigurado as relações de produção feudais,
o colonato não passou de uma “forma de declínio sem esperança do mundo antigo”,
sem capacidade para servir de “ponto de partida de um desenvolvimento novo”. O
estatuto dos colonos acabou por se aproximar do dos escravos, reproduzindo os
obstáculos que o esclavagismo representava para o desenvolvimento das forças
produtivas.
Minado por dificuldades internas, o império romano caiu num verdadeiro
impasse. Exangue, sem qualquer “capacidade de desenvolvimento” e de “poder
criador”, a sociedade esclavagista parecia incapaz de encontrar dentro de si o princípio
de uma transformação positiva.42 Sucumbirá à invasão dos bárbaros do norte (em 476
P.C.), que, ao destruírem a sociedade esclavagista e o seu estado, funcionaram como o
42
Cfr. F. ENGELS, “A Origem da Família…, cit., 344ss. Esta obra de Engels é, sem dúvida, o
trabalho mais importante dos clássicos do marxismo sobre os problemas da passagem do esclavagismo ao
feudalismo e sobre o papel dos povos bárbaros neste processo.
42
factor externo que desencadeou a mudança: “só os bárbaros são capazes de rejuvenescer
um mundo que sofre de uma civilização agonizante”. 43
A historiografia marxista reconhece que a passagem do esclavagismo ao
feudalismo não foi, directamente, o resultado de uma revolução social levada a cabo
pelos escravos e pelos colonos.44 Mas a verdade é que, em virtude das suas próprias
contradições, o modo de produção esclavagista tornou-se incapaz de progredir: as
relações de produção esclavagistas não acompanharam o desenvolvimento das forças
produtivas e passaram a constituir um impedimento ao seu desenvolvimento. A certa
altura, “a escravatura tornou-se economicamente impossível e o trabalho dos homens
livres era moralmente desprezado. Uma já não podia e o outro ainda não podia ser a
forma fundamental da produção social. Aqui a única coisa que podia ajudar era uma
revolução social completa”.45
As debilidades da “civilização agonizante” do império romano permitiram que
os povos bárbaros se instalassem perto das suas fronteiras e desenvolvessem contactos
comerciais relevantes com os povos do império, e permitiram mesmo que alguns
daqueles povos se fixassem dentro das fronteiras do império. Estas populações bárbaras
desenvolveram contactos comerciais relevantes com os povos do império e introduziram
naquele corpo social agonizante alguns focos de vitalidade tecnológica.
Por outro lado, a progressiva degradação das condições de vida dentro do
império levaram os administradores imperiais a abusar nas exigências de novos
impostos e novas prestações aos cidadãos romanos já depauperados. O estado romano
tinha-se transformado numa máquina gigantesca, que sugava quase tudo aos seus
cidadãos, muitos dos quais se foram refugiando nas regiões já ocupadas pelos bárbaros,
transferindo para eles a propriedade das suas terras, em troca de protecção contra o
próprio estado romano, visto como o pior inimigo e opressor por muitos dos seus
cidadãos, que esperavam os bárbaros como salvadores, que os libertavam da asfixia
imposta pelo seu próprio estado.46
Em dado momento histórico, os povos bárbaros acabaram por tomar o império
romano, sendo que a interacção estabelecida ao longo dos tempos entre o mundo
primitivo dos bárbaros vindos do norte e o mundo romano antigo (esclavagista) facilitou
o processo de (auto)destruição do modo de produção esclavagista e abriu os caminhos
43
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 354.
44
Já Engels sublinhava esta ideia: “a Antiguidade não conhece a abolição da escravatura por
meio de uma rebelião vitoriosa” (A Origem da Família…, cit., 354).
45
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 348.
46
Cfr. F. ENGELS, A Origem da Família…, cit., 346-348.
43
3. - O feudalismo 51
49
Cfr. A. HESPANHA, História das Instituições, cit., 81/82.
50
Cfr. Ch. PARAIN, “Evolução do sistema feudal europeu”, em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo,
cit., 22.
Sobre o feudalismo, ver: TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 147ss.; M. DOBB, A
51
Evolução…, cit., 49ss; P. SWEEZY, M. DOBB e outros, ob. cit.; PARAIN/VILAR e outros, ob. cit.;
HINDESS/HIRST, Modos de Produção, cit., 260ss; A. HESPANHA, História..., cit., 88ss; G. CONTE, Da
45
Na sociedade feudal toda a vida social era marcada por um elemento comum, a
subordinação de indivíduo a indivíduo, a relação de dependência pessoal, a
circunstância de cada um “ser o homem de outro homem”, na expressão de Marc
Bloch.52 Esta relação de dependência pessoal caracterizava todo o tecido da sociedade
feudal, independentemente da natureza jurídica exacta do vínculo e sem distinção de
classes: o conde era o ‘homem’ do rei, do mesmo modo que o servo era o ‘homem’ do
senhor da terra onde vivia e trabalhava.
As formas deste laço humano apresentavam, porém, algumas singularidades,
conforme os níveis sociais em que se verificavam. No grau inferior, as relações de
dependência encontraram o seu enquadramento natural no senhorio rural, que é,
fundamentalmente, uma terra habitada e os seus súbditos. No âmbito do senhorio, o
vínculo de dependência pessoal tinha no aspecto económico o seu campo de iniciativa
primordial: o objectivo do senhor era, preponderantemente, o de obter rendimentos,
através da apropriação dos frutos do trabalho gratuito dos servos.
Tradicionalmente, a designação feudalismo vem associada a determinadas
estruturas jurídicas e políticas (a “vassalagem”), que apontam para um entendimento do
feudalismo como regime jurídico-político (superestrutura política). Por nós, utilizá-la-
emos aqui no sentido de modo de produção feudal ou sistema económico-social feudal,
no qual a actividade económica assenta na agricultura e o poder político é exercido
directamente pela classe dos proprietários de terra, aceitando o ponto de vista de Charles
Parain, segundo o qual “existe uma unidade profunda entre as relações de produção
estabelecidas entre senhores e camponeses em torno da terra e a hierarquia feudal que
durante tanto tempo sancionou e garantiu o próprio mecanismo dessas relações”.53
caracterizado este pela existência de laços de dependência económica, política e social fundados na posse
da terra e extensivos a toda a sociedade e não apenas ao topo da escala social. Este entendimento da
feudalidade enquanto estrutura social complexa marcada por laços de dependência em que o proprietário
da terra era também senhor e em que os produtores directos eram também servos não é substancialmente
diferente do entendimento que fazemos do feudalismo como modo de produção feudal ou sistema
económico-social feudal. Cfr. A. HESPANHA, História..., cit., 84ss.
54
Apud E. MANDEL, Traité…, cit., III, 116.
47
meios materiais necessários à sua existência. O que significa que eles não são
economicamente obrigados a trabalhar nas terras do senhor. São as várias coerções
extra-económicas decorrentes da estatuto jurídico-político da servidão que os obrigam a
trabalhar gratuitamente nas terras do senhor, limitando a sua liberdade e a sua
propriedade de tal forma que nem a sua força de trabalho nem o produto do seu trabalho
são ainda mercadorias, porque não podem ser por eles trocadas ou vendidas.57
E este estatuto é respeitado porque os senhores têm o direito e o poder (político,
militar e judicial) de os compelir a isso, e porque os próprios servos se sentem
obrigados a respeitar o seu estatuto, na medida em que aceitam a ideologia dominante,
veiculada principalmente pela Igreja Católica, que advoga uma sociedade hierarquizada,
em que tudo e todos estão no seu lugar e não podem deixar de estar, sob pena de se pôr
em risco o equilíbrio indispensável à própria sobrevivência do edifício social.58
Neste sentido, pode dizer-se que as relações de produção são, no quadro do
feudalismo, relações entre os produtores directos e o seu suserano, verificando-se a
exploração dos produtores através de uma compulsão político-legal directa (Maurice
Dobb): a apropriação do trabalho excedente pelos senhores feudais efectua-se
directamente, por coerção extra-económica, sem a mediação das leis económicas de
troca de mercadorias. E esta coerção extra-económica “devia a sua eficácia
simultaneamente ao monopólio do armamento ofensivo e defensivo e à solidariedade de
classe dos exploradores põe meio da organização política feudal. (…) A expoloração
económica (através das várias formas de apropriação do sobretrabalho camponês) e o
aparelho jurídico-político encontram-se portanto intimamente ligados”. 59
57
Cfr. G. CONTE, Da Crise..., cit., 12ss e A. GUERREAU, O Feudalismo…, cit., 215ss.
58
No capítulo I de A Ideologia Alemã (MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I, 4ss,
especialmente 38/39) Marx e Engels põem em destaque o conceito e a importância da ideologia
dominante. “As ideias da classe dominante – escrevem eles – são, em todas as épocas, as ideias
dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante. A classe que tem à sai disposição os meios para a produção material dispõe
assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo
tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As
ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações
materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante
uma classe, portanto, as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também
têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como
classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua
extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias,
regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo, que, portanto, as suas ideias são as ideias
dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a
burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia
dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma ‘lei eterna’”.
59
Cfr. Ch. PARAIN, “Caracteres gerais do feudalismo”, em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit.,
18-21. G. CONTE (últ. ob. cit., 15) leva esta interpretação à expressão extrema: “A possibilidade de
apropriação do sobreproduto por parte do senhor reside unicamente no poder de impor o seu direito,
49
Nos tempos feudais, como sublinha Galbraith, “a propriedade era uma fonte
duradoura de poder temporal.”60 A propriedade da terra era a fonte do poder económico
(do poder de direcção do produtivo: partilha das terras, decisão sobre o que se produzia
nas terras reservadas para os senhores) e era também a origem e o fundamento do poder
político. O poder político era um poder descentralizado e fragmentado, disperso por
uma pluralidade de titulares, dando a ideia do desaparecimento do estado. Mas o poder
político (o estado) existe, exercendo-se a sua autoridade de pessoa para pessoa. Charles
Parain observa que “o facto essencial, sob este aspecto, é que a justiça é exercida pelo
‘suserano’ sobre os seus vassalos e pelo ‘senhor’ sobre os camponeses. A exploração
das prestações económicas e o aparelho jurídico-político encontram-se, por isso mesmo,
muito estreitamente unidos”.61
A natureza de classe do estado aparece, nestas condições, sem qualquer dúvida
nem disfarce: o poder político e a violência que ele representa são exercidos pela classe
dominante (que dispõe do poder militar e administra a justiça através de tribunais
nomeados pelos senhores e responsáveis perante eles) para garantir a apropriação do
sobreproduto criado pelos trabalhadores servos e, em último termo, para defesa dos seus
interesses de classe, que exige a manutenção do estatuto de servidão e das relações de
produção servis.
Acompanhemos a lição de Marx: 62
“É precisamente porque a sociedade se baseia na dependência pessoal que todas as
relações sociais aparecem como relações entre pessoas. Os trabalhos diversos e os seus produtos
não carecem, por isso, de adoptar uma figura fantástica distinta da sua realidade. Apresentam-se
como serviços, prestações e entregas in natura. A forma natural do trabalho, a sua
particularidade - e não a sua generalidade, o seu carácter abstracto, como na produção de
mercadorias - é também a sua forma social. A corveia é medida pelo tempo do mesmo modo
que o trabalho que produz mercadorias; mas cada prestador da corveia sabe muito bem, sem
recorrer a um Adam Smith, que é uma quantidade determinada da sua força de trabalho pessoal
que ele despende ao serviço do seu senhor. (...) De qualquer maneira que se julguem as
máscaras que os homens trazem nesta sociedade, as relações sociais das pessoas nos seus
trabalhos afirmam-se nitidamente como as suas próprias relações pessoais, em vez de se
disfarçarem sob a forma de relações sociais das coisas, dos produtos do trabalho”.
viviam, uma vez que não participavam na actividade produtiva.63 A grande massa dos
produtores limitavam-se a consumir o que produziam nos dias em que trabalhavam para
si nas terras que os senhores afectavam à subsistência dos trabalhadores. Estes não
aparecem no mercado, nem a comprar nem a vender. A produção era essencialmente
produção para uso e não para venda.
As trocas eram essencialmente trocas internas, trocas directas de produtos e
serviços entre os produtores. Só os senhores dispunham de bens para vender e só eles
podiam comprar os produtos de ‘luxo’ da produção artesanal, ela mesma sem estímulos
para o seu desenvolvimento, dada a falta absoluta de poder de compra da grande
maioria da população e a consequente exiguidade do mercado. Daí que a agricultura
fosse a actividade dominante da economia feudal. Daí que praticamente não houvesse
trocas entre o domínio senhorial e o exterior. Daí que a economia feudal fosse uma
economia fechada, em que o domínio senhorial era a unidade de produção e de
consumo, produzindo-se no seu seio tudo o que se consumia e consumindo-se tudo o
que se produzia.
Por outro lado, o modo de produção feudal criou condições propícias à
estagnação da técnica, que se manteve rudimentar e rotineira: os instrumentos de
trabalho eram muito simples e o acto de produção era geralmente de carácter individual,
quase não havendo divisão do trabalho.
Pelo que toca aos servos, qualquer melhoria nos resultados da produção era
sempre pretexto para novas exigências do senhor, o que ‘matava’ qualquer iniciativa no
sentido de beneficiar as terras ou melhorar as técnicas de cultivo e os instrumentos de
trabalho.
Na óptica da classe senhorial, os senhores não têm interesse em promover o
desenvolvimento da produção nas suas terras para além do limite resultante da sua
própria capacidade de consumo. Em virtude da quase inexistência de mercado, os bens
tinham apenas valor de uso e a acumulação teria de ser acumulação de valores de uso
(alimentos, vestuário, madeira, etc.) ou assumir formas ‘irracionais’, improdutivas, do
ponto de vista da sua utilização para aumentar a capacidade de produção (construção de
grandes castelos, de grandes edifícios religiosos, constituição de grandes tesouros em
mosteiros e catedrais). Daqui deriva a ausência de incentivo ao desenvolvimento das
forças produtivas. Daqui deriva também que o móbil da actividade produtiva, imposto
63
Sobre as várias formas de renda feudal, ver HINDESS/HIRST, ob. cit., 260-305 e A.
HESPANHA, História…, cit., 96-101. Vale a pena ler o Capítulo XLVII de O Capital (Éditions Sociales,
Vol. III, tomo III, 164-192).
51
64
Ver: A. HESPANHA, “O Estado absoluto…, cit.; G. CONTE, Da Crise...,cit.
65
Também não nos parece que possa reconhecer-se autonomia, como modo de produção, ao
chamado capitalismo comercial, que se desenvolveu, a partir dos séculos XIV/XV, em algumas cidades
italianas e da Flandres. O comércio foi, por essa altura (tal como a actividade financeira) uma fonte de
enriquecimento para uma certa elite da população, mas não constituiu um modo de produção, nem os
comerciantes e ‘banqueiros’ dominaram o processo social de produção dessa época.
52
69
No sentido do texto, cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 39 e E. MANDEL, Traité…, cit., I,
116/117. Poderá também observar-se que, em outro contexto, o recrudescimento do esclavagismo nos
EUA e em certos países da América Latina (produtores de algodão, café e outros produtos de exportação),
bem como a intensificação da servidão na Europa central e de leste a partir dos séculos XV e XVI e a sua
permanência até praticamente à Revolução de Outubro (1917), são explicáveis exactamente como
resultado da inserção desses produtos e dessas regiões no circuito comercial do capitalismo.
55
70
Não obstante, Ch. PARAIN (“Evolução do sistema feudal europeu”, em C.E.R.M., Sobre o
Feudalismo, cit., 35) sustenta que “as revoltas camponesas, as guerras camponesas que que marcaram
este longo período de crise tiveram resultados diversos mas apresentam uma característica comum:
nenhuma logrou provocar uma transformação social revolucionária, um novo modo de produção, neste
sentido, elas assemelham-se às revoltas de escravos do tempo de Roma, elas não são portadoras nem dos
meios nem da concepção de um novo regime social”.
57
sangue vital e provocar a série de crises em que a economia feudal se veria envolvida
nos séculos XIV e XV”.71
Estes ‘emigrantes’, que em parte se acolhiam às cidades então em período de
crescimento, alimentaram também bandos de marginais e vagabundos e estiveram na
base das jacqueries, tão frequentes na Idade Média. Como à frente se verá, este
movimento de fuga dos servos marca o início do processo que havia de subtrair ao
modo de produção feudal o elemento indispensável à sua sobrevivência: os
trabalhadores servis.
Em algumas regiões e países legislou-se no sentido de proibir o abandono dos
domínios senhoriais por parte dos servos, mas o movimento não cessou. Apesar dos
acordos celebrados de início entre os senhores no sentido de se ajudarem mutuamente
na captura dos servos fugidos, a carência de mão-de-obra veio provocar acesa
competição entre os senhores feudais para atrair e furtar os servos do domínio vizinho.
Nesta perspectiva, o declínio do feudalismo na Europa Ocidental deveu-se à
incapacidade da classe senhorial dominante para conservar o controlo sobre (para
explorar) a força de trabalho servil.
Numa carta a Engels, Marx observa: “passa-se frequentemente algo de bastante patético com o
72
modo como os burgueses no século XII incitaram os camponeses a fugir para a cidade”.
58
73
A legislação inglesa punia severamente a fuga dos servos ao ‘serviço’ feudal, havendo mesmo
penas para a prendizagem de um ofício (actividade artesanal) por parte daqueles que estivessem ligados a
um senhorio (manor), sendo proibido a qualquer homem dono de terra de rendimento anual inferior a £
20 tornar um filho aprendiz de um ofício. Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 16, nota 3.
74
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 152.
59
Lembremos, porém, que, como Marx sublinha, por alturas do início da “era
capitalista” associada à revolução comercial do século XVI, “a abolição da servidão era
um facto consumado desde há muito, e o regime das cidades soberanas, glória da idade
média, estava já em plena decadência”. E sem dúvida que para o advento do capitalismo
(para a transformação dos produtores em assalariados) foi essencial “a libertação dos
trabalhadores da servidão e da coacção das corporações”. Na verdade,
75
Ver: J. KUCKZYNSKI, Pequena História…, cit., 171-195; G. FOURQUIN, História
Económica…, cit., 221ss e 239ss.
60
3.2.5. - Síntese
76
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy), cit., 528/529 (também em MARX/ENGELS, Obras
Escolhidas, ed. cit., II, 104-107).
No capítulo do Livro III de O Capital, dedicado à compreensão histórica do capital mercantil,
Marx deixa muito clara esta ideia: “O desenvolvimento do comércio e do capital mercantil favorece a
orientação em geral da produção no sentido do valor de troca; ele aumenta o seu volume, diversifica-o e
internacionaliza-o, transforma a moeda em moeda universal. O comércio comporta sempre, por isso
mesmo, uma acção mais ou menos dissolvente sobre as organizações existentes da produção que, em toda
a diversidade das suas formas, são principalmente orientadas no sentido do valor de uso. Mas a medida
em que ele destrói o antigo sistema de produção depende em primeiro lugar da solidez e da estrutura
interna deste. Não é de modo nenhum do comércio, mas da natureza do antigo modo de produção, que
depende o resultado do processo de dissolução, isto é, o modo de produção novo que substituirá o
antigo”. “Não sofre dúvida – continua Marx – que as grandes revoluções dos séculos XVI e XVII que as
descobertas geográficas provocaram no comércio, arrastando consigo o rápido desenvolvimento do
capital mercantil, constituem um factor essencial que acelerou a passagem do modo de produção feudal
ao modo capitalista. (...) A brusca ampliação do comércio mundial, a multiplicação das mercadorias em
circulação, a emulação entre as nações europeias para se tornarem senhoras dos produtos asiáticos e dos
tesouros americanos, o sistema colonial contribuíram em larga medida para fazer saltar os limites feudais
da produção. Entretanto, o modo de produção moderno, no seu primeiro período, o das manufacturas,
desenvolveu-se apenas onde, durante a Idade Média, se criaram condições para isso. Basta comparar o
exemplo da Holanda com o de Portugal”. Quer dizer: o elemento decisivo não está no capital mercantil
mas no desenvolvimento das contradições internas do velho modo de produção. Cfr. K. MARX, Le
Capital, Livro III, t. I, Éd. Sociales, cit., 340/341.
61
A renda em dinheiro continua a ser uma renda feudal, i.é, trabalho excedente
obrigatoriamente entregue ao senhor, agora sob a forma de dinheiro obtido pela venda
do produto excedente.77 E pode dizer-se que ela representou mesmo uma adaptação
imposta pela necessidade de sobrevivência do sistema. Com efeito, ela foi, muitas
vezes, o único meio de os senhores ‘quebrarem’ a revolta dos camponeses, concedendo-
lhes maior liberdade. Por outro lado, conhecida que era a pouca produtividade do
trabalho obrigatório prestado ao senhor, em comparação com o trabalho efectuado pelos
servos nas terras cujo domínio útil lhes era confiado, o sistema da renda em dinheiro
permitiu aos senhores beneficiar da maior produtividade do trabalho não compulsório,
através do aumento das rendas no momento da renovação dos contratos de
arrendamento.
O pagamento das rendas em dinheiro trouxe consigo, porém, a necessidade de os
camponeses venderem os seus produtos no mercado, assim entrando a economia
fechada dos domínios rurais na roda das relações de comércio. A produção agrícola para
uso (dos produtores e dos senhores feudais) começa a dar lugar a uma produção para
venda. E o desenvolvimento do comércio, melhorando as possibilidades de venda dos
produtos agrícolas nos mercados locais, provocou um processo de diferenciação social
entre os pequenos produtores, levando ao aparecimento da Yeomanry, uma classe de
camponeses livres (Yeomen), por um lado, e de um semi-proletariado rural, por outro,
lançando assim as bases da divisão tripartida entre os senhores da terra, os rendeiros
capitalistas e os jornaleiros sem terra, característica da agricultura capitalista,
especialmente na Inglaterra.78
A exploração agrícola assente no trabalho servil foi substituída pela exploração
feita pelo rendeiro (ligado ainda por vínculos feudais ao dono das terras), que
progressivamente iria recorrendo ao trabalho assalariado dos seus vizinhos mais pobres.
Para estes, ainda não de todo libertos do domínio senhorial, o salário era, muitas vezes,
uma forma suplementar de subsistência, embora não fosse a única.
Assim surgia o embrião de relações capitalistas na agricultura.79
77
Cfr. H. K. TAKAHASHI, em P. SWEEZY e outros, ob. cit., 95ss.
78
Cfr. M. DOBB, A evolução…, cit., 60ss.
79
Como escreveu MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 530), “na Inglaterra a servidão tinha
desaparecido de facto por volta do final do século XIV. A imensa maioria da população compunha-se
então, e mais inteiramente ainda no século XV, de camponeses libres que cultivavam as suas próprias
terras, quaisquer que fossem os títulos feudais com que se encobrisse o seu título de posse. (...) Os
assalariados rurais eram em grande parte camponeses - que, durante o tempo disponível deixado pela
cultura dos seus campos, se alugavam ao serviço dos grandes proprietários-, em parte uma classe
particular e pouco numerosa de jornaleiros. Mesmo estes eram em certa medida cultivadores por conta
própria, pois além do salário fazia-se-lhes concessão de campos de pelo menos quatro acres, com casa de
62
habitação; além disso, participavam, juntamente com os camponeses propriamente ditos, no usufruto dos
bens comunais”.
80
Cfr. P. SWEEZY e outros, ob. cit., 35.
81
“Trabalhadores livres – esclarece Marx, em O Capital, cap. XXIV, em MARX/ENGELS,
Obras Escolhidas, ed. cit., II, 105) no duplo sentido de que nem eles próprios pertencem imediatamente
aos meios de produção, como os escrevos, servos, etc., nem também os meiso de produção lhes
pertencem, como no caso do camponês que trabalha a sua propriedade, antes estão livres deles, livres e
sem responsabilidades”.
63
82
No Manifesto Comunista (Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I, 111) pode ler-
se a visão marxista deste processo: “Os meios de produção e de intercâmbio sobre cuja base se formou a
burguesia foram criados na sociedade feudal. Numa certa etapa do desenvolvimento destes meios de
produção e de troca, as relações no quadro das quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização
feudal da agricultura e da manufactura – numa palavra, as relações de produção feudais – deixaram de
corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Tolhiam a produção, em vez de a fomentarem.
Transformaram-se em outros tantos grilhões. Tinham de ser quebradas e foram quebradas”. E em O
Capital (MARX/ENGELS, ult. ob. cit., II, 106): “A estrutura económica da sociedade capitalista saiu da
estrutura económica da sociedade feudal. A dissolução desta libertou os elementos constitutivos daquela”.
83
Cfr. Ch. PARAIN, “Evolução…, cit., em C.E.R.M., Sobre o Feudalismo, cit., 26.
64
“Num tempo remoto, havia, de um lado, uma elite diligente, inteligente, e, sobretudo,
frugal, e, do outro, uma escumalha preguiçosa, que dissipavam tudo o que tinha e mais. (…)
Assim, aconteceu que os primeiros [a elite diligente, frugal e inteligente] acumularam riqueza e
os últimos [a escumalha preguiçosa e perdulária], por fim, nada tinham para vender a não ser a
sua própria pele. E deste pecado original datam a pobreza da grande massa, a qual continua, a
despeito de todo o trabalho, a não ter nada para vender a não ser a si própria, e a riqueza de uns
poucos, a qual cresce continuamente, embora eles há muito tenham deixado de trabalhar”.
As Cruzadas
Foi com as Cruzadas (séc. XII) que se restabeleceram as relações entre o
Ocidente e o Próximo Oriente, reabrindo a rota do Mediterrâneo, desenvolvendo-se
intenso tráfego comercial, feito através das Repúblicas Italianas e dos Países Baixos
para o norte da Europa. Deste comércio de produtos de luxo (especiarias e produtos do
Oriente, tecidos italianos e flamengos) provieram grandes lucros, de que aproveitaram
sobretudo os mercadores italianos (que tinham, aliás, financiado parcialmente as
expedições à Terra Santa) e flamengos, que dominaram - principalmente os primeiros -
a vida económica europeia até ao séc. XV. E foram os lucros deste comércio
internacional de bens apenas ao alcance das classes dominantes que propiciaram - a par
das riquezas que à Europa afluíram como resultado directo das Cruzadas - a primeira
grande acumulação de capitais na Europa, capitais que fizeram a fortuna de uma nova
violentamente a passagem da ordem económica feudal à ordem económica capitalista e abreviar as fases
de transição. E, com efeito, a Força é a pateira de toda a velha sociedade em trabalho de parto. A Força é
um agente económico”.
67
88
Foi o tempo de banqueiros famosos, como os Médici, os Fugger, os Welser, o francês Jacques
Coeur. Este chegou a emprestar dinheiro ao rei de França a juros que atingiam por vezes 50%; calcula-se
que a sua fortuna equivalia, por volta de 1450, a cerca de 22 milhões de francos com o poder de compra
de meados do século XX (H. DENIS, História…, cit., 89).
68
93
Citado por J. de VRIES, A Economia…, cit., 185/187.
94
Cfr. W. A. LEWIS, ob. cit., 38-39.
71
o aniquilamento das antigas casas feudais e o início da monarquia absoluta dos Tudor.
A nova nobreza saída da guerra compreendeu que a riqueza era agora a fonte do
prestígio e do poder. E tratou de se lançar também na constituição de unidades
agrícolas de grande dimensão, reunindo parcelas até aí dispersas por vários pequenos
camponeses, transformando as terras de cultura em terras de pastagens para criação de
ovinos (quintas de capital ou quintas de comerciantes).
Ao mesmo tempo, os grandes proprietários de terras começaram a apropriar-se
das terras comunais, cercando-as para nelas fazerem pastar os seus rebanhos. Assim se
iniciava a prática conhecida por enclosures, que haveria de revigorar-se mais tarde e
que tão importante foi na evolução da economia inglesa para o capitalismo.
100
Em 1533, um texto oficial referia haver proprietários que possuíam 24.000 carneiros (cfr. K.
MARX, últ. ob. cit., 532).
74
101
Marx cita vários trechos de autores ingleses da época que compreenderam correctamente o
significado do processo em curso. Entre esses autores destaca-se um tal Dr. Price: “a vedação de terras
pesa muito sobre os pobres, privando-os de uma parte da sua subsistência e apenas vai no sentido de
aumentar quintas já muito grandes”. Os produtores expulsos das terras “serão convertidos num corpo de
homens que ganham a sua subsistência trabalhando para outros e que estarão na necessidade de ir ao
mercado para tudo o que quiserem. (…) No geral, as circunstâncias das camadas mais baixas de homens
são alteradas, sob quase todos os aspectos, para pior. De pequenos ocupantes de terra, são reduzidos ao
estado de trabalhadores a dias e estipendiados; e, ao mesmo tempo, a sua subsistência em tal estado
tornou-se mais difícil” (Apud O Capital, Cap. XXIV, em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II,
117-119).
102
Cfr. A Ideologia Alemã, ed. cit., 49.
75
contra a vagabundagem. Os pais da classe operária actual foram, antes do mais, castigados pela
transformação, a que foram sujeitos, em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como
criminosos ‘voluntários’ e pressupunha que dependia da boa vontade deles que continuassem a
trabalhar nas velhas condições que já não existiam mais”. 103
103
Cfr. O Capital, Cap. XXIV, últ. ed. cit., 126.
104
Só no reinado de Henrique VIII teriam sido executados 72 000 (cfr. K. MARX, O Capital,
Cap. XXIV, últ. ed. cit., 126-131, onde podem ver-se pormenores elucidativos da natureza da legislação
contra estes mendigos-vagabundos). Também na França, no último terço do século XVIII, a
mendicidade atingiu proporções consideráveis, verificando-se o afluxo às cidades das massas de
indivíduos que o campo, saturado, não podia albergar. Considerada a ‘mendicidade’ um delito punido
pelo estado, propunham alguns que esses ‘mendigos’ fossem enviados para as galés por toda a vida,
enquanto outros propunham que se desenvolvessem as manufacturas para absorver a força de trabalho
dos ‘vagabundos’ (produzir era resolver os problemas). Esses ‘vagabundos’ do século XVIII estiveram
na base do proletariado moderno. Como nota M. PERROT, ob. cit., 74, “ces errants se sont fixés, ces
insolents se sont combés, ces indolents se sons hâtés, ces braillards se sont tus. Ils ont gagné du pain et
perdu la route”.
105
Acerca da atitude adoptada, na filosofia e na prática social e política, relativamente a estes
‘vagabundos’, cfr. R. SOARES, ob. cit., 60-62.
76
própria lei torna-se instrumento de espoliação, o que não impediu, de resto – ensina
Marx 106 -, que os grandes proprietários tivessem recorrido também a pequenas práticas
particulares, extra-legais”.
E a prática das enclosures mostrou então em larga escala os seus efeitos:
1) acabou com o livre acesso às terras comunais, transformando em quintas
privadas mais de três milhões de terrenos baldios;107
2) reduziu as terras de cultivo;
3) privou os camponeses pobres dos meios de subsistência;
4) favoreceu o desenvolvimento da grande propriedade;
5) provocou a subida dos preços dos produtos alimentares;
6) conduziu ao despovoamento dos campos;
7) transformou os pequenos proprietários e rendeiros em jornaleiros, em
“vendedores de si próprios”, em “mercenários”.108
Estes efeitos foram de tal forma claros que, segundo a generalidade dos autores,
por meados do séc. XVIII a Yeomanry tinha sido liquidada na Inglaterra, dando o lugar
a grandes agricultores capitalistas que passam a recorrer à mão-de-obra assalariada.109
106
Cfr. Le Capital (trad. de J. Roy), cit., 535.
107
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 208.
108
Assim escreveu, em meados do século XVIII, o célebre Dr. Price (citado por MARX, O
Capital, Cap. XXIV, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 118): “Os próprios escritores que defendem as
enclosures convêm em que elas reduzem as culturas, fazem subir os preços das subsistências e conduzem
ao despovoamento. (...) E, mesmo quando se trata de terras incultas, a operação, tal como se pratica hoje,
retira aos pobres uma parte dos seus meios de subsistência e acelera o desenvolvimento de quintas que já
são demasiado grandes. (...) Quando a terra cai na mão de grandes agricultores, os pequenos rendeiros
[que noutro lugar - esclarece Marx - tinha designado como pequenos proprietários e tenentes (tenants -
possuidores da terra) que vivem, eles e as suas famílias, do produto da terra que cultivam, dos carneiros,
das aves, dos porcos, etc., que põem a pastar nas terras comunais] serão transformados em outras tantas
pessoas forçadas a ganhar a sua subsistência trabalhando para outrem e comprando no mercado o que lhes
é necessário. Trabalhar-se-á mais talvez, porque a pressão das necessidades é maior (...) As cidades e as
manufacturas crescerão porque aí se apanharão mais pessoas em busca de emprego. É neste sentido que a
concentração das quintas opera espontaneamente e assim vem operando neste reino desde há bastantes
anos. (...) Os pequenos proprietários e rendeiros foram reduzidos à condição de jornaleiros e mercenários,
ao mesmo tempo que se lhes tornou mais difícil ganhar a vida nesta condição.”
109
Fenómeno análogo verificou-se nas Highlands da Escócia, mais para o final do século XVIII:
os povos aí fixados, que viviam da agricultura, são expulsos para as terras - pouco férteis - junto ao mar,
proibindo-se-lhes a emigração para o estrangeiro, a fim de os obrigar a afluir a Glasgow e a outros centros
manufactureiros. Movimentos idênticos de ocupação das terras comunais ocorreram, embora com atraso
no tempo em relação à Inglaterra, na generalidade dos países da Europa, sendo de referir a França
(sobretudo a partir de 1789), a Alemanha e a Bélgica. Na Espanha, pode referir-se a Real Pragmática de
1793 sobre distribuição de terras comunais e a lei de desamortização de 1855, que permitiu que fossem
postos à venda os bens comunais dos povos (cfr. J. V. VIVES, ob. cit., 576ss).
Alain Touraine refere práticas idênticas na América Latina, no início da industrialização. Para
salvaguardar o seu nível de vida, nas condições resultantes do desenvolvimento da economia industrial,
os grandes proprietários do Perú apropriaram-se pela violência das terras dos comuneros e cercaram-nas,
provocando a desagregação das comunidades camponesas. Cfr. “La marginalidad urbana”, em Revista
Mexicana de Sociología, vol. XXXIX, nº 4, Dez/1977, 1.123.
77
A indústria artesana
Vimos como, a partir dos séculos XII e XIII, se desenvolveram na Europa as
cidades em sentido económico. A actividade industrial levada a cabo pelos habitantes
das cidades realizava-se em pequenas oficinas cuja propriedade, bem como a dos
instrumentos de trabalho, pertencia ao próprio artesano que nelas trabalhava com os
familiares ou com um número reduzido de companheiros e aprendizes, considerados
como se fossem pessoas de família. Fala-se, a respeito desta forma de organização da
actividade produtiva, de produção de mercadorias simples ou pequena produção
mercantil.
Estes artesanos eram pequenos produtores autónomos, que viviam dos
rendimentos do seu trabalho, realizados pela venda - que eles próprias faziam, sem
intermediários - dos produtos que manufacturavam, nas suas oficinas. Não havia, por
isso, nas ‘cidades corporativas’ diferenças sociais relevantes: no fim da aprendizagem,
os companheiros ascenderiam à categoria de mestres e ninguém auferia rendimentos
que não proviessem do trabalho próprio, desenvolvido com vista à satisfação das
necessidades do agregado familiar.
O artesano produzia muitas vezes por encomenda ou então para os mercados
locais. De qualquer modo, tinha em vista um quadro de consumidores sensivelmente
estável, até porque a população se manteve mais ou menos estacionária ao longo da
Idade Média (deficientes condições higiénicas nas cidades, epidemias, guerras e fomes
serão as principais razões explicativas do fenómeno).
rendeiros capitalistas muito rica para a época”, enriquecida à custa dos trabalhadores assalariados e dos
proprietários rurais, uma vez que, por essa altura, os contratos de arrendamento de terras eram ainda
celebrados por um período de 99 anos, correndo contra os proprietários a desvalorização das rendas pagas
em dinheiro. Cfr. Le Capital (trad. J. Roy), cit., 551.
112
Sobre este ponto, cfr. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 153-161 e 178-185 e E.
MANDEL, Traité…, cit., I, 136ss.
79
113
Cfr. Le Capital, Éd. Sociales, cit., Livro III, t. 1, 342/343.
114
Esta prática manteve-se em Portugal até muito tarde: no início do século XX tinha ainda um
peso dominante. Em meados do século XIX, poderá estimar-se, a partir de um inquérito limitado levado a
cabo por Oliveira Marreca, que, na indústria têxtil, cerca de 2/3 dos trabalhadores (especialmente
mulheres) trabalhavam no domicílio (cfr. F. A. ALMEIDA, Operários de Lisboa…, cit., 82). Esta forma
de trabalho – que isola os trabalhadores dos seus sindicatos; que não obriga a contrato de trabalho nem a
descontos para a segurança social; que não tem riscos de greve ou de outras formas de contestação; que
obriga os trabalhadores a trabalhar mais horas e mais intensamente para ganharem um salário idêntico ao
que poderiam auferir através de um contrato de trabalho no quadro do contrato colectivo - ainda hoje tem
expressão em Portugal, especialmente nas indústrias tradicionais do vestuário e calçado, a ela recorrendo
muitas grandes empresas, mesmo multinacionais de marcas conceituadas.
82
abandonada. Ao operário cabe apenas aquilo que, de facto, ele já ganhava no sistema
da indústria assalariada no domicílio: um simples salário”.115
E as manufacturas depressa se desenvolveram e se sobrepuseram à indústria no
domicílio, dadas as vantagens por elas oferecidas aos novos industriais capitalistas:
1) em primeiro lugar, suprimiram os intermediários que o anterior sistema
exigia, para a distribuição das matérias-primas e a recolha dos produtos acabados;
2) em segundo lugar, reduziram os custos de produção, ao permitirem o controlo
directo do patrão relativamente ao uso das matérias-primas e dos instrumentos de
produção, evitando ‘fugas’ e desperdícios;
3) por último - e principalmente -, trouxeram consigo elevados ganhos de
produtividade em virtude da especialização interna e da sujeição dos trabalhadores a
um ritmo de trabalho e a um horário de trabalho impostos pelo empresário.
O advento da indústria artesana marcara um relativo progresso em relação às
economias dos domínios senhoriais, pois tornara possível a especialização em
produtores agrícolas e produtores industriais e, nas cidades, a especialização dos
artesanos, cada um em seu ofício (especialização externa). Cada artesano efectuava,
porém, todas as operações atinentes ao processo produtivo dos bens que
confeccionava: não havia, pois, especialização no interior de cada ofício ou mester
(condições que não se alteraram com a indústria assalariada no domicílio).
Com as manufacturas surgiu a empresa como organização produtiva. Ao
concentrar os trabalhadores no mesmo local de trabalho, esta forma de organização da
produção permitiu a subdivisão do processo produtivo de cada produto numa série de
operações parcelares, encarregando-se cada operário de apenas uma destas operações,
tarefa que em breve realizará quase automaticamente, com grande rapidez e perfeição,
sem ter que perder tempo em deslocações dentro da própria oficina e na adaptação a
cada uma das várias tarefas. Esta especialização interna veio, sem dúvida, aumentar o
“poder produtivo do trabalho”, na expressão de Adam Smith. Paralelamente, a
diferenciação e a especialização dos instrumentos de trabalho, impostas pela
parcelização do processo produtivo, é outra característica das manufacturas.
Mas esta subdivisão do processo produtivo de cada bem em um grande número
de operações parcelares vem tornar cada uma destas operações muito simples, podendo
ser perfeitamente realizada por trabalhadores sem qualquer qualificação. E esta foi
outra vantagem da manufactura para os empresários: permitiu a utilização de mão-de-
115
Crf. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 141-142.
83
obra não qualificada, a mão-de-obra barata das mulheres e das crianças e até de
pessoas com deficiências mentais. E isto proporcionou uma redução substancial dos
custos de produção, uma vez que, durante o período das manufacturas, o trabalho
manual continuou a predominar na actividade industrial, constituindo os salários a
maior parte das despesas totais da indústria.
Na óptica dos trabalhadores da indústria, os velhos artesanos perderam o que
lhes restava da sua autonomia: passaram a trabalhar fora da sua casa ou da sua oficina;
ficaram sujeitos a um horário de trabalho fixado pelo patrão; perderam o controlo do
processo técnico de produção (a especialização interna, assente na fragmentação do
processo de produção, veio desvalorizar o monopólio do conhecimento dos antigos
mestres artesãos); passaram a ter de se sujeitar ao poder de direcção do dono da
empresa. O produtor autónomo da indústria urbana medieval transformou-se em
‘mercenário’, em trabalhador assalariado, vendendo a sua força de trabalho em troca de
um salário. A propriedade capitalista e as relações de produção capitalistas (assentes
na relação entre o empregador capitalista e o trabalhador assalariado excluído do
acesso directo aos meios de produção) penetram assim na indústria.
história económica, ver J. BARBOSA, ob. cit.; A. CASTRO, ob. cit. (estudos onde poderá colher-se
indicação de outra bibliografia) e J. B. MACEDO, ob. cit.
117
Basta recordar o que a Inglaterra fez à manufactura de lã na Irlanda. Eis o comentário de um
antigo professor da Faculdade de Direito de Coimbra: “Um rei da Inglaterra, Guilherme III, respondeu a
uma ignóbil representação do Parlamento contra as manufacturas florescentes da Irlanda com o
programa ainda mais ignóbil Eu hei-de fazer tudo o que em mim estiver para desanimar toda e
qualquer manufactura na Irlanda. À América proibiu-se-lhe construir forjas e fornos para fabricar aço;
proibiu-se-lhe fazer um prego, uma argola, uma ferradura. Foi esta proibição da indústria e não uma
questão de impostos, pensa Leroy-Beaulieu, que fez revoltar os Estados Unidos.
Com relação à Irlanda, o ignóbil plano de Guilherme III, seguido com a tenacidade e com o
egoísmo de tigre da Inglaterra, tornou aquela desgraçada ilha exclusivamente agrícola, horrorosamente
miserável. Por fim, julgou-se que a emigração era o único remédio, e dos púlpitos começou-se a pregar:
Emigrai. E em cinco anos emigrou com efeito a oitava parte da população total” ( Cfr. J. F. LARANJO,
ob. cit., 89). Segundo informação colhida em K. MARX, Le Capital, Annexe X, em Oeuvres (ed. de
Maximilien Rubel, cit.) I, 1.389, a população da Irlanda passou de 8.222.664 habitantes em 1841 para
cerca de 5 milhões e meio em 1866.
118
Para além de outras medidas legislativas anteriores, acima referidas, tais proibições resultam,
na Inglaterra, das Combinations Acts (1789 e 1800) e, na França, da Lei Le Chapelier (1791). Estas
disposições só viriam a ser revogadas em 1824, na Inglaterra; na França, em 1864 (direito à greve) e em
1884 (direito de constituir sindicatos). Em Portugal, os sindicatos vieram a ser reconhecidos por um
diploma legal de 1891 e o direito à greve só mais tarde, com a legislação da República (1910).
85
119
Apud E. MANDEL, Traité…, cit., 1, 144.
120
Em Portugal, o art. 1427º do Código Civil de 1867 dispunha, a respeito do contrato de
aprendizagem: “Nenhum aprendiz, antes dos catorze anos, pode ser obrigado a trabalhar mais de nove
horas em cada vinte e quatro, nem, antes dos dezoito, mais de doze”. A realidade talvez ainda pior do que
o autorizado por lei. Calcula-se que, em meadosdo século XIX, nas indústrias sediadas em Lisboa, cerca
de 21% dos trabalhadores tinham menos de 16 anos de idade (25,8% na indústria de tecidos; 37,6% na
estamparia); por vezes, as crianças começavam a trabalhar nas fábricas com 6, 7 e 8 anos, em alguns
casos entregues aos manufactureiros pelo Governo Civil, para as furtar à ociosidade e ao vício. Sabe-se
também que o horário de trabalho não era inferior a 11/12 horas por dia; mas, em certos casos extremos, o
trabalho começava às 04.00 horas da manhã e acabava às 12.00 horas da noite. Cfr. F. A. ALMEIDA,
Operários de Lisboa…, cit., 47/48, 59, 73, 91 e 145-147.
Recorde-se que, na Inglaterra, John Locke (1632-1704), o teórico da ‘revolução’ de 1684, propôs
um sistema de educação compartimentado: uma educação superior para os ricos e o que ele chamava
uma “escola de trabalho” para os “filhos dos trabalhadores”, salientando que assim “se acostumarão ao
trabalho desde a infância, o que não é de pouca importância dentro do objectivo de os tornar
parcimoniosos e industriosos durante toda a vida”. Na França, Colbert fazia trabalhar nas manufacturas
crianças de seis anos, inspirado pela ideia de que “l’oisiveté des premières années est la source des
désordres du reste de la vie”. A partir do pré-juízo, tão corrente no século XVIII, que dava como assente a
“preguiça natural das classes trabalhadoras”, compreende-se esta sentença de Arthur Young (apud R.
SOARES, ob. cit., 60): “Every one but an idiot knows that the lower classes must be kept poor, or they
never will be industrious”.
Particularmente desumana foi a situação em que foram colocadas as crianças inglesas recolhidas
nas Workhouses e depois cedidas aos manufactureiros. Os contramestres das manufacturas inglesas
recebiam salários variáveis em função do rendimento obtido nas oficinas, razão por que o chicote era
usado com frequência para castigar as crianças que chegavam atrasadas à oficina, depois de longas
distâncias percorridas a pé, ou que, exaustas de fome e de sono, adormeciam no trabalho.
121
Informação colhida em K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 557.
86
4.1. – Síntese.
122
Em A Ideologia Alemã (ed. cit., 49/50) sublinha-se o significado e importância das
manufacturas, do ponto de vista salientado no texto: “Com a manufactura, as diferentes nações entram
numa relação de concorrência, numa luta comercial, que se travou em guerras, protecções alfandegárias
e proibições, ao passo que anteriormente as nações, tanto quano estavam em ligação entre si, tinham
prosseguido uma troca inofensiva umas com as outras. De ora em diante, o comércio tem importância
política.
Com a manufactura, passa ao mesmo tempo a haver uma relação diferente do operário com
quem lhe dá trabalho. Nas corporações continuava a existir a relação patriarcal entre os oficiais e o
mestre; na manufactura, ocupa o lugar daquela a relação de dinheiro entre operário e capitalista; uma
relação que, no campo e em pequenas cidades, conservou uma cor patriarcal, mas que nas cidades
maiores, nas cidades realmente manufactureiras, desde cedo perdeu quase toda a coloração patriarcal.
(…) A expansão do comércio e da manufactura acelerou a acumulação do capital móvel,
enquanto nas corporações (…) o capital natural permaneceu estável ou diminuiu mesmo. O comércio e a
manufactura criaram a grande burguesia, nas corporações concentrava-se a pequena burguesia, a qual
agora já não dominava nas cidades e tinha de se dobrar ao domínio dos grandes comerciantes e
proprietários de manufacturas. Daí e declínio das corporações assim que entraram em contacto com a
manufactura”. [sublinhados nossos. AN]
123
Cfr. Anti-Dühring, ed. cit., 260.
87
gleba, ficaram do mesmo passo separados das terras que até aí cultivavam por direito
próprio e nas quais obtinham os meios de subsistência).
A essência das relações de produção capitalistas reside na “separação radical dos
produtores relativamente aos meios de produção”, e foi este, precisamente, o papel
histórico do processo de acumulação primitiva do capital: “separar o trabalho das suas
condições exteriores”.
Do que fica dito poderemos concluir, acompanhando Marx:
“a ordem económica capitalista saiu das entranhas da ordem económica feudal. A
dissolução de uma libertou os elementos constitutivos da outra”.
“Quanto ao trabalhador, ao produtor imediato, para poder dispor da sua própria pessoa,
precisava, em primeiro lugar, de deixar de estar ligado à gleba ou de estar enfeudado a uma
outra pessoa. Ele não tinha também qualquer possibilidade de se tornar vendedor livre de
trabalho, oferecendo a sua mercadoria onde haja um mercado para ela, sem se libertar primeiro
do regime das corporações, com a sua hierarquia, as suas regras…O movimento histórico que
converteu os produtores em assalariados apresenta-se, portanto, como a sua libertação da
servidão e da hierarquia industrial corporativa”.
“Quanto aos capitalistas empreendedores, estes novos potentados tinham que anular não
apenas os mestres artesanos mas também os detentores feudais das fontes de riqueza. Deste
ponto de vista, a sua emergência é o resultado de uma luta vitoriosa contra o poder senhorial e
as suas prerrogativas revoltantes e contra o regime corporativo e os entraves que ele levantava
ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem”. 124
4.2. - A Reforma.
Para além desta acumulação de capital, e em estreita relação com ela, importa
ter em conta outros factores cujo significado não pode ignorar-se quando se pretende
compreender a ascensão da burguesia e a consolidação do capitalismo.
Começamos pela Reforma, que Engels considera uma das “três grandes batalhas
decisivas” na ”longa luta da burguesia contra o feudalismo”. 126 A Igreja Católica,
enquanto proprietária de terras (“possuía seguramente um terço do mundo católico”),
cobradora de dízimos e centro produtor de ideologia, era a pedra angular da sociedade
e da economia feudais. A Igreja Católica (que organizara a sua própria hierarquia
segundo o modelo feudal) era “o grande centro internacional do feudalismo”, que
“unificava a Europa Ocidental” e “envolvia as instituições feudais com a auréola da
consagração divina”. A derrota do sistema feudal passava, pois, pela destruição do
poder da Igreja Católica Romana.
Engels refere ainda outro aspecto relevante para explicar o advento da Reforma,
chamando a atenção para o facto de, paralelamente à ascensão da burguesia, se ter
verificado “o grande renascimento da ciência”, com o desenvolvimento da astronomia,
da mecânica, da física, da anatomia e da fisiologia. Durante a Idade Média, a ciência foi
“uma servidora humilde da Igreja”: “não lhe fora permitido ultrapassar os limites
impostos pela fé, e por essa razão jamais tinha sido ciência nenhuma”. Por isso “a
ciência revoltou-se contra a Igreja”.127 E como, “para o desenvolvimento da sua
126
Cfr. F. ENGELS, Do Socialismo…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, 114-
117. As outras duas batalhas referidas por Engels são aquilo a que poderemos chamar a ‘revolução
inglesa’ e a Revolução Francesa, a que à frente nos referiremos.
127
Para ilustrar a reacção violenta da Igreja ao progresso científico, basta recordar que os
trabalhos de Copérnico foram colocados no índex, que Galileu teve de responder perante a Inquisição e
que a teoria de Darwin sobre a origem e a evolução das espécies ainda hoje não é abertamente aceite pela
Igreja Católica oficial.
89
128
Karl Kautsky procurou mostrar que o “espírito capitalista” de que fala Weber era o espírito
burguês dos artesanos medievais, muito anterior ao calvinismo. Esse modo de pensar que Weber pretende
ser uma criação do calvinismo encontrar-se-ia, segundo Kautsky, no ‘comunismo’ dos anabatistas e dos
predecessores (que não se inclinavam para o capitalismo). “Trata-se – escreve Kautsky, citado por O.
LANGE, Economia Politica, I, ed. cit., 264/265 – de um espírito de rebelião do artesano contra a
exploração e o desperdício do feudalismo, da Igreja, dos príncipes e dos usurários; um espírito de
sobriedade, de assídua laboriosidade, mesmo de poupança e de acumulação produtiva”. E este “espírito
ético religioso” explicar-se-ia, segundo Kautsky, “não pelo desenvolvimento autónomo da religião e da
ética, mas pelas condições de vida do artesano, que possuía a força e a vontade para se subtrair ao
domínio da nobreza feudal e de todos os seus acessórios económicos, políticos e éticos”.
129
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 124.
90
130
Cfr. W. A. LEWIS, ob. cit., 27-28. No capítulo III deste seu livro, LEWIS estuda, em termos
gerais, as relações que podem ocorrer entre as alterações de ordem religiosa e de ordem económica.
131
K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, ed. cit.), 533.
132
Engels (últ. ob. cit., 116) invoca duas ordens de razões: 1ª) “a doutrina da predestinação era a
expressão religiosa do facto de no mundo comercial da concorrência o êxito ou o fracasso não
dependerem da actividade ou da esperteza de um homem, mas de circunstâncias por ele incontroláveis.
Não é do que ele quer ou persegue, mas da mercê de forças económicas superiores desconhecidas; e isto
era especialmente verdade num período de revolução económica, quando todas as velhas rotas e centros
comerciais foram substituídos por outros novos, quando a Índia e a América foram abertas ao mundo e
quando até os mais sagrados artigos de fé económicos – o valor do ouro e da prata - começaram a abrir
fendas e a ruir”; 2ª) “a constituição da Igreja da Calvino era toda ela democrática e republicana; e, sendo
o reino de Deus republicanizado, poderiam os reinos deste mundo permanecer sujeitos a monarcas, bispos
e senhores?”
133
Apud O. LANGE, op. loc. ult. cit.
Talvez esta glorificação do trabalho explique que o calvinismo tenha dado uma contribuição
importante para a génese do capital, desde logo “por ter transformado quase todos os dias festivos
tradicionais em dias de trabalho”, como observa Marx (citado por LANGE, ibidem).
91
Por volta dos séculos XV e XVI assiste-se também na Europa à constituição dos
modernos estados nacionais, unificando, sob a autoridade do soberano, o território e o
poder político fragmentados característicos do período feudal. Foi um movimento em
que os soberanos se apoiaram na burguesia e que a burguesia apoiou de bom grado,
pois se tratava de abolir as últimas regalias da feudalidade e o poderio das ‘cidades
corporativas’, com a sua actividade industrial realizada por produtores autónomos. A
Inglaterra realizou a sua unificação com Henrique VII (1485-1509); a França, com
Luís XI (1461-1483); a Espanha, em 1469, com o casamento de Fernando de Aragão e
Isabel de Castela. Os Países Baixos só em 1609 se libertaram da Espanha. A Alemanha
e a Itália atingiriam a unificação bastante mais tarde.
134
Assim se exprimia Richard Baxter, pastor puritano (1615-1691): “Se Deus vos designa um
dado caminho no qual podeis legalmente ganhar mais do que em outro (e isso sem prejuízo para a vossa
alma nem para a de outrem) e se recusais o mais proveitoso para escolher o caminho que o é menos, estais
a contrariar um dos fins da vossa vocação, recusais fazer de vós o intendente de Deus e aceitar os seus
dons e empregá-los ao seu serviço se ele o exigir. Trabalhai, pois, para ser ricos para Deus e não para a
carne e o pecado” (apud H. DENIS, História…, cit., 96).
135
Destas ideias puritanas que concebem a riqueza como bênção de Deus – invoca-se S. Paulo:
“tudo é para os eleitos” -, “viria a resultar que a indigência assinalava indelevelmente uma denegação da
Graça. Por isso se percebe - continua R. SOARES, Direito Público…, cit., 60 - que no sistema das
‘Manufacturas’, onde se impunha a ascese do trabalho aos criminosos e vagabundos, também os pobres
fossem tratados da mesma desapiedada maneira”.
136
Ver J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 172-173.
92
137
“É curioso verificar – escreve ENGELS, últ. ob. cit., III, 116 – que nas três grandes
insurreições da burguesia é o campesinato que fornece o exército que tem de combater; e o campesinato é
justamente a classe que, uma vez alcançada a vitória, é com toda a certeza arruinada pelas consequências
económicas dessa vitória”. E a verdade é que, cem anos depois de Cromwell, a yeomanry tinha
praticamente desaparecido.
93
Foi efémero, porém, o ‘reinado’ português: em 1580, com a união das duas
coroas na pessoa do rei de Espanha, os interesses portugueses passaram a segundo
plano. E não durou muito mais o domínio espanhol, cujo declínio terá tido o seu início
logo em 1588, com a derrota da Invencível Armada.
Pouco depois, em 1609, os Países Baixos tornam-se independentes da Espanha.
No século XVII, a República das Províncias Unidas (Holanda) torna-se o pólo de
atracção do comércio mundial. Revoltada contra a Espanha, a Holanda ficava privada
do comércio dos produtos que iam de Lisboa e de Cádis para o norte da Europa. Pois a
Holanda partiu à conquista dos mares e foi buscar as especiarias aos países de origem.
Apoderou-se de Java, das ilhas de Sonda e das Molucas, negociou com a China e o
Japão e os navios holandeses em breve passaram a transportar as especiarias para a
Europa e a fazer o comércio de escravos.
Verdadeira iniciadora do regime de exploração económica dos territórios
coloniais, a Holanda atingiu o seu apogeu por volta de 1648. Controlava então quase
em exclusivo o comércio das Índias Ocidentais e as comunicações entre o sudoeste e o
nordeste da Europa. Auferindo enormes lucros da sua posição monopolista, os
holandeses não hesitaram, sempre que baixavam na Europa os preços das especiarias,
em recorrer à destruição das respectivas culturas e ao massacre das populações para
que estas não plantassem mais árvores.138 Em meados do século XVII, a sua frota de
pesca, a sua marinha e as suas manufacturas ultrapassavam as dos outros países e
Amesterdão (cuja Bolsa data de 1513) foi então (sucedendo a Antuérpia) o maior porto
comercial do mundo.
A supremacia comercial assegurou à Holanda a supremacia no domínio das
manufacturas e a nova burguesia acumulou enormes somas de capitais, fruto do
comércio e da exploração coloniais. “A Holanda - escreveu Marx 139
- era no século
XVII a nação capitalista por excelência. (...) Os capitais da República eram talvez mais
importantes que todos os do resto da Europa em conjunto”.
A Inglaterra iria, por sua vez, afastar a Holanda desta posição de supremacia.
Vejamos como, no século XVIII, a burguesia inglesa chegou ao domínio do comércio
mundial, ao longo de um processo que “é a própria história da subordinação do capital
mercantil ao capital industrial”.140
138
Cfr. E. MANDEL, Traité…, cit., I, 133-134.
139
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 558/559.
140
Cfr. K. MARX, Le Capital, Éd. Sociales, cit., Livro III, t. 1, 341.
94
Referimos atrás que no final do século XV (após o termo da Guerra das Duas
Rosas) a aristocracia inglesa começou a abandonar as formas tradicionais de
exploração das terras, para poder beneficiar do comércio da lã. A velha aristocracia
tentava transformar-se no primeiro burguês da Inglaterra. Vimos também como a nova
burguesia comercial se vinha aliando à nobreza, comprando algumas das suas terras e
convertendo-as em pastagens para criação de gado lanígero. Vimos como a prática das
enclosures começou a minar a posição dos pequenos camponeses independentes,
criando legiões de desempregados.
Afastando-se de Roma e fazendo-se chefe supremo da Igreja de Inglaterra por
volta de 1530-1532, Henrique VIII procederá à distribuição das terras da Igreja
Católica, que era o maior proprietário feudal da Inglaterra, dando origem a uma nova
burguesia rural, que se apressou a cercar as terras (enclosures) e a expulsar os
camponeses das terras que cultivavam, aumentando deste modo o número de famílias
separadas da posse das terras e acrescentando as levas de ‘vagabundos’ (assalariados
potenciais).
Entretanto, a nova classe rica (nobreza-burguesia) entra em conflito com a
dinastia dos Tudor, empenhada em manter o seu poder absoluto e em salvar a ordem
feudal. O agravamento do conflito levará à Revolução de 1648, que culmina com a
execução de Carlos I e a instauração da ditadura de Cromwell.
Este, compreendendo que a vitória sobre a Holanda exigia a constituição de uma
poderosa marinha mercante, não tardou a levar por diante a política conveniente aos
interesses da burguesia inglesa. Este foi o objectivo dos Actos de Navegação, que só
seriam revogados em 1849, durante o período áureo do laissez-faire na Grã-Bretanha.
Em 1651, determinou-se que as mercadorias europeias só podiam ser
descarregadas na Inglaterra se transportadas em barcos ingleses ou em barcos do país
de origem desses produtos (sujeitos, em regra, ao pagamento de elevadas tarifas
alfandegárias), reservando-se aos barcos sob pavilhão britânico o transporte para
Inglaterra de produtos coloniais.
Em 1660, obrigaram-se a registo todos os barcos mandados construir no
estrangeiro por cidadãos ingleses, impondo-se aos navios ingleses um comandante
inglês e a nacionalidade britânica de 3/4 da tripulação.
Finalmente, em 1663 o Staple Act obrigou os colonos a comprar na Inglaterra os
produtos europeus de que carecessem, os quais deveriam ser transportados em barcos
sob pavilhão britânico.
95
Por força dos Actos de Navegação, a Holanda perdeu o mercado inglês, pois os
navios holandeses não podiam transportar para Inglaterra os produtos vindos do
Oriente e de outros países europeus. A Inglaterra criou assim as condições para
constituir a sua própria frota, à qual se reservava desde logo o monopólio do transporte
para a Inglaterra dos produtos coloniais. Com essa frota iria a Inglaterra bater o pé à
Holanda (entre 1652 e 1674 registaram-se três guerras entre os dois países) até ocupar
o lugar que a esta pertenceu no século XVII. Com a conquista da colónia holandesa da
América do Norte (New Amesterdam) em 1664, a Inglaterra afirmou-se como senhora
dos mares e, portanto, senhora do comércio mundial.
Cromwell e os mercantilistas britânicos deram-se conta da importância estratégica
do comércio externo como condição prévia do desenvolvimento no quadro do
capitalismo nascente, nomeadamente como mercado de colocação de produtos
mnufacturados. Daí a defesa da expansão colonial e o empenhamento do estado na
prossecução deste objectivo estratégico para o capitalismo nascente.
Os territórios coloniais foram sujeitos ao regime do pacto colonial, regime que,
em termos gerais, visava estabelecer circuitos comerciais fechados, transformando
aqueles territórios em ‘reserva’ da metrópole. Para tanto:
a) proibiram-se as colónias de produzir os bens que a metrópole podia fornecer;
b) obrigaram-se as colónias a vender os seus produtos exclusivamente à
metrópole e a comprar na metrópole todos os produtos de que careciam, os quais seriam
transportados apenas em navios sob pavilhão da metrópole;
c) obrigou-se o comércio das colónias com o estrangeiro, quando existisse, a
passar por um porto metropolitano, tanto para as exportações como para as importações;
d) reservou-se à metrópole o poder de determinar os preços, a política monetária
e os direitos alfandegários.
O crescente poderio da classe burguesa vai dar-lhe alento para impor novas
alterações no aparelho do estado, que se traduziriam, naturalmente, em maior poder
político para ela. Em 1689 ocorreu o movimento revolucionário que os autores
normalmente designam por Glorious Revolution. Ao novo rei, Guilherme III, príncipe
de Orange, é imposto o Bill of Rights, que valoriza o papel do Parlamento (onde a nova
classe burguesa começava a dominar), ao qual passa a caber o poder de fazer as leis e
de discutir e aprovar o orçamento do estado (separado o erário público do património
pessoal do rei).
96
141
Ver F. ENGELS, Do socialismo utópico…, cit., III, 118.
142
Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 535. O Partido Whig representou então esta
‘aliança’ estratégica entre a nova burguesia e a aristocracia rural.
143
As revoluções burguesas (e a ‘revolução inglesa’ é um caso típico, a este respeito) podem
acontecer num quadro de compromisso entre as velhas e as novas classes dominantes, até ao ponto de se
manterem estruturas de poder político não resultantes do sufrágio (a Realeza e a Câmara dos Lordes). Isto
porque o decisivo, para a burguesia ascendente, era o domínio da economia e do poder económico, a par
da afirmação dos seus interesses no enunciado da ideologia burguesa dominante. E isso foi conseguido
em vários países, em que as velhas classes aristocráticas adoptaram a ideologia burguesa e começaram a
fazer o necessário para se tornarem o ‘primeiro burguês do reino’.
Processo idêntico não parece viável quando se tratar da passagem do capitalismo ao socialismo.
Neste caso, a condição primeira indispensável para se começar a construir o socialismo será o controlo do
poder político, porque só a partir dele se podem destruir as estruturas da propriedade burguesa e se podem
pôr de pé as novas formas de propriedade, de produção e de acumulação. Alguns defendem, com
Gramsci, que, antes da tomada do poder político, é indispensável que o proletariado assegure a
hegemonia na sociedade civil, assumindo a direcção ‘cultural’ (ideológica) da sociedade.
97
144
Na sequência deste Tratado foi constituída a Companhia de Inglaterra, tendo como sócios, a
título privado, o rei de Inglaterra e o rei de Espanha, cada um com 25% do capital (cfr. C. FURTADO,
Prefácio…, cit., p. 31, n. 19). Segundo informa MARX (Le Capital, trad. J. Roy, cit., 563-564), o número
de navios ingleses utilizados no comércio de escravos passou de 15, em 1730, para 132, em 1792. De
acordo com dados colhidos em E. MANDEL, Traité…, cit., 1, 135, os negreiros de Liverpool venderam, de
1783 a 1793, 300 000 escravos por 15 milhões de libras.
98
145
Cfr. A. GERSCHENKRON, Atraso…, cit., 95/96 e F. ENGELS, A Situação…,
cit., 18.
99
147
Cfr. E. J. HOBSBAWM, últ. ob. cit., 137-153. Esta situação confortável dos proprietários de
terras e dos rendeiros capitalistas britânicos assentava no monopólio natural da terra, num país onde a
custo dos transportes marítimos tornava economicamente inviável a importação de produtos alimentares.
Só o desenvolvimento da navegação a vapor e a ligação dos portos ao interior nos vários países
produtores fora da Europa (entre 1870 e 1880) abriram o mercado externo para o trigo americano,
canadiano, argentino e russo, regiões onde a produção de cereais se desenvolveu com vista à exportação.
101
meados do século XIX, a ciência e a indústria se teriam conjugado. Ver P. BAIROCH, Le Tiers Monde
dans l’impasse, cit., 25. Cfr. também E. HOBSBAWM, A era das revoluções, cit., 46-48. Outro parece ser o
ponto de vista de Oskar LANGE (cfr. Economia Politica, ed. cit., I, 276): “A história do capitalismo é a
história do desenvolvimento triunfal das ciências naturais e das suas aplicações práticas, apesar de todas
as resistências das classes e grupos sociais dominantes da sociedade feudal, ou – na primeira fase do
capitalismo – de uma parte do aparelho estatal, eclesiástico e escolástico herdado da sociedade feudal. Em
síntese, poderemos dizer que a burguesia apoiou o desenvolvimento das ciências naturais, ao passo que as
classes e grupos sociais pré-capitalistas o refrearam”.
151
Segundo Eric HOBSBAWM (Indústria e Império, cit., I, 82), em 1838, mesmo no Reino
Unido, um quarto da energia utilizada na indústria têxtil era ainda fornecida pela água (roda hidráulica).
Nos altos-fornos, a máquina a vapor só começou a ser utilizada em 1788.
152
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 312ss.
153
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política, cit., 181/182.
103
154
À escala do mundo, porém, em 1850, a energia mecânica representava apenas 6% do total da
energia utilizada, cabendo 79% à energia animal e 15% à energia do homem. Em 1900, estes valores
eram: 38% para a energia mecânica (84% em 1930; 96% em 1960); 52% para a energia animal (12% em
1930 e 1% em 1960); 10% para a energia humana (4% em 1930; 3% em 1960). Dados colhidos em V.
PRÉVOT, ob. cit., 12. No que toca aos EUA, calcula-se que ainda em 1850 a energia humana e animal
representava 94% da energia utilizada na indústria transformadora; um século depois, essa percentagem
era inferior a 1%, apesar de, entretanto, a população ter triplicado (Time, 14.7.1975).
155
Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, cit., 275.
156
Tendo em conta os vários países, em 1860 o têxtil e o vestuário representavam ainda cerca de
65% do emprego na indústria transformadora (P. BAIROCH, “Structure…, cit., 962). Isto apesar de os
preços elevados do trigo obrigarem a uma permanente inovação tecnológica visando substituir mão-de-
obra por máquinas nas várias etapas da indústria (fiação, tecelagem, etc.): segundo E. J. HOBSBAWM
(Era das Revoluções, cit., 63), entre 1800 e 1820 registaram-se 39 patentes na fiação de algodão; 51 na
década de 1820; 86 na década de 1830 e 156 na década de 1840.
157
Cfr. P. BAIROCH, “Les écarts…, cit., 499.
158
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 66 e E. MANDEL, Traité…, cit., I, 149.
104
dimensões para as indústrias do carvão, do aço e da metalurgia. Por outro lado, ligando
o campo à cidade, facilitando o transporte das pessoas (durante o ano de 1845, os
caminhos de ferro britânicos transportaram 48 milhões de passageiros!), das matérias-
primas e dos produtos acabados, os caminhos de ferro vieram ampliar enormemente o
mercado dos bens de consumo e dos bens de capital em geral.
A penetração do capital na esfera da produção, a introdução das máquinas na
produção e nos transportes marcam o triunfo definitivo do modo de produção
capitalista (primeiro na indústria e depois na agricultura, ela própria ‘industrializada’
com a introdução da maquinaria agrícola).
Marx salienta bem este aspecto163:
“O capital industrial é o único modo de existência do capital, em que este tem por
função não só a apropriação da mais-valia ou do trabalho excedente, mas também a sua
criação. Ele é, por conseguinte, a condição do carácter capitalista da produção; a sua existência
implica o antagonismo de classes entre capitalistas e trabalhadores. À medida que ele se
apodera da produção social, a técnica e a organização social do processo de trabalho são
revolucionadas, e com elas o tipo económico e histórico da sociedade. As outras espécies de
capital, que tinham aparecido antes do capital industrial, no seio de relações de produção já
ultrapassadas ou em declínio, não só ficam subordinadas a ele e vêem o mecanismo das suas
funções adaptar-se às necessidades dele, como também só na base dele podem doravante
mover-se; e é com esta base que elas vivem e morrem, persistem e caem”.
4.5.3. - Por outro lado, a revolução industrial trouxe consigo, pela primeira vez
na história da humanidade, a possibilidade de os homens comandarem o crescimento
da produção (que se julgou sem limites) e a tomada de consciência dessa possibilidade.
O desenvolvimento da produção deixou de ser limitado pelas forças naturais, sobre as
quais o homem tinha conseguido definitivo domínio. Por volta de 1780, a economia
inglesa começou a crescer a uma taxa tão elevada, que “foi como se a economia
construídas nos EUA em 1827; na França em 1828; na Alemanha e na Bélgica em 1835 e na Rússia em
1837. Quase sempre com capitais, técnicos, máquinas e ferro britânicos.
163
Cfr. K. MARX, Oeuvres… (ed. Maximilien Rubel), cit., II, 556/557.
164
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 19.
106
levantasse voo”. “Este foi porventura - conclui Eric Hobsbawm - o acontecimento mais
importante da história mundial, pelo menos desde a invenção da agricultura e das
cidades”.165
As necessidades de consumo das classes possidentes deixaram de marcar os
limites do desenvolvimento das forças produtivas. As novas estruturas económicas e
sociais do capitalismo obrigavam a uma permanente valorização do capital, ilimitada
por natureza, revolucionando as condições de desenvolvimento económico de toda a
humanidade, e fazendo do capitalismo uma economia susceptível de progredir em
todas as direcções, compreendida a agricultura, mas que encontra na indústria a sua
esfera de acção privilegiada.
Nas sociedades pré-capitalistas o excedente social assumia, fundamentalmente,
a forma de valores de uso e as classes a quem cabia a direcção da economia só
desenvolviam a produção enquanto tivessem interesse em apropriar-se desses valores
de uso. Este um dos factores que pode explicar as baixas taxas de crescimento
económico e o ritmo muito lento de desenvolvimento das forças produtivas (taxas e
ritmo marcados pela capacidade de consumo das classes dominantes).
Com o advento do capitalismo verifica-se uma mudança radical. O excedente
social assume a forma monetária e é apropriado pelos proprietários dos meios de
produção. Estes, porque dispõem agora de mão-de-obra livre que podem contratar,
convertem o dinheiro em capital. O excedente, em vez de ser integralmente utilizado
para alimentar o consumo improdutivo dos membros das classes dominantes, passa a
ser parcialmente destinado à acumulação. A concorrência entre as empresas e as lutas
dos trabalhadores obrigam a classe capitalista a transformar uma parte do excedente
em capital adicional.
Em outro plano, a concorrência obrigava as empresas a vender ao mais baixo
preço possível; por outro lado, como consequência do aumento da produção, a procura
de trabalhadores poderia ser superior à oferta e provocar a subida dos salários.
Exactamente por isso é que a concorrência, ameaçando as margens de lucro,
estimulava o sistema a reagir, introduzindo novas técnicas aptas a propiciar custos
mais baixos e economia de mão-de-obra. Com este sentido é que no Manifesto
Comunista se diz que “a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente
os instrumentos de produção”. Na verdade, o capitalismo é o primeiro modo de
produção que traz inscrito nas suas leis de desenvolvimento uma tendência para o
165
Cfr. A Era das revoluções, cit., 45/46.
107
com mais de cem mil habitantes); em meados do século XVIII metade da população
vivia nas regiões rurais; em 1851,o número de citadinos ultrapassou pela primeira vez o
dos camponeses: entre 1801 e 1851, a população de Manchester aumentou de 35.000
para 353.000 habitantes; a de Leeds, de 53.000 para 152.000; a de Sheffield, de 46.000
para 111.000; a de Birmingham, de 23.000 para 181.000; em 1881, dois em cada cinco
ingleses e galeses habitavam em seis áreas urbanas.170
A indústria, cada vez mais mecanizada, não absorvia toda aquela massa de
trabalhadores em busca de emprego. As condições de trabalho nas fábricas eram
péssimas e os salários eram muito baixos para longas jornadas de trabalho: os
trabalhadores estavam ainda sujeitos aos castigos e às multas com que os patrões
impunham as ‘normas de produção’, e eram muitas vezes forçados a habitar em ‘casas’
arendadas pelo patrão e a deixar o que restava do seu salário na loja do patrão, a troco
de alimentos, que eram obrigados a comprar nessa loja. As doenças profissionais (um
produto da indústria capitalista) atingiam percentagens elevadas dos trabalhadores de
várias indústrias.171 A pobreza material atingia a grande massa das populações
trabalhadoras, de tal forma que, ainda em 1851, cerca de 10% da população inglesa era
consituída por indigentes.
As cidades não estavam preparadas nem tinham condições para receber tanta
gente. Dada a poluição do ar e da água, morria-se nas cidades de doenças respiratórias
e intestinais, sendo frequentes as epidemias de cólera e de tifo. A única forma de ajuda
era o regulado pelas Poor Laws, muitas vezes reveladoras de grande impiedade para
com os pobres.172 O resultado foi a degradação humana e a generalização das situações
de miséria moral e social, com o alcoolismo, a prostituição, as doenças mentais
frequentes, a violência e a criminalidade crescentes, o infanticídio e o suicídio em
grande escala. A intervenção urbana para melhorar as condições de vida deste
proletariado miserável só começou depois de 1848, quando as epidemias saídas dos
170
Cfr. F. BÉDARIDA, “Le Socialisme…, cit., I, 259; M. DOBB, A Evolução..., cit., 314;
MORTON/TATE, O movimento operário…, cit., 16; E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 28, 33,
121 e 226. Em 1830, Londres era a maior cidade europeia, com mais de um milhão de habitantes. No
continente europeu, Paris tinha pouco mais de 500 mil hbitantes e, fora da Grã Bretanha, apenas 19
cidades europeias tinham mais de cem mil habitantes (cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções,
cit., 230).
171
Eric Hobsbawm dos amoladores nas cutelarias de Sheffield: em 1841, tinham os pulmões
arruinados 50% destes trabalhadores na casa dos trinta anos, 70% na casa dos quarenta e 100% dos que
tinham50 anos ou mais (A Era das Revoluções, cit., 282).
172
A Poor Law Act de 1834 – informa E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 125 –
“confinava os trabalhadores em oficinas semelhantes a prisões, separando violentamente os maridos das
mulheres e dos filhos, a fim de punir os pobres pela sua miséria e de os desencorajar da perigosa tentação
de procriarem futuros indigentes”.
110
bairros pobres começaram a matar também os ricos, tomados de pânico também pelos
sinais de revolução social que começavam a sair desses mesmos bairros, generalizando
o temor de que os seus habitantes, como bárbaros, invadissem a cidade…173
176
Cfr. E. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 221.
177
Cfr. P. SAMUELSON, Economia…, cit., 154.
178
Para mais indicações acerca das condições de vida que marcaram as classes trabalhadoras
após a revolução industrial, na Inglaterra e na França, ver K. M ARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 194,
204-212, 562/563 e 616, onde se transcrevem documentos e depoimentos da época; VILLERMÉ, ob. cit.
179
E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 68/69.
180
Apud F. BÉDARIDA, ob. cit., 258.
112
que são formadas por uma educação diferente; que se alimentam de alimentos
diferentes, que se regem por costumes diferentes, que não são governadas pelas
mesmas leis”.183[itálico nosso. AN]
183
Apud T. W. HUTCHISON, ob. cit., 20. Referindo-se à Rússia de 1905, Lénine fala
igualmente de duas nações, para marcar a diferença entre os ricos e os pobres.
Guardadas as devidas distâncias, algo de semelhante se passa hoje: graças aos prodigiosos
avanços da ciência e da tecnologia, nunca a produtividade do trabalho foi tão elevada como nos nossos
dias. Apesar disso, as desigualdades não cessam de aumentar, a pobreza extrema atinge milhões de seres
humanos, a exclusão social (a “nadificação do outro”, na expressão terrível do cineasta brasileiro Walter
Salles) é uma vergonha do tempo que vivemos. Perante estas realidades (de ontem e de hoje), ganha pleno
sentido o que um dia escreveu Aneurin Bevan: “grande parte do montante do capital de que dispomos
actualmente não é mais do que o resultado dos salários que os nossos pais não receberam” (apud P.
BARAN, A Economia Política…, cit., 367).
De duas nações pode falar-se ainda hoje para caracterizar a situação daqueles países em que a
desigualdade é tão grande que uma boa parte da população como que se encontra excluída da
comunidade. Entre estes contam-se vários países da América Latina, aqueles que o economista brasileiro
Edmar Bacha caracterizou através da expressão países tipo Belíndia (The Belgium in India Situation –
países onde, ao lado de um pequena Bélgica de muito ricos, subsiste uma grande Índia de gente
miserável).
Na verdade, a exclusão social leva porventura ainda mais longe a separação entre as duas nações.
Porque a “nadificação do outro” (na expressão certeira e terrível do cineasta brasileiro Walter Salles)
como que significa, nestes países, a eliminação dos excluídos, reduzindo-os a nada. Os explorados, apesar
de o serem, estão dentro do ‘sistema’, porque, por definição, sem explorados não podem viver os
exploradores. Por isso mesmo, em alguma medida, estes não podem ignorar em absoluto a necessidade de
sobrevivência daqueles. Ao invés, os excluídos não contam para o ‘sistema’: eles não são trabalhadores e
muito menos são clientes das estruturas produtivas dominantes. De facto, é como se não existissem: se
desaparecessem todos, da noite para o dia, o ‘sistema’ não notava qualquer diferença. Talvez até ficasse
aliviado do pesadelo resultante do temor de que um dia os excluídos da cidade resolvam invadir a cidade,
como se temia, nos séculos XVIII e XIX, a invasão dos bárbaros que habitavam as periferias das cidades
industriais.
Recordando a tese kantiana de que a pessoa humana não tem preço, tem dignidade, Fábio Konder
COMPARATO (ob. cit., 8) comenta que, nas sociedades capitalistas actuais, “muitos seres humanos nem
preço têm; perdem até mesmo a sua condição desprezível de mercadoria. São pesos mortos para a
organização econômica capitalista, e o seu desaparecimento em massa produz benefícios evidentes ao
funcionamento do sistema”.
184
Ver MORTON/TATE, ob. cit., 23-39.
114
protecção aos seus aderentes mas também o de fazer frente à baixa dos salários, por
vezes mediante o recurso à greve. No que se refere às friendly societies, a sua primeira
grande preocupação era muitas vezes a de proporcionar um funeral digno aos seus
associados, uma vez que os funerais e os velórios eram caros, dentro da tradição rural,
a que estes trabalhadores continuavam fiéis, de prestar tributo aos mortos.188
Perante as condições de miséria em que viviam, a primeira atitude dos operários,
principalmente nos momentos de crise, foi a de culparem as máquinas pelo desemprego,
o que levou à sua sabotagem e destruição, numa fúria de que foram primeiras vítimas as
Jennies de Hargreaves e, mais tarde, durante a grande revolta dos camponeses do Sul,
em 1832, também as máquinas agrícolas. Aliás, os pequenos comerciantes e os
lavradores sempre estiveram solidários com as acções dos operários tendentes à
destruição ou à sabotagem das máquinas, convencidos de que a inovação afectava a
estabilidade das suas vidas. Como bem observa Marx, “é preciso tempo e experiência
antes que os operários, tendo aprendido a distinguir entre a máquina e o seu emprego
capitalista, dirijam os seus ataques não contra o meio material de produção mas contra o
seu modo social de exploração”.189
Em certas actividades, porém, a organização dos trabalhadores, ao longo da
segunda metade do século XVIII, visava abertamente a luta por melhores salários, pela
diminuição da jornada de trabalho e por melhores condições de trabalho. Foi o caso dos
mineiros, dos cuteleiros, dos trabalhadores da construção naval, dos alfaiates,
chapeleiros, moleiros, marceneiros e tipógrafos, que desencadearam várias greves,
muitas vezes acompanhadas de actos de violência e de destruição de matérias-primas e
de máquinas, para pressionar os patrões e impedir o trabalho dos fura-greves, na
tentativa de obter resultados a curto prazo. É que não havia organização nem fundos
capazes de apoiar os trabalhadores grevistas, e estes não podiam passar muito tempo
sem trabalhar (isto é, sem o salário). Por isso, uma greve que não fosse ganha
rapidamente era uma greve perdida.190
Em 1804/1805, os tecelões escoceses desencadearam uma greve por melhores
salários, que mobilizou trabalhadores de toda a Escócia e que só terminou após violenta
repressão, que culminou com a prisão e a condenação de todos os membros do comité
de greve. Vendo que todas as acções que desenvolvessem para melhorar a sua situação
eram consideradas ilícitas e que os trabalhadores envolvidos eram considerados
188
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 124.
189 ?
Cfr. K. MARX, Le Capital, trad. J. Roy, cit., 307.
190 ?
Cfr. MORTON/TATE, ob. cit., 19-23.
117
191
MORTON/TATE (ob. cit., 46) transcrevem uma interessante declaração do Duque de
Newcastle a este propósito: “A grande dificuldade reside nesta quase impossibilidade de obter
informações sobre os movimentos e as intenções dos revoltosos: está tudo tão bem organizado e agem de
uma forma tão secreta, além do facto de ninguém ousar opor-se-lhes com receio de arriscar a vida, que é
difícil descobri-los… Neste momento, está a realizar-se uma espécie de negociações entre os comités
formados pelos delegados dos operários descontentes da indústria de malhas, os chapeleiros e os patrões”.
118
a Marcha dos Blanketeers (de blankets, os cobertores que eles produziam e que
levavam sobre os ombros durante a marcha), atacada com violência e terminou com a
habitual onda de prisões.192
4.5.7. - Em 1824 e 1825 são aprovadas duas leis que autorizam a criação de
sindicatos e o recurso à greve, embora punindo a intimidação e o uso da violência (só
em 1871 e 1875 seriam promulgadas leis que reconheciam maior liberdade aos
sindicatos).193 No espaço de alguns meses, apesar dos esforços do patronato e do poder
político par destruir os jovens sindicatos, assistiu-se a uma autêntica explosão de
organizações sindicais e em 1827 surgiu o primeiro jornal sindical, o Trades’
Newspaper.
Os sindicatos tinham, porém, regras muito apertadas de recrutamento, efectuado
sobretudo entre os operários qualificados. Só depois de 1829 se inicia, a partir dos
distritos de implantação da indústria têxtil, no Lancashire, o movimento que levaria à
organização de sindicatos modernos, movimento que conheceu o seu ponto alto em
1830, com a fundação, por John Doherty, da National Association for the Protection of
Labour (NAPL), que em 1831 afirmava ter 100 000 associados (não só trabalhadores
da indústria têxtil, mas também mecânicos, moldadores, mineiros, operários cerâmicos
e da indústria de lanifícios). O seu semanário (The Voice of People) atingiu uma
tiragem de 3 mil exemplares, tendo a NAPL organizado e apoiado várias greves e
manifestações a favor da lei da dez horas de trabalho diário. Como muitas
organizações deste tipo naquela época, viria a soçobrar em 1832.
Por esta altura, começa a ser utilizada, na Grã-Bretanha e na França, a
expressão classe trabalhadora e, na década de 1820, surgiu o conceito e o termo
socialismo. Também por volta de 1830 começam a desenvolver-se iniciativas no
sentido da formação de sindicatos gerais, de âmbito nacional, abrangendo na
solidariedade operária um número crescente de trabalhadores de todo o país. O
propósito deste movimento sindical era o de criar as condições para a greve geral, que
o Partido Cartista analisou também como método de acção política. Mesmo depois do
192
Os tecelões manuais (cerca de meio milhão) foram uma das classes profissionais que
sofreram com o advento de industrialização: “morriam progressivamente de fome na esperança vã de
competirem com as novas máquinas, trabalhando mais por menos dinheiro” (E. J. HOBSBAWM,
Indústria e Império, cit., I, 131).
193
Segundo E. J. HOBSBAWM (últ. ob. cit., I, 174), a legislação de 1824 ficou a dever-se ao
empenho dos Filósofos Radicais, convencidos de que, uma vez autorizados, os sindicatos cedo
evidenciariam a sua ineficácia, o que levaria os trabalhadores a não mais se interessarem por eles.
119
colapso dos sindicatos gerais em 1834, permaneceu muito viva no mundo do trabalho
a ideia de que a grande arma dos trabalhadores era a solidariedade operária
permanente, um código moral, que condenava, em primeiro lugar, os fura-greves
(blacklegs).194
Paralelamente, regista-se, a partir de 1824, uma grande expansão do movimento
cooperativo, com base nos ensinamentos e no impulso de Robert Owen. Este regressou
da América em 1829, após o fracasso da sua colónia New Harmony. Para Owen, o
primeiro objectivo de toda a existência é ser feliz, sendo que, para este admirador de
Bentham, “ a felicidade não se pode alcançar individualmente, porque é inútil esperar
uma felicidade isolada: todos têm de participar dela ou os poucos que a alcancem
nunca hão-de disfrutá-la”. 195
No quadro do socialismo utópico, Owen concebeu uam
sociedade em que os próprios sindicatos se encarregassem de organizar a produção nas
indústrias cujos trabalhadores eles representavam, constituindo uma poderosa rede de
cooperativas cuja estrutura substituiria o estado. Mas o facto de Owen rejeitar qualquer
ideia de luta de classes levantou dificuldades na relação com os sindicatos e com os
dirigentes operários caldeados nas lutas contra o novo capitalismo industrial.
194
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 286-289.
195
Apud E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 329.
196
Cfr. A. SEDAS NUNES, ob. cit., 289.
120
197
Cfr. A SEDAS NUNES, op. loc. cit.
198
Citações colhidas em MORTON/TATE, ob. cit., 92/93.
199
Um jornal da época (citado por MORTON/TATE, ob. cit., 93) escreveu: “Há actualmente dois
Parlamentos em Londres, mas não hesitamos em dizer que o dos Trabalhadores é de longe o mais
importante e que dentro de um ou dois anos terá a maior influência. Este Parlamento é mais nacional do
que aquele e apresenta um corpo eleitoral muito mais vasto. O Sindicato compõe-se de cerca de um
milhão de membros que gozam do sufrágio universal”.
121
200
Só em 1865 viria a ser criado, sem ser considerado ilegal, o primeiro sindicato de
trabalhadores agrícolas (inicialmente limitado à Escócia), facto que Marx considerou um “verdadeiro
acontecimento histórico”. Cfr. K. MARX, Le Capital (trad. J. Roy, cit.), 615.
201
Cfr. M. DOBB, A evolução…, cit., 389/390.
202
É conhecida a boutade de Napoleão: “como o povo come todos os dias, deve ser-lhe
permitido trabalhar todos os dias”.
203
Antes da aprovação desta lei, um médico de Londres defendeu, em depoimento prestado na
Câmara dos Comuns, a necessidade de “legislação para impedir que possa infligir-se a morte sob
qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é corrente nas fábricas) deve ser seguramente considerada
como um dos métodos mais cruéis de a infligir” (citado por K. MARX, O Capital, trad. J. Roy, cit, 209).
204
Em 1838, os homens adultos representavam apenas 23% do operariado fabril da indústria
têxtil (o grosso da mão-de-obra era constituído por mulheres e crianças). Informação colhida em E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 94.
122
trabalho de dez horas (regime que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1848, após um
período de transição desde 1.7.1847, em que vigorou a jornada de 11 horas). Mas só
em 1853 seria respeitada a lei que veio fixar em 60 horas o horário semanal máximo
para os homens adultos, na indústria têxtil e em algumas outras.
Em 1847, o Ten Hours Bill veio consagrar o horário de dez horas de trabalho
diário. Fizeram-se ouvir os clamores – que sempre acompanharam as leis do trabalho –
de que se tratava de uma intromissão inadmissível e ruinosa do estado na liberdade do
mercado e na liberdade contratual. E um economista como William Nassau Senior
alegou mesmo que o lucro dos patrões era obtido na última hora de trabalho, pelo que a
redução do horário de trabalho traria consigo fatalmente a diminuição da taxa de lucro,
pondo em causa a saúde da economia. Apesar de tudo, esta legislação acabou por ser
aceite e o Economist realçava, em 1867, “a sabedoria destas medidas”.205
Estes avanços são, manifestamente, o resultado das lutas dos trabalhadores e das
suas organizações a respeito de uma das questões mais sensíveis de sempre, o horário
de trabalho. Mas a aprovação destas leis poderá também ter contado com o apoio da
aristocracia rural, com o propósito de criar dificuldades à nova burguesia industrial, e
ainda com o apoio de um sector mais esclarecido e mais progressista dos industriais.
Estes compreenderam que não era de seu interesse deixar que o mercado livre e a livre
contratação individual, impondo horários de trabalho absurdos, provocassem a
exaustão dos trabalhadores e a sua incapacidade para desenvolver as suas
competências.
Para este segmento do patronato, a limitação do horário de trabalho passou a ser
considerada uma exigência do bom funcionamento do sistema capitalista, no estádio de
desenvolvimento alcançado em meados do século XIX. Análises da época referem que,
perante a restrição do horário de trabalho diário, os trabalhadores ficavam menos
exaustos e mais capazes de aprender e de utilizar novas técnicas, o que contribuía
parao aumneto da produtividade e para a prosperidade da indústria. Nesta lógica,
começou a ganhar terreno, mesmo entre alguns industriais, a ideia de que o bom
desempenho do capitalismo requer a intervenção do estado. Por outro lado, impunha-se
a ideia de que, nas relações industriais, o direito deve proteger a parte mais fraca. Lê-se
num relatório de 1864 da inspecção do trabalho: “o trabalho livre (se podemos
designá-lo assim), mesmo num país livre, exige o braço forte da lei para o proteger”.
205
Apud E. J. HOBSBAWM, últ. ob. cit.,177.
123
Foi neste contexto que se começou a praticar, nas décadas de 1840 e 1850, em
algumas indústrias e em algumas regiões da Grã-Bretanha, o sistema que ficaria
conhecido por semana inglesa (sem trabalho nos domingos e nos sábados da parte da
tarde). Ao mesmo tempo, desenvolveram-se outros métodos de melhoria dos lucros
diferentes dos que resultavam do aumento do horário de trabalho e da diminuição dos
salários, nomeadamente os ritmos mais intensivos de trabalho (para acompanhar
máquinas cada vez mais rápidas) e a remuneração em função dos resultados.206
206
Sobre estas questões, ver E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 173.177 e G.
HODGSON, The Democratic Economy, cit., 81ss.
207
Em 1825 Johm Gray publicou Lecture on Human Hapiness; no mesmo ano, Thomas
Hodgskin publicou Labour Defended; em 11827, foi a vez de William Thompson publicar Labour
Rewarded; em 1838/1839, John Francis Bray publicaria Labour’s Wrongs and Labour’s Remedy. Uma
análise da literatura socialista desta época na Grã Bretanha pode ver-se em MORTON/TATE, ob. cit.,
68ss.
208
Um semanário próximo do cartismo (o Northern Star, dirigido pelo irlandês Fergus
O’Connor, uma das grande figuras do Cartismo) tinha em 1839 uma tiragem de 60.000 exemplares e um
número de leitores muito maior (cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 176). Sobre o
movimento cartista, ver P. SWEEZY, Socialismo, cit., 111-114; F. BÉDARIDA, “Le socialisme en
Angleterre…, cit., 319-328 e “Le socialisme anglais…, cit., 558-567; MORTON/TATE, ob. cit., 64ss e
102ss.
209
Por esta altura, só cerca de 840 mil homens, de entre os seis milhões de homens adultos,
tinham direito de voto. E as circunscrições eleitorais estavam organizadas de tal modo que cerca de 150
124
dirigentes – reconhece que a luta pela Carta do Povo foi vencida, mas observa que “a
luta impressionou de tal modo a classe média vitoriosa, que, a partir desse momento, se
sentiu feliz por poder comprar um armistício prolongado, através de sucessivas
concessões aos trabalhadores”.212 Na verdade, anulado o perigo do Cartismo em 1848,
o descontentamento manifesto dos trabalhadores foi parcialmente atendido, num
período em que os movimentos de massas rareavam, porque os mais esclarecidos de
entre as classes dominantes compreenderam que o sufrágio universal não seria capaz
de anular o peso da ideologia dominante, podendo ser aproveitado, por isso mesmo,
como factor de ‘anestesia’ da contestação operária, de ‘integração’ dos contestatários
dentro do ‘sistema’, de ‘apólice de seguro’ contra o perigo de revolução. Em 1867, o
Parlamento aprovou o Reform Act que veio consagrar o sufrágio universal, apesar de
muitos continuarem a insistir na tese de que “a democracia significava socialismo”.213
212
Apud MORTON/TATE, ob. cit., 135.
213
Venceu o ponto de vista expresso nesta história (verdadeira ou inventada, pouco importa), que
relata uma conversa entre dois membros da nobreza. Um deles diz ao seu amigo não poder compreender
como é que ele aceita que o seu cocheiro possa ter um voto igual ao dele, ao que este último respondeu: é
que, assim, posso dispor do meu voto e também do voto do meu cocheiro. De todo o modo, segundo
informa E. J. HOBSBAWM (últ. ob. cit., I, 178), só em 1914 o Times veio reconhecer a democracia como
um sistema aceitável.
126
nível mínimo (abaixo do qual os salários não poderiam manter-se duradouramente), era
indispensável que aumentassem os salários nominais.
Esta, muito sumariamente, a explicação de Ricardo para o facto de, nas
condições da Inglaterra do tempo e em virtude da vigência das leis dos cereais,
subirem as rendas das terras e a prosperidade dos landlords, enquanto a jovem
indústria capitalista se ia debatendo com dificuldades, agravadas nos períodos de crise,
claramente reflectidas na baixa das taxas de lucro.
David Ricardo, justamente considerado “o profeta económico da burguesia
industrial”, considerava um ‘absurdo’ inadmissível o facto de ser afinal a classe
ociosa dos proprietários de terras a ganhar com o desenvolvimento da indústria. Por
isso desencadeou uma luta sem tréguas contra este estado de coisas, advogando a
revogação das Leis dos Cereais e a prática do livrecambismo, de modo a permitir a
entrada livre de trigo importado na Inglaterra a preços mais baixos, assim evitando a
subida das rendas, a subida do preço do trigo, a alta dos salários monetários e a
consequente redução da taxa de lucro.
Se “Ricardo conquistou a Inglaterra tão completamente como a Santa Inquisição
tinha conquistado a Espanha” (como Keynes sublinhou), não admira que as suas teses
livrecambistas tenham encontrado eco no Parlamento inglês, que, ao decidir a
revogação das Corn Laws, em 1846, decreta, efectivamente, a vitória definitiva da
burguesia industrial sobre a aristocracia rural inglesa. Como Marx salientava, logo em
1848, no seu Discurso Sobre a Questão do Livre-Câmbio, “a abolição das leis dos
cereais na Inglaterra foi o maior triunfo que o livrecambismo alcançou no séc. XIX”.214
A classe operária aliou-se inicialmente com os free-traders no combate aos
últimos vestígios da feudalidade, até à abolição das Corn Laws. A velha aristocracia
procurou tirar desforço desta derrota, viabilizando a aprovação no Parlamento, em
Junho de 1847, da lei que impôs a redução do horário de trabalho para dez horas,
aspiração por que os operários vinham lutando havia mais de trinta anos. À medida,
porém, que o proletariado se ia afirmando como força social e política, e uma vez
ultrapassada a luta que a burguesia industrial, como classe que aspirava ao poder, teve
de travar contra a aristocracia feudal, podemos dizer - com Sedas Nunes 215
- que
“latifundiários e industriais foram-se aproximando uns dos outros, tendendo a fundir-
se, através de vínculos políticos, financeiros, matrimoniais e outros, numa só classe
214
O texto vem publicado como Anexo em Misère de la Philosophie, ed. cit., 197ss.
215
Cfr. A. SEDAS NUNES, ob. cit., 290.
128
dominante; do mesmo passo, o livre comércio por sobre a fronteira das nações e o
imperialismo colonial abriam à indústria britânica insuspeitadas perspectivas de
incremento e prosperidade”. Como escreveu Joan Robinson, o livrecambismo “foi,
verdadeiramente, uma projecção dos interesses nacionais britânicos”.216
216
Cfr. J. ROBINSON, Filosofía…, cit., 127.
129
217
Como releva A. SOBOUL, “La Révolution Française…, cit., 27, “os movimentos de unificação
nacional que a Europa conheceu no século XIX devem, a mais de um título, ser considerados como
revoluções burguesas. Qualquer que seja, com efeito, a importância do factor nacional no Risorgimento
ou na unificação alemã, as forças nacionais não teriam podido atingir a criação de uma sociedade
moderna e de um estado unitário, se a evolução económica interna não tivesse tendido para o mesmo
objectivo.”
130
na América, na Itália, na Alemanha e no Japão. Com Eric Hobsbawm, diremos que ela
foi “a única revolução ecuménica”.218
No entanto, mesmo no caso da Revolução Francesa, a tomada das estruturas do
poder político representou apenas a conquista pela burguesia da única esfera do poder
que ainda lhe escapava. Na verdade, a burguesia era já a força económica dominante,
era a classe mais rica e mais culta, as relações capitalistas e a ideologia burguesa já
eram dominantes no seio das sociedades feudais em profunda desagregação. Como
vimos já, o processo de desenvolvimento do capitalismo já vinha de trás; as revoluções
burguesas foram o ponto culminante desse processo, ponto a partir do qual a
implantação da nova ordem económica, social e política se acelerou.
Comparando a ‘revolução inglesa’ com a Revolução Francesa, Jaurès não
hesitou em designar aquela de “estreitamente burguesa e conservadora” e em qualificar
esta de “largamente burguesa e democrática”. A diferença de condições em que um e
outro movimento surgiram poderão, aliás, explicar a sua diferente natureza.
Na Inglaterra, a nobreza tinha poucos privilégios (v. g. os seus membros
pagavam impostos como toda a gente) e só os lords constituíam uma ordem legalmente
distinta.
Com a Guerra das Duas Rosas, quase desapareceu a antiga aristocracia que se
realizava no exercício das virtudes militares, e a nova nobreza reconstituída pelos
Tudor não sentia qualquer preconceito que a impedisse de se dedicar aos negócios (a
riqueza passou muito cedo a definir a situação social das pessoas).
As necessidades da expansão marítima e colonial originariam, por sua vez, um
certo grau de solidariedade de interesses entre a aristocracia rural e a burguesia.
Nestas condições, aceitando a aristocracia a nova ordem burguesa, foi fácil um
compromisso de partilha do poder, sem ter que ser reivindicada pela burguesia a
igualdade de direitos entre todos os homens. As liberdades fundamentais eram
reclamadas como uma conquista, a partir da Magna Carta (1215), sem necessidade de
apelar para o direito natural. Como salienta Albert Soboul, “a Constituição britânica
reconhecia não os direitos do homem, mas os dos Ingleses: faltava o universalismo às
liberdades inglesas”.219
Diversa era a situação na França do Ancien Régime:
218
Cfr. A Era das Revoluções, cit., 79.
219
Cfr. A. SOBOUL, últ. ob. cit., 16.
131
220
Em outras regiões da Europa a servidão só viria a ser oficialmente abolida bastante mais tarde:
na Prússia, em 1807 (mantendo-se a obrigação de corveia até 1861); na Boémia e na Hungria, em 1848;
na Rússia, em 1861.
221
É conhecida a descrição de La Bruyère: “Vêem-se certos animais ferozes, machos e fêmeas,
espalhados pelos campos, negros, lívidos e todos queimados pelo sol, agarrados à terra que revolvem e
remexem com invencível obstinação; possuem algo como uma voz articulada e, quando se equilibram
sobre os pés, mostram um rosto humano; e, com efeito, são homens. À noite retiram-se para covis, onde
vivem de pão negro, água e raízes”.
222
Cfr. A. SOBOUL, “La Révolution Française…, cit., 9. Segundo uma conhecida lei económica
(a lei de Engel), a percentagem do rendimento gasta em bens de primeira necessidade diminui à medida
que aumenta o rendimento disponível das famílias. Se as estatísticas indicam que os bens alimentares
absorvem uma parcela importante do rendimento disponível, esse é um sinal inequívoco de pobreza
acentuada.
132
223
Cfr. A. SOBOUL, últ. ob. cit., 6.
134
226
“É com razão que se lhe chama grande - escreveu Lenine, citado por A. MANFRED, A
Revolução Francesa, cit., 377. Pela sua classe, em proveito da qual trabalha, pela burguesia, fez tanto
que todo o século XIX, esse século que deu a civilização e a cultura a toda a humanidade, decorreu sob
o signo da Revolução Francesa. De um extremo ao outro do mundo, nada mais foi preciso do que pôr
em prática, realizar parcialmente, acabar o que os grandes revolucionários franceses da burguesia tinham
criado ...”.
227
Como salienta Michel Vovelle, a Revolução Francesa traduziu-se na “subversão total, em
menos de dez anos, de todo um antigo edifício político, institucional e social (…), uma imensa subversão
social, o derrube de um edifício multissecular e a afirmação de novas relações de classe” (cfr. M.
VOVELLE, ob. cit., 7/8).
136
228
Ver A. J. AVELÃS NUNES, Uma Volta ao Mundo…, cit.
137
todos os direitos dos cidadãos” e que “a própria propriedade é apenas um meio para a
aquisição sem entraves e posse segura”.
Os artigos de Voltaire no Dictionnaire Philosophique sobre Egalité, Économie
Publique e Propriété são um verdadeiro guia da acção da burguesia revolucionária na
transformção do estado feudal em estado burguês. Segundo o filósofo, a sociedade tem
de estar necessariamente dividida em duas classes, “uma dos ricos que mandam, outra
dos pobres que servem”, porque “o género humano, tal como é, só pode subsistir se
existir uma infinidade de homens úteis que não possuam absolutamente nada, já que,
com toda a certeza, um homem que não tenha dificuldades não deixará a sua terra para
vir trabalhar na vossa; e, se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um
mestre de cerimónias que vo-lo fará”.229
Vale a pena determo-nos na análise deste último trecho, porque ele é
particularmente significativo: os homens cujas concepções alimentaram os ideais dos
revolucionários de 1789 entendiam que a nova ordem burguesa devia assentar no
postulado de que a propriedade de uns implica a exclusão da propriedade de todos os
outros (a infinidade dos homens úteis que não possuem absolutamente nada). Aqui
transparece o conceito da propriedade burguesa, propriedade perfeita, absoluta e
exclusiva, implicando a separação completa dos não-proprietários relativamente aos
meios de produção. Aqui transparece também o reconhecimento da estrutura de classes
própria da sociedade capitalista.
No dia 14 de Julho de 1789 o povo toma a Bastilha, símbolo do poder arbitrário
do rei absoluto e, em geral, do Antigo Regime. A revolução saía dos Estados Gerais
para a rua. Foi o momento simbólico da vitória do movimento revolucionário. Em 26
de Agosto a Assembleia Constituinte aprovou os dezassete artigos da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.230
O art. 1.° proclama que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, e
o art. 2º dispõe que “a finalidade de toda a associação política é a preservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem”, esclarecendo que esses direitos são “a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Assim se aboliam
todos os privilégios pessoais e todas as servidões, para se encarar o homem em geral e
os seus direitos em geral.
229
O mesmo Voltaire defende, em 1737 (La Défense du Mondain), que “o luxo dos ricos faz
viver os pobres e é um índice da prosperidade dos impérios” e afirma, no artigo “Égalité” da
Enciclopédia, que “se a canalha se põe a pensar está tudo perdido”.
230
O texto completo está publicado em M. VOVELLE, ob. cit., 70-72.
138
conseguiram alguns ganhos modestos destas operações. Apesar de tudo, a venda dos
bens nacionais permitiu a constituição de uma classe de pequeno e médio campesinato,
com algum peso na vida económica e social francesa.
Destas medidas resultou a destruição da base económica do poder da Igreja
(cujos bens - cerca de 10% das terras - foram integralmente expropriados, para além da
perda do dízimo) e a liquidação do clero como ordem (ou classe), até porque muitos
dos seus membros foram mortos, outros emigraram e outros ainda abdicaram. O
mesmo não se terá passado com a nobreza. Os seus membros perderam, é claro, os
rendimentos que resultavam dos direitos senhoriais; mas terão perdido apenas um
quarto das suas terras, o que permitiu à nobreza manter o seu estatuto, agora como
elemento da nova aristocracia dos ricos.233
233
As desigualdades nas condições de acesso à propriedade dos bens do clero e da nobreza e o
facto de não ter sido resolvido o problema dos bens comunais poderão explicar (juntamente com a divisão
resultante da Constituição Civil do Clero) a passagem de uma parte dos camponeses, em algumas regiões
da França, para o lado da contra-revolução. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 178-190.
234
Cfr. E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 85-88: “Aquilo que transformou uma
epidemia de agitação camponesa numa convulsão irreversível foi um conjunto de sublevações em cidades
de província e uma onda de pânico geral, que se propagou obscura mas rapidamente a vastas regiões do
país: a chamada Grande Peur de fins de Julho e princípios de Agosto de 1789. No espaço de três semanas
após o 14 de Julho, a estrutura social do feudalismo rural francês e a máquina estatal da França real
estavam em fragmentos”.
140
politicus o pai de família dono de empresa”. Daí a conclusão de que “as representações
políticas da burguesia impõem uma forma de Estado Liberal que não é outra coisa
senão uma aristocracia” (por outras palavras: uma ditadura, a ditadura da burguesia).
Entendia-se, por um lado, que só aqueles que tivessem um certo rendimento
seriam capazes da independência e do esclarecimento exigidos a um sujeito político
racional. Daí o afastamento do sufrágio imposto às mulheres, aos filhos e a todos os
economicamente dependentes, cujos interesses se supõem idênticos aos do pai de
família e do patrão, só a estes cabendo representar aqueles. A única excepção a esta
regra eram os funcionários públicos, porque, em relação a eles, não pode aplicar-se a
regra de que a sua representação cabe ao patrão.
Aceitava-se, por outro lado, que, garantida a liberdade para todos (a liberdade de
empresa), qualquer um podia tornar-se burguês; por isso, excluir os que o não
conseguissem significava apenas o afastamento dos incapazes.
Repare-se nesta proclamação eloquente feita na Assembleia Nacional, durante a
discussão do projecto de Constituição do ano III, pelo deputado Boissy d’Anglas
(23.6.1795):
“Deveis garantir a propriedade do rico. A igualdade civil, eis tudo o que o homem
razoável pode exigir... Devemos ser governados pelos melhores: os melhores são os mais
instruídos e os mais interessados na manutenção das leis; ora, com bem poucas excepções, só
encontrareis tais homens entre os que, possuindo uma propriedade, estão ligados ao país que a
contém, às leis que a protegem, à tranquilidade que a conserva, e que devem a esta propriedade
e às vantagens que ela propicia a educação que os tornou aptos a discutir leis que fixam a sorte
da pátria. O país governado pelos proprietários vive na ordem social, aquele em que os não-
proprietários governam está no estado de natureza”.
238
Benjamin Constant, apud V. S. POKROVSKI, ob. cit., III, 75. Não admira que Benjamin
Constant fosse um dos mais acérrimos adversários do sufrágio universal.
142
titulares dos meios de produção. Esta legislação veio colocá-los à mercê dos interesses
dos empresários (titulares da liberdade de empresa), interesses com os quais se fazia
coincidir o interesse geral.
O padre Jacques Roux, um dos defensores dos interesses populares, clamaria
perante a Convenção, em fins de Julho de 1793,240 que “a liberdade não passa de um
fantasma quando uma classe de homens pode reduzir outra à fome, impunemente. A
igualdade não passa de um fantasma quando os ricos, através do monopólio, exercem
um direito de vida e morte sobre o seu semelhante. A república não passa de um
fantasma vazio quando a contra-revolução se opera, dia a dia, pelo preço dos produtos,
aos quais três quartos dos cidadãos não podem aceder sem verterem lágrimas” e
denunciava a aristocracia mercantil, ”mais terrível do que a aristocracia nobiliária e
sacerdotal”.
A verdade, porém, é que as bases (os interesses) subjacentes à Lei Le Chapelier
eram tão fortes que nem durante o período do Terror eles foram postos em causa. Só na
segunda metade do século XIX, graças às lutas dos trabalhadores, estes conquistaram o
direito de coalizão, ficando aberta a possibilidade legal de recurso à greve, embora a
medida fosse de reduzido alcance, por continuar a não existir liberdade de associação
(lei de 25/5/1864).241
Só vinte anos mais tarde, um século depois (e muitas lutas depois) da vitória da
revolução burguesa, a lei de 21/3/1884 veio reconhecer a liberdade de associação
profissional, tornando legais os sindicatos operários. O ministro do interior do governo
de Jules Ferry, Waldeck-Rousseau, justifica a cedência à reivindicação dos
trabalhadores com o argumento de que esse era o melhor meio para enquadrar a acção
sindical no esforço de melhoria da condição humana e afastá-la do pendor
revolucionário.242
240
Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 163/164.
241
Apesar dos obstáculos levantados, registaram-se várias greves em 1790 e 1791, especialmente
nas profissões mais estruturadas (carpinteiros, pedreiros, vestuário). O movimento grevista esteve
presente durante o período do Directório: apesar do aumento generalizado dos salários, as dificuldades
acentuaram-se em consequência da inflação e de situações de penúria e carestia de bens essenciais,
nomeadamente em 1792 e 1793. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 184/185.
242
É particularmente significativo verificar que a luta da nova classe operária industrial pela
liberdade de associação, nomeadamente no plano sindical, se desenvolveu através de um processo
histórico que poderemos escalonar deste modo, elucidativo dos muitos obstáculos que a ditadura da
burguesia levantou aos trabalhadores, e que estes tiveram que vencer à custa de duras lutas, através das
quais foram conquistando, um a um os seus direitos: a) uma primeira fase de proibição dos sindicatos e
de criminalização de todas as formas de associação; b) admissão e legalização das associações
mutualistas; c) tolerância dos sindicatos; d) legalização dos sindicatos (1824-25) e criação do primeiro
partido dos trabalhadores (o Partido Cartista – 1834); e) aceitação da participação dos sindicatos na
contratação colectiva; f) reconhecimento constitucional da liberdade sindical (na Constituição de
145
“Por toda a parte se entende por salários do trabalho - escreve Smith - aquilo que eles são
habitualmente, isto é, quando o trabalhador é uma pessoa e o proprietário do capital, que o
emprega, é outra.”
“Os salários correntes do trabalho - acrescenta o autor 244 - dependem de contrato
habitualmente celebrado entre duas partes, cujos interesses não são de modo algum idênticos.
Os operários pretendem obter o máximo possível, os patrões procuram pagar-lhes o mínimo
possível.”
Weimar, 1919).
243
“A desigualdade é evidente, mas ela não existia apenas nos textos, foi muito mais nítida ainda
nos factos, pois os poderes jurídicos hesitaram sempre em perseguir as coligações de empregadores. Os
relatórios das autoridades de polícia e dos órgãos de justiça explicam esta atitude pelo receio de que as
suas perseguições constituíssem um mau exemplo para os assalariados revelando a existência de
coligações patronais. Prefere-se tolerar as actuações dos empregadores e não as divulgar, porque se
considera que os patrões não têm interesse em comprometer a riqueza e a prosperidade da nação,
enquanto os operários representam apenas elementos de desordem social e de agitação política” (cfr.
DOLLÉANS/DEHOVE, ob. cit., I, 163). Tendo em vista a realidade da Inglaterra, Adam Smith denunciou
abertamente esta desigualdade de tratamento e a hipocrisia dominante na abordagem desta problemática.
Cfr. A. J. AVELÃS NUNES, Uma Volta ao Mundo…, cit, especialmente 220ss.
244
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176.
146
Adam Smith revela, neste trecho, uma clara compreensão da natureza do salário nas
relações de produção de tipo capitalista e do enquadramento jurídico do ‘contrato de trabalho’,
expressamente apontado como um contrato entre duas partes cujos interesses não são idênticos e
cuja posição relativa não é de igualdade, mas de acentuada desigualdade, como veremos a
seguir, apoiados em trechos de Riqueza das Nações.
Considerando o contrato como um acordo celebrado entre duas pessoas livres e iguais em
direitos, o pai fundador do liberalismo vem dizer, abertamente, que o ‘contrato de trabalho’ não
é um contrato como os outros, assim desmitificando um dos pilares fundamentais de toda a
construção liberal. E não é, porque as duas partes que intervêm nesse ‘contrato’ não estão nele
em posição de igualdade e porque uma delas (os trabalhadores) não são, verdadeiramente, livres
de contratar ou não contratar (economicamente, são obrigados a trabalhar para sobreviver,
porque, nada tendo de seu, além da “sua força e habilidade de mãos”, “vivem dos salários”).
Mas Adam Smith leva ainda mais longe as suas reflexões: 245
Em primeiro lugar, observa que
“não é difícil prever qual das partes, em circunstâncias normais, levará sempre a melhor
nesta disputa [a disputa entre os operários que “pretendem obter o máximo possível” e os
patrões que “procuram pagar-lhes o mínimo possível”] e obrigará a outra a aceitar os seus
próprios termos. Os patrões, sendo em menor número, têm muito maior facilidade em associar-
se; além disso, a lei autoriza, ou pelo menos não proibe, as suas coligações, enquanto proibe as
dos trabalhadores. Não temos qualquer lei do parlamento contra as coligações destinadas a
baixar o preço do trabalho, mas temos muitas contra aquelas que pretendam elevá-lo. Em todas
as disputas desse género, os patrões podem resistir por muito mais tempo. Um proprietário, um
rendeiro, um dono de fábrica, ou um comerciante, poderiam normalmente subsistir um ou dois
anos sem empregar um único trabalhador, com base no pecúlio previamente acumulado. Muitos
trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana, poucos subsistiriam um mês, e
praticamente nenhum sobreviveria um ano sem emprego. A longo prazo, o operário pode ser tão
necessário ao patrão como o patrão é necessário a ele, mas a necessidade não é tão imediata”.
Em segundo lugar, chama a atenção para o diferente tratamento que o estado (a lei)
concede aos trabalhadores e aos patrões:
“Tem-se dito que é raro ouvir-se falar de coligações de patrões, enquanto se ouve com
frequência falar nas dos operários. Mas quem quer que, com base nesse facto, imagine que os
patrões raramente se coligam é tão ignorante do mundo como deste assunto. Os patrões mantêm
sempre e por toda a parte uma espécie de acordo tácito, mas constante e uniforme, tendente a
que os salários do trabalho se não elevem para além da taxa que vigora no momento. A violação
de tal acordo é, em toda a parte, considerada como o mais impopular dos actos e constitui uma
espécie de motivo de censura a qualquer patrão entre os seus próximos e iguais. É raro, na
verdade, ouvirmos falar desse acordo porque ele corresponde à situação habitual, pode mesmo
dizer-se natural, que jamais é comentada. Às vezes, os patrões entram também em coligações
específicas para fazer descer os salários do trabalho ainda abaixo dessa taxa. Estas são sempre
organizadas debaixo do maior silêncio e segredo, até serem postas em prática e, quando os
trabalhadores cedem, como por vezes acontece, sem opor resistência, as outras pessoas nunca
chegam a ouvir falar delas, por muito gravemente que pesem sobre os trabalhadores.”
245
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176-178.
147
“Muitas vezes os trabalhadores organizam uma coligação defensiva para se lhes oporem; e
também, às vezes, se organizam de moto-próprio, sem que se tivesse verificado qualquer
provocação desse género, para elevarem o preço do seu trabalho. As suas pretensões habituais
incidem, umas vezes, sobre o alto preço das provisões, outras vezes, sobre o elevado lucro que
os patrões auferem à custa do seu trabalho. Mas, quer estas coligações tenham carácter ofensivo,
quer defensivo, ouve-se sempre falar delas em abundância. Para conseguirem uma decisão
rápida, os trabalhadores recorrem sempre ao mais alto clamor e, em certos casos, à mais
chocante violência e desacato. Sentem-se desesperados, e actuam com o delírio e imoderação de
homens desesperados, a quem só resta morrer de fome ou, pelo medo, obrigar os patrões a acei -
tar imediatamente as suas reivindicações. Em tais circunstâncias, os patrões erguem, pelo seu
lado, idêntico clamor, reivindicando incessantemente o auxílio das autoridades civis e o
rigoroso cumprimento das leis destinadas a, com tanta severidade, se oporem às coligações de
criados, trabalhadores e jornaleiros.”
Perante homens desesperados, a quem só resta morrer de fome, é natural que os patrões
tirem vantagem, até porque contam com o apoio do estado (“o auxílio das autoridades civis”),
que não só faz leis que proibem com severidade as coligações de trabalhadores, mas impõe pela
força o seu rigoroso cumprimento. Nestas condições, a relação de forças é claramente favorável
aos empregadores capitalistas, que acabam sempre por obrigar a outra parte a “aceitar os seus
próprios termos”, conseguindo os patrões o seu objectivo de pagar aos operários “o mínimo
possível.”
A vantagem (o poder) dos patrões vem reforçada nos “anos de carestia”, com “elevado
preço das provisões.” E Adam Smith explica porquê: 247
1) porque, em anos destes, “os trabalhadores independentes pobres são, muitas vezes,
obrigados a consumir os pequenos capitais que habitualmente utilizavam para o seu sustento e
na compra de matéria-prima para o seu trabalho, o que os leva, para verem assegurada a
subsistência, a tornarem-se assalariados”;
2) porque, até por efeito desta proletarização de camadas sociais cada vez mais amplas, “a
procura de emprego é superior à oferta, muitos trabalhadores sujeitam-se a aceitá-lo em
condições inferiores às normais.” E os salários baixam;
3) porque - como finamente observa Smith -, sendo altos os preços das provisões, os
proprietários e os rendeiros não só ficam mais fortes (aumentam as rendas e os lucros) como
vêem reforçada a sua vantagem na negociação salarial com os trabalhadores, que a necessidade
torna “mais humildes e dependentes.”248
246
Cfr. Riqueza das Nações, I, 178.
247
Cfr. Riqueza das Nações, I, 203/204.
248
Um exemplo, colhido de Riqueza das Nações, I, 207: “Em 1740, um ano de extraordinária
carestia, muitas pessoas estavam dispostas a trabalhar em troca da simples subsistência.”
148
Como se escrevesse nos nossos dias, o filósofo-economista começa por sublinhar que o
estado não é neutro quando regula questões relativas às ‘relações industriais’: 249
O estado não está, pois, ao serviço dos interesses dos trabalhadores e a voz destes “é pouco
ouvida e menos considerada nas deliberações públicas, excepto em casos particulares, quando o
seu clamor é animado, incitado e apoiado pelos patrões, não com o fim de servir os interesses
249 ?
Cfr. Riqueza das Nações, I, 283 e 302/303.
250
Cfr. Riqueza das Nações, I, 303. E Smith acrescenta: “fossem os trabalhadores a estabelecer
uma combinação do mesmo género em sentido contrário, ou seja, a de não aceitarem certos salários sob
determinada pena, a lei puni-los-ia severamente; ora, se ela fosse imparcial, trataria os mestres da mesma
forma.” O que não acontecia.
251 ?
Cfr. Riqueza das Nações, I, 476.
252
Cfr. Riqueza das Nações, I, 178/179.
149
classes feudais), quase sempre mais sob a forma de movimentos espontâneos do que
sob a forma de movimentos revolucionários organizados.
O grupo mais activo era constituído pelos sans-culottes, assim designados
porque não usavam os calções justos (culottes) habitualmente vestidos pela nobreza;
usavam as calças, o colete, a boina e o laço (indumentária que os distinguia e igualava,
bem como o tratamento por tu). Não constituíam uma classe social, mas um grupo
social heterogéneo (homens casados, de 40 a 45 anos, maioritariamente alfabetizados),
constituído por pequenos produtores independentes (artesanos e lojistas, cerca de
metade da sans-culotterie), uma parte da pequena burguesia e uma minoria de
assalariados. Não eram um partido nem uma estrutura organizada, mas um movimento
informe, predominantemente urbano, animado por gente solidária, que defendia
princípios igualitários, expressos na reivindicação do direito à vida e à subsistência para
todos. Os sans-culottes respeitavam a pequena propriedade privada, mas manifestava
grande hostilidade para com os ricos; defendiam uma democracia igualitária e libertária,
próxima da democracia directa; sustentavam que o estado devia garantir aos pobres o
direito a trabalho, um salário e a segurança social. Em nome destes princípios, foram
eles que trouxeram a revolução para a rua.253
A participação activa e as iniciativas de rua das camadas populares não estava,
certamente, nas previsões dos revolucionários burgueses. Mas ela tornou-se inevitável
perante o medo (fundamentado) da contra-revolução, estimulada pelas monarquias
europeias, animada no exterior pelos exilados e com vários focos no interior da França.
As acções de rua assustaram dirigentes da Revolução, que temiam a “subversão
social”, mas os historiadores reconhecem que, em 1791, a alternativa era a de
radicalizar a revolução, dando campo às massas populares, ou a abrir o flanco à contra-
revolução. A Constituição sancionada em 13 de Setembro de 1791 marcou os limites
da revolução burguesa enquadrada pela monarquia constitucional.254
253
Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 198-202 e E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 90/91.
À luz do que se diz no texto, compreende-se a justeza do retrato que do sans-cullote nos dá Prudhomme:
“Nenhum sans-culotte se torna ou se mantém rico; respeita o são direito de propriedade; morreria de fome
em vez de arrancar pela força a subsistência de uma família honesta e próxima do nível das suas
necessidades; mas é sem quartel para essas fortunas rápidas e insolentes, obra da intriga e da avidez.
Então ele toma os seus bens e restabelece o equilíbrio, sem o qual não há igualdade e, portanto, não há
República.”
254
Michel Vovelle refere o Grande Medo do verão de 1789, resultante de uma série de boatos
que, na sequência da Tomada da Bastilha, se espalharam por toda a França, anunciando a chegada de
bandidos que pilhariam e queimariam as colheitas. Este medo esteve na origem da decisão de abolir a
feudalidade, votada na noite de 4 de Agosto. Estas ondas de medo terão gerado explosões e violência
colectiva incontrolada (como o massacre de Setembro de 1792 de milhares de membros da aristocracia e
do clero, detidos em prisões da capital). Mas a verdade é que certas facções da burguesia revolucionária
150
caucionaram a violência revolucionária das massas contra os membros das antigas classes dominantes.
Marat escreveu no L’Ami du Peuple que “é dos fogos da subversão que nasce a liberdade”; e Robespierre,
ao defender a teoria do governo revolucionário, sustenta que “o governo revolucionário deve aos bons
cidadãos toda a protecção nacional; aos inimigos do povo, deve apenas a morte”. A necessidade de
recorrer à violência revolucionária para salvar a Revolução parece ser um aspecto marcante do
pensamento da burguesia revolucionária. Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 192-198.
255
Suspeito, segundo a definição de 1793 era aquele “que não fez acto de adesão formal à
Revolução” (ver M. VOVELLE, ob. cit., 199).
151
públicos’, nos quais os ricos seriam obrigados a entregar os seus géneros, “oferecendo
a França, por toda a parte, o espectáculo e os recursos de um celeiro imenso”.
Esta santa igualdade foi uma constante no pensamento francês do século XVIII,
de Montesquieu a Rousseau, iluminando o anseio de uma República onde nenhuma
pessoa se encontrasse “sob a dependência directa e não recíproca de qualquer outro
particular”. Este objectivo igualitarista e o objectivo de assegurar a subsistência de
todos marcaram a actuação dos Jacobinos, o pensamento de Robespierre e de Saint-
Just, centrado no ideal de uma sociedade de pequenos produtores inde-pendentes, em
que a propriedade seria sempre fundada no trabalho pessoal.
Ideal impossível, em contradição com a realidade, que eles próprios ajudaram a
construir, de uma sociedade em que a força de trabalho de trabalhadores livres adquiriu
a categoria de mercadoria, em que a propriedade (ou a apropriação) de uns implica a
não-propriedade (ou a não-apropriação) de outros, cimentando-se a propriedade
daqueles no recurso ao trabalho assalariado destes. Uma sociedade em que a
concentração da propriedade nas mãos de um pequeno estrato da burguesia arrasta
consigo a liquidação dos pequenos produtores independentes, substituindo a
propriedade fundada no trabalho pessoal pela propriedade fundada no regime do
salariato.
O projecto igualitarista e as suas contradições estão patentes em vários escritos
de Robespierre: “O primeiro direito é o de existir – escreveu ele em 1793; a primeira
lei social é a que garante a todos os membros da sociedade os meios de existir; todas as
outras estão subordinadas a esta”.
Daí a sua crítica ao direito de propriedade, tal como o consagrava a Declaração
de 1789:
“Definindo a liberdade como o primeiro dos bens do homem, o mais sagrado dos
direitos que ele recebe da natureza, dissestes com razão que ela tinha por limites os direitos de
outrem. Porque não aplicastes este princípio à propriedade que é uma instituição social?...
Multiplicastes os artigos para assegurar a mais ampla liberdade ao exercício da propriedade e
não dissestes uma palavra para determinar a sua legitimidade; de maneira que a vossa
Declaração parece feita, não para os homens, mas para os ricos, para os açambarcadores e para
os tiranos”.
256
Perante o ataque da reacção europeia, a jovem República revolucionária recorreu à guerra
total, mobilizando todos os recursos da nação através do recrutamento obrigatório para o serviço militar,
da abolição virtual da distinção entre soldados e civis, do racionamento e do controlo apertado da
economia. “Só hoje nos apercebemos – escreve E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 95 – de
que muitas coisas da República e do ‘Terror’ de 1793/1794 apenas fazem sentido em termos do esforço
total de guerra”. Neste contexto, o governo jacobino aboliu a escravatura nas colónias francesas, com o
objectivo de animar os negros da colónia de S. Domingos a lutar pela República contra os ingleses.
257
Cfr. Albert SOBOUL, em Vértice, Julho de 1989, 15.
Como escreveu o historiador Mignet (1824), “os privilegiados quiseram impedir a Revolução; a
Europa tentou submetê-la e, forçada à luta, não pôde nem medir os seus esforços nem moderar a sua
vitória. A resistência interna conduziu à soberania da multidão; a agressão externa, ao domínio militar.
No entanto, o objectivo foi alcançado, apesar da anarquia e do despotismo: a antiga sociedade foi
destruída durante a Revolução, a nova ergueu-se sob o Império”.
155
“Art. 1º - A natureza deu a todos os homens um direito igual ao gozo de todos os bens.
Art. 2º - O fim da sociedade é defender esta igualdade, muitas vezes atacada pelo forte e pelo
mau no estado da natureza, e aumentar, pelo concurso de todos, os benefícios comuns. Art. 3.º -
A natureza impôs a todos a obrigação de trabalhar; ninguém pode, sem crime, subtrair-se ao
trabalho. Art. 4.º - Os trabalhos e os benefícios devem ser comuns. Art. 5.º - Há opressão quando
um se esgota pelo trabalho e tem falta de tudo, enquanto outro nada na abundância sem
trabalhar. Art. 7.º - Numa verdadeira sociedade, não deve haver nem ricos nem pobres. Art. 10.º
- O fim da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer a felicidade comum. Art. 11.º - A
revolução não acabou, pois os ricos absorvem todos os bens e só eles mandam, enquanto os
pobres trabalham como autênticos escravos, definham na miséria e não são nada dentro do
Estado.”
157
“Pelo pensamento e pela acção, ultrapassou o seu tempo e afirmou-se como iniciador
de uma sociedade nova. (...) A importância da Conjuration des Égaux e do babouvismo só
pode medir-se à escala do séc. XX. Na história da Revolução e do Directório, constituem um
simples episódio que modificou sem dúvida o equilíbrio político do momento, mas sem
ressonância social profunda. Entretanto, pela primeira vez, a ideia comunista tinha-se
158
261
Cfr. A. SOBOUL, “Utopie…, cit., 245 e 252. O próprio Lenine reconheceu que “a Revolução
Francesa construiu as ideias do comunismo (Babeuf) que, elaboradas de modo consequente, continham a
ideia da ordem nova do mundo” (apud V. M. DALINE, ob. cit., 63).
262
Cfr. A. SOBOUL, Vértice, Julho/1989, 13/14.
263
Como refere Michel Vovelle, “conclui-se a história da Revolução. Começa a aventura
napoleónica” (Cfr. M. VOVELLE, ob. cit., 65).
159
264
Neste início do século XIX, os revolucionários do continente europeu estavam unidos na luta
contra o inimigo comum, a frente dos reis e príncipes absolutistas, sob aliderança do czar da Rússia.
“Todos consideravam a revolução una e indivisível: um só fenómeno europeu, e não um conjunto de
libertações nacionais ou locais” (E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 160).
265
Cfr. A. SOBOUL, “La Révolution…, cit., 26.
160
“quem dominava era apenas uma fracção da burguesia: banqueiros, reis da Bolsa, reis do
caminho de ferro, proprietários de minas de carvão e de ferro e de florestas e uma parte dos
proprietários fundiários aliados a estes – a chamada aristocracia financeira. (…) A burguesia
industrial propriamente dita constituía uma parte da oposição oficial, isto é, estava representada
nas Câmaras apenas como minoria. (…) Tanto a pequena burguesia, em todas as suas
gradações, como a classe camponesa estavam totalmente excluídas do poder político. (…) a
Monarquia de Julho não passava de uma sociedade por acções para explorar a riqueza nacional
da França, cujos dividendos eram distribuídos por ministros, Câmaras, 240 000 eleitores e o seu
séquito”.266
Mas quem foi o sujeito histórico desta ‘revolução’? Parece correcta a resposta
de Alexandre Dumas (pai): “Quem fez a Revolução de 1830 foi essa juventude ardente
do proletariado heróico, que provoca o incêndio, é verdade, mas que o extingue com o
seu sangue”.
Mas o povo, como então observava Lamennais, “pergunta-se para quem é que
ele venceu, e se não tem nada a esperar de uma vitória que pagou tão ricamente; se
deve arrastar-se eternamente na mesma miséria, na mesma baixeza. Não! Tal é a sua
resposta. Então põe-se a grande questão, começa a grande luta”. Com efeito, apesar de,
na análise de Augusto Blanqui, a ‘revolução’ pouco mais ter sido do que simples
“mudança de efígie nas moedas que os proletários vêem raramente”, a verdade é que a
classe operária começa a reconhecer-se e começa a ser reconhecida como tal.
Em Novembro de 1831, os operários da indústria da seda de Lyon
desencadearam uma revolta que teve como lema o célebre “vivre libre en travaillant,
ou mourir en combattant”. Uma parte dos empresários, com o apoio do Governo,
recusava-se a aplicar as novas tarifas salariais convencionadas em Outubro. Daí a
revolta dos canuts, que chegaram a constituir um governo provisório em Lyon, mas
acabaram por ser vencidos em 3 de Dezembro por um exército de vinte mil soldados.
Justificando a revogação do acordo de Outubro, o chefe do Governo, Casimir
Périer (ele próprio industrial), declarava na Câmara dos Deputados em 25.XI.1831,
numa clara invocação da filosofia social inspiradora da Lei Le Chapelier: “Essa
medida era ilegal, uma vez que as leis não permitem de modo algum fixar o preço do
266
Cfr. C. MARX, As lutas de classes…, cit., em MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., I,
210-212.
161
trabalho, e que este preço deve ser sempre o resultado de um acordo inteiramente
voluntário entre o fabricante e o operário”. Esmagada a revolta, o mesmo Casimir
Périer declarava abertamente: “É preciso que os operários saibam bem que não há
remédio para eles que não seja a paciência e a resignação”.
Apesar do fracasso, a insurreição dos canuts de Lyon é tida como um ponto de
viragem na história do movimento operário, não só na França mas no mundo inteiro:
“Ela revelou - escrevia-se em Le Journal des Débats, de 8.XII.1831 - um grave
segredo, o da luta interna que se verifica na sociedade entre a classe que possui e a que
não possui (...). Os bárbaros que ameaçam a sociedade não estão no Cáucaso, nem nas
estepes da Tartária; estão nos arrabaldes das nossas cidades manufactureiras”. Resulta
deste trecho uma clara consciência da luta de classes, na medida em que os interesses
da “classe que possui” (os interesses da burguesia) são identificados com o interesse
da sociedade, ao passo que a “classe que não possui” é identificada com os bárbaros
que ameaçam a sociedade (o inimigo da sociedade, o inimigo interno).
Entretanto, a agitação operária não cessou e as reivindicações iam ganhando um
grau crescente de politização. Ainda em 1831, Victor Hugo escreveu que ouvia “o som
opaco da revolução, ainda nas profundezas da terra, avançando sob as galerias
subterrâneas dos reinos da Europa a partir do poço central da mina, Paris”. Em 1832
houve luta nas ruas da capital francesa. Em 1834, os operários de Lyon tiveram forças
para organizar uma greve, a qual viria a ser dominada depois de seis dias de luta com
as tropas da realeza, cuja intervenção deixou claro aos operários que “la royauté est
liée à la fabrique”. A natureza de classe do estado (a ditadura da burguesia) começava
a tornar-se clara aos olhos do novo operariado.
No período que vai de 1830 a 1848, as movimentações de massas na França
foram ainda dominadas predominantemente por artesanos e artífices urbanos e por
mestres das indútrias tradicionais. A organização destes trabalhadores não ia muito
além da associações mutualistas, bastante generalizadas. O dirigente mais destacado
deste período, Louis Auguste Blanqui (1805-1881), era discípulo de Buonarroti,
continuando a tradição do jacobinismo e do babouvismo. Em termos de organização
política, o blanquismo recorria à estratégia conspiratória das organizações secretas
muito frequentes na época, não só na França, mas em toda a Europa a ocidente dos
Balcãs, destacando-se entre elas a carbonária, inspiradora de insurreições várias, que a
sua anarquia condenava ao fracasso.
162
A realidade económica da França ia-se alterando em relação ao que era nos anos
que antecederam a Revolução de 1789. As máquinas penetram em todos os sectores da
indústria francesa. Aplicam-se novas técnicas na indústria têxtil, na metalurgia e na
siderurgia, conhecendo estas últimas um período de acentuado desenvolvimento com o
arranque dos caminhos de ferro. O coque vai substituindo a madeira nos altos fornos.
O fenómeno da concentração começa a ser notório na indústria mineira (a Compagnie
des Mines de la Loire, constituída em 1845, gozava de verdadeiro monopólio), o
mesmo acontecendo na indústria algodoeira (sobretudo em Mulhouse) e na metalurgia
(sector onde sobressaíam os grupos Creusot e De Wendel), embora as grandes
empresas não sejam ainda muito frequentes.
Este desenvolvimento industrial produziu efeitos notórios sobre a estrutura da
sociedade francesa: em 1847 ocupavam-se na indústria cerca de seis milhões de traba-
lhadores franceses, embora apenas pouco mais de um quarto trabalhassem em fábricas.
A crescente utilização das máquinas veio, por outro lado, permitir a utilização da força
de trabalho das mulheres e das crianças, desvalorizando a qualificação profissional e o
estatuto social dos antigos artesanos.
Às cidades industriais afluíam grandes massas de trabalhadores, que a indústria
não podia ocupar permanentemente e que, por isso, se mantinham, como uma espécie
de ‘exército camponês de reserva’, à mercê dos empregadores.
As condições de vida e de trabalho das famílias operárias eram verdadeiramente
alarmantes, como o comprova a leitura dos inquéritos à situação das classes
trabalhadoras que então se efectuaram, o mais conhecido dos quais é o do médico
Louis-René Villermé (1782-1863), tornado público em 1840.268
“Em Mulhouse – escreve o Dr. Villermé - as oficinas abriam às cinco horas,
com uma hora e meia para o almoço (...) Em Ruão, a jornada normal é de 15 horas e
meia e os operários da tecelagem do algodão chegam a trabalhar 17 horas”.
267
Cfr. A Era das Revoluções, cit., 171.
268
Ver P. VILLERMÉ, ob.cit. Em 1829, este médico francês fundou a revista Annales d’Higiène
Publique, na qual colaboraram, além de outros médicos franceses, vários médicos ingleses e alemães.
163
Na fiação de algodão, cerca de 30% dos operários são crianças, metade das
quais com idades compreendidas entre os 6 e os 10 anos. 269 Nem por isso, segundo o
relato de Villermé, a sua situação era mais favorecida:
“permanecem 16 a 17 horas de pé por dia, das quais treze pelo menos numa divisão
fechada, quase sem mudança de lugar ou de posição. Não se trata de um trabalho, de uma
função: é uma tortura; e é infligida a crianças de 6 a 8 anos, mal alimentadas, mal vestidas,
obrigadas a percorrer, desde as cinco horas da manhã, a distância enorme que as separa das
oficinas, e que o regresso, à noite, dessas mesmas oficinas, acaba por esgotar completamente.”
269
Um Primeiro Ministro inglês, William Pitt, dava este bom conselho aos empregadores: “se os
salários são muito elevados, contratem as crianças” (apud J. MARCHAL, Cours…, cit., 103.). Em Portugal,
ainda em 1910 teve lugar uma greve de ‘trabalhadores’ com idades entre os 6 e os 11 anos.
164
“É necessário admitir (...) que a família cujo trabalho é mal retribuído só subsiste graças
aos seus ganhos na medida em que o marido e a mulher tenham saúde, estejam empregados
durante todo o ano, não tenham nenhum vício e não tenham outros encargos além do que
representam dois filhos de tenra idade. Suponham um terceiro filho, o desemprego, uma doença,
a falta de espírito de economia, hábitos ou apenas uma ocasião fortuita de intemperança e esta
família encontra-se na maior dificuldade, numa miséria horrível.”
270
Tendo em conta a realidade inglesa, Marx cita o depoimento de um médico de Londres
perante a Câmara dos Comuns, pouco antes da aprovação do Factory Act de 1833: “É necessária
legislação para impedir que possa infligir-se a morte sob qualquer forma, e aquela de que falamos (a que é
corrente nas fábricas) deve ser seguramente considerada como um dos métodos mais cruéis de a infligir”
165
A lei aprovada fixava nos oito anos a idade de admissão das crianças num posto
de trabalho e proibia o desempenho de trabalho nocturno ou perigoso, permitindo,
porém que, a partir dos 12 anos de idade, as crianças trabalhassem 72 horas por
semana. Com esta lei pioneira - que não chegou, aliás, a ser aplicada, por a ela se
oporem os industriais e todos os defensores da liberdade de empresa - inicia a
legislação do trabalho a sua orientação no sentido da protecção do trabalhador
enquanto parte mais fraca da relação laboral (favor laboratoris), antecipando a lição do
abade Lacordaire, em plena revolução de 1848, segundo a qual “entre le fort et le
faible, entre le riche et le pauvre, entre le maître et le serviteur, c’est la liberté qui
opprimme et la loi qui affranchit.”271
O curso da industrialização continuou, ao longo da década de 1840, a acentuar
os seus efeitos na sociedade francesa, concentrando um número crescente de operários
em empresas cada vez maiores e em centros urbanos polarizadores da actividade
industrial, nos quais os operários viviam em grande número, em bairros miseráveis
que, com o tempo, lhes foram ficando ‘reservados’. Assim se foram criando condições
para que os trabalhadores, se apercebessem da identidade dos seus problemas e dos
seus interesses e fossem tomando consciência da sua existência como classe social.
Embora se continuassem a verificar, sobretudo por parte dos trabalhadores recém-
chegados dos campos, revoltas espontâneas que eram apenas fruto do desespero
(autênticas jacqueries prolétariennes, como alguém lhes chamou), a verdade é que a
necessidade de tomadas de posição colectivas, organizadas, começou a sobrepor-se às
revoltas individuais, mais ou menos desarticuladas. A década de 1840 marcou, neste
aspecto, uma profunda mudança.
Num inquérito publicado em 1840 (tal como o de Villermé, já referido) chama-
se a atenção para que “os operários (...), isolados da nação, afastados da comunidade
social e política, sozinhos com as suas necessidades e as suas misérias, agitam-se para
sair desta solidão desesperada e, como os bárbaros, aos quais já foram comparados,
meditam talvez uma invasão.” Perante esta leitura da situação social na França, não
espanta que o autor do relatório concluísse que “esperar pôr cobro à miséria pela
caridade é tentar tolamente esvaziar o oceano”.
(cfr. Le Capital, trad. J. Roy, cit., 209). Por esta altura, num baile de máscaras no palácio do Duque de
Orleáns, a baronesa Rothschild exibia jóias no valor de meio milhão de francos (informação colhida em
E. J. HOBSBAWM, A Era das Revoluções, cit., 281).
271
Apud R. BARRE, ob. cit., II, 102.
166
272
Citação colhida em E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 21.
167
dos seguros nas mãos do estado, etc.. Como o próprio Louis Blanc escreveu, “o estado
chegaria à realização desse plano através de medidas sucessivas. Não se trata de
violentar ninguém”. Dentro deste espírito, os trabalhadores concedem ao Governo três
meses, na esperança de verem realizados os seus anseios (“trois mois de misère au
service de la République”).
Neste entretanto, difundiam-se os clubes e os jornais de feição socialista,
animados pela acção de Dézamy, Blanqui, Cabet, Lamennais, Proudhon. Em Abril
realizaram-se as eleições para a Assembleia Constituinte, abertas, pelo sufrágio
universal, a mais de nove milhões de eleitores (em vez dos 250.000 do regime
censitário).
Blanqui bem avisara que “a eleição imediata da Assembleia Nacional seria um
perigo para a República”. Com efeito, os resultados da eleição vieram mostrar que os
socialistas eram largamente minoritários na França de meados do século XIX. Mesmo
em Paris, apesar da eleição de Louis Blanc, a chamada lista do Luxemburgo foi
derrotada.
Em Maio, Louis Blanc e Albert abandonaram a presidência da Comissão do
Luxemburgo (suprimida pouco depois) e foram afastados da Comissão Executiva, que
sucedeu ao Governo Provisório e que em breve começaria a tomar medidas de reacção
às conquistas populares que se seguiram a Fevereiro. Pouco depois, Blanqui, Raspail e
Albert (talvez os mais avançados e os mais lúcidos dos representantes dos
trabalhadores) são presos e os clubes socialistas são encerrados. “Trata-se apenas de
reconduzir o trabalho - proclamava na Assembleia o ministro Trelat - às suas antigas
condições” Desfaziam-se as ilusões de Fevereiro: a República que os operários de
Paris obrigaram a proclamar, na esperança de alcançarem uma república democrática e
social,273 afirmava-se definitivamente como república burguesa, apostada na
consolidação do poder da burguesia, de acordo com o lema de que “a burguesia não
tem rei, a verdadeira forma da sua dominação é a república”.274
Os ateliers nationaux, desviados dos objectivos que Louis Blanc lhes assinalara,
em breve se transformaram numa nova edição dos ateliers de charité do Ancien
Régime. Como nas workhouses inglesas, neles eram acolhidos os trabalhadores
lançados no desemprego em virtude da crise económica e da revolução, os quais iam
removendo a terra no Campo de Marte, num trabalho fastidioso e improdutivo, a troco
273
“O que se devia entender por república social ninguém sabia ao certo, nem mesmo os
operários”, comenta Engels na Introdução a A Guerra Civil em França.
274
Cfr. K. MARX, As lutas de classes… cit., 239.
170
275
Cfr. K. MARX, nº de 29.6.1848 da Neue Rheinische Zeitung.
276
Cfr. A. DANSETTE, ob. cit., 32.
277
Cfr. E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 28 e A Era das Revoluções, cit., 156/157.
171
Por toda a Europa, a revolução foi alimentada pelos trabalhadores pobres (da
indústria e da agricultura), que montaram as barricadas e nelas morreram. Na
Alemanha e na Itália, porém, a unificação dos dois países foi um dos objectivos da
revolução, o que mobilizou a burguesia.
Aclamada como a Primavera dos Povos, a revolução fracassou rapidamente em
toda a Europa. Hobsbawm diz que o único resultado perdurável da “última revolução
generalizada no Ocidente” foi a abolição da servidão no Império Austro-Húngaro. Mas
não deixa de rconhecer que “1848 não foi um breve episódio histórico sem
consequências”.278
278
Cfr. E. HOBSBAWM, A Era do Capital, cit., 21-43.
172
279
No Estado de Nova York, uma lei de 1811 autorizava já a constituição de sociedades
anónimas sem necessidade de prévia autorização do estado. Na Inglaterra, até 1844, a constituição de
sociedades anónimas dependia de lei expressa do parlamento para cada caso. E, até 1862, a emissão de
acções ao portador e o regime de responsabilidade limitada continuaram sujeitos a autorização individual
do parlamento. Cfr. C. FURTADO, Prefácio…, cit., 31 e V. MOREIRA, A Ordem Jurídica…, cit., 82.
280
Cfr. G. RIPERT, Aspects…, cit., 59ss.
173
281
Só mais tarde, como acima se diz, a lei Waldeck-Rousseau, de 21/3/1884, virá a reconhecer
plenamente o direito de associação dos trabalhadores.
282
A AIT duraria até ao Congresso de Filadélfia (1876). O primeiro contacto da Secção
Portuguesa com o Conselho Central da AIT teve lugar em 10 de Março de 1872, data da adesão oficial da
Secção Portuguesa à Associação Internacional dos Trabalhadores.
175
Entre 1867 e 1870, ganha força a acção grevista, 283 reprimida por vezes com
violência, ao mesmo tempo que se instauram processos contra a A.I.T., a pretexto de
complots que a própria polícia organizava para justificar os ataques a uma instituição
que vinha ganhando ascendente entre os meios operários. Num dos processos
instaurados contra a Internacional, o procurador imperial acusava: “as greves surgem
em diversos pontos, suscitadas ou pelo menos encorajadas ou apoiadas pela
Associação Internacional”. A verdade é que, em finais de 1870, os adeptos da Secção
Francesa da Internacional representam a principal força do movimento operário
francês. Significativamente, é em finais do Segundo Império que a actuação dos
trabalhadores ganha mais acentuadamente um carácter político, a par da actuação
sindical. Por essa altura começa a andar no ar a ideia de constituir um partido operário.
Em 1870, aparece, aliás, um livro de Vermorel intitulado Le Parti Socialiste.
Em 1872, no Congresso da Haia, a Internacional aprova uma proposta de Marx
e Engels no sentido da criação de partidos políticos operários em cada país. Os
delegados portugueses votaram a favor, e em 1875 fundou-se em Portugal um Partido
Socialista (no mesmo ano da fundação do Partido Social-Democrata Alemão).
283
Em 1867, verificou-se ainda, em Roubaix, por parte dos operários da fiação e da tecelagem,
uma das últimas manifestações do recurso ao método primitivo de luta, a destruição das máquinas, atitude
que os adeptos franceses da A. I. T. condenaram, embora simultaneamente organizassem o movimento de
solidariedade com os grevistas.
176
audiência crescente. Lenine, por sua vez, valorizou na Comuna de Paris “a intenção de
aniquilar, de destruir até aos seus fundamentos o aparelho de estado burguês, com os
seus funcionários, os seus juízes, o seu exército e a sua polícia, substituindo-o por uma
organização autónoma das massas operárias que não conhecia a divisão entre o poder
legislativo e o executivo”.284
No entanto, como alguém escreveu, “a grande medida social da Comuna foi a
sua própria existência”: “o movimento operário e o socialismo não podem continuar a
ser o que eram na manhã de 18 de Março”.285
Em 28 de Maio de 1871, os communards acabaram por ser vencidos pelas
tropas de Mac-Mahon, seguindo-se uma repressão que afectou sobretudo os elementos
operários e se traduziu em cerca de 25 mil fuzilados, umas 40 mil prisões e umas 14
mil condenações a pesadas penas de prisão e deportação.
Decretado o estado de sítio em 28 de Maio de 1871, a situação manter-se-ia até
Abril de 1876. Em Março de 1873, a lei Dufaure veio prescrever que “constituirá um
atentado contra a paz pública, pelo simples facto da sua existência e da sua ramificação
em território francês, toda a associação internacional que, sob qualquer designação,
nomeadamente sob a de Associação Internacional dos Trabalhadores, tiver por fim
incitar à suspensão do trabalho, à abolição do direito de propriedade, da família, da
pátria ou dos cultos reconhecidos pelo Estado”.
Com esta breve referência à Comuna de Paris, terminamos o estudo que nos
propusemos dos aspectos mais importantes da Revolução Francesa, ao longo de um
processo cuja evolução, a partir de 1789, ilustra a consolidação da burguesia (e, cada
vez mais claramente, da grande burguesia) no poder.
E com este apontamento sobre o significado da Revolução Francesa na história
do capitalismo damos por concluída a análise que vínhamos fazendo dos factores que
conduziram o capitalismo à posição de sistema dominante à escala mundial.
284
Cfr. Relatório ao I Congresso da Internacional Comunista (Março/1919) “Sobre a democracia
Burguesa e a Ditadura do Proletariado”, em Obras Escogidas, Editorial Progeso, Moscovo, 1970, t. 3,
147.
285
Cfr. J. BRUHAT, “Les socialistes…, cit., 533.
178
179
CAPÍTULO II
DO CAPITALISMO DE CONCORRÊNCIA
AO
CAPITALISMO MONOPOLISTA DE ESTADO
180
181
1. - Apresentação
286
Sobre esses problemas, cfr. V. T. MOREIRA, em A. CASTRO e outros, Sobre o capitalismo…,
cit, 5-68 e Ch. PALLOIX, A economia mundial…, cit.
183
2. - O capitalismo de concorrência
Sabe-se hoje que não é ‘neutro’ o sistema proporcional adoptado como critério
de tributação e sabe-se que à burguesia aproveitava a ‘igualdade’ tributária através dele
realizada. E é claro também que o papel relativamente ‘passivo’ atribuído ao estado
liberal não o impediu de desempenhar a sua função de estado capitalista.
Internamente, o estado não deixou de legislar no sentido de ‘disciplinar’ os
trabalhadores (adaptando-os às exigências da indústria capitalista), de ampliar a jornada
de trabalho, de fixar o salário máximo (sem fixar o mínimo…), de proibir e criminalizar
288
São as ideias de Adam Smith em matéria de impostos: estes devem ser certos, a sua cobrança
deve ser cómoda e não dispendiosa, todos os cidadãos devem pagar impostos (se se admitissem grupos
privilegiados, isentos do seu pagamento, os outros cidadãos seriam obrigados a pagar também por
aqueles), todos devem ser tributados na proporção dos respectivos haveres. Aqui encontra raízes a
concepção das chamadas finanças clássicas ou finanças neutras, que transparece com clareza na
conhecida síntese de Gaston Jèze: “II y a des dépenses publiques, il faut les couvrir”. Quer dizer: só
porque o estado tem que fazer certas despesas se admite que ataque, com a cobrança de impostos, a
riqueza privada de cada um; mas - por isso mesmo - só se admite que o faça nos limites do indispensável
para cobrir aquelas despesas.
186
interno’. A confiança nas virtudes do livre jogo das forças do mercado justificava a
separação estado/economia (ou estado/sociedade civil) e a afirmação da neutralidade do
estado no quadro da democracia liberal burguesa.
“Com todas essas eternidades imutáveis e imóveis – escreve Marx – deixou de haver história.
290
(…) Houve história, mas deixou de haver”. Cfr. Miséria da Filosofia, ed. cit., 125 e 129.
189
ou grupos sociais, mas através de leis gerais não retroactivas, aplicadas a todos por
igual.
O princípio da separação dos poderes e o princípio da independência dos juízes
no exercício da função de ‘aplicar as leis’ completam a estrutura do estado liberal
burguês, num tempo em que a organização económica assentava em um grande número
de empresas relativamente pequenas com poder económico (e político) equivalente.
Neste quadro, compreende-se que o liberalismo seja avesso às ideias de justiça e
de equidade e não deixe espaço para a actuação dos tribunais e para a interpretação das
leis como instrumentos de criação de direito. A previsibilade e a calculabilidade são
essenciais à segurança dos negócios, pelo que os juízes devem limitar-se a aplicar as leis
de acordo com o seu teor literal: só os parlamentos podem aprovar leis gerais e só estas
constituem o direito; os juízes são meros aplicadores das leis, segundo uma leitura
extrema do princípio da separação dos poderes.
O estado de direito (o estado de direito liberal) foi a bandeira da burguesia na
luta contra o estado aristocrático-absolutista, foi um instrumento de que, em dado
momento histórico, a burguesia revolucionária se serviu para conseguir o controlo do
poder político, afastando da esfera do poder as velhas classes dominantes do
feudalismo. Mas ele foi também, como se diz atrás, um instrumento da ditadura da
burguesia, empenhada, agora, em consolidar e perpetuar a sua posição de classe
dominante, numa sociedade em que novas relações sociais de produção assentam numa
nova estrutura de classes, a burguesia capitalista e os trabalhadores assalariados, o
capital e o trabalho (nas palavras de Adam Smith, uma sociedade em que “o
trabalhador é uma pessoa e o proprietário do capital, que o emprega, é outra”291).
291
Cfr. Riqueza das Nações, I, 176.
190
191
3. - O capitalismo monopolista
No último quartel do século XIX, começa a ser notório um fenómeno que Marx
considerara em O Capital inerente à lógica da acumulação do capital. Referimo-nos à
concentração capitalista e à consequente ‘monopolização’ da economia, que marca
uma nova fase da história do capitalismo, o capitalismo monopolista, que se prolongará
até à Primeira Guerra Mundial.
A expressão capitalismo monopolista e o significado que em geral se lhe associa
são originários da teoria económica marxista, nomeadamente com os trabalhos de
Rudolf Hilferding (1910), Rosa Luxemburgo (1913), Nicolai Bukarine (1915) e Lenine
(1916).292 Esta nova fase do capitalismo assinala uma alteração nas estruturas
económicas do sistema, agora caracterizadas pelo domínio de um pequeno número de
grandes empresas, à volta das quais, em posição de subordinação, vai crescendo um
grande número de pequenas empresas sem qualquer capacidade de influenciar o
mercado, substituído pela ‘mão visível’ das ‘empresas monopolistas’.
Ao falarmos aqui de monopólio ou de concentração monopolista não queremos
significar que os sectores onde a concentração se verifica venham necessariamente a
ficar confiados a uma única empresa. Com aquelas expressões pretendemos qualificar
as situações em que uma indústria passa a ser controlada por um número muito reduzido
de grandes empresas que estão em condições de impor os seus preços aos consumidores,
em termos tais que o mercado deixa de ser o instrumento de orientação e de controlo das
empresas para passar a ser dirigido por elas. As ‘empresas monopolistas’, exactamente
por serem muito grandes, nem sequer terão que recear que a sua situação se altere em
virtude do aparecimento de eventuais novas concorrentes: a existência de situações
monopolistas significa, desde logo, que os de fora não têm liberdade de (ou têm muita
dificuldade em) entrar na indústria.
Estas grandes empresas, além de virem acentuar o carácter social do processo
produtivo (que a maquinofactura apontou definitivamente – já o dissemos - como uma
característica do modo de produção capitalista), vêm também conferir carácter social à
propriedade dos meios de produção.
292
Mais recentemente (1966), foi importante o livro de Paul BARAN e Paul SWEEZY, Monopoly
Capital – An Essay on the American Economic and Social Order, cit.
192
293
A constituição das sociedades por acções só no séc. XIX começou a poder realizar-se livremente,
desde que observados os requisitos estabelecidos em lei geral: na França (Lei de 24-7-1867), em Portugal (Lei
de 22-6-1867), na Espanha (1869), na Alemanha (1870), na Bélgica (1873), na Itália (1882).
294
Cfr. Le Capital, Livro III, t. II, Cap. XXVII (Éditions Sociales).
193
295
Estamos a referir-nos ao processo de concentração ao nível das empresas, mas a verdade é que
a própria concentração da produção em grandes unidades originou a concentração dos operários e
facilitou a tomada de consciência dos seus interesses de classe. Não admira, por isso, que a maior força
dos operários organizados tenha provocado, nas últimas décadas do século XIX ou até à 1ª Grande
Guerra, o reconhecimento legal dos seus sindicatos (o direito dos trabalhadores à livre constituição de
sindicatos foi consagrado pela primeira vez, em texto constitucional, na Constituição de Weimar, de
1919). Neste período surgiu, pois, um elemento novo nas economias capitalistas: o sindicalismo (a que se
seguiria a constituição de partidos políticos ligados à classe operária). E com a expansão do sindicalismo
tendeu também a mitigar-se, em alguma medida, a concorrência no mercado da força de trabalho. Perante
as grandes concentrações monopolistas, aparece agora o sindicato representativo dos trabalhadores.
Assim se dizia numa resolução sobre os sindicatos, tomada no 1.° Congresso da Associação Internacional
dos Trabalhadores (Genebra, 1866): “A dispersão dos operários é provocada e mantida pela sua inevitável
concorrência. Os sindicatos nasceram acima de tudo para suprimir ou pelo menos restringir esta
concorrência”. Reconhecer a mudança resultante da contratação colectiva (um golpe importante no
‘contratualismo’ liberal) não significa concordar com os autores que falam de monopólio bilateral para
traduzir a ideia de que também a mercadoria força de trabalho passa a ser negociada num mercado onde
se verifica monopólio do lado da procura e do lado da oferta. Alguns pretenderam mesmo aplicar aos
sindicatos (ditos monopolistas) a legislação anti-monopolista…
296
Quando a concentração começou a dar nas vistas, a primeira reacção de alguns foi a de
desvalorizar o ‘problema’, alegando que a concentração era uma invenção de Marx. Mas a realidade
impôs-se e surgiu o dilema: deixar funcionar a economia segundo as suas próprias leis e aceitar a
concentração, que é um resultado da concorrência, ou matar a concentração, porque ela anula a
concorrência, que é a fonte de todas as virtudes do capitalismo laisser-faire, maximizador da utilidade
para o maior número? Autores como Fank Knight atacaram a legislação anti-monopolista, alegando que
ela punha em causa a liberdade individual, outros preferiram tentar salvar a concorrência recorrendo à
intervenção legislativa do estado. Comentário de Joan ROBINSON (Filosofia…, cit., 156): “Acaso não é
a concorrência a causa principal do monopólio? Como pode considerar-se algo de bom baixar os preços,
ampliar o mercado, superar as vendas dos competidores e, ao mesmo tempo, qualificar de malvada
monopolista a empresa que consegue vencer estas dificuldades e permanecer dona da situação?”
194
decisivamente num período (último quartel do século XIX) em que, como se verá mais
à frente, importantes conquistas da técnica vêm alterar toda a actividade industrial (fala-
se de segunda revolução industrial). As novas tecnologias, não rentáveis a não ser em
unidades de grande dimensão, capazes de produzir em muito larga escala, exigiam
capitais cada vez cada vez mais vultuosos.
Por outro lado, o progresso técnico favoreceu a concentração na medida em que
se traduziu no alargamento do mercado: quer porque favoreceu o crescimento
demográfico (sobretudo em resultado da diminuição das taxas de mortalidade, obtida
graças aos progressos da medicina, associados em boa parte ao desenvolvimento da
indústria química), quer porque os novos meios de comunicação e de transporte
possibilitaram o seu alargamento geográfico, consagrando definitivamente o
capitalismo como um sistema mundial.
c) As crises cíclicas, que começaram a verificar-se nas economias capitalistas a
partir do primeiro quartel do século XIX, provocam o desaparecimento de muitas
empresas e estimulam a cartelização das empresas maiores, constituindo assim outro
factor importante da concentração (embora esta não seja um fenómeno que ocorra
apenas em períodos de depressão).
d) O capital bancário desempenhou neste processo um papel importante
(lembrem-se os irmãos Pereire, os Rothschild, John P. Morgan, etc.). Dada a sua
natureza de instituições de centralização de capitais, os grandes bancos de investimento
puderam fornecer à indústria os capitais de que esta carecia. A esta união entre o capital
bancário e o capital industrial chamou Hilferding capital financeiro, ao qual atribuiu -
exageradamente - tanta importância, que chegou a defender, em 1913, que o confisco de
meia dúzia dos mais importantes bancos berlinenses equivaleria ao confisco da quase
totalidade da indústria alemã.297
Neste contexto, o capital bancário desempenhou um papel decisivo. Ele actuou
como instrumento de ‘extermínio’ das pequenas e médias empresas, ‘asfixiadas’ nos
mecanismos do crédito; ele promoveu a constituição de poderosos grupos financeiros,
297
Esta perspectiva – algo utópica, que a realidade posterior viria a desmentir – chegou a ser
defendida por Lenine, em escritos de 1917 (A Catástrofe Iminente e outros): “Os grandes bancos são o
’aparelho de estado’ que é necessário para a realização do socialismo, que nós tomamos pronto a usar ao
capitalismo”.
Saliente-se, porém, que Hilferding evoluiria para concepções que nunca foram as de Lenine.
Começando por admitir que o socialismo só poderia alcançar-se através da luta revolucionária do
proletariado contra o capitalismo e o imperialismo, o autor de Finanzkapital viria a defender, a partir de
1919, que a “tendência histórica do capital financeiro” para se tornar um cartel geral permitiria uma
passagem pacífica ao socialismo: o capitalismo financeiro deixava de ser a última fase do capitalismo
para se tornar no início do capitalismo organizado. Cfr. D. GRISONI, ob. cit., vol. 2, 11-47.
195
298
E. MANDEL, Traité…, cit., III, 159, indica a existência de 40 cartéis internacionais em 1897.
299
A primeira linha de caminho de ferro construiu-se em 1825 na Inglaterra, entre Stockton e
Darlington. Pois a rede ferroviária construída por empresas britânicas passa de 800 Kms em 1876 para 24
000 Kms em 1910; de 1850 a 1900, os investimentos na construção de caminhos de ferro excederam os
investimentos no conjunto das indústrias transformadoras; calcula-se que no último quartel do século XIX
cerca de 40% a 50% da formação de capital privado se tenha verificado no sector ferroviário, o que
representa uma concentração de capital numa só indústria sem paralelo na história económica. Igualmente
de salientar é o facto de cerca de 80% da rede ferroviária existente em 1913 se concentrar nas cinco
potências de então: EUA, Império Britânico, Rússia, Alemanha e França (cfr. LENINE, Imperialismo, cit.,
130/131; H. DENIS, História…, cit., 600; BARAN/SWEEZY, Capitalismo monopolista, cit., 220/221).
300
Cfr. Le Capital, trad. J. Roy, Livro 1, 566/567.
196
301
Vale a pena recordar que os territórios que viriam a ser os EUA tinham menos de 300 mil
habitantes em 1701; em 1790 (pouco depois da independência dos EUA) não chegavam a quatro milhões
(cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I, 73). Por isso, tão importante como o afluxo de
capitais foi, sem dúvida, a entrada de imigrantes, em grande maioria originários da Europa. Entre 1821 e
1915 emigraram para os territórios apetecíveis para a colonização da América, Oceânia e África do Sul
cerca de 45 milhões de europeus, com particular intensidade nas três décadas anteriores à 1ª Guerra
Mundial, durante as quais o número de imigrantes europeus nestas regiões rondou um milhão por ano
(dados apresentados por Aldo FERRER, em El Trimestre Económico, 1975, 1016). Especificamente para
os EUA, calcula-se que, entre 1800 e 1870, terão emigrado cerca de 8 milhões de europeus (cfr. E. J.
HOBSBAWM, últ. ob. cit., 198). Sobre a importância da imigração para os EUA, ver L. NEAL e P.
USELDING, “Immigration, a neglected source of american economic development”, em Oxford Economic
Papers, Março/1972, 68-88.
197
TAKAHASHI, em P. SWEEZY e outros, Do Feudalismo…, cit., 74-85. Cfr. também JOHNSTON/MELLOR, ob.
cit., 566-593.
199
Alguns autores (Marshall e Wicksell, v.g.) explicam em função deste fenómeno a depressão
304
que afectou o capitalismo europeu de 1873 a 1896. Não faltou quem, à maneira de Bentham, reclamassem
porque “ foram dedicados recursos ao investimento no exterior, ao invés de aplicá-los na reconstrução das
cidades imundas da Grã-Bretanha, simplesmente porque aquela actividade parecia mais remuneradora”
(Assim, Clapham, citado por M. DOBB, A Evolução…, cit, 386).
200
310
Falando em 1900 no Congresso da Segunda Internacional, um delegado britânico defendeu
uma posição clara: “Assiste-se neste momento na Inglaterra a um grande esforço para convencer os
sindicalistas de que a plítica colonial serve os seus interesses, visto que cria novos mercados e aumenta,
desse modo, as possibilidades de emprego, assim como os salários. Mas os sindicalistas ingleses não se
deixam levar por estas belas palavras e respondem: enquanto houver na Inglaterra crianças que vão com
fome para a escola e operários esfarrapados que morrem na miséria, os trabalhadores ingleses não têm
nenhum interesse em exportar para as colónias as mercadorias que produzem. E se os chauvinistas se
regozijam com o facto de a Inglaterra se ter tornado um grande país em que o sol nunca se põe, eu direi
que, na Inglaterra, há milhares de lares onde o sol nunca nasceu” (citação colhida em MORTON/TATE,
ob. cit., 197).
202
1839 generalizou-se o uso da franquia postal (inventada por Rowland Hill), a qual, em
conjunto com a invenção do selo adesivo (1841), revolucionaram os serviços postais;
em 1851, o primeiro cabo submarino atravessou o Canal da Mancha, ligando a
Inglaterra a Calais; nesse mesmo ano, Julius Reuter fundou a agência de notícias Reuter,
abrindo uma nova era na comunicação social; em 1858 foi lançado o primeiro cabo
submarino no Atlântico, ficando concluída em 1860 a ligação por cabo entre a Inglaterra
e o Novo Mundo; em 1872 era possível telegrafar de Londres para Tóquio ou para a
Austrália, o telégrafo ligava praticamente o mundo inteiro. Em 1896 regista-se a
invenção do sistema Marconi de T.S.F.. As notícias correm mais depressa e a rapidez
das comunicações permite que os negócios se desenvolvam à escala mundial; o
desenvolvimento das comunicações exigiu novas formas de estandardização e de
coordenação internacional (em 1865, foi criada a União Telegráfica Internacional; em
1875 constituiu-se a União Postal Internacional; em 1878, foi a vez da Organização
Meteorológica Internacional, três organismos que ainda hoje existem.
O mundo do capitalismo ficou mais pequeno. Mas as crises cíclicas passaram
também a ser crises mundiais: o colapso da banca nova-iorquina em 1857 desencadeou
a primeira grande crise do capitalismo à escala mundial. 314
de capitais não fez esquecer a exportação de mercadorias. Antes pelo contrário, aquela
é muitas vezes um meio de impulsionar esta. Umas vezes, condicionam-se os
empréstimos a conceder a governos ou a empresas privadas estrangeiras à compra dos
produtos necessários (bens de produção ou outros) no país exportador de capitais; outras
vezes, a exportação efectua-se através do expediente da constituição de filiais que,
naturalmente, comprarão à empresa-mãe ou a outras empresas da metrópole a
tecnologia e a maquinaria de que careçam e até os bens de consumo para o seu
pessoal.315
entre 1841 e 1845 e 45% da produção entre 1871 e 1875. A exportação de novos bens
de capital representou cerca de 11% do valor das exportações de produtos
manufacturados em 1857-1859, mas representava já 27% desse valor em 1882-1884 e
39% nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. O ritmo de construção de novas vias de
caminho de ferro diminuiu na Grã-Bretanha a partir de 1850, mas aumentou na Europa,
na América e em outras partes do mundo, tendo passado, fora das Ilhas Britânicas, de 14
mil milhas na década de 1840-1850 para cem mil milhas na década de 1870-1880. A
necessidade de exportação de capitais e a conquista de mercados externos passou a ser
ainda mais vital para a Inglaterra, cujas exportações representavam 13% do rendimento
nacional em finais do século XVIII, mas correspondiam a 22% por volta de 1870.
Entretanto, a hegemonia britânica era cada vez mais posta em causa pela
Alemanha e pelos EUA, mesmo naquelas indústrias ‘modernas’ em que os britânicos
tinham sido pioneiros (indústria química, corantes de anilina, electrotecnia, lâmpadas de
filamento de carbono incandescente, máquinas-ferramentas, ferro e aço).316 Em meados
do século XIX, a Grã-Bretanha dispunha de cerca de 1/3 da energia a vapor mundial e a
sua produção industrial correspondia a cerca de 1/3 da produção mundial de produtos
manufacturados; produzia cerca de 2/3 do carvão produzido em todo o mundo, ½ do
ferro, 5/7 do aço, ½ dos tecidos de algodão e cerca de 2/3 dos produtos de metal. Em
1840, a produção americana de têxteis, de lingotes de ferro e de produtos metálicos
correspondia a cerca de 1/6, 1/5 e 1/6 da produção britânica, respectivamente; para a
produção alemã destes bens, as cifras eram de 1/5, 1/8 e 1/6 da produção britânica. Mas,
por volta de 1870, a energia a vapor produzida na Grã-Bretanha era pouco mais de 1/5
da produção mundial e a sua produção de aço era menos de metade da produção
mundial, tendo sido ultrapassada, neste domínio, entre 1890 e 1895, tanto pelos EUA
como pela Alemanha. Era agora claro que estes outros países (cuja industrialização
assentou, desde o início, em empresas de grande dimensão, muitas vezes sob a forma de
trusts ou cartéis, situação que não se podia reproduzir na indústria britânica) tinham
estruturas industriais capazes não só de produzir bens de consumo e bens de capital para
se bastarem, mas eram também capazes de concorrer nos mercados externos, deixando
para trás o tempo em que só a Inglaterra tinha capacidade para exportar este tipo de
bens.
316
Um exemplo expressivo: a primeira linha inglesa de metropolitano foi financiada, construída e
electrificada, em 1905, em grande parte por uma empresa americana, a Westinghouse. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, II, cit., 19.
207
317
Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., I., 186.
318
Cfr. F. PERROUX, Le capitalisme, cit., 43/44.
208
pela situação que criou aos territórios dominados, sejam ou não formalmente
independentes no plano político.
Com efeito, o regime colonial e a exploração económica das colónias trouxeram
consigo uma divisão do trabalho à escala mundial que fez dos países dominados
produtores e exportadores de bens primários (produtos minerais, alimentos ou matérias-
primas de origem agrícola), muitas vezes em regime de monocultura. E esta degrada os
solos, reduz a produção de géneros alimentares e torna os países produtores
inteiramente dependentes do mercado de um único produto, às vezes monopsonizado
pelo país dominante.
Por outro lado, os países primário-exportadores ficam reduzidos à posição de
consumidores de produtos manufacturados produzidos pelas empresas das metrópoles,
objectivo que acarretou a liquidação das indústrias existentes em algumas das regiões
colonizadas (o exemplo da indústria têxtil na Índia é o mais flagrante).
Acresce que a exportação de capitais trouxe consigo uma nova faceta do
imperialismo, que se traduz no investimento directo nas minas e plantações, nas obras
públicas e, mais tarde, em empresas industriais. Só que esta penetração de capitais
significou que a direcção da economia dos países dominados passou a ser feita a partir
de centros de decisão estrangeiros, que actuam em consonância com os interesses
económicos das metrópoles e não com as exigências de um desenvolvimento
equilibrado dos territórios coloniais. Estes perdem a independência económica, sem a
qual não é possível autêntica independência política, mesmo quando formalmente
aqueles territórios sejam independentes. Os investimentos orientam-se em regra para
sectores que produzem para exportação; e é por demais conhecida a anemia provocada
pela exportação dos lucros nos países dominados, bem como a dependência em que os
coloca e as dificuldades que lhes levanta a sua posição de devedores de capitais.
Em suma: a internacionalização do capital e a unificação do mercado mundial a
que se assistiu no período do capitalismo monopolista vieram lançar as bases da
hierarquia que hoje caracteriza o sistema mundial do capitalismo. Um pequeno grupo de
países (inicialmente apenas a Inglaterra, depois acompanhada ou mesmo ultrapassada
por outros países da Europa Ocidental e pelos EUA, e, actualmente, incluindo também o
Japão, a Austrália, a Nova Zelândia) ocupa o vértice da pirâmide, dominando todo o
resto do globo. Em posição intermédia, os países que são a um tempo dominados e
dominantes. Na parte inferior da escala hierárquica, vêm os chamados países
210
319
Keynes dá-nos um expressivo retrato do mundo visto da Inglaterra imperial (cfr. “The Europe
before the War”, cit., 6): “Que episódio extrordinário do progresso económico do homem esse período
que terminou em Agosto de 1914! (…) O habitante de Londres [é claro que Keynes quer dizer alguns
habitantes de Londres…] poderia pedir pelo telefone, enquanto tomava o chá da manhã na cama, os mais
variados produtos de todo o mundo, na quantidade que considerasse adequada, e esperar, com certeza, a
pronta entrega dos mesmos à sua porta; simultaneamente, e pelos mesmos meios, poderia investir a sua
riqueza em recursos naturais e em novas empresas de qualquer parte do mundo, e participar, sem esforço
ou mesmo preocupação, dos seus prováveis resultados e vantagens; ou então poderia resolver combinar a
segurança da sua fortuna com a boa fé dos cidadãos de qualquer municipalidade importantye em qualquer
continente que lhe fosse proposto pela fantasia ou pela informação. Se desejasse, poderia garantir sem
demora meios de transporte baratos e confortáveis para qualquer país ou clima, sem passaporte ou
qualquer outra formalidade, poderia mandar o seu criado à agência vizinha de um banco para buscar a
quantidade de metais precioso que lhe parecesse adequada, e, então, seguir para o estrangeiro. Mas o mais
importante de tudo é que ele considerava esta situação normal, certa e permanente… (…) os projectos e a
política do militarismo e do imperialismo, das rivalidades raciais e culturais, de monopólios, restrições e
privilégios, que deveriam desempenhar o papel de serpente neste paraíso, eram pouco mais do que
divertimentos no seu jornal diário, e quase nem pareciam exercer qualquer influência no curso normal da
vida social e económica, cuja internacionalização se tornava quase completa na prática”.
211
320
Parece dever-se a Lenine (Prefácio à 1ª ed. de O Estado e a Revolução, 1917) a expressão
capitalismo monopolista de estado, que tem sido adoptada por alguns autores marxistas (e também por
alguns não-marxistas). Esta designação e o seu significado não têm sido pacíficos, mesmo no campo
marxista. Não é o momento para a análise desta problemática. Utilizamos aqui esta formulação pelas
razões e com o sentido que explicamos no texto. Sobre este ponto, ver: BARAN/SWEEZY, Capitalismo
Monopolista, cit., 73ss ; C. PALLOIX, A Economia Mundial, 115ss; V. T. MOREIRA, em A. CASTRO e
outros, Sobre o capitalismo…, cit.; 5-68; S. TSURU e outros, Aonde vai o capitalismo…, cit.; TENDENZE
del Capitalismo Europeo, cit.; Économie et Politique, nºs 143-144 e 145-146 (Julho-Setembro/1966),
onde se publicam os textos apresentados numa conferência internacional realizada em Choisy-Le-Roy,
20-29 de Maio de 1966) ; LE CAPITALISME Monopoliste d'État, cit.; P. MATTICK, ob. cit., 80-90.
212
321
Esta é, a nosso ver, a alteração mais significativa operada neste período nas estruturas do
capitalismo. Mas deve realçar-se também o facto de se assinalar por esta altura o nascimento da chamada
sociedade de consumo, como à frente diremos.
213
322
A eclosão desta primeira guerra inter-imperialista veio comprovar a desadequação da análise
de Karl Kautsky (1914) sobre o imperialismo. Tal como Hilferding, Bukarine e Lenine, Kautsky assenta a
sua análise do imperialismo na concentração industrial e na formação de grandes trusts e cartéis
internacionais sob a égide do capital bancário. Mas, ao contrário de Bukarine e de Lenine, Kautsky
acreditava que o pequeno número de grandes trusts internacionais que controlavam a maior parte da
produção mundial promoveriam um capitalismo organizado e planificado à escala mundial, gerido
racionalmente como uma só empresa gigante. A racionalidade económica substituiria a anarquia do
mercado e as guerras resultantes da concorrência, anunciando um período de felicidade para a
humanidade. Cfr. Ch.-A. MICHALET, ob. cit., 101/102.
323
Estes números são elucidativos: a produção alemã de carvão passou de 30 milhões de
toneladas em 1871 para 70 milhões em 1890, 110 milhões em 1900 e 190 milhões em 1913; no período
de 1880 a 1884, as exportações anuais da indústria alemã do ferro e do aço representavam cerca de 40%
das exportações das indústrias inglesas correlativas; no período de 1909 a 1913, o volume das
exportações alemãs tornou-se sensivelmente igual ao das inglesas, nas indústrias referidas. E não admira
que assim tenha acontecido, se soubermos que a produção alemã de ferro fundido, que em 1870 era
apenas 1/5 da inglesa, igualou esta em 1905, tendo-a ultrapassado em 1910; em 1912 a Alemanha
produzia 17,6 milhões de toneladas, contra apenas 9 milhões produzidos na Inglaterra. Entretanto, a
população da Alemanha passou de cerca de 40 milhões em 1870 para 50 milhões em 1892 e para pouco
menos de 70 milhões em meados de 1914 (cfr. LENINE, O imperialismo, ed. cit., 131; J. M. KEYNES,
“Europe before the War”, cit., 6; H. DENIS, História…, cit., 604).
214
ao recurso a capitais públicos para evitar a falência das empresas e o desemprego dos
que nela trabalhavam.
A Guerra destruiu na Europa boa parte das infra-estruturas ferroviárias e
rodoviárias, unidades industriais, marinha mercante, minas de ferro e de carvão,
condutas de água, habitações, reduzindo pelo menos 30% o potencial agrícola e 40% a
capacidade de produção industrial. No que toca à sangria humana, calcula-se que, entre
mortos e desaparecidos, incluindo os cinco milhões de mortos da Rússia (Guerra,
revolução, contra-revolução e guerra civil) e os mortos da gripe espanhola de 1918
(cerca de um milhão), a Europa perdeu cerca de 15 milhões de habitantes. As difíceis
condições de vida, a separação de casais provocada pela Guerra, bem como os fluxos
migratórios intra-europeus fizeram aumentar a taxa de mortalidade infantil e baixar a
taxa de natalidade. O declínio económico da Europa era inevitável. A Grande Depressão
do final dos anos 1920 e início da década de 1930 só veio agravar este quadro.
A Europa imperial perdeu o seu ceptro e deixou de ser o centro financeiro do
mundo, onde se jogava o destino dos povos à escala mundial. A Grã-Bretanha e outros
países europeus tiveram que vender participações financeiras em vários negócios fora
da Europa (nomeadamente nos EUA) e viram-se obrigados a recorrer ao crédito, em
especial junto dos EUA, país que substituiu a Grã-Bretanha como maior credor mundial
e emergiu como um grande exportador de capital privado, especialmente para a
América Latina, velha ‘reserva’ do capital britânico.
Em Setembro de 1931, a Grã-Bretanha foi obrigada a abandonar o padrão-ouro,
desvinculando-se da obrigação de assegurar a livre convertibilidade da libra em ouro.
Dois meses depois, o jogo da oferta e da procura provocou a desvalorização da libra em
cerca de 40%. Vários outros países foram obrigados a abandonar o padrão-ouro e a
desvalorizar de imediato as suas moedas (os países da Commonwealth, os países
escandinavos, o Egipto, a Argentina, Portugal e os EUA); em 1993, foi a vez da
Estónia; em 1934, a Checoslováquia, a Itália e a Áustria; em 1935, a Bélgica, o
Luxemburgo e a Roménia; em 1936, a França, a Holanda, a Suíça e a Letónia.
Perante o fraccionamento do mercado internacional, desenvolveu-se uma atitude
generalizada de nacionalismo económico, de proteccionismo e de luta por mercados
externos, o que provocou o retraimento do comércio internacional: do índice 100 em
1913, passos para 129 em 1929 e baixou para 112,8 em 1938.325
325
Para mais informação sobre este período, cfr. P. MILZA, ob. cit.
216
Os EUA viram reforçado o seu poder relativo no concerto das nações, poder que
se acentuaria com o colapso do padrão-ouro como sistema monetário internacional, com
as consequências da Grande Depressão e com as sequelas da Segunda Guerra Mundial.
Em finais de 1920, a Europa ainda respondia por 45% das exportações mundiais (15,4%
para os EUA) e 52% das importações mundiais (12,2% para os EUA). Mas em 1928 a
produção industrial dos EUA representava 42% da produção mundial (35,8% em 1913),
e o seu peso no comércio internacional passou de 20% em 1913 para 27,6% em 1928.
Fora da Europa, também o Japão começou a emergir como potência regional,
quintuplicando a sua produção industrial e ‘ocupando’ os mercados da China, da Índia e
dos países do sueste asiático.
Do ponto de vista que aqui nos interessa, o que mais importa sublinhar é que a
Guerra veio tornar claro, fundamentalmente, que o estado não podia continuar na
posição do sinaleiro que, do seu pedestal, se limitava a regular o trânsito dos interesses
particulares, intervindo apenas em caso de colisão mais ou menos grave. Na grande
corrida económica que conduziu à Guerra (e que esta exigiu depois aos beligerantes),
tornou-se necessária a presença do estado, considerada indispensável para evitar
‘acidentes’ e para manter a funcionar a máquina capitalista. Ao contrário do que antes
se admitia, ao estado era agora atribuída a posição de primeiro responsável pela
economia.326
Até então, o estado só esporadicamente intervinha na economia e em relação a
certos aspectos ou questões restritas. A um nível global, a mais importante tomada de
posição do estado talvez tenha sido a legislação anti-trust que se iniciou nos EUA com o
Sherman Act (1890). Perante o perigo em que a concentração monopolista vinha
colocando a ‘livre concorrência’ (com cujas virtudes se identificavam as virtudes do
capitalismo), hesitou-se acerca da atitude que o estado devia tomar. Devia não se
intrometer, cumprindo assim a sua função? Ou deveria intervir por só assim poder
cumprir essa função? Assumindo que salvar a concorrência era salvar o próprio
capitalismo, o estado interveio, proibindo todas as formas susceptíveis de prejudicar a
livre concorrência, para assegurar as condições que se consideravam indispensáveis ao
bom funcionamento do sistema. É claro que o capitalismo continuou a sua evolução e as
leis não foram suficientes para impedir a concentração.
326
O próprio Lenine escreveu que a 1ª Guerra Mundial tinha “acelerado extraordinariamente a
transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de estado” (apud Ph. ZARIFIAN,
Inflação…, cit., 110).
217
superiores aos preços de antes da Guerra, e um dólar valia 4.200 milhões de marcos. Entre Janeiro/1922 e
Novembro/1923, o índice de preços aumentou na Alemanha de 1 para 100.000.000.000. Um dólar valia,
em Outubro de 1923, 4.200 milhões de marcos. Em certos períodos, os salários eram fixados todos os
dias.
Num livro de 1941, Stefan Zweig refere alguns aspectos da vida quotidiana na Alemanha e na
Áustria durante este período. “Ninguém sabia quanto custava um objecto, escreve ele. Os preços
aumentavam arbitrária e desmesuradamente; uma caixa de fósforos custava numa loja onde os preços
eram actualizados 20 vexes mais do que em outra, em que um vendedor honesto (ou inocente) tivesse
mantido o preço do dia anterior”. Graças ao congelamento das rendas, “a renda anual de um apartamento
médio custava o preço de uma refeição. De certo modo, os austríacos estiveram alojados cinco a dez anos
gratuitamente”. “Um ovo custava tanto depois da guerra como um automóvel de luxo antes da guerra; e
na Alemanha um ovo comprava-se por mil milhões de marcos, o que antes da guerra permitiria comprar
todos os edifícios da Grande Berlim” (referências colhidas em M. Jacinto NUNES, cit.).
220
328
Cfr. Vértice, nº 51, Nov-Dez/92, 46.
221
329
Cfr. A. V. MARTINS, ob. cit., 144/145 e J. ELLEINSTEIN, ob. cit., I, 183.
222
4.3.1. - A vida mostraria não ser confirmada pela realidade a velha tese liberal de
que a economia e a sociedade, se deixadas a si próprias, confiadas à mão invisível ou às
leis naturais do mercado, proporcionam a todos os indivíduos, em condições de
liberdade igual para todos (a igualdade perante a lei), as melhores condições de vida,
para além do justo e do injusto.330
Este pressuposto liberal falhou em virtude de vários factores: progresso técnico;
aumento da dimensão das empresas; concentração do capital; fortalecimento do
movimento operário (no plano sindical e no plano político) e agravamento da luta de
classes; aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo, que começaram a
afirmar-se como alternativas a ele.331
Falhado aquele pressuposto – que justificava a tese de que o estado deveria estar
separado da sociedade e da economia -, impôs-se a necessidade de confiar ao estado
(ao estado capitalista) novas funções, no plano da economia e no plano social. A
emergência do estado social - poderemos antecipar já esta ideia - significou uma
diferente representação do estado e do direito, aos quais se comete agora a missão de
realizar a ‘justiça social’, proporcionando a todos as condições de uma vida digna,
capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um. A mão
visível do direito começava a substituir a mão invisível da economia.
No quadro do capitalismo monopolista, o conceito de estado social trouxe
consigo, por isso mesmo, maior autonomia da instância política e um certo domínio do
político sobre o económico, também com o objectivo de satisfazer determinadas
aspirações sociais, na tentativa de reduzir a campo de acção dos movimentos
330
Defendiam os fisiocratas: o que é natural é justo (François Quesnay: “a desigualdade do
direito natural não admite justo nem injusto no seu princípio: ela resulta da combinação das leis da
natureza”). E Hayek, como os liberais do século XVIII, entende que o mercado é uma instituição que
“não pode ser justa nem injusta, porque os resultados não são planeados nem previstos e dependem de
uma multidão de circunstâncias que não são conhecidas, na sua totalidade, por quem quer que seja”. Por
isso insiste em que a expressão justiça social deveria ser abolida da nossa linguagem.
331
Em 1965, escreve Rudolf Huber (apud J. GOMES, ob. cit., 213/214): “As características da
sociedade industrial altamente desenvolvida a que pertence o conceito de estado social são: em primeiro
lugar, um sistema económico com alta concentração de capital, técnica de máquinas aperfeiçoada,
processos de trabalho racionalizados e necessidades de massa ‘estandardizadas’; em segundo lugar, um
sistema social no qual a velha hierarquia das corporações cedeu perante o conflito de classes, pelos
mesmos direitos da classe possidente; em terceiro lugar, um sistema cultural, de educação popular geral
com possibilidades de acesso para todos aos bens culturais e aquisições da civilização, através de
organizados sistemas de cultura e civilização; em quarto lugar, um sistema com um aparelho
administrativo preparado para as necessidades económicas, sociais e culturais das massas industriais; em
quinto lugar, e sobretudo, um sistema de estado que se desligou do princípio da não intervenção nos
termos da máxima liberal laisser-faire, laisser-passer, para transitar para um sistema de intervenções
sociais, protegendo as classes e os grupos mais fracos”.
224
332
Cfr. M. GIANNINI, ob. cit.
225
333
Para acompanhar e compreender a evolução do estado liberal até ao estado social enquanto
estado repartidor, passando pelo estado produtor de serviços públicos, vale a pena ler Rogério SOARES,
Direito Público…, cit., especialmente 81ss.
334
Cfr. V. MOREIRA, “Estado capitalista…, cit.
226
nas sociedades de classe. Como o estado liberal não podia continuar a assegurar esta
missão, o estado capitalista teve de assumir outra veste: assim nasceu o estado social.
É claro que este não se propõe a construção de uma nova ordem social, mas a
salvação e a consolidação da ordem burguesa, mudando alguma coisa para que tudo
continue na mesma, segundo a conhecida máxima de Il Gattopardo. Nas novas
condições da sociedade capitalista (acentuado progresso técnico e concentração do
capital, a par do aprofundamento da conflitualidade social), o estado social propõe-se os
mesmos objectivos últimos do estado liberal (a primeira forma do estado burguês):
assegurar a coesão social, i.é, o equilíbrio do sistema económico e social, condição
essencial para que as suas estruturas se mantenham, nomeadamente a estrutura de
classes e o estatuto da classe dominante.
Desfeito o mito de que a sociedade civil (a ordem económica natural) garantiria
por si própria a ordem social e a justiça social, o estado social veio traduzir e assumir a
necessidade de intervir de forma sistemática na economia, deixando esta de ser, para o
estado e para os cidadãos, um dado da ordem natural, para se tornar num objecto
susceptível de conformação pelas políticas públicas. Aceitando-se que “nenhuma
questão política pode ser separada das suas repercussões económicas e, inversamente,
que nenhum problema económico pode ser resolvido sem meios políticos” 335, o estado
social assume-se como estado económico, cuja principal função é a de proporcionar as
condições de funcionamento de uma economia bem sucedida.
E, no período histórico de que estamos a falar, entendia-se que este objectivo só
poderia alcançar-se se o estado garantisse um certo grau de satisfação de determinadas
necessidades sociais e um certo grau de justiça social. Só deste modo, atenuando os
conflitos de classe, se conseguiria a ‘paz social’ indispensável à estabilidade das
sociedades capitalistas e à sobrevivência do próprio capitalismo, sem pôr em causa os
princípios do estado de direito. Em nome desta lógica é que o próprio conceito de
democracia passou a integrar o reconhecimento e a garantia dos direitos económicos,
sociais e culturais, porque este reconhecimento e esta garantia são agora considerados
essenciais para que sejam efectivos os clássicos direitos, liberdades e garantias
(princípio da indissociabilidade dos direitos fundamentais).
Para responder às novas exigências que se lhe colocam, o estado social,
enquanto estado económico, perfilou-se como estado-empresário, mas assumiu-se
também como estado prestador de serviços, estado redistribuidor do rendimento, estado-
335
Cfr. J. GOMES, ob. cit., 216.
227
336
Cfr. V. MOREIRA, “Estado capitalista…, cit.
228
O ano de 1918 foi, na Europa, como vimos, o ano de todas as revoluções. O seu
falhanço abriu, quase sempre, o caminho a soluções de tipo fascista. Na Alemanha,
porém, à derrota do movimento spartakista sucedeu uma solução de compromisso,
traduzida na Constituição de Weimar (1919).
Vale a pena recordar que, quando, de um lado e de outro, se preparava a guerra,
as centrais sindicais da França e da Alemanha reuniram-se e proclamaram que os
trabalhadores estavam contra a guerra, que souberam caracterizar como conflito inter-
imperialista, denunciando as suas motivações e os seus objectivos, que os trabalhadores
consideravam contráriso aos seus interesses.
Terminadas as hostilidades, os horrores dessa “guerra que pôs fim às guerras”
(como então se acreditava) deram razão às estruturas representativas dos trabalhadores,
que, como sempre acontece, morreram na guerra e sofreram as suas misérias. Esta
‘autoridade moral’ (e a consciência de classe que ela representa) veio reforçar o poder
resultante do aumento numérico da classe operária e do reforço das suas estruturas
organizativas, o que se traduziu em aumento do seu peso político e da sua capacidade
para influenciar o sentido da intervenção do estado. Daí o compromisso weimariano,
considerado pelas classes dominantes um mal menor, perante a ameaça de contágio da
vitoriosa Revolução de Outubro.337
A Grundgesetz de 1919 é o primeiro texto constitucional (num país capitalista
industrializado) que põe abertamente em causa a tese liberal da autonomia das forças
económicas (do ‘governo’ da economia por ‘leis naturais’), assumindo que a
intervenção do estado na economia deve visar não apenas a ‘racionalização’ da
economia, mas também a ‘transformação’ do sistema económico, integrando a
economia na esfera da política, fazendo da economia um problema político, lançando
deste modo as bases da passagem do estado de direito ao estado social. A partir das
soluções consagradas na Constituição de Weimar, acabaria por se construir na
Alemanha a noção de direito público da economia (Ernst Rudolf Huber).
A constituição económica de Weimar inspira-se claramente no princípio de que
não pode confiar-se ao capital privado a gestão de determinados sectores da actividade
337
Mais à frente falaremos do New Deal, igualmente caracterizado pelo objectivo de salvar o
capitalismo preservando a democracia, embora neste caso, como veremos, a intervenção sistemática do
estado na economia tenha convivido com algumas soluções do receituário corporativo.
230
338
A Constituição pioneira na consagração dos direitos sociais como direitos fundamentais é a
Constituição mexicana de 1917.
231
Esta (longa) história poderá ajudar a compreender que o movimento sindical (de todas
as orientações) nunca tivesse visto com bons olhos tal instituto.
No quadro da luta ideológica, foi grande o esforço para apresentar a participação
como uma ‘revolução’ capaz de ultrapassar os limites do capitalismo e do socialismo,
do ‘absolutismo patronal arcaico’ e do ‘estatismo burocratizante’. Mas as forças
políticas da esquerda e o movimento sindical sempre denunciaram tal solução como
neo-corporativa, empenhada em institucionalizar a colaboração de classes. Nesta
óptica, os objectivos da co-gestão são claros: convencer os trabalhadores de que a
melhoria do seu bem-estar e da sua condição está ligada à sorte da empresa em que
trabalham; levar os trabalhadores a trabalhar mais intensamente sem exigir aumento de
salários, na esperança de virem depois a participar nos lucros; pulverizar o movimento
sindical e distrair os trabalhadores da luta pela transformação da sociedade. Na perspec-
tiva dos interesses dos trabalhadores, diz-se que estes, imaginando estar a participar nos
lucros da empresa ao lado dos exploradores, estão afinal a intensificar a sua própria
exploração.
nas vossas empresas a participação, para que não haja necessidade de vo-la imporem”.
No que se refere à co-gestão, interrompida na Alemanha durante o período de vigência do
nacional-socialismo, voltaria a ser consagrada na RFA em leis de 1951 e 1952, considerando os sindicatos
que a co-gestão lhes poderia assegurar um certo controlo sobre o patronato alemão, fortemente
comprometido com a política do nazismo. Perante uma nova lei de 18.3.1976, os próprios sindicatos
alemães começaram a dar sinais de reacção negativa a este compromisso com o patronato.
No que se refere mais directamente à participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, foi a
França, durante o período gaullista, o país onde mais sistematicamente se tentou institucionalizar essa
prática. Uma Ordonnance de 7.1.1959 autorizava a participação dos trabalhadores na vida da empresa,
quer através da sua participação nos lucros, quer mediante a participação no capital graças à atribuição de
títulos de participação a trabalhadores que reunissem certas condições (em regra uma determinada
antiguidade na empresa, pelo menos), quer pela via da participação nos ganhos de produtividade, sob a
forma de prémios.
Não teve muitos resultados práticos esta lei. Mas uma nova Ordonnance de 17.8.1967 veio tornar
obrigatório o sistema da participação nas empresas com mais de 100 trabalhadores. De Gaulle saudou
esta lei como o início de “uma ordem social nova”, caracterizada pela “participação directa dos
trabalhadores nos resultados, no capital e nas responsabilidades das empresas”.
O patronato admitia a associação do pessoal da empresa às responsabilidades da gestão,
ressalvando, porém, que a participação não poderia conduzir à diluição do poder de decisão da empresa
(no preâmbulo da Ordonnance já se acautelava, aliás, que a participação não devia “diminuir em nada a
autoridade da direcção”).
233
340
Entre 1921 e 1938, 10% dos indivíduos em idade de trabalhar não tinham emprego, sendo esta
percentagem ainda maior em algumas regiões, nomeadamente nos anos 1931/1932. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 61.
341
Mas a baixa dos salários dos funcionários do estado em 1931 foi tão impopular, que provocou a
revolta da própria Marinha de Guerra, a primeira desde 1797. Cfr. E. J. HOBSBAWM, Indústria e
Império, cit., II, 108.
342
Citação colhida em CAVALLO/DI PLINIO, ob. cit., 36. Isto apesar do declínio do comércio
internacional à escala mundial a partir de 1913, tanto de produtos primários como de produtos
manufacturados e de muitas indústrias britânicas (têxtil, carvão, construção naval, marinha mercante)
registarem uma diminuição acentuada, quer ao nível da produção quer ao nível da exportação. Cfr. E. J.
HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 61-64.
234
patronato moveram-lhe uma guerra sem quartel, proclamando em alto e bom som:
“Plutôt Hitler que le Front Populaire”. Hitler fez-lhes a vontade, ocupando a França.343
343
Mais limitada foi ainda a experiência do Governo de Frente Popular na Espanha (vitorioso
também nas eleições de 1936), confrontado muito cedo com a guerra civil, em que a Alemanha nazi e a
Itália fascista apoiaram militarmente os sediciosos fascistas comandados por Franco, perante a
passividade comprometedora das democracias europeias.
236
A década que se iniciou em 1920 foi uma época de ouro do capitalismo à escala
mundial. Costuma dizer-se que, em 1913, com o início da produção em série do famoso
237
344
Em 1917 a indústria automóvel americana produziu 1.750.000 automóveis, número que passou
para 4.301.100 em 1926 e para 5.358.000 em 1929 (ano em que a indústria automóvel absorveu 15% do
aço produzido nos EUA, empregava 7% do total da mão-de-obra e representava 13% do valor da
produção industrial.
238
345
Cfr. S. LOMBARDINI, La grande crisi…, cit., 38ss.
346
Cfr. M. DOBB, A Evolução…, cit., 393 e 404.
239
240
sucumbiram à baixa das cotações bolsistas; muitos bancos entraram em colapso, porque
os seus empréstimos tinham servido para financiar actividades especulativas e não
investimentos produtivos; a corrida aos bancos fez o resto. “A Grande Depressão teve a
sua ‘partida’ na América – conclui Paul Mattick - porque nos outros países a depressão
do pós-guerra não tinha realmente acabado”.348
À medida que o tempo passava, as pessoas encaravam a situação com se tivesse
havido uma catástrofe natural: assim como veio, há-de ir-se embora. Entretanto, por não
poderem pagar a renda da casa e a conta do gás, muitas famílias foram despejadas, e
milhões de pessoas passaram a viver em campos de tendas e barracas. As epidemias de
desinteria e de pelagra alastraram, como a prostituição e o crime. O exército foi
chamado a intervir para reprimir manifestações.
E a Administração Hoover nada fazia para combater a crise, agarrada à velha
tese de que as finanças sãs (o equilíbrio das contas públicas) eram a primeira exigência
da confiança necessária para o regresso à prosperidade e de que a intervenção do estado,
ao substituir as leis económicas pelo arbítrio do Governo, equivaleria à destruição do
capitalismo. Numa comunicação ao país, o Presidente Hoover dizia (1931) que a crise
só poderia ser enfrentada através da “manutenção do espírito de ajuda mútua através de
donativos voluntários. Isto é de infinita importância para o futuro da América. Nenhuma
acção do estado, nenhuma doutrina económica, nenhum projecto ou plano económico
pode substituir a responsabilidade que Deus impôs a cada homem e a cada mulher para
com os seus vizinhos”.349
Em Março de 1932, Franklin Roosevelt sucedeu a Herbert Hoover na
Presidência dos EUA. Por esta altura, como escreveu Averell Harriman, “os bancos
estavam fechados e gente de bem vendia maçãs na rua. As companhias de caminhos de
ferro reclamavam auxílio. Wall Street estava ansiosa por ‘descer’ a Washington para
conseguir esse auxílio”.350 E Roosevelt parece ter pressentido o perigo da revolução, a
menos que os desejos de mudança fossem atendidos dentro dos limites da ordem
estabelecida. Truman confirmaria mais tarde esta ideia: “Em 1932 o sistema de livre
348
Cfr. P. MATTICK, ob. cit., 115-121.
349
Pela mesma altura, o Presidente da National Association of Manufacturers imputa aos
desempregados e aos pobres a responsabilidade pela sua própria miséria, porque “eles não praticam o
hábito da poupança, antes perdem as suas poupanças nos jogos da bolsa. Com que razão culpam o nosso
sistema económico, o governo ou a indústria?” (Citações colhidas em P. MATTICK, ob. cit., 126/127).
350
Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 35.
243
empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo
norte-americano adoptasse um outro sistema”.351
Neste quadro, a Administração Roosevelt assumiu como objectivo essencial o de
evitar o colapso da ordem capitalista, através de um conjunto de medidas de política
activa (que ficaram conhecidas por New Deal), uma orientação de sentido diferente do
adoptado pelo Partido Republicano.352 No início, mais do que um programa de estímulo
à recuperação da economia e do emprego através do aumento da despesa pública, o New
Deal foi um conjunto de operações de salvamento (envolvendo dezenas de milhares de
milhões de dólares) de que beneficiaram maiormente a banca, os caminhos de ferro,
alguns estados federados e governos locais, a par de proprietários de casas adquiridas a
crédito e de empresas agrícloas endividadas. 353 O montante das despesas do estado em
obras públicas só em 1936 atingiu o montante de 1929 (antes da crise), porque,
entretanto, os estados federados e os governos locais diminuiram muito este tipo de
despesas, e o estado federal não compensou esta diminuição.
Em regra, os estudiosos deste período da história dos EUA realçam que este
novo curso da política americana procurou ir ao encontro das necessidades mais
prementes dos trabalhadores, com o propósito de os furtar à tentação revolucionária e de
conseguir o apoio popular para as suas políticas. Neste sentido, o Governo atribuiu
subsídios aos desempregados e aos idosos e pensões aos veteranos de guerra, concedeu
apoios aos agricultores, desvalorizou o dólar e abandonou o padrão-ouro (o que a
Inglterra já tinha feito em 1931), baixou as taxas de juro, apoiou a recuperação e a
reestruturação de empresas, instituiu o salário mínimo, reconheceu a liberdade de
organização sindical e o direito à contratação colectiva, lançou grandes programas de
obras públicas para combater o desemprego.
Mas o New Deal procurou também satisfazer os (grandes) empresários,
regulando a actividade bancária e o mercado financeiro e fazendo deles parceiros
privilegiados do estado no ‘governo da economia’. Na leitura de Arthur Schlesinger,
foram estes os princípios orientadores do New-Deal: “a revolução tecnológica tornara
inevitável o gigantismo; não era possível continuar a confiar na concorrência para
proteger os interesses sociais; as grandes unidades eram uma oportunidade a aproveitar
351
Citado por GAMBLE/WALTON, El capitalismo…, cit., 280.
352
Um dos principais conselheiros económicos de Roosevelt escrevia em 1935: “Não há mão
invisível. Nunca houve. Nós temos agora de oferecer uma mão real e visível que oriente a tarefa que a
mítica e inexistente invisível agência deveria desempenhar e que nunca desempenhou” (citação colhida
em P. MATTICK, ob. cit., 134).
353
Cfr. H. HANSEN, ob. cit., 85-87.
244
e não um perigo a combater; a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deve ser
combinação e cooperação sob uma autoridade federal ampliada”.354
Coerentemente, em Junho de 1933, com a promulgação do National Industrial
Recovery Act, o estado concede às associações profissionais (ao jeito das soluções
corporativas na Europa) o poder de elaborar e fazer aplicar coercivamente regulamentos
que podem determinar as condições da produção, os limites e as formas de concorrência
(em última instância, os preços) nos vários sectores. Nesta medida, a economia
americana passou a ser uma economia organizada corporativamente, com base nas
associações profissionais autónomas, às quais era confiado o ‘governo’ do respectivo
sector de actividade económica.
Ainda em 1933, foi criada a National Recovery Administration, entidade a que
foram atribuídos, entre outros, poderes para obrigar a indústria a reorganizar-se, para
fixar os preços, para distribuir quotas de produção. A NRA foi uma estrutura de
planificação económica centralizada de tipo moderno, significando a rejeição do
capitalismo do velho estilo, que marcou os primeiros tempos da política rooseveltiana.
Com a declaração de inconstitucionalidade e consequente dissolução da National
Recovery Administration (1935), desapareceu o organismo de cúpula da intervenção do
estado na economia.355 Cortadas assim as ambições mais ‘radicais’ do New-Deal, nem
por isso este deixaria de ser um dos episódios mais importantes na evolução do
capitalismo e do estado capitalista.
Alguns autores valorizam particularmente o por vezes designado “segundo New
Deal”, a fase que se iniciou após a vitória esmagadora de Roosevelt nas eleições de
354 ?
Andrew SHONFIELD (Capitalismo Moderno…, cit., 306, 311 e 447/448, onde podem colher-
se mais indicações acerca do significado e alcance do New Deal) sustenta, aliás, que “o New Deal não
significou uma brusca rotura com a tradição americana, mas, simplesmente, uma continuação, num ritmo
bastante mais acelerado, de um processo que se iniciara nos alvores do século XIX e afectou tanto os
governos republicanos como os democráticos”. E ilustra abundantemente a ampla e continuada tradição
intervencionista do estado na economia americana, com particular realce na primeira metade do século
XIX, mas ainda suficientemente importante até finais do século XIX, apesar da reacção verificada no
terceiro quartel do século, que forçou os governos estaduais a abrir mão da sua participação no capital e
na gestão de numerosas empresas, especialmente de serviços de utilidade pública. Esta intervenção
pública na economia é mesmo apontada como um dos mais importantes factores da concentração operada
nas décadas de 1880 e 1890.
355
Esta decisão do Supremo Tribunal americano, com base na ideia de que a Constituição
americana não permitia o socialismo, veio mostrar que não há constituições neutras: afinal, mesmo a mais
neutra das constituições, proclamadamente aberta a todos os programas políticos resultantes da
alternância democrática, veicula um projecto político que exclui qualquer outro. Mas ela veio mostrar
também a resistência à (e a incompreensão da necessidade de) mudança do papel do estado capitalista
para poder cumprir a sua função de estado de classe. Um banqueiro que viveu o problema por dentro
(Averell Harriman) oferece-nos, a este respeito, o seguinte comentário: “Depois de Roosevelt ter salvo os
banqueiros, Wall Street deu provas de um ódio absoluto contra ele. O que censuravam fundamentalmente
a Roosevelt era ter feito deslocar de Wall Street para Washington o controlo das finanças da nação”
(Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 36).
245
1936. Com efeito, só a partir de então o New Deal privilegiou as políticas activas de
promoção do emprego e de apoio aos trabalhadores, em resposta, aliás, às pressões
sindicais, que se faziam sentir, de forma sistemática, desde o início da década.
Neste período foi instituído o subsídio de desemprego, a segurança social, o
direito de livre organização sindical eo direito à contratação colectiva (os sindicatos
penetraram em indústrias que até aí os tinham mantido afastados dos respectivos
trabalhadores: aço, borracha, têstil, auomóvel).
Em especial a Works Progress Administration financiou obras públicas
(estradas, auto-estradas, pontes, etc.) que deram emprego a 8,5 milhões de
trabalhadores, financiou concertos musicais e espectáculos de teatro, contratou artistas
para pintar murais, instituiu o programa federal de dar almoço às crianças das escolas.356
A verdade, porém, é que, mesmo no âmbito desta nova orientação, permaneceu
a preocupação com o equilíbrio do orçamento federal, o que traduziu na redução da
despesa pública consagrada nos orçamentos para 1937 e 1938. Daqui resultou a
travagem do processo de recuperação da economia que se vinha registando desde 1933:
no final de 1937 a produção de aço tinha baixado de 80% da capacidade instalada para
19%; a produção baixou mais em 1937 do que em 1930 e a taxa de desemprego
aumentou de 14% (1937) para 19% (1938), lançando de novo milhões de trabalhdores
no desemprego.
Só perante este novo quadro de recessão a Administração Roosevelt abandonou
a tese clássica do equilíbrio orçamental, passando a adoptar a proposta keynesiana de
combater a crise compensando a quebra do investimento e do consumo privados com o
aumento das despesas públicas financiadas mediante o recurso ao défice (deficit
financing).357
Em poucos anos, o clima de euforia, mesmo no plano teórico, deu lugar às teses
estagnacionistas de Alvin Hansen (1941) e de Joseph Steindl (1952), mais condizentes
356
Um dos grandes empreendimentos da Administração Roosevelt foi a aprovação do Tenessee
Valley Authority Act, que viria modificar a estrutura e a mentalidade da administração pública americana.
Através de processos impositivos semelhantes aos da planificação imperativa adoptada na URSS, a
entidade (Authority) à qual foi confiada a execução do plano de reconversão do Vale do Tenessee (que
afectou sete estados americanos e mais de 20 milhões de pessoas) assumiu plenos poderes para desviar o
curso do rio (destruindo cidades e deslocando grandes quantidades de pessoas para novas cidades
construídas), para reconverter as suas actividades económicas, para decidir sobre a habitação, a educação,
as relações de trabalho.
357
Paul MATTICK (ob. cit., 140) chama a atenção para o facto de a teoria keynesiana não ter
sido desenvolvida com base na experiência do New Deal. Isto porque – alega o autor – a prática do deficit
financing é mais antiga que o próprio capitalismo, sempre se utilizou em tempos de guerra, pelo que era
óbvio que poderia utilizar-se também na ‘guerra’ contra a depressão.
246
com o espectro da estagnação permanente que marcou a década de trinta, até 1939. Este
‘pessimismo teórico’ assumiu uma outra face: a dos autores que defendem que a
depressão não foi ultrapassada graças a medidas de política económica que tenham sido
adoptadas com esse objectivo, mas como consequência do rearmamento e da economia
de guerra que marcaram o mundo capitalista (com a Alemanha à frente) até ao final da
2ª Guerra Mundial e que se prolongou após o fim da Guerra com a corrida aos
armamentos alimentada pela ‘guerra fria’ e por várias ‘guerras quentes’.
“A grande Depressão dos anos 30 – escreve J. K. Galbraith 358 - nunca chegou ao
fim. Desapareceu simplesmente com a grande mobilização dos anos 40”. No mesmo
sentido vai a análise de Paul Baran e Paul Sweezy, em livro também publicado em
1966.359 Segundo estes últimos autores, o New Deal não conseguiu obter uma taxa de
desemprego inferior a 15%, o que justifica que, “ao aproximar-se o fim do segundo
mandato de Roosevelt, um sentimento profundo de frustração e inquietação se tenha
apossado país”. O ponto de vista de Baran/Sweezy é o de que o jogo dos interesses
dominantes nos EUA não permitia que as despesas públicas civis fossem além dos
valores atingidos em 1938 e 1939 (14,5% e 14,4% do PIB, respectivamente) e, sem um
grau maior de responsabilidade do estado, a crise não seria resolvida. A ‘salvação’ veio
com o aumento das despesas militares decorrente da participação dos EUA na Segunda
Guerra Mundial e com a corrida aos armamentos no âmbito da guerra fria,
complementada com outras guerras (Coreia, em 1950-1953, e Indochina, logo a
seguir).360
Num interessante estudo sobre a Grande Depressão e o New Deal, Paul Mattick
aduz argumentos no mesmo sentido, defendendo que a depressão não foi ultrapassada
em resultado das medidas timadas no âmbito do New Deal: em 1939, havia ainda nos
EUA 10 milhões de desempregados e o investimento privado era ainda cerca de 17#
inferior ao de 1929, antes da crise. O desencanto e a apatia eram tais que o Presidente da
Works Progress Administration (uma das principais agências do New Deal) chegou a
358
Cfr. American Capitalism, cit., 69.
359
Cfr. Capitalismo Monopolista, ed. cit., capítulo 6, especialmente 164-179. Sobre esta questão,
ver também GAMBLE/WALTON, El Capitalismo…, cit., 119ss.
360
J. BELLAMY FOSTER e R. W. MCCHESNEY (ob. cit.) vieram recentemente apoiar a tese
de Baran/Sweezy Segundo a qual, “devido à estrutura de poder do cpitalismo monopolista dos Estados
Unidos, o aumento das despesas civis alcançara os seus limites extremos em 1939”. Neste sentido,
mostram que, apesar do enorme aumento das despesas militares, as despesas civis de consumo e de
investimento do estado sofreram uma quebra nos anos 1940, em resultado do esforço de guerra, mas
recuperaram nos anos 1950, 1960 e 1970, tendo atinigido o seu máximo em 1975 (15,4% do PIB). Nos
anos seguintes, as despesas públicas civis estabilizaram á roda dos 14% do PIB (14,6% em 2007,
sensivelmente o mesmo que em 1938/1939).
247
361
Citação colhida em P. MATTICK, ob. cit., 139.
362
Cfr. P. MATTICK, ob. cit., 141.
248
de alguns direitos pelos quais os trabalhadores lutavam há muitos anos. Basta recordar
que o direito à greve foi então reconhecido legalmente em alguns países que ainda o não
reconheciam; que se generalizou o recurso à contratação colectiva no âmbito das
relações de trabalho; que em vários países foi fixada por lei a duração máxima da
jornada de trabalho e o número de horas de trabalho semanal; que em alguns países foi
estipulado o salário mínimo garantido e começaram a pôr-se de pé os primeiros sistemas
públicos de segurança social; que a liberdade sindical e outros direitos dos trabalhadores
tiveram consagração constitucional pela primeira vez na Constituição de Weimar.
Nos países de economia mais debilitada (como era a economia alemã nessa
altura, ainda por cima sobrecarregada com o peso das indemnizações de guerra impostas
pelo Tratado de Versalhes) e nos países pobres e atrasados (Itália, Espanha, Portugal e
outros países do sul da Europa), afectados também pela profunda e prolongada crise
económica, que se generalizara a todo o mundo capitalista, as condições económicas e
sociais não permitiam resposta fácil às reivindicações dos trabalhadores e das suas
organizações de classe.
No plano social, a tensão era crescente: as greves e a contestação social estavam
na ordem do dia, opondo por vezes os trabalhadores às forças armadas. A solução
adoptada foi a de silenciar as organizações dos trabalhadores (partidos e sindicatos) e
condenar os trabalhadores a prosseguir o ‘bem comum’, de mão dada com os grandes
empresários monopolistas no seio das organizações corporativas.
No plano político, as dificuldades agudizavam-se, dada a ‘contaminação’
provocada pela marcha, aparentemente vitoriosa, da Revolução de Outubro. Muitos
responsáveis recearam que a revolução alastrasse a toda a Europa, nomeadamente aos
países industrializados e desenvolvidos.
Nestas condições, para cumprir o seu papel, o estado capitalista assumiu então a
forma de estado fascista, anti-liberal, anti-democrata e anti-socialista, apesar de gostar
de se apresentar como estado social. Em certa medida, era o regresso ao figurino inicial
do estado bismarckiano do século XIX, filho da tese segundo a qual só o estado
autoritário poderia realizar a reforma social, ainda que à custa da democracia política,
tese que justificou o apoio de Lassalle (“socialismo de estado”) e dos “socialistas
catedráticos” ao estado prussiano do Chanceler de Ferro. E a verdade é que, em algumas
das suas versões, o fascismo (o nacional-socialismo) se assumiu abertamente como anti-
capitalista, procurando superar o capitalismo e o comunismo com base na cooperação
250
entre as classes em busca do bem comum, o único admissível em sociedades nas quais
se aboliram por decreto as classes sociais.363
4.8.3. - O estado fascista foi anti-liberal. O indivíduo dilui-se nos corpos sociais
(a família, a corporação, o estado)364; a concepção orgânica da sociedade substitui a
ideia de sociedade como o somatório de indivíduos isolados (concepção atomística); o
contratualismo dá lugar ao institucionalismo: o ‘estatuto’ definido e imposto pelo estado
ou pela entidade hierarquicamente superior (führerprinzip) substitui a solução
contratual.365
363
A Carta del Lavoro italiana é de 1927; o Estatuto do Trabalho Nacional foi promulgado em
Portugal em 1933; o Fuero del Trabajo espanhol é de 1938.
364
Mas todas estas estruturas eram postas essencialmente ao serviço do poder do estado, do
totalitarismo e do nacionalismo, ideia reflectida no famoso slogan do fascismo italiano “Tutto perl o
Stato, nulla al di fuori dello Stato” (traduzido em Portugal pelo lema salazarista “Tudo pela Nação, nada
contra a Nação”).
365
Fica, para ilustrar, um pequeno trecho de um discurso de Oliveira Salazar na Assembleia
Nacional (25.5.1940): “Quanto a nós, afirmamo-nos, por um lado, anticomunistas e, por outro,
antidemocratas e antiliberais, autoritários e intervencionistas (…)” (Discursos, Vol. 2º).
251
Ainda este excerto de uma entrevista de Oliveira Salazar a Le Figaro, 3.9.1950: “Não creio no
sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Não creio na
igualdade, mas na hierarquia. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero
perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos” (Discursos, Vol. 6º).
366
A verdade, porém, é que a organização corporativa não conseguiu, em nenhum país, assegurar
o governo global da economia e, muito menos, conseguiu assumir o poder político (na Itália, na Espanha
e na Áustria, a organização corporativa chegou a partilhar o poder legislativo). Só na Itália, porém, o
parlamento foi substituído (em 1939) pela Camera dei Fasci e delle Corporazioni, mas esta unificação
formal do poder económico e do poder político não teve correspondência na realidade. O próprio estado
fascista criou, em 1931, o Istituto Mobiliare Italiano (IMI), ao qual foi confiado importante papel na
concessão de crédito industrial, e criou, em 1933, o Istituto per la Ricostruzione Industiale (IRI), com o
objectivo de concentrar todas as participações accionistas das empresas em crise.
Em Portugal, a Câmara Corporativa nunca passou de órgão (quase técnico) de consulta da
Assembleia Nacional e do Governo, e, quando o Governo decidiu lançar o I Plano de Fomento (1953),
criou na dependência da Presidência do Conselho de Ministros um organismo específico para levar por
diante a planificação pública (estadual) da economia, pondo a claro o papel secundário das corporações.
252
direito de greve; mas não pôs em causa a propriedade privada nem a liberdade de
empresa, embora condicionadas à sua ‘função social’ de promover o ‘bem comum’.
“Os grandes industriais - escreve um autor, tendo em conta a Alemanha nazi 368 -
tinham-se tornado em muitos casos os verdadeiros dirigentes da nação, e não é muito certo que
tenham actuado sempre no interesse geral”. E o mesmo autor dá conta do que lhe declarara, em
1937, um pequeno industrial alemão: “Agora tudo está regulamentado: dizem-me o que devo
produzir e a que preço; fornecem-me matérias-primas cujo valor é fixado pelo governo. Não
tenho qualquer possibilidade de intervir seja no que for, na marcha da economia geral ou do
meu negócio. Tornei-me um funcionário inútil”.
367
Sobre a caracterização do corporativismo, ver V. MOREIRA, Direito Corporativo, cit. Sobre
a constituição económica na Constituição salazarista de 1933, ver A. SOUSA FRANCO/G.
D’OLIVEIRA MARTINS, ob. cit., nomeadamente pp.120ss.
368
Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 64/65.
253
A questão social era um dos temas centrais da doutrina social da igreja católica,
desde a Rerum Novarum (1891), actualizada por Pio XII em 1931 (Quadragesimo
Anno), em bases essencialmente anti-liberais, anti-individualistas e anti-socialistas.
Assente na defesa da propriedade privada como um instituto de direito natural, a
doutrina social da igreja defendia que o estado só deveria intervir na economia se os
indivíduos e as suas comunidades não pudessem servir correctamente o ‘bem comum’
(princípio da subsidiariedade’); e advogava, por outro lado, o regresso ao espírito das
corporações medievais, através da instituição de associações profissionais no seio das
quais patrões e trabalhadores deveriam unir-se na prossecução do ‘interesse colectivo’.
Estas preocupações e estas propostas tiveram eco no ideário corporativo e
caracterizaram a prática dos estados corporativos.
369
Em tempos posteriores à 2ª Guerra Mundial, o recurso a regimes totalitários de tipo fascista
foi uma solução corrente do imperialismo americano e dos seus aliados autóctones em vários países,
especialmente na América Latina, desde o início dos anos 50 até à década de 80 do século passado.
Mesmo na Europa, o pretexto da ‘guerra fria’ serviu para que os vencedores do nazi-fascismo aceitassem
a condenação dos povos de Portugal e de Espanha a mais três décadas de fascismo e, em período mais
limitado, tivessem apoiado a ditadura militar na Grécia.
254
370
É significativo que os exércitos alemães tenham bombardeado Paris, em 1871 (Guerra Franco-
Prussiana), em 1914-18 e em 1939-45, armados com canhões produzidos pelas mesmas fábricas Ktupp
(um dos gigantes da indústria pesada alemã, a que mais exigia “espaço vital”).
255
Itália, que em 1935 fizera guerra à Etiópia, e o Japão, que em 1931 conquistara a
Manchúria e em 1937 invadira a China).
A Guerra exigia de todos um enorme esforço no terreno da economia. Neste
contexto, o estado teve de ocupar-se directamente não só da distribuição dos alimentos e
do controlo da utilização da mão-de-obra e dos recursos disponíveis, mas também da
produção, ao menos nos sectores mais directamente ligados às necessidades bélicas. Os
autores falam de planificação económica de guerra (comunismo de guerra), não apenas
na URSS, mas na generalidade dos países beligerantes.
Dos adversários capitalistas da Alemanha, a Inglaterra foi talvez o país onde se
foi mais longe neste caminho: no exercício de 1942-1943, as despesas do estado inglês
representaram cerca de 80% do rendimento nacional. Mesmo nos EUA, a guerra
obrigou o estado a tomar a iniciativa da produção. O receio de que, perante as
contingências do conflito, não fosse possível amortizar os capitais que investissem -
apesar de serem em geral muito lucrativos os negócios e apesar de haver capitais
disponíveis -, levava as empresas privadas a não investir em determinados sectores.
Embora as fábricas já existentes não estivessem a utilizar toda a capacidade instalada, o
governo americano foi obrigado a construir, com fundos públicos, fábricas que depois
viriam a ser exploradas por aqueles que tinham recusado construí-las.371
Muito mais do que a 1ª Guerra Mundial, este segundo conflito foi, por parte da
Alemanha, uma guerra de ocupação, de extermínio de populações civis, de pilhagem de
estruturas fabris e de recursos naturais, de exploração dos cidadãos dos países ocupados
como mão-de-obra escrava. Para além dos que eram forçados a trabalhar para a
economia de guerra alemã nos seus próprios países, em Setembro de 1944 trabalhavam
na Alemanha, em regime de trabalho forçado, cerca de 7,5 milhões de cidadãos
provenientes de países ocupados pelo exército nazi (21% da força de trabalho do país).
Nesta Guerra, as estruturas económicas tornaram-se alvos militares prioritários
para cada um dos beligerantes. E a destruição foi brutal. Cidades inteiras foram
arrasadas: 25 milhões de pessoas na URSS e 20 milhões na Alemanha ficaram sem
371
Os industriais americanos, com efeito, procuraram confinar a sua produção para fins bélicos
às fábricas construídas pelo governo, produzindo nas suas próprias fábricas bens não especificamente
destinados à nação em guerra, mas “utilizáveis em tempo de guerra e previstos para o tempo de paz”,
como salienta Jean Romeuf, que conclui deste modo: “De facto o Estado dirige bem a economia, mas nas
condições mais onerosas e menos rentáveis possíveis. Encontra-se sensivelmente na situação do indivíduo
que, tendo necessidade absoluta de um objecto, dá ‘carta branca’ a um fornecedor para lho conseguir num
prazo determinado. Não poderá, portanto, falar-se de planificação relativamente à indústria” (Cfr. J.
ROMEUF, ob. cit., 59/60).
256
condições da ajuda era, aliás, a de que todos os bens enviados para a Europa a partir dos
EUA deveriam ser transportados e bandeira americana, carregados por estivadores
filiados na AFL-CIO. Como Tony Judt observa, “o Plano Marshall iria beneficiar os
Estados Unidos ao recuperar o seu maior parceiro comercial, em vez de reduzir a
Europa a uma dependência imperial”.
Este foi também um expediente que facilitou aos EUA a imposição do
livrecambismo nas relações comerciais em todo o mundo capitalista, solução que se
adequava aos seus interesses como potência hegemónica. Do mesmo modo que servira
os interesses da Inglaterra imperial antes da 1ª Guerra Mundial.
Mas o Plano Marshall foi também concebido como um instrumento do domínio
americano no quadro da ‘guerra fria’. Um relatório de um comité coordenador dos
Departamentos de Estado, da Guerra e da Marinha (21.4.1947) não deixa dúvidas a este
respeito: “É importante manter em mãos amigas as áreas que contenham ou protejam
fontes de metais, petróleo e outros recursos naturais, onde se integrem objectivos
estratégicos ou locais estrategicamente situados, que tenham um grande potencial
industrial, que possuam efectivos importantes de mão-de-obra ou de forças militares
organizadas ou que, por razões políticas ou psicológicas, permitam aos Estados Unidos
exercer uma influência mais significativa a favor da estabilidade, da segurança e da paz
mundiais”.377
A exportação de capitais públicos, sobretudo com destino aos países
subdesenvolvidos, no quadro do que se designou por neo-colonialismo, é uma das
novidades do período imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial. Trata-se de
empréstimos e financiamentos de vária ordem concedidos em regra no âmbito de
programas de auxílio aos países subdesenvolvidos (ajuda ao desenvolvimento). E as
características do Plano Marshall acabaram por marcar todos os programas de auxílio
aos países subdesenvolvidos que mais tarde se seguiriam: assegurar a manutenção das
condições de domínio económico-político dos países exportadores de capitais sobre os
países ‘beneficiários’ desse auxílio.
Na origem destes programas de auxílio, está uma doutrina formulada em 1957
por um grupo de especialistas americanos sob a orientação de Walter Whitman Rostow,
“segundo o qual os objectivos da política exterior dos Estados Unidos poderiam ser
melhor alcançados mediante uma bem orientada ‘ajuda externa’ aos países
subdesenvolvidos”. Analisando esta doutrina, Celso Furtado salienta “que o objectivo
377
Apud T. JUDT, últ. ob. cit., 124/125.
259
da política dos Estados Unidos é conservar integrada a sua esfera de influência e que o
desenvolvimento deste ou daquele país deve ser considerado como um meio para
alcançar esse fim.”378
O que se diz a respeito dos EUA poderá dizer-se a respeito dos outros países
empenhados em programas de auxílio público aos países subdesenvolvidos, programas
cujo objectivo não é, em regra, o desenvolvimento dos países ‘beneficiários’, mas,
segundo muitos especialistas, “a manutenção e o reforço do poderio dos países
dominantes”379, sendo certo que “é essencialmente o aspecto ‘subvenção à sua própria
indústria’ que orienta a maioria dos países doadores.”380
Este é um aspecto que se torna patente se atentarmos na prática corrente da
ajuda ligada (ou ajuda vinculada), que obriga o país beneficiário a aceitar certas
condições impostas pelo país que concede o auxílio, ou, muitas vezes, pelo FMI e pelo
Banco Mundial (v.g., a obrigação de gastar as verbas na aquisição de bens produzidos
no país dominante, para além de ‘obrigações’ de ordem política: privatizações,
‘facilidades’ ao investimento estrangeiro, não tributação dos rendimentos do capital,
liberalização do comércio e dos movimentos de capitais, ‘flexibilização’ da legislação
laboral, domesticação dos sindicatos, etc.).
1700 no final dos anos 1950. Antecipando-se aos EUA, a URSS ensaiou com êxito o
primeiro míssil balístico inetrcontiental em Agosto de 1957 e no dia 4.10.1957 lançou o
primeiro satélite artificial (o Sputnik).385
Na Europa, o esforço de guerra e a persistência da Inglaterra em manter o seu
estatuto de potência colonial e de grande potência mundial transformaram o Reino
Unido de maior credor mundial em maior devedor, de tal modo que o país se encontrava
insolvente em 1945, ano em que dez milhões de britânicos (de um total de 21,5 milhões
de adultos empregados) estavam no serviço militar ou fabricavam armamento. Em 1946
foi imposto o racionamento do pão (que nunca fora imposto durante a Guerra) e quase
todos os bens de primeira necessidade estavam racionados. O racionamento dos
produtos limentares só terminaria em 1954, mais tarde do que no resto da Europa
Ocidental. Apesar da penúria, o RU viu-se obrigado a destinar quase todos os fundos
provenientes do Plano Marshall ao pagamento dos encargos da dívida externa contraída
junto dos EUA. Entre 1946 e 1948 emigraram mais de 150 mil britânicos. Como único
consolo, o facto de praticamente não haver desemprego e de a distribuição da riqueza se
ter tornado menos desigual (a parte do rendimento arrecadado pelo núcleo de 1% mais
ricos baixou de 56% em 1938 para 43% em 1954).386
A França tinha sido afastada das grandes conferências (nomeadamente Postdam
e Ialta) em que se traçou o destino do mundo depois de a Guerra terminar, embora tenha
conseguido a vitória diplomática de lher ser atrbuída uma zona de ocupação na
Alemanha e de se ver incluída no pequeno leque dos membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU. Mas o seu estatuto de potência colonial ficou
desvalorizado e, como consequência da ocupação do seu território pela Alemanha,
perdeu o estatuto de potência europeia. Ao contrário do que a França pretendia, a
Alemanha não foi obrigada a pagar indemnizações de guerra à França e muito menos
desmantelada e anulada economicamente, com a separação da Alemanha das regiões do
Ruhr, do Sarre e de algumas áreas da Renânia, cujos recursos seriam colocados à
disposição da França. Pouco depois da rendição da Alemanha, os interesses dos EUA
cedo apontaram no sentido da recuperação económica, política e até militar da
Alemanha.
385
Uma evolução semelhante verificou-se no Reino Unido e na França e, depois de 1949, na
generalizade dos países membros da NATO. O Reino Unido lançou com êxito a sua primeira bomba
atómica em Outubro de 1953. A França só entraria no ‘clube’ em Fevereiro de 1960. Cfr. T. JUDT, PÓS-
GUERRA, cit., 188, 292/293.
386
Cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 198-201.
262
uma paridade fixa de 35 dólares por onça troy de ouro, segundo o acordado em Bretton
Woods em 1944), e porque os EUA eram, então, praticamente a única economia que
poderia exportar o que todos os países pretendiam e que não produziam, graças à
destruição operada pelo conflito. Estas circunstâncias facilitaram a expansão dos EUA
em todo o mundo capitalista, no plano económico e no plano militar.
Como sempre aconteceu desde a Inglaterra do tempo de Ricardo, o
livrecambismo tem sido utilizado como um instrumento ao serviço dos países
dominantes e dos interesses dominantes, aspecto que se acentuou com a passagem do
sistema de negociação permanente que caracterizava o GATT para o modelo de agência
reguladora do livre comércio internacional, que é a OMC (Organização Mundial do
Comércio), muito mais facilmente dominável pelos EUA (e pelas outras grandes
potências), à semelhança do que vem acontecendo com outras agências da ONU, como
o FMI e o Banco Mundial.
Ao contrário da ‘filosofia’ inspiradora da OMC, que vê na liberdade absoluta das
trocas, na plena abertura dos mercados e no simples desenvolvimento do comércio a
solução para todos os problemas dos países de desenvolvimento impedido ou marcados
por um desenvolvimento dependente ou desenvovlimento maligno, muitos autores
aparecem hoje a defender que as relações comerciais internacionais devem inspirar-se
nos princípios da solidariedade e do desenvolvimento sustentável e no reconhecimento
do direito dos povos à auto-suficência alimentar. Entretanto, os valores do comércio
mundial aumentam sem cessar, mas as desigualdades e a exclusão social aumentam a
um ritmo ainda maior.
392
Fala-se de integração (ou concentração vertical) quando uma empresa, actuando em certo
sector, estende a sua acção a outros campos da actividade económica; fala-se de concentração (ou
concentração horizontal) quando uma empresa amplia a sua produção, passando a produzir uma
percentagem cada vez mais elevada do bem que vinha produzindo, com o objectivo de controlar o
respectivo mercado.
Na integração, distingue-se a integração horizontal (integração de fases paralelas de fbrico (a
partir da refinação do petróleo, várias linhas de produção na área da petroquímica) da integração vertical
(integração de fases sucessivas do processo produtivo o mesmo bem (plantação de algodão, fiação,
tinturaria, tecelagem, vestuário, pronto a vestir). No âmbito da integração vertical, pode ainda distinguir-
se a integração vertical ascendente (integração de estádios anteriores do processo produtivo) e a
integração vertical descendente (integração de estádios posteriores do processo produtivo).
267
suas riquezas, recursos naturais e actividades económicas, incluindo a sua posse e o direito de as utilizar e
de delas dispor”, e especificando a alínea c) do nº 2 que “cada estado tem o direito de nacionalizar, expro-
priar ou transferir a propriedade de bens estrangeiros, casos em que deverá pagar uma indemnização
adequada, tendo em conta as suas leis e regulamentos e todas as circunstâncias que julgue pertinentes.
Sempre que a questão da indemnização dê lugar a diferendo, este será decidido de acordo com a
legislação interna do estado que tomou as medidas de nacionalização e pelos tribunais desse mesmo
estado, salvo se todos os estados interessados acordarem livremente em procurar outros meios pacíficos,
na base da igualdade soberana dos estados e em conformidade com o princípio da livre escolha dos
meios”. [O texto destes dois documentos da ONU vem publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº
245, Abril/1975, 79-82 e 376-393].
273
abrissem o caminho para uma economia não capitalista, uma “economia ao serviço do
homem”. Mas a orientação adoptada traduziu-se em colocar o sector empresarial do
estado ao serviço dos lucros privados, numa solução de capitalismo de estado, em que a
propriedade pública se afirmou como uma nova forma de propriedade capitalista
(propriedade do estado capitalista).
É claro, hoje, que as nacionalizações verificadas em vários países da Europa
Ocidental não constituíram o “primeiro degrau do socialismo”, porque as
nacionalizações não prosseguiram “até eliminar do sector privado todas as grandes
empresas”, mas, fundamentalmente, porque, nesses países, se manteve inalterada a
natureza capitalista do estado, um estado que, nas palavras de François Perroux, “nunca
é neutro” (e “não é certamente independente dos grandes interesses: estes assediam-no e
ocupam-no mesmo”), antes é a “expressão das classes dominantes”, “largamente de-
pendente do capitalismo dos monopólios”.400
Neste quadro institucional, a propriedade estadual dos meios de produção
afirmou-se como uma nova (e a mais recente) forma jurídica da propriedade capitalista
(a propriedade do estado capitalista) a par da propriedade individual e da propriedade
corporativa.401 Por isso, como salienta Andrew Shonfield, “a empresa particular acabou
por considerar o grandemente reforçado sector público menos como um perigoso rival
do que como um aliado útil, de facto quase como uma garantia – pois era agora tão
vasto e maciço que não poderia mover-se na direcção errada, por um instante sequer,
sem fazer encalhar o barco todo”.402
400
Cfr. L’économie du XXe Siècle, cit., 378 e 382.
401
No Anti- Dühring (ed. cit., 342) Engels observa que “de quanto mais forces produtivas (o
estado capitalista) se apropria, tanto mais se converte num verdadeiro capitalista colectivo.(…) O
capitalismo nõ se suprime, muito pelo contrário, acentua-se; mas, chegado ao ponto máximo, muda de
direcção e o estado, proprietário das forças produtivas, não é a solução do conflito, mas tem o meio, a
chave da solução”, que só pode realizar-se “tomando a sociedade posse, de um modo aberto e sem
rodeios, das forças produtoras que se subtraíram à sua direcção”.
402
Cfr. Capitalismo Moderno…, cit., 224. Em 1978, durante a discussão do Programa do
Governo na Assembleia da República, o então Ministro das Finanças, Doutor Manuel Jacinto Nunes,
explicava: “ As nacionalizações, a menos que o seu fim seja o estabelecimento de uma direcção central
total, destinam-se a coordenar e dirigir com o mínimo de burocracia as actividades para as quais a
iniciativa privada é inadequada ou politicamente perigosa. É uma das técnicas de controlo da economia e
uma ‘última ratio’ em relação ao poder económico quando o poder político não consegue dominá-lo por
outros meios”.
Algo de específico aconteceu relativamente às nacionalizações operadas em Portugal na sequência
da Revolução de 25 de Abril de 1974. Não porque o sector empresarial do estado fosse, em Portugal,
superior ao de outros países, no que toca à sua dimensão, aos sectores abrangidos, à percentagem do
investimento que representava no investimento agregado, ao peso no PIB do País, ao volume do emprego,
etc. Mas porque a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte em 1976 proclamava que “o
desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos
principais meios de produção” (art. 10º, nº 2), com o objectivo de “abolir a exploração do homem pelo
homem” (art. 9º); e afirmava que o objectivo da República era a “transição para o socialismo mediante a
criação de condições para o exercício do poder pelas classes trabalhadoras (art. 2º), com vista à sua
275
Foi neste pano de fundo que, no início da década de 1950, o capitalismo (europeu)
recuperou o fôlego, graças ao clima da guerra fria (e consequente corrida aos
armamentos), à acção do Plano Marshall, aos resultados das políticas keynesianas, aos
ganhos da política neocolonialista.
produzir e dos preços de venda) pela fixação prévia, por parte das empresas, dos bens e
das quantidades a produzir, dos preços a pagar pelos consumidores e das próprias
margens de lucro. Esta a explicação dada pelo próprio Galbraith: “uma empresa não
pode, utilmente, prever e programar a acção futura ou preparar-se para as contingências
se não souber quais serão os seus preços e as suas vendas, assim como os seus custos,
inclusive os custos do trabalho e do capital e se não souber o que estará disponível a
esses custos. Se o mercado é inseguro, não poderá conhecer esses dados. E não poderá,
por isso, estabelecer os seus planos (...), a menos que o mercado também ceda ante a
planificação. Muito daquilo que a empresa considera como planificação consiste em
tornar mínimas ou em fazer desaparecer as influências do mercado”.
A concluir o Capítulo III de The New Industrial State, Galbraith é muito claro na
afirmação de que “nas economias ocidentais, os mercados são dominados pelas grandes
empresas. Estas estabelecem os preços e tentam garantir uma procura para o que têm
para vender”. E, dentro da lógica da teoria da convergência dos sistemas, defende que
“a grande empresa moderna e o aparelho de planificação socialista são adaptações
diferentes da mesma realidade”, querendo com isto significar que a ‘morte do mercado’
é ditada pela tecnologia e não pela ideologia.
“a cura para estas questões deve ser procurada, em parte, no controlo deliberado da
moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, na compilação e divulgação, em
larga escala, de dados relativos à situação dos negócios (...). Estas medidas envolveriam a
sociedade no exercício de uma inteligência directiva, através de um apropriado órgão de acção
sobre muitas das complexidades intrínsecas dos negócios privados, mas que, entretanto,
deixaria a iniciativa e as empresas privadas livres de obstáculos”.408
408
Cfr. J. M. KEYNES, The End…, cit., 47/48 [Sublinhados nossos].
409 ?
Cfr. Notas Finais com que encerra a General Theory, em J. KEYNES, The General Theory…,
cit., 378/379. Ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 81/82.
410
São trechos colhidos em H. J. SHERMAN, ob. cit., 388.
280
Apesar do que fica dito, Jean Romeuf pôde escrever que “em 1939, os nossos
manuais de economia política ignoravam ainda deliberadamente a existência de uma
ciência da planificação, e só alguns especialistas conheciam os nomes, e mais raramente
as obras, dos peritos soviéticos da planificação”.412
Nem por isso a evolução do capitalismo deixava de se verificar. A eclosão da
Segunda Guerra Mundial haveria de marcar, também neste aspecto, um passo decisivo.
O progresso tecnológico e a concentração capitalista aceleraram-se.
Por força das circunstâncias, o estado capitalista adquiriu, em certas condições, a
propriedade de indústrias ou ramos em dificuldades financeiras, ou cuja exploração
apresenta riscos excessivos ou baixas taxas de lucro, ou que só dão lucro ao fim de
vários anos, ramos pouco atractivos para o sector privado, mas necessários para o
desenvolvimento da produção em geral.413
411
Cfr. A. MARCHAL, Sistemas…, cit., 221-225.
412
Cfr. J. ROMEUF, ob. cit., 55.
413
Eric Hobsbawm põe em evidência os resultados altamente positivos (quanto à área cultivada e
quanto à produtividade) da planificação governamental sistemática levada a cabo no âmbito da
agricultura durante o período da Segunda Guerra Mundial na Grã-Bretanha: “A agricultura britânica –
conclui E. J. HOBSBAWM, Indústria e Império, cit., II, 55/56 – deixou de constituir um modo de vida
para se tornar, de acordo com os os padrões internacionais, uma indústria eficiente”.
281
de-obra mais qualificada, mercados mais vastos. O que significa maiores incertezas, que
obrigam a uma planificação mais cuidada e a prazos mais longos.
O carácter social da produção e das forças produtivas foi-se acentuando. As
empresas e mesmo os sectores de actividade económica tornam-se cada vez mais
interdependentes, a tal ponto que começa a ficar clara a necessidade de ‘organizar’, de
‘concertar’ a economia. Ao fim e ao cabo, tratava-se de ‘concertar’ entre si os ‘planos’
dos grandes grupos ‘monopolistas’, até porque a ‘planificação’ ao nível das empresas
exige uma certa ‘coerência’ entre os vários sectores de actividade, isto é, exige uma
certa ‘coordenação’ ou ‘planificação’ da economia nacional no seu conjunto.
Alguns autores sustentam mesmo que, para o planeamento ser eficaz, a
distribuição da produção na indústria deve ser de tal ordem que cerca de 80% da
produção provenham de 20% das empresas, considerando impossível a direcção da
economia quando 60% da produção couber a 40% das empresas.414 A planificação
(pública ou privada) não seria possível em economias capitalistas cuja estrutura
económica assentasse em uma multidão de pequenas e médias empresas. Nos países de
economia capitalista, a planificação não foi uma opção livre dos economistas ou dos
políticos, antes foi uma ‘exigência’ da concentração monopolista.
Toda a intervenção do estado nas economias capitalistas adquire em regra um
sentido em larga medida coincidente com os objectivos da ‘planificação’ e do ‘controlo’
do mercado pelas grandes empresas. Com efeito, certas medidas que os estados adoptam
vêm frequentemente contribuir (directamente ou através da acção sobre os custos) para
que as empresas ‘monopolistas’ possam praticar preços fixados à margem das condições
que seriam ditadas pelo jogo da oferta e da procura. Lembre-se, a título de exemplo, a
actuação do estado na orientação da política de salários; na fixação das taxas de juro; na
concessão de subvenções e benefícios (ou isenções) fiscais; na fixação de tarifas
preferenciais por parte das empresas e serviços públicos (de que beneficiam em maior
medida os principais clientes - as grandes empresas privadas); na organização de
esquemas de crédito e de seguro de crédito à exportação; na concessão de subsídios às
empresas exportadoras e no estabelecimento de direitos alfandegários protectores; no
financiamento da investigação, quer seja realizada em centros públicos quer nas
empresas privadas, etc.
O progresso técnico tem que ver com o processo da planificação económica.
Como salienta François Perroux:
414
Cfr. A. SHONFIELD, últ. ob. cit., 138.
283
“ (o progresso técnico) já não é entendido como uma variável que seria subtraída à
decisão dos poderes públicos: estes estimulam a investigação fundamental e aplicada; formam
investigadores e trabalhadores qualificados; dedicam-se a prever, por mais imperfeitamente que
seja, as grandes vagas de transformações técnicas, a tornar mais curtos os períodos que separam
a invenção da aplicação experimental e do uso generalizado na indústria. Tendo em conta a
natureza de alguns grandes progressos do século XX, na exploração das novas energias, por
exemplo, a acção directa dos poderes públicos é insubstituível; ela desdobra-se em subvenções,
em participação nos riscos e no financiamento da inovação das empresas privadas e dos seus
grupos”.
415
Acerca da importância económica da informação no mundo actual, ver F. PERROUX, “Le
Quatrième…, cit., 4ª parte, L’information économique, 347ss.
416
Cfr. J. K. GALBRAITH, The New Industrial…, cit., 31.
284
planificada, longe de ser impopular, é carinhosamente encarada por aqueles que melhor
a conhecem”.417
Foram as pequenas empresas, mais ou menos condenadas pela lógica da
concentração monopolista, as que mais protestaram contra os ‘abusos’ da intervenção
do estado, porque esta não se desenvolve ao sabor dos seus interesses. É que o estado
intervém a ‘planificar’ uma economia já de certo modo planificada ao nível das grandes
empresas (que controlam os sectores mais importantes da actividade económica), e não
admira, por isso, que a planificação pública se traduza numa tentativa de tornar
coerentes entre si os planos dos grandes grupos monopolistas, limando as dificuldades
que possam resultar da concorrência entre eles e conjugando-os, numa base ‘realista’,
com as possibilidades de intervenção e de apoio do estado.
Fala-se, a este propósito, de economia contratual para significar a existência de
um sistema de compromissos colectivos entre os vários grupos monopolistas e entre
estes e o estado, assentes em princípios de boa fé idênticos aos que regulam as relações
contratuais privadas (do ponto da vista da administração pública, fala-se de
administração contratual), algo que vai além do mero diálogo entre o sector privado e o
estado, que caracterizaria a economia concertada.418
No quadro da planificação levada a cabo pelo estado capitalista, “o plano é antes
de mais uma informação sobre o possível”, desempenhando, “no domínio económico, o
mesmo papel de um mapa de estradas no domínio dos transportes”. 419 Os empresários
recorrerão ou não a esse mapa, conforme o seu interesse. A razão parece estar, pois, do
lado dos que entenderam que “esta ingerência do estado na vida económica conduz a
subtrair, primeiro os indivíduos e depois as empresas, a certos riscos. Economicamente
falando, esta atitude identifica-se com um princípio de segurança [sublinhado
nosso].”420 Andrew Shonfield sabe do que fala quando afirma que “as grandes
sociedades anónimas estão interessadas na planificação como um meio de reduzir as
417
“Quando Selwyn Lloyd (ministro das Finanças conservador) entrou no Governo, já defendia
que uma planificação das despesas a longo prazo era, como outras coisas em que ele acreditava, algo que
relevava do senso comum”. Assim se exprime Samuel Brittan (apud E. MANDEL, Le Troisième Âge…,
cit., 3, 207/208), que explica ter sido na Conferência organizada em Brighton pela Federação das
Indústrias Britânicas (Novembro/1960) que se traçaram os planos para relançar a indústria britânica nos
cinco anos seguintes. Daí saiu a ideia de que “valia a pena reunir as previsões e os planos com base nos
quais as empresas vinham já trabalhando, cada uma por si, para ver se todos eram compatíveis”.
418
Cfr. J.-P. COURTHÉOUX, “Problèmes…, cit., 795.
419
Cfr. FOURASTIÉ/COURTHÉOUX, La planification …, cit., 40.
420
Ugo Papi, citado por E. MANDEL, Traité…, cit., III, 206.
285
“o plano indica aos produtores as condições indispensáveis para que os seus objectivos
particulares sejam compatíveis entre si. Ao mesmo tempo, procura assegurar por meios
indirectos a realização das finalidades desejáveis do ponto de vista nacional. O plano não se
apresenta portanto como rival do lucro, mas sim como instrumento da sua realização, pelo
esforço de eliminação dos riscos da incoerência dos planos individuais e pelas ajudas, financeira
e de outra natureza, que os poderes públicos proporcionam às empresas cujos projectos se
integram nos objectivos do plano. O plano funciona, na expressão de Pierre Massé, como um
redutor de incerteza”. [sublinhado nosso]
Têm razão, a nosso ver, todos os que entendem que é esta a verdadeira natureza
da ‘planificação’ levada a cabo pelos estados capitalistas: em relação às grandes
empresas, funciona como uma garantia de segurança, serve-lhes como um largo estudo
do mercado, esforçando-se por evitar ‘engarrafamentos’ da produção e duplos empregos
e procurando conciliar os antagonismos porventura existentes entre grupos capitalistas
rivais, ao mesmo tempo que salvaguarda a liberdade das empresas em matéria de
investimentos e de orientação da produção.
O poder dessas grandes empresas sobre os órgãos de planificação é de tal ordem,
que François Perroux pôde escrever que “nas estruturas actuais, a moeda e o Plano são a
favor das unidades de produção e dos grupos económicos e financeiros mais
poderosos”.423 E Shonfield afirma sem rodeios que “o Plano (francês) reflecte, em
grande parte, as suas ideias [as ideias das grandes sociedades anónimas] ou, pelo menos,
um compromisso entre os seus desejos e os dos funcionários responsáveis pela política
económica do Governo”, acrescentando que os funcionários “provenientes do ministério
de tutela de um determinado ramo de comércio ou indústria actuam, com bastante
frequência, como se fossem, em certo sentido, os representantes desses interesses
sectoriais, em vez de funcionários nomeados para exercer vigilância sobre os mesmos,
em nome do interesse público.” E conclui: “não há dúvida de que a actividade da
planificação, tal como se pratica na França, reforçou a influência sistemática exercida
pelos grandes grupos de interesses (“large-scale business”) sobre a política eco-
nómica”.424
421
Cfr. A. SHONFIELD, ob. cit., 139.
422
Cfr. M. JACINTO NUNES, “A lógica…, cit., 26.
423
Cfr. F. PERROUX, “Le quatrième Plan…, cit., 8.
424
Cfr. A. SHONFIELD, Capitalismo Moderno, cit., 139.
286
425
Cfr. A. SHONFIELD, últ. ob. cit., 231.
426
Cfr. F. P. MOURA, “As indústrias…, cit., 62.
287
Fala-se de planificação indicativa para significar que ela não pode aspirar a ser
um instrumento imperativo de direcção do processo económico. Em sistema capitalista,
o estado não pode impor os seus planos, não pode pôr em causa os direitos que derivam
da propriedade privada, nomeadamente a liberdade de empresa.
Mas o estado dispõe de meios indirectos que lhe permitem influenciar
(condicionar) o comportamento das (grandes) empresas privadas, de modo a conseguir
alcançar os objectivos planificados. O estado não dispõe do chicote, mas dispõe da
cenoura: através da disciplina jurídica da economia, o estado consegue que o sector
privado actue em conformidade com o previsto no plano (para o conseguir, oferecem-se
às empresas que colaborarem com o estado benefícios fiscais, crédito bonificado,
subsídios a fundo perdido, programas de construção de infra-estruturas e de formação
de mão-de-obra, podendo mesmo o estado assumir o compromisso de proceder a
alterações legislativas no que toca à legislação laboral, aos descontos para a segurança
social, etc.).
Por outro lado, nos países de economia capitalista, a planificação pública tem de
operar dentro dos limites e da lógica do próprio sistema, o que significa que ela só terá
viabilidade de execução se for ‘realista’ e só será ‘realista’ se respeitar e favorecer os
interesses dos grandes grupos monopolistas, se, de uma forma ou de outra, criar
condições mais favoráveis de lucro e de segurança naqueles sectores ou naquelas
regiões onde pretende incrementar os investimentos.427
427
Mesmo assim, a planificação pública no quadro do capitalismo pode permitir a adopção de
modelos de desenvolvimento assentes em opções idênticas às que foram adoptadas nos países da Europa
de Leste depois da 2ª Guerra Mundial. No fnall dos anos 1940, os planos do governo democrata-cristão de
Alcide De Gasperi deram clara preferência ao investimento em infraestruturas, sacrificando a produção de
bens de consumo, incluindo os consumos alimentares, mantidos em níveis inferiores aos de antes da
Guerra. Cfr. T. JUDT, PÓS-GUERRA, cit., 125.
288
“O proletariado conquista o poder público e transforma, por força deste poder, os meios
de produção sociais, que se escapam das mãos da burguesia, em propriedade pública. Por este
acto liberta os meios de produção da qualidade de capital que tinham até aqui e dá ao seu
carácter social plena liberdade para se afirmar. Torna-se agora possível uma produção social de
acordo com um plano pré-estabelecido”.428
Parece claro que, uma vez estabelecida a propriedade pública dos meios de
produção sociais, a economia funcionará de acordo com um plano pré-estabelecido: “a
anarquia no interior da produção social é substituída – continuamos a citar Engels - pela
organização consciente e planificada”. De resto, ao referir-se à planificação levada a
cabo pelas grandes empresas capitalistas nas economias fortemente ‘monopolizadas’,
Engels é ainda mais claro ao identificar o socialismo com a planificação: “Com os trusts
– escreve ele - a produção não planificada da sociedade capitalista capitula diante da
produção planificada da sociedade socialista que desponta”, a tal “organização
consciente e planificada” de que falavano trecho atrás citado.
Fiel à sua ideia de não fazer a cozinha do futuro, Marx não aborda
sistematicamente a problemática do plano. Mas ela tem na sua obra um ou outro
afloramento. É o que acontece no Livro I, 1ª Secção, Capítulo I de O Capital, onde faz
referência à sociedade socialista, caracterizada por “uma reunião de homens livres,
trabalhando com meios de produção comuns e despendendo, segundo um plano
concertado, as suas numerosas forças individuais como uma única e a mesma força de
trabalho social”.429 Referências mais mais extensas e mais explícitas encontram-se no
Livro III de O Capital, onde Marx se refere à futura sociedade socialista “organizada
como associação consciente e sistemática”, na qual “os produtores regularão a sua
produção em conformidade com um plano previamente elaborado” e na qual “a
428
Cfr. Anti-Dühring, ed. cit., 359-363, e “Do Socialismo Utópico…”, cit., 160-167. Deste
último trecho ressalta a ideia de que, diferentemente do que aconteceu com a burguesia – que conseguiu ir
preparando, em pleno feudalismo, as condições materiais que permitiram a passagem ao modo de
produção capitalista -, na passagem ao socialismo, os trabalhadores só podem preparar a passagem ao
novo modo de produção socialista depois de ocuparem o estado, que tem de ser utilizado para destruir a
base material própria das relações de produção capitalista, nomeadamente a propriedade capitalista dos
meios de produção.
429
Cfr. Le Capital, Éd. Rubel, cit., 613. Cfr. também O Capital (Livro I, vol. 1), Centelha,
Coimbra, 1974, 123, e O Capital, Livro Primeiro, Tomo I, Editorial Avante-Edições Progresso,
Lisboa/Moscovo, 1990, 94 (esta última versão é menos clara, a este respeito, do que as anteriores).
289
Actuando o estado proletário como proprietário dos meios de produção, ele não
pode deixar de planificar a actuação das empresas de que é proprietário, e pode fazê-lo
de modo cogente, através de um plano imperativo, como “instrumento para regular
toda a economia”.432 Nestas condições – observa Oskar Lange -, a planificação
“expressa o facto de que a economia socialista não se desenvolve de um modo
elementar, antes é dirigida e orientada conscientemente pela sociedade. A planificação é
um meio para submeter a actuação das leis económicas e o desenvolvimento económico
da sociedade à vontade humana”.433
Para cumprir a sua função de direcção consciente da economia, o plano deve ser
imperativo para todas as actividades de produção e deve dispor dos meios capazes de
determinar o ritmo de crescimento e a orientação do desenvolvimento. Todas as
unidades de produção são obrigadas legalmente a cumprir o plano (havendo sanções
para o não-cumprimento), e o plano deve estabelecer qual a parte do rendimento da
colectividade que irá ser destinada ao consumo e a parte a aforrar, bem como o destino a
dar ao aforro em investimentos nos vários sectores da produção (v.g. na produção de
bens de produção ou na produção de bens de consumo), sectores cuja actividade o plano
deve coordenar de modo a eliminar os ‘estrangulamentos’ e a fazer corresponder o
poder de compra da colectividade corresponda à produção de bens que hão-de ser
destinados ao consumo privado (com vista a afastar os riscos de inflação).
Foram estes os objectivos da planificação levada a cabo pelo poder soviético,
uma vez consolidada a vitória da revolução, tendo em conta as tarefas difíceis da
430
Citações colhidas no artigo de Maurice Dobb sobre Pianificazione, no Dizionario di
Economia Politica (coordenado por Claudio Napoleoni), 1107-1134.
431
Cfr. MARX/ENGELS, Obras Escolhidas, ed. cit., II, 456.
432
Cfr. O. LANGE (Org.), Problemas…, cit., 21. Sobre a planificação socialista, podem ver-se
os dois artigos de Oskar Lange incluídos nesta obra, págs. 7-35.
433
Cfr. O. LANGE, A economia…, cit., 37.
290
ou 100 anos. Temos de percorrer essa distância em dez anos. Se não o conseguirmos, seremos
esmagados” (apud P. BARAN, A Economia Política…, cit., 357).
291
435
Como salienta E. H. CARR (apud M. DOBB, Pianificazione, cit., 1116), “o conceito de
planificação implica que a sociedade tenha o direito e o dever de decidir, mediante um acto colectivo, o
que é bom para a sociedade no seu conjunto, e de tornar tal decisão imperativa para todos os indivíduos.
(…) Parece impossível negar que os homens e as mulheres, durante o desenvolvimento das suas
actividades económicas e sociais, formulem exigências que não podem ser medidas em termos de procura
individual, e para cuja satisfação eles estão prontos a sacrificar-se do mesmo modo que o estão para
satisfação dos interesses individuais. A diferença essencial entre o laissez-faire e o socialismo reside em
que o socialismo reconhece explicitamente a existência de fins sociais colectivos e o direito que, em
última instância, assiste á sociedade de dar uma definição autoritária desses fins sociais”.
436
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 23/24.
437
A participação na 2ª Guerra Mundial obrigou, naturalmente, a sacrificar muitos outros bens de
consumo, para produzir, aviões e navios de guerra, carros de combate, peças de artilharia, espingardas,
munições, fardamento e alimentos para os soldados, sacrifício mais acentuado ainda graças à destruição
de cidades inteiras, de instalações fabris, de campos de cultura.
438
Para maiores desenvolvimentos sobre a discussão deste ponto, cfr. A. J. AVELÃS NUNES,
“Alguns aspectos…, cit., 36ss.
292
439
“O uso do lucro escreve M. KAYSER, em PROBLEMI…, cit., 95 é dirigido a melhorar a
conformidade com as determinações centrais essenciais, não a desviar-se delas, embora se possa observar
uma certa flexibilidade na escolha da direcção.”
293
440
Cfr. A. C. PIGOU, ob. cit., 8.
294
de eficiência, nos termos que lhe atribuía a teoria económica, à luz dos cânones do
capitalismo de concorrência.
As grandes empresas ‘monopolistas’, em vez de estarem dependentes dos preços
do mercado (price takers), passaram elas próprias a controlar o ‘mercado’ (price
makers), sincluindo nos seus planos de investimento uma determinada taxa de lucro
pré-estabelecida (mark up).
Este fenómeno andou, aliás, associado a uma relativa liberdade das grandes
empresas perante a taxa de juro do mercado. Na verdade, tais empresas passaram a ter
condições de determinar os seus preços de modo a constituir os fundos necessários para
o reinvestimento, e a possibilidade de autofinanciamento colocou-as fora da
dependência de fundos alheios agravados pelo juro. Muitas vezes, o aforro interno
excedia as necessidades de capitais para investimento próprio, sendo transferido para
sociedades subsidiárias com o objectivo dce conceder crédito para financiar o consumo
dos bens produzidos pelas empresas principais.
Invocava-se (e invoca-se) por vezes que esta situação de domínio das grandes
empresas tinha o significado positivo de uma superação do ‘carácter anárquico’ do
mercado. Em contrapartida, poderá dizer-se que este fenómeno, como inerência do grau
crescente de ‘monopólio’ e do declínio da eficácia do mecanismo dos preços, não é
motivo de orgulho para o capitalismo.441
Na verdade, o reverso da medalha consiste em se admitir que o mercado deixou
de funcionar como o mecanismo de auto-adaptação sempre proclamado como a grande
virtude do capitalismo: assegurar a maior eficiência das empresas, o maior volume de
produção, a produção orientada no sentido dos gostos dos consumidores, com base no
mecanismo dos preços, que forneceria a informação indispensável à tomada das
decisões de investimento e de produção das empresas e das decisões de consumo e de
aforro dos particulares, assegurando, assim, a realização automática da racionalidade
económica para a sociedade no seu conjunto.
Nas condições de crescente monopolização da economia, as grandes empresas,
que por si só ou juntamente com um pequeno número de outras, dominam os mercados
das indústrias mais importantes,passaram a impor os preços ao consumidor. Mas isto
significa que o mecanismo dos preços deixou de realizar a função que se entendia ser
por ele desempenhada dentro dos pressupostos teóricos do capitalismo de concorrência.
441
Cfr. S. TSURU, Aonde vai o capitalismo, cit., 14-16.
295
442
Cfr. H. BROCHIER, ob. cit., 870ss.
443
Repare-se neste sugestivo anúncio, colocado, segundo Josué de CASTRO, A estratégia…, cit.,
22, na fachada de um grande armazém: “Se ainda não sabe o que deseja, pouco importa. Entre! Nós
temos”.
296
4.10.1. – A Grande Depressão veio deitar por terra os mitos liberais veiculados
pela teoria económica burguesa ao longo dos séculos XVIII e XIX.
Keynes mostrou que a Grande Depressão não poderia explicar-se em termos
monetários (porque o banco central americano emitiu menos moeda do que a que
devedria ter emitido). Contra a teoria dominante, veio defender que os factores
determinantes das crises do capitalismo (e, portanto, também da Grande Depressão) são
as forças reais da economia (os planos do estado, dos empresários e dos consumidores),
e não a oferta de moeda. Nestes termos, a crise só podia entender-se como o reflexo de
um colapso no investimento privado e/ou de uma situação de escassez de oportunidades
de investimento e/ou de um excessivo espírito de economia por parte dos consumidores,
o que legitimava a sua conclusão de que a política monetária, baseada no controlo da
oferta de moeda, poderia talvez suster a inflação, mas era inadequada para estancar a
depressão e relançar o crescimento da economia.
299
445
A ideia de ‘revolução’ foi de algum modo anunciada pelo próprio Keynes, numa carta famosa
a George Bernard Shaw (1.1.1935) em que ele declara: “acredito que estou a escrever um livro sobre
teoria económica que revolucionará amplamente (…) o modo como o mundo pensa os problemas
económicos. (…) Não consigo prever qual será o resultado final do seu efeito sobre os negócios. Mas
haverá uma grande mudança e, em particular, os fundamentos ricardianos do marxismo serão fortemente
abalados”. Não deixa de ser esclarecedor sobre a posição ideológica de Keynes a admiração que
manifesta por Malthus e a aversão que dedica a Ricardo (o 1º foi o defensor dos proprietários feudais, o 2º
foi o profecta da burguesia industrial).
Não faltam razões aos que negam este carácter ‘revolucionário’ à General Theory não apenas
por as suas teorias e propostas de política visarem salvar o capitalismo, mas também pelo facto de, antes
ou ao mesmo tempo que Keynes e sem conhecimento dos trabalhos dele, outros economistas
desenvolverem, nos anos trinta do século passado, teses muito idênticas ás que Keynes apresentou na
General Theory. Basta recordar os nomes de Gunnar Myrdal e Bertil Ohlin, na Suécia, e de Michael
Kalecki, na Polónia, e recordar que, ao nível das políticas, nem o New Deal nem a política da Alemanha
nazi após a nomeação de Hitler como Chanceler podem considerar-se influenciadas pela General Theory,
pela simples razão de que são anteriores a ela. Esta nova visão das coisas parece ter surgido como uma
resposta necessária à salvação do capitalismo, num período em que muitos recearam que não sobreviveria
à crise profunda que o abalou. Cfr. G. PILLING, ob. cit., 52.
300
446
Eis o que Keynes escreveu (Cfr. J. KEYNES, The General Theory…, cit., 249/250): “Uma das
propriedades essenciais do sistema económico em que vivemos é a de não ser violentamente instável,
embora esteja sujeito a flutuações severas no que se refere à produção e ao emprego. Na verdade, este
sistema parece apto a permanecer durante um lapso de tempo considerável num estado de actividade
inferior ao normal, sem que haja tendência marcada para o relançamento da actividade económica ou para
o afundamento completo. Além disso, resulta claramente que o pleno emprego ou mesmo uma situação
próxima do pleno emprego é tão rara como efémera. As flutuações podem amortecer-se bruscamente, mas
parece que elas se amortecem antes de terem adquirido uma amplitude extrema; e a nossa sorte normal
consiste numa situação intermédia que não é nem desesperada nem satisfatória”.
301
despesas do estado.447 Esta fiscal policy seria a única capaz de influenciar as forças reais
da economia (os planos do estado, dos empresários e dos consumidores), sendo por isso
considerada o instrumento fundamental para estabilizar as flutuações da economia, para
promover o crescimento económico e para prosseguir os objectivos do pleno emprego,
da estabilidade dos preços e do equilíbrio da balança de pagamentos, a par da
redistribuição do rendimento em benefício dos mais pobres (i.é, em sentido favorável à
propensão ao consumo, e, portanto, ao aumento da procura efectiva), objectivos que os
governos passaram a assumir na sequência da ‘revolução keynesiana’.
Nomeadamente em períodos de crise (quando os empresários não investem e os
consumidores são obrigados a reduzir as despesas de consumo), Keynes defendeu o
recurso ao deficit financing, isto é, ao financiamento das despesas públicas mediante o
recurso à dívida pública e/ou à emissão de moeda, argumentando que a riqueza criada
poor essas despesas públicas (em valor muito superior ao seu próprio, graças ao efeito
multiplicador) permitiria depois amortizar os empréstimos contraídos e/ou evitar a
inflação.
4.10.3. – Keynes veio defender, por outro lado, que a compreensão das economias
capitalistas não se confina ao estudo do ‘comportamento racional’ de um imaginário
homo oeconomicus, antes exige a análise das instituições sociais e políticas enquanto
expressão das forças económicas em presença, Keynes sublinhou a importância do
estado e a necessidade do alargamento das suas funções para salvar da “completa
destruição as instituições económicas actuais” [leia-se: capitalistas]. E como as crises e
os seus efeitos perniciosos se fazem sentir a curto prazo, Keynes veio defender que a
política económica tem que adoptar uma perspectiva de curto prazo: “in the long run we
are all dead” (“a longo prazo estamos todos mortos”) como escrevia em 1923.
Em 1924, na famosa conferência sobre The End of Laissez-faire,448 Keynes
apresentou pela primeira vez este ‘discurso’ contra os princípios “metafísicos” em que
se fundamenta o laissez-faire:
447
A política monetária sempre apresentaria fortes limitações: as taxas de juro nunca poderão ser
negativas (nem sequer iguais a zero), mas as expectativas de lucros podem ser (fortemente) negativas.
Nestas condições, que são as que caracterizam as situações de crise, a política monetária não consegue
fazer aumentar as despesas dos particulares (é o que se costuma exprimir através do aforismo “you can
lead a horse to water but you can not make it to drink.” De todo o modo, a política monetária não deveria
nunca basear-se na óptica quantitativista do controlo da quantidade de moeda, devendo antes centrar-se
no controlo das condições de acesso ao crédito e na política de dinheiro barato (a eutanásia do rendista).
448 ?
Cfr. J. KEYNES, The End…, cit., 291/292.
302
449
Cfr. Notas Finais com que encerra a General Theory, em J. KEYNES, The General Theory…,
cit., 378/379. Cfr. também A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 81/82. Keynes acreditava que
a socialização do investimento tornaria o capital abundante e baixaria as taxas de juro para valores
próximos de zero dentro de um prazo de 25 anos, operando-se assim, gradualmente, sem necessidade de
qualquer revolução, o que ele chamou a eutanásia do rendista e do capitalista sem profissão
(“functionless investor” – cap. XXIV da General Theory). Diferentemente, as políticas que vêm sendo
levadas a cabo nas últimas décadas na generalidade dos países capitalistas empenham-se activamente em
criar as condições favoráveis à especulação e em proteger os que vivem das ‘rendas’ da especulação
bolsista e das ‘rendas’ da especulação imobiliária.
303
450
São trechos colhidos em H. J. SHERMAN, ob. cit., 388.
451
É um trecho do cap. XXIV da General Theory.
452
A estrutura de classes da sociedade está fora da análise de Keynes. Há quem defenda que “ele
tendia para assumir uma identidade de interesses entre trabalhadores e industriais contra o seu inimigo
comum – o rentier e banqueiro” (assim R. Skidelsky, citado por G. PILLING, ob. cit., 55).
304
4.10.5. - Na General Theory Keynes identifica os dois “vícios” que considera mais
marcantes das economias capitalistas: a possibilidade da existência de desemprego
involuntário, e o facto de que a “repartição da riqueza e do rendimento é arbitrária e
carece de equidade.” E defende que a correcção destes ‘vícios’ constitui a principal
responsabilidade do estado.
453
Na Grã-Bretanha existia desde 1911 um seguro obrigatório de desemprego, constituindo-se,
logo após a 1ª Guerra Mundial, um sistema público de pensões de reforma. O modelo de welfare state
erigido depois da 2ª Guerra Mundial tem por base um relatório de Sir William Beveridge publicado ainda
durante a Guerra (Novembro de 1942) para ser aplicado após o termo do conflito.
305
456
Para maiores desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo…, cit., 30-42 e
64-74.
307
E de tal modo essas despesas são rentáveis que, quando a actuação do estado não
satisfaz, muitas são as empresas que, embora a custos mais elevados, suportam
directamente o encargo de centros próprios de formação profissional, cantinas, centros
de saúde e de recreio, bairros para o pessoal, etc.
464
Cfr. T. JUDT, últ. ob. cit., 419.
465
Título de um livro coordenado por François Mitterrand (Paris, Seuil, 1970).
466
Tony Judt vai mais longe: “o SPD deixou de ter ambições genuinamente revolucionárias o
mais tardar em 1914, se é que de facto alguma vez as teve” (últ. ob. cit., 316).
467
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 57.
468
Cfr. H. JANNE, Le Temps de Changement, cit., 218.
312
469
Sobre a teoria da convergência dos sistemas, cfr. A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo,
cit.
470
Entretanto, o chicote não foi posto de parte. Mesmo na Europa, a violência fascista não
desapareceu com a vitória sobre o nazi-fascismo. Portugal e Espanha foram ‘condenados’ pelas
democracias vitoriosas em 1945 a sofrer mais trinta anos de opressão e de atraso económico e social. No
coração da Europa democrática, a Grécia não foi poupada à violência de uma ditadura militar. E o mesmo
(ou pior) aconteceu em vários pontos do chamado Terceiro Mundo. Basta recordar o que se passou com a
Guerra da Indochina e depois com a Guerra do Vietnam, com a Guerra da Argélia e as guerras coloniais
desencadeadas pelo fascismo português; o que se passou na Guatemala e no ex-Congo belga, com os
vários regimes militares da América Latina, o bloqueio contra Cuba, a guerra contra a Nicarágua
sandinista, etc.
314
471
As transcrições são de Augusto SANTOS SILVA, ob. cit., 22, 32-34, 38. O estado seria algo
parecido como um clube onde todos os cidadãos poderiam entrar, se para isso tivessem os votos
suficientes dos cidadãos-eleitores. Não vamos analisar a questão do condicionamento das votações pela
ideologia dominante (foi a consciência disto mesmo que, a certa altura, levou a burguesia dominante a
deixar de ver no sufrágio universal não uma ameaça de revolução permanente, mas um instrumento de
anestesia, de integração e de prevenção da contestação revolucionária), cuja produção é rigorosamente
controlada pelo núcleo duro das classes dominantes. Basta lembrar o que se passa na “grande democracia
americana”: como é sabido, há décadas que vêm sendo eleitos presidentes os candidatos que conseguem
reunir mais fundos para a campanha eleitoral e que esses fundos provêm, em larguíssima medida, do Big
Business. É óbvio que nenhum candidato ou nenhum partido que se apresente como representante dos
interesses trabalhadores consegue entrar neste estado-para-todos, porque é o dinheiro que comanda e
garante a eleição do Presidente e a eleição dos Representantes e dos Senadores. E todos sabemos que não
há almoços grátis… O direito a participar no estado transformou-se num bem que tem de se ‘comprar’ no
mercado, e este mercado, como todos os outros, é controlado pelo grande capital. A soberania do
consumidor (a soberania do cidadão!) é pura fantasia, como em todos os mercados.
Esta questão é, aliás, tão antiga como as eleições nas sociedades capitalistas. Por volta de 1832,
um candidato ao Parlamento britânico calculava ter de gastar, numa única eleição, entre dez mil e vinte
mil libras (uma fortuna!). E numa publicação da época escrevia-se: “Não há no reino meia dúzia de
localidades em que um homem honesto, de competência e de carácter reconhecidos, possa esperar vencer
outro que esteja preparado para despender uma fortuna para o conseguir” (informação colhida em
MORTON/TATE, ob. cit., 80/81).
315
“Em minha opinião - escreve Jan Tinbergen 472, um dos defensores da tese da
‘convergência’ - o sistema ocidental actual não é capitalista como o era em 1850”. Ora, a
verdade é que entre o capitalismo de concorrência de 1850 e o capitalismo monopolista de
estado dos nossos dias se notam sensíveis diferenças em vários domínios. Mas cremos que as
alterações verificadas não configuram mudanças qualitativas suficientemente relevantes para,
com base nelas, se dizer que o sistema que hoje enquadra as relações económicas, sociais e
políticas no mundo ocidental - o “sistema ocidental actual” de que falava Tinbergen - já não
pode definir-se como capitalista. Se a nossa análise está correcta, essas alterações não afectaram
a essência definidora do capitalismo, e não oferecem suporte à afirmação de Tinbergen, segundo
o qual, “pela minha [dele, Tinbergen] parte, já não chamo capitalista ao sistema existente nos
países do Ocidente.”473
472
Cfr. J. TINBERGEN, “O essencial…, cit., 48.
473
Cfr. J. TINBERGEN, Entrevista…, cit., 11.
474
Na 3ª parte de Der Moderne Kapitalismus escreve W. SOMBART (L’apogé…, cit., II, 526):
“Devemos, entretanto, habituar-nos à ideia de que, entre um capitalismo estabilizado e regularizado e um
socialismo racionalizado que utilize todos os recursos da técnica, a diferença não é muito grande (...)”
[sublinhado nosso]. Mais tarde (Il socialismo…, cit., 83ss.), viria a defender uma noção de socialismo na
qual caberia inclusive o regime nazi. O socialismo seria, efectivamente, para Sombart, “um estado de vida
social em que o comportamento dos indivíduos é determinado em princípio por normas obrigatórias que
radicam numa razão universal, intimamente ligada à comunidade política, e que encontram a sua
expressão na lei (nomos).” Trata-se, como o próprio Sombart reconhece, de definir o socialismo como um
puro “normativismo social”, de “libertá-lo de qualquer determinação de conteúdo e de concebê-lo de
modo puramente formal”, em termos tais que, identificando o nomos com o socialismo, considera
316
socialismo as simples prescrições de “não-fumar”, “circular pela direita”, “é proibido colher flores”, etc.
475
Cfr. M. DOBB, Argumentos…, cit., 65.
476
Cfr. P. PITTA e CUNHA, “As reformas…, cit., 30.
317
Num artigo de 1965 477, escrevia Tinbergen que “os dois sistemas estão em evolução” e
que “as alterações revelam uma tendência para a aproximação. Há mesmo provas indicativas -
acrescenta - de que os dois sistemas evoluem no sentido de um optimum, de uma ordem que é
melhor, ao mesmo tempo, que o capitalismo puro e o socialismo puro”. Daí que, em outro texto
publicado pela mesma altura 478, concluísse, coerentemente, que apresentar o litígio ideológico
entre os EUA e a URSS “de maneira simplista, como o litígio entre o ‘capitalismo’ e o
‘socialismo’” era uma forma ultrapassada de ver a questão, pois, em seu entender, “tudo mostra
como a controvérsia sobre o sistema social e económico óptimo se tornou, de controvérsia
absolutamente qualitativa, em problema de natureza relativa e quantitativa (...)”.
Alguns autores levaram esta lógica bastante mais longe. Adolf Berle, v.g.,
conclui da análise das grandes corporations americanas, que
Finalmente, esta amostra das conclusões a que pode levar (e tem levado) a lógica
que subjaz e os elementos em que se apoia a teoria da convergência dos sistemas: “O
conceito de comunismo de Marx - escreve um professor americano, Robert Tucker 480 - seria
aplicável hoje, com rigor, à América; o seu conceito de capitalismo está absolutamente
antiquado e ultrapassado”.
que permite aos donos do capital a obtenção de rendimentos sem trabalho), cabendo a
iniciativa da produção a empresas que se propõem a obtenção de lucros.
Como elemento fundamental, aparece um certo tipo de relações sociais de
produção, cuja expressão no plano jurídico é a apropriação dos meios de produção por
uma classe (os capitalistas), com a consequente separação da outra classe (os
trabalhadores assalariados) dos meios de produção. Este tipo de relações sociais de
produção é que permite aos detentores do capital a organização da podução com base na
contratação de trabalhadores assalariados e a apropriação do sobreproduto social.
“Porque os capitalistas ganham a título de propriedade - escreve Teixeira Ribeiro 483 -,
enquanto os trabalhadores recebem em paga do esforço, cria-se uma diferenciação
social entre os que, por serem proprietários, podem viver sem trabalhar e os que, por
não o serem, têm de trabalhar para viver.” A essência do capitalismo reside
precisamente nesta diferenciação social, diferenciação que arranca directamente da
posição social que cada uma das classes ocupa nas relações sociais de produção.
4.12.4.2. - Quanto ao socialismo, poderá dizer-se, com Teixeira Ribeiro 484, que
são os seguintes os seus traços fundamentais:
1) que os meios de produção pertençam à colectividade ou ao estado
(propriedade social dos meios de produção);
2) que só se distribuam rendimentos a título de trabalho;
3) que as explorações laborem em obediência a um plano, organizado com vista
à satisfação das necessidades individuais, ou colectivas, objectivamente avaliadas pelos
poderes públicos.
Uma concepção de socialismo muito próxima da que fica enunciada é a exposta
no ensaio citado de Pigou. Para o professor inglês, o socialismo implica:
1) a propriedade colectiva ou pública dos meios de produção;
2) a eliminação da obtenção privada de lucros, no sentido da existência de
homens ou grupos de homens que contratam outros homens e vendem depois o produto
do trabalho destes, com o objectivo de obter lucros;
3) planificação com vista ao bem comum, i.é, com o objectivo de beneficiar não
a uma classe determinada, mas sim a “comunidade como um todo.”
Admitindo que uma das características essenciais do socialismo é a distribuição
de rendimentos apenas como remuneração do trabalho, Teixeira Ribeiro sustenta que o
483
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Economia Política…, cit., 168.
484
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura…, cit.; Capitalismo e socialismo…, cit., e
Sobre o socialismo, cit..
319
único processo admissível de realizar esta finalidade “é a apropriação social dos meios
de produção”. Antecipa este autor o argumento de parecer estranha esta sua conclusão
tendo em conta o facto de que “muitos dos partidos que se reclamam do socialismo (…)
têm nos últimos decénios renunciado, expressa ou tacitamente, à apropriação social da
maior parte dos meios de produção”. A sua resposta é incisiva: “isso apenas significa
que tais partidos desistiram de implantar um sistema económico socialista”.485
Relativamente à satisfação das necessidades enquan-to móbil específico do
socialismo, o mesmo professor comenta: “claro que a economia capitalista também
satisfaz necessidades, e nenhuma economia atingiu até hoje tanto êxito como ela em tal
domínio”. No entanto, Teixeira Ribeiro põe em relevo esta diferença, que considera
essencial: “na economia capitalista a satisfação de necessidades é um meio, e não um
fim; é o meio de a empresa, vendendo os seus artigos, ganhar nessa venda, obter lucros;
enquanto na economia socialista a satisfação de necessidades é ela própria o fim da
actividade económica”. E porque “a satisfação de necessidades é um meio e não um
fim”, no quadro do capitalismo, conclui o autor, “sempre que seja conveniente sacrifica-
se o meio à realização do fim, procurando alcançar-se mais lucro mesmo à custa de
satisfazer menos necessidades”.486
E poderia alargar-se a indicação de autores e obras que apontam a propriedade
social dos meios de produção como um elemento essencial para se poder falar de
socialismo, incluindo, portanto, na caracterização do socialismo, aquela que foi a
principal reivindicação dos autores do Manifesto Comunista: a “abolição da propriedade
privada” dos meios de produção: “o que caracteriza o comunismo não é a abolição da
propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. Ora a propriedade
privada de hoje, a propriedade burguesa, é a última e a mais perfeita expressão do modo
de produção e de apropriação baseado em antagonismos de classes, na exploração de
uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem resumir a sua teoria nesta fórmula
única: ‘abolição da propriedade privada’”.487
485
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 56/57.
486
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o socialismo, cit., 48/49.
487
Marx insiste frequentemente na distinção entre propriedade privada (a propriedade privada
que assenta no trabalho pessoal do proprietário) e propriedade capitalista (a propriedade que assenta no
trabalho de outrm que não o proprietário): “a privada capitalista pressupõe a aniquilação da propriedade
privada fundada no trabalho pessoal; a sua base é a expropriação do trabalhador” (Cfr. O Capital, trad. J.
Roy, cit., 568-575). No Anti-Dühring (ed. cit., 343) Engels caracteriza deste modo a apropriação
característica do socialismo: “de um lado, a apropriação social directa como meio de manter e
desenvolver a produção e, de outro lado, a apropriação individual directa como meio de vida e de bem-
estar”.
320
489
A expressão é utilizada pela primeira vez por R. MARRIS e Adrian WOOD (eds.), The
Corporate Economy, Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1971.
322
perícia, mas também a confiança que nele se deposita, esse salário não apresenta uma
relação fixa com o capital cuja administração ele tem a seu cargo; e o proprietário do
capital, embora fique assim livre de quase todo o trabalho, não deixa, por isso, de contar
com um lucro proporcional ao respectivo capital”.490
Marx previu-o em O Capital, ao analisar as consequências da expansão das
sociedades por acções. Como se escrevesse no tempo de Berle e de Burnham, Marx fala
da “transformação do capitalista que exerce realmente as suas funções num simples
manager (de capital de outrem), e dos proprietários de capital em simples proprietários,
em simples financeiros”, acrescentando que a propriedade do capital “se encontra então
completamente separada da sua função no processo real da reprodução, do mesmo
modo que esta função, na pessoa do director, está separada da propriedade do
capital.”491
As alterações que ficam sumariamente apontadas contribuíram, na verdade, por
um lado, para substituir a propriedade individual por uma nova forma de propriedade, a
propriedade social (a propriedade da sociedade, como pessoa colectiva cujo substracto
pessoal é constituído por um grupo maior ou menor de sócios), e, por outro lado, para
separar, institucionalmente, as funções de director e de proprietário.
Daqui até à conclusão de que a propriedade dos meios de produção perdeu todo
o significado, de que a propriedade privada dos meios de produção deixou de poder
considerar-se elemento essencial do sistema dominante nos países industrializados do
ocidente e de que este sistema sofreu, por isso, uma mutação qualitativa fundamental,
uma mudança na sua natureza e na sua lógica interna - até esta conclusão, vai um
grande passo, importando averiguar da legitimidade para o dar.
4.12.5.2. - Defendem alguns que o capitalismo sofreu uma mudança essencial
pela via da difusão da propriedade accionista, da democratização do capital resultante
da emissão de acções adquiridas por milhares ou mesmo milhões de pessoas. Assim se
criaria uma situação de capitalismo popular, fenómeno que arrastaria consigo um
nivelamento das classes e um clima de ‘harmonia social’ e de ‘paz social’.492
490
Cfr. Riqueza das Nações, cit., I, 149/150.
491
Cfr. K. MARX, Le Capital, em Oeuvres (ed. de M. RUBEL, cit.), II, 1175. Também Engels
refere este aspecto, em consequência do desenvolvimento das sociedades por acções: “Todas as funções
sociais do capitalista são hoje exercidas por empregados remunerados. O capitalista já não tem nenhuma
actividade social a não ser embolsar rendimentos, cortar cupões e jogar na bolsa, que é onde os diversos
capitalistas tiram o capital uns dos outros” (cfr. “Do Socialismo Utópico…, cit., 161).
492
Nesta lógica se inserem, aliás, as tentativas de fazer participar os operários no capital e nos
lucros das empresas (accionariado operário e outras técnicas de participação, que, em regra, não têm
colhido o favor dos sindicatos).
323
Mas a verdade é que não é por isso que tais empresas deixam de ser capitalistas: os operários-
accionistas limitam-se, em regra, a receber títulos de participação que lhes dão direito a receber uma certa
percentagem do lucro da empresa (como recompensa da sua antiguidade ou dos seus bons serviços), mas
sem direito a voto e muito menos a ser eleito para a administração. Estes ‘accionistas’ não passam a
decidir dos fins da produção nem do destino do sobreproduto, decisões que continuam a caber quase por
inteiro aos grandes accionistas que controlam a sociedade e controlam a aplicação do sobreproduto, com a
vantagem de que, interessando os trabalhadores na empresa (fazendo-os crer que a empresa também é
deles), asseguram maior estabilidade da mão-de-obra e maior rendimento do trabalho.
493
Num texto de 1894, Edouard Bernstein foi dos primeiros a glorificar o accionariado operário
como meio para democratizar o capitalismo. Esta ideia, bem como a tese de Rudolf Hilferding (1915)
sobre o “capitalismo organizado” enquanto estádio de transição para o socialismo, constituíram um dos
apoios teóricos para a adopção pelo Partido Social-Democrata Alemão da tese segundo a qual o
socialismo (só) pode ser atingido pelos caminhos da democracia parlamentar, por meios não
revolucionários, no pressuposto que o aparelho de estado capitalista se manterá neutro na luta de classes e
não impedirá a passagem ao socialismo pela via reformista. (Cfr. W. GOTTSCHALCH, ob. cit., 30ss).
Esta questão foi objecto de polémica entre Rosa Luxemburgo, por um lado, e Edouard Bernstein
e Conrad Schmidt, por outro. Contra a tese de C. Schmidt segundo a qual o obtenção de uma maioria de
deputados social-democratas no parlamento seria a forma directa da socialização gradual da sociedade,
Rosa Luxemburgo argumentou (em 1899) que “tão logo a democracia mostra disposição de negar o seu
carácter de classe e tornar-se um instrumento dos verdadeiros interesses do povo, as formas democráticas
são sacrificadas pela burguesia e pelos seus representantes no estado”. Perante a barbárie nazi-fascista,
Otto Bauer (dirigente de topo dos socialistas aubstrícos e uma das figuras mais destacadas da social-
democracia europeia da época, escreveu em 1936 que a experiência do nazi-fascismo “destrói a ilusão do
socialismo reformista de que a classe trabalhadora pode encher as formas da democracia de um conteúdo
socialista e desenvolver a ordem capitalista até transformá-la numa ordem socialista, sem um salto
revolucionário” (citações colhidas em P. SWEEZY, Teoria.., cit., 296.
A questão mantinha-se actual nos anos 30 do século XX e o professor Oskar Lange ocupa-se
dela num livro publicado pela Universidade de Minnesota em 1938 (Economic Theory of Socialism):
“Não pode levar-se a cabo um programa de ampla socialização através de etapas graduais. Um governo
socialista autenticamente decidido a implantar a socialização tem de decidir entre realizar o seu programa
de uma só vez ou renunciar completamente a ele. Inclusivamente, a chegada do dito governo ao poder
pode originar um pânico financeiro e um colapso económico. Nestes termos, um governo socialista tem
que escolher um dos dois termos deste dilema: ou garante a imunidade da empresa e da propriedade
privada a fim de assegurar o funcionamento normal da economia capitalista, renunciando ao socialismo
que propugna, ou segue resolutamente em frente, levando a cabo com toda a rapidea o seu programa de
socialização. Qualquer dúvida, qualquer indecisão provocaria uma catástrofe económica inevitável. O
socialismo não é uma política económica para os pusilânimes” (citação colhida em M. DOBB,
Argumentos…, cit., 113/114).
324
494
A ideia de fazer os trabalhadores participar no capital das empresas em que trabalhavam teve
eco em Portugal em uma proposta de Programa de Governo apresentada publicamente pelo Partido
Socialista em 1987. A sua concretização passaria pela criação de um Fundo Empresarial de Investimento,
financiado através de descontos obrigatórios nos salários dos trabalhadores, em percentagem a negociar
em sede de concertação social (Cfr. Expresso, 20.6.1987). O PS não ganhou as eleições e a ideia perdeu-
se.
325
americanas detinham 46,5% das acções ao portador; os 10% mais ricos açambarcavam
89,3%, cabendo aos restantes 90% apenas 10,7% das acções; na parte mais pobre da
população, 55% das famílias americanas não detinham qualquer propriedade e muitas
delas estavam sobre-endividadas. Os 20% mais ricos de entre os americanos
arrecadavam 43,7 do rendimento nacional, cabendo aos 20% mais pobres apenas 4,6%
(15,5 % para os 40% mais pobres, menos do que os 16,7% arrecadados pelos 5% mais
ricos). No que toca à riqueza total, os 0,5% mais ricos dos americanos chamavam a si
45,4% (25,4% em 1963), cabendo aos 10% mais ricos 83,2% de toda a riqueza (65,1%
em 1963), sendo que os restantes 90% das famílias americanas se contentavam com
16,7% da riqueza total (34,9% em 1963).495
Fica assim reduzida à sua verdadeira natureza a tese da democratização do
capital: um mero slogan publicitário veiculando publicidade enganosa em proveito do
grande capital ‘produtor’ e aproveitador da ideologioa dominante. Além disso, é
evidente que não passa de pura ficção considerar co-proprietários todos os que possuem
uma ou duas (ou de dez, ou cem…) acções das sociedades que enquadram juridicamente
as grandes empresas ‘monopolistas’, e considerar ‘capitalistas’ todos os accionistas.
Como tal só devem considerar-se os que recebem rendimentos do seu capital que sejam
pelo menos suficientes para lhes permitir viver sem ter que vender a sua força de
trabalho.
O que fica dito parece ser o bastante para que não possam tomar-se a sério
afirmações como as de Berle, segundo o qual a difusão das acções “constitui, por um
curioso paradoxo, uma forma imprevista de socialização da indústria, desenvolvendo-se
rapidamente, mas sem a intervenção do estado”, pelo que “o aparecimento e o
desenvolvimento da grande sociedade por acções modifica a propriedade enquanto
495
Cfr. J. KLOBY, ob. cit. e Le Monde Diplomatique, Maio/1988. A moda da democratização do
capital acabou por chegar a Portugal. Todos os opinion makers com lugar nos grandes meios de
comunicação social alimentaram a campanha destinada a destacar o caráter revolucionário da
democratização do capital e da transformação dos trabalhadores das empresas desnacionalizadas em
accionistas das ‘suas’ empresas. Curiosamente, porém, os jornais e as televisões mostraram o outro lado
da realidade: junto dos locais onde os subscritores recebiam os documentos representativos da titularidade
de um certo número de acções, funcionavam guichets onde ‘alguém’ propunha aos novos accionistas a
compra das suas acções por mais algum dinheiro do que aquele que os subscritores tinham pago. A maior
parte dos trabalhadores accionistas ficavam logo ali reduzidos à sua condição própria de trabalhadores
assalariados. A ‘revolução’ mal saía à rua…
Por outro lado, os mesmos fazedores de opinião cedo esclareceram que a difusão das acções por
um grande número de accionistas facilitava o controlo das novas sociedades anónimas com cerca de 35%
do capital, pelo que seria conveniente que as operações de desnacionalização incluíssem um lote de 35%
do capital que só poderia ser licitado em conjunto. É claro que o objectivo desta medida não era o de
consolidar a transformação ‘revolucionária’ dos trabalhadores em capitalistas. Bem pelo contrário: o seu
propósito confesso era o de entregar aos grandes grupos económicos (muitas vezes estrangeiros) o
controlo das empresas desnacionalizadas. E foi isto que aconteceu, como é sabido.
326
499
“Um dos desenvolvimentos mais interessantes e desconhecidos das últimas décadas tem sido
a tendência das grandes empresas para se socializarem a si próprias. Chega-se um ponto no crescimento
de uma grande instituição (…) em que os titulares do capital, os accionistas, são quase inteiramente
separados da direcção, com o resultado de que o interesse pessoal directo em alcançar o lucro mais
elevado se torna completamente secundário” (The End…, cit., 42-43).
500
Uma análise crítica do livro de Burnham pode ver-se em P. SWEEZY, Ensaios…, cit., 40ss.
As debilidades da sua tese levaram Burnham a defender que o sistema económico implantado na
Alemanha pelo partido nacional-socialista “deixou a base do capitalismo e entrou pela estrada de uma
nova forma de sociedade”, invocando como justificação o facto de a Alemanha nazi ter eliminado o
desemprego (cfr. P. SWEEZY, ob. cit., 47).
501
A. D. CHANDLER (The Visible Hand…, cit., 81-121) procura mostrar que já nos finais do
século XIX a organização (a administração constituída por técnicos) se afirmava como fonte de poder no
contexto do capitalismo industrial, substituindo a propriedade como fonte dominante do poder
económico. Fala-se mesmo de revolução organizacional (Kenneth Boulding, The Organizational
Revolution, N. York, Harper, 1953).
328
Se o mundo funcionasse desta sorte, seria caso para acreditar numa espécie de
mão invisível colectiva, uma vez que este efeito compensador galbraithiano significa
algo de semelhante à mão invisível de Adam Smith: se cada grupo de interesses
organizados puder prosseguir livremente os seus próprios interesses, desta actuação
resultará a limitação do poder de outros grupos, gerando-se um equilíbrio que,
independentemente da vontade dos protagonistas, promoverá da melhor maneira
possível o interesse e o bem-estar colectivos.509
Toda a questão está, porém, em saber se aquele poder compensador, que se
afirma derivar da existência de uma opinião pública vigilante, será capaz de produzir a
referida conscience du roi, se será capaz de limitar a liberdade de decisão das grandes
empresas. Embora não rejeitando o ponto de vista que apresentou em 1952, o próprio
Galbraith veio reconhecer ter adoptado, naquele livro, “um ponto de vista
indevidamente optimista quanto ao equilíbrio resultante”.510
Na esfera da actividade económica dominada pelas sociedades por acções, o
sentido da presença da propriedade privada seria muito diferente do que lhe seria
próprio no seio do modo de produção capitalista. No mundo das grandes sociedades por
empresas.
509
Cfr. M. J. ULMER, ob. cit., 264/265. Transferindo este raciocínio para as classes sociais e
para a luta de classes, dir-se-ia que, perante o poder de uma das classes (a classe dominante), a acção da
classe explorada, prosseguindo o seu próprio interesse de classe, daria lugar a um equilíbrio de poderes
que se traduziria na promoção do interesse de toda a comunidade. A luta de classes perderia todo o
sentido. O paraíso ficaria ao alcance de um toque desta varinha mágica que é countervailing power. Na
dialéctica marxista, a dinâmica da conflitualidade em sociedades constituídas por classes sociais com
interesses antagónicos conduz à agudização das contradições até que chegue o tempo da revolução social
e da passagem de um sistema a outro; segundo a tese de Galbraith, o conflito de interesses gera uma
dinâmica de adaptação, através do efeito compensador, que acaba por conduzir aumaticamente,
espontaneamente, a uma posição de equilíbrio que realiza o interesse geral. E a história acabaria aqui.
Também por esta via o capitalismo teria garantida a eternidade. Galbraith não é propriamente um
representante da mainstream economics. Mas, neste aspecto, deixou-se enlear nas teias da ideologia do
equilíbrio geral
510
Cfr. Anatomia do Poder, cit., 89. É interessante, por outro lado, atentar-se em que este apelo
à função social da grande empresa, considerada como uma espécie de unidade económica ao serviço da
Pátria apelo que constitui ponto importante das teses de quantos proclamam a sociedade dos gerentes
ou a sociedade industrial como sistema superador do capitalismo e (também) do socialismo foi também
um ponto-chave dos teóricos do sistema corporativo, igualmente apontado como síntese superadora do
liberalismo capitalista (tese) e do socialismo (antítese). Vale a pena recordar, a este respeito, que o art. 2.°
do Estatuto do Trabalho Nacional (diploma estruturante do corporativismo salazarista) atribuía às
empresas, como pilares da organização económica da Nação, “realizar o máximo de produção e de
riqueza socialmente útil e estabelecer uma vida colectiva de que resultem poderio para o Estado e justiça
entre todos os cidadãos”. Compreende-se agora esta observação de V. MOREIRA (“Sobre o poder…, cit.,
780, nota 7): a própria “concepção da ‘consciência social’ dos managers não deixa de manter um curioso
parentesco com as proclamações nazis e fascistas que viram no empresário o ‘funcionário do bem
comum’, o ‘curador dos interesses económicos nacionais’, etc. A responsabilidade social do empresário
faz parte também do ideário do ‘estado social’, outro dos grandes títulos da teoria política
contemporânea.” Ao fim e ao cabo, trata-se de enquadrar, num outro contexto, a quimérica função social
da propriedade, que foi consagrada na Constituição de Weimar.
331
513
A tese de que perdeu significado e importância a propriedade (privada) dos meios de
produção aparece também claramente formulada num livro de G. ADLER-KARLSSON (ob. cit., 7), onde o
autor sustenta que, “actualmente, a propriedade formal dos meios de produção é uma questão secundária,
tal como tem sido amplamente provado pela experiência socialista sueca. O que é de primeira importância
- defende Karlsson - é a distribuição na sociedade das funções políticas e económicas que se ocultam
debaixo da propriedade formal”. Fica de pé a questão de saber se poderá classificar-se como socialista a
economia e a sociedade visadas pela governação social-democrata na Suécia.
332
516
Cfr. J. TINBERGEN, “Una ipotesi…, cit., 28.
517
Cfr. J. K. GALBRAITH, Entrevista, cit.
518
Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, A nova estrutura… cit., 11.
334
519
Para uma perspectiva crítica das teses sustentadas por Burnham em The Managerial
Revolution, cfr. P. SWEEZY, Ensaios…, cit., 40.
520
Tese que tem a sua expressão mais acabada em BERLE/MEANS, ob. cit.; J. BURNHAM, ob. cit.,
e em obras posteriores de A. BERLE (The Twentieth…, cit.).
335
proprietários; e, em virtude das posições estratégicas que ocupam, eles funcionam como
protectores e porta-vozes de toda a propriedade em grande escala. Longe de serem uma
classe à parte, constituem na realidade o escalão principal da classe dos
proprietários”.521 E a experiência mostra que, em regra, os administradores de categoria
mais elevada (top managers) pertencem ao mesmo grupo social dos proprietários,
desenvolvendo estreitas relações uns com os outros, na sociedade e no mundo dos
negócios.
E quando assim não for (i.é, quando os managers não são eles próprios
accionistas e até grandes accionistas) sempre acontecerá que os directores não passam
de instrumentos mais ou menos eficientes (mas sempre subordinados) dos detentores do
grande capital, em relação aos quais se comportam, pura e simplesmente, como ‘guarda
avançada’, ‘burgomestres’, feitores e porta-vozes.
A lógica do lucro continua, pois, a marcar o comportamento dos managers e das
grandes sociedades anónimas. O capital só aspira à sua máxima valorização, aspiração
que se concretizará não na obtenção de um optimum absoluto, mas na obtenção do
máximo lucro possível em função do futuro (numa lógica de médio-longo prazo) e não
apenas de cada momento considerado.
A necessidade de crescimento das empresas (imposta pelas exigências do
progresso técnico e da concorrência) e a sua crescente autonomização relativamente ao
financiamento externo (pela via do autofinaciamento) levam as empresas a promover a
acumulação em ritmo e volume cada vez mais acentuados. Parece correcta, portanto, a
conclusão de Baran e Sweezy no sentido de que “não pode haver dúvida de que a
obtenção e a acumulação dos lucros ocupam hoje uma posição mais dominante do que
nunca”, de que a actual “economia de grandes empresas é mais, e não menos, dominada
pela lógica do lucro do que alguma vez o foi a economia de pequenos empresários”.522
Do que fica dito poderá concluir-se que a expansão das (grandes) sociedades por
acções não trouxe, como consequência, a ‘morte’ da propriedade privada dos meios de
produção nem a sua ‘destruição’ enquanto elemento caracterizador do modo de
produção capitalista. Antes pelo contrário: o desenvolvimento das sociedades por
acções significa o desenvolvimento de uma das leis fundamentais do capitalismo, a lei
da concentração capitalista. Tais sociedades têm-se revelado, efectivamente, um
poderoso instrumento de centralização de capitais e um meio altamente potenciador da
521
Cfr. BARAN/SWEEZY, Capitalismo Monopolista, cit., 34/35.
522
Cfr. BARAN/SWEEZY, últ. ob. cit., 28 e 43/44.
336
Dado o elevado nível dos seus rendimentos, os grandes sempre destinariam a aforro um
montante pelo menos correspondente ao que a sociedade retém, e o aforro organizado
pela própria sociedade vai aumentar a cotação das acções (ganho de capital em regra
tributado com taxas mais baixas do que as que incidem sobre os rendimentos recebidos
a título de dividendos). Em princípio, só os pequenos accionistas, interessados nas
acções apenas como títulos de rendimento, pugnam por elevadas taxas de dividendos.
O menos que poderá dizer-se, a este respeito, é o que escreve Sargant Florence:
“(...) a direcção e a decisão definitiva acerca das grandes linhas de acção (top policy)
continuam a pertencer, em numerosas sociedades, aos maiores capitalistas detentores de
acções”, havendo “razões para acreditar que a revolução dos gerentes não foi tão longe
como por vezes se pensa (ou se afirma sem pensar).” 524
Para dizer a verdade toda, será necessário acrescentar que a realidade dos tempos
que vivemos revela, sem margem para dúvida, quão falaciosa é toda esta construção
(que já o era nos de 1970…). Hoje são os próprios managers (os administradores
profissionais dos grandes grupos económicos) que vêm a público justificar as
remunerações, prebendas e pensões milionárias que se atribuem (ofensivas para quem
vive do seu trabalho), com o aval dos grandes accionistas, alegando que estes as votam
porque eles (os tais administradores das empresas dotadas de alma…) proporcionam
aos accionistas ganhos elevadíssimos (ganhos de capital e dividendos chorudos),
cumprindo e ultrapassando as metas que se propõem no exercício das suas funções, que
consistem em dar muito dinheiro aos accionistas e em pagar-se principescamente a si
próprios.525
Os accionistas, por sua vez, querem ganhar muito dinheiro, se possível em pouco
tempo (o próprio autofinanciamento das empresas com fundos resultantes de lucros não
distribuídos cheira a romantismo passadista). Por isso pagam bem aos seus servidores.
524
Cfr. S. FLORENCE, The Logic…, cit., 193.
525
Segundo o Relatório da OIT sobre a situação do trabalho no mundo referente a 2008
(acessível em www.ilo.org), os ganhos totais dos gestores de topo das quinze maiores empresas em seis
países analisados foram 521 vezes superiores à remuneração média nos EUA e 103 vezes superiores na
Holanda, sendo que os ganhos resultantes de acções atribuídas a esses gestores subiram, entre 2004 e
2008, 70% nos EUA e mais de 5000% na Holanda.
Ao longo de 2010 debateu-se em Portugal a situação do presidente do conselho executivo de
uma grande empresa do sector da energia (em cujo capital o Estado português mantém uma pequena
participação), que recebeu de prémios (ditos de desempenho) referentes a 2009 (ano de crise grave…)
algo acima de 3 milhões de euros, dinheiro que um trabalhador português que receba o salário médio
levaria cerca de 250 anos a ganhar. Quando alguns autores admitem que, nas condições actuais de fácil
circulação da informação, se justifica acrescentar à tábua dos direitos fundamentais o direito a uma
igualdade razoável, situações como esta (e há muitos milhares de situações idênticas em todo o mundo)
não permitem que se esqueçam as questões da igualdade e da justiça social.
338
526
“The Path to Unemployment” é o título de um conhecido artigo de Hayek (ver F. HAYEK,
“Inflation…, cit.).
527
Ver F. HAYEK, Studies…, cit.
341
528 ?
Cfr. M. FRIEDMAN, The Role…, cit. e H. G. JOHNSON, “The Keynesian…, e Inflation…, cits.
529 ?
Mais desenvolvidamente, ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 109ss.
342
533
Cfr. J. TOBIN, “Stabilization…, cit., 26.
534 ?
Às teses neoliberais pode bem aplicar-se o que Keynes observou acerca da teoria “clássica”:
“muitas pessoas tentam solucionar o problema do desemprego com uma teoria baseada no pressuposto de
que não há desemprego” (cfr. J. KEYNES, “The Means to Prosperity”, cit., 350).
345
capitalista. Vemos, por isso, com preocupação que, em vários países da Europa e
mesmo no quadro comunitário, o ideário neoliberal tenha vindo a enquadrar as políticas
de promoção do emprego e de combate ao desemprego e, em geral a atitude
relativamente ao estado providência, tanto à escala nacional como ao nível comunitário,
como veremos à frente quando analisarmos o processo de construção europeia.
dessa ideia que os ‘monopólios sindicais’ acabaram por adquirir “privilégios únicos, de
que não goza qualquer outra associação ou indivíduo”. Aceitar aquela ideia equivaleria
a aceitar que, no domínio das relações de trabalho, os fins justificam os meios.
Por outro lado, ele considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos
sindicatos, que se traduziria na “coerção de homens sobre outros homens”, na “coerção
de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só porque se tem admitido –
argumenta Hayek - que eles exerçam um tal poder de coerção “sobre aqueles que
querem trabalhar em condições não aprovadas pelos sindicatos” é que estes se tornaram
capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os empregadores.
“Pessoalmente – conclui –, estou convencido de que o poder dos monopólios sindicais
é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal factor de
desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.”
A aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta os
aumentos da produtividade - hoje geralmente considerada socialmente justa e
economicamente vantajosa - significa, para Hayek, o reconhecimento do direito de
expropriar uma parte do capital das empresas. Vejamo-lo nas suas próprias palavras:
À luz do que fica dito, compreende-se que Hayek pergunte “até onde se permitirá
que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coercivo que
adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições fundamentais em
que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma tal ‘subversão’ das
instituições, compreende-se que responda:
539
Cfr. F. HAYEK,“Unions…, cit., 281ss.
348
540
Cfr. R. GOTT, “Inglorioso fim…, cit. Deve salientar-se, aliás, que a legislação anti-sindical foi
iniciada, no Reino Unido, no início da década de 1960, pelo governo trabalhista de Harold Wilson, tendo
prosseguido com o governo conservador de Edward Heath e depois com os governos trabalhistas de H.
Wilson e de James Callaghan, dez anos antes da era Thatcher, que lhe deu o verniz neoliberal (cfr. I.
MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 95). As receitas prescritas por conservadores (abertamente neoliberais)
e por trabalhistas (especialmente os adeptos da chamada ‘terceira via’, igualmente neoliberais) reduziram
o sindicalismo britânico a um corpo anémico. Parecem notar-se alguns sinais de que os germes de um
sindicalismo de classe começam a ganhar terreno junto de uma nova geração de dirigentes sindicais,
agora organicamente desligados do Partido Trabalhista.
541 ?
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade para escolher…, cit., 202.
349
“O maior de todos os seus males é o efeito maligno que exercem sobre a estrutura da
nossa sociedade. Eles enfraquecem os alicerces da família; reduzem o incentivo para o trabalho,
a poupança e a inovação; diminuem a acumulação do capital; e limitam a nossa liberdade. Estes
são os principais factores que devem ser julgados”. 542
542
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, últ. ob. cit., 172-178.
350
543
Citação colhida em H. ALLEG, ob. cit., 107.
544
Entrevista ao Nouvel Observateur, Abril de 1981.
545
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade …, cit., 172-174.
351
“O sistema de preços permite que as pessoas cooperem pacificamente numa fase da sua
vida enquanto cada uma trata daquilo que lhe interessa. A ideia luminosa de Adam Smith foi
reconhecer que os preços que emergiam de transacções voluntárias entre compradores e
vendedores - em resumo, um mercado livre - podiam coordenar a actividade de milhões de
pessoas, cada uma à procura dos seus próprios interesses”. 546
Mais papista que o papa, Milton Friedman não hesita, como vimos, em considerar
demasiado permissivo o critério de Adam Smith para delimitar a esfera de acção do
estado (o estado mínimo).
Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração (“monetarists mark II”,
como lhes chama James Tobin), defensores da chamada teoria das expectativas
racionais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma
informação que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes
546
Cfr. M. e Rose FRIEDMAN, Liberdade…, cit., 42.
352
547 ?
Para maiores desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, O Keynesianismo…, cit., 125ss.
353
União Árabe do Magrebe: O Tratado que instituiu a UAM foi assinado em Marraquexe
em Fevereiro de 1989 e entrou em vigor em Julho do mesmo ano. São Estados-membros a
Líbia, Marrocos, Mauritânia, Tunísia e Argélia. Tem como propósito a constituição de uma
união aduaneira e de um mercado comum.
Na América, registamos:
Mercado Comum da América Central: Entrou em vigor em Junho de 1961, abrangendo
inicialmente a Costa Rica, São Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Procurava-se a
instituição de uma união aduaneira. Em 1975 determinou-se a criação da Comunidade
Económica e Social da América Central, prevendo-se a adopção progressiva de medidas
configuradoras de um mercado comum.
548
Sobre a história dos projectos de construção de uma entidade europeia, ver AVELÃS
?
549
Em 1959 viria a constituir-se a EFTA (European Free Trade Association). Liderada pelo RU
(e integrando também a Áustria, a Dinamarca, a Noruega, Portugal, a Suécia e a Suíça), era uma
organização que pretendia constituir tão só uma zona de comércio livre para produtos industriais,
afastando, ao contrário da CEE, qualquer projecto de integração política, que não agradava ao RU, à
Dinamarca e à Noruega e que era incompatível com o estatuto de neutralidade da Áustria, da Suécia e da
Suíça e com o regime de tipo fascista que permanecia em Portugal como subproduto da guerra fria.
359
margem deste Tratado foi aprovada a Carta dos Direitos Fundamentais, objecto de
mera declaração política, porque o RU se opôs a que ela fosse incorporada no Tratado e
dotada de força jurídica vinculativa; inviabilizada (pelo voto de franceses e holandeses)
a chamada Constituição Europeia (assinada pelos Chefes de Estado e de Governo em
Outubro de 2004), viria a ser aprovado e assinado em Lisboa no dia 13 de Dezembro de
2007 o chamado Tratado de Lisboa, que adoptou soluções novas no plano institucional
e no plano das competências do Parlamento Europeu, do Conselho Europeu e da
Comissão Europeia, mantendo, no plano das políticas económicas e sociais, as soluções
marcadamente neoliberais consagradas nos tratados anteriores.
Algumas das alterações introduzidas nos Tratados foram justificadas pela
necessidade de adaptar as instituições comunitárias ao aumento do número de membros
da Europa comunitária. De facto, aos seis membros fundadores da CEE foram-se
juntando novos estados. Em 1973 aderiram o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca; em
1986, entraram Portugal e a Espanha; em 1995, a CEE acolhia a Áustria, a Finlândia e a
Suécia; em 2004, a União Europeia passou a integrar 25 estados, depois da entrada de
Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e
República Checa; no início de 2007, entraram a Bulgária e a Roménia.
550
Por mais estranho que pareça, a verdade é que foram as concepções liberais em matéria de
políticas económicas as inspiradoras do Tratado de Roma. Com rara clarividência, Pierre Mendès-France,
um dos poucos deputados que acompanharam os comunistas franceses no voto contra a ratificação do
Tratado, justificou assim o seu voto na Assembleia Nacional (Fev/1957): “O projecto do mercado
comum, tal como nos é apresentado, baseia-se no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a
concorrência pura e simples regula todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode assumir
duas formas, seja a de uma ditadura interna que entrega todos os poderes a um homem ‘providencial’,
seja a delegação dos seus poderes a uma autoridade exterior, que, em nome da técnica, exercerá na
realidade o poder político, pois em nome de uma economia sã chega-se facilmente à imposição de uma
política monetária, orçamental, social, em suma, uma política, no sentido mais amplo do termo, nacional e
internacional” (citação colhida em ATTAC, ‘Constitution’…, cit., 7).
360
4.15.4. – Uma outra área em que a influência neoliberal tem sido muito forte é a
dos serviços públicos, cujo conceito foi elaborado na França (Duguit) e na Alemanha
(Forstoff), a par da ideia de que a Administração Pública deveria assumir como missão
fundamental a prossecução do bem comum, orientando a sua actividade essencialmente
para a prestação de serviços públicos, passando a segundo plano a Administração que
pratica actos de autoridade (estado polícia). Os destinatários destes serviços públicos
prestados pelo estado no cumprimento das suas responsabilidades eram os próprios
cidadãos. Não será incorrecto afirmar que aqui radica a origem do chamado modelo
social europeu.
Constituía uma boa e longa tradição no Velho Continente a assunção pelo estado
(administração central, regiões ou autarquias locais) do dever de prestar aos cidadãos
um conjunto de serviços que correspondem a necessidades básicas das populações. Para
além dos serviços de algum modo decorrentes da soberania (defesa, segurança e
justiça), estão em causa os serviços de água e saneamento, de electricidade e gás, os
correios, telefones e telecomunicações, os transportes urbanos, os serviços de educação
e de saúde e, mais recentemente, os serviços relacionados com a segurança social, a
cultura e o desporto.
Em geral, o estado prestava directamente estes serviços (através de
estabelecimentos da própria administração pública, de serviços municipalizados, de
empresas públicas, muitas vezes em regime de monopólio), gratuitamente em alguns
553
A expressão é de G. SARRE, ob. cit., 66.
362
casos, cobrando em outros casos um preço inferior ao preço de mercado. Este conjunto
de serviços ficava, pois, à margem do mercado.
Por se entender que a satisfação, nestas condições, de determinadas necessidades
colectivas básicas é um pressuposto essencial para garantir a todos o próprio exercício
dos direitos e liberdades fundamentais.
E por se entender que os serviços públicos constituem o “cimento da sociedade”
e um factor decisivo do desenvolvimento económico e social, da melhoria das
condições de vida das populações, da coesão social e do desenvolvimento regional
equilibrado. O objectivo político e social em vista era, claramente, o de garantir a todos,
no tocante a esses serviços, a sua universalidade (acesso generalizado), a certeza da
continuidade do seu fornecimento, a qualidade do serviço, um preço acessível (que não
exclua da sua fruição os economicamente débeis e os que habitam em locais ou regiões
onde a sua prestação não é rentável em termos capitalistas).
Pois bem. Desde o Tratado de Roma, os Tratados estruturantes do que hoje é a
União Europeia afirmaram a primazia do mercado e da concorrência, encarados como
os únicos caminhos para o crescimento económico, o progresso, a abundância e a
equidade. Mas também desde o Tratado de Roma se vem falando da possibilidade de os
serviços públicos gozarem de um regime especial, que os colocasse fora do jogo do
mercado e da alçada das regras da concorrência. Cumprir este objectivo seria respeitar a
referida tradição europeia.
Não foi isto, porém, o que sucedeu. Sob a influência dos ventos do
neoliberalismo, assistiu-se a uma onda de privatizações de empresas públicas, mesmo
na área dos serviços públicos.
O processo de desmantelamento dos serviços públicos terá começado, na Europa
comunitária, com uma Directiva de 25.7.1980, adoptada pela Comissão Europeia com
base no poder que lhe conferia o nº 3 do art. 90º do Tratado de Roma de endereçar
directivas às empresas públicas para que elas se submetessem às regras da concorrência.
Vários Estados membros questionaram a legalidade desta Directiva, invocando falta de
competência da Comissão. Mas o TJCE deu razão à Comissão, abrindo caminho às
políticas liberalizantes que se seguiram, mesmo nos países onde os serviços públicos
tinham uma tradição mais longa e arreigada. 554 Este processo viu o seu ritmo acelerado a
partir de 1986, com o Acto Único Europeu, no qual se proclamou solenemente o famoso
554
Cfr. G. SARRE, ob. cit., 114.
363
555
Em países como Portugal, a Constituição da República cometia ao estado a responsabilidade
de garantir a subordinação do poder económico ao poder político democrático e atribuía ao estado as
competências e os meios para satisfazer cabalmente esta incumbência. Em resultado da integração
europeia, a soberania portuguesa perdeu esta capacidade e aquele objectivo estratégico da democracia
portuguesa ficou vazio.
364
e definem essas condições, sem prejuízo da competência dos Estados membros para, na
observância dos Tratados, prestar, mandar executar e financiar esses serviços” (art. 14º
TSFUE).
4.15.4.2. - Esta questão é tão clara que, durante o período de discussão pública
da ‘Constituição Europeia’, um grupo de personalidades (entre as quais Jacques Delors
e António Guterres, antigo Presidente da Comissão Europeia e antigo Primeiro Ministro
de Portugal, respectivamente) trouxe a público, através da internet,557 um documento em
557
Cfr. http://www.europesociale.com/petition.php. A Petição para um Verdadeiro Tratado da
Europa Social defendia a inclusão nos Tratados de um artigo com esta redacção: “A construção da União
não pode fazer-se apenas através do mercado. O interesse geral não pode ser a soma dos interesses
privados que o mercado exprime. A longo prazo, o desenvolvimento sustentável, o respeito pelos direitos
fundamentais, bem como a coesão dos territórios não podem ser assegurados de forma duradoura pelas
regras da concorrência. Por isso a União reconhece, em igualdade com o princípio da concorrência, o
princípio do interesse geral e a utilidade dos serviços públicos. A União vela pelo respeito pelo princípio
da igualdade no acesso aos serviços de interesse geral para todos os cidadãos e residentes. Esforça-se,
juntamente com os estados-membros, cada um no quadro das suas competências, por promover os
serviços de interesse geral enquanto garantes dos direitos fundamentais, elementos do modelo social
europeu e vínculos de pertença à sociedade do conjunto de cidadãos, cidadãs e residentes. Cada estado-
membro é chamado a assegurar o seu funcionamento e o seu financiamento. Uma lei-quadro europeia
precisará estes princípios ao nível da União. A União vela para que se respeite o princípio da
subsidiariedade e da livre administração das colectividades locais”.
366
559
Ver P. LUSSEAU, Constitution…, cit., 10, 67 e 106.
Alguns críticos mais duros sustentam que o chamado modelo social europeu se transformou em
560
mero ornamento do discurso político dos defensores do “pensamento único euro-beato” (Jacques
Généreux), considerando outros que a destruição do modelo social europeu equivale à “americanização
da Europa”, à “terceiro-mundização lenta dos povos da Europa”. (Assim, Didier Motchane, apud G.
SARRE, ob. cit., 127).
368
greve às entidades patronais ou direito ao lock out (art. 28º CDF e art.153º, nº 5 do
TSFUE).
O direito a um sistema público e universal de segurança social foi substituído
pelo “direito de acesso às prestações de segurança social” (art. 34º, nº 1 CDF). O direito
à habitação deu lugar ao “direito a uma ajuda à habitação, destinada a assegurar uma
existência condigna” (art. 34º, nº 3 CDF).
O art. 14º CDF reconhece que “todas as pessoas têm direito à educação”. Mas,
no nº 2 deste artigo, a CDF limita-se a dizer que este direito inclui “a possibilidade de
frequentar gratuitamente o ensino obrigatório”. Seria de esperar que se dissesse que o
ensino obrigatório é gratuito para todos. Ora o que se diz no nº 2 não é tão claro como
seria desejável: reconhece-se a possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino
obrigatório; mas aceita-se a impossibilidade de ser assim, ou seja, admite-se a
possibilidade de as pessoas terem que pagar o ensino obrigatório? Não nos parece uma
redacção muito feliz.
Tudo em consonância com a prática da generalidade dos estados-membros e das
instituições da União, que vem apontando no sentido do nivelamento por baixo. Por
alguma razão o Tratado de Amesterdão retirou do texto dos Tratados a referência que
neles se fazia à harmonização do direito social no sentido do progresso. E nada nos
actuais Tratados permite esperar que se queira caminhar no sentido da harmonização no
progresso. Antes pelo contrário: a tónica dominante é no sentido de afirmar a
“necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União” e de deixar
claro que a harmonização dos sistemas sociais há-de decorrer fundamentalmente do
“funcionamento do mercado interno”. As críticas surgem, naturalmente, por parte
daqueles que defendem terem sido os mecanismos do mercado que fizeram do
capitalismo a “civilização das desigualdades”.
4.15.5.2. - Num tempo de crise como aquele em que vivemos, torna-se mais
visível e preocupante a incapacidade da União Europeia de definir e executar uma
política efectiva de promoção do pleno emprego, de combate ao desemprego e de
protecção social aos desempregados. O próprio Parlamento Europeu vem insistindo há
anos na incapacidade da União para definir uma estratégia coordenada em matéria de
emprego, a não ser no que toca ao objectivo neoliberal, há longo tempo estatuído nos
Tratados, de promover “mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças
económicas”.
369
4.15.6. - Não é fácil desmentir os que sustentam que “a Europa social é o parente
pobre deste modo de construção europeia”.562
Em 1983 Miterrand confessava estar “dividido entre duas ambições, a da
construção da Europa e a da justiça social” 563, afirmação que parece assentar no
pressuposto de que a justiça social não tinha lugar na ‘Europa’ em construção desde
561
É sabido que o Livro Branco da Comissão presidida pelo socialista Jacques Delors, que
serviu de base ao Acto Único Europeu (1986) recebeu directamente a inspiração de um memorando
elaborado e editado em 1984 pela ERT (a Mesa Redonda Europeia dos patrões europeus). Georges Sarre,
um dos dirigentes socialistas que fez campanha pelo NÃO à Constituição Europeia, não teve dúvidas em
considerar aquele Tratado de 1986 como “um contrato de casamento entre a Europa e o liberalismo, sem
divórcio nem repúdio possíveis” (cfr. G. SARRE, ob. cit., 117/118).
562
Cfr. A. LECHEVALIER e G. WASSERMAN, ob. cit., 12.
563 ?
Apud Jacques ATTALI, ob. cit., 399.
371
1957, ou, pelo menos, que a construção da Europa poderia exigir o ‘sacrifício’ do
modelo social europeu.
Alguns anos mais tarde, num texto escrito pouco após a queda do Muro de
Berlim (9.11.1989), Michel Rocard reconhecia isto mesmo: “As regras do jogo do
capitalismo internacional impedem qualquer política social audaciosa. Para fazer a
Europa, é preciso assumir as regras deste jogo cruel” [as regras do jogo impostas pelo
que designa por capitalismo internacional]. É, a nosso ver, a aceitação do fatalismo
thatcheriano de que não há alternativa ao mercado, é a aceitação da lógica implacável
da mercadização da economia e da vida, “feita pela Europa, graças à Europa e por causa
da Europa”, como reconhece Pascal Lamy, Director-Geral da OMC.564
O fundamentalismo neoliberal inspirador da União Económica e Monetária
(UEM) e do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) vieram agravar as dificuldades
de sobrevivência do ‘modelo social europeu’ no seio desta União Europeia.
Recordaremos, em primeiro lugar, que o objectivo primordial do Banco Central
Europeu (BCE), responsável pela política monetária única dos países que adoptaram o
euro como moeda é o da estabilidade dos preços, a ele devendo ser sacrificados todos
os outros objectivos de política económica, nomeadamente o crescimento económico, a
promoção do pleno emprego e a luta contra o desemprego, a redistribuição do
rendimento e o combate às desigualdades sociais crescentes e à exclusão social. É esta
fidelidade às propostas monetaristas mais radicais que justifica a classificação dos
estatutos do BCE como “uma regressão política sem precedente histórico”.565
Recordaremos, em segundo lugar, as exigências do PEC (débito público não
superior a 3% do PIB; dívida pública não superior a 60% do PIB; inflação não superior,
a médio prazo, a cerca de 2% ao ano), exigências que significam um regresso às
concepções e políticas pré-keynesianas, que conduzem ao prolongamento e ao
aprofundamento das crises, obrigando os trabalhadores a pagar, com a baixa dos salários
reais, a solução que se espera resulte da actuação livre das leis do mercado.
Por isso mesmo, e com justa razão, já alguém lhe chamou “Pacto de
Estagnação”.566 Por mais estranho que possa parecer, altos responsáveis da Comissão
564
Citações colhidas em S. HALIMI, “As promessas…, cit., 3.
565
Por estas e outras razões, J.-P. CHEVÈNEMENT (ob. cit., 36) não hesita em afirmar que “a
constitucionalização dos estatutos do Banco Central Europeu – peso bem as minhas palavras – é algo de
verdadeiramente criminoso”.
566
J.FERREIRA DO AMARAL, em Seara Nova, Out-Dez/2002, 20.
372
Europeia já lhe chamaram (em 2005) estúpido e medieval. No entanto, nada mudou: os
dogmas neoliberais não foram postos em causa.
Apesar do veto à Constituição Europeia resultante dos referendos realizados na
França e na Holanda, o receituário neoliberal continua a impregnar os Tratados
estruturantes da União Europeia. A Parte III da chamada Constituição Europeia
desapareceu, enquanto tal, do texto aprovado em Lisboa em 13 de Dezembro de 2007.
Mas os seus princípios essenciais continuam nos Tratados (nomeadamente no TUE),
porque eles já estavam consagrados nos Tratados anteriores (Tratado de Roma, Acto
Único e Tratado de Maastricht) e permaneceram intocados no Tratado de Lisboa. Como
explicou V. Giscard d’Estaing (que presidiu à Convenção que elaborou o texto
originário da ‘constituição europeia’), “são exactamente os mesmos instrumentos. Só se
mudou a forma como estão arrumados”.567
567
Em Le Monde, 27.10.2007.
568
Para uma análise da problemática do estado social e das dificuldades que se invocam para
justificar a sua insustentabilidade pode ver-se João LOUREIRO, ob. cit., especialmente 9 -138.
373
Não podemos subscrever esta ‘condenação’ dos povos dos países menos
desenvolvidos à impossibilidade de acesso aos direitos habitualmente associados ao
estado social. A inscrição dos direitos económicos, sociais e culturais nas constituições
desses países como direitos fundamentais não pode reduzir-se a um mero exercício para
enganar os povos com narrativas emancipadoras ilusórias ou a uma simples invocação
de um ideário socialista que se diz ter ‘falhado’.
Estamos muito conscientes de que as constituições não substituem a vida (não
substituem a luta de classes) e muito menos fazem revoluções. E nem sequer garantem,
por si próprias, a efectica concretização dos direitos fundamentais nelas consagrados:
elas não são a árvore do paraíso, a fonte milagrosa de onde jorra com abundância o leite
e o mel. Mas esta consciência de que as constituições não são varinhas mágicas, nem
são o motor da história não pode negar a importância da consagração daqueles direitos
nas constituições dos países em referência, no plano jurídico, no plano político e no
plano civilizacional. Esta consagração significa, desde logo, que o povo soberano quer
que aqueles direitos sejam tratados como direitos fundamentais e significa, por outro
lado, que os órgãos do poder político democrático devem sentir-se politica e
juridicamente vinculados a actuar no sentido da sua efectiva concretização.
Em outros países (aqueles em que se verificou uma elevada concretização dos
objectivos do estado social), Canotilho considera que este “é vítima do seu próprio
sucesso”. «As constituições socialmente amigas - escreve ele - sofrem as críticas
amargas da “crise de governação”, do “flagelo do bem”, do “fim da igualdade”, da
“bancarrota do estado”». Em geral, o autor conclui que, nos tempos que correm, “a
cidadania social conquista-se não através da estatalização da socialidade na esteira de
Bismarck ou Beveridge mas sim através da civilização da política.” [sublinhados
nossos. AN]
Qualquer que seja o entendimento do autor sobre o sentido desta “civilização da
política”, parece que ela não salvará o estado-providência da morte anunciada: “Já não é
o Estado-Providência – escreve Gomes Canotilho - que tenta resolver os problemas
ligados à distribuição dos recursos: é o Estado-ativo tutelar ou supervisionador que tem
apenas a responsabilidade pela produção de bens coletivos indispensáveis à sociedade
quando se trate da segurança de bens essenciais no seu núcleo básico. A estratégia é a
do Estado preceptor que deve substituir as ideias rectoras da intervenção estatal por
374
569
Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, “O tom…, cit., 122/123.
375
570
Na nota 19 (p. 123) da obra citada refere Helmut WILKE, Ironie des Staates, Frankfurt/M,
1992.
571
“O tom…, cit., 131.
572
Cfr. I. MÉSZÁROS, O Século XXI, cit., 33.
376
573
Para atestar a ‘paternidade’ comunitária da regulação e das entidades reguladoras
independentes, bastará recordar que, em Portugal, a legislação que instituiu as primeiras entidades
reguladoras independentes resulta da transposição para a ordem jurídica portuguesa de Directivas
comunitárias. É o caso da ERSE (Entidade Reguladora do Sector Eléctrico, depois convertida em
Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, passando a abranger também o gás natural), imposta pelas
Directivas nº 96/92/CE do Parlamento e do Conselho, de19 de Dezembro, e nº 98/30/CE, de 22 de Junho.
Este é também o caso da ANACOM (Autoridade Nacional das Telecomunicações), criada por imposição
da Directiva nº 2002/21/CE do Parlamento e do Conselho, de 7 de Março. Cfr. E. PAZ FERREIRA, ob.
cit., 37/38.
574 ?
Poderemos sintetizar a noção de regulação económica invocando a definição que consta do
Glossário de economia industrial e de direito da concorrência divulgado pela OCDE em 1993 (versão
colhida em J. VASCONCELOS, ob. cit.):
“Em sentido lato, a regulação económica consiste na imposição de regras emitidas pelos poderes
públicos, incluindo sanções, com a finalidade específica de modificar o comportamento dos agentes
económicos no sector privado. A regulação é utilizada em domínios muito diversos e recorre a numerosos
instrumentos, entre os quais o controlo dos preços, da produção ou da taxa de rentabilidade (lucros,
margens ou comissões), a publicação de informações, as normas, os limiares de tomada de participação.
Diferentes razões têm sido avançadas a favor da regulação económica. Uma delas é limitar o poder de
mercado e aumentar a eficiência ou evitar a duplicação de infra-estruturas de produção em caso de
monopólio natural. Outra razão é proteger os consumidores e assegurar um certo nível de qualidade assim
como o respeito de certas normas de comportamento (…). A regulação pode também ser adoptada para
impedir a concorrência excessiva e proteger os fornecedores de bens e serviços”.
Mais sinteticamente, E. PAZ FERREIRA (“Em torno…, cit., 32): a regulação económica é “uma
forma de intervenção através da qual se procura essencialmente preservar o equilíbrio económico de
determinado sector que não seria logrado sem essa intervenção”.
Em termos gerais, tendo em conta toda a actividade reguladora, P. GONÇALVES (ob. cit., 540):
a regulação “consiste na definição das condições normativas de funcionamento da actividade regulada e
no controlo da aplicação e observância de tais condições”.
Para uma análise da regulação económica, tendo em vista particularmente o sector eléctrico, ver.
S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 408ss e 449ss.
378
575
Há quem fale de regulação sectorial a propósito da regulação de um determinado sector de
actividade (sector económico ou sector social) e de regulação transversal a propósito da regulação da
concorrência, uma vez que o direito da concorrência é de aplicação transversal a toda a economia. Cfr. P.
GONÇALVES, ob. cit., 543.
Em Portugal, existem entidades reguladoras independentes para actividades não directamente
económicas (a comunicação social, a saúde e o ensino superior) e existe uma Autoridade da
Concorrência, encarregada da regulação transversal no âmbito da aplicação do Direito da Concorrência
(que é, essencialmente, direito comunitário, emanado dos organismos da União Europeia). A regulação
sectorial, no âmbito da actividade económica, exerce-se no sector financeiro (banca, seguros e mercado
de valores mobiliários), no sector da energia, no sector postal e das comunicações electrónicas, no sector
da água e dos resíduos, no sector do transporte ferroviário, no sector da aviação civil e nos mercados das
obras públicas e particulares e do imobiliário. À excepção do Instituto dos Mercados de Obras Públicas e
Particulares e do Imobiliário, todas as demais entidades reguladoras são entidades independentes.
Para além destas formas de hetero-regulação (regulação exercida por uma entidade exterior à
actividade regulada), o estado português reconhece ainda certas formas de auto-regulação. É o caso das
ordens profissionais (ordem dos advogados, ordem dos médicos, etc.), para as quais o estado transfere a
competência para regular o exercício das respectivas profissões, no plano deontológico, disciplinar,
económico e social. Há ainda certos casos de regulação exercida por organismos privados (as federações
desportivas, certas entidades certificadoras de produtos agrícolas, a Caixa Central de Crédito Agrícola
Mútuo).
576
Cfr. P. GONÇALVES, ob. cit., 536-542.
379
577
Cfr. MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 17-22 e J. L. CARDOSO, ob. cit.
578 ?
O próprio Adam Smith parece ter sido menos papista que os ‘papas’ modernos do
neoliberalismo, ao admitir que é dever do soberano “a criação e a manutenção daqueles serviços e
instituições que, embora possam ser altamente benéficos para uma sociedade, são, todavia, de uma natureza
tal que o lucro jamais poderia compensar a despesa para qualquer indivíduo ou pequeno número de
indivíduos, não se podendo, portanto, esperar a sua criação e manutenção por parte de qualquer indivíduo
ou pequeno número de indivíduos. A concretização deste dever exige despesas de variadíssimos graus nos
diferentes períodos da sociedade”. Ao menos nestes domínios, até o patriarca do liberalismo admitia que o
estado produzisse e fornecesse determinados bens e serviços. Por isso Milton Friedman o criticou.
380
579
Cfr. ob. cit., 549.
580
Susana TAVARES DA SILVA (ob. cit., 69) dá conta de que já se ensaiam soluções que
tendem a confiar inteiramente aos mecanismos do mercado domínios típicos da socialidade, como é a
caso da saúde. A vida vai confirmando isto mesmo todos os dias. Em Portugal, a recente luta dos colégios
privados pelo ‘direito’ a subsídios do estado (por vezes mais avultados do que os fundos concedidos às
escolas públicas) insere-se nesta estratégia.
381
implica escolhas políticas que comprometam o estado. Ora o chamado estado regulador
revela-se, afinal, um estado pseudo-regulador (ou um pseudo-estado regulador), um
estado que renuncia ao exercício, por si próprio, dessa ‘função reguladora’, inventada
para responder à necessidade de, perante a ‘privatização’ do próprio estado,
salvaguardar o interesse público. E, como se tal não bastasse, transfere essa função
reguladora para entidades independentes, que se querem ‘politicamente puras’, actuando
apenas em função de critérios técnicos.
582
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 430.
383
4.16.4. - Vários argumentos têm sido invocados para justificar esta regulação
“amiga do mercado” e a sua entrega a entidades independentes. 583 Mas não faltam
razões para legitimar as múltiplas reservas que vêm sendo levantadas a esta concepção
da função reguladora e ao modo como é exercida.
Muito agitada tem sido a questão do défice democrático da solução que entrega a
regulação a entidades independentes e dos perigos que ela representa para o estado
democrático e para a democracia.
Particularmente acesa tem sido, a este propósito, a discussão à volta da
problemática da independência dos bancos centrais, enquanto titulares da política
monetária (subtraída à soberania do estado) e autoridades reguladoras independentes do
mercado do crédito.584
A discussão acentuou-se na Europa, especialmente a partir da entrada em vigor
da União Económica e Monetária (consagrada no Tratado de Maastricht, assinado em
1992), com a criação do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central
Europeu (o mais ‘independente’ dos bancos centrais em todo o mundo) e a entrada em
circulação do euro como moeda única dos países da União Europeia que a ela aderiram,
depois de cumprirem os apertados critérios de convergência.585
Entretanto, as políticas neoliberais foram amputando o estado democrático das
competências, dos meios e dos poderes que foi assumindo à medida que as sociedades
se tornaram mais complexas e que os interesses e as aspirações dos trabalhadores
conquistaram um pequeno espaço no seio do poder político. E não falta quem entenda
que, nestas novas condições, a regulação da economia (ou a economia de mercado
regulada) não significa mais do que a tentativa de tapar o sol com a peneira. Porque a
mão invisível do mercado deu o lugar à mão visível dos grandes conglomerados
transnacionais. O mercado são eles. E são eles que ‘mandam’ no mercado e nas
entidades que se propõem regular os mercados.
Num texto de 2003 escreveu Michel Rocard: “numa economia mundialmente
aberta, não há lugar para a regulação nem limites para a violência da concorrência”.586
[sublinhado nosso. AN] É uma confissão particularmente embaraçosa para os
defensores da economia de mercado regulada (ou economia social de mercado). Pela
nossa parte, só podemos estar de acordo com a conclusão de Rocard, segundo a qual, na
583
Ver MOREIRA/MAÇÃS, ob. cit., 10-12.
584
Para mais desenvolvimentos, ver A. J. AVELÃS NUNES, “Nota…, cit.
585
Cfr. A. J. AVELÃS NUNES, “A institucionalização…, cit., “Algumas incidências…, cit., e A
Constituição Europeia…, cit.
586
Cfr. Le Monde, 19.6.2003 [sublinhdo nosso].
384
nossa leitura, em um mundo governado pelas políticas neoliberais, não há lugar para a
regulação nem limites para a violência dos grandes conglomerados internacionais.
385
587
Ver notícia destas críticas em S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 68, 432 e 442. Mas os
adversários do estado regulador não o poupam a outras críticas: a falta de transparência na actuação das
entidades reguladoras alimenta dúvidas quanto à legitimidade meritocrática dos reguladores, que
cometem erros e se deixam por vezes ‘capturar’ (pelos regulados ou pelo estado); acrescem os custos da
regulação, que constituem um encargo extra, sem qualquer benefício social, antes em prejuízo dos
consumidores e da capitalização do seu montante para novos investimentos por parte das empresas
reguladas.
588
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 430.
589
Desenvolvidamente sobre o estado garantidor, ver S. TAVARES DA SILVA, ob. cit..
386
590
Cfr. “O Estado garantidor…, cit.. Em certa medida, esta problemática está já pressuposta em
?
outro estudo do Autor, tornado público também em 2008: «”Bypass” social…, cit..
387
privadas daqueles serviços sociais essenciais se, como “Estado activador”, “apoiar
activamente a economia e a saúde económica das empresas [privadas] encarregadas de
produzir os serviços e os bens indispensáveis à efectivação da socialidade” [o itálico é
nosso. AN];
d) estas tarefas de garantir e activar constituem “uma operação de charme
destinada a sugerir que, por um lado, o Estado garantidor é um Estado social e, por
outro lado, que ainda é uma tarefa pública social garantir a capacidade de prestação das
empresas [privadas] fornecedoras de serviços de interesse geral” [os velhos serviços
públicos deixam de ser serviços públicos essenciais para se transformarem em serviços
de interesse geral]; Canotilho acrescenta que “o charme desta operação é tanto maior
quando se insinua tratar-se (…) de uma situação de win-win entre Estado e sujeitos
privados”;
e) a actuação de um estado que pretende garantir, simultaneamente, “a
socialidade a favor dos utentes dos serviços” e “o equilíbrio económico das empresas”
pode não conduzir a uma situação de win-win, isto é, a uma situação em que há ganhos
para o estado (para os cidadãos) e para as empresas privadas (daí que, nestas situações,
seja frequente o recurso ao aumento das tarifas dos serviços públicos ou ao pagamento
de compensações aos privados pelo estado);
f) ao estado garantidor-activador é confiada a responsabilidade de garantir a
prestação efectiva dos serviços de interesse geral, mas também a responsabilidade pela
garantia da “lógica económica do mercado”, o que significa que só o estado assume
responsabilidades, não cabendo nenhuma aos privados.
Ora, a nosso ver, esta matriz republicana da escola pública não é compatível
com a relegação do estado e da escola pública para uma posição subsidiária, sujeitando
o sistema público de ensino às regras da concorrência no mercado de ensino. Nem
parece compatível com o reconhecimento de um qualquer direito das famílias –
transformadas em “árbitros do mercado de ensino” - a escolher entre a escola pública e
a escola privada, exigindo do estado o pagamento das despesas resultantes da opção
pela escola privada.
Este “direito à escolha de escola” não está consagrado na nossa Constituição,
pelo que o estado só deve apoiar financeiramente as escolas privadas (em montantes
idênticos aos fundos concedidos às esolas públicas equivalentes) naquelas localidades
em que – por incumprimento do preceito constitucional – não exista ainda escola
pública. Trata-se, nestes casos, de garantir o direito à educação e não qualquer direito à
escolha de escola.
A matriz republicana da escola pública retira também, a nosso ver, qualquer
base ao argumento dos que, dentro da lógica do ‘mercado’, venham alegar razões de
eficiência e de ‘racionalidade’ para considerar injustificáveis a criação ou a manutenção
de estabelecimentos públicos onde já existirem estabelecimentos privados. A existência
de escolas privadas não pode impedir o cumprimento cabal do preceito constitucional
que obriga o estado a criar um sistema público de ensino acessível a todos os cidadãos
portugueses, constituído por escolas livres, iguais e laicas, onde todos, sem distinção,
podem aprender e ensinar com inteira liberdade.
Se aceitamos que as escolas se transformem em empresas educacionais, não
tardará que alguém venha defender, em nome dos princípios do mercado e da
sacrossanta concorrência, que os estados nacionais da UE não podem financiar nem
ajudar financeiramente estas ‘empresas’, do mesmo modo que não podem ajudar
quaisquer outras empresas (públicas ou privadas, sobretudo as públicas…). Alguns
poderão mesmo invocar que os estabelecimentos públicos, por serem financiados com
dinheiros públicos, violam as regras da concorrência… Um pequeno passo bastará para
que se defenda que a solução é confiar a escola pública (paga com o dinheiro dos
contribuintes) a parceiros privados, no quadro dos negócios das parcerias público-
privadas.
A matriz republicana da escola pública também não nos parece compatível
com a aceitação de que a escola serve apenas para preparar profissionalmente os
trabalhadores exigidos pelo mercado de trabalho, menosprezando a concepção da
390
595
Cfr. últ. ob. cit., 251ss.
596
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 59 e 67 [sublinhados nossos. AN].
392
597
A. La Spina e G. Majone - citados por S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 438 - defendem que
“o papel do estado deixa de ser o de redistribuir riqueza para passar a ser o de promover e fomentar a
criação de riqueza e o acesso a esta através dos mecanismos de redistribuição do mercado e da dinâmica
própria da Sociedade”. Aqueles autores falam de “uma passagem de um modelo de soma nula – modelo
de redistribuição em que o estado exige a uns para dar a outros – para um modelo de ganho mútuo (win-
win) – modelo de optimização do mercado em que ganham os agentes do mercado e os cidadãos”.
[sublinhados nossos. AN] Adam Smith não desdenharia subscrever este ponto de vista. Estamos
regressados ao mundo mágico da mão invisível e da confiança absoluta nos mecanismos do mercado (este
mercado optimizado, seja lá o que for, não deve ser o mesmo que mercado regulado) para assegurar o
crescimento económico e o bem-estar para todos.
598
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 102 e 431/432 [sublinhados nossos. AN].
393
599
Cfr. S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 3.
600 ?
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 354/355. O ‘mago’ da finança, Alan Greenspan,
escrevendo em 2007, já com a crise à porta, garantia que a mão invisível smithiana continua viva e bem
viva: “Na minha visão, de 1995 em diante, os mercados globais, em grande parte não-regulamentados,
com algumas notáveis exceções, parecem avançar com tranquilidade de um para outro estado de
equilíbrio. A mão invisível de Adam Smith está presente em escala global. (…) A aparente estabilidade
do comércio e do sistema financeiro globais é a reafirmação de um princípio simples, consagrado pelo
tempo, que foi promulgado por Adam Smith em 1776: os indivíduos que comerciam livremente uns com
os outros, seguindo seus interesses próprios, geram uma economia estável e crescente. O modelo de
mercado perfeito, típico de livro-texto, realmente funciona, se suas premissas básicas forem observadas:
as pessoas devem ter liberdade para agir em busca de seus interesses individuais, sem as restrições de
choques externos ou de políticas económicas. (…) Mesmo durante as crises, as economias sempre
parecem corrigir-se a si mesmas (embora o processo às vezes demore um pouco)”. Afinal o ‘paraíso
terrestre’ existe. Só precisamos de ter fé na mão invisível (agora presente à escala global…) e no mercado
perfeito (que não é apenas coisa de livros de texto…).
394
Os (neo)liberais mais ‘ortodoxos’ não deixam que outros concluam por eles:
proclamam abertamente que o seu estado garantia assenta na “aceitação do papel
fundamental e insubstituível do mercado e da propriedade privada na organização
económica e social”, e afirmam, como verdade absoluta, que só o mercado livre garante
a concorrência, que só a concorrência garante a eficiência económica e que só esta
assegura o bem-estar de cada um e de todos.602
É a saudade incurável do que nunca existiu: os mercados de concorrência
perfeita.
E não escondem que a função essencial do estado garantia é, a seu ver, a de
fomentar a concorrência, isto é, a de deixar funcionar o mercado, passando de uma
lógica da oferta para uma lógica da procura.
É o regresso ao laisser-faire. É a insistência na tecla gasta da soberania do
consumidor, como se alguém pudesse acreditar que, ao escolher o que quer, no
exercício da sua liberdade de escolha, é o consumidor que determina, também no que
toca aos serviços públicos que satisfazem direitos fundamentais (educação, saúde,
segurança social, justiça), o que se produz, como se produz e para quem se produz.
A liberdade de escolha – axioma segundo o qual cada indivíduo é o melhor juiz
dos seus interesses e da melhor forma de os prosseguir, com vista à maximização do seu
601
Ver as referências em S. TAVARES DA SILVA, ob. cit., 438/439.
602
Cfr. A. A. ALVES, ob. cit.
395
bem-estar – é, pois, o princípio em que assenta este estado garantia, que se anuncia
como “o estado social do século XXI”, embora não passe de uma reinvenção do estado
liberal dos séculos XVIII e XIX.
Partindo do princípio de que o estado garantia existe para promover e garantir a
liberdade de escolha, os puristas do neoliberalismo apresentam-no como estado social
subsidiário. À cautela, não deixam de falar de estado social, mas distinguem-no do que
chamam estado social burocrático, assim batizado porque os seus padrinhos sabem bem
que a burocracia suscita a aversão de toda a gente.603
E, como estado subsidiário, ele só deve intervir supletivamente: por exemplo, só
deve criar escolas públicas onde não houver escolas privadas e onde não se conseguir
estimular a sociedade civil a criá-las.604 A este estado subsidiário cabe – isso sim –
estimular e apoiar a sociedade civil e os “corpos sociais intermédios” nela existentes,
‘enfraquecidos’ pelo referido estado social burocrático.
É, mais uma vez, a atitude dos que, sob a bandeira pretensamente libertária da
liberdade de escolha, pretendem impor o regresso a tempos antigos, tempos em que,
sem qualquer sofisma, a liberdade de escolha não existia, nem a liberdade de
pensamento, nem – para a grande maioria das pessoas - qualquer espécie de liberdade.
Do mesmo modo, as lágrimas derramadas pelo enfraquecimento dos ditos
corpos sociais intermédios parecem anunciar a saudade dos tempos em que, à falta de
direitos sociais, a caridade era a única forma de assistência aos pobrezinhos.
Milton Friedman não esconde isto mesmo quando defende que entre “os custos
maiores da extensão das governmental welfare activities” está “o correspondente
declínio das actividades privadas de caridade”, que proliferaram no Reino Unido e nos
EUA no período áureo do laissez-faire, na segunda metade do século XIX. Este é um
ponto de vista que só podemos compreender se tivermos presente que, para Friedman,
603
Há quem designe este estado garantia por “estado social regulador”, para o distinguir do “estado
social prestador”, o ’perigoso’ estado social de matriz keynesiana, em que o estado, em sentido lato, se
assume como prestador de serviços públicos. Cfr. F. V. SOUSA, ob. cit., 15.
604
Em Capitalism and Freedom, Milton Friedman – o grande defensor da liberdade de escolha na
segunda metade do século XX - defende abertamente que o estado não deve ocupar-se com a oferta de um
serviço público de educação, porque o mercado pode perfeitamente oferecê-lo. Na mesma onda (quase
provocatória), defende que deveriam ser privatizados os parques nacionais de Yellowston e de Grand
Canion, com este argumento: ”Se o público deseja este tipo de actividade o suficiente para aceitar pagar
por ele, as empresas privadas terão todos os incentivos para oferecer tais parques”. Salve-se a franqueza
brutal com que diz o que pensa, ‘virtude’ que não ostentam os seus seguidores destes tempos de crise,
sempre propícios aos pescadores de águas turvas…
396
608
Na prática, é isto o que vem acontecendo no que se refere às empresas do sector financeiro:
como a sua saúde é essencial à saúde das economias e à coesão do tecido social, não podem ir à falência.
Quando têm lucros astronómicos, pagam menos impostos do que um cidadão vulgar que vive do
rendimento do seu trabalho; quando o ‘jogo’ corre mal, o estado (verdadeiramente estado garantidor) é
chamado para pagar os custos.
O Tribunal de Contas português tem chamado a atenção para a autêntica gestão danosa de
dinheiros públicos em que esta política se tem traduzido, dando o exemplo da parceria público-privada
que enquadra a construção e a exploração da Ponte Vasco da Gama (Lisboa), na sequência da qual o
estado transferiu já para o seu parceiro privado dinheiro que dava para construir três pontes como aquela.
E o contrato ainda não saiu do adro, tem ainda um longo e brilhante futuro à sua frente…
Esta problemática é analisada num livro recente por alguém que as conhece por dentro, um Juiz do
Tribunal de Contas jubilado. Neste livro são serenamente analisadas todas as PPP (relacionadas com auto-
estradas, estradas, pontes, hospitais, infra-estruturas de transporte ferroviário, estruturas portuárias), bem
como a negligência (ou a diligência?) e a incompetência (será? Em alguns casos, o governo decidiu contra
o interesse público, apesar de sucessivas chamadas de atenção do Tribunal de Contas…) dos responsáveis
governamentais. Num dos casos, após 18 anos de experiência neste campo, houve um governo que fez
um contrato particularmente ruinoso para o interesse público, chegando a garantir um lucro mais elevado
do que o inicialmente proposto pelo parceiro privado, num contrato com um prazo escandalosamente
longo, assinado sem concurso público, apesar de a lei portuguesa e as regras comunitárias o imporem. As
coisas passaram de tal forma as marcas que o Ministério Público, habitualmente ‘pacato’, defendeu a
inconstitucionalidade de tal contrato e o Parlamento acabou por revogar o diploma que o tinha
homologado. Sobre estes assuntos, ver Carlos MORENO, ob. cit., 99ss.
399
que se iniciou em 2007/2008, a actuação do estado capitalista tem comprovado esta sua
natureza de estado garantidor, gastando somas fabulosas para salvar da falência as
instituições financeiras que, graças à desregulação imposta pela política de globalização
neoliberal, arriscaram o dinheiro dos seus depositantes e dos pensionistas dos fundos de
pensões por elas geridos em actividades especulativas, verdadeiros ‘jogos de casino’,
muitas vezes de natureza criminosa.609
609
A OCDE calcula que, em todo o mundo, foram mobilizados, nestas operações de salvamento,
11, 4 mil milhões de dólares, o que equivale a dizer que cada habitante do planeta contribuiu com 1.676
dólares para salvar da bancarrota os que utilizaram a poupança colectiva para jogar na roleta dos jogos da
bolsa e em outros ‘jogos’, à margem da economia real e à custa dela, e mesmo à margem da lei (Cfr. F.
LORDON, ob.cit., 6).
400
e) Uma outra nota para recordar que uma das características da política de
globalização em curso é a que se relaciona com o esbatimento do papel do estado na
economia e com a anulação do estado nacional.
f) Uma nota mais para sublinhar, porém, que não pode correr-se o risco de
interpretar a globalização como um regresso aos tempos do ‘capitalismo de
concorrência’, agora projectado à escala mundial. Neste nosso tempo, os protagonistas
quase exclusivos são os grandes conglomerados transnacionais, orientados por uma
estratégia planetária, apoiados num poder económico (e político) que anula em absoluto
os mercados tal como os entendia a teoria da concorrência, e apostados em controlar o
processo de desenvolvimento económico à escala mundial.
financeira) e de fazer das bolsas um instrumento de recrutamento de capitais para financiar o investimento
produtivo, reduzindo, simultaneamente, os riscos de instabilidade inerentes aos jogos de casino. Sobre o
objecto desta nota, cfr. J. M. QUELHAS, ob. cit., 702-705.
405
anos anteriores, os 11 países mais ricos do mundo teriam acolhido 78% do investimento estrangeiro
global, cabendo aos cem países mais pobres apenas 1% (Folha de S. Paulo, 1.7.2001).
614
Perante as contradições desencadeadas pela própria globalização neoliberal, muitos acreditam
que a globalização, saudada pelos defensores do sistema como a solução para os seus problemas, “aciona
forças que colocam em relevo não somente a incontrolabilidade do sistema por qualquer processo
racional, mas também, e ao mesmo tempo, a sua própria incapacidade de cumprir as funções e controlo
que se definem como sua condição de existência e legitimidade” (cfr. I. MÉSZÁROS, O Século XXI, cit.,
105).
407
Para uma visão um pouco mais ampla sobre este processo de inovação financeira, ver A. J.
615
ganhos que os ‘apostadores’ prevêem que podem obter, chamando a si uma parte da
riqueza criada pela economia real. Estes ‘produtos, cada vez mais sofisticados, servem
apenas para ganhar dinheiro com a especulação, atraindo bancos, seguradoras,
sociedades gestoras de fundos de investimento e de fundos de pensões.
Na última década do século XX, o volume das transacções sobre os mais
perigosos deste ‘produtos’, os chamados derivados negociados em mercado fora de
bolsa (“over-the-counter derivative markets”), aumentou de 24,6 mil milhões de dólares
em 1992 para 94,6 mil milhões de dólares em 1999. Os especialistas avisaram que este
fenómeno, para além de expor as instituições financeiras aos riscos máximos inerentes à
natureza volátil destes ‘produtos’, tornava muito mais difícil o controlo pelas
autoridades de supervisão e a auditoria das contas daquelas instituições.616 Os seus
defensores, porém, não se cansavam de proclamar as ‘virtudes globais’ de tais produtos:
“Formas inteiramente novas de instrumentos financeiros tiveram de ser inventadas ou
desenvolvidas – derivativos de crédito, títulos lastreados em ativos, futuros de petróleo e
congéneres, que criam condições para o funcionamento muito mais eficiente do sistema
de comércio mundial”.617
619
A onda da desregulação terá começado com a abolição das restrições à definição e exploração
das rotas da aviação comercial, obra da Administração Carter, nos EUA. A seguir, um verdadeiro tsunami
desregulador atingiu outros sectores da actividade económica, entre os quais as telecomunicações, os
media e os serviços financeiros. Durante a Administração Clinton, os bancos comerciais e os bancos de
investimento (obrigatoriamente separados por força de legislação promulgada na sequência da Grande
Depressão) foram autorizados a juntar-se, dando origem a poderosíssimos supermercados de serviços
financeiros. O desregulador de serviço na Secretaria do Tesouro era Lawrence Summers, que é hoje o
principal conselheiro económico de Obama. Cfr. J. CASSIDY, ob. cit., 7.
410
O alarme foi tal que Henry Kissinger, então ao leme da diplomacia americana,
chegou a ameaçar com a intervenção militar dos EUA se os países exportadores de
petróleo não aceitassem baixar os preços do ouro negro. A estratégia imperial americana
de domínio das rotas da produção e da distribuição do petróleo e do gás natural tem aqui
a sua origem, tendo desembocado na invasão do Iraque, na guerra do Afeganistão, na
ameaça de guerra contra o Irão, no congelamento da solução do problema do Médio
Oriente.
4.19.2. - No rescaldo das dificuldades da primeira metade da década de 1970 que
acabamos de sintetizar, e rompido o consenso keynesiano, surgiu um novo consenso, o
chamado Consenso de Washington, expressão que traduz o consenso entre os EUA (as
grandes empresas multinacionais americanas) e as agências internacionais relacionadas
com a economia (FMI, Banco Mundial e GATT, este substituído em 1995 pela OMC,
que veio acentuar o peso do livrecambismo enquanto ideologia das potências
620
Poderíamos talvez considerar 1967 (com o crash da bolsa de Nova York) como ano de início
de um grande número de crises, que não deram descanso, de então até à actualidade.
621
Estudos vários mostram que a indústria americana utilizava em 1975 apenas 74% da sua
capacidade de produção. E mostram também que os grandes ganhadores com a subida do preço do
petróleo não foram os países produtores e exportadores, mas foram, acima de todos, as grandes empresas
multinacionais que controlam a refinação, o transporte e a distribuição do petróleo e seus derivados.
412
622
J. CASSIDY (ob. cit., 7) sublinha que, “por volta dos anos 1990, Bill Clinton, Tony Blair e
muitos outros políticos progressistas adoptaram a linguagem da direita”. Talvez convencidos de que, nas
condições da época, o respeito pelo deus mercado era uma condição de ‘respeitabilidade’ política, muitos
‘políticos progressistas’ adoptaram também, para além da linguagem, as políticas da direita. Como o
próprio Cassidy reconhece: “Muitos governos em todo o mundo desmantelaram programas sociais,
privatizaram empresas públicas e desregularam indústrias que antes estavam sujeitas à supervisão do
estado”.
413
Apesar do alarme, a verdade é que nada se fez para pôr cobro a esta vertigem
libertária, nem sequer com o pretexto de salvar a economia mundial desta espécie de
‘sida’ que vai diminuindo as suas resistências. Perante o evidente risco de pandemia,
623
Sobre esta mtéria, cfr. MARTIN/SCHUMANN, A Armadilha…, cit., e A. J. AVELÃS NUNES,
Neoliberalismo, Globalização…, cit.
414
Nenhum argumento sério pode invocar-se para justificar os paraísos fiscais, que a
generalidade dos especialistas associa à evasão e à fraude fiscais, ao crime organizado e
à lavagem de dinheiro. Como alguém escreveu, no contexto da luta contra o crime
global e contra o terrorismo global anunciada após os ataques às torres gémeas de Nova
York, se a(s) potência(s) hegemónica(s) não acabar(em) com estes “estados bandidos”,
não pode levar-se a sério a vontade proclamada de acabar com o crime organizado e
com o terrorismo global.625
625 ?
São palavras de um jornalista português (Francisco Sarsfield Cabral, jornal Público, 6.10.01):
“Será na determinação de pôr fim aos off-shores que teremos a prova real quanto à vontade política de
combater o terrorismo e os seus aliados. Por aí, mais do que por acções militares, se verá se a campanha
antiterrorista é mesmo a sério”. Pelo que se vê, parece que não é a sério…
416
Alguns especialistas temem que a situação venha a piorar, para os países menos
desenvolvidos, com a generalização do regime de plena liberdade das trocas
internacionais aos produtos agrícolas, como pretende a OMC. Este é o regime já
previsto na Convenção de Cotonou (Junho de 2000) para as relações entre a
Comunidade Europeia e 40 países ACP (africanos, na sua maioria), com início marcado
para 2008.
Neste quadro, as exportações dos países subdesenvolvidos terão de ser feitas aos
‘preços internacionais’, controlados pelas grandes multinacionais do agro-business,
preços que são, em regra, (muito) mais baixos que os custos de produção praticados
pelas pequenas e médias explorações agrícolas, que asseguram emprego à maior parte
da população rural e respondem pela maior parte da produção agrícola daqueles países.
Uma visão alternativa será precisamente aquela que assenta na defesa do direito
de todos os países à soberania alimentar, i.é, à auto-suficiência alimentar no que toca
aos produtos básicos. Alguns autores recordam que o princípio da auto-suficiência
alimentar foi - e continua a ser - um dos princípios orientadores da PAC (Política
Agrícola Comum) desde a constituição da CEE.
417
quem não tinha capacidade financeira para as pagar e por quem as comprava apenas
com fins especulativos (ganhar, a curto prazo, com a valorização dos imóveis).
A banca começou a vender pacotes desses créditos menos fiáveis, transformados
em produtos derivados (títulos obrigacionistas negociáveis) adquiridos por investidores
institucionais, nomeadamente os atrás referidos hedge funds. Disperso o risco pela
grande quantidade de titulares de unidades de participação nestes fundos, os fautores
deste ‘jogo’ talvez tenham acreditado terem resolvido a quadratura do círculo, supondo
que poderiam vender esses créditos titularizados sem limitações, criando a ilusão de que
a dispersão dos riscos como que os fazia desaparecer.
O aforro disponível excedia a capacidade de investimento na economia real, pelo
que os grandes gestores da banca se convenceram de que podiam ganhar muito dinheiro
emprestando-o ou lançando-o no jogo sem acautelar minimamente o seu reembolso
(alguns bancos chegaram a emprestar o equivalente a trinta vezes o montante dos seus
depósitos). E se bem o pensaram melhor o fizeram, montando um ‘esquema’ assente
nos chamados empréstimos subprime, assim designados porque são concedidos sem
respeitar as regras técnicas no que toca às garantias exigidas a quem recorre ao crédito
no que concerne à sua capacidade para cumprir atempadamente os encargos da dívida
(juros e amortização do capital). Muitos desses empréstimos foram, de resto, designados
por empréstimos tipo ninja, i.é, empréstimos concedidos a quem não tinha rendimentos,
nem emprego nem activos – “No Income, no Job or Asset”.
Num país em que o endividamento das famílias, graças ao ‘estímulo’ do crédito
ao consumo, representa 120% do rendimento disponível, a fantasia desfez-se quando, no
primeiro trimestre de 2007, cerca de 15% das pessoas que tinham recorrido a
empréstimos subprime deixaram de pagar os seus encargos. O risco rapidamente afectou
não só os bancos mas também as companhias de seguros que tinham feito o seguro (e
até o resseguro) dos créditos concedidos, bem como os fundos de investimento
controlados por aqueles e por estas, tanto mais que o valor de mercado dos prédios
hipotecados baixou consideravelmente, por excesso de oferta e baixa da procura.
Quando os produtos derivados resultantes da titularização dos créditos hipotecários,
embora teoricamente negociáveis, deixaram de ser negociados na prática, porque
ninguém os queria, chegou-se ao fim do caminho: a banca do ‘casino’ ficou sem fundos.
Tudo corria no melhor dos mundos, até que a crise rebentou. Para quem não
esquece as lições da história, era inevitável que ela viesse, porque as crises são inerentes
ao capitalismo (as situações de pleno emprego são “raras e efémeras”, como reconheceu
422
629
Esta postura de ‘gestão do capitalismo’ representa, porém, em nosso entender, uma equação
teórica e política tão difícil de resolver como a da quadratura do círculo, sabendo-se como se sabe, desde
os fisiocratas, ser ponto assente na teoria económica que as estruturas de distribuição do rendimento e da
riqueza não podem considerar-se separadas das estruturas e das relações sociais da produção. Por outras
palavras: a estrutura de classes da sociedade e as relações de produção que lhe são inerentes são os
factores determinantes da distribuição da riqueza e do rendimento.
424
630
Alguns, mais radicais, não hesitam em afirmar que “a moralização do capitalismo é, em rigor,
impossível, visto que este é, em si mesmo, imoral: coloca-se ao serviço de uma minoria afortunada,
instrumentaliza a grande massa dos trabalhadores e nega a sua autonomia. Exigir a sua moralização
conduziria, na realidade, à exigência da sua supressão, seja qual for a dificuldade da tarefa”. São palavras
do filósofo francês Yvon QUINIOU (ob. cit.).
631
Em 2003, como já lembrámos atrás, Michel Rocard bem tinha avisado que “numa economia
mundialmente aberta [esta economia dominada pelo capital financeiro especulador] não há lugar para a
regulação nem limites para a violência da concorrência”…
632
Cfr. A. GREENSPAN, A Era…, cit., 359.
425
o capital financeiro melhor para os negócios (e melhor para o mundo). Foi durante o seu
consulado como ‘papa’ do mundo financeiro que foi revogada nos EUA uma lei do
tempo do New Deal que proibia os bancos de ‘investir’ na bolsa, isto é, de jogar no
casino.633 A onda liberalizadora e desreguladora abriu as portas do casino aos bancos, e
estes, como jogadores compulsivos, queimaram na jogatina, criminosamente, o dinheiro
dos depositantes.
As suas responsabilidades foram-lhe recordadas numa Comissão do Congresso,
perante a qual, já em plena crise, Greenspan prestou declarações. “O senhor – disse-lhe
o Presidente da Comissão634 - tinha autoridade para evitar práticas irresponsáveis que
conduziram à crise dos empréstimos subprime. Foi avisado por muita gente para actuar
nesse sentido. Agora a nossa economia como um todo está a pagar o preço”. Na
sequência do interrogatório, o Congressista recordou afirmações públicas de Greenspan
enquanto Presidente do FED 635
e perguntou-lhe se se sentia pessoalmente responsável
pelo que aconteceu. Greenspan não respondeu directamente e o Presidente da Comissão
continuou a citá-lo: “Eu tenho uma ideologia. O meu juízo é que mercados livres e de
concorrência são, de longe, o melhor modo de organizar as economias. Tentámos as
regulações. Nenhuma delas funcionou minimamente”. Como quem diz: eu tenho uma
ideologia e actuei em conformidade com ela, porque só o mercado livre funciona e
merece crédito.
Foi a vez de o Congressista insistir: “O senhor acha que a sua ideologia o
empurrou para tomar decisões que o senhor gostaria de não ter tomado?”, “O senhor
enganou-se?” Resposta de Greenspan: “Eu cometi um erro ao presumir que os interesses
próprios de organizações, especificamente bancos e outras, eram tais que constituíam o
modo mais capaz de proteger os seus próprios accionistas e as suas acções nas empresas
(…) Na realidade, um pilar crítico da concorrência e do mercado livre quebrou. E penso
que isso me chocou. Ainda não compreendi inteiramente porque é que isso aconteceu, e,
obviamente, na medida em que eu veja claro o que aconteceu e porquê, eu mudarei os
meus pontos de vista”.
633
O Glass-Steagall Act (1933), que proibiu os bncos comerciais de negociar com títulos
mobiliários, foi revogado em 1999 pelo Gramm-Leach-Bliley Act, que veio libertar o sector financeiro
das ‘peias’ da regulação. O FED, liderado por A. Greenspan, estimulou e aplaudiu a mudança. Cfr. A.
GREENSPAN, A Era…, cit, 362/363.
634
Elementos extraídos de J. CASSIDY, ob. cit., 4-6.
635 ?
Eis algumas delas: “Nada na regulação levada a cabo pelo estado a torna superior à
regulação do mercado”, pelo que “não é necessária qualquer regulação pública”, mesmo quando se trata
de “transacções de produtos derivados fora de bolsa” (“off-exchange derivative transactions”).
426
636
Só para salvar da falência as duas ‘estrelas’ do crédito hipotecário (a Fannie Mae e a Freddie
Mac) o Governo norte-americano injectou dinheiro público no valor de 200 mil milhões de dólares
(Setembro/2008), substituindo dívida privada por dívida pública. A Administração de G. W. Bush, que
sempre considerou a intervenção do estado na economia como um dos sinais da existência do império do
mal, acabaria por protagonizar a mais dispendiosa intervenção do estado na economia desde os anos
trinta. As voltas que o mundo dá…
427
Tentando ir além das bolhas especulativas e dos jogos de casino que vieram
tornar a crise indisfarçável, as causas da crise radicam na própria essência do
capitalismo e foram-se acentuando à medida que se iam consolidando os resultados da
mundialização feliz de que falam os apóstolos da política de globalização neoliberal
dominante.
Toda a construção neoliberal assenta na ideia de que o melhor dos mundos se
atinge, graças à mão invisível inventada por Adam Smith (para fazer, na história para
adultos, o papel da varinha mágica nas histórias para crianças), deixando funcionar o
mercado e confiando no crescimento económico que dele resultará espontaneamente, se
a taxa de lucro crescer, para que possa aumentar o investimento e, com ele, o
crescimento económico e o bem-estar para todos.
Esta confiança dos clássicos ingleses na tese do crescimento sem limites e da
consequente melhoria do bem-estar para todos vinha reforçada pela confiança na Lei de
Say, segundo a qual não são possíveis crises generalizadas de sobreprodução, e pela
convicção de que, em virtude de leis naturais, os salários nunca poderiam,
duradouramente, ultrapassar o valor correspondente ao mínimo de subsistência. Este o
enquadramento que justificava o paraíso liberal (o mesmo dos neoliberais dos nossos
dias).
Malthus foi o primeiro a pôr em causa a lei de Say e, depois dele, Marx e
Keynes (entre outros) vieram mostrar o que a vida confirmaria: as crises de
sobreprodução são inerentes ao capitalismo. Os neoliberais de hoje, como os
neoliberais de ontem, entendem, porém, que as crises não existiriam se se deixasse o
mercado funcionar livremente, sem imperfeições (nomeadamente no mercado de
trabalho). E sustentam que as crises só poderão ultrapassar-se com base no
funcionamento do mercado livre, que provocará a baixa dos salários reais indispensável
para assegurar o equilíbrio com pleno emprego em todos os sectores da economia.
Compreende-se, assim, que o objectivo último das políticas de inspiração
neoliberal tenha sido, ao longo das últimas quatro décadas, o de baixar o nível dos
salários reais, na tentativa de parar a baixa das taxas de lucro que a crise de 1973-1975
evidenciara.
Num contexto de acentuado desenvolvimento científico e tecnológico
(rapidamente incorporado na actividade produtiva) e consequente aumento da
produtividade, tratava-se de fazer reverter os ganhos da produtividade em benefício do
capital, impedindo os trabalhadores de beneficiar condignamente da riqueza que
428
4.21.4. - Pois bem. Parece-nos que esta contradição é a questão central que está
por detrás da crise (desta e de todas as outras crises do capitalismo). Historicamente,
quando o medo do aumento da “animosidade contra o capitalismo e o mercado” (A.
Greenspan) atingiu níveis preocupantes, o capitalismo cedeu a algumas reivindicações
dos trabalhadores.
Como vimos, foi esta a inspiração de Keynes (preocupado, acima de tudo, em
salvar o capitalismo), foi esta a raiz do estado social e do estado-providência. Mas, com
a implosão da URSS e da comunidade socialista europeia, a contra-revolução
monetarista ganhou novo fôlego, o pensamento único conquistou mais adeptos, a
ideologia neoliberal acentuou o seu domínio, e os poderes dominantes acreditaram que
não havia razão para medos e que estavam reunidas as condições para fazer andar para
trás o relógio da história.
O peso enorme que os fundos de pensões e outros fundos de investimento, bem
como os investidores institucionais em geral adquiriram no capital accionista das
grandes empresas cotadas em bolsa é um dos aspectos da ‘financeirização’ das
economias capitalistas, especialmente depois da consolidação da “contra-revolução
monetarista”. E é um dos factores que tem contribuído para empurrar os gestores das
grandes empresas para lógicas de gestão que permitam elevados lucros a curto prazo,
lucros que não são destinados a investimento produtivo que favoreça o crescimento
económico e o emprego, antes são lançados na especulação financeira, que é a forma de
“enriquecer a dormir” (Miterrand). São estes mesmos interesses e actores que
pressionam os governos no sentido de darem primazia ao combate à inflação (para não
ficarem em risco as cotações dos valores mobiliários) e de desvalorizarem as políticas
activas de crescimento da economia, bem como no sentido do arrocho salarial, que tem
provocado a diminuição acentuada da participação dos trabalhadores (dos salários) no
valor acrescentado à escala mundial.641
641
Cfr. P.-A. IMBERT, ob. cit., e M. HUSSON, ob. cit.
431
4.22. – Perspectivas.
As previsões em Economia nunca são fáceis. Perante a situação actual, talvez
ninguém saiba o que vai acontecer.
O orçamento da União para 2010 não foi além de 1,04% do PIB comunitário. Apesar da crise,
647
em nome da qual se cortaram cerca de 2.500 milhões de euros nas despesas de coesão.
436
garantir obrigações da União ou dos Estados membros, bem como a compra directa de
títulos de dívida emitidos pela União ou pelos Estados membros.
Mas o BCE pode emprestar (e tem emprestado) dinheiro aos bancos privados,
fornecendo-lhes a liquidez de que precisam para desenvolver os seus negócios a taxas
de juro à volta de 1%, dinheiro que eles agora emprestam à Grécia, a Portugal à Irlanda
e a outros países em dificuldades a taxas que já chegaram a ultrapassar os 7%.
Diz-se que a dívida externa grega anda à roda dos 130% do PIB. Mas ninguém
fala do Japão, cuja dívida soberana ronda os 200% do PIB. Com uma diferença: é que
os credores da dívida soberana do Japão são, em mais de 90%, os próprios japoneses. O
Japão está, por isso, em condições de resolver politicamente os problemas da sua dívida
soberana. O mesmo acontece, em boa medida, na Europa, com a Alemanha e a Itália.
Na generalidade dos países, porém, os meios ao dispor da sociedade de consumo
conduziram à quase anulação da poupança privada e até ao sobre-endividamento das
famílias. Os próprios estados retiraram todos os atractivos aos instrumentos de
poupança ao alcance das pequenas bolsas (lembre-se o que se passou entre nós com os
certificados de aforro) e desistiram de desenvolver políticas sérias de estímulo à
poupança.
Acresce que as receitas neoliberais, nomeadamente a que se traduz na
independência dos bancos centrais, retiraram aos estados a possibilidade de se
financiarem através da emissão de moeda (de empréstimos concedidos pelos bancos
centrais respectivos).
As grandes empresas, em vez de fazerem poupanças com vista ao auto-
financiamento, pagam honorários faraónicos aos seus administradores e distribuem
dividendos não menos faraónicos aos seus accionistas, dinheiro que vai para os paraísos
fiscais ou é ‘investido’ nos jogos de bolsa. Em muitos países (incluindo Portugal), as
bolsas de valores não têm nada que ver com o financiamento das empresas (através da
emissão de acções ou obrigações no mercado primário), funcionando como meros
casinos para gente com muito dinheiro.
Muitos bancos, sociedades gestoras de fundos de pensões, companhias de seguros
e outras instituições financeiras utilizam muitos dos fundos que administram (incluindo
os depósitos que recebem, quando é o caso), não para financiar o investimento
produtivo, mas apostar nos jogos de casino, em operações especulativas, na aquisição de
‘produtos estruturados’ que nem eles sabem muito bem o que seja.650
dívida de jogo contraída pela banca privada, com a cooperação dos actuais credores.
650
Para evitar que tal aconteça, alguns especialistas têm vindo a advogar a vantagem de instituir
de novo (como se fez nos EUA na sequência do crash da bolsa de 1929) a separação rigorosa entre
439
Resultado: famílias, empresas, estados, estão todos nas mãos dos ‘mercados’, i. é,
do capital financeiro.
bancos comerciais e bancos de investimento, para impedir que estes últimos recebam depósitos que vão
depois utilizar na especulação, invocando depois os interesses dos depositantes (que eles desprezaram)
para justificar a intervenção salvadora do estado, ‘socializando’ as dívidas contraídas no ‘jogo’. As
mesmas preocupações ditam a sugestão de outros autores no sentido de separar claramente a função
bancária da função seguradora, impedindo os bancos de exercer actividades próprias das empresas
seguradoras. Mas não há sinais de que os políticos estejam a pensar nestas coisas. A liberdade de
circulação de capitais parece ser o valor supremo a acautelar.
651
Cfr. James K. GALBRAITH, ob cit.
440
652
“Alguém poderá duvidar de que a arquitectura neoliberal da Europa está em vias de entrar em
colapso? A alternativa é simples: radicalidade desastrosa do rigor orçamental [imposta pelo TUE e pelo
PEC] ou radicalidade construtiva do pleno emprego. Radicalidade bancária ou radicalidade social” (James
K. GALBRAITH, ob. cit.).
441
653
Esta é uma das conclusões do Grupo de Reflexão constituído no âmbito do Conselho Europeu e
presidido por Felipe González (Diário Económico, 10.5.2020, 3).
442
motores, pode ser travada. É o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que torna os
que protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos”.
Outro ponto alto desta luta para enfrentar a globalização neoliberal e para
construir alternativas viáveis tem sido o Forum Social Mundial, nascido também no
Brasil. Uma das mais importantes reuniões deste Forum teve lugar em Porto Alegre
443
Com base em elementos elaborados pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), o Forum analisou esta onda de globalização que tem
acentuado dramaticamente a desigualdade, a miséria e a exclusão social e tem
transformado a própria vida numa mercadoria como qualquer outra. E apontou
alternativas às receitas liberais e globalizadoras.
O Forum defendeu o direito dos povos à protecção das suas actividades vitais; o
direito à livre escolha do modo de valorizar o seu território e os seus recursos; o direito
a promover e a preservar a sua auto-suficiência alimentar.
Mas há uma outra face da história que importa ter em conta. Porque também é
verdade que, após o advento do capitalismo, o trabalho dos homens provocou um
enorme desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, um extraordinário
desenvolvimento do próprio homem, enquanto produtor, titular, depositário e utilizador
de ciência, de tecnologia, de informação, de conhecimento, o que faz do homem (e não
do capital) o principal (estratégico) factor de produção. Este desenvolvimento das
capacidades produtivas tem libertado o homem trabalhador do seu fardo milenar de
besta de carga; tem proporcionado ao homem trabalhador condições de trabalho mais
dignas; tem aumentado a produtividade do trabalho para níveis até há pouco
insuspeitados; tem permitido significativa redução da jornada de trabalho.
planeta. Um dia destes, talvez saibamos construir uma alternativa ao caos suicidário a
que nos querem condenar.
barco de proa festiva, alto forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão na superfície lunar”. Este é sonho alimentado pelo
desenvolvimento científico e tecnológico da humanidade. Este é o sonho que comanda
a vida, porque sempre que os homens sonham um sonho assim “o mundo pula e
avança”.
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- “Idéologies et développement scientifique”, em Revue de la Politique Internationale,
nº 372, de 5.4.1965;
- “Face à l’avenir”, em Revue de la Politique Internationale, nº 374, de 5.6.1965;
- Entrevista concedida ao Jornal do Fundão, de 7.12.1969 (reproduzida em A. J.
AVELÃS NUNES, Do capitalismo e do socialismo, cit.);
455
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
Pág.
CAPÍTULO I
1. – O comunismo primitivo 33
2. – O esclavagismo 39
3. – O feudalismo 45
3.1. – Caracterização geral 45
457
CAPÍTULO I I
DO CAPITALISMO DE CONCORRÊNCIA AO
CAPITALISMO MONOPOLISTA DE ESTADO
1. – Apresentação 183
458