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Ricardo Luis Chaves Feijó

História
do Pensamento
Econômico
De Lao Zi a Robert Lucas

4ª Edição
Amazon.
Ricardo Luis Chaves Feijó

História
do Pensamento
Econômico
De Lao Zi a Robert Lucas

SÃO PAULO (BR) / ORLANDO (USA-FL)


Amazon – 2023
© 2021 by Amazon eBook Kindle.

ISBN 9798396169104

Capa: Editora Atlas S.A.


Composição: Ricardo Luis Chaves Feijó

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Feijó, Ricardo Luis Chaves


História do pensamento econômico : de Lao Zi a Robert Lucas / Ricardo
Luis Chaves Feijó. -- São Paulo/Orlando: Amazon, 2023.
ISBN 9798396169104
1. História econômica I. Título.

01-3179 CDD-330.09

Índices para catálogo sistemático:


1. Economia : História 330.09
2. Pensamento econômico : História 330.09
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autor (Lei no 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Decreto n o 1.825,


de 20 de dezembro de 1907.

Cód.: 0407 55 122

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


Aos meus alunos.
Grandes argumentos não requerem palavras.
Chuang Zi (século IV a.C.)
Apresentação

Esta quarta edição do História do pensamento econômico: de


Lao Zi a Robert Lucas não se trata apenas de uma reimpressão. É
fruto da aplicação do livro por nós mesmos em nossas aulas de
História do Pensamento Econômico (HPE) na Universidade de São
Paulo e da experiência de alguns professores de outras Universi-
dades que utilizaram o livro como material de referência em suas
aulas e se dirigiram gentilmente a nós com sugestões de melhoria
para uma próxima edição.
O livro foi cuidadosamente reescrito ao longo de um ano, em
um processo no qual o texto foi melhorado sem descuidar de uma
única vírgula. Em especial, estivemos atento às suas passagens mais
formais e matemáticas, a fim de não deixar passar nada sem a
devida correção. Pensamos que, agora, o público que prestigiou as
edições anteriores terá em mãos uma versão quase impecável, em
que pese erros remanescestes, pois nada nasce perfeito e a melho-
ria contínua faz parte da vida, até mesmo de um livro! Infelizmente
nem tudo pôde constar numa obra de menos de 600 páginas, em se
tratando de mais de dois mil anos de história das ideias econô-
micas. A escolha de o que priorizar na exposição se deu pela nossa
avaliação do que, no passado, foi realmente mais importante na
história dessa ciência. Por questão de economia, ainda ficamos
devendo um espaço para autores como Veblen, pouco comentado,
e os que não são nem citados, como Rosa Luxemburgo, Kalecki e
outros. Tudo é questão de priorizar um corte na HPE que não tem
como contemplar tantos nomes. Também falta um capítulo sobre a
história do pensamento econômico no Brasil, mas a omissão deve-
se à constatação da existência, no mercado editorial, de excelentes
trabalhos no tema.
Os vários cursos de HPE ministrados no campus da USP de
Ribeirão Preto, anos seguidos desde 2000, foram de suma impor-
tância na construção desta quarta edição. Agradeço as sugestões
também dos alunos que são os que mais dependem da precisão
deste livro. Ciente do impacto que a presente obra já teve e
continuará tendo nos cursos de HPE no Brasil, acreditamos que
nosso esforço contribuirá significativamente para um ensino nessa
disciplina que não se limite a priorizar certos autores de uma única
tendência, mas que forneça uma abordagem mais equilibrada,
inclusive com maior ênfase na história das teorias econômicas e em
filosofia econômica, sem descuidar, no entanto, de história social e
política.
Boa leitura!

O Autor
Sumário

1 PENSAMENTO ECONÔMICO NA ANTIGUIDADE, 1


O mundo econômico sem racionalidade própria, 1
O intervencionismo de hindus e hebreus e o laissez-faire dos
sábios chineses, 4
Platão e a sociedade ideal, 7
As noções econômicas de Aristóteles, 16
O pensamento econômico entre os romanos, 22

2 A EVOLUÇÃO DAS IDEIAS ECONÔMICAS NA IDADE MÉDIA, 31


O declínio do Império Romano e a formação de uma nova
sociedade, 31
O papel da ética cristã na organização da vida medieval, 34
O avanço tecnológico, o aparecimento das cidades e o
desenvolvimento do comércio e da atividade financeira, 37
O renascimento da filosofia e a análise econômica
escolástica, 40

3 MERCANTILISMO E CAMERALISMO: A EXPRESSÃO DA


ECONOMIA NOS SÉCULOS XVI E XVII, 51
Mudanças políticas e sociais e intervencionismo
nacionalista, 51
Etapas do pensamento mercantilista, 56
Salário, preço e juro na óptica mercantilista, 63
Cameralismo: a doutrina do mercantilismo alemão, 67

4 A ECONOMIA COMO ORDEM NATURAL, 79


O desenvolvimento das ciências naturais, 79
Novas ideias sobre política e sociedade, 95
Boisguillebert e Cantillon: precursores de Adam Smith, 101
Os fisiocratas, 107

5 ADAM SMITH, 123


Teoria moral e filosofia da ciência, 123
A vida de Adam Smith, 131
A Riqueza das Nações, 134
6 SÉCULO XIX: A ECONOMIA POLÍTICA CLÁSSICA, 169
O nascimento da escola clássica, 169
Thomas Malthus, 171
David Ricardo, 176
John Stuart Mill, 188

7 KARL MARX, 207


Vida e obra, 207
O Capital, 223
A visão da história, 239

8 SÉCULO XIX: A ESCOLA HISTÓRICA E A EVOLUÇÃO DO


MARGINALISMO E DO SUBJETIVISMO ECONÔMICO, 249
A escola histórica, 249
A crise da economia clássica, 267
Crise econômica e mudanças sociais na Inglaterra, 272
Precursores do marginalismo,275
A revolução marginalista, 294
O significado do conceito de utilidade, 305

9 O MARGINALISMO NA INGLATERRA: AS CONTRIBUIÇÕES DE


JEVONS E MARSHALL, 321
Introdução, 321
O desenvolvimento das ideias de Jevons, 322
Jevons e a crítica ao hedonismo, 336
Vida e obra de Marshall, 344
Os Princípios de Economia, 351

10 LÉON WALRAS E A TRADIÇÃO DO EQUILÍBRIO GERAL, 381


Origem das ideias de Walras, 381
O equilíbrio na troca simples, 387
Modelo de equilíbrio geral, 397
Existência de equilíbrio, 407
A convergência ao equilíbrio, 408
Teoria do equilíbrio geral aplicada ao planejamento
socialista, 411
A tradição de equilíbrio geral após Walras, 419
11 CARL MENGER, SCHUMPETER E A ESCOLA AUSTRÍACA, 433
Menger: vida, filosofia, conceitos básicos, visão da
economia, 433
Os escritos metodológicos de Menger, 446
O problema do valor econômico, 458
A escala de necessidades, 462
A teoria do preço em Menger, 468
Joseph Schumpeter, 473
A escola austríaca, 478

12 KEYNES E A EVOLUÇÃO DA MACROECONOMIA, 485


Vida e influências, 485
A Teoria Geral de Keynes, 512
Macroeconomia após Keynes, 520

ÍNDICE DE AUTORES E PERSONALIDADES, 547


1
Pensamento Econômico
na Antiguidade

O MUNDO ECONÔMICO SEM RACIONALIDADE PRÓPRIA


Fragmentos de ideias econômicas são encontrados nos mais
antigos textos ainda preservados. Escritos como o Tao-te King, de
Lao Zi, e os Analectos de Confúcio (ambos no século V a.C.) contêm
trechos em que aparecem proposições de natureza econômica. Do
Antigo Testamento da Bíblia cristã também se podem extrair
passagens de significado econômico. No desenvolvimento das
civilizações que seguiu essa era mais remota, nunca deixou de
existir, em cada época, um ou outro escritor que ao menos
tangenciasse questões dessa natureza. No apogeu das civilizações
grega e romana, e em certos períodos da Idade Média, noções e
conceitos econômicos foram propostos e discutidos. Então é difícil
precisar uma data que teria marcado o nascimento do pensamento
econômico. No entanto, a organização desse saber como corpo
teórico sistemático de ideias somente se tornou perceptível em
torno do ano de 1700 e no correspondente século que se iniciava.
William Petty, Richard Cantillon e os fisiocratas deram um trata-
mento analítico mais consistente e avançado a questões de política
econômica que, por vezes, apareciam nas reflexões de autores
escolásticos e alhures. Marco dos mais significativos nessa
evolução foi o aparecimento do monumental livro A riqueza das
nações, do escocês Adam Smith, em 1776.
Esses precursores do período clássico da economia científica
compartilham a visão do mundo econômico como um sistema
integrado de eventos que se reforçam e se sucedem mantendo certo
ordenamento. De fato, há algo de novo na noção de sistema
econômico, que não se verifica anteriormente. Que vem ao en-
contro da crença popular de que a economia como ciência teria
surgido nesse período e Smith seria, por assim dizer, o pai dela.
1
Começar o livro de história do pensamento econômico deste ponto
é tentador, entretanto não se pode passar ao largo da reflexão
econômica que lhe é anterior sem uma perda considerável do
itinerário passado das ideias nesse campo.
A época de Smith é marcada por grandes transformações na
vida econômica e social do continente europeu. Na economia,
destaca-se a revolução industrial; na esfera social, sublinham-se o
legado da Revolução Gloriosa de 1688, com a longa estabilidade da
monarquia constitucional, e a eclosão da Revolução Francesa, que
promoveu valores republicanos em substituição à antiga monar-
quia absoluta. O período assiste à consolidação das modernas insti-
tuições democráticas bem como à edificação do capitalismo
industrial nas nações mais desenvolvidas.
A ciência econômica surge com o advento do capitalismo. A
relação entre eles vai além de mera coincidência histórica. A
ciência, como sabemos, está dividida em ramos do conhecimento e
cada qual elege um objeto de estudo. No exame do objeto, suas
propriedades são observadas experimentalmente e suas regulari-
dades reconhecidas, o que possibilita explicar os acontecimentos
com base em leis científicas. A ciência busca a trama racional dos
fatos. A natureza física e biológica (e mesmo a sociedade e a
economia) só são passíveis de análise científica na hipótese da
existência de um padrão lógico de ordenamento. Um mundo
inteiramente caótico não poderia ser compreendido, pois a teoria
somente dá conta de uma realidade que se comporta de modo
regular.
Qual é o objeto de estudo da economia? Tal ciência examina os
fenômenos sociais que dizem respeito a produção, distribuição e
consumo de bens e serviços que satisfazem às necessidades
humanas. É difícil imaginar vida social sem que tais fenômenos
estejam presentes. Mesmo em sociedades mais antigas, nada
impede, a princípio, que os homens nelas inseridos possam pensar
os fatos econômicos cotidianos e elaborar assim teorias econô-
micas que os justifiquem, por mais primitivas que sejam. Vivendo
em comunidade, nossos ancestrais tinham de encontrar seu
sustento e, para tanto, trabalho e produção faziam parte do dia a
dia. O produto do trabalho coletivo era distribuído, inclusive para
os que não trabalhavam, e os bens eram, por fim, consumidos. Ora,
se os fenômenos que definem o objeto da economia já se faziam
presentes, por que a ciência econômica não se desenvolvera já por
essa época? A resposta é que para o tratamento científico não basta
existir um objeto, é preciso que ele tenha uma racionalidade

2
intrínseca, ou seja, que haja um ordenamento dos fatos segundo
uma lógica interna. Se pensarmos sobre o que regula a vida
econômica na era moderna, chegaremos a mercados e mecanismos
sociais que asseguram o funcionamento deles, como, por exemplo,
a existência de leis e de moeda intermediando as trocas. Mercados
já havia na Antiguidade, contudo, a generalização de uma sociedade
com grande número de indivíduos independentes, relacionando-se
uns com os outros basicamente pelas trocas de mercado, só aparece
com o advento do capitalismo. Nas sociedades pré-capitalistas, em
geral, há uma tradição cultural que permeia a vida econômica e que
condiciona fortemente a maneira como os homens relacionam-se
na produção e na distribuição de bens. Não predomina nelas uma
lógica de mercado a comandar os papéis individuais e nem há a
impessoalidade típica das economias capitalistas. Os indivíduos
não pautam suas ações pela busca pessoal de riqueza. O que move
as pessoas nas sociedades tradicionais pré-capitalistas é a repre-
sentação de um papel já estabelecido que lhes é fornecido ao nasce-
rem e que passa a ditar suas vidas. Elas não estão, portanto, livres
na vida econômica para alcançarem toda vantagem possível. A
participação de cada qual é ditada pela tradição que ensina as
pessoas como e para quem produzir.
A consequência maior do forte predomínio da tradição cultural
na vida econômica é a impossibilidade de se identificar uma
recorrência de fatos econômicos que possam ser racionalmente
interpretados. Os preceitos que ditam a atividade produtiva nessa
sociedade são de natureza cultural e podem não obedecer a
nenhum critério racional. Nela, a visão de um mundo transcen-
dental de mitos e deuses comanda ações econômicas ordinárias.
Com isso, as dimensões culturais permeiam o fenômeno puramente
econômico e não se pode separá-lo delas, mesmo para fins
analíticos. No período histórico em que surgem teorias econômicas
verdadeiramente abrangentes, versando sobre os principais temas
ligados à produção, à troca e às políticas públicas, os fatos econô-
micos já se encontravam ordenados na sociedade de modo bastante
independente da tradição. Isto possibilitou interpretar teorica-
mente o sistema econômico como uma esfera independente e
movida por uma racionalidade que lhe é própria.
No período anterior ao século XVIII, com raras exceções a vida
econômica esteve submetida a preceitos éticos e religiosos. A partir
de então, com o capitalismo, em maior grau os agentes são movidos
por estratégias individuais que se combinam de modo a resultar no
presumido funcionamento automático da economia a despeito das
imposições da tradição cultural. Assim, o que é oferecido pela
3
ciência econômica não se poderia esperar na concepção dos anti-
gos: um modelo teórico representativo dos fatos econômicos, no
qual se selecionam variáveis (como preços, salários, lucros e juros)
e se concebe uma estrutura de relações estáveis entre elas. A
identificação de fatos econômicos isolados e a procura por uma
lógica interna para eles, pautada em critérios como busca de
eficiência e maximização de resultados, não seria possível no
período pré-capitalista, o que não significa que nenhuma reflexão
de natureza econômica tenha sido feita até então. Na Antiguidade,
não se encontra uma teoria econômica, porém, lá existia um
pensamento econômico voltado a questões similares às que são
tratadas na ciência econômica atual, embora em um âmbito mais
restrito. Os antigos hindus, hebreus, gregos e romanos analisam
questões ligadas à propriedade dos bens, à produção e ao comércio
e procuram estabelecer a natureza deles e as normas que deveriam
regulamentar tais atividades. A interpretação dos fatos econômicos
era então de natureza moral e as indicações de preceitos tinham
por base uma visão religiosa.1
Entre os antigos, a exposição de temas econômicos aparece no
bojo das reflexões filosóficas. A preocupação era com a observância
de preceitos morais e religiosos nas tarefas práticas. Na busca de se
chegar às implicações da moral nos afazeres diários, são avaliados
certos elementos que dizem respeito à produção e à distribuição de
bens e que nos interessam de perto. Assim, eles investigam as
formas de apropriação dos bens, a riqueza, as necessidades huma-
nas, a organização da produção, a escravidão, as relações familia-
res, as vocações individuais para o trabalho, as relações de traba-
lho, a distribuição da riqueza, a natureza do comércio e dos juros, a
troca de mercadorias, o fundamento dos preços, o sistema fiscal e
tributário e outros temas pertinentes à economia.

O INTERVENCIONISMO DE HINDUS E HEBREUS E


O LAISSEZ-FAIRE DOS SÁBIOS CHINESES
Nota-se, nos povos antigos, certo preconceito contra a
atividade econômica. Para eles, a vida econômica não tinha
significado em si mesma, era tão somente um conjunto necessário

1É o que se verifica entre os povos antigos, embora em alguns momentos


a esfera econômica tenha até alcançado certa independência desses
valores, como no código comercial romano em que a lei procurava conferir
praticidade às atividades econômicas independentemente de valores e
crenças morais.
4
de procedimentos que, além de propiciarem a subsistência
humana, serviam para reforçar a divisão social, as crenças
religiosas e a retidão individual. Havia, de modo geral, uma aversão
ao trabalho artesanal, enquanto a atividade agrícola era exaltada.
Condenações morais à riqueza individual apareciam invariavel-
mente, e as atividades comercial e financeira eram vistas com
desconfiança. Em alguns povos, as crenças religiosas incentivavam
os governantes a estabelecer regulamentações, na forma de lei, que
diziam respeito a numerosos aspectos da vida diária, incluindo o
econômico. A lei não era aplicada indiscriminadamente a todos,
pois, dependia da condição social das pessoas envolvidas (nacio-
nalidade, casta etc.).
Entre os judeus, as leis mosaicas proibiam a usura, isto é, o
empréstimo a juros. Entretanto, a lei não se aplicava quando o
empréstimo era feito a estrangeiros. Outra exceção contemplava os
casos em que empréstimos eram concedidos aos pobres a fim de
ampará-los; neste caso, os juros eram controlados e os prazos de
pagamento não podiam exceder a certas datas religiosas. As leis
hindus condenavam os empréstimos se oferecidos pelas altas
castas de brâmanes e xátrias, contudo também havia exceções. Os
Vedas regulavam, para esses casos, as taxas de juros dependendo
do tipo de empréstimo, se em ouro, em grãos etc., e da casta
envolvida. Judeus e hindus também obedeciam a leis que procu-
ravam regulamentar a atividade comercial: leis que padronizam
pesos e medidas, leis contra a adulteração da mercadoria,
regulamentos condenatórios de práticas especulativas e monopó-
lios. Os rabinos proibiam a exportação de artigos considerados
essenciais e, em tempos de escassez de alimentos, não se podia
estocá-los.
Os hindus procuram controlar as estratégias individuais de
manipulação dos mercados proibindo preços acima ou mesmo
abaixo de certo padrão determinado pela noção que tinham de
preço justo.2 Existiam, entre eles, curiosas leis que controlavam as
relações de trabalho: multas severas eram aplicadas a quem não
cumprisse os contratos de trabalho, impunham-se penalidades
para o trabalhador negligente etc. Os hindus também observam leis
que estipulam uma rígida divisão de tarefas entre as castas.
Segundo essas leis, as castas elevadas, os brâmanes, deveriam
dedicar-se integralmente ao estudo e ao ensino dos livros dos
Vedas, fazer sacrifícios e receber almas. Os xátrias eram encarre-
gados da guerra e podiam coletar impostos. Os vaisias podiam

2 O conceito de preço justo seria retomado na Idade Média.


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envolver-se com atividades comerciais, os sudras eram artistas e
artesãos e, como tais, deveriam servir às castas superiores. Em
tempos de catástrofes, uma casta poderia vir a desempenhar a
função de outra, no entanto na maioria das vezes as divisões
mantinham-se rígidas.
Leis reguladoras da atividade econômica adicionais podem ser
encontradas em outras antigas civilizações, como as de chineses,
árabes, japoneses, persas e egípcios, e detalhes pitorescos seriam
então identificados. Todavia, nem sempre prevaleceu, entre os
pensadores antigos, o espírito intervencionista. O pensamento dos
filósofos chineses não justificava a intervenção governamental. Ao
contrário, vivendo em tempos de guerra e forte presença do Estado
na economia, entre os séculos VI e IV a.C., os sábios taoístas reagiam
contra o controle estatal da vida econômica. É o caso dos preceitos
de filosofia política em alguns dos poemas do lendário Lao Zi (604-
517 a.C.), que se acredita tenha vivido na China à época de Confúcio
(551-479 a.C.).
Enquanto o confucionismo firmou-se como uma literatura
ética preocupada em educar a burocracia do estado, Lao Zi despre-
za a necessidade de organização social pelo poder e prega a harmo-
nia individual como a chave para a união espontânea da sociedade.
As instituições sociais não podem interferir no caminho das
pessoas e o bom governante serve a seu povo com delicadeza, diz
ele:
“Um grande país deve ser governado como quem frita
pequenos peixes.” (Lao Tse, Tao Te King)
A ação do governo deve observar, em qualquer momento, seus
limites, de modo que passe despercebida pelos cidadãos.
“Quando um Grande Soberano governa, o povo mal sabe
que ele existe” (ibidem).
O controle do Estado dificulta o desenvolvimento individual e,
no plano econômico, leva ao empobrecimento das massas e à
proliferação de comportamentos nocivos. Em seu laissez-faire
primitivo, o sábio chinês acredita que a prosperidade do povo viria
com a ausência de proibições:
“Quanto mais proibições houver no mundo, mais o povo
empobrecerá. Quanto mais leis e decretos se publicarem, mais
ladrões e assaltantes haverá. Se não fizermos nada, o povo
evoluirá por si mesmo. Se não empreendermos nada, o povo
prosperará por si mesmo.” (ibidem)

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A interpretação de Lao Zi da sociedade é a transposição de suas
crenças filosóficas do plano individual para o coletivo. A pessoa,
isoladamente considerada, busca o reconhecimento do Tao ao
deixar-se levar pelo caminho natural, livre de inquietações e de
desejos que poderiam forçar sua verdadeira unidade. Nesse cami-
nho, ela integra-se à sabedoria cósmica e sua vida torna-se, então,
guiada pelos mesmos princípios de coesão e de harmonia da ordem
universal. Também na vida social, quando a atividade econômica
não é penalizada por impostos excessivos, o povo prospera e deixa-
se governar facilmente:
“Quando o povo passa fome, isso acontece porque os fortes
e os poderosos cobram impostos em demasia. Quando o povo
é difícil de ser governado, isso ocorre porque os poderosos se
intrometem em demasia.” (ibidem)
Na China antiga, a crença de que existiria uma ordem gerada
espontaneamente na sociedade não parou em Lao Zi. Ela teve
prosseguimento nas reflexões de Chuang Zi (369-286 a.C.) que
transformou a noção de ordem espontânea em uma concepção
anarquista da sociedade. Chuang Zi recusou o convite do impe-
rador Wei para o cargo de ministro, dizendo que todas as restrições
individuais que partem do governo distorcem a natureza humana.
Todavia, nem todos os pensadores chineses do passado distante
são contrários à ação do governo e muitos exaltam o poder do
Estado, além de procurar ditar regras a fim de ampliar tal poder.

PLATÃO E A SOCIEDADE IDEAL


Pensar em economia pressupõe uma reflexão sobre a
sociedade. Foi na busca de uma interpretação sobre a origem e a
natureza da sociedade que os filósofos gregos tocaram em temas de
interesse dos economistas. Para aqueles, o aspecto econômico da
vida social é secundário. A razão de ser das cidades (sociedades) é
explicada com base em sua função para a realização de um ideal
ético de justiça que levaria ao aperfeiçoamento da alma, de modo
que fosse liberta da condição material.
O filósofo Platão (428-347 a.C.) entende a existência dos ho-
mens em sociedade como um instrumento de salvação das almas. A
economia é um aspecto da vida social que não se separa da esfera
política e moral. Os escritos de Platão investigam a origem e a razão
de ser da sociedade. Em suas reflexões, enfatizam-se tanto o lado
material da cooperação entre os homens no mundo do trabalho e
da produção nas cidades quanto o elemento espiritual da existência
7
em sociedade. Platão é discípulo de Sócrates. Este último, no
entanto, nada escreveu sobre filosofia. Limitava-se a andar pelas
praças da Acrópole de Atenas, apregoando a existência de valores
éticos verdadeiros, num sentido absoluto, a que os homens
deveriam obedecer. Estamos no século IV a.C., uma época em que a
política atravessa período conturbado na Grécia. A democracia
entre os que são considerados cidadãos, já que uma boa parte da
população em Atenas é de escravos, triunfa sobre o antigo modelo
aristocrático, em que os dirigentes eram recrutados apenas entre
os nobres. Historicamente, é resultado do desenvolvimento comer-
cial que abalou a tradicional estrutura do poder em Atenas, baseada
na propriedade do solo e nos direitos de nascimento. Como resul-
tado, o poder é transferido dos nobres para a assembleia do povo.
Os ares democráticos em Atenas terão também implicações na
maneira de pensar dos filósofos. A antiga crença de que as leis a
serem obedecidas pelos homens são desígnios da natureza e, como
tal, não podem ser contestadas é substituída então pelo argumento
dos filósofos sofistas de que tudo é relativo. Assim, não existiria
uma noção absoluta de justiça e os elementos que regem a conduta
social seriam frutos de mera convenção entre os homens. Certas
regras, e não outras, são estabelecidas porque os homens foram
convencidos pelos mais sábios a adotá-las. Na filosofia dos sofistas,
sabedoria implica empregar bem os recursos da retórica e da arte
da persuasão, não é, portanto, um simples conceito abstrato. É essa
perspectiva relativista que é condenada por Sócrates e Platão. Na
exposição dos verdadeiros princípios éticos que iluminam a vida
humana, eles tecem importantes considerações sobre a natureza da
sociedade e assertivas de natureza econômica.
Sobre a discussão da sociedade, duas obras de Platão
interessam-nos de perto: Protágoras e A república. Na primeira, o
filósofo sofista Protágoras, dialogando com Sócrates, a fim de
justificar seu argumento de que a virtude é ensinada, narra um mito
em que os homens recebem do deus Hermes, enviado de Zeus, o
dom da virtude (respeito ao próximo) e a sabedoria ou senso de
justiça (Boxe 1.1).
No entanto, tais qualidades não lhes são inatas. Os homens não
nascem com elas e devem adquiri-las ao longo da vida no esforço
do aprendizado. O domínio humano do fogo, transmitido inadverti-
damente pelo semideus Prometeu, simbolizando a habilidade
técnica, é inato; enquanto a virtude só pode ser ensinada. Protágo-
ras dá a entender que tal tarefa caberia aos sofistas (que deveriam
ser remunerados para tanto). O importante a considerar para efeito

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de nossa análise é que, nesse mito, é condição sine qua non da vida
social certa ética entre os homens. A investigação da esfera social
fica vinculada inseparavelmente à consideração ética.

Boxe 1.1 Protágoras de Platão.

No livro, aparecem alguns personagens que dialogam entre si. No caso, o


tema inicial é o sentido da sabedoria. Tudo começa quando Sócrates é
convidado por um amigo a visitar a casa de uma personalidade conhecida. Ao
chegarem lá, encontram todos acomodados no jardim da casa ao redor de um
homem reverenciado por eles como um sábio. É o sofista Protágoras. Sócrates
aproxima-se dele e tenta convencer a todos de que o sofista nada tem a ensinar,
pois os homens sábios já nascem com sabedoria e virtude. Na primeira metade
do livro, Protágoras domina a conversa com longas preleções às breves
interpelações de Sócrates. Na outra metade da obra, ocorre uma inversão de
papéis, uma peripécia, e Sócrates toma a ofensiva, fazendo Protágoras ceder
lentamente às suas ideias. Ao argumentar porque a sabedoria deve ser
aprendida, o sofista narra um mito sobre o nascimento da cidade que é, sem
dúvida, uma das primeiras tentativas de explicação da origem da sociedade. É
a história dos irmãos semideuses Epimeteu e Prometeu. Zeus tinha-os
incumbido de distribuir qualidades entre todos os animais de modo que cada
espécie pudesse sobreviver. Epimeteu pede então ao irmão que o deixe
cumprir sozinho a tarefa. Quando depois Prometeu foi inspecionar o trabalho
feito, notou que o irmão havia cometido um engano. Gastou todo o estoque de
qualidades com os demais, nada restando a oferecer aos homens, naturalmente
fracos e desprotegidos. Para se redimir do erro e a fim de garantir a
sobrevivência da espécie humana, Prometeu revelou-lhes o segredo do fogo,
até então prerrogativa dos deuses. O fogo funciona aí como metáfora da
sagacidade técnica; do domínio da linguagem, da agricultura, de instrumentos
e armas de defesa.
Zeus, vendo o mal que Prometeu havia feito, condena-o a permanecer no
alto de um penhasco com seu fígado eternamente sendo devorado por abutres.
Era preciso, entretanto, completar o serviço de Prometeu e, assim, Zeus ordena
a Hermes que ensine os homens a viverem em sociedade, uma vez que as armas
de defesa nada valeriam se eles tivessem que lutar cada um por si contra
grupos grandes de animais. Mesmo armados, a cooperação entre os homens
seria necessária à sua sobrevivência. Surge então o desejo de viver em
sociedade, estabelecendo-se entre eles um contrato para a mútua proteção.
Zeus, conta-nos Protágoras, percebeu que a vida social só seria possível se
os homens fossem dotados de certas qualidades a fim de não se voltarem uns
contra os outros. Ele identifica duas qualidades essenciais: o respeito e a
justiça. Pede que Hermes lhas presenteie, no que este pergunta se deveria dar
a todos os homens o mesmo dom dessas qualidades ou distribuí-las de modo
desigual. “Dê-as a todos”, disse Zeus, “e deixe que todos as compartilhem; pois
as cidades não poderiam vir a existir se apenas uns poucos as compartilhas-
sem.”

9
A segunda obra, A república, aprofunda o conceito de justiça e
expõe, de modo completo, a doutrina ética e social de Platão. Antes
mesmo de apresentar tal conceito, é importante ter em mente
certos aspectos gerais da doutrina filosófica de Platão. Tal filosofia
procura refutar as crenças sofistas de que os valores são uma
convenção estabelecida na discussão e nas controvérsias públicas,
e que a verdade é relativa se cada um tem seu ponto de vista que
lhe é verdadeiro. Platão também se opõe ao materialismo dos
filósofos pré-socráticos.
O teor de suas críticas é possível ser resumido. Ele acredita no
princípio da contradição que nos diz que duas proposições opostas
não podem ambas ser simultaneamente verdadeiras. Nas discus-
sões, há de se chegar ao absoluto, isolando a proposição falsa e
apontando para a verdadeira. O materialismo era, à época de Pla-
tão, antiga herança do pensamento pré-socrático, originário da Ásia
Menor, que acreditava na existência de um substrato material
preenchendo a realidade. Todas as coisas são constituídas de um
elemento material básico. Tudo é matéria e esta é feita de um único
elemento identificado inicialmente como sendo a água, em Thales
de Mileto. Depois, outros filósofos apontam o ar, o vapor, átomos de
matéria e até fogo, como em Heráclito, como sendo o elemento
último. A escola materialista também concebia os corpos materiais
como estando em perpétuo movimento.
A oposição filosófica ao materialismo, de fato, aparecera antes
de Platão. Filósofos espiritualistas como Pitágoras e Parmênides
rejeitam a existência exclusiva do corpo material, acreditando que,
ao lado dele, reside um princípio imortal a que chamam de alma. A
alma é tida como algo absoluto, imóvel e eterno. Os eleatas, da
escola de Parmênides, acreditam que só ela pode ser pensada. O
pensamento não se fixa em corpos materiais e o movimento não
pode nunca ser entendido pelo pensamento. Dentre eles, Zenão de
Eleia construiu seus famosos paradoxos na tentativa de demons-
trar que pensar o movimento leva-nos a situações absurdas: Aqui-
les, correndo por trás, nunca alcançaria a lenta tartaruga, pois,
sempre que tivesse avançado a metade da distância que os separa,
uma nova metade ainda restaria a ser percorrida. É claro que o
aparente absurdo seria facilmente desvendado se os gregos
soubessem que séries infinitas de termos positivos podem ter soma
finita quando a razão entre termos sucessivos for menor que a
unidade, o que é o caso.
A filosofia de Platão rompe com o materialismo, ao mesmo
tempo em que resiste às correntes espiritualistas que só pensam no

10
mundo absoluto e estático. Platão remedeia a crise intelectual
trazida pela oposição de visões antagônicas. Enquanto os mate-
rialistas acreditam apenas na existência do que atinge os sentidos,
ele concebe a existência de coisas que não podem ser alcançadas
pelos sentidos. A noção de justiça, por exemplo, não remete a algo
que tenha existência corporal, mas ela compartilha do mesmo
conteúdo de realidade que os objetos materiais. Então Platão acre-
dita em um mundo fragmentado em duas esferas de realidade: o
mundo dos objetos visíveis e o mundo de ideias perfeitas (mundo
das ideias), que também pode ser pensado como o mundo do corpo
versus o mundo da alma, o mundo do movimento contra o mundo
estático, mundo de corpos imperfeitos e perecíveis, de um lado, e
mundo de entes perfeitos e imortais, de outro, e outras dicotomias
desse jaez.
Conhecida a natureza da filosofia de Platão, podemos retomar
a discussão do conceito de justiça na obra A república. Nela,
argumenta-se que a justiça é um conceito que só se realiza na vida
em sociedade e que consiste em atribuir a cada indivíduo o papel
que lhe compete por suas qualidades naturais (Boxe 1.2.). A cidade
surge porque os homens buscam satisfazer melhor suas próprias
necessidades, tirando proveito da especialização de tarefas. Viven-
do em sociedade, eles produzem para si e para os demais, e
procuram tirar o máximo proveito das trocas.
A cidade necessita de muitos especialistas em trabalhos dife-
rentes. O produto excedente do trabalho individual é trocado por
meio de atos de compra e venda. Aparecem então mercados e
moeda, “símbolo do valor das mercadorias permutadas”.
As trocas são intermediadas por mercadores, “pessoas mais
fracas de saúde, incapazes de qualquer outro trabalho[...] que se
dedicam à compra e venda, com estabelecimento aberto no merca-
do”, e negociantes “que viajam de cidade em cidade”.3

3 Até aqui as reflexões de Platão são próximas às de Adam Smith quando


ele apresenta, logo no início de A Riqueza das Nações, a descrição da
fábrica de alfinetes. Entretanto, as diferenças de enfoque são significativas
e teremos oportunidade de apontá-las mais adiante no Capítulo 5. Platão,
nas palavras do personagem Sócrates, não fornece uma explicação pura-
mente em termos de vantagens econômicas para a razão de ser das cida-
des. Embora as cidades surjam para melhor atender às necessidades
humanas, sua função essencial não é econômica, mas espiritual (ou ética).
11
Boxe 1.2 A república de Platão.

A obra organiza-se em diálogos entre personagens, tendo Sócrates ao centro. Em


visita a uma cidade por ocasião da festividade à deusa Bêndis, Sócrates resolve então, a
convite, permanecer na localidade à noite na casa de um velho e sábio homem,
enriquecido pelo comércio, de nome Céfalo. Aí também se encontra um sofista,
conhecido como Trasímaco, e os dois irmãos: Glauco, que acompanhara Sócrates na
viagem, e Adimanto, ambos argutos na arte do pensamento. A conversa flui entre eles
num tom agradável e começam por debater sobre o amor e a velhice. Céfalo diz que a
idade o faz pensar no além e leva-o, receoso de alguma punição nesse outro mundo, “a
fazer cálculos e a analisar se cometeu alguma injustiça com alguma pessoa”. A conversa
conduz inexoravelmente a discussões sobre o conceito de justiça e as opiniões sucedem-
se. Céfalo considera justo dizer a verdade, não enganar e cumprir os contratos, honrando
dívidas assumidas. A essa visão de justiça Sócrates interpõe o argumento: “se alguém,
em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo-se tornado insano,
as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhas deveria restituir, nem mesmo
concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido... como vês, justiça
não significa ser sincero e devolver o que se tomou”. A conversa torna-se mais acalorada
quando Trasímaco lança sua definição de justo como sendo o que é vantajoso para o
mais forte, já que “cada governo faz leis para seu próprio proveito”. Diz ele: “em todas as
cidades o justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído; ora,
este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos
os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte”. Sócrates, no entanto,
desarma facilmente o argumento do sofista: ora, diz ele, os governantes são passíveis de
erro e, se devemos seguir todas as ordens, em alguns casos torna-se justo fazer o que é
desvantajoso para os governantes, quando eles sem perceberem dão ordens que lhes
são danosas. O justo torna-se nesse caso fazer o injusto. Logo adiante, Adimanto lembra
que a justiça traz recompensas a quem pratica e os injustos são por vezes punidos, mas
é preciso sempre parecer justo, pois, “se eu for justo sem o parecer, não tirarei disso
nenhum proveito, mas sim aborrecimentos e prejuízos evidentes; se eu for injusto, mas
gozando de uma reputação de justiça, dirão que levo uma vida divina”. Sócrates até se
curva a esse argumento; no entanto, ele assevera que, enquanto um indivíduo pode
escamotear sua iniquidade e fazer-se passar por justo, na cidade a justiça é mais visível
e mais fácil de ser examinada. Ao examinar-se a grande justiça da cidade, em oposição à
pequena justiça dos indivíduos “encontraremos mais facilmente o que buscamos”, diz
Sócrates.
Após isso, a atenção volta-se para a causa do nascimento das cidades. Sócrates
argumenta que a causa desse nascimento é a necessidade que cada um tem de contar
com o trabalho do outro. Os homens necessitam de alimentação, moradia e vestuário e,
vivendo em sociedade, eles podem provê-las melhor se cada um se especializar em uma
função. Como a natureza não fez todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e
aptos para esta ou aquela função, eles trabalham melhor quando se exerce um só ofício.
O filósofo lança o argumento de que a divisão do trabalho leva ao aumento da eficiência
produtiva, pois é verdade que “se produzem todas as coisas em maior número, melhor e
mais facilmente, quando cada um, segundo suas aptidões e no tempo adequado, se
entrega a um único trabalho, sendo dispensado de todos os outros”. A justiça da cidade
consiste em distribuir os ofícios entre os homens de acordo com as qualidades inatas de
cada um. Os de propensão para a filosofia serão os dirigentes, os de força física e ardor
serão os guerreiros e os de força física e senso de obediência, os artesãos e agricultores.

12
A vida em sociedade possibilita a prática do bem. A vida no
bem é a vida conforme a justiça e somente a vida justa leva-nos à
libertação da alma. A organização da sociedade deve ser perfeita
para que, vivendo no bem, sejamos plenamente recompensados
após a morte. Platão apresenta então o que imagina ser a cidade
justa. É a cidade perfeita que pertence ao mundo das ideias. As
cidades que existem concretamente estão longe da perfeição.
No livro A república, Platão limita-se a mostrar a cidade ideal;
em duas obras que se seguiram, O político e Timeu, ele discorre
sobre os motivos que afastam as cidades concretas da perfeição, e
em outro livro, As leis, mostra como a legislação poderia aproximar
a realidade existencial das cidades do plano ideal. Portanto, a
sociedade descrita em A república é, antes de tudo, um modelo, e as
prescrições econômicas contidas nela devem ser pensadas como
elementos de um quadro ideal que podem ser provisoriamente
abandonados nas vicissitudes da cidade existente.
O que torna justa a cidade ideal não é a observância das noções
de justiça dos personagens Céfalo, Trasímaco e Adimanto, um tanto
quanto limitadas ao contexto do indivíduo. No pensamento platô-
nico, deve-se separar a virtude individual da virtude na cidade. No
primeiro caso, a virtude está no equilíbrio de forças entre impulsos
movidos pelo desejo material e sensual, pela fúria e pela inteligên-
cia, denominados respectivamente de concupiscência, cólera e
razão. O homem justo dá a cada parte o lugar que deve ocupar. A
proporção depende de nossa natureza: uns nascem mais fortes,
outros mais sábios, e assim por diante. A virtude individual faz
prevalecer em nós um balanço de sentimentos compatível com
nossa natureza. A cidade justa é composta por cidadãos virtuosos,
mas o que a faz justa é o modo como se distribui o conjunto de
funções que cada qual desempenha em seu interior. A virtude na
cidade consiste em distribuí-las de modo que cada qual cumpra um
papel de acordo com o que lhe é merecido em face de suas
qualidades físicas, intelectuais e morais.
Para Platão, as pessoas nascem diferentes umas das outras e
essas diferenças se mantêm. Assim, cabe à cidade atribuir direitos
e obrigações particulares a cada classe de homens, pois seria uma
injustiça tratar de modo igual os que são naturalmente diferentes,
como se pretende na democracia que sempre se degenera em
tirania. A sociedade ideal é sempre aristocrática, pois os melhores
devem governar e os inferiores submeterem-se com resignação às
suas ordens. Entre os cidadãos, há três tipos de pessoas: os que
vivem na sabedoria exercida pela contemplação e que sabem domi-

13
nar suas paixões são os governantes; os guerreiros, que ainda
mantêm grande sabedoria, mas que se destacam pela força física e
pelo ardor e doçura de sentimentos, já que devem ser intrépidos
contra os inimigos e cortês com os concidadãos. Finalmente, temos
os agricultores e artesãos em que predominam a força física e o
senso de obediência. Os ditames da organização social e econômica
da cidade estão todos voltados à obtenção da ordem hierárquica
entre os homens.
Algumas condições lógicas devem ser observadas a fim de que
todos ocupem bem seu respectivo papel social. Primeiramente, um
sistema educacional que não discrimine pelo nascimento, já que a
desigualdade de aptidões não é determinada pela hereditariedade.
As crianças são separadas dos pais e reunidas em escolas onde
educadores prestarão especial atenção nas desigualdades indivi-
duais, de modo a encaminhá-las o mais cedo possível para uma vida
de acordo com suas qualidades. A fim de que as crianças não fiquem
presas às influências paternas, é aconselhável o regime em que as
mulheres sejam compartilhadas e as crianças não reconheçam os
pais. Não há famílias nucleares e sim a plena comunidade de
mulheres e filhos. A segunda condição para a ordem justa é que
todos os cidadãos da cidade sejam amigos entre si. A amizade entre
todos é alcançada em uma organização econômica em que os bens
materiais sejam de todos, pois entre amigos tudo é comum.
O comunismo é o regime de propriedade compatível com a
cidade ideal. Além de favorecer a amizade, ele evita o enrique-
cimento excessivo de alguns. Embora seja lícito supor que os mais
sábios tenham uma vida mais confortável, o critério de mérito na
cidade ideal jamais será o da riqueza. Pelo contrário, a oligarquia,
ou governo dos ricos, é condenada e o homem rico visto com
desdém: “ser imundo que de tudo toma proveito, que cresce à
sombra e transborda em carnes supérfluas enquanto explora o
miserável chupado e assado pelo sol.” No comunismo de Platão, o
sábio terá uma vida apenas frugal, pois a riqueza poderia tirá-lo do
caminho do bem e envenenar sua alma de sensualidade e desejo de
consumo. Os guerreiros não passam por privações que poderiam
abalar saúde e vigor físico, essenciais na arte da guerra. Não
mergulham, porém, em riquezas que comprometeriam a disciplina
da vida marcial. O artesão e o agricultor mantêm sua disposição
para o trabalho se afastados de uma vida de riquezas. Assim, na

14
cidade ideal os indivíduos levam um gênero de vida conforme a
função que lhes cabe.4
Platão reconhece que a igualdade de riquezas entre os
cidadãos da cidade ideal não se verifica nas cidades concretas.
Constatada a distância entre o ideal e a realidade, ele lança-se, em
As leis, a buscar soluções que atenuem as desigualdades. A reforma
das cidades é conduzida pela imposição de leis que regulam a
atividade econômica: repartição da propriedade, sistema tributário
que busque a igualdade, confisco de fortunas, regulamentação de
heranças, controle populacional, proibição de se reter ouro e prata
e de empréstimos mediante juros elevados, controle das atividades
dos estrangeiros e das importações e exportações. Platão discorre
sobre a prioridade do Estado no controle da produção, mantendo
ou dirigindo-a diretamente e repartindo o produto; quando não for
o caso, impondo condições sobre a atividade privada, controlando
as condições em que se farão as colheitas etc. Por fim, a atividade
comercial é proibida entre os cidadãos, ficando o comércio a cargo
de estrangeiros.
No momento em que as cidades alcançarem os ideais da cidade
perfeita, elas serão plenas das quatro virtudes capitais - justiça,
sabedoria, coragem e temperança, respectivamente quando as
funções de cada cidadão correspondem às suas qualidades
pessoais, quando a cidade é dirigida pelos mais sábios, guardada
pelos mais corajosos e com os inferiores obedientes aos superiores.
Não se trata de uma democracia, mas de uma aristocracia em que a
seleção dos dirigentes é feita não pela escolha da maioria, mas
submetendo-os a provas morais e intelectuais. As prescrições de
natureza econômica são apenas meios, pensados para se alcançar
um ideal de justiça social. Não há argumentos de eficiência ou
racionalidade econômica. As pessoas na cidade perfeita não
procuram maximizar riquezas, mas realizar seu papel social com
perfeição de modo a se elevarem espiritualmente.

4 Will Durant condena os que rotulam Platão de “comunista”: “A todas


essas críticas, pode-se responder muito simplesmente dizendo que elas
destroem um homem de palha. Platão isenta, explicitamente, a maioria de
seu plano comunista; reconhece com nitidez que só uns poucos são
capazes da renúncia material que ele propõe para a sua classe dirigente;
só os guardiães irão chamar cada guardião de irmão ou irmã; só os
gradiães não terão ouro ou bens. A imensa maioria irá manter todas as
instituições respeitáveis - propriedade, dinheiro, luxo, concorrência e a
privacidade que possa desejar.” (Will Durant, A história da filosofia, p. 64).
15
AS NOÇÕES ECONÔMICAS DE ARISTÓTELES
Natural de Estagira na Grécia, Aristóteles (384-322 a.C.) foi
discípulo de Platão e em alguns aspectos sua visão filosófica
conserva a marca do mestre. Todavia, as diferenças entre ambos
são evidentes e, no que tange ao aspecto da organização econô-
mica da sociedade, eles estão em posições diametralmente opostas.
O substrato filosófico também difere e é sobre ele que
discorreremos inicialmente.
Aristóteles não acredita no “mundo das ideias” de Platão. A
realidade fica contida nos objetos sensíveis, mas nem tudo é
matéria. Há deuses e espíritos; no entanto, o mundo sobrenatural é
incomunicável e não exerce influência no mundo concreto. Além
disso, a própria matéria carrega um elemento que não nos é
percebido diretamente pelos sentidos. Trata-se de uma essência
não revelada no objeto particular, mas que é encontrada no
universal que se faz presente em todos os objetos de mesma
natureza. Os objetos saltam aos olhos em sua aparência; entretanto,
só podemos pensá-los em sua essência. A matéria pura, de que são
feitos, é incognoscível, enquanto formamos ideias com base no
conhecimento das formas dos objetos. Não podemos pensar em
madeira sem nos reportarmos à árvore, e esta é apreendida por sua
forma. Todas as coisas possuem uma natureza. Por trás da
aparência mutável e não repetitiva das coisas, há características
essenciais que particularizam sua existência. Tudo possui uma
essência que não é engendrada e não se transforma, tratando-se de
uma substância imutável e eterna.
Assim, a filosofia de Aristóteles deve ser pensada com base
nessas dicotomias entre essência e aparência ou forma e matéria. A
investigação da realidade consiste em procurar pela natureza das
coisas. Na obra Organon, a parte intitulada Analíticos Posteriores
descreve o caminho que devemos seguir a fim de alcançar o essen-
cial das coisas: começar com a observação atenta dos fatos até se
chegar à plena familiaridade com o objeto. O processo de indução
permite ao “olhar intelectual” (nous) do observador penetrar na
realidade última do objeto. A identificação da essência vem à tona
como a recordação de algo que já se sabia. A ideia de conhecimento
como lembrança tem um inequívoco componente platônico.5

5Muitos filósofos atuais discordam dessa aproximação entre Aristóteles e


Platão. A tese de um resquício platônico em Aristóleles aparece em
Randall e Woodbridge, Aristotle.
16
A explicação do mundo dá-se então ao se identificarem as
causas dos seres. Deve-se reconhecer a ação da causa com vistas a
um resultado final, o que se entende como ação teleológica (Boxe
1.3). A noção de causalidade em Aristóteles aplica-se ainda na
explicação da sociedade. Em sua obra Política, o homem é tido como
um animal social e político. Seu lugar natural é a sociedade em que
ele realiza o principal propósito da vida humana: a busca da
felicidade.

Boxe 1.3 Ação teleológica em Aristóteles.

Vejamos, a título de ilustração, a Física de Aristóteles. O espaço é


fragmentado em regiões e cada local possui uma natureza que lhe é própria.
Assim, o centro do universo, onde se encontra a Terra, é o local natural dos
elementos pesados e a esfera mais distante é a residência dos corpos leves. Há
quatro elementos, fogo, ar, água e terra, na ordem crescente de peso. Todo
movimento observado é o deslocamento de corpos em busca de seu lugar
natural; por isso, a água assenta-se sobre a terra; acima da água, está o ar e o
fogo sobe em direção ao ponto mais elevado. O movimento é compelido pela
força, mas a causa da força é o evento final em que o corpo estará repousado
em seu lugar natural.

A felicidade não é apenas o usufruto do prazer sensorial, e


nenhuma das vantagens econômicas da vida na cidade a justifica.
Tal prazer é comum também entre os animais. Duas outras
dimensões da felicidade são puramente humanas. A honra é impor-
tante por reforçar no homem sua autoestima. Todavia, somente o
prazer do pensamento racional, presente na atividade de teoria ou
contemplação, merece menção dentre os objetivos prioritários da
vida. A teoria ética identifica o bem e o justo, distinguindo-os do mal
e do injusto. Só os humanos são dotados desses sentimentos morais
porque só eles possuem o dom da palavra.
Então a cidade é pensada como um meio de tornar feliz a vida
presente do indivíduo, enquanto em Platão a cidade viabiliza a
consecução de objetivos espirituais para além da vida terrena. Em
nenhum momento Aristóteles enfatiza as cidades como um instru-
mento para satisfazer a necessidades materiais, como chega a
estabelecer Platão ao discorrer sobre a causa ou origem das cida-
des. A felicidade contemplativa, associada ao uso da razão, é a
ênfase; no entanto, a possibilidade concreta de se exercer a contem-
plação requer o consumo de bens materiais, pois é condição neces-

17
sária, mas não suficiente, para a felicidade “cuidar do corpo, ter
bons amigos e descendência feliz”.
São necessários recursos econômicos para a felicidade e, ao
reconhecer tal fato, Aristóteles lança-se a tecer considerações de
natureza econômica. A economia é uma parte mais restrita da
ciência do homem que estuda a administração do lar (oïko = casa,
nomik = leis ou princípios de administração). O ramo mais
abrangente e mais importante dessa ciência é a política e o estudo
mais específico do indivíduo pertence à ética. A cidade nunca pode
ser perfeita, pois tudo o que pertence ao mundo sublunar está
sujeito ao acaso e a mudanças imprevisíveis; o mundo perfeito e
imutável é o das esferas celestes tal como se observa na harmonia
do movimento dos astros.
Na política, Aristóteles não se posiciona a favor de um único
regime. Três deles são possíveis: a realeza, a aristocracia e a
república. O Filósofo apenas condena as formas degeneradas
desses governos, respectivamente a tirania, a oligarquia e a
democracia: a ditadura de um só, do dinheiro ou da maioria, nessa
ordem. A política fornece os princípios que norteiam o legislador,
mostrando-lhe como alcançar, em sociedade, a virtude. A economia
ensina a organizar a vida econômica de modo que se torne
compatível com a obtenção das metas supremas da humanidade.
O comunismo de Platão é criticado. Os argumentos que, para
tanto, Aristóteles lança-se a fazer merecem uma exposição, pois até
hoje são utilizados pelos liberais críticos do coletivismo. Enquanto
Platão pensava que a propriedade comunal facilitaria o entendi-
mento entre os homens, Aristóteles acredita que possuir bens
comuns é fonte de conflito. O amor e a amizade requerem a
propriedade privada. O sentimento de propriedade estimula o
amor e a afeição pelos objetos e também pelas pessoas. Para ajudar
e receber os amigos, é preciso possuir bens. A educação das
crianças no sistema comunal de Platão é combatida. Os filhos
devem estar próximos aos pais, já que nos interessamos menos
pelo que pertence a todos. Só a afeição exclusiva dos pais engendra
o amor. Aristóteles defende a família patriarcal com a mulher
submissa ao homem.
A luta interna na cidade não é resolvida pela igualdade de
riquezas. O comunismo leva à irresponsabilidade. Todo o ônus da
manutenção das novas gerações é repassado para a sociedade e,
assim, os indivíduos não refreiam o ímpeto da procriação, o que
leva à divisão infinita das fortunas pelo crescimento do número de
cidadãos. Regular a população era também uma preocupação de
18
Platão; ele pensava que as cidades deveriam ter apenas 5.040
cidadãos, número divisível por todos os inteiros de 1 a 12, exceto o
11, facilitando-se o trabalho administrativo de organizar grupos.
Aristóteles, como Platão, também propõe a eugenia com a
eliminação de crianças disformes. O que os difere é que Aristóteles
acredita que no comunismo seria impossível regular a população.
A desigualdade e, por extensão, a existência de homens ricos é
tolerável e até útil para a cidade. Os ricos pagam impostos e o
Estado necessita deles para bancar as despesas das atividades em
comum: cultos aos deuses, defesa da cidade etc. Aristóteles não
defende a supressão do Estado; pelo contrário, há amplo espaço
para o domínio público, inclusive a propriedade pública de terras.
Vê-se então que a defesa da propriedade privada em Aristóteles
não é radical. Uma última ideia vale a pena comentar: o estagirita
antecipa o argumento moderno contra a pretensão de eficácia do
comunismo ao enfatizar o comportamento oportunista dos que não
se empenham em contribuir para a sociedade, uma vez que o
regime de propriedade comum garante de antemão o usufruto da
produção social. No contexto da época, tal argumento não era tão
forte, já que de qualquer maneira os cidadãos não tinham que
trabalhar. O trabalho penoso é incompatível com os objetivos da
vida em contemplação. Não tanto o trabalho agrícola do lavrador,
que não chega a ser um impedimento para a virtude. Ele é até bom,
pois confere força ao corpo e o torna apto para a guerra, embora
prive os homens do lazer necessário à reflexão. O trabalho arte-
sanal é o mais penoso e degenerativo por estragar o corpo. O traba-
lho pode e para os cidadãos deve ser evitado sem prejuízo para a
existência, já que, de qualquer modo, os meios materiais para a
sobrevivência deles estão garantidos pela instituição da escravi-
dão.
Escravos são subumanos que não podem ser senhores de sua
própria vida e que necessitam de comando. No entanto, é preciso,
em cada caso, averiguar se o escravo em questão é de fato um ser
menos dotado. Não se pode aceitar que alguém que não mereça ser
escravo o seja. Platão desenvolveu argumentos semelhantes a favor
da escravidão, Aristóteles, porém, é mais enfático em afirmar que
em certos casos o senhor deve libertar seu escravo.
Certo conforto material é condição para a vida reflexiva do
cidadão, no entanto a procura ilimitada da riqueza é um vício que
impede o alcance da verdadeira felicidade. Aliás, indivíduos bons
são os que menos necessitam de riquezas. Somente as atividades
voltadas ao atendimento de necessidades naturais de consumo são

19
dignas de serem examinadas pela economia. Há uma distinção
importante entre economia (oikonomik) e crematística (chrema-
tistik). A ciência da administração doméstica preocupa-se com o
consumo e o aprovisionamento de riquezas na satisfação de
necessidades humanas, a crematística estuda tudo o que diz respei-
to à aquisição de riquezas, incluindo o ganho e o acúmulo de
dinheiro por empréstimo e comércio. A economia estuda a maneira
natural de aquisição de bens que consiste na apropriação pelo
homem de outros seres vivos por meio de agricultura, pecuária,
pesca e caça. A crematística estuda modos não naturais e, portanto,
condenáveis de adquirir bens via comércio e atividades financeiras.
Entretanto, nem sempre o comércio é condenável, aceitamo-lo
moralmente quando se trata de melhor atender às necessidades
humanas pela especialização do produtor e troca do excedente.
Nesse caso, a troca é um modo de atender a necessidades
diversificadas e não um meio de acumulação de dinheiro. Então
uma parte da crematística tem um caráter natural, uma vez que visa
ao atendimento de necessidades.
A intersecção dos dois conjuntos mostra que há uma área da
economia que é crematística e uma parte desta última que é objeto
da economia. Excetuando-se as condições em que comércio e
atividade financeira façam parte da economia, eles devem ser
proscritos da cidade. O uso do dinheiro para fazer trocas e retirar
disso o máximo lucro corrompe a alma humana e como tal é
condenável. Trata-se da crematística pura, o setor não econômico
da crematística. Na Política, Aristóteles explica que fazem parte
dela o comércio exterior (e, portanto, as atividades de exportação e
importação devem ficar a cargo de estrangeiros), o trabalho assala-
riado (“o fato de se vender o próprio trabalho por dinheiro”), a
formação de monopólio (“o açambarcamento de toda a quantidade
disponível de uma mercadoria a fim de a revender muito cara”) e o
empréstimo a juros, a atividade mais condenável de todas. A Figura
1.1 abaixo resume essas ideias esclarecendo as diferenças entre
economia e crematística.
Nas condições em que a troca seja necessária como parte da
economia, há de se observar a justiça no estabelecimento dos con-
tratos. Neste ponto o conceito ético de justiça, exposto em Política
e na obra Ética a Nicômaco, é aplicado nas trocas; é quando apare-
cem as reflexões aristotélicas sobre o valor dos bens que lançam as
bases do pensamento econômico que se farão presentes no
nascimento dessa ciência no século XVIII. Aristóteles concebe a
justiça em sociedade com base na noção de igualdade proporcional:

20
dar mais àqueles que merecem mais. As trocas devem obedecer a
um critério de reciprocidade.

Figura 1.1 Diagrama identificando os conceitos de economia e


crematística em Aristóteles.

ECONOMIA CREMATÍSTICA
(Natural) (Artificial)

Necessidades atendidas Trocas para o Obtenção de riquezas pelo


pela apropriação de acolhimento de comércio ou pela atividade
necessidades financeira
seres vivos

O que é considerado mérito depende da sociedade em questão,


muito embora o filósofo apregoe que a virtude deva ser o critério
maior. No caso dos contratos, a discussão da reciprocidade nas
trocas lança sementes de um aspecto fundamental do pensamento
econômico: qual o critério que regula as proporções trocadas dos
bens? Aristóteles, nesse aspecto, oscila de posição, primeiro ele
pensa que as partes devam receber de acordo com o trabalho
despendido na obtenção do bem. Tal tese antecipa o que será aceito
entre os economistas clássicos como a teoria do valor-trabalho. O
Filósofo, porém, está ciente das dificuldades dessa medida de
mérito, primeiramente pelas diferenças qualitativas entre traba-
lhos de naturezas distintas e depois pelo preconceito grego, muito
arraigado, contra o trabalho, o que torna difícil elegê-lo como
elemento de mérito regulador das trocas justas. Assim, o estagirita
parte para outro princípio que deveria regular as trocas: a impor-
tância da necessidade atendida pelo bem. Ciente de que isto envol-
ve o conhecimento de avaliações subjetivas, ele mostra-se céptico
quanto à possibilidade do uso deste critério na avaliação moral de
situações econômicas concretas. Assevera que, na prática, os bens
são avaliados pela moeda e que os valores monetários devem então

21
refletir os diferentes graus de necessidade. Não há, de fato, muito
aprofundamento na questão. Importa assinalar que Aristóteles
lança e discute superficialmente as duas principais vertentes do
pensamento econômico na explicação do valor: a teoria do valor-
trabalho e a teoria do valor-subjetivo.
Em sua obra Política, Aristóteles discorre sobre a natureza da
moeda. Descreve como ela surgiu historicamente e diz que a moeda
veio a ser adotada por sua função de meio intermediário entre os
bens: instrumento de comparação de valores e facilitador das tro-
cas. O Filósofo aponta também para a função da moeda como
reserva de valor, antecipando uma noção importante na moderna
teoria monetária.
Outra questão monetária investigada por Aristóteles per-
gunta se o valor da moeda depende do valor do metal precioso
contido nela (metalismo) ou se aquele valor provém da autoridade
de um governo que a põe em circulação (nominalismo). Entre os
defensores da interpretação nominalista da moeda aparece Platão
nas Leis. Aristóteles, sem aderir a ela, também não se sente
inteiramente convencido da posição metalista que atribui valor
intrínseco à moeda. Para ele, tanto as propriedades físicas quanto
o costume do povo e a força da lei explicam a natureza da moeda.
Outro pensador com ideias econômicas destacadas na Anti-
guidade grega foi Xenofonte (430-354 a.C). Originário de uma
família rica e influente em Atenas, foi soldado, mercenário e
discípulo de Sócrates. Autor de inúmeros tratados práticos sobre
assuntos que vão desde equitação a tributação.

O PENSAMENTO ECONÔMICO ENTRE OS ROMANOS


Anteriormente ao século V a.C., Roma à época de Aristóteles
ainda não era uma cidade importante. Sua sociedade aristocrática
separava os homens entre nobres e plebeus, havendo em cada um
dos estamentos ampla subdivisão de grupos ordenados pela
riqueza. A partir de então, essa cidade começa a desenvolver um
crescente poderio até se constituir no maior império da Antigui-
dade em extensão e riqueza, que durou cerca de mil anos até sua
completa desintegração entre 535 e 540 de nossa era. O desen-
volvimento do império romano acompanha a decadência da civili-
zação helênica pela dispersão de seus povos, instabilidade política
e guerras internas. Após ter sido subjugada pelos reis da Mace-
dônia, a Grécia é por fim anexada ao império de Roma em 146 a.C.
Toda a orla do mar Mediterrâneo teve esse mesmo destino. A

22
conquista dos povos mediterrânicos fez parte da estratégia da
aristocracia romana que, por meio de pilhagem, comércio e
deportações em massa, logrou grande êxito em seu enrique-
cimento. O poder está nas mãos dos grandes proprietários que, já
em 312 a.C., dominam a Assembleia Centurial em detrimento de
outras classes sociais. O regime republicano mantém-se coeso
graças a concessões calculadas que vão sendo paulatinamente
feitas à plebe e ao combate encarniçado contra os escravos rebe-
lados sob a liderança de Sálvio, Atenião e Espártaco, em diferentes
momentos, até a derrota definitiva desses movimentos em 71 a.C.
O período áureo de Roma ocorre na fase imperial que se estabelece
em 27 a.C. com a tomada do poder por Augusto. As liberdades
políticas são abolidas e um Senado, sem poder, fornece os quadros
dirigentes de governadores de províncias e generais.
Nessa fase, uma intensa atividade econômica verifica-se
espalhada pelo império. A elite de Roma desenvolve hábitos sofisti-
cados e de toda parte afluem bens de consumo na satisfação de seus
desejos. Desenvolve-se o comércio entre regiões, também facilitado
pela adoção de moedas para intermediar as trocas. Instituições de
crédito similares ao cheque e notas promissórias eram conhecidas
e usadas. Há banqueiros profissionais e até um banco público para
supervisionar suas atividades. O governo tem de enfrentar proble-
mas econômicos típicos da era moderna como crises monetárias e
fiscais, falta de ouro, balança comercial deficitária e inflação. Os
imperadores intervêm de muitas formas na vida econômica:
fixando preços, tabelando os juros, protegendo devedores, inspe-
cionando a qualidade dos bens nos mercados, confiscando merca-
dorias defeituosas ou estragadas. Também atuam com medidas
contra a competição estrangeira, outras que regulam o uso das vias
públicas, que proíbem a exportação de metais preciosos e até
organizando as profissões em corporações obrigatórias.
Com tudo isto, era de se esperar que o pensamento econômico
tivesse grande desenvolvimento no período, mas tal fato não
ocorreu. Pelo contrário, há uma relativa estagnação entre os
romanos em relação às reflexões políticas e econômicas dos povos
gregos. Isso se explica pelo fato de a cultura romana ter desenvol-
vido um viés bastante pragmático: os romanos são homens de ação
e estão mais preocupados com ideias concretas sobre relações
econômicas, de aplicação imediata nos negócios do dia a dia, e
menos voltados à análise puramente teórica. A principal fonte de
ideias econômicas na Roma Antiga localiza-se no sistema de leis. Há
um pensamento econômico original e fértil entre os juristas
romanos. Na elaboração das leis com impacto na economia, tais
23
juristas tendiam a dar menos importância a considerações éticas e
religiosas. A inclinação predominante era ver a esfera econômica
como dominada pela ação de forças impessoais. Tal fato representa
um afastamento em relação aos povos antigos que não separavam
a esfera econômica da dimensão ética e política; contudo, não se
pode exagerar a interpretação a ponto de se falar em teorias de
sistema econômico imbuído de racionalidade própria. A partir dos
romanos, porém, inicia-se um caminho em direção a essa perspec-
tiva, que somente se desenvolve no nascimento da economia como
ciência no século XVIII.
Contudo, não se pode negar que as concepções filosóficas e
teológicas também tiveram alguma influência no pensamento
econômico do período, mesmo levando-se em conta que pouca
filosofia original sobre política, Estado e vida social aparece entre
os romanos. Roma esteve sob a influência de duas doutrinas filosó-
ficas principais: o epicurismo e a filosofia estoica. Epicuro viveu em
fase decadente da civilização grega, entre 341 e 270 a.C., e suas
ideias refletem a percepção de um período em que os valores dessa
civilização estão sendo questionados. Assim, suas crenças desde-
nham do legado aristotélico; a filosofia política peripatética é posta
de lado e com ela a tese de que a sabedoria somente seria alcançada
com a ajuda da cidade. A ênfase recai agora no indivíduo isolada-
mente considerado em uma concepção materialista. Nela, a reali-
dade é composta de átomos materiais que se combinam mecani-
camente para formar os corpos sensíveis, como nos filósofos pré-
socráticos. Os deuses que existem são também corpos materiais, só
que inteiramente estranhos ao resto do mundo. O homem deve
abandonar o mundo da cidade e voltar-se para si mesmo, adotando
o comportamento hedonista de maximizar sua própria felicidade
ao longo da vida, pelo cultivo moderado do prazer carnal e da
amizade.6
O estoicismo foi a principal influência filosófica sobre as con-
cepções legais e o pensamento econômico de Roma. Ele conjuga
tendências idealistas e materialistas e representa, em relação ao
epicurismo, um afastamento menor de Aristóteles. A concepção
moral dos estoicos retém de Aristóteles a explicação teleológica do
mundo pelos fins que se persegue, em detrimento do modelo
mecânico de Epicuro. Aliado a isso, há uma dose de fatalismo que
apregoa a resignação diante do mundo, o que leva a uma indife-

6Esta idéia antecipa as concepções utilitaristas que serão desenvolvidas


entre os séculos XVIII e XIX e que terão certa influência no pensamento
econômico moderno.
24
rença em relação à sociedade e seus problemas. A felicidade consis-
te no domínio de desejos e paixões. O sábio deve seguir a ordem
intangível e divina da natureza, submetendo-se, por sua própria
vontade, às leis naturais. A felicidade está na adesão da razão
particular à razão presente na ordem universal. A razão soberana
da natureza revela-se diretamente à consciência individual dizendo
ao homem o que deve e o que é proibido fazer, conferindo às leis
um valor absoluto. Com o tempo, as leis romanas vão tornando-se
cada vez mais divorciadas da religião e menos guiadas pelos
costumes locais, já que são fundadas em princípios gerais de
racionalidade, ligados à noção grega de natural (jus naturale). O
conceito de lei natural terá uma grande influência na doutrina
jurídica de Roma e também entre os filósofos morais da época,
principalmente Cícero e Sêneca. No século XVIII, a ideia de lei
natural será retomada pelo pensamento dos fisiocratas e de Adam
Smith.
A ênfase da lei em elementos impessoais leva ao desenvolvi-
mento de um sistema legal científico que prioriza os direitos do
indivíduo mais do que os de comunidades como famílias e clãs.
Desenvolve-se então a liberdade de contrato e o direito individual
de dispor da propriedade. O reconhecimento legal das instituições
da propriedade privada e do contrato favoreceu os processos
econômicos e também foi importante para a evolução do pensa-
mento econômico.
O sistema de direitos privados individuais foi, de fato, a grande
contribuição intelectual dos romanos. Ideias e preceitos econômi-
cos são discutidos pelos juristas de Roma. Eles conheciam a insti-
tuição da moeda e sabiam de sua vantagem para as trocas. Eram
metalistas, pois achavam que a moeda tinha um valor intrínseco
que não poderia ser estabelecido por lei. No período romano, os
juros sempre estiveram fixados ou controlados por decretos. Já em
450 a.C., a Lei das Doze Tábuas fixa os juros, condena a usura e
busca diferenciar juros de usura. Em 357 a.C. os juros estão fixos
por lei em 10% ao ano e, dez anos depois, em 5%. Na sequência, as
leis genucianas proíbem completamente os juros. As leis
justinianas fixam os juros entre 4 e 8% de acordo com as caracte-
rísticas do empréstimo. Na prática, entretanto, a lei era letra morta,
pois as taxas de juros variavam com as condições de mercado. De
fato, as leis foram tornando-se mais flexíveis com os juros à medida
que o império enriquecia e os empréstimos generalizavam-se. Em
geral, as taxas praticadas eram muito maiores nas províncias mais
distantes, chegando a quase 50% ao ano em alguns casos.

25
O Direito Romano também tecia ideias sobre preço e valor
econômico dos bens. Havia um senso prático nessa questão. A
referida Lei das Doze Tábuas deixava os preços ao sabor do merca-
do. O preço era visto como resultante dos processos de regateio no
mercado, nos quais cada parte tendia a fazer seu ponto de vista
prevalecer. Os juristas romanos não analisam as forças que
determinam o preço final da transação, mas com o tempo surgem
discussões sobre o preço justo (verum pretium). A noção de preço
justo será depois retomada pelos padres da Idade Média e ela está
na base da ideia moderna de preço de equilíbrio. Um aprofunda-
mento na questão do valor aparece nos filósofos morais Cícero e
Sêneca. Eles reconhecem a importância do desejo humano e da
utilidade do bem na determinação do valor. Com o crescimento do
comércio e do crédito, os romanos passam cada vez mais a ver a
“utilidade” como o fundamento para o valor de troca dos bens.
Nos últimos dois séculos antes da queda do império romano, a
percepção da decadência estimula o desenvolvimento de ideias
econômicas e das iniciativas de intervenção do Estado nas ativi-
dades econômicas enquanto um paliativo para evitar o desastre
anunciado. Em 301 de nossa era, Diocleciano fixa nos contratos um
preço justo com base no custo tradicional de produção. Cresce, a
partir de então, as tentativas de limitar os contratos introduzindo
considerações éticas.
Embora encontremos no Direito Romano uma visão renovada
dos processos econômicos, menos embebida de considerações
éticas e religiosas, não se pode dizer que se tenha abandonado por
essa época o antigo preconceito e desdém contra o trabalho e a
atividade econômica. O filósofo Cícero, no século I, afirma que os
homens ocupados em trabalhos manuais são de fato inferiores e
possuem uma natureza servil. Ele também condena a atividade
crematística que visa tão somente ao lucro e ao empréstimo a juros.
Diz que “quem empresta dinheiro assassina um homem”. Cícero
posiciona-se contra o comércio e a contratação de mão de obra
assalariada. Em geral, os filósofos morais de Roma condenam os
luxos e os vícios da época, a sede de dinheiro e de riqueza, e pedem
moderação e comedimento na vida econômica. Fazem a apologia da
vida simples dedicada à agricultura, como nos tempos remotos, e
apregoam uma volta à natureza.
Entre os romanos, entretanto, constata-se algum progresso na
mentalidade antieconômica. Há a defesa da propriedade que é tida
como legítima se adquirida conforme ao direito. Mesmo a riqueza
não é tão execrada como antes. Sêneca diz que a riqueza fornece ao

26
homem sábio uma matéria para ele desenvolver suas qualidades,
desde que ganha de modo honesto. Os mercados e o processo de
formação de preços são mais bem compreendidos. Os devedores
são protegidos por lei e estão salvos contra a escravidão. Na
ausência de fraude, o comprador não pode processar o vendedor.
Há em Cícero argumentos sobre o papel da divisão do trabalho. A
escravidão, embora generalizada no império romano e embora se
encontrem filosóficos que a justifique, é condenada com base em
argumentos econômicos nos escritos que tratam dos princípios
práticos das propriedades agrícolas, dos autores romanos Varrão,
Catão e Columella.
Os romanos não acrescentaram muito ao pensamento
econômico, não desenvolveram teoria nessa disciplina. No entanto,
o estudo de suas doutrinas jurídicas e filosóficas é importante para
uma compreensão da evolução do pensamento econômico. Não se
pode negar que houve um avanço na interpretação econômica
entre os romanos e talvez falte na literatura especializada em
história das ideias um maior aprofundamento no período em
questão.

27
Questões

1. Até que ponto é possível identificar uma doutrina econômica


separada das questões políticas, éticas e religiosas entre os
pensadores da Antiguidade?
2. Por que se diz que o advento do capitalismo favoreceu a
definição de um objeto racional de estudo para a ciência
econômica?
3. Sabe-se que entre os judeus e os hindus antigos as leis que
afetavam a vida econômica não eram aplicadas igualmente a
todos os cidadãos. Comente algumas discriminações feitas por
elas.
4. O que levou judeus e hindus antigos a uma postura interven-
cionista na sociedade?
5. Qual a relação entre a defesa do laissez-faire na sociedade e a
concepção mística do Tao em Lao Zi?
6. Explique a noção platônica de sociedade como instrumento para
a salvação das almas.
7. Na lenda de Protágoras que narra a origem da vida em
sociedade, por que é preciso que Hermes presenteie os homens
com as qualidades morais de justiça e respeito?
8. Em sua obra A república, Platão narra o diálogo entre Sócrates,
Céfalo e os irmãos Glauco e Adimanto. Numa passagem inicial,
os interlocutores estão a discutir o conceito ético de justiça.
Exponha os argumentos de cada um deles e a estratégia de
refutação adotada por Sócrates. O que é a cidade justa para
Platão (Sócrates)?
9. Os gregos posicionam-se diante da questão sobre a natureza das
leis humanas formulando ao longo do tempo diferentes concep-
ções. Comente a evolução dessas ideias e o significado das leis
para Platão e Aristóteles.
10. Qual a causa apontada por Platão para o nascimento das cida-
des?
11. Como está organizada a sociedade ideal de Platão?
12. Quais os argumentos utilizados por Platão e Aristóteles na
defesa de suas concepções sobre a propriedade dos bens?

28
13. Quais as principais diferenças entre a concepção filosófica de
Platão e de Aristóteles?
14. Qual a diferença entre crematística e economia?
15. No que consiste a noção de causalidade final em Aristóteles?
16. O que Platão e Aristóteles escreveram a respeito dos escra-
vos? Havia uma condenação moral à escravidão?
17. O que deveria regular as trocas de bens para Aristóteles?
18. No Império Romano, até que ponto as concepções éticas sobre
a riqueza e a propriedade afetaram a legislação que regulava a
vida comercial do Império?
19. Como era vista a escravidão pelos autores romanos que
escreviam sobre princípios para a agricultura? Você concorda
que a escravidão coloca um limite à expansão econômica e à
inovação tecnológica?
20. Comente os principais pontos da filosofia de Epicuro.
21. Como a ideia estoicista de lei natural afetou o direito romano?
22. É correto afirmar que os romanos mantêm o antigo preconcei-
to contra a atividade econômica? O que há de novo entre eles
nesse aspecto?

29
Leitura Adicional

Literatura Primária

ARISTÓTELES. Organon, livro IV: analíticos posteriores. Lisboa:


Guimarães Editores, 1987. (Coleção Filosofia e Ensaios.)

LAO TSE. Tao Te King. São Paulo: Pensamento, 1978.

PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os


Pensadores.)

_____. Protágoras. São Paulo: Matese, 1965.

Literatura Secundária

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros


Horizonte, 1993.

DURANT, Will. A história da filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultural,


1996.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic theory


and method. New York: McGraw-Hill, 1990.

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Lisboa:


Difusão Cultural, 1994.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of


the origin and development of the economic theories of the
leading thinkers in the leading nations. New York: Macmillan,
1949. cap. 3 a 5.

RANDALL, John Herman; WOODBRIDGE, Frederick J. E. Aristotle. New


York: Columbia University Press, 1960.

30
2
A Evolução das Ideias
Econômicas
na Idade Média

O DECLÍNIO DO IMPÉRIO ROMANO E


A FORMAÇÃO DE UMA NOVA SOCIEDADE
Nos dois últimos séculos da dominação romana, o Império não
consegue mais manter a mesma força militar e o elevado grau de
coesão política e ordenamento jurídico que no passado fizeram sua
glória. Há uma estagnação econômica. As antigas instituições
entram em decadência e novo conjunto de crenças religiosas
emerge, então sob influência do cristianismo. Depois de séculos de
perseguição implacável, em 313 o imperador Constantino legaliza
o culto cristão. Ele próprio veio a aderir à nova religião. O
cristianismo convertera os europeus começando pela periferia do
Império e nas áreas rebeladas dos povos bárbaros. À medida que
legiões de bárbaros germanos e eslavos invadiam o império, suas
crenças cristãs iam alastrando-se em direção a Roma. Constantino
chegou ao poder com o apoio dos germanos e, em contrapartida,
autoriza suas práticas religiosas cristãs. A nova sociedade, que
começa a se formar a partir de então, é um amálgama de tradições
que reúne as antigas instituições romanas, os costumes dos bárba-
ros, o credo da Bíblia e aspectos de filosofia grega.
A sociedade germânica organiza-se em vilas rurais constituí-
das por grupos autossuficientes de famílias, nos quais se pratica
entre eles certa democracia e observa-se também igualdade de
riquezas. Predomina um sentimento de solidariedade, ao mesmo
tempo em que a vida econômica é controlada. Não havia moeda e o
comércio apenas era tolerado. As leis romanas, com base nos
direitos individuais de propriedade, dão lugar aos costumes

31
teutônicos que, embora também reconheçam a individualidade do
cidadão, conferem precedência aos hábitos da comunidade. A
nítida divisão entre direito público e privado, como nos romanos,
não se observa e os direitos absolutos de propriedade são substi-
tuídos por uma noção de propriedade relativa e mutável de acordo
com interesses comunitários. Observa-se uma gradação de diferen-
tes tipos de propriedade. Na atividade agrícola, o arado e outros
instrumentos pertenciam aos indivíduos, mas a posse da terra era
limitada pelo tipo e pelo uso que se fazia dela; iam de terras
comunais, sem proprietários, a glebas particulares. Não somente a
posse da terra, mas também a época do plantio e a técnica do
trabalho agrícola eram ditadas pelos costumes da vila. Em qualquer
setor da vida econômica os planos da comunidade vinham em
primeiro.
A ênfase das leis romanas nos direitos individuais aparece,
entre os germânicos, com nova roupagem, na qual mais impor-
tante que garantir o acesso à propriedade é a defesa de direitos e
obrigações pessoais estabelecidos pela natureza da vinculação à
terra. O sentimento de fraternidade germânico responde por um
tipo de sociedade rural com elevado nível de coesão garantido pelo
paternalismo e pelo sentido de obrigação para com o superior, que
vincula fortemente, de cima a baixo, os estamentos sociais. As
tradições germânicas mostram-se compatíveis com os preceitos do
cristianismo e a proximidade entre eles facilitara a difusão da
religião cristã e a construção de instituições que iriam perdurar por
mais de um milênio.
No período final do Império Romano floresce a doutrina do
cristianismo em sua fase primitiva. Os evangelhos do Novo
Testamento difundem uma ética herdada da tradição judaica.
Cristo perpetuou e difundiu tal tradição ao pregar certa indife-
rença em relação à sociedade e defender o caminho da salvação da
alma pela caridade e combate ao egoísmo dos homens ricos. A
ganância e o individualismo de uma sociedade atomizada são
substituídos pela visão idílica de unidade social por meio da
correção ética de seus membros. Cristo realça a dignidade funda-
mental do homem ao pregar a igualdade de todos perante Deus.
Isso certamente trouxe implicações em termos de uma nova visão
dos processos econômicos em que a escravidão é condenada e o
trabalho passa a ser visto como uma atividade digna. O apóstolo
Paulo fazia a exaltação ao trabalho, estabelecendo entre seu grupo
diminuto de cristãos o princípio da obrigação de trabalhar e da
repartição dos bens pela contribuição dada. O acúmulo de riquezas
é reprovado e o cristão ideal, reforçado em muitas passagens do
32
evangelho, principalmente em Lucas, deve procurar repartir seus
bens.
Seguindo os preceitos do Evangelho, os primeiros padres da
Igreja Católica defendem o regime comunista de sociedade. No
século III, Cipriano, bispo de Cartago, diz que é dever dos cristãos
partilhar os bens. No século seguinte, Basílio estende o comunismo
interpretando-o não apenas como partilha, mas sendo também a
existência de uma vida em comum ou união completa entre todos
pela fraternidade cristã, o que significa comunhão de sentimentos
e de interesses, dentro de uma comunidade inteiramente coesa
voltada ao desenvolvimento espiritual de seus membros. Há
também os que encontram um argumento econômico a favor do
comunismo cristão. O arcebispo de Constantinopla, João Crisósto-
mo, no fim do século IV, acredita que a riqueza social se desenvolve
no regime comunista impulsionada pela concórdia e união das
vontades. Destaca-se então o aparecimento, por essa época, de
argumentos favoráveis à riqueza, embora Crisóstomo fale em
enriquecimento com comedimento e frugalidade (mais a riqueza
da sociedade que a individual). A ânsia de acumular riquezas
permanece condenável, assim como a ganância, a avareza, o
egoísmo, o amor às coisas materiais e outros “pecados” econômi-
cos. Entretanto, a atitude dos padres da igreja primitiva com
relação à riqueza começa a mudar. Na Bíblia, os outros evangelhos
não condenam a riqueza enquanto tal e, de fato, Lucas é dentre os
evangelistas o que mais enfaticamente prega a igualdade entre os
homens. Valendo-se disso, e preocupados com os mais ricos e
poderosos entre os adeptos da igreja, que depositavam fartamente
o dízimo, os padres da época buscam argumentos para mostrar que
os ricos não estavam automaticamente condenados e os pobres não
haveriam de conseguir a salvação apenas pela miséria material.
Clemente de Alexandria escreve, em A salvação do homem
rico, como este pode adentrar o reino do céu, se for honrado e tiver
consciência de que sua fortuna é uma dádiva de Deus. Como tal, ela
deve ser usada na caridade, para promover o bem-estar dos
semelhantes. A riqueza não é condenável em si mesma, o impor-
tante é o uso que se faz dela. Ambrósio (339-397) também diz que
a riqueza deve ser corretamente usada. Os ricos têm um conjunto
de obrigações e devem agir de modo paternalista em relação aos
pobres.
Os cristãos acreditavam que, à medida que os convertidos à
nova religião praticassem a caridade e observassem a responsabi-
lidade de uns para com os outros, surgiria uma nova sociedade, na

33
qual se viveria em paz e felicidade com a plena comunidade dos
bens. O sonho utópico dos cristãos era reforçado pelas teses
milenaristas da Bíblia que falavam em um mundo melhor, como no
Apocalipse de João no qual se previa, em mil anos, a queda do
Império Romano e o nascimento da sociedade ideal. Nem todos os
padres, contudo, renderam-se ao milenarismo. Agostinho (354-
430), em A cidade de Deus enfatiza a regeneração das almas no
lugar das cidades. A indiferença de Cristo para com a sociedade
terrena é reforçada e transformada em uma doutrina que prega
abertamente o desinteresse a respeito da vida econômica e política.
Toda a organização social deve estar voltada ao plano espiritual. Ao
Estado cumpre a função principal de ajudar a Igreja na salvação das
almas e a própria autoridade do rei é tão somente um instrumento
a serviço da religião. A ênfase na existência do outro mundo,
entretanto, não impediu Agostinho de tecer comentários sobre a
organização da sociedade. Ele critica as instituições sociais, ao
mesmo tempo em que defende o respeito a elas. Destoando da
condenação cristã à escravidão e fazendo concessões aos romanos,
ele encontra argumentos que a justifique. A escravidão não é uma
instituição natural, pois Deus criou os homens para dominarem os
animais e não os outros homens. Entretanto, os escravos merecem
essa condição porque Deus desejou que fossem vencidos na guerra:
“Toda vitória, mesmo a que obtêm os maus, é um efeito dos
justos juízos de Deus, que humilha com ela os vencidos, quer
os queira emendar, quer os queira punir.” (Apud H. Denis,
História do pensamento econômico)
Essa era a situação do pensamento social quando na Europa
inicia-se a Idade Média.

O PAPEL DA ÉTICA CRISTÃ NA ORGANIZAÇÃO


DA VIDA MEDIEVAL
O largo período que vai da queda do Império Romano, entre os
séculos V e VI (o último imperador romano morreu em 476), ao
final do século XV, época do início das grandes navegações, delimita
o que se conhece como Idade Média. É vantajoso estudar o período
dividindo-o em duas épocas. A primeira preside às mudanças radi-
cais no estilo de vida europeu com o desaparecimento de cidades e
a acentuada ruralização. Muitas das práticas romanas são esqueci-
das e a Europa entra em período de menor fervor cultural. O poder
político pulveriza-se ao mesmo tempo em que, lentamente, vão-se
consolidando as instituições medievais. Essa etapa vai até o ano de

34
1200 e corresponde também ao apogeu da civilização islâmica.
Enquanto a Europa mergulha na Idade das Trevas, os povos árabes
conquistam grande império, que em 730 incorpora desde a Espa-
nha e o sudoeste da França, passando pelo norte da África e o
Oriente Médio, até as longínquas fronteiras da Índia e da China.
O Império Islâmico destaca-se por seu refinado padrão de vida
e por sua cultura na qual se valorizam a literatura, a ciência, a
medicina e a filosofia. Sabemos que os árabes travaram contato
com diversos povos, conheceram a sabedoria hindu, preservaram e
desenvolveram o conhecimento grego em matemática, física,
química e astronomia. É possível que eles tenham tido um papel no
desenvolvimento do pensamento econômico, porém pouco se sabe
a esse respeito. Há, de fato, carência de estudo nesse assunto. A
relevância dos árabes no pensamento econômico começa com a
grande contribuição que foi o sistema de números inventado por
eles. Os números arábicos (indo-arábicos) facilitaram as tarefas
aritméticas e certamente impulsionaram os processos de
contabilização econômica e o desenvolvimento de uma primitiva
econometria. No entanto, não se conhece uma teoria econômica
árabe, embora eles soubessem das reflexões de Aristóteles sobre o
valor dos bens. O mais importante para nossos propósitos é que os
árabes preservaram e traduziram os clássicos remanescentes da
filosofia grega. Quando em 1085 os europeus retomam Toledo, na
Espanha, e para lá afluem acadêmicos em busca dos clássicos
antigos, a Europa desperta de seu sono e recupera novamente o
gosto pela filosofia; o que viria a ter uma importância muito grande
no desenvolvimento do pensamento econômico pelos padres
escolásticos nos próximos quatro séculos que se seguiram.
A segunda etapa da Idade Média, tal como estamos caracte-
rizando, vai de 1200 a 1500. O grande divisor de águas foi o
renascimento filosófico impulsionado pelo resgate da filosofia
grega. Tomás de Aquino (1225-1274) destaca-se então como o
pensador mais influente do período. É nesse segundo período
medieval que a análise econômica terá um significativo avanço.
Antes de discuti-lo, vejamos algo mais da etapa anterior. No feuda-
lismo constata-se a divisão do poder político. Não há um Estado
centralizador forte e sim um imenso conjunto de pequenos feudos
cuja base do poder está na propriedade da terra. Os proprietários
são os senhores que estão inseridos numa malha de relações
políticas com outros senhores. No topo dela está o rei, descendente
de antigo chefe da tribo primitiva que invadiu a Europa, e o poder
da Igreja. Os senhores possuem direitos e obrigações entre eles e
cada qual cuida de seus camponeses, homens ligados à terra e
35
inteiramente submetidos aos desígnios daqueles. Não podem ser
escravizados ou expulsos da terra. Os camponeses cumprem uma
série de obrigações, como transferir uma parte da produção
agrícola, pagar impostos e trabalhar alguns dias da semana nas
terras de uso de seu senhor. Em troca, os senhores dão-lhes prote-
ção, resolvem as disputas jurídicas entre eles, oficializam casa-
mentos e garantem alguns benefícios paternalistas. Há, portanto,
um sistema de obrigações e serviços mútuos regulado pelos costu-
mes do feudo, já que não existem, como na época do Império
Romano, leis escritas.
A produção artesanal regrediu por essa época. Predomina
então a atividade agrícola em pequena escala, usando-se técnicas
agrícolas primitivas. A atividade comercial é, de início, bastante
limitada, embora ela venha a crescer a partir do século XI. A base
da organização não está no contrato, mas nas relações de status. A
palavra empenhada, a promessa verbal e a defesa da honra valem
mais do que a lei escrita.
A sociedade medieval espelhou a hierarquia social de Platão
em A república. Na base, uma classe de trabalhadores camponeses,
acima dela os senhores seculares, com sua rede de lealdades
transferíveis de um senhor a outro, e no topo os senhores ecle-
siásticos: padres e bispos que deviam lealdade permanente à Igreja
de Roma. Como no modelo social platônico, a classe superior era a
repositória e guardiã do conhecimento. Seus representantes con-
templavam o mundo natural de olho no plano espiritual e desen-
volviam ideias teológicas imbricadas em alguma filosofia. A organi-
zação da vida social refletia as crenças religiosas e, como o ensino
religioso era monopólio da Igreja, existia de fato certa centralização
de poder em Roma, entretanto não nos moldes de um império.
Além de canalizar para si o poder e a riqueza, a principal
preocupação da Igreja era fazer prevalecer os preceitos éticos
cristãos. A ética cristã ditava a organização da vida medieval e ela
servira como cimento ideológico capaz de manter coesa a Europa
Medieval e proteger seus governantes contra a insurreição da
maioria de camponeses pobres. A ética paternalista, já que difundia
o comportamento altruístico entre os ricos, contribuía para
acalmar as tensões sociais.

36
O AVANÇO TECNOLÓGICO, O APARECIMENTO DAS CIDADES E O
DESENVOLVIMENTO DO COMÉRCIO E DA ATIVIDADE FINANCEIRA
A vida econômica na sociedade medieval era sustentada pela
atividade agrícola. Os feudos eram autossuficientes e quase nunca
produziam um excedente exportável. A partir do século XI, mudan-
ças tecnológicas aumentaram significativamente a produtividade
na agricultura e, com isso, pôde-se gerar crescentemente um
excesso de produção destinado ao comércio. A atividade comercial
dá origem a uma nova classe de homens enriquecidos sem vínculos
fortes com a antiga ordem social. São os portadores do elemento
que iria dissolver lentamente as relações feudais: a substituição dos
vínculos medievais que existiam entre as pessoas, legitimados pela
fé, por relações de mercado. Contudo, não foi uma transição linear;
muitas guerras, revoltas e retrocessos ocorreriam até que o capita-
lismo comercial substituísse o feudalismo nos países mais adianta-
dos da Europa.
O início das transformações sociais ocorre com as inovações
tecnológicas que ocorreram no século XI. Verifica-se primeira-
mente uma mudança no sistema de rodízio das culturas (Boxe 2.1).
A repercussão dessa prática na produtividade agrícola representou
um aumento de 50% no rendimento das lavouras. O aumento na
produção de aveias e outras forragens permitiu a expansão da
pecuária, pois mais animais podiam ser alimentados. Soma-se a
isso a utilização do cavalo em substituição ao boi, que se generaliza
tanto na aragem da terra como no transporte. A maior agilidade do
cavalo impulsiona a produtividade agrícola. Outras tecnologias
também se desenvolvem. Os arados de osso são substituídos por
equipamentos de madeira e depois se passa a reforçá-los com
pontas metálicas pelo desenvolvimento da metalurgia. Novos tipos
de adubos são inventados aproveitando-se os excrementos e os
restos orgânicos dos animais. A construção de carroças fora melho-
rando gradualmente até se chegar, no século XIII, aos modelos de
quatro rodas com pivô no eixo dianteiro. A primeira revolução
agrícola corresponde ao período de intensas inovações tecnológi-
cas na agricultura europeia nos séculos XI a XIII.
As consequências da revolução agrícola foram dramáticas. O
excedente de produção permite a expansão demográfica na Europa
cuja população cresce cerca de três vezes no período, gerando-se
assim um excedente de mão de obra. O enriquecimento de parte da
população possibilita mercado consumidor para as manufaturas,
cuja produção estabelece-se em núcleos urbanos em torno dos
feudos ou que se formaram nas feiras ao longo de rotas comerciais
37
pelo interior do continente. Tais aglomerações eram os burgos que
viviam à mercê dos senhores feudais. Em breve, alguns desses
centros transformam-se em cidades que pouco a pouco foram se
livrando da tutela dos senhores. O fluxo de manufaturas deu um
impulso adicional ao comércio que vinha desenvolvendo-se para os
produtos agropecuários. O aperfeiçoamento das carroças, a melho-
ria das estradas e a navegação costeira e dos rios permitiram o
comércio de longa distância. No século XI, também contribuiu para
impulsionar o comércio o fato político das Cruzadas: leva de euro-
peus que se deslocavam a pé até a Terra Santa com o fito de
expulsar dela os mulçumanos.

Boxe 2.1 Evolução do sistema de rodízio na agricultura.

Antes, a gleba era dividida em duas áreas. Ao longo do ano, cultivava-se


apenas a metade da terra enquanto a outra permanecia em repouso para a
recuperação de sua fertilidade. No ano seguinte, a terra em pousio era
explorada deixando-se a outra, que tinha sido cultivada anteriormente, em
descanso. Começa então, por essa época, a plena difusão entre os agricultores
da nova técnica de duas culturas por ano. A terra é dividida agora em três
campos. No primeiro há uma cultura de outono, com colheita na primavera,
em geral plantando-se centeio ou trigo. O segundo campo é cultivado na
primavera com sementes de aveia, feijão e ervilha, para coleta no próximo
outono. O terceiro campo permanece em pousio ao longo do ano. No ano
seguinte utiliza-se a terra que estava parada, uma das terras anteriormente
cultivadas fica em repouso e assim por diante, alternando-se os campos. Com
isso, apenas um terço do terreno permanece não cultivado, sem perda da
qualidade do solo.

A ampliação do comércio foi um fator de desintegração da


sociedade medieval. Muitas das obrigações mútuas entre o campo-
nês e o senhor ou mesmo entre os senhores, ditadas pela tradição
medieval, foram sendo substituídas pelo pagamento em dinheiro
de aluguéis e taxas. Com o aumento da renda dos camponeses,
algumas das obrigações em trabalho são substituídas por paga-
mentos em dinheiro. Outros deveres, como destinar parte da
produção ao senhor, também são transformados em pagamentos.
Com isso, camponeses viram simples arrendatários, e senhores
feudais tornam-se meros proprietários de terra. Tal processo, no
entanto, só se completa ao final da Idade Média, e nos países
europeus mais atrasados ele prossegue até o século XIX.
A transição de um modelo social a outro conheceu inúmeros
sobressaltos. No fim da Idade Média, a ocorrência de catástrofes era
38
acompanhada por tentativas de reintroduzir as antigas obrigações
feudais. A reação dos camponeses, por vezes, resultava em rebe-
liões que proliferaram pela Europa. A Guerra dos Cem Anos (1337-
1453) e a Peste Negra dizimaram a população, aumentando com
isso os salários e reduzindo a renda. Isso forçava os senhores a
buscarem recuperar direitos antigos como forma de compensar o
prejuízo. O que tendia a agravar o quadro de conflitos sociais.
As grandes feiras comerciais até o século XIV permaneceram sob
a tutela do senhor feudal. No último século do período medieval,
muitas delas tinham-se transformado em verdadeiras cidades comer-
ciais que conseguiram libertar-se do senhor feudal. Na ausência do
poder externo, as cidades buscaram criar suas próprias instituições. A
mais importante eram as Guildas, corporações que regulamentavam a
produção de manufaturas e as atividades financeiras e comerciais. Tal
instituição também intervia em questões sociais e religiosas.
A atividade financeira também se desenvolve no fim da Idade
Média. A doutrina cristã era contrária a empréstimo a juros, mas a
posição oficial da Igreja foi tornando-se mais flexível. Há passagens
bíblicas, como em Deuteronômio, em que se condena o juro. Com
base na Bíblia, no século IV o Concílio de Niceia bane a prática dos
juros entre os clérigos. No reino de Carlos Magno, a proibição é
estendida a todos os cristãos. A alegação é a de que é injusta a prática
da usura, na qual se recebe mais do que é dado.7 As leis contra a usura
permaneceram por séculos. Nos séculos XII e XIII, o desenvolvimen-
to econômico estimula a atividade financeira; aparecem os primeiros
banqueiros que recebem depósitos pagando juros por eles. A
doutrina econômica de cunho moral ia cedendo à prática econômica
e a Igreja passa a influenciar os reis para que permitam os juros, mas
regulem o valor cobrado. Os limites legais variavam de 10% ao ano
na Itália a 300% anuais em Provença. Os reis também passaram a
receber fundos mediante pagamento de juros. Frederico II pagava
aos credores juros de 30 a 40% ao ano, mais do que comerciantes
pagavam pelos empréstimos recebidos dos banqueiros, algo entre
10 e 25%, dependendo do tipo de crédito.
À medida que as cidades comerciais foram adquirindo autono-
mia, seus dirigentes procuravam estabelecer um código legal
preciso em substituição ao direito consuetudinário e paternalista
do feudalismo. As transações comerciais e financeiras foram então
regulamentadas por uma legislação comercial específica. Tal legis-

7Está implícito no raciocínio o conceito ético aristotélico de reciproci-


dade nas trocas.
39
lação permite incrementar o comércio por leis de contrato, pela
legalização das representações comerciais e das vendas em leilão,
e criar novos instrumentos e operações financeiras, tais como
letras de câmbio e outros papéis negociáveis, câmaras de liquida-
ção de dívidas etc.
É de se esperar que todo esse desenvolvimento da vida econô-
mica tenha de alguma forma contribuído para uma melhor
compreensão do processo econômico e do funcionamento dos
mercados. De fato, na etapa final da Idade Média (de 1200 a 1500)
um avanço não desprezível da análise econômica aparecerá nas
reflexões dos padres escolásticos do período.

O RENASCIMENTO DA FILOSOFIA E
A ANÁLISE ECONÔMICA ESCOLÁSTICA
O pensamento econômico na Idade Média, em seu período
avançado a partir do século XIII, será desenvolvido no interior dos
mosteiros onde padres cultos irão explorar e estender as reflexões
econômicas preexistentes inspirando-se nas traduções das obras de
Aristóteles. A mescla da filosofia peripatética com o pensamento
bíblico deu origem à escola escolástica que contribuiu significa-
tivamente para o avanço da reflexão econômica à época. Embora
ainda envoltos com falácias e preconceitos antieconômicos, os
escolásticos alcançam melhor entendimento dos mercados e dos
fenômenos relacionados de preço, valor e juro. Nas questões
econômicas, como de fato em todos os aspectos da cultura e da
teologia, sobressai-se o nome de Tomás de Aquino, o mais impor-
tante pensador escolástico do século XIII, que marcaria com suas
ideias todo o período restante da Idade Média. Aquino pode ser visto
como um divisor de águas entre os dois períodos medievais que
estamos considerando. A sombra de sua autoridade em filosofia e
religião ainda hoje se faz presente. Interessa-nos diretamente a
geração de grandes mestres escolásticos entre os séculos XIII e XIV
que no bojo de seus pensamentos disseram algo sobre a economia.
Entre eles destacamos Alberto Magno, Henry de Friemar, John Duns
Scotus, Jean Buridan e Geraldo Odonis.
A estratégia de exposição de ideias dos escolásticos resulta em
construção teórica edificada por um método peculiar. Dela faziam
parte argumentos estruturados em cadeia dedutiva de raciocínios que
procuram refutar uma posição contrária, inicialmente estabelecida,
mais pela lógica, pela fé e com base na autoridade, do que buscando
sustentação na experiência. Os escolásticos preocupam-se com a
40
questão moral e ao tratarem de economia irão interessar-se pelo
aspecto da justiça, mais especificamente com a justiça das trocas ou
justiça comutativa. Como vimos, essa era também a preocupação de
Aristóteles. De fato, os padres tomam dele o conceito de reciprocidade
nas trocas como ponto de partida para se aprofundar, esclarecendo
certos pontos e corrigindo ambiguidades.
O primeiro aspecto a ser ressaltado da reflexão econômica dos
padres medievais é a distinção entre “ordem natural” e “ordem
econômica”. Isso já se fazia presente séculos antes em Agostinho. Foi
dito, no capítulo anterior, que Aristóteles não separa a economia da
ordem natural. Em analogia, Agostinho acredita que moralmente a
economia não se distingue da ordem natural. Aceita, entretanto, que
por vezes os homens são levados a valorizar as coisas e ordená-las em
importância não pelo uso do critério legítimo das necessidades
naturais, mas pela consideração do prazer gerado pela posse e
usufruto delas. Na esfera natural, os bens são ordenados pela
importância que eles possuem no atendimento de necessidades
fisiológicas naturais, enquanto no âmbito das trocas econômicas
prevalece o critério da busca do prazer sensual que não tem direta-
mente uma base natural. Há assim a distinção entre necessidade e
prazer em Agostinho, que terá uma importância no desenvolvimento
do pensamento econômico no século XIII. Agostinho fornece uma
interpretação subjetivista do valor econômico, avaliado com base nas
necessidades humanas.
A separação entre ordem natural e econômica é base de toda
reflexão medieval sobre o valor, e a maneira como determinado
pensador concebe tal distinção matiza as posições particulares de
cada qual.8 Agostinho separa as duas ordens associando-as respec-
tivamente ao atendimento de necessidades naturais ou, como algo
distinto, de prazer sensual. O grande latinista Alberto Magno
(1206-1280), professor de Tomás de Aquino, considera que as
necessidades humanas diante da escassez dos bens, a que chama de
indigentia, sejam a medida do valor na ordem natural. Entretanto,
reconhecendo a separação do econômico em relação ao natural, ele
considera que na ordem econômica as coisas são avaliadas de outra
maneira. Os bens são vendidos em relação ao trabalho (em latim
opus) desprendido em sua obtenção e, sendo assim, o valor de troca
deve corresponder ao custo de produção (em trabalho e em outras
despesas). Se o preço de mercado de um bem não cobre seus custos

8 NaÉtica a Nicômaco de Aristóteles não há tal separação e o funda-mento


do valor parte do critério de reciprocidade nas trocas, sem chegar-se a um
porto seguro nas necessidades ou no trabalho requerido para a produção.
41
de produção ele cessa de ser produzido e enquanto permanecer
abaixo deles não haverá mercadoria disponível para atender a
todos que a desejam. Com isso, Alberto Magno acrescenta uma ideia
de equilíbrio de mercado à noção primitiva de valor em Aristóteles,
enfatizando o lado do custo em detrimento do papel da demanda.
A partir do século XIII, os preços começam a ser tratados como
valores de equilíbrio. Os pensadores identificam uma variável
econômica, no caso de Magno os custos, como fonte reguladora do
valor. No entanto, muito tempo restaria até uma clara compreensão
do processo de determinação dos preços com base em um modelo
sistemático que integre as considerações de oferta e demanda.
Tomás de Aquino rompe com seu mentor ao enfatizar as
necessidades ou desejos humanos em face da escassez dos bens, ou
seja, o conceito de indigentia em Magno, como sendo o ponto de
partida do valor econômico. Aquino desconsidera as diferenças
entre necessidade e prazer, enfatizada para separar a ordem
natural da econômica e, ao negligenciar tais diferenças, ofusca a
análise anterior do fenômeno das trocas. A noção tomista de
indigentia como fundamento do valor significa indiscriminadamen-
te necessidade humana ou prazer. Alguma noção do papel da
escassez dos bens também é importante na determinação do valor.
Pode-se dizer que, em Aquino, o valor depende da necessidade ou
prazer diante da escassez. A ordem natural dos bens corresponde
ao plano do criador e discutir a importância relativa que eles
adquirem nessa ordem é prerrogativa da teologia. A economia
discute o modo como os homens avaliam a importância dos bens e
Aquino afirma que o fazem comparando as utilidades atendidas por
cada bem nos respectivos montantes em que estão disponíveis. Na
esfera econômica, e não na natural como em Magno, os preços são
determinados pela indigentia.
Magno e Aquino posicionam-se, portanto, em diferentes linhas
interpretativas do legado de Aristóteles. Contudo, as diferenças
entre eles devem ser consideradas apenas uma questão de ênfase.
Ambos interpretam os preços como um processo de ajuste ao
equilíbrio e encontram uma variável básica reguladora do valor,
custos em Magno e indigentia em Aquino, mas também consideram
o papel, embora secundário, da outra variável em foco. Mesmo
aceitando as similaridades entre eles, é importante reconhecer que
suas nuanças interpretativas da Ética a Nicômaco, ponto de partida

42
de toda análise do valor no Ocidente, deram origem a diferentes
tradições.9
A introdução por Aquino do elemento “necessidade” na
fórmula dos preços foi um primeiro passo para o desenvolvimento
de uma análise da demanda. Entretanto, ele ainda estava longe de
compreender o mecanismo de mercado. Aquino vê a economia
como submetida a fatos morais, porém já percebia que as forças de
mercado não poderiam ser analisadas exclusivamente pela
consideração da noção de justiça. Começa a aparecer por essa épo-
ca consciência crescente da autonomia da esfera econômica. Os
padres escolásticos, que sucederam e deram sequência ao tomis-
mo, irão trabalhar as considerações de Aquino até alcançarem um
melhor entendimento da demanda efetiva e do papel dos desejos
humanos.
Aquino oscila entre a compreensão da vida econômica como
sistema e uma posição moralista, conservadora e preconceituosa
da economia. Embora tenda a acreditar que o preço de mercado
seja resultado objetivo de forças impessoais, ele despreza o espírito
comercial e acredita que o Estado deva controlar a atividade do
comércio pela imposição de sanções. A base normativa para o
estabelecimento delas era o conceito de preço justo (Boxe 2.2).
Escolásticos subsequentes irão interpretar o preço de equilíbrio no
modelo tomista como resultante de um designo divino e
equivalente ao preço justo.
As considerações econômicas tomistas não se limitam à ques-
tão teórica do valor. Aquino teceu inúmeros comentários éticos
sobre a vida em sociedade. Todas as relações econômicas e sociais,
para ele, emanam da providência divina. A divisão social de traba-
lho e de papéis individuais são necessárias e, para tanto, tornam-se
indispensáveis as distinções socioeconômicas, que todos os ho-
mens devem aceitar. Os que são agraciados pela riqueza devem
usá-la a fim de prestar serviços à sociedade. A riqueza e a insti-
tuição da propriedade privada são justificadas como uma condição
para a assistência aos pobres. O homem rico que não presta
serviços à sociedade deve ser nivelado ao ladrão comum. Para
inibir a acumulação desenfreada de riquezas, a usura deve ser
proibida, pois o juro é o ganho à custa dos semelhantes. Assim,
Aquino mistura uma ética conservadora e antieconômica com uma

9A ênfase nos custos como determinante do valor encontrou a maioria de


seus continuadores na Inglaterra, e a consideração da demanda dissemi-
nou-se pelo restante do continente europeu.
43
percepção da impessoalidade da esfera econômica, o que gera
tensões em seu pensamento e elementos de difícil reconciliação

Boxe 2.2 A noção tomista de preço justo.

O preço justo deve remunerar apenas o suficiente para reproduzir a


condição tradicional e costumeira da vida do comerciante, pagando pelo custo
usual de produção, pela distância e tempo de deslocamento do bem, pelo risco
de transporte, bem como pelo tempo e esforço requeridos na busca do
comprador. Toda prática de preços acima ou abaixo do valor justo seria uma
iniquidade, uma prática ilícita que deveria ser combatida a qualquer custo. O
valor impessoal de mercado, determinado pelo balanço das indigentias,
deveria de alguma maneira corresponder ao preço justo. No entanto, a relação
entre um conceito e outro não é bem esclarecida por Tomás de Aquino.
Enquanto preço justo era definido com base nos custos, o preço teórico
fundamentava-se no lado da demanda. Mesmo priorizando a noção de custo,
nem por isso a análise do preço justo, em Aquino, esteve apoiada apenas no
lado real da produção (análise objetiva). Pois, a ênfase tomista nos custos
enfatiza os sacrifícios do vendedor pensados também em termos subjetivos,
significando sacrifícios que o produtor avalia incorrer.

Um passo importante no aprimoramento das ideias de Aquino


para uma melhor compreensão da demanda de mercado foi dado
por Henry de Friemar (1245-1274). Sabemos que a moderna noção
econômica de demanda é agregativa, no sentido de que considera o
desejo de todos os compradores que participam do mercado. No
entanto, o conceito tomista de indigentia refere-se ao indivíduo
isolado. Friemar estendeu tal conceito ao concebê-lo como uma me-
dida agregada que engloba a somatória das quantidades desejadas
por muitos indivíduos. Indo além na análise, ele diz que o valor
depende dessas quantidades em relação ao que está disponível no
mercado, ou seja, depende da demanda em face da escassez. Um
bem pode apresentar preço baixo mesmo diante de forte demanda
se houver em abundância. Friemar percebe, com clareza, que o
preço é um fenômeno que depende também da oferta e de certa
forma ele incorpora esse lado quando diz que o valor é deter-
minado pelas “necessidades comuns de algo escasso”. Entretanto,
ainda está longe de um modelo satisfatório dos mercados, por não
possuir as ferramentas desenvolvidas pelos marginalistas do sécu-
lo XIX.
A associação entre indigentia e preço justo ensejou numerosas
controvérsias na Idade Média, que procuraram reconciliar o mode-
lo teórico tomista de determinação do valor, pelo balanço das
44
indigentias, com a norma moral do preço justo. Tentativas de
revisão do conceito, no sentido de melhor adaptá-lo como preceito
moral, aparecem em Johannes Duns Scotus (1265?-1308). A crítica
de Scotus começa por questionar se o desejo deve sempre ser o
determinante fundamental do valor. Diz que algo não é precioso em
si mesmo só porque a preferência do comprador é forte. Haveria
nessa concepção um elemento de imoralidade, pois é errado querer
tirar vantagem dos desejos intensos do comprador, como quem
negocia drogas a preços elevados explorando o desejo intenso do
viciado.
O conceito de preço justo leva em conta os custos e os sacri-
fícios do vendedor e uma parte desses sacrifícios é avaliada subje-
tivamente por ele. Ora, é justo que quem incorra em maiores
sacrifícios, ou que assim pensa fazê-lo, possa receber mais pela
mercadoria. Se o preço justo levasse em conta apenas um nível
ordinário de sacrifício, de fato ele impediria que os que produzem
na condição média viessem a auferir lucros expressivos ao cobrar
preços elevados, o que é bom já que “quem lucra muito vende o que
não é seu”. Contudo, o que dizer de quem produz com sacrifícios
acima ou abaixo da média? A noção de preço justo seria deter-
minada caso a caso e uma lei que controle os preços com base nesse
critério deveria ser bastante flexível e observar cada contexto, o
que de fato não ocorria na época. Há ainda outra questão: se
concordamos com Scotus que o vendedor não pode repassar aos
preços o desejo ardente do consumidor por não ser justo, então por
que é justo que ele repasse aos preços seu próprio desejo de ser
remunerado pelo sacrifício? As questões levantadas por Scotus
levaram Jean Buridan, reitor da Universidade de Paris, a dar um
grande passo na evolução da teoria escolástica do valor.
Jean Buridan (1295?-1360?), pensador escolástico que teceu
um grande número de comentários à obra de Aristóteles, contri-
buiu para o avanço da reflexão econômica com algumas revisões de
conceitos. Ele percebe que a solução dos problemas levantados por
Scotus demandava nova interpretação da noção de desejo. Na linha
de Friemar, ele formula a noção de desejo agregado como sendo o
determinante da demanda efetiva e, em última instância, do valor
econômico, levando-se em conta também o poder de compra dos
consumidores. Diferentemente dele, entretanto, o conceito de
indigentia em Buridan também se aplica à luxúria e não apenas às
necessidades naturais. A somatória dos desejos, qualquer que seja
sua natureza, o poder de compra dos demandantes e a situação de
oferta determinam simultaneamente o estabelecimento de um
estado de negócios justo ou normal. “O mercado é o melhor juiz do
45
valor” e quando para lá acorremos consideramos a avaliação do
mercado sem intervir nele. Buridan aproxima sua análise do
modelo moderno do mercado de concorrência e sua visão viria a
afetar o pensamento econômico na Europa continental, mais que na
Inglaterra. A pobreza é a condição de quem não tem o que deseja,
mas uma vez provido de recursos financeiros o pobre consegue
sancionar sua demanda, que irá depender também da utilidade que
atribua ao bem. Buridan diz que a utilidade é uma experiência
psicológica, mas ele enfatiza também as propriedades que os bens
possuem e que nos levam a desejá-los. Sua análise conduziu, cinco
séculos depois, ao moderno conceito de utilidade marginal.
Há um entendimento crescente ao longo da Idade Média de
que o valor é um conceito que depende tanto dos custos de
produção, destacadamente do trabalho, quanto de fatores de
demanda, tais como necessidades, desejos, indigentia e renda dos
consumidores. Friemar e Buridan já caminharam em direção a uma
síntese entre os dois lados, a oferta e a demanda. No começo do
século XIV, passos importantes em direção à síntese, que só seria
completada muito depois, foram dados pelos escritos do monge
francês da ordem franciscana Geraldo Odonis (1290-1349). Ele
percebeu que o trabalho humano é um componente importante
para o valor, mas que essencialmente o valor dos bens é conferido
pela sua raridade (em latim raritas). A raritas mede o grau de
escassez do bem em face das necessidades. É o inverso do conceito
de indigentia que avalia as necessidades diante da escassez e essa
inversão tem como consequência deslocar a atenção teórica dos
desejos humanos para a disponibilidade do bem.
Para Odonis, a teoria de Alberto Magno, que via o valor na
quantidade de trabalho, é unilateral, pois não enfatiza a relação do
trabalho com a escassez, esse sim o verdadeiro fundamento do
valor. Primeiramente é preciso notar que os trabalhos diferem
entre si no que tange à sua qualidade. O que determina as nuanças
de qualidade no trabalho é o grau de eficiência a depender das
diferentes habilidades produtivas dos homens. Odonis cria uma
teoria também para explicar as diferenças de salários. Munidos de
diferentes habilidades, os homens situam-se dentro de um espectro
de eficácias relativas, adquiridas a um custo diferenciado. Como
todo tipo de trabalho é escasso, dada a escassez de habilidades, os
produtos obtidos por ele também o são. O trabalho escasso, ao
restringir a produção de bens, gera a escassez. É por isso que o
trabalho regula o valor. Assim, tanto a teoria dos custos quanto a da
demanda são componentes de um princípio único no modelo de
Odonis. Embora falte maior articulação analítica de conceitos, a
46
solução de Odonis destaca-se por procurar uma síntese de
conceitos que incorpora demanda e custos na questão do valor.
Modelos como esse, que integram os dois enfoques, cairão em certo
esquecimento no século XVIII pela ênfase unilateral dos econo-
mistas ingleses na teoria do valor-trabalho. A Figura 2.1 sintetiza a
interpretação de autores medievais feita nesta seção.

Figura 2.1 Interpretação do valor econômico nos autores


medievais.

Aristóteles
Reciprocidade

Tomás de Aquino
Alberto Magno Indigentia e preço justo
Trabalho e despesas

Henry de Friemar
John Duns Scotus Demanda agregada e
Crítica à teoria do escassez
preço justo

Jean Buridan
Demanda efetiva,
utilidade e mercado

Geraldo Odonis
Raritas e habilidades
do trabalho

47
Questões

1. Por que os costumes da antiga sociedade germânica facilitaram


a incorporação dos preceitos do cristianismo?
2. Qual o tipo de regime de propriedade defendido pelo cristianis-
mo primitivo? Cite alguns pronunciamentos bíblicos que o justi-
ficam?
3. Quais os argumentos de Clemente de Alexandria e Frei Ambró-
sio na defesa do homem rico?
4. Qual é a crença básica do milenarismo e por que se diz que Agos-
tinho não aderiu a ela?
5. Por que a representação árabe dos números foi importante para
o desenvolvimento do pensamento econômico?
6. Por que se diz que a sociedade medieval imitou o modelo de
Platão em A república?
7. Quais os avanços tecnológicos que possibilitaram o desenvol-
vimento da agricultura a partir do século XIII?
8. De que modo o avanço do comércio afetou as relações sociais na
Idade Média?
9. Quem controlava o poder nas cidades medievais? Cite algumas
medidas intervencionistas nas cidades, que prevaleceram nessa
época.
10. Como Agostinho distingue a ordem natural da ordem econômi-
ca?
11. Qual o fundamento do valor para Alberto Magno e até que pon-
to ele já compreende o mercado como um processo de equilí-
brio?
12. Explique o conceito de indigentia.
13. Como Tomás de Aquino separa ordem natural de ordem eco-
nômica?
14. Comente esta passagem do capítulo: “Aquino oscila entre uma
compreensão da vida econômica como um sistema e uma
posição moralista, conservadora e preconceituosa da econo-
mia.”
15. O que para Aquino determina o preço justo? É possível conci-
liar a teoria do preço justo com a explicação dos preços pela
indigentia?

48
16. Cite e comente as críticas de Scotus ao conceito de preço justo.
17. Qual a crítica de Scotus ao uso do desejo humano como fun-
damento do valor?
18. Comente as inovações ao conceito de indigentia feitas por
Henry de Friemar.
19. O que determina os preços para Buridan?
20. Descreva como Geraldo Odonis conjuga as influências do
trabalho, do desejo e da escassez na determinação do valor.
Por que ele é visto como um modelo de síntese entre uma
teoria do valor-trabalho e a teoria do valor com base na de-
manda?

49
Leitura Adicional

Literatura Primária

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Porto Alegre: Sulina, 1980.

BÍBLIA SAGRADA. Antigo testamento: os cinco livros do pentateuco,


deuteronômio. Parte III: O Código Deuteronômico. 21. ed. São
Paulo: Ave Maria, 1975.

Literatura Secundária

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros


Horizonte, 1993.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic:


theory and method. New York: McGraw-Hill, 1990.

HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of


the origin and development of the economic theories of the
leading thinkers in the leading nations. New York: Macmillan,
1949.

HUNT, E. K.; SHERMAN, Howard J. História do pensamento


econômico. Petrópolis: Vozes, 1985.

50
3
Mercantilismo e
Cameralismo:
a expressão da economia
nos séculos XVI e XVII

MUDANÇAS POLÍTICAS E SOCIAIS E


INTERVENCIONISMO NACIONALISTA
Em 1763, Victor de Riqueti, o Marquês de Mirabeau (1715-
1789), cunhou a expressão mercantilismo para caracterizar o
conjunto de doutrinas econômicas dominadas pelo nacionalismo e
pelo intervencionismo que, presente no final da Idade Média, ganha
impulso nos séculos XVI e XVII. O mercantilismo é a contrapartida,
no plano das ideias econômicas, do ambiente intelectual e político
que acompanha o aparecimento de Estados nacionais centralizados
e fortes. Da perspectiva histórica, ele é considerado um período de
transição entre as práticas regulamentadoras da economia no
feudalismo, marcadas por fervor ético e religioso, e o nascimento
das concepções liberais no século XVIII. Também é o momento de
germinação da economia como ciência, que se consolida neste
último século. O mercantilismo abriga um grupo bastante hetero-
gêneo de autores, espalhados em várias nações europeias, princi-
palmente Inglaterra, França, Holanda, Alemanha e Espanha. Dentre
esses escritores, suas ideias não são as mesmas; pelo contrário,
apresentam tendências individuais específicas. Há, no entanto,
pontos comuns que procuraremos identificar.
Outro aspecto a levar-se em conta é que, se situarmos a origem
das concepções mercantilistas no século XVI, constata-se, a partir
de então, uma mudança de pensamento. De início, as opiniões sobre
economia ainda apelam aos sentimentos da religião, e o efeito das
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práticas regulamentadoras defendidas por elas não é sistema-
ticamente analisado pela teoria. Aos poucos, a ordem econômica
veio a ser percebida como um cosmo dotado de ordenamento
natural e guiado por uma racionalidade própria que independe da
moralidade. Na última metade do século XVII e no início do século
seguinte, as interpretações econômicas de William Petty (1623-
1687) e Richard Cantillon (1680-1734) expressam claramente a
busca de uma analogia com as ciências naturais, o que iria marcar
o surgimento da economia científica nos fisiocratas e em Adam
Smith.
O mercantilismo representa um momento de grande ferti-
lidade do pensamento econômico, e não é à toa que, no século XX, o
célebre economista John Maynard Keynes o tenha defendido no
capítulo 19 de sua mais importante obra, A teoria geral do emprego,
dos juros e da moeda, de 1936. Seus representantes eram pensa-
dores pragmáticos voltados ao dia a dia da atividade comercial e
financeira. Não havia muita comunicação entre eles e tal fato
explica, em parte, a ausência de ferramentas analíticas comuns ou
de grandes ideias unificadoras. Embora não tenham sido muito
importantes no desenvolvimento da análise econômica, eles contri-
buíram significativamente em identificação e coleta de dados, e no
tratamento estatístico.
A doutrina mercantilista teve origem nas práticas dos reis
medievais e gradualmente foi firmando-se como racionalização das
políticas intervencionistas que já vinham sendo adotadas. À medida
que a classe de comerciantes e financistas enriquecia, ela ganhava
importância na sociedade medieval e os nobres feudais, sentindo a
ameaça ao status quo, compeliam o rei a tomar medidas para
controlar a atividade mercantil de modo a limitar o enriquecimento
com o comércio. Na Inglaterra, já no fim do século XIII, os reis
Eduardo I e III estabelecem uma série de regulamentações econô-
micas, entre elas o controle de preços e salários e a garantia de
monopólios com o fito de limitar a concorrência. Os comerciantes
submetiam-se ao controle do rei com medo de maiores
hostilidades. No século seguinte, os reis Ricardo II e Henrique II,
enquanto mantinham leis que inibiam o comércio interno na
Inglaterra, procuram estimular a concorrência internacional dos
produtos ingleses, negociando externamente, para tanto, tratados
que garantiam a supremacia dos comerciantes ingleses. Em 1391,
o “Ato de Navegação” estabeleceu o monopólio das frotas nacionais
no comércio com a Inglaterra. A classe mercantil era favorecida a
despeito do controle a que estava submetida. Em nome do
nacionalismo, o rei foi acumulando poderes ao mesmo tempo em
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que a nova classe ligada ao comércio ia conquistando seu espaço.
Isso levou, no fim do século XIV, à associação entre monarcas e
burgueses, o que garantiu a centralização do poder em detrimento
da antiga classe de senhores feudais. Surge o nacionalismo exacer-
bado nos recém-criados Estados-nações que conferiam poderes
absolutos e divinos ao rei.
O declínio do sistema feudal e o aparecimento do Estado
absoluto, desvinculado da Igreja, contribuíram para a emergência
de um ambiente intelectual favorável à nova visão econômica. Os
mercantilistas são considerados autores panfletários porque eles
estão mais preocupados em justificar diretrizes políticas do que em
fornecer explicações teóricas da economia. A política econômica de
então tinha duas preocupações: usar os recursos de que a nação
dispunha para tornar o Estado poderoso política e militarmente e
substituir a Igreja na assistência aos pobres de modo que se evite
uma convulsão social interna.
No bojo da reforma religiosa, com o aparecimento das figuras
de Lutero e João Calvino, o Estado absoluto assume a função social
da Igreja. Na Inglaterra, Henrique VIII rompe com o catolicismo
romano e a própria visão do papel do Estado é profundamente
alterada. O Estado agora não é visto como instrumento da religião
nem se pauta pelo ideal de justiça e salvação das almas. Ele não
deve subordinar-se à Igreja e não é sua tarefa converter os homens
e reprimir a maldade individual. Novos modelos de sociedade
aparecem na literatura da época. Nicolau Maquiavel (1469-1527)
reconhece, em seu livro O príncipe, que os homens são natural-
mente corruptos e, portanto, devem ser governados por um
soberano forte e, também ele, sem escrúpulos morais. Rejeitando
as sociedades existentes em sua época, Tomas Morus (1478-1535)
escreve a obra Utopia, em que imagina uma sociedade a exemplo
de A república de Platão. A sociedade fundada no homem ético,
apregoado pela religião cristã, dá lugar cada vez mais ao modelo do
homem dominado por motivações egoístas. Daí a necessidade do
Estado estabelecido por meio de um contrato social que intervenha
nos indivíduos de modo a assegurar simultaneamente o controle de
seus impulsos enquanto preserva certo grau de autonomia
individual. É a tese do Estado como contrato social de Thomas
Hobbes no Leviatã de 1651.
O poder real detinha, é verdade, uma aura de religiosidade,
contudo na prática a finalidade da ação do Estado eram coisas
materiais. Toda a política mercantilista estava voltada ao ganho
material deste. A questão econômica básica era a de como colocar

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os recursos materiais da sociedade a favor do enriquecimento e
bem-estar do Estado-nação, ou seja, como torná-lo poderoso políti-
co e economicamente.
A riqueza do Estado não era vista como a somatória das
riquezas individuais de cada cidadão. Pelo contrário, para o homem
comum era importante tão somente que ele se mantenha emprega-
do e atuante. Deveria assim sobreviver, porém sem muito conforto,
pois isto destruiria seu ímpeto de trabalho. Quase todos os autores
mercantilistas defendem os baixos salários, apenas na margem de
subsistência. Dada a suposta baixa condição moral das classes
trabalhadoras, a pobreza é útil, pois torna os trabalhadores indus-
triosos. Assim, as privações da pobreza têm um caráter terapêutico.
Se o trabalhador tivesse a oportunidade de ganhar mais, ele
provavelmente ficaria na ociosidade e na preguiça. O aumento de
salários conduziria à prática de excessos, de vícios, de consumo de
drogas, enfim de tudo o que leva à ruína moral. Assim, a assimetria
na distribuição de renda é desejável para o fortalecimento do reino
e uma distinção deve ser feita entre o enriquecimento da nação e o
da maioria dos indivíduos que a compõe. Somente o rei e a minoria
de comerciantes e apadrinhados estariam moralmente prepara-
dos para uma vida de riquezas e, no fundo, as políticas mercan-
tilistas só favoreciam a esses estamentos sociais.
A principal preocupação econômica do mercantilismo era a
busca do pleno emprego.10 A nação poderosa deveria usar todo o
seu território para atividades produtivas em agricultura, minera-
ção e manufatura. Os trabalhadores devem ser encorajados a man-
terem-se empregados. O desemprego era visto como resultado da
indolência do trabalhador e era tratado como um problema social.
Assim, os pobres desempregados deveriam ser, em tese, ampara-
dos pela sociedade. O problema do desemprego, da mendicância e
da marginalidade tornou-se particularmente importante na época
do mercantilismo. As recentes transformações pela qual passaram
as economias da Europa Ocidental não favoreceram o emprego. Um
primeiro fato que mudou a estrutura produtiva da época foi o
nascimento, no século XVI, da indústria manufatureira com o
sistema putting-out em substituição ao antigo artesanato medieval.
As utilizações de novas tecnologias, muitas delas importadas
da China, como o astrolábio e a bússola, propiciaram as grandes
navegações a partir do final do século XV. Com ela e valendo-se da
descoberta da pólvora, nações distantes foram pilhadas, povos

10 Isso explica a simpatia que Maynard Keynes lhe tinha.


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escravizados e os mares tomados pela pirataria. Novos fluxos de
mercadorias vindas de quase todas as regiões do mundo circulam
pela Europa. O comércio conhece então um novo impulso, princi-
palmente o comércio entre nações. Na Inglaterra, os ramos do
artesanato voltados às exportações são cada vez mais dominados
pelos grandes mercadores. Em pouco tempo, tais mercadores
passam a controlar o suprimento de matérias-primas, asseguran-
do assim posições monopolistas. Isso se dá pelo monopólio das
importações, por monopólios internos concedidos pelos reis ou
pela posse das propriedades do campo por meio do cercamento das
terras. Os camponeses arrendatários são expulsos para as cidades
e a produção de subsistência de alimentos substituída pela criação
de ovelhas que fornecem lã à indústria. O domínio da oferta de
matéria-prima confere aos grandes comerciantes o poder de
controlar toda a cadeia do processo produtivo. O antigo artesão,
que antes vendia o produto acabado e auferia seu lucro, passa a
trabalhar por encomenda, recebendo uma provisão de matérias-
primas e sendo pago pela entrega do produto semielaborado
dentro de uma rígida especificação contratual. Assim, o mercador
pôde concatenar várias manufaturas domésticas independentes,
como se fosse uma linha de produção, retirando encomendas de
uma e entregando-as a outras para uma nova fase da produção, ao
longo de pequenas manufaturas dispersas pelas áreas rurais.
Os artesãos mais pobres não conseguem sobreviver e viram
simples assalariados. As manufaturas sobreviventes procuram
assegurar posições monopolistas. Para tanto, amparam-se legal-
mente nas Guildas que estabelecem controles e barreiras prote-
cionistas, tais como a especificação dos regimes de aprendizado,
privilégio e isenções para os filhos de artesãos bem estabelecidos,
taxas para admissão no negócio etc. As funções regulamentárias
das Guildas acabam sendo transferidas para o Estado. Em 1563, a
Inglaterra decreta o Estatuto dos Artífices, que substitui e padro-
niza para todo o reino as normas da manufatura, dentre elas as que
limitam os aumentos de salários, bem no espírito do mercantilismo.
Na França, o ministro J. B. Colbert impõe leis que regulamentam os
métodos de produção e a qualidade das matérias-primas e dos
produtos. Em 1666, Colbert normatiza a fabricação de tecidos em
Dijon com penalidades severas para o transgressor.
Havia uma relação de ajuda mútua entre o Estado absoluto e
os produtores. Ao mesmo tempo em que aquele controlava os
processos de produção e impunha toda sorte de barreiras e impos-
tos, os grandes comerciantes lucravam com as proteções. A ênfase
recaía na conquista do comércio internacional como fonte de enri-
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quecimento do Estado. Enquanto isso, a maioria do povo ficava à
margem do processo. De 1500 a 1600, há expressivo crescimento
numérico da população europeia. As tensões no campo dão ensejo
a conflitos sociais violentos, e revoltas camponesas generalizam-se
pela Europa. Quase 90% da população rural é expulsa para as
cidades. Parte dela é arregimentada como força militar ou como
colonos das novas terras além-mar. Boa parte, entretanto, perma-
nece ociosa. Em 1531 e 1536, o Estado inglês promulga leis para
acabar com a mendicância que havia adquirido proporções alar-
mantes. As leis discriminam os pobres com direito a mendigar:
deficientes físicos e inválidos em geral; e autorizam as paróquias a
angariar donativos espontâneos a fim de amparar os pobres de sua
jurisdição. Tendo fracassado em diminuir o número de mendigos,
o Estado inglês decreta a Lei dos Pobres, em 1601, que prevê a
arrecadação de um imposto específico para acabar com a
indigência e determina quem deve receber assistência e de que
forma. Ela promete ainda prisão para os vagabundos incorrigíveis.
O paternalismo exercido pela igreja medieval é substituído
pela ação do Estado. Não há uma busca deliberada de melhorar a
condição social dos pobres, trata-se apenas de amparar os margina-
lizados visando coibir os focos de rebelião popular e mesmo de
criminalidade. Até certo ponto tais políticas foram bem-sucedidas,
à custa de rigorosa repressão. Ao longo do período, os mercantilis-
tas, em vez de considerarem o crescimento populacional um
problema, estavam a defender e encorajar uma grande população
como forma de fortalecimento do reino.

ETAPAS DO PENSAMENTO MERCANTILISTA


No início do século XVI, verifica-se na Europa um renas-
cimento intelectual que consistiu na incorporação dos antigos
valores estéticos e culturais dos gregos. Isso certamente impul-
siona o pensamento em várias áreas. Em economia, não houve no
período muita continuidade com as reflexões escolásticas, pois a
própria maneira de interpretar a vida econômica passou a ser
outra. As reflexões teóricas sobre o valor dos bens dão lugar às
considerações pragmáticas sobre o comércio. O principal problema
econômico que vinha assolando a Europa nos últimos dois séculos
era a insuficiência de dinheiro em circulação para sancionar o
aumento das trocas. A oportunidade propiciada pelas colônias para
o afluxo de metais preciosos parecia não só resolver o problema,
mas garantir às potências colonizadoras possibilidade ímpar de
estimular a produção interna e, com isso, enriquecer o reino. A
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maior oferta monetária deveria estimular as economias, o que é
basicamente correto se imaginarmos que elas estavam trabalhando
abaixo do pleno emprego e que as pressões inflacionárias não
ocorreriam tão cedo.
Isso levou os primeiros autores mercantilistas do século XVI a
uma associação simplista entre moeda e riqueza, acreditando-se
que a primeira levaria automaticamente a um aumento da oferta de
bens reais na economia. A concepção denominada de bulionismo
ou metalismo confundia moeda com riqueza, embora seus autores
não fossem tão ingênuos como dá a entender Adam Smith, no livro
IV de A riqueza das nações. A consequência da interpretação
bulionista era a defesa de toda medida que contribuísse para o
acúmulo de ouro e prata dentro das fronteiras do país. O comércio
internacional era visto como meio para aquisição de metais
preciosos e todas as medidas restritivas que resultassem em
aumento das entradas de metais seriam desejáveis. Os bulionistas
não perceberam as oportunidades, oferecidas pelo comércio entre
nações, de se aumentar a produção total de todos os países envol-
vidos com a especialização de cada um, fato plenamente identi-
ficado no século XVIII. Eles viam o comércio internacional como um
“jogo de soma zero”, isto é, o que um ganha o outro perde, e não
como um processo criador de riquezas para ambas as partes.
A fórmula do bulionismo era de uma simplicidade comovente:
proibir toda exportação de ouro e prata e manter o estoque interno
total de metais preciosos em circulação, impedindo que as pessoas
os retivessem para a confecção de adornos ou como forma de
poupança.11 Dos economistas espanhóis que escreveram a favor
dessa fórmula, destacam-se Luís Ortiz, que publica em 1588 uma
Memória ao rei para impedir a saída do ouro e, muito depois,
Antonio Serra, médico que escreve em 1641 seu Breve tratado das
causas que fazem abundar o ouro e a prata num país onde não há
minas. Na França, temos Barthélemy de Laffemas, burocrata do rei
Henrique IV, que publica em 1602 um tratado intitulado Como se
deve permitir a liberdade do transporte do ouro e da prata fora do
reino e conservar por tal meio o nosso e atrair o dos estrangeiros.12
Ainda nesse país, Gerard de Malynes (1586-1641) aparece como
um defensor da visão bulionista radical.
No século XVII, no entanto, poucos são os que ainda aceitam o
bulionismo extremo. A interpretação mais em voga defende a

11 Esta última medida era coerente, pois evitaria problemas de insufi-


ciência de demanda, conforme notaria Maynard Keynes no século XX.
12 Note que os títulos das obras já indicam seu conteúdo bulionista.

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balança comercial favorável como meio de manter a economia a
pleno emprego. Para tanto, uma série de medidas são necessárias.
Todas as importações devem ser desencorajadas, principalmente a
de bens que já são oferecidos pela produção doméstica. Uma
exceção contempla as importações de matérias-primas indispen-
sáveis não encontradas no reino; contudo, nesse caso deve-se
preferir a troca por mercadorias. Por outro lado, é importante
estimular as exportações por todos os meios. Incluindo-se aí
subsídios, restituição de impostos, monopólios comerciais nas
colônias etc. A exportação de matérias-primas é desestimulada,
porque todas devem ser usadas na manufatura doméstica, já que os
bens finais valem mais do que os bens intermediários. A balança
comercial favorável asseguraria o fluxo positivo de ouro e prata
sem a necessidade de restringir diretamente a saída de metais. Os
mercantilistas sabiam que o importante era o fluxo resultante no
longo prazo e que uma eventual saída de ouro hoje poderia, na
verdade, estar assegurando uma entrada líquida, se levado em
conta o tipo de compra feita, por exemplo, a aquisição de matéria-
prima para a manufatura de um bem exportável.
A política da balança comercial favorável também levaria a
maximizar as reservas metálicas, mas havia outros interesses em
jogo. Muitos dos que defendiam uma ou outra política interven-
cionista estavam voltados a favorecer os lucros de grupos de
comerciantes, entretanto, difundiam mensagens mercantilistas
falando em nome do bem da nação. Não sem motivos, os escritores
mercantilistas seriam depois estigmatizados como cínicos defen-
sores de escusos interesses particulares. É verdade que as políticas
mercantilistas tendiam a favorecer um ou outro grupo econômico
em particular, porém, em uma época de muita hostilidade entre as
nações e de luta contra a volta do antigo sistema feudal, seus
preceitos econômicos mostravam-se adequados para o fortaleci-
mento do poderio do reino. Havia, de fato, elementos racionais na
análise mercantilista, que foram adequados à época para os pro-
pósitos visados. Além disso, há de se considerar também que
autores mercantilistas do século XVII em muito contribuíram para
o estabelecimento de certas técnicas de interpretação econômica.
A preocupação com o saldo externo positivo entre exportações e
importações levou à formulação, pela primeira vez, de noções
contábeis sobre o que chamamos modernamente de “balança de
pagamentos”. É o que encontramos no trabalho de Edward Missel-
den (1608-1654), em que se identifica a mecânica do balanço
global de transações do país com o exterior. Misselden assinala
como as transações do comércio internacional afetam a política
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monetária. Para tanto, ele concebe um balanço de transações
multilaterais com cinco contas, tal como no Boxe 3.1:

Boxe 3.1 Balança de transações de um país com o exterior,


segundo Misselden.

1. Balança Comercial
a. Mercadorias visíveis
b. Itens invisíveis
2. Conta de Capital
a. Capital de curto prazo*
b. Capital de longo prazo
3. Transferências unilaterais
4. Ouro e prata*
5. Erros e omissões

No livro O círculo do comércio, de 1623, Misselden calcula,


pela primeira vez, o Balanço de Pagamentos da Inglaterra. Ele não
apenas identifica os números de cada uma das contas, mas também
calcula as relações entre elas. Dessa forma, o processo econômico
entre os países poderia ser mais bem compreendido e os fins da
política mercantilista seriam perseguidos com maior clareza
analítica. Misselden aplica a noção de débito e crédito em cada uma
das contas, usa o método contábil de dupla entrada e avalia o
superávit ou déficit das contas. Ele assinala corretamente que o
Balanço de Pagamentos está sempre em equilíbrio, de modo que as
contas assinaladas com asterisco (fluxos de metais preciosos e
capitais de curto prazo) representam movimentos compensatórios.
Enquanto as outras contas são determinadas de modo autônomo,
pois dependem das forças de mercado, as contas compensatórias
devem ser manipuladas pelos instrumentos de política econômica
de modo a se estabelecer o equilíbrio do balanço global.
Misselden compreendia certos mecanismos da política
monetária, e apontava corretamente que taxa de juros interna
acima das taxas internacionais atrairia capital de curto prazo. Se a
balança comercial (1) apresentasse um déficit não compensado
pelo superávit nas contas de capital de longo prazo e transferências
unilaterais (2.b+3), tal déficit seria financiado pelos movimentos
de capital de curto prazo ou por movimentos adversos de metais
preciosos. A balança comercial (ou “conta corrente”, termos
empregados erroneamente como sinônimos) incluía também itens

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invisíveis (1.b) como pagamento de transporte e fretes, o que
reforçava a crença na importância do Ato de Navegação que havia
criado o monopólio nacional desses serviços e, dessa forma, pro-
piciado ganhos na conta de invisíveis. Embora a exposição de
Misselden tenha problemas do ponto de vista da moderna
explicação do Balanço de Pagamentos, seu mérito maior foi o de
identificar que os fluxos de entrada e saída de metais preciosos são
movimentos que compensam as outras contas e refletem resul-
tados de transações comerciais autônomas e dos fluxos financeiros.
A boa compreensão do Balanço de Pagamentos dera susten-
tação às propostas mercantilistas de uma longa série de restrições
que afetavam o montante e a composição do comércio inter-
nacional, de modo a assegurar um superávit constante na conta dos
registros de metais preciosos. A importância do acúmulo de ouro e
prata, como vimos, era estimular a oferta doméstica de bens e
serviços e, com isso, o enriquecimento do reino.
As teses monetárias do mercantilismo foram-se desen-
volvendo à medida que surgiam problemas inflacionários trazidos
pelo grande fluxo de ouro e prata que inundou a Europa vindo das
colônias americanas. De início, os mercantilistas achavam que a
causa da inflação era a adulteração das moedas pelo poder público
que sistematicamente reduzia a quantidade de metal contida nelas.
Com isso, as moedas de maior teor de metais preciosos seriam
expulsas do mercado e substituídas pela moeda má, de acordo com
a lei formulada pelo inglês Thomas Gresham (1519-1579), e os
preços dos bens, inflacionados. Em 1568, Jean Bodin combate tal
ideia, reconhecendo que é, de fato, o afluxo de metais preciosos que
explica a alta dos preços. Bodin formula a lei de que o poder de
compra das moedas de ouro e prata é inversamente proporcional à
quantidade de ouro e prata existente no país, mas não identifica
claramente um mecanismo de conexão entre moeda e preços.
Embora a tese de Bodin tenha sido admitida por muitos no século
XVII, isso não impedirá que se mantenha a noção mercantilista
segundo a qual a riqueza de uma nação está ligada à abundância
interna de moedas.
A interpretação de como o lado monetário da economia
poderia afetar a produção real era um tanto tosca entre os mer-
cantilistas, e isso favorecia a ilusão monetária de se associar rique-
za ao dinheiro em circulação. A despeito dos avanços fornecidos
pelos estudos de Bodin, ainda faltava, entre eles, uma teoria mone-
tária, tema de que alguns pensadores ocupar-se-iam no século
XVIII. Somente nessa época surge uma compreensão teórica clara

60
de que não seria possível atrair indefinidamente meios monetários
para o reino, uma vez que o influxo constante de moeda iria
inflacionar os preços domésticos e com isso reduzir a competi-
tividade internacional do país. A identificação de um mecanismo
interligando moeda e preços deve-se a David Hume (1711-1776) e,
antes dele, a John Locke (1632-1704) em pleno século XVII. Tais
autores podem ser pensados como os primeiros precursores do
que hoje se conhece como teoria quantitativa da moeda. Segundo
essa teoria, a moeda afeta diretamente os preços, porém tal efeito
é atenuado se houver variações na demanda monetária, de modo
que as pessoas retenham moeda por mais tempo, ou em outras
palavras, diminuam a velocidade de giro da moeda. Outro
mecanismo a refrear a relação direta entre oferta monetária e
inflação é o crescimento econômico. Ele permite acomodar expan-
sões monetárias sem pressão nos preços. Ora, as políticas mercan-
tilistas perseguiam simultaneamente os dois objetivos. O aumento
de circulação de moeda era estimulado ao se proibir retenções do
metal e o crescimento econômico era seu alvo maior. Nesse tocante,
a política metalista não era irracional, entretanto inexistia uma
base teórica na interpretação do crescimento econômico. A moeda,
por si só, não ocasiona o crescimento econômico. Nas condições da
época, ela seria no máximo uma condição necessária, mas não
suficiente. De fato, o crescimento econômico no período é explicado
pelas transformações tecnológicas e na organização da produção,
bem como pelo impulso ao comércio mundial. Somente no século
XVIII, os fisiocratas, e depois Adam Smith, viriam a formular teorias
mais arrojadas na explicação do crescimento econômico.
Para os mercantilistas, a moeda estimula o crescimento eco-
nômico por dois motivos:
1. Fornece o serviço de facilitar as trocas, permitindo ampliar
o comércio e, com ele, o escoamento da produção;
2. A abundância monetária reduz as taxas de juros propor-
cionando a expansão dos empréstimos bancários e esti-
mulando a produção e o comércio.
Os dois argumentos da explicação são falaciosos. No primeiro
caso, basta observar que os benefícios da moeda para as trocas
dependem da estabilidade dos preços que pode ser ameaçada com
excesso de oferta monetária. O segundo argumento omite o fato de
as taxas de juros dependerem também do comportamento da
demanda monetária que, por sua vez, reflete as expectativas de
rentabilidade interna dos investimentos. É verdade que essa
consideração é encontrada na obra de William Petty, o autor mer-

61
cantilista que mais contribui para uma melhor compreensão das
taxas de juros. No entanto, a análise mais arguta do pensamento de
Petty não se faz presente na maioria dos escritores da época. De
qualquer modo, reconhecemos que os mercantilistas avançam em
relação ao pensamento medieval na compreensão do juro. Eles não
tecem as antigas considerações morais contra os juros e lançam
mão de argumentos mais sofisticados condenando a usura. Nesse
tocante, destaca-se a análise de Thomas Culpeper (1635-1689), no-
meado governador colonial da Virgínia, Estados Unidos, que no
Manifesto contra a usura explica que os negócios economicamente
viáveis devem possuir uma rentabilidade interna acima dos juros
cobrados pelos bancos. Sendo assim, juros elevados inviabilizam
muitos negócios, prejudicando a produção doméstica. Ele também
estabelece a relação entre juros e preços dos ativos físicos,
mostrando que a baixa dos juros aumenta o valor das terras ao
estimular a produção agrícola, bem como dos demais ativos da
economia. Josiah Child (1630-1699), mercantilista inglês, em 1668
atribui a causa da prosperidade da Inglaterra, no período, ao
tabelamento legal dos juros que desceu a apenas 6% ao ano, e diz
que isso só foi possível graças ao afluxo de metais. Há algo de
verdadeiro nessa interpretação, contudo, sabemos que a relação
entre juro e crescimento econômico é bem mais complexa.
A obsessão mercantilista em ver no comércio internacional
superavitário a fonte do crescimento econômico sustentava todo
tipo de medidas intervencionistas na produção doméstica. A defesa
do controle interno da economia visava, sobretudo, à competi-
tividade com outros países. Em nome dela, setores da produção
eram regulamentados, certas indústrias, sobretaxadas enquanto
outras recebiam subsídios, e monopólios eram criados com a
restrição à entrada em alguns mercados. Franquias e patentes
também concediam direitos exclusivos a certos comerciantes. Tudo
isso não significa que o mercantilismo era contrário à atividade
econômica e nem que ainda retinha o mesmo preconceito
antieconômico da Idade Média. O que ele desenvolve e propõe são
preceitos a serem aplicados em uma economia mista, com os
capitalistas a comandar a produção e o Estado intervindo nela a fim
de angariar maior poderio econômico à nação. O pensamento
mercantilista carrega consigo certa ambiguidade de propósitos, um
dualismo entre o intervencionismo e a defesa da liberdade dos
mercados. Em se tratando de um período de transição do feuda-
lismo para o liberalismo é de se esperar essas tensões entre
posições políticas opostas. Alguns autores enfatizam controles e

62
regulamentações, enquanto outros defendem a liberdade do co-
mércio.
John Hales, nobre inglês e membro do Parlamento, desen-
volve suas teses mercantilistas em 1549 no livro Um discurso sobre
a prosperidade pública no Reino da Inglaterra. Hales afirma que o
interesse do Estado deve ser posto em primeiro lugar, contudo não
defende os controles legislativos na promoção do bem-estar social.
Ele acredita na ordem espontânea dos mercados que tem por base
homens movidos pelo autointeresse. Buscando maximizar lucros,
suas escolhas resultam na alocação ótima dos recursos, melhor do
que o governo poderia fazer. As leis serão inoperantes e impotentes
se pretenderem compelir os homens a tomarem medidas que lhes
são desvantajosas. Nenhuma determinação legal pode prevalecer
sobre o autointeresse. A imposição governamental de preços tabe-
lados, por exemplo, daria origem ao mercado negro. Hales defende
também a liberdade de comércio internacional. Pode parecer
surpreendente ver a defesa da liberdade de comércio nas palavras
de um autor do século XVI, mas Hales não está sozinho. Também
defendem teses liberais autores do século XVII como Locke, Petty e
nomes menos conhecidos como Dudley North e Charles D’Avenant.
O que mostra que o mercantilismo não era um rígido sistema de
controle, conforme Adam Smith viria a caracterizá-lo.

SALÁRIO, PREÇO E JURO NA ÓPTICA MERCANTILISTA


Como vimos, os mercantilistas argumentam que os salários
deveriam ser controlados de modo a evitar-se que eles se elevem
acima de um nível ótimo. Leis que regulamentam os salários já
existiam na Idade Média; agora os mercantilistas buscam fornecer-
lhes um fundamento teórico. É preciso, para o enriquecimento do
Estado, manter os trabalhadores empregados e produtivos. Para
tanto, há um requisito moral: eles devem ser industriosos. Podem
até acalentar sonhos de luxúria sem nunca os alcançar, como na
imagem da cenoura colocada diante do burro. Os trabalhadores são
submetidos a um nível ótimo de frustração quando os salários
permitem que sobrevivam sem irem muito adiante no consumo de
riquezas. É a tese da “utilidade da pobreza”, que preserva a
condição moral da classe trabalhadora, porque de outra forma eles
se consumiriam no vício. O argumento parece e é, de fato, cruel,
porém surge recorrentemente em autores do século XVII e se
mantém depois. Arthur Yong diz que os trabalhadores vivem
melhor na pobreza. Bernard de Mandeville, em sua famosa obra
Fábula das abelhas, considera que mesmo a educação é perniciosa
63
às crianças se forem pobres ou órfãs e que, em vez de serem
educadas, elas deveriam trabalhar desde cedo. Em 1701, John Law
sugere a taxação ao consumo como uma forma de encorajar a
industriosidade do pobre e a frugalidade do rico. Hume tece consi-
derações semelhantes.
Entretanto, tal insensibilidade social possibilitou ao pensa-
mento econômico chegar a um resultado correto em termos da
interpretação da curva de oferta de trabalho. A moderna teoria
microeconômica argumenta que a curva de oferta de trabalho, no
plano que relaciona salários com número de horas de trabalho
ofertadas, é positivamente inclinada, mas se o salário for sufi-
cientemente elevado ela torna-se negativamente inclinada a partir
de certo ponto, pois o “efeito renda” predomina sobre o “efeito
substituição” (Boxe 3.2). O argumento mercantilista é outro, mas
leva ao mesmo resultado, representado na Figura 3.1.

Figura 3.1 Relação entre oferta de trabalho e salário.

Salário

B
W’
W A

N N Oferta de trabalho

O ponto A é crítico, de modo que para salários acima de W há
uma queda na oferta do insumo trabalho (N’ < N), pois os
trabalhadores preferirão não trabalhar, já que são naturalmente
avessos ao trabalho, e o salário mais elevado W’ torna-os propen-
sos a desfrutarem lazer em troca de trabalho. A consequência para
a economia nacional é a perda da produção e com ela a menor
competitividade no comércio internacional, com a saída de ouro e
prata e todas as consequências indesejáveis que dela advém. Assim,
cumpre ao governo estabelecer um teto salarial.

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Boxe 3.2 Explicação da moderna teoria econômica quanto ao
formato da curva de oferta de trabalho.

Para a teoria microeconômica, a curva de oferta de trabalho é positiva-


mente inclinada, porém sofre inflexão para a esquerda a partir de um nível
crítico de salário. A teoria utiliza-se de um argumento em termos da escolha
individual entre renda e lazer. Quando os salários se elevam, o aumento de
renda induz os trabalhadores a optarem por um número maior de horas
trabalhadas reduzindo assim o tempo de lazer. A partir de certo patamar, o
aumento de renda não mais compensa a perda do lazer (tecnicamente diz-se
que o “efeito renda”, que desloca as preferências em direção ao lazer, torna-se
maior que o “efeito substituição” de lazer por renda) e assim os trabalhadores
optam por trabalhar um número menor de horas.

É claro que à medida que a produção decrescer, diminuirá a


demanda de trabalho e isso pressionará os salários novamente
para baixo. Se o mercado for flexível, ele, por si só, determinará o
valor de equilíbrio que maximiza a produção. O mercado de
trabalho, na prática, apresenta uma rigidez que poderia justificar
algum tipo de controle legal, mas dificilmente a ponto de se
requerer a imposição de um teto salarial. A análise mercantilista,
entretanto, não entra nesses detalhes. Ela, de fato, não vai além de
uma racionalização superficial da expropriação dos trabalhadores.
Não há muita teoria de preço entre os mercantilistas, exce-
tuando-se as interpretações de William Petty. Natural da Irlanda,
Petty, entretanto, é mais um autor de transição entre o mercan-
tilismo e o liberalismo do século XVIII do que um representante
típico dessa escola. Ele veio a rejeitar muitas das teses mercan-
tilistas. Petty iniciou-se na carreira médica e quando se propôs a
escrever sobre economia trouxe muito dos métodos de pesquisa
das ciências naturais. No século XVIII, o pensamento econômico irá
se desenvolver procurando imitar o método dessas ciências. O
irlandês propõe uma análise mais rigorosa das ciências sociais pela
observação de fatos no que ele denominou de “aritmética política”.
O empirismo de Petty é influência do filósofo inglês Francis Bacon
e ao mesmo tempo uma reação à economia escolástica com sua
ascendência aristotélica.
Ele separa a ciência da moral. A ciência não resolve problemas
morais, somente se reporta aos meios. É a primeira reação radical
contra o legado do pensamento econômico que por séculos priori-
zou a questão ética. Embora seus escritos econômicos tendam para
o liberalismo, ele propôs um grande número de intervenções
65
estatais na economia. Sem chegar a desenvolver um sistema geral
de conhecimento, limitou-se a ditar soluções para um conjunto de
problemas práticos. Sua “aritmética política” tornou-se um guia
geral para políticas públicas, no entanto ele não apresentou
nenhuma contribuição para a análise econômica. Na teoria dos
preços, embora também não haja aí nenhum grande mérito
analítico, popularizou a noção de que o fundamento do valor está
nos custos de produção. Procurou reduzir todos os tipos de custos
em dois fatores de última instância: a terra e o trabalho. Tentou,
adicionalmente, chegar a um denominador comum entre eles,
identificando uma unidade homogênea de poder produtivo que
seria o determinante do valor. Não obteve sucesso nessa tarefa.
Petty antecipou elementos da análise econométrica. Ele era
muito esforçado na coleta de dados, no entanto, nenhuma teoria
satisfatória na explicação dos preços foi por ele oferecida. Petty, ao
separar a ciência econômica da análise moral, enterrou de uma vez
por todas as teorias de preço justo. O valor do bem é um dado de
mercado, equivale ao preço pelo qual a mercadoria é, de fato,
vendida. Ele tinha plena consciência da noção de preço impessoal
em mercados competitivos e concebeu elementos de uma teoria de
oferta e de demanda. No entanto, não se preocupou em explicar
preços relativos. Petty é o mais teórico dentre os mercantilistas, no
entanto, como de regra nessa escola, pouco de análise de valor e
preço pôde por ele ser apresentada. Definitivamente esse não era o
foco da investigação mercantilista. Os escritos do irlandês influen-
ciaram a escola clássica de economistas que localizarão no trabalho
humano a causa do valor. A unilateralidade da análise de Petty do
valor herdou uma assimetria teórica que se tornará típica na
análise econômica clássica, em que se deixa de dar a importância
devida a elementos do lado da demanda na determinação do valor.
Um retrocesso em relação às ideias escolásticas, que felizmente
mais afetou o ambiente intelectual inglês do que o restante da
Europa.
Finalmente outra contribuição teórica de Petty foi sua análise
sobre moeda e juros, mais rica do que a encontrada em outros
autores mercantilistas. Ele analisou o processo de formação de
poupanças e interligou-o à oferta de fundos para empréstimos. As
taxas de juros são um fenômeno de mercado determinado pela
confluência da oferta de fundos com a demanda de recursos, esta
última dimensionada pela rentabilidade do investimento em esto-
que de capital. Petty identificou as três funções da moeda, como
meio de troca, medida de valor e como ativo financeiro. A primeira
função é a principal delas. Como medida de valor, a moeda funciona
66
para propósitos limitados, já que ela mesma tem seu valor variável
dependendo da relação entre oferta e demanda. Petty, como os
mercantilistas em geral, acreditou na existência de uma relação
entre a moeda e o volume da produção, mas pouco conhecia da
ligação entre moeda e nível de preços. Embora desconhecendo a
teoria quantitativa da moeda, ele desenvolveu o conceito de velo-
cidade de circulação da moeda, mostrando que ela dependeria de
fatores institucionais, como o período de pagamento dos salários.
Ele não aderiu às falácias bulionistas e nem considerou o saldo
positivo da balança comercial absolutamente prioritário, contudo,
defendia certas medidas mercantilistas, como a proibição de
exportar moeda.
Petty identificou uma ordem natural subjacente aos fatos
econômicos e viu a economia como uma esfera de fenômenos
dotados de racionalidade própria. Faltou-lhe, no entanto, para uma
economia verdadeiramente científica, a construção de um sistema
unificado de explicação dos fatos econômicos. Não muito tempo
depois, apareceriam então as obras dos fisiocratas e de Smith, os
primeiros tratados da economia como ciência. Antes de concluir
este capítulo, vejamos as características do pensamento
econômico, no mesmo período, entre os povos germânicos.

CAMERALISMO: A DOUTRINA DO MERCANTILISMO ALEMÃO


Com o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), para fazer
frente às grandes potências europeias, os principados alemães
viram-se diante da necessidade de suprimir os resquícios do
feudalismo, começando por reforçar a aplicação de princípios
racionais como probidade, diligência, obediência hierárquica etc.
Isso refletia a percepção de que o ato de governar não se limitava
ao exercício e à conservação do poder, mas também ao desenvol-
vimento de atitudes que promovam centralização política, supres-
são de práticas antiquadas, enriquecimento do Estado e bem-estar
dos súditos. Ante a crescente ameaça das potências europeias,
manifestou-se entre os príncipes alemães o desejo de fundar um
Estado moderno. A fim de desenvolver as potencialidades de seus
domínios, assegurando um fluxo constante de receitas fiscais, era
necessário que o soberano tivesse em mãos conhecimento
fidedigno acerca das condições materiais e geográficas do territó-
rio, bem como da situação demográfica, social e política. O
cameralismo expressa a intenção concreta de tornar eficiente o
controle fiscal, num período em que o desenvolvimento de uma

67
economia financeira estatal e a obtenção de fundos públicos eram
tarefas de suma relevância.
Outra questão central por trás da política cameralista relacio-
na-se ao entendimento de que a riqueza nacional se localiza na
capacidade produtiva dos indivíduos, resultando disso a exigência
de investimentos em educação, infraestrutura e avanço tecno-
lógico. Em outros termos, a prosperidade de um Estado depende da
adoção de medidas que promovam a melhoria material e espiritual
dos cidadãos.
Por mais de três séculos, o cameralismo influenciou o pensa-
mento econômico nas nações de língua alemã. Ao contrário do que
comumente se afirma acerca dele, considerando-o uma mera ver-
são alemã do mercantilismo, ele se caracteriza como um tipo de
reflexão econômica e, ao mesmo tempo, um programa de ação
prática que refletia o crescente intercâmbio de ideias que veio se
intensificando na Europa desde a invenção da imprensa. O foco da
análise cameralista incidia na investigação de como o estado mo-
derno deveria promover a indústria por meio de expansão da
demanda, gastos públicos, liberalização interna, estabelecimento
de planos e metas, proteção externa etc.
Trata-se, portanto, de um enfoque ligado aos problemas
particulares da economia de um conjunto de países de língua
alemã. A Europa Central era uma região mais atrasada em relação
à França e à Inglaterra. Ela estava mergulhada em graves proble-
mas econômicos e o cameralismo surge como um conjunto de
ideias voltado à solução das calamidades econômicas, por meio de
uma melhor administração pública. Diferentemente do mercanti-
lismo ocidental, a ênfase não recaia na competitividade comercial
com outros países, mas em fornecer aos reis conhecimentos para
uma boa gestão econômica.
Na ausência de um Estado alemão unificado, os príncipes
viram-se obrigados a reorganizar as atividades econômicas de sua
gleba tendo em vista um mundo dominado cada vez mais pela
competição violenta entre impérios globais. Tal circunstância criou
as condições propícias para um arranjo institucional baseado em
relação de dependência mútua entre o príncipe e os súditos. Para
desempenhar cabalmente suas funções, o príncipe restabeleceu
uma antiga instituição medieval, a Câmara, empregada inicial-
mente para designar o recinto privado do príncipe, e, em seguida,
por extensão, o locus de sua administração. O termo “cameralismo”
vem da palavra alemã Kammer, que designa o lugar onde se
guardava o tesouro real. Depois passou a aplicar-se a tudo o que
68
dizia respeito à propriedade real. Virou a economia do rei ou a arte
que bem administra a renda real procurando mantê-la e, se
possível, aumentá-la. De início, era uma combinação de ideias
envolvendo aspectos políticos, jurídicos e técnicos, além do econô-
mico. Com o tempo, seus autores foram especializando-se em
economia política e afastando-se de preocupações jurídicas. O
ensino de cunho cameralista dos direitos e deveres envolvidos na
administração pública aparece nas universidades alemãs no século
XVII e a partir de então se desenvolve uma importante tradição do
pensamento econômico.
Há elementos comuns com o mercantilismo ocidental, como a
ênfase nas regulamentações governamentais, dada a confiança na
eficácia das leis, e o receituário análogo de política tributária, de
como organizar o sistema de tarifas e taxas públicas. Como no
mercantilismo, o metal precioso é tido como a forma mais dese-
jável de riqueza e eles também se assemelham na pregação, comum
a ambos, do aumento populacional, da frugalidade e do interesse
do rei. No entanto, o cameralismo é menos interessado em relações
internacionais, em comércio entre países e no desempenho da
balança comercial. A rivalidade internacional não é tão importante
para ele. A ênfase recai em finanças públicas e em como remediar o
atraso na economia alemã pelo desenvolvimento da indústria
doméstica, da tecnologia agrícola, e da exploração de minas e flo-
restas.
Os mercantilistas franceses e ingleses eram panfletários e só
ofereciam pequenos tratados não muito abrangentes. Enquanto
isso, o cameralismo desenvolve sua doutrina em grandes volumes
que apresentam um corpo de pensamento bem conectado, versan-
do sobre a lógica da organização do Estado e da economia nacional,
em seus aspectos financeiros e técnicos. O desejo da administração
eficiente da coisa pública é o eixo principal a guiar a análise came-
ralista.
Já início do século XVI, certos autores buscavam oferecer aos
burocratas dos principados da Europa Central meios para remediar
os males econômicos que afetavam os povos de língua alemã.
Martin Luther, o pai do protestantismo, e Melchior von Ossa pro-
põem uma reforma tributária a fim de aperfeiçoar o atrasado
sistema de taxação. O descontrole monetário também foi tema de
debate. O influente pensador Nicolau Copérnico, expoente de uma
revolução científica na astronomia, havia proposto uma moeda
uniforme por todo o reino, sem a necessidade de nenhum lastro ou
aval. Em 1530, o desequilíbrio monetário desencadeia uma contro-

69
vérsia sobre a cunhagem de moeda. Por essa época, melhora a per-
cepção da importância da moeda para a atividade econômica e
chega-se à conclusão de que algum controle sobre ela deveria ser
exercido. Tratados mais específicos sobre pesca, agricultura e
indústria aparecem nos escritos de Bornitz e Klock. Também se
destaca Georg Obrecht, que se tornou professor de direito em
Estrasburgo em 1575 e foi o primeiro consultor financeiro oficial
do rei.
No entanto, tais concepções somente se constituem numa
escola de pensamento no século XVII. Os principais representantes
dessa escola são Veit Ludwig von Seckendorff (1626–1692),
Johann Heinrich Gottlob von Justi (1717-1771) e Joseph von
Sonnenfels (1733-1817). Tais pensadores buscaram oferecer uma
teoria da gestão pública que iria orientar os governantes alemães.
Seckendorff é tido como o pai do cameralismo. Ele separou a
economia de outros ramos do conhecimento social, como a política
e a administração pública. Aconselhou a restrição das importações
e o aumento populacional. Contudo, não tinha total confiança na
eficácia do controle governamental. Era adepto da concorrência
entre os produtores e combateu o monopólio das guildas. Nesse
século, também aparecem no pensamento econômico alemão os
nomes de P. W. von Hörnigk e Wilhelm von Schröder.
Von Seckendorff fundou os alicerces das ciências camerais em
sua obra, de 1665, Adendo ou informações e notas ao Tratado do
Estado Principesco Alemão. Tal estudo resulta de um processo de
amadurecimento e crítica empírica extraídos da observação da
florescente economia holandesa. Ele trata essencialmente de reve-
lar os efeitos perniciosos da dependência econômica estrangeira.
Em sua visão, na falta de um setor manufatureiro livre e pujante o
país não seria capaz de sustentar de forma duradoura uma popu-
lação crescente e, portanto, seus cidadãos inevitavelmente corre-
riam para países estrangeiros, onde vigoram melhores condições
de vida. Os principados alemães se manteriam em um estado de
dependência das importações estrangeiras. Na Holanda, Secken-
dorff compreendera a importância crucial das manufaturas em
reverter a situação de pobreza e declínio demográfico que debilita-
vam diversos principados alemães. Caberia, assim, desenvolver a
capacidade produtiva alemã e articular todas as atividades econô-
micas, criando-se riqueza e empregos no processo.
Seckendorff preconiza medidas nesse sentido. Sua principal
recomendação é justamente a substituição de importações como
forma de suprir as necessidades econômicas domésticas. Um país
70
caracterizado apenas por agricultura de subsistência jamais pode-
ria prosperar. Para desenvolver as manufaturas era preciso libertar
os artesãos dos grilhões das guildas e corporações de ofício. Isso
atrairia mais trabalhadores, criaria demanda por novos negócios
para suprir suas necessidades e geraria um círculo produtivo de
oferta e de demanda crescentes. Libertar as manufaturas de
restrições, bem como liberar os preços dos bens domésticos, revi-
gorariam toda a economia, trazendo os preços aos seus níveis
adequados. Seu objetivo era, portanto, criar condições favoráveis à
superação do retardo técnico dos principados alemães, tendo-se
em vista a competição desigual com as principais potências euro-
peias a época.
O cameralismo adentrou o século XVIII. No decorrer dele
cátedras começaram a ser ofertadas para o ensino daquilo que foi
descrito como ciência cameral, que pode ser caracterizada como o
estudo dos princípios de administração pública e de política
econômica. Em sua forma original, a cameralística consistia na
formulação de propostas práticas, visando tornar eficientes a
administração, a arrecadação e a utilização das receitas públicas
pelos príncipes, não se constituindo, portanto, uma disciplina
segundo os padrões científicos. Nesse século, no entanto, sucedeu-
se notável esforço para oficializar o ensino universitário das ciên-
cias camerais, embora a princípio algumas inconsistências dificul-
tassem sobremodo sua institucionalização.
Tendo surgido em meados do século XVII, na primeira metade
do século seguinte o cameralismo se consolida como ciência
econômica alemã por meio das contribuições de Justi e Sonnenfels.
De fato, o cameralismo somente atingiu robustez teórica nas obras
de Von Justi, que lhe conferiu entendimento cada vez maior dos
fundamentos econômicos da vida política e social. Justi é reconhe-
cido, por isso, como um dos precursores da economia política na
Alemanha. Embora tenha sido autor de um total de 77 livros,
compreendendo filosofia, literatura, ciência da natureza, geologia
etc., seu grande mérito foi ter logrado dividir habilmente as ciências
camerais em ciências econômicas, ciência política e ciência das
finanças, questão que nenhum dos pensadores anteriores havia
resolvido plenamente.
Justi, atuando como professor na Áustria, ocupa-se de estudos
em finanças, comércio, tributação, agricultura e indústria. Elabora,
então, um esquema de seu sistema teórico de economia política,
posteriormente desenvolvido em seu livro mais importante, a
Economia política ou tratado sistemático de todas as ciências

71
econômico-cameralistas necessárias ao governo de um País, de
1755.
Apesar de perseguir a opulência do Estado, Von Justi não
reconhece a primazia deste sobre os indivíduos. O Estado configura
um complexo de instituições que se caracterizam pela existência e
pela aplicação efetiva de normas geralmente vinculativas e
permanentes, as quais indivíduos independentes estabelecem e
mantêm para otimizar sua cooperação a fim de obter disso a maior
renda real possível e poder satisfazer suas necessidades. Justi
também considera a liberdade e a segurança individuais. Nesse
sentido, a função precípua do Estado consiste em garantir o bem-
estar de seus cidadãos e consequentemente propiciar condições
favoráveis à produção dos bens que os fazem felizes. As instituições
sociais devem ser estabelecidas de modo a gerar a maior renda per
capita possível. Para Justi, legítimo é o Estado cujas instituições
servem para criar liberdade, segurança e bem-estar. Ao delimitar a
ação política, Justi intenciona mostrar que uma economia de
mercado desregulamentada é superior a uma economia controlada,
não porque origina um produto interno maior, mas porque impõe
menos restrições aos indivíduos, o que a torna capaz de fornecer a
cada cidadão uma maior quantidade de bens necessários a uma
vida feliz.
Em sua ótica, questões sociais são em grande medida
problemas de administração pública. Justi defende um governo que
assuma responsabilidades inerentes ao melhoramento das condi-
ções de vida e aperfeiçoamento moral dos súditos, obrigando-se
não apenas a criar empregos e prover meios de subsistência para
todos, mas também a aprimorar os métodos e a organização da
produção. Nota-se aqui que o cameralismo não se prestava somen-
te ao fortalecimento do Estado como finalidade única. O propósito
das ciências camerais era favorecer a felicidade comum resultante
da conciliação do contentamento dos súditos com o triunfo do
Estado.
Von Sonnenfels é considerado o último grande pensador
cameralista. Contemporâneo de Justi, sobreviveu a ele tempo
suficiente para estender solidamente as ciências camerais até
meados do século XIX. Sua obra mais importante, Princípios de
polícia, comércio e finanças, de 1765, figura entre os livros mais
vendidos da literatura econômica, usado nas universidades austría-
cas até 1848. Embora a sorte de ambos os autores tenha sido bas-
tante diferente, eles convergem quanto ao propósito de formular
estratégias de desenvolvimento com vistas, de um lado, a aumentar

72
o bem-estar da população, e de outro a fortalecer o Estado. A obra
de Sonnenfels, exprime um esforço a fim de reconciliar as exigên-
cias de um Estado forte com as novas instituições criadas a partir
da conjugação de diversos fatores cultural, político e econômico,
resultantes de eventos como a Revolução Francesa, a ocupação
napoleônica e a Revolução Industrial.
Sonnenfels aplicou-se ao estudo da jurisprudência, tornando-
se um dos mais esclarecidos intelectuais do círculo iluminista
vienense. Atuou na vida pública tanto no ofício de professor, quanto
de administrador. Sua influência em vários assuntos, incluindo-se
questões jurídica e econômica, baseava-se não apenas em seu
status de conselheiro real e sua posição como docente, mas
principalmente em numerosas publicações.
Em 1766, Sonnenfels oferece volumoso livro dividido em três
tomos. Nele, sustenta a tese de que os objetivos primordiais do
Estado podem ser divididos em quatro temas correlacionados, a
saber, (i) a proteção externa, (ii) a segurança interna, (iii) a diver-
sificação de ocupações produtivas e (iv) o incremento da renda.
Essas quatro áreas compõem, em sua visão, o conteúdo da ciência
do Estado e, ao mesmo tempo, as linhas de especialização que
formam a ciência política, compreendendo as ciências de polícia,
comércio e finanças. Enquanto a primeira apregoa princípios para
o estabelecimento e a manutenção da segurança interna e externa
do Estado, a segunda se ocupa da ampliação benéfica do que a terra
e a indústria produzem. Por fim, a última indica o modo como as
receitas públicas devem ser aumentadas e administradas da
maneira mais vantajosa.
A premissa do Estado está presente em todo o edifício teórico
de Sonnenfels. Ao conceber sociologicamente a natureza humana,
ele caracteriza o Estado como a culminação do projeto de realiza-
ção da objetividade da vida social. Por isso, a vontade coletiva é
muito mais forte do que a do indivíduo. Na verdade, o pensamento
de Sonnenfels pode ser compreendido como um modo de
expressão da filosofia política alemã em sua forma orgânico-
corporativista. Nesse ponto de vista, o Estado é definido como
expressão suprema de organização social, uma vez que nele todas
as formas de alienação doméstica, conjugal e patriarcal são supera-
das como etapas em direção ao espírito objetivo.
O Estado funda as bases últimas da grande sociedade em que
os cidadãos unem suas forças para alcançar o bem comum. O efeito
imediato disso é que os indivíduos assim reunidos são considera-
dos pessoa moral e consequentemente, tendo acima de si apenas a
73
vontade comum de exigir o melhor para todos, suportam um único
poder supremo, o qual consiste das forças próprias de todos os
membros. A teoria do Estado implícita na obra cameralista de
Sonnenfels incumbe-se de conciliar as prerrogativas do governo
centralizado às novas exigências do Século das Luzes.
Sonnenfels compôs a maior parte da produção cameralista
usada no final do século XVIII. Sua influência manteve-se oficial não
apenas dentro da monarquia austro-húngara, tendo se estendido
para além das fronteiras austríacas, encontrando audiência inclusi-
ve nos Estados alemães do sul.
No século XIX, amplia-se o escopo da ciência cameralista. Em
1819, Schmalz afirma que tal ciência deve incluir não somente a
administração pública, mas também o estudo de tudo o que perten-
ce à propriedade e à renda das pessoas. Na mesma linha, Rau, em
1825, separa o domínio da economia privada e técnica, que estuda
tudo o que diz respeito à riqueza pessoal, da economia pública que
avalia os aspectos financeiros das políticas públicas. Nessa época, a
economia firma-se como um ramo do estudo universitário não
confinado apenas à administração da coisa pública. Entre os profes-
sores de prestígio, aparecem Gasser, Daries, Dithmar e Zincke.
Devido a seu vasto período de efetividade, o cameralismo
produziu efeitos de longo prazo, principalmente no que diz respeito
à condução das políticas públicas e econômicas dos Estados ale-
mães. Com isso, ele funda as bases últimas da Nationalökonomie,
que viria a ser examinada a fundo e discutida de forma abrangente
por Friedrich List.
Durante sua docência em Tübingen, List escreveu seu Parecer
sobre o estabelecimento de uma faculdade de ciência política, de
1817, em que deixa evidente a influência da tradição cameralista na
sua formação. Neste ensaio, porém, List sugere ser imperativo
fundar as bases de uma nova ciência do Estado. Ele oferece um
primeiro esboço de sistematização das ciências econômicas, em
que a Nationalökonomie (economia nacional) e a Privatökonomie
(economia privada ou individual) são apresentadas como disci-
plinas auxiliares, demonstrando que o bem-estar do todo resulta do
bem-estar do indivíduo.
Na obra Enciclopédia das ciências políticas, de 1823, List con-
cebe a economia nacional como teoria das leis naturais de produ-
ção, distribuição e consumo de bens oriundos de comércio, indús-
tria e agricultura. Trata-se, pois, da doutrina que ensina em que
medida a influência do poder estatal pode ser benéfica ou preju-
dicial ao bem-estar econômico dos indivíduos, dos Estados e da
74
humanidade, argumento que será retomado em outros escritos
sobre a constituição das disciplinas econômicas.
O cameralismo, portanto, é a versão alemã da disciplina
econômica, que apresenta certas peculiaridades. Mais voltado a
aspectos técnicos da produção e ao lado financeiro, não acredita
que o Estado e os capitalistas tenham sempre interesses harmô-
nicos e posiciona-se ao lado dos interesses do primeiro. Ele enfatiza
os dispositivos de política fiscal procurando combater a falência do
tesouro público.
Dentre outros pensadores que deram importante contribui-
ção às ideias econômicas mercantilistas, destacam-se ainda: Claude
de Seyssel, M. de Malestroit, Tomás Mercado, Simon Newcomb,
Antoine de Montchrétien, Marques de La Gomberdière, Thomas
Mun, Nicholas Barbon, J. Massie e James Stewart.

75
Questões

1. Até que ponto o mercantilismo pode ser pensado como um siste-


ma coeso de ideias que se manteve inalterado entre os séculos
XVI e XVII?
2. Especule por que John Maynard Keynes mantinha certa admi-
ração pela escola mercantilista.
3. Comente algumas medidas que, tomadas ainda no período
medieval, já antecipavam as práticas mercantilistas.
4. Descreva a nova visão de sociedade que surge no século XVI.
5. É certo dizer que o objeto da política mercantilista era a maxi-
mização da riqueza de todos os cidadãos?
6. Compare o sistema manufatureiro putting-out com o artesa-
nato medieval.
7. Por que as monarquias absolutas se preocupavam em acabar
com a mendicância e que medidas foram tomadas nesse senti-
do?
8. O que é o bulionismo e como seus adeptos viam o comércio
internacional?
9. Que políticas eram defendidas pelos mercantilistas no sentido
de garantir uma balança comercial favorável?
10. Descreva o Balanço de Pagamentos de Misselden. Para ele, é
possível compensar um déficit na balança comercial sem a fuga
de metais preciosos?
11. No que consiste a lei econômica de T. Gresham?
12. Como Jean Bodin relaciona o acúmulo de metais preciosos com
a inflação? Você considera a explicação dele completa?
13. Como a oferta de moeda poderia estimular o crescimento da
riqueza na interpretação mercantilista?
14. Você concorda com a crença de que todos os mercantilistas
eram fortemente intervencionistas?
15. Comente a tese da “utilidade da pobreza”.
16. Por que, para os mercantilistas e na teoria atual, a curva de
oferta de trabalho torna-se negativamente inclinada a partir de
certo ponto?
17. O que William Petty tem a oferecer em teoria de preços?

76
18. Qual a essência da teoria dos juros de Petty?
19. Quais as diferenças principais entre o cameralismo e o mercan-
tilismo ocidental?
20. Aponte uma diferença entre o cameralismo no século XVIII e
no período anterior.

77
Leitura Adicional

Literatura Primária

KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda.


São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Economistas.) cap. 19.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
(Os Economistas.) livro IV.

Literatura Secundária

DEANE, Phyllis. A evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1980.

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Livros


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78
4
A Economia como Ordem
Natural

O DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS NATURAIS


A partir de fins do século XV, o avanço do comércio ultra-
marino forneceu um fluxo de matérias-primas que possibilitou, ao
lado de fatores internos, a forte expansão da economia europeia.
Manter frotas navais espalhadas pelos mares da Terra e submeter
povos distantes ao domínio dos interesses coloniais não se
constituía, entretanto, tarefa fácil. A tecnologia necessária para a
navegação e para a arte da guerra tornou-se um desafio cujo
enfrentamento somente logrou êxito pelo concurso das mentes
mais privilegiadas da época. As exigências tecnológicas de então,
impostas pela emergência do grande capital mercantil, resultaram
nos brilhantes sucessos das ciências naturais durante o período. No
comércio, o transporte marítimo e fluvial de mercadorias tinha
enorme importância uma vez que o deslocamento por terra era
muito mais lento, oneroso e arriscado; enquanto um navio poderia
transportar, com maior velocidade, grande capacidade de carga. No
entanto, somente com o avanço da ciência e da tecnologia as
viagens marítimas ficaram mais eficientes. A bússola tornou-se de
uso universal apenas na segunda metade do século XVI e bons
mapas geográficos marítimos só apareceram também por essa
época. Tais instrumentos de nada valeriam para a navegação em
mar aberto se não houvesse métodos disponíveis que permitissem
a localização do navio por meio das coordenadas de latitude e
longitude. O transporte por rios servia como meio de ligação
interna entre diferentes regiões da Europa. No passado, o cresci-
mento natural das cidades estava associado ao sistema de comuni-
cação por rios. Agora, desenvolve-se a construção de canais e
eclusas visando o aperfeiçoamento das vias fluviais; com eles,

79
complementa-se o transporte interno conectando-o ao transporte
marítimo.
No mesmo período, a indústria da mineração conhece
expressivo crescimento. De início, pela exploração das minas de
ouro e prata na América, depois pelo desenvolvimento intenso da
indústria de guerra. A invenção de armas de fogo e a introdução da
artilharia pesada estimularam a exploração das minas de ferro e
cobre. Nos dois séculos seguintes, a indústria metalúrgica é
impulsionada pelas encomendas de canhões, balas e outros
armamentos pesados. A extração de minérios e a construção de
artefatos de guerra desafiaram a tecnologia da época, que se
desenvolveu a largos passos (Boxe 4.1).

Boxe 4.1 Avanços tecnológicos impulsionados pela colonização


ultramarina.

As grandes navegações elevaram a demanda por minérios. Minas mais


profundas de ferro e cobre passaram a ser exploradas. Surge então o proble-
ma de trazer o metal à superfície. A fim de elevar o minério foram construí-
dos os mais diversos equipamentos na elevação de cargas e um sistema
complexo de bombeamento começou a se desenvolver para a difícil tarefa de
remoção das águas em minas profundas. Outras inovações são utilizadas. O
método rudimentar de produção de ligas baseado em fornos a vapor é
substituído pela forma mais perfeita de produção por altos-fornos, na qual
surge o problema da ventilação, apenas parcialmente equacionado.
A evolução da arte da guerra também estimulou o desenvolvimento da
artilharia pesada que fora incluída como parte integrante dos exércitos.
Surgem os problemas teóricos de balística e construção de canhões, que
levaram à investigação da trajetória da bala, da relação ótima entre calibre e
carga, bem como a relação do calibre com o peso e o comprimento do canhão.
Definidas certas proporções no desenho do canhão, outros problemas são
investigados, como o recuo do canhão com o tiro. Em reação ao desenvol-
vimento da artilharia, ocorre verdadeira revolução na construção de fortifica-
ções e fortalezas, com novos problemas para a engenharia da época.

Outros problemas práticos exigiam pronta solução ao conhe-


cimento da época. Era cobrada da ciência oficial o enfrentamento
de diversos problemas que surgiram com a expansão econômica
das potências europeias. No século XVI, as universidades preser-
vam o conhecimento medieval dominado por um sistema esco-
lástico fechado no qual não havia lugar para as ciências naturais
fora da tradição aristotélica. Tudo o que não fosse encontrado em
Aristóteles simplesmente não existia. A ciência era uma humilde

80
serva da Igreja que não lhe permitia ultrapassar os limites por ela
estabelecidos. Por outro lado, as necessidades tecnológicas de-
mandavam o avanço da ciência, principalmente a física nos ramos
de astronomia, hidrostática, hidrodinâmica, mecânica, aerodinâ-
mica e resistência dos materiais (Boxe 4.2).

Boxe 4.2 Desenvolvimento da física em resposta aos problemas


práticos.

A localização dos navios no meio do oceano dependia da observação dos


corpos celestes. Uma vez conhecido o mapa das estrelas e seu movimento, a
latitude poderia ser determinada por astrolábio e instrumentos ópticos. Já a
longitude dependia do auxílio de cronômetros marítimos que somente foram
inventados no início do século XVIII. Antes da popularização dos cronômetros,
o cálculo das longitudes utilizava a medida da distância entre a lua e as estrelas
fixas, o que exigia um conhecimento exato das anomalias do movimento da lua
e constituía-se numa das mais complicadas tarefas da mecânica celeste. Para
aumentar a capacidade de tonelagem dos navios era necessário o conheci-
mento das leis que governam a flutuação de corpos em líquidos, tema da
hidrostática. A fim de melhorar a qualidade de flutuação dos navios é
necessário conhecer as leis que comandam o movimento de corpos em
líquidos, uma das tarefas básicas da hidrodinâmica. O problema da
estabilidade dos navios é estudado pela mecânica dos pontos materiais. A
construção de canais e eclusas exigia o conhecimento teórico dos fluxos de
líquidos para se entender as leis que governam o movimento das águas em
canais de diferentes seções. A elevação do minério à superfície envolvia o
desenvolvimento de máquinas que dependiam, para sua construção, de um
complicado planejamento de rodas dentadas e mecanismos de transmissão,
que é tarefa da mecânica. O equipamento de ventilação dos altos-fornos exigia
o estudo da aerostática, parte da estática. O bombeamento de água das minas
requeria o estudo de problemas da elevação de líquidos em tubos e o
conhecimento dos efeitos da pressão atmosférica. A tecnologia de guerra
envolvia o estudo das trajetórias de corpos em meio resistente para se
entender a trajetória da bala através do ar. Os processos que ocorrem no
interior do canhão exigem o estudo da compressão e da dilatação dos gases,
tarefa da mecânica dos gases. O estudo do fenômeno de recuo do canhão é
objeto da mecânica. A estabilidade da arma propõe o estudo da resistência dos
materiais.

Sabemos hoje que a física de Aristóteles é falsa em grande


parte, o que não nega ser ela uma ciência altamente elaborada que
procura submeter a um tratamento bastante coerente e siste-
mático os dados do senso comum. Esse tipo de dado diz respeito à
experiência cotidiana, não preparada no sentido moderno do
experimento de laboratório montado para responder a perguntas
específicas. As coisas tratadas por Aristóteles eram, por assim
dizer, fatos triviais que saltam aos olhos.

81
A ciência moderna que surge nessa época parte da ideia
aristotélica de ciência (Boxe 4.3), não obstante, há dois elementos
principais na visão de ciência de Aristóteles que seriam questio-
nados: a crença dogmática na veracidade das premissas científicas
e o pouco cuidado com a observação sistemática dos fatos. Em
consequência, a física de Aristóteles enfrentava um paradoxo:
embora fosse mais próxima do senso comum que a nova física de
Galileu, Torricelli e Newton, dentre outros, não vinha dando conta
de fenômenos físicos e astronômicos mais complexos, como
aqueles trazidos pelo avanço da tecnologia.
Na astronomia, as crenças aristotélicas tinham sido integra-
das desde o século II no sistema geocêntrico de Ptolomeu. Nele,
seguindo os preceitos aristotélicos, o céu é pensado como um corpo
divino e, por essa razão, é-lhe dado o movimento circular. Todos os
astros deveriam percorrer o círculo em torno da Terra, que estaria
parada e imóvel no centro do universo. Sol, Lua e os cinco planetas
observáveis estariam incrustados cada qual em uma esfera de
cristal concêntrica à Terra. A esfera exterior do universo contém,
incrustadas nela, as estrelas fixas mantendo posição relativa
constante entre si, isto é, as constelações com forma permanente.
Os acentuados desvios do círculo, observados no movimento de
laçada dos planetas em torno do fundo das estrelas fixas (o
ziguezague dos planetas), são explicados pela curiosa associação
entre uma esfera principal em torno da terra (deferente) e a esfera
acoplada (epiciclo), presa em um ponto fixo do deferente e
sustentando o planeta. O efeito da composição no movimento das
duas esferas explica as laçadas dos planetas. O desenvolvimento do
sistema astronômico ptolomaico levou a um avançado método de
cálculo da posição das estrelas e dos planetas no céu e à previsão
de fenômenos tais como início das estações e ocorrência de
eclipses.
Com o tempo, o aprimoramento dos instrumentos óticos e a
necessidade de precisão nas previsões levaram a numerosas
correções e acréscimos ao sistema ptolomaico, que para salvar as
aparências não fazia cerimônia em, por exemplo, acoplar não as
duas esferas de que falamos, mas dezenas delas, cada qual cen-
trada em um ponto na superfície de outra, dando conta assim dos
movimentos observados da Lua, do Sol e dos planetas. Questões de
simetria e simplicidade, além de inconfessáveis crenças místicas,
conduziram Copérnico a propor o sistema heliocêntrico no início
do século XVI.

82
Boxe 4.3 Método da ciência em Aristóteles.

No volume Analíticos Posteriores do Organon de Aristóteles, o filósofo


escreve que toda ciência compartilha o mesmo método comum. Ele consiste
em revelar a estrutura teórica por trás dos fatos por meio de um encadea-
mento de sentenças provadas e demonstradas. As sentenças verdadeiras
dependem de outras sentenças, mais fundamentais, também verdadeiras. A
sentença fundamental constitui o princípio (arché) da explicação. São as
causas primeiras das coisas. A demonstração consiste no exercício de se obter
qualquer uma das sentenças encadeadas na teoria por meio da lógica dedutiva
(ou raciocínio silogístico), partindo-se dos princípios até se chegar às
conclusões estabelecidas por ela. Tais conclusões são fatos observados pre-
viamente conhecidos, antes mesmo da teoria, no entanto a ciência trata de
demonstrar como eles decorrem logicamente de premissas. As premissas ou
princípios da demonstração funcionam como hipóteses de um modelo
explicativo que busca ajustar fatos já observados a um sistema de
conhecimento, enquadrando-os e nos lançando à observação de fatos adicio-
nais.
O método científico de Aristóteles começa na observação casual dos fatos.
Depois procura torná-los inteligíveis, formalizando e sistematizando as obser-
vações dentro de um sistema dedutivo a partir de premissas. Procura-se
extrair do evento particular, que se observa, suas características universais a
delimitar o tipo em questão. Destarte, isola-se o que é essencial no evento de
seus aspectos acidentais. Embora tal modelo de ciência não tenha sido muito
diferente das concepções metodológicas da moderna ciência natural, há um
traço característico na visão aristotélica jamais aceito pelos mentores da
ciência moderna. Trata-se de um resquício platônico que permeia as
concepções de Aristóteles. A questão está centrada no problema fundamental
de como se chega aos princípios teóricos universais partindo-se da
observação de casos particulares. Do ponto de vista estritamente lógico tal
problema (denominado problema da indução) seria analisado no século XVIII
por David Hume que conclui pela impossibilidade de sua solução. Aristóteles,
no entanto, vale-se das influências platônicas que lhe permitem assegurar a
veracidade dos princípios. Para ele é perfeitamente possível firmar a verdade
das premissas por meio de um processo de reconhecimento descrito desta
forma: cada fato que se manifesta aos nossos sentidos fica preservado em
nossa memória. Com a repetição do fato, o acúmulo de percepções na
memória possibilita, a partir de certo ponto, o reconhecimento do elemento
universal. Uma vez reconhecidos, os princípios são ainda examinados
dialeticamente como um processo sistemático de crítica até que nos certifi-
quemos plenamente de sua veracidade. Como no modelo de Platão, somos
lembrados da verdade pela experiência; apenas lembrados, pois, já nascemos
com ela, embora a tenhamos esquecido. A lembrança da verdade ocorre a
partir da familiaridade com os fatos, o que desperta um tipo de olhar intelec-
tual que a reconhece, validando o princípio da demonstração científica.

83
Mais do que uma simples mudança de referencial, deslocando
o centro do universo da Terra para o Sol, o modelo copernicano
abalou por completo a física de Aristóteles. Esta última apoiava-se
na crença de que há uma ordenação hierárquica estática à qual
obedece a natureza. Esta se exprime por princípios como o que
estabelece haver um “lugar natural” para cada coisa, o que define o
movimento natural, e por oposição, o movimento compulsório ou
violento. Tirar um corpo de seu lugar natural seria uma espécie de
violência e, uma vez tirado, o corpo precisaria voltar a ele. A
matéria é sempre uma combinação de quatro elementos, ou corpos
simples: terra, água, fogo e ar. Cada um deles possui um princípio
de movimento em sua própria natureza. O movimento natural do
fogo e do ar é para cima e os de água e terra são para baixo. No
centro do universo há algo em repouso. A Terra tem de existir, pois,
é a terra (elemento simples) que está em repouso no centro, para
onde, se deslocado, volta por seu movimento natural para baixo.
Ora, se a Terra não estivesse no centro do universo, a noção de
espaço ou lugar de Aristóteles, que exerce influência no movimento
dos corpos, teria de ser substancialmente revista. Aristóteles pensa
que dois lugares diferentes, um em cima e outro embaixo, possuem
cada qual naturezas diferentes e por isso os corpos deslocam-se no
movimento de queda livre de um a outro. A hipótese copernicana
de deslocar a Terra de seu local no centro de tudo implica também
que a teoria do movimento natural precisa ser esquematizada de
outra maneira. Portanto, Copérnico não apenas lança as bases de
outra astronomia, mas suscita também outra física.
A explicação dos problemas de balística nos projéteis lança-
dos por canhões foi tentada pela física aristotélica. A dinâmica de
Aristóteles é muito curiosa (Boxe 4.4). Embora a teoria de
Aristóteles seja bastante engenhosa, ela não oferece uma solução
prática, por exemplo, ao problema do ângulo do eixo do canhão com
a horizontal que permita a máxima distância de alcance na
trajetória da bala. A crença aristotélica de que “a natureza tem
horror ao vácuo” não explicava por que as melhores bombas d’água
não conseguiam extrair o líquido do fundo de um poço de
profundidade superior a dez metros. Foi por meio dos estudos da
pressão atmosférica e com a hipótese da existência do vácuo que
Torricelli solucionou o problema, no início do século XVII. Conclui-
se que a urgência na solução dos problemas práticos foi minando a
confiança na ciência aristotélica.
A crítica à física de Aristóteles é anterior ao período. Em plena
Idade Média, pensadores escolásticos, como Jean Buridan e Nicolau
Oresme, propunham interpretações diferentes para o movimento.
84
Este último particularmente acreditou que a Terra estivesse em
movimento. No entanto, podemos situar o marco maior no
nascimento do método da ciência moderna na obra do filósofo
inglês Francis Bacon (1561-1626). Bacon via muita especulação
nas ideias de lier e acreditava que o desenvolvimento da ciência
requeria um melhor intercâmbio do homem com a nature-za. O
conhecimento empírico deveria ser valorizado e as noções a priori
abandonadas.
“Resta-nos um único e simples método para alcançar os
nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos parti-
culares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si
mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e
comecem a habituar-se ao trato direto das coisas.” (F. Bacon.
Novum Organum)

Boxe 4.4 Dinâmica do movimento dos corpos em Aristóteles.

Filósofos pré-socráticos acreditavam que todos os corpos estariam


internamente divididos em intervalos de modo a quebrar sua continuidade. O
todo não é contínuo, mas existe na forma de partes separadas pelo vazio. As
partes, que são os átomos, estão em movimento ao redor do vazio. A crença na
existência do vácuo foi duramente criticada por Aristóteles, pois no espaço
vazio não existe nada e, portanto, também não haveria a diferença entre o em
cima e o embaixo e, sendo assim, não poderia haver movimento natural no
vácuo. Além disso, não é necessário o vácuo para haver o movimento, como
pensavam os pré-socráticos. Em sua obra Física, Aristóteles afirma que o
movimento natural é a realização do que existe potencialmente, a realização
do móvel como móvel. Há assim uma ideia de causalidade final na origem do
movimento. Quanto ao movimento compulsório ou violento, quando o corpo
se afasta de seu lugar natural, no De Caelo Aristóteles afirma que, nesse caso,
ele é movido por alguma coisa que exerce sua ação de quatro maneiras:
puxando, empurrando, carregando e girando. A velocidade de deslocamento é
sempre proporcional à intensidade da “causa do movimento” (o que Newton
chamou de força). Como explicar então a trajetória da bala de canhão? Os
aristotélicos, para explicar a trajetória dos projéteis, um movimento não
natural em sua definição, afirmavam que o projétil é impelido pelo ar que o
rodeia, por um mecanismo segundo o qual o ar se abre pela passagem do
projeto, à frente, e se fecha, atrás, de modo a impeli-lo.

Sabemos que Aristóteles realça o papel da observação


empírica em sua descrição do método científico. Ele, porém, como
dissemos, entendia a experiência no âmbito restrito do senso
comum. O problema apontado por Bacon é que observações casuais
do dia a dia que fazemos são carregadas de preconceitos ou “anteci-
85
pações”. A observação deve estar submetida a controle sistemático
se ela quer ir além do indutivismo ingênuo. Além do mais, o legado
aristotélico fora distorcido pela ortodoxia teológica, tornando-se
ainda mais especulativo e descolado da realidade empírica. A ver-
dadeira ciência deveria servir às necessidades tecnológicas.
Somente assim, pode-se, com ela, dominar e conquistar a natureza.
No entanto, os homens somente o fazem submetendo-se a ela, “pois
a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece”. O intelecto
deve buscar extrair a verdade das observações, eliminando falsas
noções que bloqueiam e distorcem o processo perceptivo. Tais
noções apreentam-se a nós como ídolos geradores de ilusão, que
devem a todo custo ser combatidos pela ciência. Não podemos
confiar exageradamente em nossos sentidos (ídolo da tribo) e
devemos estar atentos a possíveis estados de perturbação mental,
que crescem na “caverna” particular de cada um de nós (ídolo da
caverna). Hábitos semânticos errôneos bloqueiam o conheci-
mento (ídolo do fórum) e a autoridade do pensamento filosófico
dominante pode ser obstáculo adicional à verdade científica (ídolo
do teatro). Em seguida, Bacon desenvolve um método cuidadoso de
coleta de dados e o aplica ao estudo do fenômeno do calor.
O método difundido por Bacon tornou-se conhecido como
empirismo e sem dúvida ele é um dos pilares da ciência moderna,
que dominou vários ramos da ciência. Em sua principal obra,
Novum organon, ele desenvolve a ideia de experimentação siste-
mática em laboratório, opondo-se ao indutivismo com base no
senso comum de Aristóteles. Um grande avanço, por certo. Bacon
sabia perfeitamente que se oferecia à obtenção da realidade das
coisas por meio dos sentidos um grande número de obstáculos, e
ele não foi nada ingênuo nesse tocante. No entanto, o problema
lógico da indução empírica, isto é, o problema da indução de Hume,
só no século XX seria satisfatoriamente examinado pelo filósofo
Karl Popper e, portanto, muito tempo decorreria até a consideração
completa de todas as dificuldades trazidas por uma ênfase forte-
mente empírica na ciência. De qualquer modo, não foi o empirismo
baconiano o único sistema filosófico subjacente às grandes tradi-
ções científicas modernas.13 Já no século XVIII, outros dois impor-
tantes sistemas metodológicos somam-se ao de Bacon dando
sustentação aos avanços no pensamento filosófico da ciência:

13Dissemos de passagem, no capítulo anterior, que o empirismo de Bacon


influenciou a “aritmética política” de William Petty. A partir de Petty a
pesquisa empírica estará presente de modo mais contundente na investi-
gação social, mais em certos autores do que em outros.
86
Descartes e Newton. Tais sistemas exercerão influência notável na
evolução das ideias econômicas. Antes de adentrar no estudo de
suas características básicas, o presente quadro descritivo do
desenvolvimento das ciências naturais relaciona o empirismo de
Bacon com os físicos Kepler e Galileu, para depois finalmente
concluirmos a seção com a descrição daqueles sistemas.
No início do século XVII, Johannes Kepler e Galileu Galilei
revolucionaram as ciências físicas e prepararam o caminho para a
construção do imponente sistema da física clássica. Kepler simples-
mente utilizou os dados do grande astrônomo Tycho Brahe para
ajustar o cálculo da órbita dos planetas. Particularmente se interes-
sou pela órbita de Marte e, após exaustivas tentativas de ajustar os
dados nos círculos perfeitos de Aristóteles, chegou à conclusão das
órbitas elípticas e propôs, assim, suas famosas três leis do
movimento dos planetas. Entretanto, não foi um empirista no
sentido de Bacon.14 Galileu estudou a queda dos corpos usando
alguns experimentos de laboratório, muito embora ele também se
valesse das famosas experiências de pensamento (Boxe 4.5).
No lugar da teoria dos movimentos naturais de Aristóteles,
Galileu fornece uma explicação puramente mecânica. O movi-
mento não é mais explicado pela qualidade do corpo e a natureza
do espaço, mas como efeito de forças comunicadas do exterior,
como de fato Aristóteles já havia pensado para movimentos
forçados. Aceitando a existência do vácuo, Galileu compreende o
papel da inércia do movimento. Curiosamente Aristóteles havia
pensado na inércia dos corpos enunciando-a para rejeitar a
existência do vácuo. Aristóteles argumentou que...
“Como o ar resiste ao movimento, se o ar fosse evacuado,
um corpo poderia ou permanecer em repouso, porque não
haveria causa para movê-lo, ou em movimento iria à mesma
velocidade para sempre. Como isto é um absurdo não pode
haver o vácuo.” (Apud L. P. Rosa, A dinâmica de Aristóteles e a
estática de Arquimedes)

14 Um grande pensador do século XX, Arthur Koestler, conta-nos que a


ideia da elipse em Kepler surgiu de um sonho por ocasião da gravidez de
sua esposa. Sonhou com um ovo, símbolo da fertilidade, e após tentar o
ajuste dos dados por uma forma ovoide (quem sabe também uma forma
perfeita) acabou chegando à elipse.
87
Boxe 4.5 Experimentos de pensamento de Galileu.

É bem conhecida uma estória em que Galileu refuta a teoria de Aristóteles,


que propugnava pela queda mais rápida de corpos mais pesados, lançando da
torre de Pisa duas bolas de igual dimensão, sendo uma mais leve que a outra.
Parece, entretanto, que ele apenas imaginou tal experimento. O melhor argu-
mento utilizado por ele para invalidar a lei aristotélica da queda dos corpos foi
outro. Imaginou um corpo pesado atado a um corpo mais leve. O corpo pesado
tende a cair com uma velocidade maior, mas por estar preso a um corpo mais
leve, que, pela física aristotélica, cai mais devagar, ele é freado na queda e o
conjunto desce com uma velocidade menor que a do bloco mais pesado. Ora, o
conjunto em si mesmo pode ser pensado como um único bloco, mais pesado
que as partes isoladas. E, portanto, deveria cair mais rápido. Uma contradição
da teoria de Aristóteles apontada por um experimento puramente mental.

Brilhante intuição do princípio da inércia, mesmo que apenas


para negar a existência do vácuo! Galileu aceita tal princípio
também de maneira curiosa: ele imaginou que a inércia fosse
circular e, com isso, pensava estar explicando o deslocamento dos
astros. Um erro fatal da física de Aristóteles foi relacionar o
movimento forçado com a “força externa” aplicada ao corpo,
quando sabemos, graças a Newton, que a força resultante aplicada
a um sólido só comunica aceleração, não sendo diretamente pro-
porcional às velocidades. Isso se deve ao fato de Aristóteles não
compreender movimentos no vácuo ou o papel do atrito e da
resistência do ar nas situações cotidianas.
Na primeira metade do século XVII, a filosofia de René
Descartes (1596-1650) constitui outro pilar da ciência moderna
com aspectos bem distintos do empirismo inglês. O sistema de
Descartes apresenta duas características distintivas: o mecani-
cismo e o racionalismo. Na primeira delas, o mundo é formado por
corpos que interagem na colisão. O movimento de partículas e o
impacto entre elas definem qualquer sistema físico. Mesmo siste-
mas mais complexos, como os seres vivos, funcionam da mesma
maneira que os processos exibidos na natureza inorgânica. Os
indivíduos, portanto, são semelhantes a máquinas e o mesmo
método científico da física pode ser aplicado à biologia. Além disso,
também as ciências humanas, como a ciência moral e a política,
fazem parte da árvore comum do conhecimento, em que as raízes
são a metafísica, o tronco a física e galhos e ramos constituem as
demais ciências.

88
Do ponto de vista do método, em seu racionalismo Descartes
acredita que o exercício da razão humana assegura a certeza do
conhecimento científico. Qualquer indivíduo tem o poder de julgar e
distinguir o falso do verdadeiro pelo uso do bom-senso ou razão.
Enquanto o caminho da verdade em Bacon radica na observação
criteriosa, Descartes procura assegurar-se dela no uso da razão.
Como consequência, sempre que os homens conduzem seu pensa-
mento pelas mesmas vias e consideram as mesmas coisas chegam a
resultado igual. Há uma única verdade e, sendo assim, boa parte das
disputas filosóficas de sua época deve-se a uma má escolha do
método de investigação. O bom caminho consiste em refutar tudo o
que seja apenas provável. Trata-se do método da “dúvida metódica”,
que certamente não pode negar tudo, já que o próprio eu não é
negado, pois o ato de pensar garante nossa existência (“penso logo
existo”). Percorrer tal caminho leva Descartes à rejeição de quase
todo o conhecimento acadêmico a sua época, considerado por ele
mera especulação. Então o filósofo vai à procura do raciocínio
simples dos homens no mundo prático e nos negócios cotidianos.
Tendo estudado autores consagrados de sua época, ele agora se
aventura no “livro do mundo”, a fim de viajar, ver cortes e exércitos,
frequentar todo tipo de gente e recolher diversas experiências.
Depois de refletir sobre todas as suas experiências, percebe que o
pensamento das pessoas é extravagante e muito condicionado pelos
costumes de cada um. Descartes resolve olhar a si próprio e recorrer
apenas à força de seu espírito. Somente a evidência conquistada por
nós mesmos é válida, e contra ela opõem-se os preconceitos da
tradição acadêmica. A razão, portanto, aparece no esforço da mente
isolada e todos os processos técnicos e sociais devem ser pensados,
planejados e controlados por ela.15
O método cartesiano prende-se a quatro preceitos básicos:
1. Acolher apenas coisas verdadeiras e indubitáveis, que não
possam ser postas em dúvida.
2. Todos os problemas são reduzidos a partes elementares, de
modo a se decompor analiticamente a realidade.
3. O conhecimento parte de objetos simples, e só após o pleno
conhecimento deles pode-se investigar objetos compostos
complexos.
4. Todas as soluções possíveis para um problema devem ser
enumeradas e analisadas uma a uma.

15É o que o economista do século XX, Friedrich von Hayek, chamará de


“razão construtivista”.
89
Tal método expressa-se, portanto, com base em axiomas, tidos
como autoevidentes, para a construção de raciocínio analítico e
dedutivo, criteriosamente embasado numa rigorosa lógica mate-
mática. A mente humana busca conhecer a verdade decompondo
analiticamente o problema. Descartes não concede posição desta-
cada à observação empírica na compreensão dos fenômenos
naturais, o que o afasta do empirismo de Bacon e o aproxima de
concepções apriorísticas da ciência. Isso não quer dizer que
nenhum papel possa ser atribuído ao experimento empírico em seu
sistema. Em alguns casos, a experiência conta na seleção de solu-
ções particulares do problema, contudo, é tão somente um instru-
mento adicional de análise ao lado dos recursos fornecidos pela
própria razão.
O sistema de Descartes mantém pontos de contato com a
tradição escolástica, inclusive na ênfase a questões religiosas. No
entanto, ele fornece elementos para a gestação da ciência moder-
na ao praticar metodicamente a dúvida no desenvolvimento do
pensamento científico. Suas ideias marcaram o pensamento
filosófico ocidental, em especial destacamos a influência em pensa-
dores como Spinoza e Locke. No âmbito da ciência natural deu
contribuições expressivas ao desenvolvimento de ramos da física,
como a óptica geométrica, e da matemática, tendo criado a
geometria analítica, uma das bases matemáticas da física clássica.
A crença cartesiana de que a linguagem matemática é a forma
universal do raciocínio empregado em qualquer investigação
científica haveria, por certo, de permear toda a ciência natural a
partir do século XVII e especialmente no século seguinte, quando a
matemática conhece grande impulso em seu desenvolvimento. O
pensamento de Descartes influenciou o Iluminismo francês do
século XVIII, contudo, na época dele as maiores referências para a
ciência inglesa eram, de fato, o empirismo de Bacon e agora o novo
sistema de Newton. O racionalismo, com sua crença na apreensão
direta da verdade, é contraposto, em território britânico, princi-
palmente ao método newtoniano de se fazer ciência. Veremos
adiante que tal método influenciou profundamente o nascimento
da economia como ciência afetando particularmente o pensamento
de Richard Cantillon e Adam Smith.
Isaac Newton (1642-1727) inaugurou um estilo intermediário
entre a tradição aristotélica e o empirismo baconiano. Tal estilo foi
firmando-se a partir do imenso sucesso alcançado por sua física em
explicar e prever fatos empíricos já conhecidos e propor soluções
bastante satisfatórias aos problemas colocados pela tecnologia da

90
época. O método de Newton não ficou confinado apenas nas
ciências naturais e também serviu como modelo para a investi-
gação social. Logo adiante veremos a descrição pormenorizada
desse método, por enquanto se explica como ele surge na prática
de Newton. Kepler havia descoberto as três leis que comandam o
movimento dos planetas pela mera análise dos dados de Tycho
Brahe. Tais leis tinham, portanto, um caráter puramente empírico,
não se revestindo de algum princípio teórico que descreva os
movimentos dos corpos ou explique a natureza das órbitas plane-
tárias. Muito jovem, Newton tinha desenvolvido, a título de exer-
cício matemático, uma explicação física do movimento dos planetas
na hipótese da existência de um sistema de forças centrais unindo
os planetas ao Sol, que decaem com o quadrado da distância que os
separam da estrela. Quando se lança essa hipótese, pode-se
deduzir, com alguma competência matemática, as três leis de
Kepler. De início, Newton não deu muita importância a tal achado,
mas depois, em fase madura da vida, iria perceber, com os colegas
cientistas, as implicações de sua descoberta. Os fatos descritivos da
dinâmica dos planetas, que haviam sido estudados empiricamente
por Kepler, são por Newton enquadrados em um sistema teórico
fundamental construído com base em poucas premissas. A lei da
atração gravitacional e a lei da ação e reação são princípios que dão
conta de toda a multiplicidade de fenômenos astronômicos já
conhecidos. E mais: os movimentos dos corpos na superfície da
Terra também são explicados pelos mesmos princípios da
dinâmica, rompendo-se a separação aristotélica, mantida por
Galileu, entre o mundo translunar das estrelas e o mundo sublunar
em que vivemos.
Não cabe aqui discorrer sobre as realizações da ciência newto-
niana, mas vale dizer que seu sucesso também esteve associado à
solução de importantes problemas práticos da época. Basta
examinar a ordem em que as questões teóricas são tratadas na obra
máxima de Newton, os Princípios matemáticos da filosofia natural,
de 1687, para se perceber sua relação com questões práticas (Boxe
4.6). Newton procurou não apenas resolver problemas empíricos
isolados, mas também construir uma sólida base teórica para a
solução, por meio de métodos gerais, do conjunto de problemas
físicos suscitados pelo desenvolvimento da tecnologia.
O sucesso do empreendimento de Newton conferiu a seu
método um valor de paradigma para todas as ciências e isso se
impregnou fortemente no ambiente acadêmico inglês. No que com-
siste o método newtoniano? No plano meramente formal, é muito
assemelhado à descrição aristotélica de ciência.
91
Boxe 4.6 Problemas técnicos tratados nos Princípios de Newton.

No prefácio dos Princípios, Newton chama atenção para o fato de que a


mecânica aplicada e a descrição de máquinas simples já tinham sido tratadas
por outros e que seu objetivo não era “discutir os vários ofícios e resolver
problemas particulares, mas discorrer sobre a natureza e sobre os funda-
mentos matemáticos da física”. Como a obra é apresentada na linguagem
matemática abstrata da geometria, seria difícil encontrar nela referências
diretas às exigências técnicas das quais acreditamos os problemas por ele
resolvidos derivam-se.
No entanto, a simples inspeção dos temas abordados em cada capítulo
demonstra que o núcleo central dos Princípios consiste exatamente nos
problemas técnicos de sua época. Assim é que, no primeiro livro da obra, é feita
uma exposição detalhada das leis gerais do movimento de corpos sujeitos à
ação de forças centrais fornecendo um método geral para a solução dos
problemas mecânicos. O segundo livro é dedicado ao movimento dos corpos
num meio resistente, resolvendo problemas fundamentais de balística, im-
portante para a artilharia pesada. A quinta seção do segundo livro é dedicada
ao fundamento da hidrostática, ao problema dos corpos flutuantes e ao
problema da compressão de gases e líquidos submetidos a pressões, todos com
aplicação na construção de navios, canais, bombas d’água e sistemas de
ventilação. A sexta seção do mesmo livro trata do problema do movimento do
pêndulo num meio resistente, que facilitaria depois a construção de relógios.
A hidrodinâmica dos fluxos de líquidos por meio de tubos é tratada na seção
seguinte, com importante aplicação para a construção de canais, eclusas e
bombas d’água. O terceiro livro dos Princípios lida especificamente com
questões referentes ao movimento dos planetas e às anomalias do movimento
da Lua, com aplicações em astronomia e para entender-se o movimento das
marés, ambas de importância vital para a navegação. Esse breve perfil dos
Princípios mostra a coincidência entre os temas teóricos e as exigências
tecnológicas da época.

Lembremos que a ciência em Aristóteles se caracteriza pela


busca e pela identificação de princípios (arcai) com base nos quais
se pode demonstrar conclusões que dizem respeito a fatos empí-
ricos previamente conhecidos. Começa-se das conclusões deseja-
das e pesquisam-se as possíveis premissas da demonstração lógica.
Dessa forma, as observações são formalizadas e ajustadas a um
sistema teórico. Eventualmente a identificação dos princípios
levará à observação e à descoberta de novos fatos. Ora, é exata-
mente isso o que Newton fez com os resultados empíricos de
Kepler. Identificou os princípios da mecânica e da atração universal
dos corpos e provou matematicamente como a órbita elíptica e
outras conclusões keplerianas decorrem deles. Então, o método
newtoniano consiste em identificar-se uma ordem natural subja-
92
cente a fenômenos aparentemente caóticos construída a partir de
um pequeno número de princípios básicos muito bem fundamen-
tados. Destarte, mostra-se que o complexo mundo dos fenômenos
observados pode ser ordenado pelo encadeamento de raciocínios
lógicos e se desdobra das premissas iniciais como implicação.
A questão que separa Newton de Aristóteles diz respeito a
como se chega aos princípios e ao status ontológico quanto ao
conteúdo de sua verdade. Vimos que Aristóteles apoia-se numa
visão platônica a firmar a verdade dos princípios no mecanismo de
revelação (nous ou “olhar intelectual”) que vê a verdade dos
princípios na memória retida dos objetos. Definitivamente essa não
é a interpretação de Newton. O grande físico obteve os princípios
de seu sistema apoiado no debate com seus contemporâneos, no
legado da investigação de autores que o antecederam e, sobretudo,
graças a sua imensa genialidade. Participa também os aspectos
místicos em sua formação intelectual (Boxe 4.7). De fato, há muitos
elementos imponderáveis na descoberta newtoniana dos princí-
pios científicos, que não podem ser logicamente reconstruídos.16

Boxe 4.7 Misticismo de Isaac Newton.

John M. Keynes arrematou, em leilão, uma caixa contendo papéis com


anotações de Newton à época em que escrevera os Princípios. Keynes conta-nos
que o conteúdo desses papéis revela uma mente envolta em questões de alquimia
e esoterismo, muito em voga na época. O eminente físico brasileiro Mário Schen-
berg afirma, entre outras coisas, que Newton considerava o espaço o “sensório de
Deus” e que a ideia de atração gravitacional pode ter sido inspirada nas antigas
crenças esotéricas dos poderes de amor e ódio, que corresponderiam a forças
atrativas e repulsivas, respectivamente.

É certo que Newton foi observador meticuloso de fenômenos


particulares. Ele fazia experiências de laboratórios, por exemplo,
incidindo feixe de luz num prisma, e observava o movimento dos
astros. Entretanto, não foram tais observações que nele despertaram
diretamente a descoberta dos princípios. Além do mais, muito do que
se diz sobre Newton hoje se sabe que se trata de lenda. Não está

16 Ciente destas dificuldades, Karl Popper propõe a separação metodo-


lógica entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação na
prática científica. A partir daí, a metodologia científica só diria respeito ao
método da justificação, deixando para o contexto da descoberta a ação de
fatores de outra ordem.
93
provada a veracidade da narrativa sobre a queda da maçã de uma
árvore, que lhe teria revelado a existência da gravidade. Enquanto no
método de Bacon a observação empírica meticulosa está na base da
ciência, em Newton os fatos empíricos aparecem como ilustração ou
como comprovação a posteriori da teoria.
Muito embora carregue consigo um enorme poder preditivo dos
fenômenos físicos, a ciência de Newton não se propõe a alcançar a
verdade última das coisas; como na lei da atração gravitacional, que é
apenas postulada. Newton sabia tratar-se de uma hipótese forte que
poderia, com o progresso da ciência, vir a ser mais bem explicada,
como de fato o seria com o desenvolvimento da física moderna. O que
importava era o fato de que eventos observados pudessem ser obtidos
retrospectivamente com base na ação dos princípios teóricos; e que a
construção teórica conferisse uma ordem harmônica aos fatos físicos
observados. Além do mais, a teoria teria diversas importantes
aplicações tecnológicas.
O sistema de Descartes difere bastante da visão de Newton. Este
último não acredita que as forças da razão possam assegurar a
verdade do conhecimento. Adicionalmente, há outros aspectos que os
separam. Newton não compartilha a visão mecanicista do universo tal
como aparece em Descartes. Embora também ele aceite o papel das
colisões, concebia que muitos processos físicos dependeriam de
outros fatores além de movimento e colisão de partículas. Newton
acreditava em uma explicação do movimento com base na hipótese da
“ação à distância” entre os corpos, enquanto o sistema teórico do
francês só permitia a ação por contato. Os corpos interagem apenas
empurrando ou puxando uns aos outros. Newton não considerava
plausível que um sistema complexo como um organismo animal
pudesse funcionar em analogia às engrenagens de uma máquina. Ele
refutava o modelo do universo enquanto um relógio, embora seu
sistema também estivesse fortemente carregado de relações deter-
ministas. O sistema cartesiano identificava espaço com matéria e não
permitia a existência de espaços vazios, mantendo, portanto, a velha
crença aristotélica na ausência de vácuo. Newton aceitava o vácuo. A
lista de diferenças entre eles poderia ampliar-se muito mais.
Esta seção estendeu-se para fora do âmbito mais restrito da
evolução do pensamento econômico porque se necessita de uma
sólida compreensão do desenvolvimento das ciências naturais até
o século XVIII, e de suas diferentes bases filosóficas e metodoló-
gicas, a fim de situar-se o nascimento da economia científica. A
próxima parte descreve como a revolução nas ideias da época

94
repercutiu na visão de sociedade e suas implicações para o
nascimento da economia como um sistema teórico mais integrado.

NOVAS IDEIAS SOBRE POLÍTICA E SOCIEDADE


Localizamos três importantes tradições científicas consoli-
dadas no início do século XVIII, associadas aos nomes de Bacon,
Descartes e Newton. Embora os problemas que deram origem a
elas digam respeito à explicação de fenômenos naturais, os méto-
dos científicos e a visão filosófica geral que emergem, de modo
diferenciado, em cada uma das tradições funcionaram também
como paradigmas da ciência social e da economia em particular.
Isto só foi possível porque, paralelamente ao avanço da ciência
natural, uma nova visão da sociedade foi sendo elaborada desde o
início do período histórico do Renascimento. A decadência da
estrutura feudal e a negação do poder da Igreja abalaram a imagem
da sociedade como uma comunidade de fiéis, na qual caberia a cada
um desempenhar funções específicas predeterminadas. O entusias-
mo geral provocado pelo avanço do conhecimento tecnológico
favorecia um novo tipo de visão enaltecedora do poder do intelecto
humano em conhecer a realidade e dominar a natureza. Ao mesmo
tempo, o homem como cordeiro submisso à Igreja é substituído
pelo homem dotado de vontade própria, repleto de paixões e
muitas vezes movido por impulsos não muito éticos. É quando
surgem os modelos teóricos descritivos da sociedade que procu-
ram dar conta de sua origem e coesão sem pressupor a componente
moral e religiosa.
Embora sem a mesma presença anterior de elementos de
sociabilidade trazidos pela autoridade da tradição religiosa, a vida
social não se degenera em caos. Há de se identificar então os
mecanismos que garantem a coesão social no contexto moderno de
homens livres e pensantes. Surgem as primeiras interpretações da
política, no contexto do novo Estado que substitui o poder ecle-
siástico. Nicolau Maquiavel (1469-1527) propôs uma ciência polí-
tica de caráter positivo, que examina sistematicamente os mecanis-
mos pelos quais um ditador impõe a ordem entre homens egoístas
e pérfidos (Boxe 4.8).

95
Boxe 4.8 Teoria política de Maquiavel.

Para Maquiavel, a eficácia do comandante em atender ao objetivo visado


passa por um cálculo racional. O domínio da situação depende das estratégias
do poder em seguir recomendações práticas, como as que constam em sua
obra O príncipe. Os caprichos pessoais, que poderiam levar à destruição mútua
de todos, são neutralizados pelo poder do Estado.
O quadro traçado por Maquiavel procura ser realista ao conceber uma
natureza humana egoísta e falar em ações necessariamente cruéis que deve-
riam ser praticadas pelo soberano. Isso, no entanto, não se constitui em um
juízo de valor da parte dele. Não se pode concluir que seu intento seja o de
afrontar a moralidade, pois ele não se prende a uma ética deontológica
construída em consideração a princípios de bem e mal. Maquiavel segue a ética
teleológica, em que o julgamento da conduta é feito em termos de suas conse-
quências práticas em alcançar o fim a que se destina. Com ele, as ações
humanas em sociedade passam a ser julgadas como procedimentos técnicos
análogos às medidas requeridas para o domínio da natureza. O Estado é visto
pela óptica de um naturalismo que o assimila a um organismo vivo cuja saúde
depende da eficácia dos remédios aplicados.

A tendência de interpretar o conjunto da vida social como


estando submetido a certos mecanismos racionais, semelhantes às
regularidades dos fenômenos físicos, é mantida e até reforçada no
século XVII. Thomas Hobbes (1588-1679) tenta compreender a
sociedade comparando-a a uma máquina. Seu pensamento político
mantém pontos de contato com o modelo de Maquiavel, como a
imagem realista da natureza humana e a necessidade de um
governo forte para a acomodação de interesses particulares (Boxe
4.9). Sua obra máxima, Leviatã, de 1651, foi dedicada a Galileu.
Conceitos físicos são utilizados para descrever a natureza humana,
quando Hobbes distingue movimentos vitais de movimentos volun-
tários do homem. Os primeiros são os processos automáticos de
operações vitais como digestão e respiração. Estes últimos dizem
respeito à ação voltada ao atendimento de desejos e aversões. Tudo
o que contribui para a satisfação de desejos é um bem, ao passo que
coisas que produzem aversão denominamos de mal. Assim, os
conceitos éticos de bem e mal são redefinidos em termos de coisas
que são e não são agradáveis aos homens.
Hobbes concebe a sociedade como um organismo artificial,
modelo que é reforçado pelo mecanicismo de Descartes, que viveu à
mesma época. Enquanto mecanismo automático, a sociedade sujeita-
se a leis de funcionamento. Leis que também condicionam a esfera
econômica, e justificam políticas pouco intervencionistas.
96
Boxe 4.9 Hobbes e o Leviatã.

A sociedade de Hobbes é organismo artificial inteiramente análogo ao


organismo biológico. É uma criação artificial que se contrapõe ao “estado natural”.
Este último descreve a situação de guerra de todos contra todos, alimentada pela
competição, pela desconfiança e pelo desejo de glória individual. A partir dela, os
homens, movidos pelo medo e ansiando por uma vida mais confortável, são
levados, em vontade própria, a firmar um pacto social. Assim, o Estado emerge de
uma convenção, quando um conjunto de indivíduos concorda em estabelecer o
contrato social.

A influência do espírito cartesiano, portanto, também alcança o


pensamento econômico. Com base na ideia de lei social, Hobbes
defende a liberdade de comércio. Outro autor, Dudley North, que es-
creveu em 1651 os Discursos sobre o comércio, assevera que quando
o método cartesiano é aplicado às questões comerciais, chega-se a um
conhecimento da economia como um sistema mecânico fundado em
verdades claras e evidentes, em que os preços se fixam, por si só, em
cada mercado e a riqueza advém espontaneamente sem a intervenção
do Estado.
A visão da sociedade que iria prevalecer no século XVIII, época
do nascimento da economia como ciência, afasta-se, no entanto, do
racionalismo e do mecanicismo cartesianos sob as influências
marcantes da obra de John Locke (1632-1733), da qual destacamos
o Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o
governo (Boxe 4.10). As ideias de Locke repercutiam as aspirações
da classe burguesa; ele é considerado o filósofo da Revolução
Gloriosa, que em 1688 estabeleceu a monarquia constitucional na
Inglaterra, bem como um dos precursores do Iluminismo, movi-
mento intelectual que influenciou a Revolução Francesa. Locke
também é considerado o pai do liberalismo que se impôs completa-
mente na cena inglesa do século XVIII.
Locke segue a trilha de seus antecessores Bacon e Hobbes,
mas critica Descartes em aspectos essenciais. Como Bacon, ele
exalta o poder dos sentidos como fonte do conhecimento e
repudia os vestígios platônicos da visão de ciência em Aristó-
teles com suas crenças em verdades inatas. De Hobbes, Locke
retém o modelo individualista que explica o poder instituído a
partir de um acordo livremente estabelecido entre os indiví-
duos e selado por um contrato social. No entanto, Locke demons-
tra maior preocupação em resguardar a liberdade individual
97
contra a tirania do poder. Lança então a tese de que a natureza
reserva aos homens certos direitos como os de integridade física
e de propriedade. Seguindo Descartes, Locke também confia no
poder da razão de transformar o mundo, porém ele fornece outra
interpretação dela. A razão não consiste na busca de princípios
internos ao pensamento individual obtidos pela decomposição
analítica dos fenômenos em seus elementos básicos. Trata-se,
mais propriamente, em um dom potencializado pela observação
empírica. Locke critica o racionalismo de Descartes, que inter-
preta ainda reter resquícios escolásticos da crença de ideias
inatas e verdades autoevidentes, ao mesmo tempo em que se
aproxima da tradição empirista de Bacon.

Boxe 4.10 Sociedade e Estado em John Locke.

O modelo de sociedade política de Locke assemelha-se ao de Hobbes,


mantendo dele afastamento em pontos específicos. Em Dois tratados sobre o
governo, ainda aplica os conceitos de “estado natural” de homens livres e
iguais, precedendo o aparecimento do poder, e a ideia de que o poder se legiti-
ma pelo consentimento. Contudo, o pacto social não é pensado como um
antídoto para acabar com a situação de guerra de todos contra todos, já que,
em Locke, no estado de natureza o homem não é o lobo do homem, embora
não se encontre aí a visão idílica do bom selvagem popularizada por Rousseau.
Sem aderir a concepções extremas do caráter do homem no estágio pré-social,
Locke argumenta que o pacto social é fruto da conveniência de os homens
submeterem-se a um poder central a fim de preservarem a vida e a proprie-
dade.
Se o Estado aparece para preservá-las, é importante encontrar uma justificativa
para o direito de propriedade. Nesse tocante, Locke envereda suas reflexões
passando às considerações econômicas. O Estado não interfere na distribuição de
riquezas, pois é o trabalho individual que confere a cada qual seus direitos de
propriedade, que englobam também os direitos de herança. O fim da vida social é
produzir a maior quantidade possível de coisas úteis, mas a produção deve-se deixar
a cargo de interesses particulares.

No entanto, isso não significa que ele tenha, de fato, aderido a


um empirismo radical, embora Locke em muito tenha contribuído
para a difusão do empirismo fora da Inglaterra. O empirismo havia-
se consolidado no século XVIII graças ao extraordinário avanço das
ciências, mas foi o método da física newtoniana e não o de Bacon
que se tornou o paradigma do pensamento filosófico em ciência.
Locke desfrutou da amizade de Newton e com ele apercebeu-se que
grande parte de nossas ideias não se poderia comprovar, pois elas
provêm de um conhecimento intuitivo. Podemos demonstrar as
98
consequências matemáticas dos princípios da física e chegar a
certas conclusões de aplicação empírica, mas o princípio em si
mesmo, uma vez bem estabelecido, não se pode contestá-lo. Outras
ideias colocam-se acima da razão humana e só podem ser assenti-
das pela fé, como as crenças religiosas.
Dando continuidade à ética teleológica de Maquiavel e Hobbes,
Locke busca ainda um fundamento hedonista para a justificativa
moral da conduta. Bem e mal são definidos pelo prazer e pelo mal
que a conduta propicia ao indivíduo. Tal modelo ético iria depois
resultar no utilitarismo de J. Bentham, seguido pela maioria dos
filósofos éticos ingleses entre o fim dos setecentos e o século se-
guinte.
Em teoria econômica, Locke tece consideração sobre o valor
dos bens. Seu fundamento está no trabalho humano. Contraria-
mente à versão menos enfática de William Petty, o trabalho é mais
importante que o próprio preço das terras na determinação do
valor dos bens. No ensaio de 1691, intitulado Considerações sobre
a queda do juro e a elevação do valor da moeda, Locke indica
claramente sua compreensão dos mercados como um mecanismo
impessoal, em que operam a oferta e a demanda e no qual os preços
estabelecidos não poderiam ser consistentemente alterados por
medidas legais. O próprio juro do dinheiro seria determinado por
uma taxa natural de mercado.
Há então, no início do século XVIII, um consenso em torno da
interpretação da política, da sociedade e mesmo da economia como
esferas naturais. Uma importante questão da época interrogava em
como conciliar a visão da sociedade composta por indivíduos
autointeressados com o comportamento ético presumidamente atri-
buído ao homem pelos filósofos morais. Aceitando todos os preceitos
da análise de Locke, um grupo de filósofos ingleses ataca a visão
pessimista de Hobbes e tenta mostrar que o autointeresse não é, a
princípio, incompatível com a benevolência. Entre eles podemos citar
Shaftesbury, Tucker e Hartley. Passando ao largo das particularidades
individuais, todos defendem a possibilidade de reconciliação entre a
conduta altruística e a busca da satisfação individual. Porque, sendo o
homem um animal social, as preocupações com o interesse próprio e
com o interesse comum se confundem, de modo que ao se trabalhar
pelo incremento da felicidade pública aumenta também o quinhão da
felicidade individual. O argumento filosófico principal deles consiste
em mostrar que o comportamento humano tem sempre um
componente de benevolência, não sendo, portanto, um comporta-
mento genuinamente egoísta. Os filósofos éticos procuram enfraque-

99
cer a tese do homem autointeressado e egoísta, reconciliando-o com a
moral.
O escritor holandês Bernard de Mandeville (1670-1733) pu-
blica um poema, em 1705, em que busca demonstrar, por meio de
uma fábula, que não é necessário descartar o comportamento
puramente egoísta para se derivar, a partir dele, resultados
benéficos para a sociedade. A obra Fábula das abelhas traz em seu
subtítulo um resumo da fórmula encontrada por Mandeville: vícios
privados, benefícios públicos (Boxe 4.11).

Boxe 4.11 A Fábula das abelhas.

Nesta obra, Mandeville supõe a existência de um mecanismo na sociedade


pelo qual os vícios privados, ao se somarem, convertem-se em benefícios
públicos. O argumento é o de que a luxúria humana, ao lado da vaidade e da
inveja, é socialmente útil já que gera demanda efetiva, encorajando a produção
de bens e com isso empregando toda sorte de trabalhadores. A fim de ilustrá-
lo, conta a estória de “uma grande colmeia, repleta de abelhas, que viviam com
luxo e comodidade” e que a partir de certo momento resolve se moralizar.
Consequentemente “à medida que minguaram o orgulho e o luxo... fecharam
fábricas inteiras” e... “Todas as artes e ofícios foram abandonados”. A colmeia,
ao se moralizar, entra em franca decadência econômica. Como lição da estória,
Mandeville escreve que “ser famoso na guerra e, ainda, viver comodamente,
sem grandes vícios, é uma vã utopia radicada no cérebro. A fraude, o luxo e o
orgulho devem existir, enquanto recebemos seus benefícios”.

Mandeville reforça o modelo individualista de sociedade,


mostrando a precariedade dos argumentos morais na explicação da
sociabilidade dos homens nas economias de mercado. Suas ideias,
no entanto, escandalizaram a opinião da época e não foram segui-
das pelos mais importantes filósofos morais do século XVIII.
Mandeville não nega que os homens sejam naturalmente dotados
de algum senso moral, mas ele não considera que a plena morali-
dade seja pré-condição para a vida social.
O ensaio de Mandeville teve papel decisivo a fim de emancipar
o pensamento econômico da época da moralidade e permitir,
assim, a consideração de um subsistema social autônomo que
constitui uma ordem econômica formada por uma coleção de
indivíduos buscando seu autointeresse e governados pela lei da
oferta e demanda. A ordem social ora era pensada como uma
criação artificial dos homens, como na tradição hobbesiana, ora

100
como uma entidade natural ou até divina.17 Newton também via o
desígnio de Deus na ordem natural. Os economistas do século XVIII
acreditavam todos na ordem natural dos fenômenos econômicos.
Mercier de la Rivière, membro da escola de economistas
franceses conhecida como Fisiocracia, afirma textualmente que a
“ordem natural e essencial da sociedade” não é fruto do trabalho do
homem, mas é instituída por Deus. Smith talvez tenha enxergado o
desígnio do criador na ordem econômica, enquanto Hume era
céptico da presença divina nessa ordem. Não importa se a
interpretação de cada qual é ou não carregada de conotação
religiosa; todos aceitam a existência de uma ordem natural
subjacente à sociedade e à economia. Se ela existe, os homens em
sociedade estão sujeitos a leis naturais do mesmo modo em que na
natureza física os fenômenos submetem-se a leis físicas. Os
fisiocratas acreditam que a produção e a distribuição dos bens são
efetuadas de acordo com leis fixas da natureza e que os problemas
de distribuição devem ser lidados como se enfrentam os problemas
da física.
Esta seção examinou sistematicamente a visão de sociedade que
emerge no século XVIII e o sistema de crenças filosóficas subjacente
ao aparecimento da economia como ordem natural. Veremos, ainda
no presente capítulo, aspectos mais específicos de teorias que
influenciaram diretamente o tratado econômico de Adam Smith. Por
certo, boa parte do material e do esquema de ideias de Smith pertence
ao legado de um conjunto de autores antecedentes.

BOISGUILLEBERT E CANTILLON: PRECURSORES DE ADAM SMITH


Nesta seção, faremos uma exposição detalhada da contribuição
destes dois autores que, ao lado dos fisiocratas, foram importantes
precursores das ideias de Smith. Começa-se com Boisguillebert
(1646-1714), autor francês cujos trabalhos mais importantes con-
centram-se por volta de 1700. Pierre le Pesant, seu nome de batismo,
foi um importante crítico das políticas mercantilistas na França no
reinado de Luis XIV. É bem verdade que ele ainda não fornece um
tratamento sistemático da economia com base em princípios e só
analisa problemas econômicos específicos, mas sua obra tem
elementos de originalidade que merecem ser considerados. Bois-

17 Descartes via asociedade como uma ordem divina, embora seu raciona-
lismo estivesse associado à crença no poder da razão humana em edificar
a sociedade. Hayek o associa à “razão construtivista”.
101
guillebert vê a economia como um mecanismo natural governado
pelas forças de mercado e, contrário às práticas mercantilistas,
enfatiza a liberdade das trocas.
À época de Boisguillebert, a França vinha atravessando grave
crise econômica alimentada pelas despesas de guerra e pelas
extravagâncias de consumo na corte. Os males econômicos são
atribuídos por ele à adoção de preceitos mercantilistas. Bois-
guillebert publica um conjunto de obras, entre 1665 e 1712,
tratando principalmente de reforma tributária e que chegaram a
escandalizar o rei, a ponto de ser penalizado tendo de se exilar pelo
lançamento de O memorial da França em 1707. De original, ele
propõe a noção de que os bens e os serviços à disposição de cada
cidadão e não a moeda ou a fortuna do rei constituem a verdadeira
riqueza da sociedade. A fonte do crescimento da riqueza é o
consumo individual, de modo que o bem-estar nacional depende da
pujança da demanda efetiva. Boisguillebert acredita que a renda
nacional seria determinada pelo fluxo de dinheiro gasto,
antecipando, pelo menos em espírito, ideias de Keynes.
A solução para o problema do declínio econômico da França
requer uma reforma tributária que possa reduzir os impostos, de
modo a suprimir um fator limitante da demanda. Boisguillebert
havia calculado que os impostos em excesso e a concentração em
sua base de incidência teriam acarretado uma queda na renda da
França em pelo menos 50%, entre os anos de 1665 e 1695, pela
decorrente insuficiência de demanda agregada. Os efeitos nocivos
provocados pelo receituário mercantilista também foram respon-
sabilizados pela queda na renda. Especialmente desastrosa tinha
sido a decisão do ministro Colbert de proibir as exportações de
grãos, o que veio a prejudicar a agricultura do país. Como
consequência dela, os preços dos grãos tendiam a cair principal-
mente em tempos de crise quando se acentuava a escassez de
demanda.
A visão de Boisguillebert enaltecia dois elementos: a primazia
da agricultura e os benefícios do livre-comércio, também bandeiras
dos fisiocratas como veremos mais adiante. As medidas que
procuravam favorecer as manufaturas em prejuízo da agricultura
deveriam ser revertidas. O mercado funcionando por conta própria
traria a expansão da agricultura, com estabilidade de preços e
melhor distribuição de renda. Uma distribuição mais equitativa
seria importante por garantir a sustentação da demanda agregada.
A reforma tributária proposta por ele priorizava o combate a
três tipos de impostos então cobrados na França: as talhas, as sisas
102
(“aides” em francês) e os impostos aduaneiros. Os primeiros
incidiam sobre as propriedades e eram sujeitos a muita arbi-
trariedade e capricho pessoal em sua aplicação. Os nobres e os
membros do clero ficavam isentos de pagá-los. A carga incidia
fortemente sobre os proprietários mais pobres, principalmente o
pequeno camponês. As sisas são um imposto indireto sobre as
vendas. Boisguillebert preocupava-se com a possibilidade de o
povo francês ter que cortar seu hábito mais típico pelas pesadas
sisas sobre a venda do vinho. Os direitos aduaneiros eram cobrados
pela circulação de mercadorias, não só entre as fronteiras da
França, mas também entre regiões internas; o que restringia sobre-
maneira o fluxo de mercadorias e a concorrência nos mercados,
implicando assim em aumento de preços.
Boisguillebert defendia a liberdade dos mercados, argumen-
tando que, deixando a natureza agir, os preços, espontaneamente
determinados, garantiriam em todos os setores da economia um
ganho normal ou justo. O mecanismo de formação de preços já
asseguraria o máximo de riqueza. O mercado leva à realização de
todos os planos dos produtores individuais e não haveria nunca o
problema crucial de falta de consumo. Pode-se considerar, neste
aspecto, que Boisguillebert tenha antecipado a chamada Lei de Say,
apontada pelo famoso economista clássico.
O autor que estamos considerando propõe assim um conjun-
to de medidas que comporiam uma reforma tributária. Anos
depois, ele será criticado pelos fisiocratas por não oferecer um
“sistema natural de finanças públicas”, mas um conjunto de
medidas arbitrárias visando ao aumento do consumo agregado. Os
críticos fisiocratas consideravam mais importante para a expansão
econômica do país a forma como os impostos afetam não o consu-
mo, mas o processo de acumulação de capital. Boisguillebert, por
seu turno, raciocina pensando em tornar os impostos mais
progressivos e melhorar a distribuição de sua base de incidência de
modo a liberar renda disponibilizando-a para o consumo. Esse é
seu receituário básico de política econômica. Ele também deu
importante contribuição em questões monetárias analisando a
natureza da moeda. Percebeu então que há outros meios de
pagamento na forma de papéis (letras de câmbio, títulos do
governo etc.) que podem funcionar como substituto da moeda nas
transações. Também se notabiliza por considerar que o efeito de
certa quantidade de moeda sobre a economia dependeria também
da velocidade de circulação da moeda, conceito ainda mal com-
preendido à época.

103
Em 1755, é publicada em Paris a obra de um autor não muito
conhecido, que já havia falecido duas décadas antes, assassinado em
condições obscuras nas ruas de Londres; são os Ensaios sobre a
natureza do comércio em geral de Richard Cantillon (1680-1734).
Banqueiro e comerciante, de origem irlandesa, pouco se conhece de
sua vida. Seus Ensaios constituem um tratado brilhante que, sob
influência do método newtoniano, busca a descoberta de princípios
básicos da vida econômica. Em analogia com o princípio universal da
gravitação, Cantillon localiza o motor do processo de ajuste dos
mercados na busca autointeressada do lucro. Todo o sistema
econômico é visto como um processo de ajuste entre partes
conectadas, de modo que mudanças básicas na população, nos gostos
e na produção afetam umas às outras. É possível que seu legado
tenha sido ainda mais importante que o dos fisiocratas na formação
das ideias de Adam Smith. No entanto, a importância de Cantillon só
foi reconhecida no final do século XIX, quando foi, por assim dizer,
redescoberto por Willian Jevons. Com justiça, podemos considerá-lo
o autor do primeiro tratado sistemático de economia.
Em Cantillon, pela primeira vez, ao que consta, a variável
demográfica é incorporada como parte de um modelo econômico.
Também de modo pioneiro ele oferece uma explicação racional
para a localização espacial das cidades e da atividade econômica.
Entretanto, queremos destacar três aspectos da contribuição de
Cantillon:
1. A estrutura das classes sociais.
2. A teoria dos preços e a descrição do sistema de mercado.
3. A teoria monetária e os fluxos de renda.
Cantillon parte da existência da propriedade privada como um
requisito para o funcionamento dos mercados. A sociedade é
composta por quatro classes: nobres, proprietários de terra, em-
presários e assalariados. As duas primeiras são os segmentos das
pessoas financeiramente independentes, que não precisam tra-
balhar, e tão somente fornecem suas propriedades para que os
produtores possam extrair delas os recursos naturais. As proprie-
dades incluem terra e capital físico em geral. Os empresários
ocupam uma posição intermediária, seu papel consiste em operar
nos mercados de produtos e fatores de produção procurando tirar
vantagem do sistema de preços de modo que da ação deles dependa
o mecanismo de ajuste entre oferta e demanda em cada mercado.
Eles também são os que contratam trabalhadores e organizam a
produção. Os assalariados trabalham por remuneração fixa, en-
quanto o empresário tem uma renda incerta, pois é ele quem corre

104
o risco: quando produz não sabe o preço a que poderá vender o
produto.
Tal divisão social em classes era um procedimento analítico
ainda pouco usual nos escritos econômicos. Frequentemente atri-
bui-se aos fisiocratas a introdução de classes sociais na análise
econômica, mas, sem dúvida, antes deles Cantillon já raciocinava
em termos delas. O representante típico da classe empresarial é o
fazendeiro, pois os modernos métodos capitalistas de produção
estavam mais disseminados na área rural da França. Toda troca e
circulação de bens que aciona o sistema econômico parte da classe
dos empresários e, sendo assim, estes ocupam nele uma posição
vital.
Cantillon descreve a economia como um sistema organizado
de mercados interconectados que afetam uns aos outros, no
interior do qual atuam indivíduos em relação de dependência
mútua. O sistema ajusta-se pela ação de empresários autointeres-
sados que operam nos mercados comprando, vendendo e organi-
zando a produção em condições de incerteza. Com o tempo, os
mercados tendem a se estabelecer na situação de equilíbrio. No
equilíbrio de longo prazo, os preços estabilizam-se em torno do
custo real de produção. Nessa condição, Cantillon define o conceito
de valor intrínseco, que pode ser reduzido a quantidades e quali-
dades de terra e trabalho humano que entraram na produção. A
tentativa de fundamentar os preços em alguma medida de custo
real não é bem-sucedida e falta-lhe maior clareza, por exemplo, em
como se definem as diferentes qualidades de terra e trabalho e
como unidades de terra e trabalho podem ser comparadas entre si,
questões também enfrentadas e igualmente não resolvidas por
Petty.
A contribuição analítica mais importante de Cantillon diz
respeito à sua descrição do processo de convergência para os valores
de equilíbrio. No curto prazo, ele enfatiza a noção de preço de
mercado dando-lhe uma interpretação subjetivista que realça, em
sua determinação, os humores e caprichos dos agentes envolvidos,
bem como o desejo de consumo deles. No longo prazo, os preços
estabilizam-se nos valores intrínsecos (Boxe 4.12).
Há outra ordem de ideias em Cantillon que seria depois aperfei-
çoada pelos fisiocratas. Ele desenvolve um modelo de fluxo de rendas
em circulação entre as classes sociais. Há três canais de transmissão
de renda: o que vai dos fazendeiros para os proprietários, na forma de
pagamento de aluguéis; o fluxo entre os primeiros e trabalhadores,
proprietários de matérias-primas e vendedores de bens manufatura-
105
dos, que corresponde aos pagamentos dos fazendeiros na aquisição de
bens e serviços. Por fim, resta o fluxo interno entre os próprios
fazendeiros, obtido como resíduo ou renda líquida dessa classe. A
noção de fluxos de pagamento entre classes sociais, embora ainda
embrionária em Cantillon, conhecerá em François Quesnay grande
aprimoramento, em que um esquema bastante complexo dos fluxos
de recebimentos e gastos em cada setor será proporcionado pelo
Quadro econômico, sua principal obra.

Boxe 4.12 Cantillon e o mecanismo de mercado.

Nos Ensaios sobre a natureza do comércio em geral, Richard Cantillon,


considera que os preços de mercado se afastam dos valores intrínsecos na
medida em que os planos de produtores e de seus clientes não estejam
perfeitamente coordenados. Planos inconsistentes distanciam temporaria-
mente os preços de seus custos. Os preços funcionam como uma rede de sinais
que serve para conectar mercados diferentes. Os homens, movidos pelo
autointeresse, reagem aos sinais dos preços e entram em diferentes mercados
vendendo e comprando de modo a explorar as diferenças observadas entre
preços praticados e valores intrínsecos. A própria ação dos agentes, à medida
que desloca a oferta e a demanda, leva a uma mudança nos preços relativos,
sinalizando novas estratégias até que os planos de compradores e vendedores
se tornem compatíveis. O mesmo processo também se verifica no mercado de
fatores e conduz à realocação constante de trabalho e de outros insumos
produtivos até que a demanda se iguale à oferta. Tal mecanismo explica, por
exemplo, como as forças naturais alocam o trabalho em seus diferentes
empregos. É verdadeiramente surpreendente a fecundidade das ideias
econômicas contidas nos Ensaios. Smith interpreta a economia de mercado
tomando na íntegra o esquema de Cantillon do funcionamento dos mercados.

A análise dos fluxos de renda está integrada a uma teoria


monetária bastante desenvolvida. A relação entre moeda e preços já
era bem conhecida entre os economistas. Faltava, no entanto, melhor
entendimento da cadeia causal em que as moedas afetariam os preços.
Locke havia lançado uma explicação em termos do que hoje é
conhecido como teoria quantitativa da moeda, mas a grande difi-
culdade, ainda não resolvida, consistia em mostrar de que maneira e
em que proporção variações monetárias impactariam os preços. A
ideia popularizada até então era a de que acréscimos de moeda nas
mãos do público afetariam o nível agregado das despesas, que por sua
vez levaria a um aumento da produção. A pressão da demanda dos
produtores elevaria os custos e finalmente os preços dos bens finais.
Cantillon tratou dessa questão embasado em sólida pesquisa empí-
106
rica; assim como Petty ele também tinha grande habilidade na coleta
e na análise de dados. Estimou então o estoque de moeda necessário
para o bom funcionamento da economia com base em um estudo
minucioso da velocidade de circulação da moeda. Sua pesquisa empí-
rica acabou revelando-lhe o princípio analítico de se separar o nível
geral de preços dos preços relativos.
Cantillon ficou convencido de que a ênfase no nível geral de
preços encobre o aspecto mais fundamental de como as emissões
monetárias afetam os preços relativos entre diferentes setores da
economia. Dependendo de como a moeda entra no sistema econô-
mico, ou seja, das mãos em que ela passa primeiro, poderia afetar
prioritariamente o consumo ou a poupança. Quando se destina aos
que consomem proporcionalmente mais, o aumento da demanda de
bens finais estimula o aumento da produção e a decisão de investir.
Como não haveria acréscimos significativos nos fundos para
investimentos, a concorrência no mercado de fundos conduziria a
uma elevação nas taxas de juros. Por outro lado, se a moeda adicional
é transferida inicialmente aos que poupam mais, a menor pressão da
demanda de bens finais e a disponibilidade maior de fundos redu-
ziriam as taxas de juros. No primeiro caso, temos aumento dos juros
e pressões inflacionárias, na segunda hipótese ocorre redução dos
juros e menor influência sobre os preços. Assim, o mecanismo
automático de ligação entre moeda e preços é questionado na análise
setorial de Cantillon. Apenas no fim do século XIX esse tipo de análise
dos elos microeconômicos da teoria monetária é retomado.
Para completar o quadro dos antecessores de Adam Smith,
apresentaremos, na última seção do capítulo, a escola fisiocrata.

OS FISIOCRATAS
Em meados do século XVIII aparece na França o primeiro
grupo de pensadores de questões econômicas organizado formal-
mente em escola. Eles intitulavam a si mesmos de “economistas”,
expressão não muito usual à época, mas vieram a se tornar
conhecidos como fisiocratas, adeptos da escola da fisiocracia. A raiz
da palavra fisiocracia significa “governo (ou regra) da natureza”, e
revela um aspecto fundamental da crença que os une, quer seja, a
ideia de que a sociedade e a economia funcionam de acordo com
uma ordem natural. Todos os fatos sociais e econômicos estão
intimamente ligados e sujeitos a leis inevitáveis. Sendo assim, tanto
o governo quanto o setor privado devem, em suas ações, entender
e observar tais leis se desejam alcançar resultados ótimos. A ordem

107
natural da sociedade apresenta, portanto, o caráter de um modelo
ideal, que não é estabelecido na prática quando os homens criam
obstáculos a seu bom funcionamento.
A natureza social é fruto do desígnio de Deus que a constrói
estabelecendo entre seus elementos relações matemáticas. Embora
a fé religiosa possa revelar o conteúdo da doutrina moral e política
que rege a sociedade, o entendimento da esfera econômica cons-
trói-se com base na observação dos fatos e da articulação dos dados
quantitativos fornecidos pelos preços em um sistema de cálculo
matemático. O trabalho do economista consiste na observação
metódica, bem como no arranjo e na organização dos fatos de
acordo com suas causas e na proposição de um sistema analítico
em modelo teórico. Assim, a ciência econômica copia o mesmo
método das ciências físicas. Seu objetivo precípuo é o de analisar a
mecânica da interdependência das partes que compõem uma
totalidade. A vida econômica configura uma máquina semelhante a
organismo vivo, e a análise mecânica e matemática dela permite à
teoria acompanhar seu modo de funcionamento.
A preocupação dos fisiocratas consiste em identificar os
princípios racionais que regem a produção e a acumulação de
riquezas, bem como a distribuição de renda e os fluxos de gastos.
No primeiro caso, enfatizam o processo de investimento produ-
tivo, pensado como adiantamento de capital de giro e emprego de
capital fixo. No que tange à geração de renda e de gastos, os
fisiocratas descrevem um processo anual de interação mútua entre
classes sociais como um fluxo circular de renda e despesa. A
compreensão do fluxo é importante, pois identifica o âmago do
funcionamento do sistema econômico em analogia aos fluxos
sanguíneos do organismo biológico. Os efeitos das políticas
intervencionistas podem ser antecipados pelo entendimento do
organismo econômico. A boa política deve procurar ampliar o fluxo
circular, o que impulsiona o crescimento econômico.
A produção e a distribuição de riquezas ocorrem ao longo de
um circuito composto por diversos elos. A política econômica, ao
afetar determinado elo, comunica um efeito à economia como um
todo. O fator-chave da atividade econômica é a agricultura. De fato,
na França do século XVIII a atividade agrícola era o setor mais
importante. O método capitalista de direção empresarial havia-se
difundido mais na agricultura, que se constitui assim no carro-chefe
da economia francesa. Refletindo a organização do trabalho vigente
na França do período, os fisiocratas vão identificar na agricultura o
setor natural para a implementação dos métodos capitalistas,

108
enquanto nas atividades urbanas veem a estrutura tipicamente
artesanal como a forma natural de gestão. O capitalismo é um
sistema de produção com base nas trocas de mercado que tem
como princípio de funcionamento a geração de excedente, sua
aplicação produtiva e sua ampliação.
O capitalismo pressupõe o direito de propriedade e, em sua forma
pura, não admite restrições a esse direito. No entanto, no plano da
ordem natural os fisiocratas argumentam que tal direito se deveria
fundamentar no trabalho humano despendido. Nesse ponto, os
fisiocratas seguem John Locke na defesa dos direitos individuais e no
uso deles para justificar a propriedade privada. Também defendem a
liberdade de mercado e acreditam que o autointeresse individual
esteja na base do funcionamento harmônico da economia. Os fisio-
cratas combatem as medidas intervencionistas do governo e têm
como máxima o conhecido bordão laissez-faire, laissez-passer, que
apela para a liberdade de produção (permitam que façam!) e de
comércio (deixai que passem!). A crítica ao controle da autoridade não
significa que os homens não tenham de se submeter a algum poder.
No entanto, tal poder, no caso, é a própria lei natural que se deve
observar para a consecução plena dos objetivos colimados.
O excedente é um conceito importante dos fisiocratas e signi-
fica a riqueza produzida que não é consumida. Os fisiocratas acredi-
tam que o excedente só ocorre na agricultura. Sendo o capitalismo
um sistema de geração de excedentes, somente na agricultura ocorre
a produção nos moldes capitalistas. Como este é o único setor que
gera mais do que é consumido no processo, ele é tido como o único
segmento produtivo. A atividade manufatureira apenas muda a for-
ma dos bens. É claro que por seu concurso os bens tornam-se mais
úteis, entretanto, só a agricultura é capaz de criar riqueza adicional.
O que confere um status privilegiado à agricultura é a ação,
exclusivamente nela, de forças naturais que ocorrem no campo e que
propiciam o crescimento do ser vivo: a planta que se desenvolve, a
árvore que floresce etc. O mesmo processo não é identificado na
indústria. O excedente é a apropriação dessas benesses da natureza.
Toda a fonte da riqueza advém do excedente, só ele contribui para a
formação do produto líquido (a produção que ultrapassa o consumo
no período).
A escola fisiocrata era formada por um grupo heterogêneo de
autores, dentre eles destacam-se:
1. Jacques Turgot: secretário de finanças de Luís XVI, autor de
reformas de inspiração liberal e propagandista da teoria do
direito natural. Muitos não o consideram fisiocrata, mas
109
somente um simpatizante do movimento. Turgot destaca-
se na análise do valor.
2. Marquês de Mirabeau: que cunhou, como vimos, a
expressão mercantilismo.
3. Mercier de la Rivière: uma das principais figuras, com farta
reflexão em filosofia política.
4. Du Pont de Nemours: migrou para os Estados Unidos e
ajudou a difundir as ideias fisiocratas por lá.
5. François Le Trosne: jurista e economista, o mais jovem do
grupo. Desenvolve em seus escritos uma análise do valor
em que considera fatores como utilidade, despesas na
produção, raridade do bem e concorrência.
6. Nicolas Baudeau: editor-chefe do jornal dos fisiocratas.
7. François Quesnay: o líder do movimento. Médico da corte
de Madame de Pompadour e Luís XV. Conheceu Smith
pessoalmente e influenciou-o com sua visão do processo
econômico. A sua obra Quadro econômico é a mais co-
nhecida da escola fisiocrata.
A contribuição dos fisiocratas insere-se nas críticas, muito em
voga na época, contra a política econômica de Luís XV. Impostos
opressivos eram cobrados da população para financiar os gastos
extravagantes da corte e o envolvimento em guerras que trouxe-
ram consequências desastrosas para o tesouro francês. No entanto,
os nobres e os membros do clero beneficiavam-se de isenções
fiscais, embora fossem donos de dois terços das terras. Os fisio-
cratas reagiam a esse estado de coisas. Acreditavam que o recei-
tuário de medidas mercantilistas levaria à ruína do reino. As
políticas para estimular as exportações resultaram no encolhi-
mento do mercado interno, dos salários e da renda gerada na
economia. A produção agrícola sofria com os impostos abusivos e,
mais grave, os impostos afetavam o crescimento econômico por
impedir a acumulação de capital.
A obra que melhor sistematizou a nova visão da economia e
que serviria como guia científico para a reforma econômica foi o
Quadro econômico (“Tableau Économique”) de Quesnay. Ele
percebeu que uma compreensão do processo de interação entre as
classes sociais por meio de fluxos de renda e despesas seria
fundamental para se restaurar a política econômica. Ele concebe a
sociedade por meio de três classes socioeconômicas:

110
1. Classe produtiva, formada basicamente por agricultores,
mas que poderia incluir também pescadores e minera-
dores.
2. Classe estéril, em que participam manufatureiros, merca-
dores, servos e profissionais liberais.
3. Proprietários de terra e de outros bens.
Alguns comentadores atribuem a Quesnay a primeira proposta
de se pensar a economia em termos de classes sociais e fluxos de renda
entre elas, mas já vimos que antes dele tal enfoque aparece em
Cantillon, embora no Quadro econômico ele esteja mais bem
desenvolvido.
Quesnay oferece uma complicada tabela numérica na qual
traça em zigue-zague os fluxos de renda e despesa agregadas entre
as classes. O fluxo circular da economia, representado por ela,
mostra como as despesas de um setor geram as receitas de outros,
dentro de um modelo fechado e estático. A origem das despesas é a
renda recebida pelos senhores de terra. Tal renda é o produto
líquido do período anterior pago no início do novo período pelos
fazendeiros. A renda total que emana dos fazendeiros movimenta a
atividade econômica das três classes ao longo do período, e no final
retorna a eles. A cada período, o processo se repete. Exempli-
ficando, suponhamos que o produto total da economia no fim do
período produtivo anual seja de cinco unidades monetárias que se
encontram inicialmente nas mãos da classe produtiva. O excedente
sobre os custos necessários para essa produção é o produto líquido
que é transferido para o pagamento de aluguel. Assim, duas
unidades monetárias são canalizadas integralmente aos proprie-
tários. O período seguinte começa com os proprietários gastando o
que têm, comprando $ 1 de manufaturas da classe estéril e $ 1 dos
mesmos fazendeiros na aquisição de alimentos. Os fazendeiros
adquirem $ 1 de manufaturas da classe estéril e $ 2 de alimentos
deles mesmos. Os artesãos e outros membros da classe estéril
gastam o rendimento adquirido no período comprando $ 1 de
alimentos e $ 1 de matérias-primas dos fazendeiros. Destarte, as
cinco unidades monetárias iniciais retornam à classe produtiva no
fim do período, como demonstra a Figura 4.1, na qual estão
representados os vários fluxos de rendas e despesas anuais.

111
Figura 4.1 Diagrama dos fluxos de rendas e despesas
identificadas por Quesnay.

No diagrama, as setas contínuas representam as despesas da


classe produtiva e as setas pontilhadas indicam as receitas.
Percebe-se facilmente que os cinco de despesas transformam-se
integralmente em receitas, restabelecendo-se a mesma condição do
início do período. O esquema traçado no quadro de Quesnay não
apenas mostra como as condições iniciais são reproduzidas, pois,
além disso, indica também as condições requeridas para o
crescimento econômico. A fim de manter a economia no mesmo
nível de produção, são necessários gastos de capital chamados de
adiantamentos. Quesnay fala em quatro tipos de adiantamentos:
1. Adiantamentos anuais (avances annuelles): o capital de
giro da produção agrícola.
2. Adiantamentos primitivos (avances primitives): para a
reposição das ferramentas agrícolas.
3. Adiantamentos em melhorias permanentes (avances
fonciéres).
4. Adiantamentos para o capital fixo social aplicado pelo
governo em estradas, canais, portos etc. (avances souve-
raines).
Para o fazendeiro, importa principalmente os adiantamentos
anuais e primitivos. Se houver uma queda deles, a produção não
poderá sustentar-se no nível anterior. Portanto, a descrição dos
fluxos econômicos no quadro também considera os adiantamentos.
112
Quesnay parte da hipótese de que o adiantamento anual é feito pela
classe produtiva e o adiantamento primitivo pela classe estéril.
Podemos transmitir uma noção do quadro econômico dos
fluxos entre as classes sociais sem apresentá-lo como em Quesnay,
evitando-se assim uma construção demasiado complexa, mas re-
tendo aspectos essenciais de sua representação. Para tanto,
construiremos a seguir dois quadros bastante simples, um para o
fluxo monetário e outro para o fluxo real das mercadorias.
No lado real, trabalha-se com alguns números meramente
hipotéticos: três unidades físicas de mercadorias na classe produ-
tiva e três unidades retidas pela classe estéril. As três unidades da
classe produtiva correspondem ao adiantamento anual, composto
de uma unidade de alimento e uma de manufatura, destinadas ao
sustento dos trabalhadores, e uma de matéria-prima para a
produção. Das três unidades da classe estéril, uma delas será cedida
à classe produtiva como adiantamento primitivo, trata-se de
matéria-prima. O adiantamento primitivo é feito no começo do
período pela classe estéril e serve para repor o capital fixo que se
depreciará no período. As duas unidades de mercadorias que
permanecem na classe estéril são constituídas por alimento, para
os trabalhadores do setor, e matéria-prima, para a produção de
mercadoria (os trabalhadores da classe estéril não demandam
manufatura, apenas como hipótese simplificadora).
No final do período de produção, a agricultura gera três
unidades de alimentos e três de matérias-primas. Como para a
produção final dessas seis unidades foram requeridas três de
adiantamento anual e uma unidade de adiantamento primitivo,
estamos considerando o produto líquido do setor igual a dois. A
classe agrícola retém, ao final, o produto líquido de uma unidade de
alimento e uma de matéria-prima.
Os fluxos das transações com mercadorias ao longo do período
produtivo reproduzem as condições iniciais. As duas unidades que
correspondem ao produto líquido são transferidas para os
proprietários. Estes retêm uma unidade de alimento para consumo
e trocam a outra por uma unidade de manufatura. Depois, a classe
produtiva troca uma unidade de alimento por uma de manufatura
com a classe estéril. Como a classe agrícola cedeu duas de alimentos
e uma unidade de matéria-prima, ainda lhe restam da produção
uma unidade de alimento e duas de matérias-primas, já que tinha
produzido três unidades de alimentos e três de matérias-primas.
Falta ainda considerar que uma unidade de matéria-prima perten-
ce, na verdade, à classe estéril que foi responsável pelo adian-
113
tamento primitivo. Assim, em última instância as condições iniciais
do problema estão reproduzidas ao fim destes movimentos. O
Quadro 4.1, diferente do quadro de Quesnay, facilita bastante
acompanhar o raciocínio anterior, mas não se assemelha aos qua-
dros em ziguezague do francês.

Quadro 4.1 Fluxos reais.


Quadro dos Fluxos Reais

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
Adiantamentos 4 (1a,2mp,1m) 0 - 1 (mp)
Produção 6 (3a,3mp) 0 2 (m)
Transferências 2 (1a,1mp)
1 (mp)
1 (m)
1 (m)
1 (a)
1(mp)
Dotação Final 3 (1a,1mp,1m) 0 3 (1a,2mp)
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura

Essa descrição simplificada dos fluxos reais no quadro de


Quesnay pode ser complementada com os fluxos monetários.
Trabalha-se com a hipótese de que as transações possam ser
sancionadas por duas unidades monetárias em mãos inicialmente
da classe agrícola. A seguir representamos os fluxos monetários em
um novo quadro. A classe produtiva paga $ 2 de aluguéis aos
proprietários que compram $ 1 de manufaturas e $ 1 de alimentos.
A classe estéril, por sua vez, compra $ 1 de alimentos. A classe
agrícola usa este montante para comprar $ 1 de manufaturas e
finalmente a classe estéril compra $ 1 de matérias-primas junto à
classe agrícola. A última linha do Quadro 4.2 mostra que a classe
produtiva termina com os mesmos $ 2 que possuía no início.

114
Quadro 4.2 Representação dos fluxos monetários.
Quadro dos Fluxos Monetários

Classe produtiva Proprietários Classe estéril


Dotação inicial $2 0 0
Transferências $2
m $1
$1 a
$1 a
m $1
$1 mp
Dotação Final $2 0 0
a : alimento
mp : matéria prima
m : manufatura

A classe estéril recebe uma unidade de matéria-prima em troca


de uma unidade dela em adiantamento. Assim, ela não recebe juros
pelo adiantamento. O quadro de Quesnay, portanto, não contempla
o pagamento de juros. Juros em sua terminologia é tão somente a
restituição do principal do montante emprestado.
No processo de acumulação, o nível de renda da economia
eleva-se desde que sejam propiciados maiores adiantamentos à
produção. Assim, o fenômeno do crescimento econômico é oca-
sionado por investimentos crescentes. Crescimento implica acu-
mulação de capital produtivo. Tal interpretação leva Quesnay a
advogar a favor de todo tipo de política que estimule a acumulação.
A ênfase recai na aplicação do capital na agricultura. É necessário
ainda não prejudicar a agricultura com taxas que incidam sobre o
produtor. Deve-se taxar, preferencialmente, os proprietários de
terra, pois eles destinam o produto líquido basicamente ao consu-
mo. Contudo, Quesnay não é inimigo do proprietário de terra. Pelo
contrário, ele mostra-se um grande defensor da propriedade priva-
da. Na verdade, o proprietário não é apenas a figura do consumidor,
já que são eles os responsáveis pelos avances fonciéres que produ-
zem melhorias permanentes nas terras. Quesnay acreditava que os
proprietários de terra seriam depois recompensados pelo aumento
de impostos, pois a adoção das políticas que recomenda levaria, no
futuro, a um aumento na renda da terra que mais do que compen-
saria a carga tributária adicional.

115
A elevação da renda da terra viria com a liberdade de comércio
e com as políticas de estímulo ao investimento agrícola. O efeito da
acumulação de capital seria a intensificação do fluxo circular, o
aumento da demanda por bens agrícolas e o consequente aumento
da renda agrária.
As medidas econômicas apregoadas pelos fisiocratas tiveram
algum prestígio na França, mas com o tempo sua importância
declinou rapidamente. O sistema teórico dos fisiocratas tinha
grande mérito, mas também apresentava falha gritante. Na
avaliação deste, aparece como importante contribuição os concei-
tos de excedente e de adiantamento, e ainda a noção correta de que
o crescimento econômico dependeria do volume de investimentos
em cada período. Outrossim, a ideia de que a carga fiscal deveria
penalizar menos a produção e mais o consumo dos proprietários
mostrou-se adequada para a época. Outras medidas que visavam
estimular a produção também se mostraram corretas, como o teto
legal dos juros, o fim das restrições à circulação de mercadorias e
outras. Por outro lado, pode-se destacar algumas falhas na análise
fisiocrata que seriam sanadas com a evolução da economia
científica.
Embora a questão do valor fosse objeto de análise de fisio-
cratas como Turgot e Le Trosne, o próprio Quesnay não propôs
nenhuma teoria do valor. Em consequência, seu sistema teórico não
atacou satisfatoriamente o problema da avaliação do excedente. O
resultado da produção era comparado aos insumos apenas em
termos físicos. Por vezes, o valor monetário do produto líquido era
calculado simplesmente com base nos preços de mercado. Na
ausência de uma teoria do valor consistente em Quesnay, o exce-
dente não era de fato explicado. Isso foi claramente percebido por
Adam Smith que tratou de desenvolver uma teoria do valor antes
de esquematizar uma teoria do crescimento apoiada na acumula-
ção de capital à la Quesnay.
Quesnay não incorporou, em seu sistema, a existência de juros
e nem um papel para o lucro dos capitais. Se o excedente gerado
com base nas inversões de capitais pertence ao proprietário de
terra, não se identifica a razão para o fazendeiro investir. Além das
deficiências conceituais, a teoria dos fisiocratas era repleta de
considerações normativas. Eles achavam que só a agricultura era
produtiva, pois, nessa visão, somente a produtividade da terra
explica a formação do excedente. Ora, sabemos que na indústria
também participam processos naturais, por exemplo, o ar permite
que a pintura de uma peça seque, a ação da eletricidade possibilita

116
a reação química etc. De fato, nos processos industriais também
ocorrem mudanças qualitativas e quantitativas dos insumos. Isto
não é prerrogativa apenas da agricultura. Os fisiocratas consideram
que a atividade industrial cria utilidades, mas, mesmo assim, não
seriam produtivas. No entanto, se as novas utilidades acrescentam
valor à mercadoria, também aí se pode falar em geração de
excedente e a atividade industrial seria produtiva. Outro argumen-
to criticável leva em conta a formação de preços nos mercados. Se
há algum grau de monopólio, mesmo a longo prazo, os preços ficam
acima do custo marginal, como nos ensina a teoria microeconômica
atual. Haveria um excedente de produção sempre que se verifique
um grau de monopólio, não importando tratar-se de atividade
agrícola ou manufatureira.
A concepção do sistema econômico como uma ordem com-
plexa, em que se verifica um amplo processo de interação entre as
partes constituintes em analogia a um corpo humano, é um
importante preceito da análise fisiocrata. No mais, ele confirma a
tendência do século XVIII de reconhecer uma ordem natural
subjacente aos fenômenos econômicos. A par de suas limitações
analíticas, a influência fisiocrata foi decisiva em Adam Smith, de
modo que podemos localizar também nessa escola o berço da
economia científica.

117
Questões

1. Comente alguns dos problemas práticos trazidos pela expansão


do comércio no século XVI. Por que a física de Aristóteles se
mostrou inapropriada na solução deles e qual a relação entre as
inovações tecnológicas e o desenvolvimento dessa ciência?
2. Até que ponto é correto afirmar que a ciência de Aristóteles não
dava a devida atenção à experiência prática?
3. Por que, no desenvolvimento da ciência, as ideias sobre a
existência ou não do vácuo tiveram um papel importante?
4. O que há de importante na teoria política de Maquiavel?
5. Compare entre si os métodos científicos de Bacon, Descartes e
Newton.
6. O empirismo de Bacon pode ser considerado ingênuo?
7. Qual o significado da expressão “penso, logo existo” de Descar-
tes?
8. Comente a seguinte passagem deste capítulo: “Isaac Newton
inaugurou um estilo intermediário entre a tradição aristotélica
e o empirismo baconiano.”
9. Em que diferem as ideias de Hobbes e Locke quanto à origem da
sociedade?
10. A explicação do valor em Locke é a mesma de William Petty?
Justifique.
11. Qual o significado do advento do individualismo a partir do
século XVII? É possível relacioná-lo com as novas concepções
religiosas da época?
12. Que ideia do processo social Mandeville expressa em sua
Fábula das abelhas?
13. Resuma a reforma monetária proposta por Boisguillebert.
14. Explique como, na interpretação de Cantillon, os preços de
mercado aproximam-se dos valores intrínsecos pela ação do
mecanismo de mercado.
15. Assinale os elementos mais inovadores da teoria monetária de
Cantillon.
16. De que modo Quesnay descreve a mecânica de interdepen-
dência dos setores da sociedade no Quadro econômico? Mostre
como as despesas de um setor geram as receitas em outros
118
setores ao longo de um período, e como o processo reproduz-
se no período seguinte. Por que para Quesnay o setor agrícola
é a única classe produtiva?
17. Como é possível a medida do excedente, no modelo de
Quesnay, sem uma teoria do valor. Quais as hipóteses adotadas
por esse autor que permitem a ele efetuar tal medida?
18. O que leva, para Quesnay, ao aumento do excedente agrícola?
E por que se diz que ele foi o primeiro a conceber uma teoria
do crescimento nos moldes da economia clássica?
19. Quesnay era contra os interesses dos proprietários de terra?
Justifique.
20. Quais as maiores deficiências na teoria de Quesnay que seriam
depois sanadas com o desenvolvimento da economia clássica?

119
Leitura Adicional

Literatura Primária

ARISTÓTELES. Organon, livro IV: analíticos posteriores. Lisboa:


Guimarães Editores, 1987. Itens 1 a 10, p. 9-42. (Filosofia e
Ensaios.)

BACON, Francis. Novum Organum: ou verdadeiras indicações acerca


da interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultu-ral, 1993.
(Os Pensadores.) v. 13.

CANTILLON, Richard. Essay on the nature of commerce. The history


of economic thought. <http://www.cepa.newschool. edu>

DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Bauru: Edipro, 1996.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria e poder de um estado


eclesiástico e civil. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da Moeda,
1999.

MAQUIAVEL, Nicolau. Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. São


Paulo: Nova Cultural, 1996.

QUESNAY, François. Quadro econômico. Lisboa: Fundação Ca-louste


Gulbenkian [s.d.].

Literatura Secundária

BIANCHI, Ana Maria. A pré-história da economia: de Maquiavel a


Adam Smith. São Paulo: Hucitec, 1988.

DEANE, Phillis. A evolução das ideias econômicas. Rio de Janei-ro:


Zahar, 1980.

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa: Li-vros


Horizonte, 1993.

EKELUND JR., Robert; HÉBERT, Robert F. A history of economic theory


and method. New York: McGraw-Hill, 1990.

120
HANEY, Lewis H. History of economic thought: a critical account of
the origin and development of the economic theories of the
leading thinkers in the leading nations. New York: Macmillan,
1949.

HEILBRONER, Robert. A história do pensamento econômico. São


Paulo: Nova Cultural, 1996.

NAPOLEONI, Claudio. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro: Graal,


1988.

HESSEN, Boris. As ideias sociais e econômicas dos “principia” de


Newton. Revista Brasileira de Física, v. 6, 1, 1984.

RANDALL, J. H. Aristotle. New York: Columbia University Press, 1960.

ROSA, Luis Pinguelli. A dinâmica de Aristóteles e a estática de


Arquimedes: versão preliminar. São Paulo: Instituto de Física da
Universidade de São Paulo [s.d.]. Mimeo.

SCHENBERG, Mário. Pensando a física. São Paulo: Brasiliense, 1983.

121
122
5
Adam Smith

TEORIA MORAL E FILOSOFIA DA CIÊNCIA


É pelo fato de a visão preponderante da economia no século
XVIII ter caminhado firmemente em direção à ideia de ordem
natural que os avanços na física e nas demais ciências naturais são
bastante relevantes na emergência da economia como ciência. Os
economistas buscam deliberadamente imitar o método da física, já
que acreditam também tratar a ciência econômica de fenômenos
naturais. Não é mera coincidência que o campo social tenha atraído
médicos como François Quesnay e homens com sólida formação em
ciência natural como Adam Smith.
No fim dos setecentos, Boisguillebert crê que a vida econô-
mica é governada por mecanismos naturais. No começo do século
em questão, a influência newtoniana faz-se presente na obra de
Richard Cantillon, que pensa a economia como Newton pensou o
cosmos: uma totalidade composta por elementos interconectados
com funcionamento racional. O método newtoniano também teve
grande influência na obra de Smith.
Embora Adam Smith (1723-1790) seja considerado o pai da
economia política, sabemos hoje que boa parte de suas ideias já
estava presente em autores antecedentes como Quesnay e Can-
tillon. O esforço analítico de Smith deve-se muito a estes e outros
autores do século XVIII, por fornecerem elementos que irão
compor sua visão. Ele destacou-se pelo tratamento sistemático das
principais questões econômicas da época em um único tratado. A
qualidade literária e a pretensão didática de seu trabalho é
evidente. Há em sua principal obra em economia, A riqueza das
nações, inúmeras considerações históricas inéditas e até alguns
procedimentos originais no tratamento teórico. O mérito de Smith
recai, no entanto, mais em seu poder de síntese do que na
originalidade de seu sistema teórico.

123
Antes de expor, em outra parte, as ideias-mestras de seu
pensamento econômico, esta seção trata de suas concepções no
campo da ética e da filosofia da ciência. O estudo da filosofia de
Smith dificilmente seria apoiado apenas na leitura de A riqueza das
nações. É que ele não explicita nela seus pressupostos filosóficos e
metodológicos. Mais revelador nesse sentido é o ensaio smithiano
cujo título já revela seu conteúdo: Os princípios que guiam e
conduzem a investigação científica ilustrados pela história da
astronomia. Smith escreveu tal ensaio ainda muito jovem, entre
1746 e 1748, com pouco mais de 20 anos de idade, embora ele só
tenha aparecido ao público 19 anos depois da publicação de A
riqueza das nações, obra da sua fase madura. O estudo do método
de Smith com base em ensaio de início de carreira pressupõe, é
claro, a tese de que ele tenha mantido uma continuidade de visão
ao longo da vida. Hipótese aceita pela maioria dos estudiosos.
Sabemos que ele era muito culto, que lera e escrevera em
diversas áreas. Quando ainda jovem, foi enviado a Oxford para
estudar; ao chegar lá não teve orientação precisa nos estudos e, em
consequência, acabou dispersando o foco de interesse em diversas
áreas do conhecimento. Com poucos compromissos formais,
passava o dia na biblioteca da faculdade de Balliol, ligada à
Universidade de Oxford, em contato com os principais clássicos
gregos e latinos e com a literatura científica da época, incluindo-se
as obras de Newton, Bacon e Descartes. Depois, Smith viria a
escrever textos em diversas áreas incluindo filosofia moral e
estudos de linguística, bem como tratados de estética, arte, litera-
tura e metodologia da ciência. O ensaio História da astronomia
mostra claramente a influência do método newtoniano. Como
Newton, Smith não acredita que o conhecimento científico possua
um substrato ontológico verdadeiro. A teoria científica não
representa a apreensão da verdade última das coisas como em
Aristóteles. Destarte, a atividade científica justifica-se como uma
necessidade psicológica para o cientista (ou filósofo, como Smith
referia-se a ele).
O fim último da filosofia (ou ciência) é o repouso e a tranqui-
lidade da imaginação do filósofo. Entretanto, nem todos os homens
são filósofos. Estes surgem apenas em sociedades evoluídas, está-
veis e seguras, nas quais já se nota certa divisão de trabalhos de
modo a liberar determinados indivíduos da preocupação com o
sustento material. Tais pessoas são treinadas a pensarem sobre a
natureza e têm suas mentes especialmente condicionadas para o
desenvolvimento de certos sentimentos que conduzem a uma
reflexão filosófica das coisas. Os filósofos possuem mentes sensí-
124
veis e irrequietas, movidas por uma mecânica que os compele à
busca de prazer associado ao apaziguamento da imaginação.
Enquanto a imaginação do homem comum é indolente e preguiço-
sa, a do homem educado é curiosa. Ela só encontra tranquilidade
quando descobre os elos invisíveis entre dois fenômenos aparen-
tes. Assim, os filósofos são mentes curiosas que procuram as
cadeias ocultas dos fenômenos. O homem comum, como um arte-
são, contenta-se com as aparências e nunca percebe a existência
dos elos ocultos entre os fenômenos. A causa da investigação
científica é a busca de uma ponte entre as aparências, mas tal ponte
não precisa ser verdadeira ou mesmo provável; basta que ela
funcione para apaziguar os sentimentos.
Smith analisa o funcionamento da mente do filósofo pelo
exame de três sentimentos que ocorrem sempre na mesma sequên-
cia: a surpresa, o espanto e a admiração. Essa descrição da mente
humana com base na mecânica de sentimentos psicológicos lembra
René Descartes, que em seu Tratado das paixões da alma aplicou os
métodos da física a fatos humanos. Nele, Descartes discorre sobre
o processo de descoberta científica como sendo movido pela ação
de uma paixão fundamental a que denomina admiratio. Smith
também descreve um mecanismo psicológico para a descoberta
científica. Ambos não pretendem adotar um modelo mecânico que
aproxime a mente da máquina. Mesmo Descartes não segue modelo
rigorosamente mecânico da mente, premido pelas tensões de certo
“dualismo metafísico” que consiste em separar a mente das várias
diferentes substâncias que preenchem todos os corpos, de modo
que ela jamais possa ser explicada como um sistema físico. Fora a
semelhança na descrição do funcionamento da mente, a teoria de
Smith, de fato, não se confunde com a de Descartes, distinguindo-
se principalmente na questão do método. Não aderindo ao raciona-
lismo cartesiano, Smith dava muita importância aos dados dos
sentidos e às observações dos fenômenos; mais próximo, portanto,
da tradição de Bacon e Locke.
Embora a observação empírica tenha um grande valor em
Smith, o critério decisivo para a emergência de novas teorias é a
ação dos três sentimentos já citados. Primeiramente a ocorrência
de um fato inesperado, que já sabíamos existir, mas que não
esperávamos encontrá-lo no momento em que ocorreu, desperta
no filósofo o sentimento de surpresa:
“Ficamos surpresos com aquelas coisas que temos visto
com frequência, mas que de modo algum esperamos encon-

125
trar no lugar onde efetivamente as encontramos [...]” (Adam
Smith, A história da astronomia)
Tomado pela surpresa, o filósofo passa a preocupar-se com o
fenômeno e descobre nele aspectos novos e singulares. A novidade
desperta o sentimento de espanto, um estado extremo em que a
mente é tomada por fortes inquietações.
“Espantamo-nos com todos os objetos extraordinários e
incomuns; com todos os fenômenos raros na natureza, com
meteoros, cometas, eclipses; com plantas e animais singulares
e com todas as coisas, em suma, sobre as quais tenhamos tido
pouca ou nenhuma informação anterior [...]” (ibidem)
A busca do restabelecimento da tranquilidade mental leva à
proposição de um novo sistema explicativo que dê conta do fenô-
meno inusitado. As aparências, até então estranhas e desconexas,
são integradas como consequência lógica de uma nova construção
explicativa. Destarte, a mente volta a repousar em sua tranquili-
dade e o novo sistema desperta o sentimento de admiração. A
admiração é estimulada por grandeza e beleza do quadro contem-
plado pela nova teoria. Quanto maior esse sentimento, mais se
podem julgar a teoria alternativa e os resultados da investigação
como melhores que na explicação anterior.
Os sentimentos não apenas se sucedem na ordem em que os
colocamos, eles ainda influenciam uns aos outros:
“Surpresa de prazer quando a mente está afundada em
mágoa ou surpresa de mágoa quando ela está exaltada de
alegria são desta forma as mais insuportáveis [...] Não somente
a aflição e a alegria, mas todas as outras paixões são mais
violentas quando os extremos opostos se sucedem uns aos
outros [...] Até mesmo os objetos externos para os sentidos
afetam-nos de uma maneira mais vívida quando os máximos
de opostos se sucedem ou são postos lado a lado. Um frescor
moderado pareceria um calor insuportável se sentido após um
frio extremo.” (ibidem)
Smith explica que o sentimento de espanto se torna menos
intenso conforme o evento original, que o originou, repete-se e o
observador a ele vai habituando-se, diminuindo assim a novidade:
“Um pai que perdeu muitos filhos imediatamente um após
o outro será menos afetado com a morte do último do que com
a do primeiro, embora a perda em si seja neste caso
indubitavelmente maior [...]” (ibidem)

126
O ensaio smithiano A história da astronomia consiste em
aplicar a dinâmica dos sentimentos assim identificados na expli-
cação de como os sistemas astronômicos foram, desde a Antigui-
dade, sucedendo-se uns aos outros. Temos o antigo sistema grego,
substituído por Ptolomeu, Copérnico, Tycho Brahe, Kepler e
Newton. Cada sistema, uma vez proposto, vai tornando-se mais
complexo para salvar as aparências. Até que já não consegue mais
tranquilizar a imaginação como antes. O sentimento de espanto
leva os astrônomos a propor novo modelo. As teorias astronômicas
são ficções para tranquilizar a imaginação.
A principal influência exercida sobre Smith em sua aborda-
gem da história da astronomia advém de David Hume. A teoria do
conhecimento de Hume, apresentada no Tratado da natureza
humana de 1739, também analisa o funcionamento da mente no
processo de aquisição de conhecimento. Hume discorre sobre as
paixões e caracteriza a mente humana como uma máquina
psicológica complexa. Ao contrário de Descartes, Hume acredita
que as ideias não são inatas e que o trabalho do intelecto consiste
em relacionar fatos assimilados pelos sentidos e pela experiência.
As assertivas sobre as propriedades reais dos objetos externos não
podem ser demonstradas verdadeiras. Hume é céptico com relação
às pretensões do empirismo baconiano em obter a verdade das
coisas da observação de fatos. Lança então o famoso “problema de
Hume” que contesta a possibilidade de firmar a certeza de uma lei
universal. É suficiente para a ciência propor enunciados respal-
dados no que a observação veio a transformar em hábito. Admite-
se, portanto, a inevitabilidade da ignorância humana em conhecer
o âmago das coisas. Isso é próximo ao método newtoniano.
Smith nutria grande admiração por Hume e é certo que é do
programa deste que ele segue a estratégia de entender a empresa
científica com base em considerações sobre a natureza humana,
sob a hipótese de que tal natureza seja única, mesmo entre homens
separados no tempo e no espaço. Hume, antes de Smith, destaca o
papel da imaginação na teoria do conhecimento.
O método newtoniano, que influenciou Hume e Smith, consiste
na busca de princípios que possibilitam identificar uma ordem
subjacente a fenômenos aparentemente caóticos. Os princípios em
si mesmos não precisam ser verdadeiros, mas funcionam como
uma convenção psicológica que permite salvar as aparências e, com
isso, tranquilizar a imaginação.
Curiosamente o próprio Newton preocupou-se, em certo mo-
mento de sua vida, com questões econômicas. Ele foi diretor da
127
Casa da Moeda da Inglaterra em 1717 e deve-se a ele a primeira
tentativa de estabelecer um preço oficial para o ouro em 85 xelins
por onça. Smith leu muito do que escrevera Newton e na História
da astronomia conclui o ensaio com uma descrição entusiasmada
das descobertas da física newtoniana. Smith gostava de matemática
e de “filosofia natural”. Newton e Smith compartilham o mesmo
método de raciocinar em ciência, que toma os princípios elabora-
dos pela intuição e apoiados na indução de fenômenos e depois,
com base neles, deduz novos fenômenos. Ambos mantêm o
ceticismo quanto ao realismo das premissas. Newton sempre
trabalha da mesma maneira: antes da apresentação da teoria lista
fenômenos já conhecidos, conforme se constata diversas vezes nas
partes iniciais em cada um dos livros que compõem os Princípios.
Os fenômenos justificam a proposição de princípios teóricos dos
quais são deduzidos novos fenômenos. A natureza última dos
princípios não importa, nem seu conteúdo de verdade. Sobre a
força da gravidade, Newton afirma que:
“Para nós é suficiente que a gravidade atue de acordo com
as leis que nós temos explicado e sirva, com sucesso, para dar
conta de todos os movimentos dos corpos celestes e do mar.”
(Isaac Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural)
Em analogia às leis gerais dos movimentos dos corpos na física,
Smith concebe leis gerais na economia. Na Riqueza das nações,
começa dizendo que a divisão do trabalho é o resultado necessário
da propensão humana a trocar uma coisa por outra. A propensão
humana à troca é pensada como um princípio que, ao ser desdo-
brado em suas consequências pela teoria, irá explicar a causa da
riqueza das nações. Tal princípio econômico deve ser pensado
como uma lei natural. No entanto, Smith não se propõe a deter-
minar se a propensão à troca é, ela mesma, um princípio original da
natureza humana ou se é uma consequência das faculdades da
razão e da fala. Conclui Smith dizendo que essa questão “não
pertence ao presente objeto de estudo”. Nenhuma tentativa de
provar a veracidade do princípio em questão é feita por Smith, pois,
no espírito do método newtoniano, é necessário tão somente postu-
lar sua existência e demonstrar como sua articulação no modelo
teórico conduz a conclusões que dão conta de explicar a realidade
aparente.
Em suma, o método comum em Newton e Smith pode ser
sintetizado da seguinte forma: começa-se com um princípio, ou
poucos princípios básicos, que são inferidos no processo de expli-
cação de casos mais ou menos triviais. Em seguida, tenta-se explicar

128
o mundo dos fatos observáveis, buscando-se mostrar como tais
fatos são derivados desses princípios. Os eventos são classificados
(na Riqueza das nações as várias formas de remuneração dos
agentes são classificadas em salários, lucro e renda) e as classes de
eventos são vistas como resultado do jogo de princípios. A teoria
procura elaborar um sistema no interior do qual operam os
princípios elementares, de tal forma que fenômenos que pareciam
os mais inexplicáveis são todos deduzidos com base nos princípios
e atados a uma única cadeia. A teoria é julgada pelo poder preditivo,
em adição conta também elementos estéticos tais como simplici-
dade, coerência e beleza. Em todo caso, ela é sempre uma invenção
de uma imaginação particular que poderá eventualmente também
cativar a imaginação dos demais.
Em seu nascimento como ciência, o fenômeno econômico é
pensado como uma ordem natural tratada pelos mesmos métodos
da física. Isso, como vimos, já está bem sedimentado mesmo entre
os precursores de Smith. A construção teórica do sistema, no
entanto, requer a especificação de hipóteses comportamentais dos
agentes. O modelo parte da ideia de indivíduos autointeressados.
Ora, vimos no capítulo anterior que os filósofos éticos ingleses
procuram conciliar essa premissa com as qualidades morais que
acreditam existir na espécie humana. A solução proposta por eles
enfraquece a hipótese exclusiva do egoísmo, pois veem a conduta
humana como resultante de um jogo de paixões egoístas e altruís-
tas.
Vejamos a questão ética em Smith. Primeiramente há de se
notar certa continuidade entre a filosofia moral de Smith e a de seu
antigo professor em Glasgow, Francis Hutcheson (1694-1746),
também entre Smith e David Hume, de quem desfruta de íntima
amizade. Hutcheson segue a filosofia do direito natural, na linha de
Locke, e acredita que o homem é naturalmente dotado de um senso
moral. Os homens possuem paixões altruístas, mas também egoís-
tas e elas são reconciliadas, na determinação da conduta humana,
pela intervenção de um senso de autoestima que atenua a
propensão individual para ações egoístas. Hume fala que a correção
moral da conduta humana depende de julgamentos que nós e os
outros fazem de nossas ações. A moral humeana aproxima-se das
outras concepções da época por ser, também ela, teleológica. No
caso, porém, os efeitos repercutidos da ação ou os fins decorrentes
dependem, se ela for um bem moral, da aprovação dela não só da
parte de quem a pratica, mas por todos os demais. A importância
do julgamento de terceiros é expressa em um sentimento a que
denomina de “simpatia”.
129
Smith, em seu sistema ético, confere papel primordial ao
sentimento de simpatia. Em seu famoso livro de 1749, a Teoria dos
sentimentos morais, começa descrevendo o homem como uma
criatura dotada de um conjunto de propensões básicas a que
denomina de paixões. Há as paixões do amor sensual e paterno e
outras não tão agradáveis como o ódio e o ressentimento. Há ainda
uma lista de boas paixões a que denomina de paixões sociais, tais
como a generosidade, a compaixão e a amizade. Há também espaço
para as paixões egoístas. As paixões tendem a contrapor-se e a
equilibrar-se em um balanço estável feito em cada um de nós. O
equilíbrio das paixões internamente se reproduz no plano social,
suposto um sistema em harmonia. O controle particular das
paixões é compelido em cada homem pelo princípio da simpatia, já
presente na teoria moral de Hume. Quando percebemos a desa-
provação de nossas condutas, isso desencadeia sentimentos desa-
gradáveis que procuramos eliminar corrigindo a conduta de modo
a atrair para nós sentimentos de aprovação. O homem virtuoso
observa o juízo que os outros fazem dele e está a ajustar constan-
temente seu comportamento de modo a vir a “ocupar um lugar de
honra na mente do semelhante”.
Quando Smith descreve a mecânica dos mercados que move o
sistema econômico na Riqueza das nações, apresenta os homens
como sendo impulsionados a todo momento por um cálculo egoísta
de maximização de riqueza. Esse aparente paradoxo entre o agente
egoísta da Riqueza das nações e o homem ético da Teoria dos
sentimentos morais aparece na literatura como o “problema de
Adam Smith”. Não cabe aqui uma discussão prolongada da questão.
Parece que há, hoje em dia, uma opinião amplamente aceita de que
não se trata de uma contradição de uma obra com outra. A maneira
de reconciliar os dois enfoques é notar a distinção estabelecida por
Smith entre as motivações e os efeitos concretos das condutas
humanas. No plano abstrato da teoria moral, o mérito da ação é
julgado pela intenção do agente, no entanto, nas circunstâncias
concretas da sociedade, as consequências efetivas da ação exercem
uma poderosa influência no julgamento da ação. A condutas que
produzem prazer são avaliadas independentemente das intenções
originais. A busca exclusiva da riqueza, por exemplo, embora não
tenha mérito intrínseco, produz o feito de angariar aprovação dos
demais pelos efeitos benéficos que a riqueza pessoal produz na
sociedade. Os homens buscam a riqueza a fim de ostentarem
símbolos de status social e obter a admiração e o respeito dos
demais. Os homens, porém, ao procurarem seguir tal estratégia,
não se destacam realmente da multidão e a posição de honra que
130
vierem a ocupar terá sempre um caráter efêmero. Contudo, na
prática, o limite da razão humana compele os homens a cometerem
o mesmo erro sistematicamente. E assim temos um sistema
econômico movido pelo autointeresse.

A VIDA DE ADAM SMITH


Ao discorrer sobre a filosofia de Adam Smith, antecipamos
aspectos de sua vida, as influências que se exerceram nele e a
trajetória intelectual. Pretende-se agora discorrer detalhes de sua
vida, antes de, na próxima seção, adentrarmos em sua principal
obra. Tendo nascido em Kirkcaldy, Escócia, no ano de 1723, Smith
completa nessa cidade sua educação secundária, após o que se
transfere para a universidade de Glasgow a fim de estudar humani-
dades. Na juventude, as influências principais se dão em torno do
nome de Francis Hutcheson, que desperta a atenção de Smith para
com a filosofia do direito natural e os princípios do sistema de
economia política. Por essa época, ele já iniciara o estudo dos
problemas econômicos, mas demorará a que se volte decisiva-
mente para a economia.
Antes de se graduar em Glasgow, em 1740 Smith ganha uma
bolsa para estudar em Oxford, no Balliol College. Sua experiência
no novo ambiente acadêmico proporcionou-lhe aprofundamento
nos estudos de filosofia clássica e de literatura; no entanto, logo
cedo Smith indispôs-se com os professores de Oxford, tidos como
obscuros e excessivamente escolásticos. Smith foi repreendido por
eles por estar lendo o Tratado sobre a natureza humana, obra de
David Hume, de 1738, proscrita dos meios acadêmicos da Univer-
sidade. Tão logo termina o bacharelado, Smith retorna à Escócia em
1746. Sem emprego regular em sua terra natal, ele permanece na
casa da mãe ambicionando para o futuro uma posição estável como
tutor acompanhante de algum nobre. Enquanto isso, inicia a
carreira de professor, de início ministrando cursos avulsos de
literatura inglesa em Edimburgo. Depois, em 1750 e 1751, volta-se
para o tratamento de problemas econômicos, em que defende
princípios liberais e ganha reputação acadêmica. No fim desses
anos, é eleito para a cadeira de Lógica de Glasgow. Começa por
ensinar retórica e literatura e, com o adoecimento do professor
Craigie, assume interinamente o cargo deste em filosofia moral. Em
1752, morre seu grande mentor Hutcheson e Smith é agraciado
com a cadeira do mestre. A partir de então, até 1764, Smith
consolida sua reputação intelectual e o interesse acadêmico pela
economia.
131
Sabemos das primeiras reflexões econômicas de Smith, nos
cursos de Glasgow, pelas anotações preservadas de um estudante
que frequentara as suas aulas, depois reunidas no ensaio Aulas
(Lectures). Lá ele antecipa ideias que seriam desenvolvidas anos
depois na obra máxima A riqueza das nações. Smith considera
então a riqueza como fruto do trabalho humano e assimila os fatos
econômicos observados a certos mecanismos automáticos na
sociedade. Antecipa a noção de que a opulência nasce da divisão do
trabalho e de que essa divisão leva ao aumento da produtividade
pela maior habilidade conferida ao trabalhador especializado, e por
proporcionar economia de tempo e estímulo à invenção de máqui-
nas. Diz também que o capital associado ao trabalho na produção
aumenta a produtividade do trabalho. Criticando os fisiocratas,
afirma que o trabalho industrial não é estéril e que ele também
contribui para o processo de acumulação. Entrando na questão dos
preços, considera que os preços naturais remuneram o tempo de
trabalho para a produção do objeto. Na questão da distribuição da
renda, pensa que os rendimentos aferidos pelo indivíduo devem
guardar certa proporcionalidade ao trabalho de cada um.
Finalmente, critica a doutrina mercantilista.
Por essa época, Smith participa ativamente dos debates
acadêmicos e políticos em voga e é convidado a integrar os princi-
pais grupos de eruditos da Escócia, o Edinburgh Society e o Select
Society, do qual é um dos fundadores ao lado de Hume, Lauderdale
e Townshend. Smith publica artigos no Edinburgh Review e em
outros periódicos conceituados. É também o início da grande
amizade com Hume que perdura até a morte deste em 1776. No
interregno em questão, Smith escreve e publica sua primeira
grande obra, A teoria dos sentimentos morais, de 1759, que lhe
confere projeção internacional. No entanto, Smith não escrevera
até então apenas sobre questões de ética; pelo contrário, seu
interesse claramente interdisciplinar tinha-se evidenciado, e, na
ocasião, ele dispunha de um considerável acervo de escritos de sua
autoria em campos variados, em que se destacam particularmente
os tratados em estética, e história das ideias; neste último, temos a
sua História da astronomia. Havia, no entanto, o projeto intelectual,
até então ainda não realizado, de escrever um amplo tratado sobre
os princípios da economia.
A teoria dos sentimentos morais teve cinco edições e foi tradu-
zida para outras línguas. É a obra que projeta definitivamente o
nome de Smith. Já famoso, Smith contou com a amizade de Town-
shend para finalmente realizar seu antigo sonho de se tornar tutor.
Em 1763, Townshend decide confiar a Smith a tutela de seu entea-
132
do, o Duque de Buccleugh. Smith renuncia à cadeira em Glasgow e
parte com Buccleugh para uma viagem de dois anos à França. Em
troca haveria de receber generosa pensão vitalícia.
Dois fatos destacam-se nessa viagem: ela proporciona-lhe
contato direto com as principais expressões intelectuais da época e
também foi nesse período que ele começou a escrever suas
primeiras notas para a obra econômica principal. Visita o sul da
França e vai a Genebra onde conhece pessoalmente Voltaire, do
qual se torna grande admirador. Em 1765, mora em Paris, que lhe
recebe com as portas abertas de salões e da corte. Para tanto, conta
com a amizade da prestigiada figura de Hume e a fama de sua A
teoria dos sentimentos morais, já traduzida para o francês. Foi
importante para a formação das crenças econômicas smithianas o
acesso a Quesnay, Turgot e ideias fisiocráticas, que não aceitou por
inteiro, mas que viriam exercer influência em seu pensamento.
A estadia na França termina abruptamente em 1766 com o
assassinato do irmão mais novo do Duque, também sob a custódia
de Smith. Retorna então a Londres onde permanece trabalhando
com Townshend, que se tornara ministro da Fazenda. Além de
assessorar o anfitrião, Smith dedica-se, em Londres, à edição
ampliada de A teoria dos sentimentos morais. Em pouco tempo ele
rompe com Townshend, principalmente por discordar da política
inglesa com suas colônias na América. Não concorda com a
excessiva tributação sobre o chá americano, que de fato seria um
dos estopins da revolução pela independência. Desiludido, Smith
decide retornar a Kirkcaldy, onde, em casa de sua mãe, permane-
ceria os próximos dez anos dedicados a escrever o livro A riqueza
das nações. Embora afastado da vida pública, o prestígio de Smith
cresce ainda mais no período. Recebe o título de fellow da Royal
Society, mas, avesso à exposição pública e entretido com seu livro,
permanece relativamente confinado, enquanto se preocupa com o
acabamento da obra, lapidando a base teórica, retocando as obser-
vações históricas e os exemplos práticos, muitos deles observados
in loco em suas andanças pelo interior da Escócia. Finalmente em
1776 publica sua obra econômica máxima.
Durante quase todo o século XIX, a Riqueza das nações tornou-
se, em diversos países, o ponto de partida ao estudo de economia.
A primeira edição esgota-se em menos de seis meses e em 1800 a
obra já estava disponível em francês, alemão, italiano, dinamarquês
e espanhol, muito embora ela tenha sido proibida na Espanha “por
sua baixeza de estilo e pela indefinição de seus princípios morais”,

133
como diziam os críticos espanhóis (na verdade uma reação deses-
perada contra ideias liberais contidas na obra).
Em 1777, Smith é nomeado para um alto cargo na adminis-
tração aduaneira escocesa e 10 anos depois se torna reitor na
Universidade de Glasgow. Coberto de glórias, morre em 1790, aos
67 anos.

A RIQUEZA DAS NAÇÕES


A obra Uma investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações, de 1776, representa um marco importante na
evolução do pensamento econômico. As ideias aí expressas não são
inteiramente originais, mas isso não enfraquece sua qualidade. Há
um núcleo teórico em torno da questão do crescimento econômico
das nações, no entanto, ao redor dele, organizam-se uma miríade
de considerações históricas e farto material empírico que fornecem
embasamento à visão geral e enriquecem sobremaneira o tratado.
A obra serviu como paradigma teórico no desenvolvimento
científico da economia no século XIX. Pode-se extrair dela um
modelo explicativo básico e facilmente resumível para o crescimen-
to econômico.
A riqueza é definida como o produto anual per capita da nação
e a ampliação desse produto depende do número de pessoas
empregadas produtivamente. Nem todo trabalho humano é produ-
tivo, só os que resultam na transformação de objetos, tornando-os
próprios para consumo. O número de trabalhadores que podem ser
empregados produtivamente é função do estoque de capital
disponível na sociedade. O montante de capital aumenta a produti-
vidade do trabalho, ao se combinar com ele na produção, e o núme-
ro de trabalhadores produtivos. Portanto, o processo de formação
de capital é chave no entendimento do crescimento econômico.
A vida econômica nas sociedades evoluídas é posta em movi-
mento pelo emprego do capital. O processo produtivo deve restituir
esse capital em escala crescentemente ampliada de modo a
propiciar crescimento econômico. Tal esquema é semelhante ao de
Quesnay, contudo as diferenças entre ele e Smith são significativas.
Smith não acredita que a atividade industrial seja estéril, pois ela
também gera novos valores. Ele percebeu ainda que a medida do
crescimento econômico e a compreensão analítica dele depende-
riam de uma teoria do valor. Smith conhecia as noções sobre valor
em Petty e Locke, mas as considerava ambíguas. A ausência de uma
teoria do valor nos fisiocratas, que se limitavam a comparações
134
entre montantes físicos da mercadoria básica, era tida como grave
lacuna.
O trabalho produtivo sempre produz um excedente de valor
sobre o custo de reprodução do trabalhador. Quanto maior o
número de trabalhadores produtivos em relação à população total
do país, maior o excedente anual gerado na economia. Parte desse
excedente é consumida pela classe dos patrões, porém parte
importante é reinvestida por eles, ou seja, canalizada para a
contratação de mais trabalhadores. A capacidade de ampliação de
trabalho produtivo, e portanto de geração adicional de excedente
para novas inversões futuras, depende do número potencial de
trabalhadores a serem contratados pelo capital. Uma medida do
valor que estabeleça relação entre um montante de mercadorias
heterogêneas e o correspondente número de trabalhadores por ele
empregados, enquanto capital, possibilitaria identificar e mensurar
facilmente o processo de reprodução ampliada das condições de
produção. A teoria do valor deveria servir a fim de se compararem
diferentes mercadorias antes que seus preços fossem determi-
nados pelas vicissitudes de mercado. Ao mesmo tempo, tal teoria
deveria estabelecer a referida correspondência entre o valor e o
montante de trabalho útil empregado pelo capital. Estas duas
questões seriam atendidas pela teoria smithiana do valor
fundamentado no trabalho comandado ou encomendado pela mer-
cadoria, ou seja, o poder de ela ser trocada por outras mercadorias
que também exigem trabalho em sua obtenção.
A riqueza das nações trata dessas questões no livro I. A obra
está dividida em mais quatro livros. Smith descreve uma espiral de
crescimento e o desenvolvimento da teoria do valor confere
embasamento analítico a essa espiral. Começa com a discussão da
divisão do trabalho, mostrando que ela aumenta a sua produti-
vidade. No terceiro elo, temos a geração ampliada do excedente
associado a cada trabalhador. Empregado, ao menos em parte,
produtivamente, tal excedente possibilita o crescimento no esto-
que de capital e o aumento subsequente do emprego produtivo.
Mais adiante na obra, percebem-se os outros elos da espiral. O
aumento de demanda por trabalho produtivo, acima da elevação do
número de trabalhadores no período, conduz ao crescimento dos
salários, que por sua vez cria condições para o aumento futuro da
população economicamente ocupada. A consequência de tudo isso
é a ampliação dos mercados. A extensão dos mercados possibilita
que se intensifique o processo de divisão de trabalho, voltando-se
à posição semelhante a inicial na espiral do crescimento (Figura
5.1).
135
Figura 5.1 Espiral do crescimento no enriquecimento das nações.

A explicação anterior não significa que Smith forneça um


tratamento meramente mecânico à questão do crescimento econô-
mico. Ele também incorpora aspectos institucionais. Enfatiza o
papel da lei, da propriedade privada e a necessidade de ausência de
barreiras no mercado a fim de que os processos identificados
ocorram na prática. O mecanismo depende das possibilidades de
investimento rentável dos excedentes gerados a cada período. Do
ponto de vista do capitalista, o incentivo básico à acumulação é a
taxa de lucro. Mesmo em condições institucionais ideais, o processo
de crescimento pode não ser indefinidamente sustentável se
houver redução das taxas de lucro abaixo de um nível crítico. O
crescimento no estoque de capital muito acima do crescimento
demográfico pode levar a uma queda das taxas de lucro pela
elevação de salários. Eventualmente a sociedade pode alcançar um
estado estacionário em que o crescimento apenas acompanha a
expansão da população.
O economista do século XX J. Hicks sintetizou a teoria do
crescimento de Smith em poucas equações. Há uma quantidade
inicial de capital utilizado como recurso para sustentar os traba-
lhadores por ele empregados. Isso leva à geração do produto Xt que
depende do produto do período anterior Xt-1 e da relação produto
por unidade consumida (p/c). De modo que se pode escrever Xt =
136
(p/c). Xt-1. Se p/c > 1, Xt > Xt-1. A taxa de crescimento da produção é
(Xt – Xt-1 )/Xt-1 = p/c – 1. Considerando-se os vazamentos não
produtivos, isto é, a quantidade de produto entregue a setores não
produtivos, na expressão anterior, Xt-1 seria substituído por kt, na
qual kt = k. Xt-1 e k é a fração restante após esses vazamentos.
Temos então que Xt = (p/c). kt = (k. p/c). Xt-1. E a nova taxa de
crescimento seria (k. p/c) – 1. A condição matemática para uma
economia progressiva seria a de que k. p > c, o que se verifica
quando há poucos desvios não produtivos do excedente, k é gran-
de, e quando é elevada a produtividade p/c. Hicks desenvolve o
modelo matemático de Smith pensando numa única mercadoria,
trigo por exemplo, no entanto uma teoria do valor consistente pode
prescindir dessa hipótese e, de fato, Smith pensava numa economia
com múltiplas mercadorias.
Os livros I e II da Riqueza das nações contêm esse esquema
explicativo básico do crescimento econômico. Smith sintetiza o
livro I, dizendo que ele investiga...
“As causas do aprimoramento nas forças produtivas do
trabalho e a ordem segundo a qual sua produção é natural-
mente distribuída entre as diferentes classes e condições de
membros da sociedade.” (Adam Smith, A riqueza das nações)
O livro II investiga a natureza do capital e como ele pode ser
acumulado, explica formas de seu emprego e de que modo utiliza
quantidades de trabalho.
Sobre o livro I vale notar, da definição anterior de seu con-
teúdo, que ele também se preocupa com a questão da distribuição
dos rendimentos. É que a teoria do valor de Smith, a qual aparece
no bojo da discussão do crescimento como medida deste, remete a
uma discussão em termos de componentes desse valor em salário,
lucro e renda da terra, tema que veremos mais adiante. Na
discussão do valor surge a questão da distribuição. Em Smith e
entre seus seguidores clássicos, valor e distribuição aparecem
sempre como temas correlacionados.
Os livros I e II são as partes teóricas principais de A riqueza das
nações, embora mesmo aí não apareça apenas teoria e se constate
neles muito material histórico. Há alguma análise teórica também
nos demais livros, como a teoria das vantagens absolutas no
comércio internacional, contudo, do livro III ao V interessam ques-
tões de história e aplicação. O livro terceiro trata da evolução
histórica das políticas econômicas. É o teste empírico e histórico da

137
teoria do crescimento focalizando a evolução econômica da huma-
nidade. Os livros IV e V contêm proposições normativas em termos
de legislação e política econômica. Lá estão a crítica aos funda-
mentos da política comercial e colonial mercantilista e o elogio à
escola da fisiocracia (livro IV), bem como questões de tributação,
política fiscal, dívida pública (livro V), em que se discutem os prós
e contras da intervenção do Estado na economia em diferentes
áreas.
Vejamos, em detalhe, o conteúdo do livro I. Ele está dividido
em 11 capítulos. O capítulo 1 discorre sobre a divisão do trabalho.
Começa dizendo que a divisão do trabalho aumenta suas forças
produtivas. Ora Smith refere-se à divisão dele na economia geral da
sociedade, ora trata da maneira como a divisão do trabalho opera
em certas manufaturas. Smith fala tanto em divisão social do
trabalho quanto em sua divisão no interior de uma unidade produ-
tiva. Ilustra seu ponto de vista com a observação de uma pequena
manufatura de alfinetes (Boxe 5.1).

Boxe 5.1 Os efeitos da divisão do trabalho na fábrica de alfinetes.

Smith escreve: “Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um


terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a
colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-
se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e
alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também
constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabri-
car um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as
quais, em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao
passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma
pequena manufatura desse tipo, com apenas 10 empregados, e na qual alguns
desses executavam 2 ou 3 operações diferentes. Mas, embora não fossem
muito hábeis, e portanto não estivessem particularmente treinados para o uso
das máquinas, conseguiam, quando se esforçavam, fabricar em torno de 12
libras de alfinetes por dia. Ora, 1 libra contém mais do que 4 mil alfinetes de
tamanho médio. Por conseguinte, essas 10 pessoas conseguiam produzir entre
elas mais do que 48 mil alfinetes por dia. Assim, já que cada pessoa conseguia
fazer 1/10 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se considerar que cada uma
produzia 4800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem trabalhado indepen-
dentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para
esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido
fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não
conseguiria produzir a 240a parte, e talvez nem mesmo a 4800a parte daquilo
que hoje são capazes de produzir, em virtude de uma adequada divisão do
trabalho e combinação de suas diferentes operações.” (Adam Smith, A riqueza
das nações)

138
A divisão da fabricação de alfinetes em setores com trabalha-
dores especializados provoca grande aumento na produtividade.
Argumenta que a diferenciação das ocupações e dos empregos,
principalmente em sociedades mais evoluídas, produz aumento
nas forças produtivas do trabalho. A divisão do trabalho é menor
na agricultura, pois aqui os diferentes tipos de trabalho estão
associados às estações do ano, de modo que é impossível empregar
um único homem em cada uma das oportunidades de trabalho nela.
É por isso que, argumenta Smith, as diferenças de produtividade
entre nações ricas e pobres são menores na agricultura e maiores
na manufatura, em que são muitas as possibilidades na
especialização de tarefas.
Smith explica por que a pessoa é capaz de realizar mais traba-
lho com a divisão do trabalho. Enumera três fatores: a maior
destreza alcançada pelo trabalhador especializado, a economia de
tempo ao se passar de um trabalho a outro e a invenção de
máquinas (Boxe 5.2). Nem sempre é o trabalhador especializado
que propõe inovações nas máquinas que emprega. Também contri-
buem para as novas invenções o engenho dos fabricantes de máqui-
nas que utilizam o trabalho de “filósofos ou pesquisadores, cujo
ofício não é fazer as coisas, mas observar cada coisa.” (Adam Smith,
A riqueza das nações)

Boxe 5.2 A invenção de máquinas pelo próprio operário.

Smith escreve: “Quem quer que esteja habituado a visitar tais


manufaturas deve ter visto muitas vezes máquinas excelentes que eram
invenção desses operários, a fim de facilitar e apressar a sua própria tarefa no
trabalho. Nas primeiras bombas de incêndio um rapaz estava constantemente
entretido em abrir e fechar alternadamente a comunicação existente entre a
caldeira e o cilindro, conforme o pistão subia ou descia. Um desses rapazes, que
gostava de brincar com seus companheiros, observou que, puxando com um
barbante a partir da alavanca da válvula que abria essa comunicação com um
outro componente da máquina, a válvula poderia abrir e fechar sem ajuda dele,
deixando-o livre para divertir-se com seus colegas. Assim, um dos maiores
aperfeiçoamentos introduzidos nessa máquina, desde que ela foi inventada, foi
descoberto por um rapaz que queria poupar-se no próprio trabalho.” (Adam
Smith, A riqueza das nações)

A divisão do trabalho e o mecanismo de troca nos mercados


propiciam, numa sociedade avançada, a abundância geral dos bens.
Todos lucram com ela, até mesmo um simples operário que tem
139
mais necessidades atendidas do que “muitos reis da África, que são
senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens
nus” (Ibidem). Com a divisão do trabalho, surge a necessidade de
cooperação e ajuda de milhares de pessoas. Nem sempre nos
damos conta de todos os que contribuíram para que diferentes
tipos de bens cheguem em nossas mãos, no entanto os benefícios
são evidentes, argumenta Smith.
A ideia de que a divisão do trabalho é a chave para o progres-
so material não era novidade à época de Smith. A obra A república,
de Platão, discute extensivamente seus benefícios na formação da
cidade. No entanto, a explicação de Smith é original em alguns
pontos. No capítulo 2, Smith apresenta os princípios que dão
origem à divisão do trabalho. Enquanto para Platão tal divisão é
fruto da sabedoria da cidade, ou seja, é um tipo de ideal ético, em
Smith ela é um produto não intencional. Não é algo que tenha sido
visado por alguém que imaginou previamente certa consequência.
Smith discute a origem da divisão do trabalho e a associa à
propensão humana para as trocas. Logo no início do capítulo, ele
escreve:
“Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vanta-
gens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria huma-
na qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá
origem. Ela é a consequência necessária, embora muito lenta e
gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na
natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa,
ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma
coisa pela outra.” (Adam Smith, A riqueza das nações)
Smith não aprofunda a regressão analítica a fim de chegar à
origem da propensão para as trocas; contudo, considera provável
que ela seja uma consequência das faculdades de raciocinar e falar.
Platão e Smith concordam no ponto em que, com a divisão do
trabalho, cada indivíduo passa a necessitar do trabalho do outro.
Smith argumenta que a necessidade de ajuda dos semelhantes não
vem da benevolência alheia...
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do
padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que
eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua
humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das
nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão
para eles.” (ibidem)

140
A passagem é bastante explícita em apontar que, nas trocas de
mercado, os homens visam a seu autointeresse. A existência de um
mercado para as trocas é um requisito para a divisão do trabalho,
pois os homens só se especializam naquilo que fazem melhor
sabendo que poderão trocar o excedente da produção.
Platão acredita que os indivíduos possuem, desde o nasci-
mento, diferentes aptidões e que cada um se entrega ao trabalho
que atende melhor a essas aptidões. Então, a diferença entre as
pessoas está na base da divisão do trabalho. Smith discorda
radicalmente dessa visão. Para ele, as pessoas não são natural-
mente diferentes, é a propensão para a troca que, ao longo do
tempo, acentua as diferenças. Já os animais são bastante diferen-
ciados entre si e, no entanto, não podem usufruir dessas diferen-
ças.
Smith identifica no capítulo 3 fatores limitativos para a divisão
do trabalho. Como esta depende da possibilidade de se trocar o
excedente da produção, o tamanho do mercado aparece como um
impedimento para a extensão da divisão do trabalho. É por isso que
no campo, exemplifica Smith, o carpinteiro é também marceneiro,
o ferreiro ainda faz pregos etc. Meios de transporte adequados e
baratos facilitam a divisão do trabalho. Onde os transportes foram
facilitados por condições geográficas, tais como rios navegáveis e
acesso ao mar, surgiram as grandes civilizações. De fato, os povos
do mediterrâneo beneficiaram-se de facilidades de navegação. O
progresso e o aprimoramento do Egito muito se devem à navegação
interna do Nilo. Bengala, na Índia, conta com o rio Ganges. Pontos
remotos do interior e regiões que não oferecem facilidades de
transporte, como no interior da África e norte da Ásia, não
possibilitam comércio internacional e seus povos permanecem em
estado de barbárie.
O capítulo 4 apresenta uma breve história sobre “a origem e o
uso do dinheiro”. A parte principal do capítulo reconstitui, por meio
de uma história analítica, como o dinheiro veio a se tornar o
instrumento universal do comércio. Na parte final do capítulo,
discute-se o “paradoxo do valor”. Vejamos o primeiro aspecto.
Smith começa apontando que, com a divisão do trabalho, a maioria
das pessoas conta com as trocas de mercado para satisfazer a
muitas de suas necessidades. Assim é como se todos fossem
comerciantes, caracterizando a moderna sociedade comercial
(Smith não emprega o termo “capitalismo”). De início, antes da
disseminação do dinheiro, havia grandes problemas para efetivar-
se as trocas, pois, só há troca caso haja coincidência de neces-

141
sidades e de interesses. Buscou-se então possuir uma mercadoria
amplamente aceita, além da mercadoria produzida pelo próprio
indivíduo em questão. Historicamente temos gado, sal, açúcar,
peles, couros e até pregos (como de uma observação sua no interior
da Escócia) como sendo a mercadoria dinheiro. Aos poucos, a
função de instrumento de troca acabou fixando-se nos metais, que
são imperecíveis e subdivisíveis. Ferro, cobre, ouro e prata, descre-
ve Smith, serviram cronologicamente como dinheiro. De início o
metal era ofertado em barras brutas. Dado o inconveniente da
pesagem e da verificação da autenticidade, optou-se por dinheiro
cunhado ou moeda com gravação cobrindo os dois lados da peça e
as laterais, de modo a garantir o peso e o teor metálico da moeda.
O próprio nome da moeda, de início, expressava peso ou quan-
tidade de metal, como a libra inglesa: libra é medida de peso
também. Smith conta que alguns reis diminuíam propositalmente a
quantidade de metal na moeda, em prejuízo dos credores e ganho
dos devedores. Em suma, é esta pequena história do dinheiro que
nos conta Smith.
No final do capítulo, Smith apresenta a questão fundamental:
quais as normas que as pessoas observam ao trocarem suas
mercadorias por dinheiro ou por outras mercadorias? Smith está a
discutir as regras que determinam o valor relativo ou o valor de
troca dos bens. Nota ele que a palavra “valor” possui dois signi-
ficados: a utilidade de determinado objeto, ou seja, o valor de uso,
e o poder de compra que o referido objeto possui, o valor de troca.
Observa Smith que, em geral, objetos com elevado valor de uso
possuem baixo valor de troca e vice-versa; cita o caso da água e do
diamante. Após contrapor os conceitos dessa maneira, Smith diz
que a preocupação da economia política deve recair no valor de
troca, e anuncia o enfoque dos capítulos subsequentes, que será o
de investigar os princípios que regulam o valor de troca. Antecipa
duas questões básicas:
1. Qual a medida real do valor de troca, ou seja, no que consiste
o preço real de uma mercadoria?
2. Quais as partes ou componentes que constituem o preço real
das coisas?
O preço que realmente o objeto vale é seu preço natural. Os
preços que se verificam nas situações dos mercados são os preços
de mercado, que no longo prazo se aproximam do preço natural.
Diversas observações podem ser feitas dessa passagem de
Smith, voltaremos a comentá-la em outras partes de nosso livro.
Não é muito compreensível qual a utilidade de se contrapor os
142
conceitos de valor de uso e valor de troca. São coisas diferentes, por
certo, mas não decorre que estejam em posição paradoxal. A
relação entre esses dois conceitos requer a análise marginalista que
não estava ao alcance da época. O fato de o bem possuir alto valor
de uso e baixo valor de troca não deve ser moralmente condenado.
O tom de Smith, porém, passa essa impressão. Smith deixa claro que
o que ele procura não é exatamente o fundamento analítico do
valor, mas apenas uma forma de medi-lo. O uso da palavra “natural”
para os preços é um modismo da época em que a expressão
“natural” vinha carregada de conteúdos normativos.
A riqueza das nações procurou seguir os passos metodológi-
cos dos Princípios de Newton. A ideia de identificar princípios
fundamentais subjacentes ao fenômeno e de tentar reconstituir
uma ordem por trás da aparência caótica, de modo a mostrar como
os elementos são coordenados por esses princípios, é típica no
método de Newton. A riqueza das nações identifica certos princí-
pios básicos, tais como a propensão para as trocas, a divisão do
trabalho e o autointeresse (observada a moral e os costumes), e
com base neles articula um esquema explicativo que mostra o jogo
aparente dos fatos como decorrência lógica da aplicação desses
princípios.
Os capítulos de 5 a 7 mostram a essência da teoria smithiana
do processo de mercado e o esquema básico para sua interpre-
tação dos preços. Nesses capítulos, Smith desenvolve sua teoria
rudimentar do equilíbrio, uma de suas melhores contribuições em
teoria econômica. A teoria dos preços é o ponto de partida da
análise econômica feita por Smith. Trata-se de uma teoria de
equilíbrio estático que já estava presente em autores anteriores
que disseram algo a respeito do mercado. Nesse sentido, não houve
muito avanço em relação a seus contemporâneos.
No capítulo 5, apresentam-se os conceitos de preço real e
preço nominal. Smith associa o preço real da mercadoria à ideia de
valor. Se o homem é rico ou pobre conforme a quantidade de
serviço alheio que está em condições de encomendar ou comprar,
o valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho que ela
permite comprar ou comandar. Assim, o trabalho é a medida real
do valor de troca de todas as mercadorias. Smith não está dizendo
que valor de troca é trabalho, mas que este pode ser usado como
medida daquele. Ter uma medida do valor é tudo que Smith
necessitava para sua análise posterior do crescimento econômico.
Smith representa uma volta a Alberto Magno, séculos atrás, ao
afirmar que o preço real de um bem é o incômodo que custa a
143
aquisição dele. Fundamentar o valor exclusivamente no lado dos
custos é uma visão unilateral que não corresponde à moderna
compreensão dos preços. No entanto, essa unilateralidade já havia
ganhado certa reputação entre autores de língua inglesa, especial-
mente sob influências de W. Petty e R. Cantillon, que popularizaram
a ideia no ambiente britânico. Smith apenas segue a corrente. A
escola clássica irá refinar essa interpretação do valor.
Avaliar o valor das mercadorias pela medida do trabalho
apresenta algumas dificuldades práticas. Primeiramente a medida
do trabalho deve levar em conta não apenas o tempo gasto, mas as
diferentes qualidades de trabalho, o grau de dificuldade e de
engenho em cada caso. Em segundo lugar, não se troca, na prática,
mercadoria por trabalho (M-T), mas as mercadorias são trocadas
umas pelas outras (M-M’) ou se mede o valor de troca de M pela
quantidade de dinheiro D (M-D-M’). No entanto, o dinheiro possui
certas inconveniências. Se for o caso de se usarem ouro e prata
como tal, as variações no valor do ouro e da prata implicam que a
mesma quantidade deles pode ora comandar mais trabalho, ora
uma quantidade menor dele. O valor dos metais depende da oferta
e do trabalho para trazê-los ao mercado, e, assim, o valor de uma
unidade deles é, em si mesmo, variável. Somente o trabalho
humano, assevera Smith, não varia seu valor. O dinheiro mede
apenas o preço nominal das coisas, o preço real é medido
precisamente em quantidades de trabalho e o valor do trabalho não
varia (Boxe 5.3).
Para o trabalhador, o preço do trabalho é o dispêndio de
energia de uma dada tarefa e, fixada esta, ele é sempre o mesmo. O
preço do trabalho varia para o empregador, mas na verdade são os
bens que se tornam mais ou menos caros. Isso porque o trabalho é
pago em bens. Na prática, utiliza-se alguma mercadoria eleita para
medir os valores. No longo prazo, os valores estimados em trigo são
mais estáveis que aqueles avaliados em ouro ou prata. A relação
entre quantidade de trabalho e quantidade de trigo é mais estável,
até porque as quantidades de trigo funcionam como bom indicador
do preço real em trabalho que deve remunerar a subsistência do
trabalhador. Como o trigo é o principal bem para essa subsistência,
ele guarda certa proximidade com quantidades de trabalho. Já os
metais são instáveis em seu valor, pois mudanças nas condições de
sua oferta induzem variações do valor, e, mantendo-as fixas, redu-
ções da quantidade de ouro e prata contida nas moedas resultam
em alterações nos valores delas. No entanto, o valor real de uma
renda em trigo varia muito no curto prazo; sendo assim, a moeda
metálica funciona melhor para transações de curto prazo. Smith
144
conclui dizendo que no mesmo tempo e lugar o dinheiro é medida
exata do valor real de troca de um bem. Fica claro ser essa medida
apenas aproximação no curto prazo e em pequenas distâncias.

Boxe 5.3 O valor do trabalho que compra os bens não varia.

Smith escreve: “Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho têm valor
igual para o trabalhador, sempre e em toda parte. Estando o trabalhador em
seu estado normal de saúde, vigor e disposição, e no grau normal de sua
habilidade e destreza, ele deverá aplicar sempre o mesmo contingente de seu
desembaraço, de sua liberdade e de sua felicidade. O preço que ele paga deve
ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que receba em
troca de seu trabalho. Quanto a esses bens, a quantidade que terá condições de
comprar será ora maior, ora menor; mas é o valor desses bens que varia, e não
o valor do trabalho que os compra. Sempre e em toda parte valeu este princípio:
é caro o que é difícil de se conseguir, ou aquilo que custa muito trabalho para
adquirir, e é barato aquilo que pode ser conseguido facilmente ou com muito
pouco trabalho. Por conseguinte, somente o trabalho, pelo fato de nunca variar
o seu valor, constitui o padrão último e real com base no qual se pode sempre
e em toda parte estimar e comparar o valor de todas as mercadorias. O trabalho
é o preço real das mercadorias; o dinheiro é apenas o preço nominal delas.”
(Adam Smith, A riqueza das nações)

No capítulo 6, Smith tem a ideia de decompor o preço das


mercadorias em partes elementares independentes; por certo
também recebe influência do método analítico de Newton que
separou a substância material em partículas para o estudo dos
problemas de mecânica. Smith divide historicamente a sociedade
em dois estágios: primitivo e evoluído. Diz que, no primeiro caso,
as trocas são reguladas por quantidade de trabalho.
“Se em uma nação de caçadores abater um castor custa duas
vezes mais trabalho do que abater um cervo, um castor deve
ser trocado por – ou então vale – dois cervos. É natural que
aquilo que normalmente é o produto do trabalho de dois dias
ou de duas horas valha o dobro daquilo que é o produto do
trabalho de um dia ou uma hora.” (ibidem)
A medida da quantidade de trabalho leva em conta o tempo, a
dificuldade do trabalho, a destreza e o engenho. Na sociedade pri-
mitiva, todo produto do trabalho pertence ao trabalhador que o
executa.
No estágio evoluído, pessoas contratam pessoas; surge o lu-
cro. O lucro não é simplesmente o salário pago por inspecionar e
145
dirigir a empresa, ele é regulado pelo valor do capital entregue à
produção. O produto total já não pertence inteiramente ao traba-
lhador, parte é entregue ao patrão na forma de lucro. Nesse caso, o
valor da mercadoria não é apenas regulado pela quantidade de
trabalho incorporado em sua produção. Ela vale mais do que o que
remunera o trabalho, e a parte em excesso é paga na forma de lucro
e, quando for o caso, na forma de renda pelo aluguel da terra, pois...
“No momento em que toda a terra de um país se tornou
propriedade privada, os donos das terras, como quaisquer
outras pessoas, gostam de colher onde nunca semearam,
exigindo uma renda, mesmo pelos produtos naturais da ter-
ra.” (ibidem)
Assim, o valor v de uma mercadoria é regulado pelos três
componentes salário w, lucro l e renda da terra r.
v=w+l+r
Não pode haver outros componentes, além desses três, na
determinação dos preços. Qualquer outro tipo de dispêndio na
produção poderá, em última instância, ser enquadrado em uma dessas
três categorias. Os juros, por exemplo, que são a renda auferida por
uma pessoa que não emprega ela mesma seu capital, mas o empresta
a outras, é um componente do lucro e, como tal, ele é sempre menos
que o montante de lucro total. Os juros não são uma parte explícita do
preço, mas uma renda derivada do lucro. Salários, lucros e rendas da
terra não se confundem entre si. Com o avanço da sociedade, há uma
tendência crescente da maior participação de salários e lucros nos
preços à medida que os produtos se tornam mais elaborados.
O capítulo 7, intitulado “O preço natural e o preço de mercado
das mercadorias”, começa definindo os conceitos de preço natural
e preço de mercado; em seguida ele descreve uma teoria de
funcionamento dos mercados que mostra como a força do
autointeresse individual impele o mecanismo de ajuste dos merca-
dos. Preço natural é o conceito teórico mais fundamental, é nele que
reside o valor real das coisas. Logo no início do capítulo, escreve:
“Em cada sociedade ou nas suas proximidades, existe uma
taxa comum ou média para salários e para o lucro, em cada
emprego diferente de trabalho ou capital. Essa taxa é regulada
naturalmente – conforme exporei adiante – em parte pelas cir-
cunstâncias gerais da sociedade – sua riqueza ou pobreza, sua
condição de progresso, estagnação ou declínio – e em parte
pela natureza específica de cada emprego ou setor de ocupa-
ção.

146
Existe, outrossim, em cada sociedade ou nas suas proxi-
midades uma taxa média de renda da terra, também ela
regulada – como demonstrarei adiante – em parte pelas cir-
cunstâncias gerais da sociedade ou redondeza na qual a terra
está localizada, e em parte pela fertilidade natural da terra ou
pela fertilidade conseguida artificialmente.
Essas taxas comuns ou médias podem ser denominadas
taxas naturais dos salários, do lucro e da renda da terra, no
tempo e lugar em que comumente vigoram.” (Adam Smith, A
riqueza das nações)
Cada componente do preço tem sua taxa natural e a somatória das
taxas naturais de salário, lucro e renda da terra determinam o preço
natural. Tal preço funciona como um ponto de equilíbrio ou uma
condição de longo prazo. No curto prazo os preços efetivamente
observados no mercado, os preços de mercado, oscilam em torno do
preço natural. Note que a explicação de Smith dos preços não é apenas
microeconômica. Como se depreende da citação anterior, as taxas
naturais dependem não apenas “da natureza específica de cada
emprego ou setor de ocupação”, de seus aspectos técnicos, mas também
da situação macroeconômica.
Smith apresenta um excelente tratamento de como os preços
fora do equilíbrio alcançam os valores naturais. Para tanto, define
o conceito de demanda eficaz, que leva em conta o papel dos
indivíduos que desejam pagar o preço natural do bem. A oferta é
inelástica e corresponde a uma quantidade fixa colocada no
mercado. Graficamente, no plano que relaciona preços p com
quantidades x da mercadoria, a demanda eficaz é um ponto que
corresponde à quantidade total demandada ao preço natural
(Figura 5.2).

Figura 5.2 Equilíbrio de mercado de longo prazo em Adam Smith.

147
Se ao preço natural a quantidade ofertada estiver abaixo da
demanda eficaz, o preço de mercado sobe acima do preço natural,
tanto mais quanto menor a oferta em questão (Figura 5.3).
Como efeito do aumento de preços, alguns demandantes
deixam o mercado, só restando os que aceitam pagar o preço de
mercado acima do valor natural. Ao mesmo tempo, preços elevados
atraem novos ofertantes, de modo que à medida que ocorre o
processo de arbitragem entre mercados, os negócios deslocam-se
em direção ao mercado em questão, contribuindo para o aumento
da oferta, em adição, tem-se a ampliação da oferta, pelo estímulo
dos preços, por parte dos que já se encontravam neste mercado. A
resultante desses movimentos é o deslocamento para a direita da
oferta, até que o equilíbrio de longo prazo seja novamente
restabelecido ao preço natural.

Figura 5.3 Equilíbrio de mercado de curto prazo em Adam Smith:


excesso de demanda.

Ocorreria o inverso se houvesse um excesso de oferta ao preço


natural. Os preços de mercado ficariam abaixo dos preços naturais,
sinalizando novos compradores e retirando do mercado parte dos
ofertantes até que o equilíbrio de longo prazo fosse restabelecido
no preço natural (Figura 5.4).
Na prática, os mercados estão sempre se ajustando, mas as
flutuações nos preços são inevitáveis; principalmente porque as
condições de oferta são instáveis. Reveses naturais, variações na
produtividade do trabalho ao longo do tempo e outros fatores
levam a grandes flutuações de preços de mercado. No longo prazo,
entretanto, os preços não podem descolar-se dos valores naturais,

148
já que o fluxo de capitais entre mercados trata de explorar
eventuais discrepâncias na busca de lucro maior.

Figura 5.4 Equilíbrio de mercado de longo prazo em Adam Smith:


excesso de oferta.

A análise de Smith do processo de convergência ao equilíbrio


partindo-se de posições fora do equilíbrio é excelente e antecipa o
moderno tratamento da questão. Smith, porém, não se preocupou
com a descrição do processo de mercado, só se dedicando minima-
mente ao tema no capítulo 7. Mais prioritário na teoria dos preços
de Smith era obter uma explicação para as taxas naturais que
determinam o equilíbrio de longo prazo. Ele trata do tema nos
capítulos subsequentes do livro I, contudo não é totalmente bem-
sucedido nesta empreitada.
Smith começa o capítulo 8, que trata dos salários, dizendo ser
ele a recompensa natural do trabalho. Na sociedade primitiva, o
produto integral do trabalho pertence ao trabalhador, não há
propriedade da terra e nem patrão para repartir o fruto do traba-
lho. Assim, qualquer aumento de produtividade reverte em eleva-
ção de salário. Entretanto, isso não ocorre necessariamente com o
aparecimento de patrões e proprietários. O patrão adianta um
capital e recebe lucro, o proprietário empresta a terra e recebe uma
renda.
Na sociedade evoluída, Smith investiga quais os salários
comuns ou normais do trabalho. Reconhece, de início, que trabalha-
dores e patrões têm interesses contrários:
“Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os
patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram
149
associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os
patrões fazem o mesmo para baixá-los.” (Adam Smith, A
riqueza das nações)
O salário depende das negociações entre as partes. A natureza
do contrato de trabalho é resultante do jogo de pressões. O patrão
sempre está numa posição vantajosa de negociar com os traba-
lhadores. Primeiramente porque ele pode resistir por mais tempo
à paralisação, já que não depende da renda corrente para sobre-
viver, tendo já acumulado uma fonte de recursos que lhe permite
uma vida confortável mesmo diante de uma longa paralisação nos
negócios. Além disso, sempre fazem conchavos secretos destinados
a baixar os salários. Por outro lado, mesmo fazendo mais barulho,
os trabalhadores não conseguem impor seus interesses:
“Os trabalhadores raramente auferem alguma vantagem da
violência dessas associações tumultuosas, que, em parte devi-
do à interferência da autoridade, em parte à firmeza dos
patrões, e em parte por causa da necessidade à qual a maioria
dos trabalhadores está sujeita por força da subsistência atual
– geralmente não resulta senão na punição ou ruína dos
líderes.” (ibidem)
Há, porém, um piso para os salários, abaixo do qual não se
consegue manter os trabalhadores por muito tempo. Os salários
devem ser suficientes, no mínimo, para a manutenção dos traba-
lhadores e de seus filhos. Há situações em que o trabalhador
consegue ganhar mais do que o mínimo humanitário. A escassez de
mão de obra sempre força os salários para cima.
Tem-se descrito a teoria dos salários naturais de Smith como
aquele correspondente a certo nível de subsistência, mas de fato
não é bem isso o que ele tem em mente. O salário natural depende
da demanda por mão de obra e da disponibilidade local de traba-
lhadores. Aquela demanda depende dos fundos destinados ao
pagamento de salários, que são de dois tipos: o excedente do
empresário que é empregado novamente para manter o negócio e
o excedente do proprietário de terra, e das demais classes abasta-
das, que é emprestado ou empregado diretamente para contratar
mais trabalhadores. Em todo caso, os fundos destinados ao paga-
mento de salários guardam estreita relação com o estoque de
capital da economia. Sempre que esse estoque crescer mais rapida-
mente que a população trabalhadora os salários serão elevados; é
o caso dos EUA, onde os salários eram maiores que os da Inglaterra,
dado o crescimento acelerado daquele país.

150
“Não é a extensão efetiva da riqueza nacional, mas seu
incremento contínuo, que provoca uma elevação dos salários
do trabalho. Não é, portanto, nos países mais ricos, mas nos
países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se
tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho
são os mais altos. A Inglaterra é certamente, no momento, um
país muito mais rico do que qualquer outra região da América
do Norte. No entanto os salários do trabalho são mais altos na
América do Norte do que em qualquer parte da Inglaterra.”
(Adam Smith, A riqueza das nações)
Smith diz que quando os salários estão elevados as famílias
procriam mais e que “o indício mais claro da prosperidade de um
país é o aumento do número de seus habitantes.” (ibidem)
Mesmo que o país seja rico, se os fundos destinados aos
trabalhadores forem constantes ao longo do tempo, em breve não
existirá escassez de mão de obra e os salários cairão até a subsis-
tência. A sociedade regride a uma condição de pobreza mesmo que
um dia tenha alcançado considerável riqueza. Smith ilustra essa
ideia com a descrição do caso da China. Essa passagem também
revela, mais uma vez, o talento literário de Smith e como em certas
partes da obra há um tom dramático a ilustrar suas ideias (Boxe
5.4).
Smith também cita o caso da Índia, pior que o da China, pois lá
os fundos destinados aos trabalhadores não apenas deixaram de
crescer como também regrediram.
Na Inglaterra, os salários permanecem bem acima do nível de
subsistência, e como prova disso Smith argumenta que, nesse país,
variações nos preços dos mantimentos não afetam o valor dos
salários e que muitas vezes preços e salários caminham em
direções opostas. Há de se considerar também que, na ilha, há
grande diferença de salários, explicada, em parte, pela dificuldade
de se transportarem pessoas de um lugar a outro.
Smith oferece uma interpretação bastante plausível da relação
entre pobreza e crescimento da população. Argumenta que nos pobres
a fecundidade é maior, mas a proporção dos que chegam à maturidade
é menor que nos ricos. Assim, os salários não representam um freio
nas taxas de nascimento, mas, no longo prazo, estão sempre a limitar
a população trabalhadora pelas altas taxas de mortalidade que
ocorrem quando as rendas são baixas.

151
Boxe 5.4 A miséria da China.

Smith escreve: “A China foi por muito tempo um dos países mais ricos, isto
é, um dos mais férteis, mais bem cultivados, mais industriosos e mais populosos
do mundo. Ao que parece, porém, há muito tempo sua economia estacionou.
Marco Polo, que a visitou há mais de quinhentos anos, descreve sua agricultura,
sua indústria e densidade demográfica mais ou menos nos mesmos termos em
que são descritos por viajantes de hoje. Talvez tivesse conseguido aquele
complemento pleno de riqueza que a natureza e as leis e instituições permitem
adquirir. Os relatos de muitos viajantes, contraditórios sob muitos outros
aspectos, concordam em atestar a baixa taxa de salários e as dificuldades que
um trabalhador tem para manter sua família na China. Ele se satisfaz se, após
cavar o solo um dia inteiro, puder conseguir o suficiente para comprar uma
pequena porção de arroz à noite. A situação dos artesãos é ainda pior, se é que
é possível. Em vez de esperar indolentemente pelos chamados dos clientes nas
oficinas, como acontece na Europa, circulam continuamente pelas ruas
empunhando os instrumentos de seu ofício, oferecendo seu serviço, e quase
mendigando emprego. A pobreza das camadas mais baixas do povo chinês
supera de muito a das nações mais pobres da Europa. Nas adjacências de Cantão
afirma-se que muitas centenas e até milhares de famílias não têm moradia,
vivendo constantemente em pequenos barcos de pesca nas margens dos rios e
dos canais. A subsistência que ali encontram é tão escassa, que ficam ansiosos
por apanhar o pior lixo lançado ao mar por qualquer navio europeu. Qualquer
carniça, por exemplo, a carcaça de um cachorro ou gato morto, embora já em
estado de putrefação e fedendo, é para eles tão bem-vinda quanto o alimento
mais sadio para as pessoas de outros países. O casamento é estimulado na China,
não porque ter filhos represente algum proveito, mas pela liberdade que se tem
de eliminá-los. Em todas as grandes cidades, várias crianças são abandonadas
toda noite na rua, ou afogadas na água como filhotes de animais. Afirma-se até
que eliminar crianças é uma profissão reconhecida, cujo desempenho assegura
a subsistência de certos cidadãos.” (Adam Smith, A riqueza das nações)

A teoria dos salários de Smith não é simples de ser sintetizada.


Smith joga com vários aspectos do tema e nem sempre é
suficientemente claro. A melhor interpretação é a de que, nessa
teoria, os salários são determinados pela relação entre o
crescimento do estoque de capital que irá compor o fundo para o
pagamento de salários e as taxas de crescimento vegetativo da
população. Da relação entre essas duas taxas de crescimento chega-
se a certo nível de salário, mas não se determina claramente, em
cada caso, qual o nível teórico de salário de equilíbrio. Há muitas
digressões. Ora ele chega a uma fronteira inferior para o salário real
que é a condição para a reprodução da oferta de trabalho. Se o
salário não permite a reprodução, a oferta de trabalho cairá no

152
futuro e os salários aumentarão, se o salário está acima do
necessário para a reprodução, a oferta de trabalho se ampliará e os
salários cairão no futuro. A demanda por trabalhador, como por
todas as outras mercadorias, regula a produção de homens. No
entanto, Smith não é explícito em como as taxas de salário se
formam entre uma geração e outra. Os salários podem ficar
indefinidamente acima do nível de subsistência se o estoque de
capital crescer sempre a taxas superiores à evolução demográfica.
Em suma, Smith não chega a uma teoria de salários de equilíbrio.
Não se pode dizer que o nível de subsistência seja o valor de
equilíbrio pensado por ele.
Chamam a atenção nesse capítulo outras considerações de
Smith sobre os salários. Ele já introduz o que modernamente se
conhece por “teoria do salário eficiência”: como o desempenho do
trabalho é afetado pelo salário percebido (Boxe 5.5).

Boxe 5.5 A teoria do salário eficiência de Smith.

Smith escreve: “Assim como a remuneração generosa do trabalho esti-


mula a propagação da espécie, da mesma forma aumenta a laboriosidade. Os
salários representam o estímulo da operosidade, a qual, como qualquer outra
qualidade humana, melhora em proporção ao estímulo que recebe. Meios de
subsistência abundantes aumentam a força física do trabalhador, é a esperança
confortante de melhorar sua condição e talvez terminar seus dias em tran-
quilidade e abundância que o anima a empenhar suas forças ao máximo.
Portanto, onde os salários são altos, sempre veremos os empregados traba-
lhando mais ativamente, com maior diligência e com maior rapidez do que
onde são baixos; é o que se verifica, por exemplo, na Inglaterra, em comparação
com a Escócia, o mesmo acontecendo nas proximidades das cidades grandes,
em comparação com as localidades mais recuadas do interior.” (Adam Smith,
A riqueza das nações)

No Capítulo 9, Smith parte para a determinação teórica da taxa


natural de lucro. Assim como os salários, os lucros do capital
dependem do estado de progresso da riqueza na sociedade. Con-
tudo, o processo afeta os lucros de maneira diferente do que afeta
os salários. O aumento do capital faz decair as taxas de lucro ao
mesmo tempo em que eleva os salários, quer se trate do capital na
sociedade como um todo ou do capital de determinado negócio.
Assim, a concentração dos grandes negócios na cidade reduz as
taxas de lucros nesta localidade, ao passo que a escassez de capital
no campo as eleva. Por outro lado, os salários são maiores nas
cidades e menores no campo.
153
Então, o efeito da prosperidade nos lucros é a redução deles. O
raciocínio de Smith considera que a expansão do capital torna
menores as possibilidades de emprego lucrativo; a concorrência entre
capitais reduz as taxas de lucro. Embora os lucros devam diminuir
com o desenvolvimento da economia, há exceções, como ocorre nas
colônias inglesas onde salários e lucros andam juntos. Nesse caso,
altos lucros e salários estão associados à ocupação de novas áreas com
elevado grau de fertilidade e boa localização. Entretanto, mesmo aqui,
os lucros devem diminuir com o tempo, argumenta Smith. Há também
situações em que salários e lucros são conjuntamente baixos, quando,
após um grande progresso, a sociedade entra em estagnação. Portan-
to, não há necessariamente correlação inversa entre salários e lucros
em toda parte, mas a tendência das variáveis é a de caminharem em
direções opostas. Esse efeito não é de todo indesejável. A baixa taxa de
lucro nos países mais avançados compensa os elevados salários, de
modo que os países ricos conseguem manter preços competitivos no
comércio mundial. Isso vale para a relação entre a cidade e o campo.
Os lucros flutuam muito. Tudo o que afeta preços, concorrência,
clientela, risco de transporte, custo de armazenagem etc. faz o lucro
variar no dia a dia. Smith dá especial ênfase aos juros que são pagos
pelos lucros e dedica boa parte do capítulo a discuti-los. Nesse
sentido, há muito material histórico apresentado. Juros do dinheiro
e lucros variam no mesmo sentido e, assim, acompanhar a evolução
dos primeiros fornece-nos uma ideia dos lucros. Na Inglaterra,
Henrique VIII decretou um teto de 10% nos juros, Eduardo VI proíbe
completamente a prática dos juros, medida inócua. O decreto 13o de
Isabel mantém o teto anterior, mas Jaime I, no Decreto 21o, reduz o
teto para 8%. Após a Restauração inglesa, ele cai a 6% e finalmente
a rainha Ana limita-o em 5%. Depois de discorrer sobre esses casos
históricos, Smith assevera que tais medidas controladoras apenas
conseguiram seguir as taxas de mercado, mas que em geral poder-
se-ia tomar emprestado a um juro menor do que este. A partir de
Henrique VIII o progresso da Inglaterra fez aumentar os salários e
reduzir os lucros. Smith conta-nos que também se procurou reduzir
os juros na França do século XVIII, mas no caso o objetivo principal
era reduzir a dívida pública. As taxas de mercado seguiam um
caminho próprio, não totalmente dependentes das taxas oficiais.
Juros são sempre proporcionais ao lucro líquido. As taxas
mínimas de juros devem remunerar o risco do emprestador e,
portanto, os lucros sempre estarão acima deste mínimo. Nos países
ricos, os juros são baixos e ninguém vive dele. Como no caso da
Holanda, país tido como mais avançado que a própria Inglaterra,
todos são homens de negócios. Em países pobres, muitos vivem de
154
emprestar dinheiro, a taxa de lucro é mais alta e a proporção dele
destinada ao pagamento de juros é maior que nas nações ricas.
Em suma, como regra, a taxa natural de lucro declina conforme o
país se torna mais rico. Acréscimo nos estoques, no número de
empresários ou na competição entre comerciantes e produtores reduz
os lucros. Destarte, Smith indica a trajetória dos lucros, porém não
determina o nível da taxa natural de lucro. A estrutura analítica da
teoria dos lucros de equilíbrio, como anteriormente na teoria de
salários naturais, fica sem um firme embasamento teórico. No capítulo
10, Smith discute as causas das desigualdades entre salários e lucros
em diferentes ocupações. Mais considerações factuais são introduzi-
das, contudo, não se resolve a questão teórica do nível em que essas
variáveis são estabelecidas no equilíbrio.
Finalmente o último componente dos preços, a renda, é apre-
sentado no capítulo 11. Aqui se diz que a renda da terra é o preço
pago ao proprietário pelo seu uso, “é o máximo que o arrendatário
pode permitir-se pagar, nas circunstâncias efetivas da terra” (Adam
Smith, A riqueza das nações). Depois de pagos os salários e os
preços dos demais fatores de produção, e embolsado um lucro
normal, o que sobra do valor da produção é pago em renda da terra.
A renda, diz Smith, não é um pagamento pelo capital emprestado
pelo dono da terra para melhorá-la, não se confunde com lucros e
juros. Mesmo terras que não podem receber melhorias pagam
renda, como na exploração de algas marinhas. A renda é um preço
de monopólio; não é proporcional ao que o empresário investiu ou
ao que se pode extrair da terra.
Sempre que a relação entre oferta e demanda eficaz possibi-
lite à mercadoria ser vendida por seu preço natural, a renda é o que
sobra após subtraídos dele os salários, o pagamento unitário de
lucros normais e a reposição do valor do capital. A renda é a parcela
excedente e como tal ela depende da demanda. Se o preço praticado
está acima dos preços normais, uma parte da parcela excedente vai
para a renda da terra (outra parte estaria remunerando salários ou
lucros acima dos seus valores normais). Assim, a teoria da renda de
Smith apresenta certa inconsistência: ao mesmo tempo em que a
renda é uma parcela dos preços, e como tal deveria determiná-lo,
ela mesma é função dos preços, pois é obtida como resíduo do valor
das vendas e dos salários e juros praticados. Smith não se incomo-
dou com essa circularidade lógica; no entanto, ciente dela, David
Ricardo tratou de reformular a teoria 50 anos depois.
O capítulo 11 discute ainda os casos de produtos da terra que
sempre proporcionam alguma renda, os que às vezes a proporcionam
155
e quais fatores provocam variação na renda. Neste último aspecto, diz
que a renda é maior perto das cidades e que, além da localização, a
fertilidade é um item importante na sua determinação. A melhoria de
transportes tem efeito sobre as rendas. A renda obtida nos trigais
regula a renda das terras dedicadas à pecuária e outras atividades.
Produtos que proporcionam um excedente de valor maior, como as
batatas, aumentam as rendas. Estas são, portanto, as principais
considerações de Smith a respeito dos fatores que condicionam a
renda. Voltando à questão dos produtos que sempre pagam renda da
terra, Smith cita o caso dos alimentos. Eles sempre proporcionam
renda porque são desejados por atenderem a necessidades básicas do
homem. Outros produtos da terra, usados no vestuário e em moradia,
às vezes pagam renda, às vezes não. Quando a terra é tratada de modo
a oferecer alimentos suficientes para manter as pessoas, há uma
demanda adicional por produtos ligados à fabricação de roupas e
moradia. Enquanto houver, para esses casos, um excesso de demanda,
o preço elevado desses materiais proporciona o pagamento de renda
da terra. Quando a terra produz materiais para vestuário e moradia
mais do que requerem as pessoas a serem sustentadas, mesmo
estando a terra em estado natural e não tratado, tais produtos não
acarretarão renda. Então a renda depende da dinâmica da demanda
em relação à oferta. Há digressões interessantes sobre a relação entre
o preço do carvão em comparação ao preço da madeira e o pagamento
de renda nas minas de carvão. A mina mais fértil regula o preço do
carvão e a renda é proporcional à superioridade das minas. Também
é importante a discussão sobre o valor da prata feita, nesse mesmo
capítulo, em conexão com a teoria da renda.
Então a renda da terra é efeito de variações nos preços e não uma
causa delas. A renda das minas de carvão parece ser regulada por um
princípio diferente do caso geral. Smith diz que o custo de produção
da mina que não paga renda é um bom indicador do menor preço a
que a mercadoria é vendida. Nota-se, portanto, que, nesse caso, as
rendas determinam os preços.
O livro I contém a principal contribuição analítica de Smith.
Embora importante no contexto histórico, ela é de pouco uso atual.
A distinção entre preço natural e de mercado não é muito impor-
tante, já que os preços de mercado podem exceder ou estar abaixo
dos preços naturais por séculos. A decomposição dos preços em
salário, lucro e renda da terra também é um tanto inócua. Ela
embaralha determinantes micro e macroeconômicos de uma
maneira difícil de separar. Mais importante foram as ilustrações de
Smith que educaram gerações posteriores. Conceitos como custo
de oportunidade, equalização de retornos em diferentes usos,
156
relação entre lucro e risco, entre salário e produtividade são pontos
teóricos importantes. Smith tem a virtude de um pedagogo e o
mérito maior do livro é a apresentação cuidadosa e enfática de
ideias já conhecidas a sua época. Além do talento literário inques-
tionável e dos exemplos históricos.
O livro II também é basicamente de teoria. Ele discute as
condicionantes e as características da acumulação de capital, em
que analisa o que determina a oferta de emprego produtivo e sua
distribuição setorial. Há também esboços de uma teoria monetá-
ria. O capítulo 1 discute a diferença entre capital fixo e circulante:
“Há duas maneiras de se empregar um capital, para que ele
proporcione uma renda ou lucro a quem o emprega.
Primeiro, o capital pode ser empregado para obter, fabricar ou
comprar bens, e vendê-los novamente, com lucro. O capital
empregado desta forma não gera renda ou lucro a quem o
emprega, já que permanece na posse da pessoa ou conserva a
mesma forma. As mercadorias do comerciante não lhe propor-
cionam renda alguma nem lucro, enquanto ele não as vender por
dinheiro, e também o dinheiro não lhe proporciona renda ou
lucro, enquanto por sua vez não for trocado por bens. Seu capital
continuamente sai dele em uma forma e volta a ele de outra;
somente mediante essa circulação ou trocas sucessivas pode ele
proporcionar-lhe algum lucro. Por isso, esses capitais são adequa-
damente denominados de capitais circulantes.
Em segundo lugar, o capital pode ser empregado no apri-
moramento da terra, na compra de máquinas úteis ou instru-
mentos de trabalho, ou em coisas similares que geram uma
renda ou lucro sem mudar de donos, ou seja, sem circularem
ulteriormente. Por isso, tais capitais podem com muita pro-
priedade ser chamados de capitais fixos.” (Adam Smith, A ri-
queza das nações)
O capítulo 2 discute o papel da moeda e do crédito na
circulação de mercadorias e na acumulação de capital. No capítulo
3, Smith desenvolve o conceito de trabalho produtivo e discute a
relação entre poupança e formação de capital. Sobre o conceito de
trabalho produtivo, diz que esse tipo de trabalho “fixa-se e realiza-
se em algum objeto, em particular, ou mercadoria vendável, que
perdura ao menos algum tempo depois de finalizado o trabalho”.
Smith segue a lei de Say e não considera o problema de demanda
efetiva, tal como seria depois apontado por T. Malthus e, no século
XX, por J. M. Keynes.

157
O capítulo 4 é a teoria dos juros de Smith e o capítulo 5 analisa
a produtividade do capital em diferentes setores. Tais capítulos não
merecerão aqui uma apresentação.
O livro III representa o teste empírico das teorias dos livros I e
II utilizando exemplos históricos. Intitula-se “o diferente progresso
da opulência em diferentes nações”. Enfatiza o comércio entre as
cidades e o campo. Estuda a situação da agricultura na Europa na
época após o declínio do Império Romano. Explica de que maneira
o comércio das cidades contribui para o progresso no campo.
Dos três livros restantes da A riqueza das nações, já adian-
tamos algo sobre eles. Queremos destacar agora a teoria do
comércio internacional de Smith que aparece nos dois primeiros
capítulos do livro IV. E depois veremos temas dos capítulos III a IX
do mesmo tomo.
O capítulo I do livro IV da Riqueza das nações intitula-se “Do
princípio do sistema comercial ou mercantil”. Nele, Smith apresen-
ta as vantagens que o comércio internacional pode trazer a um país.
Começa por criticar a ideia de certa caricatura do mercantilismo
(criada por ele mesmo) de que dinheiro representa riqueza. A
verdadeira riqueza de uma nação, argumenta Smith, é a quantidade
de bens que possui. Após um breve retrospecto das políticas
mercantilistas, Smith critica a concepção de que o comércio exte-
rior só beneficia o país pela entrada de ouro e prata. Afirma que
acumular ouro e prata mais do que o necessário é uma insensatez
e que a verdadeira utilidade deles consiste na facilidade que
proporcionam na circulação de mercadoria, não representando
uma forma de riqueza direta. Smith considera que a verdadeira
vantagem do comércio internacional é a possibilidade de se vender
a produção excedente que não encontrou procura nos domínios de
um país.
No capítulo seguinte, “Das restrições à importação de países
estrangeiros daqueles bens que podem ser produzidos interna-
mente”, discute detalhadamente várias medidas intervencionistas
no comércio internacional. Não as critica como um todo, preferindo
analisar caso a caso. Começa dizendo que a restrição à importação
via taxas ou proibições cria um monopólio no mercado interno.
Como consequência, é desviado capital e trabalho de outros empre-
gos para o produto favorecido, mais do que ocorreria de outro
modo. Smith discute o efeito dessa medida sobre a produção da
economia em geral. Conclui que a produção não pode aumentar
mais do que o capital do país é capaz de empregar. O direciona-
mento artificial de capital e trabalho aos setores protegidos da
158
concorrência externa não é vantajoso para a sociedade. O capital e
o trabalho são mais bem empregados quando as decisões alocativas
são guiadas pelo autointeresse:
“Todo indivíduo empenha-se continuamente em descobrir
a aplicação mais vantajosa de todo capital que possui. Com
efeito, o que o indivíduo tem em vista é sua própria vantagem,
e não a da sociedade. Todavia, a procura de sua própria
vantagem individual natural ou, antes, quase necessariamente,
leva-o a preferir aquela aplicação que acarreta as maiores
vantagens para a sociedade [...] Já que cada indivíduo procura,
na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a
atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que
seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo
necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível
a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não
tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto
o está promovendo [...] visa apenas a seu próprio ganho e,
neste, como em muitos outros casos, é levado como que por
mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de
suas intenções.” (Adam Smith, A riqueza das nações)
A expressão “mão invisível” já aparecera na História da astro-
nomia e na Teoria dos sentimentos morais, obras anteriores de
Smith. É a metáfora para um modelo mecânico de equilíbrio compe-
titivo de mercado.
Para Smith, um único homem, ou um conselho de homens, não
poderia orientar melhor a alocação de capitais entre diferentes
setores que o mercado agindo por conta própria. As medidas
protecionistas buscam orientar os capitais pelo monopólio do
mercado interno. Se o preço do produto internamente é igual ao
preço no mercado externo, a regulamentação é inútil; se são
diferentes, ela é perniciosa. Não é vantajoso produzir internamente
o que se pode comprar lá fora mais barato. Desloca-se, dessa forma,
parte da produção para uma atividade menos vantajosa, o que só
pode acarretar a queda do valor do produto anual do país. Leis
regulamentárias conduzem à queda na acumulação do capital. Os
países possuem enormes diferenças nas vantagens naturais e
devem especializar-se em produzir o conjunto de bens que fazem
melhor, não importando se suas vantagens são naturais ou foram
adquiridas.
Apesar do forte apelo retórico contra a intervenção no
comércio exterior, Smith ainda defende certas medidas que restrin-
gem o comércio com o estrangeiro. Defende a lei sobre a navegação
159
que confere à esquadra britânica o monopólio do comércio
marítimo de seu próprio país como uma exigência para a defesa
nacional. Também defende que se imponha uma taxa de impor-
tação de produtos similares a bens de produção doméstica taxados
dentro do país. Smith também fala em políticas de retaliações como
resposta ao protecionismo de outros países. Em suma, a fórmula do
livre mercado pode ser reavaliada em certas circunstâncias, não se
constituindo dogma geral em matéria de comércio internacional.
O capítulo III do Livro IV discute “As restrições extraordinárias
à importação de mercadorias de quase todos os tipos, dos países
com os quais a balança comercial é supostamente desfavorável”.
Critica então as restrições defendidas pelos mercantilistas como
sendo irracionais e ineficientes. No capítulo IV do mesmo livro,
Smith oferece a seguinte observação sobre o reembolso das tarifas
aduaneiras:
“Deixar o comerciante se reembolsar da exportação, total
ou parcialmente do valor da exação ou taxa imposta sobre a
indústria doméstica, nunca pode ocasionar a exportação de
maior quantidade de bens do que a que seria exportada se não
houvesse taxa imposta.” (ibidem)
No capítulo V do Livro IV, denominado “Os prêmios”, Smith
critica os incentivos para as exportações:
“O efeito dos prêmios, tal como o de todos os outros
expedientes do sistema mercantil, só pode forçar o comércio
de um país para um canal muito menos vantajoso do que
aquele para o qual normalmente ocorreria por si só”. (ibidem)
No capítulo VI do mesmo Livro IV, intitulado “Os tratados de
comércio”, Smith discorre sobre os três principais artigos do
tratado de comércio entre Inglaterra e Portugal de 1703. Discute o
destino dado pelos portugueses ao excesso de ouro trazidos dos
“Brasis”.
“Quase todo o nosso ouro, diz-se, vem de Portugal [...] Quan-
to mais ouro é anualmente importado de determinados países,
muito acima do que é necessário para chapa e cunhagem, mais
deve ser necessariamente exportado para outros.” (ibidem)
No capítulo VII, ele comenta sobre as colônias. Alega os
motivos para o estabelecimento de novas colônias:
“O estabelecimento das colônias europeias na América e
nas Índias Ocidentais não surgiu de nenhuma necessidade; e
muito embora a utilidade que resultou delas tenha sido muito

160
grande, não é tão clara e evidente. Não foi entendida logo de
início, e tampouco o motivo de seu estabelecimento ou desco-
bertas que a ocasionaram, e a natureza, a extensão e os limites
dessas utilidades talvez não tenham sido bem entendidos até
hoje.” (ibidem)
Sobre a colônia no Brasil, escreve:
“Após as colônias dos espanhóis, a dos portugueses no
Brasil é a mais antiga nação europeia na América. Mas como
por um longo tempo depois da conquista não se encontraram
minas de ouro nem prata, e não dando, por causa disso, quase
nenhuma renda à Coroa, por muito tempo foi negligenciada, e
durante este estádio de indiferença, tornou-se uma grande e
poderosa colônia. Enquanto Portugal esteve sob o domínio
espanhol, o Brasil foi atacado pelos holandeses, que se apos-
saram de setes das catorze províncias em que está dividido.
Esperavam logo conquistar as outras sete, quando Portugal
recuperou sua independência pela elevação da família Bragan-
ça ao trono. Os holandeses, então, como inimigos dos espa-
nhóis, se tornaram amigos dos espanhóis. Concordaram assim
em deixar aquela parte do Brasil que não haviam conquistado
ao rei de Portugal, que concordou em deixar-lhes aquela parte
que haviam conquistado, como questão que não valia a pena
disputar entre bons aliados. Mas o governo holandês logo
começou a oprimir os colonos portugueses, que, em vez de se
distraírem com queixas, pegaram em armas contra seus novos
senhores, e por seu próprio valor e resolução, com a conivên-
cia, de fato, mas sem nenhuma assistência reconhecida da
terra-mãe, os expulsaram do Brasil. Os holandeses, portanto,
achando impossível conservar qualquer parte do país para si,
contentaram-se com que fosse inteiramente restaurado à
Coroa de Portugal. Nessa colônia, diz que há mais de seiscentos
mil pessoas, portugueses ou seus descendentes, crioulos,
mulatos e uma raça mista entre portugueses e brasileiros.
Supõe-se que nenhuma colônia na América contém tamanho
número de pessoas de ascendência europeia.” (ibidem)
Outros temas do capítulo VII dizem respeito às causas da
prosperidade das novas colônias e às vantagens para a Europa da
descoberta da América e da passagem pelo Cabo da Boa Esperança.
No capítulo VIII do mesmo tomo, Smith chega à conclusão sobre a
quem efetivamente atenderam as regulamentações do sistema
mercantil:

161
“Não é muito difícil determinar quais foram os arquitetos
de todo esse sistema mercantil: não os consumidores, pode-
mos crer, cujo interesse foi inteiramente negligenciado, mas os
produtores, cujo interesse foi tão cuidadosamente atendido; e
dentre esta última classe nossos comerciantes e manufatu-
reiros foram de longe os principais arquitetos. Nos regulamen-
tos mercantis, que foram assinalados neste capítulo, o interes-
se de nossos manufatureiros foi muito especialmente atendi-
do; e o interesse, não tanto dos consumidores, mas de algumas
outras categorias de produtores, a ele sacrificado.” (ibidem)
Por fim, no capítulo IX do Livro IV, Smith critica a fisiocracia,
também chamada de sistemas agrícolas ou sistema de economia
política. Cita Colbert (ministro de Luís XI) e Quesnay, “o engenhoso
e profundo autor desse sistema”. Merece destaque a famosa
passagem:
“Sr. Quesnay, ele próprio um médico muito teórico, parece
ter sustentado uma noção da mesma espécie, concernente ao
corpo político, e ter imaginado que este viveria e prosperaria
apenas sob um certo preciso regime, o exato regime das
perfeitas liberdade e justiça. Parece não ter considerado que,
no corpo político, o esforço natural que cada homem está
continuamente fazendo para melhorar sua própria condição é
um princípio de preservação capaz de prevenir e corrigir, sob
muitos aspectos, os maus efeitos de uma política econômica,
em certo grau, parcial e opressiva. Tal economia política, se
bem que retarde mais ou menos, não é capaz de interromper
totalmente o progresso natural de uma nação rumo à riqueza
e à prosperidade, e ainda menos fazê-la retroagir. Se uma
nação não puder prosperar com a fruição das perfeitas
liberdade e justiça, não haveria no mundo uma só nação que
consiga prosperar. No corpo político, porém, a sabedoria da
natureza afortunadamente fez ampla provisão para remediar
muitos dos maus efeitos da loucura e injustiça humanas, da
mesma maneira que fez no corpo natural para remediar os
maus efeitos de sua cobiça e intemperança.” (ibidem)
Finalmente vejamos algo do Livro V, que discorre, dentre
outros temas, sobre tributação, política fiscal e dívida pública,
sobre a renda do soberano e da comunidade, a despesa com a
justiça, a despesa com as obras e as instituições públicas (para
facilitar o comércio etc.) e as despesas com o sustento da digni-
dade do soberano. Neste último tema discorre: “Naturalmente

162
esperamos encontrar mais esplendor na corte de um rei que na
mansão de um doge ou burgomestre”. (ibidem)
Smith escreve sobre as fontes de renda geral ou pública da
sociedade, e sobre as taxas (sobre renda, renda da terra, sobre
aluguéis de casas, sobre o lucro ou a renda oriunda do capital, sobre
o lucro de aplicações específicas de capital, sobre os salários do
trabalho, taxas de capitação e taxas sobre bens de consumo). Sobre
os débitos públicos, escreve:
“Um país repleto de comerciantes e manufatureiros, por-
tanto, necessariamente é abundante de um conjunto de pes-
soas que a qualquer momento tem o poder de adiantar, se
assim o escolherem, uma enorme quantia de dinheiro ao
governo. Daí a capacidade de os súditos de um estado comer-
cial de conceder empréstimos”. (ibidem)

163
Questões

1. Como Smith caracteriza o processo de descoberta ou invenção


científica na História da astronomia?
2. Descreva o método newtoniano e demonstre que Smith seguiu
tal método quando escreveu A riqueza das nações.
3. Comente esta afirmação (nossa): “Em A riqueza das nações,
Smith constrói um modelo de sociedade onde os indivíduos são
guiados apenas pelo seu interesse pessoal. Essa concepção está
em conflito com o que ele escreve na Teoria dos Sentimentos
Morais, pois nessa obra o indivíduo é visto como comandado não
só pelos seus interesses egoístas, mas também pelo juízo que os
outros emitem sobre as suas ações (o princípio da simpatia).”
4. Quais os argumentos utilizados por Adam Smith para demons-
trar que a divisão do trabalho leva ao aumento da produtividade
do trabalho?
5. Em Smith, explique o mecanismo em que o crescimento eco-
nômico é desencadeado pela divisão do trabalho. Por que a
divisão do trabalho fica limitada pela extensão do mercado?
6. Comente a proposição (nossa): “Na Riqueza das nações, Smith
não explica o que leva à divisão do trabalho, mas outros escritos
desse autor fornecem uma pista para essa explicação.”
7. É a diferença de talentos individuais em pessoas diferentes que
origina a divisão do trabalho ou é esta que dá origem àquela
diferença? Explique a relação, apontada por Smith, entre esses
aspectos.
8. Smith, discutindo os feitos da divisão do trabalho sobre a
produtividade, viria a afirmar que “As nações mais opulentas
geralmente superam todos os seus vizinhos tanto na agricul-
tura como nas manufaturas; geralmente porém, distinguem-se
mais pela superioridade na manufatura do que pela supe-
rioridade na agricultura” (A riqueza das nações). Explique o
porquê disso.
9. No capítulo 4 da Riqueza das nações (livro I), Smith escreve: “O
açougueiro tem consigo mais carne do que a porção que precisa
para seu consumo, e o cervejeiro e o padeiro estariam dispostos
a comprar uma parte do produto. Entretanto, não têm nada a
oferecer em troca, a não ser os produtos diferentes de seu
trabalho ou de suas transações comerciais, e o açougueiro já tem
o pão e a cerveja de que precisa para seu consumo. Neste caso,
164
não poderá haver nenhuma troca entre eles. No caso, o açou-
gueiro não pode ser comerciante para o cervejeiro e o padeiro,
nem estes podem ser clientes do açougueiro; e portanto diminui
nos três a possibilidade de se ajudarem entre si” (A riqueza das
nações). Essa dificuldade é algo que se pode dar em várias
situações na vida em sociedade. Para Smith, de que forma os
homens conseguem contornar esse problema na prática?
10. Ao investigar o que na sociedade determina o valor de troca de
uma mercadoria, por que para Smith:
a. O valor de uso não serve como critério para a determinação
do valor de troca?
b. O valor de troca real não se confunde com seu preço de
mercado?
11. Na questão do valor, a estratégia teórica de Smith consiste em
encontrar um elemento que se conserva nas trocas:
a. Qual é esse elemento?
b. Por que, para Smith, nas sociedades evoluídas o trabalho
incorporado nas mercadorias não funciona mais como
medida do valor de troca?
12. Explique os conceitos smithianos de valor de troca, valor de
uso, preço natural e preço de mercado.
13. Se o preço natural das mercadorias é decomposto, no esque-
ma de Smith, em salário, lucro e renda fundiária, por que não
se poderiam incluir outros componentes como o juro e o custo
das matérias-primas?
14. Sintetize a explicação de Smith para a determinação dos
valores naturais dos salários, dos lucros e das rendas. Que
diferenças existem entre a teoria do preço natural de Smith e a
moderna explicação microeconômica do preço de equilíbrio?
15. De que maneira a teoria do valor-trabalho comandado de
Smith articula-se logicamente com sua teoria do crescimento?
16. Para Smith, por que a acumulação de capital leva a uma queda
na taxa natural de lucros e de que modo isso compromete a
continuidade do processo de acumulação?
17. Explique a diferença entre lucro e juro. Por que os lucros
globais não podem ser menores que os juros?
18. Critique a teoria da renda de Smith mostrando a circularidade
lógica nela implícita.

165
19. Smith diz que o verdadeiro benefício que o comércio interna-
cional pode trazer a um país não está na acumulação de ouro e
prata. Assim, de que maneira o comércio exterior pode
contribuir para o enriquecimento do país?
20. Qual a consequência efetiva da acumulação de metais precio-
sos para um país?
21. Para Smith, quais as consequências da restrição à importação
e quais os casos particulares em que Smith defende a
regulamentação do comércio internacional pelo governo; e
com base em que argumentos?
22. Qual a diferença entre trabalho produtivo e trabalho impro-
dutivo? O que acontece com o número de trabalhadores pro-
dutivos à medida que aumenta o capital acumulado? Qual o
efeito sobre o processo de acumulação de um aumento relativo
no trabalho improdutivo?

166
Leitura Adicional

Literatura Primária

DESCARTES, René. Discurso do método: meditações, objeções e


respostas: as paixões da alma. São Paulo: Abril, 1983.

SMITH, Adam. Os princípios que guiam e conduzem a investigação


filosófica ilustrados pela história da astronomia. In: Essays on
philosophical subjects. Oxford: Oxford University Press, 1980.

_____. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas


causas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes,


1999.

NEWTON, Isaac. Princípios matemáticos da filosofia natural. São


Paulo: Nova Cultural, 1996.

Literatura Secundária

BIANCHI, Ana Maria. A pré-história da economia: de Maquiavel a


Adam Smith. São Paulo: Hucitec, 1988.

FEIJÓ, Ricardo L. C. A filosofia da ciência em Adam Smith. In: Anais


do 19o encontro nacional de economia. Curitiba: Anpec, 1991.

FONSECA, Eduardo G. Historiography of economic thought: a


comparative analysis, Darwin College. Cambridge: Lest/ Easter
Terms, 1983. Mimeo.

ROSS, Ian Simpson. Adam Smith: uma biografia. Rio de Janeiro:


Record, 1999.

167
168
6
Século XIX: A Economia
Política Clássica

O NASCIMENTO DA ESCOLA CLÁSSICA


Nas primeiras décadas do século XIX, o ensino de economia
política gira em torno da obra de Adam Smith. Todo intelectual com
preocupações sociais tem em A Riqueza das nações um livro de
leitura obrigatória. Após a revolução industrial, a Inglaterra des-
ponta como grande potência econômica, e a gestão do império, que
começa a se ampliar, traz desafios aos que se propõem a dirigir ou
opinar políticas públicas. A circulação generalizada de dinheiro e
um complexo sistema de crédito suscitam controvérsias teóricas.
Também as políticas de comércio exterior desafiam a gestão
econômica em questões que iam de proibições à importação,
passando por taxas e impostos aduaneiros, à questão do câmbio.
Os pensadores que se debruçam nessas questões e seguem o
modelo básico de Smith irão compor a chamada economia política
clássica. Muitos autores aparecem como membros desta escola:
John McCulloch, Jean-Baptiste Say, James Mill, Nassau William
Senior, John Cairnes, Thomas Hodgskin, Perronet Thompson, Jean
Charles Léonard Simonde de Sismondi, Samuel Bailey, Thomas De
Quincey e outros. No entanto, destacamos três autores clássicos
mais importantes para estudo neste capítulo: Thomas Malthus,
David Ricardo e John Stuart Mill. Partindo do paradigma smithiano,
irão examinar questões metodológicas, de padronização de
linguagem, sobre medida do valor e distribuição, monopólio,
oligopólio, política monetária e comércio exterior. Ainda elegem
como questão central da economia política o crescimento econômi-
co, mas dão ênfases particulares a diferentes temas ligados à
questão básica: Malthus enfatiza a demanda, Ricardo a distribuição
dos rendimentos e Mill preocupa-se com questões metodológicas e
sobre produção, distribuição e propriedade dos bens. De fato,
169
Ricardo e Mill eram as maiores autoridades na fase áurea da
economia política inglesa em meados do século XIX. Malthus foi
relativamente superado por eles, mas sua importância seria resga-
tada tempos depois.
As reflexões desses autores clássicos estarão em sintonia com
os problemas da época, muito embora a escola tenha-se tornado, ao
longo do tempo, excessivamente abstrata e descolada desses
problemas. Temos, como questão inicial, quase sempre tratada no
início das obras, o problema do valor, ou seja, de como os preços
são determinados na sociedade avançada. A estrutura de preços
relativos em termos reais seria explicada pela versão ampliada e
aperfeiçoada da teoria do valor trabalho de Smith. A moeda é usada
para explicar o nível dos preços absolutos. Supunha-se a existência
de uma dicotomia entre o lado real e o lado monetário da economia.
Não são muito explorados os vínculos entre a oferta de moeda e o
nível de produção, embora Henry Thornton o tenha estudado no
ensaio Investigação sobre a natureza e os efeitos do papel-crédito
da Grã-Bretanha, de 1802. Os problemas econômicos com raízes no
setor financeiro ainda não são muito estudados, e a teoria real
mantém primazia em relação à teoria monetária. A análise clássica
dos juros parte da dicotomia já referida, e os juros são, para ela,
formados no mercado de capitais reais. O nível dos juros é
governado pela demanda de empréstimos por capital de investi-
mento e pela oferta de recursos reais disponíveis de capital, que por
sua vez depende da oferta de poupança bruta. A taxa de juros seria
então o preço do capital. No longo prazo, a oferta de moeda é neutra
e não afeta os juros reais, apenas os preços. A taxa de juros de longo
prazo seria determinada, portanto, neste mercado físico de bens de
capital e dependeria de certas variáveis exógenas ao modelo como
produtividade do capital e parcimônia dos poupadores.
No curto prazo, também se reconhecia o papel do mercado de
fundos emprestáveis. A oferta de crédito monetário e a demanda de
fundos disponíveis determinariam as taxas de juros de curto prazo
que seriam um fenômeno puramente monetário. Então no curto
prazo os juros são um fenômeno monetário e no longo prazo um
fenômeno real. A conexão entre mercados monetários e mercados
de bens foi tentada por Thornton. Ele acreditava que no longo prazo
as taxas reais de retorno do capital fixo seriam iguais às taxas de
retorno no mercado de fundos emprestáveis, mas não sabia expli-
car direito tal conexão. A relação entre taxa de juros de mercado e
as taxas reais ou naturais de juros (a produtividade física do
capital) não era bem investigada. Só no fim do século XIX Knut
Wicksell e Alfred Marshall irão lançar uma luz verdadeiramente
170
esclarecedora à temática monetária, contudo, tal tema fora tratado
anteriormente pelos autores clássicos em questão, principalmente
David Ricardo.
Ricardo esteve envolvido nas controvérsias monetárias da
época e era adepto do estabelecimento de um padrão-ouro. Em-
bora importante, não iremos enfatizar, neste capítulo, a questão
monetária. A ênfase estará na teoria do crescimento, da distribui-
ção e do valor nos autores clássicos. Pontualmente, também se
privilegiam as políticas de comércio internacional na análise que se
segue.
Veremos então três autores, nesta ordem: Malthus, Ricardo e
Stuart Mill, por certo os mais importantes, mas sabemos que outros
deveriam aparecer numa análise mais detalhada da escola clássica.
O apogeu dessa escola ocorre entre 1840 e 1860, embora ela tenha
sido hegemônica por todo o século XIX. Após o período áureo,
entrou em decadência. A descrição do processo de crise da escola
será tema do Capítulo 8; por ora, o estudo recai nas principais
ideias desses autores, sem visualizar o ambiente externo em outros
países além da Inglaterra, onde se observam movimentos diferen-
ciados no pensamento econômico da época.

THOMAS MALTHUS
Thomas Robert Malthus (1766-1834) nasceu no seio de uma
família próspera. Seu pai admirava as ideias do filósofo Jean-
Jacques Rousseau e era amigo de David Hume e William Godwin.
Malthus ingressou na Universidade de Cambridge aos 18 anos.
Estudou matemática e línguas clássicas e recebeu formação sa-
cerdotal. Nove anos depois, foi eleito fellow da instituição e em
1797 tornou-se clérigo. Ao longo de sua vida, Malthus foi aceito em
sociedades culturais importantes como o Royal Society e o Clube de
Economia Política. Teve estreito contato com David Ricardo e
James Mill, pai de John Stuart Mill.
Quando Charles Darwin publicou, em 1859, seu famoso livro A
origem das espécies, os debates que se seguiram como reação à
obra foram bastante acalorados. E não seria para menos. Darwin
trata aqui de questões muito sensíveis relativas ao surgimento das
espécies vivas, que afrontavam crenças religiosas seculares. Seu
modelo de evolução biológica parecera, naquela época, refutar
concepções criacionistas e estáticas da vida no planeta Terra. Para
ele, as diversas espécies sofreram, no passado, mudanças e trans-
formações acarretadas pelo processo evolutivo de seleção natural,
171
até adquirirem a conformação presente. Darwin explica, no prefá-
cio de seu livro, que, em parte, sua teoria...
“É a doutrina de Malthus aplicada com grande ênfase ao
reino animal e vegetal como um todo.” (Charles Darwin,
Origem das espécies)
Também não devemos esquecer a contribuição de Alfred
Russel Wallace, biólogo contemporâneo a Darwin e precursor, de
modo independente, da teoria da evolução no domínio natural.
Embora muitos desconheçam o fato, Thomas Malthus foi o verda-
deiro guru da teoria evolucionista.
Os estudos de Malthus obviamente não versavam sobre a
evolução de espécies animais ou vegetais, pois enfocam fenôme-
nos propriamente econômicos que incluíam, como usual na época,
a questão do crescimento populacional. Não havia uma demarcação
entre a economia científica e o estudo de fatores demográficos. Pelo
contrário, o crescimento numérico de populações humanas consis-
tia numa variável endógena ao modelo de determinação de variá-
veis tipicamente econômicas, como riqueza, salário, lucro etc. A
obra de referência de Malthus nesse tema é o Ensaio sobre o
princípio da população em seus efeitos na melhoria futura da
sociedade, com considerações sobre a especulação do senhor
Godwin, senhor Condorcet e outros escritores, publicada em 1798,
portanto, mais de seis décadas antes do livro de Darwin. Como
sugere o título completo da obra, a grande ambição do escrito de
Malthus era contrapor-se às ideias amplamente defendidas, na
época, por renomados filósofos morais e pensadores sociais como
William Godwin e Marquês de Condorcet. Tais filósofos acredita-
vam na possibilidade de melhorias na condição de vida das pessoas
mais pobres da sociedade pela ação da política social e pelo aprimo-
ramento de instituições sociais tais como o casamento e o direito
de propriedade. O progressismo radical de Godwin, na Inglaterra,
propunha uma mudança na legislação sobre os pobres, a Lei dos
Pobres, de forma que tornasse o pagamento de auxílio social
proporcional ao tamanho das famílias, isto é, ao número de filhos.
Uma característica presente no pensamento do século XVIII,
que se manteve no início do século seguinte, período que estamos
considerando, era a peculiar ideia de natureza. O conceito de
natural invadia a todos os domínios do conhecimento, inclusive a
ciência econômica. Para tal crença, natural era sinônimo de
necessário, verdadeiro, equilibrado e harmonioso. Tinha, portan-
to, um caráter normativo. O próprio sistema econômico era tido
como ordem natural. Malthus evoca a natureza, enquanto conceito
172
normativo, a fim de recomendar moderação nas políticas de
subvenções sociais. É no seio dessa controvérsia que ele desen-
volve, em seu livro de 1798, os fundamentos de uma teoria da
seleção natural. Malthus liga a questão da sobrevivência humana ao
crescimento populacional e à competição por recursos naturais. A
quantidade de alimentos e de outros recursos disponíveis para
consumo humano representa, para ele, freio ou estímulo, depen-
dendo de sua escassez relativa, ao crescimento demográfico. À luz
dessa ideia, maiores transferências de recursos às populações
carentes, no longo prazo, só agravariam o problema, pois elas
propiciariam condições para o subsequente crescimento popula-
cional desenfreado. Na população futura, restabelecer-se-iam as
demandas por mais recursos até encostar-se no limite da capacida-
de da economia em atendê-las; ponto a partir do qual se esgotaria
a capacidade de expansão demográfica ou mesmo reduzir-se-ia a
população.
Dada a existência dessa lei natural, para Malthus só restaria
aos governos esperar pelo controle voluntário da procriação pelas
famílias. Essa seria uma questão antes de tudo moral, trazida, quem
sabe, pela educação, embora o próprio Malthus não revele muito
otimismo de que as famílias, guiadas por imperativos morais,
contivessem o ímpeto irresistível de reprodução. Malthus acredita
nas leis irrevogáveis da natureza, contudo asseverou que os
homens deveriam tentar deliberadamente conter seus efeitos
inaceitáveis. A ação da natureza não era tida como um mal em si
mesma; em se tratando de um processo equilibrador necessário.
Malthus defendia, porém, que os freios morais contenham a
procriação antes que a natureza, de modo bastante mais doloroso,
o faça.
Não cabe aqui examinar sistematicamente todos os pontos em
que Malthus antecipou a teoria evolucionista de Darwin. Certa-
mente ele não punha em questão sua fé na doutrina criacionista, até
porque era sacerdote da Igreja Anglicana, e a teoria da evolução das
espécies nem se colocava para ele. Além disso, é questionável até
que ponto compartilhou a noção de progresso que seria, décadas
depois, desenvolvida por Darwin. Destacam-se dois pontos princi-
pais, característicos do legado de Malthus, que seriam incorpo-
rados, tempos depois, na teoria de Darwin:
1. A crença nos processos espontâneos da natureza.
2. A necessidade de os homens ajustarem-se às condições
ambientais. Ele não enfatiza como o mundo em nossa volta
poderia ajustar-se a nossas necessidades, o ambiente adap-

173
tando-se à espécie e não o contrário, como tem sido estuda-
do na moderna teoria evolucionista.
Então Malthus tornou-se conhecido a sua época, principal-
mente, pelo Ensaio da população, que continha importantes ideias
sinalizando uma nova visão dos processos naturais, dentro e fora
da economia. No entanto, na presente seção não iremos nos deter
nesse ensaio, pois, mais importantes para o debate em teoria
econômica foram seus Princípios de economia política e conside-
rações sobre a sua aplicação prática, de 1820.
Logo na introdução do livro, Malthus deixa claro o ponto em
que seu método se diferencia do de Ricardo e de outros economis-
tas políticos. Ele achava que se deveria dar maior ênfase à
observação empírica e não se perder em abstrações em excesso:
“A principal fonte de erro e das diferenças que existem no
momento entre os autores científicos em economia política
parece-me estar na tentativa precipitada de simplificar e
generalizar; e enquanto seus oponentes mais práticos tiram
inferências demasiado apressadas a partir de um apelo
frequente a fatos parciais, aqueles autores colocam-se no outro
extremo e não tentam comprovar suficientemente suas teorias
mediante referências àquela experiência ampliada e abrangen-
te que, em assunto tão complexo, é a única que pode estabe-
lecer sua verdade e utilidade.” (T. Malthus, Princípios de eco-
nomia política)
Malthus ficaria caracterizado como adepto de um método em
economia que dá mais importância à experiência em contra-
posição ao viés mais abstrato e dedutivista de David Ricardo. Pode-
se dizer que Adam Smith continha os dois caminhos metodológicos
e, com base nele, Ricardo enfatizou um e Malthus outro. Também
em teoria, Ricardo foi o principal adversário de Malthus à época e
suas ideias acabaram sobressaindo-se às deste.
Os Princípios de Malthus começam com definições; aceita a
definição de riqueza de Smith como uma coleção de objetos ma-
teriais. Depois, discorre sobre trabalho produtivo e improdutivo,
considera que a “pedra fundamental do trabalho de Smith é a
distinção que faz entre os diferentes tipos de trabalho”. Pensa,
entretanto, que a diferença entre trabalhos, no que tange à produ-
tividade, é uma questão de grau e que tal produtividade mede-se
pelo montante do valor gerado. Elege a agricultura como a ativi-
dade mais produtiva, porém não nega que a manufatura também
seja produtiva.

174
Em seguida, Malthus trata da questão do valor no capítulo 2 e
nesse ponto está bastante avançado, para além do padrão de sua
época. Ele reconhece as limitações de fundamentar-se o valor no
trabalho incorporado, tal como em Ricardo, e assevera:
“Podemos, de maneira realmente arbitrária, chamar o
trabalho que foi empregado numa mercadoria como seu valor
real mas, ao fazer tal coisa, usamos as palavras num sentido
diferente daquele em que são habitualmente usadas, obscure-
cemos imediatamente a distinção muito importante entre
custo e valor e tornamos quase impossível explicar com clare-
za o principal estímulo para a produção de riquezas, o qual, na
verdade, depende dessa distinção.” (ibidem)
Para Malthus, o valor real de troca de um bem é a capacidade
de, com ele, se adquirir outros bens, inclusive o trabalho. O valor
nominal é a capacidade de adquirir metais preciosos. O valor de uso
do objeto é sua utilidade.
O valor nominal de troca é determinado, no mercado, pela
oferta e demanda. Diz a respeito:
“Essa lei parece ser tão geral que provavelmente não conse-
guiremos encontrar um único exemplo de variação de preço
que não possa ser rastreado de maneira satisfatória em alguma
variação anterior nas condições determinadas da procura ou
da oferta.” (idem)
Se os valores nominais dependem da ação conjunta da oferta e
da demanda, o que dizer do valor natural dos bens? Malthus
escreve que os preços naturais também são determinados pelas
ações dessas duas forças. Isso não significa que o custo de pro-
dução não tenha nenhuma influência sobre o preço natural.
“É claro que essa questão deve ser resolvida pela obser-
vação cuidadosa da natureza da variação que uma alteração no
custo de produção ocasiona nas condições da oferta e da
procura e, em particular, pela observação cuidadosa da causa
imediata e específica da variação do preço.” (ibidem)
Os custos só afetam os preços se exercerem alguma alteração
nas condições de oferta. Se os custos aumentarem ou diminuírem,
e mesmo assim a oferta permanecer inalterada por alguma outra
razão, “não restará o menor fundamento na suposição de que
haveria alguma variação de preço”. Conclui Malthus:
“A relação entre oferta e procura, quer efetiva, quer oca-
sional, é o princípio dominante na determinação dos preços,

175
tanto de mercado quanto naturais [...] O custo de produção
subordina-se necessariamente àquele princípio, isto é, apenas
à medida que seu custo afeta de maneira efetiva ou ocasional a
relação entre a oferta e a demanda.” (ibidem)
O preço natural é simplesmente o preço necessário para
“satisfazer as condições de uma oferta regular”, não é o que a
mercadoria realmente vale:
“O valor de uma mercadoria é o seu preço de mercado, e não
seu preço natural ou necessário. É o seu valor de troca e não o
seu custo.” (ibidem)
A vertente hegemônica da economia política clássica irá
rejeitar a interpretação malthusiana do valor. O preço estabelecido
no mercado pelo concurso da oferta e da demanda, argumenta, não
pode ser o fundamento do valor. Ele só pode estar em algo que
antecede o próprio mercado. Então busca-se nos custos em
trabalho tal fundamento. Todavia, a explicação clássica não dá a
devida importância ao papel da demanda e, como aponta correta-
mente Malthus, ela confunde valor de troca com custo. Embora
tivesse sido rejeitada, a análise de Malthus é mais próxima da
compreensão moderna do problema. Malthus não dominava técni-
cas analíticas para uma interpretação mais sofisticada dos preços,
no entanto sua intuição aponta na direção correta, e suas críticas à
teoria do valor ricardiana merecem respeito.
Em outras partes dos Princípios, Malthus discorre sobre temas
como renda da terra, salários, lucros e investiga as causas do
crescimento da riqueza. Também nesse livro, ele antecipa algumas
das ideias básicas de Maynard Keynes. Propunha Malthus a
realização de obras públicas para aumentar a demanda efetiva,
preocupando-se com o excedente da oferta sobre a demanda
agregada, o que levaria ao declínio da atividade econômica. Malthus
acreditava que a renda dos proprietários de terra teria a função de
injetar demanda no sistema econômico e, sendo assim, mesmo o
consumo perdulário teria um papel social. Injustamente ele foi
acusado de defender os privilégios da classe dos proprietários. Ao
discutir o aumento da riqueza das nações, Malthus propunha que o
governo deveria incentivar a agricultura, mais do que a indústria.

DAVID RICARDO
David Ricardo (1772-1823) nasceu em Londres, filho de imi-
grantes judeus. Homem de negócios, operador da bolsa, enrique-

176
ceu ainda jovem. Vivendo em época bastante conturbada, em meio
a grandes mudanças políticas, sociais e tecnológicas, ele era
defensor de ideias liberais. Em 1799, inicia-se no campo da eco-
nomia política com a leitura da obra de Smith. Em 1808, já parti-
cipa do debate público em torno de questões monetárias. Em
jornais da época, discute a suspensão, ocorrida na Inglaterra em
1797, da conversibilidade da moeda em ouro. Localiza a causa da
inflação da época nas emissões descontroladas de moeda e não no
aumento do preço dos cereais, como se supunha. Esboça uma
versão da teoria quantitativa da moeda na qual, dados os hábitos
de pagamento da comunidade, os preços guardariam proporção
com o volume de moeda vis-à-vis a quantidade de bens e serviços
transacionados. A inflação tinha sido criada pela emissão de moeda
para financiar as guerras napoleônicas e não havia até então um
referencial teórico para uma análise monetária.
Ricardo, ao lado de Thornton e Malthus, era rotulado de
bulionista e acreditava que a volta do padrão-ouro traria a alme-
jada estabilidade dos preços. Havia também o campo dos que
pensavam de modo diferente. Para banqueiros, ministros e anti-
bulionistas em geral, a moeda era gerada endogenamente no
sistema de crédito e, assim, não poderia ocorrer emissão em
excesso. Explicavam a inflação pelo lado real, localizando sua causa
nos gastos públicos desenfreados e na queda das exportações.
Um ano após o primeiro artigo versando sobre a queda da libra
no Morning Chronicle, em 1809, Ricardo refuta os críticos em O alto
preço do ouro, exposição teórica abstrata que oferece uma análise
de longo prazo. No mesmo ano, apresenta o ensaio Propostas para
um numerário seguro, de grande impacto na opinião pública e que
serviu de base para a criação de um comitê de especialistas que
decidiria pela volta da conversibilidade uma década depois. A
partir de então, o regime de padrão-ouro duraria até a Grande
Guerra de 1914.
Ricardo popularizou a explicação do problema da inflação
como sendo o efeito do descontrole nas emissões monetárias, no
entanto, a análise de Thornton era mais sutil e enfocava as relações
entre a moeda e o lado real da economia. As teses de Thornton
deram origem à recomendação na qual variações da moeda
bancária deveriam corresponder a mudanças nos estoques de ouro.
Em 1844, a Lei Bancária estabelece o controle das emissões
monetárias, com flexibilidade para acompanhar os fluxos de ouro.
Ricardo também se envolveu na discussão sobre a Lei dos
Cereais, que proibia a importação de trigo pela Inglaterra. Na expo-
177
sição de suas ideias nesse tocante, desenvolve em 1815 o ensaio
analítico Sobre a influência do baixo preço do trigo nos lucros do
capital, em que mostra a inconveniência de restrições à importação.
O ensaio inspirou o livro Princípios de economia política e
tributação, de 1817, a principal obra de Ricardo. Ainda no ensaio
anterior, Ricardo argumenta que barreiras à importação benefi-
ciam produtores menos eficientes, aumentam a proporção dos
rendimentos destinada ao pagamento de renda da terra e dos
salários, neste último caso porque cresce o preço da cesta básica.
As transferências para os setores menos dinâmicos da economia
debilitam o crescimento econômico em prejuízo da nação. Em
suma, o aumento no preço do trigo e o consequente aumento nos
salários reduzem as taxas de lucro, retardando o crescimento. As
ideias contidas no ensaio não convencem os opositores e levam
Ricardo a debater com James Mill e Malthus, os principais
economistas da época. Já famoso, Ricardo é eleito representante na
Câmara dos Comuns.
O livro de 1817 conheceu três edições até 1823, ano da morte
de Ricardo. Nessa obra, Ricardo revela por completo seu estilo: alto
nível de abstração, bom domínio da lógica e no uso de raciocínio
dedutivo, grande rigor científico e capacidade de abstração; em que
pese o pouco uso de material empírico. Os “Princípios ” de Ricardo
representam uma reelaboração dos ensaios anteriores. Começa
enunciando o problema central da economia política: quais as leis
que regulam a distribuição do produto nacional entre renda, lucro
e salários? Ao contrário do que se interpreta comumente, Ricardo
não despreza a questão smithiana do crescimento, pelo contrário,
tal questão continua central, contudo, para ele o crescimento
depende de como os rendimentos são repartidos. No fundo, a
questão que Ricardo coloca é subsidiária ao problema do cresci-
mento.
Ricardo tem em mente que o lucro é a variável que regula o
crescimento econômico, mas não se contenta com a interpretação
de Smith que analisa a trajetória das taxas de lucro sendo deter-
minada pela distância relativa entre oferta de capitais e
possibilidades de investimentos. Para Smith, ao longo do tempo os
salários podem crescer menos que os preços finais e, no processo
de acumulação de capital, oportunidades de investimento lucrativo
ficam cada vez menores. Ricardo constata que a relação entre
aumento de capitais e queda nos lucros não vinha acontecendo.
Propõe então uma interpretação do lucro como resíduo, após a
dedução dos demais custos de produção. Então é chave entender

178
como se dá a distribuição, ou seja, como são formados os salários e
a renda da terra.
Para tanto, o passo inicial é investigar a questão do valor. Na
seção I do capítulo 1, Ricardo começa citando a observação smi-
thiana do paradoxo do valor. Conclui dizendo que a utilidade não é
a medida do valor de troca já que tais conceitos estão em relação
inversa, contudo ela é essencial para que haja valor. Existindo
utilidade, o valor de troca ou é derivado da escassez, da disponi-
bilidade em face da demanda, caso de bens raros como estátuas e
pinturas famosas, ou advém da quantidade de trabalho incor-
porado na mercadoria, caso da imensa maioria dos bens que são
reproduzíveis.
Ricardo critica Smith quando este considera como funda-
mento do valor ora a quantidade relativa de trabalho incorporado,
nas sociedades primitivas, ora a quantidade de trabalho comanda-
do ou encomendado, nas sociedades avançadas. Trabalho incorpo-
rado e comandado não são a mesma coisa. No exemplo smithiano,
se um castor é trocado por dois cervos é porque o castor requer,
por exemplo, um dia de trabalho e o cervo apenas a metade disto.
Se houvesse mudanças na produtividade relativa, como aumento
na eficiência em que o cervo é apanhado, então o mesmo castor
seria agora trocado por, digamos, quatro cervos. Mantido o mesmo
tempo de trabalho, de lado a lado, a antiga proporção 1:2 é agora
1:4. Quatro cervos são trocados por cada castor, e não mais apenas
dois, a despeito de a quantidade de trabalho incorporada na
obtenção do castor ser a mesma. Antes, era comandado o trabalho
de dois cervos, agora o de quatro. Em unidades de mercadorias, e
não de tempo, há mais trabalho comandado no segundo caso,
mesmo que o trabalho incorporado para se obter o castor tenha
permanecido o mesmo. Se o aumento de produtividade tivesse sido
o mesmo nas duas caças, no tempo em que se obtém quatro cervos
também se conseguiria dois castores e a proporção 1:2 perma-
neceria inalterada. Então, na hipótese de que o impacto de varia-
ções na produtividade não seja o mesmo em todos os setores,
trabalho comandado e incorporado não significam a mesma coisa.
Ricardo assevera que o trabalho comandado depende de uma
medida ela mesma variável, como unidades de trigo e ouro, cujos
valores flutuam com a oferta e a demanda. O montante de trabalho
comandado depende de tudo o que afeta os salários. Variações no
preço do trigo, por exemplo, podem provocar variações no trabalho
comandado. Já o trabalho incorporado é um padrão invariável, ele
sim o verdadeiro fundamento do valor.

179
Na seção II do mesmo capítulo inicial, Ricardo discute como o
trabalho incorporado poderia ser quantificado numa unidade
comum diante da heterogeneidade do trabalho. Ele argumenta que
os valores de diferentes categorias de trabalho são “acertados no
mercado” em função da destreza relativa e das horas de trabalho. A
teoria não precisa preocupar-se em determinar tais valores, pois as
dificuldades em se comparar trabalho são automaticamente resol-
vidas no mercado. O mesmo intervalo de tempo em trabalho pode
conter diferentes valores, se levarmos em conta as habilidades
relativas e as intensidades de trabalho. Em tempo relativamente
curto, entretanto, a posição relativa nos valores entre os bens
permanece aproximadamente a mesma, e as desigualdades nos
trabalhos ficam invariáveis.
Na seção III, Ricardo argumenta que mesmo na sociedade
primitiva é imprescindível o uso de algum capital. Mesmo que um
castor e dois cervos sejam apanhados no mesmo tempo, a
proporção que iguala valores não será 1:2 se considerarmos o
trabalho passado de construção da arma de caça, digamos, maior
no caso do castor. Então a teoria do valor-trabalho incorporado
deve ter em conta o trabalho incorporado no capital. Como o capital
tem certa durabilidade, em cada período em que é empregado ele
transfere apenas uma parcela de seu valor. Quanto menos durável
o instrumento em questão, maior a parcela de seu valor transferida
no cômputo do valor do bem produzido com ele. Ricardo, de início,
argumenta que a relação entre salários e lucros não afeta o valor
relativo dos bens, pois influencia de igual modo todas as atividades.
O valor relativo das mercadorias só dependeria das proporções
entre o trabalho total, incluindo transporte e comercialização.
Sempre que dado bem economiza na utilização de trabalho, cai seu
valor relativo. Ricardo nota ainda que a redução de trabalho em
edifícios, máquinas e meios de transportes afeta não somente um
único bem. Uma parte reflete-se no valor dele, mas o restante é
distribuído por todos os bens para os quais igualmente contribuem
aqueles capitais. Os capitais têm diferentes durabilidades e utilizam
em sua fabricação distintas quantidades de trabalho. Além disso,
certos capitais apoiam diretamente a mão de obra envolvida na
obtenção de um bem de consumo final, enquanto outros são
investidos na fabricação de ferramentas, implementos, edificações e
maquinarias que somente em período futuro irão contribuir para o
produto final. Assim, constatada a heterogeneidade do capital,
Ricardo define os conceitos de capital fixo e capital circulante. A
diferença entre eles leva em conta o tempo de retorno financeiro do
capital. O capital circulante é rapidamente consumido e perece,
180
precisando ser reproduzido em intervalos pequenos. Já o capital fixo
é consumido lentamente e atende a muitas rodadas de fabricação.
Pode-se ter o mesmo montante de capital, em valor, mas
diferentes composições entre capital fixo e circulante. Quando se
leva em conta as diferenças no grau de duração do capital fixo e a
variedade na proporção entre esses dois tipos de capital, o valor
relativo dos bens finais passa a depender não apenas da proporção
entre os trabalhos incorporados, mas também do próprio salário
ou, como Ricardo refere, do valor do trabalho. Onde há capitais com
diferentes composições
“[...] uma subida de salários não pode deixar de afetar desi-
gualmente os bens produzidos em tão diferentes circunstâncias.”
(David Ricardo, Princípios de economia política e de tributação)
Em seguida, Ricardo fornece um exemplo em que as taxas de
lucros podem afetar o valor relativo de dois bens. Cem traba-
lhadores estão envolvidos na produção de trigo e outros cem na
construção de máquinas, no período de um ano. Ao final dele,
ambos os produtos têm o mesmo valor, por terem demandados o
mesmo número de trabalhadores. Pense agora num período am-
pliado de dois anos, em que as máquinas, no segundo ano, utilizam
outros cem trabalhadores na produção de tecido de lã ou artigo de
algodão. Considerando-se que as máquinas se depreciaram total-
mente, o valor do bem final seria o equivalente a 100 trabalhadores
por dois anos ou 200 por ano. O trigo, se produzido novamente no
segundo ano, teria o mesmo valor, no cômputo total dos dois anos,
do bem manufaturado. No entanto, o valor do trigo no primeiro ano
foi integralmente repartido entre os agentes produtivos participan-
tes que recebem rendimentos, e foi gasto por eles. As máquinas, por
sua vez, não se dissiparam no final do primeiro período, mas foram
postas a serviço por todo o período seguinte. Com efeito, o
proprietário delas não desfrutara do valor de sua venda ao cabo do
primeiro ano, preferindo reinvesti-lo para o segundo ano, e recebe
então um lucro pelo risco e espera no negócio. Ricardo conclui o
exemplo dizendo que o valor do bem manufaturado deve exceder o
valor do trigo, ou 200 trabalhadores por ano, “para compensar o
prazo maior que deve transcorrer até que o produto de maior valor
chegue ao mercado”, já que o trigo é consumido em bases anuais e a
manufatura somente a cada dois anos. Então, os valores diferem
também pela quantidade de capital fixo, ou trabalho previamente
acumulado nele. O valor dos produtos manufaturados deve incorporar
os 200 trabalhadores/ano mais a parcela que corresponde ao lucro
sobre investimento em maquinaria. É claro que mudanças nas taxas

181
de lucro afetariam novamente os valores relativos entre manufaturas
e trigo.
A relação entre salário e taxa de lucro no longo prazo depen-
de de uma série de suposições que ficarão explicitadas no modelo
de Ricardo. No curto prazo, “não pode haver um aumento no valor
do trabalho sem uma diminuição nos lucros”. Assim, um aumento
de salários deprime os lucros e, portanto, a relação entre valores
fica, no exemplo, menos favorável à manufatura. O preço do bem
com maior proporção de capital fixo diminui em relação aos que
contêm menos dele.
Na seção V, ao analisar o caso de bens com mesma composição
do capital, mas cujos capitais apresentam diferente duração,
Ricardo raciocina logicamente que o bem com capital de menor
duração se comporta de modo análogo ao trigo, isto é, como um
produto com pouco capital fixo. A conclusão imediata é que o valor
de troca relativo de bens produzidos com capital mais durável cai
com o aumento de salários, ao mesmo tempo em que o valor de
troca de bens com capital mais perecível é favorecido. Viceja a
hipótese subjacente de que as máquinas não ficarão mais caras com
aumento de salários, já que tal aumento não poderia ser repassado
a preços, uma vez que, se isso ocorresse, o aumento no lucro
atrairia capitais de outros setores, com o efeito de reduzir preço e
lucro do maquinário.
A teoria do valor de Ricardo revela-se, dessa forma, mais
sofisticada do que parecia à primeira vista. O valor depende do
trabalho incorporado, da composição do capital e da duração deste.
Por conseguinte, os valores de troca relativos passam a depender
de salário e lucro, em contradição com o que o próprio Ricardo
afirmara no começo do mesmo capítulo dos “Princípios”. Qualquer
mercadoria, em comparação a outras, está sujeita a oscilação em
seu valor, mesmo que tenha empregado uma quantidade fixa de
trabalhadores em certo período. Coloca-se então a questão de
como, em tal contexto, é possível uma medida de valor invariável,
tema da seção VI. Ricardo escreve:
“Quando o valor relativo dos bens se altera, seria interes-
sante dispor de meios que indicassem quais os que descem e
quais os que sobem em valor real.” (ibidem)
Ricardo se pergunta se é possível comparação dos bens com
um padrão de valor invariável, o qual não estaria sujeito a nenhuma
das flutuações que afetam os outros bens. Para ele, não existe bem
que possa oferecer esse padrão, mesmo a moeda. Mesmo se a
produção de moeda metálica consumisse sempre a mesma quanti-
182
dade de trabalho, a moeda ainda assim estaria sujeita a variações
derivadas de mudanças salariais em razão das diferentes propor-
ções de capital fixo e circulante “necessárias não só para produzir
como para se obterem os outros bens cuja alteração de valor
desejamos calcular”.
O ouro não é produzido com a mesma composição de capital
dos outros bens, nem utiliza capital fixo de igual duração e nem leva
o mesmo tempo para ser colocado no mercado. Assim, a importante
questão da necessidade de uma régua inflexível para mensurar
valores, independentemente da divisão do produto social, fica em
aberto. Ela só seria resolvida de modo consistente muito tempo
depois por Piero Sraffa, em pleno século XX. A seção VII discute algo
mais sobre a natureza do dinheiro e argumenta que, como o valor
dele é variável, não se pode estabelecer uma relação mecânica
direta e inversa entre variações de salário e de lucro.
Estabelecida a teoria do valor, Ricardo lança-se a examinar
diretamente a questão central de como os rendimentos são
distribuídos na sociedade, tema dos capítulos seguintes dos
“Princípios”. Já dissemos que o lucro é determinado como resíduo,
e assim o problema da distribuição é atacado como um problema
de determinação de salários e renda da terra. Ricardo toma
emprestada a teoria da população de Malthus, argumentando que
o salário real de equilíbrio deve manter-se no nível mínimo de
subsistência. Não há muito o que comentar dessa hipótese. Ela foi
muito contestada na época e era uma ideia algo solta. Ricardo falava
que esse mínimo de subsistência não é o mínimo fisiológico para a
sobrevivência, mas correspondia a certo padrão de vida das classes
subalternas estipulado pelas condições históricas locais, depen-
dente de fatores ligados ao hábito e ao costume. Um aumento de
salário acima desse mínimo elevaria a população trabalhadora e
reduziria os lucros. O efeito seria duplamente perverso, ao mesmo
tempo em que cresce a oferta de trabalho se reduz a demanda de
mão de obra, o que só pode resultar em queda de salário, trazendo-
o ao nível inicial de subsistência.
A teoria da renda da terra é mais sofisticada e merece consideração
detalhada. Na hipótese de livre concorrência, em que a mesma taxa de
lucro se impõe em diferentes propriedades rurais, a renda da terra deve-
se à escassez de terras e à diferenciação das produtividades entre elas. No
capítulo 2 dos “Princípios”, Ricardo começa definindo a renda da terra
como
“[...] a porção do produto da terra paga ao seu proprietário
pelo uso das forças originais e indestrutíveis do solo.” (ibidem)
183
Que não deve ser confundida com a parcela paga pela utili-
zação do capital empregado para melhorar a qualidade da terra. As
leis da renda e do lucro são muito diferentes. Em um país dotado de
terras disponíveis ricas e férteis não seria cobrada renda da terra.
A diferença de qualidades das terras dá origem à renda, regulada
pela magnitude dessa diferença. Supondo-se a existência de três
faixas de terras, em que o emprego da mesma quantidade de fatores
produtivos dá ensejo à produção de 100, 90 e 80 unidades de
cereais, a renda da terra é o excedente acima dos custos básicos de
produção na terra de pior qualidade das que foram ocupadas (ver
Figura 6.1).

Figura 6.1 Faixas de terra no modelo de David Ricardo.

100 90 80

O produtor da terra marginal que produziu apenas 80


unidades vende o cereal a um preço que deve cobrir salários e
lucros normais. Esse mesmo preço regula o valor nas vendas do
produto das outras faixas mais internas. A ideia de homoge-
neidade de salários, lucros e preços, entre as diferentes terras,
assegurada pela hipótese de livre concorrência e intensa arbitra-
gem entre mercados, leva ao aparecimento de um resíduo exce-
dente nas terras de qualidade superior. Tal resíduo dá origem ao
pagamento da renda da terra, que equivale exatamente a seu valor
in natura. Assim, paga-se 20 de renda no círculo central e 10 na
faixa intermediária. A terra marginal não percebe renda.
As diferenças entre as forças produtivas da terra também
regulam a renda no caso em que a mesma faixa de terra é usada
aplicando-se quantidades cada vez maiores de capital. Indo-se de k
a 2k unidades de capital aplicado, o produto aumenta 85%; paga-
se uma renda de 15% sobre o produto original associado ao
primeiro lote de capital. Os retornos decrescentes nas aplicações de
capital fazem com que terras com cultivo menos intensivo, com
184
maior retorno por unidade de capital, paguem uma renda pelo
critério explicitado anteriormente. Em qualquer caso, o fenômeno
que se observa é o de que com terras de pior qualidade ou de uso
mais intensivo o produto torna-se mais caro, já que a produtividade
dos fatores diminui. É a elevação de preço com a progressão no uso
da terra que resulta no pagamento de renda da terra.
“O trigo não encarece por causa do pagamento de renda,
mas, ao contrário, a renda é paga porque o trigo torna-se mais
caro.” (David Ricardo, Princípios de economia política e de
tributação)
O preço é fornecido pela produtividade da última porção do
capital. Depende, portanto, da produtividade do capital. A renda
não é componente dos preços das mercadorias como em Smith.
Preços dependem apenas de salários e produtividade do capital.
A distribuição dos rendimentos com o processo de acumu-
lação de capital pode ser vista na dimensão temporal com base na
articulação das teorias ricardianas básicas de salário e renda da
terra. À medida que novas inversões de capital são feitas, os preços
dos alimentos tendem a crescer pela queda na produtividade dos
fatores. Com isso, os salários por unidade de capital crescem,
mesmo que os salários reais permaneçam constantes no nível de
subsistência. A renda, também medida em unidade de capital,
cresce acompanhando o volume ampliado de excedentes nas
condições inframarginais em que o capital é mais produtivo. Já que
os lucros são obtidos como resíduo, dada a diferença entre o
produto total e os custos em salários e renda da terra, os lucros por
unidade de capital decrescem não apenas porque parcelas dos
custos estão ampliando-se, mas também porque o produto por
unidade de capital é decrescente (pela fertilidade inferior das
terras marginais e pela lei da produtividade marginal decrescente
no cultivo intensivo). A Figura 6.2 ilustra essa ideia.
O lucro por unidade de capital tenderia a zero com o avanço na
acumulação de capital. A taxa de lucro agrícola determinaria a taxa
geral de lucro, por arbitragem, e, assim, também haveria a queda na
taxa de lucro na indústria e nos demais setores. A queda do lucro
leva ao estado estacionário, no qual a economia deixaria de crescer
(nível de capital constante). Tal situação poderia ser adiada por
inovações tecnológicas na agricultura ou pela abertura ao comércio
internacional que barateariam os preços dos cereais, argumento
teórico também usado por Ricardo contra a Lei dos Cereais. Em
suma, há uma visão pessimista no modelo de Ricardo, no entanto o
resultado se pode postergar.
185
Figura 6.2 Mudanças na distribuição de renda com
acumulação de capital em Ricardo.

Passando ao largo das questões monetárias e interpretando


Ricardo como um modelo de um único produto, suas conclusões
são facilmente formalizadas. Começando pela teoria do valor.
Sendo 𝜔 o salário e 𝑇 a quantidade de trabalho incorporado, ambos
em unidade de tempo, e sendo 𝑟 a taxa de lucros, o valor 𝑣 de um
bem é a soma do custo da produção direta mais o custo do capital
𝑣 = [𝜔𝑇 + 𝑟(𝜔𝑇)] + [𝜔𝑇𝑐 + 𝑟(𝜔𝑇𝑐 )](1 + 𝑟) = 𝜔(1 + 𝑟)𝑇 + 𝜔(1 +
𝑟)2 𝑇𝑐 . Dois bens com a mesma composição entre capital fixo e
circulante, tal que 𝑇 ′ = 𝑇 e 𝑇𝑐′ = 𝑇𝑐 , teriam o mesmo valor 𝑣 ′ = 𝑣.
Se há diferenças na relação entre esses capitais 𝑣⁄ =
𝑣′
(1+𝑟)𝑇+(1+𝑟)2 𝑇𝑐
(1+𝑟)𝑇′+(1+𝑟)2 ′
. Portanto, a relação entre valores depende da taxa
𝑇𝑐
de juros.
Na teoria da renda da terra de Ricardo, sejam 𝑇 e 𝑇 ′ quantida-
des de trabalho utilizadas respectivamente na terra marginal e na
terra mais fértil; 𝑥 e 𝑥’ são as quantidades de cereais produzidas
nessas mesmas terras. A produtividade 𝑎 do trabalho na terra
marginal é 𝑎 = 𝑥⁄𝑇 e na terra mais fértil 𝑎′ = 𝑥′⁄ ; 𝜔 é o salário em
𝑇′
quantidade de cereais. O lucro é 𝑥 − 𝜔𝑇 = (𝑎 − 𝜔)𝑇 e a taxa de
(𝑎−𝜔)𝑇
lucro é 𝑟 = 𝜔𝑇 = 𝑎⁄𝜔 − 1. Pela hipótese de arbitragem, 𝜔 = 𝜔′
e 𝑟 = 𝑟′. Na terra mais fértil, os salários pagos são iguais a 𝜔𝑇 ′ , o
lucro 𝑟𝜔𝑇 ′ = (𝑎⁄𝜔 − 1) 𝜔𝑇 ′ = (𝑎 − 𝜔)𝑇′. A renda é dada por 𝑥′ –
lucro – salário total pago = 𝑎′𝑇 ′ − (𝑎 − 𝜔)𝑇 ′ − 𝜔𝑇 ′ = (𝑎′ − 𝑎)T’. À
medida que ocorre a acumulação de capital, cresce o fator
(𝑎′ − 𝑎) e a renda paga na terra mais fértil. Mesmo que os salários
reais 𝜔 permaneçam constantes, a massa de salários 𝜔𝑇 cresce à
186
medida que cresce o número de trabalhadores 𝑇 e os lucros totais
declinam pela queda na produtividade do trabalho 𝑎.
Dessa forma, relata-se a teoria básica de Ricardo do cresci-
mento econômico e da distribuição da renda. Como indica o título
completo da obra, Princípios de economia política e tributação,
questões de política tributária são bastante discutidas ao longo do
livro. Ele estava preocupado com o efeito da incidência de impos-
tos. Ricardo discute então o que define a capacidade de pagamento
de impostos de um país. Diz que ela depende do valor monetário do
rendimento de cada cidadão e do valor monetário das mercadorias
que ele habitualmente consome. Não obstante, para concluir,
queremos enfatizar a teoria do comércio exterior de Ricardo, outro
tema importante apresentado na obra.
Ricardo é autor da conhecida Teoria das Vantagens Compara-
tivas que demonstra serem vantajosas as trocas internacionais
mesmo numa situação em que determinado país tenha maior
produtividade que outro na produção de todas as mercadorias. Essa
teoria parte da premissa de que os valores nas trocas internacionais
não são determinados pela quantidade de trabalho dos bens envol-
vidos, já que não há mobilidade de mão de obra entre países. Assim,
duas mercadorias intercambiadas podem não representar a mesma
quantidade de trabalho. Ricardo supõe que, no comércio entre
Inglaterra e Portugal, dada quantidade de vinho é transferida em troca
de certo montante de tecido. Em cada caso, é requerida determinada
quantidade de mão de obra, representada por horas de trabalho, como
na Tabela 6.1.

Tabela 6.1 Teoria das vantagens comparativas: exemplo numérico de


Ricardo.
Horas de trabalho Horas de trabalho
por unidade de por unidade de vinho
País
tecido intercambiável
Portugal 90 80
Inglaterra 100 120

Mesmo que Portugal só empregue 90 horas de trabalho para


produzir uma unidade de tecido e 80 para a produção de vinho,
enquanto a Inglaterra produz as mesmas unidades empregando
100 e 120 horas de trabalho respectivamente, ainda assim é de
interesse a Portugal especializar-se na produção de vinho, pois esse
187
país, ao fazê-lo, poupa 10 horas de trabalho, só precisando de 80
das 90 horas de trabalho anteriormente alocadas na produção de
tecido, que são transferidas para gerar uma unidade intercam-
biável de vinho que poderá ser trocada pela produção de tecidos da
Inglaterra. Essas 10 horas de trabalho poupadas representam um
ganho de bem-estar para os portugueses. O outro país, ao especia-
lizar-se em tecidos, mantém a mesma oferta interna de vinho, com
as importações de Portugal, e ainda poupa 20 horas de trabalho que
é a diferença entre 120 e 100. Portanto, a Inglaterra também tem
um ganho de bem-estar.
Ricardo discute outros pontos importantes do comércio
internacional, como as dificuldades de transferência de capital
entre países, os problemas do equilíbrio automático no padrão
ouro e o efeito da abertura ao comércio mundial sobre as taxas de
lucro de um país. Ele argumenta que o comércio exterior, de fato,
não afeta as taxas de lucro, mas beneficia o país pelo aumento no
volume de bens obtidos e no nível de emprego doméstico.

JOHN STUART MILL


John Stuart Mill (1806-1873) tornou-se o mais influente
economista clássico após Ricardo. Trinta e poucos anos separam as
respectivas idades, portanto Mill foi o jovem economista mais bem-
sucedido a dar prosseguimento à economia clássica, mantendo o
prestígio da escola, ampliando o raio de suas reflexões e reno-
vando-a em alguns pontos. Filho de James Mill, também notável
economista, ele seguiu as influências do pai na formulação de suas
ideias.
O desenvolvimento pessoal de Mill, desde a infância, deve-se a
um cuidadoso projeto pedagógico inspirado nas doutrinas educa-
cionais de J. Bentham. Quando criança, ele foi afastado do convívio
das demais crianças, tido como contagioso, e submetido a rigoroso
programa de aulas particulares e acompanhamento pessoal, levado
a cabo, de início, pelo próprio pai. Ensinou-lhe grego e aritmética
aos três anos de idade. Conhecimentos em história, filosofia
clássica, poesia, álgebra e geometria lhe foram precocemente
transmitidos e assimilados antes dos 12 anos. A partir de então, o
aprendizado concentra-se em lógica silogística e já inicia os estudos
de economia política. James confia a tutela do filho a dois amigos:
John Austin, professor de direito, e David Ricardo auxiliando a
formação de economista. Até os 28 anos de idade, manteve-se
inteiramente imerso na visão da economia clássica e na doutrina

188
ética do utilitarismo de Bentham. Depois, sua vida conhece um
período conturbado, no qual as crenças e os valores passados são
revistos e parcialmente alterados, sob influência dos poetas
românticos S. T. Coleridge, William Wordsworth, Charles Dickens,
John Ruskin e, por fim, Thomas Carlyle, que cunhou para a
economia política a expressão “dismal science” (ciência lúgubre).
Também se projeta à mente de Mill o exemplo do positivismo
francês de Auguste Comte.
Com o falecimento do pai, Mill resolve manter-se na carreira
do serviço público que ele havia iniciado muito tempo antes,
seguindo o exemplo de James. Ambos atuaram na Companhia das
Índias Ocidentais. Mill foi promovido a Encarregado nas Relações
com a Índia, função que lhe transmitiu grande experiência na
gestão pública. Ao lado do emprego regular, ele envolveu-se na
organização de periódico voltado à difusão de reformas radicais na
sociedade. Manteve-se em intensa atividade intelectual, atraído
tanto pela lógica, em que procurou conciliar a lógica indutiva com
a experimentação, quanto por economia política. Na primeira área,
publica em 1843 o livro Sistema de lógica e na outra área, cinco
anos depois, sua obra máxima em economia, os Princípios de
economia política.
Também exerceu influência marcante na trajetória intelectual
de Mill a figura feminina de Harriet Taylor. Por duas décadas, Mill
manteve sentimento platônico pela mulher casada que o encantara,
até que ela se tornou viúva e então contraiu novo matrimônio,
agora com ele, em 1861. Harriet intensificou em Mill o interesse
pela bandeira do feminismo e ainda pelas causas humanitárias. Foi
quando ele escreveu alguns livros sobre liberdade e democracia
(dentre outros, Ensaio sobre a liberdade e Sujeição das mulheres),
e passou a militar em prol dessas causas nos últimos anos de vida.
Defendeu o voto feminino e em 1865 tornou-se membro do parla-
mento britânico, onde pôde promover algumas das medidas que
advogava.
Mill não se destacou apenas como economista, seus escritos
cobrem diversas áreas ligadas ao pensamento político e social. A
relação entre a psicologia e a etologia (o estudo da formação do
caráter individual e grupal), o papel da sociologia e o lugar parti-
cular ocupado pela análise econômica são temas recorrentes em
suas reflexões. Mill também se destaca no estudo da filosofia moral,
na qual faz uma revisão do utilitarismo ético de Bentham, bem
como na discussão dos conceitos de liberdade e representatividade
no sistema democrático. Queremos destacar, no entanto, o tema de

189
metodologia da economia que se tornou uma febre entre os econo-
mistas da época, e em que Mill era tido como a maior autoridade.
Mill preocupou-se em estabelecer explicitamente sua visão
metodológica, ao contrário de David Ricardo. Quanto a Adam
Smith, como vimos no Capítulo 5, há todo um arrazoado em filosofia
da ciência em sua História da astronomia. Além disso, pode-se
inferir da leitura de A riqueza das nações a combinação de um
método dedutivo de estática comparativa, presente principalmente
nos livros I e II, e que seria depois consagrado por Ricardo, com o
uso do método histórico-indutivo nos livros III, IV e V, e também
em algumas passagens dos livros I e II. O método de Smith difere da
visão predominante em sua época, sendo um dos primeiros a ter a
coragem de afirmar que a mecânica newtoniana não representava
a verdade, pois as teorias científicas são máquinas imaginárias.
Dada a proeminência do papel ocupado por ele, seria de esperar
que suas concepções metodológicas viessem a influenciar os
autores da economia clássica.
Ricardo é contra o empirismo cru e nega que os fatos falem por
si mesmos. Seu método é o hipotético-dedutivo, propenso a aplicar
modelos altamente abstratos diretamente na análise da complexi-
dade do mundo real. Como hábil político do parlamento britânico,
ele dizia a seus colegas de casa que suas conclusões teóricas eram
tão certas como o princípio da gravitação de Newton. Quando
Ricardo dialogava com Malthus, era mais modesto, afirmando que
seu modelo trata de casos fortes e imaginários só para mostrar a
operação de certos princípios. J. Schumpeter cunhou a expressão
“vício ricardiano” para a tentativa forçada de minimizar a sepa-
ração entre conclusões abstratas e aplicações concretas.
Ricardo abdicou do elemento histórico e institucional em prol
de um método mais abstrato, acreditando que suas previsões, como
o custo crescente do cereal e a queda dos salários ao nível da
subsistência, não eram tendências históricas incondicionais, mas
previsões sob certos supostos. Malthus considera o método mais
indutivo de Smith superior ao método puramente dedutivo de
Ricardo. Malthus prioriza a construção de teorias mais empíricas e
que cubram fatores de curto prazo, não expressando a teoria
apenas tendências.
Cinquenta anos após a publicação de A riqueza das nações, o
economista clássico Nassau Senior promove a primeira discussão
sistemática dos problemas da metodologia econômica no ensaio
Leitura introdutória em economia política, de 1827, ampliado em
outro ensaio de 1836 intitulado Uma visão da ciência da economia
190
política. Neste mesmo ano, Stuart Mill publica o célebre artigo
Sobre a definição da economia política e do método de investigação
que lhe é próprio. Com tal ensaio, adquire a reputação de grande
comentador de questões metodológicas em economia. Mais de dez
anos depois, ele daria importante contribuição à filosofia da ciência
ao tratar do problema da indução, já colocado por Hume, no ensaio
Sistema de lógica.
Vejamos agora elementos em comum na metodologia dos
economistas clássicos anteriormente apontados. Focalizando o
debate na natureza das premissas teóricas, eles tendiam invaria-
velmente a acreditar que tais premissas são derivadas da intros-
pecção ou da observação casual e não sistemática dos fatos. As
premissas obtidas dessa maneira são tidas como verdadeiras de
modo a priori, quer dizer, a certeza delas é conhecida antes da
experiência. A teoria é um processo puramente dedutivo, e suas
implicações seriam verdadeiras na ausência do que Mill denomi-
nou de causas perturbadoras. A experiência teria papel somente na
determinação da aplicabilidade do raciocínio econômico, não
servindo para determinar a validade da teoria.
Senior e Mill formulam assim os princípios que governam o
método de investigação da economia. Seus esclarecimentos
metodológicos tornaram-se úteis à ciência econômica num período
de intensa controvérsia de ideias. Após a morte de Ricardo, em
1823, assiste-se a um vigoroso debate intelectual sobre a aplicabi-
lidade e a validade do sistema criado por ele. James Mill e John
McCulloch participam ativamente dessas discussões, contudo a
construção de uma metodologia econômica que fornecesse maior
credibilidade a essa ciência coube de fato àqueles dois autores.
Era importante por essa época justificar a validade da teoria
econômica e apontar o caminho de seu progresso científico. Nesse
período, nota-se o aparecimento de duas tendências meto-
dológicas: de um lado os que asseveram que a verdade dos princí-
pios da economia só pode ser julgada a posteriori, ao arbítrio dos
fatos. A outra tendência viria a considerar os princípios, de que
parte o raciocínio econômico, verdadeiros a priori. Senior e Mill
adotam esta segunda perspectiva. Senior foi o primeiro, ao que se
sabe, a propor a separação entre ciência positiva e arte normativa.
Ele também escreve que a economia repousa em poucas proposi-
ções gerais bem familiares e que as conclusões decorrentes das
proposições são verdadeiras na ausência de causas perturbadoras.
Mill, anos depois, viria a discutir as mesmas questões de Senior de
modo mais cuidadoso e penetrante, dando ênfase maior na verifi-

191
cação das conclusões teóricas. No ensaio de 1836, Mill começa
separando ciência de arte da economia política, tomando a mesma
ideia de Senior. A primeira representa uma coleção de verdades
materiais, e a segunda trata de um conjunto de regras normativas.
Ao formular os fundamentos da ciência econômica, Mill afirma
que, nesse domínio do conhecimento, há princípios primeiros que
nos são evidentes e verdadeiros em si mesmos; e dos quais se tiram
inferências que a experiência singular pode até contrariar. Tais
princípios caracterizam a ciência e ajudam a demarcar seus limites.
Mill procura mostrar em economia
“[...] a natureza do processo pelo qual suas investigações
devem ser conduzidas e suas verdades devem ser alcançadas.”
(Stuart Mill, Definição da Economia Política, em Essays on
some unsettled questions of political economy)
Para tanto, ele vale-se da dualidade entre proposições nor-
mativas e positivas: a ciência descobre as leis que regem os
fenômenos independentemente de quaisquer finalidades; ela lida
com fatos e produz assim uma coleção de verdades, estabelecendo
“o que é”. A arte negocia com preceitos, ou regras, e estabelece “o
que deve ser”. À maneira de Senior, Mill classifica a matéria da
economia como ciência mental, preocupada com motivos humanos
e modos de conduta na vida econômica.
Mill lança o conceito de homem econômico: ser que existe
enquanto se abstraem dele outras paixões e motivos humanos,
exceto o desejo de riqueza e a aversão ao trabalho. Tal conceito
representa apenas um aspecto do homem real que age motivado
também por outros impulsos para além do puramente econômico.
Devemos estudar, escreve Mill, uma causa isolada, para prever e
controlar seus efeitos. Assim, as conclusões da economia política
são aplicáveis quando impera a causa isolada por ela. A economia é
tida como ciência moral ou psicológica que trata dos compor-
tamentos humanos em sociedade orientados pela obtenção de
riqueza (entendida como coisas úteis produzidas pelo trabalho).
Em sua esfera, os homens são guiados apenas por motivações
pecuniárias e predomina neles uma única lei de conduta: a busca
de riqueza.
A economia política parte de duas abstrações: a conduta
motivada pela busca de renda monetária e a paixão irracional pela
reprodução da espécie. A última premissa apoia-se na teoria da
população de Malthus e trata-se de um segundo impulso de
natureza distinta do primeiro. Qual a especificidade do conheci-
mento na esfera da economia? Nela, não se parte do singular para
192
o geral, não se emprega o método a posteriori; raciocina-se sobre
hipóteses assumidas, pelo uso da introspecção com base na
observação do semelhante, combinando indução com raciocínio: é
o método a priori. As hipóteses básicas não são derivadas de
observações específicas de eventos concretos, mas de premissas
psicológicas em que se desconsidera o aspecto não econômico do
comportamento humano.
Os princípios não provêm da indução completa, mas de algo
mais complexo: a capacidade abstrativa da mente e o poder de
transposição mental. Mill trabalha com o método abstrato-dedu-
tivo no qual opera uma lógica da indução baseada na certeza
subjetiva que garante a objetividade do conhecimento.
Mill estabelece uma demarcação, no plano metodológico, entre
ciências naturais e sociais, ao falar de uma fonte de saber adicional
nas ciências sociais: a compreensão empática. Ele separa as leis da
mente das leis da matéria. Estas últimas dizem respeito ao objeto
sobre o qual se age e somente podemos apreendê-las pela obser-
vação empírica. Já as leis da mente referem-se às propriedades do
objeto que age. O objeto ativo apresenta uma identidade com o
sujeito cognoscitivo tornando este capaz de apreender o objeto por
introspecção ou compreensão empática.
Não apenas a conduta, mas também o mundo interior do
agente está ao alcance da observação científica, por um processo de
transposição da vida psíquica entre observador e observado. As leis
da economia são originadas por introspecção e empatia. São
verdadeiras, porém nem sempre aplicáveis. Por não considerar
todas as motivações humanas, as conclusões da ciência econômica
são verdadeiras na ausência de causas perturbadoras. Para Mill,
tais causas são a única incerteza da economia política. Acredita ele,
entretanto, que mesmo as causas perturbadoras têm suas leis
próprias e que também é possível apreender a natureza e a
intensidade do distúrbio de modo a priori, somando-se seu efeito
ao efeito decorrente da causa geral.
Aparece então o papel complementar do método a posteriori.
Ele permite identificar as causas perturbadoras e verificar se as leis
que a ciência prescreve são aplicáveis às situações concretas. A
contradição entre teoria e eventos reais permite-nos ver em que
lugar atuam as causas perturbadoras, onde a cláusula de ceteris
paribus fora violada. O método a posteriori serve para verificar
verdades e não para descobri-las. A falha na verificação não
corresponde a refutação, apenas mostra que a sentença original era
insuficiente. O que se imagina ser a exceção de um princípio é
193
sempre princípio distinto. O fenômeno observado é a resultante de
uma somatória de forças cada qual comandada por princípios
próprios.
Em economia, diz Mill, considera-se apenas a busca de riqueza.
Ela vai descrever apenas as ações que decorrem desse motivo.
Como consequência, as leis econômicas somente expressam
tendências. Elas determinam o curso exato dos acontecimentos
quando não operam impedimentos. Os princípios são certos, mas
as conclusões incertas.
Muito se tem investigado sobre a relação entre a teoria
econômica substantiva de Mill e sua visão metodológica. O fato é
que os Princípios de economia política não contêm questões
metodológicas e parece mesmo não manterem uma unidade
metodológica. A metodologia de Mill busca fornecer sustentação ao
sistema teórico de Ricardo que se encontrava na época abalado
pelo fato de algumas de suas predições terem sido falsificadas pela
evidência empírica disponível nas décadas de 1830 e 1840. As
implicações das premissas abstratas de Ricardo diziam que o preço
dos cereais tenderia a crescer, ao mesmo tempo em que o lucro do
capital declinaria e os salários permaneceriam constantes no nível
de subsistência. A renda dos proprietários de terras cresceria
constantemente. Todas as previsões do modelo de Ricardo eram
tidas como positivas e testáveis e não apenas hipotéticas. O
fracasso da teoria de Ricardo em prever o que se verificou na
primeira metade do século em questão foi reconhecido por Mill em
seu “Princípios”, no entanto ele tratou de salvar o sistema
ricardiano por meio de “estratagemas imunizadores”. Afinal, qual o
prazo requerido para que o modelo funcione, isto é, quando
operam as forças de longo prazo? Talvez umas poucas décadas não
permitam falsificar as conclusões teóricas, pois é sempre possível
presumir que, neste período, predominaram as causas pertur-
badoras que operam a curto prazo.
A metodologia de Mill procura explicitar as regras adotadas
implicitamente por Ricardo, mostrando, dessa forma, a certeza de
sua construção teórica. No entanto, a defesa de Mill não permane-
ceu, à época, isolada de críticas contundentes. A escola histórica
inglesa não poupou críticas à teoria ricardiana e aos escritos
filosóficos que procuraram defendê-la.18 Em 1875, John Elliot
Cairnes (1823-1875) voltou-se contra os críticos de Ricardo.
Estando inteiramente convencido da validade das tendências teóri-

18 Conforme veremos no capítulo 8.


194
cas ricardianas, Cairnes foi mais dogmático que Mill contra o
empirismo dos economistas históricos. A economia, diz ele, não é
tão somente uma ciência hipotética e dedutiva. Aliás, não há nada
de hipotético em suas premissas. Somente essa ciência começa com
o conhecimento das causas últimas. A ampla verificação da existên-
cia das causas justifica, portanto, elevado grau de confiança em suas
conclusões. As leis econômicas, para Cairnes, só podem ser refu-
tadas mostrando-se que os princípios e as condições assumidas não
existem ou que a tendência que a lei afirma não segue como
consequência necessária da hipótese. O uso do método dedutivo, no
lugar do método indutivo-classificatório, é um sinal de maturidade
da economia, acredita ele.
Feita a apresentação anterior das crenças metodológicas de Mill
e dos autores que se aliaram a ele na defesa do apriorismo, estuda-se
agora o conteúdo de sua contribuição positiva em economia exami-
nando a estrutura dos Princípios de economia política. A obra está
dividida em cinco partes ou livros. O livro I trata de produção, o livro
II, de distribuição e os livros subsequentes, de troca, progresso da
sociedade e governo. A separação entre produção e distribuição é
reforçada por Mill, pois ele acredita que enquanto as leis da produção
de riqueza têm o caráter de verdades físicas, a distribuição da riqueza
é
“[...] exclusivamente uma questão de instituições humanas,
depende das leis e dos costumes da sociedade.” (Stuart Mill,
Princípios de economia política)
Exemplos de leis da produção apontados por Mill incluem: o
fato de a produção ser limitada pela poupança, pelas habilidades,
tecnologia, uso de máquinas e cooperação no trabalho; também a
lei da produção decrescente da terra e a lei em que o gasto impro-
dutivo empobrece a comunidade. Sobre essas leis ele escreve:
“As opiniões ou os desejos que possam existir sobre esses
diversos assuntos não governam as coisas em si mesmas.”
(ibidem)
No lado da produção, não podemos alterar as propriedades
últimas da matéria e da mente, podemos apenas fazer uso delas. No
entanto, as normas que regem a distribuição variam bastante. Isso
não significa que um estudo objetivo da distribuição não seja
possível, porquanto, escreve Mill, embora as normas variem de
acordo com o tipo de sociedade, uma vez conhecidas e fixadas as
instituições em estudo, as consequências das normas têm o cará-
ter de leis físicas.

195
Posto isso, vejamos o que é abordado no livro sobre produção.
No capítulo 1, discutem-se os seus requisitos. Diz-se que são dois:
o trabalho e a presença de objetos materiais que passam por
transformação mediante a atividade humana. A natureza fornece
materiais, energias que cooperam ou substituem o trabalho hu-
mano e outras forças naturais como a coesão dos corpos e as
reações químicas. Todo o trabalho, em última análise, é feito pela
força da natureza. Os homens só precisam colocar os objetos na
posição correta. A essência do trabalho humano é movimentar
coisas. O agente natural possui valor de mercado à medida que
esteja disponível em quantidade limitada.
No capítulo 2, Mill discute o “trabalho como agente de pro-
dução”. O trabalho pode ser aplicado na produção direta, como o
trabalho do padeiro, ou em operações prévias, como os trabalhos
do moleiro, semeador, coletor, arador etc. Todos eles obtêm sua
remuneração do preço do pão. Assim, o preço do bem final
remunera todos os trabalhadores envolvidos. Arados, edificações,
cercas etc. são remuneradas a partir do pão feito em diversas
safras, até o desgaste total dos equipamentos; no preço do pão,
também se leva em conta o pagamento de operações de armaze-
nagem e materiais de transporte. Mill exemplifica: para um arado
de 12 anos, em cada ano computa-se 1/12 do trabalho para fazer o
arado, que corresponde ao seu desgaste nesse tempo de uso. Há
também o trabalho para produzir mantimentos que irão sustentar
os trabalhadores durante a produção. Antecipações de alimentos e
outros bens para manter os trabalhadores não serão pagas com
base no preço do pão, já que esse trabalho já foi remunerado.
Contudo, tais adiantamentos aos trabalhadores conferem aos
proprietários certa remuneração pela abstenção, que é o lucro com
o produto. Portanto, o lucro não paga o trabalho, mas a espera do
capitalista.
O trabalho pode ser empregado sobre a natureza direta ou
indiretamente com vistas à produção. No segundo caso, Mill forne-
ce seis exemplos:
1. Trabalho na produção de matérias-primas, como alimen-
tos, que são destruídas em um único emprego.
2. Trabalho empregado em fazer ferramentas ou implementos
para ajudar o trabalhador. O trabalho para obter-se as coisas
que são usadas como meios imediatos de produção e de que se
faz uso repetitivo. Nesse caso, o trabalho de construção delas é
remunerado pelo total dos produtos dos quais contribuem para
a produção.

196
3. Trabalho para a proteção da atividade, tais como constru-
ções para a produção, trabalho do soldado, do policial e do
juiz que são pagos com impostos.
4. Trabalho para tornar o produto acessível, como os dos
transportadores, dos construtores de meios de transporte,
construtores de estradas, canais etc., negociantes e comer-
ciantes. Todos são remunerados pelo preço final, que cobre
trabalho e abstenção.
5. Trabalhos que têm por alvo seres humanos, como os de
médicos e educadores.
6. Trabalho dos inventores de processos industriais, trabalho
mental e manual, remunerados também pela produção.
Na sociedade complexa, é difícil demarcar se o trabalho é
aplicado à agricultura, às manufaturas ou ao comércio, muitas
vezes servindo ele a propósitos múltiplos. No entanto, Mill acredita
ser possível separar trabalho produtivo de improdutivo. No
capítulo 3, discute o trabalho improdutivo. Smith havia definido
trabalho produtivo como aquele cujo resultado é palpável em
algum objeto material. Outros autores, como J. R. McCulloch e J. B.
Say, assimilam o termo “improdutivo” ao trabalho que não produz
coisa útil ou que é antieconômico. Há, portanto, diferentes significa-
dos para as palavras produtivo e improdutivo. Quando se diz que o
trabalho improdutivo não tem por objeto a produção, deve-se ter
em conta que produção não significa necessariamente a obtenção
de matéria. Pois não criamos matéria.
“Podemos fazer com que ela assuma propriedades, em vir-
tude das quais se transformam de inútil para útil para nós.”
(ibidem)
Mill conceitua trabalho produtivo como o que cria riquezas,
entendida não como objetos, mas como algo produzido que gera
utilidades. Há três tipos de utilidades produzidas pelo emprego do
trabalho:
1. Utilidades fixas e incorporadas em objetos externos.
2. Utilidades incorporadas aos seres humanos pela educação
e
3. Utilidades não incorporadas a objetos, tais como música e
apresentação teatral, que geram diretamente utilidades em
vez de adequar uma coisa para que proporcione utilidade.
Nessa categoria está incluída também a ação do exército e do
governo, mas não a dos comerciantes, que apenas mudam o
local do objeto.

197
Essas três categorias de trabalho produzem utilidades, mas
não necessariamente riquezas. As utilidades da terceira classe não
constituem riqueza, já que não são susceptíveis de serem acumu-
ladas, mas as capacidades adquiridas pelo homem são riquezas.
Assim, trabalho produtivo para Mill é todo trabalho que é empre-
gado em criar utilidades permanentes, quer incorporada em seres
humanos, quer em quaisquer objetos, animados ou inanimados. A
questão chave é a permanência do produto, não tanto sua materia-
lidade. O trabalho improdutivo termina no prazer imediato; ele não
aumenta os produtos materiais, e até, em certo sentido, torna a
humanidade mais pobre.
Mill também emprega os termos produtivo e improdutivo para
o consumo. O consumo improdutivo em nada contribui para a
produção, e o produtivo é destinado a manter e aumentar as forças
produtivas da sociedade. Então há trabalhos destinados a atender
ao consumo produtivo ou improdutivo, e esta é, para Mill, a
distinção mais importante.
O livro I dos “Princípios” de Mill discute ainda a natureza do
capital, capítulos 4 a 6, a produtividade dos agentes de produção,
capítulos 7 a 9, e as leis que comandam o crescimento demográfico,
a acumulação do capital e a produção agrícola, capítulos 10 a 13.
Mill corrige e aprimora proposições que foram feitas nesses temas
pelos autores clássicos já vistos e não se pretende aqui detalhá-las.
Vejamos então o livro II que trata da distribuição da riqueza.
Como a distribuição depende das instituições, Mill lança-se a
discutir a propriedade privada e o comunismo, tema importante
que merece exposição detalhada. A instituição da propriedade
privada pode ter características variáveis, e sua origem na
sociedade não se deve a considerações de utilidade. Mill apresenta
dois grupos de opositores ao princípio da propriedade individual.
Os comunistas, como Robert Owen, que asseveram ser desejável a
igualdade absoluta na distribuição de recursos físicos de
subsistência e de prazer, e socialistas como Etiènne Cabet que
admitem certa desigualdade fundamentada no princípio de justiça
ou equidade geral, em que cada qual deve “trabalhar conforme a
sua capacidade e receber segundo suas necessidades”. Na versão
socialista, terra e instrumentos de produção seriam propriedades
de comunidades, associações ou do governo. Também se enqua-
dram no socialismo lter e Charles Fourier, que serão apre-sentados
no Capítulo 7 deste livro.
Mill considera o socialismo viável, mas apresenta uma obje-
ção:
198
“Cada um estaria constantemente preocupado em fugir da
sua quota de responsabilidade no trabalho.” (Stuart Mill,
Princípios de economia política)
Nas empresas das atuais economias mercantis, comenta Mill, o
trabalhador deve ser vigiado e o trabalho de controle e supervisão
sempre tem o olho do patrão. Em um regime socialista, cada
trabalhador é supervisionado pela comunidade inteira. Reconhece
Mill que no sistema de trabalho vigente não há estímulo para uma
maior produtividade do trabalhador e que no comunismo o
trabalho seria executado com maior eficiência, já que o espírito
público seria maior, como no caso de padres e monges. No entanto,
ele se pergunta se o comunismo não poderia levar ao crescimento
demográfico imprevidente. Ao que conclui negativamente, uma vez
que, nele, a opinião pública e as punições resolveriam esse proble-
ma. A distribuição das tarefas entre os indivíduos e as punições
seriam um problema a se resolver no comunismo, problema difícil,
mas não impossível.
Após todo esse arrazoado, Mill pergunta-se qual a melhor
sociedade. Lembra que na resposta a essa questão deve-se
comparar o comunismo ideal com a melhor forma de organização
que o regime de propriedade privada poderia estabelecer. Se na
origem a propriedade privada foi obtida pela força, não há hoje em
dia relação entre o princípio da propriedade privada e os males
físicos e sociais que se associam a ele. A defesa desse princípio
passa então pela proporção entre a remuneração e o trabalho. Há
duas condições para a realização das massas sob quaisquer
regimes: a educação e o controle populacional. Mill pergunta:
“Qual dos dois regimes se compagina com o máximo de
liberdade e de espontaneidade humana?” (Stuart Mill, Prin-
cípios de economia política)
E em defesa do comunismo argumenta:
“As restrições impostas pelo comunismo seriam liberdade,
em comparação com a condição atual da maioria dos seres
humanos.” (ibidem)
Aproveita para criticar também a opressão das mulheres.
Novas regras para a remuneração do trabalho poderiam tornar o
regime de propriedade privada mais justo. Mill demonstra nutrir
grande admiração pelos sistemas filosóficos socialistas, não
comunistas, de Saint-Simon e Fourier. O primeiro prega a divisão
desigual da produção: que cada um tenha ocupações conforme
vocação e capacidade e que as remunerações sejam proporcionais

199
à eficiência do trabalho e a seus méritos. Fourier não suprime a
propriedade privada e a herança. Defende a organização do traba-
lho por associações e a distribuição com base nos talentos, capaci-
dade de trabalho e dotação de capital. Defende que sistemas de
propriedade comunal deveriam ser tentados.
O assunto continua no capítulo 2 do mesmo livro, onde Mill
começa perguntando quais considerações devem delimitar a apli-
cação do princípio da propriedade privada. Define o direito de
propriedade como
“[...] o direito de dispor com exclusividade daquilo que
alguém produziu com seu próprio trabalho, ou recebeu espon-
taneamente.” (ibidem)
Os proprietários dos fundos de capitais, que representam
trabalho anterior acumulado, também devem ser recompensados
pelo trabalho anterior e pela abstinência.
Em seguida, Mill discute o direito de herança. Tal direito é o
exercício da vontade de dispor de um bem privado ao bel-prazer do
proprietário. Há os proprietários legais, mas também a posse não
contestada dentro de um número de anos deve ser entendida como
propriedade plena. As leis que defendem a propriedade também
asseguram o direito de transferência na forma de doação
testamentária. O direito de doação não se confunde com o de
herança, e as leis atuais que regulam este devem ser reparadas. A
herança não faz parte do conceito de propriedade. Hoje, a
propriedade é inerente a indivíduos e não a famílias. Se os filhos
não devem reivindicar a posse plena dos bens dos pais, após a
morte deles, Mill investiga o que a lei poderia fazer para ampará-
los. Critica os direitos de herança dos parentes em linha colateral e
acredita que os direitos dos filhos são reais e inalienáveis. É preciso
garantir a eles uma provisão razoável, a fim de que se mantenha o
padrão de quando seus pais eram vivos.
Mesmo o direito de fazer doações testamentárias, atributo do
princípio da propriedade privada, pode em certas circunstâncias
ser limitado, se necessário. Cita o caso dos direitos à propriedade
da terra. Já que é o proprietário quem melhora as terras, esse
direito deve vir associado às melhorias implementadas em irriga-
ção, adubo etc. De modo geral, a propriedade da terra é uma
questão de conveniência geral: pode ou não ser justa. Além disso, o
direito à terra para cultivo não implica direito exclusivo de
passagem.

200
Ainda no livro sobre distribuição, Mill discute as classes entre
as quais é distribuída a produção, capítulo 3, a concorrência e o
papel dos costumes na determinação dos preços, capítulo 4, a
escravatura, capítulo 5, a propriedade camponesa, capítulos 6 e 7,
o sistema meeiro e a posse Cottier, capítulos 9 e 10. O capítulo 11 é
particularmente de interesse. Intitulado “Os Salários”, nele Mill
lança os fundamentos da famosa teoria do fundo de salários e a
hipótese de trabalho homogêneo. Sobre o que determina os
salários, ele afirma:
“Os salários dependem sobretudo da procura e da oferta de
mão de obra; ou então, como se diz com frequência, da proporção
existente entre a população e o capital. Por população entende-se
aqui somente o número de trabalhadores, ou melhor, daqueles
que trabalham como assalariados; e por capital, somente o capital
circulante, e, nem sequer este em sua totalidade, senão apenas a
parte gasta no pagamento direto da mão de obra. A isso, porém,
devem-se acrescentar todos os fundos que, sem serem capital,
são pagos em troca de trabalho tais como os vencimentos de
soldados, criados domésticos e todos os outros trabalhadores
improdutivos. Infelizmente, não há maneira de expressar com um
único termo comum o conjunto daquilo que se tem denominado
o fundo salarial de um país; e já que os salários da mão de obra
produtiva constituem quase a totalidade desse fundo, costuma-se
passar por cima da parte menor e menos importante, e dizer que
os salários dependem da população e do capital. Será conveniente
empregar essa expressão, mas lembrando-se de considerá-la
como elíptica, e não uma afirmação literal da verdade integral.
Ressalvadas essas limitações inerentes aos termos, os
salários não somente dependem do montante relativo do
capital e da produção, como, sob o domínio da concorrência,
não podem ser afetados por nenhuma outra coisa. Os salários
(naturalmente no sentido de taxa geral de salário) não podem
aumentar a não ser em razão de um aumento do conjunto de
fundos empregados para contratar trabalhadores ou em razão
de uma diminuição do número daqueles que competem por
emprego; tampouco podem baixar, a não ser porque diminuem
os fundos destinados a pagar mão de obra ou porque aumenta
o número de trabalhadores a serem pagos.” (Stuart Mill,
Princípios de economia política)
Nessa passagem, estão explicitados os fundamentos da teoria do
fundo de salários que seria muito criticada a partir dos anos 1870 (ver
Capítulo 8, adiante em nosso livro). Em seguida, no mesmo capítulo, Mill
prossegue criticando opiniões aceitas sobre o que determina os
201
salários: eles não dependem da situação dos negócios, nem dos preços
elevados, e nem variam com os preços dos alimentos, como acreditou
Ricardo. A discussão sobre os salários prossegue nos capítulos 12 a 14,
em que Mill, relaxando a hipótese de trabalho homogêneo, discute os
diferenciais de salários nas diversas ocupações e algumas soluções
populares para os baixos salários. Finalmente o capítulo 15 discorre
sobre os lucros e o seguinte sobre a renda da terra.
O livro III discute a questão das trocas de mercado. Lá apare-
ce a versão milliana da teoria do valor. Sem romper com a teoria
clássica, ele enriquece a compreensão do valor. Mill diz que ele é
um conceito para se discutir a distribuição; como, porém, a
distribuição não é regida pela concorrência, mas pelo uso ou
costume, o conceito adquire menor importância. A questão do valor
não afeta a produção, argumenta, mas é fundamental no estágio
social da troca generalizada nos mercados. Afirma então:
“Felizmente nada resta, nas leis sobre o valor, a ser escla-
recido por mim ou por qualquer autor futuro; a teoria sobre
esta matéria está completa.” (ibidem)
Ledo engano de Mill, pois anos depois aconteceria a Revo-
lução Marginalista e, com ela, ampla revisão das teorias sobre valor.
Mill aponta ambiguidades na aplicação do conceito de valor de
uso por Smith. Em economia, observa, a utilidade de uma coisa
significa a capacidade dela de satisfazer a um desejo ou servir a
uma finalidade. O valor de uso entendido nesse sentido é um valor
teleológico.
“O valor de uso, ou, como o denomina o Sr. De Quincey, o
valor teleológico é o limite extremo do valor de troca. O valor
de troca de uma coisa pode ser inferior – para qualquer
montante – ao seu valor de uso; mas que possa superar o valor
de uso, implica contradição; isso supõe que as pessoas
pagarão, para possuir uma coisa, mais do que o valor máximo
que elas mesmas lhe dão como meio de gratificar as suas
inclinações.” (ibidem)
Valor é sinônimo de valor de troca, entendido como poder de
compra em geral e não uma soma em dinheiro. Na hipótese de
concorrência plena e autointeresse dos agentes envolvidos, Mill irá
investigar as causas que originam o valor. No capítulo 2, discute a
procura e a oferta e sua relação com o valor, diz que há dois
requisitos a fim de que uma coisa tenha valor de troca: a utilidade
e a dificuldade para consegui-la. A utilidade regula o máximo de
valor, alcançado no regime de monopólio, porém a compreensão do

202
valor pressupõe o conceito de oferta e demanda. A oferta é a
quantidade que pode ser obtida, em determinado tempo e lugar,
por aqueles que desejam comprar o bem. A procura efetiva é
resultante do desejo e do poder de compra e varia com o valor. A
concorrência tende a igualar oferta e procura por meio de um
ajuste no valor. Se em última instância é o mercado que regula o
valor, qual o papel dos custos de produção? Tal pergunta é
respondida no capítulo 3.
Qualquer mercadoria, para ser produzida, deve ter um valor
que cubra os custos de produção. O valor é determinado pela oferta
e pela procura, mas, se ele não compensa o custo de produção e não
assegura o lucro normal, a mercadoria deixa de ser produzida. Mill
trabalha com a noção de valor necessário que cobre tanto o custo
de produção quanto o lucro normal. O valor nunca estará
permanentemente acima ou abaixo do valor necessário, já que se
supõe que a oferta de capital e de mão de obra flua entre mercados
equilibrando os valores em direção aos valores necessários. A
equalização das expectativas de lucro em diferentes ocupações faz
com que as coisas sejam trocadas à razão de seu custo de produção.
Com lucros iguais em diferentes mercados, o valor necessário
iguala-se ao valor natural, dado pelos custos de produção. A renda
da terra, no entanto, não faz parte dos custos de produção que
determinam o valor. Esse tema é objeto do capítulo 5; nos capítulos
restantes do mesmo livro, Mill ainda discute as questões de crédito
e de comércio internacional.
O livro IV examina os impactos sobre valores, salários, lucros e
renda da terra do crescimento da economia, mostrando a tendência
dos lucros em direção a um mínimo e lançando a famosa hipótese
do estado estacionário. O livro V conclui a obra discutindo temas de
tributação.

203
Questões

1. Por que a teoria da população de Malthus é considerada uma


teoria naturalista? Quais as críticas que se fazem a ela?
2. Por que Malthus não acreditava na Lei de Say? Quais as conse-
quências práticas da teoria de crescimento de Malthus?
3. No início dos Princípios de Economia e Tributação, Ricardo
começa criticando a teoria do valor de Smith. Quais os pontos
principais dessa crítica? Por que a teoria do valor que fora útil
para Smith não servia para Ricardo que estava preocupado com
distribuição dos rendimentos?
4. Para Ricardo, o trabalho comandado por uma mercadoria pode
ser maior que o trabalho incorporado? Qual a relação entre
esses dois conceitos quando a mercadoria em questão é a força
de trabalho?
5. Na teria do valor trabalho-incorporado de Ricardo, como são
avaliados os valores de mercadorias que são produzidas utili-
zando-se capital fixo? De que modo as diferenças de durabi-
lidade do capital afetam o valor? De que modo as respectivas
taxas de lucro afetam os valores relativos de duas mercadorias?
A teoria do valor de Ricardo é, de fato, invariante com a
distribuição de renda?
6. Na teoria da renda de Ricardo, explique por que a renda paga é
maior nas terras mais produtivas. Explique também por que o
uso cada vez mais intensivo do mesmo lote de terra propor-
ciona renda. Qual a lei fundamental de produção subjacente ao
fenômeno da renda da terra?
7. É correto dizer que Ricardo estava preocupado apenas com uma
teoria da distribuição de renda?
8. Em Ricardo, é correto afirmar que os salários nunca afetam o
valor de troca da mercadoria? Senão, em que condições o salário
afeta tal valor e de que forma? (Pense em mercadorias
produzidas com diferentes combinações de capital fixo e
circulante e diferentes durabilidades do capital empregado.)
9. Exponha detalhadamente a teoria da renda de Ricardo con-
frontando-a com a respectiva teoria de Smith.
10. Como os retornos decrescentes na agricultura afetam:
a. O preço dos alimentos em termos de trabalho incorporado?
b. O valor nominal dos salários?
204
c. O valor dos lucros e a taxa de crescimento da economia?
11. A teoria do valor de Ricardo é, de fato, invariante com a
distribuição de renda?
12. Considere o modelo de Ricardo que toma todos os rendi-
mentos medidos em unidades de cereais e a identidade física
entre produto e capital (tal como no ensaio de 1815). Mostre
que, se a e a’ representam, respectivamente, a produtividade
por trabalhador nas terras marginal e inframarginal, a renda
aferida pelo proprietário desta última é dada por (a’ – a). T’, na
qual T’ é o número de trabalhadores empregados na terra
inframarginal.
13. Qual a diferença entre as categorias “trabalho” e “força de
trabalho”?
14. Caracterize, demarcando as diferenças, o método de Ricardo e
o de T. Malthus. De que modo os seguidores de Ricardo
procuram salvar a teoria do mestre contra a observação de
fatos que contrariavam as previsões da obra de Ricardo?
15. Na teoria de Ricardo sobre o comércio internacional, como um
país que possui vantagens absolutas na produção de todos os
bens pode, ainda assim, se beneficiar do comércio com outros
países?
16. No que consiste a metodologia “apriorística”? Qual o papel da
confrontação com os fatos para essa metodologia? No que
consiste o chamado “vício ricardiano”?
17. Qual a base da defesa da propriedade privada feita por Mill?
Para ele, em que condições o princípio da propriedade priva-
da deve ser limitado? A esse respeito, comente as opiniões de
Mill sobre herança e propriedade da terra.
18. Em Mill, há leis universais comandando a distribuição de renda
e a produção?
19. O que é trabalho humano para Mill? O que é trabalho indireto
e de que modo ele é remunerado? Dê exemplos deste tipo de
trabalho.
20. Qual o papel da oferta e da demanda na determinação do valor
para Mill e no que sua teoria difere da de Ricardo?
21. Comente os prós e os contras levantados por Mill na avaliação
do comunismo.

205
Leitura Adicional

Literatura Primária

DARWIN, Charles. Origem das espécies. Belo Horizonte: Itatiaia,


1985.

MALTHUS, Thomas Robert. Essay on the principle of population.


Londres: Everyman’s Library, 1967.

_____. Princípios de economia política e considerações sobre sua


aplicação prática. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MILL, John Stuart. Princípios de economia política com algumas de


suas aplicações à filosofia social. São Paulo: Nova Cultural,
1996.

_____. Essay on some unsettled questions of political economy. New


York: Kelley, 1968.

RICARDO, David. Princípios de economia política e de tributação.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s.d.

Literatura Secundária

DEANE, Phyllis. A evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1980.

BLAUG, Mark. A metodologia da economia. São Paulo: Edusp, 1992.

ELSTER, John. Social norms and economic theory. Journal of


Economic Perspectives, v. 3, 4, 1989.

MATTOS, Laura V. Economia política e mudança social: a filosofia


econômica de John Stuart Mill. São Paulo: Edusp, 1998.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix,


[s.d.].

SEN, Amartya. On the Darwinian view of progress. Population and


Development Review, v. 19, 1, 1993.

206
7
Karl Marx

VIDA E OBRA
A Revolução Industrial da segunda metade do século XIX teve
como base o desenvolvimento do eletromagnetismo com as expe-
riências seguidas de muitos físicos brilhantes e a síntese matemá-
tica de James Clerk Maxwell, que com suas quatro equações básicas,
envolvendo campos elétricos e magnéticos, proporciona uma
completa compreensão teórica dos fenômenos naturais observa-
dos em laboratório. A aplicação dos achados da ciência física na
construção de motores, na comunicação por telégrafo, na indústria
siderúrgica e em outros campos cria as condições para novo
impulso no desenvolvimento do capitalismo industrial. Às expen-
sas dos bens de consumo populares, intensifica-se o investimento
em bens de capital cuja criação ampliada cobrava um elevado custo
social com grandes privações para as massas. De fato, as classes
sociais inferiores foram as mais sacrificadas. Mais uma vez, as
relações tradicionais no seio das comunidades eram substituídas
por pura relação de mercado. O trabalho foi sendo crescentemente
especializado em operações mecânicas simplificadas e a tirania do
relógio no interior das fábricas ditava o ritmo do trabalho, inteira-
mente dependente das máquinas. Mulheres e crianças eram empre-
gadas nas fábricas. A Lei dos Pobres, na Inglaterra, não conseguia
assegurar os direitos das crianças, e muitas delas ficavam aos
cuidados de inescrupulosos que se dedicavam a traficá-las. Os
capatazes eram pagos para manter a rígida disciplina do trabalho e
recebiam pela produtividade. A condição da mulher na sociedade
foi revista à medida que ela passa a desempenhar papéis nas
fábricas que antes eram prerrogativas de homens. Crescem as
cidades na Inglaterra, num ambiente empoeirado e sem condições
mínimas de higiene. O poder absoluto e irrefreável dos grandes
industriais foi contestado em motins organizados pelos trabalha-
dores. Até 1813, eclodem revoltas de grupos deles contra o sistema

207
fabril, contudo os ímpetos contestatórios foram sendo dominados
pelo emprego da força e pela necessidade de sobrevivência dos
revoltosos.
O governo tratou de intervir nas relações sociais, fazendo a
revisão das leis que haviam sido edificadas, muito tempo atrás, no
fim do século XVIII. A Lei das Associações, de 1799, visava coibir as
ações dos primeiros grandes sindicatos na indústria têxtil. Um
complexo sistema de auxílio aos pobres havia sido edificado;
entretanto, muitos argumentavam que tal sistema teria contribuído
para a queda dos salários e limitado a mobilidade da força de
trabalho. A nova legislação, de 1834, condicionou a assistência ao
pobre à exigência de internação nas Casas de Trabalho.
Nem todos, porém, acreditavam que reformas nas leis pode-
riam conter o quadro desumano criado pela expansão capitalista. A
descrença com a sociedade, tal como era, tinha levado alguns
pensadores a imaginarem um novo tipo de sociedade regulada por
outras regras e princípios. Muitos deles chegaram a implementar,
em contextos particulares, pequenas comunidades regidas pelos
critérios imaginados. Seguiam o exemplo de Gerrard Winstanley,
que, no século XVII, tinha fundado uma comunidade nas terras da
coroa inglesa. Na época da Revolução Francesa, havia-se difundido
a ideia de que a tomada do poder por populares poderia, enfim,
eliminar as injustiças sociais criadas pela desigual condição huma-
na. Gracchus Babeuf pregava o socialismo como modelo social e foi
executado logo após a queda de Robespierre. No entanto, ao
contrário de Babeuf, a maioria dos socialistas pensava que a
transição ao novo modelo de sociedade poder-se-ia realizar de
modo pacífico.
Na Inglaterra, conservadores rotulados de Tories propunham
reformas sem ruptura na sociedade. Robert Owen (1771-1858)
critica os excessos cometidos por empresários industriais, acredi-
tando que por meio de empreendimentos industriais de caráter
experimental poderia demonstrar a superioridade de um modelo
mais humano nas relações de trabalho. Imaginava ele que o
ambiente da fábrica poderia funcionar como uma irmandade de
iguais, na qual os operários seriam estimulados a dar o melhor de
si. Em troca, seriam recompensados e tratados com toda conside-
ração. Para Owen, o socialismo atenuaria a competição e faria
prevalecer relações de cooperação entre os homens. Todavia, a
fábrica experimental de Owen não foi bem-sucedida, e ela só pôde
funcionar mantendo uma rígida disciplina do trabalho.

208
Outros também pensavam que o socialismo poderia vir a
prevalecer a partir de exemplos bem-sucedidos em experimentos
particulares. William Godwin (1756-1836) faz a defesa da classe
operária mostrando que ela tem sido quase sempre prejudicada
pelas leis que só favorecem os ricos. Godwin acredita que a
educação e o bom uso da razão levariam à transformação social.
Outro conservador radical, Henri de Saint-Simon (1760-1825)
pensava que o governo deveria participar diretamente na produção
e na distribuição de riquezas. A propriedade privada não deveria
ser abolida, mas usada no interesse das massas. Tidos como mais
eficientes que a pequena manufatura, os grandes empreendi-
mentos industriais não são combatidos; Saint-Simon, porém,
assevera que eles deveriam ser canalizados para atender ao
interesse público.
Charles Fourier (1772-1837) foi outro que acreditou ser
possível reformar o capitalismo pela força dos exemplos. No
entanto, as cooperativas rurais que fundara também foram uma
experiência fracassada. Fourier critica a concorrência no capitalis-
mo alegando que ela leva sempre ao monopólio. O capitalismo é um
sistema irracional, já que nele poucos realizam trabalho útil para a
sociedade, enquanto a maioria é composta por parasitas. Final-
mente outro socialista que se destacou no período foi Joseph
Proudhon (1809-1865), que contesta radicalmente a existência da
propriedade e afirma literalmente que a propriedade é um roubo.
Todos esses socialistas apontados anteriormente, à exceção de
Babeuf, acreditam que reformas políticas graduais poderiam levar
a uma sociedade melhor. Na segunda metade do século XIX, aparece
a concepção do socialismo como algo a ser alcançado pela revolu-
ção social. Ele não seria obtido pelas reformas nas leis e nem pelo
exemplo particular. Seus adeptos substituem a concepção do socia-
lismo como uma utopia ideal pelo socialismo como método de
interpretação da história e de ação política. O principal nome na
teoria do socialismo revolucionário foi o pensador alemão Marx.
Karl Marx (1818-1883) nasceu em Tréveris, região então
desenvolvida e com moderna agricultura ao sul da Alemanha. Filho
de família relativamente abastada, de origem judaica e convertida
ao cristianismo, seu pai foi brilhante jurista e lhe conferiu vigorosa
orientação formadora. Marx perdera-o com apenas 20 anos, mas as
influências do falecido pai permaneceram por toda a vida. Aos 17
anos, ingressou no curso de direito na Universidade de Bonn. Em
Bonn, iniciou relação afetiva com Jenny von Westphalen, com quem
viria a casar-se anos depois. Jenny era filha do Barão de West-

209
phalen, membro proeminente da sociedade de Tréveris e o respon-
sável pelo interesse de Marx na literatura romântica e nas ideias
saint-simonianas. No ano seguinte, o pai de Marx enviou-o à Uni-
versidade de Berlim, tida como mais séria, na qual permanece por
quatro anos, tempo em que abandona o romantismo.
O rico ambiente cultural despertou o interesse de Marx pela
filosofia, especialmente por Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-
1831) e pela leitura dele feita pelos Jovens Hegelianos. Marx torna-
se membro desse movimento, e seu grupo incluía os teólogos Bruno
Bauer e David Friedrich Strauss, que fazem crítica radical ao cristia-
nismo e, por implicação, estão contra os opositores liberais da
aristocracia prussiana, afeitos ao regime democrático e constitu-
cional. A filosofia hegeliana, no entanto, já se encontra em crise e
cisão, e Marx ateve-se a certos elementos dela enquanto negava
outros. O que logo de início ele tratou de se desvencilhar foi o
idealismo, em prol de concepção materialista que o leva à escolha
do tema de sua tese de doutorado em filosofia no estudo compa-
rativo dos filósofos gregos materialistas Demócrito e Epicuro,
defendida na Universidade de Jena em 1841.
O materialismo de Marx foi reforçado com a leitura da obra de
Ludwig Feuerbach (1804-1872), A essência do cristianismo, lança-
da em 1841, que propôs apoiar a crença materialista no natura-
lismo antropológico e na revisão do conceito hegeliano de aliena-
ção. Enquanto a noção de alienação em Hegel descrevia o processo
em que as ideias se realizam nas criações objetivas da história
humana, para Feuerbach alienação corresponde à perda da essên-
cia humana, o afastamento de si mesmo em prol da submissão ao
Deus projetado. No lugar do cristianismo, propõe ele um humanis-
mo naturalista. Embora Marx tenha acolhido com entusiasmo as
ideias de Feuerbach, ele havia rejeitado a descrição naturalista e
universal do homem e a crítica à dialética hegeliana, tida por
Feuerbach como mera especulação mistificadora. Para Marx, o
caráter do homem dependeria do lugar por ele ocupado na trama
das relações sociais e o princípio dialético de Hegel não deveria ser
descartado, mas elaborado para a criação de uma dialética materia-
lista. Assim, Marx, em sua crítica ao idealismo hegeliano, ainda
manteve a dialética, agora redefinida como elemento propulsor do
materialismo.
Na história da filosofia, a noção de dialética ganha diferentes
significados. Nos pré-socráticos, é a mutabilidade do mundo, a
transformação de toda propriedade em seu contrário. Em Platão e
Aristóteles, adquire o significado de arte da discussão. Em Kant, é a

210
força dos aspectos contraditórios no processo de desenvolvimento
das ideias, que possui uma conexão interna a ser desvendada pela
filosofia. Marx reteve a concepção dialética de Hegel, porém não
como propulsora das ideias e sim como motor do desenvolvimento
nas relações econômicas.
As contribuições de Marx foram firmando-se enquanto ten-
dência particular dentro do materialismo filosófico. Ele afasta-se
das noções filosóficas idealistas de Hegel, da crença de que “todos
os fenômenos da natureza e da sociedade têm sua base na ideia
absoluta”. Reteve, entretanto, o conceito de alienação e o ponto de
vista dialético da compreensão da realidade. A dialética de Hegel,
afirma Marx, estava correta, mas deveria ser posta de cabeça para
baixo, substituindo-se o idealismo pelo materialismo, a visão da
história como sendo movida pelo desenvolvimento do espírito
absoluto pela ideia de que as condições materiais seriam o motor
verdadeiro do devir histórico.
A matéria é o princípio primordial, e o espírito, apenas um
reflexo secundário dela. Da matéria surge a consciência, e o conhe-
cimento do universo é a realidade refletida nessa consciência. No
entanto, a realidade enquanto tal existe independentemente da
consciência. Os primeiros filósofos materialistas apareceram na
Grécia antiga. Thales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Herá-
clito, Demócrito e Epicuro, todos eles procuram identificar o
elemento material básico, o bloco de construção do universo: água,
vapores, átomos materiais e até mesmo o fogo foram selecionados
como sendo esse elemento. Depois, na Idade Média, as concepções
materialistas sobreviveram na filosofia nominalista. Na Renascen-
ça, Giordano Bruno manteve crenças materialistas. Tido como
herege, ele foi condenado à fogueira. O hilozoísmo e o panteísmo
acreditam que as sensações e outros fenômenos psíquicos possuem
as mesmas propriedades do mundo físico. No século XVIII, surge o
materialismo mecanicista de La Metrie, Diderot e Holbach. Tidos
como ateus, suas concepções escandalizaram o mundo em sua
época. Feuerbach, portanto, pôde contar com uma longa tradição
em filosofia materialista. Ele usou o materialismo em seu ataque a
Hegel; e Marx, mesmo não aderindo integralmente às teses de
Feuerbach, esteve sob suas influências. Todavia, entre eles, apenas
Marx uniu o materialismo à dialética na construção de seu materia-
lismo dialético que acredita estar embasado na prática social e
aspira ser a teoria orientadora da revolução do proletariado.
Com a pretendida carreira universitária impedida pelo gover-
no prussiano, Marx muda-se para o jornalismo e em outubro de

211
1842 torna-se editor, em Colônia, da influente Gazeta Renana, um
jornal liberal financiado por industriais. Foi a atividade política, no
exercício do jornalismo, que o impeliu ao estudo da economia polí-
tica e das teorias socialistas. Os artigos de Marx, particularmente
em questões econômicas, forçaram o governo da Prússia a fechar o
jornal. Marx, então, emigra para a França após se casar com Jenny
em 1843.
Chegando a Paris no fim de 1843, ele rapidamente trava conta-
to com grupos organizados de imigrantes alemães que faziam
oposição ao absolutismo prussiano e com vários adeptos de
diferentes seitas socialistas francesas. Ele publica, em colaboração
com Arnold Ruge, figura destacada da esquerda hegeliana, o
periódico de curta duração Anais Franco-alemães, que pretendia
unir os socialistas franceses aos radicais alemães de inspiração
hegeliana. Durante seus primeiros meses em Paris, Marx torna-se
comunista e expôs suas concepções numa série de escritos
reunidos depois nos Manuscritos econômicos e filosóficos, que
permaneceram não publicados até 1932. Nesses “Manuscritos”,
Marx delineia uma concepção humanista do comunismo, ainda sob
influência da filosofia de Feuerbach e com base no contraste entre
a natureza alienada do trabalho no capitalismo e a sociedade
comunista na qual os seres humanos desenvolveriam livremente
sua verdadeira natureza na produção cooperativa. Foi em Paris que
Marx inicia sua parceria, que se desenvolveria por toda vida, com
Friedrich Engels (1820-1895), filho de um industrial têxtil e afasta-
do do curso universitário, mas que se tornara incansável autodi-
data, movido por enorme curiosidade intelectual. Engels também
se ligara ao movimento dos Jovens Hegelianos.
O primeiro contato intelectual entre ambos se deu nos Anais,
em que consta artigo de Engels intitulado Esboço de uma crítica da
economia política, tido como genial na avaliação de Marx. O
“Esboço” de Engels focaliza a obra dos economistas clássicos
ingleses como expressão da ideologia burguesa da propriedade
privada, que não teria, portanto, uma significação científica. Marx
convencera-se, com a influência do amigo, de que sua atividade
teórica em complemento à ação política teria como orientação a
crítica da economia política.
Em dois ensaios publicados nos Anais, Introdução à crítica à
filosofia do direito de Hegel e A questão judaica, Marx esboçara, por
meio da “dialética materialista” e de sua concepção teleológica da
história, o modo como o proletariado alemão seria a classe agente
da transformação mais profunda que deveria combater o absolutis-

212
mo na Prússia e abolir a divisão de classes na nova sociedade. Nos
Manuscritos econômicos e filosóficos, Marx indicara a evolução de
seu pensamento da matriz de Hegel e Feuerbach para a nova visão
do materialismo dialético assentada fundamentalmente na ideia de
oposição entre as classes, e, no caso do capitalismo, também na
oposição entre o proletariado e a propriedade privada. Só a aliena-
ção dos trabalhadores permite manter esta instituição em pé. Marx
fornece um novo conteúdo ao conceito-chave de alienação, agora
não visto como objetivação de ideias (como em Hegel), ou como
perda da essência humana pelas crenças ilusórias da religião (como
em Feuerbach), mas enquanto processo da vida econômica. A
essência humana objetiva-se nos produtos do trabalho do operário
que a ele se contrapõem por serem produtos alienados e converti-
dos em capital. O capital domina os produtores em escala cada vez
mais ampliada, à medida que cresce por meio da incessante aliena-
ção dos novos produtos do trabalho.
A essa época Marx formula o conceito de alienação de sua fase
madura. Antes, ele havia interpretado no sentido da alienação
microeconômica, ou seja, o operário não conhece o efeito real da
contribuição de seu trabalho particular no conjunto das operações
da fábrica que resultam no artigo vendável a que ela se destina.
Agora, Marx pensa na alienação em sua dimensão macroeconômica,
como o automatismo do capital num modo de produção particular;
o capitalismo funcionando como uma “segunda natureza”, a con-
cepção de que o capital possui leis próprias de funcionamento e é
movido por uma lógica, que lhe é intrínseca, em direção à acumula-
ção, submetendo os agentes a essa mesma lógica. Qualquer ator
social vira mero suporte de relações e deixa de ter uma vida voltada
à execução de seus próprios desígnios. As exigências da acumula-
ção capitalista impõem-se aos objetivos individuais e empobrecem
o sentido da vida humana.
Feuerbach argumenta que Deus foi inventado pelos homens
como projeção das próprias ideias deles. Contudo, escreve, ao
criarem Deus como sua imagem haviam alienado o homem dele
mesmo. Eles criaram outro ser em contraste consigo, reduzindo si
próprio a uma criatura pecadora que necessitaria da religião e dos
governos, a fim de guiarem-na e controlarem-na. Se a religião fosse
abolida, diz Feuerbach, os seres humanos superariam o estado de
alienação. Marx inova e transforma tal ideia de alienação aplicando-
a à propriedade privada; propriedade essa que faz o homem traba-
lhar para ela e não para o bem de sua espécie. Nos Manuscritos, a
ideia de alienação tem uma base econômica. Só a sociedade comu-

213
nista poderia contrapor-se ao efeito desumano da propriedade
privada.
Sob pressão das autoridades prussianas, o governo francês
expulsa Marx de Paris no fim de 1844. Na companhia de Engels, ele
move-se para Bruxelas, permanecendo por lá nos próximos três
anos. Nesse período, visita a Inglaterra, onde a família de Engels
possuía uma indústria de tecelagem de algodão em Manchester.
Marx iria residir em Londres a partir de 1848. Marx e Engels
trabalham conjuntamente o livro A sagrada família, de 1845, em
que os amigos jovens hegelianos são criticados por manterem a
interpretação hegeliana do conceito de alienação. Ainda em Bruxe-
las, no mesmo ano Marx trabalha em algumas notas, As teses sobre
Feuerbach, que, em colaboração com Engels, seriam ampliadas e
resultariam no livro A ideologia alemã. Trata-se de intenso estudo
em história no qual se elabora o que viria a ser conhecida como a
concepção materialista da história. A tese fundamental é a de que a
natureza dos indivíduos depende do papel deles na produção
material ou que o pensamento humano é determinado pelas forças
socioeconômicas. Marx traça a história de diferentes modos de
produção, desenvolvendo o método de análise do materialismo
dialético, em que a ação de forças históricas leva à mudança na
sociedade. Ele prevê o colapso do estágio atual, o capitalismo
industrial, e sua substituição pelo comunismo.
Na obra A ideologia alemã, o materialismo de Marx alcança
plena maturidade. Sua filosofia procura ser antimetafísica e contrá-
ria ao idealismo. Ela é o estudo das leis mais gerais que regem a
natureza, a sociedade e o pensamento, partindo do modo como a
realidade objetiva se reflete na consciência. Estuda como se trans-
forma a matéria, como se realiza a passagem das formas inferiores
às superiores. Sua teoria do conhecimento enfatiza a prática social
como critério de verdade. As verdades científicas são sempre par-
ciais enquanto conhecimento limitado pela história.
O materialismo histórico de Marx, tido como um desenvol-
vimento do materialismo dialético, estuda as leis sociológicas que
caracterizam a vida em sociedade, bem como sua evolução históri-
ca e a prática social dos homens no desenvolvimento da humani-
dade. Ao mesmo tempo em que estabelece as bases do materialis-
mo histórico, A ideologia alemã critica os jovens hegelianos e
Feuerbach, pois, contrariamente à opinião deles, a história não é o
mero resultado de um jogo de ideologias e da presença de grandes
heróis. O verdadeiro fundamento dela reside nas formações socio-
econômicas e nas relações de produção. Marx e Engels não negam

214
a força das ideias; pelo contrário, afirmam serem elas capazes de
introduzir mudanças na base econômica que as originou. Decorre
então a importância da ação dos partidos políticos e de outras
associações.
O materialismo histórico trabalha com conceitos. A unidade do
processo social é o “ser social”, não o indivíduo, mas suas relações
uns com os outros e com a natureza. Tais relações têm existência
objetiva, não dependendo da consciência individual. A “consciência
social” é o conjunto de ideias políticas, jurídicas, filosóficas, estéti-
cas e religiosas, mais a psicologia das classes sociais. Esse conjunto
de ideias e representações constitui-se por meio da história. Outros
conceitos centrais são os “meios de produção”, tudo o que é empre-
gado para gerar bens materiais, as “forças produtivas”, que englo-
bam meios de produção, capacidade técnica, conhecimento e
rotinas de produção, as “relações de produção”, relações de
propriedade, de cooperação, submissão e outros vínculos que se
estabelecem entre os homens na produção, e os “modos de produz-
ção”, conceito mais abrangente que caracteriza o estágio de desen-
volvimento da sociedade, entre comunidade primitiva, escravagis-
mo, feudalismo, capitalismo e comunismo, o ápice na escala de
evolução das sociedades.
O modo de produção é basicamente composto de três estratos.
A base material que são as forças produtivas, o conjunto de relações
sociais que compõe as relações de produção e a “superestrutura”, o
conjunto de crenças ou a ideologia que mantém a coesão entre os
homens justificando o status quo e compelindo-os ao cumprimento
dos papéis individuais, contrapondo-se à “infraestrutura” (ver
Figura 7.1).
A filosofia do devir histórico de Marx e Engels é cravejada de
conceitos, não apenas os que definimos anteriormente. Diversos
outros termos e expressões adquirem conotação particular no inte-
rior de uma ontologia social. Sociedade, formações socioeconô-
micas, estrutura social, organização política da sociedade, vida
espiritual, cultura, história, personalidade e progresso social, cada
qual deve ser interpretado à luz do quadro de referências associado
a tal sistema filosófico (Boxe 7.1). A concepção materialista da
história parte da materialidade do mundo, no qual tudo é matéria
em movimento e a matéria é anterior à consciência. O mundo pode
ser conhecido; primeiro as qualidades e depois os aspectos quanti-
tativos e as causas dos fenômenos.

215
Figura 7.1 Diagrama representativo do modo de produção.

Simultaneamente à composição de A Ideologia alemã, Marx


trabalha na elaboração de um polêmico panfleto, A miséria da
filosofia, no qual ele demarca nitidamente as teses do socialismo
revolucionário das crenças socialistas anteriores. Os escritos de
Owen, Godwin, Saint-Simon e Fourier são considerados formula-
ções ilusórias do socialismo a que Marx rotula de “socialismo utópi-
co”. Nesse ensaio, ele tem em vista principalmente a concepção
socialista idealizada de Proudhon. Não se pode negar, entretanto,
as influências que esses socialistas tiveram na formação de Marx.

Boxe 7.1 Aspectos da lógica no sistema filosófico de Marx.

Além de conceitos peculiares, a crença de Marx parte de uma ontologia


social que identifica o que constitui os objetos da realidade social, e de uma
lógica. A lógica é apenas uma linguagem. A lógica dialética de Marx é uma
alternativa à lógica tradicional. Esta última aceita o princípio da não-
contradição: duas proposições opostas não podem ser simultaneamente
verdadeiras. Marx, seguindo a filosofia hegeliana, acredita que em certas
circunstâncias o uso dessa lógica pode levar a resultados contraditórios e
busca contornar tais dificuldades. Se a realidade é contraditória, ou seja, se a
contradição está no próprio objeto de estudo, é melhor aceitá-la desde o início
e examiná-la no prisma de uma lógica que aceita a contradição. A lógica que
não admite a contradição, ao examinar uma realidade ela mesma contraditó-
ria, leva a resultados também contraditórios. Tratando a realidade por meio
de uma lógica que admite a contradição, chega-se a resultados não contradi-
tórios. Portanto, a lógica dialética apreende melhor a realidade do capitalismo.

Em 1847, uma organização de trabalhadores emigrados da


Alemanha, com sede em Londres e conhecida como Liga Comunista,
convida Marx e Engels a participarem de uma reunião nessa cidade
216
na condição de líderes teóricos. Ao final dela, eles são solicitados a
escreverem uma declaração de suas posições pessoais. Ela apare-
ceria no ano seguinte em meio à eclosão de diversas revoluções na
Europa; intitula-se Manifesto Comunista.
O “Manifesto” condensa o trabalho teórico dos autores em
termos de estratégia e tática política. Sua fórmula é simples; ele
declara que toda a história tem sido a história da luta de classes.
Sobre o capitalismo, o enfrentamento entre a classe trabalhadora e
os capitalistas resultará no comunismo. A eclosão da revolução na
Alemanha e em outros países da Europa conduz Marx de volta à
região de Colônia, onde ele inicia a publicação do periódico Nova
Gazeta Renan , que até seu fechamento, em maio de 1849, defende
a perspectiva comunista no decurso de uma revolução democrá-
tico-burguesa. Com o fracasso do movimento liberal na Alemanha,
Marx transfere-se permanentemente a Londres.
Por muitos anos, ele e sua família viveram na pobreza, ajuda-
dos pelas pequenas subvenções de Engels e de parentes. De 1851 a
1862, Marx contribui para o jornal americano New York Tribune,
escrevendo artigos e editoriais. Ele permanecia, entretanto, a maior
parte do tempo no Museu Britânico, estudando economia e história
social e desenvolvendo suas teorias.
As ideias de Marx levaram alguns alemães refugiados em
Londres a estabelecerem, em 1864, a Associação Internacional dos
Trabalhadores, conhecida como “Primeira Internacional”. No ano
em que eclodira uma breve comuna em Paris, em 1871, o nome de
Marx começa a tornar-se conhecido em alguns círculos políticos
europeus.
Os estudos de economia em Londres resultaram na obra O
capital, a mais importante de Marx. Ele concluiu o primeiro volume
em 1867 e outros dois foram editados postumamente em 1884 e
1894. Marx hesitou em publicar estes dois volumes, tendo traba-
lhado neles até seus últimos dias. O lançamento póstumo deles deu-
se graças à iniciativa de Engels, que também reuniu esboços feitos
por Marx na compilação de um quarto volume. O capital é o ápice
no desenvolvimento do trabalho de Marx em economia política. Em
1857, ele já havia produzido um gigantesco manuscrito de 800
páginas intitulado Grundrisse, a respeito de temas como capital,
propriedade da terra, salário, o papel do Estado, comércio exterior
e mercado mundial,. Tal obra permaneceu desconhecida, e só seria
publicada em 1941. No começo dos anos 1960, Marx havia compos-
to três volumes reunidos nas Teorias da mais-valia, na qual critica
as teorias da economia política, particularmente as de Smith e
217
Ricardo. O volume 1 de O capital é uma reelaboração ampliada
dessas reflexões, analisando o processo capitalista de produção e
elaborando sua própria versão da teoria do valor-trabalho e seus
conceitos de mais-valor e exploração articulados num modelo que
levaria à queda na taxa de lucro e ao colapso do capitalismo
industrial.
Um dos motivos porque Marx demorou em publicar O capital
foi que ele, na época, devotava muito de seu tempo e energia à
Primeira Internacional, na qual havia sido eleito para o Conselho
Geral em 1864. Marx esteve ocupado em preparar os congressos
anuais da “Internacional”. Uma batalha interna desenvolve-se
então entre Marx e o anarquista russo Mikhail Bakunin, contestado
e depois expulso por Marx. Embora Marx tenha vencido o conflito
com Bakunin, a transferência da sede do Conselho Geral de Londres
para Nova York em 1872, apoiada por ele, levou ao enfraqueci-
mento e posterior declínio do movimento. O evento político mais
importante no período de existência da “Internacional” foi a
Comuna de Paris em 1871, quando os cidadãos de Paris se rebela-
ram contra o governo e mantiveram a cidade sob controle por dois
meses. Ao longo dos combates sangrentos da rebelião, Marx escre-
veu um de seus mais importantes panfletos: A guerra civil na
França, defesa entusiasmada do comunismo.
Marx foi demitido da Primeira Internacional em 1872 e passou
seus últimos anos trabalhando em sua obra mais importante, O
capital, à medida que seu estado clínico ia crescentemente se
debilitando. Mesmo às custas de sua saúde, Marx manteve-se ainda
engajado em movimentos políticos. Na Alemanha, ele opôs-se à
aliança entre seus seguidores Karl Liebknecht e Augusto Bebel e o
governo socialista de Lassalle, que procurava unificar o partido
socialista. O ponto de vista de Marx a respeito aparece na Crítica ao
programa de Gotha. Ele também estava atento aos eventos na
Rússia; em correspondência com Vera Zasulich, Marx contemplava
a possibilidade de este país pular o estágio capitalista de desenvol-
vimento e ir direto ao comunismo.
Durante a última década de sua vida, Marx lutava para recupe-
rar a saúde. Ele esteve em vários spas europeus e até na Argélia em
busca de uma melhora. A morte de sua filha mais velha, Jenny, e de
sua esposa o debilitou ainda mais. Falecido em 1883, Marx foi
enterrado no Cemitério de Highgate em Londres.
Mais do que a especialização em economia, Karl Marx foi
filósofo, cientista social e historiador, além da atividade prática
como revolucionário. Ele é, sem dúvida, o pensador social mais
218
influente do século XIX. Suas ideias sociais, econômicas e políticas
tiveram rápida aceitação no movimento socialista após sua morte.
Até recentemente, quase a metade da população do mundo vivia
sob regimes que se autoproclamavam marxistas. No entanto, em
vida, Marx foi quase ignorado nos meios acadêmicos.
Veremos, no Capítulo 8 deste livro, que na época em que Marx
dedicou-se a estudar a economia clássica com o intuito de criticá-la
a ciência econômica vinha atravessando um período de crise de
credibilidade. A contribuição econômica de Marx poderia ter-se
firmado como novo paradigma em substituição aos clássicos. Tal
possibilidade não se realizou, pois, seu sistema teórico deixou de
atrair para si os descontentes da época com a economia de David
Ricardo e Stuart Mill. No século dele, antes da década de 1880, sua
obra em nada afetou o ambiente acadêmico dos economistas.
Embora o primeiro volume de O capital tenha sido publicado em
alemão em 1867, ele só seria traduzido para o inglês em 1887. Marx
morreu relativamente desconhecido. Os expoentes da Revolução
Marginalista, Jevons, Menger e Walras, não conheciam suas ideias.
Alguns historiadores buscam equivocadamente interpretar o
surgimento da economia marxista como reação ao marginalismo e
à sua tentativa de salvar a crença na eficiência dos mercados,
dando-lhe outra roupagem teórica, alternativa aos clássicos. Ou
então que o marginalismo seria uma reação ao marxismo. No
entanto, em seus primeiros trabalhos, a teoria marginalista não
pode ser vista como mera tentativa de defesa do capitalismo ou
como uma reação ao avanço das ideias socialistas na Europa.
Somente após a difusão do marxismo, as ideias de Marx passam a
ser criticadas pelos marginalistas, que empregam seu peculiar
instrumental teórico para atacá-las. Destacamos, entre os críticos
de Marx, os nomes de Wicksteed, Pareto, Wieser e Böhm-Bawerk.
Particularmente este último procurou refutar Marx por meio de
uma nova interpretação do conceito de exploração.
Os marxistas acusam a aparente assepsia da teoria da utilidade
marginal de ser uma defesa do status quo, pois, argumentam, nela
não se pode lutar contra a propriedade privada, já que a alocação
eficiente de recursos pressupõe sua aceitação. Tal teoria também
fornece uma justificativa para a desigualdade na distribuição de
renda, ao falar em remunerações dos fatores por suas produtivida-
des marginais.
Avaliar o impacto ideológico da Revolução Marginalista é uma
questão controvertida. Para alguns, o conceito de utilidade margi-
nal é ideologicamente neutro. Quem é mais apologético ao capitalis-
219
mo, a escola clássica ou o marginalismo? Ora, algumas coisas na
economia clássica servem como instrumento para defender a
propriedade privada e o capitalismo, como, por exemplo, a teoria
do fundo de salários, por razões evidentes. Por outro lado, há certos
elementos que poderiam ser considerados subversivos no margi-
nalismo: de acordo com ele, e se fossem possíveis comparações
interpessoais, uma distribuição igualitária da renda maximizaria a
satisfação social. Tal argumento marginalista, de fato, apareceu no
movimento socialista fabiano. Também se argumenta que, entre os
marginalistas, Walras era um reformista social e que Pigou teria
derivado conclusões igualitaristas da teoria da utilidade marginal.
Há ainda o caso de George Bernard Shaw, que tentou construir um
socialismo vulgar com base nos trabalhos de Jevons e Menger.
Então o marginalismo foi tido como até mesmo mais “progressista”
que a escola clássica. No estágio inicial de desenvolvimento da
análise marginalista, tal análise não foi usada para criticar a teoria
de Marx. Contudo, socialistas radicais não interpretavam assim, e a
teoria marginalista da utilidade foi atacada por eles como sendo
meramente uma nova versão da economia ortodoxa, nova linha de
defesa, necessária em face do ataque bem-sucedido de Marx ao
argumento clássico do laissez-faire. No entanto, hoje sabemos que
ela não foi uma resposta burguesa às teses de Marx.
O sucesso das ideias de Marx no meio político não significa que
ele tenha sido completamente assimilado no contexto do desenvol-
vimento lógico das teorias econômicas e sociais. Com efeito, o
sistema marxista angariou adeptos mais em função de seus apelos
humanistas e da promessa de um mundo melhor do que em função
de uma compreensão verdadeiramente científica de suas ideias. O
mito de Marx pesou mais do que critérios racionais de substituição
de teorias. A interpretação nebulosa e pontos obscuros do sistema
marxista resultaram no processo em que várias de suas ideias
originais foram frequentemente modificadas e seu significado
adaptado a uma grande variedade de circunstâncias políticas.
Adicionalmente há o fato de muitos dos escritos de Marx terem sido
publicados com grande atraso, de modo que apenas em décadas
recentes os acadêmicos tiveram a oportunidade de apreciar a
estatura intelectual de Marx.
Marx é um economista bastante singular no desenvolvimento
do pensamento econômico. Sua obra vastíssima (Boxe 7.2) abrange
não apenas questões econômicas, mas também uma ampla varie-
dade de temas.

220
Boxe 7.2 Livros, artigos e entrevistas de Karl Marx.*
1843 Crítica à filosofia do direito de Hegel
1843 Cartas a Arnold Ruge
1844 Introdução à crítica à filosofia do direito em Hegel
1844 A questão judaica
1844 Notas críticas sobre o “Rei da Prússia”
1844 Excertos dos elementos de economia política de James Mill
1844 Manuscritos econômico-filosóficos
1844 A sagrada família
1845 Teses sobre Feuerbach
1845 A ideologia alemã (com Engels)
1847 Liga comunista (com Engels)
1847 A miséria da filosofia
1848 Discurso: sobre a questão do livre comércio
1848 O manifesto comunista (com Engels)
1848 Discurso: comunismo, revolução e Polônia livre
1848 Demandas do partido comunista na Alemanha (com Engels)
1849 Salário, trabalho e capital
1850 A revolução do século 17 na Inglaterra (com Engels)
1850 A luta de classe na França: 1848 a 1850
1852 Revolução e contrarrevolução na Alemanha
1852 O dezoito brumário de Luís Bonaparte
1852 Revelações sobre a colônia comunista de Trial
1857 Introdução à contribuição para a crítica à economia política
1857 Formações econômicas pré-capitalistas
1857 Grundrisse
1859 Contribuição para a crítica à economia política
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 1
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 2
1861-63 Teorias da mais-valia, v. 3
1863 Proclamação na Polônia
1865 Valor, preço e lucro
1867 O capital, Livro I
1869 A abolição da propriedade da terra
1871 New York World: entrevista com Marx
1871 Resolução da conferência de Londres sobre a ação política da classe
trabalhadora (com Engels)
1871 A guerra civil na França
1872 A alegada ruptura na Internacional (com Engels)
1872 Relatório para o Congresso de Hague
1875 Conspectos do livro de Bakunin “Estatismo e anarquia”
1875 Para a Polônia (com Engels)
1875 Crítica ao programa de Gotha
1879 Chicago Tribune: entrevista com Marx
1879 Reformistas no partido social-democrático da Alemanha (com
Engels)
1879 Carta circular a Bebel, Liebknecht, Bracke, et. al. (com Engels)
1880 Notas marginais sobre o Lehrbuch der politischen Oekonomie de
Adolph Wagner
1880 Introdução ao programa do partido dos trabalhadores franceses
1885 O capital, Livro II
1894 O capital, Livro III

221
* Anos em que foram escritos e não necessariamente publicados.
O que torna a interpretação econômica de Marx particular-
mente afastada da ortodoxia é a peculiar maneira como ele combi-
na diferentes raízes de seu pensamento na interpretação da econo-
mia. Há o fundamento filosófico alemão, alicerçado na visão de
Georg Hegel, com a dialética, a noção de ideias objetivadas e sua
teoria do progresso. Dele Marx extrai a interpretação econômica da
história e certas teses ontológicas e metodológicas. Há também o
materialismo de Ludwig Feuerbach e o conceito de alienação. Da
economia política, Marx serviu-se de fontes tais como Smith e
Ricardo, donde encontrou inspiração para sua teoria do valor
trabalho e outras noções: a divisão de classes sociais, a noção de
arbitragem entre mercados que iguala as taxas de lucro, a preocu-
pação com a evolução do capitalismo na teoria da queda tendencial
da taxa de lucro e uma miríade de conceitos. Finalmente dos socia-
listas utópicos ele extrai a ideia de construção de uma nova
sociedade com a abolição parcial da propriedade privada.
Tal confluência, em um único autor, de diferentes matrizes de
pensamento espalhadas em pelo menos três países (Alemanha,
França e Inglaterra) era novidade na evolução da ciência econômi-
ca. Ao mesmo tempo em que o fato confere originalidade e brilhan-
tismo aos escritos de Marx, torna-o uma espécie de corpo estranho
na tradição ortodoxa da economia. Resultam dele dificuldades de
interpretação em face do problema conceitual e de pressupostos
ontológicos nem sempre explícitos da análise de Marx.
Todavia, mesmo nutrindo-se de fontes alienígenas ao ambien-
te inglês, o pensador alemão seguiu certos modismos da Inglaterra.
Um exemplo é a admiração que sentia por Darwin e a crença de que
a economia deveria seguir o paradigma da biologia. É possível que
o trabalho desse biólogo tenha servido como uma base natural
científica para a ideia de luta de classes na história. De fato, Marx
acreditou que a teoria do materialismo dialético estaria destinada
a fazer pela história o que a teoria de Darwin fez pela biologia.19

19 Após examinar A origem da espécies, Marx escreve a Engels que o livro


“apesar de desenvolvido de maneira grosseiramente inglesa, contém a
base histórico-natural da nossa concepção [a filosofia materialista da
história]”. Apud. J. P. Netto, Karl Marx: uma biografia, p. 281. Os
historiadores das ideias investigam se Marx teria dedicado o Livro I de O
Capital a Darwin. Especula-se que Marx pensou mesmo em dedicar-lhe o
livro. Alguns sustentam que uma filha de Marx cogitou dedicar o Livro II a
Darwin. Nada disso está demonstrado. O Livro I, de fato, é dedicado, por
Marx, ao seu “inesquecível amigo, o impávido, leal e nobre vanguardeiro
do proletariado Wilhelm Wolff ”.
222
O CAPITAL
A obra econômica principal de Marx, O capital, está dividida em
três livros, além do quarto livro compilado por Engels. O Livro 1
tem por foco a explicação da natureza do capital e da origem do
lucro; não se preocupa em explicar preços reais. Os valores são os
únicos determinantes do valor de troca, abstraindo-se a diferença
na relação entre capitais. Trabalha inicialmente com o conceito de
mercadoria, depois analisa a transformação do dinheiro em capital
e a teoria do mais-valor. O Livro 2 começa por considerar as
variações na intensidade e na produtividade do trabalho e seus
efeitos sobre o mais-valor, discute a questão dos salários e o
processo de acumulação do capital, em que distingue da repro-
dução simples a acumulação capitalista. Também discute a coloni-
zação. O Livro 3 explica preços reais; como o livro anterior, ele não
foi totalmente terminado por Marx. O Livro 4 reúne uma série de
materiais de conteúdo mais histórico do que teórico.
A interpretação dessa obra requer situá-la no contexto das
crenças filosóficas básicas de Marx e de seu enfoque peculiar da
ciência econômica. Marx vê a economia de uma perspectiva históri-
ca. A produção é atividade social que assume diferentes “modos”,
dependendo da organização social e das técnicas. O capital não é
um elemento universal presente em todos os estágios da história; é
trabalho passado acumulado, não só instrumento de produção; é
fonte de geração do lucro de uma classe social no capitalismo. A
atividade econômica não se resume apenas à esfera das trocas: há
também a esfera da produção. É na produção em que se evidenciam
os papéis sociais, a desigualdade das classes; enquanto a troca, ou
esfera da circulação, é o sistema da igualdade formal sob o império
da mão invisível de Smith.
Mercadoria é um conceito básico em Marx e apresenta duas
características essenciais: valor de uso, por possuir propriedades
que satisfazem a necessidades humanas ou qualidades físicas que
geram utilidade, e valor de troca, por serem as mercadorias deposi-
tárias materiais de valor. O valor de troca pressupõe um elemento
comum a todas as mercadorias: o tempo de trabalho socialmente
necessário à produção. A mercadoria apresenta-se como incorpo-
ração material e social do trabalho empregado na produção. É a
cristalização de valores.
O conceito de trabalho também é central. Marx separa trabalho
útil, que cria valor de uso ou utilidade, de trabalho abstrato, que
cria valor de troca ou simplesmente valor. O trabalho abstrato é

223
medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, com o grau
médio de habilidade e intensidade em dada época.
No capítulo 1 do Livro 1 de O capital, intitulado “A Mercadoria”,
começa-se dizendo que a propriedade corpórea da mercadoria que
gera utilidade define seu valor de uso e que a mercadoria também
é portadora material de outro conceito, o valor de troca, expressão
de um conteúdo diferente da própria mercadoria. O valor de troca
é a forma de manifestação de um processo social. Marx exemplifica:
se um quarter de trigo é trocado por a quintais de ferro, deve haver
algo em comum nessas duas mercadorias. A troca pressupõe a
igualdade, e a igualdade pressupõe a comensurabilidade. Certa-
mente, o elemento comum não são as propriedades corpóreas que
geram valor de uso ou utilidades, pois não há nada fisicamente que
aproxime trigo de ferro. Ao se analisar o valor de troca, deve-se
abstrair o valor de uso, pois se trata de diferenças de quantidade e
não de qualidade entre as mercadorias. Ao se abstrair o valor de
uso, desconsidera-se também o caráter concreto ou útil do trabalho
associado. Importa agora serem elas produto de trabalho humano
abstrato ou cristalizações de uma substância social comum que é o
valor:
“O que há de comum que se revela na relação de troca ou
valor de troca da mercadoria é, portanto, seu valor.” (Karl
Marx, O capital )
O valor de troca é a forma de manifestação do valor. O trabalho
abstrato é a substância do valor, gerada com base no tempo de
trabalho enquanto força média de trabalho social ou tempo de
trabalho socialmente necessário com o grau médio de habilidade e
de intensidade de trabalho.
“Enquanto valores todas as mercadorias são apenas medi-
das determinadas de tempo de trabalho cristalizado.” (ibidem)
Mercadoria representa valor de uso somente para os outros
que a obtêm no mercado e não para seu próprio produtor. É um
valor de uso social transferido pela troca. O trabalho representado
nas mercadorias possui duplo caráter: é o trabalho produtor de
valor de uso e é o trabalho expresso no valor. O primeiro é o traba-
lho útil, trabalho cuja utilidade está representada no valor de uso.
A troca sempre ocorre entre mercadorias com valores de uso quali-
tativamente diferentes. O trabalho representado no valor é traba-
lho abstrato: mero dispêndio de força humana de trabalho, mero
dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos e mãos huma-
nos.

224
É preciso ter em mente o tipo de sociedade identificada por
Marx. Grosso modo, ele separa o capitalismo das sociedades tradi-
cionais. Enquanto nestas as relações entre os homens na produção
estão pré-estipuladas e são mantidas pela tradição, e mesmo o
destino dos bens produzidos é estabelecido pelo sistema de
obrigações recíprocas, no capitalismo os homens estão livres das
amarras sociais e se afirmam como indivíduos. Com a divisão social
do trabalho no capitalismo, as unidades produtivas tornam-se
autônomas e independentes da totalidade social. Tal condição é um
requisito para a produção de mercadorias. A relação entre produto-
res transforma-se em relação entre mercadorias:
“Apenas produtos de trabalhos privados autônomos e inde-
pendentes entre si confrontam-se como mercadorias.” (ibi-
dem)
As mercadorias têm como característica comum serem resul-
tado da produção, na qual ocorre a mudança na forma da matéria,
e também serem confrontadas no mercado umas com as outras. Em
sua forma natural, ela é objeto de uso e em sua forma valor é
portadora de valor. O valor não existe fora do contexto social:
“A objetividade de valor (da mercadoria) é puramente so-
cial – relação social de mercadoria para mercadoria.” (ibidem)
Marx dedica os dois primeiros capítulos de O capital a discutir
o processo de sociabilidade na produção das mercadorias, contra-
pondo a sociedade tradicional à sociedade de produtores privados
independentes e autônomos, em que a socialização se dá via
mercado. Discorrendo sobre tal processo, ele desenvolve a teoria
dos desdobramentos das formas valores até a generalização do
dinheiro.
A forma valor das mercadorias mais usual e comum é a forma
dinheiro, na qual os valores estão expressos em unidades monetá-
rias. Marx analisa o que entende como a gênese dessa forma dinhei-
ro do valor, partindo do estudo de uma forma mais simples na
relação de valor das mercadorias. A relação de valor de uma
mercadoria com uma única outra mercadoria de um tipo diferente
é o que denomina de “forma simples, singular ou acidental de
valor”. Se x unidades da mercadoria A valem y da mercadoria B,
ou x. A = y. B, A  B, A expressa seu valor em B, ou B serve de
material para essa expressão de valor. A é ativo e B, passivo. O valor
de A é a “forma valor relativa” e o de B é a “forma equivalente” ou
permutável, e a própria relação das mercadorias expressa o caráter
de valor de A. A e B não podem inverter os papéis, pois aí já seria
outra relação.
225
O trabalho humano cria valor, porém ele mesmo não é valor.
No caso anterior, o valor de A é uma objetividade concretamente
diferente de A e comum a B. Marx diz que o valor da mercadoria A
é expresso no corpo da mercadoria B, ou no valor de uso desta. No
processo, a forma natural de B torna-se a forma de valor de A, o
corpo de B espelha o valor da mercadoria A. Na relação x. A = y. B ,
x e y dependem do valor contido em A e B, medido em trabalho
abstrato. Se 10 varas de linho valem um casaco, o linho expressa
seu valor no valor de uso do casaco, enquanto forma de valor equi-
valente. O valor de uso torna-se forma de manifestação do valor.
A forma natural da mercadoria torna-se forma de valor para
outra mercadoria na relação de troca entre elas.
“Expressando a forma relativa de valor de uma mercadoria,
por exemplo, do linho, sua qualidade de ter valor como algo
inteiramente distinto de seu corpo e suas propriedades [...]
esta expressão mesma indica que nela se oculta uma relação
social.” (Karl Marx, O capital)
Na forma equivalente, dá-se o contrário; o corpo da merca-
doria expressa valor enquanto corporificação do trabalho humano
abstrato:
“Trabalho concreto se converte na forma de manifestação
de seu contrário: trabalho humano abstrato.” (ibidem)
O trabalho concreto privado produz mercadorias que, ao
serem confrontadas com outras, confronta-se também trabalho
com outro trabalho. O trabalho privado converte-se em forma dire-
tamente social de trabalho.
Bem compreendida essa forma simples de valor, Marx avança
para a “forma de valor total ou desdobrada”. Agora diversas merca-
dorias confrontam-se ao longo da cadeia: z mercadorias A = u
mercadorias B = v mercadorias C etc. É a forma relativa de valor
desdobrada. Agora, a mercadoria A está em relação social com todo
o mundo das mercadorias. Evidencia-se que:.
“Não é a troca que regula a grandeza de valor, mas, ao
contrário, é a grandeza de valor da mercadoria que regula suas
relações de troca.” (ibidem)
Invertendo-se a série, Marx chega à “forma geral de valor” em
que todas as mercadorias em questão (um casaco, 10 libras de
chá...) são trocadas por 20 varas de linho. Nesse caso, esta última
funciona como equivalente geral, em que todas as mercadorias,
exceto ela mesma, representam seus valores de modo simples e

226
unitário, isto é, na mesma mercadoria. O linho funciona como forma
de valor simples e comum a todas as mercadorias, que também
permite relacionar todas elas entre si por meio do linho.
“Essa forma é a primeira a relacionar realmente as merca-
dorias entre si como valores, ou as deixa aparecer recipro-
camente como valores de troca.” (ibidem)
Finalmente, Marx chega à forma dinheiro na qual todas as
mercadorias têm seu valor representado numa mercadoria de
aceitação geral que assume a função de dinheiro: um casaco, 20
varas de linho (...) = duas onças de ouro. A forma dinheiro é o
desdobramento da forma mercadoria simples e esta é o gérmen da
forma dinheiro. O dinheiro
“[...] é a forma de manifestação do valor das mercadorias, no
qual as grandezas de valor das mercadorias se expressam
socialmente.” (ibidem)
O dinheiro é mercadoria geral que funciona como materia-
lização do trabalho humano abstrato:
“A forma dinheiro é apenas o reflexo aderente a uma única
mercadoria das relações de todas as outras mercadorias.”
(Karl Marx, O capital)
A forma dinheiro é a manifestação de relações humanas ocul-
tas. Ela fornece à mercadoria não seu valor, mas sua forma valor
específica. Se o dinheiro, como valor, é apenas um invólucro reifi-
cado do trabalho humano despendido na mercadoria, ele pode ser
pensado como um mero signo. No entanto, o signo é um produto
arbitrário da reflexão dos homens, enquanto o valor expresso no
dinheiro é tempo de trabalho, um processo social verdadeiro e não
arbitrário.
Após esse arrazoado, Marx discute, também no capítulo 1, o
que denomina de segredos do caráter fetichista da mercadoria. Sua
argumentação adquire tom bastante peculiar. Diz que a mercadoria
é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e ma-
nhas teológicas. Os homens trabalham uns para os outros, e o
trabalho adquire uma forma social. O trabalho ganha caráter enig-
mático quando assume a forma mercadoria. As relações entre
produtores tornam-se relação social entre mercadorias, uma rela-
ção existente fora deles, uma relação entre objetos. O complexo de
trabalhos privados transforma-se em trabalho social total e o
fetichismo adere aos produtos do trabalho. No capitalismo, temos
relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as
coisas, pois...
227
“[...] somente dentro da troca os produtos recebem uma
objetividade de valor socialmente igual, separada da sua
objetividade de uso, fisicamente diferenciada.” (ibidem)
Na sociedade de troca, na produção já se considera o caráter
de valor das coisas. Há um duplo caráter dos trabalhos privados:
por um lado, satisfazem a determinada necessidade social enquan-
to trabalho útil e são participantes do trabalho total na divisão
social do trabalho. Por outro lado, só satisfazem à necessidade do
produtor quando o trabalho privado útil é permutável por toda
espécie de trabalho privado que lhe equivale.
Em outras formas de produção pré-capitalistas não existe o
misticismo do mundo das mercadorias. Na Idade Média, a relação
entre mercadorias é substituída pela dependência pessoal. No
almejado comunismo, acredita Marx, a associação de homens livres
com meios de produção comunais irá conferir transparência nas
relações entre os homens, e a distribuição de riquezas se dará pelo
tempo de trabalho de cada qual.
No capítulo 2 do Livro 1, Marx explicita o modelo de uma
sociedade na qual os homens representam meras funções subordi-
nadas às exigências das mercadorias no processo de troca. Eles são
reduzidos ao papel de guardiões ou possuidores das mercadorias.
Para que as mercadorias se refiram umas às outras como tal, é
necessário que seus guardiões se relacionem entre si como pessoas.
A troca pressupõe um ato de vontade comum a ambos os partici-
pantes dela e o reconhecimento recíproco como proprietários
privados. As relações de vontade expressam-se num contrato,
reflexo da relação econômica que por sua vez dá conteúdo à relação
jurídica.
As pessoas são representantes de mercadorias, são personifica-
ções das relações econômicas ou personagens econômicos encarnados.
Para a mercadoria, a outra mercadoria que se contrapõe a ela é tão
somente forma de manifestação de seu próprio valor. O valor de uso da
mercadoria confere a ela ser portadora de valor de troca. A troca realiza
a mercadoria como valor. Para o possuidor dela, a troca é um processo
individual; ele visa ao valor de uso da outra mercadoria, não se impor-
tando se sua mercadoria tem valor de uso para o outro. A relação entre
mercadorias M-M’ é um processo genericamente social. M’ funciona
como equivalente particular de M, M é o equivalente geral de qualquer
M’. M para o outro portador é M’, o equivalente particular. Qualquer M
pode entrar na forma valor geral relativa, para comparar-se valores. As
mercadorias defrontam-se como produto ou valor de uso. A ação social
faz de M um equivalente geral, como representação universal de valo-
228
res. A forma natural de M é a forma equivalente socialmente válida.
Para a circulação, a mercadoria necessita de uma representação exter-
na, que pode dar-se em outra mercadoria ou em dinheiro; a forma de
representação independe do valor de M, no que Marx denomina de
processo de duplicação da mercadoria.
Quando se representa: x da mercadoria A é trocada por y da
mercadoria B, a troca direta possui só por um lado a forma da
expressão simples do valor. Na forma de troca direta dos produtos,
x objetos de uso de A são trocados por Y objetos de uso de B, em
que A e B não são mercadorias antes da troca. Há um processo de
alienação recíproca: os homens como proprietários privados, como
pessoas independentes, veem-se diante de um estranhamento recí-
proco. Na tribo primitiva, a relação de troca era inteiramente
casual; os produtos eram permutáveis pela vontade dos possuído-
res de aliená-los, as mercadorias tinham utilidade para as necessi-
dades imediatas e para a troca. Dissolve-se nela a separação entre
valor de uso e valor de troca; valor não é independente de valor de
uso na troca, a relação de troca já está estabelecida antes da produ-
ção e a grandeza de valor é fixada pelo costume.
Explicada a natureza do processo de socialização subjacente às
trocas, Marx lança-se no Livro 1 a descrever os esquemas de
circulação. No sistema não capitalista, a produção simples de mer-
cadorias é representada por M-D-M’, ou seja, o dinheiro D é mero
intermediário das trocas. No sistema capitalista, ocorre a sequência
D-M-D’, na qual D’ > D. A circulação começa e termina com dinheiro,
e termina com um valor maior do que o inicial. A diferença é o mais-
valor. Qual o papel que o mais-valor representa no capitalismo e
qual a sua origem? Marx começa dizendo que:
“A busca de quantidades cada vez maiores de mais-valor é
a força motivadora que move todo o sistema capitalista.” (ibi-
dem)
Sobre a origem do mais-valor, ele não é formada na esfera da
circulação, mas na produção. Os capitais comerciais e financeiros
(que ganham juros) são meras formas parasitárias de rendas que
não estão envolvidas no processo da verdadeira criação do mais-
valor. A fonte dele é a diferença entre o valor da força de trabalho,
ou trabalho potencial, como mercadoria e o valor da mercadoria
produzida que incorpora o trabalho concretizado, ou o valor de uso
consumido da força de trabalho. A força de trabalho é a única
mercadoria que gera valor em seu consumo ou uso. A força de
trabalho é diferente do trabalho executado ou incorporado à
produção. A primeira é mercadoria, e a última, seu valor de uso. O
229
valor da mercadoria trabalho corresponde ao valor da subsistência
da família de um operário, não estritamente no sentido biológico
(Boxe 7.3). Há de se levar em conta também os diferentes trabalhos
entre as diferentes ocupações. Marx cria as terminologias “trabalho
simples” e “trabalho complexo” como trabalho simples potencia-
lizado ou multiplicado. Um pequeno quantum de trabalho comple-
xo conteria uma grande quantidade de trabalho simples. O antigo
problema da heterogeneidade do trabalho, já enfrentado por
Ricardo, também fica mal resolvido em Marx, a despeito de seus
exercícios conceituais.

Boxe 7.3 O valor da mercadoria força de trabalho: por que o mais-


valor não é um roubo.

Marx aponta o mais-valor como produto da exploração da força de traba-


lho, mas não se trata de roubo. O fato de o trabalho ser remunerado abaixo do
que ele é capaz de transferir de valor às mercadorias não viola as regras do
jogo capitalista. Como toda mercadoria, a força de trabalho vale a quantidade
de trabalho incorporada em sua produção, no caso a subsistência do trabalha-
dor. O que há de especial nessa mercadoria é que ela é capaz de criar valor
quando posta em uso na produção, transferindo ao produto mais do que foi
pago por ela. Trata-se de uma peculiaridade do trabalho, de exploração e não
roubo.

Marx fala em trabalho necessário e trabalho excedente. O


primeiro representa o número de horas diárias necessárias para
pagar o valor do trabalho, ou seja, é o montante de horas trabalha-
das que remunera a subsistência do operário. Por exemplo, de oito
horas diárias trabalhadas suponha que quatro remunerem o
trabalho. As demais quatro horas representam o trabalho exceden-
te. No trabalho necessário, ocorre o processo de produção do valor
da força de trabalho. O trabalho excedente é apossado pelo capita-
lista, representa o mais-valor. Assim, Marx desvenda a fórmula da
circulação do capital industrial como sendo M-D ... P ... D’-M’. A
origem do mais-valor está na esfera da produção, representada por
P. Todos os instrumentos de produção transferem ao produto seu
valor, ou o trabalho incorporado neles, mas isto não ocorre com a
mercadoria força de trabalho. Essa é a fonte do mais-valor, ao
transferir ao produto mais do que ela vale.
Marx identifica dois tipos de capitais: capital constante c e
capital variável v. O primeiro representa os gastos com os meios de
produção, e o segundo, gastos com a força de trabalho. O capital

230
total C é expresso como a soma de capital constante e variável C =
c + v. O valor no final da produção C’ é maior que C. A diferença
entre eles é o mais-valor s. Portanto, C’ = c + v + s. A taxa de mais-
valor define-se como s/v, igual à razão entre trabalho excedente e
trabalho necessário. Essa taxa mede o grau de exploração da força
de trabalho pelo capital: quantas horas o operário trabalhou para
gerar lucros para o capitalista em relação a cada hora que ele
trabalhou para gerar o valor equivalente à sua própria subsistência.
Definida a noção de taxa de mais-valor, Marx identifica outro
conceito-chave na formulação da teoria da acumulação capitalista:
a composição orgânica do capital, nada mais que a relação entre
capital constante e variável c/v. De posse desses conceitos, Marx
passa a descrever os fatos que acompanham a acumulação crescen-
te de capital, tendência inexorável do capitalismo. Simultaneamen-
te a ela, o processo de concorrência entre capitalistas leva à concen-
tração econômica, pela ruína dos pequenos capitalistas que não
podem concorrer com os grandes que se valem das economias
proporcionadas pela maior escala de produção, adaptando-se me-
lhor ao ambiente de pressão para aumento de produtividade. Marx
mostra como, no processo, a taxa de lucro tende a decrescer com o
tempo. A acumulação leva, com o tempo, ao aumento na composi-
ção orgânica do capital c/v. O valor total dos meios de produção
tende a aumentar em ritmo mais rápido que o valor da força de
trabalho, isto porque as novas tecnologias de produção concentra-
da empregam mais máquinas, equipamentos, insumos e instru-
mentos físicos de produção do que mão de obra. Marx demonstra
que decorre então a queda na taxa de lucro. O argumento é simples.
A taxa de lucro é medida pela razão s/C entre o trabalho excedente
e o capital total. Ora, podemos escrever:
s/C = s/(c + v) = (s/v)/(c/v + v/v) = (s/v)/(1 +(c/v))
Portanto, álgebra da mais trivial mostra que a taxa de lucro é a
razão entre a taxa de mais-valor e 1 mais a composição orgânica do
capital. Logicamente se a razão do mais-valor for constante, um
aumento em c/v leva à queda na taxa de lucro. Marx acredita que,
na prática, a taxa de mais-valor s/v é constante ou só aumenta até
certo limite. O declínio na taxa de lucro não implica a queda do lucro
total, pois este depende não só da taxa de lucro, mas também da
quantidade de capital. Marx acredita que a massa de lucro total
tende a aumentar mesmo com a queda na taxa de lucro.
Diversas influências compensatórias podem postergar o pro-
cesso de queda na taxa de lucro. Marx discorre extensamente sobre
elas no Livro 3. De início, há de se considerar que a taxa de lucro
231
pode ser mantida mesmo com aumento na composição orgânica do
capital, por meio de expedientes que elevam a taxa de mais-valor,
tais como o aumento na intensidade da produção, ou seja, a intensi-
ficação no trabalho pelo controle e administração científica dele
por via de novas técnicas de produção em massa: taylorismo,
fordismo etc. Há ainda a possibilidade de aumentar-se a jornada de
trabalho. A taxa de mais-valor pode crescer também quando os
salários caem abaixo do valor da força de trabalho, o que ocorre no
curto prazo pela superpopulação relativa de operários e a presença
de um grande exército de desempregados. Outro expediente para
sustentar a taxa de lucro seria o barateamento do capital constante
pelo progresso técnico, que tornaria a razão c/v mais estável.
Finalmente temos o comércio exterior. Nesse ponto, Marx incorpo-
ra o que seria depois a base da teoria do imperialismo. O capitalis-
mo necessita de um mercado sempre em expansão para elevar as
taxas de mais-valor. A possibilidade de explorar trabalhadores do
mundo inteiro faz com que o capital variável v caia, pela queda de
salários, e se eleve o coeficiente s/v.
Para explicar como os salários são mantidos no nível de subsis-
tência, Marx não aplica a teoria da população de Malthus, já que
para ele a própria lei que comanda o crescimento da população é
condicionada historicamente. Ao rejeitar uma teoria da população
tida por ele como pretensamente universal e a-histórica, Marx es-
creve:
“Todo modo de produção histórico especial tem suas
próprias leis especiais de população historicamente válidas
apenas dentro de seus limites.” (Karl Marx, O capital).
A teoria do salário de subsistência de Marx parte do seguinte
esquema (Figura 7.2):

Figura 7.2 A teoria dos salários de Marx.

Acumulação Excesso de
trabalhadores Reserva de
operários

Salário de Concorrência entre


subsistência operários

232
A acumulação do capital faz-se acompanhada de uma popu-
lação excedente de trabalhadores que, não conseguindo empre-
go, irá compor um exército de operários de reserva vivendo
abaixo do nível de subsistência. A concorrência entre os que
conseguem uma colocação comprime as taxas salariais até o
nível de subsistência. Como para o patrão o nível de salários é
dado enquanto variável de mercado, a resposta à tendência de
queda nas taxas de lucro dá-se pelo aumento na produtividade
do trabalho associando-o a mais capital. Mudando-se as técni-
cas de produção, máquinas poupadoras de mão de obra elevam
a relação entre capital e trabalho empregados. Essa resposta
dos capitalistas recompõe o contingente de desempregados,
forçando a queda salarial.
Se tal estratégia parece convir aos interesses de cada capita-
lista, surge aí, para o sistema todo, um problema de desequilíbrio
setorial. Com a queda de salários e da massa salarial relativa, há
um problema de insuficiência de demanda para bens de consumo.
Marx visualiza a produção na sociedade estando dividida em
setores: o setor produtor de bens de consumo ao lado do setor
produtor de bens de capital. Para a expansão tranquila e contínua
da economia, necessita-se de uma troca equilibrada entre eles. A
queda de salários gera um excesso de capacidade no setor de bens
de salário. A resposta natural a esse excesso é a redução na de-
manda por máquinas e equipamentos. Com isso, o excesso de
capacidade é exportado para o setor de bens de capital. O dese-
quilíbrio recorrente entre setores seria, para Marx, a causa da
depressão econômica.
Nos Livros 1 e 2 de O capital, Marx discorre sobre tais temas,
apresentados aqui sumariamente, intercalando-se importantes e
extensas digressões históricas. Marx também apresenta, nesses
dois livros iniciais, sua versão da teoria do valor-trabalho. Ele
acredita que os preços reais poderiam se desviar dos preços
previstos pela teoria do valor-trabalho mais pura e simples. No
entanto, a questão da formação dos preços só seria atacada por ele
no Livro 3 da obra em questão.
Ainda no Livro 1 de O capital, Marx expõe as condições do caso
simples em que os preços são iguais ao valor de produção. O valor
da mercadoria é a soma de dois componentes: o trabalho morto e o
trabalho vivo, ou seja, o trabalho passado que aderiu aos fatores
físicos de produção e o trabalho corrente. O trabalho morto é
associado ao capital constante c. O trabalho vivo desdobra-se em
trabalho necessário que produz o capital variável v e trabalho exce-

233
dente que gera o mais-valor. Portanto, o valor w é expresso como
w = c + v + s. Na hipótese simplificadora de que s/v e c/v sejam o
mesmo em qualquer indústria, a taxa de lucro r, como vimos r =
(s/v)/(1 + (c/v)), é a mesma em todas elas. Definindo os preços de
produção como a soma dos custos dos fatores produtivos c, mais o
custo do trabalho usado na produção v e mais a margem de lucro
total r . C, demonstra-se trivialmente que:
p = c + v + r (c + v) = c + v + [(s/v) / ((c + v) /v))] (c + v)
=c+v+s=w
Ou seja, o valor é igual ao preço de produção.20 Marx sabia, no
entanto, que o preço de produção de uma mercadoria em particular
poderia diferir do valor, e que uma análise mais detalhada teria de
examinar, em cada setor, os desvios do preço de produção em rela-
ção ao valor e como os preços de produção são formados com base
em uma taxa de lucro média da economia. Ele visualiza que o mer-
cado se encarregaria de formar uma taxa de lucro média e os preços
de produção; no entanto, ele não descreve em detalhe todo o
processo, e oferece uma explicação um tanto nebulosa nesse senti-
do. Marx se preocupou mais em demonstrar a igualdade na total-
zação de valores e preços de produção para a economia como um
todo.
Conforme já visto, para Marx o trabalho abstrato é a substância
do valor. Os preços são a forma empírica dessa substância. Preços
apresentam diversas causas empiricamente observáveis. Mas há
uma ligação quantitativa entre valores e preços. No famoso “pro-
blema da transformação”, tratado no Livro 3 de O capital, trata-se
de destrinchar causas e efeitos sobre os preços a fim de encontrar
teoricamente a relação quantitativa entre a substância (valor) e sua
manifestação empírica (preço). No processo concreto de determi-
nação dos preços, os capitalistas calculam os custos de produção e
somam uma margem percentual (= taxa socialmente média de
lucro). Na fórmula do preço de produção, p = c + v + r(c + v), tem-
se a expressão em termos de custos monetários e taxa de lucro.
Voltando-se agora aos conceitos de trabalho vivo (LV) e trabalho
morto (Lm), Lm é o valor incorporado nos meios de produção, LV
representa o trabalho empregado no período corrente de produz-

20Note que a taxa de lucro r é a taxa de lucro média da economia e não a


taxa específica ao capital particular empregado em certo setor. Ou seja, o
valor equivale ao preço de produção para o capital como um todo, ou num
setor que tem a composição orgânica igual à composição média da econo-
mia.
234
ção, tem-se que w = Lm + Lv . Em termos de trabalho necessário (Ln)
e trabalho excedente (Le), Lv= Ln+ Le e, sendo assim, w = Lm + Ln+
Le.
Marx examina a correspondência entre fórmulas, entre a fór-
mula com os vários tipos de trabalho (w = Lm + Ln+ Le) e a fórmula
com os componentes de custo do preço: p = c + v + r(c + v). Ele
examina possíveis falhas nessa correspondência. Se a taxa de lucro
é dada por r = (s/v)/(1 + (c/v)), as jornadas de trabalho e os
salários são uniformes, tem-se então a mesma taxa de mais-valor
(s/v) entre diferentes setores. Tem-se ainda a taxa de lucros
uniforme dada a arbitragem entre setores. Sendo assim, pela
fórmula da taxa de lucro, também a composição orgânica (c/v)
teria de ser a mesma entre eles!
Marx sabia, entretanto, que as várias indústrias trabalham com
diferentes composições do capital c/v de modo que p  w. Mostra-
se, de início, que a mesma taxa de mais-valor em diferentes
indústrias com diferentes composições do capital leva a diferentes
taxas de lucro. No exemplo numérico da Tabela 7.1, supõe-se o
mesmo capital total C para todas elas e que em cada caso somente
uma parcela do capital total é consumida.
Observa-se na Tabela 7.1 que em todas as indústrias a taxa
de mais-valor é de 100% já que s = v. O capital total é $ 100
como aparece no cálculo da taxa de lucro na última coluna,
então apenas uma parcela dele é consumida durante um perío-
do de produção, já que c + v < 100 . Note que cada indústria
apresenta diferente relação c/v e que em cada qual calcula-se
uma taxa de lucro diferenciada das demais.

Tabela 7.1 Exemplo numérico em que a taxa de mais-valor é a


mesma em diferentes indústrias.

235
O problema para a teoria de Marx, que este simples exem-
plo numérico coloca, é que a hipótese realista de diferentes
composições de capital entre as indústrias leva à desigualdade
nas taxas de lucro, mesmo que as taxas de mais-valor sejam
iguais. Esse resultado é incompatível com o modelo de concor-
rência que tende a igualar a taxa de lucro de todas as indústrias
(os capitais particulares). Se fixarmos uma mesma taxa de lucro
para todas, digamos de 20%, o mais-valor s seria de 20 em to-
das as indústrias e neste caso as taxas de mais-valor ficariam
conforme indicado na Tabela 7.2.

Tabela 7.2 Caso em que as taxas de lucro são iguais entre as


indústrias.

Se as taxas de salários e a duração da jornada de trabalho são


iguais entre todos os setores, respectivamente pela arbitragem
entre mercados e por imposição legal, as taxas de mais-valor teriam
que ser iguais e não diferentes como na tabela acima. A solução a
esse aparente paradoxo consiste em separar dois conceitos de taxa
de mais-valor: como relação s/v (relação de valores) e como a
relação entre trabalho excedente e trabalho necessário (relação de
tempos). A taxa de mais-valor expressa em tempo de trabalho
excedente/tempo de trabalho necessário é o mais-valor realizada
na esfera da produção (tende a ser a mesma entre todos os setores
apesar das diferenças em c/v). O mais-valor como s/v é criada na
esfera da circulação (quando diferem c/v entre setores, as próprias
forças da concorrência que igualam as taxas de lucro asseguram
que s/v não seja igual entre eles). A razão tempo de trabalho
excedente/tempo de trabalho necessário é sempre a mesma em
todos os setores independentemente das diferenças nas composi-
ções orgânicas do capital. O mais-valor na esfera da circulação (s/v)
não precisa ser igual entre os setores. Se a razão s/v é diferente
236
entre os setores, isto não está em contradição com o modelo de
Marx, pois ele só iguala as taxas de mais-valor medidas em tempo
de trabalho!
No Livro 3 de O Capital, Marx elabora um quadro no qual os
preços são proporcionais aos valores, mas a composição orgânica
do capital difere entre os setores. Ele calcula a taxa média de lucro
da economia e elabora novo quadro em que tais preços foram
alterados. A Tabelas 7.3 mostra quais as taxas de lucro diferentes
que seriam obtidas se cada setor vendesse sua produção a um
preço suficiente apenas para realizar todo o mais-valor gerado
nesse setor.

Tabela 7.3 Taxas de lucro quando os preços são iguais aos


valores.

A Tabela 7.4 mostra a situação depois que a concorrência entre


empresas tenha uniformizado as taxas de lucros entre diferentes
setores.

Tabela 7.4 Desvios dos preços em relação aos valores com taxas
de lucro iguais.

Na construção das tabelas, foram observadas as seguintes


condições:

237
1. Cada setor tem uma taxa de lucro igual à taxa média de lucro
agregado.
2. Os aumentos e as reduções dos preços nos vários setores se
compensam perfeitamente, de modo que o total de todos os
preços (ou nível médio de preços) é o mesmo nas duas tabe-
las.
3. Como efeito das mudanças nos preços, o mais-valor aumenta
em alguns setores e se reduz em outros, mas o mais-valor
agregado permanece constante quando de passa de uma
tabela à outra. As tabelas anteriores ilustram o processo em
que diferenças nas composições orgânicas do capital levam
os preços a se desviar dos valores, de tal modo que se opera
um rearranjo das quantidades existentes de mais-valor
gerado previamente no processo de produção.
Embora convincente, a análise de Marx tinha problemas. Isso
porque ele transformara os preços de produção mantendo os
preços dos insumos proporcionais aos valores. Assim, cada merca-
doria ficou com dois preços diferentes, um como produto e outro
como insumo. Marx alerta quanto à dificuldade nesta passagem do
Livro 3 de O Capital:
“Da mesma forma que o preço de produção de uma merca-
doria [preço do produto] pode divergir de seu valor, também
o preço de custo [preço dos insumos] de uma mercadoria no
qual estejam incluídos os preços de produção de outras merca-
dorias pode se situar acima ou abaixo daquela parte de seu
valor total que é formada pelo valor dos meios de produção
que entram em sua composição. É preciso ter em mente este
significado modificado do preço de custo e, portanto, ter em
mente também que se o preço de custo de uma mercadoria for
igualado ao valor dos meios de produção usados em sua
fabricação é sempre possível errar. Nossa presente investiga-
ção não exige que entremos em mais detalhes neste ponto.” (O
Capital, Livro 3)
Conforme se percebeu depois, tal dificuldade afeta substan-
cialmente os resultados apontados por Marx. Pouco depois da
publicação do Livro 3 de O Capital, foi encontrada uma solução
matemática que transformava os preços tanto do produto como do
insumo. Contudo, à luz da solução inicial, só duas das três condições
de Marx se mantinham: as taxas de lucro setorial eram iguais e o
montante total do mais-valor nos preços não transformados era
igual ao total nos preços transformados. No entanto, a transforma-
ção dos preços alterava o nível de preços de modo que o total dos
238
preços transformados divergia do total dos preços não transforma-
dos.
As soluções que vieram depois mostram que era geralmente
verdade que as várias soluções matemáticas que transformavam
tanto os preços dos insumos quanto os dos produtos deixavam
intactas apenas duas das três igualdades de Marx. Surge uma ampla
literatura com numerosas formulações, cada qual procurando res-
gatar o espírito da análise original.
A Tabela 7.4 mostra que os vários desvios observados dos
preços de produção em relação ao valor cancelam-se entre todos os
setores. Portanto, o total das mercadorias produzidas conjunta-
mente consideradas apresenta valor e preço de produção iguala-
dos. Os desvios em cada caso só ocorrem porque as composições
orgânicas do capital são diferentes da média. Uma mercadoria que
tem uma proporção entre insumos fixos e variáveis igual à da
economia em sua totalidade tem seu preço determinado exatamen-
te pelo valor. Ela poderia ser usada como um numerário, já que seu
preço não se desvia do valor. Então o numerário é qualquer merca-
doria produzida com a composição média de capital da economia.
A solução de Marx ao problema do numerário foi criticada por
marxistas que se debruçaram no problema. Piero Sraffa, no século
XX, demonstrou que sem uma medida invariável do valor não se
estabelece necessariamente o vínculo apropriado entre valores
medidos em trabalho e preços. O Livro 3, de fato, não chegou a ser
completado, e lacunas na construção de Marx foram percebidas por
seus seguidores.

A VISÃO DA HISTÓRIA
Esta seção propõe-se a discorrer não tanto sobre a economia e
a filosofia de Marx, suficientemente tratadas nas seções anteriores
para os propósitos do capítulo, mas sobre a visão histórica subja-
cente a suas crenças básicas. Antes de tecermos comentários mais
críticos e analíticos a respeito dela, veremos em detalhes o discurso
de Marx exemplificado no Manifesto comunista.
No começo do Manifesto comunista, Marx (e Engels) escreve
que existem duas classes sociais básicas no capitalismo, burgueses
e proletários. Os primeiros são os proprietários dos meios de
produção e os segundos os que vendem força de trabalho. Em
seguida, assevera que a história da sociedade tem sido a história da
luta de classes, que sempre termina pela reconstituição da socie-
dade com a destruição das classes envolvidas. A divisão da socieda-
239
de em diferentes classes sempre existiu e os antagonismos de
classe permanecem na sociedade burguesa, agora simplificados
pelas duas classes de que falamos. Antes, havia outras classes; em
Roma, patrícios, guerreiros, plebeus e escravos; na Idade Média,
senhores, vassalos, mestres, companheiros, aprendizes e servos. A
expressão burguês vem de burgos, feiras em volta de castelos ou no
encontro de rotas que depois se transformaram em cidades. A
colonização, a navegação, o comércio, o uso generalizado da moeda,
a indústria e um número de outros desenvolvimentos desestabili-
zaram a sociedade feudal. O sistema manufatureiro substituiu as
velhas guildas no atendimento de novos mercados e a divisão entre
as guildas deu lugar à divisão do trabalho dentro de cada oficina.
Marx continua o “Manifesto” dizendo que com a revolução
industrial e o surgimento de máquinas irrompe-se a grande indús-
tria. A indústria cria excedentes e em busca de novos mercados foi
dado impulso à navegação e a outros meios de transporte e de
comunicação. A consequência de tudo isso foi o desenvolvimento
da burguesia, um longo desenvolvimento com uma série de
revoluções nos modos de produção e de troca. A projeção
econômica da burguesia fez-se acompanhar do progresso no campo
da política. Associando-se ao rei, a burguesia conquista o poder. O
absolutismo da primeira fase do poder burguês transformou-se no
Estado representativo moderno, que Marx avalia:
“O governo do Estado é apenas um comitê para gerenciar os
negócios de toda a burguesia.” (Karl Marx, Manifesto comunis-
ta)
Marx enaltece o papel revolucionário da burguesia ao romper
a antiga tradição em troca de relações impessoais de mercado.
Mesmo as profissões mais nobres transformam-se em trabalho
assalariado; até relações familiares viram relações monetárias. Nas
palavras de Marx, a burguesia está sempre revolucionando os
meios de produção, as relações de produção e as relações sociais.
Ela invade todo o globo em busca de mercado e globalização da
produção, promovendo também o intercâmbio das criações
intelectuais e criando, com isso, a impossibilidade do isolamento
nacional também no campo da cultura. Todas as nações são
arrastadas para a civilização. Na guerra de conquista de mercado-
rias a baixo preço, a burguesia submete o campo à cidade. Irrompe
tendência de concentração não só demográfico-espacial, mas
também da propriedade dos meios de produção e concentração
política, promovendo a criação dos Estados nacionais.

240
Marx enfatiza o progresso tecnológico trazido pela burguesia.
Escreve que no passado as relações feudais tornaram-se incompatí-
veis com o desenvolvimento das forças produtivas. Quando tais
relações viram entraves, elas são despedaçadas, surge o livre
comércio com suas instituições sociais e políticas próprias. Agora,
no momento em que vive Marx, a propriedade burguesa tinha-se
tornado um entrave para as forças produtivas. A burguesia destrói
as forças produtivas com as crises de superprodução do
capitalismo e busca desesperadamente novos mercados. Ela pro-
duz o proletariado que a matará.
Lê-se no “Manifesto” que no capitalismo só há emprego aos
trabalhadores ingressantes com ampliação do capital. Para o capi-
tal o trabalhador é uma mercadoria, um ser alienado que funciona
como apêndice da máquina e que se submete a um trabalho enfado-
nho em troca de salários cada vez menores. Cada vez mais, diagnos-
tica Marx, acentua-se a exploração com o aumento das horas
trabalhadas. Homens, mulheres e crianças são igualados no chão
apertado das fábricas. Os trabalhadores também são vítimas de
outros variados membros da burguesia, como proprietários,
varejistas e usuários. Mesmo a classe média vira proletariado, à
medida que sucumbe à concorrência e aos novos métodos de pro-
dução.
Ao mesmo tempo em que foram reunidos nas fábricas sob a
sanha do capital, a organização militar dos operários no interior
das fábricas facilitou a evolução de sua luta, aproximando-os de
modo que evidencie a unidade de propósitos e de interesses. De
início, os proletários estiveram ao lado da burguesia, combatendo
os inimigos dos inimigos. A burguesia, em sua luta contra a
aristocracia e contra a burguesia de países estrangeiros, conta com
a ajuda da classe trabalhadora. A vitória da burguesia também foi a
vitória dos trabalhadores. No amadurecimento da consciência de
classe do proletariado, as diferenças de tarefas e salários são
igualadas. Surgem conflitos individuais que vão assumindo o cará-
ter de conflito de classes. Surgem sindicatos, depois a luta trans-
forma-se em motim. Ela não tem êxito imediato, mas une os traba-
lhadores.
Embora parte da burguesia venha a juntar-se ao proletariado,
a pequena burguesia jamais perde seu caráter conservador; só o
proletariado é a classe revolucionária, exclama Marx. Em sua luta,
sem se identificar com os valores de sua sociedade, ele volta-se
contra a propriedade privada. A luta primeiro adquire caráter
nacional, visando à derrubada violenta da burguesia local e, depois,

241
alcance mundial. Assim, conclui Marx: a burguesia produz seus
próprios coveiros.
Marx continua sua pregação no “Manifesto”: somente os comu-
nistas identificam-se com os proletários. Não enfatizam a naciona-
lidade e sim o interesse comum de todos os proletários e visam à
conquista do poder político por eles. A teoria dos comunistas,
acredita Marx, é a expressão geral das condições reais de uma luta
de classes existente no atual momento histórico. Tal luta visa à
abolição da propriedade privada burguesa, não da propriedade em
geral, e o fim da exploração. Os trabalhadores não têm nada a
perder, pois a propriedade pessoal deles já foi abolida pelo
capitalista, trata-se agora de extinguir a propriedade burguesa dos
meios de produção, a fim de que a apropriação de produtos da
sociedade não seja destinada a subjugar o trabalho alheio.
O comunismo, assevera Marx, também prega o fim da hostili-
dade entre as nações: a nacionalidade é uma ilusão, e trabalhadores
não têm pátria. Todos eles devem lutar por uma causa comum e
manter-se unidos a despeito das diferentes nacionalidades, conclui
Marx com a famosa frase:
“Trabalhadores de todo o mundo: uni-vos.” (Karl Marx, Ma-
nifesto comunista)
Dessa união, profetiza Marx, surgirá uma nova sociedade que
porá fim ao antagonismo de classe; em que o desenvolvimento de
cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos.
Então o Manifesto comunista é, além de um panfleto para a
mobilização dos trabalhadores pela causa comunista, notável texto
de interpretação da história e da sociedade escrito numa linguagem
simples e direta. É difícil fazer-se uma avaliação isenta da visão da
história apregoada por Marx, já que ela é carregada de elementos
normativos que envolvem juízo de valor. Decorridos mais de 150
anos desde que ele foi escrito, tendo o mundo percorrido um longo
caminho de guerras e de revoluções, alguma coisa pode ser dita
com relação à visão da história de Marx sem ferir suscetibilidades
de seus admiradores.
Primeiramente é preciso situar o lugar de Marx na história do
pensamento econômico. É um autor importante, mas cujo alcance
de suas ideias no desenvolvimento da economia como ciência tem
sido por vezes exagerado. É dito que ele influenciou J. M. Keynes e
outros da escola keynesiana. O maior intervencionismo das políti-
cas keynesianas foi interpretado como uma concessão a Marx, ao
reconhecer que o capitalismo tem falhas e não funciona de modo

242
automático. No entanto, entender como uma concessão a Marx o
intervencionismo das políticas keynesianas é no mínimo extrema-
mente polêmico, por várias razões, a começar pela confusão entre
intervencionismo e socialismo, pelo significado teórico e político da
concepção de Estado subjacente a cada autor e pela própria
existência de vários intervencionismos não-socialistas importantes
anteriores a Keynes. O intervencionismo, aliás, sempre foi coevo ao
liberalismo, servindo-lhe como contraponto; e isto não só na
história do capitalismo, pois de forma embrionária, o debate
remonta à Grécia antiga. O que marca o intervencionismo keyne-
siano (o uso da política econômica para estabilização como forma
de reativar a demanda agregada, em uma racionalidade
instrumental) fatalmente não está na obra de Marx nem é a visão
dominante de seus seguidores. E ainda vale lembrar que Keynes
não manifestou simpatias à obra de Marx e considerava O capital
semelhante ao Alcorão dos mulçumanos ao propagar fervor e
violência (certamente, uma interpretação unilateral também em
relação a este livro religioso). É certo que sementes do pensamento
de Marx estão em Schumpeter e muitos outros grandes economis-
tas do século XX. Não se pode deixar de reconhecer, entretanto, que
a contribuição de Marx não se incorporou ao núcleo teórico
principal da economia como ciência, e Marx permaneceu “margina-
lizado pelos marginalistas”, esta última sendo a principal via teórica
da economia científica moderna. Tão perigoso como exagerar o
impacto do pensamento marxista na economia é negá-lo em relação
às ciências sociais. Ao lado de Max Weber, o sistema de Marx é a
principal fonte de referência à análise do fenômeno social. A obra
de Marx compõe um respeitável sistema de análise e erudição, de
modo que é sempre recomendável cautela e mesmo humildade
diante de suas proposições.
Fora do campo científico, as ideias políticas de Marx continuam
a despertar interesse e adesão. Hoje, está-se firmando uma avalia-
ção de que o comunismo marxista representa uma vertente da
esquerda política que se havia constituído muito antes, na época da
revolução francesa do fim do século XVIII. É uma reação aos
princípios democráticos que deitaram raízes nas nações do
chamado capitalismo desenvolvido. A democracia moderna ense-
jou reações que se conformaram a um padrão comum: o apelo à
união em torno de uma causa, a ideia de luta social identificando-se
um inimigo comum e estabelecendo uma separação nítida entre
grupos antagônicos. Nessa interpretação, o comunismo seria uma
modalidade entre outras linhas políticas de inspiração totalitária.

243
Não se pode dizer que a visão da história de Marx seja falsa, no
sentido de que os fenômenos que analisa são reais, como no famoso
capítulo 24 do Livro 1 de O capital intitulado “A assim chamada
acumulação primitiva”. A violência e a exploração identificadas por
Marx ocorreram de fato na história. No entanto, a história é um
fenômeno complexo que enseja diversas leituras. Marx é uma das
leituras possíveis, certamente com elevado grau de idiossincrasia e
unilateralidade. Ele deve ser estudado e não tomado como objeto
de fé. Mais importante para a evolução da economia como ciência
foi a emergência do marginalismo.
Hoje, há três correntes de pesquisa que procuram resgatar o
pensamento de Marx: a análise estruturalista, especialmente forte
décadas atrás por ocasião do lançamento de escritos inéditos de
Marx, como os Grundrisse, e do influente movimento do estrutu-
ralismo francês de Althusser; a leitura de Marx com base na dialé-
tica hegeliana resgatando a base filosófica de seu pensamento e o
chamado “marxismo analítico”, especialmente forte nos países
anglo-saxões, em que se mistura Marx com teoria dos jogos e
modernas técnicas matemáticas de análise. O programa de pesqui-
sa marxista continua a gerar novos frutos.

244
Questões

1. Como os socialistas do século XIX avaliam a propriedade priva-


da? É correto dizer que todos eles pregam a completa eliminação
dessa instituição social?
2. Qual a diferença entre trabalho útil e abstrato na teoria de Marx?
3. O que é o materialismo filosófico?
4. Comente a respeito das principais influências filosóficas e teóri-
cas que afetam o pensamento de Marx.
5. Compare a concepção dialética da história tal como aparece em
Hegel e em Marx, apontando as especificidades no pensamento
em cada qual.
6. O que significa o princípio da não-contradição presente na lógica
tradicional? Em quais circunstâncias o uso dessa lógica pode
levar a resultados contraditórios? Como a filosofia hegeliana
busca contornar tais dificuldades?
7. Como a dialética de Hegel foi aplicada por Marx na construção
do materialismo histórico?
8. Discuta os seguintes conceitos de Marx: forças produtivas, rela-
ções de produção e modo de produção.
9. Explique em que consistem as categorias do pensamento de
Marx, quais são e como elas se formam? Por que em Marx a
consciência não tem existência independente da matéria?
10. Sobre o conceito de alienação em Marx: de qual autor ele
extraiu esse conceito? Qual a diferença entre alienação micro e
macro?
11. Por que no Manifesto comunista Marx diz que os antagonismos
de classe são simplificados no capitalismo?
12. No Manifesto comunista, como o rápido progresso tecnológico
veio a desestabilizar a sociedade feudal?
13. Para Marx, qual o papel do estado no capitalismo? Você
concorda com essa interpretação? Por quê?
14. Comente a frase: “A burguesia é retrógrada por ser incapaz de
proporcionar quaisquer avanços tecnológicos.” Essa frase apa-
rece no Manifesto comunista?
15. Marx e Engels escrevem que, embora os comunistas sejam
contra a propriedade privada, ela já foi em grande parte aboli-

245
da pelo próprio capitalismo e transformada em capital.
Explique essa ideia.
16. No Manifesto comunista, seus autores escrevem: “Vossas pró-
prias ideias são apenas uma decorrência do regime burguês de
produção e de propriedade, assim como vosso direito é apenas
a vontade de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo
é determinado pelas condições de existência de vossa classe.”
Você interpretaria essa passagem como significando que os
indivíduos na sociedade capitalista não têm ideias próprias,
mas pensam de acordo com sua posição particular dentro da
totalidade social? Critique Marx nesse aspecto.
17. Se o valor para Marx é determinado pelos custos em trabalho,
como ele resolve o dilema, já reconhecido por Ricardo, de que
mercadorias produzidas com diferentes composições de
capital podem ser vendidas a preços normais diferentes, mes-
mo tendo custado a mesma quantidade de trabalho?
18. No que consiste o fetichismo da mercadoria apontado em
Marx?
19. Comente a passagem do capítulo: “Para Marx, no capitalismo o
vínculo social entre as pessoas se transforma em relação social
entre coisas.”
20. Qual o papel do mercado na determinação do valor de troca em
Marx? Podemos dizer que essa grandeza é determinada pelas
forças de oferta e demanda no mercado? Se não, que elementos
estão subjacentes ao valor de troca?
21. Definir os conceitos marxianos de: valor de uso, valor de troca
e valor. Qual deles é objetividade natural, qual é objetividade
social e qual é mera expressão do valor?
22. Explique os conceitos de trabalho útil e trabalho abstrato em
Marx. Como, para Marx, seria possível mensurar o trabalho
abstrato?
23. No capítulo 1 de O capital, Marx descreve o conceito de valor e
seus desdobramentos analíticos em “forma de valor relativa”,
“forma equivalente” e “forma dinheiro”. Explique esses concei-
tos.
24. De que forma, para Marx, os trabalhos dos produtores inde-
pendentes tornam-se parte do trabalho social total, numa
sociedade em que o destino da produção não é do conhecimen-
to do produtor.

246
25. No esquema de circulação capitalista, o capital termina com
um valor maior que o inicial. Como Marx explica a origem
desse processo de acumulação?
26. Qual a diferença entre força de trabalho e trabalho incorpora-
do?
27. Marx, diferentemente dos socialistas anteriores a ele, não diz
que os capitalistas roubam os trabalhadores. Se não há roubo,
então como os capitalistas apropriam-se do mais-valor?
28. Descreva a explicação marxiana para a queda da taxa de lucros.
Que fatores poderiam retardar essa queda?
29. Por que em Marx a concorrência entre capitalistas leva à com-
centração econômica?
30. Se Marx rejeita a teoria da população, então por que os salários
são mantidos ao nível de subsistência?
31. Reproduza a explicação marxiana da crise econômica capita-
lista gerada pelo desequilíbrio setorial.
32. O que acontece com os preços de produção quando há uma
diferença na composição dos capitais entre diferentes indús-
trias? Qual o efeito da concorrência sobre os lucros de cada
indústria?
33. Se as taxas de lucros entre diferentes indústrias são igualadas
entre si pela concorrência, isso não implicaria necessaria-
mente a igualdade das taxas de mais-valor?

247
Leitura Adicional

Literatura Primária

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 2 v.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. Rio de Janeiro: Garamond,


1998.

Leitura Secundária

DENIS, Henri. História do pensamento econômico. Lisboa:


Horizonte, 1993.

HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva


crítica. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

PRADO, Eleutério F. S. Economia como ciência. São Paulo: IPE-USP,


1991. (Ensaios Econômicos.)

NETO, José P. Karl Marx: uma biografia. São Paulo: Boitempo, 2020.

248
8
Século XIX: a Escola
Histórica e a Evolução do
Marginalismo e do
Subjetivismo Econômico

A ESCOLA HISTÓRICA
A economia política clássica de David Ricardo e Stuart Mill tem
uma posição destacada na evolução das ideias econômicas e pode-
se considerá-la a principal vertente no pensamento teórico e dou-
trinário dessa disciplina no século XIX. No entanto, não se pode
esquecer de outras contribuições para a ciência econômica que,
embora com alguma influência do legado de Adam Smith, não parti-
cipam do classicismo nem compartilham com ele os mesmos ele-
mentos teóricos, conceituais e metodológicos. Pelo contrário, fa-
zem-lhe oposição sistemática ou simplesmente ignoram a escola
clássica.
A principal alternativa aos clássicos foi a escola histórica de
economia, especialmente importante no contexto alemão. Nesse
período, o pensamento historicista dominou amplamente as esco-
las na Alemanha. Tal fato é especialmente importante levando-se
em conta a grande tradição acadêmica desse país. A economia
clássica, de grande domínio e autoridade na Inglaterra, não havia,
de fato, conquistado prestígio similar em toda a Europa. O pensa-
mento econômico ao longo do século XIX encontra-se bastante
dividido entre diferentes doutrinas que disputavam hegemonia
entre os países europeus. A segmentação da ciência era reforçada
diante da escassa comunicação entre a Inglaterra e o continente
europeu. Em particular, entre 1840 e 1860, auge do classicismo na
Inglaterra, praticamente não se verifica intercâmbio de ideias entre
uma região e outra. É notório o isolamento da economia clássica
249
inglesa no período. Na França, o classicismo tornou-se conhecido
pela obra de Jean-Baptiste Say, Pierre-Joseph Proudhon etc., mas
em geral os franceses não foram muito influenciados por David
Ricardo e Stuart Mill. Auguste Comte, notável pensador francês,
trocava correspondência com Stuart Mill, conhecia-o, mas criticava
o trabalho dele. Na Itália, David Ricardo era pouco lido e, quando
lido, mal compreendido.
Na Alemanha, a economia clássica teve pouca penetração.
Ricardo era muito criticado, embora conhecido. Mesmo discordan-
do dele, alguns importantes autores alemães o tinham como ponto
de referência e de interlocução. Contudo, a academia alemã seguia
um caminho próprio. Havia nela o paradigma dominante da escola
histórica, ao lado de outras correntes. Identificam-se, ao lado do
historicismo de Wilhelm Roscher, Bruno Hildebrand e Karl Knies, o
nacionalismo de Georg Friedrich List e Adolph Wagner, e as contri-
buições independentes de Karl Heinrich Rau, Friedrich Benedikt
Wilhelm von Hermann, Hermann Hans von Mangoldt e Johann
Heinrich von Thünen, que deram importantes passos no desenvol-
vimento da teoria econômica sem se vincularem à escola histórica,
esta mais preocupada com coleta e tratamento de dados históricos
do que com teoria abstrata.
Os historicistas foram muito influentes também fora da Alema-
nha. Nos Estados Unidos, sobrepujavam a autoridade da escola
clássica inglesa conquistando amplamente o meio acadêmico. De
fato, em muitas áreas o pensando americano estava alinhado ao dos
alemães. No fim do século XIX, havia 10 mil estudantes oriundos da
América em universidades alemãs. Em economia, os fundadores e
o primeiro presidente da American Economic Association recebe-
ram treinamento universitário na Alemanha. Karl Knies influenciou
diretamente Richard Ely, que em 1893 publicou o mais influente
livro-texto nos EUA, os Esboços de economia.
Em que pese o relativo isolamento da escola clássica, não se
pode negar que as ideias dos economistas ingleses tenham marca-
do a história do pensamento econômico no período mais do que
qualquer outra corrente. Afinal de contas, a Inglaterra foi, na época,
a maior potência mundial e o maior centro cosmopolita. As ideias
econômicas inglesas espalharam-se não só pela Europa, mas por
todo o mundo, inclusive com adeptos no Brasil, como evidenciam
as obras de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, e Irineu
Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, autores que seguiam os
métodos e o receituário do pensamento dos clássicos ingleses.
Entretanto, havia contestações ao predomínio da escola clássica, e

250
os opositores agiam até mesmo dentro da Inglaterra. De fato, a
ortodoxia econômica inglesa reagia contra a presença da escola
histórica dentro e fora de seus domínios. Como os clássicos, a escola
histórica alemã firmou raízes no século XIX, embora ela tenha
praticamente sucumbido tempos depois. No estudo dessa escola, é
usual separá-la em dois períodos: a velha e a nova escola histórica.
No primeiro deles, situa-se o grupo mais antigo dos autores que
originaram o movimento, Wilhelm G. F. Roscher (1817-1894),
Bruno Hildebrand (1812-1878) e Karl Knies (1821-1898). Na nova
escola histórica, um grupo mais jovem de autores tratou de aplicar
o método a estudos concretos, dando uma contribuição mais subs-
tantiva. Destaca-se, entre eles, a figura de Gustav von Schmoller
(1838- 1917), o economista alemão mais importante do fim do
século XIX.
Após a derrota de Napoleão, o Sacro Império Romano Germâ-
nico deu origem à Confederação Germânica de 38 estados, cada
qual dominado por uma nobreza feudal. A livre navegação do Reno
(imposição do Congresso de Viena de 1815), dava aos ingleses a
hegemonia comercial na região. Contudo, ideias a favor do inter-
vencionismo estiveram muito presentes na Alemanha do século
XIX. Um Estado alemão forte era defendido no contexto em que esse
“país” se encontrava numa posição inferior em relação à Inglaterra
e necessitava desenvolver sua indústria de modo a compensar o
atraso.
Como estratégia de se opor ao domínio inglês, busca-se a inte-
gração comercial entre os Estados germânicos. Ao lado da ênfase
no papel ativo do Estado, a escola histórica era nacionalista. Como
tal, ela se opunha ao individualismo e ao espírito cosmopolita dos
economistas ingleses da época. Caberia ao Estado estimular a in-
dustrialização, investir na melhoria do transporte e fortalecer a
posição do país no comércio internacional.
Não obstante isso, noções dos economistas britânicos Adam
Smith e David Ricardo eram usadas pela burguesia germânica na
crítica ao sistema corporativo e às inúmeras regulamentações
envolvendo a produção. Por outro lado, a nobreza tradicional temia
o liberalismo dos britânicos. Na linha dos filósofos Fichte e Hegel,
nos quais o indivíduo pleno só existe com base na sua relação
orgânica com o Estado, tal nobreza condena o individualismo. Ela
defende certo romantismo associado a um ideal de Estado aristo-
crático e feudal. Outra reação ocorrera no campo dos nacionalistas,
que acreditam no papel de um governo forte na industrialização
alemã.

251
Os historicistas alemães eram críticos vorazes do método
abstrato-dedutivo dos clássicos e estavam sob influência das ideias
filosóficas mais em voga no período: o sistema de Hegel e o evolu-
cionismo associado ao estudo da jurisprudência e da filologia.21
Tais ideias sugeriram àqueles autores o método histórico de estudo
da economia. Método que parte do pressuposto de que a vida
econômica não é isolada da vida política e social. Assim, o que
acontece com o homem depende da sociedade, da nação e das
circunstâncias históricas. O historicismo cuida de estudar priorita-
riamente a nação, a moral e o papel do governo, opondo-se, com seu
método, ao pensamento abstrato da economia clássica.
A tradição alemã separa a ciência natural da ciência social. A
primeira delas trata de teoria, lida com o universal e com o genéri-
co. Seu objeto de estudo são os fenômenos naturais, o objeto da
“Science”, no sentido britânico. Já a segunda cuida da riqueza e da
variedade de fenômenos específicos que ocorre em sociedade. São
fenômenos históricos que requerem um estudo sistemático nas
ciências sociais (“Wissenschaft”). Cabe ao cientista social construir,
no estudo da sociedade, uma história objetiva e livre de valores.
Preocupação com o desenvolvimento econômico e reflexão
sobre as melhores políticas para tanto aparecem na obra do nacio-
nalista alemão Georg Friedrich List (1789-1846). Economista, par-
tidário do protecionismo, matéria sobre a qual teorizou, precursor
do nacionalismo alemão e um dos precursores da escola histórica,
até meados do século XX a sua obra era a mais traduzida de qual-
quer economista alemão com excepção de Karl Marx. Dentre seus
diversos escritos, destaca-se O sistema nacional de economia políti-
ca, de 1841.
O ataque ao laissez-faire, no contexto de um país que neces-
sitava recuperar o atraso e desenvolver-se, foi contribuição impor-
tante da escola histórica. No entanto, algumas das teses defendidas
lhe eram anteriores. Elas estavam presentes em List, que propôs a
famosa ideia da defesa de indústrias nascentes: o governo deveria
cobrar uma tarifa elevada de importação de bens manufaturados

21 Hegel via a história como o desenvolvimento do espírito objetivo (Geist)


por meio das diferentes instituições sociais. O curso da cultura seria a
manifestação de um espírito em busca de auto-desenvolvimento, em um
ciclo inato e determinado. Os historicistas alemães não seguem tal noção
de história. A jurisprudência mostra a validade relativa do sistema jurídi-
co. A filologia é o estudo rigoroso de documentos antigos e de sua trans-
missão, no intuito de interpretar esses textos. Busca-se estabelecer sua
autenticidade através da comparação de manuscritos.
252
para proteger novos ramos industriais domésticos. List dizia que as
nações mais adiantadas tendem a criar obstáculos para o desenvol-
vimento dos países atrasados e que o livre-comércio perpetuaria a
desigualdade. O país que deseja passar de uma fase a outra do
desenvolvimento deve contar com o auxílio do governo. Trata-se da
teoria das fases do crescimento em que o livre-comércio seria bem-
vindo apenas depois que o país atingisse a maturidade industrial.
A ideias de List expressam oposição à tradição britânica em
economia. Assim, a doutrina cosmopolitana de um Adam Smith não
se aplicaria ao contexto alemão. O livre comercio só funciona entre
parceiros iguais. List advoga a tese da necessidade de um período
de proteção às indústrias dos países “late comers” (atrasados).
No plano da doutrina moral, os historicistas alemães apregoam
que a atividade econômica deveria ser moralmente justificada. A
produção deveria se dar em volume adequado e o padrão de
distribuição de renda e de riqueza, atender a um critério de justiça.
O Estado alemão deveria estar vigilante na promoção dos valores
morais na vida econômica. O Estado não apenas favorece o desen-
volvimento material do país, mas também as condições do cidadão
comum. Com tal ação, o Estado fortalece a lealdade do público, que
via nele o zelador da eficiência econômica e o protetor de seu bem-
estar. Schmoller, por exemplo, defende abertamente que o Estado
patrocine reformas sociais paternalistas de modo a promover a
justiça econômica. O principal objetivo da política social é uma
distribuição de renda mais justa.
Podemos resumir a posição da escola histórica alemã em sete
pontos:
1. A questão da ética ocupa um papel central na economia
científica. Assim relaciona-se o comportamento do agente
com suas crenças éticas.
2. Cada sociedade é única, cada qual tem seu próprio comple-
xo de desenvolvimento histórico, cada qual tem sua nature-
za, que depende das características de um povo
3. Ênfase na evolução das instituições sociais e no estudo da
variedade de formas que as instituições exibem em dife-
rentes culturas. Nesse tocante, a escola histórica alemã apa-
rece como precursora da Nova Economia Institucional, do
século XX, com a aproximação entre economia e direito.
4. Preocupações com a desigualdade na distribuição de ren-
da.
5. Defesa do protecionismo.
6. Ideias para o Estado de Bem-Estar Social.
253
7. Advoga o bom uso da burocracia do Estado para se fazer
reformas. Vê o economista como conselheiro do Estado.
Relacionado a este último ponto, os economistas da escola
preocupam-se com a formação do quadro de pessoal da burocracia
que irá implementar as políticas de reforma social. Nesse sentido,
dirigem a reforma das Universidades e fundam a associação dos
economistas alemães, Associação (“Verein”) para a Política Social
(Verein für Socialpolitik), organização para apresentação e debates
de ideias.
O ponto 3 sobre a ênfase na evolução das instituições sociais é,
em parte, influência das ideias do jurista Friedrich Karl von Savig-
ny, para quem instituições sociais crescem organicamente de acor-
do com as idiossincrasias particulares da histórica de um povo. O
ponto 6 remete à ênfase do historicismo no Estado como instituição
ética.
A origem da escola histórica alemã explica-se no desdobra-
mento de duas antigas tradições de pensamento no contexto ale-
mão: o cameralismo e a Nationalökonomie. Sobre o cameralismo
veja o capítulo 3 deste livro. Lá, vimos que o cameralismo trata-se
de uma teoria da economia administrativa, sobre o papel do Estado
e da burocracia no governo. Uma doutrina econômica que persegue
a ideia de “governo sábio”. Sobre a Nationalökonomie, é uma antiga
tradição de pensamento alemã que enfatiza, no estudo das ativida-
des econômicas, as necessidades dos indivíduos. Um enfoque mais
microconômico dos fenômenos que prioriza a análise individualis-
ta.
A tradição da Nationalökonomie incutiu ideias subjetivistas
nos economistas alemães do século XIX. Com isso, diversas teses
microeconômicas, que viriam a ser consagradas no século seguinte,
são exploradas por eles. Dentre elas, apontam-se seis:
1. O custo de produção depende da demanda.
2. O valor é subjetivo por natureza e depende das necessi-
dades humanas.
3. Para a troca é necessário que haja uma avaliação diferente
dos bens entre dois agentes.
4. A tese da utilidade marginal decrescente.
5. O princípio equimarginal para um máximo de satisfação na
troca.
6. Preços determinados no arcabouço de oferta e demanda.
Também se insere no legado dessa tradição que afetou a escola
histórica alemã a técnica da análise lógica da estrutura de meios e

254
fins, que no caso desta escola aplica-se mais ao estudo da ação
política racional do Estado do que na atividade economizadora do
indivíduo.
Na tradição de pensamento econômico alemã, cameralismo e
Nationalökonomie existiam lado a lado em muitos textos. H. K. Rau,
no “Lehrbuch” de Economia Política (1826), exemplifica um autor
com influência de ambos. Rau foi professor de Adolf Wagner e W.
Roscher em Heidelberg. Também influenciou Carl Menger. Então
com base nessa duas raízes criou-se uma tradição alemã de
abordagem histórica, com um conjunto comum de princípios.
Vejamos algo mais dos três expoentes da velha escola histórica
alemã. Wilhelm Roscher trata-se do primeiro representante da
escola. Das suas obras destaca-se o Esboço de um curso de econo-
mia política segundo o método histórico, de 1843. Documento
fundador dessa escola. Nela evidencia-se o papel da história na
investigação economia. Sem descartar o método dedutivo.
Podemos sintetizar as ideias de Roscher em dez teses:
1. A economia política não tem como propósito central o estu-
do das causas da riqueza das nações.
2. A economia política estuda o que o povo sente e pensa (e
escreve) no campo da economia.
3. Leva-se em conta o contexto político, legal, social e cultural
no qual operam as instituições.
4. Estuda-se as instituições atuais e como elas evoluem com o
tempo.
5. Aplicação à economia científica do método de Savigny na ju-
risprudência.
6. Teoria do desenvolvimento de viés biológico: as nações
seguem um padrão evolutivo de nascimento, fase adulta e
declínio. Ideia de “leis gerais do desenvolvimento históri-
co”.
7. Método da história cultural comparativa.
8. Autointeresse é um instinto humano básico, mas há outros
motivos que afetam a tomada de decisão econômica.
9. Suplementa-se a análise clássica com exemplos históricos.
10. A teoria do valor trabalho é um erro (britânico).
Outro expoente da velha escola foi Bruno Hildebrand, no qual
destaca-se a obra A economia política do presente e do futuro, de
1848. Contrário às leis naturais universais na economia, Bruno
oferece um estudo do desenvolvimento evolutivo de cada povo,
com uma história econômica integrada às estatísticas.

255
Finalmente outro autor, Karl Knies, formula com mais detalhes
o método historicista. Além disso, ele pratica a metodologia em
estudos históricos. Citemos o seu livro A economia política do pon-
to de vista do método histórico, de 1853, em que argumenta não
existir leis naturais na economia. Knies defende o papel das analo-
gias na orientação das políticas.
Também na nova escola histórica, um grupo mais jovem de
autores tratou de aplicar o método a estudos concretos, dando,
inclusive, uma contribuição mais substantiva. Em destaque, Schmo-
ller, de grande atuação política. Nesse sentido, ele teve decisiva
influência na criação da Associação dos economistas alemães (Ve-
rein für Socialpolitik).
Schmoller, em seus estudos, expressa o fascínio com as políti-
cas do imperador da Prússia, que com práticas administrativas, boa
política financeira e adequada legislação levou ao poder prussiano.
Em 1870, esse economista oferece um estudo sobre os operários
nas manufaturas, que mostra a evolução do caso alemão. Examina
como, em 63 anos, a participação de manufatureiros na economia
alemã pode crescer tanto. Nesse sentido analiza a ação da política
econômica, do intervencionismo alemão em oposição ao livre-mer-
cado.
Schmoller torna-se conselheiro do rei em 1884. Contra a ideia
de lei natural em economia, ele acusa os clássicos britânicos de
“anemia racionalista”. A cura seria uma dose pesada de conheci-
mento empírico e histórico.
Ele opõe-se à ideia de Roscher de “leis gerais do desenvol-
vimento histórico”. Nesse sentido, critica a antiga escola histórica
por teorizar prematuramente, segundo sua avaliação, com base nos
resultados da história. A economia científica necessita de mono-
grafias trabalhosas em história econômica para uma compreensão
da história do ponto de vista econômico. Só assim se pode pôr a
teoria econômica numa base empírica adequada. Esse economista
crítica o racionalismo e a ideia de lei natural, como coisas interli-
gadas. Tal doutrina (dos economistas clássicos) só se aplica a uma
etapa específica do desenvolvimento humano em algumas socieda-
des. A sociedade é “infinitamente complicada”, portanto, não se
pode fazer generalização prematura. Outra crítica de Schmoller à
velha escola: não se pode estudar o “organismo” social como um
todo. Deve-se estudar instituições sociais específicas em toda a sua
infinita variedade.

256
Schmoller, de fato, dominou a academia em economia e política
pública. Influenciou reformas econômicas e fiscais. Ao cabo, forne-
ceu grande impulso na pesquisa em história econômica. Ele não
acreditava em leis com validade universal na economia. Enfatizava
trabalhos monográficos aplicados ao estudo da indústria, do co-
mércio, da administração pública etc.
Schmoller dizia que o economista deve compreender o contex-
to geral, além de ter poder de síntese a fim de estabelecer inter-
relações entre os fatos examinados na história. Em sua principal
obra, o História econômica geral, de 1853, nota-se a aplicação de
seus princípios metodológicos. A escola história não advogava
teses socialistas; pelo contrário, esperava que as reformas sociais
afastassem os trabalhadores da ideologia socialista. Por assumir
posições de reforma social fruto meramente de suas reflexões
acadêmicas e não do embate social das ruas, os professores adeptos
da mudança social moderada eram chamados de “socialistas de
cátedra”. Schmoller era um dos “socialistas de cátedra”: economis-
tas que propunham reformas sociais.22
Até a unificação alemã em 1871, o ambiente acadêmico era
dominado pelo governo da Prússia, o mais forte dos 38 estados
separados a que a Alemanha foi dividida depois das guerras napo-
leônicas. Os principais representantes da escola histórica tinham
estreita relação com os oficiais do governo prussiano. Cargos
elevados da vida acadêmica eram alcançados com a indicação
governamental. O governo controlava a maioria das universidades.
Por sua influência no ministério da educação, Schmoller pôde
exercer uma presença política esmagadora no ambiente universi-
tário. Os principais cargos acadêmicos eram indicação sua, tanto
que ele se tornou conhecido como o “fabricante de professores”.
Os economistas históricos retribuíam o apoio do governo às
suas pretensões de poder na academia defendendo teses que bene-
ficiavam o governo imperial da Alemanha, tal como o fortaleci-
mento da presença deste em um Estado nacionalista. Para tanto,
Schmoller foi um dos fundadores e principal líder do Verein für
Sozialpolitik, a organização, já citada, que defendia uma legislação
social que favoreça a maior presença pública em assuntos sociais e
econômicos. Em vez de uma democratização da sociedade, os adep-

22Seus membros fora chamados, por um jornalista crítico, de “socialistas


de cátedra” e o nome pegou!

257
tos da escola histórica difundiam valores como a lealdade a um
governo que, em troca, faria concessões paternalistas.
A Associação para a Política Social enfatiza o protagonismo do
Estado: é e deve ser a inteligência da nação, o catalizador do senti-
mento político, a referência moral. Segue as ideias de A. Wagner na
crítica à economia clássica, na ênfase a outros motivos para a ação
humana que não o autointeresse (dimensão ética!). O livre-
mercado leva à desigualdade, o que leva os trabalhadores a opta-
rem pela “praga” do socialismo.
A tese central da Associação era a de que um governo central
forte é necessário a fim de promover-se o interesse de toda a
comunidade na provisão de bens públicos. O destino da nação deve
estar acima dos interesses de classe. A Associação fazia congressos
anuais e durou mais de 60 anos, até 1932. Ela ajudou a afastar o
liberalismo do pensamento alemão
Alguns elementos da crítica dos economistas históricos à esco-
la clássica são aqui considerados. Argumentam que as leis econô-
micas não são absolutas e não podem ser deduzidas abstratamente
de postulados ideais. As leis são sempre relativas às instituições e
são obtidas pelo método indutivo a partir de dados históricos.
Assim, não há verdade absoluta nas leis econômicas, cada povo e
cada época têm suas peculiaridades. Hildebrand assevera que a
economia clássica erra ao tentar aplicar sua teoria a todos os
momentos e lugares.
As ações humanas são dotadas de valor. Elas têm um sentido,
não são como fatos naturais. Não podem ser totalmente quantifi-
cadas como na física. Há um sentido na causalidade histórica. Assim
sendo, melhor falar-se em tendências ou regularidades do que falar
em leis. Não há leis universais na vida social. Como forma de
conhecimento, os historicistas separam as “ciências do espírito”
(ciências humanas) das “ciências da natureza”, na linha do filósofo
Wilhelm Christian Ludwig Dilthey, conferindo àquela pouco papel
para o método dedutivo.
O homem é produto da história e, como tal, seus desejos, seu
caráter e sua relação com os bens são sempre mutáveis e as
doutrinas econômicas são relativas. Roscher acredita em leis de
causa e efeito na história e na existência de princípios gerais aplicá-
veis com a ajuda da estatística. Outros, como Knies, negam que a
história possa fornecer leis e princípios gerais e lançam a noção de
“analogia”, que acabou prevalecendo entre os historicistas. No uso
da analogia, não se supõe completo paralelismo entre passado e
presente, dada a eterna mutação da realidade histórica. As situa-
258
ções históricas são apenas similares, não idênticas e, portanto, não
é possível estabelecer leis de causa e efeito, só se podem buscar
analogias entre elas.
Como entre os clássicos, os economistas históricos alemães
também insistiam no lado social da economia. Diferentemente
deles, entretanto, para os historicistas a dimensão social do fenô-
meno econômico não estaria contida no âmbito estrito dessa
ciência, sendo necessário buscar outros ramos do conhecimento
social e do homem: a política, a sociologia e a psicologia dentre
outros, pois, é preciso estudar o homem tal como ele é; e isso só é
possível levando-se em conta a interdependência dos fenômenos
sociais e das ciências que os estudam. Os historicistas não conde-
nam por inteiro o uso do método abstrato e dedutivo. Roscher
reconhece o valor da abstração em certos estágios preparatórios do
estudo. Entretanto, eles conferem à abstração apenas um papel
complementar.
Leis imutáveis da natureza humana estão fora de cogitação,
mas pode-se fazer deduções de propriedades conhecidas e relati-
vamente estáveis da natureza humana. Chega-se a elas pela obser-
vação específica, generalizando-se a partir disso, e não pelo
caminho da abstração atemporal da escola clássica. O material
histórico passa a ter uma importância crucial para a ciência e todos
os outros métodos ficam subordinados ao método histórico de
indução estatística. A economia política é incorporada à sociologia
geral.
A escola histórica objetiva explicar os fenômenos econômicos
deduzindo-os de elementos empiricamente conhecidos da nature-
za humana. Não seria correto apenas postular o homem econômico
(homo economicus) autointeressado, hipótese consagrada nos
clássicos pelos escritos metodológicos de Stuart Mill. Os economis-
tas históricos enfatizam a observação empírica, mas não eram
radicalmente empiristas, pois, além da investigação empírica com-
creta eles utilizam elementos do idealismo hegeliano compondo
um peculiar amálgama de ideias. A combinação dessas duas
matrizes parecia-lhes propiciar perfeito casamento entre filosofia
e história.
A sociedade é percebida como uma totalidade orgânica. Não é
a soma de indivíduos autointeressados atuando mecanicamente,
mas a interação complexa que resulta num todo orgânico, um todo
em permanente interação. A escola histórica, de fato, não aceita a
noção hegeliana da racionalidade histórica como o desenvolvi-

259
mento dialético de um espírito absoluto. Ela não utilizava a dialéti-
ca hegeliana nem se preocupou com lógica.
Até que ponto os historicistas veem a história como um
processo significativo no qual os eventos históricos possuam
significados a serem desvendados, que se formam socialmente e
são expressos pela ação humana? Tais significados variam no
tempo e com o tipo de sociedade? A fim de desvendá-los, a história
deveria prestar atenção em como as pessoas pensam e vivem. E,
também, em como instituições específicas são afetadas por ten-
dências ou condições gerais da sociedade. Dessas observações, a
história chegaria às regularidades ou condições fundamentais
presentes na sociedade. Pelo método empírico, ações e eventos
concretos são observados e estudados.
Na visão da escola histórica, a investigação social deve preo-
cupar-se com o mecanismo em que as ideias são formadas. Não é
aceitável a mera postulação do homem econômico racional e
onisciente. As ideias são moldadas na consciência individual por
meio de um processo histórico e social. Fatores sociais modelam a
consciência dos indivíduos e essa consciência se manifesta nas
instituições. As crenças individuais dos membros da sociedade
incorporam-se nas convenções sociais e passam a comandar a vida
social.
Estas são as características fundamentais do pensamento his-
toricista alemão. Contudo, é preciso destacar as diferenças entre os
economistas da escola histórica alemã. Roscher, o primeiro repre-
sentante da escola, enfatiza o papel da história na investigação
economia, mas não descarta o método dedutivo. Hildebrand é
contrário às leis naturais universais na economia. Estuda o desen-
volvimento evolutivo de cada povo, com história econômica
integrada às estatísticas. Karl Knies formula o método historicista.
Pratica a metodologia historicista em estudos históricos. Assevera
que não existem leis naturais na economia. Destaca o papel das
analogias na orientação das políticas. Schmoller tratou de aplicar o
método a estudos concretos, dando uma contribuição mais
substantiva. Conferiu grande impulso na pesquisa em história
econômica. Ele não acredita em leis com validade universal na
economia. Enfatiza trabalhos monográficos aplicados à indústria,
ao comércio, à administração pública etc.
Podemos incluir outros autores como representantes da esco-
la histórica alemã. Dentre eles, Arthur Spiethoff (1873-1957),
aluno de Schmoller que se envolve na Batalha dos Métodos (ver
adiante). Menos hostil à abordagem dedutiva dos economistas
260
clássicos e de Menger, Spiethoff percebe a importância das hipóte-
ses iniciais a serem testadas na pesquisa histórica. Deu importante
contribuição na teoria dos ciclos econômicos.
Finalmente, ainda no contexto alemão, citemos Werner Som-
bart (1863-1941) e Max Weber (1864-1920), que, de fato, eram
mais sociólogos que economistas. Ambos percebiam a relação entre
a vida econômica e a estrutura social. Sombart escreve a obra
Capitalismo Moderno (1902) e Weber se tornaria um dos maiores
sociólogos de todos os tempos, de quem falaremos mais adiante.
É preciso considerar que, embora os economistas britânicos
tenham repudiado o enfoque historicista em economia, um punha-
do de autores da ilha aderiu a uma concepção similar, mesmo sem
pertencerem a uma escola bem-definida. Na literatura, aparecem
como membros da “escola histórica inglesa”, também composta por
autores irlandeses. No entanto, não se trata propriamente de uma
escola, mas de um apanhado de trabalhos isolados. Tal “escola”
inicia-se com Richard Jones, autor do começo do século XIX. Ensaio
sobre a distribuição de riqueza e as fontes da inflação, de 1831, é
seu principal trabalho. Nele, critica o pensamento econômico da
época, apresenta o método indutivo e fornece exemplos de como
aplicá-lo. Não acredita em leis de validade universal na economia.
No entanto, leis econômicas são possíveis quando se observam
vários casos ao longo da história. Jones enfatiza o papel das formas
originais de organização econômica, bem como as estruturas eco-
nômicas das sociedades, dentre elas as relações entre classes.
Jones oferece uma incipiente teoria dos fundos de trabalho,
que anos depois seria aperfeiçoada por Stuart Mill. Nela, tais fun-
dos são classificados em: renda consumida pelos produtores
diretos, renda dos que vivem do próprio trabalho sem atuar na
agricultura e renda acumulada e utilizada na obtenção de lucro.
Nesta última classe de fundo, Jones teoriza sobre o papel da acumu-
lação. Percebe o problema da renda diferencial, que seria mais
explorado por David Ricardo. Fala em “renda absoluta”, dos que são
obrigados a pagar para trabalhar na terra dos proprietários.
A lista de participantes da “escola histórica inglesa” inclui
também John Kells Ingram, William Whewell, Thomas Edward
Cliffe Leslie, Walter Bagehot, J. E. Thorold Rogers, Arnold Toynbee,
William Cunningham e William James Ashley. Pode-se ainda incluir
nessa “escola” o jurista e estatístico inglês Leone Levi. A corrente
historicista inglesa guarda certa proximidade com os estaduni-
denses da chamada Escola Institucional Americana, em especial
com as teses de Thorstein Bunde Veblen (1857-1929), autor que
261
enfatiza aspectos psicológicos e institucionais da economia prática.
Veblen estuda o impacto e as condições para a industrialização e,
como aqueles, também critica os clássicos e os utilitaristas.
É difícil caracterizá-la em sua totalidade, passando ao largo de
especificidades nas contribuições particulares de cada um. Há,
contudo, elementos comuns dentre eles. Em geral, são mais
otimistas que os clássicos, até por serem hostis às ideias de
Malthus. Como os alemães, eles consideram a escola clássica exces-
sivamente abstrata e irrealista. Em troca, desejam relacionar a
economia com outras ciências sociais, espelhados no evolucionis-
mo de Charles Darwin e Herbert Spencer, aplicando-o no exame da
sociedade.
Contrários ao método abstrato e a priori, tais economistas
enaltecem o papel da observação dos fatos. Contra o postulado
clássico do homo economicus, apelam para o homem real com suas
paixões, seus desejos e seus condicionantes históricos. Todos eles
criticam o viés ideológico implícito na noção estilizada oferecida
pelo postulado, e enfatizam, em troca, o progresso moral e a solida-
riedade humana. Ingram, em particular, avalia o sistema a priori
como antiquado, individualista e amoral.
Leslie e Ingram são leitores de Comte e dos alemães Roscher e
Knies. Bagehot é menos crítico do método abstrato de Ricardo e
lança a famosa proposição metodológica de restringir sua aplicação
a estágios desenvolvidos da sociedade.23 Os historicistas ingleses
fazem também críticas teóricas, embora em geral compreendam
mal os clássicos, propondo inclusive teorias alternativas. Richard
Jones critica a teoria da renda da terra de Ricardo e sua lei dos
rendimentos decrescentes. Em troca, desenvolve uma melhor defi-
nição de renda. Bagehot propõe um novo e equivocado conceito de
custo de produção. Ele aprofundou a compreensão do papel do
empresário e contribuiu positivamente na análise da função dos
bancos. Leslie desenvolve uma nova teoria de preços e salários.
Discute problemas agrários e a distribuição de metais preciosos.
Toynbee estuda a legislação trabalhista e o modo como ela afeta os
salários. Em comum, todos eles criticam a teoria do fundo de
salários de Stuart Mill. Também era usual criticarem o movimento
relativo de salários e lucros na teoria ricardiana. Imaginavam
erroneamente que, em Ricardo, haveria sempre uma relação
inversa entre essas duas variáveis. Em suma, os economistas da

23 O economista francês Antoine A. Cournot, precursor do marginalismo,


também escreve que sua teoria só é aplicável a estado avançado da
civilização.
262
escola histórica inglesa forneceram alguma inovação teórica,
contudo, seus trabalhos eram, em geral, fragmentados e apresen-
tavam inconsistências. Isso explica em parte por que tal escola
acabou não prevalecendo no ambiente acadêmico inglês. Também
se deve ter em conta as controvérsias metodológicas que enfraque-
ceram essa via.
Na Inglaterra, o principal ataque ao historicismo partiu de
Neville Keynes (1852-1949), que incutiu a necessidade de se acei-
tar a pluralidade de métodos. Neville era economista e tornou-se
mais conhecido por seus escritos versando sobre lógica e método.
Ele lecionou em Cambridge. É pai de John Maynard Keynes, o
célebre fundador da macroeconomia. Em seu famoso livro, O
escopo e o método da economia política, Neville afirma que o
método indutivo não pode excluir a dedução:

“De acordo com departamento especial ou o aspecto da


ciência sob investigação, o método apropriado pode ser o
abstrato ou realista, o dedutivo ou indutivo, o matemático ou
estatístico, hipotético ou histórico.” (Neville Keynes, The scope
and method of political economy)
Neville acusa o historicismo por este se apegar unilateral-
mente ao método indutivo e critica também a preocupação da
escola histórica em estudar a formação de ideias na consciência
individual. Para ele, a identificação dos elementos subjetivos que
compõem o conhecimento humano não é tarefa da economia como
ciência. Isso pertence ao âmbito da psicologia, uma ciência à parte.
A economia política, ele escreve, é uma ciência social e não psico-
lógica. As leis econômicas dizem respeito a fatos sociais complexos
que não podem ser deduzidos de leis psicológicas. Exemplificando
leis que não são derivadas da psicologia, ele cita a lei explicativa da
determinação da renda da terra, a lei que relaciona volume de
moeda e nível de preços na teoria quantitativa da moeda, a que
descreve o efeito dos impostos sobre os lucros e as leis que regem
os fenômenos industriais em geral. Neville Keynes afirma que os
fatos psicológicos são apenas assumidos e não investigados nos
domínios da ciência econômica. Eles são a base do raciocínio econô-
mico, e mesmo os raciocínios que partem de dados psicológicos
requerem suplementação pela observação direta de fatos sociais
complexos que constituem a vida econômica.
Curiosamente a crítica de Neville Keynes atinge tanto os histo-
ricistas quanto a figura de Stuart Mill, central entre os clássicos.
Keynes lembra que Mill, em duas obras, os Ensaios sobre questões

263
não assentadas em economia política e o livro sexto da obra Lógica,
usa a expressão “ciência moral ou psicológica” ao se referir à econo-
mia. De fato, Mill definiu a economia política como “a ciência que se
relaciona às leis morais ou psicológicas da produção e distribuição
de riquezas”.
Neville Keynes é incisivo em apontar o que seria um grave
equívoco de Mill e mostra como essa acepção acabou comprome-
tendo a escola clássica, deixando-a vulnerável às investidas dos
historicistas. Podemos resumir a posição de Keynes como um
ataque metodológico à escola histórica, mostrando a necessidade
de se combinarem todos os métodos de investigação, e uma crítica
sobre a definição do objeto da economia que a confunde com
psicologia.
De fato, as provocações da obra de Keynes atingem tanto a
escola histórica quanto os clássicos, mas na prática acabou abalan-
do mais a credibilidade da primeira aos olhos da comunidade
científica em geral. É importante assinalar, no entanto, que os
próprios historicistas não se sentiram incomodados com Keynes, já
que os praticantes do método histórico eram relativamente indife-
rentes a discussões puramente metodológicas. Mesmo que as
controvérsias metodológicas tenham sido de importância secundá-
ria, elas tiveram um papel na ruína da escola histórica no início do
século XX.
No mundo inglês, mais importante como recusa do histori-
cismo foi a publicação da primeira edição dos Princípios de econo-
mia de Alfred Marshall em 1890, mesmo ano do lançamento da
obra metodológica de Neville Keynes. Em matéria de doutrina
econômica, os ensinamentos de Marshall em pouco tempo domina-
ram completamente a academia inglesa. É bem verdade que ele fez
concessões à escola histórica, evitando criticá-la por inteiro. Nem
por isso, entretanto, deixou de restringir o alcance do método
indutivo. Ele tinha clara predileção por teorias abstratas, embora
concedendo um papel para a história.
Com as ideias de Marshall e Neville Keynes, a visão estrita-
mente historicista foi descartada. Não só na Inglaterra. Isso vale
para a França onde a escola histórica nunca chegou a ser realmente
importante. Também a Áustria ficou parcialmente isolada da
influência da escola histórica alemã, graças à contribuição de Carl
Menger, que edificou sua visão filosófica da economia científica na
obra Investigações sobre o método das ciências sociais e da econo-
mia política, de 1883. Menger envolveu-se em ruidosas querelas
metodológicas com Schmoller, o principal expoente da escola histó-
264
rica, no que ficou conhecido como Batalha dos Métodos (“Metho-
denstreit” ).
O descrédito contra a economia historicista teve um teor local
específico a cada região, envolvendo críticas diferenciadas. A escola
histórica foi atacada em outras áreas do conhecimento, além da
econômica. Mesmo porque os historicistas definiam-se como cien-
tistas sociais sem dividirem o saber social em ramificações específi-
cas. Eles viam-se tanto como economistas quanto como cientistas
políticos, sociólogos etc. Essa natureza interdisciplinar no trata-
mento que davam a qualquer fenômeno socioeconômico levou-os a
se projetarem não só entre os economistas: também conquistaram
certa autoridade em outros campos da ciência social, como nota-
damente verifica-se na ciência política. Figuras expressivas da
escola histórica alemã, como Johann Droysen e Leopold Ranke,
eram mais conhecidas entre cientistas políticos do que entre econo-
mistas.
Na Alemanha e nos Estados Unidos, a abordagem histórica,
embora tenha fincado raízes mais profundas, também acabaria,
tempos depois, sendo sobrepujada. O historicismo, que no século
XIX dominou a economia científica nesses países, desapareceu de
cena quando a concepção de ciência social de Max Weber tornou-
se dominante. A base da crítica metodológica de Weber aos
pressupostos da escola histórica é de que ela não dá conta dos
aspectos verdadeiramente sociológicos do fenômeno social. Os
historicistas acreditam retratar a realidade tal como ela é, mas para
Weber nunca podemos conhecê-la. Como aqueles, Weber também
acredita que a fim de se construir uma ciência social da realidade
cabe investigar prioritariamente o significado cultural dos eventos
individuais, vendo até que ponto eles são determinados historica-
mente.
No entanto, Weber considera absurda a pressuposição histo-
ricista de realidade estruturada, isto é, de que exista alguma
estrutura orgânica ou um sistema propositado funcionando como
uma totalidade ou uma entidade concreta. A visão dos processos
socioeconômicos em Roscher e Knies, para exemplificar, parte de
uma visão “bioantropológica” da sociedade, duramente criticada
por Weber. No historicismo, os eventos históricos e as ações parti-
culares adquirem significados apenas no quadro referencial de uma
realidade já estruturada. Esse pressuposto oferece aos historicistas
uma base ontológica para analisar fenômenos sociais específicos.
Weber, porém, refuta tal pressuposto ontológico; seria, em sua
acepção, como se apoiar em essência misteriosa, uma entidade

265
metafísica hegeliana. Em troca, ele propõe a utilização de novos
conceitos, sendo o principal a noção de “tipos ideais” (Boxe 8.1).

Boxe 8.1 Weber e os “tipos ideais”.

Max Weber não crê que se possa demonstrar cientificamente a existência,


no fenômeno social empírico, de entidades concretas estruturadas em uma
totalidade orgânica. O complexo social não se apresenta como um mundo
organizado em uma rede de relações causais. A realidade projetada pelas
lentes dos historicistas seria, portanto, uma mera invenção, criada por uma
suposta intuição do investigador. Os historicistas tomam ideias que existem
apenas na cabeça do analista como um fator real na história. Com isso, criam-
se dogmas que dificultam a prática da boa ciência, pois, para Weber, não viceja
na realidade uma racionalidade ou uma teia de causalidades que lhe seja
inerente. Pelo contrário, em Weber a realidade apresenta-se como uma
inexaurível avenida caótica de eventos, uma infinita multiplicidade de fenô-
menos ou um vasto oceano de fatos empíricos.
Se a realidade socioeconômica para Weber é um caos, somente é possível
enquadrá-la teoricamente em um ordenamento compreensivo pelo uso de
construções mentais não empíricas. Conceitos não ambíguos, sistematicamen-
te definidos, impõem ordem ao caos. E, para tanto, Weber constrói seus “tipos
ideais”, um instrumento heurístico empregado na investigação dos fatos
sociais que ordena o fluxo caótico de ações concretas tomadas pelos indiví-
duos, mas não deve ser confundido com a própria realidade histórica. Tal
instrumento permite um tipo de reconstrução abstrata do fenômeno social,
um ordenamento analítico da realidade que depende explicitamente de julga-
mentos particulares do cientista.

Para Weber, a ação do homem em sociedade é orientada pelos


significados que carrega em mente. Tais significados dependem
previamente de valores. Portanto, o saber social deve-se preocupar
com a compreensão de valores individuais. Isso leva ao entendi-
mento teórico da ação. O elemento-chave na compreensão do fato
social é a ação, e é ela que deve ser prioritariamente investigada
pela teoria. Todos os conceitos devem ser reduzidos à ação. Não há
estruturas supraindividuais ou personalidades coletivas atuantes;
a explicação deve partir apenas da ação individual. Uma postura
que se denomina modernamente de “individualismo metodológi-
co”: a visão que permite apenas indivíduos serem os tomadores de
decisão em qualquer explicação dos fenômenos sociais. A escola
histórica, por outro lado, estava presa à representação de entidades
coletivas dotadas de racionalidade, e foi então descartada. As ideias
de Weber foram decisivas nessa rejeição, principalmente nos
Estados Unidos e na Alemanha.

266
Portanto, no século XX, a escola histórica alemã foi perdendo
importância. Em especial, a partir de 1917, com a morte de
Schmoller, tal escola praticamente deixou de existir como entidade
própria. Não apenas no debate metodológico, mas em questão de
política econômica as contribuições desses alemães foram sendo
absorvidas. Em especial, os trabalhos dessa escola forneceram
apoio teórico à ideologia de um Estado intervencionista na econo-
mia.

A CRISE DA ECONOMIA CLÁSSICA


A economia política clássica começou a ser desacreditada bem
antes do declínio da escola histórica. Muitos pensavam que esta
última poderia vir a substituir a antiga hegemonia dos clássicos na
comunidade científica inglesa. Quando nos anos 1870 eclode a
chamada Revolução Marginalista, a ciência econômica encontrava-
se em crise pronunciada. O entendimento das controvérsias teóri-
cas que levaram à crise é o propósito desta seção. Também conta,
para o agravamento dela, a situação econômica e social na Inglater-
ra da época, tema que será examinado na próxima seção. A análise
do episódio terá, portanto, limites nacionais, concentrando-se no
cenário, acadêmico e socioeconômico, britânico.
Na Inglaterra, entre 1840 e início dos anos 1860, a ortodoxia
econômica tinha conquistado a confiança da opinião pública e o
sistema teórico de David Ricardo, aperfeiçoado e ampliado por John
Stuart Mill, imperava como autoridade suprema. Além do rigor
teórico, elementos externos proporcionavam-lhe tal prestígio. Os
clássicos contaram com o respaldo conferido pelos escritos meto-
dológicos de Mill na exposição dos princípios da disciplina, que
reforçavam o clima de confiança. Também a prosperidade econô-
mica que se seguiu à implementação da proposição clássica de se
abolir a lei dos cereais ajudou a aceitação. Contudo, entre meados
dos anos 1870 e início da década seguinte, mudanças em fatores
ambientais reverteram as expectativas, levando à crescente crítica
e rejeição da teoria clássica pela opinião pública.
Nessa época começa a se destacar, entre os economistas ingle-
ses, um grupo de jovens autores unidos pela repulsa às teorias
ortodoxas de valor e salário. Seus ataques abalaram a confiança na
economia clássica ao longo dos anos 1870; uma década, de fato,
apropriada para o aparecimento de novas ideias na Inglaterra.
Nesse período, contudo, predominam as críticas destrutivas. Em
seu pior momento, a economia política quase foi eliminada da
respeitada Associação Britânica para o Avanço da Ciência, quando

267
Francis Galton tentou excluir a seção F, a ela destinada. Em meio a
um interregno confuso de duas décadas, não se firmou um acordo
entre os economistas sobre o que deveria substituir as teorias
ortodoxas.24
Dois aspectos do arcabouço clássico eram severamente con-
testados: a teoria do valor e a da distribuição. De fato, a análise da
distribuição em David Ricardo e Stuart Mill estava apoiada em dois
pilares que entraram em colapso: a teoria do fundo de salários e a
doutrina da taxa natural de salários. A primeira assevera a exis-
tência de um montante de capital anual na sociedade destinado à
manutenção dos trabalhadores. Os salários médios seriam então
determinados pela comparação entre o fundo de adiantamento e o
número de trabalhadores a serem mantidos por ele. Parte-se da
hipótese de trabalho homogêneo, assumida explicitamente por Mill
no capítulo “Os salários” de seus Princípios de economia política,
embora em capítulos subsequentes Mill discuta os diferenciais de
salário, rompendo com ela. Para efeito de uma teoria geral dos
salários, entretanto, permaneceu a noção de trabalho homogêneo e
isso era o que contava nas controvérsias políticas da época. A
doutrina da taxa natural de salários utiliza as implicações da teoria
da população de Malthus, mostrando que certo nível de salário
manteria inalterada a oferta de trabalho e que qualquer outro nível
não se sustentaria no longo prazo.
No fim dos anos 1870, apareceram vários ataques à teoria do
fundo de salários, desferidos por economistas ingleses de variadas
filiações, alguns ligados à escola histórica. Tais críticas reforçaram
o descrédito dos clássicos. Deficiências eram apontadas por Cliffe
Leslie, da escola histórica inglesa, e por economistas não histori-
cistas como Fleming Jenkin, Francis D. Longe, John Elliot Cairnes,
William T. Thornton e o marginalista William Stanley Jevons. Nesse
sentido, Jevons afirma:

“Outras doutrinas geralmente aceitas têm-me parecido


sempre ilusórias, especialmente a assim chamada Teoria do
Fundo de Salários. Essa teoria aparenta fornecer uma solução

24
Francis Galton (1822-1911) foi um antropólogo, meteorologista, matemático
e estatístico inglês. Produziu mais de 340 artigos e livros em toda sua vida
envolvendo temas bizarros, como a distribuição geográfica da beleza. Era
primo de Charles Darwin e, baseado em sua obra, criou o conceito de "eugenia"
que seria a melhora de uma determinada espécie através da seleção artificial.
O primeiro livro importante para o pensamento de Galton foi Hereditary
Genius (1869). A sua tese afirmava que um homem notável teria filhos
notáveis. Esta ideologia teve papel fundamental na formação do fascismo.
268
para o principal problema da ciência – determinar os salários
do trabalho; contudo, num exame mais minucioso descobre-se
que sua conclusão não passa de mero truísmo qual seja, que a
taxa média de salário é encontrada pela divisão do montante
total destinado ao pagamento dos salários pelo número daque-
les entre os quais esse montante é dividido.” (W. S. Jevons, A
teoria da economia política, prefácio)
Na busca de uma interpretação alternativa que pudesse
substituir a teoria do fundo de salários, o grupo de autores desen-
volve novas ideias. Francis Longe resgata o conceito malthusiano
de demanda geral de trabalho. Thornton propõe suas curvas de
demanda e oferta pretendidas de trabalho, que são curvas que
dependem de estimativas subjetivas do futuro. Ele também discute
o conceito de excedente do consumidor e avalia a ação dos sindi-
catos. Seu trabalho foi pioneiro no tratamento gráfico. John Cairnes,
em seu livro Nova exposição dos princípios líderes da economia
política, estabelece uma importante distinção entre demanda e
oferta realizadas (ex post) e estimadas (ex ante). Ele também pro-
põe a separação entre demanda e oferta gerais da sociedade e
demanda e oferta para uma mercadoria específica. Defende a
igualdade entre demanda e oferta em nível geral (Lei de Say) e
mostra que a partir delas não se pode determinar o que recebem
capitalistas e trabalhadores. Para Cairnes, entretanto, é possível
fazê-lo pelo uso da teoria dos salários agregados médios, que ele
propõe e que é uma versão modificada da teoria do fundo de
salários. A nova teoria dos salários analisa como são determinados
os investimentos em geral e os diferentes tipos de investimentos,
em particular a contratação de trabalhadores. Ela investiga o que
condiciona, no agregado, a proporção investida em capital fixo,
matéria-prima e salários.
Cairnes procurou restabelecer a teoria do fundo de salários
flexibilizando a hipótese de trabalho homogêneo. Em sua defesa,
ele introduziu o modelo multifatores de trabalho, no qual indiví-
duos diferenciados competem entre si, preferindo cada um as
profissões mais bem pagas. No equilíbrio, os salários relativos se-
riam explicados pelas diferenças de talento e qualificação indivi-
dual. O mesmo autor também propôs uma teoria ad hoc sobre a
existência de grupos não competitivos dentro do modelo de multi-
plicidade de fatores de trabalho. Cairnes era excessivamente
malthusiano e sua defesa de Mill acabou comprometendo ainda
mais o sistema teórico clássico.

269
Na Alemanha, a teoria do fundo de salários já tinha sido
demolida, muito tempo atrás, por Friedrich von Hermann em 1832.
Karl Heinrich Rau e Hans von Mangoldt, em 1863, fizeram a ligação
teórica do salário com a produtividade. Ideia que acabou prevale-
cendo na economia moderna, mas que ainda era pouco usual à
época. A produtividade determina a distribuição de renda e esta
afeta a demanda do consumidor. Comentando o período, o célebre
Schumpeter nos diz que, nos anos 70, “assassinar a teoria do fundo
de salários tornou-se o esporte favorito entre os economistas”. O
próprio Mill, em 1869, acabou abandonando-a.
A teoria da taxa natural de salários considerava o crescimento
da população uma variável endógena. Os salários eram mantidos
no nível de subsistência pela pressão demográfica. Nas décadas de
1850 e 1860, o crescimento demográfico na Inglaterra e a concomi-
tante melhoria no padrão de vida resultaram na crescente falta de
credibilidade tanto da teoria populacional clássica quanto da noção
de salário de subsistência. O crescimento permanente no padrão de
vida da classe trabalhadora tornava obsoleta a noção de nível de
subsistência. Nassau W. Senior, William Edward Hearn, J. R. McCu-
lloch e Robert Torrens, mesmo aceitando a base conceitual da
economia clássica, criticam a teoria da população de Malthus e
propõem, em troca, interpretações mais flexíveis do problema. Nos
anos 1870, poucos economistas ainda não haviam rejeitado por
completo a teoria da taxa natural de salários por parecer incon-
sistente com os fatos. Por exemplo, ela não explicava o efeito sobre
os salários do grande aumento de importações pela Inglaterra de
alimentos provenientes dos Estados Unidos. Mesmo na nova ver-
são, proposta por aqueles autores, a teoria da população tinha
pouco conteúdo empírico. Contudo, os economistas não abando-
nam tal teoria, e os autores da nova escola, os marginalistas, ainda
mantêm a crença na existência dela. Eles tão somente optam por
não a investigar, tratando a população como variável exógena.
Nomes como Jevons, Marshall, John Bates Clark e Knut Wicksell,
expoentes da nova economia, não deixaram de acreditar na teoria
da população.
Os críticos viam a existência de muitas exceções às teorias de
salário de Ricardo e Mill, exceções que se tornam mais importantes
que o caso geral. No entanto, não havia algo mais elaborado que
pudesse substituir as teorias vigentes. Nessa época, inicia-se o
desenvolvimento de explicações que elaboram pensamentos na
direção da análise da produtividade marginal. A partir de então,
cada vez mais, populariza-se a explicação dos salários pela produ-
tividade do trabalho.
270
A teoria do valor-trabalho em sua versão ricardiana, outro
pilar da economia clássica, naqueles anos também começou a ser
vista por muitos como inadequada. Embora quase todos criticas-
sem essa teoria, não havia algo muito articulado que a substituísse.
Modificações superficiais foram tentadas. Mill e Cairnes, no estudo
das trocas internacionais, abriram uma exceção na explicação clás-
sica do valor em troca de uma teoria do valor dependente da
demanda. Havia uma estreita ligação teórica entre as mudanças na
teoria do salário e o descrédito para com a teoria do valor.
Os nomes que seriam consagrados na história do pensamento
econômico como expoentes da Revolução Marginalista, William
Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras, centraram suas críticas
aos clássicos na questão do valor. Jevons apontou três tipos de
deficiências na abordagem do valor em David Ricardo:

1. Ela requer uma teoria especial para mercadorias com oferta


fixa, como estátuas raras. O que prova que o custo em traba-
lho não era essencial para o valor.
2. Elevados custos em trabalho não conferem alto valor à
mercadoria se a demanda futura for erroneamente previs-
ta.
3. O trabalho é heterogêneo e só pode ser comparado pelo
valor do produto.

Menger critica a divisão clássica dos fatores de produção, entre


terra, trabalho e capital, na determinação do valor. Pergunta então
por que, em Ricardo, o valor da terra não dependeria também do
custo em trabalho para mantê-la e por que então seria necessária
uma teoria particular para a renda da terra.
Walras aponta para a falta de generalidade da teoria de Ricar-
do e não aceita a diferenciação ricardiana entre bens raros e bens
reproduzíveis. Outro argumento de sua crítica é o de que os preços
dos produtos e dos fatores produtivos têm efeitos recíprocos e
mesmo o valor de um fator afeta o de outro. Portanto, assevera
Walras, a ideia clássica da causalidade do valor como indo do custo
dos fatores para o preço do bem não se sustenta.
Temos, em suma, três pilares básicos da economia política
clássica que foram bastante criticados: a doutrina da população de
Malthus, a teoria do fundo de salários e a teoria do valor-trabalho.25

23Poderíamos acrescentar a teoria da renda. Ela era contestada por não


se acreditar na lei da produtividade decrescente da terra ou porque alguns
271
Em decorrência da crise da economia clássica, a escola histó-
rica conheceu certo domínio na Inglaterra entre 1870 e 1890. No
entanto, a ortodoxia ainda tinha um público cativo. Tentativas de
revitalizá-la foram feitas por Cairnes e Henry Sidgwick (1838-
1900) em suas obras, respectivamente, Nova exposição dos princí-
pios líderes, de 1874 (já citada), e Princípios de economia política,
de 1883. A primeira delas faz uma síntese das principais doutrinas
da economia clássica. Ambas ainda seguem a antiga moldura clássi-
ca. Essas duas décadas foram bastante profícuas em discussões
metodológicas. O “Escopo e método” de Keynes e os Princípios de
economia de Marshall acalmaram o debate. Também reduziram o
prestígio dos historicistas e conseguiram aplacar a crescente insa-
tisfação com a ortodoxia na Inglaterra graças às novas teorias
marginalistas, inteligentemente acopladas aos velhos conceitos e
noções clássicos nos escritos de Marshall.
Podemos buscar outras doutrinas que, no período, poderiam
vir a ocupar o espaço hegemônico da economia clássica. Além da
economia historicista que não foi muito longe, poderíamos citar o
institucionalismo e o marxismo como possibilidades. A primeira
escola conquistou certo prestígio nos Estados Unidos, principal-
mente nos escritos de Veblen. Nada que impedisse a aceitação da
economia marginalista e seu aprimoramento em trabalhos de
brilhantes economistas americanos como Irving Fisher e John
Bates Clark. O institucionalismo, que foi nos Estados Unidos o
sucessor da escola histórica, padeceu da fraqueza de não propor
uma compreensão alternativa dos problemas teóricos.
O legado de Marx seria outra alternativa à escola clássica se
tivesse atraído para si os descontentes dela. Entretanto, na década
de 1880, sua contribuição em nada afetou o ambiente acadêmico
dos economistas. Embora o primeiro volume de sua obra máxima
O capital tenha sido publicado em 1867, ele só foi traduzido para o
inglês em 1887. Marx morreria desconhecido em 1883. Jevons,
Menger e Walras pouco sabiam das suas contribuições.

CRISE ECONÔMICA E MUDANÇAS SOCIAIS NA INGLATERRA


Ao lado das críticas em teoria e método, na crescente
hostilidade para com a escola clássica contribuíram elementos que
se relacionam ao ambiente social e econômico da época. A descren-
ça estava voltada não apenas aos aspectos teóricos da ortodoxia, a

autores, como Richard Jones, criticavam o próprio conceito ricardiano de


renda da terra.
272
própria orientação política derivada dos princípios da doutrina
econômica clássica era contestada pela opinião pública. A breve
exposição dos eventos sociais que marcaram esta época na Ingla-
terra, que faremos adiante, facilita a compreensão de como fatos
extra teóricos impulsionaram a crise na economia política.
Os anos de 1850 a 1870 foram marcados por uma notável
prosperidade econômica na Inglaterra impulsionada pelo cresci-
mento da industrialização. As técnicas produtivas executam gran-
des saltos, com o aumento no tamanho das fábricas, especialmente
na indústria mecânica e nos setores de aço, ferro, transporte e
comunicação. A companhia limitada é substituída pela firma de
sociedade anônima, propiciando um novo e privilegiado instru-
mento de mobilização e controle do capital. Tal prosperidade, no
entanto, não se refletiu positivamente nas relações sociais; pelo
contrário, os problemas sociais só se agravaram no período.
Ocorrem inovações organizacionais trazidas pelos novos mé-
todos na administração das empresas. Tais inovações resultam em
uma relação mais hierárquica e mais burocrática no interior das
firmas, simbolizada pela introdução da figura do gerente de fábrica.
Não só no plano interno das empresas, mas também em toda a
sociedade, o período assiste ao agravamento nas relações sociais.
Ao lado da deterioração das condições de trabalho e do prolon-
gamento de sua jornada, novas mudanças são propiciadas pela
incorporação no mercado de trabalho de mulheres e crianças. A
resposta dos trabalhadores fez-se sentir no avanço da organização
sindical. Os sindicatos conquistaram grande poder de mobilização,
o que parecia ameaçar interesses econômicos de grupos organiza-
dos. Por outro lado, as firmas intensificam o uso de práticas de
conluios, com fusões e formação de cartéis. Há um crescimento
generalizado no poder de monopólio. A vida social, exacerbada por
uma configuração mais conflituosa entre as classes, que se traduzia
em tensões crescentes na política, leva a uma ação mais incisiva do
Estado na economia.
Os anos 1870 acentuaram as contradições da sociedade ingle-
sa. O processo de mudança estrutural mantém sua continuidade e
até se intensifica. A economia desse país enfrenta agora uma
reversão cíclica com o aparecimento de dificuldades econômicas.
Trata-se da Grande Depressão, vista por alguns autores como o
primeiro sinal da crise geral do capitalismo, cujo epicentro se
localiza no ano de 1873. Esse grave período da economia fez
aumentar ainda mais a intervenção do Estado. Os problemas da
economia inglesa afetaram a outros países, especialmente a Alema-

273
nha. A Inglaterra já não consegue exercer com a mesma eficácia seu
papel de coordenadora internacional do mercado de capitais.
Graves crises financeiras verificam-se, em diferentes países, nos
anos de 1873, 1882 e no começo da década de 1890. O sistema
bancário inglês, o emprestador em última instância, não mantém o
controle da situação.
A situação na agricultura também não é boa. O trigo inglês não
consegue competir com a produção dos Estados Unidos, gerando
grande queda na renda dos agricultores. O crescimento no comer-
cio internacional, sob a égide do padrão-ouro, acirra a competição,
o que leva parte da opinião pública inglesa a clamar por um maior
protecionismo. A intervenção do Estado aumenta em consequência
desses eventos, não só para dirimir os conflitos sociais internos,
mas também visando melhorar o desempenho da economia e resta-
belecer a competitividade internacional daquela nação europeia.
Outro movimento pode ser observado no plano das ideias. O
laissez-faire cedia cada vez mais espaço para a necessidade de uma
doutrina que regulasse a intervenção do Estado com base em prin-
cípios racionais de ação da esfera pública inspirados nos avanços
das ciências. Já nos anos 1860, nota-se a eclosão de um interesse
renovado pela ciência social. A crença generalizada nas potenciali-
dades dessa ciência em modelar a vida social leva a uma prolifera-
ção de várias seitas sociais. Os pensamentos de Mill, Comte, Spen-
cer, Thomas Hill Green, Henry George e Marx, o evolucionismo de
Darwin e outras correntes proporcionam um rico painel de ideias,
de cores variadas, que na época iluminou as mentes dos entusiastas
da reforma social. Ao mesmo tempo, a doutrina do livre mercado,
ainda forte, passa a encontrar rivais a altura, que se valeram do mau
resultado da competição no lado da distribuição para galvanizar os
descontentes. Há, no fim do século XIX, uma crescente ênfase no
problema da distribuição. A economia clássica era admoestada por
ter-se preocupado em demasia com o lado da produção. Acredita-
va-se na existência de um amplo escopo para políticas de distribui-
ção.
A questão da acumulação de capitais, central entre os clássicos,
pareceu, aos olhos da época, menos importante. O problema da má
alocação de recursos tornou-se mais relevante. Em sintonia com o
clima da época, a teoria marginalista iria priorizar a questão da
eficiência alocativa. Sem contestar o laissez-faire, a análise margi-
nalista explica que a inabilidade do capitalismo em controlar a
anarquia de mercado era apenas aparente e que tal controle pode-
ria ser restabelecido se o governo combatesse as coalizões internas

274
feitas por trabalhadores e patrões. Em síntese, ao lado dos proble-
mas internos à teoria clássica há razões externas que explicam sua
crise. O ressurgimento de um conflito social claro e endêmico
tornou a comunidade acadêmica e os círculos políticos e culturais
críticos à teoria clássica e particularmente receptivos à nova teoria
marginalista. O fato de o livro de Hermann Gossen, que não encon-
trou público em seu lançamento em 1854, ter alcançado extraordi-
nário sucesso, quando em 1889 um editor de Berlim o republicou
com um breve prefácio, demonstra que havia uma grande demanda
pela visão proporcionada pela teoria marginalista.

PRECURSORES DO MARGINALISMO
A escola marginalista certamente pertence ao século XX. O uso
do cálculo marginal e o conceito de utilidade foram-se firmando
gradualmente ao longo de muitos anos. De modo que somente a
partir dos anos 1930 começam a aparecer, em número significativo,
artigos em revistas especializadas embasados nos modernos méto-
dos e conceitos marginalistas. No entanto, o século XIX viu germi-
nar, de modo gradual e não muito aparente ao público da época,
ideias que propõem o uso do cálculo marginal em teoria e o concei-
to de utilidade na questão do valor. No final do período, há também
o conhecido episódio da Revolução Marginalista, entre 1871 e
1873, e o lançamento do livro de Marshall em 1890. O movimento
revolucionário não foi realmente muito sentido à época, pois
Walras e Menger eram relativamente desconhecidos e permanece-
riam ocultos por um bom tempo. Jevons tornou-se conhecido por
seu trabalho em estatística, não tanto em teoria. Então o termo
“revolução”, para caracterizar o episódio, tem um caráter retros-
pectivo e modernamente tem sido contestado pelos historiadores.
Marshall foi o grande marco na aceitação do marginalismo pela
academia. No entanto, seu livro ocorre bem no fim do século e o
impacto maior dele se fez sentir apenas no século XX.
Noções marginalistas seriam paulatinamente plantadas e a
teoria subjetiva do valor resgatada. Passos nesse sentido foram
dados por autores pertencentes a diferentes países, a maioria não
era economista, desconhecia os clássicos da disciplina e viveu
isolada entre si. Esta seção procura identificar tais contribuições
esporádicas.
O primeiro aspecto a ser assinalado é o de que os autores em
questão, em sua quase totalidade, tinham formação matemática e,
como tal, propuseram o tratamento de questões econômicas apoia-

275
do no cálculo matemático. Os clássicos, em geral, não aventaram a
possibilidade do uso da matemática em economia; exceção impor-
tante em Malthus, que em 1814 tinha sugerido o uso potencial do
cálculo diferencial para a economia e as ciências correlatas. No ano
seguinte, Georg von Buquoy analisa o lado gerencial da economia,
aconselhando os fazendeiros a maximizarem sua renda no ponto de
máximo da função lucro total, dado pelas conhecidas condições de
derivada primeira igual a zero e derivada segunda negativa do
cálculo diferencial. Pouco depois, em 1824, Perronet Thompson
emprega o cálculo marginalista no estudo da receita pública. No
ano de 1839, Charles Ellet já discute a tarifa ótima que maximiza o
lucro na linha de trem. William Whewell também foi um dos
primeiros autores a associar matemática e economia. Tal tendência
de uso da matemática foi então lentamente se difundindo.
Contudo, o grande precursor da análise marginalista foi
Antoine Augustin Cournot (1801-1877), importante economista
francês do século XIX. Seu livro, de 1838, Princípios matemáticos
da teoria das riquezas, foi pioneiro no uso da matemática na teoria
do preço de equilíbrio. Pela primeira vez um autor desenvolve
concepção moderna de oferta e demanda como conceitos funcio-
nais, representados por símbolos e gráficos, e como curvas de
planejamento ótimo. De modo inédito, ele assevera que o estudo da
demanda pode partir diretamente de relações empíricas entre
preços e quantidades, sem a necessidade de uma fundamentação
na subjetividade do agente. Propõe então o exercício de se repre-
sentar a demanda pela função contínua F(p), com F´(p) < 0. Tal
função seria obtida empiricamente. Tempos depois, Léon Walras
iria empregar o método de representação algébrica de oferta e
demanda de Cournot e usar a matemática na solução de problemas
econômicos, tendo reconhecido sua dívida para com ele.
Cournot desenvolveu uma função em que a demanda é expres-
sa algebricamente como dependente do preço D = F(p). Tal função
agrega as demandas individuais de todos os participantes de deter-
minado mercado. O formato de F dependeria da utilidade, do tipo
de serviço, de hábitos e costumes do povo, da riqueza média e da
distribuição de riqueza. Também seria afetado por causas morais.
Cournot argumenta que a relação entre preços e quantidades
demandadas poderia ser obtida empiricamente; no entanto, aceita
que o simples uso de relações entre símbolos de valores indeter-
minados seria útil por assinalar ligações entre as grandezas,
mesmo que o valor numérico das variáveis fosse desconhecido.
Cournot faz hipóteses sobre F(p): é contínua e diferenciável.
Analisa, em seguida, a receita total p. F(p), quando investiga as
276
expressões algébricas da condição de máximo obtidas pela deriva-
da primeira da receita p. F’(p) + F(p) = 0 e sua derivada segunda
2F’(p)+p. F”(p) < 0. Mostra que com F(p) côncava (F”< 0) a exis-
tência de pelo menos um máximo estaria assegurada. Trabalha
então a noção de elasticidade da demanda, embora a denominação
“elasticidade” seja de Marshall. A noção é utilizada para saber se o
preço corrente está acima ou abaixo do ponto de receita máxima.
Cournot introduz também a função custo e analisa os rendimentos
de escala. Mostra que, com lucro máximo, a receita marginal iguala-
se ao custo marginal (Boxe 8.2). Estuda ainda o monopólio, o
duopólio (aqui lança sua conhecida hipótese em que um dos parti-
cipantes imagina que o concorrente não reagirá às variações de
preço pela oferta de novas quantidades) e chega finalmente ao
modelo de n produtores em concorrência. Nesse modelo, constrói
curvas de oferta e demanda para o mercado, envolvendo a agrega-
ção das curvas individuais, e em sua intersecção determina o preço
de equilíbrio. Cournot foi o primeiro a aplicar o cálculo diferencial
à economia, em trabalhos sobre monopólio e oligopólio.

Boxe 8.2 A condição de lucro máximo em Cournot.

Esta condição implica maximizar a expressão p. F(p) –  (F), isto é, receita


total menos custo total. Cournot procura então um ponto com derivada igual a
zero (condição de máximo), deriva toda a expressão anterior em relação a p. A
derivada do primeiro termo é F(p) + p. dF/dp. Isto ainda não é a receita
marginal, pois Rmg = d(p. F)/dF, ou seja, a derivada da receita total em relação
às quantidades e não em relação a preços como na expressão de Cournot.
Portanto, Rmg = (dp/dF). F + p = dp/dF (F + (dF/dp). p). Vemos então que a
derivada do primeiro termo da expressão de Cournot, receita total menos
custo total, é Rmg. (dF/dp) e não simplesmente a receita marginal.
Já o segundo termo, da mesma expressão, quando derivamos em relação a
p, fica sendo – (d/dF). (dF/dp) = – Cmg. (dF/dp). É importante assinalar que
o custo marginal (Cmg) é a derivada da função custo total ( (F)) em relação
às quantidades e não em relação aos preços. Reunindo as duas expressões já
obtidas temos que d(pF(p) –  (F))/dp = Rmg. (dF/dp) – Cmg. (dF/dp).
Igualando a zero, temos demonstrada a condição receita marginal igual a custo
marginal para o lucro máximo.

Outro pioneiro na aplicação do cálculo marginal a problemas


econômicos foi o alemão J. H. von Thünen (1783-1850) em sua obra
O Estado solitário, publicada postumamente em 1850.26 Ainda

26 A obra
está dividida em dois volumes. Em 1826 foi publicado o primeiro
volume no qual o autor desenvolve sua famosa teoria da localização espa-
277
alinhado ao tratamento clássico em alguns aspectos, Von Thünen
não se preocupou com a demanda, empregando o marginalismo
apenas na esfera da produção, particularmente na agricultura, em
que mostra que a renda máxima do produtor é alcançada quando o
acréscimo marginal de renda obtida por meio do último fator em-
pregado torna-se igual ao preço do fator. Preços e salários são
determinados basicamente pelos custos de produção, mas não da
mesma maneira que nos clássicos. Há curiosas hipóteses incorpo-
radas a seu modelo.
Von Thünen introduz novos conceitos mantendo, no entanto,
pontos básicos da doutrina econômica clássica. Sua obra influen-
ciou J. B. Clark e A. Marshall. Suas teorias de salário e juro, embora
levem a conclusões equivocadas, são importantes historicamente
pelo método que empregam. O autor alemão parte de um modelo
simples de economia espacial no qual em solo homogêneo localiza-
se um centro urbano no ponto central e as atividades econômicas
distribuem-se em torno dele ao longo de círculos concêntricos. No
círculo vizinho à cidade produzem-se vegetais e leite, com cultivo e
pecuária intensiva, usando-se técnicas como fertilizantes e rações
especiais.27 A localização espacial de outras atividades dependerá
do custo de transporte. Dessa forma, as pastagens ficam nos círcu-
los mais externos e as florestas cobrem o entorno.28
Com esse esquema espacial, Von Thünen propõe uma teoria da
renda dependendo não da qualidade do solo como em David Ricar-
do, já que por hipótese ele é homogêneo, mas da localização e da
intensidade do cultivo. O preço do bem de consumo final, vendido
nas cidades, é igual à soma do custo de produção mais o custo de
transporte. Este último é crescente para lugares cada vez mais
distantes. O custo de produção depende de salário w e juro i. As

cial das atividades econômicas em círculos concêntricos ao mercado em


que o produto é vendido. A data 1850 corresponde à publicação do volu-
me 2 em que Von Thünen esboça sua teoria da produtividade marginal
sobre salário e capital.
27 Nas vizinhanças da cidade produzem-se produtos frágeis de jardinagem

e horticultura como morango, alface, couve-flor etc. Os fazendeiros tam-


bém criam vacas alimentadas em celeiros para a produção de leite. Porque
o custo de transporte do leite é difícil e caro.
28 Florestas cultivadas aparecem no círculo mais próximo das cidades,

depois do cinturão de vegetais e leite. Essas florestas fornecem à cidade


combustível e materiais de construção. Tais itens são cultivados próximos
à cidade porque são pesados em relação a seu preço. Depois desses dois
anéis, começa o cinturão de cereais, ora de cultivo mais intensivo, ora
intercalados temporariamente com o descanso da terra e o seu uso como
pastagem. A floresta externa é usada como área de caça.
278
terras de melhor localização economizam custo de transporte. A
economia de transporte é paga na forma de renda da terra ao
proprietário das terras mais bem situadas. A renda também surge
dos retornos decrescentes associados ao cultivo intensivo, como
em Ricardo. Quando toda a terra é utilizável, ponto de partida da
análise de Von Thünen, as terras inframarginais produzem um
excedente de valor sobre os custos de produção, pago na forma de
renda.
Falta uma explicação mais fundamentada para salários e juros
em Von Thünen, mas vale a pena repassar os pontos básicos de sua
teoria. Ele imagina um grande país tropical, rico em recursos natu-
rais e favorecido pelo clima. O conhecimento tecnológico está dis-
tribuído uniformemente entre os trabalhadores, mas só alguns
deles possuem capital suficiente para tocar o negócio por conta
própria. Os trabalhadores, se forem os donos do negócio, contratam
outros trabalhadores sempre que o salário pago ao último contra-
tado supere a variação da produção proporcionada por ele, descon-
tando-se os juros do capital adiantado ao trabalhador contratado.
Os juros do capital, portanto, também entram na análise e eles
representam a contrapartida a três aspectos: compensação pela
espera, prêmio pelo risco e salário da gerência.
No modelo do Estado solitário, Thünen chega a um curioso
resultado em que o salário de equilíbrio w é igual a a. p , a é o
consumo anual de subsistência de uma família de trabalhadores e
p, o produto médio anual de uma família com q quantidades de
capital, expresso em unidades físicas de trigo. Thünen considerou
essa fórmula tão importante para a economia científica que pediu
que ela ficasse gravada na lápide de seu túmulo. Vejamos as hipóte-
ses do modelo: uma comunidade isolada, com terras homogêneas e
que toma vantagem da divisão do trabalho tão logo exista capital
suficiente. As terras, de mesma qualidade, são adquiridas sem
custo, mas os trabalhadores só atuam por conta própria se tiverem
capital suficiente, caso contrário empregam sua força de trabalho
como assalariados. A quantidade anual para a subsistência da famí-
lia é 100c, em unidades físicas (c é a centésima parte desse montan-
te). Anualmente é produzido por família um excedente de 10c, de
modo que em 10 anos a soma do excedente poupado, que não rende
juros, corresponderá ao consumo anual de subsistência.
O salário anual em trigo é a + y, onde a é o nível de subsistência
e y o excedente que pode ser acumulado ano a ano. O trabalhador
pode permanecer na condição de assalariado ou decidir explorar a
terra por conta própria. Nesse caso, ele necessita de um capital q,
279
expresso em unidades do produto anual da família. O salário e o
juro na orla periférica determinam o salário e o juro em todo o
sistema. A cada ano, o trabalhador com patrão recebe duas formas
de rendimentos: o salário anual e os juros anuais (a taxa z) que
incidem no capital previamente acumulado por ele. Ele decide
explorar uma nova terra por conta própria sempre que o produto
anual da terra periférica p, quando empregadas q unidades de
capital, for maior que o custo de oportunidade em permanecer
como assalariado, ou seja, o salário w e os juros do capital acumu-
lado z.k. Na condição de equilíbrio p = w + z.k, demonstra-se que
w = a. p na hipótese comportamental de que o indivíduo busca
maximizar a renda gerada pelo excedente anual z.y. A demons-
tração desse resultado é feita no Boxe 8.3.

Boxe 8.3 Demonstração da equação fundamental dos salários em


Von Thünen.

Primeiramente escreve-se o capital acumulado k necessário para a


exploração da nova terra, em termos de unidades de salário em trigo, de modo
que k = q. (a + y) representa o capital em trigo. q representa unidades do trigo
anual da família (a + y). Escreve-se, portanto, p = (a + y) + q. (a + y). z.
Isolando-se os juros, z = (p –(a+ y))/q. (a + y). Maximiza-se a expressão z. y,
(𝑝−(𝑎+𝑦))𝑦 𝑝𝑦−𝑎𝑦−𝑦2
𝑑[ ] 𝑑[ ]
𝑞(𝑎+𝑦) 𝑞(𝑎+𝑦)
ou seja, = = 0. O que implica (𝑝 − 𝑎 − 2𝑦). (𝑞(𝑎 + 𝑦)) −
𝑑𝑦 𝑑𝑦
(𝑝𝑦 − 𝑎𝑦 − 𝑦 2 ). 𝑞
= 0, 𝑝𝑞(𝑎 + 𝑦) − 𝑎𝑞(𝑎 + 𝑦) − 2𝑞𝑦(𝑎 + 𝑦) − 𝑝𝑞𝑦 + 𝑎𝑞𝑦 +
𝑞𝑦 2 = 0. Desenvolvendo-se a expressão, chega-se a 𝑝𝑞𝑎 − 𝑞𝑎2 − 2𝑞𝑎𝑦 −
𝑞𝑦 2 = 𝑝𝑎 − 𝑎2 − 2𝑎𝑦 − 𝑦 2 = 0. Note que (𝑎 + 𝑦)2 = 𝑎2 + 2𝑎𝑦 + 𝑦 2 . Portan-
to, p.a = (a + y)2. Como a + y = w, w = a. p , a famosa expressão de salários
de Von Thünen.

O resultado do modelo de Von Thünen é evidentemente pouco


convincente, mas representa uma importante etapa na evolução
das teorias de salário. O salário já não depende apenas do nível de
subsistência a, como nos clássicos, e há agora a ligação do salário
com o produto anual, um passo importante na evolução da moder-
na teoria do salário como determinado pela produtividade margi-
nal. Pode-se interpretar a expressão de Von Thünen como um meio-
termo entre a interpretação clássica e a moderna, tomando-se uma
média geométrica das variáveis relevantes em cada caso, respecti-
vamente subsistência e produtividade. O modelo tem pontos que
não são justificados. Ele expressa a unidade de capital em salário
280
anual, como se todos os itens de custo se resumissem a salário. Ele
maximiza o retorno do excedente anual z.y, mas deveria levar em
conta todo o capital acumulado até certo ano. Em suma, é um
modelo simplificado e errôneo, com excesso de abstração, mas ele
é bastante inovador e sofisticado para a época.
Embora Cournot e Thünen tenham-se notabilizado pela ado-
ção da técnica marginalista na solução de problemas econômicos
particulares, eles não incorporaram a noção de utilidade ou propu-
seram uma teoria subjetiva do valor em oposição aos clássicos.
Entretanto, tal teoria tornar-se-ia, tempos depois, um dos pilares
do marginalismo. Sabemos que a ideia de que o valor depende da
avaliação humana do bem remete à Antiguidade, e foi articulada
pela corrente de escolásticos medievais seguidores de Tomás de
Aquino, que partem do conceito de Indigentia e elaboram a ideia
até a síntese de Geraldo Odonis, menos unilateral.29 Então, desde
tempos antigos podem-se encontrar ao menos esboços de um
reconhecimento dos determinantes subjetivos e psicológicos dos
preços. Aristóteles, na exposição dos critérios de justiça comutati-
va, já falava na consideração das necessidades humanas para uma
definição dos parâmetros envolvidos na troca justa. No entanto, a
escola clássica, exceção a Malthus, conferira absoluta primazia, na
questão do valor, aos custos em trabalho. O que, de certo modo, foi
um retrocesso.
A medida da importância da necessidade atendida ou do grau
de satisfação remete ao conceito de utilidade. A palavra “utilidade”
é recorrente no vocábulo da economia clássica inglesa, mais com o
significado de capacidade de um bem de satisfazer a desejos do que
medida subjetiva de satisfação ou necessidade. Certa teoria da
utilidade é recorrente nos escritos de Jean-Baptiste Say, mas os
clássicos, em geral, acreditavam que a utilidade não seria uma
causa do valor, e sim um mero pré-requisito para a sua existência.
Os clássicos demonstravam sentir-se embaraçados diante do
aparente paradoxo envolvendo as noções de valor de troca e valor
de uso. Adam Smith exemplifica-o comparando a água com o
diamante. O primeiro bem é indiscutivelmente mais útil na satisfa-
ção de nossas necessidades. No entanto, seu valor de troca é consi-
deravelmente menor que o do diamante. Então, concluía ele, o
fundamento do valor só pode estar no valor de troca. O que o levou
a essa solução simplista era que ele não possuía, de fato, as ferra-

29
Vide capítulo 2 deste livro.
281
mentas teóricas e conceituais para desvencilhar-se completamente
do problema, como os clássicos de modo geral (Boxe 8.4).

Boxe 8.4 As deficiências de Adam Smith na solução do paradoxo do


valor.

Sem muita crítica dos conceitos, Smith recebe e passa a seus leitores a
distinção clássica entre valor de uso e valor de troca. A passagem em que
descreve o paradoxo do valor entre água e diamante revela sua dificuldade ao
lidar com esses conceitos. De fato, não tem sentido algum afirmar que, para
um mesmo bem, o valor de troca possa exceder ou estar abaixo do valor de
uso. Smith não possui os conceitos de utilidade marginal do bem e da renda
que lhe possibilitariam comparar quantidades heterogêneas. Smith aponta
que a razão dos valores de duas mercadorias não coincide com a razão entre
suas utilidades totais, o que é correto, mas a base de seu raciocínio peca por
considerar implicitamente unidades heterogêneas de água e diamante e por
não introduzir a noção de utilidade marginal. Ele parece estar fazendo uma
condenação moral ao fato de o valor de uso poder estar abaixo do valor de
troca.

É provável que o filósofo moral Jeremy Bentham (1748-1832)


tenha sido o primeiro inglês a usar a técnica de maximização indivi-
dual e o conceito de utilidade. Ele também mantinha implícito em
seus raciocínios a importante noção de utilidade marginal. Em
1789, em sua obra Introdução aos princípios da moral e da legisla-
ção, escreve:
“A quantidade de felicidade produzida por uma partícula de
riqueza (cada qual de mesma magnitude) será menor a cada
nova partícula.” (J. Bentham, Introdução aos princípios da mo-
ral e da legislação)
Bentham explorou o princípio da utilidade decrescente da
riqueza, distinguindo claramente o significado para o consumidor
de unidades fisicamente similares. Sua análise conduz diretamente
ao conceito de utilidade marginal. No entanto, Bentham propôs a
abordagem da utilidade no campo da ética e não induziu os econo-
mistas clássicos de seu tempo à aplicação dela na economia. Isso
não foi tentado nem por pessoas com claras inclinações pela filoso-
fia utilitarista, como James Mill. David Ricardo era amigo de Ben-
tham, mas por ser um reformador pragmático, com pouca propen-
são à filosofia, nunca incorporou a noção ética de utilidade em seus
escritos econômicos. De fato, Ricardo não dominava o conceito de

282
utilidade marginal. Na França, J. B. Say tentou dar à utilidade um
papel mais destacado na economia científica, mas não foi muito
longe. Não se pode confundir, entretanto, a noção ética de utilidade
com o uso do mesmo conceito na teoria econômica do valor. A
análise marginalista possibilita a plena solução do falso paradoxo
do valor ao olhar para o lado da demanda e compreender que ela
pode ser derivada do antigo conceito de utilidade. O valor de uso
relaciona-se com a utilidade total do estoque de bens previamente
possuído. O valor de troca refere-se aos acréscimos nessa utilidade,
proporcionados pelo consumo sucessivo do bem. Se a solução mar-
ginalista parece evidente, o caminho para chegar a ela foi sendo
desvendado muito lentamente.
Daniel Bernoulli, em 1738, usou a noção de utilidade marginal
decrescente na solução do chamado “paradoxo de São Petersburgo”
(Boxe 8.5):

“A utilidade resultante de qualquer pequeno incremento na


riqueza será inversamente proporcional à quantidade de bens
previamente possuídos.” (Apud R. Howey, The rise of the mar-
ginal utility school )
Auguste Walras, pai de Léon Walras, em 1831, e Mountifort
Longfield, em 1834, aplicaram a noção de utilidade a eventos eco-
nômicos sem desenvolverem muito o princípio de utilidade margi-
nal. A distinção entre utilidade total e utilidade marginal aparece
nos escritos de William Forster Lloyd, em 1833. Ele foi seguido por
Senior três anos depois, embora este economista ainda fizesse
pouco uso do conceito. Jules Dupuit em 1844, na França, Gossen em
1854, na Alemanha, e Richard Jennings no ano seguinte, na Ingla-
terra, chegaram de modo independente ao conceito de utilidade e
empregaram-no na análise do consumidor. Hearn voltou a enunciar
o princípio da utilidade marginal em 1864. No entanto, entre eles
apenas Dupuit e Gossen aplicaram o princípio da utilidade marginal
diretamente na solução de problemas econômicos. Porém, eles não
convenceram o público da importância de seus trabalhos.
Registra-se um fato curioso, mas recorrente também na
evolução de outras ciências: ao longo do século XIX, o conceito de
utilidade na economia e sua aplicação foram sendo articulados e
propostos simultaneamente por pessoas que não tiveram nenhum
conhecimento das contribuições similares dos contemporâneos.
Vários autores, trabalhando em diferentes ambientes, são levados
simultaneamente à mesma descoberta. Os historiadores da ciência
investigam, neste tocante, como é possível a descoberta simultânea

283
de teorias muito próximas entre si em contextos isolados. Os casos
são conhecidos, citemos alguns: o cálculo diferencial (Newton e
Leibniz), a teoria da evolução (Darwin e Wallace), o princípio da
conservação de energia (Mayer, Joule e Helmholtz) e a aplicação da
equação do movimento browniano (Louis Bachelier aplicou essa
equação na descrição dos preços de ativos financeiros e Einstein fez
o mesmo na física). Será que se trata de mera coincidência ou se
pode identificar algum fator na história da ciência que torna o
próximo passo previsível e, como tal, ele é dado simultaneamente
por diferentes autores independentes ao mesmo tempo?

Boxe 8.5 O Paradoxo de São Petersburgo.

Bernoulli, quando propôs discutir esse “paradoxo”, estava tratando de


teoria da probabilidade. Ele imaginou quanto alguém estaria disposto a pagar
para disputar um jogo de lançamentos de moeda se ganhasse $ 2 para a ocor-
rência cara na primeira jogada, $ 4 na segunda, $ 8 se o terceiro lançamento
desse cara e assim por diante. Enfim, paga-se $ 2n quando a primeira
ocorrência de cara ocorre na enésima jogada. Em cada jogada, temos a
probabilidade de 50% de ocorrência de um resultado cara ou coroa. Multi-
plicando-se a probabilidade de cada jogada na sequência pelo ganho, temos
um retorno esperado sempre igual a um: na primeira jogada 0,5. 2 = 1, na
segunda 0,25. 4 = 1 e assim por diante. A somatória de todos os retornos
esperados nas n possíveis jogadas é i2-n. 2n = i1, valor infinitamente
grande já que n pode crescer de modo ilimitado. O paradoxo é que, como o
ganho esperado é infinito, esse jogo valeria a pena ser jogado pagando-se
qualquer preço para participar dele. Na prática, porém, certamente poucas
pessoas estariam dispostas a pagar um preço elevado para entrar no jogo, já
que uma simples cara no lançamento inicial poria a perder tudo o que
ultrapassasse irrisórios $ 2. Bernoulli percebeu, no entanto, que a decisão de
pagar ou não para participar do jogo não depende do ganho esperado, mas da
utilidade da riqueza esperada, definida como a somatória do produto da
utilidade do ganho pela probabilidade em cada lançamento: i 2-n. U(2n).
Demonstra-se que esta somatória será finita mesmo com n tendendo a infinito
se a inclinação da função utilidade for decrescente. Daí o contexto da citação
de Bernoulli em que ele antecipa a noção de utilidade marginal decrescente.
Se a somatória é finita, a decisão de pagar ou não o preço do jogo só depende
de comparação entre a utilidade esperada e a utilidade do dinheiro despen-
dido.
A moderna teoria da escolha com risco mostra que na função de utilidade
convexa a utilidade esperada é finita, por exemplo para a função de utilidade
log 2𝑛
logarítmica i2-n. log(2n) = ∑𝑖 𝑛 = log 2∑𝑖 𝑛 . Note que, se + + +
𝑛 1 2 3
2 2 2 4 8
4 1 1 1 1 1 2 3 1
+ ⋯ = 𝑥, 𝑥 = ( + + + + ⋯ ) + ( + + + ⋯ ) = 1 + 𝑥. Portanto,
16 2 4 8 16 4 8 16 2
0,5𝑥 = 1, 𝑥 = 2, e assim i2-n.log(2n) = 2.log 2  0,602. Funções de utilidade
convexa indicam que o indivíduo apresenta aversão ao risco.

284
No exemplo que estamos analisando na economia, podemos
identificar algo que estaria no ar e que fatalmente convergia os
esforços na direção do conceito de utilidade? Do que vimos, a
função de demanda já estava incorporada como instrumento da
análise econômica. Postulava-se sua inclinação negativa, mas a
explicação disso era meramente intuitiva. Não se ignorava o efeito
da renda no consumo. A teoria da utilidade marginal proporcionou
uma explicação da demanda ancorada na subjetividade do consu-
midor. Nem todos os autores conseguiam desenvolver logicamente
a teoria de modo a aplicá-la, não trivialmente, aos problemas
econômicos. Muitos economistas resistiam a aceitar uma teoria
cuja aplicação, no entendimento do fenômeno da demanda, aparen-
tava deixar muito a desejar.
Precisar o que levou a ciência econômica a caminhar em
direção à teoria marginalista não é tarefa simples para o historia-
dor. Se ela apareceu em vários autores independentes, fica difícil
imaginar que tenha sido um mero acaso. Não se pode afirmar,
entretanto, que problemas internos à teoria clássica tenham condu-
zido naturalmente ao marginalismo. Um passo nessa direção não
era algo que poderia ser claramente percebido em meados do
século XIX. A economia política clássica dos anos 1870 não parecia
indicar isso. Para onde iria a economia ricardiana ninguém poderia
prever. É verdade que o conceito de utilidade marginal e de utilida-
de estavam no ar. Tais conceitos são tão básicos e importantes para
a análise econômica que eles apareceriam cedo ou tarde. Os desen-
volvimentos mais fáceis de imaginar-se, no entanto, eram outros.
Por exemplo, uma generalização da análise marginal de Ricardo da
teoria da renda da terra para uma explicação do preço de qualquer
fator de produção ou a transformação da teoria do valor ricardiana
em análise insumo-produto, tal como feita no século XX por Wassily
Leontief.
Talvez mais importante que disputas teóricas foram os
problemas práticos que demandavam solução e não eram nem de
longe atendidos pela economia clássica, tais como cobrança de
pedágio, preços de monopólio, preços do serviço de transporte
ferroviário e pagamento de salários. Muitos perceberam que essas
questões iriam requerer um tratamento matemático. O uso da
matemática propiciou um caminho para a incorporação do margi-
nalismo à economia e explica o aparecimento deste em vários
autores isolados.

285
Ao lado das novas técnicas marginalistas, outro passo simul-
tâneo foi a redescoberta da noção de utilidade na interpretação do
valor econômico. Ao se preocuparem em desenvolver uma teoria
que explique a demanda do consumidor, os economistas irão bus-
car considerações de natureza psicológica sobre os agentes. A
princípio isto poderia ter relação com o desenvolvimento da psico-
logia como ciência, que de fato ocorre também no século XIX, acen-
tuadamente nos Estados Unidos. Diversos argumentos já foram
lançados por historiadores das ideias para mostrar que o caminho
da economia científica no fim desse século foi inspirado pelo exem-
plo da física, da biologia e da psicologia. Atualmente reconhece-se
que tais teses são algo exageradas. No caso da crença na influência
da psicologia, definitivamente ela não foi significativa. Pelo contrá-
rio, os psicólogos americanos foram os mais veementes críticos da
teoria da utilidade marginal, dizendo que ela não tem base empíri-
ca. Os teóricos da economia marginalista nunca pretenderam uma
incursão nos domínios da psicologia. Seus proponentes, de fato, não
se interessaram pelos avanços nesta ciência. A assimilação da
teoria subjetiva do valor, assentada na noção de utilidade, foi lenta
e não se deu sem dificuldades. Na reconstrução histórica desse
caminho, aprofundam-se a seguir as contribuições de Dupuit e
Gossen, dois dos precursores do marginalismo que mais avançaram
na articulação da teoria da utilidade.
Arséne Jules Emile Dupuit (1804-1866), engenheiro francês,
publica em 1844 seu mais importante livro: Sobre a medida da
utilidade nos trabalhos públicos. Sua contribuição concentra-se no
desenvolvimento dos fundamentos teóricos para a economia do
bem-estar, as finanças públicas e a microeconomia. Engenheiro
consagrado, teve vários trabalhos premiados entre 1837 e 1848
envolvendo o problema do transporte rodoviário, de navegação e
de sistema de águas municipais enquanto trabalhava na prefeitura
de Paris. A economia tornou-se seu hobby. Dupuit morreu antes de
concluir o grande projeto de um amplo tratado de economia
política aplicada ao setor público. Em 1861, publica um importante
panfleto, Liberdade comercial. Trabalhou em revistas especializa-
das. Antes do “Sobre a medida”, tinha lido os clássicos. Não conhe-
ceu Cournot, mas teve influências de Pellegrino Rossi e Joseph
Garnier.
Dupuit combina, em sua análise econômica, estatística e mate-
mática com lógica dedutiva e uso de gráficos. Além da lógica e do
desenvolvimento de conceitos, destaca-se pela investigação empí-
rica de fatos concretos. O principal problema econômico identifica-
do por ele era o de como mensurar a utilidade de bens públicos, ou
286
seja, o nível de bem-estar social proporcionado por eles. Ao se
preocupar com esses problemas, desenvolve os conceitos de utili-
dade marginal (distinguindo-o de utilidade total), demanda, exce-
dente do consumidor e análise do monopólio com técnicas de
discriminação de preços. Assevera corretamente que o preço dos
bens públicos deve estar relacionado ao custo marginal de produzi-
los, e na análise da demanda é o primeiro autor a relacioná-la com
utilidade marginal; diz que a utilidade de um estoque de bens
depende da importância da última unidade. Exemplifica essa ideia
com o problema da distribuição de água: cada incremento na oferta
de água satisfaz a uma necessidade menos importante. A necessi-
dade menos essencial atendida pelo bem, quando multiplicada pela
quantidade do bem envolvido, define o valor de uso de todo o seu
estoque.
Dupuit identifica a utilidade marginal com a curva de deman-
da, um grande equívoco. A curva de demanda Qd = f(p) é obtida
empiricamente. Pontos à esquerda e abaixo correspondem a
situações de desequilíbrio, em que a utilidade marginal é maior que
o preço. É sempre possível deslocar-se verticalmente para algum
ponto situado na curva de demanda com ganho nas utilidades
totais. Dupuit reconhece que a área à esquerda da curva de deman-
da, entre zero e certa quantidade Qd , determina a utilidade total no
consumo de Qd unidades.
O excedente (“une espèce de bénefice” ) é a parte da utilidade
total que excede a multiplicação da utilidade marginal pelo número
de unidades da mercadoria. Ou seja, como a curva de utilidade
marginal, para ele, é idêntica à curva de demanda, o excedente do
consumidor é a área à esquerda da curva de demanda entre zero e
Qd menos a despesa com a mercadoria p. Qd = Umg. Qd (Figura 8.1).

Figura 8.1 Determinação gráfica do excedente do consumidor em


J. Dupuit.

Quantidade

𝑄𝑑 Excedente do consumidor

p Preço ou utilidade marginal

287
Dupuit errou ao interpretar as funções de demanda como
funções de utilidade marginal. Se isso fosse possível, mas não o é,
uma série de dificuldades que envolve o conceito de utilidade seria
imediatamente solucionada. Nesse caso, a própria função empírica
da demanda individual, obtida pela relação observada entre preços
e quantidades, permitiria quantificar a utilidade marginal. Tal utili-
dade seria igual ao preço associado a cada nível de quantidade ao
longo da curva de demanda. O problema da medida da utilidade
estaria prontamente solucionado.
Certo de sua solução, Dupuit não teve cerimônia em fazer com-
parações interpessoais de utilidade, sob a hipótese de que a
utilidade é mensurável por meios monetários.30 Dupuit não se
apercebeu de que ele tinha assumido, o tempo todo, que utilidade
total e renda movem-se proporcionalmente (Boxe 8.6).

Boxe 8.6 O equívoco de Jules Dupuit (uma demonstração


algébrica).

Mostra-se que as funções de demanda e as de utilidade marginal não são as


mesmas, ao contrário do que pensava Dupuit, ao examinar-se o problema de
maximização condicionada da função utilidade U, dada a restrição orçamen-
tária, aos preços 𝑝1 , 𝑝2 , … , 𝑝𝑛 , de n bens, e renda R. A maximização de U, na
escolha de n bens 𝑥1 , 𝑥2 , … , 𝑥𝑛 , pode ser calculada pelo uso da função de La-
grange Φ = U(𝑥1 , 𝑥2 , … , 𝑥𝑛 ) + 𝜆(𝑅 − 𝑥1 𝑝1 − 𝑥2 𝑝2 − ⋯ ).
𝜕Φ 𝜕Φ 𝜕𝑈
Na condição de máximo =0e = 0, 1 ≤ 𝑖 ≤ n, o que implica =
𝜕λ 𝜕𝑥𝑖 𝜕𝑥𝑖
𝜕𝑈
𝜆. 𝑝𝑖 . Se xi é o numerário, pi = 1 e λ = . Portanto, λ é a utilidade marginal da
𝜕𝑥𝑖
moeda. Os preços só substituem as utilidades marginais, 𝑈𝑖 = 𝑃𝑖 , como o faz
𝜕𝑈
Dupuit, se λ = 1, ou seja, na situação em que = 1, M é a moeda total dispo-
𝜕𝑀
nível (a renda monetária do indivíduo). Nesse caso, vale dizer, toda variação
de moeda (ou renda) deve ser igual ao incremento de utilidade. Contudo, não
podemos supor a constância na relação, nem que ela é sempre unitária, embora
isso possa ser válido para pequenas variações.

Nos anos seguintes à publicação de “Sobre a medida”, Dupuit


escreveu uma série de artigos analisando os problemas de
mensuração dos benefícios sociais envolvidos na provisão de bens
e serviços públicos. Embora tenha aclarado questões de finanças
públicas e operacionalizado, para tanto, o conceito de utilidade

30Esse procedimento já havia sido, muito antes, aventado por Bentham,


que procurou medir o prazer por meio dos preços que ele comanda.
288
marginal, seu trabalho apresenta sérias deficiências teóricas.
Dupuit não foi o único a confundir curvas de demanda individual
com curvas de utilidade expressas em termos monetários. Lloyd e
Gossen eram mais acurados e não incorreram nesse erro. Léon
Walras e seus seguidores logo apontaram o equívoco de Dupuit.
Walras foi bem-sucedido em estabelecer a relação correta entre
utilidade e demanda. Marshall viria a discutir esse problema em
seus Princípios de economia. O equívoco teórico de Dupuit foi
sendo sanado com o desenvolvimento futuro da teoria da utilidade.
Hermann Heinrich Gossen (1810-1858) propiciou acentuado
desenvolvimento às noções de utilidade e de utilidade marginal.
Além da boa exposição geométrica, ele procurou articulá-las a uma
teoria psicológica de conteúdo hedonista. Pela primeira vez, a
teoria da utilidade marginal é consistentemente aplicada na inves-
tigação dos problemas da troca de mercadorias e da determinação
dos preços. Gossen propõe-se fundamentar toda a economia na
noção de prazer e dor. Para tanto, publica em 1854 o livro Desen-
volvimento das leis das trocas entre os homens e as regras resul-
tantes para a ação humana. Essa obra permaneceu desconhecida
entre os seus contemporâneos, mas é inegável seu valor. Nela já
estão demonstrados os principais teoremas da doutrina subjetiva
do valor tal como apareceriam, anos depois, em Jevons. Este admi-
tiu a proximidade a Gossen, contudo, Jevons só conheceu a obra
dele depois de desenvolver ideias semelhantes de modo indepen-
dente (mais um exemplo de descoberta simultânea na ciência).
Gossen tinha consciência do conteúdo revolucionário de seus
escritos. Sua obra, porém, teve pouca repercussão enquanto ele
viveu, e isso só fez piorar sua condição de homem amargurado. O
legado de Gossen foi ignorado por três décadas, até ser redesço-
berto por Jevons em 1878. Jevons reconheceu que a obra de Gossen
precedera-o em importantes aspectos. Em sinal a esse reconhe-
cimento, o livro de Gossen foi reeditado em 1889.
Embora o “Desenvolvimento das leis das trocas” seja um livro
razoavelmente bem escrito, no qual o autor procura sempre ilus-
trar suas ideias com exemplos fictícios e ajuda de tabelas, ele não
foi talhado para a época em que surgiu e não encontrou respaldo
no público leitor. O livro tem alguns pontos negativos: a apresen-
tação pesada e as deduções matemáticas são complicadas e fatigan-
tes. Gossen acabou sendo uma das figuras mais trágicas na história
do pensamento econômico. Pensador profundo e original que foi,
acabou desenvolvendo seu pensamento em exercícios, às vezes
deficientes, de álgebra e de aritmética complexa. Não sabemos o

289
grau de intimidade desse autor com as obras de Bentham, mas o
fato é que Gossen desenvolveu um cálculo econômico imediata-
mente aplicável aos princípios benthamitas. Os interesses intelec-
tuais e o temperamento de Gossen permanecem ocultos.
Gossen propõe-se a explicar o fenômeno dos preços numa base
inteiramente subjetivista. Em seu esquema teórico, ele parte do
exame dos sentimentos humanos de prazer ou satisfação. Para ele,
o homem é inexoravelmente movido pelo intento de aumentar sua
satisfação ao longo de toda a vida até o máximo alcançável. Os
homens organizam, portanto, as possibilidades de derivar prazer
de tal forma que se maximiza a somatória do prazer de toda a vida.
Até mesmo o asceta sente prazer em seguir seus hábitos excêntri-
cos na expectativa de uma recompensa no Além, e, portanto, ele não
rompe com o princípio hedonista da busca do prazer (Boxe 8.7).

Boxe 8.7 O hedonismo do asceta.

Escreve Gossen: “Mesmo o asceta, que aparentemente se distancia o


mais possível desta finalidade, pensando alcançar o reino dos céus pelas
mortificações e privações de todo o gênero que se impõe voluntariamente,
demonstra a verdade deste princípio. Abstraindo o fato de que, até certo
ponto, ele até pode ter prazer em seguir tais hábitos, de qualquer modo só é
levado a tais ações porque está convencido de que as privações que se impõe
voluntariamente nesta vida lhe serão muitas e muitas vezes recompensadas
no Além; e se esta convicção lhe for tirada, imediatamente, adotará uma
maneira de atuar inteiramente oposta à anterior. Aliás, a História nos fornece
exemplos abundantes de pândegos frívolos que se tornaram ascetas e, ao
contrário, de monges penitentes que se tornaram grandes pândegos. Em
relação àquele princípio, o asceta só difere do pândego porque é um egoísta
muitíssimo mais insaciável; o que a terra oferece não basta como soma de
prazer; quer mais e pensa obtê-lo com seu procedimento.” (Apud E. Schnei-
der, Teoria econômica).

Gossen diz-nos que os homens atuam de modo diferente por-


que têm opiniões diferentes sobre a grandeza dos diferentes praze-
res da vida, o que varia com a cultura individual, diferenças nas
preferências intertemporais etc., e avaliam distintamente a grande-
za da restrição presente, do sacrifício atual, requerida para a obten-
ção de maior prazer futuro, ou seja, o balanço entre o prazer a se
alcançar no futuro e o tempo e as forças a se sacrificar. No entanto,
todos, enfim, pretendem aumentar sua satisfação na vida até o
máximo.

290
Para Gossen, o prazer é a força que move a humanidade. Diz
que essa força está sujeita a leis determinadas e específicas que
fornecem ordem e coesão entre os homens, de modo análogo às leis
da gravitação, que conferem harmonia aos movimentos celestes.
Mesmo a pregação moral não poderia eliminá-la. Ela é um fato natu-
ral além de qualquer consideração ética. Diz ele que tal força é feita
pelo criador, do mesmo modo como ele proporciona as forças
físicas que comandam o movimento dos corpos, e que é um engano
querer suprimi-la, pois...

“O criador também este engano previu, e deu a esta força


uma intensidade tão extraordinária que toda a luta do homem
contra os seus efeitos pode enfraquecê-la, mas não pode para-
lisá-la, e por mais que o homem se esforce por destruí-la em
uma de suas manifestações, sempre surge novamente com
maior força, numa outra direção inesperada e imprevista.”
(Apud E. Schneider, Teoria econômica)

A busca do prazer leva os homens a agir de modo essencial-


mente autointeressado e, em consequência, gera-se o benefício
público por meio das trocas. O mundo econômico, regulado pelas
trocas de mercado, é coeso e ordenado porque nele atua uma força
particular que é a busca individual do prazer.
Vale destacar alguns aspectos da teoria de Gossen. Ele acredita
que os elementos subjetivos que comandam a ação dos homens não
são arbitrários, mas estão sujeitos a leis de operação. É possível,
portanto, dar-lhes um tratamento teórico sistemático, de modo a
utilizá-los na explicação do fenômeno das trocas. O que se passa na
mente de um indivíduo é semelhante ao que se verifica em outras
mentes. As forças que impelem ao prazer estão sujeitas a caracte-
rísticas comuns de atuação que são investigadas pelo autor alemão.
Na exposição dos elementos comuns a todo sentimento de
prazer, Gossen enuncia o fundamento da lei da utilidade marginal
decrescente: no consumo ininterrupto do bem, a grandeza do pra-
zer derivado cai até a saturação. Essa proposição tornou-se conhe-
cida na literatura como Primeira Lei de Gossen. O mecanismo de
geração de prazer também é apresentado em seu aspecto dinâmico.
Ele investiga como a intensidade do prazer obtido dependeria do
número de repetições do evento gerador de prazer e dos intervalos
entre uma e outra repetição. Supõe que o prazer varie em razão da
frequência e da duração em que ele é sentido. Gossen assevera que,
em cada repetição sucessiva, o prazer inicialmente sentido reduz-
se em relação à intensidade manifestada na ocorrência anterior.

291
Também a duração do tempo em que algo é sentido como prazer,
ou o período de manifestação do prazer, abrevia-se com a repeti-
ção. Então para cada prazer Gossen acredita na existência de uma
frequência ótima que garanta um máximo de prazer em sua soma
total. Aumentando-se essa frequência, o prazer total diminui até o
ponto em que, com repetições contínuas e infinitesimais, passa-se
a não se sentir prazer nenhum proveniente de seu objeto gerador,
como no caso de contemplar-se um quadro por muito tempo.
Bentham chamou atenção para o fato de a capacidade de
derivar prazer de uma circunstância depender da sensibilidade do
indivíduo, a qual é afetada por fatores como idade, gênero, educa-
ção e firmeza de vontade, dentre outros. Gossen também expõe o
modo como a maior ou menor acuidade dos sentidos afetaria os
prazeres proporcionados pelos objetos: quando os educamos nesse
intuito, aumenta nossa capacidade de derivar prazeres. O exercício
dos sentidos aumenta o prazer proporcionado pelos objetos, diz
ele.
A utilidade marginal é denominada por Gossen de “grandeza
final do prazer”. Partindo desse conceito, ele examina a situação em
que se pretende combinar a posse de diferentes objetos no intuito
de maximizar a soma dos prazeres proporcionados. Na solução do
problema, ela estabelece a chamada Segunda Lei de Gossen, mais
propriamente um teorema deduzido utilizando-se a lei anterior.
Afirma que a maximização de prazer recomenda que se escolha o
tempo dedicado ao usufruto de cada objeto de forma a se igualar,
dentre todos os objetos, a grandeza final de cada prazer singular ou
o valor do último átomo de prazer (Boxe 8.8). Essa lei equivale à
condição de equilíbrio nas trocas que modernamente se enunciam
como a igualdade entre razões de utilidade marginal por unidade
monetária despendida. Já está presente em Gossen, portanto, a
ideia de que as utilidades marginais comandam as relações de troca
entre os bens.
Gossen elabora alguns outros insights que reaparecerão no
advento da economia marginalista. Por exemplo, a regra para a
repartição do tempo entre lazer e trabalho a fim de obter-se o máxi-
mo de prazer. Nesse caso, a utilidade marginal, ou “o último átomo
criado em cada prazer”, deve ser igual ao sacrifício para criar este
átomo no último momento. É a tese da desutilidade marginal do
trabalho que também aparece na obra de Jevons.

292
Boxe 8.8 Demonstração geométrica da Segunda Lei de Gossen.

Gossen demonstra essa lei com base em argumentos puramente geomé-


tricos. Os triângulos a seguir descrevem a evolução do “grau final do prazer”
no consumo de dois bens, representado verticalmente, em função do tempo
transcorrido de consumo, assinalado na base horizontal dos triângulos.
Inicialmente, todo o tempo t disponível para consumo é alocado no triângulo
da esquerda e nada é consumido do outro bem, representado no triângulo à
direita. Gossen demonstra que, no equilíbrio, o tempo de consumo é distri-
buído entre os dois bens em questão de modo a se obter o mesmo grau final de
prazer nos dois casos.

Começa-se então a diminuir o consumo do bem A e a alocar o tempo


economizado em A no consumo do bem B, até que a grandeza final do prazer
nos dois bens seja a mesma. Até este ponto, sabemos que há um ganho de
prazer total, o que se demonstra facilmente comparando-se a área de prazer
perdido em A (ttaaa’ ) com o trapézio em B (tbobb’ ), conforme a figura a seguir.
Uma vez que t – ta = tb – o, isto é, os dois trapézios têm a mesma base, e taa =
tbb’, isto é, o lado vertical menor do trapézio representando o prazer marginal
ganho em B é igual ao lado vertical maior do trapézio associado à perda
marginal de prazer em A, claramente há um ganho de prazer líquido represen-
tado pelo triângulo cbb’ (por construção, oc = ta’ ).

Para uma demonstração geométrica rigorosa, falta mostrar que, se o tempo


alocado em A for menor que ta , haverá uma perda líquida de prazer em relação
à situação descrita anteriormente. No próximo gráfico, diminuindo-se ainda
mais o consumo em A, há uma perda de prazer representada no trapézio
(tata’a”a). O ganho de prazer em B é o trapézio (tb’tbb’b” ). Como o lado vertical
maior deste último é o lado vertical menor do primeiro trapézio, claramente
há uma perda líquida de prazer: a área do prazer adquirido em B (tb’tbb’b” ) é
menor que a área do prazer perdido em A. Então fica demonstrado que a ma-
neira de repartir o tempo de consumo de modo a maximizar o prazer total é tal
que o prazer final (grau final do prazer) seja o mesmo nos dois bens.

293
Gossen teoriza sobre a origem do valor econômico, na qual
conclui que um bem adquire valor quando a demanda por ele exce-
de a oferta. A tese de que a escassez subjetiva é a fonte do valor é
conhecida como Terceira Lei de Gossen. Sem pretensão de rever
tudo o que se encontra no livro de Gossen, pode-se afirmar que,
antes de Jevons, ele foi o autor que mais ênfase dera à dimensão
subjetiva do fenômeno econômico.
Gossen e, depois dele, Jevons foram os autores marginalistas
que mais se aproximaram do hedonismo filosófico de J. Bentham.
Trata-se da crença de que os homens são movidos pela busca do
prazer e pela aversão à dor. Sem negar essas influências, não se
sabe ao certo até que ponto eles podem ser considerados adeptos
totais do hedonismo filosófico.

A REVOLUÇÃO MARGINALISTA
Ao longo do século XIX até o início de sua década de 1870, uma
leva de autores trabalhou isoladamente com o cálculo marginalista.
Cournot e Dupuit na França; Von Thünen e Gossen na Alemanha;
W. F. Lloyd, M. Longfield, W. T. Thornton, F. D. Longe, F. Jenkin e R.
Jennings, na Inglaterra. Nem todos eles tiveram a ideia de explorar
a demanda do consumidor com o uso da ferramenta da teoria da
utilidade. No entanto, todos compartilhavam entre si um núcleo
comum de noções econômicas espalhadas em diversos países da
Europa. Eles compreenderam a importância do ferramental margi-
nalista, embora tenham percebido sua aplicação somente em rela-
ção a um grupo restrito de problemas. Por conseguinte, deixaram
de desenvolvê-lo como instrumento analítico geral. Em suma, não
houve até os anos 1870 uma aplicação mais geral da técnica de
variação na margem às teorias da utilidade, do custo, da receita e
da produção.
A proposta de um sistema teórico marginalista mais geral
estivera em germinação entre 1862 e 1873. Ela tinha-se desenvol-
vido nas mentes de três jovens autores, todos novatos na economia
política e em três países diferentes: William Stanley Jevons na
Inglaterra, Carl Menger na Áustria e Léon Walras na França. Todos
eles representantes de certa classe média moderadamente bem de
vida e com elevada educação escolar. Eles não tinham, até então,
nenhum compromisso com a economia política e, embora não se
conhecendo mutuamente, estavam unidos pela missão comum:
enaltecer a parte que cabe à subjetividade e o papel que desempe-
nham os conceitos de necessidade, desejo, satisfação, utilidade etc.

294
na compreensão dos fatos econômicos. Eram adeptos, portanto, de
uma consideração maior do subjetivismo do agente na teoria eco-
nômica. Os três autores sentiam-se livres e sem nenhum compro-
misso com a visão prevalecente da economia política até então.
Jevons, Menger e Walras são os nomes associados ao episódio
do início dos anos 1870 que se tornou conhecido como Revolução
Marginalista. Os historiadores hoje em dia consideram um exagero
chamá-lo de revolução. Verifica-se, no período, a publicação das
obras máximas desses autores: Jevons em 1871 lança sua Teoria da
economia política, no mesmo ano em que aparecem os Princípios
de economia política de Menger. Três anos depois é publicado
Elementos de economia pura de Léon Walras.
Não se trata propriamente de uma revolução porque suas
ideias básicas haviam-se desenvolvido gradualmente ao longo do
século XIX e porque o impacto delas na comunidade acadêmica não
foi imediato. Levaria mais de uma década para receber uma acolhi-
da maior por parte de importantes economistas. A Revolução Mar-
ginalista permaneceu desconhecida a seus contemporâneos e só no
século XX essa expressão tornou-se mais frequente, graças aos
historiadores. De qualquer modo, não se trata de revolução, mas de
mudança gradual. O termo “revolução” é inapropriado também
porque alguns aspectos da antiga ortodoxia sobreviveram ao ata-
que revolucionário. Outros aspectos nunca foram atacados. Houve
ainda uma restauração contrarrevolucionária da ortodoxia com a
retenção de conceitos e terminologia clássicos na obra de Marshall.
Outro aspecto a se considerar é que as teses desses economistas
não foram desenvolvidas por eles na mesma época. O que houve, de
fato, foi uma coincidência na proximidade das datas de publicação
de seus trabalhos, o que ampliou o impacto do evento numa visão
retrospectiva.
Jevons, Menger e Walras, mesmo compartilhando certos ele-
mentos teóricos, pertenciam a diferentes visões da economia. Eles
estavam inseridos em contextos culturais distintos entre si e per-
maneciam ligados a raízes filosóficas inteiramente díspares: o
utilitarismo na Inglaterra, ainda a filosofia aristotélica na Áustria e
o racionalismo cartesiano na França. Três países que possuíam
diferentes níveis de desenvolvimento socioeconômico.
A crise econômica dos anos 1870, que afetou não só a Inglater-
ra, pode ter facilitado a aceitação, mesmo lenta e gradual, da
economia marginalista, mas não podemos explicar sua eclosão a
partir dessa crise. Permanece pouco plausível relacionar direta-
mente os trabalhos de Jevons, Menger e Walras com mudanças na
295
estrutura de produção nacional ou nas relações entre classes so-
ciais.
O momento histórico das três últimas décadas do século XIX é
bastante conturbado. Anteriormente discorremos sobre as mudan-
ças sociais e tecnológicas verificadas no período e o concomitante
agravamento das tensões sociais. É difícil precisar até que ponto
tais fatos explicariam a ascensão gradual do marginalismo na teoria
econômica. É necessário ter-se em conta que o marginalismo foi
aparecendo aos poucos em diversos países que em nada se
assemelhavam no tocante ao ambiente econômico e social. E ele
surgiu de modo muito lento e gradual a partir de iniciativas que
partiram de diversos autores espalhados entre diferentes épocas e
nações ao longo daquele século. Se as primeiras iniciativas teóricas
em direção ao marginalismo não podem ser entendidas como o
desdobramento de elementos externos, sua posterior aceitação e
difusão nas primeiras décadas do século XX foram impulsionadas
pelo debate ideológico presente nas controvérsias políticas. É que,
com o passar do tempo, a teoria clássica aproximou-se cada vez
mais de uma visão crítica ao livre mercado. Esse movimento
culmina com a obra de Marx, mas antes dele correntes teóricas do
socialismo usaram a teoria de Ricardo para criticar o capitalismo.
Podemos buscar razões internas às teorias que ensejaram a
ocorrência da Revolução Marginalista em determinado momento.
Havia, de fato, um vazio teórico que acompanhou o descontenta-
mento com a escola clássica. Os críticos apontavam a inabilidade da
ortodoxia clássica em resolver uma série de problemas teóricos. As
teorias clássicas de valor e distribuição pareciam insatisfatórias.
Na época da revolução, o problema da escassez tornou-se cen-
tral para a opinião pública. Ele passou a representar o que há de
essencialmente econômico no comportamento dos indivíduos e na
descrição de um sistema social. Talvez a ênfase na escassez tenha
alguma correlação com a época histórica de crise econômica em
que tal conceito fora alçado ao primeiro plano. Podemos associar o
problema alocativo, e seu corolário, a escassez, à crise no sistema
econômico nos países dos autores que os suscitaram para a teoria.
Imaginamos que essa crise tenha tornado mais escassos os bens e
mais premente seu uso adequado, sinalizando certos elementos
teóricos para a nova escola econômica que emergira no período. No
entanto, é temerário atribuir um significado histórico concreto que
teria condicionado os aspectos básicos da análise marginalista, já
que outras crises também ocorreram anteriormente no século XIX
e nem por isso o marginalismo se havia consolidado nessas oca-

296
siões. Além disso, o problema da escassez nem sempre conduziu,
no passado, ao tratamento marginalista das variáveis econômicas.
De qualquer modo, no fim desse século a teoria marginalista funcio-
nou como modelo aceitável para a escolha alocativa ótima de recur-
sos escassos.
Nessa mesma época, a economia conhece um processo de
profissionalização, com o desenvolvimento de associações, de re-
vistas e de profissionais especializados dedicando-se a ela em
tempo integral. Antes desse período, constata-se a ausência de
comunicação entre economistas de diferentes países. Após o lança-
mento de seus livros, Jevons e Walras demoraram mais de 10 anos
para se corresponder. Walras trocou correspondência com Menger,
mas Jevons jamais o conhecera. A profissionalização não antecedeu
à revolução e sim com ela encontrou seu caminho.
A economia marginalista deve seu triunfo, no século XX, a
certos aspectos teóricos que a tornaram atraente e a colocaram em
vantagem competitiva em relação aos clássicos. Ela restringiu o
escopo da economia direcionando sua ferramenta de análise para
o estudo de problemas de alocação de recursos. Este é um impor-
tante ponto em comum entre os marginalistas. Todos eles buscam
estreitar o âmbito dos modelos teóricos, perguntando basicamente
como o processo alocativo poderia ser otimizado em uma economia
de mercados operando no ponto de equilíbrio, ou como os recursos
seriam substituídos entre si na margem.
De maneira nenhuma a teoria marginalista pode ser vista
como uma defesa do capitalismo no plano do pensamento ou como
uma reação ao avanço das ideias socialistas na Europa. A teoria
marginalista, fortemente apoiada em conceitos rigorosos e técnicas
analíticas, transmitia aparente assepsia e neutralidade em face das
questões políticas. Anos depois da revolução, seguidores de Marx
irão acusá-la de ser uma defesa camuflada do status quo capitalista,
pois no sistema teórico marginalista não se pode lutar contra a
propriedade privada, já que a alocação eficiente de recursos pres-
supõe sua aceitação. Também a acusam de fornecer uma justifi-
cativa para a desigualdade na distribuição (estratificação) de renda
ao falar em remunerações dos fatores por suas produtividades
marginais. A nova teoria foi atacada pelos socialistas da época como
mera versão atualizada da ortodoxia econômica, uma nova linha de
defesa necessária diante do ataque marxista bem-sucedido ao
argumento clássico do laissez-faire. Ela permitiria a demonstração
de um tipo quase perfeito de organização social, realizável numa
economia competitiva, na qual os mercados propiciam a alocação

297
ótima e a harmonia de interesses, maximizando a consecução de
objetivos individuais.
Avaliar o impacto ideológico da revolução marginalista é uma
questão controvertida. Há alguma inclinação ideológica, por exem-
plo, no conceito de utilidade marginal? Aparentemente não, embo-
ra não se pretenda aqui uma resposta conclusiva. Vale considerar
alguns fatos: os desdobramentos da nova teoria não são inequivo-
camente a favor do laissez-faire. A própria trajetória pessoal de
seus proponentes não demonstra tal engajamento. Walras, por
exemplo, sempre esteve ligado às causas sociais e era tido como
socialista em sua defesa do cooperativismo rural.
Outro aspecto que deve ser considerado é que as ideias margi-
nalistas, à época em que foram lançadas, não afetaram o debate
político e os grandes problemas práticos em questão. Não havia
recomendações políticas da teoria marginalista que destoassem do
receituário clássico. O enfoque eminentemente técnico da nova
teoria esteve voltado inicialmente para a explicação do comporta-
mento do consumidor e do produtor, apenas secundariamente ela
seria utilizada para recomendar ou justificar políticas econômicas.
Em termos práticos, a teoria da utilidade pouco acrescentou à dou-
trina clássica, mesmo com os trabalhos posteriores de Vilfredo
Pareto e Irving Fisher. A nova teoria teve pouco a dizer sobre os
problemas da época, tais como os que eram debatidos nas
controvérsias sobre livre comércio, flutuações do mercado mone-
tário, política tributária, pobreza, conflito trabalhista, distribuição
de renda, colonização e superpopulação. A teoria da utilidade não
tomou parte nas controvérsias orientadas por políticas até a Pri-
meira Guerra Mundial, e a adoção dela em trabalhos práticos só
surgiu a partir dos anos 1840. Então, de início, o marginalismo era
irrelevante aos problemas concretos. As possíveis consequências
práticas que se poderiam extrair da teoria estavam em continui-
dade às dos clássicos.
As novas técnicas de análise trazidas com a Revolução Margi-
nalista não foram adotadas para a solução dos grandes problemas
de política econômica, embora os marginalistas propusessem
soluções a questões específicas de tarifação e precificação de bens
públicos. O impacto maior desse movimento, em um primeiro
momento, foi a proposta de novos conceitos dentro de uma reno-
vada visão. Somente num segundo estágio a teoria marginalista
tornou-se operacional na pesquisa econômica substantiva.
Os marginalistas edificaram uma nova visão da ciência econô-
mica no que diz respeito tanto a aspectos teóricos quanto a método
298
e natureza do objeto de estudo. A economia clássica está voltada à
compreensão de relações socioeconômicas entre os homens em sua
capacidade como produtores. A ênfase nas relações de classe confe-
re o caráter político dessa ciência, daí o nome “economia política”.
As relações entre classes sociais é que determinam, em última
análise, relações de mercado. A nova economia marginalista abstrai
as classes sociais e, com elas, as relações sociais, estando voltada
para a relação psicológica entre indivíduos e bens de consumo. Ela
julga necessário separar relações puramente econômicas de rela-
ções de natureza política e, em sua ótica, seria possível para a
ciência econômica um trabalho essencialmente analítico sem refe-
rência a questões políticas. Os marginalistas utilizam-se de uma
retórica de neutralidade política, contudo, suas ideias foram mais
do que uma inovação técnica. Entre a nova escola marginalista e os
economistas clássicos há uma mudança na própria maneira de
caracterizar o objeto da ciência econômica. Ela deixa de ser uma
ciência social voltada para a explicação das relações entre pessoas
e passa a ser considerada uma ciência natural que estuda a relação
entre pessoas e bens materiais. No entanto, a demarcação entre
clássicos e marginalistas é mais sutil. Mesmo autores clássicos
reconhecem que leis econômicas têm o caráter das leis físicas em
sua exatidão, embora na economia suas leis exatas sejam leis de
tendência, que na prática só se verificam na ausência de certas
causas perturbadoras não incorporadas à teoria. Os marginalistas
não negam que a economia tenha também uma dimensão social,
eles acreditam, entretanto, na existência de um núcleo teórico que
desconsidera os aspectos sociais do fenômeno. A economia aplica-
da deve levar em conta o lado social, mas ele é abstraído na
economia puramente teórica.
Entre os clássicos, Stuart Mill expressou que a ciência econô-
mica não trata apenas de realidade física. Consente que, na produ-
ção de bens, a relação que se estabelece entre homens e coisas tem
uma dimensão física atrelada às propriedades dos objetos com suas
leis de rendimento. Leis físicas exatas intervêm na produção. Já o
fenômeno da distribuição depende somente de relações entre
homens e suas leis são condicionadas pelas instituições. Dadas as
instituições, também aqui fica garantida a exatidão das leis. Se elas
são conhecidas, a consequência de qualquer conjunto de regras
para a distribuição tem o caráter das leis físicas.
A economia clássica procurou firmar-se como ciência social,
mesmo aceitando a ação de leis naturais em seus elementos de
análise, enquanto a economia marginalista enfatizou o lado de
ciência natural, com a ressalva de que questões sociais também
299
interessam, no entanto metodologicamente requerem um trata-
mento à parte em economia aplicada, matéria que complementa a
análise teórica pura, mas não se confunde com ela.
A estratégia de separar o conhecimento teórico da economia
prática é explicitamente reconhecida por Jevons, Menger e Walras,
embora o tratamento filosófico da questão seja diferente entre eles.
Iremos detalhar essa questão nos próximos capítulos.31
A aproximação entre o núcleo teórico da economia e a ciência
física ou natural facilita o emprego da ferramenta matemática. A lei
do rendimento decrescente, já conhecida dos clássicos, mas usada
como elemento ad hoc especificamente na teoria da renda da terra,
e a nova lei da utilidade marginal decrescente são elementos
centrais da teoria marginalista que equivalem matematicamente a
funções côncavas. A presença dessas funções em problemas de
alocação de recursos ou bens de consumo leva à conclusão lógica
pela substituição dos fatores ou bens na margem, aplicando-se,
para tanto, o princípio da equimarginalidade, consequência da
ideia de maximização de lucro ou utilidade. Tal princípio facilitou a
aplicação do aparato matemático à economia, principalmente do
cálculo diferencial.
Nos clássicos, também existe a ideia de maximização indivi-
dual e o princípio de substituição. No entanto, ela é aplicada na
determinação de equilíbrios sucessivos ao longo do tempo e não na
alocação eficiente de recursos no curto prazo. David Ricardo
descreve a maximização de lucro como um processo temporal em
que os agentes arbitram entre mercados, transferindo constante-
mente os recursos de um setor a outro da economia. Entretanto, ele
não desenvolve os teoremas de alocação ótima dos recursos no
curto prazo e o comentado processo de arbitragem não conduz aos
princípios equimarginais.
Os marginalistas, com o uso da matemática, nada mais fizeram
do que seguir a tendência do século XIX de cultivar as técnicas
reforçadas pelo triunfo da física. Com isso, lograram obter grande
unidade em suas estruturas teóricas centrais, mesmo que às custas
de substituir o agente como dado sociológico e histórico pelo
indivíduo maximizador. Ao isolar um núcleo lógico das conside-
rações sociais que afetam o processo econômico, o marginalismo
resume o problema econômico a um exercício de maximização

31 Mill, em seus escritos metodológicos, chama atenção para a necessidade

dessa demarcação, mas não a utiliza em seu livro de economia stricto


sensu.
300
condicionada. Qualquer preço é explicado como efeito da aplicação
desse princípio geral a um caso particular. A ideia de um agente
maximizador confere unidade e universalidade ao processo de
escolha envolvido nas diferentes situações econômicas.
A nova roupagem da ciência econômica consiste, portanto, em
um renovado conjunto de conceitos e instrumentos que poderiam
ser aplicados a vasta gama de casos. Os marginalistas edificam uma
eficaz técnica de análise que poderia ser posta em uso. Temas
preciosos para os clássicos, como acumulação de capital e o conse-
quente crescimento econômico, não os preocupam tanto. Também
não consideram a teoria da população como variável endógena. O
núcleo teórico da nova economia interessa-se principalmente pela
busca da melhor alocação de meios escassos entre fins alternativos.
Questões de crescimento econômico aparecem nos trabalhos
práticos de Jevons e Walras, mas para eles não são assuntos da
economia teórica. Jevons preocupou-se com o problema do cresci-
mento na obra A questão do carvão. Jevons e Walras traçam novas
fronteiras para a economia, mais confortáveis para os profissionais.
No entanto, fora da economia pura não se esquivam de tratar
outros domínios, como os escritos estatísticos e políticos de Jevons
e o interesse de Walras na reforma social liberal-socialista. A teoria
pura torna-se mais defendida de um ponto de vista profissional.
Marshall também trata de desenvolvimento econômico em
seus Princípios de economia. Ele aceita que o bem-estar econômico
dependa da acumulação de capital, do crescimento demográfico e
do uso eficiente dos recursos. Tinha uma visão do processo econô-
mico como crescimento biológico. Mesmo mantendo certo compro-
misso com as prioridades da teoria clássica, Marshall não foge de
uma análise econômica estática e seu trabalho está centralizado em
estudar o equilíbrio estático em mercados competitivos.
O eixo da análise marginalista reside na escolha individual, sua
categoria teórica central. A decisão de consumo, o processo de
produção e a repartição dos rendimentos são fenômenos subsidiá-
rios derivados dessa escolha. Na produção, a teoria destaca a
alocação de insumos maximizadora de lucro; na distribuição da
renda, o elemento-chave é a recompensa pela contribuição margi-
nal dos fatores à geração do valor. Não existe, na nova economia,
uma teoria de distribuição específica para cada fator, como nos
clássicos.
Os três expoentes da Revolução Marginalista enfatizam o pro-
blema da escassez e buscam um refinamento da lógica econômica,
fornecendo um tipo de lógica da escolha econômica racional. Entre-
301
tanto, não se pode concluir que esses autores compartilhem o
mesmo método. Pelo contrário, suas posições em muitos outros
aspectos são bem diferentes e subsistem diferenças filosóficas
importantes entre eles. Nem todos aceitam o uso da matemática na
economia. Jevons e Walras aplicam a análise matemática à teoria
econômica. Já Menger evita o emprego de formulações matemáti-
cas, limitando-o somente a casos extremos. Menger substitui a
análise da interdependência de variáveis pela análise de causalida-
de: é por isso que a matemática, para ele, não ajuda. Jevons acha
que a economia deve ser testada empiricamente, seus termos
matemáticos referem-se a quantidades mensuráveis; enquanto em
Menger há um abismo separando as ciências teóricas das ciências
históricas e estatísticas, a economia não é testada empiricamente
como não se testa a geometria.
Jevons e Walras esforçaram-se no desenvolvimento de uma
exata teoria dos preços; Menger desconfia de qualquer teoria dos
preços e enfatiza a barganha, a incerteza e a descontinuidade na
determinação dos preços de mercado. Também há diferenças im-
portantes entre Jevons e Walras. Apenas o primeiro utiliza a análise
psicológica das sensações de prazer e dor, seguindo o mesmo
procedimento de Bentham. O fato de Jevons, Menger e Walras
representarem contribuições bem distintas ao pensamento econô-
mico é unanimemente aceito entre os historiadores. William Jaffé
cunhou a expressão “desomogeneização” para acentuar essas dife-
renças.
Em uma avaliação global, a Revolução Marginalista pode ser
vista em seus aspectos positivos ou negativos: de um lado, ela
representou um estágio crucial na criação de uma teoria unificada
do comportamento econômico genuinamente científica e que pode-
ria, a princípio, ser empiricamente testável. Ela é criticada, porém,
como uma desastrosa fuga dos problemas reais, socialmente
relevante, pertinentes à economia, em prol de um formalismo
estéril. O mais importante a ser assinalado é que na revolução há
uma mudança de estrutura e método na análise econômica. Surgem
novos princípios unificadores, integrando-se as teorias do consu-
midor e da firma, do valor e da produção, que estavam fracamente
conectadas no pensamento clássico. O princípio do cálculo margi-
nalista entra como elo unificador aplicado na teoria de preços. A
teoria guia-se pela busca do estabelecimento de posições ótimas de
equilíbrio, em que consumidores e produtores maximizam respec-
tivamente a satisfação e o lucro. Dá-se menos ênfase ao crescimento
econômico em troca do objetivo de localizar posições de equilíbrio,
com as quantidades totais de recursos dadas. A economia é tão
302
somente a ciência que trata da alocação de dada quantidade de
recursos totais, não se perguntando como o quantum é determi-
nado e como ele poderia crescer.
A busca de posições ótimas, dados os recursos, leva ao desen-
volvimento de argumentos matemáticos. Relações funcionais são
estabelecidas entre variáveis econômicas por meio de equações e
gráficos. A ênfase da análise econômica desloca-se das quantidades
totais para pequenas variações nessas quantidades. Isso conduz ao
emprego sistemático do cálculo diferencial. De início, os economis-
tas em geral resistiram ao uso da matemática, o que dificultou a
aceitação das ideias de Jevons e Walras, porque havia de fato uma
oposição ao uso dela ou porque os economistas eram muito igno-
rantes de matemática para entender o que se passava. Com o tem-
po, viram que a matemática representava, na verdade, um atrativo,
pois, com ela, a economia estava espelhando-se na boa reputação
das ciências físicas, que apoiavam toda a explicação dos fenômenos
pertinentes a seu campo em uma base matemática. Nem todos os
adeptos do marginalismo eram matemáticos. Os austríacos Menger
e seguidores, como Eugen von Böhm-Bawerk, eram avessos ao uso
desse ferramental. O economista americano John Maurice Clark
também era não-matemático. Alguns fizeram uso limitado da mate-
mática, como Marshall, K. Wicksell, Jevons, Philip Henry Wicksteed
e Gustav Cassel. Cournot, Walras, Francis Ysidro Edgeworth e Vil-
fredo Pareto, por outro lado, eram bastante matemáticos.
O modelo explicativo dos clássicos assumia hipóteses bastante
restritivas, principalmente na teoria de preços industriais, na qual
trabalhavam com coeficientes insumo-produto fixos e custos unitá-
rios constantes, indiferentes às proporções estabelecidas entre os
insumos combinados. Não havia, portanto, necessidade de separar
custo médio de custo marginal, já que, nesse caso, eles são identica-
mente iguais.
No caso da produção agrícola, assumiam explicitamente os
efeitos da escala e a lei dos rendimentos decrescentes, associando
esta última basicamente não às proporções dos insumos, mas às
diferenças de fertilidade do solo. Só na agricultura aparece o des-
compasso entre um e outro conceito de custo. Os modelos clássicos
concentram-se também na análise de mercados competitivos em
que, por definição, receitas médias e marginais são idênticas para
as firmas. Não é à toa que a análise marginal não aparece nos
clássicos, pois sua importância é mais claramente percebida quan-
do unidades sucessivas similares de um bem ou fator têm signifi-
cado diferente no que diz respeito ao retorno monetário ou físico.

303
Isso explica por que trabalhos pioneiros que empregaram o con-
ceito marginal apareceram no estudo de problemas agrícolas e na
análise do monopólio.
A teoria econômica clássica não fornecia uma explicação simé-
trica e unificada dos preços. Havia a teoria dos preços agrícolas em
contraposição aos preços industriais. A teoria dos preços dos
fatores era tida como um caso especial e diferente da explicação dos
preços dos bens de consumo. Enfim, não há explicação unificada
nos clássicos, diferentemente da escola marginalista que forneceu
uma teoria da determinação de todos os preços a partir de um único
princípio. A teoria marginalista mostrou suas vantagens ao propor-
cionar uma explicação unificada do valor. Enquanto os clássicos
não fizeram aplicação sistemática do postulado da maximização,
utilizando-o explicitamente mais no âmbito das firmas, os margina-
listas estenderam tal princípio a fim de cobrir também o comporta-
mento dos consumidores.
Os clássicos preocupam-se principalmente com o crescimento
dos recursos produtivos ao longo do tempo. Suas teorias giram,
portanto, em torno da questão do crescimento econômico. No
modelo simples, dados dois fatores de produção, terra e trabalho, e
um montante de produtos previamente acumulados, pergunta-se
como a taxa de crescimento da produção agregada dependeria da
proporção em que terra e trabalho se combinam. O que por sua vez
é função dos vários tipos de rendimentos. Assim, questões como
preços dos fatores e distribuição dos produtos seriam elementos-
chaves de seu sistema teórico, sistema esse construído admitindo-
se certo contexto institucional.
A teoria marginalista fornecera, em relação aos clássicos, não
uma nova solução à antiga questão teórica, mas um desvio de foco,
iluminando, por conseguinte, novos problemas, que passaram a
fazer sentido dentro de uma renovada visão da ciência econômica
e da sociedade. O problema econômico central para os margina-
listas é a alocação de recursos em função de preços e de fatores com
oferta fixa. Os fatores de produção são dados e são escassos. Sua
oferta é determinada de modo independente. Pergunta-se então
qual sua forma ótima de emprego. Agora, a ênfase recai na ideia de
alocação eficiente, mantido o marco institucional anterior. Partindo
desses interesses nucleares, enfatizam elementos distintos: para os
clássicos, a oferta e a produção; para a nova escola, a demanda e o
consumo. Não se analisa mais como a oferta de fatores afeta o
crescimento. Prioriza-se a construção de um modelo de equilíbrio
estático. Os clássicos viam a competição como um processo ao

304
longo do tempo. Trabalhavam com capitais com estruturas modifi-
cáveis para produzir qualquer combinação de produtos, e que
possuem mobilidade, sendo transferidos de um setor a outro no
processo de equalização de lucros arbitrado pelos agentes. Os
marginalistas enfatizam mais uma situação estática com um mon-
tante de capital fixo.
Os marginalistas procuram explorar uma notória deficiência
teórica dos clássicos, qual seja, a assimetria na teoria do valor-
trabalho que não tratava, com a devida ênfase, o lado da demanda.
Trata-se de um defeito evidente nos clássicos. Eles não possuíam
uma teoria da demanda e, portanto, a sua teoria de determinação
dos preços seria cedo ou tarde vista como tendo peculiar assime-
tria. No processo de estudo do fenômeno da demanda, os margina-
listas concluíram que a análise econômica deveria remeter e
penetrar na noção de utilidade. Eles uniram o cálculo na margem
com o antigo conceito de utilidade para chegar à noção de utilidade
marginal, o ápice no desenvolvimento da nova visão.
Com a Revolução Marginalista, temos uma mudança na agenda
e nos métodos dos economistas. Surgem novos problemas e velhos
problemas são reavaliados, subsumidos ou simplesmente postos
de lado. Os marginalistas acreditam que tais mudanças possibilitam
avanço científico com teorias mais rigorosas e gerais sobre valor e
distribuição. O âmbito dos problemas tidos como logicamente
relevantes estreitou-se, e tal estratégia contribuiu para a difusão da
ciência econômica e sua consolidação como disciplina acadêmica.

O SIGNIFICADO DO CONCEITO DE UTILIDADE


Entre 1871 e 1889, a comunidade acadêmica reconhece a cen-
tralidade do conceito de utilidade na teoria econômica. Na litera-
tura, tal conceito apareceu muito antes desse período; no entanto,
no passado ele não é utilizado de modo satisfatório, enfatizando-se
sobremaneira a utilidade total da mercadoria. Somente agora a
noção de utilidade marginal passa a ser bem compreendida e a
partir de então será crescentemente empregada na análise econô-
mica. A noção de utilidade marginal decrescente é aceita como fato
empírico da experiência comum, congruente com a introspecção
casual.
No conceito de utilidade marginal, temos duas expressões: o
adjetivo “marginal” e o substantivo “utilidade”. Este último pavi-
mentou o caminho à perspectiva subjetivista em economia, mas o
“marginal” também foi importante, retrospectivamente talvez até
305
mais do que o “utilidade”, já que, tempos depois, este seria
substituído pela ideia de preferência revelada, até ser novamente
alçado a primeiro plano, em período mais recente. À época que
estamos analisando, a noção de utilidade somente em período
breve teve papel substancial na teoria econômica. Ela não é impor-
tante, por exemplo, em Wicksteed, Fisher e Pareto.
A relevância maior do cálculo marginalista é que ele conduziu
a economia científica à análise matemática da maximização. O
adjetivo “marginal” passou a ser aplicado combinando-se ao subs-
tantivo “utilidade” na teoria do consumidor e à palavra “produti-
vidade” na teoria da produção. Com o tempo, ele foi aderindo a
outras expressões: custo, receita, taxa marginal de substituição,
propensão marginal a consumir etc. Nesse interregno, a partir de
1870 as universidades começam a aceitar a economia como
matéria de estudo. A utilidade marginal é o bloco fundamental de
um novo tipo de microeconomia estática. Ela localiza a fonte da
conduta econômica individual, ou o que subjaz às escolhas, em
elementos subjetivos. Não é necessariamente hedonista como a
filosofia de Bentham, que vê o princípio de prazer e dor governando
tudo. No entanto, há a construção do homem que age após anteci-
par as consequências de seus atos, governando sua ação pelo saldo
entre o desejado e o indesejado. O cálculo econômico marginalista
fornece o curso de ação ditado pela razão. Seu alvo é a escolha
racional derivada dos elementos subjetivos. Combina-se nele a
noção de utilidade com o cálculo diferencial.
Essa maneira de usar o conceito de utilidade foi sistematizada
e integrada a uma série de problemas econômicos entre 1862 e
1887. Diversos autores fizeram-no utilizando vários nomes: grau
final de utilidade, utilidade final (o termo mais usado em 1887),
utilidade terminal, importância da menos importante das
satisfações (em Carl Menger), utilidade intensiva, intensidade do
último desejo satisfeito e rareté (todos eles empregados por Léon
Walras). Em 1888, a expressão “utilidade marginal” foi utilizada
por Wicksteed, que a tomou emprestada do economista austríaco
Friedrich Freiherr von Wieser. Este último usava o termo alemão
“Grenznutzen” como utilidade final ou utilidade marginal, mas
também usava “Grenze”, que é limite e não margem. Wicksteed foi
o primeiro a usar a expressão “utilidade marginal”. O segundo autor
a incluir a palavra “marginal” foi Marshall nos Princípios de econo-
mia. Ele diz que a tirou de Von Thünen; depois, volta atrás e diz que
este autor apenas a sugeriu. Curiosamente nenhum dos membros
pioneiros da escola da utilidade marginal usou o termo “utilidade
marginal”. Tal expressão entrou no alemão em 1884, no inglês em
306
1888 e demorou ainda mais para estar em voga no francês. Seu uso
amplo, portanto, só ocorreu na década de 1880, após a morte de
Jevons. Walras ainda preferia sua nomenclatura original e Menger,
embora tenha vivido por muitos anos no tempo em que o termo se
tornou comum, nunca usou tal expressão.
Outro problema posto na evolução do conceito de utilidade diz
respeito à forma da presumível função utilidade. Os três líderes da
Revolução Marginalista tomam a utilidade como independente e
aditiva. Tempos depois, Francis Ysidro Edgeworth, Rudolf Auspitz
e Richard Lieben introduzem, cada qual por si, relações de comple-
mentaridade entre os bens. Jevons, Menger e Walras tratam a utili-
dade de uma mercadoria i como função somente das quantidades
xi , de modo que a utilidade total Ut do consumo de n mercadorias
seria simplesmente uma função aditiva Ut = u1(x1 ) + u2(x2 ) + ... +
un(xn ). Edgeworth introduziu uma função de utilidade total mais
geral e mais congruente com a introspecção, em que as utilidades
de cada bem são dependentes entre si. Tal função agora seria
expressa por Ut = U(x1 , x2 , ... , xn ). Tal mudança trouxe importantes
implicações para a medida da utilidade. Edgeworth desenvolve o
conceito de “linhas de contorno”, que vieram a se tornar conhecidas
como “curvas de indiferença”: a combinação de cestas de bens que
produzem a mesma utilidade total de modo que U(x1 , x2 , ..., xn ) = C,
na qual C é uma constante. Com a inter-relação das utilidades das
mercadorias, não seria mais possível desenhar a utilidade total no
gráfico de duas dimensões, como função de uma única variável.
A nova teoria demonstrou que a distribuição ótima da renda
gasta entre os diversos bens seria univocamente determinada em
curvas de indiferença estritamente convexas. A lei da utilidade
marginal garante tal convexidade com utilidades independentes e
aditivas, mas no caso de utilidades dependentes, como viria a
demonstrar Eugene Slutsky, essa lei não é necessária nem suficien-
te para assegurar convexidade estrita (Boxe 8.9).
Mesmo com curvas de indiferença convexas, não se pode ga-
rantir que todas as curvas de demanda associadas aos respectivos
bens envolvidos tenham inclinação negativa, embora a demonstra-
ção desse teorema não seja muito simples.
Outras ampliações na teoria da utilidade foram tentadas por
Irving Fisher. Ele não só chegou à função de utilidade generalizada
de Edgeworth de modo independente, como também, em 1892,
propôs incluir as quantidades consumidas por outros na função de
utilidade do indivíduo. Arthur Cecil Pigou também falou na inter-
307
relação das utilidades individuais, usando esse argumento para
mostrar que os excedentes do consumidor de diferentes indivíduos
não são aditivos. A menos que se suponha a estabilidade dessa
inter-relação, o que se verifica para pequenas variações nos preços.

Boxe 8.9 A relação entre curvas de indiferença convexas e a lei da


utilidade marginal decrescente.

Nem sempre a utilidade marginal decrescente para cada bem implica a


convexidade estrita das curvas de indiferença, ou seja, a existência de uma
solução ótima única à alocação da renda do consumidor. No caso de apenas
duas mercadorias, as inclinações dessa curva, ponto a ponto, são determinadas
𝑑𝑥2 𝑢 (𝑥 , 𝑥 )
por = − 1(𝑥1 2) , pela equação de Jevons. Tomando-se a derivada
𝑑𝑥1 𝑢2 1 , 𝑥2
𝑢1 (𝑥1 , 𝑥2)
𝑑 2 𝑥2 𝑑(− ) (𝑢22 𝑢11 −𝑢1 𝑢2 𝑢12 +𝑢12 𝑢22 )
𝑢2 (𝑥1 , 𝑥2)
segunda, = =− . A condição de convexi-
𝑑𝑥12 𝑑𝑥1 𝑢23
dade impõe que essa derivada segunda seja maior que zero. No caso de funções
de utilidade aditivas, supõe-se que para cada bem i a utilidade marginal seja
decrescente uii < 0. Nesse caso, também temos u12 = 0, pela condição de
independência das utilidades. A expressão acima seria então positiva e a
convexidade das curvas de indiferença estaria garantida. Com funções de
utilidade aditivas, portanto, a utilidade marginal decrescente já garante essa
convexidade. Slutsky, entretanto, analisou um caso excepcional em que tal
hipótese não é necessária, obtendo-se a curva de indiferença convexa mesmo
com uma das mercadorias apresentando utilidade marginal crescente. No caso
das funções de Edgeworth, com utilidades dependentes, a condição uii < 0 não
é necessária para a convexidade, já que mesmo em caso contrário u12 positivo
e grande ainda tornaria a expressão positiva; e nem suficiente, uma vez que se
deve admitir adicionalmente que u12 não possa ser negativo e grande.

A noção de curvas de indiferença parecia afastar a teoria do


consumidor das dificuldades relativas à medida da utilidade ine-
rentes a uma função utilidade. Os economistas da época, porém,
mantiveram adesão a funções aditivas. Elas aparecem nos escritos
não matemáticos de Bawerk, Wieser e J. B. Clark. Wicksell utiliza a
utilidade aditiva em seu livro de 1894, embora ele veja mais realis-
mo na função generalizada. Depois, viria a incorporar tal função na
obra Lições de economia política. Marshall e Pareto foram
influenciados pela função de utilidade de Edgeworth, muito
embora o professor de Cambridge só lhe tenha dado maior atenção
na terceira edição dos Princípios de economia. Antes, dizia preferir
as utilidades aditivas, ignorando a interdependência das utilidades
no tratamento matemático. O que o levou a mudar de posição foi a
leitura do trabalho de Fisher em que este discute a natureza dos
308
bens rivais e complementares. Pareto trabalhou inicialmente com
a aditividade e veio a perceber, depois, que tal hipótese levaria a
conclusões que são refutadas pela experiência.
O instrumental das curvas de indiferença permitiu a Edge-
worth e depois a Pareto analisarem de modo conveniente o comér-
cio de duas mercadorias entre dois indivíduos. O equilíbrio se daria
nos pontos em que as curvas de indiferença de um indivíduo
tangenciam a de outro. A combinação desses pontos configura uma
“curva de contrato”. Os equilíbrios possíveis ocorreriam ao longo
dessa curva, e o ponto exato só poderia ser determinado por fatores
imponderáveis. Na análise de troca simples, Pareto introduz o
revolucionário conceito de “eficiência de Pareto”: uma forma de
alocar recursos entre os agentes é dita “eficiente de Pareto” (ou
“ótimo de Pareto”) se não existir outra alocação que deixe todo
mundo ao menos tão bem quanto antes e torne alguma pessoa
estritamente melhor. Se uma situação não é “eficiente de Pareto”,
isso significa que existe alguma forma de melhorar a situação de
alguém sem prejudicar nenhuma outra pessoa.
O tratamento de Edgeworth torna a utilidade um conceito mais
nebuloso, contrariando sua intenção inicial. Ele foi pioneiro na aná-
lise de curvas de indiferença, que de certa forma elimina a neces-
sidade de uma medida cardinal da utilidade. Edgeworth ainda
acredita na noção de utilidade, mas a técnica de curva de indife-
rença atribui peso menor ao conceito. Entre 1892 e 1900, Fisher e
Pareto vão procurar excluí-lo completamente da teoria do valor,
alegando que, como ele não é mensurável, vem a ser supérfluo. Os
dois autores usam as curvas de indiferença de Edgeworth com o fito
de uma análise não-utilidade do comportamento do consumidor.
No entanto, eles não sabem definir complementaridade e lei da
utilidade marginal decrescente em termos estritamente não-utili-
dade. Isto só seria feito mais tarde por Slutsky, em 1915, e por John
R. Hicks e Roy G. D. Allen em 1934.
Não há, portanto, relação lógica, só histórica, entre as técnicas
das curvas de indiferença e a exclusão do conceito de utilidade:
quem propõe curvas desse tipo não exclui tal conceito; quem exclui,
por vezes, não as propõe. Cassel e Wicksteed excluíram a noção de
utilidade em troca da análise direta da demanda do mercado.
Também o faz Barone em seu célebre artigo que proporá a aplica-
ção do modelo walrasiano no controle da economia. Nos Estados
Unidos, Herbert J. Davenport também combateu a utilidade e
outros conceitos que seriam para ele não científicos; e Frank A.
Fetter procurou eliminar o hedonismo inerente, para ele, à utili-

309
dade e atualizar a teoria pelos conhecimentos recentes da psico-
logia. A escola austríaca procurou livrar-se do hedonismo e do
utilitarismo, embora retendo o conceito de utilidade (“Nutzen” ). Os
austríacos são críticos aos ataques de Cassel e Pareto.
Em 1915, o russo E. Slutsky publica um artigo na revista
italiana Giornale degli Economisti, intitulado Sobre a teoria do
equilíbrio do consumidor. Nele, exclui definitivamente o conceito
de utilidade da análise do comportamento do consumidor, até seu
renascimento anos depois. Também distingue o efeito renda do
efeito substituição, proporcionado por variação de preços. Desen-
volve, para tanto, o modelo de renda real constante que consiste na
técnica de compensar as variações de preços com variações na
renda monetária e manter o consumidor no mesmo nível da curva
de indiferença original. O artigo de Slutsky tornou-se famoso com a
divulgação dos trabalhos teóricos independentes de Hicks e Allen,
sintetizados no artigo Uma reconsideração da teoria do valor, pu-
blicado na revista Economica, em 1934, os quais levavam aos mes-
mos resultados de Slutsky.
Nos anos 1930, a análise das preferências do consumidor e as
técnicas das curvas de indiferença e das isoquantas, desenvolvidas
por Pareto e Fisher, começam a ser amplamente adotadas na Ingla-
terra e na América do Norte. Até então, predominava a análise da
demanda de Marshall, com sua simplicidade analítica baseada nas
utilidades aditivas. Marshall conhecia o instrumental de Edge-
worth, mas dizia que ele não seria adequado para expressar fatos
da vida econômica cotidiana, tendo apenas atração por seus aspec-
tos matemáticos.
Por fim, a teoria da preferência revelada de Paul A. Samuelson
foi a pá de cal que sepultou um subjetivismo mais enfático na teoria,
muito embora não se possa dizer que o conceito de utilidade tenha
desaparecido. O conceito de utilidade e a ideia de cardinalidade
foram revigorados em trabalhos teóricos no campo da teoria dos
mercados financeiros.
John von Neumann e Oskar Morgenstern introduzem a função
utilidade cardinal na maximização da utilidade esperada (a utili-
dade no ambiente com incerteza). Se U(xi ) é a utilidade do evento
xi com probabilidade de ocorrência i , o problema consiste em ma-
ximizar i  i . U(xi). Em que U(xi) tem todas as propriedades de
qualquer função de utilidade ordinal. Em adição, tem uma medida
cardinal, ou seja, o valor numérico da utilidade possui significado
preciso (a menos de mudanças na escala). Ela não serve apenas

310
para o simples ordenamento de ocorrências. Apenas U(x) e a +
b.U(x) são equivalentes, isto é, só se permite uma transformação
linear positiva. A introdução da teoria da utilidade cardinal na
escolha com incerteza mostra que dois consumidores que sempre
fazem a mesma escolha no ambiente com conhecimento perfeito
podem, em caso de incerteza, fazer escolhas de “loterias” diferen-
ciadas. Isso ocorre porque as respectivas funções de utilidade car-
dinais podem ter a mesma propriedade ordinal e ser diferentes. Por
exemplo: U1(x, y) = x. y e U2(x, y)= –1/(𝑥. 𝑦)2 em termos ordinais
são equivalentes, já que uma é transformação da outra U2 = –U1–2, o
que implica terem U1 e U2 a mesma propriedade ordinal.
Antes de finalizar o capítulo, são investigadas duas questões
cruciais para a teoria da utilidade e que, desde suas primeiras
formulações, geraram importantes debates que se estenderam no
tempo. A primeira diz respeito ao problema da comparação inter-
pessoal das utilidades. A outra gira em torno da possibilidade de
sua medida e do formato da função de utilidade. Étienne Dumont,
discípulo de Bentham, escreveu o livro Tratado de legislação, de
1802. Nele, lança-se a fazer aplicações econômicas do conceito
ético de utilidade na solução do problema de distribuição desigual
da renda. Dumont acreditava que tal solução só poderia ser
teoricamente calculada admitindo-se a comparação interpessoal de
utilidade. O próprio Bentham, no entanto, reconheceu a dificuldade
em se comparar utilidades de pessoas que diferem entre si em
tantas circunstâncias. Justifica, ainda assim, tal procedimento pela
conveniência prática: mesmo com todas as suas limitações, não há
nada melhor que a aplicação da noção de utilidade para determinar
leis sociais. É evidente o fracasso do projeto benthamita de fornecer
uma base científica para a política social, pois não se pode justificar
a cientificidade da análise pela eficácia da política que ela conduz.
Em Bentham, a hipótese da comparação interpessoal é mera simpli-
ficação, e as conclusões políticas a que leva podem ser alcançadas
sem ela. O filósofo moral reconhece que o excesso de riqueza não
corresponde a um proporcional excedente de felicidade do rico em
relação ao pobre. Riqueza e alegria não caminham sempre juntas, o
que o afastou de tentar explorar as implicações econômicas de seu
sistema ético que centralizou o conceito de felicidade. Contudo,
Bentham acreditava que a maior igualdade de renda incrementaria
a massa total de alegria na sociedade, embora tal igualdade tenha
sido por ele rejeitada em favor da propriedade privada. Ele também
postulou que a utilidade teria uma magnitude numérica.

311
É discutível até que ponto a teoria da utilidade, tal como se
apresenta em Jevons, Menger e Walras, implique ou não a mensura-
bilidade de prazeres, desejos, necessidades e utilidades. O fato é
que nenhum deles tentou medi-los. Todos sabiam que a nova teoria
iria requerer, nesse tocante, uma defesa contra os críticos. Até hoje
a questão da mensurabilidade de quantidades subjetivas é impor-
tante alvo de ataques contra a análise da utilidade. Podemos afir-
mar que, em geral, os subjetivistas só superficialmente tomam a
utilidade como mensurável. Jevons vale-se, em algumas passagens,
da utilidade mensurável, embora negue isso em outras. Um
fragmento encontrado em seu livro afirma: “não há uma unidade de
trabalho, ou de sofrimento ou de contentamento”. O ataque de
Jevons ao problema da mensurabilidade é confuso, embora em
geral não lhe falte franqueza. Diz que não é possível medir dire-
tamente unidades de prazer e de dor, que os efeitos desses
sentimentos são perceptíveis nas transações comuns da vida
econômica cotidiana e que...

“É a partir dos efeitos quantitativos dos sentimentos que


devemos estimar seus montantes comparativos.” (W. S. Jevons,
A teoria da economia política)
Jevons dá a entender que não precisamos empregar unidades
de medida para quantidades de sentimentos, porque os próprios
indivíduos fazem comparação direta em suas mentes. Jevons
afirma também que a utilidade até seria mensurável em tese, mas
ela não poderia, no presente, ser mensurada. A medida do conceito
é algo que viria depois em aprofundamento do estudo, assim como
ocorreu nos estudos da física envolvendo calor e eletricidade. Há
uma profusão de dados na economia que estariam disponíveis para
essa tarefa. Na segunda edição da Teoria da economia política,
Jevons mostra-se ainda mais otimista a esse respeito. Ele suprimiu
nessa edição de 1879 uma passagem contida na edição anterior, em
que escrevia:

“Eu confesso que seria para mim difícil até mesmo imaginar
como tais estimativas [da utilidade] poderiam ser feitas com
alguma proximidade da exatidão. Embora eu admire bastante
a clareza e a precisão das noções de Bentham, não saberia onde
seus dados numéricos seriam encontrados.” (Apud K. Howey,
The rise of the marginal utility school )
A visão de Gossen sobre a medida da utilidade também é vaga
e ambígua. Ele acredita que se poderia buscar uma unidade básica

312
de prazer que seria usada na mensuração de diferentes prazeres.
Preferencialmente tal unidade seria a própria moeda. Jevons tam-
bém crê nisso. Ambos se filiam à corrente de autores que pensam
que os preços monetários são uma medida indireta das variações
de prazeres. Dessa perspectiva, os sentimentos são medidos pela
estimativa de seus efeitos quantitativos. Não é possível se medir o
prazer total ganho ao se adquirir uma mercadoria, a teoria apenas
expressa que...

“Quando um homem comprou o suficiente obteria tanto


prazer da posse de uma pequena quantidade adicional quanto
do preço monetário desta.” (W. S. Jevons, A teoria da economia
política)
Há na Teoria de Jevons um capítulo intitulado “Sobre a medida
de sentimentos e motivos”, em que o autor nega a existência de uma
medida para quantidades de sentimentos. Trata-se de uma contra-
dição com o que ele dissera capítulos atrás nessa mesma obra. Às
vezes, Jevons é quase um ordinarista, isto é, acredita na possibi-
lidade de estabelecer comparações entre as utilidades, mas não em
uma medida numérica cardinal do mesmo conceito. Na prática, ele
não faz distinção entre utilidade cardinal e ordinal. De qualquer
modo, trata a questão da mensurabilidade da utilidade com muita
precaução. Em 17 de outubro de 1872, numa carta dirigida a J. L.
Shadwell, Jevons responde ao crítico da medida da utilidade dizen-
do que muitas coisas se prestam somente a uma medida indireta
por meio de seus efeitos. Diz que dados sobre preços e quantidades
permitiriam medir a lei de variação da utilidade.
Léon Walras assume a existência de uma medida-padrão da
intensidade dos desejos, ou uma medida da “utilidade intensiva”.
No entanto, ele não justifica a medida cardinal da utilidade, ela é tão
somente assumida. Walras mantinha-se incerto com relação a esse
problema, por isso adotou a estratégia de dizer o menos possível
sobre ele. A correspondência trocada entre Walras e o célebre
filósofo e matemático Henri Poincaré mostra que o primeiro
propôs a questão da utilidade cardinal ao segundo, que tentou
convencer o outro de que a utilidade não seria mensurável. Para o
desenvolvimento do modelo de trocas em Walras, contudo, só há
necessidade de uma função empírica da demanda. Walras não cai
no erro de Dupuit, reconhecendo que não se pode medir a utilidade
pelo sacrifício do consumidor expresso pela curva de demanda. O
austríaco Carl Menger associa números às utilidades e diz que eles
só expressam magnitudes relativas da importância das satisfações.
Diz ainda que não é importante o ponto zero da escala, mas faz
313
afirmações como “a utilidade de A é duas vezes a utilidade de B”,
que mostram que ele não se desvencilhou completamente da cardi-
nalidade.
Os marginalistas de modo geral negam a possibilidade de
comparação interpessoal de utilidade. A condição de equilíbrio na
troca simples em Jevons e Walras não requer tal comparação.
Menger evita essa questão e não se engaja em tais comparações.
Walras só incidentalmente faz comparações interpessoais. Jevons
também as considera impossíveis, embora fazendo-as eventual-
mente, como ao comparar a satisfação do rico à do pobre. Em geral,
admite que...

“Numa mente, um impulso é comparado apenas em relação


a outros impulsos na mesma mente, nunca em relação a impul-
sos em outras mentes. Cada pessoa é para as outras pessoas
uma porção do mundo exterior – o não-ego, como os metafí-
sicos denominavam. Assim, os impulsos na mente de A podem
dar lugar a fenômenos que possam ser representados por im-
pulsos na mente de B, mas entre A e B há um abismo. Em
consequência, a comparação dos impulsos deve estar sempre
confinada ao âmago do indivíduo.” (W. S. Jevons, A teoria da
economia política)
Ele diz que as utilidades de diferentes pessoas não precisam
ser comparadas e de fato não podem, pois...

“Toda mente é inescrutável para toda outra mente, e ne-


nhum denominador comum de sentimento parece ser possí-
vel.” (ibidem)

Outra crítica que se fazia ao conceito de utilidade diz respeito


a como avaliar os bens que não são diretamente consumidos, mas
funcionam como fatores de produção. Jevons, Walras e Menger
reconheceram que tais bens geram utilidade por produzir outros
bens que satisfazem aos desejos dos consumidores. O trabalho do
último é o mais elaborado nesse sentido. Menger divide os bens em
ordens. Os bens de alta ordem, os fatores de produção, têm seu
valor determinado pelo valor dos bens de primeira ordem, os que
são consumidos. O austríaco desenvolve um modelo que realça
relações de causa e efeito entre bens que satisfazem direta ou indi-
retamente a necessidades humanas e o atendimento dessas mes-
mas necessidades. Já o modelo de Walras vai no sentido da deter-
minação simultânea das variáveis, interconectando os valores de
todos os produtos e de todos os fatores num modelo de equilíbrio
314
geral. Jevons fala em utilidade mediata e imediata, relacionando o
preço do fator com a utilidade marginal do bem de consumo que
com ele se produz. A partir da última década do século XIX, essas
discussões do problema da imputação de utilidades iriam tomar
parte essencial na teoria do capital que começara a surgir.
Além dos bens poderem ser utilizados diretamente no consu-
mo ou como recursos produtivos, eles podem servir simplesmente
para comandar outros bens na troca. Há uma diferença entre o bem
que produz satisfação direta e o que é considerado apenas por
proporcionar poder de compra. Walras chega a cunhar a expressão
“utilidade específica” para o primeiro bem, não fazendo nenhum
uso subsequente dessa distinção. Jevons fala em “utilidades adqui-
ridas” para o segundo caso. Ele também não fornece um tratamento
teórico que desenvolva tal separação de conceitos. Menger ataca a
questão dizendo que, quando há a possibilidade de derivar utilida-
de do bem direta e indiretamente na troca, o valor econômico do
bem é dado pela maior delas.

315
Questões

1. Quais os principais argumentos metodológicos utilizados pela


escola histórica alemã em sua crítica à economia clássica?
2. Descreva a situação econômica e social na Inglaterra a partir dos
anos 1860 e procure relacioná-la com o aparecimento da Revo-
lução Marginalista.
3. A Revolução Marginalista foi, de fato, uma revolução científica?
Se não, justifique.
4. Quais as principais críticas que se fazia à teoria clássica nos anos
que antecederam a Revolução Marginalista? Você é capaz de
apontar alguma relação entre as mudanças na sociedade inglesa
e a crise da economia clássica?
5. Qual variável o trabalhador procura maximizar no modelo de
Von Thünen? Demonstre que nesse modelo o salário de
equilíbrio é igual a √𝑎. 𝑝, no qual a é o salário de subsistência
que não permite ao trabalhador acumular capital e p é a produ-
ção anual obtida pelo trabalhador, usando certa quantidade de
capital.
6. Descreva o modo como as atividades econômicas distribuem-se
espacialmente no modelo do “Estado solitário” de Von Thünen.
7. Enuncie as duas leis de Gossen. Demonstre-as seguindo o mes-
mo argumento utilizado por ele.
8. Representando a receita total por p. D (p), no qual p é o preço
do bem e D (p) é a função de demanda, e por (D) a função de
custo, Cournot demonstrou matematicamente que, na condição
de lucro máximo, a firma iguala a receita marginal ao custo
marginal. Prove esse resultado usando o mesmo procedimento
algébrico adotado pelo francês.
9. Cournot foi um dos pioneiros na formulação algébrica da de-
manda como D = F (p).
a. Obtenha a condição de primeira ordem para a receita
máxima.
b. Discuta a condição de segunda ordem avaliando todas as
hipóteses que asseguram a existência de um preço que
maximiza a receita.
c. Aplique essa análise no caso do produtor monopolista com
custo (D).
316
10. Prove a Segunda Lei de Gossen por meio de uma demonstração
geométrica a la Gossen. Os triângulos a seguir descrevem a
evolução do “grau final do prazer”, representado verticalmen-
te, em razão do tempo de consumo transcorrido, assinalado na
base horizontal dos triângulos. Inicialmente, todo o tempo t
disponível para consumo é alocado no triângulo da esquerda e
nada é consumido do outro bem, representado no triângulo à
direita. Mostre como Gossen demonstra que, no equilíbrio, o
tempo de consumo é distribuído entre os dois bens em
questão, de modo a obter o mesmo grau final de prazer nos
dois casos (raciocine em termos de ganhos e perdas líquidas
cada vez que o tempo de consumo é reduzido num bem e
ampliado no outro e utilize argumentos geométricos de
congruências de áreas).

11. Como as funções de demanda são obtidas no modelo de


Cournot?
12. Explique o conceito de excedente do consumidor em Dupuit.
Como ele obtém a curva de utilidade marginal a partir da
função de demanda?
13. Critique a teoria de Dupuit que afirma serem os preços das
mercadorias iguais às respectivas utilidades marginais.
14. Qual o princípio que confere coesão à sociedade na visão de
Gossen? Um asceta não poderia violar esse princípio? Por quê?
15. Em que os novos problemas estudados pelos marginalistas
diferem das antigas preocupações dos economistas clássicos?
Qual o papel dos problemas práticos na aceitação inicial do
marginalismo? Entre Jevons, Menger e Walras:
a. Qual deles sofreu maior influência do hedonismo filosófico?
b. Que autor rejeitava a matemática como método de análise
econômica? Justifique.
16. Descreva a controvérsia entre os economistas que defendiam
a função utilidade aditiva e os que propuseram as utilidades
dependentes entre si.

317
17. O que são “curvas de indiferença” e “curvas de contrato”, e
quem as propôs?
18. Qual o papel de Slutsky, Hicks, Allen e Samuelson no desenvol-
vimento do conceito de utilidade e sua relação com a análise
do comportamento do consumidor?
19. Os marginalistas acreditam que as utilidades podem ser
comparadas entre diferentes indivíduos?
20. A existência de solução única à alocação da renda do consu-
midor está assegurada na presença de utilidade marginal
decrescente? Comente.

318
Leitura Adicional

Literatura Primária

BENTHAM, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da legisla-


ção: sistema de lógica dedutiva e indutiva e outros textos. São
Paulo: Abril Cultural, 1984.

CAIRNES, John Elliot. Some leading principles of political economy


newly expounded. New York: Kelley, 1967.

JEVONS, William S. A teoria da economia política. São Paulo: Nova


Cultural, 1996.

KEYNES, John Neville. The scope and method of political economy.


London: Macmillan, 1917.

Literatura Secundária

ASCHCRAFT, R. German historicism and the history of political


theory. History of Political Thought, v. 7, 2, 1987.

BLAUG, Mark. Was there a marginal revolution? History of Political


Economy, v. 4, 2, 1972.

_____. Economic theory in retrospect. Cambridge: Cambridge Uni-


versity Press, 1978.

COATS, A. W. The economic and social context of the marginal


revolution of the 1870’s. History of Political Economy, v. 4, 2,
1972.

_____. Retrospect and prospect. History of Political Economy, v. 4, 2,


1972.

COLLINNI, S.; WINCH, D.; BURROW, J. That noble science of politics: a


study in nineteenth-century intellectual history. Cambridge:
Cambridge University Press, 1983.

HOWEY, R. S. The rise of the marginal utility school. Lawrence:


University of Kansas Press, 1960.

_____. The origins of marginalism. History of Political Economy, v. 4,


2, 1972.

319
HUTCHISON, T. W. The marginal revolution and the decline and fall
of English classical political economy. History of Political Econo-
my, v. 4, 2, 1972.

JAFFÉ,W. Menger, Jevons and Walras De-Homogenized. Economic


Inquiry, v. 14, 4, 1976.

MEEK, R. L. Marginalism and marxism. History of Political Economy,


v. 4, 2, 1972.

SCHACKLE, G. L. S. Marginalism: the harvest. History of Political Eco-


nomy, v. 4, 2, 1972.

SCHNEIDER, Erich. Teoria econômica: capítulos selecionados da


história da teoria econômica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1968.

STIGLER, George, J. The development of utility theory. The Journal of


Political Economy, v. 58, 4, 1950.

_____. The adoption of the marginal utility theory. History of Political


Economy, v. 4, 2, 1972.

TARASCIO, Vicent J. Vilfredo Pareto and marginalism. History of


Political Science, v. 4, 2, 1972.

320
9
O Marginalismo na
Inglaterra:
as contribuições de
Jevons e Marshall

INTRODUÇÃO
William Stanley Jevons (1835-1882) e Alfred Marshall (1842 -
1924) são, sem dúvida, os dois principais nomes responsáveis pela
introdução e a popularização, tempos depois, das noções margina-
listas na Inglaterra. O peso de Marshall é incomparavelmente maior
até porque Jevons morreu jovem e sua contribuição, anterior à de
Marshall, ocorre numa época em que as teses marginalistas ainda
eram mal compreendidas pela opinião pública. Jevons tornou-se
mais conhecido como estatístico do que como teórico do
marginalismo. Marshall representou um marco na história da
moderna economia científica. Introduziu o nome “Economics” em
substituição ao antigo “Political Economy”, para designar o novo
estilo de se fazer ciência econômica; fundou o primeiro curso
especializado de economia e seu livro de 1890, Princípios de
economia, foi o principal manual da disciplina por mais de 30 anos.
Marshall sentia-se pessoalmente incomodado com a figura de
Jevons. E não lhe deu o devido crédito. Entretanto, sabemos hoje da
relevância das ideias de Jevons, embora elas não tenham
repercutido muito a sua época. Jevons é considerado um dos
descobridores da teoria da utilidade marginal. Marshall também é
citado no descobrimento, na aplicação e no desenvolvimento dessa
teoria na análise da demanda e das trocas. Ele aplicou tais ideias em
1890 e reivindicou originalidade, remetendo-nos a seus trabalhos
entre 1867 e 1870. Durante essa época, entretanto, Marshall não

321
havia derivado sua curva de demanda da maximização de utilidade.
Com efeito, somente após tal período ele se aproximou da análise
marginalista do comportamento do consumidor.
Marshall e John Bates Clark, economista norte-americano, são
considerados por alguns historiadores como descobridores inde-
pendentes da teoria da utilidade marginal, e, portanto, também
teriam seus direitos de paternidade na nova teoria. No entanto,
nada publicaram sobre isso antes da Revolução Marginalista.
Particularmente, é difícil sustentar que Marshall tenha descoberto
a teoria da utilidade marginal de modo independente de Jevons,
muito embora a biografia de Marshall, escrita por John Maynard
Keynes, diga o contrário. Nada de Marshall foi publicado, antes de
Jevons, que fizesse referência ao “valor terminal da utilidade”,
termo que Marshall diz ter empregado nesse interregno. Em sua
revisão da Teoria da economia política de Jevons, o economista de
Cambridge nada disse sobre sua anterioridade e só falou de
utilidade três vezes. Não se pode negar, porém, o seu mérito por ter
construído os seus Princípios de economia, a obra que mais
contribuiu para a difusão da noção de utilidade marginal.

O DESENVOLVIMENTO DAS IDEIAS DE JEVONS


Por ocasião do centenário da publicação da Riqueza das
nações, de Adam Smith, reuniu-se um grupo de economistas, em 31
de maio de 1876, no Clube de Economia Política de Londres, para
debater o legado de Adam Smith, a situação atual dessa ciência e
suas perspectivas futuras. Jevons estava presente. Ele resumiu os
principais problemas práticos a serem enfrentados pelos
economistas: a pobreza, o conflito trabalhista, a distribuição de
renda, o papel do Estado e a dificuldade de se fazer uma política
monetária esclarecida. Tais problemas, diz ele, não levaram a um
acordo entre os economistas sobre o que deveria nortear o
desenvolvimento da teoria econômica. Meses depois, numa aula
inaugural no University College de Londres, Jevons escreveria um
ensaio intitulado O futuro da economia política, em que são
discutidos o papel da história na economia, a importância do
conceito de escassez, os limites do laissez-faire e as flutuações do
mercado monetário. É provável que em suas contribuições ele não
tenha conseguido esclarecer todos esses problemas, até porque
Jevons morreria relativamente cedo, mas suas ideias são um marco
importante na evolução do pensamento econômico.

322
O economista britânico William Stanley Jevons foi, de fato, um
dos que mais contribuíram para o desenvolvimento da teoria
subjetiva do valor. Fatos que marcam sua vida e trajetória
intelectual elucidam alguns dos elementos que estão presentes na
gênese da nova visão. O pensamento original e independente de
Jevons é fruto de acontecimentos em sua vida. Nasceu em
Liverpool. Inicialmente estudou química e botânica, e depois lógica
e economia no University College de Londres. Personalidade tímida
e pensativa, voltado à introspecção e possuído por mente bastante
inquiridora, dos 19 aos 24 anos morou em Sydney, na Austrália,
movido por necessidade financeira. Jevons abandona seus estudos
em ciências naturais em Londres em 1854 para trabalhar como
avaliador de metais (assayer) em Sydney, onde adquire interesse
por economia política. Então lá ele trabalhou como avaliador de
metais, mais propriamente um trabalho de químico ou metalúrgico.
A economia política já despertara atenção na mente de Jevons,
embora tal ciência nunca lhe tenha sido matéria de interesse
exclusivo. Nessa época, já se nota a sólida formação em estatística,
com aplicação em diversas ciências. Todos esses assuntos de que se
ocupava, sua formação, seu trabalho e seu interesse por economia
levaram-no ao estudo da relação entre oferta de ouro e moeda.
Após a leitura em 1857 do livro Economia da estrada de ferro,
de Dionysius Lardner, Jevons inclina-se definitivamente para
questões econômicas e começa a destacar-se como economista,
escrevendo seus primeiros artigos na matéria nos jornais de
Sydney. Neles critica a política agrária e de transporte de trens do
governo de Nova Gales do Sul. Desenvolve, na ocasião, ideias
interessantes sobre curvas relacionando preços com receitas e
custos. Mostra que o lucro máximo é obtido quando as inclinações
das duas curvas são iguais, indício de que ele viria a empregar a
análise marginalista em estudos futuros.
Aventa-se que Jevons tenha sido influenciado por Cournot e
Dupuit, pelo fato de ter lido o livro de Lardner, no qual aparece algo
deles. Sob influência desses dois autores, Jevons teria chegado à
técnica de empregar-se a análise marginalista e a de combiná-la
com a noção dupuitiana de utilidade, obtendo assim o conceito de
utilidade marginal. Não há, entretanto, nada de muito expressivo
ou reconhecível das mensagens de Dupuit e Cournot no livro de
Lardner. Ademais, antes mesmo de conhecer Lardner, a atenção de
Jevons já se voltava às mesmas questões debatidas por esses dois
precursores. Convencera-se de que os problemas econômicos
puros eram problemas de alocação ótima e de que a investigação
econômica consistia essencialmente num tipo de matemática que
323
calcula a causa e o efeito da ação humana produtiva e mostra como
ela pode ser mais bem aplicada. Os primeiros trabalhos de Jevons
em economia teórica lidam com controvérsias práticas sobre
fixação de tarifas de trem. Neles, deu-se conta de que tais proble-
mas não seriam elucidados pela teoria do valor com base no custo
de produção. Tempos depois, ele adere completamente à noção de
utilidade marginal. Problemas práticos, como a fixação da tarifa de
trem, o teriam conduzido à economia marginalista.
O cálculo marginal havia surgido naturalmente em suas
investigações teóricas sobre problemas práticos, mas a noção de
utilidade tem em Jevons uma origem ligada principalmente às
influências de Bentham; muito embora não se possa dizer que ele
se tenha filiado completamente ao utilitarismo ético. O próprio
Jevons indica os autores, além de Bentham, que o ajudaram a
formular a noção de utilidade. Nassau Senior e Richard Whately
prepararam a cabeça de Jevons com seus escritos repudiando a
teoria do valor trabalho. Aos nove anos de idade, sua mãe lera para
ele a passagem de Whately na qual se escreve que:
“Não é o trabalho que qualquer coisa tenha custado que
ocasiona a sua venda por um elevado preço, mas o contrário, é
a sua venda por um alto preço que acarreta aos homens
trabalharem na procura dela.” (Apud. R. Howey, The rise of the
marginal utility school)
Na verdade, Senior e Whately não escreveram muita coisa
sobre valor. Senior afirma que, das três condições requeridas para
o valor, utilidade, transferibilidade e limitação na oferta, a última é
a mais importante. Senior escrevia principalmente sobre direito e
o arcebispo Whately sobre religião. Não conheciam a fundo Ricardo
e mantinham ideias originais mais porque desconheciam o conteú-
do da teoria do valor de Ricardo do que em virtude de perceberem
seus defeitos e procurarem remediá-los. No retorno de Jevons a
Londres, em 1859, o principal economista defensor da teoria da
utilidade era William Forster Lloyd, que também deve tê-lo
influenciado.
De volta à Inglaterra, volta a estudar na University College de
Londres até conseguir o bacharelado e o título de mestre. Passa a
se dedicar às ciências morais, contudo, mantém o interesse por
ciências naturais e por lógica. Obtém um cargo de tutor no Owens
College, em Manchester. Nove meses após a volta à Inglaterra,
Jevons escreve a seu irmão afirmando ter descoberto a verdadeira
teoria da economia:

324
“Tão profundamente e com tamanha consistência que eu
não posso mais ler outros livros sobre a matéria sem me sentir
indignado.” (ibidem)
Tal afirmação está contida nas Cartas e artigos, coletânea de
escritos de Jevons editada postumamente, por sua esposa, em
1886. Um dos livros que causaram repúdio em Jevons fora o de
Jacob Waley, que tinha inclinações pela obra de Stuart Mill. Jevons
dedica-se a desenvolver sua própria versão da teoria do valor
também como forma de se opor a essas ideias.
A tendência manifestada no pensamento de Jevons de
desenvolver posições não ortodoxas e de não se conformar ao
argumento da autoridade, duvidando sempre que possível, é
apontada por alguns como influência da religião unitarianista de
seus pais. O unitarianismo também o teria levado a uma visão
racionalista e analítica do homem e da natureza, a um “desejo de
resolver situações em suas partes componentes elementares” que
seria aplicado à teoria da utilidade marginal.
Em 1866, é eleito professor de lógica e filosofia mental e moral.
Também passa a atuar como professor de economia política,
cadeira que assume até se aposentar, em 1880, com apenas 45 anos
por problemas de saúde. Torna-se conhecido pela originalidade de
suas teorias. Tinha, também, conhecimentos práticos de física,
metalurgia e meteorologia. Morreu em Bexhill, Inglaterra, com
apenas 47 anos, vítima de um afogamento acidental.
Dentre as publicações de Jevons, destacam-se Teoria Mate-
mática Geral da Economia Política (1862), Sobre o Estudo das
Flutuações Comerciais Periódicas (1862), Uma queda importante
no valor do ouro (1863), A questão do Carvão (1865), que lhe deu
o reconhecimento da opinião pública. Nessa obra, introduz o
chamado “paradoxo de Jevons” (efeito Jevons).
O paradoxo de Jevons ocorre quando o progresso tecnológico
aumenta a eficiência com a qual um recurso é usado (reduzindo a
quantidade necessária para qualquer uso), mas a taxa de consumo
desse recurso aumenta devido ao aumento da demanda. É talvez o
paradoxo mais conhecido na economia ambiental. Ao reduzir o
custo relativo do uso de um recurso aumenta-se a quantidade
demandada dele. Pois, a eficiência aprimorada aumenta a renda
real e acelera o crescimento econômico, aumentando ainda mais a
demanda por recursos. Tal paradoxo, portanto, ocorre quando
predomina o efeito do aumento da demanda, e a eficiência aprimo-
rada aumenta a velocidade com que os recursos são usados.

325
Na obra de 1965, Jevons observou que as melhorias tecnoló-
gicas que aumentavam a eficiência do uso do carvão levavam ao
aumento do consumo de carvão em uma ampla gama de indústrias.
Ele argumentou que, ao contrário da intuição comum, não se podia
confiar no progresso tecnológico para reduzir o consumo de
combustível. Hoje em dia, especialistas em economia ambiental
discutem se existiria, de fato, tal paradoxo, pois, muitos ambienta-
listas assumem que ganhos de eficiência diminuem o consumo de
recursos, ignorando-se a possibilidade de o paradoxo surgir.
Outras destacadas publicações de Jevons incluem as seguintes
contribuições: Lógica Pura, ou a lógica da qualidade além da quan-
tidade (1864), A Substituição de Similares, o Verdadeiro Princípio
do Raciocínio (1869), Lições elementares de lógica (1870), A taxa
de “Match”: um problema em Finanças (1871).
Continuando a relação de obras, A teoria da economia política,
de 1871, é, sem dúvida, seu principal trabalho como economista, e
a contribuição principal como lógico aparece em Os princípios da
ciência, de 1874. Schumpeter gostava desse livro.
Citemos, ainda, Moeda e o mecanismo da troca (1875), Uma
cartilha sobre economia política (1878), além de 21 artigos publi-
cados em diversas revistas, como Journal of the Statistical Society
of London, The Contemporary Review, Fortnightly Review, Journal
of Social Science, Journal of The Statistical and Social Inquiry e
Nature.
Destacam-se ainda quatro obras póstumas: O Estado em
relação ao trabalho (1882), Métodos de reforma social e outros
artigos (1883), Investigações em Moeda e Finanças, de 1884), livro
póstumo que reúne escritos de Jevons. Escreve sobre moeda e ciclo
econômico, estuda a relação entre oferta de ouro e moeda. Examina
o problema das flutuações econômicas. Livro organizado pelo pro-
fessor Foxwell. Segue também os Estudos em lógica dedutiva
(1884) e as Cartas e Diário de W. Stanley Jevons (1886).
Em 19 de fevereiro de 1860, Jevons, com 24 anos e estudando
na Universidade de Londres, escreve em seu diário ter descoberto
o significado da utilidade marginal. Este fato parece indicar uma
anterioridade de Jevons em relação a Menger e Walras. Nos dois
anos seguintes, Jevons não trabalhou com teoria econômica,
voltando-se apenas aos estudos sobre estatística aplicada ao
comércio. Em 1862, ele enviou dois artigos à Associação Britânica
para o Avanço da Ciência. Em um primeiro artigo, intitulado “Teoria
matemática geral da economia política”, com óbvia inspiração em
Bentham, escreve que:
326
“A verdadeira teoria da economia somente pode ser alcan-
çada buscando-se de volta a mola sublime da ação humana: os
sentimentos de prazer e dor.” (ibidem)
Essa foi a primeira publicação de Jevons em teoria da utili-
dade. A recepção do público não foi muito boa. Os secretários da
referida Associação Britânica não aprovaram o texto de Jevons. H.
D. Macleod, E. Macrory, H. Fawcett, W. Thornton, H. Merivale e E.
Chadwick eram os secretários. Mais tarde, na introdução de sua
obra máxima, a Teoria da economia política, Jevons diria que todos
os principais pontos de sua teoria do valor foram esboçados nesse
artigo. Já o outro artigo, “Sobre o estudo das flutuações comerciais
periódicas”, teve a aprovação dos avaliadores. Nesse mesmo ano,
Marshall chegou em Cambridge. Na ocasião, toma conhecimento do
ensaio de Jevons. Não se sabe se chegou a lê-lo por inteiro, porém,
demonstrou desinteresse, o que reforça a tese de que Marshall não
havia desenvolvido uma teoria da utilidade marginal por essa
época. Contrários à essa tese, os amigos de Marshall disseram que
ele havia descoberto a teoria de modo independente.
Na “Teoria matemática geral”, Jevons apresenta a essência de
seu sistema teórico, sem uso de notação matemática e sem gráfico.
No primeiro parágrafo, afirma que os principais problemas da
economia devem ser tratados de forma matemática rigorosa. Do
segundo ao sétimo parágrafos, desenvolve sua teoria do prazer e da
dor. Admite, no entanto, a existência de outros motivos que
comandam a ação humana. Termina com a noção de utilidade
marginal decrescente. No oitavo parágrafo, identifica dor com
trabalho, no nono critica a teoria do valor trabalho e no décimo
apresenta o seu modelo de equilíbrio da troca simples. No restante
do artigo, estende o modelo para muitos indivíduos e muitas
mercadorias. Chega a insistir no sistema de equilíbrio geral,
embora nunca o tenha desenvolvido. Também analisa a produção,
conectando-a ao problema da troca. Discute a relação entre juros e
capital.
A “Teoria matemática geral” é finalmente publicada em 1866
pelo Journal of the Statistical Society of London, agora com o nome
de “Breve consideração sobre uma teoria matemática geral da
economia”. Embora essencialmente o mesmo trabalho, Jevons
incorpora algo de novo nele. Discute com mais detalhe como é feita
a comparação da intensidade do sentimento no ato de escolha.
Prolonga a análise da intensidade e da duração do prazer. Apro-
funda o tema do papel da previsão e da estimativa da utilidade
futura. Faz também algumas mudanças terminológicas ao discutir

327
a ideia de utilidade marginal decrescente: substitui o “grau final de
utilidade”, na “Teoria matemática geral”, pelo termo “coeficiente de
utilidade”. Na “Teoria matemática geral”, o grau final de utilidade é
definido como “a razão da utilidade do último incremento”. Na
década de 1870, ele usará as expressões “razão da utilidade” e
“utilidade ou benefício derivado da última porção usada”.
A ideia de utilidade no artigo de 1866 foi pouco difundida. O
próprio Jevons dera pouca atenção ao problema do valor, preo-
cupando-se com outras questões econômicas até começar a
escrever, em 1871, a Teoria da economia política. A teoria do valor,
que seria notabilizada nesse livro, é a mesma já desenvolvida nos
dois ensaios anteriores. Jevons somente retomara o interesse por
teoria abstrata e decidira completar seu trabalho em economia
teórica porque considerou importante refutar as teses de Fleming
Jenkin, um professor de engenharia de Edimburgo, apresentadas
na Representação gráfica das leis da oferta e da demanda. A crítica
ao trabalho de Jenkin apressou Jevons a fazer sua “Teoria”. O
esforço para escrevê-la foi tanto que ele teve a saúde seriamente
abalada. Após a primeira edição da “Teoria”, de fato, Jevons ficou
bastante doente. O seu medo era de que o uso da matemática por
Jenkin pudesse tirar-lhe a precedência no método. Nota-se que
Jenkin não trabalhou com a teoria da utilidade, só se preocupando
com curvas de oferta e demanda.
Na data da primeira edição da “Teoria”, o consagrado Princí-
pios de economia política de Stuart Mill tinha 23 anos e seu autor
ainda era considerado grande autoridade na matéria. Contudo, a
escola clássica atravessava uma crise. Jevons era crítico de Mill. Sua
“Teoria” buscou ser uma visão completamente alternativa da
economia científica. Começa escrevendo que sua teoria
“[...] deve ser apresentada como a mecânica da utilidade e
do interesse individual.” (W. S. Jevons, A teoria da economia
política)
Para Jevons, as leis últimas que comandam a utilidade seriam
obtidas por intuição ou seriam fornecidas por outras ciências.
“A ciência da economia, contudo, é de alguma forma
peculiar, devido ao fato, indicado por John Stuart Mill e
Cairnes, de que conhecemos suas leis fundamentais imediata-
mente pela intuição, ou, de qualquer forma, nos serão forne-
cidas já elaboradas pelas outras ciências psicológicas ou
físicas.” (ibidem)

328
De qualquer modo, a “mecânica da utilidade e do autointe-
resse” seria uma teoria verdadeira, tão autoevidente quanto os
Elementos de Euclides.
A Teoria da Economia Política foi feita um tanto às pressas e
por isso contestada por ser uma obra mal-acabada. De fato, em sua
primeira edição, Jevons não se mostrou seguro sobre o significado
e o uso da teoria da utilidade. Nas edições seguintes, foi melho-
rando a obra, ao mesmo tempo em que transparecia um entusiasmo
cada vez maior pelo método matemático. Jevons acredita que as
formulações matemáticas da teoria poderiam ser enriquecidas
preenchendo-as com conteúdo estatístico.
“Não hesito em dizer, também, que a economia pode ser
gradualmente elevada à condição de ciência exata, desde que
as estatísticas comerciais sejam bem mais completas e exatas
do que são no presente, de sorte que a doutrina possa ser
dotada com um sentido preciso por meio do auxílio dos dados
numéricos [...] A ciência dedutiva da economia deve ser
comprovada e tornada útil pela ciência puramente empírica da
estatística.” (ibidem)
A influência de Bentham, tanto nos ensaios anteriores quanto
na “Teoria”, é explícita: no prefácio da segunda edição do livro, em
1879, ele diz que as ideias desse filósofo moral são o ponto de
partida de sua teoria. Anteriormente, no ensaio de 1862, Bentham
é citado em quase metade dos parágrafos. É interessante investigar
quando e como Jevons deu-se conta de que o trabalho de Bentham
poderia ser usado na análise econômica. Bentham morrera três
anos antes do nascimento de Jevons, no entanto, sua teoria moral
era facilmente acessível: em 1843 aparece uma coletânea de seus
escritos no livro Trabalhos. Jevons, contudo, só se interessou por
Bentham após seu retorno da Austrália.
Podemos avaliar até que ponto o desenvolvimento da teoria da
utilidade em Jevons tomou emprestado elementos de Bentham. A
técnica geral do cálculo do prazer e da dor é a herança mais
importante. A discussão das dimensões do prazer e da dor, feita nos
primeiros capítulos da “Teoria”, não é tão relevante. Mais signifi-
cativas foram duas considerações feitas por Jevons que já estavam
em Bentham:
1. Jevons focaliza a discussão do prazer no consumo de um
bem particular;
2. Ele toma para si a essência da noção de utilidade marginal
elaborada por Bentham.

329
Esses dois pontos, entretanto, representam uma parte peque-
na da obra econômica de Jevons, que por sua vez é uma parte menor
de seus escritos.
Na terceira edição da “Teoria”, Jevons escreve que o escritor
que melhor compreendeu a natureza e a importância da lei da
utilidade foi Richard Jennings, que publicou pela primeira vez suas
opiniões sobre utilidade marginal em 1855. É certo que eles não se
conheceram pessoalmente. Não se sabe muito bem em que ano
Jevons lera algo de Jennings, parece que não foi antes do artigo de
1862. Jennings afirma que a ideia de que o valor é derivado do
trabalho humano é a falácia fundamental da economia científica.
Ele se liga a Whately, a quem considera o verdadeiro fundador da
teoria da utilidade. Jennings, de fato, fornece indícios de conhecer a
noção de utilidade marginal, por exemplo, quando ele diz que...
“Na proporção em que os objetos são menos abundantes,
qualquer quantidade limitada deles deve ser mantida como
mais valiosa, e na proporção em que eles são mais abundantes,
eles devem ser mantidos como menos valiosos; o valor de toda
mercadoria vai sendo dissipado à medida que ela cresce em
quantidade, como um círculo na água, quanto mais espalhado
mais ele se dispersa.” (Jennings. Apud. R. Howey, The rise of
the marginal utility school)
Jennings também é citado por Jevons como precursor da noção
de “desutilidade” marginal crescente do trabalho. Jennings tentou
tratar a economia como matéria de desenvolvimento da psicologia.
Jevons não chegou a tanto.
Quando Jevons propôs a nova doutrina dos preços na “Teoria”,
encontrou forte resistência conservadora contra ela. Pela falta de
adesão, a doutrina teve progresso lento. Marshall, em sua revisão
desse livro, e ainda Bagehot, Sidgwick e Cairnes, não foram grandes
entusiastas da obra de Jevons. Marshall afirma que o livro de Jevons
tem como principal propósito
“[...] substituir a teoria do valor de Mill pela doutrina de que
‘o valor depende inteiramente da utilidade’.” (ibidem)
Ele nega originalidade à ideia de Jevons e, contra ela, sustenta
a teoria clássica do valor afirmando que, em última instância, é o
trabalho que determina o valor, já que a utilidade marginal depen-
de de variações na oferta; por sua vez proporcionadas pelo próprio
trabalho. Bagehot afirma ser a teoria de Jevons muito inferior à
antiga. Sidgwick deplora seu apelo revolucionário. Cairnes não viu
originalidade no trabalho de Jevons. Ele diz que se trata da mesma

330
teoria do valor de Frédéric Bastiat em Harmonias econômicas. Diz
ainda que Jevons não tem uma medida válida do grau final de
utilidade exceto o valor de troca do bem, já que o prazer não é, por
ele, medido diretamente. Cairnes não entendeu o sentido da teoria
da utilidade marginal. Apenas ironiza dizendo que, para Jevons, o
valor depende da utilidade e a utilidade é qualquer coisa que afeta
o valor. Thornton também criticou o conceito de utilidade de
Jevons. O problema para sua aceitação era que, a princípio, a teoria
do comportamento do consumidor parecia não ter nenhum
significado operacional.
É interessante rever os comentários e críticas ao livro de
Jevons que apareceram na imprensa britânica na época em que foi
lançado. Artigos elogiosos surgem em revistas como Athenaeum,
British Quarterly Review, Westminster Review, The Manchester
Daily Examiner, Fortnightly Review e Times. O Manchester Guar-
dian tenta reconciliar Jevons com os clássicos. O Glasgow Daily
Herald critica o conceito de utilidade dizendo que não podemos
conhecer a razão dos graus finais de utilidade sem conhecer a razão
de troca. Sendo assim, aquela razão não pode ser usada para
explicar esta. A função de utilidade, portanto, não é independente
das equações de troca. O Saturday Review também faz uma crítica
contundente: em Jevons, a quantidade total do bem não pode ser
aumentada ou diminuída. Cada comerciante é um monopolista.
“Suponha que o Museu Britânico tenha todas as obras restantes de
esculturas gregas e o Louvre de esculturas romanas. A qual taxa
trocarão as coleções?” Trata-se, afirma a revista, de um problema
descolado da realidade.
Se os artigos sobre utilidade e valor dos anos 1860 e mesmo a
“Teoria” não chamaram a atenção do público, Jevons já se havia
notabilizado em meados daquela década graças a seu trabalho
estatístico em A questão do carvão, no qual desenvolve uma
explicação, inspirada em Malthus, para o problema do esgotamento
da energia derivada do carvão. O conjunto de trabalhos estatísticos
de Jevons, que ele vinha desenvolvendo nos últimos anos, torna-se
objeto de admiração de todos: seu artigo sobre flutuações sazonais,
seu estudo sobre movimentos seculares no valor do ouro, os
trabalhos em economia monetária, nos quais defende o bimeta-
lismo, e até sua curiosa teoria das manchas solares para explicar o
ciclo econômico.
No fim do século XIX, poucos ingleses mostram-se tão entu-
siasmados com o uso da matemática como Jevons. Para ele, a
ciência econômica exata deve tratar seus termos com matemática...

331
“Minha teoria de economia é de caráter puramente mate-
mático. Mais ainda, acreditando que as quantidades com as
quais lidamos devem estar sujeitas a variação contínua, não
hesito em usar o ramo apropriado da ciência matemática, não
obstante envolva a consideração ousada das quantidades
infinitamente pequenas. Como a teoria perfeita de quase todas
as outras ciências envolve o uso daquele cálculo [diferencial],
não podemos, então, ter uma verdadeira teoria da economia
sem seu auxílio.” (W. S. Jevons, A teoria da economia política)
Jevons, no início da “Teoria”, não se furta a usar expressões
algébricas para distinguir os conceitos total e marginal de utilidade.
Na exposição da “lei da utilidade marginal decrescente”, Jevons
representa o “grau final de utilidade” pela expressão 𝑑𝑢⁄𝑑𝑥,
simbolizando a derivada da função utilidade 𝑢(𝑥) em relação à
quantidade do bem consumido 𝑥. A Segunda Lei de Gossen também
foi expressa matematicamente: um bem 𝑠 possui dois usos 𝑥1 e 𝑥2 ,
tal que 𝑠 = 𝑥1 + 𝑥2 . Δ𝑢1 e Δ𝑢2 são os respectivos incrementos
marginais na utilidade. A distribuição do consumo é ótima quando
Δ𝑢1 = Δ𝑢2 ou 𝑑𝑢⁄𝑑𝑥1 = 𝑑𝑢⁄𝑑𝑥2 , para variações infinitesimais, de
modo que se iguala o grau final de utilidade nos dois usos. Isto
equivale à condição moderna de equilíbrio (𝑑𝑢⁄𝑑𝑥 )𝑝𝑥 =
(𝑑𝑢⁄𝑑𝑦)𝑝𝑦 , para bens 𝑥 e 𝑦, com a hipótese de que 𝑝𝑥 = 𝑝𝑦 .. Na
linguagem atual, a razão entre as utilidades marginais iguala-se à
razão dos preços e a isso se denomina de “taxa marginal de
substituição no consumo”.
Jevons não demonstra muita habilidade em traduzir seus
pensamentos à linguagem matemática. Exemplificando, a equação
anterior é satisfatória para um indivíduo confrontado com preços
fixos, mas é de difícil aplicação na descrição de mercados não
competitivos. Antes dele, também Gossen analisa a troca de um
ponto de vista similar valendo-se de expressões algébricas. Jevons
emprega a álgebra ainda em outros problemas, como no seu
conhecido tratamento da troca simples (Boxe 9.1).
A Teoria da economia política repete os procedimentos
analíticos dos ensaios anteriores de Jevons. Em seu início, começa-
se por apresentar os fundamentos da análise das sensações de
Bentham e, logo em seguida, no capítulo 3, intitulado “A Teoria da
Utilidade”, Jevons afirma coisas como: o “grau de utilidade” de uma
mercadoria é função somente da quantidade dessa mercadoria ou
a utilidade de diferentes pessoas não pode ser comparada. Ele
também usa a noção de utilidade marginal na exposição de suas leis
de variação da utilidade, embora se valendo da expressão grau final

332
de utilidade, que é, para ele, a utilidade do incremento marginal
dividida pelo tamanho deste incremento.

Boxe 9.1 Análise matemática da troca simples em Jevons.

O indivíduo 𝐴 troca a parte 𝑥 de suas 𝑎 unidades iniciais de trigo por 𝑦


unidades de carne pertencentes a 𝐵, que possui um estoque inicial total de 𝑏.
Após o intercâmbio, 𝐴 possuirá 𝑎 − 𝑥 unidades de trigo e 𝑦 de carne. 𝐵 possuirá
𝑥 de trigo e 𝑏 − 𝑦 de carne. Para o indivíduo 𝐴, seus “graus finais de utilidade”
são 𝜙1 de trigo e 𝜓1 de carne, 𝜙2 e 𝜓2 para 𝐵. A relação de equilíbrio das trocas
é representada por 𝜙1 (𝑎 − 𝑥). 𝑑𝑥 = 𝜓1 (𝑦). 𝑑𝑦, para 𝐴, e por 𝜙2 (𝑥). 𝑑𝑥 =
𝜓2 (𝑏 − 𝑦). 𝑑𝑦 para a pessoa B. Isolando-se 𝑑𝑦⁄𝑑𝑥 e igualando as duas
expressões, Jevons apresenta a sua equação fundamental das trocas
𝜙1 (𝑎 − 𝑥)⁄ 𝜓1 (𝑦) = 𝜙2 (𝑥)⁄ 𝜓2 (𝑏 − 𝑦) = 𝑑𝑦⁄𝑑𝑥.
Pela lei da indiferença, 𝑑𝑦⁄𝑑𝑥 = 𝑦⁄𝑥 .
A “lei da indiferença” assevera existir um único preço no mercado. Pela lei
da indiferença, no mesmo mercado toda porção de um bem homogêneo é
trocada à mesma taxa, isto é, qualquer porção do bem é usada indiferen-
temente no lugar de outra porção do mesmo montante. Existe, portanto, um
único preço no mercado. Jevons discute a lei da indiferença no capítulo IV de
sua Teoria da economia política.

O que determina o valor, para Jevons? É o grau final de utilida-


de. Porém, a escassez afeta a utilidade marginal! É possível a
mensurabilidade da utilidade, e o cálculo da utilidade almeja suprir
as necessidades ordinárias do homem ao menor custo de trabalho.
No início do capítulo 3 da “Teoria”, Jevons apresenta um gráfi-
co (Figura 9.1). O eixo 𝑜𝑥 indica quantidades de um bem consu-
mido, divididas em oito partes iguais que representam idênticos
acréscimos do bem a ser consumido. O eixo 𝑜𝑦 indica a intensidade
do prazer produzido pelo consumo. Cada retângulo (canaleta
vertical) representa a utilidade do acréscimo do bem consumido.
Cada nova porção contribui para um acréscimo de utilidade cada
vez menor. As porções I e II têm utilidade indefinida, pois
representam montantes indispensáveis à vida (podemos falar em
utilidade infinitamente grande), por isso desenha-se, nos dois
casos, a base superior sem limite (aberta).

333
Figura 9.1 Representação das utilidades de cada nova porção do
bem consumido.

O sentido de prazer ou dor possui duas dimensões ou modos


de variar em relação à quantidade e, enquanto durar, poderá ser
mais ou menos intenso. Jevons exemplifica com o valor do pão, que
possui
“[...] a utilidade quase infinita de manter a vida e, quando se
torna uma questão de vida ou morte, uma pequena quan-
tidade de comida excede em valor todas as outras coisas. Mas,
quando desfrutamos de nossos suprimentos comuns de
alimento, um pão tem pouco valor, porque a utilidade de um
pão a mais é pequena, estando nossos apetites saciados por
nossa refeições costumeiras.” (W. S. Jevons, A Teoria da
Economia Política)
Como varia a intensidade do sentimento? Altera-se de um
momento para o outro, porém, permanece constante nos interva-
los:
“[...] podemos imaginar que a intensidade varia ao fim de
todo minuto, mas que permanece constante nos intervalos. A
quantidade observada em cada minuto pode ser representada,
como na figura acima, por um retângulo cuja base deve
corresponder à duração de um minuto e cuja altura é propor-
cional à intensidade do sentimento observado no minuto em
questão. Ao longo do eixo 𝑜𝑥 medimos o tempo e, ao longo das
paralelas ao eixo 𝑜𝑦, medimos a intensidade. Cada um dos
retângulos entre 𝑝𝑚 e 𝑞𝑛 representa o sentimento de um
minuto. A quantidade total de sentimento gerada durante o

334
tempo 𝑚𝑛 será então representada pela área total dos
retângulos entre 𝑝𝑚 e 𝑞𝑛.” (Ibidem)
Ainda no mesmo capítulo, Jevons discute a alocação de uma
mercadoria capaz de diferentes usos. Conclui que na alocação ótima
igualam-se os graus finais de utilidade em cada uso. Expõe, tam-
bém, o problema de escolha intertemporal. Introduz a noção de
taxa de preferência no tempo. Enquanto um indivíduo perfeita-
mente neutro em relação ao tempo aloca os bens ao longo de uma
sequência de períodos de modo a igualar as utilidades marginais u1,
u2, u3..., as preferências temporais são incorporadas nos fatores q1,
q2, q3..., tal que o equilíbrio intertemporal passa a ser q1u1= q2u2=
q3u3= ... Jevons também introduz a análise da escolha com risco na
qual as utilidades marginais do consumo em cada período também
são ponderadas pelas respectivas probabilidades p1, p2, p3 ... do bem
conservar-se em perfeito estado até a data futura, e o equilíbrio
intertemporal fica sendo p1q1u1 = p2q2u2 = p3q3u3= ...
Finalmente, no Capítulo IV, a análise de Jevons culmina na
teoria da troca simples; ele conclui que, nesse problema, a distri-
buição de duas mercadorias entre dois agentes que produz o
máximo de satisfação para cada um corresponde à condição na qual
a razão dos graus finais de utilidade equivale ao inverso da razão
de troca das mercadorias. Esta condição valeria para todo tipo de
mercado, do monopólio bilateral à concorrência perfeita. Na
equação básica de trocas de Jevons, os mesmos princípios controla-
riam todos os mercados, independentemente do número de com-
pradores e vendedores. Em mercados com mais de um comprador
ou vendedor, Jevons trabalha com a noção de “entidades na troca”
(trading bodies) do lado da oferta e da demanda, em que um
agregado de indivíduos se comporta como um sujeito único. A
conclusão a que chega Jevons não é aceita pela teoria moderna. Por
exemplo, no monopólio bilateral o preço é indeterminado dentro
de uma faixa. A equação básica de Jevons permite relacionar preços
com utilidades marginais. Para derivar curvas de demanda das
curvas de utilidade, no mercado de concorrência, ainda são reque-
ridos passos intermediários. Tal problema só seria resolvido depois
por Walras e Marshall.
A fórmula de Jevons é essencialmente estática, já que nela as
mercadorias possuem quantidade fixa. Jevons parece ter super-
estimado seu alcance. Conclui a partir dela, precipitadamente, que
a liberdade de troca é vantajosa a todos. Uma generalização que não
se sustenta apenas com essa análise. Lacunas na teoria de Jevons

335
foram preenchidas por outros autores da revolução marginalista.
Walras desenvolve um modelo dinâmico das trocas que não existia
em Jevons, descrevendo o caminho na direção do equilíbrio, não
explicado pela fórmula estática.
Jevons apenas sugeriu elementos da teoria da produtividade
marginal, como a noção de desutilidade, mas não a desenvolveu.
Além de não ter derivado curvas de demanda das curvas de
utilidade, ele também não deduziu curvas de oferta com base nos
custos monetários. Ele trabalha, na verdade, com uma teoria do
custo real expresso em termos de sentimentos de desutilidade ou
dor, uma análise que, embora não produzisse uma teoria da firma,
lançou luz sobre os determinantes da oferta de trabalho. Jevons
apresenta uma incipiente teoria do capital, essencialmente capital
variável, isto é, um agregado de mercadorias que sustenta os
trabalhadores. Ele tentou organizar diversos fatos em uma fórmula
precisa, e aplicar essa fórmula a amplas generalizações sobre
período de produção, produtividade, quantidade de capital e juros.
Böhm-Bawerk desenvolveria depois os insights de Jevons sobre as
relações entre diferentes métodos de produção e a duração do
período envolvido.

JEVONS E A CRÍTICA AO HEDONISMO


O conceito de utilidade marginal em Jevons aproxima-o da
investigação psicológica, com sua apreensão de leis no estudo das
sensações e a busca de um substrato ao fenômeno dos preços com
base nelas. Jevons dá a entender, porém, em algumas passagens,
que tais sensações não seriam diretamente observadas e sua
atuação seria percebida pelas escolhas individuais.
“Admito que dificilmente possamos criar o conceito de uma
unidade de prazer ou sofrimento, de forma que a expressão
numérica de quantidades de sentimento pareça estar fora de
questão [...] Os prazeres, em suma, são, por ora, da maneira que
a mente os estima; de forma que não podemos fazer uma
escolha ou manifestar o desejo em qualquer sentido, sem
indicar desse modo um excesso de prazer em alguma direção.”
(W. S. Jevons, A teoria da economia política)
Jevons cita uma passagem do livro de Alexander Bain, As
emoções e a vontade, em que se diz:
“É uma simples proposição equivalente afirmar que o maior
de dois prazeres, ou o que parece como tal, dirige a ação resul-

336
tante, pois é essa ação resultante que, sozinha, determina qual
é o maior.” (ibidem)
A ação indica para onde aponta o excesso de prazer. Tal argu-
mento lembra a moderna teoria da preferência revelada.
De fato, a noção de utilidade, desde o começo do século XIX,
esteve associada à filosofia hedonista. Essa filosofia assevera,
grosso modo, que os homens são criaturas movidas pela busca do
prazer. O princípio da utilidade foi trazido à tona por meio do
debate ético ocorrido, naquela época, na Inglaterra. Portanto, ele foi
empregado num sentido mais amplo que o estritamente eco-
nômico. Bentham, em sua obra de 1789, introduziu o princípio da
utilidade como o mote responsável pela coesão de seu sistema
ético. A partir de suas considerações sobre ética, propõe a cons-
trução de um sistema de leis mais racional. Bentham é adepto do
hedonismo. Ele não defende sua vertente egoísta, mas segue o
chamado “hedonismo universalista”. Em síntese, a ética de Ben-
tham consiste em avaliar a conduta humana, como sendo um bem
ou um mal, pela observação de suas consequências sobre a
felicidade coletiva; portanto, não só sobre a felicidade do próprio
indivíduo que age, daí seu caráter universalista. A ação é tida como
boa, ou portadora do bem ético, se levar, pelos efeitos repercutidos
na coletividade, a máxima felicidade ao maior número de pessoas.
Essa tradição de pensamento ético, de fato, é muito antiga e
suas sementes já se encontram em autores gregos da Antiguidade.
Ela é uma das duas vertentes principais associadas ao liberalismo
político e filosófico que se desenvolve a partir do século XVIII.
Difere da outra tradição liberal, a ética dos direitos naturais ou,
como viria a tornar-se conhecida naquele século, ética dos direitos
do homem. Esta última acredita na existência de preceitos éticos de
valor absoluto, como o direito à vida, à propriedade, à liberdade
etc., que funcionariam como axiomas de partida num sistema ético
dedutivo. Já a ética a que se filia Bentham, e da qual foi um dos
maiores expositores naqueles tempos, mede o valor de uma ação
por seus efeitos. Diz-se, portanto, que ela é uma ética “conse-
quencialista”, na qual se mede o grau em que uma ação é desejada
por sua utilidade na geração de prazer para a coletividade. Daí
tornar-se conhecida como utilitarismo ético. Não se deve confundi-
lo com a escola da utilidade marginal em economia. É incorreto
afirmar que os marginalistas sejam utilitaristas. E nem é correta a
crítica dos opositores dessa escola econômica de que ela se filia
necessariamente ao hedonismo.

337
O sistema ético de Bentham depende, para sua operação, de
uma medida das quantidades de prazer e de dor, a fim de se aferir
a desejabilidade ética de certa ação. Tal preocupação remete a dois
problemas teóricos: como medir a dimensão do prazer e como as
circunstâncias gerais afetariam a produção desse prazer. Tais
questões, que no utilitarismo ético eram investigadas na solução do
problema do bem e do mal, são novamente levantadas no subjeti-
vismo econômico de Gossen e Jevons. Não é sem motivo que os dois
autores são os que aparentam terem sofrido maiores influências do
hedonismo de Bentham. Embora haja um longo intervalo entre
Bentham e Jevons, o hedonismo deste ainda é significativo para
Jevons.
Seguindo o que já escrevera o filósofo utilitarista, Jevons
analisa as sete dimensões responsáveis pela grandeza do prazer no
capítulo II da Teoria, intitulado “A teoria do prazer e do sofri-
mento”. Quatro delas são distinguidas pelos indivíduos: intensi-
dade, duração, certeza e proximidade. Três servem ao investigador
para avaliar a satisfação total repercutida de um ato: fecundidade,
pureza e amplitude, respectivamente, a chance de um sentimento
(prazer ou dor) levar a outro sentimento do mesmo tipo, a chance
de não ser seguido por sentimento contrário e o número de pessoas
afetadas por ele. Dentro do primeiro grupo, o das dimensões que
afetam diretamente a ação do indivíduo, para Jevons e para Ben-
tham intensidade e duração são as dimensões mais relevantes na
avaliação do prazer. Jevons considera que somente as dimensões
identificadas nesse grupo são importantes para a economia, outras
dimensões revestem-se de importância apenas à investigação ética.
Partindo da descrição do mecanismo que condiciona os sentimen-
tos de prazer e dor, Jevons afirmou pretender fundamentar toda a
análise econômica.
Era uma avaliação unânime entre os críticos que a teoria da
utilidade, o núcleo da economia de Jevons, repousa numa psico-
logia obsoleta e não razoável. Duas proposições de caráter psico-
lógico são centrais na doutrina econômica de Jevons: a “lei da
utilidade marginal decrescente” e a “lei da desutilidade crescen-
te”.32 A primeira diz que qualquer pessoa ao consumir unidades
sucessivas de um bem, sem a intervenção do tempo, derivará de
cada unidade sucessiva menos “utilidade” do que a derivada na

32
Depois de Jevons, diversos termos são usados pelos teóricos da utilidade
marginal quase como sinônimos entre si: utilidade, prazer, gratificação,
satisfação, benefício, ofelimidade, capacidade para satisfa-zer a desejos e
outros.
338
unidade anterior. A segunda proposição psicológica diz respeito a
um custo psicológico do trabalho, uma espécie de dor. Jevons e
Gossen desenvolvem essa ideia. Com ela, pretendem explicar a
oferta de mão de obra pela análise das sensações de prazer e dor. O
esforço do trabalho é inicialmente desconfortável, depois produz
prazer ao indivíduo. Com a continuação do processo, há um ponto
no qual é gerada crescentemente dor ou desutilidade líquida,
quando o prazer começa a perder para a dor. O trabalhador maxi-
miza sua utilidade aplicando-se até o momento em que a desu-
tilidade gerada do último esforço (desutilidade marginal do
trabalho) iguala-se à utilidade marginal do salário aferido. Embora
a análise da oferta de trabalho contribua para a elucidação de
aspectos da produção, Jevons não tem uma teria da produção
baseada na utilidade. Ele se limita a igualar a utilidade marginal do
produto com a desutilidade marginal da produção na explicação da
oferta de trabalho.
As duas proposições psicológicas anteriores concorrem na
explicação do fenômeno do preço. Dado um estoque de bens em
posse de cada consumidor, o problema da troca simples, entre dois
indivíduos e duas mercadorias, tem como solução a equivalência
exata entre as proporções em que os bens são trocados, seu preço
relativo, e o inverso da relação, que se estabelece para cada
indivíduo, entre a utilidade marginal da quantidade restante do
bem inicial e a utilidade marginal do estoque acumulado do novo
bem obtido pela troca. Resta ainda explicar como os dois parceiros
da troca obtiveram o estoque inicial do respectivo bem. Ora, cada
qual permanecera no trabalho da sua obtenção até o ponto em que
a crescente desutilidade pareceu não mais compensar a utilidade
esperada que se possa obter da mercadoria produzida quer em seu
consumo direto quer pela troca.
Walras e os economistas austríacos rejeitaram veemente-
mente a noção de desutilidade ou “custo do sofrimento” como
determinante independente do preço. Em especial, para a escola
austríaca o custo seria derivado da demanda. Só a utilidade margi-
nal do consumo apareceria então como determinante último dos
preços. No entanto, Böhm-Bawerk, dessa escola, em 1894, também
reconheceu o papel da desutilidade. Hoje em dia, os expoentes da
teoria da utilidade aceitam a desutilidade como um fator
determinante dos preços, em coordenação com a utilidade. Na
verdade, a teoria da desutilidade de Jevons foi apenas uma
explicação da oferta de mão de obra, sem pretender ser diretamen-
te um elemento de sua teoria dos preços.

339
Jevons reconheceu a insuficiência da noção de utilidade margi-
nal para uma explicação completa dos preços em sua famosa
afirmação envolvendo trabalho, quantidade do bem, utilidade mar-
ginal e preços. Ele enunciou essas relações dizendo:
“Para que não haja erro possível, vou expô-las num quadro
a seguir:
O custo de produção determina a oferta;
A oferta determina o grau final de utilidade;
O grau final de utilidade determina o valor.” (W. S. Jevons, A
teoria da economia política)
A ênfase no custo de produção remete à noção de trabalho.
Diferentemente dos clássicos, no entanto, o trabalho, nesse contex-
to, não precisa ser pensado em termos de custos reais, como
número de horas trabalhadas; pode ser visto em termos psico-
lógicos como quantidade de dor desprendida no esforço. Alguns
autores consideram que Jevons teria feito concessões à teoria do
valor com base nos custos de produção dos clássicos, e que ele não
pode explicar preços baseado na relação entre utilidades margi-
nais, pois esta relação é, ela mesma, resultado do processo de troca
que se dá a um preço predeterminado. Entretanto, no início do
capítulo 1 da “Teoria”, ele diz que “o valor depende completamente
da utilidade”. Essa aparente contradição leva-nos a pensar que
Jevons talvez tenha reconhecido que é impossível uma explicação
causal unidirecional do fenômeno dos preços, já que o cálculo do
montante ótimo de trabalho requer, de antemão, o conhecimento
dos preços do bem produzido, a fim de se chegar às utilidades
marginais que são comparadas com o esforço adicional do trabalho.
Já estes preços são teoricamente obtidos a partir dos estoques
disponíveis do bem que, por sua vez, dependem das horas traba-
lhadas. O trabalhador não escolhe, na prática, o tempo de trabalho
e, mesmo se escolhesse, não poderia fazê-lo racionalmente, já que
somente a posteriori conheceria as utilidades que estão sendo
geradas. Assim, os estoques iniciais e os preços de mercado deter-
minam-se reciprocamente, sem uma sequência temporal explicati-
va claramente definida. Além disso, diversas outras dificuldades se
assomam na tentativa de fornecer uma explicação subjetiva dos
preços: o volume do estoque não depende apenas da quantidade de
trabalho medida em dor, mas da disposição dos outros fatores e da
função de produção.
Jevons afasta-se das implicações hedonistas do conceito de
utilidade quando diz que qualquer motivo que nos atraia a certo
curso de conduta deve ser chamado de prazer, e de dor qualquer

340
motivo que nos afaste dele. Dos marginalistas, apenas Jevons e
Gossen têm alguma influência do hedonismo, ela não existe nas
teorias de Walras e Menger. A crítica ao hedonismo, portanto, não
poderia abalar, isoladamente, a confiança na economia margina-
lista. O hedonismo estivera, no fim do século XIX, totalmente
desacreditado pela nova psicologia. Os avanços nesse campo
também serviram para atacar o conceito de homo economicus:
agente estilizado que possui uma escala mental de preferências
estável e consistente, e que calcula racionalmente a estratégia de
maximização das satisfações empregando as técnicas marginalis-
tas. O economista americano John Maurice Clark considera que os
achados da pesquisa psicológica de sua época evidenciavam que o
comportamento humano raramente é racional e frequentemente é
impulsivo, instintivo, inconsistente e instável. Ele não entendia,
portanto, porque a escola marginalista insistia em sua “paixão
irracional pelo cálculo racional desapaixonado”. Contrapondo-se à
visão econômica do homem como um ser estático e passivo,
psicólogos e filósofos da época, como Charles Peirce, William James
e John Dewey, destacam, no comportamento humano, a natureza
ativa, dinâmica e empreendedora.
Não obstante isso, a nova psicologia teria demonstrado àquela
época, na visão dos críticos, que o comportamento humano apre-
senta aspectos objetivos e mensuráveis. A ciência que o estuda
deveria medir tal comportamento e seus estudos serem modelados
pela metodologia seguida nas ciências naturais. A nova teoria
econômica, no entanto, estaria baseada num subjetivismo desacre-
ditado e em noções não científicas, tais como a introspecção
enquanto método de entendimento das escolhas humanas. Por
seguir tal estratégia, a ciência econômica não pode responder a
muitas questões relevantes na compreensão dos fenômenos que
estuda: como os consumidores respondem a novas situações?
Como as preferências são formadas e alteradas com o tempo? Como
a propaganda influencia as vendas? Como as forças sociais inter-
ferem no comportamento do agente? Qual o papel dos hábitos, dos
costumes e da emulação social?
Os marginalistas em geral não se preocupam com esses as-
pectos psicológicos do agente quando formulam ou seguem a teoria
da utilidade. Entretanto, não se pode acusar todos eles de
assumirem o hedonismo como hipótese comportamental. Não há
nada de hedonismo em supor que as ações humanas são condu-
zidas pelo desejo individual. Que os homens são guiados pelo
desejo é até tautológico, se definirmos o desejo como o impulso que
conduz a determinado curso de ação. O hedonismo adentra a teoria
341
no momento em que se supõe serem os homens guiados pela busca
de satisfação, ignorando-se o problema das diferenças entre
desejos e satisfações. Assumir que a intensidade do desejo desper-
tado por um bem é comandada pela satisfação do consumo é aceitar
o hedonismo. Que o desejo seja sempre proporcional à satisfação,
ou seja, que a utilidade do bem, entendida como seu poder de
satisfação, determine o desejo por ele, tal raciocínio pressupõe o
hedonismo, um raciocínio criticável pelos psicólogos da época por
não ser dominante no comportamento humano.
No entanto, dizer que os preços estão relacionados ao desejo e
não à satisfação é suficiente para operacionalizar-se o instrumental
fornecido pela teoria da utilidade. Marshall é um dos que aceitou a
possível disparidade entre desejo e satisfação. Enquanto a satisfa-
ção tem uma base fisiológica imediata, tal como eliminar algum
desconforto, suprir a sede e a fome, o desejo humano é movido por
forças imponderáveis, pela ação de impulsos, hábitos, morbidez,
autoabnegação, expectativas erradas etc. O professor de Cambridge
acredita não ser possível uma medida direta da satisfação e
considera que a teoria da utilidade deve limitar-se a considerar a
ação movida por desejos. Claramente ele não aderiu ao hedonismo.
É difícil incorporar na teoria econômica a separação entre
desejo e satisfação. Böhm-Bawerk evitou levá-la adiante, pois
acreditava que tal ênfase conduziria a um agnosticismo, uma vez
que não há princípios gerais que comandem a relação entre esses
dois conceitos. Arthur Cecil Pigou (1877-1959), procurando con-
tornar o problema, simplesmente postulou que os bens ordinários
são desejados pela satisfação que proporcionam. Isso seria válido,
para ele, especialmente no caso de bens de primeira necessidade:
nosso desejo por roupa e comida é simplesmente o desejo por
instrumentos para a satisfação de nossas necessidades primárias.
Nem sempre se pode admitir que o desejo se fixa no objeto de
satisfação. Na maioria das vezes, o indivíduo depara-se com uma
certa ignorância a respeito da efetividade do consumo em atender
a determinados propósitos. Constantemente fazemos falsas
representações. Os homens não buscam utilidades ou prazeres;
simplesmente almejam objetos. Para tanto, eles não se engajam
com frequência em comparações deliberadas e cuidadosas ou em
cálculos de unidades de prazer associadas quer às unidades
sucessivas do mesmo bem, quer às unidades de diferentes bens, ou
às unidades a diferentes estágios no futuro. A ideia de que as
potencialidades hedonistas de diferentes mercadorias são os ele-
mentos que comandam a ação foi ridicularizada pelos psicólogos.

342
Para eles, os homens não perseguem prazeres ordinariamente
como objeto consciente de seus desejos.
No mercado, não se verifica o cálculo hedonista. Nele, a ação
humana é o resultado de um complexo instável e irracional de
instintos, impulsos, hábitos, costumes, modismos, ações reflexas,
histeria de grupo e outros elementos. O comportamento humano,
portanto, raramente é racional, e frequentemente é impulsivo,
instintivo, inconsciente e instável. À luz dessas críticas, o econo-
mista americano Thorstein B. Veblen propôs um novo e revolucio-
nário programa de pesquisa que emprega a teoria psicológica do
instinto. Embora tal programa tenha tido grande influência na
geração de economistas americanos do fim do século XIX, tal
tentativa mostrou-se um fracasso.
Outros críticos consideram o raciocínio da nova teoria micro-
econômica circular, já que a curva de desejo é inferida da curva de
demanda e, portanto, não serve para explicá-la. A lei das utilidades
marginais decrescentes não precisa significar mais do que a noção
de desejos decrescentes. E essa ideia não necessita ser nada além
de uma mera hipótese de trabalho que serve para explicar a
recorrência geral do fenômeno. No mais, evidências baseadas na
introspecção e na observação do comportamento humano em
outros campos só têm confirmado a hipótese em tela.
A economia marginalista, ponderam os críticos, não pode
determinar o valor de troca partindo somente dos desejos indi-
viduais. Uma vez que, para tanto, suas teorias consideram também
o poder de compra dos agentes ou o estoque inicial, como no
modelo da troca simples, que são, em si mesmo, um valor. Assim, a
teoria parece explicar valor de troca por valor de troca. Entretanto,
pode-se contra-argumentar que embora se diga que o valor da
variável w seja função dos valores de x, y e z, não se deve dizer que
essa teoria explica valor por valor. Os marginalistas, principal-
mente na tradição de Walras, simplesmente aceitam a mutualidade
nas relações entre valores de troca, compondo um modelo no qual
os valores estão relacionados uns com os outros: cada valor é um
item num sistema de valores interdependentes. A análise da utili-
dade não se preocupa com os elos causais entre as variáveis, mas
tão somente com a estabilidade na estrutura de relações entre elas.
Os críticos, destacadamente os economistas austríacos se-
guidores de Carl Menger, apontam essa não-identificação de causa-
lidades entre as variáveis como uma fraqueza do modelo. Os
austríacos aceitaram a nova abordagem fornecida pela teoria da
utilidade, mas consideram-na um enfoque incompleto. Ela seria
343
apenas uma foto instantânea do processo de determinação do
valor. Essa teoria trata apenas, dizem, da “lógica pura da escolha” ,
sob supostos estáticos relativos aos parâmetros dos agentes. Esse
é o argumento fundamental desenvolvido por Friedrich A. von
Hayek em seus escritos dos anos 1940. Já na década anterior, a
teoria da utilidade alcançara uma forma final, não sofrendo nenhu-
ma grande modificação a partir de então. Por essa época, torna-se
uma teoria corrente em todos os grandes trabalhos em economia
científica.

VIDA E OBRA DE MARSHALL


Alfred Marshall (1842-1924) nasceu em Bermondsey, um
subúrbio de Londres, em 26 de julho. Ele era de família devotada à
religião, com muitos sacerdotes entre eles. Cresceu no bairro lon-
drino de Clapham; na infância foi educado na escola de Merchant
Taylor onde revelou precoce aptidão para a matemática. Lia livros
de matemática desde menino e foi um dos mais brilhantes estudan-
tes de sua geração na matéria. Em reconhecimento ao talento de
Marshall, o Banco da Inglaterra proporcionou-lhe bolsa de auxílio
financeiro. O aprendizado concentrou-se, de início, em letras e lín-
guas clássicas; em anos seguintes a ênfase foi deslocando-se para a
matemática, da qual os conhecimentos de Marshall avançaram até
o nível de cálculo diferencial. Predestinado a seguir carreira sacer-
dotal na Igreja Anglicana, como requisito teria de passar pelos
estudos clássicos na Universidade de Oxford. Sem dificuldade, ele
adquire nova bolsa de estudo em tempo integral e transfere-se a
esse centro.
Desde pequeno, os pais de Marshall combateram a inclinação
dele pela matemática, temendo que trocasse a carreira religiosa
pelas ciências. Obrigado a estudar hebraico, Marshall foi impedido
de praticar seu esporte favorito, o jogo de xadrez. No entanto, o que
sua família receava acabou acontecendo e Marshall não demorou a
trocar o ensino clássico por um curso superior de matemática no
St. John’s College, em Cambridge. A troca de escola em 1862 custou-
lhe abdicar da bolsa e ele precisou tomar emprestado dinheiro de
um tio, pagando a dívida por meio de ganhos com aulas particula-
res.
Marshall superava todos os seus competidores na disputa por
posições na escola; em apenas três anos, tornou-se “Second Wran-
gler”, exaltado posto nos quadros da instituição. O único colega que
estava em condições de disputar com ele era Lord Rayleigh, cujas

344
habilidades matemáticas eram ainda maiores que as de Marshall. O
sucesso angariou ser eleito “Fellowship” em St. John. Na ocasião,
tendo perdido suas convicções religiosas, abandona completa-
mente as pretensões anteriores à carreira clerical. Em troca, apro-
funda-se cada vez mais no estudo dos fundamentos filosóficos da
moral, para ele, a base do comportamento humano e da organiza-
ção social. Frequentando as reuniões fechadas do Grote Club, uma
sociedade de debates, afasta-se da metafísica e acaba abandonando
a religião.
Concluído com distinção o curso de matemática em 1865,
Marshall passa a lecionar tal disciplina como professor do Clifton
College. No entanto, as reflexões em filosofia moral desviaram o
interesse da matemática para outras disciplinas. Em 1868, em St.
John, ele torna-se College Lecturer em ciências morais, especial-
zando-se no ensino de lógica e economia política. Dois anos depois,
ele havia-se convencido de que sua carreira seria dedicada a confe-
rir à economia política o status de ciência. Por muitos anos,
trabalhou com afinco a fim de desenvolver e refinar ideias econômi-
cas, procurando aprofundar sua compreensão da literatura
preexistente no assunto e da realidade econômica como tal.
Preocupado com os problemas sociais de sua época, Marshall
encontrou na economia um instrumento para lidar com eles, pois
para ele o combate à pobreza é a razão de ser da economia. A
formulação de seu pensamento econômico apoiou-se inicialmente
em duas fontes de influência: os economistas alemães e Stuart Mill.
Atraído pelas ideias de W. Roscher, ele viaja à Alemanha, também
preocupado em aperfeiçoar seus conhecimentos da língua alemã.
Tendo a economia como opção prioritária, Marshall não abandona
o interesse por filosofia, especialmente pelos filósofos alemães
Hegel e Kant. Ambicionava, inclusive, ler Kant no original. No mes-
mo biênio de 1867 e 1868, Marshall debruça-se na leitura da obra
de Mill e, munido de sólida bagagem lógica e matemática, procura
traduzir as principais concepções deste em exercícios com
equações diferenciais até onde pudesse ir, rejeitando aquelas que
não se prestassem a isso.
Ao longo de uma década dedicada à economia, Marshall foi
elaborando as bases de seu pensamento econômico, enquanto
lecionava a disciplina. Costumava viajar nas férias. Ia com frequên-
cia aos Alpes suíços onde aproveitava o descanso para ler literatura
alemã (especialmente Goethe) e Herbert Spencer. Em 1875, visita
os Estados Unidos; fica bem impressionado com a realidade econô-
mica desse país e se convence ainda mais de que a aplicação de bons

345
princípios econômicos pode levar à melhoria geral das condições
de vida da população. De volta à Inglaterra, Marshall estreita o
contato com M. G. Fawcett e Henry Sidgwick, somando com eles
esforços a fim de dar ao ensino de economia política maior autono-
mia e prestígio. Também se unem a esse grupo de trabalho H. S.
Foxwell e Neville Keynes. Em 1877, ele casa-se com Mary Paley, sua
antiga aluna que foi uma das primeiras mulheres da Inglaterra a
obter o grau universitário e que se tornou professora de economia
e sua ativa colaboradora intelectual. Mary fez parte da primeira
turma do Newnham College (conceituada escola superior só para
mulheres, de Cambridge, que até hoje mantém seu prestígio).
Marshall conheceu-a na condição de responsável por um arranjo
informal de aulas para mulheres em Cambridge, ensinando econo-
mia política.
Com o casamento, ele foi obrigado a afastar-se de St. John, já
que não poderia mais pleitear o celibato, requisito da carreira
clerical. Transfere-se para Bristol como diretor do colégio universi-
tário estabelecido em Oxford, onde prossegue a carreira de profes-
sor de economia política. Antes de 1879, ele não havia publicado
nada de muito significativo. Tinha colaborado num livro de comer-
cio internacional e problemas do protecionismo em meados da
década e, antes disso, ele tinha elaborado muitas de suas teorias na
forma de um curto ensaio publicado como apêndice em um volume
sobre comércio internacional, de circulação restrita com poucas
cópias encontradas fora de Cambridge, lançado por Henry Sidgwick
sob o título de A teoria pura do comércio exterior: a teoria pura dos
valores domésticos. Tal ensaio foi depois parcialmente incorporado
nos Princípios de economia, obra máxima de Marshall.
O mesmo ano de 1879 assiste à publicação do primeiro livro
de Marshall, A economia da indústria, escrito juntamente com sua
esposa Mary Paley. O livro, de fato, tem mais da contribuição de
Mary do que de Marshall. Foi escrito no formato de manual e
destinado a servir como material de apoio aos cursos de extensão
da Universidade de Oxford. O livro foi publicado pela Macmillan,
que continuou nos anos seguintes a ser a editora exclusiva das
obras de Marshall. Embora aparentando ser um tratado elementar
de economia, ele contém os primeiros esboços da emergente teoria
de Marshall e considerável sofisticação de ideias subjacentes à
superfície de simplicidade. A economia da indústria projetou o
nome dele como estrela crescente no firmamento da economia.
Com a morte de W. S. Jevons em 1881, torna-se aos olhos do público
a figura líder, na Inglaterra, da nova escola de economia.

346
Marshall adaptou-se bem à posição de responsável pelo
recente colégio universitário de Bristol, principalmente diante do
bom suporte financeiro da instituição. Ele ansiava por continuar
seus escritos, tendo já concebido o plano para o livro que se
tornaria os “Princípios”. No entanto, desde o início de 1879 sua
saúde vinha-se debilitando, o que o impedia de exercer uma ativi-
dade mais intensa. Ainda começando a exercer o novo cargo, a
continuação dos problemas de saúde, diagnosticados como cálculo
renal, obrigou-o a pedir afastamento, quando então viaja à Palermo,
na Itália, onde passaria um ano tratando a moléstia. Em Palermo,
Marshall inicia a composição de novo livro. A saúde debilitada
reforça os antigos complexos, herança de forte controle e repressão
paternal, e acentua a tendência para a hipocondria. Tratada a
doença, Marshall tem assegurado o retorno a Bristol em 1882,
graças à generosidade do amigo Benjamim Jowett, diretor do
colégio Balliol. Também se deve creditar à ajuda de Jowett a
transferência para Oxford em 1883 com a vagância da cadeira de
Arnold Toynbee.
O considerável sucesso como professor em Oxford não foi
suficiente para fazê-lo resistir ao retorno a Cambridge a fim de
ocupar uma posição de grande potencial para a liderança acadê-
mica. Levado pela oportunidade de substituir o falecido Henry
Fawcett, Marshall volta a Cambridge em 1884 como professor
titular de economia política. Ele permaneceria por lá, na cátedra de
economia, por 23 anos, lecionando essa disciplina e ampliando seus
escritos até aposentar-se em 1908 a fim de dedicar-se exclusiva-
mente à sua obra de economista. Marshall é fundador e depois
nomeado vice-presidente da associação econômica britânica
(“Royal Economic Society” ). Morre em Balliol Croft, sua casa em
Cambridge por muitos anos, em 13 de julho de 1924, aos 81 anos.
A obra de Marshall é bastante ampla. A bibliografia completa
conta mais de 81 itens, a maioria constituída de folhetos, artigos e
depoimentos. De livros, publicou alguns, sendo os mais importan-
tes: Economia e indústria, curiosamente retirado de circulação pelo
próprio Marshall que dizia que “não se pode vender barato a verda-
de”. Há também os Princípios de economia (1890) e os Elementos
de economia e indústria (1892). O segundo seria uma versão dos
“Princípios” adaptada a iniciantes. Em 1919, aparece o Indústria e
comércio que seria, segundo Marshall, a continuação dos
“Princípios”. Dinheiro, crédito e comércio é de 1923; obra já com-
pletada em 1875 que reúne material dos primeiros estudos,
especialmente forte em teoria monetária. Os Artigos oficiais de
1926 são obra póstuma que contém os escritos de Marshall entre
347
1886 e 1903, e os Memoriais de Alfred Marshall (1925) represen-
tam uma coletânea de ensaios de Marshall editadas por A. C. Pigou,
seu sucessor na cadeira de Cambridge. Uma relação parcial dos
escritos de Marshall aparece no Boxe 9.2.

Boxe 9.2 Relação de obras de Alfred Marshall.

1862 Relatório da Associação Britânica para o Avanço das Ciências


1871 Academia (editado por A. C. Pigou 1925)
1872 A teoria da economia política do Sr. Jevons
1874 Uma nota sobre Jevons
1874 O futuro das classes trabalhadoras (editado por A. C. Pigou 1925)
1876 A teoria do valor de Mill (Fortnightly Review )
1879 A teoria pura do comércio exterior, a teoria pura dos valores
domésticos
1879 A economia da indústria (com Mary Paley)
1884 Onde moram os pobres de Londres
1885 A posição atual da economia política
1885 O quanto é possível remediar as causas que influenciam de modo
prejudicial a continuidade do emprego e a taxa de salário
1885 Sobre o método gráfico da estatística
1887 Remédios para a flutuação dos preços gerais
1889 Cooperação
1890 Princípios de economia
1890 Revisão contemporânea dos princípios de economia: texto
introdutório
1891 Alguns aspectos da competição
1892 Elementos de economia da indústria
1892 A lei dos pobres em relação às pensões de ajuda do Estado
1893 Sobre a renda (Economic Journal )
1897 A velha e a nova geração de economistas (Quartely Economic Journal)
1898 Analogias mecânicas e biológicas em economia (Economic Journal )
1898 Distribuição e troca (Economic Journal )
1902 Uma defesa para a criação de um currículo em economia e ramos
associados da ciência política
1907 As possibilidades sociais do cavalheirismo econômico (Economic
Journal )
1917 Impostos nacionais depois da guerra
1919 Indústria e comércio
1923 Dinheiro, crédito e comércio
1925 Memoriais de Alfred Marshall (editado por A. C. Pigou)
1926 Artigos oficiais
1980 Primeiros escritos econômicos de Alfred Marshall (editado por J. K.
Whitaker)
1994 Maquinário e vida (editado por T. Raffaelli)
1994 Uma nota (editado por J. K. Whitaker)
1996 Sobre Arnold Toynbee (editado por J. K. Whitaker)
1996 Notas tomadas durante as discussões nos encontros do Grote Club
(editado por T. Raffaelli)

348
Marshall tornou-se conhecido como líder da chamada escola
neoclássica de Cambridge que exerceu influência dominante no
pensamento econômico até os anos 1930. Ele é considerado um
marco na transição da antiga para a moderna economia. O pedigree
das influências intelectuais que se exerceram sobre ele é complexo
e difícil de ser reconstituído. De modo geral, suas ideias estão inse-
ridas no contexto histórico e cultural da era vitoriana. Marshall
reúne nelas valores éticos do protestantismo e da Igreja Anglicana,
aliados ao espírito vitoriano típico com sua crença no papel civiliza-
tório do vasto império britânico. Em filosofia, é um apreciador dos
alemães Kant e Hegel, embora tenha com o tempo se afastado dos
aspectos mais metafísicos desses sistemas filosóficos. A preocupa-
ção social de Marshall deve-se, em parte, à influência de Henry
Sidgwick e seu círculo intelectual em Cambridge. A sensibilidade
para com os problemas sociais também se pode creditar às influên-
cias dos escritos filosóficos de Stuart Mill e Herbert Spencer, bem
como a aspectos do utilitarismo de J. Bentham. A raiz do pensa-
mento econômico marshalliano nutre-se do mercantilista W. Petty
e do economista clássico Stuart Mill, na Inglaterra; de Von Thünen,
na Alemanha, e Cournot na França, conforme o próprio autor reco-
nhece no prefácio dos “Princípios”. Também se deve reconhecer o
papel do evolucionismo de Darwin na formação de Marshall. No
início da carreira de economista, ele chegou a cultivar certa admira-
ção pelo historicismo alemão de Roscher. Até mesmo Karl Marx, F.
Lassalle e outros socialistas eram lidos por Marshall na fase madura
de sua trajetória intelectual. No entanto, ele nunca aderiu ao socia-
lismo revolucionário. Em suma, Marshall herdou o arcabouço
intelectual de economistas e pensadores do século XVIII e XIX
dentro e fora da Inglaterra.
Marshall herdou e transformou substancialmente ideias dispo-
níveis em sua época. Homem culto, exímio matemático, versado em
ciência natural, filosofia, história e clássicos da Antiguidade greco-
romana, ele propõe grandes inovações doutrinárias e metodoló-
gicas na análise econômica. Procura tornar os princípios da econo-
mia clássica mais operacionais. Ao mesmo tempo em que é um dos
precursores do tratamento matemático na economia, ele humaniza
a ciência, criticando a universalidade e atemporalidade dos postu-
lados clássicos. Marshall é contra a noção simplificadora de homo
economicus e procura sempre tomar o indivíduo no contexto
sociocultural de cada época e lugar. Os seguidores de Marshall com-
figuram, de fato, uma verdadeira escola de economia, hegemônica
por algumas décadas.

349
Antes de Marshall, em Cambridge a economia era ensinada
apenas como parte das ciências históricas e morais, e não era objeto
de trabalhos mais avançados. Marshall fez da economia uma profis-
são. Durante muitos anos ele lutou, nem sempre com sucesso, a fim
de ampliar o âmbito dessa ciência, e só em 1903 inaugurou-se um
novo curso especializado em economia, o primeiro curso, de que se
tem notícia, exclusivamente dedicado à formação do profissional
nesse campo.33 Com ele, tal ciência adquire o status de saber autô-
nomo cientificamente qualificado, uma área técnica repleta de
conceitos não acessíveis ao não iniciado. Todavia, Marshall não se
deixou levar pela matemática a ponto de encobrir a preocupação
social básica da economia; ele não se perdeu na linguagem técnica
cifrada e considerava que o uso da matemática deveria ser feito
sempre de uma forma consciente e equilibrada. Embora a matemá-
tica fosse o principal instrumento analítico e metodológico de
Marshall, ele era contra seu uso abusivo em economia. Para ele,
trata-se de um método válido de análise, mas não de exposição de
resultados.
Há uma famosa carta em que Marshall relata sua experiência
pessoal com a matemática; ele escreve:
“Um bom teorema matemático relativo a hipóteses econô-
micas é altamente improvável de ser boa economia.” (Apud
Introdução de Ottomy Strauch, A. Marshall, Princípios de eco-
nomia)
E diz que ele conduz seu trabalho em economia, seguindo as
regras:
“1. Use a matemática como uma linguagem estenográfica,
antes do que como um instrumento de investigação.
2. Empregue-a até que se obtenham resultados.
3. Traduza para a linguagem corrente.
4. Ilustre com exemplos que tenham importância na vida real.
5. Queime a matemática.
6. Se não obtiver êxito em 4, queime 3.” (A. Marshall, Princí-
pios de economia)
Para Marshall, a matemática deve expressar de modo preciso
os métodos de análise e raciocínio que as pessoas comuns adotam,
mais ou menos inconscientemente, nos negócios do dia a dia.

33Na verdade, a nova Escola de Economia de Cambridge intitula-se Escola


de Economia e Política (Faculty of Economics and Politics), conservando
essa denominação até hoje. Conforme indica o nome da escola, trata-se de
especialização também em ciências políticas.
350
Marshall deixou importantes seguidores; os dois mais conheci-
dos são o economista que o sucedeu na cadeira de Cambridge,
Arthur Cecil Pigou e John Maynard Keynes, o fundador da macro-
economia que foi também seu principal biógrafo. Keynes não
poupou elogios à obra de Marshall; para ele, trata-se da “descoberta
de um complexo sistema copernicano no qual todos os elementos
do universo econômico são mantidos em seus lugares por mútuo
contrapeso e interação”. Nele, os fatores econômicos mantêm entre
si posições mutuamente dependentes em analogia ao sistema solar
em que o movimento de qualquer corpo afeta os de todos os demais
e é afetado por eles.

OS PRINCÍPIOS DE ECONOMIA
Os Princípios de economia são a magnum opus de Marshall.
Publicado em 1890, ele ganhou oito edições completamente revisa-
das pelo autor. A oitava edição de 1920 é considerada a edição
definitiva com as mais importantes alterações. Da quinta à oitava
edição não se fez alterações estruturais. Há também uma nona
edição póstuma. Trata-se da obra mais influente de sua era e que
foi, por muitos anos, a bíblia dos economistas britânicos, introdu-
zindo muitos conceitos hoje familiares a estudantes de graduação.
Para gerações de estudantes, professores e economistas profissio-
nais, os “Princípios” foram a suma econômica e o compêndio básico
no ensino da matéria. O livro teve sucesso imediato e ajudou a
restabelecer na opinião pública o prestígio e a credibilidade da
economia política. Voltado principalmente aos homens de negócio,
políticos e profissionais liberais, ele não se descuidava da preocu-
pação didática de servir de livro-texto a estudantes especializados.
É uma tentativa de síntese dos postulados da economia clássica e
da doutrina marginalista em um todo coerente. Os “Princípios”
tornaram-se livro de consulta obrigatória para profissionais e
compêndio básico no ensino de economia. A obra foi escrita em
nove anos com base nas aulas, e reescrita ao longo de trinta anos.
Marshall era lento e temeroso em escrever. Conta-se que ele tinha
o hábito de fazer circular oralmente entre colegas e alunos suas
produções intelectuais. Ele só publicava trabalhos bem documenta-
dos e cheios de reservas e restrições. Isso explica o fato de que,
embora os fundamentos da teoria de Marshall estivessem prontos
em 1870, tenha demorado 20 anos até surgirem na forma de livro.
As aulas e a escrita tomavam boa parte do tempo de Marshall.
Mesmo ocupando posição destacada na Universidade, ele não tinha
tempo disponível para participar mais ativamente dos negócios
351
dela. Ainda assim, teve participação proeminente na campanha de
1896 e 1897 contra a integração das mulheres na vida universi-
tária. Isso criava uma tensão em seu casamento, já que Mary Paley
era professora universitária. A afeição pela mulher não foi suficien-
te para fazê-lo abandonar o antifeminismo profundamente arraiga-
do em sua formação conservadora vitoriana. Acredita-se, no entan-
to, que ele tenha, com o tempo, se tornado mais flexível em sua
posição em relação ao papel das mulheres. De fato, Marshall não se
opunha à educação formal das mulheres, pelo contrário, ele tam-
bém se tinha dedicado a isso; o que ele se opunha era contra a
assimilação de mulheres em um sistema educacional desenhado
para homens.
Voltando-se aos “Princípios” de Marshall, é difícil encontrar
todos os adjetivos da obra, seus méritos estão tanto na forma
quanto no conteúdo. Na forma, destacam-se elegância estilística,
metáforas literárias bem empregadas e uso, com prudência e
destreza, de magnífico aparato matemático e diagramas expressan-
do conceitos complexos de modo inovador e enxuto. Há claramente
preocupação didática com introduções, remissões e notas explicati-
vas. A leitura do livro não é árida, ele não tem a aparência dos
modernos manuais introdutórios de economia. Entremeando
conceitos e procedimentos técnicos, há uma ampla discussão dos
problemas sociais. Logo no início da obra, Marshall explicita sua
preocupação social básica. Ele pergunta se há necessidade de
existirem pobres para que haja ricos e diz que a economia deve
elucidar essa questão central. A economia é importante não apenas
porque tal ciência oferece caminho racional para otimizar o
sustento da humanidade, mas também porque ao combater a po-
breza ela elimina as fontes de degeneração do caráter individual
associadas ao estado de privação.
Quanto a seu conteúdo, os Princípios de economia são a análise
microeconômica de uma economia de mercado. Ele articula em
novas bases conceituais o antigo paradigma clássico de uma econo-
mia com crescimento gradual e tendência natural ao equilíbrio.
Marshall busca complementar e generalizar pelo uso da matemáti-
ca as teorias de David Ricardo e Stuart Mill. O problema geral da
distribuição econômica dos recursos é resolvido pela ideia de que
a renda dos fatores produtivos é a contrapartida de suas contribui-
ções marginais. A teoria do valor-trabalho é complementada pela
introdução da análise de curto prazo, na qual os determinantes do
lado da demanda prevalecem sobre os custos de produção. Outra
peculiaridade da contribuição de Marshall é a introdução do méto-
do de análise parcial, no qual assume a famosa condição “tudo o
352
mais constante” (ceteris paribus). A análise do valor, da distribui-
ção e dos mercados é feita de modo essencialmente verbal. Mar-
shall remete todos os gráficos e demonstrações matemáticas a
notas de rodapé. Mesmo os raciocínios verbais lhes têm subjacente
uma sólida estrutura matemática. Nas palavras de Edgeworth: “sob
a roupagem da literatura a armadura da matemática”.
Muito do sucesso dos ensinamentos de Marshall deriva de seu
uso eficiente de diagramas, que logo foram imitados por outros
professores em todo o mundo (a Figura 9.2 mostra exemplos
desses diagramas).
Vejamos agora as principais contribuições à teoria econômica
encontradas nos Princípios de economia. O primeiro aspecto que
vale a pena destacar é de natureza metodológica: a análise do
equilíbrio parcial estático. Introduzindo esse método, Marshall
escreve:
“A função da análise e da dedução em economia não é forjar
longas cadeias de raciocínio, mas forjar seguramente muitas
pequenas cadeias e simples elos de ligação.” (A. Marshall,
Princípios de economia)
A técnica consiste em começar analisando um mercado em
particular sob o suposto de que variáveis afetadas pela ação de
outros mercados não se alteram. Depois, pelo método de compo-
sição, vai-se acrescentando mais elementos à análise, com o fito de
elucidar problemas maiores. O método “ceteris paribus” não faz
mais do que empregar o procedimento rotineiro de análise dos
homens práticos.
Outra ideia fundamental dos “Princípios” reside na reformula-
ção da teoria clássica do valor com o uso do marginalismo e das
noções de curto e longo prazo. O marginalismo de Marshall fora
herança de Von Thünen e não de Jevons, e o uso do fator tempo é
ideia original do professor de Cambridge. Veremos adiante que
Marshall reconcilia a teoria do valor-trabalho com a noção de que
o valor depende da demanda ou da utilidade marginal pela media-
ção do fator tempo. No curto prazo, a oferta é inelástica e a deman-
da determina os preços; no longo prazo, a oferta é horizontal e é ela
que determina os preços. Veremos logo mais o porquê desses
formatos das curvas. Então clássicos e subjetivistas não estavam
totalmente errados, contudo, suas teorias eram enfoques parciais
do fenômeno do valor. A teoria clássica do valor prevalece no longo
período e a teoria do valor subjetivo é uma análise de curtíssimo
prazo.

353
Figura 9.2 Exemplos de diagramas criados por Marshall.

Os “Princípios” representam uma contribuição importante


também pela articulação de conceitos já propostos por outros
autores, agora dentro de uma roupagem analítica mais completa,
casos do conceito de elasticidade da procura (já apresentada por
Cournot, mas cujo nome elasticidade é de Marshall), bem como a
noção de margem e substituição, que explica como o equilíbrio é
estabelecido na teoria do consumidor e da produção. No caso da
teoria da utilidade, Marshall retoma e aperfeiçoa conceitos que
foram antecipados por Jevons, Gossen e Walras, dentre outros
autores, da substituição na margem entre bens alternativos de
consumo. Na teoria da produção, pode-se imputar certa origina-
lidade a Marshall, embora a substituição na margem entre fatores
de produção apareça em Von Thünen. Em todo caso, porém, o
tratamento analítico não tinha alcançado anteriormente a elegân-
cia e a consistência que vemos em Marshall. O conceito de exce-
dente do consumidor, popularizado por ele, também não é inteira-
mente original, já que ele aparece anteriormente em Jules Dupuit e
William Thornton. Todavia, somente nos “Princípios” o conceito é
ostensivamente usado para mostrar que por meio da técnica de
discriminação de preços pode-se alcançar vantagem maior do que
no modelo de concorrência imperfeita com preço único. A análise
da economia do estado estacionário segue a de Mill, mas as conside-
rações particulares de Marshall merecem atenção.
354
Há outras inovações conceituais absolutamente originais: a
ideia de firma representativa, a quase-renda (Boxe 9.3) e a doutrina
do lucro normal. Além dos novos conceitos, a revisão da economia
científica em base mais formal e rigorosa projeta a obra do profes-
sor de Cambridge muito acima de outras contribuições que lhe são
contemporâneas.

Boxe 9.3 Conceito de quase-renda em Marshall.

Marshall propõe uma distinção mais rigorosa entre renda e uma categoria
criada por ele, denominada quase-renda. A renda seria um excedente econô-
mico derivado do uso de fatores naturais escassos como terra. Pelo fato de sua
oferta ser fixa, qualquer variação na procura irá se refletir obrigatoriamente
em seu preço, gerando uma receita acima dos custos de produção. Desse
modo, a renda conceituada por Marshall é designada renda da escassez que
caracteriza os rendimentos derivados dos bens diretamente oferecidos pela
natureza. Por outro lado, a noção de quase-renda serve para descrever o
retorno líquido dos insumos produtivos que estão temporariamente fixos em
curto prazo (líquido porque se subtrai custos de manutenção e de substi-
tuição). A quase-renda caracteriza os rendimentos oriundos de máquinas e
outros equipamentos, que, embora sejam inelásticos no curto prazo, podem
ter sua oferta ajustada no longo prazo. O termo também é empregado para
retornos anormais próprios de determinadas atividades, como as de alto
risco. O gráfico a seguir ilustra o raciocínio de Marshall: sendo dado exogena-
mente o preço p, a curva de custo marginal fornece a quantidade ofertada de
equilíbrio q. A curva de custo variável médio define a área oabq associada ao
custo variável total. A receita é naturalmente a área opcq. Subtraindo essa
área da outra, obtém-se a região preenchida apcb, que representa a quase-
renda associada ao retorno atribuído aos insumos fixos.

A quase-renda contém em si dois componentes. O que se deve acrescentar


ao custo variável total para obter-se o custo total é a medida do custo de
oportunidade do insumo fixo. O que sobra além do custo total é o lucro econô-
mico puro.

355
Vale ainda destacar a análise do monopólio, com rendimento
crescente e economias externas, que aperfeiçoa descrição anterior
de Cournot.
Os méritos dos aspectos técnicos dos “Princípios”, com suas
inovações metodológicas e conceituais, não devem encobrir outras
peculiaridades: o modo como as considerações éticas condicionam,
na obra, o raciocínio econômico e as propostas de implementação
prática de reformas sociais.
Marshall acredita que a ciência econômica vinha-se desenvol-
vendo gradualmente à época e suas ideias seriam então mais um
passo nessa evolução. Não haveria saltos na progressão da econo-
mia científica. No prefácio da primeira edição dos “Princípios”,
escreve:
“Alguns dos melhores trabalhos da presente geração têm,
de fato, parecido, à primeira vista, antagônicos aos de passados
autores; no entanto, à medida que, com o tempo, vão se colo-
cando em suas devidas proporções e suas arestas mais ásperas
vão sendo desbastadas, pode se ver que não envolvem nenhu-
ma solução de continuidade no desenvolvimento da ciência. As
novas doutrinas têm completado as antigas, as têm estendido,
desenvolvido e, algumas vezes mesmo, corrigido, e frequente-
mente lhes têm dado outro aspecto, insistindo de modo
diferente sobre os diversos pontos; porém muito raramente as
têm subvertido.” (A. Marshall, Princípios de economia)
No mesmo prefácio, critica a decantada noção de Homo econo-
micus, que para ele é insuficiente por não levar em conta o papel da
ética na análise econômica. Em seguida, esclarece, já nesse prefácio,
a noção de “valor normal”, empregada no conceito citado de lucro
normal, distinguindo-a do conceito de “valor corrente de mercado”:
“Estes últimos são aqueles em que os acidentes do momen-
to exercem uma influência preponderante, ao passo que valo-
res normais são os que seriam afinal atingidos se as condições
econômicas que se têm em vista tivessem tempo de produzir,
sem perturbações, os seus efeitos completos. Mas não há ne-
nhum abismo intransponível entre uns e outros: eles projetam
as suas sombras uns nos outros, por gradações contínuas.”
(ibidem)
Ainda nesse prefácio, Marshall reconhece os créditos para com
Spencer, Hegel e os economistas Cournot e Von Thünen. Fala do uso
da matemática e do emprego da expressão “marginal”.

356
Pulando o que escrevera nos prefácios das outras edições, vale
a pena destacar o teor do prefácio da oitava e última edição em vida
dos “Princípios”. Nele, diz que o Indústria e comércio é a continua-
ção da obra. Diz também que a evolução econômica é gradual, pois
a natureza não dá saltos (Natura non facit saltum) e que a Meca da
economia está na biologia. Sobre o método ceteris paribus, de que
falamos, esclarece que ele não faz mais do que empregar o proce-
dimento rotineiro de análise dos homens práticos:
“As forças a serem encaradas [na análise econômica] são
tão numerosas que o melhor é tomar poucas de cada vez e
elaborar um certo número de soluções parciais como auxilia-
res de nosso estudo principal. Começamos assim por isolar as
relações primárias de oferta, procura e preço em relação a uma
mercadoria particular. Reduzimos as outras forças à inércia
com a frase ‘todos os outros fatores sendo iguais’: não supo-
mos que sejam inertes, mas por enquanto ignoramos sua
atividade. Esse expediente científico é bem mais velho do que
a ciência: é o método pelo qual, conscientemente ou não,
homens sensatos trataram desde tempos imemoriais cada
problema difícil da vida ordinária.” (A. Marshall, Princípios de
economia)
Vejamos agora um breve apanhado da obra percorrendo
capítulos selecionados. Ela está dividida em seis livros. No primeiro
deles, Marshall tece análise preliminar com definições do objeto da
economia e discussão de pontos conceituais como o significado de
lei econômica. O livro segundo é a exposição das noções fundame-
ntais nesse campo, tais como riqueza, produção, consumo, trabalho,
bens de primeira necessidade, renda e capital. O livro terceiro
centraliza o tema das necessidades e das satisfações individuais no
consumo. Aparece aí o cerne da teoria do consumidor, em que se
discute valor, utilidade, elasticidade da demanda, alocação dos
bens no consumo e intertemporalmente, e ainda: excedente do
consumidor e preço de demanda. O livro quarto trata de aspectos
da teoria da produção, como fertilidade do solo e lei dos retornos
decrescentes, e temas sobre demografia, trabalho e organização
industrial. Discute as causas do crecimento da riqueza.
O livro quinto apresenta a teoria do valor de Marshall. Nele,
discute tema como funcionamento dos mercados, equilíbrio tempo-
rário entre demanda e oferta, investimento e distribuição de recur-
sos, os conceitos de demanda e oferta “normais”, curvas de deman-
da e de oferta de curto e de longo prazo, demanda e ofertas conjun-
tas e compostas, custos totais em relação à produção conjunta,

357
custos de marketing, seguro contra riscos, custo de reprodução,
relação entre custos marginais e valores, valores agrícolas e urba-
nos, mudanças na demanda e oferta normais em relação ao retor-
nos decrescentes e à máxima satisfação, teoria dos monopólios, e
finalmente a sua teoria geral do equilíbrio de demanda e oferta. O
sexto livro trata de distribuição de renda e formação de capital
humano. Discute os ganhos do trabalho, os juros e os lucros do
capital e a renda da terra.
Percorrendo o livro primeiro, no capítulo 1 começa-se por
definir a economia como ciência. Diz que ela estuda a humanidade
nas atividades correntes da vida, e que examina a ação no que diz
respeito à obtenção de bens materiais. Situa o estudo da riqueza
como uma parte do estudo do homem. Parte essa só igualada em
importância ao estudo dos impulsos de natureza religiosa, assevera
Marshall. Por que combater a pobreza? Responde ele que estudar
as causas da pobreza é estudar as causas da degradação de uma
parte da humanidade. A pobreza, além de afetar diretamente a
possibilidade de continuar existindo, também exerce impacto nas
condições mentais e morais dos homens. Pergunta também se é
necessário existirem pobres.
“Nos dispomos seriamente a investigar se é necessário
haver as ditas ‘classes baixas’, isto é, se é preciso haver um
grande número de pessoas condenadas desde o berço ao rude
trabalho a fim de prover os requisitos de uma vida refinada e
culta para os outros, enquanto elas próprias são impedidas por
sua pobreza e labuta de ter qualquer quota ou participação
nessa vida.” (ibidem)
A resposta, diz Marshall, não depende só da economia, mas
também da moral e da política. No entanto,
“A solução depende em grande parte de fatos e inferências
que estão na província da economia, e isto é o que dá aos estu-
dos econômicos seu principal e mais alto interesse.” (ibidem)
Na compreensão desse problema, embora se tenha verificado
algum progresso no século XIX, assevera Marshall que a economia
científica está quase na infância.
Em seguida, identifica as características fundamentais da mo-
derna vida industrial. Enumera-as então: independência, delibera-
ção, projeção do futuro, concorrência e cooperação. A existência de
concorrência é vital para o bom funcionamento da economia, mas
a cooperação é ainda mais importante. Mesmo a concorrência pura
envolve postura ética dos agentes, embora não se possa negar a

358
existência de fraudes e abusos nos negócios do dia a dia. Embora
um ideal superior, a cooperação entre os homens nunca seria plena,
dadas as imperfeições da natureza humana (Boxe 9.4).

Boxe 9.4 Marshall discorrendo sobre a possibilidade de a


cooperação vir a substituir a concorrência entre os
homens.

Escreve Alfred Marshall: “Se a concorrência é posta em contraste com a


enérgica cooperação de trabalho não egoísta para o bem público, então as
melhores formas de concorrência são relativamente perniciosas, e suas formas
mais grosseiras e baixas são abomináveis. Em um mundo no qual todos os
homens fossem perfeitamente virtuosos, a competição não teria lugar, mas o
mesmo aconteceria com a propriedade particular e qualquer forma de direito
privado. Os homens pensariam só nos seus deveres, e nenhum desejaria ter
uma quota maior de conforto e luxo do que os seus vizinhos. Os produtores
mais fortes facilmente suportariam o fardo mais pesado e admitiriam que os
seus vizinhos mais fracos, embora produzindo menos, elevassem o seu consu-
mo. Felizes nesta maneira de pensar, eles trabalhariam para o bem geral com
toda a energia e espírito inventivo, e a iniciativa arrebatada que tivessem, e o
gênero humano seria vitorioso na luta contra a natureza em todas as ocasiões.
Tal a Idade de Ouro que poetas e sonhadores podem visionar. Mas, numa
conduta responsável da vida, é pior do que a loucura ignorar as imperfeições
ainda imanentes da natureza humana.” (A. Marshall, Princípios de economia).

No mesmo livro primeiro, o capítulo 2 trata da definição do


objeto da economia científica. Começa dizendo que a economia é o
estudo dos homens nos assuntos ordinários da vida; como vivem,
agem e pensam e quais os motivos que afetam a conduta comercial.
Marshall pede que não se compare a economia com as ciências
físicas, pois aquela se relaciona com as “forças sutis e sempre
mutáveis da natureza humana”. A economia deve preocupar-se
com os motivos que impelem os homens no comércio. Tais motivos
podem ser medidos em dinheiro. O dinheiro permite mensurar a
força dos motivos pela remuneração pecuniária, conferindo à
economia o caráter de ciência quantitativa. Mede-se, por exemplo,
quanto será pago para obter dada satisfação ou quanto será pago
para induzir alguém a suportar uma fadiga. Assim, medimos as
inclinações dos espíritos indiretamente e por conjectura por meio
de seus efeitos. Diferentes prazeres ou sofrimentos são compa-
rados entre si, e um prazer com um sofrimento, indiretamente por
seus respectivos efeitos. Só se comparam prazeres e sofrimento na
mesma pessoa e no mesmo tempo. Satisfações e desconfortos
359
físicos são comparados pelo incentivo que oferecem à ação. Não se
estudam os estados de espírito em si mesmos: se oferecerem à ação
incentivos de força igual, o estudioso os trata como iguais para fins
de análise. Assim, não se penetra nas características mentais dos
indivíduos. Satisfações igualmente poderosas como incentivo à
ação têm idênticas medidas econômicas, não se levando em conta
outras peculiaridades.
Marshall escreve que dada soma de dinheiro representa
diferentes variações de prazeres para diferentes pessoas e para a
mesma pessoa em circunstâncias diferentes. Cita como exemplo o
caso hipotético de um imposto que duas pessoas com a mesma
renda são obrigadas a pagar. Cada qual abre mão de certo montan-
te, igual para ambas, que representa diferentes somas de prazeres
com diferentes intensidades. Para alguns o dinheiro do imposto
representa mais, para outros, menos prazer abdicado. No entanto,
Marshall considera que na média de um agregado de indivíduos, no
caso com distribuição igualitária, o dinheiro dissipado é uma boa
medida do dano (ou benefício, no caso oposto de uma transferência
do governo para o indivíduo). Outra situação é quando se tem
distribuição desigual da riqueza, pois uma unidade monetária
representa menos sacrifício (ou satisfação) para o rico do que para
o pobre. Mesmo nesse caso, entretanto, as diferenças são atenuadas
quando se pensa em riqueza média, na hipótese de grande número
de pessoas.
Para Marshall, o dinheiro é um meio conveniente para medir
motivos humanos, qualquer motivo e não apenas o desejo egoísta
da riqueza. A economia lida com fatos que podem ser observados e
com quantidades que podem ser medidas e registradas. Os
problemas agrupados como econômicos focalizam a conduta
humana sob a influência de motivos mensuráveis em dinheiro.
Pressupõem ações que visam o autointeresse individual como as
únicas que podem ser reduzidas à lei. Só interessam à economia
ações que são resultados de um cálculo deliberado do esforço
despendido e do resultado por ele obtido, em que os pesos de cada
parte são atribuídos em dinheiro. É claro que muitas das ações
humanas não se enquadram como ação deliberada resultante de
cálculo.
No capítulo 3, na sequência do livro primeiro, aborda-se o
método da investigação econômica. A economia observa, descreve,
define e classifica. Marshall cita o economista da escola histórica
alemã G. Schmoller na defesa do uso simultâneo tanto do método

360
indutivo quanto do dedutivo. De Schmoller, extrai a passagem em
que se escreve:
“A observação e a descrição, a definição e a classificação são
as atividades preparatórias. Mas o que desejamos alcançar por
seu intermédio é um conhecimento da interdependência dos
fenômenos econômicos. A indução e a dedução se fazem tão
necessárias para o pensamento científico como os pés direito
e esquerdo são necessários para a marcha.” (G. Schmoller,
apud. A. Marshall, Princípios de economia)
A economia usa os mesmos recursos das ciências naturais para
descobrir relações de causa e efeito. Marshall traça uma analogia
dessa ciência com seu jogo predileto, o xadrez. Como as ciências
naturais, a economia busca leis cada vez mais gerais testadas com
rigor. Também, como elas, busca medidas crescentemente exatas
de modo a ampliar o alcance dos assuntos científicos. Da causa
identificada pela análise decorre necessariamente o resultado se
nada ocorrer para extraviá-lo. Marshall foi infeliz em justiçar lei de
tendência apoiando-se na física, mas o que importa assinalar é que
ele acreditava em leis desse tipo na economia, como Mill e os
economistas clássicos em geral.34 Por serem leis de tendência, as
leis econômicas não possuem muita precisão. Como fazem os
estudiosos do fenômeno da maré, usa-se em economia a palavra
“provavelmente”, pois ações humanas são variadas e incertas.
Assim, a economia elabora leis provisórias das tendências da ação
humana. Na medida em que, nessa ciência, as forças dos motivos
são medidas em dinheiro, as leis econômicas são mais precisas que
as leis obtidas em outros ramos do saber social.
As leis econômicas podem ser alteradas pela ação do homem.
Elas são apenas hipotéticas e pressupõem que “outras coisas sejam
iguais”. Ocorrem se houver tempo para que as tendências se mani-
festem, mas nem sempre esse é o caso. De qualquer modo, a teoria
deve explicitar as causas condicionais implícitas na lei econômica

34 Nesse ponto, Marshall faz uma interpretação equivocada das leis da


física para dizer que elas são apenas enunciados de tendência. Cita o caso
da lei da gravitação. Sabemos, porém, que a lei da gravitação não tem nada
de lei de tendência. É uma lei exata de que a matéria atrai a matéria na
razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias
entre pontos centrais de cada corpo em questão. Se o movimento será de
queda de um na direção do outro (aproximação recíproca) ou se manterão
uma distância mais ou menos constante, como a lua ao redor da terra,
depende da posição e da velocidade iniciais. Não há nada de lei de tendên-
cia e sim de previsão determinística nas leis da mecânica.
361
para não dar margem a maus entendidos. Ela também deve prestar
a máxima atenção a mudanças nas condições sociais, acompanhan-
do sua evolução e atualizando o material teórico.
Ainda no mesmo capítulo, Marshall discorre sobre o conceito
de “ação normal”. A reação a se esperar, sob certas condições, é a
ação normal. O caso normal ocorre quando predominam certas
tendências que se afiguram ser mais ou menos firmes e persisten-
tes em sua atuação sobre outras relativamente excepcionais e
intermitentes. Assim, a ação econômica normal é a que se pode
esperar no longo prazo, não se aplicando o termo apenas ao caso
em que há concorrência.
A continuação do mesmo tema metodológico verifica-se no
último capítulo do livro primeiro dos “Princípios”. Lá se escreve, de
início, que a ciência econômica é a aplicação do senso comum
ajudado pelos procedimentos organizados da análise e do racio-
cínio abstrato. As leis econômicas são hipotéticas e, como tais,
dependem de condições muitas vezes difíceis de se estabelecer.
Portanto, não são leis simples, bem definidas ou claramente
constatáveis. Elas tratam da parte das ações humanas mais exatas
e mensuráveis. Não medimos os motivos diretamente, mas a força
motriz. A meta da análise econômica é o conhecimento útil a fim de
esclarecer os acontecimentos da vida prática. Para tanto, é impor-
tante agrupar os fatos e raciocínios análogos de modo a evidenciar
quais os efeitos de diferentes causas em sua ação isolada e em
conjunto. O Boxe 9.5 reproduz a passagem na qual Marshall discor-
re sobre as questões estudadas pelos economistas.
A economia, portanto, trata de responder às questões mais
urgentes da vida prática. Ao lado delas, Marshall arrola o que
seriam os problemas mais importantes de sua época: basicamente
é a tensão entre o livre mercado, com a eficiência alocativa a ele
associada, e o atendimento das necessidades das classes pobres.
Até que ponto deve-se aceitar a intervenção em prol de excluídos e
mais necessitados, mesmo quando tal política compromete a rique-
za geral da sociedade? Os princípios da propriedade privada e da
concorrência podem ser violados em nome de um objetivo social?
Além de procurar resolver tais problemas de ordem prática, a
ciência econômica também deve cultivar o conhecimento pelo
amor ao conhecimento. A economia tem os dois lados: de ciência
pura e aplicada; não sendo tão somente um guia final para o
político, já que ela abstrai circunstâncias que ele não pode ignorar.
Conclui Marshall propondo a mudança do nome dessa ciência:

362
“Ela é, portanto, uma ciência ao mesmo tempo pura e
aplicada, mais do que uma ciência e uma arte. E é melhor, para
designá-la, servir-se da expressão lata de ‘economia’ [‘Econo-
mics’ ], do que da mais restrita ‘economia política’ [‘Political
Economy’ ].” (A. Marshall, Princípios de economia)

Boxe 9.5 Principais questões que o economista estuda, segundo


Marshall.

Marshall cita as principais questões formuladas e respondidas pelos eco-


nomistas: “Quais são as causas que, particularmente no mundo moderno,
afetam o consumo e a produção, a distribuição e a troca de riquezas; a organi-
zação da indústria e do comércio; o mercado monetário; a venda por atacado
e a varejo; o comércio exterior e as relações entre empregadores e emprega-
dos? Como agem e reagem esses fenômenos uns sobre os outros? Como
diferem seus resultados mediatos dos imediatos?
Dentro de quais limites o preço de uma coisa é uma medida de sua deseja-
bilidade? Que acréscimo de bem-estar deve, à primeira vista, resultar de dado
aumento de riqueza em uma classe da sociedade? Em que medida a eficiência
de uma classe é enfraquecida pela insuficiência de suas rendas? Como se
sustentaria o aumento da renda de qualquer classe social por efeito de um
incremento proporcional de sua eficiência e de seu poder aquisitivo?
Até onde, de fato, alcança a influência da liberdade econômica em tal épo-
ca, em tal lugar, em tal classe social ou em tal ramo de produção? Que outras
influências são aí mais poderosas e como se combinam todas essas influên-
cias? Em particular, até que ponto a liberdade econômica tende, por si mesma,
a fazer nascer consórcios e monopólios, e quais são seus efeitos? Como as
diversas classes da sociedade podem, a longo prazo, ser afetadas pela ação da
liberdade econômica; quais os seus efeitos intermediários enquanto não se
produzem seus efeitos remotos e, levando em conta a duração de uns e outros,
qual a importância relativa dessas duas categorias de efeitos imediatos e
finais? Qual será a incidência de qualquer sistema de impostos? Que ônus
imporá ele à comunidade e que rendas dará ao Estado?” (A. Marshall, Princí-
pios de economia)

Por fim, na conclusão do livro primeiro, Marshall apresenta o


que seriam as três grandes faculdades intelectuais do economista:
percepção, imaginação e razão. O estudo econômico demanda do
pesquisador qualidades puramente intelectuais, bem como espírito
de crítica e de empatia, mas também requer imaginação (a fim de
que o economista possa seguir as pistas das causas ocultas e de seus
efeitos), precaução e reserva. Esta última para que a defesa dos
ideais não ultrapasse sua compreensão do futuro.

363
Marshall reconhece que nem sempre no passado os economis-
tas souberam ser isentos e objetivos em sua análise, e tornaram-se
impopulares. No entanto, para ele, tal situação está mudando:
“Os economistas, em consequência, aprenderam agora a
considerar com vistas mais amplas e esperançosas as possibili-
dades do progresso humano. Aprenderam a confiar em que a
vontade humana, guiada pela reflexão cuidadosa, pode modifi-
car as circunstâncias a ponto de alterar o caráter e, assim,
realizar novas condições de vida ainda mais favoráveis ao
caráter e, por conseguinte, ao bem-estar tanto moral quanto
econômico das massas populares. Agora, como sempre, é
dever deles se oporem a todos os açodamentos em relação a
esse grande objetivo, que enfraquecem os impulsos da energia
e da iniciativa.” (ibidem)
O livro segundo prossegue a apresentação de conceitos e
discute as noções de riqueza, consumo, produção, trabalho, renda
e capital. O livro terceiro dos “Princípios” contém a essência da
teoria da demanda e do valor, discorrendo sobre noções como
elasticidade da demanda e utilidade. Dele, veremos em mais
detalhe o capítulo 6 intitulado “Valor e Utilidade”. Marshall afirma,
no início do capítulo, que a economia tem pouco a dizer em que
medida o preço de uma coisa representa a vantagem proveniente
de possuí-la. Em todo caso, essa é uma questão central que deve ser
respondida por ela. Se o preço que se paga por um bem nunca
excede e raramente atinge o que se estaria disposto a pagar por ele,
a satisfação que se obtém na compra é maior do que a satisfação do
dinheiro que se priva ao pagar o preço dele. De modo que se pode
inferir logicamente que há um preço, além do valor pago no merca-
do para adquirir o bem, que o comprador consentiria em pagar
para não se privar dele. A diferença entre o preço que o comprador
pagaria para não se privar do bem e o que de fato pagou é definida
como o excedente do consumidor. Tal excedente varia de artigo
para artigo. Corresponde ao benefício que o consumidor tira de
suas oportunidades e do meio ambiente. Marshall ilustra essa
noção com o exemplo do consumidor na compra de chá. O gráfico
adiante aparece em nota de rodapé do capítulo e sintetiza a teoria
do excedente do consumidor de Marshall (Figura 9.3).

364
Figura 9.3 Gráfico de Marshall mostrando o excedente do
consumidor.

Na Figura, DD’ representa a procura do chá num grande merca-


do. Seja OH a quantidade vendida nesse mercado ao preço HA.
Escolhendo-se um ponto M no segmento OH e desenhando a per-
pendicular MB, essa reta se divide em dois segmentos. O primeiro
segmento MR representa o preço unitário pago pela quantidade M
e RB o que o consumidor estaria disposto a pagar a mais,
totalizando assim o preço fornecido pela curva de demanda. Então,
a área PP’BR representa um excedente de satisfação que ultrapassa
o valor total pago por M unidades. De modo geral, a área PDA é o
excedente total do consumidor no consumo de H unidades. OPAH
é o montante total pago por elas e a diferença entre a área sob a
curva de demanda, compreendida entre o eixo da ordenada e o
segmento AH, e o retângulo OPAH do montante pago é o excedente
total do consumidor. Trata-se da mesma ideia de Dupuit vista no
capítulo anterior, lembrando que Dupuit trabalha com o eixo dos
preços na horizontal.
Os conceitos que compõem boa parte da teoria da produção
dos modernos manuais introdutórios de microeconomia aparecem
no livro quarto de Marshall. Queremos, no entanto, concluir o
capítulo indo diretamente ao livro quinto (intitulado Os agentes da
produção: terra, trabalho, capital e organização), o cerne da obra,
que apresenta a teoria marshalliana de oferta e demanda; também
mostra como os preços são formados no mercado e o fundamento
de sua teoria do valor.
No capítulo 2 do livro quinto, Marshall apresenta o modelo de
equilíbrio temporário de oferta e demanda. Diz ele que nossas
365
ações econômicas são comandadas pelo equilíbrio entre o desejo
pelo bem de consumo e o esforço para obtê-lo. No caso em que o
bem é alcançado pelo trabalho direto, ilustra com o exemplo de um
menino colhendo amoras. O equilíbrio ocorre quando o desejo de
brincar e a aversão ao trabalho de colher contrabalançam o desejo
de comer (Boxe 9.6).

Boxe 9.6 O famoso exemplo de Marshall do menino colhendo


amoras.

“O caso mais simples de balanço ou equilíbrio entre desejo e esforço é


encontrado quando uma pessoa satisfaz um desses desejos por meio de seu
próprio trabalho direto. Quando um menino colhe amoras para comer, a ação
de colher provavelmente é prazerosa por um tempo; e por mais algum tempo
o prazer de comer é mais que suficiente para compensar o trabalho de colher.
Mas depois de ter comido bastante, o desejo por mais amora diminui; ao passo
que a tarefa de colher começa a causar cansaço, o que pode ser mais um senti-
mento de monotonia do que de fadiga. O equilíbrio é alcançado quando, por
fim, sua ânsia de brincar e sua aversão ao trabalho de colher contrabalançam
o desejo de comer. A satisfação que ele pode obter ao colher frutas chegou ao
seu máximo: até então, cada nova colheita acrescentou mais a seu prazer do
que o afastou dele.” (A. Marshall, Princípios de economia)

Posto isto, Marshall apresenta o modelo de determinação do


valor de equilíbrio com a ressalva de que ele só vale em mercados
“mais civilizados”. Exclui também o caso de objetos raros e singula-
res em que o valor é afetado pela influência moderadora de com-
pradores profissionais. Exemplo do tipo de mercado que está consi-
derando na determinação do equilíbrio é o mercado de cereais ou
trigo de mesma qualidade:
“A quantidade que cada agricultor ou outro vendedor
oferecem à venda a qualquer preço é determinada pela sua
própria necessidade de dinheiro em mão, e pelo cálculo das
condições presentes e futuras do mercado ao qual está ligado.”
(A. Marshall, Princípios de economia)
Nesse mercado, o processo do regateio faz com que o preço
nunca fique distante de certo valor, por exemplo, 36 xelins. Este é o
verdadeiro preço de equilíbrio e quando dele o mercado se afasta
os agentes esperam os preços se ajustarem. Nesse modelo, não é
necessário conhecimento perfeito por parte dos agentes, mas há a
hipótese tácita de que:

366
“A soma que os compradores estavam dispostos a pagar, e
que os vendedores se dispunham a receber pelo sétimo quar-
ter de trigo não seria afetada pelo fato de as primeiras transa-
ções terem sido feitas a uma taxa elevada ou baixa.” (ibidem)
Marshall enuncia a seguir a lei da utilidade marginal decres-
cente. O aumento na quantidade consumida de trigo reduz sua
necessidade. Outra hipótese do capítulo é a de que quando se com-
pra para consumo próprio despende-se uma pequena parcela dos
recursos totais. Nesse caso, não existe uma mudança apreciável na
disposição de vender moeda, tornando a utilidade marginal da
moeda constante. Finalmente há a ideia de que o modelo de
equilíbrio não se aplica integralmente ao mercado de trabalho, no
qual o trabalhador aceitaria um salário abaixo do equilíbrio para
não morrer de fome.
O capítulo 3 parte das hipóteses anteriores na determinação
do “equilíbrio de demanda e oferta normais”. Começa então inves-
tigando as causas que regulam os “preços de oferta”, isto é, os
preços que os negociantes estão dispostos a aceitar por diferentes
quantidades. Parte da hipótese de que os negócios são de apenas
um dia e os estoques oferecidos à venda já existiam no início do
período. É claro que esse estoque depende da quantidade de trigo
plantada no ano anterior, o que, por sua vez, é influenciado pelas
conjecturas dos agricultores. No dia do pregão, o preço de equilí-
brio é afetado pelo cálculo das futuras relações entre produção e
consumo. Isso porque também se considera o caso dos negócios a
termo que dependem da perspectiva de consumo mundial, dos
estoques existentes e das safras esperadas.
Assim, as expectativas incorporam a área semeada, o avanço
das colheitas, a oferta de bens substitutos, a perspectiva de os
agricultores perderem dinheiro, a queda da área semeada e os
aumentos no preço do trigo. As previsões de uma eventual alta
exercem influência nas vendas atuais para entrega futura, o que
também afeta o preço à vista. O volume de produção ajusta-se às
condições do mercado. O preço normal que se determina dessa
forma em uma posição de equilíbrio está no encontro da oferta com
a demanda.
O preço de oferta vale para dada unidade de tempo. É o preço
que é preciso pagar para conseguir o esforço necessário, a fim de
produzir dada quantidade de uma mercadoria. A produção de certa
mercadoria exige o emprego de muitas espécies diferentes de
trabalho e o uso de capital sob muitas formas. Há então o custo real
de produção da mercadoria que depende dos esforços dos fatores
367
e da abstinência do proprietário do capital. Há também o custo
monetário de produção dela que são as quantias a serem pagas por
tais esforços e sacrifícios. São as despesas de produção, e são elas
que determinam o preço de oferta.
O preço de oferta é aquele ao qual será entregue certa merca-
doria para a venda ao grupo de pessoas cuja procura dela estamos
a considerar. É o preço no mercado que temos em vista. Pode incluir
fretes e outras despesas mercantis. Cada fator tem seu próprio
preço de oferta. No fator trabalho, cada espécie de trabalho tem seu
preço de oferta, dependendo das despesas passadas com educação
etc. Variações na quantidade produzida dependem de mudanças
nas quantidades proporcionais dos diversos fatores de produção.
Marshall enuncia o “princípio de substituição” em que a escolha de
combinações mais apropriadas dos fatores ocorre no ponto em que
a somatória dos preços de oferta dos fatores individuais é menor
do que a de qualquer outra combinação.
Enuncia-se agora o equilíbrio de oferta e demanda na hipótese
de que cada um age por si, e seu conhecimento do que os outros
estão fazendo supõe-se ser geralmente suficiente para evitar que
ele aceite um preço menor ou pague um preço maior do que os dos
outros. Assume-se a veracidade da proposição anterior para todo
tipo de artigo elaborado, bem como na determinação de preços de
fatores produtivos, preços envolvidos na contratação de mão de
obra e o preço de empréstimo de capital, isto é, juros. Há em cada
mercado e para todos eles um único preço em determinado instan-
te do tempo.
Antes da análise do equilíbrio, Marshall define o “preço de
procura” como o preço ao qual determinada quantidade de merca-
doria pode encontrar compradores em certo período. A curva de
demanda, relacionando preços de demanda e quantidades deman-
dadas, supõe ser negativamente inclinada: os preços de procura são
menores para cada incremento na quantidade demandada. Mar-
shall trabalha com a hipótese ceteris paribus :
“Deve-se supor que as circunstâncias gerais do mercado
permanecem inalteradas durante esse período, que não há, por
exemplo, alteração na moda ou no gosto, novo substituto que
possa influir na procura, novo invento que perturbe a oferta.”
(A. Marshall, Princípios de economia)
Definido o preço de demanda, o próximo passo de Marshall na
análise do equilíbrio de mercado consiste em determinar as condi-
ções de oferta de acordo com a duração do período. O tamanho do
período é importante já que parte do capital é fixa no curto prazo e
368
tem crescimento lento com o tempo, só sendo flexível em longo
prazo. O estudo das condições da oferta requer também que se
trabalhe com a noção de “firma representativa”: uma empresa
típica cujas economias de produção internas e externas dependem
do volume total de produção da mercadoria que ela fabrica.
O preço normal de oferta é igual à soma das despesas normais
de produção, em que se inclui também o ganho bruto da direção do
negócio. A Figura 9.4 mostra, no eixo x, as quantidades de uma
mercadoria. Os preços de oferta estão registrados ao longo de y. As
curvas de oferta de cada fator de produção aparecem próximas ao
eixo x. Elas são positivamente inclinadas porque as quantidades
ofertadas respondem diretamente ao incremento dos preços de
oferta dos fatores. A curva de oferta do bem final é a soma vertical
dos preços dos fatores. Dadas as quantidades OM do bem, p é o
preço de oferta do bem e pa o preço de oferta necessário para dispo-
nibilizar o insumo a na quantidade adequada, dadas as combina-
ções ótimas dos fatores. A curva de oferta é, em geral, positiva-
mente inclinada, mas para Marshall ela pode ser, em alguns trechos,
negativamente inclinada.

Figura 9.4 Gráfico com a curva de oferta do bem final e oferta dos
fatores (à direita, desenho original de Marshall em seu
livro).

Na condição de equilíbrio, o preço de procura iguala-se ao


preço de oferta. Nessa condição, há a quantidade associada de
equilíbrio. Se o preço de procura for maior que o de oferta, a quanti-
dade transacionada crescerá, caso contrário ela é decrescente com
o tempo. A Figura 9.5 representa o equilíbrio estável quando as
curvas de oferta SS e demanda DD apresentam inclinações caracte-
rísticas: sempre que a quantidade estiver abaixo do equilíbrio, o
preço de procura será maior que o de oferta e vice-versa.
369
Na Figura 9.5, se o preço de demanda é maior do que o de
oferta, isso significa que a produção é excepcionalmente lucrativa,
atraindo novos ofertantes que deslocam a quantidade ao longo de
x para a direita. Se o preço de oferta é maior que o de demanda, o
excesso de oferta medido pela distância vertical entre as curvas
desloca as quantidades para a esquerda à medida que os ofertantes
que não conseguiram colocar as mercadorias se retiram do merca-
do. Assim, temos um processo de ajuste em direção ao equilíbrio
por variações na quantidade ofertada.35

Figura 9.5 Gráfico com o equilíbrio estável entre oferta e


demanda (à direita, desenho original de Marshall em
seu livro).

O formato da curva de demanda, com sua peculiar inclinação


negativa, é assegurado pela maximização da utilidade individual.
Há exceções, como os chamados “bens de Giffen”, não contempla-
das na análise de Marshall, porém, tais exceções foram bem expres-
sas na chamada equação de Slutsky. De fato, Marshall tinha uma
compreensão clara dos chamados “efeito renda” e “efeito substi-
tuição”, mas não formulou analiticamente a questão e não chegou a
contemplar o caso de bens inferiores a la Giffen, cujo efeito renda
predomina sobre o efeito substituição, criando assim uma exceção
à lei da demanda, com curva de demanda positivamente inclinada
em certo trecho.
Mais ricas foram as discussões de Marshall sobre o formato das
curvas de oferta. Vimos que as curvas de ofertas dos bens depen-
dem das respectivas curvas de oferta dos fatores individuais. No
curto prazo, com alguns dos fatores fixos, atua a lei dos rendi-

35
Veremos no Capítulo 10 que o modelo de convergência ao equilíbrio de
Léon Walras trabalha com ajuste via preços.
370
mentos decrescentes na maioria dos casos. Isso torna as funções de
ofertas da maioria dos fatores positivamente inclinadas e, por
composição, a própria curva de oferta do bem final é também de
inclinação ascendente. No caso de um fator que obedeça a uma lei
de rendimentos crescentes no trecho em questão, sua curva de
oferta seria negativamente inclinada. Se predomina esse tipo de
inclinação, a própria curva do bem em questão pode ficar negati-
vamente inclinada. Se nesse trecho ocorre o cruzamento com a
demanda, o equilíbrio que se estabelece é do tipo instável.
No longo prazo, a análise é diferente. Todos os insumos são
variáveis e o ponto relevante de equilíbrio que define as curvas de
oferta está na curva de custo médio de longo prazo. O equilíbrio
ocorre no ponto mínimo dessa curva, que coincide também com a
curva de custo marginal. O preço de oferta é estabelecido nessa
curva e não depende da quantidade ofertada, pois, se essa
quantidade viesse a aumentar, na curva de custo médio de longo
prazo com formato de “u” aumentariam os preços de equilíbrio que
atrairiam novas firmas ao mercado, resultando em nova curva de
custo médio mais à direita, de modo que, deslocando-se as curvas,
o novo ponto mínimo dela estaria exatamente na vertical da nova
quantidade e na mesma linha horizontal da situação anterior,
restabelecendo o preço de oferta anterior. Uma explicação mais
detalhada pode ser encontrada em qualquer livro-texto introdu-
tório de microeconomia e não se pretende aqui alongar nesse
ponto.
Com tais considerações teóricas, Marshall pode criar uma
tipologia de curvas de oferta. No curtíssimo prazo, que ele
denomina de “período de mercado”, o estoque da mercadoria é
rigorosamente fixo; como no mercado de peixe não refrigerado e
não salgado que deve ser vendido até o final do dia a qualquer
preço. Ou seja, nesse caso a curva de oferta é vertical e o preço só
depende da demanda como na Figura 9.6.
No longo prazo, a curva de oferta é horizontal pelas alegações
feitas anteriormente e sua posição corresponde ao custo de produ-
ção associado (Figura 9.7). Então, no longo prazo a demanda é
irrelevante na determinação do preço e ele é em última análise
determinado inteiramente ao sabor da oferta, ou seja, só depende
dos custos de produção. Em uma gradação contínua, quanto maior
o prazo, maior a importância do custo de produção, e quanto menor
esse prazo maior o papel representado pela demanda.

371
Figura 9.6 Equilíbrio no curto prazo: o preço só depende das
curvas de demanda.

Marshall cunha a famosa analogia com a tesoura para explicar


como o valor depende do tempo considerado. Em última análise,
diz ele, querer saber quem de fato determina os preços, se é a
oferta, como nos clássicos, ou a demanda, como em Jevons, é uma
busca inútil, pois ambos os fatores concorrem na determinação dos
preços, assim como não se pode dizer qual das duas lâminas de uma
tesoura realmente corta o papel. No curto prazo, o fundamento do
valor está na demanda, como em Jevons, e no longo prazo nos
custos de produção, como nos clássicos.

Figura 9.7 Equilíbrio no longo prazo: o preço só depende das


curvas de oferta.

372
Uma das maiores contribuições teóricas de Marshall foi a
introdução do fator tempo na análise do valor e, de resto, em todo
o seu raciocínio econômico, com a separação entre curvas de curto
e de longo prazo aplicada a diversos campos da análise econômica.
O tempo também tem o efeito de alterar os dados do problema, as
posições das curvas e os pressupostos da análise ceteris paribus.
Diz Marshall:
“Em verdade as tabelas de procura e da oferta, na prática,
não permanecem inalteradas longo tempo, mas são constan-
temente alteradas e cada variação nelas altera a quantidade de
equilíbrio e o preço de equilíbrio, e assim desloca os centros
em torno dos quais a quantidade e o preço tendem a oscilar.”
(A. Marshall, Princípios de economia)
As importantes contribuições de Marshall não se encontram
apenas nos Princípios de economia. Em economia monetária, por
exemplo, na qual ele foi um dos que mais contribuíram para a
compreensão do papel da moeda, destacam-se os escritos reunidos
nos Artigos oficiais, e em Dinheiro, crédito e comércio. Aí está a
essência de sua teoria monetária. Marshall examina em detalhes a
equação de Cambridge, versão da teoria quantitativa da moeda, e
explica o ciclo de crédito por meio de um desequilíbrio entre taxas
de juros reais e monetárias. Na hipótese de uma função de procura
estável de moeda, só dependendo da renda ou da riqueza média, os
preços guardariam correspondência direta com mudanças no
volume de moeda. No entanto, ele reconhece que variações em
outros fatores como nível de atividade econômica e deslocamentos
na demanda de moeda podem dominar a relação em períodos de
crise. Marshall explica a corrente causal pelo qual, nos modernos
sistemas de crédito, uma oferta adicional de moeda influencia os
preços. Também analisa a parte desempenhada pela taxa de des-
conto. Em suma, Marshall foi grande expoente na evolução da
teoria monetária. Seu sucessor em Cambridge, Pigou, tratou de
formalizar a abordagem monetária de Marshall e Keynes a reelabo-
rou em seu Um tratado sobre reforma monetária. De fato, Keynes
foi um admirador da teoria monetária de Marshall.
Outras contribuições de Marshall em seus escritos de teoria
monetária foram a proposta da teoria da paridade do poder de
compra na análise do comércio internacional, como determinante
da taxa de câmbio entre países com moedas inconversíveis entre si,
e a proposta de papel-moeda lastreado em ouro e prata. Em teoria
para lidar com inflação, destaca-se sua contribuição na elaboração

373
dos números-índices e na proposta de um indexador para contratos
de longo prazo.
Em outros campos da economia, Marshall também deixou sua
marca. Ele é pioneiro na teoria do capital humano e apresenta uma
teoria do salário bastante peculiar. Reconhecendo que diversas
contribuições de Marshall não serão reportadas neste espaço,
vejamos, para concluir o capítulo, algo de sua teoria de salários.
Marshall não aderiu integralmente à teoria dos salários como
sendo determinados pela produtividade marginal do trabalho. Essa
teoria, para ele, não explica tudo, não era útil para entender a
questão da pobreza. Em troca, ele propõe a teoria do exército dos
desempregados como uma das causas principais dos baixos salá-
rios. No entanto, os salários poderiam crescer se o crescimento da
economia e a taxa de mudança tecnológica e organizacional trou-
xesse, de fato, benefícios aos trabalhadores. Ou seja, os trabalha-
dores não estão mais condenados à miséria como um fato natural.
Contudo, a teoria da produtividade, quando abordada de maneira
estática, é falha na explicação dos salários porque o preço do
trabalho depende do preço do produto (para o cálculo do valor da
produtividade marginal), caindo-se então numa circularidade não
muito esclarecedora: no longo prazo, o próprio salário é determi-
nante do preço do produto. Na avaliação do professor de
Cambridge, é melhor entender os salários a partir do papel da
concorrência e do exército de desempregados. Nem o instrumental
de oferta e demanda é totalmente eficaz na explicação dos salários:
no mercado de bens, oferta e demanda têm a mesma força; já no
mercado de trabalho, o poder tende a estar com o patrão. Assim, a
solução para os salários fica muitas vezes fora do campo econômico
com a ação de sindicatos e a intervenção do governo. Para atenuar
os conflitos trabalhistas, Marshall defende salários mínimos.
Em suma, Marshall procurou desenvolver a economia para
ajudar o homem a libertar-se dos sofrimentos da pobreza e “das
influências entorpecentes do labor excessivamente mecânico, de
modo que possa levar uma vida civilizada”.
Como poucos na história do pensamento econômico, ele pôde
aliar excelente formação matemática a uma sólida bagagem filosó-
fica e humanística, deixando para gerações mais novas de econo-
mistas a mensagem: “Não será provavelmente um bom economista
quem não é nada mais do que isso.”

374
Questões

1. Para Jevons, a magnitude total da sensação de prazer ou dor


depende de algumas variáveis. Quais são? Explique cada uma
delas e o modo como afetam essa sensação.
2. Comente a relação de Jevons com o hedonismo de J. Bentham.
3. É correto afirmar que, para Jevons, a utilidade representa uma
qualidade intrínseca dos bens? Por quê?
4. Represente graficamente, à maneira de Jevons, a utilidade total
e o grau final de utilidade.
5. Na teoria de Jevons, como é feita a distribuição ótima de um bem
passível de usos diferentes? Demonstre o resultado.
6. Na teoria da troca simples, Jevons conclui que “a proporção da
troca de quaisquer bens será a proporção inversa dos graus de
utilidade dos bens que estão disponíveis para consumo depois
da realização das trocas”. Como Jevons demonstra esse resulta-
do?
7. Observe a figura abaixo, idêntica à que Jevons apresenta em seu
livro:

Usando a terminologia de Jevons, explique o que está represen-


tado em cada eixo x e y, o significado de cada “canaleta” vertical,
por que as duas primeiras têm a base superior aberta e a lei de
consumo subjacente ao gráfico.
8. Como Marshall conceitua a economia e qual o conceito de rique-
za desenvolvido por ele?
9. Como Marshall justifica o emprego da hipótese metodológica do
ceteris paribus na análise econômica?

375
10. Identifique as principais filiações intelectuais de Marshall em
filosofia e teoria econômica.
11. Marshall acredita que no estudo de questões econômicas deve-
se separar metodologicamente análise de exposição de ideias.
Em que aspecto a matemática teria um maior papel? O que
para ele é mais importante em teoria: a abstração ou a solução
de problemas econômicos concretos?
12. Descreva o ambiente inglês em que Marshall se formou e seus
ideais sociais e humanos.
13. Liste as principais contribuições de Marshall em análise econô-
mica.
14. De que forma Marshall acreditou ter reconciliado a teoria do
valor clássica com o marginalismo? Comente a analogia da
tesoura utilizada por ele.
15. Marshall aderiu totalmente à teoria do salário determinado
pelo valor da produtividade marginal? Se não, comente mais
sobre a interpretação marshalliana da questão dos salários.
16. Por que Marshall não aceita a hipótese do homo economicus ?
17. Explique o significado da expressão “natura non facit saltum”
no contexto das ideias de Marshall.
18. Por que para Marshall a economia é uma ciência mais quantita-
tiva do que as demais ciências sociais? De que modo o teórico
poderia medir a força dos motivos que comandam as ações dos
agentes econômicos?
19. Se os indivíduos são diferentes entre si, como fica a resposta
da questão anterior?
20. Explique o conceito de normal em Marshall.
21. Explique o conceito de preço de demanda em Marshall.
22. No argumento de Marshall, como a teoria econômica pode fo-
calizar o problema de maximização individual de utilidade e ao
mesmo tempo não ser adepta do hedonismo moral?
23. O que é o preço normal de oferta na definição de Marshall?
24. Explique como se dá o processo de equilibração entre oferta e
demanda no modelo de Marshall.
25. Marshall tenta reconciliar a teoria do valor clássica com a teo-
ria do valor apregoada pelos subjetivistas. Demonstre gráfica-
mente como o valor é determinado na teoria dele. Para tanto
pede-se que sejam observados alguns pontos: desenhar dois
376
gráficos, um para o curto prazo e outro para o longo prazo. Em
cada qual desenhar curvas de preço de oferta e preço de
demanda, explicando o significado de cada curva e o porquê de
seus formatos e inclinações. Mostrar por que a oferta ou a de-
manda não podem determinar, simultaneamente em ambas as
situações de curto e longo prazo, por si mesmas o valor do
preço de equilíbrio.

377
Leitura Adicional

Leitura Primária

JEVONS, William S. A teoria da economia política. São Paulo: Nova


Cultural, 1996.

MARSHALL, Alfred. Princípios de economia política. São Paulo: Nova


Cultural, 1988.

Leitura Secundária

BLACK, R. D. C. W. S. Jevons and the marginal utility theory. History


of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

COATS, A. W. Economics and psychology: the death and resurrection


of a research programme. In: LATSIS, S. J. Method and appraisal
in economics. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.

CORRY, B. Marshall, Alfred. In: International Encyclopedia of the


Social Sciences. D. L. Sills (Ed.). New York: Macmillan/Free
Press, v. 10, 1968.

HENNINGS, K.; SAMUELS, W. J. (Ed.). Neoclassical economic theory,


1870 to 1930. Boston: Kluwer Academic, 1990.

HOWEY, R. S. The rise of the marginal utility school. Lawrence: Uni-


versity of Kansas Press, 1960.

HUTCHISON, T. W. A review of economic doctrines 1870-1929. West-


port: Greenwood Press, 1975.

IBISATE, Fernando M. El enfoque microeconómico: marginalismo y


neoclásicos. In: DE LA IGLESIA, Jesús (Coord.). Ensayos sobre
pensamiento económico. Madrid: McGraw-Hill, 1994.

KEYNES, John M. Alfred Marshall. In: Essays in Biography. New York:


Meridian Books, 1956.

O’BRIEN, D. P. A. Marshall. In: Pioneers of modern economics in


Britain. O’BRIEN, D. P.; PRESLEY, J. R. (Ed.). Londres: Macmillan,
1981.

SCREPANTI, Ernesto; ZAMAGNI, Stefano. An outline of the history of


economic thought. Oxford: Clarendon, 1995.
378
SPENGLER, Joseph J.; ALLEN, William R. Essays in economic thought:
Aristotle to Marshall. Chicago: Rand McNally, 1960.

SPIEGEL, H. W. The growth of economic thought. New Jersey, Engle-


wood Cliffs: Prentice Hall, 1971.

TAYLOR, Overton H. História do pensamento econômico: ideias so-


ciais e teorias econômicas de Quesnay a Keynes. [s.l.]: Fundo de
Cultura, 1965.

VERGARA, Francisco. Introdução aos fundamentos filosóficos do


liberalismo. São Paulo: Nobel, 1992.

VINER, Jacob. The long view and the short: studies in economic
theory and policy. Illinois: Free Press Glencoe, 1958.

WAGNER, Adolf. On Marshall’s principles of economics. Quarterly


Journal of Economics, v. 5., p. 319-338, 1891.

379
380
10
Léon Walras e a
Tradição do Equilíbrio
Geral

ORIGEM DAS IDEIAS DE WALRAS


Marie-Ésprit-Léon Walras (1834-1910) é um nome de impor-
tância fundamental no desenvolvimento da microeconomia. As
opiniões a respeito dele são sempre exaltadas. Schumpeter consi-
dera-o o maior dentre os economistas em matéria de teoria. O papel
proeminente que os historiadores atuais atribuem a Walras não
deixa de ser uma ironia, já que em sua época ele foi pouco com-
preendido e aceito. Originalmente publicado em francês em duas
partes, em 1874 e 1877, o seu principal trabalho em teoria econô-
mica, os Elementos de economia política pura, permaneceu desco-
nhecido na França por quase 25 anos após a publicação. Walras
teve pouco reconhecimento profissional nesse país. Só em meados
do século XX os franceses mudaram de atitude radicalmente. Em
vida, Walras não obteve emprego acadêmico em seu país. Antes de
firmar-se como economista, ele tentou diversos trabalhos. De
início, estudou engenharia de minas. Contudo, não gostou da escola.
Depois, como escritor, publicou em 1858 a novela Francis Sauveur,
um romance panfletário sob influência da revolução de 1848. O
livro não foi um sucesso. Em seguida, trabalhou como jornalista,
empregado do ministério das linhas de trem do nordeste; também
foi diretor de um banco popular para cooperativas de produtores e,
por fim, empregou-se num banco privado em Paris. Ainda tentou a
carreira acadêmica na escola politécnica, mas foi recusado. Só se
firmou como professor fora de seu país, em Lausanne, Suíça.
Também fora da França a recepção ao trabalho de Walras foi
fria e até mesmo hostil. Os “Elementos” só foram traduzidos para o
inglês em 1954, por William Jaffé. As relações entre Walras e
Jevons, Edgeworth, Wicksteed e Menger não eram muito cordiais.
381
Marshall, nos Princípios de economia, cita Walras apenas três ve-
zes. Walras foi mais bem acolhido entre os italianos Maffeo
Pantaleoni, Enrico Barone e Vilfredo Pareto.
O tratamento bastante matemático presente em sua obra
dificultou a compreensão. Os críticos consideravam o texto muito
abstrato e afastado da vida cotidiana. O historicismo na Alemanha
havia criado uma barreira contrária à aceitação de Walras. Na
Áustria, Menger considerava inadequado tratar matematicamente
problemas econômicos como propõe Walras. Na Inglaterra, a cena
acadêmica seria dominada, anos depois, por Alfred Marshall, que
remetia as demonstrações matemáticas a notas de rodapé dizendo:
“O lugar correto da matemática em um tratado de economia
é no pano de fundo.” (A. Marshall, Princípios da economia)
Mesmos os italianos, que melhor acolheram Walras, diziam
que os “Elementos” eram...
“Uma tentativa de resolver o problema de habitação cons-
truindo castelos no ar.” (Apud. W. Jaffé, Léon Walras’s role in
the marginal revolution)
Também diziam tratar-se de uma idealização equivocada do
laissez-faire.
A grande popularização da teoria do equilíbrio geral dos mer-
cados, a ideia-chave de Walras, só viria tempos depois com o traba-
lho do reputado economista sueco Gustav Cassel (1866-1945). De
fato, por muito tempo seria atribuído apenas a Cassel o mérito da
apresentação original da teoria, permanecendo Walras desconhe-
cido.
As principais influências exercidas na mente de Walras vieram
de autores franceses, notadamente Cournot e o pai Antoine-
Auguste Walras que estudou com Cournot na mesma turma, na
École Normale Supérieure. Diferentemente de Cournot, entretanto,
A. Walras não tinha formação matemática, tendo-se dedicado mais
à filosofia e às humanidades. Na primeira parte dos “Elementos”, de
1874, Léon Walras credita a origem de suas ideias aos autores
Antonio Genovesi, Nassau Senior, Étienne de Condillac e J. B. Say.
Na edição de 1877, a segunda parte da obra, chama atenção sobre
Dupuit.
Cournot ensinou a Walras o emprego da matemática na solu-
ção de problemas econômicos. A noção de equilíbrio, os conceitos
de oferta e demanda e a ideia de mercados relacionados interde-
pendentes também foram herança de Cournot. No entanto, este não

382
se mostrou muito entusiasmado com o livro de Walras, interpre-
tando-o como uma exaltação da liberdade de mercados e da concor-
rência desenfreada. Isso se deriva desta passagem encontrada
numa correspondência pessoal:
“Eu tenho um grande medo de que suas curvas de utilidade
conduzam somente a um laissez-faire puro, isto é, na economia
doméstica a uma terra desnuda de suas florestas, e na econo-
mia internacional à subjugação dos esforços comuns das
pessoas a uma direção privilegiada em linha com a teoria de
Darwin.” (Apud. W. Jaffé, op. cit.)
Walras formou sua visão básica do que deveria ser a boa
ciência econômica em seus vinte e tantos anos. Na juventude, já se
familiarizara com as ideias de Cournot. Também nessa época o
pensamento de seu pai, Auguste, marcara sua concepção da natu-
reza dos problemas econômicos.
Auguste Walras foi um administrador educacional que escre-
veu sobre economia, muito embora seu trabalho tenha tido pouca
penetração nos meios acadêmicos. Seguindo as trilhas deixadas
pelo pensamento de John Locke, colocou a propriedade privada
como princípio supremo e procurou justificá-la a partir da discus-
são do valor econômico. Ele achava que o economista poderia
lançar mais luz ao conceito de propriedade do que o jurista. O valor
é representado pela escassez dos bens em relação aos desejos
humanos, que Auguste denomina de rareté, termo depois emprega-
do pelo filho. Léon Walras adotou a palavra rareté do pai e usou-a
no sentido de utilidade marginal, mas Auguste não tinha a interpre-
tação de Léon em mente. Auguste buscou um critério para dizer se
dado bem forma ou não uma parte da riqueza do país. Para isso
desenvolveu o conceito de rareté, e não para investigar preços
relativos. Tal conceito era, para ele, a razão entre a quantidade do
bem disponível e o número de possíveis consumidores, cada um
usando uma unidade do bem. É o número médio de bens por
consumidor, índice que também indica a fração da população que
pode ter satisfeitos seus desejos por um bem específico. Por exem-
plo, 100 unidades de um bem são oferecidas a 100 consumidores o
índice de rareté é 1: 100% da população tem seu desejo satisfeito.
Se 50 bens são oferecidos aos mesmos consumidores, o índice de
rareté é 0,5, a indicar que apenas a metade da população tem seu
desejo por uma unidade do bem específico satisfeito. Vemos, por-
tanto, que o conceito de rareté em Auguste não diz respeito a
trabalho e nem a utilidade.

383
Léon Walras seguiu o pai sendo também um reformador social.
Suas ideias sociais tinham afinidades com as de J. S. Mill, H. George
e os fabianos.36 Ele clamava pela nacionalização das terras, na qual
o Estado deveria comprá-las de seus proprietários. As terras seriam
valorizadas com o progresso da sociedade e o Estado seria então
ressarcido de seus gastos em adquiri-las. A renda da terra substi-
tuiria os pagamentos de impostos. Walras defendeu a criação de
cooperativas de produtores. Ele era a favor de um moderado
reformismo socioeconômico, misturando liberalismo com inter-
venção do Estado. Considerava a si mesmo um “socialista científi-
co”. Dentre as medidas intervencionistas que defendia, consta
também a nacionalização dos monopólios naturais, a intervenção
das autoridades monetárias para estabilizar os preços e o controle
do mercado de capitais.
Ninguém antes de Léon Walras havia construído um modelo
teórico e um método analítico tão vasto e versátil. Não se conhece
outro autor, antes dele, que tenha dado uma explicação igualmente
completa sobre a noção de equilíbrio de mercado, mostrando como
as curvas de oferta e demanda explicam a determinação dos preços
de equilíbrio e como se dá a dinâmica dos preços em torno do ponto
de equilíbrio. Mesmo o modelo de troca simples de Walras é mais
satisfatório que o de Jevons. Entretanto, não somente aqui seu
trabalho é tido como superior ao do inglês. Walras desenvolveu um
sistema algébrico na explicação da estrutura do equilíbrio geral le-
vando em conta os entrelaçamentos entre todos os mercados de
uma economia.
A noção de interdependência dos mercados já havia sido
aventada antes de Walras. No século XVIII, o Quadro econômico de
François Quesnay contém o cerne da ideia de equilíbrio geral.
Cournot tinha clara consciência do problema e mesmo Jevons
chegou a discutir sua importância na compreensão da economia
real. Contudo, tais autores não foram além de suas intuições iniciais
e deixaram de sistematizar um sistema algébrico descritivo do pro-
cesso. Cournot, no entanto, sabia perfeitamente que sua análise

36 Como vimos no capítulo 7, um movimento socialista da Inglaterra. O


socialismo fabiano é um movimento de caráter democrático, socialista
reformista e não-marxista. Criado na Inglaterra no ano de 1883 por um
grupo de intelectuais, a Sociedade Fabiana é uma associação privada que
afirma contribuir para a reconstrução da sociedade de acordo com as mais
altas possibilidades morais. A associação assumiu o nome de Sociedade
Fabiana tendo como inspiração a estratégia militar do cônsul romano
Fábio Máximo, que consistia em vencer suas batalhas gradualmente, sem
um ataque direto.
384
algébrica e gráfica era parcial, tendo uma concepção clara da inter-
dependência geral de todos os mercados, contudo, ele pensava que
seria impossível explicar analiticamente tais relações globais, como
se vê nesta passagem:
“Na realidade, o sistema econômico é um conjunto no qual
todas as partes são interdependentes e influem umas sobre as
outras. O aumento da renda dos produtores da mercadoria A
influenciará a procura das mercadorias B, C etc., e sobre a
renda dos produtores destas mercadorias, o que novamente,
por ação recíproca, provocaria uma modificação na procura da
mercadoria A. Parece, portanto, que na solução completa e
rigorosa de problemas relativos a partes do sistema econômi-
co não se pode deixar de considerar o sistema em seu conjunto.
Mas isso ultrapassaria as forças da análise matemática e dos
nossos métodos práticos de cálculo, mesmo que todos os
valores das constantes pudessem ser numericamente assinala-
dos.” (Apud. E. Schneider, Teoria econômica)
Cournot, embora tenha avançado na exploração de posições
particulares de equilíbrio em mercados separados de outros
mercados, sabia que sua análise era incompleta em não considerar
a interdependência entre mercados e a compatibilidade entre
posições de equilíbrio particulares. Cournot, entretanto, não esten-
deu sua análise nessa direção porque tinha dúvidas quanto à possi-
bilidade de resolver-se o problema do equilíbrio geral. É que ele
pensava o equilíbrio geral como um problema aritmético, em que
se deveriam atribuir valores numéricos às variáveis.
Somente Walras desenvolveu a ideia de equilíbrio geral
expressa na forma de um sistema de equações simultâneas que
ligariam os vários mercados da economia. É verdade que as
relações entre diferentes mercados foram aventadas por teóricos
anteriores, mas apenas ele manipulou e construiu uma estrutura
teórica geral capaz de dar conta de uma multiplicidade de relações
ligando um mercado a outro. Para tanto, diferentemente das preo-
cupações de Cournot, não procurou medir nada. Procurou tão
somente a construção de um sistema logicamente consistente, de
validade teórica ou formal. Tal tarefa foi possível realizar sob
hipóteses restritivas: ela requer concorrência, liberdade de entra-
da, mobilidade de fatores e flexibilidade de preços.
Walras também se filia à corrente de autores que procurou
aproximar a economia científica das ciências físicas. A analogia com
a física não era inteiramente usual no início dos anos 1870. Ela
provavelmente foi sugerida por seu pai. Cournot tornou-se um
385
crítico do uso dessa analogia e do uso da matemática em economia.
Em 1909, mesmo Walras muda sua analogia; fala agora na econo-
mia como ciência psicológica e matemática.
Mesmo não muito treinado em matemática – nessa disciplina
tinha nível intermediário –, Walras adotou o método matemático
com fervor. No entanto, ele não confundia boa apresentação mate-
mática com boa teoria. Veja, por exemplo, a resposta que fornece
ao artigo do grande economista italiano Enrico Barone:
“Aqui está a formulação (matemática) da produtividade
marginal, mas o fundamento econômico é ruim.” (Apud. W.
Jaffé, op. cit.)
Walras, no início de seus “Elementos”, distingue a economia pura
da economia aplicada e da economia social. A primeira é uma ciência
físico-natural neutra, trata da teoria da riqueza social, o que para ele
concentra-se na teoria dos preços no mercado em concorrência
perfeita. Tal ciência procura demonstrar matematicamente as condi-
ções de equilíbrio na economia de mercado. A economia aplicada é um
conjunto de estudos de casos no qual são apontadas, em cada um
deles, as condições técnicas e econômicas mais favoráveis à produção
da riqueza social. Por último, a economia social envolve julgamentos
éticos sobre que grupos serão favorecidos pelas decisões políticas. Na
terminologia própria de Walras, fala-se em ciência natural pura, que
só depende de fatos naturais (o conteúdo mesmo de seus “Elemen-
tos” ), julgada pela sua verdade; depois em arte da economia, que
observa, expõe e explica (é a economia aplicada), e tem como critério
a sua utilidade. Fala-se ainda em ciência moral ou histórica, que
aconselha, prescreve e dirige (é a economia social), e é julgada por sua
justiça.
A teoria pura em Walras é análoga às ciências físicas, ela trata de
relacionar coisas; lida com fatos naturais, cujo teatro é a natureza, e
não com os fatos humanitários, que dizem respeito aos homens. A
estratégia walrasiana de demarcação do conhecimento econômico
procura isolar a economia da ciência social. Os fatos humanitários são
de dois tipos: os que
“[...] resultam da vontade e da atividade do homem exercen-
do-se em relação às forças naturais...” (L. Walras, Compêndio
dos elementos de economia política pura)
e são reportados pela ciência aplicada, e os que
“[...] resultam da vontade e da atividade do homem, exer-
cendo-se em relação à vontade e à atividade de outros ho-
mens.” (ibidem)
386
E dizem respeito à ciência social. Já o núcleo da teoria econômi-
ca trata de fatos naturais sobre a relação entre coisas.
Há então a separação metodológica, que faz Walras, entre
economia como teoria stricto sensu e seus ramos aplicado e social.
Enquanto ciência pura, cabe à economia analisar o fenômeno da
troca e a proporção em que os bens são trocados. Para ela, os bens
adquirem valor de troca no mercado como fato natural indepen-
dente da vontade de compradores e vendedores. A naturalidade do
valor de troca, diz Walras, está presente em sua origem, em sua
manifestação e em sua maneira de ser. As coisas adquirem valor
não pela vontade do homem, mas por serem úteis e raras, isto é,
limitadas em quantidade.
Dadas certas circunstâncias sobre o aprovisionamento e o
consumo dos bens, o valor de troca resulta naturalmente delas. Se
5 hectolitros de trigo são, no mercado, trocados por 600 gramas de
prata, esta relação tem caráter eminentemente matemático e pode
ser cientificamente expressa por meio da equação 5vb = 600.va ou
vb = 120.va, onde va é o valor de troca de 1 grama de prata e vb o va-
lor de troca de 1 hectolitro de trigo. Walras afirma que o uso do
método matemático permite abstrair dos tipos reais os tipos ideais
definidos por ele, e com base nessas definições construir a priori
todos os andaimes do conhecimento em teoremas e demonstra-
ções. O valor de troca é...
“A propriedade que têm certas coisas de não serem obtidas
nem cedidas gratuitamente, mas de serem compradas e
vendidas, recebidas e dadas em certas proporções de quanti-
dade, contra outras coisas.” (ibidem)
A relação numérica entre dois desses valores, estabelecida na
troca, traduz uma situação presente. Hoje e agora é isto, nem mais
nem menos. Para Walras, um valor natural não pode ser substituído
por outro ao bel-prazer. Só podemos modificá-lo agindo sobre seus
fundamentos, isto é, sobre suas causas naturais.

O EQUILÍBRIO NA TROCA SIMPLES


Na seção II dos Elementos, Walras estuda a troca de duas mer-
cadorias entre si. A investigação precede a análise do equilíbrio
geral. Nessa seção estão contidos os fundamentos de sua teoria de
oferta e demanda e o significado dos preços de equilíbrio. Essa é
uma parte importante do livro de Walras porque evidencia qual é
exatamente o papel que dá à noção de rareté. No capítulo inicial da
387
seção, o capítulo 5 da obra, Walras apresenta o mecanismo de
equilibração dos mercados. Ele define mercado genericamente
como “o lugar onde se trocam as mercadorias” e diz sobre o valor
de troca que ele “produz-se no mercado e é ao mercado que se deve
ir para estudá-lo”. No entanto, de que modo exatamente o valor de
troca é produzido no mercado? Responde o professor de Lausanne:
“O valor de troca abandonado a si mesmo produz-se natu-
ralmente no mercado, sob o império da concorrência. Como
compradores, os permutadores aumentam os lances, como
vendedores, oferecem em liquidação, e seu concurso produz
assim certo valor de troca das mercadorias, ora ascendente,
ora descendente, ora estacionário. Segundo essa concorrência
funcione de forma melhor ou pior, o valor de troca produz-se
de maneira mais ou menos rigorosa.” (L. Walras, Compêndio
dos elementos de economia política pura)
A ênfase no estudo das condições mais rigorosas em que o
valor é produzido no mercado leva Walras a tratar apenas do mer-
cado hipotético
“[...] perfeitamente organizado em relação à concorrência,
como em mecânica pura primeiro supõem-se máquinas sem
atrito.” (ibidem)
Walras toma emprestado de Cournot as funções e as curvas de
demanda, mas apenas neste autor tais funções são um dado empíri-
co, enquanto em Walras há a preocupação de também derivá-las da
função utilidade, embora, como veremos adiante, a noção de utili-
dade não seja essencial para ele. Walras define então, para o
mercado, oferta e demanda efetivas. Em seguida, investiga como os
excessos de oferta e de demanda provocam o movimento dos
preços na direção do equilíbrio, em que procura e oferta igualam-
se. Nesse capítulo, só há uma narrativa genérica do processo,
depois, nos capítulos posteriores dessa mesma seção, ele vai
desenvolver uma demonstração algébrica rigorosa.
Para tanto, analisa a troca de duas mercadorias A e B presentes
num mercado no qual convivem pessoas que possuem a merca-
doria A, e que estão dispostas a dar uma parte dela para obter a
mercadoria B, e pessoas que têm B e que estão dispostas a trocar
parte dela por A. Na teoria da troca de duas mercadorias, uma por
outra, Walras deriva curvas de oferta e demanda, discute seus
formatos e o significado do ponto de interseção. Faz também a
distinção entre equilíbrio estável e instável. Só depois introduz a
análise da utilidade. Neste tópico, busca revelar a natureza da troca.

388
Já a curva de utilidade é introduzida depois, em outra parte do livro,
para examinar a causa da troca.
Walras imagina que no início do dia há um lance inicial, em
conformidade com o fechamento do mercado no dia anterior, de
modo que um agente se dispõe a ceder n unidades de B contra m
unidades de A. Equaciona então m.va = n.vb ; logo em seguida intro-
duz preços, ou relações de trocas, como sendo “iguais às relações
inversas das quantidades de mercadorias trocadas: são os recípro-
cos uns de outros”. Em termos simbólicos, pa = va /vb = n/m e pb =
vb / va = m/ n; se chamarmos pb = , então pa = 1/ , isto é, pa. pb =
1.
O próximo passo foi definir oferta e demanda no modelo de
troca simples. Como até aqui não existe moeda, o agente oferta com
o intuito de receber em troca o bem que almeja adquirir. A oferta é
apenas um elemento que sanciona a demanda. Walras define duas
ofertas Oa e Ob e duas demandas Da e Db sob o suposto de que as
quantidades ofertadas resultam das quantidades demandadas no
fenômeno da troca in natura de duas mercadorias uma pela outra.
Afirma:
“A demanda deve ser considerada o fato principal e a oferta,
um fato acessório. Não se oferece por oferecer, oferece-se
apenas porque não se pode demandar sem oferecer, a oferta
não passa de uma consequência da demanda.” (L. Walras,
Compêndio dos elementos de economia política pura)
Ao preço pa , demanda-se uma quantidade Da e oferta-se a con-
trapartida Ob = pa. Da. O outro lado da troca almeja a mercadoria B
estabelecendo-se uma relação análoga Oa = pb. Db ou, já que pa. pb =
1, Db = pa. Oa.
A introdução dessas equações permite a Walras enunciar
algebricamente o processo de equilibração entre oferta e demanda.
Seja Da = . Oa , as equações anteriores garantem que nesse caso
também teremos Ob = . Db . Portanto, Ob / Db = Da / Oa =  e conclui
Walras que...
“Sendo dadas duas mercadorias, a relação entre a demanda
efetiva de uma e sua oferta efetiva é igual à relação entre a
oferta efetiva da outra e sua demanda efetiva.” (ibidem)
Conclusões importantes são extraídas desse modelo básico das
trocas:

389
1. Se  = 1, ambos os mercados estão em equilíbrio, no
sentido de que Da = Oa e Db = Ob. Se um mercado está em
equilíbrio, o outro necessariamente também estará.
2. Se  > 1, então Ob > Db e Da > Oa e se  < 1, Oa > Da e Db >
Ob. Sempre que ocorrer um excesso de oferta num dos
mercados existirá, ao mesmo tempo, excesso de demanda
no outro mercado e vice-versa.
Walras demonstra que na troca simples os excessos de deman-
da num mercado cancelam exatamente os excessos de oferta em
outro mercado, de modo que se igualam as ofertas e demandas
globais. A presença de algum excesso de demanda ou de oferta
indica que os sujeitos no mercado não estão maximizando suas
satisfações. O processo de mercado deve prosseguir pela ação dos
agentes, o excesso de oferta para eliminar algum excesso de
demanda, até que eles alcancem, por meio da troca, o equilíbrio,
isto é, o ponto de maximização.
Na seção II de seus “Elementos”, Walras desenvolve a teoria da
troca de duas mercadorias entre si. Na lição VI da seção, veremos
como ele determina as curvas de demanda e oferta efetivas e como
ele interpreta o significado da igualdade entre oferta e demanda.
Depois percorrem-se os outros capítulos da mesma seção até a
lição X.
Walras começa definindo a demanda efetiva como uma relação
entre os preços da mercadoria em questão e a quantidade dela que
o indivíduo pedirá a cada nível de preço. Considerando dois indiví-
duos na troca simples, um deles possui inicialmente apenas trigo e
quer trocar parte dele por aveia, a posse exclusiva e única do outro
indivíduo. Este último também está disposto a trocar parte de sua
mercadoria, almejando diversificar seu consumo adicionando-lhe
trigo. O indivíduo que inicialmente possui somente trigo guardará
dele uma parte e cederá a outra dependendo do preço da aveia em
relação ao trigo e de sua função de demanda de aveia. Se o preço da
aveia for nulo (pa = 0 ), o indivíduo poderá se dar ao luxo de pedir
toda aveia de que necessita sem ter de ceder nada de trigo. À medi-
da que o preço daquele cereal subir, a demanda efetiva do indivíduo
pelo mesmo sofrerá um declínio. Nessa trajetória, de início a
demanda de aveia atinge quase o ponto de saciedade do consumi-
dor, porém, como o seu preço começa baixo, ele poderá trocar
pouco trigo por grande montante de aveia. Sabemos que a oferta de
trigo se relaciona com a demanda de aveia pela equação Ob = Da. pa.
Temos movimentos contrários em cada um dos dois fatores no
390
segundo membro dessa igualdade. Enquanto o aumento de pa mais
do que compensar a queda na demanda Da a oferta de trigo crescerá
com o aumento do preço da aveia. Em certo ponto, a queda mais
pronunciada na demanda predominará sobre a elevação dos
preços, de modo a fazer, daí em diante, a oferta de trigo reduzir-se
até voltar a zero.
Assim, Walras obtém, na troca simples, curvas de oferta em
forma de sino (Figura 10.1). As curvas de oferta são obtidas com
base nas curvas de demanda do outro bem. Walras não busca um
fundamento da oferta a partir dos custos de produção, já que os
estoques iniciais são dados, e nem baseia suas curvas de demanda
na noção de rareté. Simplesmente diz que elas traduzem as dispo-
sições a trocar dos agentes e que isto é suscetível de determinação
rigorosa.
“Todo portador de uma mercadoria qualquer que se dirige
ao mercado leva para aí disposições a leiloar, virtuais ou
efetivas, suscetíveis de uma determinação rigorosa.” (L. Wal-
ras, Compêndio dos elementos de economia política pura)

Figura 10.1 Curvas de oferta em forma de sino.

As curvas de demanda são, nesta parte da obra de Walras,


meros resultados empíricos. Trata-se, claramente, de uma curva de
planejamento, isto é, o sujeito associa mentalmente valores deman-
dados a cada nível hipotético de preços. O professor de Lausanne
não esclarece como seriam feitos os levantamentos empíricos para
a curva, evitando problemas práticos. Ele não discute os elementos
subjacentes à curva de demanda negativamente inclinada.
Na linguagem algébrica de Walras, o portador da mercadoria
B tem inicialmente qb e, no fim das trocas, demandou da. Valores
iguais são trocados, de modo que da.va = ob.vb. De B, resta ao indiví-
391
duo y = qb – ob = qb – da.va / vb = qb – da. pa ; então, dado pa , temos a
correspondente demanda da e o estoque final y, em sequência. A
função de demanda associada ao indivíduo 1 é da = fa,1(pa ). Walras
considera que as curvas de demanda individuais podem não ser
contínuas. Sendo assim, determinar o equilíbrio de mercado, na
troca envolvendo apenas dois agentes, teria o inconveniente da
descontinuidade das curvas. Walras contorna-o optando por um
modelo agregativo da troca simples, no qual, para cada mercadoria,
há um grupo de portadores e não um único indivíduo. Em vez das
curvas de demanda individual, trabalha-se agora com demandas
totais de mercado, que seriam contínuas pela “lei dos grandes
números”. Walras faz uma soma vertical em que “todas as orde-
nadas são adicionadas numa mesma abscissa”. Os preços são por
ele representados na horizontal e o eixo da demanda é desenhado
na vertical, diferentemente do que é convencionado nos modernos
livros-textos. Quantidades totais são representadas por letras
maiúsculas, de modo que Da = fa,1(pa ) + fa,2(pa ) + fa,3(pa ) + ... =
Fa(pa ). Como as demandas individuais são avaliadas no mesmo
preço pa, podemos escrever as relações já conhecidas no caso
individual para o caso agregado Ob = Da. pa.
A curva de demanda total de A forneceria a oferta total de B, e
vice-versa. A um preço pa , a área do retângulo projetado sob a curva
de demanda de A seria igual à correspondente oferta da mercadoria
B fornecida em troca dela. Tal conclusão geométrica demonstra-se
facilmente pelo uso da relação Ob = Da. pa. Se Da = Fa(pa ) e Db =
Fb(pb ), como Oa = Db.. pb = Fb (pb ). pb e pa. pb = 1, temos que Oa =
Fb(1/pa ). 1/pa e analogamente Ob = Fa (1/pb ). 1/pb. Os respectivos
preços de equilíbrio estariam na interseção das curvas Da com Oa e
Db com Ob. A Figura 10. 2 retrata esse problema. A demanda Da é
indicada pela curva dada e a demanda Db por dbdb. A oferta Oa é a
curva KLM e a oferta Ob está representada em NPQ.
Os formatos particulares das curvas de oferta dependem dos
formatos das curvas de demanda da outra mercadoria, mas ambas
as curvas de oferta seguem o desenho de um sino. O mercado em A
equilibra-se no ponto A e na mercadoria B o equilíbrio ocorre no
ponto B. Sabemos que o preço que equilibra o mercado em A (Da =
Oa ) tem um correspondente preço pb que equilibra o outro mercado
em B (Ob = Db), tal que pa.pb = 1. Nos gráficos anteriores, uma das
curvas de oferta cruza a respectiva demanda no segmento cres-
cente e a outra no trecho decrescente da oferta, o que equivale a
392
dizer que uma das curvas atinge o máximo depois da intersecção e
a outra fá-lo antes.

Figura 10.2 Equilíbrio entre oferta e demanda em dois mercados


relacionados (a curva de demanda total de A fornece a
oferta total de B, e vice-versa - é só ver que Qb = Qa.pa).

Nota-se que o preço de equilíbrio na troca simples não foi


determinado usando-se a noção de rareté. Há outro aspecto em que a
análise de Walras difere e vai além da análise da troca simples feita
por Jevons. Na lição VII dos “Elementos”, o francês aceita a possibi-
lidade de equilíbrios múltiplos na troca, como vemos no gráfico abai-
xo, à esquerda (Figura 10.3).

Figura 10.3 Mercado com equilíbrio múltiplo e mercado sem


solução de equilíbrio.

393
Nem sempre as curvas de oferta e demanda encontram-se num
único ponto. Os dois gráficos representam uma situação em que há
vários pontos de intersecção e outra em que não existe solução para
o problema da troca simples. Jevons não se tinha apercebido desses
casos. Walras demonstrou que o equilíbrio que se estabelece na
troca simples dependerá do formato das curvas de oferta e deman-
da e do preço em que se começa a troca. Tal análise é feita na lição
VII dos Elementos, na qual Walras também discute, no caso de
equilíbrio múltiplo, a estabilidade de cada um dos três pontos de
equilíbrio A, A’ e A”, no gráfico anterior à esquerda. Mostra então
que A’ e A” representam equilíbrios estáveis e que somente em A as
forças equilibradoras são divergentes.
A notável discussão da troca simples é feita por Walras sem
utilizar o conceito de rareté. Apenas na lição VIII, após todo esse
arrazoado, é que introduz a discussão das “curvas de utilidade ou
necessidade”, chegando a seu “teorema da utilidade máxima das
mercadorias”. Diz, no começo da lição, que
“Quando um homem troca um objeto por outro é porque o
objeto que compra lhe é mais útil que o objeto que vende e que
o motivo determinante da troca decorre da consideração de
nossas necessidades.” (Léon Walras, Compêndio dos elemen-
tos de economia política pura)
Então a troca é movida pelo melhor atendimento das necessi-
dades. Para dar um “caráter rigoroso e científico” à análise da troca,
Walras desenvolve a noção de rareté, que permite expressar
matematicamente tais necessidades. Walras reconhece a dificulda-
de em se medir a intensidade da utilidade, embora seu nome esteja
historicamente associado ao enfoque cardinalista da utilidade. Isto
não o impede de lançar a hipótese de que
“Exista um padrão de medida da intensidade das necessi-
dades ou da utilidade intensiva comum não apenas às unida-
des similares de uma mesma espécie de riqueza, mas às unida-
des diferentes de diversas espécies de riqueza” (idem).
Aceitando a existência de uma medida comum da utilidade,
Walras intui que à medida que o portador da mercadoria consome
sucessivamente, em certo tempo, unidades adicionais dela, as utili-
dades derivadas do consumo são seguidamente de intensidades
cada vez menores. Ilustra graficamente essa ideia representando as
intensidades no eixo horizontal r das utilidades intensivas e as

394
quantidades consumidas no eixo vertical q da extensão das necessi-
dades ou das utilidades extensivas (Figura 10.4).

Figura 10.4 Curvas de Walras das utilidades intensivas.

As curvas anteriores representam as utilidades intensivas para


cada montante da mercadoria A, no gráfico à direita, e B, à esquer-
da. Suponhamos que inicialmente o indivíduo só possua o estoque
qb da mercadoria B. A área 0qbr representa a soma das “necessi-
dades satisfeitas em extensão e em intensidade por uma quantida-
de consumida da mercadoria”. É o que Walras denominou de
utilidade efetiva, nada mais do que a utilidade total derivada do
consumo de qb unidades. A curva q r permite determinar, pela
área interior, a utilidade total em função da quantidade consumida
de B, para cada indivíduo. Walras também a expressa algebrica-
mente: u = b(q). A “intensidade da última necessidade satisfeita
por uma quantidade consumida da mercadoria” é a rareté. Na lição
X dos “Elementos”, Walras diz que a rareté é, para dado indivíduo,
a derivada da utilidade em relação à quantidade possuída.
A curva qr é a própria curva de rareté, e o eixo da abscissa
pode ser associado ao eixo da rareté. Em termos algébricos, escre-
ve-se ra = a(q) e rb = b(q), as equações das raretés das mercado-
rias A e B, respectivamente.
Um indivíduo resolve abrir mão de ob = qb – y em troca da
quantidade da da mercadoria A. Ou seja, ele guarda apenas y
unidades de B e troca o excedente ob contra da unidades de A. O
indivíduo poderá satisfazer a uma soma total de necessidades
representadas pelas superfícies 0y r e 0dar. Essa soma deve ser
maior do que a área 0qbr das necessidades inicialmente satisfei-
395
tas, senão o indivíduo não teria aceitado a troca de ob por da aos
preços pa. Walras demonstra, por argumentos algébricos e geomé-
tricos, que as intensidades ra e rb das últimas necessidades satisfei-
tas pelas quantidades da e y, isto é, as relações entre as raretés após
a troca, são iguais ao preço pa , algebricamente ra = pa. rb. Essa é a
condição de maximização da utilidade efetiva para cada portador:
a relação que se estabelece entre as intensidades das últimas
necessidades satisfeitas, ou a razão das raretés, é igual ao preço.
Portanto, ao preço pa , se o indivíduo oferecer uma quantidade de B
superior a ob , ultrapassa-se o limite estabelecido pela equação an-
terior de tal modo que ra < pa. rb.
A condição do máximo de utilidade de Walras é essencial-
mente a mesma relação estabelecida por Jevons no equilíbrio da
troca simples. Todavia, esse autor, ao desenvolver suas curvas de
oferta e demanda, dá a esse resultado uma demonstração mais
completa. Quando as curvas de raretés são determinadas e conheci-
das, só precisamos conhecer as quantidades possuídas. Esses dados
são os elementos necessários e suficientes para estabelecer quais
serão os preços de equilíbrio. Em cada um dos dois mercados, só
deve haver um único preço para o qual a demanda total efetiva
iguala a oferta total efetiva. Naturalmente tal preço corresponde a
um dos pontos de equilíbrio estável, dependendo da condição
inicial do problema. Mais raramente, o equilíbrio pode ocorrer no
ponto de equilíbrio instável. Tais preços são iguais às relações entre
as raretés, ou “os valores de trocas são proporcionais às raretés”.
Estas são a causa do valor de troca. Um “fato absoluto” determina
um “fato relativo”. Um elemento “pessoal e subjetivo” determina
um elemento “real e objetivo”, é o que diz Walras. Tais expressões
aparecem na lição X.
É curioso como Walras insiste em identificar nos preços um
fato objetivo, muito embora tenham eles uma causa subjetiva ao
dependerem das raretés. Não resta dúvida de que para Walras as
utilidades determinam os preços; em uma passagem dessa mesma
lição ele diz:
“Sendo dadas duas mercadorias no estado de equilíbrio de
um mercado, se todas as coisas permanecerem iguais e a
utilidade de uma dessas duas mercadorias aumentar ou dimi-
nuir para um ou para vários permutadores, o valor dessa mer-
cadoria em relação ao valor da outra, ou seu preço, aumentará
ou diminuirá.” (Léon Walras, Compêndio dos elementos de
economia política pura)
396
Assim, por que Walras atribui um caráter objetivo aos preços?
Mesmo acreditando que os preços tenham uma base psicológica
subjetiva, Walras considera o preço como sendo “objetivo” porque
imputa objetividade ao comportamento expresso na função de
demanda empírica. Expliquemos melhor. No início da lição XI, ele
conta-nos que a equação de demanda individual não passa da
equação de equilíbrio que relaciona as raretés. Uma vez que ra = pa.
rb. Walras escreve a(da) = pa. b(y) = pa. b (qb – ob) = pa. b (qb –
dapa). Assim, conhecendo-se as funções de rareté a e b, os preços
e as quantidades envolvidas, isola-se da = fa (pa ). Nesta e na lição
anterior, ele diz explicitamente que a função da pode ser obtida
empiricamente caso as utilidades não sejam determinadas. O eco-
nomista de Lausanne parece estar precavendo-se quanto à possi-
bilidade de que sua noção de utilidade seja meramente um conceito
quimérico, sem contrapartida real, de modo que os resultados de
sua análise seriam alcançados independentemente da validade do
referido conceito. De fato, antes da lição VIII toda a análise do
equilíbrio na troca simples parte diretamente das funções de
demanda. Poder-se-ia, de fato, suprimir as lições de VIII a X e as
conclusões obtidas na primeira parte da obra de Walras permane-
ceriam as mesmas.
Para Walras, a rareté é um conceito análogo à noção de calor
na física; é um construto teórico útil enquanto organizador de
ideias, mas sem um estofo real concreto, objetivamente observado
e medido. Não totalmente confiante de seu uso, a análise de Walras
aponta para a estratégia alternativa de obter os preços de equilí-
brio diretamente das curvas de demanda, sem fundamentá-lo
subjetivamente na noção de utilidade. Com isso, o autor desliza
sub-repticiamente para a mera observação da demanda.
A análise da troca simples visa tão somente fornecer o
fundamento do valor. As proposições derivadas com base nela
devem ser generalizadas numa “teoria da riqueza social” que se
aplicaria ao caso de mais de duas mercadorias e na livre-concor-
rência, em matéria de troca e produção.

MODELO DE EQUILÍBRIO GERAL


A análise da troca simples funciona apenas como preâmbulo à
análise mais geral de n mercados inter-relacionados. Walras
sempre soube que a oferta e a demanda de um mercado em
particular dependeriam das relações estabelecidas em muitos

397
outros mercados, e que, portanto, se faria necessária uma análise
geral. Tal análise procura compreender de que forma as escolhas
de todos os sujeitos econômicos tornam-se compatíveis entre si.
Temos então uma concepção do sistema econômico que focaliza
uma coleção de agentes que atuam no mercado como consumi-
dores, ofertantes de serviços produtivos ou empresários. O proces-
so econômico origina-se do encontro de vários agentes no mercado.
Serviços produtivos são transformados em bens que são compra-
dos por outros empresários ou pelos consumidores. Apenas como
primeira aproximação, Walras não considera a poupança e o
processo de acumulação de capital na edição de 1874 de seus
“Elementos”. Também inexistem incertezas que induziriam à reten-
ção de moeda. O sistema é fechado, não afetado por transações
externas ou pelo governo.
Walras trata de uma economia de caráter geral não condicio-
nada por um sistema social particular. Seu funcionamento indepen-
de do quadro institucional. Claramente não há lugar, no modelo,
para a noção de classe social. Só há consumidores, que também
ofertam serviços produtivos, e empresários. Tais grupos de agentes
tomam decisões diferentes. Os primeiros decidem a composição e
o nível de consumo, bem como o nível de poupança. Os empresá-
rios, por sua vez, escolhem o nível e a composição da produção e do
investimento; são os agentes que exercem a função de coordena-
dor. Ambos são proprietários de recursos. A análise de Walras é
feita por períodos. No início de um período, cada agente possui uma
quantidade de bens e serviços e tenta alcançar o melhor resultado
da troca. Enquanto consumidores, eles tomam decisões entre
consumir e poupar, de modo que sejam satisfeitas suas preferên-
cias intertemporais, e ainda decidem como gastar sua renda entre
vários bens de forma a maximizar a satisfação. Como empresários,
os agentes buscam alcançar o lucro máximo em sua atividade e
determinam, para tanto, os níveis de oferta, levando em conta a
renda recebida e o sacrifício para ofertarem.
A busca do objetivo individual obriga os agentes a trocar coisas
no mercado. Os consumidores oferecem fatores e recebem, em
troca, a renda usada a fim de comprar bens e serviços ou para
poupar. A poupança retorna às firmas pela atividade dos interme-
diários financeiros. A renda do consumidor depende das quantida-
des de bens e serviços que ele vende a outros e dos respectivos
preços. A firma usa o estoque de fatores fixos que possui de início e
compra também outros fatores de outras firmas ou dos consumi-
dores. A venda do produto final possibilita as receitas; subtraindo-
se os custos, temos o lucro das firmas. Parte dele é repartida e parte
398
é investida. Os consumidores possuem, direta ou indiretamente,
todos os fatores. A renda nacional equivale ao poder de compra dos
consumidores. A produção total do sistema é a somatória das
produções líquidas de cada firma e a renda global ganha pelos
fatores é o total que lhes é pago por todas as firmas.
A riqueza social é o conjunto de coisas materiais ou imateriais
que são escassas, isto é, que, por um lado, são úteis e, por outro, não
estão disponíveis a não ser em quantidades limitadas. Para uma
coisa ser tida como riqueza, ela deve possuir a capacidade de
satisfazer a alguma necessidade e deve ser possuída em quantidade
limitada em relação a essa necessidade. Portanto, os elementos da
riqueza social apresentam três propriedades: são apropriáveis, são
objetos de troca e objetos da atividade produtiva. A teoria
econômica pura de Walras é, por definição, a teoria da riqueza
social. Nela, procura-se determinar essencialmente preços e quan-
tidades produzidas e trocadas. A solução do problema da deter-
minação do equilíbrio geral deve ser precedida por minuciosa
classificação dos elementos que compõem a riqueza social. Com
isso, distinguem-se preliminarmente as várias funções e os vários
tipos de comportamento que ocorrem no sistema econômico.
Considerando-se tal descrição básica do sistema econômico, o
problema central da teoria de Walras é determinar como as trocas
voluntárias entre indivíduos bem-informados, autointeressados,
maximizadores e racionais levarão à organização sistemática da
produção e à distribuição da renda eficiente e mutuamente benéfi-
ca. A única forma de interação social é a que é realizada no mercado
por meio de trocas voluntárias. A concorrência perfeita dita o
funcionamento dos mercados. Não existem sindicatos, cartéis ou
qualquer prática intervencionista no mercado.
Enquanto no modelo da troca simples não se introduz moeda
e preços monetários, em sua análise do equilíbrio geral Walras
elege certa mercadoria como numerário e passa a preocupar-se
com o vetor de preços que permita a qualquer indivíduo maximizar
utilidade, bem como equilibrar os mercados (inexistência de exces-
sos de demanda e oferta). A análise de Walras confere papel central
à teoria dos preços. Preços são parâmetros com base nos quais as
escolhas individuais são feitas, entretanto, não são independentes
das escolhas. Ao se tomarem escolhas que satisfaçam às necessida-
des individuais, haverá um único vetor de preços que possibilita
ação vantajosa para todos os indivíduos simultaneamente. Tal
vetor permite que, em cada mercado, haja equilíbrio entre oferta e
demanda, que cada agente compre e venda o que planejou e que

399
firmas e consumidores troquem efetivamente as quantidades de
bens que maximizam satisfação e lucro. A condição de equilíbrio
geral determina um conjunto de relações bem articuladas entre
preços e quantidades trocadas de fatores e de bens de consumo, de
tal modo que seja permitida a máxima satisfação para cada agente
e que isso se torne mutuamente compatível com a maximização de
outros agentes.
Para obter o resultado do modelo, é necessário conhecer
apenas o número de consumidores, o número de firmas, a dotação
inicial de recursos, as preferências dos consumidores e as técnicas
de produção disponíveis. Conhecidos esses elementos, o compor-
tamento maximizador dos agentes e o mecanismo competitivo
conduz a todo o restante. Assim, determinam-se as quantidades de
bens produzidos e trocados, e o vetor de preços. Na análise da
produção, Walras toma emprestado de seu pai a terminologia que
busca separar o capital fixo, ou capital em geral:
“Qualquer bem durável, qualquer espécie de riqueza social
que não é consumida ou apenas é consumida a longo prazo,
qualquer utilidade limitada em quantidade que sobrevive à
primeira utilização que se faz dela, em uma palavra, que serve
mais de uma vez: uma casa, um móvel.” (L. Walras, Compêndio
dos elementos de economia política pura)
Do capital circulante ou rendimento:
“Qualquer bem fungível, qualquer espécie de riqueza social
que é consumida imediatamente, qualquer coisa rara que não
mais subsiste depois do primeiro serviço que presta, em suma,
que serve apenas uma vez: pão, carne etc.” (ibidem)
Exemplos de rendimentos são matérias-primas, bens interme-
diários não duráveis e serviços produtivos oferecidos por capitais
em cada período de produção.
O processo de produção utiliza serviços dos capitais fixos e
outras formas de rendimento, e não capitais em si mesmos. Terra,
trabalho e capital são os fatores de produção que oferecem os servi-
ços comprados pelo empresário a cada período. No modelo de Wal-
ras, há diferenciação entre mercados de produtos (em que consu-
midores demandam produtos ofertados pelas firmas) e mercados
dos serviços produtivos (em que os mesmos consumidores,
enquanto proprietários dos recursos produtivos de terra, trabalho
e capital, vendem os serviços produtivos para as firmas e, em troca,
recebem pagamentos que são suas rendas). Na configuração de

400
equilíbrio geral, são alcançadas posições de equilíbrio para as quais
tendem os vários agentes.
Dentro desse esquema analítico, Walras analisa as condições
de equilíbrio geral; primeiro as condições de maximização para
cada indivíduo em particular:
“O primeiro problema que temos a resolver consiste em
determinar, para cada consumidor, a oferta dos serviços e a
demanda quer dos serviços a título de serviços consumíveis,
quer dos produtos, a preços [...] anunciados ao acaso [que cor-
respondem ao ponto de máxima utilidade efetiva].” (ibidem)
E, depois, o equilíbrio entre oferta e demanda para todos os merca-
dos da economia.
Assim, a análise do equilíbrio geral em Walras requer o atendi-
mento de uma dupla ordem de condições: a condição subjetiva,
analisada em primeiro lugar, que é a maximização de utilidade de
cada agente, e a condição objetiva, que é a compatibilização das
condições de máximo individual com o equilíbrio simultâneo nos
mercados. No primeiro caso, temos, em cada período, m produtos
consumidos A, B, C, D..., e n serviços produtivos relativos ao empre-
go dos fatores terra, trabalho e capital.37 Os serviços fornecidos
pelo fator terra distribuem-se ao longo de muitos períodos até que
o fator esteja completamente depreciado, simboliza-os, na sequên-
cia temporal, por T, T’, T”..., idem para os serviços do fator trabalho
P, P’, P”... e para os serviços do capital K, K’, K”...
Walras constrói funções individuais de rareté para todos os
bens e também para os serviços: r =  (q).38 Os preços dos serviços
e dos bens de consumo são dados para os indivíduos: pt , pt´ , pt” , ...;
pp , pp’ , pp” , ...; pk , pk’ , pk” , ..., para os serviços, e pa , pb , pc , ... para os
bens finais. Ele elege a mercadoria A como numerário, de modo que
pa = 1. Considera, a seguir, uma dotação inicial dos fatores que
determinam os serviços produtivos qt , qt’ , qt” , ...; qp , qp’ , qp” , ...; qk , qk’,
qk” , ... (alguns dos 𝑞𝑗𝑖 podem ser zero) e uma quantidade demanda-

37 Os n serviços produtivos dos fatores correspondem à soma de subperío-


dos em que são empregados os serviços de algum fator. Cada fator oferece
serviços em diversos subperíodos, não necessariamente contíguos, que
cabem, na soma, dentro do período em questão.
38 Walras relacionou a utilidade marginal ( rareté) também a fatores

produtivos, desconsiderando o fato de que os serviços de fatores não


geram utilidade imediata, apenas contribuem para a obtenção de um bem
final que, por sua vez, proporcionará utilidade ao ser consumido.
401
da ou oferecida para cada serviço ot , ot’ , ot” , ...; op , op’ , op” , ...; ok , ok’ ,
ok” , ... (se oj > 0, temos bens e serviços oferecidos e se oj < 0, temos
bens e serviços demandados). As quantidades de produtos finais
demandadas aos preços de equilíbrio são representadas por da , db ,
dc , ... Os coeficientes técnicos de produção, isto é, a quantidade do
serviço requerida para a produção de uma unidade do produto são:
at , at’ , at” , ...; ap , ap’ , ap” , ...; ak , ak’ , ak” , ..., para o bem A; bt , bt’ , bt” , ...; bp ,
bp’ , bp” , ...; bk , bk’ , bk” , ..., para o bem B, ct , ct’ , ct” , ...; cp , cp’ , cp” , ..., ck , ck’ ,
ck” , ..., para o bem C, e assim por diante.
Na primeira edição dos “Elementos”, os coeficientes técnicos
são fixos. Todavia, sabe-se que a quantidade de cada serviço combi-
nado na produção de uma unidade do produto depende do preço
dele. Ciente disso, economistas outros, como Barone, em 1894, e,
tempos depois, Pareto, relaxarão a hipótese de coeficientes fixos. O
próprio Walras, a partir da terceira edição do livro, passa a conside-
rá-los variável em sua teoria da produção.
O famoso livro de Walras foi publicado em duas partes, a pri-
meira edição em francês, é de 1874, a primeira parte, sob o título
“Éléments d'économie politique pure ou théorie de la richesse so-
ciale”, e sua capa original aparece na Figura 10.5, na reprodução à
esquerda. A segunda parte é publicada em 1877. Outras edições
completas da obra aparecem em 1896 (considerada a terceira edi-
ção) e 1926, a quarta e definita edição (vide Figura 10.5 na repro-
dução à direita).
Vejamos ao cerne do modelo e à técnica de solução dele. Dadas
as variáveis, determinam-se duas condições de equilíbrio requeri-
das na maximização de todos os indivíduos:
1. Que o total de gastos seja igual à soma da renda dos consu-
midores individuais:
da + db + dc + ... = ot pt + ot’ pt’ + ... + op pp + op’ pp’ + ... + ok pk
+ ok’ pk’ + ...
2. As condições para a satisfação máxima dos indivíduos im-
plicam que, nos serviços produtivos:
t(qt – ot ) = pt a(da ),
t’ (qt’ – ot’ ) = pt’ a(da ), ...;
p(qp – op ) = pp a(da ),
p’ (qp’ – op’ ) = pp’ a(da), ...;

402
k(qk – ok) = pk a(da ),
k’ (qk’ – ok’) = pk’a(da), ...
E, para os bens finais, b (db ) = pba(da ), c(dc ) = pca(da ), ...

Figura 10.5 Capas originais do famoso livro de Léon Walras.

Já vimos que a solução da maximização individual condicio-


nada leva à equação algébrica ui =  pi , em que a constante de
Lagrange  representa a utilidade marginal da moeda. Se a merca-
doria A é o numerário, pa = 1 e  = a (da ). Assim, ficam demons-
tradas as equações de Walras que maximizam a satisfação indivi-
dual. Entretanto, ele não demonstra suas equações dessa maneira,
pois não utilizara a moderna técnica matemática de maximização
condicionada. Na lição XVIII, Walras parte de uma demonstração
puramente algébrica e conclui:
“É evidente que, no estado de satisfação máxima, as rarida-
des serão proporcionais aos preços.” (ibidem)
Walras preocupou-se em saber se, a princípio, existiria ou não
uma solução para esse sistema de equações. Para tanto, não se
limitou a contar o número de equações, comparando-o ao número
de incógnitas (condição necessária, mas não suficiente para a exis-
tência da solução). De fato, se o número de equações for igual ao

403
número de incógnitas, Walras considera demonstrada apenas para
modelos lineares a possibilidade do equilíbrio geral do ponto de
vista dos indivíduos. Contudo, o autor francês não se limita à
análise de sistemas lineares. Neste capítulo, a técnica de solução
para o caso mais geral será apresentada adiante, em outra seção.
Vamos à simples contagem: temos então a equação que iguala
gastos à renda e as equações resultantes da condição de satisfação
máxima (n equações em termos de preços dos fatores e m – 1 para
os preços dos bens finais), totalizando 1 + n + m – 1 = n + m
equações para o equilíbrio geral de um indivíduo em particular. O
número de incógnitas no sistema de equações é n + m – 1, corres-
pondente à oferta e demanda de bens e serviços, em que oj = fj (pt’ ,
pt” , ..., pp’ , pp” , ..., pk’ , pk” , ..., pb’ ,pc’ , ...), j podendo ser t, t’, ..., p, p’, ..., k,
k,’... e di = fi (pt’, pt” , ..., pp’ , pp”, ..., pk’ , pk” , ..., pb’ , pc’ , ...), i que pode ser
b, c, ..., m; mais a demanda da mercadoria A, o numerário, da. Portan-
to, temos n + m incógnitas. Como o número de equações é igual ao
número de incógnitas, Walras considera demonstrada uma das
condições necessárias, do ponto de vista de indivíduos maximiza-
dores de utilidade, à possibilidade do equilíbrio geral.
O próximo passo de Walras consiste em enunciar as condições
de equilíbrio geral nos mercados (o chamado equilíbrio objetivo).
Para tanto, as seguintes equações foram construídas:
1. Oferta e demanda global dos fatores são a soma horizontal
das ofertas e demandas individuais. Ot , Ot’ ,..., Op, Op’ , ..., Ok,
Ok’ , ... são respectivamente as somatórias de ot , ot’ , ..., op, op’ ,
..., ok, ok” , ..., que são as ofertas e demandas individuais de fa-
tores. As demandas totais dos bens de consumo Da, Db, ... são
as somatórias de da, db, ..., as demandas individuais de cada
bem final.
2. Em termos agregados, podemos expressar diretamente as
ofertas de fatores e as demandas de bens finais como função
dos preços: Ot = Ft (pt’ , pt” , ..., pp’ , pp” , ..., pk’ , pk” , ..., pb’ , pc’ , ... ),
e assim por diante para t’, t”, ..., p, p’, ..., k, k’, ... E as demandas
finais representadas por Db = Fb (pt’ , pt” , ..., pp’ , pp” , ..., pk’ , pk”
, ..., pb’ ,pc’ , ...) e também por Dc , Dd , ... Como estamos conside-
rando o agregado, devemos impor o equilíbrio global entre
oferta e demanda: Da = Ot Pt + ... + Op Pp + ... + Ok Pk + ... –
(DbPb + Dc Pc + Dd Pd + ... ).

404
3. A quantidade de serviços oferecidos deve ser igual ao
montante empregado desses serviços, de modo que não
subsistam recursos ociosos. Assim, temos que:
Ot = at Da + bt Db + ...,
Ot’ = at’ Da + bt’ Db + ..., ...;
Op = ap Da + bp Db+ ...,
Op´ = ap’ Da + bp’ Db+ ..., ...;
Ok = ak Da + bk Db + ...,
Ok’ = ak’ Da + bk’ Db + ...; ...
4. O empresário não aufere lucros ou perdas de tal modo que
podemos equacionar pb = bt pt + bt’ pt’ + ...; pc = ct pt + ct’ pt’
+ ...; ... bi , ci , ... são os coeficientes técnicos, que representam
a quantidade de cada serviço produtivo requerida para a
produção de uma unidade do produto B, C, ... e a somatória
fornece o valor total dos insumos necessários para produzir
uma unidade do produto. A equação diz-nos que o preço do
bem é igual ao custo unitário ou médio. Se a firma não tem
lucros, a renda do empresário deve-se apenas à proprie-
dade dos recursos. Todavia, enquanto proprietários eles
são consumidores e não propriamente empresários.
5. pa é o numerário, pa = 1.
Em termos de contagem de equações e incógnitas: no modelo
de equilíbrio geral para o mercado em conjunto, temos n equações
de oferta de fatores, m - 1 equações de demanda de bens finais, uma
equação para o equilíbrio global entre oferta e demanda; n equa-
ções que igualam demanda com oferta dos serviços e m - 1 equa-
ções que igualam os preços dos bens finais aos respectivos custos;
e a condição para o preço do numerário pa = 1. Uma das equações
do sistema é linearmente dependente, de forma que podemos eli-
miná-la. Temos, portanto, 2m + 2n – 1 equações e o mesmo número
de incógnitas: n quantidades ofertadas de serviços produtivos, m
quantidades demandadas de produtos terminados, n preços de
serviços e m – 1 preços de produtos, supondo que os coeficientes
técnicos sejam fixos e dados; caso contrário, teríamos n ×m incóg-
nitas a mais e n ×m equações adicionais que relacionam os coefi-
cientes técnicos aos preços dos insumos. O número de incógnitas
continuaria sendo igual ao número de equações. Assim, mais uma
vez, como no caso do equilíbrio geral para o indivíduo, temos um
sistema de equações que representa o equilíbrio dos mercados, que
pode, ao menos em princípio (satisfeita uma condição necessária),
ser determinado.

405
Enquanto em autores como Gossen e Jevons elementos psico-
lógicos e subjetivos são alçados a um lugar privilegiado na deter-
minação do valor, Walras contrariou tal tendência. A teoria subje-
tivista anterior a Walras atribui papel efetivo ao mundo dos
fenômenos internos aos indivíduos. Ela determina que se parta da
mente de cada qual para a compreensão da totalidade da vida
econômica. A ênfase no subjetivismo, no entanto, é enfraquecida
nos domínios de Walras. Muito embora o trabalho dele tenha, à sua
época, permanecido relativamente desconhecido (exceto na Suíça
e na Itália), seu programa de pesquisa do equilíbrio geral tornou-
se, pelos desenvolvimentos de Gustav Cassel, Knut Wicksell e
outros autores, a principal tradição que viria gradualmente, ao
longo do tempo, a dominar a cena acadêmica. Nessa trajetória,
muitos teóricos em economia foram persuadidos a descartarem o
subjetivismo, trocando-o pela simples determinação das condições
que tornam as ações individuais globalmente consistentes pelo uso
dos sistemas de equações de oferta e demanda; a situação em cada
qual dos vários mercados presentes na economia seria expressa
por meio dessas equações, que traduziriam as condições objetivas
em que os recursos produtivos estão disponíveis (os estados da
natureza) e refletiriam gostos e preferências dos indivíduos.
Os elementos subjetivos somente subsistem no modelo por
estarem subjacentes às equações de mercado. A teoria de equilíbrio
geral, todavia, deixa efetivamente de incorporar a antiga análise
psicológica das estruturas das crenças individuais, tal como defen-
dida por Gossen e Jevons, considerando-a apenas um dado de parti-
da. No mais, a estratégia de análise de Walras toma os dados subje-
tivos como algo que se soma aos fatores objetivos que comandam a
produção e o consumo, sem problematizar a relação entre elemen-
tos subjetivos e objetivos. Não pergunta, por exemplo, como a per-
cepção individual poderia alterar a própria natureza dos dados
objetivos.
Walras não foi além no exame das consequências ulteriores da
aplicação do subjetivismo. Acreditou no alcance da noção de
equilíbrio de mercado e que os dados econômicos poderiam ser
tratados como dados objetivos, como simples condições paramé-
tricas que particularizam o estudo de determinadas relações
econômicas. Na tradição do equilíbrio geral, desenvolvem-se teo-
rias altamente abstratas, estáticas e gerais. Em vez de se preocu-
parem com o realismo de seus supostos, seus adeptos postulam
hipóteses comportamentais simplificadoras e uniformizantes. Os
agentes são meros seres que maximizam a satisfação pelo cálculo
racional dos usos alternativos da renda, em que os gastos são
406
ajustados na margem. Embora reconheçam a independência das
decisões individuais, os agentes são analiticamente igualados:
arrimando-se numa renda limitada, vale para todos o princípio da
utilidade marginal (eventualmente) decrescente. A análise concen-
tra-se apenas nos valores de troca, ignorando-se, na medida do
possível, questões sobre a origem e a natureza das preferências, sua
estabilidade, os processos de avaliação e outros mais. Podemos
concluir, portanto, que o subjetivismo haveria de sofrer considerá-
vel refluxo eclipsado pelo desenvolvimento da análise do equilíbrio
geral.

A EXISTÊNCIA DE EQUILÍBRIO
Afirmamos na seção anterior que Walras não se limita-se a
contar o número de equações comparando-o ao número de incóg-
nitas. Como o número de equações, de fato, é igual ao número de
incógnitas, Walras considerou demonstrada a possibilidade do
equilíbrio geral apenas para sistemas lineares. Contudo, ele traba-
lha com o caso mais geral de sistemas não lineares. Então sua
tentativa de demonstrar a existência de equilíbrio vai além da mera
contagem. Vejamos a sua técnica.
Tomemos a lei de Walras: o valor total do excesso de demanda
é zero para a somatória de todos os mercados a qualquer nível de
preços P. Os excessos de demanda são neutralizados pelos excessos
de oferta. Portanto, quando se pensa na equação que iguala o
excesso de demanda a zero em cada mercado, a um nível de preço
P*, se n é o número de bens na economia, há apenas n – 1 equações
independentes. Dada a lei de Walras!
O que Walras buscou fazer? Ele investiga se haveria um com-
junto de preços P* que equilibra simultaneamente a todos os
mercados (todos os excessos de demanda se anulam em P*). Temos
n – 1 equações independentes e n – 1 incógnitas (pois um dos P ’s é
numerário), então a álgebra elementar de sistemas de equações
lineares sugere que a solução de equilíbrio deve existir. Walras
sabia disso!
Walras também sabia que a solução de P* não consiste apenas
em contar equações e incógnitas. Sabia que as equações não são
necessariamente lineares. Portanto, as condições tradicionais para
a existência de uma solução de equilíbrio em equações lineares
simultâneas não se aplicam a esse caso. Sabia ainda que só faria
sentido a solução com preços não negativos.

407
Como Walras enfrentou tais dificuldades? De fato, ele oferece
uma prova cansativa que envolve soluções sucessivas de preços de
equilíbrio ao longo de uma série de aproximações. Começa-se com
um conjunto arbitrário de preços. Mantém n – 1 bens com seus
preços constantes e encontra o preço de equilíbrio para o bem 1.
Chama isso de preço provisório de equilíbrio p1’. Mantém p1’ e
outros n – 2 preços constantes. Resolve para o preço de equilíbrio
do bem 2.
Chama esse preço de p2 ’. Quando o preço do bem 2 vai de sua
posição inicial p2 para a nova posição em p2 ’, o preço inicial do
bem 1 não deve permanecer um preço de equilíbrio, pois, este bem
1 pode ser um substituto ou um complemento do bem 2. Usando os
preços provisórios p1’ e p2 ’, obtém-se o preço provisório p3 ’. Pros-
segue-se assim até se obter o conjunto completo de preços relati-
vos.
Na segunda iteração, p2 ’, ..., pn ’ são mantidos constantes en-
quanto um novo preço de equilíbrio é calculado para o primeiro
bem, o novo preço provisório p1’’. Assim, o novo conjunto de preços
relativos provisórios pode ser calculado: p1’’, ..., pn’’. A prova
continua com novas iterações. Walras acreditava que, com essa
técnica, poder-se-ia alcançar uma aproximação razoável em dire-
ção a um conjunto de preços de equilíbrio definitivo. Contudo, ele
não tinha certeza se o equilíbrio, de fato, seria alcançado nessas
iterações.
Não obstante isso, a tentativa de Walras de provar teorica-
mente a existência do equilíbrio geral não deve ser subestimada. O
autor francês, com efeito, exibe notável habilidade em demonstrar
a natureza simultânea do problema de se encontrar preço de
equilíbrio. Ele oferece uma tentativa de prova dificultosa, puramen-
te verbal. Walras não se propôs a fazer demonstração rigorosa e
definitiva. Apenas intuiu como seria o processo de prova matemá-
tica do equilíbrio geral.

A CONVERGÊNCIA AO EQUILÍBRIO
Vimos que a igualdade entre o número de equações e incógni-
tas não assegura a existência de equilíbrio para sistemas não
lineares. Mesmo em sistemas lineares, não se assegura uma solução
que seja única e que tenha significado econômico, isto é, que tenha
preços e quantidades positivas. A solução pode ser de equilíbrio
múltiplo, o sistema pode não apresentar soluções (quantidades

408
demandadas e ofertadas diferentes para qualquer preço) ou apre-
sentar soluções com valores negativos sem significado econômico.
Outros problemas, que serão examinados pelos herdeiros da
tradição de Walras, dizem respeito a como o equilíbrio geral advém
do comportamento maximizador dos agentes e de que modo o
mercado corrige as situações de desequilíbrio, isto é, como os
excessos de oferta e demanda são eliminados. Supondo a existência
do equilíbrio, o que garante a convergência a ele? Na análise do
equilíbrio geral, Walras não aprofunda o exame teórico da existên-
cia, da unicidade e da estabilidade desse equilíbrio e também não
explica o caminho em que o equilíbrio é alcançado. De fato, apenas
na troca simples ele avança nessa investigação. Economistas do
século XX, como Nicholas Kaldor, John Richard Hicks e Paul Samuel-
son, discutiram tais questões nos anos 1940.
Walras, com a exposição matemática das condições de equilí-
brio geral, acreditou ter razoavelmente demonstrado que, em con-
corrência perfeita, o pleno emprego dos recursos é compatível com
o desejo de cada indivíduo de maximizar a satisfação no gasto em
consumo dos rendimentos obtidos com a venda desses mesmos
recursos. Todavia, sua demonstração não é rigorosa, pois a igual-
dade entre o número de equações e incógnitas e a técnica iterativa
proposta não asseguram a existência de uma solução ao equilíbrio
geral. E nem que essa solução seja única e que tenha significado
econômico, isto é, que tenha preços e quantidades positivas.
Wilhelm Lexis, em 1881, dissera que o sistema de equações de
Walras não necessariamente possuiria soluções positivas reais ou
únicas, o que poderia tornar o modelo sem interesse. Passou muito
tempo até que Abraham Wald (1902-1950) encontrasse uma solu-
ção ao problema. Wald aprofundou a natureza do sistema de
Walras, sem conhecê-lo, e concluiu que a técnica proposta não
asseguraria resultados significativos em termos econômicos. Com
base nela, pode-se obter equilíbrio múltiplo, o sistema pode não
apresentar soluções (quantidades demandadas e ofertadas dife-
rentes para qualquer preço) ou apresentar soluções com valores
negativos sem significado econômico.
Determinar as equações de equilíbrio e o vetor de preços que
aparece na solução do sistema de equações significa tão somente
fornecer a configuração de preço e quantidade que se estabelece no
equilíbrio. Outro problema é explicar como esse equilíbrio advém
do comportamento maximizador dos agentes e de que modo o
mercado corrige as situações de desequilíbrio, isto é, como os
excessos de oferta e de demanda são eliminados. Supondo a exis-
409
tência do equilíbrio, o que garante a convergência a ele? A expli-
cação do processo equilibrador só é possível, no modelo de Walras,
pela hipótese da existência de um mecanismo intitulado tateamen-
to. Tal mecanismo é desenvolvido primeiro na troca pura, depois é
estendido à produção, à formação de capital e à moeda. Trata-se de
uma lei ex machina, imposta artificialmente para o sistema econô-
mico alcançar o equilíbrio geral. Walras trabalha com um modelo
de barganha competitiva que vê o mercado como um leilão em que
os agentes se dividem em compradores e vendedores proprietários
dos bens, e um controlador das transações, chamado de leiloeiro.
No início da transação, o leiloeiro lança um vetor de preços e
deixa os agentes formularem suas propostas de compra e venda. Se
houver, para esses preços, igualdade entre oferta e demanda, a
barganha é declarada fechada pelo leiloeiro e o vetor de preços é o
de equilíbrio. Se não, o leiloeiro ajusta os preços de acordo com a
regra: os preços aumentam para eliminar excessos de demanda e
reduzem para eliminar os excessos de oferta. O leiloeiro age por um
processo de tentativa-e-erro (tateamento) continuamente até que
ocorra a completa eliminação dos excessos. Até esse ponto, os
preços são apenas virtuais e as trocas não são efetivamente realiza-
das. São as chamadas “trocas falsas”, pois só no equilíbrio as trocas
ocorrem de fato. E não poderia ser diferente. Se no curso do proces-
so equilibrador os agentes trocarem seus bens aos preços de dese-
quilíbrio, a dotação individual variará continuamente e não será
possível alcançar um equilíbrio walrasiano, já que este se refere a
uma dada alocação de recursos. Então no sistema de Walras as
transações não ocorrerão enquanto o sistema estiver procurando o
ponto de equilíbrio.
Questões sobre existência, unicidade e estabilidade do equilí-
brio, e também sobre o caminho em que o equilíbrio é alcançado,
foram muito discutidas nas décadas de 1930 e 1940, princi-
palmente por Kaldor, Hicks e Samuelson. Outro problema do mode-
lo de Walras diz respeito ao papel do empresário. Se a competição
entre empresários, na condição de equilíbrio, produz um lucro final
nulo, o que eles ganham para exercer sua função? Na literatura
especializada, cunhou-se a expressão “empresário Sísifo” para des-
crever que tal agente atua como mero coordenador que organiza a
produção, tomando as técnicas e os preços como dados.39

39 Segundo a lenda grega, Sísifo, rei de Corinto, tendo escapado astucio-


samente a Tânatos, o deus da morte, enviado por Zeus para castigá-lo, foi
levado por Hermes ao inferno, onde o condenaram ao suplício de rolar
410
Enquanto a receita exceder ou estiver abaixo dos custos, haverá
respectivamente lucros e perdas que afetarão a escala de produção
de modo que sejam eliminados os excessos. No equilíbrio, o lucro
econômico é zero, apenas subsiste o lucro contábil, semelhante a um
juro pago pelo uso do serviço do capital. No caso, remunera-se o
proprietário do capital e não a função empresarial. Parece não existir
identidade socioeconômica para o empresário Sísifo. No entanto, na
interpretação de William Jaffé, o maior especialista em Walras,
haveria um papel para o empresário, nesse modelo, na situação de
desequilíbrio: ele age quando há diferença entre preços de venda e
custo de produção.

TEORIA DO EQUILÍBRIO GERAL APLICADA AO


PLANEJAMENTO SOCIALISTA
Uma implicação do modelo de Walras que viria a ter
consequências importantes no desenvolvimento da economia cien-
tífica é a de que a solução do problema de cálculo posta pelo sistema
de equações, isto é, a relação de equilíbrio geral, não depende de se
verificar um ato efetivo de troca em um mercado. O economista
Enrico Barone, no início do século XX, apercebeu-se disso e propôs
fundamentar a economia socialista planificada em bases racionais.
O sistema teórico desenvolvido por Walras permite quantificar,
desde que se estipulem os parâmetros das equações, o quanto de
um bem pode ser produzido, mediante a renúncia à produção de
uma unidade de outro bem. Essa relação é denominada de “taxa
marginal de substituição entre produtos”.40 O sistema de Walras
permite estabelecer uma espécie de equivalência tecnológica entre
dois bens quaisquer, transformando-se um bem em outro segundo
certa lei definida.
O processo de concorrência que se verifica pela ação do merca-
do é tal que a taxa marginal de substituição dos fatores na produção
é igualada à taxa marginal de substituição dos bens no consumo;
esta última é a inclinação das, assim chamadas, curvas de indife-
rença. Então o equilíbrio é o ponto em que essas duas taxas apre-
sentam um valor comum, situação em que prevalece o preço rela-
tivo que se estabelece no mercado concorrencial. Em Walras,
portanto, os preços não são nada além de uma medida das relações

uma rocha até o cimo de um monte, donde ela se despencava, devendo o


condenado recomeçar incessantemente o trabalho.
40 Modernamente, diz-se, é a inclinação da curva de possibilidade de

produção em dado ponto.


411
de equivalência técnica e psicológica entre os vários bens presentes
no sistema.
Assim, conhecendo a disponibilidade dos recursos e o formato
das funções de oferta, um órgão planejador central poderia deter-
minar o vetor de preços de equilíbrio e impor a vendedores e com-
pradores que efetuem suas transações a esses preços. O processo
de mercado seria substituído pelo planejamento.
Procura-se, a seguir, focalizar as mudanças políticas e sociais
que culminaram na tese do planejamento econômico centralizado
eficiente e nos modelos de economias socialistas. Os modelos de
equilíbrio geral mostraram-se importante instrumento auxiliar na
tarefa de controle centralizado da atividade econômica.
Já no início do século XX, o socialismo estava posto como uma
realidade histórica. Movimentos socialistas proliferavam principal-
mente na Europa Central e, depois, na Rússia. Grandes partidos
políticos cobiçavam o poder em nome de um projeto socialista de
sociedade. Alguns lograram êxito, ainda que temporário. O socialis-
mo era, na prática, um terreno inteiramente inexplorado e os parti-
dos políticos simpáticos à causa muito agradeceriam se algum
teórico lhes desse um embasamento científico que fundamente
suas implicações na economia. O paradigma do equilíbrio geral foi
então aplicado à economia socialista pela primeira vez por Enrico
Barone (1859-1924), em seu artigo “O ministério da produção no
estado coletivista”, originalmente publicado em italiano na revista
Il Giornale degli Economisti, em 1908. Utilizando o critério de
eficiência de Pareto, Barone acreditou provar que tal economia
poderia atingir uma alocação ótima de recursos. O italiano não era
socialista e estava interessado simplesmente em demonstrar uma
possibilidade teórica.
A obra de Barone teve instantaneamente grande acolhida por
parte dos colegas socialistas, principalmente alemães. Na opinião
deles, Barone teria demonstrado que o vetor de equilíbrio calcula-
do pelo modelo walrasiano de interdependência geral dos merca-
dos poderia ser estabelecido na prática, de modo a forçar a econo-
mia a trabalhar, desde o início, num ponto de eficiência, sem os
desgastantes processos de convergência ao equilíbrio que se obser-
vam em mercados competitivos. É possível, portanto, operar
eficientemente a economia planejada por meio de um cálculo
racional.
O ensaio de Barone é tecnicamente complexo, contudo, vale a
pena uma apresentação sumária. Barone começa expondo suas
hipóteses e a questão chave do modelo: como a produção deve ser
412
dirigida em um regime coletivista? Fornece então as soluções
gerais que o Ministério da Produção deveria seguir. Para tanto,
utiliza matemática, mas não emprega o conceito de utilidade.
Discute aspectos dinâmicos na análise do bem-estar em dois tipos
de regimes econômicos: regime individualista, que inclui as estru-
turas de mercado com competição livre, mas também monopólios
e cartéis; regime coletivista, o Estado controlando a economia.
Lança a pergunta central:
“De que maneira o Ministério encarregado da produção
deve direcioná-la com o fito de alcançar a máxima vantagem
em suas operações.” (E. Barone, O ministério da produção no
estado coletivista)
Barone elege os seguintes dados para o modelo do regime
individualista: quantidade de capital possuído por cada indivíduo;
relações input-output; gostos individuais (escolha de cada qual
entre consumir e poupar); quantidades demandadas e ofertadas a
cada vetor de preços. O autor italiano desconsidera a noção de utili-
dade:
“Nós nos desvencilhamos de todo conceito metafísico ou
sutil de utilidade e das funções de indiferença, e apoiamo-nos
apenas na autenticidade dos fatos.” (ibidem)
Representa as variáveis do modelo da seguinte maneira: quan-
tidade demandada e produzida: Ra, Rb, ... (m incógnitas); custo de
produção: a, b , ... (m custos); preços: 1, pb, ... (m – 1 incógnitas);
diferentes tipos de capital S, T, ... (n capitais); quantidade total
desses capitais: Qs, Qt, ... . Barone distingue dois tipos de capital:
capital em processo de produção H, K, ... (n’ incógnitas), e capital
existente. Quantidade de seus serviços diretamente consumidos:
Qs, Qt, ... (n incógnitas). Os preços dos serviços são expressos em ps,
pt, ... (n serviços). As quantidades em produção de capital novo são
representadas por Qh, Qk, ... (n’ capitais). O vetor do custo de
produção é  h,  k, ... (n’ custos). Pode haver excesso E de renda
sobre o consumo.
O economista italiano introduz no modelo os coeficientes téc-
nicos: as, at, ... , bs, bt, ... (m ×n coeficientes). Primeiramente Barone
trabalha com coeficientes técnicos dados; depois, introduz um
modelo em que eles são determinados pela condição de custo
mínimo. Estima-se então o número de incógnitas: 3m – 1 + 2n +
2n’ + 1 = 3m + 2n + 2n’. As equações do modelo perfazem o
seguinte número: R ’s e E como função dos preços; para cada indiví-
duo (letras minúsculas) pa ra + pb rb + ... ps rs + pt rt + ... + e = ps qs

413
+ pt qt + ... Em que r ’s e e são funções de todos os preços. Conhe-
cidos os preços, os r ’s e e são determinados e também as quantida-
des agregadas R ’s e E como função dos preços (m + n + 1 quantida-
des). Cada uma das m + n + 1 quantidades é função de todos os m
+ n – 1 preços de produtos e de serviços. Equações de equilíbrio:
(1) Qs = Rs + asRa + bsRb + ... + hsRh + ksRk + ...;
(2) Qt = Rt + atRa + btRb + ... + htRh + ktRk + ... (n equações).
A poupança E é usada para produzir capital novo E = h Qh +
k Qk + ... . O custo de produção de bens finais e de capitais novos é
a = as ps + at pt + ..., b = bs ps + bt pt +...; h = hs ps + ht pt + ..., k =
ks ps + kt pt + ... (m + n’ equações). Outro sistema de equações
expressa uma das características da livre competição, o fato de os
preços dos produtos finais e dos serviços dos capitais novos serem
iguais aos respectivos custos de produção: a = 1, b = pb ... e h =
ph /pe, k = pk /pe, ... (m + n´ – 1 equações, o “menos 1” é porque
numa destas equações de  há um “capital novo em processo” cujo
preço é pe e, sendo assim, não aparece no sistema de equações).
Portanto, o número de equações do modelo é igual a n + 1 + m +
n’ + m + n’ – 1 e, em acréscimo, m + n + 1 (R ’s e E em função de
todos os preços); isto totaliza 3m + 2n + 2n’ + 1 equações. Na
medida em que uma das equações é o resultado das outras, ela pode
ser eliminada, o que resulta na igualdade entre número de equa-
ções e de incógnitas.
Barone também admite a hipótese de coeficientes técnicos
variáveis. Analisa três situações:
1. Caso em que todos os competidores trabalham nas mesmas
condições (firmas similares, produzem com o mesmo cus-
to);
2. Caso com ganhos diferenciais das firmas (condições diferen-
tes em cada firma) e
3. Caso em que os coeficientes técnicos são determinados de
tal modo que os custos de produção são minimizados.
Em seguida, os coeficientes técnicos são determinados no caso
de livre competição (firmas iguais) e de lucro zero. Na situação com
limitação no uso da combinação ótima dos fatores, os lucros são
transitórios; provisoriamente os preços de cada bem cobrem um
termo de lucro. Os coeficientes são diferentes em cada firma, e
somente a firma marginal tem lucro zero.
Barone equaciona a produção máxima no regime de livre con-
corrência: equação das necessidades físicas da produção pa ra + pb

414
rb + ... ps rs + pt rt + ... + e = ps qs + pt qt + ... Chega então ao seguinte
sistema de equações:
(1) 1 = as ps + at pt + ...;
pb = bs ps + bt pt + ...; … e
(2) ph = pe (hs ps + ht pt + ...);
pk = pe (ks ps + kt pt + ...); ...
Os coeficientes técnicos são tais que os custos são mínimos.
São as seguintes as características do equilíbrio, em termos de um
conjunto de equações:
(1) Ra + pb Rb + ... ps Rs + pt Rt + ... + E =  ;
(2) E = h Qh+ k Qk + ...; h = ph/pe, ...
Portanto,  = Ra + pb Rb + ... + ps Rs + pt Rt + ... + 1/pe (ph Rh+
pk Rk + ...). Se p é constante   = 0, uma propriedade do equilíbrio:
“Precisamente em virtude das condições em que se
caracteriza a livre competição (que o custo de produção se
iguala aos preços no ponto em que tais custos são mínimos),
dada a quantidade de serviços disponíveis, a diferencial parcial
de  quando os preços são considerados constantes é zero.”
(ibidem)
Em seguida, Barone compara o resultado com o de outros
regimes. Conclui que o máximo de produção no regime de livre
competição não implica que qualquer indivíduo tenha um leque de
escolha maior do que seria possível em outros regimes. Ou seja,
alterar-se as condições em que ocorre a livre competição poderia
conduzir a uma melhoria paretiana. Barone conclui que o método
de transferências diretas ditadas pelo Ministério da Produção pode
funcionar melhor que a livre concorrência em mercados (desde que
não se alterem as condições da produção). Antes de analisar o caso
da produção dirigida, Barone investiga o resultado para o regime
de livre iniciativa com monopólios e cartéis: o indivíduo não é mais
tomador de preço. Em monopólios e cartéis, variações na oferta
podem afetar os preços e estas últimas afetam os custos: b = pb +
Rbpb/Rb ... . O monopólio de fatores leva à estratégia de maximi-
zação do monopolista: maximizar Qs ps resultando em ps +
Qsps/Qs = 0. No caso do cartel, viceja um sindicato de 
indivíduos. Os Q ’s são distribuídos entre esses indivíduos. Preços e
quantidades são determinados, dado o tipo de acordo entre os
membros do cartel.

415
Agora para o regime coletivista, alguns recursos permanecem
propriedade de indivíduos M, N... (l recursos); parte dos recursos
torna-se propriedade coletiva do Estado S, T... (n – l recursos). O
Ministério da Produção tem de resolver o problema de combinar
recursos coletivos e individuais a fim de maximizar o bem-estar das
pessoas. Trabalha-se com as seguintes hipóteses do modelo: não há
moeda; não há preços; o Ministério determina razões de equivalên-
cia entre produtos, serviços etc. As pessoas levam seus produtos às
lojas em troca de bens de consumo ou ganham permissão para usar
algum recurso do Estado. As equivalências ditadas pelo Estado são
representadas por 1, b, ..., m, n, ..., s, t, ... Denomina-se quantida-
de X a soma Qss + Qtt + ... que pertence ao Estado. Ele pode
redistribui-la aos indivíduos i ’s determinando uma quota i em X
como um suplemento na renda individual. ’s diferem entre os
indivíduos e  = 1. Lembrando-se ainda que uma parte do produto
é destinada à poupança, e que há um prêmio para consumo adiado,
prêmio calculado por tentativa e erro, a condição de liberdade nas
economias individuais implica em ra + b rb + ... + s rs + t rt + ... +
e = m qm + n qn + ... +  X. A condição de máximo de bem-estar
coletivo resulta em ra + b rb + ... + s rs + t rt + ... + e = .
Sendo que  = 0 para cada indivíduo. A condição   = 0 para
todos os indivíduos é suficiente para que o máximo de bem-estar
seja alcançado. Barone argumenta que, na prática, seria possível ao
planejador manipular os  ’s e os  ’s de modo a obter tal condição.
Portanto, também a economia centralmente planejada seria efi-
ciente.
A receita de Barone consiste em ajustar os preços de modo que
seja aproximada a economia real do equilíbrio teórico. O conceito
de equilíbrio com que trabalha descreve situações de preços e
quantidades em que as equações de oferta e de demanda para cada
mercado são todas atendidas ao mesmo tempo. Mudanças nos
parâmetros deslocam os pontos de equilíbrio. O modelo trata as
variações paramétricas como exógenas e analisa o resultado final
alcançado por meio de exercícios de estática comparativa. Barone
também tece considerações sobre o tratamento dinâmico do pro-
blema.
O modelo de Barone não leva em conta instituições sociais
específicas. Pelo contrário, na determinação da alocação ótima no
socialismo pretende ser neutro em relação às instituições. Admite
a existência de moeda, preços, juro e demais instrumentos típicos
de uma economia de mercado. O modelo exclui, no entanto, a
propriedade privada, o mercado de capitais e o mercado de insu-

416
mos, o que o caracteriza como um modelo socialista. Barone traba-
lha com preços, moeda e mercados, admitindo que esses instru-
mentos operam igualmente bem em qualquer sistema econômico,
hipótese conhecida como de “instrumentos neutros”.
A teoria de Barone recebeu críticas dos que não acreditavam na
possibilidade de uma eficiente economia planejada. Contudo, opiniões
favoráveis eram majoritárias nos anos 1930, época em que quase
todos os acadêmicos que trabalhavam com modelos de equilíbrio
geral viam com simpatia as teses do economista italiano. Barone
inaugurou uma tradição em economia do planejamento que a partir
dele viria a angariar para si novos adeptos. Entre eles, destacam-se F.
M. Taylor, H. D. Dickinson e principalmente os trabalhos de Oskar
Lange (1904-1965) e Abba Lerner (1903-1982). Tais autores não se
limitam a seguir o modelo básico e enxertam nele diversos elementos
da visão teórica de Alfred Marshall.
O consenso criado entre os economistas sobre a validade dessa
linha de pesquisa foi, naqueles anos, tão vigoroso que até seus
críticos, em geral defensores do livre mercado, reconheceram a
possibilidade do cálculo racional no socialismo. Eles, porém, só
admitiam ceder em seus pontos de vista no plano da teoria, já que
dificuldades de implementação impossibilitariam, na prática, o
modelo de equilíbrio geral. Afinal, diziam eles, como seria possível
coletar os dados necessários para a solução de milhares de equa-
ções do modelo, tarefa necessária para sua aplicação? Enfim,
mesmo os economistas liberais acabaram reconhecendo que o
modelo de Barone seria teoricamente consistente, embora manten-
do a objeção de ordem prática.
Oskar Lange, em seu artigo de 1936, “Sobre a teoria do socia-
lismo”, pretendeu demonstrar que a crítica aos modelos socialistas
de mercado, que enfatizavam a impossibilidade de implementá-los
na prática, poderia ser enfraquecida. Para tanto, argumentou que, a
fim de se chegar a uma alocação ótima dos recursos, não seria
necessário resolver milhares de equações simultaneamente. Para
atingir os preços de equilíbrio dos bens finais, bastaria ao planejador
central orientar os administradores setoriais de mercado a adota-
rem um procedimento de tentativa e erro. Tais administradores
estariam obrigados a seguir um conjunto de regras ditadas pelo
planejador. Se os preços dos fatores fossem dados, bastaria usar duas
regras para a alocação de recursos: (1) a fim de encontrar a melhor
combinação de fatores a empregar, escolher a que minimiza os
custos de produção; (2) encontrar a melhor escala de produção
igualando-se o custo marginal ao preço exógeno do bem final. A

417
observância dessas duas regras permitiria atingir a condição de
equilíbrio competitivo em tempo menor e com menos desperdícios
de recursos do que nos mercados capitalistas de competição perfeita.
Além de consistente, o modelo de Lange parecia praticável. O
autor, na verdade, introduz elementos capitalistas no socialismo.
Do ponto de vista teórico, ele apenas substitui o leiloeiro walra-
siano pelo planejador. Lange não considera em seus modelos uma
efetiva agência de planejamento, mas somente uma agência de
fixação de preços. A concessão ao capitalismo foi uma forma de
viabilizar o modelo. Com o artigo de Lange, novo alento foi dado ao
desenvolvimento desse programa de pesquisa. Gradualmente
novos adeptos foram aperfeiçoando o modelo original. Entre os
trabalhos nessa linha, destacou-se posteriormente a contribuição
de Abba P. Lerner, cuja obra A economia do controle, de 1944,
forneceu melhor elaboração e formalização para os modelos de
socialismo de mercado. Na época, teve igualmente grande reputa-
ção o trabalho de Abram Bergson intitulado Economia socialista, de
1948, também sobre o cálculo em economias planejadas.
A visão compartilhada de que uma economia socialista poderia
ser racionalmente viável fortaleceu-se também sob a influência dos
acontecimentos políticos em meados dos anos 1940. A vitória
soviética imposta à Alemanha nazista, a anexação da Europa Orien-
tal na esfera das economias planejadas e o notável sucesso econô-
mico obtido na reconstrução daquelas economias persuadiram a
muitos de que o socialismo poderia ser mais eficiente e racional que
o capitalismo.
O bom desempenho nas taxas de crescimento dos países de
economia centralmente planejada, nos anos do pós-guerra, contri-
buiu para aumentar a confiança nos modelos socialistas de merca-
do que se desenvolveram de modo continuado nas décadas seguin-
tes. Novos modelos de equilíbrio geral para economias socialistas
foram criados por Gustav Cassel, H. Zassenhaus, A. Bilimovich e W.
Krelle, e aplicados na Rússia soviética nos anos 1960 por Leonid V.
Kantorovich, entre outros.
Ao mesmo tempo em que a economia do planejamento ia
desenvolvendo-se no plano teórico, novas técnicas analíticas foram
sendo criadas. Tais técnicas foram plenamente incorporadas por
toda a ortodoxia econômica teórica: desde a matriz insumo-produ-
to até os modernos modelos de equilíbrio geral computável. Contu-
do, sofisticadas técnicas computadorizadas de planejamento,
elaboradas para a solução dos modelos de equilíbrio geral, mostra-
ram-se inviáveis na prática. Eminentes planejadores das economias
418
socialistas como J. G. Zielinski e M. Augustinovics tão cedo se deram
conta desse fato. Inteiramente cépticos quanto à aplicação dos mo-
delos de equilíbrio geral, os planejadores preferiam métodos
administrativos tradicionais, não formalizados por uma teoria
científica, aos modelos matemáticos de planejamento.
As dificuldades de implementação de um modelo teórico que
se tornava cada vez mais complexo e a ruína econômica dos países
socialistas enfraqueceram o apelo dessa linha de pesquisa. Não se
pode dizer conclusivamente que, do ponto de vista prático, tenha
fracassado o modelo originalmente idealizado por Barone. Interes-
sa-nos constatar que a teoria do planejamento esteve, no século XX,
associada ao desenvolvimento do programa do equilíbrio geral,
ajudando-o a consolidar-se como linha teórica hegemônica na
economia, ao mesmo tempo em que ocorrera o expurgo do subje-
tivismo na economia marginalista.
Os críticos à possibilidade de cálculo racional no socialismo edi-
ficaram importante conjunto de trabalhos em economia, realçando
elementos como informação e conhecimento que vieram a ser úteis
e esclarecedores na evolução do pensamento econômico. Economis-
tas austríacos, como Ludwig von sel e F. A. Hayek, teceram impor-
tantes considerações mostrando os limites do cálculo econômico
socialista no que ficou conhecido como “debate do cálculo socialista”,
um dos mais frutíferos na história do pensamento econômico.

TRADIÇÃO DE EQUILÍBRIO GERAL APÓS WALRAS


Léon Walras foi resgatado da quase completa ignorância ape-
nas na década de 1950, porém, bem antes disso a tradição do
equilíbrio geral se havia firmado entre os economistas. Em 1930, o
estado do conhecimento nessa tradição girava em torno da contri-
buição do eminente economista sueco Gustav Cassel. O livro de
Cassel, A teoria da economia social, foi o primeiro trabalho em
equilíbrio geral a ganhar notoriedade acadêmica. Como em Cour-
not, ele não utiliza a noção de utilidade marginal, e a demanda é um
conceito primitivo. As relações entre fatores de produção (inputs)
e produto final (outputs) são equacionadas, embora as possibi-
lidades de substituição entre os primeiros sejam tratadas apenas
verbalmente. Cassel apresenta um sistema teórico que sugere uma
abordagem na questão da existência do equilíbrio. Seu modelo
pode ser formalizado da seguinte maneira:
Sejam as variáveis:

419
r fatores de produção;
R1 , ... ,Rr quantidades de fatores (em dado período);
n bens, com coeficientes técnicos aij representando a quanti-
dade j do insumo necessário à produção do bem i;
q1 , ... ,qr preços de fatores;
p1 , ... ,pn preços de produtos.
No equilíbrio, os preços dos produtos igualam-se ao custo dos
fatores empregados:
a11 q1 + a12 q2 + ... + a1r qr = p1
a21 q1 + a22 q2 + ... + a2r qr = p2
...
an1 q1 + an2 q2 + ... + anr qr = pn
Com base nos preços conhecidos, pode-se determinar as de-
mandas:
D1 = F1(p1, ..., pn )
D2 = F2(p1, ..., pn )
...
Dn = Fn(p1, ..., pn )
Cassel supõe que as funções Fi sejam homogêneas de grau zero
em preços e renda. Na hipótese de equilíbrio de mercado, oferta S
e demanda D igualam-se em cada bem: D1 = S1 , D2 = S2 , ..., Dn = Sn.
A demanda dos fatores de produção corresponde ao uso deles na
produção dos bens ofertados, em equilíbrio com as respectivas
demandas finais, de modo que:
dem1 = a11 S1 + a21 S2 + ... + an1 Sn
dem2 = a12 S1 + a22 S2 + ... + an2 Sn
...
demr = a1r S1 + a2r S2 + ... + anr Sn
No qual demi representa a demanda pelo fator i. O equilíbrio
nos mercados de fatores impõe que Ri = demi em cada i.
No sistema de Cassel, a condição de equilíbrio é logicamente
alcançada da seguinte maneira: dado um conjunto de preços de

420
fatores, determinam-se os preços dos produtos; tais preços fornecem
a demanda, e a demanda determina a oferta pela condição de equilí-
brio. A demanda total pelos fatores é a soma das suas demandas em
cada setor e, finalmente, temos a condição de equilíbrio no mercado
de fatores em que se obtém a oferta dos fatores. Cassel define formal-
mente bens escassos como aqueles que utilizam fatores com preços
positivos qj > 0 (ao menos um i ); considerando-se os coeficientes
técnicos aij > 0, tem-se preços positivos para bens escassos: pi > 0.
A solução de equilíbrio geral, no modelo de Cassel, resulta da
relação causal entre as equações. Como em Walras, nesse sistema
de equações o número de equações iguala-se à quantidade de
incógnitas. Como Walras, Cassel não afirma que a solução exista por
causa dessa igualdade. Ele acredita que contar as equações (3n +
2r ) não prova a existência de preços relativos de equilíbrio, o que
é correto, e deixa a seus seguidores a tarefa de demonstrar formal-
mente a possibilidade de solução do equilíbrio geral.
O modelo de Cassel é estendido por ele na aplicação para o caso
de uma sociedade que progride à taxa constante. Nesse caso, a
oferta dos fatores Ri cresce à taxa c. A taxa de progresso c depende
do volume de poupança na economia. Os elementos condicionantes
da poupança são analisados por Cassel, dentre eles as taxas de juros
e o crescimento real do estoque de capital vis-à-vis a demanda de
capital no setor de produção.
O livro de Cassel tornou-se o texto padrão no ensino de equilí-
brio geral na década de 1930. No entanto, havia a clara percepção
de que o tratamento oferecido por ele ainda era elementar e essa
temática demandaria uso mais desinibido de técnicas de análise
matemática. Nos anos 1920 e 1930, o assunto torna-se atrativo
para os bons matemáticos radicados em Viena. Na evolução da
teoria do equilíbrio geral, três expoentes aparecem de forma des-
tacada: Karl Menger, filho de Carl Menger, Abraham Wald e Karl
Schlesinger.
Nesses anos, Viena fervilhava em intensa atividade intelectual.
No desenvolvimento da matemática apareceram os conceituados
trabalhos de Karl Menger, Frank Hahn e Kurt Gödel. Viena também
se destaca pelos debates em filosofia, impulsionados pela criação
do chamado “Círculo de Viena” que congregava eminentes filósofos,
tais como Ernst Mach e Moritz Schlick (fundadores do movimento),
além de Otto Neurath, Rudolf Carnap e Friedrich Waismann. Alfred
Tarski, Hans Reichenbach, e Carl Hempel mantinham relações es-
peciais com o “Círculo”. Esporadicamente como visitantes, os filó-

421
sofos Alfred Jules Ayer e Willard van Orman Quine frequentavam-
no.
A crença geral de que a ciência é central para a filosofia e de
que a matemática ocupa o primeiro lugar na filosofia influencia Karl
Menger e o atrai aos pesados problemas matemáticos suscitados
pela tradição de equilíbrio geral em economia. K. Menger foi reno-
mado matemático que se valeu do boom de trabalhos matemáticos
entre meados dos anos 1920 e meados da década de 1930. Menger
pôde contar com a ajuda e a contribuição de outros eminentes
matemáticos, como Stefan Banach e J. von Neumann, também atraí-
dos pela atmosfera de Viena. Também foi importante o contato com
Abraham Wald, o judeu autodidata que conviveu com ele por um
breve período. Wald foi importante na tradição de equilíbrio geral
por ter, pela primeira vez na história, oferecido uma prova matemá-
tica rigorosa da existência de solução única ao equilíbrio geral.
Wald não participara dos colóquios matemáticos de Viena e perdeu
contato com Menger. Enquanto lutava em guerra na Romênia, Wald
enviou-lhe um manuscrito em que se encontrava a solução do pro-
blema.
Outro autor que, ao lado de Wald, contribuiu para modificar as
equações do modelo de Cassel foi Karl Schlesinger (1889-1938),
seguidor imediato de Walras que desenvolveu a teoria da utilidade
indireta da moeda. Seguindo o mesmo rumo de Cassel, Schlesinger
também não ocupou posto acadêmico. Em seu artigo “Sobre as
equações de produção da teoria econômica do valor”, de 1933, ele
usa a linguagem matemática para expressar o problema do equilí-
brio geral numa economia. As variáveis de seu modelo são:
ri unidades disponíveis do input Ri ;
m inputs e n outputs Sj (sj é a quantidade produzida de Sj );
Preços dos inputs i e preços dos outputs j .
Schlesinger começa por determinar a oferta de fatores com
base na demanda total requerida na produção de n bens, tal como
expressa nos coeficientes técnicos aij :
r1 = a11 s1 + a12 s2 + ... + a1n sn
r2 = a21 s1 + a22 s2 + ... + a2n sn
...
rm = am1 s1 + am2 s2 + ... + amn sn

422
Os preços dos bens finais j são obtidos com base nos preços
dos inputs i :
1 = a11 1 + a21 2 + ... + am1 m
2 = a12 1 + a22 2 + ... + am2 m
...
n = a1n 1 + a2n 2 + ... + amn m
Schlesinger trabalha com funções de demanda marshalliana,
nas quais os preços de demanda dos bens finais são determinados
com base nas quantidades de todos os bens finais produzidos:
1 = f1(s1 , s2 , ... , sn )
2 = f2(s1 , s2 , ... , sn )
...
n = fn(s1 , s2 , ... , sn )
Ao mesmo tempo em que satisfazem o sistema de equações
anterior, ’s são tais que os preços de demanda se igualam aos
custos (conforme o segundo sistema acima). Schlesinger reconhe-
cia que as equações apresentadas não possuem necessariamente
solução. Mesmo que exista uma solução, não é garantido que i , j
e sj sejam positivos, ou seja, nem toda solução, se existir, tem signi-
ficado econômico. Enquanto Walras e Cassel incorporam em seus
modelos quantidades de inputs Ri na hipótese de que eles sejam
escassos, para Schlesinger não se deve considerar a escassez como
algo exógeno, porque ela depende da curva de demanda, das
possibilidades técnicas etc. Assim, ele separa inputs escassos de
inputs livres. No primeiro grupo, escreve:
ri = ai1 s1 + ai2 s2 + ... + ain sn e i > 0
Para inputs livres:
ri  ai1 s1 + ai2 s2 + ... + ain sn e i = 0
Assim, as primeiras m equações de oferta de fatores são subs-
tituídas por ri = ai1s1 + ai2s2 + ... + ainsn + ui , na qual ui  0 e ui > 0
implica i = 0.
As 3m + 2n equações do sistema de Cassel são substituídas por
m + 2n equações e m condições laterais com 2m + 2n incógnitas
ui , j , sj e ri (i = 1, ... , m e j = 1, ... , n). O equilíbrio, no sistema de

423
Schlesinger, é caracterizado por equações e inequações. Ele proble-
matiza a existência do equilíbrio não apenas mostrando, como em
Walras e Cassel, que contar equações e incógnitas não resolve, mas
também apontando para a necessidade de condições complemen-
tares sobre a folga (slackness ) ui .
Wald desenvolve um teorema da existência do equilíbrio geral
com base no trabalho de Schlesinger. O grande achado de Wald foi
a prova da solução única ao equilíbrio geral, desde que se garanta
que as funções que conectam os preços dos produtos às quanti-
dades produzidas satisfaçam a certas condições implicadas pela
utilidade marginal. Ele impôs condições de não-negatividade e
outras restrições à função de demanda fi de Schlesinger. Wald
desenvolve suas ideias em quatro artigos. No primeiro, “Sobre a
solução única de não-negatividade nas novas equações de produ-
ção”, de 1934, elabora um teorema, provando a solução única do
sistema de equações de equilíbrio geral. Formalmente, escreve:
ri = j aij sj + ui (i = 1, ..., m)
j = i aij i , [θj = fj (sj)] ( j = 1, ..., n)
Nas quais os ψi e aij são quantidades dadas, os fj são funções
conhecidas e os ui , ri , sj e θj são valores desconhecidos. Tal sistema
possui conjunto solução de valor único nos valores ui , sj e j , quando
as seguintes condições se mantêm:
1. ri  0 (i = 1,..., m).
2. aij  0 (i = 1,..., m; j = i,..., n).
3. Para cada j (j = 1, ..., n), existe ao menos um i (i = 1, ..., m)
para o qual aij  0.
4. Em cada um dos valores j = 1, ..., n, a função fj (sj ) é definida
para valores positivos de sj e o valor dela é não-negativo,
contínuo e estritamente monotônico decrescente, isto é, sj’ <
sj implica fj (sj’) > fj (sj ). Adicionalmente, lim sj → 0 fj(sj ) = . A
vigência dessa condição depende que se mantenham as
seguintes condições laterais:
a) sj  0 ( j = 1, ... , n),
b) i  0 (i = 1, ... , m),
c) j  0 ( j = 1, ... , n),
d) ui  0 (i = 1, ... , m),
424
e) Se ui > 0 então ψi = 0 (i = 1, ... , m).
As condições 1, 2, 4a, 4b e 4c impõem restrições de não-negati-
vidade, enquanto as restrições 4d e 4e incidem sobre as condições
complementares da folga (slackness).
A prova do teorema, tal como feita por Wald, é um tanto traba-
lhosa; ele usa o princípio da indução matemática. Wald lida com
questões matemáticas profundas sobre a existência e a unicidade
do equilíbrio. Nesse sentido, ele é um marco na evolução da tradi-
ção de equilíbrio geral.
O teorema de Wald da existência da solução única do equilíbrio
geral apresenta a limitação de considerar o preço de demanda do
bem j como função apenas da quantidade desse bem. Tais funções
traduzem curvas de demanda negativamente inclinadas. Em outro
artigo, “Sobre as equações de produção na teoria do valor econômi-
co”, de 1935, Wald, ciente da limitação, considera nova função para
os preços dos outputs como representando a demanda de mercado,
agora tendo-se o preço de demanda como dependendo de todas as
quantidades dos diferentes produtos, como na função de demanda
marshalliana de Schlesinger:
j = fj (s1 , s2 , ... , sn ) ( j = 1, 2,..., n )
No mesmo artigo, ele substitui a hipótese 4, relativa à monoto-
nicidade de fj(sj ), pela seguinte hipótese: sejam t1 , ... , tn n números
dentre os quais ao menos um tj < 0, e seja j j’. tj  0 ; então temos
que j j’. tj < 0 no qual j’ = fj (s1+ t1 , ... , sn+ tn ) ( j=1, 2, ..., n ).
Outro axioma, que substitui o anterior, pode ser interpretado
como o “axioma fraco da preferência revelada”, muitos anos antes
do famoso trabalho de P. Samuelson. Esse mesmo axioma seria
derivado do “teorema da diagonal dominante”, descoberto anos
depois na literatura. Tais antecipações de ideias mostram o poder
da intuição de Wald. Há um terceiro artigo de Wald que se encontra
perdido. Ele é mencionado por Wald e existe uma carta de John
Chipman para Peter Morgenstern na qual se encontram referências
a ele. K. Arrow acredita que, nesse artigo, Wald tenha utilizado o
importante “teorema do ponto fixo” na demonstração do equilíbrio
geral numa economia competitiva. As provas dos teoremas foram
perdidas com o desaparecimento do artigo.
O quarto artigo de Wald foi publicado na revista Econometrica,
em 1951, intitula-se “Sobre alguns sistemas de equações na econo-
mia matemática”. É um survey de trabalhos anteriores no qual ele
reconhece explicitamente não ter tratado da questão da formação
425
de capital e de juros, e ter restringido a tecnologia a um único
método. Expressa então curvas de indiferença por meio de équa-
ções diferenciais. Ele também trabalha com novas hipóteses a fim
de assegurar a existência do equilíbrio: nenhum indivíduo tem
estoques negativos, há estoques positivos para cada bem, todos os
indivíduos possuem uma dotação orçamentária positiva e vale a lei
da utilidade marginal decrescente. Wald exclui a relação de substi-
tutibilidade e complementaridade entre os bens.
Outro autor importante na evolução da tradição de equilíbrio
geral foi John von Neumann (1903-1957), que também tem contri-
buições na mecânica quântica. O interesse dele por economia inicia-
se com a publicação de A teoria dos jogos, em 1928, em que ele
apresenta a teoria de jogos de decisão com um número finito de
estratégias, bem como a primeira prova do teorema minimax de
escolha ótima em ambiente onde as ações de cada agente são condi-
cionadas pela expectativa do comportamento dos outros. Em 1937,
ele apresenta a versão acabada de sua contribuição em equilíbrio
geral no artigo “Sobre um sistema de equações econômicas e a gene-
ralização do teorema do ponto fixo de Brun”, considerado um dos
mais importantes artigos em teoria matemática de todos os tempos.
O teorema do ponto fixo é um importante teorema mate-mático
usado na prova da existência do equilíbrio geral. O trabalho de von
Neumann contém:
1. A primeira sentença explícita do modelo de produção com
análise da atividade, a chamada teoria do capital não agre-
gativa.
2. O primeiro uso de certas ferramentas: argumento da duali-
dade, técnica do ponto-fixo para a prova da existência e
argumento de convexidade.
Von Neumann assume retornos constantes de escala, que os
fatores de produção possam ser expandidos em quantidades ilimi-
tadas e que o consumo ocorra ao longo do processo de produção.
A sequência que começa no artigo de Schlesinger e continua
com Wald e Von Neumann não para por aí. Nos anos seguintes, Koop-
mans, Arrow, Debreu, Hicks, Hahn, McKenzie, Lange e Samuelson
contribuirão para o amadurecimento da teoria do equilíbrio geral.
Em 1930, o equilíbrio era visto mais como definição de um
balanço de forças do que algo que deveria ser provado. Hoje, sabe-
mos que o modelo de Cassel, em voga até então, é insuficiente por
não provar, com matemática, o equilíbrio geral e não excluir a possi-
bilidade de preços negativos. Schlesinger torna as hipóteses do
modelo mais coerentes ao aventar a possibilidade de bens livres,
426
contudo, ele ainda não havia demonstrado a existência do equilíbrio.
Wald prova o equilíbrio primeiramente na hipótese de ausência de
relação de complementaridade entre os bens, depois remove tal
restrição e faz hipóteses mais coerentes sobre a estrutura de merca-
do. Von Neumann segue tradição diferente e propõe um modelo de
crescimento desagregado, outra vertente de modelos de equilíbrio
geral.
Kenneth Joseph Arrow (1921–2017) e Gérard Debreu (1921-
2004) constroem a prova da existência de equilíbrio geral pelo uso
de modelos canônicos que utilizam a hipótese de convexidade no
conjunto de produção e consumo e o teorema do ponto fixo de
Brouwer e Kakutani. Arrow e Frank Hahn, no importante artigo
“Análise da competição geral”, fazem a ligação da prova da existência
do equilíbrio por Arrow e Debreu com os trabalhos de Wald e John
Nash (outro expoente em teoria dos jogos ao lado de Von Neumann).
Em 1958 e 1959, a questão da unicidade da solução do equilíbrio
geral é tratada por Arrow, Hurwicz e Block, que demonstram que a
existência de solução única requer a “substitutibilidade bruta”. Hicks
expande o conjunto de interpretações permitidas até então; trabalha
conceitos mais explícitos de agente, escolha otimizadora, mercadoria
e equilíbrio. Introduz, no modelo, variáveis como tempo, bens de
capital e um tipo de moeda. Hicks integra a tradição de equilíbrio
geral com a teoria do capital de Wicksell e também incorpora, nessa
tradição, o trabalho de Keynes em teoria monetária no que ficou
conhecido como síntese neoclássica. Lange e Samuelson estenderam
a interpretação dos termos básicos. Hicks, em 1939, e Samuelson, em
1941 e 1942, discutem o problema da estabilidade do equilíbrio
geral. A hipótese walrasiana de tateamento é substituída por mode-
los menos estilizados. Outra alternativa teórica para explicar o
processo de equilíbrio dos mercados, diferente da ideia de tatea-
mento, foi a teoria do “recontrato” de Edgeworth, em que os contra-
tos de compra e venda são tentativas sujeitas a revisões que se
sucedem até alcançar-se o equilíbrio.
Sobre a proposição, já presente em Walras, de que não se pode
considerar transações fora do equilíbrio para efeito do modelo,
Samuelson, Uzawa e Hahn demonstram rigorosamente que não
haverá solução única se houver transações desse tipo.
Ao longo dessa sequência de trabalhos de diferentes autores, a
tradição de equilíbrio geral fora amadurecendo. Em sua evolução,
cada nova versão deixa um conceito não interpretado que viria a
ser interpretado pela versão sucessora. Por anos seguidos, teóricos
procuraram criar modelos em que termos como agente, preferên-

427
cia, otimização e equilíbrio tenham sentido bem definido. Arrow e
Debreu deram contribuições que levaram ao cume o esforço de
articulação.
No século XX, a tradição do equilíbrio geral, inicialmente
proposta por Walras, conhecera, de fato, grande desenvolvimento
teórico, solidamente apoiado no avanço das técnicas matemáticas.
Filósofos e certos economistas tentaram desacreditar a tradição,
dizendo que ela tem pouca base empírica e que não é realmente
uma teoria de equilíbrio geral, mas tão somente uma construção
estratégica a fim de se fazer análise econômica, uma investigação
puramente lógica.
O eminente metodólogo da economia, Mark Blaug, considera a
ausência de testes empíricos na teoria do equilíbrio geral grave
defeito, diz que ela não constrói uma ponte para cruzar o mundo
das teorias na direção do mundo dos fatos. Tais acusações, no
entanto, são injustas e perigosas, pois, oriundas de má compreen-
são da natureza da teoria em questão. Na verdade, a teoria do
equilíbrio geral leva a resultados empíricos importantes. Os exem-
plos de evidências empíricas são amplos. Com ela, pode-se avaliar,
por exemplo, demanda por eletricidade, fundos de seguridade
social, desregulamentação das drogas, demografia econômica etc.
Deve-se reconhecer, no entanto, que a possibilidade de refutar a
tradição com base em resultados empíricos falsificadores não é
viável a curto prazo. Os testes empíricos recaem mais em teorias
derivadas (teoria da demanda, do capital humano, da proteção
efetiva etc.) do que na estrutura central do modelo de equilíbrio
geral. Com efeito, nem de longe a teoria do equilíbrio geral é
atividade meramente matemática, de interpretação e de classifica-
ção de conceitos.
Há muito a comunidade acadêmica deu-se conta de que tentar
responder a um problema econômico qualquer, sem levar em
consideração o modelo de equilíbrio geral, só produz resultados
excessivamente abstratos e de pouco poder explanatório. Por isso,
é importante o conhecimento das estruturas dos mercados relacio-
nados de modo que se infiram a existência de equilíbrio, a conver-
gência global dos preços etc.

428
Questões

1. Quais as condições requeridas para o equilíbrio subjetivo e o


equilíbrio dos mercados no modelo de Walras?
2. O que significam equilíbrio estável e equilíbrio instável no
modelo de Walras?
3. Por que, na solução do problema da troca simples em Walras, há
a possibilidade de equilíbrios múltiplos?
4. Sejam duas mercadorias, A e B. Walras define duas ofertas, Oa e
Ob, e duas demandas Da e Db, sob o suposto de que as quantidades
ofertadas resultam das quantidades demandadas no fenômeno
da troca in natura de duas mercadorias uma pela outra. Como 
é uma constante positiva e pa e pb os preços relativos de A e B, tal
que pa. pb = 1, deduza as seguintes relações:
a. Oa = pb. Db
b. Ob =pa. Da
c. Se Da = . Oa, prove que sempre que ocorrer um excesso de
oferta num dos mercados existirá, ao mesmo tempo, excesso
de demanda no outro mercado e vice-versa.
d. Se Da = . Oa, quando  = 1, ambos os mercados de A e B
estarão em equilíbrio.
5. Descreva o funcionamento circular da economia descrita por
Walras.
6. Como Walras define os conceitos de “capital fixo” e “capital
circulante”? Quais são os fatores de produção no modelo de
Walras e por que não se pode dizer que os fatores são direta-
mente empregados na produção?
7. Quais são as condições requeridas para a maximização indivi-
dual no equilíbrio geral subjetivo? Usando a função de Lagrange,
mostre que para cada bem e serviço produtivo, as raretés são
proporcionais aos respectivos preços.
8. Mostre que, no sistema walrasiano de equações que descrevem
o equilíbrio subjetivo, o número de incógnitas é igual ao número
de equações.
9. Descreva as equações requeridas no modelo walrasiano de
equilíbrio geral dos mercados e mostre que o número de equa-
ções corresponde ao número de incógnitas.
429
10. Por que usamos a expressão “empresário Sísifo” para descre-
ver a função dos empresários no modelo de Walras?
11. Na análise walrasiana da troca simples, como ele deduz o
formato da curva de oferta, do bem dado em troca, com base
na curva de demanda do bem desejado?
12. Descreva a atuação do leiloeiro walrasiano. É possível descre-
ver o processo de convergência ao equilíbrio sem a hipótese do
leiloeiro?
13. Comente a passagem em que se escreve: “Em Walras, os preços
não são nada além de uma medida das relações de equivalência
técnica e psicológica entre os vários bens presentes no sistema
de produção e troca.”
14. No que consiste a hipótese de “instrumentos neutros” do eco-
nomista E. Barone?
15. Descreva o procedimento de “tentativa e erro” que, segundo O.
Lange, possibilitaria ao planejador central obter os preços de
equilíbrio.
16. Explique como a condição de equilíbrio é logicamente alcança-
da no modelo de G. Cassel.
17. Por que para K. Schlesinger algumas das soluções do modelo
de equilíbrio geral podem não ter significado econômico?
18. Qual o artifício algébrico usado por Schlesinger para incorpo-
rar a distinção entre fatores escassos e livres nas equações de
equilíbrio geral?
19. Comente a contribuição de Wald para o desenvolvimento da
microeconomia. Por que se diz que ele antecipou a teoria da
preferência revelada de P. Samuelson?
20. Por que se argumenta que transações fora do equilíbrio impos-
sibilitariam a convergência ao equilíbrio geral?
21. Comente: “A teoria do equilíbrio geral não tem conteúdo empí-
rico e, portanto, ela deve ser descartada.”

430
Leitura Adicional

Leitura Primária

BARONE, E. The ministry of production in the collectivist state. In:


HAYEK, F. A. (Ed.). Collectivist economic planning. New York:
Augustus M. Kelley, [s.d.].

LANGE, O. On the economic theory of socialism. The Review of


Economic Studies, v. 4, 1, 1936.

WALRAS, Léon. Compêndio dos elementos de economia política


pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

CASSEL, Gustav. Economia social e teórica. Madri: Aguilar, 1960.

Leitura Secundária

BLAUG, M. Metodologia da economia ou como os economistas expli-


cam. São Paulo: Edusp, 1993.

JAFFÉ, William. Léon Walras’s role in the ‘marginal revolution’ of the


1870’s. History of Political Economy, v. 4, 2, 1972.

_____. Essays on Walras. Editado por Donald A. Walker. Cambridge:


Cambridge University Press, 1983.

KEIZER, W. Recent reinterpretations of the socialist calculation


debate. Journal of Economic Studies, v. 16, 2, 1989.

MIROWSKI, Philip. More heat than light: economics as social physics;


physics as nature economics. Cambridge: Cambridge University
Press, 1989.

NAPOLEONI, Claudio. O pensamento econômico do século XX. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1979.

WEINTRAUB, E. Roy. General equilibrium analysis: studies in apprai-


sal. Cambridge University Press, 1985.

SCHNEIDER, Erich. Teoria econômica: capítulos selecionados da


história da teoria econômica. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1968.

431
432
11
Carl Menger, Schumpeter e
a Escola Austríaca

MENGER: VIDA, FILOSOFIA, CONCEITOS BÁSICOS,


VISÃO DA ECONOMIA
Carl Menger (1840-1921), o pai da escola austríaca, nasceu em
Nova Sandec, cidade que hoje pertence à Polônia. Tornou-se um dos
economistas mais influentes de todos os tempos. Suas ideias
afetaram sensivelmente o pensamento econômico do século XX,
principalmente pela influência exercida por discípulos diretos que
deram renome à escola austríaca de economia. No entanto, os
escritos de Menger permaneceram, na época, pouco lidos e mal
compreendidos. De fato, seu principal livro em teoria, Princípios de
economia política (“Grundsätze der Volkswirthschaftslehre” ), de
1871, foi reimpresso somente após 52 anos de seu lançamento e
demorou 79 anos para ser traduzido ao inglês, sob o nome de
“Principles of economics: first general part” (a Figura 11.1 mostra
a capa da edição original da obra). Outro livro igualmente impor-
tante, mais sobre método do que teoria, Investigações sobre o
método das ciências sociais e da economia política em particular
(“Untersuchungen über die Methode der Social-wissenschaften
und der politischen Oekonomie insbesondere” ), de 1883, também
demorou a ser traduzido e apenas em 1963 ganhou versão em
inglês com o título “Problems of Economic and Sociology”. Uma
nova edição em inglês, de 1985, aproxima o título do nome original
em alemão: “Investigations Into the Method of the Social Sciences
With Special Reference to Economics” (a Figura 11.2 mostra as
capas das duas traduções ao inglês).

433
Figura 11.1 Capa original do famoso livro de teoria econômica de
Carl Menger.

Figura 11.2 Capas de duas traduções ao inglês da obra


metodológica de Carl Menger.

Menger resume a principal tese da obra metodológica:


“O direito, a linguagem, o Estado, a moeda, o mercado, todas
essas estruturas sociais, em suas várias formas empíricas e em
suas mudanças constantes, são, em grande extensão, o resulta-
do não intencional do desenvolvimento social [...] Nós somos
434
aqui confrontados com o aparecimento de instituições sociais
que, em grande medida, servem o bem-estar da sociedade. De
fato, elas são muito frequentemente de importância vital para
ela e ainda não são o resultado da atividade social comunal. É
aqui que encontramos um problema significativo, talvez o mais
significativo, das ciências sociais: como é possível que institui-
ções que servem o bem-estar comum e são extremamente im-
portantes para seu avanço possam surgir sem uma vontade
comum visando sua criação?” (Carl Menger, Investigações
sobre o método das ciências sociais...)
Vimos no Capítulo 8 que, embora o nome de Menger esteja
associado à Revolução Marginalista, ao lado de Jevons e Walras,
historiadores das ideias reconhecem, hoje, a necessidade de sepa-
rar a contribuição de cada um deles; procedimento conhecido na
literatura como “desomogeneização”. Também há diferenças entre
as teses de Menger e de seus seguidores da escola austríaca.
O pensamento de Menger afigura-se bastante original, e é
difícil identificar influências que se exerceram sobre ele; todavia,
sua vida e a reconstituição do ambiente intelectual de Viena ajudam
a entendê-lo. Menger decidiu, de início, seguir a mesma carreira do
pai, um advogado atuante que lhe proporcionou acesso à literatura
sobre questões econômicas e sociais presente na biblioteca particu-
lar da família. Herdou do pai o hábito de colecionar livros e montou
uma biblioteca com mais de 25 mil exemplares. Tal acervo encon-
tra-se atualmente na Universidade de Hitotsubashi, no Japão. Men-
ger estudou direito na Universidade de Viena, em 1859 e 1860, e
em Praga, de 1860 a 1863. Doutorou-se em Cracóvia, em 1867,
dedicando-se, em seguida, ao jornalismo, em que pôde escrever
sobre economia, dentre outros assuntos. Depois tornou-se servidor
civil. Na condição de funcionário público, atuava como jornalista
econômico, cabendo-lhe, entre outras coisas, a tarefa de escrever, a
um órgão oficial, resenhas ou relatórios sobre a situação dos mer-
cados. A tarefa despertou nele interesse por uma teoria dos preços
que estivesse próxima da experiência quotidiana dos homens práti-
cos. Friedrich A. von Hayek (1889-1992), da mesma escola, escreve
sobre Menger dizendo que ele,
“[...] ao estudar os relatórios de mercado, se deu conta do
marcante contraste existente entre as teorias tradicionais
sobre os preços e os fatos que pessoas de experiência prática
consideravam decisivos para a determinação dos preços.” (F.
A. Hayek, Carl Menger, International encyclopedia of the
social sciences)

435
Menger preocupou-se com o problema da determinação dos
preços a partir de 1867, tendo trabalhado em sua solução até a
publicação de sua única obra em teoria econômica, Princípios de
economia política. Na ocasião, era ainda jovem, tendo 31 anos.
Trata-se da primeira parte de um tratado que se propunha amplo.
A primeira edição, de 1871, seria apenas uma parte introdutória de
uma obra mais extensa. A edição lida com as condições gerais que
originam a atividade econômica, o valor, as trocas, os preços e a
moeda. O plano completo da obra fora idealizado em quatro volu-
mes: a segunda parte trataria de juro, salário, renda, receita, crédito
e papel-moeda; outra parte seria sobre economia aplicada, versan-
do sobre temas como teoria da produção e do comércio. A parte
final conteria uma crítica à ordem econômica vigente e sugestões
para uma reforma econômica. Menger nunca elaborou as três
partes seguintes do tratado. Uma segunda edição dos “Princípios”
foi lançada postumamente por seu filho, o matemático Karl, em
1923.
Hayek conta que Menger “escrevera os Princípios em um esta-
do de excitação doentia”, e não poupa elogios a esse trabalho:
“Poucos são os livros que passaram por uma preparação
mais cuidadosa do que esse, e raramente qualquer esboço de
ideia foi planejado e seguido mais conscienciosamente em
todas as suas ramificações e detalhes.” (ibidem)
Menger foi levado a desenvolver sua própria teoria baseado na
crítica à obra de Karl Heinrich Rau (1792-1870). Estudou cuidado-
samente o livro de Rau antes de escrever os “Princípios”. Aquele
livro contém diagramas usando curvas; contudo, a teoria de Rau e
as outras que prevaleceram nesse período ofereciam duas explica-
ções diferentes para a determinação dos preços, dependendo de o
bem ser reproduzível ou não. No primeiro caso, ainda mantinha a
explicação clássica do valor com base no custo de produção, sem
explicar como os preços dos fatores seriam determinados.
Após escrever seu principal livro em economia, Menger torna-
se professor de economia política na Universidade de Viena, onde
permaneceria de 1873 a 1903. Em 1878, o imperador austríaco
Franz Josef nomeou-o para a cadeira de economia política em
Viena, sob o título de Hofrat (algo como Conselheiro do Tribunal).
Cabe aqui uma breve consideração do ambiente intelectual de
Viena nessa época. A cidade era importante centro de ideias. A física
moderna, a literatura, a psicanálise e tantos outros campos do
conhecimento científico e artístico devem seu desenvolvimento, no
século XX, em parte às discussões que fervilhavam, naquela época,
436
nos círculos intelectuais vienenses. Verifica-se, entretanto, pouco
interesse em teoria econômica. A economia científica era ensinada
por professores alemães que tinham formação em sociologia. Em
consequência, não se poderia esperar de Viena grande contribuição
à teoria econômica. Até 1846, o ensino de economia nas univer-
sidades austríacas usava o livro do cameralismo do século XVIII, de
Joseph von Sonnenfels, ou então o trabalho mais recente de J.
Kudler, o qual continha alguma discussão da relação do valor com
utilidade e o significado dos diferentes graus de necessidades aten-
didos por várias mercadorias.
Não é fácil identificar quem teria fornecido a Menger a suges-
tão decisiva para o desenvolvimento de sua teoria. Em relação aos
escritores ingleses, a literatura alemã, de fato, devotava mais aten-
ção à relação entre valor e utilidade. Nenhum dos trabalhos
alemães, porém, chegou próximo à solução do problema que ele
propôs. O austríaco não conhecia o trabalho de Gossen e é impro-
vável que o ambiente local em que ele trabalhava tenha fornecido
muito estímulo à percepção dos problemas que estava interessado.
Trabalhou em completo isolamento, não tendo quando jovem opor-
tunidade de discussão.
A formação de Menger como economista está intimamente
ligada ao pensamento alemão. A escola histórica alemã influenciou
os “Princípios”, muito embora ele, anos depois, tenha contraposto
suas ideias metodológicas às dessa escola, criticando principal-
mente a crença de Gustav Schmoller de que seria possível iden-
tificar leis históricas.
Com relação ao seu livro de metodologia, o “Untersuchungen”
causou celeuma durante a qual membros da Escola Histórica, em
especial Schmoller, começaram a chamar ironicamente Menger e
seus alunos de "Escola Austríaca", para enfatizar o afastamento
destes do pensamento econômico dominante na Alemanha. Em
1884, Menger responde com o panfleto Os Erros do Historicismo
na Economia Alemã e lança-se à infame controvérsia de métodos (a
batalha dos métodos ou Methodenstreit” ).
Durante esse período, Menger começa a atrair discípulos com
ideias semelhantes que continuariam a deixar sua própria marca
no campo da economia, principalmente Eugen von Böhm-Bawerk e
Friedrich von Wieser, a chamada “segunda geração da escola aus-
tríaca”.
As ideias de Menger foram consolidadas dentro do espírito do
pensamento romântico-historicista típico do século XIX, o que
explica certas particularidades de sua terminologia, obscura para
437
os padrões da microeconomia do século XX. Dessas influências,
Menger extrai a visão de um mundo de ignorância do agente e de
informação incompleta, dando papel de relevo ao conceito de
expectativa (mais do que em Jevons e Walras), bem como toma
emprestado os blocos básicos para a construção de sua teoria
econômica. Herda o conceito alemão de desejos e necessidades
humanas (“Bedürfnis” 41), que ocupa um papel central em sua
teoria, representando o ponto inicial da atividade econômica
voltada à satisfação deles.
Se o atendimento de desejos e necessidades é o propósito da
atividade econômica, um elemento externo se interpõe entre
necessidades, desejos e sua satisfação: o bem econômico. Menger
procura estabelecer a origem e a natureza dos bens e de outras
noções econômicas como riqueza, escassez, moeda e valor.
No capítulo 1 dos “Princípios”, Menger examina a natureza dos
bens. Busca identificar um princípio de causalidade subjacente a
todas as coisas. Para ele, uma lei de causa e efeito comanda todos
os fenômenos econômicos e rege também nossa personalidade e a
passagem da mente de um estado para outro. No indivíduo, as
causas operam na transformação de um estado de necessidade
para outro de satisfação. Os bens são:
“Coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a
satisfação de nossas necessidades humanas.” (Carl Menger,
Princípios de economia política)
Na medida em que reconhecemos esse nexo causal,
“[...] temos a possibilidade e a capacidade de utilizar as
referidas coisas para satisfazer efetivamente às nossas neces-
sidades.” (ibidem)
As coisas adquirem a qualidade de bem não apenas em função
de uma propriedade inerente a elas, mas levando-se em conta
também o conhecimento e o imaginário humanos.
No capítulo 2 de seu livro, Menger define bens econômicos.
Antes ele discute o fenômeno da demanda. A demanda de uma
pessoa é
“[...] a quantidade de bens necessária para satisfazer às suas
necessidades no período de tempo em que se estende a pre-
vidência.” (ibidem)

41 Precisar, necessitar etc.


438
Bens econômicos são bens cuja demanda é maior que a
quantidade disponível. Tem-se, portanto, como resultado inevitá-
vel, que parte das necessidades existentes terá de permanecer
desatendida. Quando o bem é econômico, as pessoas procuram
adquirir qualquer quantidade possível deles. Cuidam a fim de que
os bens não percam a qualidade de coisas úteis; escolhem dentre as
necessidades as mais importantes que serão atendidas, e utilizam
os bens de maneira mais adequada no atendimento delas.
Dois elementos da visão de Menger destacam-se nessa defini-
ção de bem: o papel do conhecimento e a ênfase na explicação
causal. Se a preocupação com o conhecimento humano tem uma
raiz alemã, onde buscar a importância que ele atribui à causali-
dade? Sem dúvida em Aristóteles.
O pensador grego é citado muitas vezes em notas de rodapé
nos “Princípios”, contudo há outros indícios da influência peripa-
tética em Menger, que podem ser encontrados no clima intelectual
da Áustria no período. Aristóteles era muito ensinado na escola
secundária do país. Além de Aristóteles, eram influentes na Áustria:
Tomás de Aquino, Leibniz, Bolzano, os católicos heréticos, Jansen e
Miguel de Molinos. Também eram muito consideradas as ideias do
imperador Josef II, do estadista Klemens Wenzel von Metternich e
dos poetas Franz Grillparzer, Ludwig Anzengruber e Adalbert
Stifter. A fim de se contrapor às principais correntes do pensa-
mento científico e filosófico do século XIX, Menger empregou ideias
de Aristóteles, mais do que qualquer uma das outras fontes. Com o
aristotelismo, combate a doutrina positivista da ciência (Francis
Bacon, A. Comte e J. S. Mill). Também se opõe a à teoria do conheci-
mento da escola histórica alemã e certos aspectos da economia
política clássica.
O historicismo alemão concebe a sociedade como totalidade
orgânica e natural. Considera o corpo social um dado e procura
examiná-lo empiricamente pelo método indutivo e comparativo.
Por esse caminho, pretende chegar às leis da sociedade e da
história. Já Menger, constrói uma ontologia antagônica ao histo-
ricismo. Sua ênfase recai no papel dos indivíduos na formação
social. Vê a sociedade como produto involuntário das escolhas
individuais. Suas instituições são consequências não intencionais
da ação humana. A história da humanidade aparece como inces-
sante evolução, embora ao longo dela permaneça a mesma natu-
ralidade ou essência do homem e sempre opere o mesmo princípio
de causalidade. O conceito de sociedade de Menger é o de Aristóte-
les, agora aplicado a todo o devir histórico. Como o estagirita,

439
Menger pensa a economia como um processo orgânico vivo, não
mecânico, mas biológico, o que entretanto não implica a igualdade
metodológica entre ciência econômica e biologia. Aliás, uma das
críticas centrais que desfere contra certa vertente do historicismo
alemão é a insistência em tratar a economia pelos métodos empíri-
cos da biologia.
Menger segue também as ideias da escola histórica do direito
de F. Carl von Savigny, Jacob Grimm, Gustav Hugo e Barthold G.
Niebuhr. Tais autores apoiam-se em Edmund Burke e, como ele,
aderem à jurisprudência inglesa e reagem contra o chamado
“pragmatismo” no campo do direito. O pragmatismo acredita ser
possível uma reconstrução do direito pela via da compreensão
puramente abstrata. Burke, pelo contrário, busca entender o signi-
ficado das estruturas sociais orgânicas e da origem não intencional
delas. Como ele, a escola histórica do direito interpreta as leis
sociais como resultado não intencional da grande sabedoria, fruto
do desenvolvimento histórico das nações. Menger segue-os ao
pretender uma abordagem teórica das questões sobre a origem das
instituições à luz da história, sem defender, no entanto, a aplicação
do método da ciência econômica na interpretação do nascimento e
desenvolvimento de toda a sociedade. Opõe-se, dessa forma, ao
racionalismo abstrato, enfatizando a sabedoria e a flexibilidade das
instituições moldadas pelo curso da história.
Então Menger buscou reconhecimento lutando em duas fren-
tes: seu aristotelismo foi usado contra a escola história alemã e,
depois, contra os novos métodos matemáticos apresentados por
Walras. Menger e a maioria dos economistas austríacos da época
eram avessos ao tratamento matemático dos problemas econômi-
cos. Não por falta de treino matemático, pois, nos ginásios da velha
Áustria, os estudantes tinham um bom treinamento nessa discipli-
na, e sim pela convicção dos austríacos de que equações e curvas
não teriam lugar na teoria econômica. Menger repudiou o grande
trabalho matemático sobre teoria de preços do economista, tam-
bém austríaco, Rudolf Auspitz. Em carta a Léon Walras, de fevereiro
de 1884, escreve que o método matemático é errado. Outro austría-
co, Böhm-Bawerk, duvida que os eleitores devam seguir a explica-
ção algébrica e geométrica num livro de teoria econômica. Comen-
tando os escritos de Wicksell, ele diz que “começar com álgebra faz
o leitor desinteressar-se pelo livro”.
A convicção de Menger era de que a economia científica não
deveria investigar as quantidades presentes no fenômeno econô-
mico, mas as essências de conceitos como valor, renda e lucro.

440
Enquanto Jevons e Walras expressam as leis da troca em equações
matemáticas, Menger não o faz na crença de que elas podem levar
tão somente a sentenças arbitrárias e não às leis exatas do fenôme-
no. Walras usa a matemática para lidar com a relação entre
variáveis mensuráveis, preocupando-se com a dependência
funcional que se estabelece entre elas na configuração de
equilíbrio. Seu sistema de equações procura mostrar a interdepen-
dência dos fenômenos num quadro de determinação simultânea
das variáveis. O uso de funções algébricas era bastante estranho à
filosofia de Menger, que se valia do método genético-causal. No
prólogo dos “Princípios”, escreve:
“Na exposição que segue procuramos reduzir os complexos
fenômenos da economia humana aos elementos mais simples,
ainda acessíveis à observação segura, dar a cada um desses
elementos simples o peso que por natureza lhes cabe e, com
base nisso, investigar novamente como os fenômenos mais
complexos evoluem novamente a partir de seus elementos
mais simples.” (Carl Menger, Princípios de economia política)
Para Menger, a teoria econômica deve construir um sistema
como uma casa de tijolos. Os tijolos são os elementos simples da
vida econômica, tais como necessidades, satisfações e bens, que
existem independentemente da decisão humana e compelem os
homens forçando-os à troca de bens.
Modelos matemáticos funcionais não focalizam a essência eco-
nômica. Por essência, o austríaco entende a realidade subjacente ao
fenômeno estudado. Só o método genético-causal daria conta de
explicá-la. Trata-se da crença no princípio do realismo filosófico
que diz que qualquer conhecimento pressupõe um objeto que está
fora da mente e que pode ser tocado, copiado e refletido por ela.
Muitos dos filósofos austríacos eram realistas. O realismo filosófico
separa a escola de Viena do historicismo alemão e da escola de
Jevons e Walras. A influência da filosofia aristotélica na Áustria
arrefeceu-se no fim do século XIX, substituída pelo empirismo
lógico (hipótese de que a forma primária do conhecimento é a
simples consciência dos dados dos sentidos) de Ernst Mach e
seguidores. Menger acredita na existência de um padrão eterno na
estrutura e nos eventos do mundo socioeconômico. O modelo
teórico é uma fotografia da realidade subjacente às aparências da
vida diária.
Se em Aristóteles a mente do filósofo deve chegar ao âmago
das coisas, Menger, do mesmo modo, define uma essência na vida
econômica. Somente podemos entender o fenômeno econômico se
441
reconhecermos a razão de sua existência. Razão que repousa na
constatação de uma estrutura imutável na economia. O material de
construção da estrutura consiste apenas dos elementos que são
suficientes para o simples funcionamento da economia. Os fatores
elementares são necessidades humanas, recursos naturais e desejo
pela perfeita satisfação dessas necessidades. A natureza física, ao
lado da natureza humana, determina a estrutura do mundo
econômico de modo independente de peculiaridades históricas.
A tradicional dicotomia aristotélica entre forma e matéria é
aplicada à economia. A matéria contém o ser de uma coisa, o
material a ser modelado. Em oposição a ela está a forma, que é a
realização das potencialidades da matéria. A teoria lida com a
matéria, com os tipos exatos e as relações típicas, e identifica leis
exatas, que são sentenças sobre sequências invariáveis que não são
influenciadas pelo tempo e nem pelo espaço. Tais leis não repre-
sentam construções de nossa mente, mas são descrições das
configurações eternas da vida econômica. A história e a estatística
lidam com a forma aristotélica. Tratam de casos concretos, as
formas que realizam o potencial, enquanto as leis exatas e os tipos
exatos contêm apenas potencialidades; fornecem leis e conceitos
universalmente válidos.
As coisas que são bens possuem tal qualidade não por uma
propriedade interna, mas pela existência de uma relação entre a
coisa e o indivíduo. A efetividade dessa relação depende da
existência concreta de uma necessidade, de a coisa ter a proprie-
dade que a habilite à satisfação da necessidade, do reconhecimento
dessa propriedade e do fato de podermos dispor da coisa. As duas
primeiras condições definem o que são coisas úteis, enquanto todas
as quatro condições, em conjunto, determinam a qualidade de bem.
A ausência ou perda de qualquer uma das quatro condições acarre-
ta a perda da qualidade. Trata-se, portanto, de quatro condições
necessárias e conjuntamente suficientes para a existência do bem
que, como em Aristóteles, podem ser identificadas como as causas
material (existência concreta), eficiente (ter a propriedade), formal
(reconhecimento dela) e final (poder dispor da coisa).
Os desejos humanos não precisam ser racionais. Os desejos
irracionais até tornam-se mais importantes com o progresso da
civilização. A crença de que a coisa possui o poder de satisfação de
desejos pode até ser equivocada e ela ainda ser, de fato, um bem.
Não só os bens materiais, mas os serviços pertencem à categoria de
bens.

442
O aristotelismo presente na definição mengeriana de bem
também aparece no tratamento do tempo. Tempo e causalidade
estão inseparavelmente ligados. Os processos de mudanças são
sempre frutos de causalidades e só podem ser pensados como pro-
cessos no tempo. Menger escreve que
“[...] é, pois, certo de que nunca compreendemos plena-
mente o nexo causal existente entre os diversos fenômenos
desse processo – e o processo como tal –, enquanto não o si-
tuarmos no tempo.” (Carl Menger, Princípios de economia po-
lítica)
A causalidade ocorre no tempo e não se confunde com a
necessidade lógica atemporal. A essência da atividade econômica
tem sua natureza existencial ligada a essa noção de tempo. A
introdução do tempo como elemento essencial introduz incertezas
na base da teoria econômica. Incertezas do indivíduo quanto ao
curso de ação a ser tomado, o que leva a teoria a enfatizar a
importância da aquisição de informações por parte dele. A hipótese
de conhecimento perfeito ou de informação completa é inteiramen-
te incompatível com o modelo teórico de Menger.
No início dos “Princípios”, Menger identifica o “nexo causal
entre os bens”. Diz que a teoria deve
“[...] ordenar e concatenar as coisas segundo critérios
internos, conhecer o lugar que cada uma delas ocupa no enca-
deamento causal dos bens e pesquisar as leis que as coman-
dam sob esse aspecto.” (ibidem)
A presença de necessidades humanas leva à aquisição de bens
visando à obtenção do bem-estar.
Bens de primeira ordem são coisas que se pode colocar em
nexo direto e imediato com a satisfação de necessidades. Coisas que
servem para produzir bens de primeira ordem atendem às neces-
sidades humanas somente de modo indireto e são chamadas de
bens de segunda ordem. Indo além, podemos definir as ordens
superiores terceira, quarta etc. no encadeamento causal dos bens.
A definição dos nexos causais entre os bens, isto é, sua classificação
em bens de primeira, segunda, terceira e de ordens superiores, é
uma definição da relação entre indivíduos e coisas com respeito à
contribuição destas na satisfação de desejos e necessidades. As
ordens não são propriedades dos bens.
Escreve o austríaco que

443
“[...] todo processo de mudança ou transformação significa
um vir a ser, um surgir, um tornar-se, e isso só é possível
dentro do tempo.” (C. Menger, Princípios de economia política)
Ao longo do processo de conversão, há espaços de tempo em
cada um dos vários processamentos intermediários. Em cada etapa,
o tempo pode ser abreviado pelo progresso da técnica e da comu-
nicação, mas nunca se elimina o fator. O bem superior faz valer sua
qualidade de bem em relação a necessidades futuras. Quem dispõe
direta e imediatamente de certos bens tem certeza quanto a sua
quantidade e qualidade; quem dispõe de maneira indireta ou
mediata não pode contar com a mesma segurança ao determinar a
quantidade e a qualidade dos bens de ordem inferior que só poderá
dispor ao término do processo de produção. Eis um dos elementos
de incerteza de que fala Menger. A outra incerteza está ligada à
existência de fatores cujo nexo causal com nosso bem-estar
desconhecemos, ou dos quais conhecemos sua influência sobre o
produto final, mas cujo controle escapa-nos por uma razão ou
outra. Quanto maior o número de elementos que interferem no
processo causal maior a incerteza quanto às características do bem
final.
A dicotomia aristotélica entre essência e aparência também
serve para compreendermos a natureza do valor em Menger. O
valor é a essência e o preço, a aparência do fenômeno. O valor não
é algo inerente aos bens, mas
“[...] é simplesmente a importância que determinados bens
concretos – ou quantidades concretas de bens – adquirem para
nós, pelo fato de estarmos conscientes de que só podemos
atender às nossas necessidades na medida em que dispuser-
mos deles.” (ibidem)
O valor é, portanto, a importância que primeiro atribuímos à
satisfação de nossas necessidades e que transferimos aos bens.
Menger parte de uma concepção estática da natureza humana e
procura reconstruir os fatos econômicos pelas leis de causalidade. O
objeto da economia científica são as essências, a realidade subjacen-
te ao fenômeno. Ela lida com essências aristotélicas e tipos puramen-
te teóricos. Menger não investiga as leis intrínsecas das sensações
humanas, no estilo de Jevons, e não considera o indivíduo um átomo
imperscrutável, como em Walras. Seu ponto de partida é a naturali-
dade das necessidades. A ênfase recai no complexo de leis da nature-
za que formam a base da satisfação das necessidades humanas e sua
evolução com o tempo, à medida que o campo das atividades
humanas e das necessidades se expande. Não é a explicação do
444
fenômeno de preços com base no comportamento maximizador
individual movido por impulsos psicológicos, segundo determinadas
leis de sensações subjetivas. As leis da natureza, de que fala Menger,
são leis de causalidade entre necessidades, bens e satisfações, que
dizem respeito não às regularidades no movimento das sensações
humanas, mas às relações que se estabelecem entre uma estrutura
natural de necessidades e o encadeamento que ocorre, a partir daí,
entre elementos internos e externos à mente.
Trata-se de uma epistemologia que não procura impor uma
ordem racional na realidade humana, antes disso, visa descobrir
como a ação humana dirigida a um fim conhecido, influenciada pelo
conhecimento humano limitado, é bem-sucedida na produção de
uma ordem. Pergunta-se pela essência genética última do processo.
Menger identifica uma ordem na composição de fenômenos sociais
que são derivados de um complexo de ações individuais. Tal compo-
sição advém geneticamente, de acordo com certa regularidade na
sucessão de fenômenos baseada na naturalidade das necessidades. É
porque existe uma ordem social que se pode falar em leis exatas da
natureza. A afinidade maior de Menger é com o aristotelismo e não
com o direito-natural kantiano e a filosofia positivista. Tal filiação
permite-lhe abarcar a teoria do valor, dos bens e das necessidades
numa construção coerente.
Há elementos comuns nas teorias do valor de Menger, Jevons e
Walras. Todos ambicionam a universalidade da teoria, e em todos
esses sistemas poderíamos, de alguma forma, traduzir suas proposi-
ções na linguagem moderna de maximização condicionada da função
de utilidade, embora a técnica não se coadune muito bem com o
espírito da contribuição de Menger. Entretanto, a discussão do valor
é apenas o capítulo 3 dos “Princípios”. O livro de Menger expõe
outros elementos antes e depois do capítulo. O que vemos, ao longo
dessa obra, são hipóteses epistemológicas, metodológicas e teóricas
fundamentais para um projeto sui generis de construção da ciência
econômica.
Jevons e Walras constroem seus modelos tomando mercado-
rias homogêneas e infinitamente divisíveis. Menger trabalha com
mercadorias homogêneas, porém, com unidade discreta. Nos pri-
meiros, tempo e espaço são apenas noções lógicas estilizadas,
enquanto para Menger são noções essenciais. Aqueles trabalham
com informação livre e completa, ausência de incerteza e risco; este
incorpora ignorância, busca de informação, incerteza e risco. Nele
a informação é escassa. Nos modelos de Walras e Jevons, os
ajustamentos são instantâneos e sem custos. Em Menger, eles

445
levam tempo. Naqueles autores, os agentes são tomadores de
preços; no austríaco enfatizam-se custos de transação; os preços
vigentes são acidentais, os valores são a essência relevante e o
modelo pretende-se aplicar em qualquer estrutura de mercado: do
monopólio bilateral à concorrência perfeita.
A compreensão da epistemologia e do método de Menger pode
ser obtida seguindo-se os passos desenvolvidos nos “Princípios”.
De fato, os escritos econômicos de Menger são a única expressão
direta de sua metodologia. O livro de 1883, “Investigações sobre o
método das ciências sociais”, é somente uma crítica à metodologia
econômica, não representa diretamente a metodologia positiva de
Menger. Tal crítica originou o famoso episódio histórico conhecido
como “Methodenstreit”. A compreensão do episódio é útil no estu-
do da visão austríaca e merecerá alguma consideração logo adiante.
Na próxima seção, apresentaremos cuidadosamente as teses de
Menger no debate, tais como aparecem nas “Investigações” e no
ensaio publicado anos depois intitulado Em direção a uma classifi-
cação sistemática das ciências econômicas.

OS ESCRITOS METODOLÓGICOS DE MENGER


Nos anos que se seguiram à publicação dos “Princípios”,
Menger passou a exercer uma crescente influência na vida pública
austríaca. Em 1876, conquista a respeitada posição de tutor do
príncipe Rudolf e em 1879 é aceito como professor catedrático na
Universidade de Viena. Nesse interregno, a doutrina de seu primei-
ro livro começa a despertar maior atenção, graças à clareza de seu
estilo e à sua não-aceitação do método matemático, pouco com-
preendido entre os economistas da época. Sua teoria, entretanto,
não conseguia penetrar nos círculos acadêmicos alemães. Nas
publicações desse país, havia pouca aceitação à sua obra. De fato, a
economia política teórica praticamente fora banida das universi-
dades alemãs, completamente submetidas ao domínio da escola
histórica sob influência de Schmoller. O célebre economista alemão
considera inútil o tipo de análise desenvolvida por Menger. O aus-
tríaco, porém, não se sentia confortável com essa situação, já que
admirava a tradição alemã e sempre sonhou penetrar nesse círculo
acadêmico.
Menger não poupa esforços em mostrar àquele país a impor-
tância de suas pesquisas teóricas. Para tanto, achou por bem
afastar-se da investigação teórica e passa a concentrar-se em
questões metodológicas. Após os “Princípios”, de fato, dera pouca

446
contribuição literária à teoria pura, exceto no campo de teoria
monetária, dedicando-se mais ao novo livro sobre filosofia e méto-
do. No entanto, no final das “Investigações” escreve o seguinte:
“Agora eu também sou da opinião de que uma metodologia,
não importando o quanto bem elaborada, não é suficiente em
si mesma para o desenvolvimento da ciência.” (Carl Menger,
Investigations into the method of the social sciences with
special reference to economics)
Torna-se, para ele, mais importante defender seu método
contra a pretensão da escola histórica de possuir o único instru-
mento adequado à pesquisa econômica. Começa então a trabalhar
em sua segunda grande obra, “Investigações”, a partir de 1875,
publicando-a finalmente em 1883. Hayek considera-a tão impor-
tante quanto os “Princípios” para o desenvolvimento da escola
austríaca, embora reconheça que os detalhes de sua visão meto-
dológica não tenham sido completamente aceitos até entre seus
seguidores diretos. Menger queria mostrar a importância de uma
teoria geral e abstrata que unificasse as partes fragmentadas do
conhecimento econômico existente. O livro, de fato, sensibilizou
alguns teóricos alemães, demonstrando uma profunda compreen-
são da natureza dos fenômenos sociais à luz do individualismo
metodológico. Ao mesmo tempo, sua crítica ao historicismo alemão
desperta a reação irada de Schmoller, dando origem à querela do
“Methodenstreit”. Menger e seus seguidores acabaram perseguidos
e excluídos de qualquer atividade acadêmica na Alemanha.
As “Investigações” contêm argumentos de significância geral
ampla, contudo o livro está relacionado à controvérsia intelectual
particular que envolvera alemães e austríacos. A disputa que se
estabeleceu então entre os historicistas alemães e a escola austría-
ca não era apenas metodológica, mas envolvia também argumentos
filosóficos e motivações políticas. Pode-se identificar cinco temas
principais na disputa: a natureza e a origem das instituições sociais,
o método pelo qual elas deveriam ser estudadas, a natureza e os
propósitos da ciência econômica, as conclusões políticas da invés-
tigação nesse domínio e o papel da escola histórica na política
econômica alemã. Tais pontos temáticos aparecem em parte nas
“Investigações” e são desenvolvidos e completados no ensaio Os
erros do historicismo na economia política alemã, primeira respos-
ta de Menger às críticas de Schmoller, publicado um ano após as
“Investigações”, e, tempos depois, no “Em direção a uma classifica-
ção sistemática”.

447
As “Investigações” são uma crítica aos propósitos e o método
da escola histórica alemã como ela desenvolveu-se entre 1840 e a
década de 1870; e o livro, conforme Menger já anuncia no prefácio,
fornece um caminho unificador principal que une amplo e variado
leque de ideias filosóficas e metodológicas. A obra é composta de
quatro partes, em que são de interesse especial a Parte I, “Economia
e história”, que trata da natureza da teoria e das leis econômicas, e
a Parte III, “A visão orgânica dos fenômenos sociais”, sobre as
consequências sociais não previstas da ação individual. A Parte II
apresenta o papel da análise histórica e a Parte IV é um estudo
sobre a escola histórica e a evolução do historicismo.
A escola histórica alemã critica o método abstrato da economia
política clássica. A proposta austríaca também era vista pelos
historicistas alemães como igualmente abstrata e inútil. Eles não
distinguem os austríacos dos economistas clássicos e não reconhe-
cem que Menger representa uma quebra em relação aos clássicos
uma vez que a nova teoria de Menger muda não apenas a estrutura
conceitual e metodológica das ciências sociais teóricas, mas tam-
bém a própria maneira de interpretar a história e a política. As
“Investigações” deram os primeiros passos no exame de questões
epistemológicas ainda hoje não resolvidas. Ao mesmo tempo em
que o livro mostra as implicações metodológicas e políticas do
historicismo, denuncia o equívoco dele e busca explorar as pers-
pectivas trazidas pela nova teoria na interpretação da motivação
humana e na predição dos resultados da ação.
Em filosofia e método, a discordância principal separando
austríacos e alemães consiste na escolha entre uma perspectiva
empirista e um tratamento teórico da disciplina. A discussão
centrava-se, portanto, em torno da historicidade ou teoricidade do
método das ciências sociais. Menger, em seus escritos metodoló-
gicos, aprofunda as implicações trazidas pelos “Princípios”. Nas
“Investigações”, ele estabelece as premissas para uma nova estru-
tura conceitual e metodológica nas ciências sociais teóricas, partin-
do da crítica ao método indutivo que procura estabelecer leis gerais
para os fenômenos sociais. Se o historicismo acredita que por meio
do estudo de eventos históricos seria possível descobrir o signifi-
cado deles e derivar leis que regulam o desenvolvimento da histó-
ria, para Menger e seus seguidores a crença historicista trata-se de
mera especulação das razões do desenrolar histórico, que lhe
atribuía um desígnio absoluto ao interpretá-lo como totalidade
dominada por causa primeira e movida na direção de uma meta
transcendente ou imanente. Os austríacos opõem, a essa visão, a
crença exclusiva no desígnio individual, e veem a história universal
448
apenas como o entrelaçamento aleatório dos caminhos individuais
na perseguição de fins subjetivos.
Assim, não há um enredo secreto na história revelado pela
especulação filosófica. Também não há uma razão que, acima dos
indivíduos, dita a história. É impossível conhecer o significado do
processo do tornar-se, pois não há significados além do conjunto de
significados individuais que os próprios indivíduos atribuem à sua
existência. Assim, para Menger, não é possível fundar uma ciência
econômica na acumulação e classificação de dados relativos a fatos
históricos; o que não significa que a história seja uma disciplina
inútil para a economia.
Menger confere um papel primordial para a história; ele ape-
nas critica a interpretação dela feita pela escola alemã, que lhe
atribui significados e leis gerais. Em Os erros do historicismo,
Menger tece críticas às ideias de Schmoller, mostrando o verda-
deiro papel da história nas ciências econômicas. Não se pode, diz,
deduzir regras práticas de ação com base no estudo comparativo
da história e da descoberta de supostas leis. A comparação entre
diferentes sistemas políticos e econômicos é importante ao estabe-
lecer uma visão global dos fenômenos econômicos, entretanto não
se deve, com isso, pretender estudar o campo das ciências humanas
entendendo-o em analogia a um organismo natural, em que se
possa aplicar o método da anatomia e da fisiologia. As ciências
humanas não podem ser compreendidas pelos métodos da biologia,
embora Menger pense a economia como um processo orgânico. O
mundo econômico não configura uma unidade especial diferente
dos fenômenos singulares das escolhas individuais. Para o austría-
co, todos os fenômenos econômicos são reduzidos aos fatos
singulares dos indivíduos; são simplesmente o resultado de inúme-
ros esforços econômicos individuais.
Os “Princípios” são um livro diplomático no qual seu autor,
embora crítico, respeita a escola histórica alemã. No máximo,
almeja Menger uma teoria alternativa; prova disso é que ele o
dedicou a Roscher. No entanto, o tom conciliatório foi abandonado
nas “Investigações”. No estudo metodológico, Menger procura, com
base numa classificação da ciência econômica e de seu método,
esclarecer a relação entre a orientação empírico-realista, calcada
em estudos históricos, e a orientação exata ou teórica. O austríaco
identifica três grupos de estudos nos domínios da economia:
1. A ciência histórica e estatística da economia, que tem a
tarefa de investigar e descrever a natureza individual e a
conexão individual do fenômeno econômico;
449
2. A economia teórica, cuja tarefa consiste em investigar e
descrever a natureza geral e a conexão geral dos fenôme-
nos;
3. A ciência prática da economia nacional, que investiga e des-
creve os princípios básicos para a ação, adaptados às várias
condições, no campo da economia.
Menger pretende resolver um problema de demarcação da
pesquisa. Não quer demonstrar que o método da escola histórica é
não científico, apenas busca esclarecer as diferenças fundamentais
entre a abordagem dos “Princípios” e outras. A teoria abstrata deve
ocupar um lugar ao lado da economia empírica e aplicada. Menger
segue a máxima metodológica: a cada meta, um método. Conhe-
cidas as diferentes metas da ciência econômica e reconhecendo-se
a necessidade de um método a cada meta, a classificação de estudos
nesse domínio é a própria identificação de suas metas. Trata-se,
portanto, do “pluralismo metodológico”. A escola histórica alemã
erra ao não o aceitar e confundir as diferentes vias de investigação,
procurando deduzir normas de ação prática de uma concepção
equivocada da ciência econômica. Para Menger, porém, não incor-
reremos no erro historicista se soubermos separar as três orienta-
ções principais da pesquisa citadas anteriormente.
Os “Princípios” lidam com o objeto econômico sob orientação
teórica ou geral. Portanto, o livro examina a essência do fenômeno
econômico, fornecendo um conhecimento que transcende a expe-
riência imediata. Preocupa-se em identificar as relações, a estrutu-
ra interna e as leis de fenômenos típicos geneticamente determina-
dos. Para tanto, vale-se do método genético-causal, também chama-
do de método analítico-compositivo, que consiste em dissecar
analiticamente o fenômeno real complexo em seus elementos e
reagrupar tais elementos em fatos econômicos elementares.
O problema metodológico posto pela epistemologia de Menger
é, de fato, muito complexo. Ele quer especificar a relação entre
teorias explicativas gerais e modelos empíricos. O método empírico
convive lado a lado com o método teórico exato. A economia teórica
é uma ciência em tudo semelhante às ciências naturais. Não há
contrastes metodológicos entre uma e outra. Para ambas, é possível
uma orientação realista e exata. No prólogo dos “Princípios”,
Menger diz que está aplicando, em sua análise teórica, “o método
de pesquisa utilizado nas ciências naturais”, que na verdade “é
comum a todas as ciências baseadas na experiência”, e que “os
fenômenos da vida econômica se regem por leis iguais às leis da
natureza”.
450
Tais leis, no entanto, não são leis empíricas obtidas pelo méto-
do empírico-realista. As leis exatas da natureza, reconhecidas na
economia teórica, são encontradas pelo caminho exato. Leis que
têm garantia do absoluto são obtidas pela investigação teórica que
começa dos elementos mais simples e estritamente típicos. Os
fenômenos econômicos são compreendidos quando o teórico se
volta a seus fatores constitutivos, simples e originais, pensados
isoladamente. As leis exatas não podem ser pensadas de outra
maneira. São regularidades que descrevem a essência ontológica da
realidade externa.
A teoria pura contida nos “Princípios” tem a tarefa de estudar
a natureza geral e as interconexões gerais do fenômeno econômico.
Isso significa que ela não deve simplesmente analisar conceitos e
chegar a conclusões lógicas resultantes da análise. O objeto de pes-
quisa teórica é o próprio fenômeno, ou aspectos dele, e não sua
imagem linguística, isto é, os conceitos que fazemos dele. Para
Menger, os representantes da escola histórica têm uma má com-
preensão da pesquisa teórica, porque só veem análise de conceitos
na investigação da natureza dos fenômenos econômicos. Para eles,
teoria exata é apenas um arranjo de um sistema de conceitos e
julgamentos. Também se engana Léon Walras ao conceber a teoria
como mero conjunto de teoremas, obtidos dedutivamente de
axiomas a priori, e ao preocupar-se em estudar apenas relações
quantitativas e não as causas dos fenômenos. O aristotelismo de
Menger leva-o à ênfase na abordagem causal e à rejeição da mate-
mática.
A leis exatas não admitem exceção, sendo irrelevante e equivo-
cado testá-las empiricamente. São obtidas logicamente, por dedu-
ção, de condições e hipóteses assumidas. Nas “Investigações”,
Menger diz que essas leis
“[...] não são apenas sem exceções, mas de acordo com
nossas leis de pensamento não podem ser pensadas de outra
maneira que não sendo sem exceções.” (ibidem)
E que
“[...] testar a teoria exata da economia pelo método empírico
completo é simplesmente um absurdo metodológico, uma
falha em reconhecer as bases e os pressupostos da pesquisa
exata. Ao mesmo tempo, ele é uma falha em se reconhecer os
propósitos particulares a que serve a ciência exata. Querer
testar a teoria pura da economia por experimentos em sua
plena realidade é um processo análogo ao dos matemáticos

451
que querem corrigir os princípios da geometria pela medida de
objetos reais.” (ibidem)
Na investigação do fenômeno econômico, as proposições analí-
ticas exatas da teoria pura, não testáveis empiricamente, são com-
plementadas pela ciência histórica da economia, que estabelece
generalizações empíricas testáveis. A observação histórica permite
estabelecer leis empíricas sobre as atividades humanas. Tais leis
estão sempre sujeitas a exceções, já que os homens possuem liber-
dade de escolha. Nas “Investigações”, Menger diz que:
“Admitimos quase sem reservas que os fenômenos huma-
nos reais não são estritamente típicos. Nós admitimos que, por
essa razão e também como um resultado da liberdade da
vontade humana (e, é claro, não temos intenção de negar isso
como uma categoria prática), leis empíricas de validade abso-
luta estão fora de questão no reino dos fenômenos da atividade
humana.” (ibidem)
Menger considera que as leis empíricas não dependem de
hipóteses ou condições especiais assumidas de antemão e que,
portanto, são testadas pela realidade vista em sua total comple-
xidade. Assim, são sempre falseáveis. Tal realidade complexa, no
entanto, pode ser depurada mais e mais até chegarmos a seus
elementos mais simples. A leis que regem a ação isolada desses
elementos são exatas.
Há um ponto de vista apropriado para a pesquisa exata que
torna a lei absolutamente verdadeira. A lei exata não é a negação da
realidade pela imposição de um modelo abstrato; pelo contrário,
ela dá conta da essência do fenômeno ao abstrair os fatores aciden-
tais que também condicionam as ocorrências. Menger não ignora,
contudo, os demais elementos da realidade complexa. Sua teoria
atribui, por exemplo, grande importância à ignorância dos agentes
e à incerteza. A teoria econômica exata concentra-se em estudar a
ação racional movida pelo autointeresse. Todavia, o teórico deve
reconhecer situações nas quais o indivíduo erra por não perceber
seus próprios interesses econômicos ou por ignorar as condições
econômicas que rodeiam sua ação. O homem pode perfeitamente
afastar-se do caminho rigoroso previsto pela lei exata. As predições
da lei exata quanto ao comportamento do agente têm um limite de
aplicabilidade. Contudo, isso não nega sua existência ontológica,
apenas afirma a necessidade de justapor a análise histórica à teoria
econômica pura. Mostra que Menger, de fato, confere importante
papel à história.

452
O livro “Investigações”, em suma, desenvolve argumentos vi-
sando à defesa do método abstrato e ao uso adequado da pesquisa
histórica. Também critica o historicismo alemão na elaboração da
teoria das instituições. No mesmo ano de sua publicação, o autor
tido como principal alvo de suas críticas, G. Schmoller, lança-se a
fazer considerações. Menger considera os escritos deste uma tenta-
tiva de refutação às suas teses e decide então estender sua investi-
gação metodológica em Os erros do historicismo na economia
política alemã, que aparece no ano seguinte. Polêmico e sarcástico
ao identificar explicitamente Schmoller como seu alvo principal, o
ensaio teve repercussões indesejáveis. Toda a escola histórica
alemã é taxada de historicista e Menger procura mostrar que a
história não seria a base empírica para as ciências práticas da
economia. O ensaio não apresenta inovações significativas e, dei-
xando de lado sua forma efetivamente polêmica, contém poucas
inovações conceituais. Em vez disso, os novos elementos são de
natureza diferente. O primeiro recai na escolha por Menger de
Schmoller como o alvo de suas polêmicas. Menger estava conscien-
te de que o sucesso de suas próprias ideias na cultura alemã ligava-
se ao resultado de sua disputa com a figura que se havia tornado o
expoente com maior autoridade e influência entre os alemães.
Infelizmente tal estratégia estava fadada a envolver uma série de
repercussões altamente indesejadas. Menger sabia das diferenças
entre Schmoller e os primeiros expoentes da escola histórica alemã.
Na verdade, o principal assunto da controvérsia, ao lado dos temas
metodológicos usuais, diz respeito à possibilidade de considerar a
história como a base empírica das ciências práticas da economia,
um assunto apenas tangenciado nas “Investigações”. Inovação
adicional consiste em estender o termo “historicismo”, usado para
designar o pensamento de Georg G. Gervinus, para toda a escola
histórica.
Mais importante foram as ideias contidas no ensaio “Em dire-
ção a uma classificação sistemática das ciências econômicas”, só
publicado cincos anos depois, em 1889. Com ele, objetiva definir
um esquema de classificação da ciência econômica que elimine, em
definitivo, qualquer dúvida sobre o papel relativo da teoria abstrata
e da pesquisa empírica.
Argumenta Menger que a escola histórica não presta a devida
atenção ao caráter diferenciado dos problemas que confrontam as
ciências da história e da estatística, de um lado, e a teoria econômi-
ca e a economia aplicada, de outro; e também não leva em devida
consideração as diferenças essenciais entre esses ramos de investi-
gação dentro do campo da economia política. Confundem o método
453
da investigação histórica com o método histórico em teoria econô-
mica e em economia aplicada. Também interpretam mal o lugar
específico das questões de economia aplicada dentro do complexo
de problemas a serem resolvidos pela análise teórica.
Menger lança-se a fazer uma detalhada classificação das ciên-
cias econômicas entre seus ramos de investigação. Primeiramente
identifica os domínios de investigação da realidade pelas ciências
em geral, com base em dois princípios de classificação essencial-
mente distintos:
1. Um primeiro princípio separa os diferentes campos da
realidade, ou dos objetos da cognição científica, levando em
conta a natureza desses objetos da investigação;
2. Outro princípio assevera que esses objetos comportam
diferentes linhas de investigação científica, cada qual asso-
ciada a um método particular de se abordar a realidade.
Temos, portanto, nessa divisão, um primeiro princípio de
classificação que distingue as ciências da natureza das ciências do
homem (direito, política, sociologia, economia etc.). Desses campos
específicos da realidade, desenvolveram-se gradualmente diferen-
tes linhas de abordagem. Estas se constituíram em diferentes
disciplinas científicas de acordo com a necessidade de uma apre-
sentação independente de seus resultados. Dentro de cada discipli-
na, a concentração crescente em problemas especializados permite
uma classificação adicional com base em novos princípios que
orientam a pesquisa pela compreensão da realidade...
1. Na direção de um conhecimento do fenômeno concreto e
de suas relações concretas no tempo e no espaço;
2. Na direção de um conhecimento de sua natureza geral e
de suas relações gerais, identificando-se determinadas
regras que comandam as relações de coexistência e de
sucessão entre fenômenos.
No primeiro caso, a pesquisa lida com fenômenos concretos de
campos particulares da realidade de um ponto de vista estático,
pelo uso da estatística, ou evolucionista, quando se utilizam as
ciências históricas. No outro, vale-se das ciências morfológicas, se
o que se procura é o conhecimento da forma genérica ou estrutura
comum do fenômeno em dado campo, ou das ciências teóricas, se o
objeto do conhecimento são suas relações e conexões internas (as
leis do fenômeno).

454
As duas estratégias de pesquisa permitem a exploração e a
compreensão da realidade. Todavia, o interesse da ciência não se
resume apenas nesses aspectos. Também se busca, em cada campo,
estabelecer princípios e procedimentos para uma interferência
efetiva no curso dos eventos. Os resultados desses esforços, organi-
zados sistematicamente, estão caracterizados nas ciências práticas
ou aplicadas. Menger identifica, portanto, diferentes linhas de abor-
dagem, cada qual associada a certo campo específico da realidade.
Menger assevera que a separação de abordagens é amplamen-
te reconhecida e adotada nas ciências naturais. Nenhum investiga-
dor da natureza, diz ele, defenderia o desenvolvimento de uma
única e ampla ciência natural abrangendo todo o conhecimento da
natureza. Lamenta, entretanto, que na economia tal desenvolvi-
mento esteja, em muitos aspectos, em um estado imperfeito e até
embrionário. Muitos economistas não reconhecem a classificação
da ciência econômica entre estatística, história, morfologia, teoria e
ciência aplicada. Isso se deve talvez, continua ele, ao estado ainda
rudimentar da ciência econômica.
A escola histórica alemã é criticada em pretender ser uma
ciência universal da economia que não separa suas várias disci-
plinas específicas. Menger considera absolutamente necessário o
tratamento independente da história e da teoria econômica, muito
embora fatos históricos e estatísticos devam ser utilizados como
ciências auxiliares na construção dos fundamentos da teoria.
Também defende a separação entre teoria econômica e economia
aplicada. A função da ciência econômica não é a de fornecer uma
coleção incompleta e arbitrária de informações teóricas úteis,
organizadas em princípios externos; pelo contrário, ela tem a tarefa
de organizar todos os resultados da investigação científica relacio-
nados à economia em um sistema bem-articulado intrinsecamente
coerente. E o melhor meio de alcançar a meta é separando-se as
ciências teóricas das aplicadas.
A separação entre história, teoria e aplicação já se fazia
presente nas “Investigações” ; só que agora, no “Em direção a uma
classificação”, Menger aperfeiçoa a classificação anterior isolando
também uma ciência morfológica da economia. Seus argumentos
nesse tocante são bastante reveladores. Ele identifica um lugar
para os resultados da investigação morfológica dentro do sistema
geral da ciência econômica.
Assim, no “Em direção a uma classificação” classifica-se o siste-
ma completo da ciência econômica, que deveria compreender os
seguintes ramos:
455
1. A ciência histórica da economia, formada pela estatística
econômica e pela história econômica. A primeira investiga
fenômenos econômicos concretos de um ponto de vista
estático dentro de limites espaciais definidos. A última
estuda-os de um ponto de vista evolucionista e combina-os
em uma estrutura orgânica unitária;
2. A morfologia dos fenômenos econômicos, cuja função com-
siste na classificação dos fatos econômicos de acordo com
gênero, espécie e subespécie, bem como na demonstração
de sua forma genérica, isto é, a descrição de estruturas
comuns entre diferentes grupos de fenômenos homogê-
neos;
3. A teoria econômica, que possui a tarefa de investigação e
estabelecimento das leis dos fenômenos econômicos, isto é,
das regularidades em sua coexistência e sucessão, bem
como sua causação intrínseca;
4. A economia prática ou aplicada, que nos ensina os princí-
pios e os procedimentos por meio dos quais propósitos
econômicos genericamente determinados podem ser mais
efetivamente realizados em diferentes circunstâncias e à
luz do conhecimento científico existente.
A teoria econômica estuda certos lados de todos os fenômenos,
eliminando-se sempre os fatores perturbatórios. A ciência histórica
estuda todos os lados de certo fenômeno. A economia aplicada não
é um conjunto de prescrições para casos concretos e não oferece
receitas para a tomada de ação em todo caso concreto singular.
Dada a riqueza do mundo, é impossível prescrever o procedimento
a ser seguido em cada situação individual.
O homem prático deve sempre agir com inventividade e ter
insights sobre os fenômenos envolvidos num contexto e suas
relações. Tem de se adaptar às exigências únicas de cada caso
concreto. Nas ciências práticas, só encontra metas e condições
determinadas de um modo geral. Somente em combinação com sua
avaliação individual criativa da situação seu conhecimento da
economia aplicada possibilita-o especificar, em cada caso concreto,
o procedimento apropriado. A ação econômica eficaz deve associar
conhecimento teórico com poder de síntese e inventividade. A
economia aplicada oferece um acervo de casos. Representa conhe-
cimento científico aliado a um estoque de práticas acumuladas.
A economia de Menger começa dos indivíduos com seus impul-
sos fundamentais. As ciências humanas devem fornecer explica-

456
ções causais que, partindo desses impulsos, deem conta, em última
instância, de todos os fenômenos sociais, reduzindo-os a eles.
Menger reconhece que existem na realidade muitos motivos fun-
damentais para o comportamento humano. Quatro impulsos são
mencionados por ele: o econômico, o senso moral comum, o altruís-
mo e a justiça. Os impulsos básicos delineiam as fronteiras entre as
disciplinas científicas. A economia, a sociologia, a ética e a jurispru-
dência, cada qual estuda o comportamento humano sob um aspecto
diferente. Em cada disciplina, o trabalho dos impulsos fundamen-
tais pode ser estudado em vários graus de pureza, abstraindo-o dos
fatores perturbatórios que operam na realidade.
Menger reconhece certas causas fundamentais operando
sobre tudo o que é observado; no caso das ciências do homem,
seriam seus vários impulsos. Todos eles operam conjuntamente. O
teórico, em cada disciplina científica, tem a tarefa de isolar a
operação de uma única causa, a fim de ganhar uma melhor
compreensão da realidade subjacente às aparências. O exercício de
abstração e isolamento de um aspecto da realidade serve-se do
método analítico-compositivo e é levado a cabo, em geral, pelas
ciências morfológicas. A morfologia é a identificação nos fenôme-
nos econômicos de suas formas elementares ou tipos, como
resultado de uma síntese com base em uma análise real dos fenô-
menos complexos, decompondo-os em seus fatores elementares.
O isolamento de uma única causa fundamental não garante que
se possa estudar o fenômeno em sua forma pura; para tanto,
devemos abstrair também os fatores que inibem o trabalho pleno
dessa causa única. Menger, nas “Investigações”, identifica quatro
fatores perturbadores: ignorância, erro, força externa e grau em
que as pessoas se deixam guiar pelo impulso. À ciência econômica
cumpre abstrair todos os impulsos fundamentais, exceto o de
natureza econômica. A disciplina teórica exata da economia abstrai
os fatores perturbadores. Erros, incertezas e acidentes determinam
preços e não podem ser descartados da economia histórica e
empírica. A teoria exata do valor subtrai esses elementos.
No final do “Em direção a uma classificação”, Menger discute a
natureza da teoria abstrata, retomando os pontos que já apresen-
tamos anteriormente. Ele diz que é contra a ideia de que a teoria
abstrata seja apenas um jogo de conceitos ou um sistema de
teoremas derivados dedutivamente de axiomas a priori. A teoria
econômica tem o mundo real como objeto e deve fornecer uma
compreensão da natureza dos fenômenos econômicos, fornecendo
não apenas conhecimento de regularidades externas na coexistên-

457
cia e sucessão desses fenômenos, mas também a compreensão
deles em suas relações intrínsecas.

O PROBLEMA DO VALOR ECONÔMICO


Vejamos agora aspectos da teoria econômica de Menger
ligados diretamente à questão de valor e preços. Outros temas da
teoria mengeriana não serão considerados diretamente, tais como
a teoria da distribuição, do capital, dos juros e a relação da teoria
da moeda com a teoria do valor. Menger não poupou esforços na
construção dos fundamentos da teoria econômica; nesse sentido,
dedica-se com esmero a apresentar uma adequada teoria do valor;
para ele tarefa de vital importância a fim de que a economia emule
o sucesso das ciências naturais. Não seria o caso de copiar o método
dessas ciências, mas o de fornecer um fundamento exato sui
generis à economia. No núcleo da análise teórica fundamental esta-
riam as condições que governam a atividade econômica na direção
da satisfação de necessidades sob condições de escassez.
No capítulo 3 dos “Princípios”, Menger apresenta sua teoria do
valor, que essencialmente seria adotada por seus seguidores dire-
tos Wieser e Böhm-Bawerk. Na acepção de Menger, o valor não
expressa uma propriedade inerente dos bens, não é uma qualidade
do objeto material, mas algo que os indivíduos lhes atribuem subje-
tivamente.
A importância atribuída aos bens confere-lhes valor. O indi-
víduo tem consciência de suas necessidades e de que precisa dos
bens para atendê-las. O que é importante não é o bem, mas a
satisfação de nossas necessidades. O bem tem valor à medida que
determinado contexto o torna condição sine qua non para a conse-
cução do fim a que se presta. Se o bem for escasso é bem econômico,
nesse caso, os indivíduos almejam dispor de uma quantidade dele,
num dado horizonte de tempo, e essa quantidade não se encontra
prontamente ao alcance deles. São obrigados a economizar, ou seja,
a decidir que parte de suas necessidades ficará sem atendimento.
O valor, na concepção de Menger, é simplesmente
“[...] um juízo que as pessoas envolvidas em atividades
econômicas fazem sobre a importância dos bens de que dis-
põem para a conservação de sua vida e de seu bem-estar.” (C.
Menger, Princípios de economia política)
E, portanto,

458
“[...] só existe na consciência das pessoas em questão.”
(ibidem)
Todos os bens úteis e escassos são bens econômicos. Utilidade
éa
“[...] aptidão que uma coisa tem para servir à satisfação de
necessidades humanas, constituindo, portanto (a utilidade
reconhecida como tal), um pressuposto básico para que uma
coisa seja um bem.” (Ibidem)
Utilidade não é o valor de uso do bem, pois essa aptidão do bem
para satisfazer a necessidades não coincide com o valor mesmo da
coisa.
Valor é produto do imaginário do homem, que reconhece que a
manutenção de seu bem-estar só será assegurada pela posse e
usufruto do bem econômico. Os bens que possuem utilidade, ou
capacidade de satisfazer a desejos, se tornam bens econômicos se
estiverem sujeitos a alguma limitação externa nas quantidades
disponíveis, o que implica a limitação sobre as utilidades totais. Isso
obriga os indivíduos a dependerem de quantidades específicas para a
satisfação de algum desejo particular. Com isso, as utilidades desdo-
bram-se em valores econômicos. Utilidade, portanto, é só capacidade
de levar ao bem-estar, enquanto valor é a condição positiva que torna
o bem indispensável para a satisfação de necessidades concretas.
Necessidades insatisfeitas provocam em nós um sentimento doloroso
de vazio que aponta para algum bem como condição a certo bem-
estar. Estabelece-se uma relação de dependência entre pessoas e
coisas e disso emerge o valor. Embora só se manifeste dependendo de
uma situação, o centro do valor está no indivíduo e transfere-se o valor
aos bens por associação. Se o bem existe em abundância, a vida não
depende de nenhuma porção individual dele; caso contrário, estabe-
lece-se a dependência e passa-se a atribuir-lhe valor econômico. Só os
bens insuficientes para atender a nossos desejos até a saciedade são
economizados. A ciência econômica trata das atividades humanas
voltadas ao fim da economização.
O valor que conferimos aos bens depende de nossas necessida-
des atuais. Os caprichos e as peculiaridades pessoais, bem como
hábitos e costumes, podem ajudar a determinar tais necessidades;
entretanto,
“[...] uma vez presente essas necessidades, o valor que os
bens têm para nós não pode ser mais algo de arbitrário, mas
simplesmente a consequência necessária do conhecimento de

459
sua importância para nossa vida ou para nosso bem-estar.” (C.
Menger, Princípios de economia política)
A relação entre o conhecimento humano e o valor é direta e
natural, regida por leis exatas que produzem resultados que só
dependem da escala de valor que construímos previamente em
nossas mentes. O indivíduo com suas necessidades concretas e o
contexto de relações em que ele opera são a essência do fenômeno
do valor. Dadas as estruturas de necessidades, de relações entre
elas e os objetos e a disponibilidade destes, determinam-se os valo-
res dos bens de modo natural e exato.
Anteriormente, no capítulo dois de seu livro, Menger havia
definido as assim chamadas ordens dos bens. Antes de fazê-lo, o
austríaco tece interessante digressão sobre os cuidados humanos
com o futuro e a necessidade de previsão num ambiente em que o
futuro não é inteiramente conhecido. A preocupação com a deman-
da futura de bens cresce com o progresso da humanidade. Em
culturas mais avançadas é maior o zelo pelo atendimento das
necessidades futuras. As demandas futuras são antecipadas e o
atendimento delas depende do tempo do processo de produção,
que tende a crescer com o avanço tecnológico. Os povos civilizados,
assevera Menger, desenvolvem um “complexo sistema de previsão
para o atendimento das necessidades humanas”. No entanto, a
previsão nunca é perfeita pois o futuro é incerto:
“[...] a experiência nos ensina que, em relação a períodos
futuros, não raro nos falta a certeza de que determinadas
necessidades concretas existirão”. (Ibidem)
Mesmo quando se conhece as necessidades futuras podemos
não conhecer a quantidade de bens necessária para satisfazê-las.
Bens de primeira ordem são bens econômicos prontamente
disponíveis para consumo e que dizem respeito às necessidades
concretas imediatas que temos deles. Preocupamo-nos em tê-los
disponíveis no momento atual, mas também em dispor deles em
qualquer momento futuro em que o desejarmos. Para tanto, é
necessário o concurso atual de bens de ordem superior. Bens desse
tipo são bens de produção que demandamos a fim de, com eles,
obtermos, em tempo futuro, o bem de primeira ordem pronta-
mente consumível.
“Toda vez que a demanda de um bem de ordem inferior não
for atendida, ou só for atendida parcialmente, ocorre sempre a
demanda de cada um dos bens complementares de ordem
superior.” (Ibidem)

460
Menger examina a seguinte questão: em cada estádio da
produção, quais os bens de ordem superior indispensáveis para
atender à demanda de bens de primeira ordem? Preocupados com
isso, os indivíduos, na vida economia, procuram estar em condições
de dispor das quantidades complementares dos demais bens de
ordem superior, de modo a combiná-los adequadamente e no tem-
po certo a fim de prover o atendimento de necessidades futuras.
Surgem, nesse âmbito, três tipos de demanda:
(1) Demanda total por bens de ordem superior: quantidades
de cada um dos bens de ordem superior necessários à
produção, e suficientes para a produção da quantidade
necessitada de bens de primeira ordem;
(2) Demanda efetiva em cada etapa da produção: a demanda
pela quantidade de bens complementares que poderão
ser empregados, dada a limitação na oferta de um dos
bens que se combinam em cada etapa do processo e
(3) Demanda latente: a demanda restante que se tornaria
efetiva quando viéssemos a dispor também das quanti-
dades complementares que no momento nos faltam.
Assim, a característica econômica dos bens de ordem superior
é condicionada pela característica econômica dos bens de ordem
inferior para cuja produção eles concorrem. Diz Menger que o bem
de ordem inferior não é econômico porque o correspondente bem
de ordem superior o é, mas o contrário, tudo gira em torno da
demanda por aquele bem, ou seja, centralizam-se as necessidades
humanas diretas. Escreve Menger:
“O homem, com suas necessidades e seu controle sobre os
meios de satisfazê-las, constitui o ponto de partida e de chega-
da, a meta de toda a economia humana.” (Ibidem)
Em suma, na passagem abaixo Menger esclarece as caracte-
rísticas dos bens de ordem superior:
“Posteriormente a reflexão e a experiência conduzem as
pessoas a conhecimento mais profundo do nexo causal entre
as coisas, sobretudo do nexo causal delas com seu bem-estar,
travando, então, conhecimento com os bens de segunda, de
terceira e de outras ordens superiores. Também em relação a
esses bens de ordem superior, as pessoas constatam que
alguns deles estão disponíveis em quantidade superior à
necessária, ao passo que, em outros casos, constatam a relação
contrária. Ao fazer essa constatação, as pessoas passam a
distinguir entre bens de ordem superior (que constituirão
objeto de sua atividade econômica) e aqueles bens para os
461
quais não existem essas necessidades. Essa, e não outra, é a
origem da característica econômica dos bens de ordem supe-
rior. (Ibidem)

A ESCALA DE NECESSIDADES
O valor do bem é medido pela importância do desejo satisfeito,
isto é, pela
“[...] variação do grau de importância das diversas neces-
sidades a serem atendidas.” (C. Menger, Princípios de econo-
mia política).
As necessidades mais importantes são as que preservam a
vida. O grau de importância das demais necessidades
“[...] escalona-se de acordo com o grau (duração e inten-
sidade) do bem-estar que depende do atendimento das respec-
tivas necessidades.” (Ibidem)
Temos não só o atendimento de necessidades diferentes, mas
também a possibilidade do atendimento em diferentes graus de
plenitude da mesma necessidade. Assim, deve-se levar em conta a
variação no grau de importância no atendimento de necessidade
específica, à medida que se aproxima do ponto de saciedade. É
possível, portanto, classificar os vários desejos e arranjá-los em
algum tipo de escala.
Os austríacos reconhecem a dificuldade em classificar desejos.
Há os que requerem satisfação periódica ou contínua, desejos
fundamentais e universais. Há também uma superestrutura de
outros tipos de desejos necessários para o desenvolvimento indivi-
dual ou social do ser humano, que inclui até caprichos e extravagân-
cias. O progresso da civilização enseja a expansão do antigo círculo
de desejos e a criação de novos desejos. Existe uma longa e comple-
xa graduação, quase infinita, de desejos, o que torna impossível sua
classificação pelo teórico. Para Menger, porém, o fato de os bens
serem adquiridos a preços prova que os indivíduos, antes das
trocas, classificam seus desejos de algum modo. A troca pressupõe
o arranjo prévio dos desejos individuais numa escala que mostra se
o grau de satisfação deste ou daquele desejo é maior ou menor que
o de outro desejo.
Todo indivíduo cujas riquezas são limitadas em relação aos
desejos tem uma escala em sua mente quando organiza os gastos.
Não se pode, entretanto, estabelecer um princípio externo que
possa dividir os desejos em classes que abrangem de desejos de
462
necessidades básicas (alimentação, moradia e vestuário), passando
pela classe de necessidades de conforto (boa comida, boa roupa
etc.), até outra com desejos de luxúria (refinamentos ou apetites
artificiais da vida, tais como música, pintura, cinema etc.). Cada
indivíduo, rico ou pobre, faz sua própria escala de desejos. Não
adianta postular uma gradação de desejos em classes ou tipos; além
do mais, os princípios que, em cada indivíduo, norteiam a escala
operam por sanção negativa: não são baseados na satisfação, mas
nas consequências para a vida se o desejo permanecer insatisfeito.
Com base na escala, o indivíduo procura satisfazer ao que são seus
desejos mais urgentes, deixando os menos urgentes insatisfeitos. O
desejo é um sentimento de incompletude. Um desejo sempre
satisfeito deixa de ser um desejo.
A escala de valores depende do ponto em que os desejos estão
satisfeitos. Se a necessidade de água é satisfeita, situação corriquei-
ra na maioria das situações, o diamante passa a ter, de fato, mais
importância econômica aos indivíduos.
Ciente das dificuldades para o teórico em construir uma escala
completa de desejos e necessidades, que em cada mente se revela
segundo um princípio particular de classificação, Menger só se
lança a construir explicitamente a escala de valor para o caso de um
único bem satisfazendo a diferentes finalidades. Por exemplo, o pão
satisfaz aos diferentes desejos de alimentação. Ele diz-nos que
“[...] é muito diferente a própria importância que cabe aos
diversos atos com que as pessoas atendem à necessidade de
alimentação.” (Ibidem)
A escala de importância dos diferentes graus de atendimento
das necessidades é obtida expressando-se as grandezas envolvidas
em números. As diferentes necessidades a que se destina a alimen-
tação (manutenção da vida, da saúde e para o atendimento de
prazeres sucessivamente mais luxuosos) são dispostas em núme-
ros romanos, e o grau de importância de cada atendimento é quan-
tificado por números inteiros de 0 a 10. Esses números expressam
a importância decrescente de atos sucessivos de atendimento de
cada necessidade. Menger não acredita que se possa comparar
números entre diferentes colunas e só os introduziu para indicar
ordem de importância. Ele não é preciso quanto ao significado
desses números, mas seus comentadores atuais consideram-no um
ordinarista.
Se tivermos um suprimento de alimentos que permita atender
às necessidades correspondentes a seis graus de satisfação dentre
todos os que estão identificados na Tabela 11.1, a necessidade I é
463
atendida até o terceiro grau de plenitude, a II até o segundo e a III é
preenchida apenas no primeiro quantum. Qualquer outra estraté-
gia alocativa seria menos proveitosa. O indivíduo economizador
procura igualar todas as margens, dentre as necessidades atendi-
das, com o fito de maximizar sua satisfação. Pode-se dizer que ele
iguala as satisfações marginais em cada desejo. Para um bem que
satisfaça a diferentes tipos de desejos, todos os desejos concretos
são satisfeitos em um mesmo nível de importância.

Tabela 11.1 Escala das necessidades e dos graus de satisfação,


segundo Menger.
I II III ... X
10 9 8 ... 1
9 8 7 ... 0
8 7 6 ...
7 6 5
6 5 4
5 4 3
4 3 2
3 2 1
2 1 0
1 0
0
A solução de Menger é clara e correta, mas sabemos hoje em
dia que sua conclusão só é válida para um único bem com vários
usos. Se a satisfação de um tipo de desejo é obtida pelo consumo de
diferentes bens, não podemos fazer a comparação proposta pelo
austríaco.
A Tabela 11.1 permite-nos dizer que o valor de seis porções de
alimentos é seis vezes a importância que tem o atendimento da
necessidade de menor grau de importância dentre as necessidades
que puderam ser atendidas. A última porção de necessidade, que
não seria atendida se a quantidade disponível fosse reduzida, for-
nece o valor de cada porção individual do bem de que a pessoa
ainda dispõe. Isso explica por que o diamante tem grande valor,
uma vez que só atende às necessidades mais importantes para cujo
atendimento esse material se presta. O fenômeno do valor está
ligado à existência prévia, em cada mente individual, dessa escala
464
de necessidades que independe do arbítrio, embora se possa errar
na avaliação do grau de importância das diversas necessidades. Diz
Menger:
“Para nós, a importância do atendimento das diversas
necessidades não encontra sua medida em nosso arbítrio, mas
antes na importância que, independentemente de o querermos
ou não, tem o atendimento de cada necessidade para nossa
subsistência ou para nosso bem-estar. Entretanto, quem avalia
a importância das diversas necessidades a serem atendidas
(...) é o próprio indivíduo, e esse juízo obviamente está sujeito
a erro.” (Ibidem)
Se dissermos que em Menger o valor é determinado pela utilida-
de marginal, é importante prestar atenção nos conceitos e na termi-
nologia particular do austríaco. A expressão “utilidade marginal”
nunca foi empregada por Menger; dentre os austríacos, Friedrich von
Wieser (1851-1926), 30 anos depois, foi o primeiro a cunhar essa
terminologia (“Grenznutzen” em alemão). Para Menger, utilidade é a
capacidade geral do bem em proporcionar bem-estar. Valor é uma
relação mais limitada, na qual parcela do bem-estar humano é condi-
cionada pela posse de um bem particular, em que se estabelece uma
relação de dependência real entre a satisfação do desejo e o bem. Os
bens em geral são capazes de satisfazer a vários desejos, porém os
usos de que fazemos deles têm diferentes importâncias. Algumas das
utilidades dos bens são determinantes para o valor. Qual delas? Se
existe um bem em quantidade limitada, o indivíduo aloca-o dentre
seus vários desejos de acordo com sua escala particular, tomando o
cuidado para que o desejo mais urgente seja satisfeito antes do menos
urgente. A utilidade marginal seria uma linguagem, estranha a
Menger, para se falar no desejo dependente, isto é, aquele que deixa
de ser satisfeito se uma unidade do bem é retirada. É a relação de
dependência que determina o valor. O valor de um bem é, portanto,
medido pela importância do desejo concreto menos urgente dentre os
desejos satisfeitos. Menger não se vale do conceito de margem de
modo tão explícito quanto em Jevons e Walras.
A importância do último desejo satisfeito na escala mede o
valor que se atribui ao bem. É o que na teoria da utilidade tradi-
cional se conhece por utilidade marginal. Tomando essa termino-
logia, pode-se dizer que, em Menger, o valor é determinado pela
utilidade marginal em dada circunstância. É preciso, no entanto,
resguardar a natureza dos argumentos mengerianos. Em Menger, o
valor determinado na margem é um resultado substantivo do
argumento econômico, não faz parte de um cálculo. A abordagem

465
do austríaco difere do enfoque de Walras no qual o cálculo econô-
mico marginalista possui um caráter apenas instrumental, que
surge na própria lógica de formalização da teoria dos preços e só
entra no plano substantivo da teoria econômica como hipótese.
Se a utilidade marginal determina o valor de uma porção concreta
do bem, deve determinar o valor de todas as unidades do estoque, pois
todas são iguais e cambiáveis entre si. O último desejo suprimido
determina a última satisfação e esta determina o valor de todo o esto-
que como um múltiplo dela.
A meta última do esforço econômico não é a obtenção de bens,
mas a satisfação de desejos humanos. Só os bens finais permitem o
atendimento de necessidades, entretanto, para obtê-los contamos
com a produção de bens de ordens superiores. Menger também
procura explicar o valor dos bens de ordens superiores com base
na avaliação subjetiva dos consumidores. Todavia, como esses bens
não são consumidos diretamente, e sim usados na obtenção de bens
de primeira ordem, devemos olhar para estes últimos. Assim, fica
definido por Menger que
“[...] o valor dos bens de ordem superior é sempre, e sem
exceção, determinado pelo valor previsível dos bens de ordem
inferior para cuja produção os mesmos servem.” (Ibidem)
O valor previsível do bem de ordem inferior pode ser diferente
do valor atual de bens similares, pois ele irá depender da relação
entre a quantidade disponível no futuro e a escala futura de neces-
sidades. A teoria do valor mengeriana só diferencia os recursos
produtivos dos bens de consumo com base na proximidade do
consumo. A aplicação da teoria do valor também a bens de produ-
ção leva a proposições corretas e adequadas sobre a teoria da
distribuição pela produtividade marginal. Quanto mais elevada a
ordem do bem, maior o tempo transcorrido até o momento em que
se pode dispor efetivamente dos bens de primeira ordem, com base
na posse atual dos correspondentes bens de ordem superior. A
utilização de bens de ordem superior traz vantagens econômicas
aos indivíduos ao permitir-lhes aumentar sua produtividade. Men-
ger denomina de “capital” as quantidades disponíveis de bens de
ordem superior. A utilização progressiva de bens de ordem supe-
rior e o consequente aumento na quantidade de bens de consumo
só é possível à medida que a atividade de previsão individual abar-
que períodos de tempo cada vez mais remotos.
Dentro do período em que a produção ocorre, o capital fica vincu-
lado a ela. A utilização do capital, que fica indisponível nesse intervalo
de tempo, é feita pagando-se um valor por essa utilização. Quanto
466
maior o tempo de produção, maior a produtividade, e cresce também
o valor da utilização do capital. Também há um valor associado à
atividade empresarial (a remuneração a um serviço de efetuar o
cálculo econômico no processo de transformação do bem superior em
bem inferior). Assim, o valor de todos os bens de ordem superior é
obtido pela equação que o iguala ao valor previsível do produto final
no período futuro, descontado o custo de utilização do capital e o
pagamento pela atividade empresarial.
Menger reconhece que não se pode utilizar, para o atendimento
de necessidades humanas, um bem de ordem superior isolado, mas
sempre em conjunto com outros bens de ordem superior, os bens
complementares. Diz que os bens se poderiam combinar em propor-
ções fixas ou variáveis, uma análise inovadora para a época. No caso
em que vários bens contribuíssem para uma satisfação, pergunta-se
qual influência teria tal satisfação sobre os valores isolados de cada
bem. Um grupo de bens de ordem superior tem seu valor determinado
pela utilidade marginal do grupo. Todavia, como distribuir esse valor
entre seus membros? O valor de um único bem de ordem superior
dentro do grupo, diz Menger, é igual à
“[...] diferença entre a importância que têm as necessidades
que seriam atendidas em caso de dispormos da referida quan-
tidade e a importância das necessidades que, em caso contrá-
rio, seriam atendidas.” (Ibidem)
A análise de Menger, nesse tocante, não é, entretanto, suficien-
temente esclarecedora; ela seria aperfeiçoada, tempos depois, por
seus seguidores diretos Friedrich von Wieser (1851-1926) e Eugen
von Böhm-Bawerk (1851-1914). O passo mais importante no de-
senvolvimento teórico das ideias de Menger foi a interpretação de
Wieser dos custos como utilidade sacrificada, a ideia de custo de
oportunidade, e também a teoria da determinação do valor dos
fatores de produção por imputação (“Zerechnung” ), também de-
senvolvida por Wieser. Böhm-Bawerk destaca-se na teoria dos
juros e do capital, sua contribuição original mais importante.
Menger é um descobridor independente das duas leis de Gos-
sen. Entretanto, o que torna sua análise realmente inovadora é que
ele aplica a noção básica do valor subjetivo a situações em que a
satisfação de um desejo é apenas parcialmente dependente de um
único bem de ordem elevada em particular. Isso o conduz a desen-
volver uma meticulosa descrição das conexões causais entre os
bens e a satisfação dos desejos a que eles servem. Permite-o
também tratar relações de complementaridade entre os bens de
produção, examinando a proporção em que se combinam, e anali-
467
sar os custos tendo-se em conta os usos alternativos do bem. Traçar
em detalhes os estágios na produção até de uma mercadoria sim-
ples, na moderna economia complexa, já seria uma importante
descrição da vida econômica e de sua história.

A TEORIA DO PREÇO EM MENGER


Nos capítulos 4 e 5 dos “Princípios”, Menger discute o fenôme-
no da troca e o processo de formação de preços. Aqui fica patente a
natureza de seus pressupostos epistemológicos. Fica também evi-
denciado que a essência do fenômeno são os valores subjetivos, que
determinam a faixa em que as relações de troca no mercado podem
estabelecer-se. O preço concreto, de qualquer modo, é um fenôme-
no acidental. A teoria só demarca os limites em que ele pode vir a
manifestar-se.
Menger reconhece a dificuldade em construir uma teoria uni-
versal dos preços com base no autointeresse, sem levar em conta
também os propósitos morais. Em muitos setores, porém, as trocas
ocorrem sob as antigas leis da competição. A lei do preço na compe-
tição perfeita só leva em conta o motivo da vantagem na troca. O
mercado é aberto e orgânico. Compradores e vendedores observam
as condições de oferta e a competição. Cada parte fará uma troca se
vir um ganho nela. Cada um prefere um grande ganho a um menor.
Essas são as hipóteses de qualquer mercado concorrencial ordiná-
rio.
Menger analisa os preços começando do caso mais simples,
indo depois em direção a situações mais complicadas. No primeiro
caso, estuda a troca isolada. O vendedor S e o comprador B tencio-
nam transacionar um cavalo. Para S, seu cavalo vale $ 20. B estima
o cavalo em $ 60. Se p = $ 40, ambos ganham $ 20. O preço efetivo
pode ir, portanto, de $ 20 a $ 60, intervalo em que eles desejam
trocar. O resultado final só é determinado pelo processo de merca-
do. Ele vai do mínimo na avaliação subjetiva do vendedor a um
máximo na avaliação subjetiva do comprador.
O segundo caso analisado é o da competição unilateral de
compradores ou vendedores. No caso de compradores, há um
grupo, digamos, de três indivíduos, B1, B2 e B3, que querem o cavalo.
B1 avalia-o em $ 60, B2 em $ 50 e B3 em $ 40. Como S avalia em $ 20,
qualquer um dos três poderia comprá-lo. Há, no entanto, uma dis-
puta até que o preço suba acima de $ 40, o que deixa B3 de fora, e
mais que $ 50, descartando a intenção de B2. B1 fica como o único

468
comprador, pagando algo no intervalo entre acima de $ 50 e $ 60.
$ 50 mais alguma coisa é o limite inferior capaz de excluir os outros
compradores e $ 60 é o limite superior dado pela avaliação subje-
tiva do único comprador restante. O preço do mercado é qualquer
coisa acima da avaliação subjetiva do último comprador sem
sucesso e o preço máximo pago pelo comprador bem-sucedido. No
caso de muitos vendedores e um único comprador, ocorre o
inverso.
O terceiro caso analisado por Menger trata da situação ordiná-
ria em que existe competição completa com muitos vendedores e
muitos compradores de artigos similares. Suponha seis compra-
dores e cinco vendedores de caixas de maçã de igual qualidade e
ofertadas simultaneamente. Os competidores de ambos os lados
conhecem seus próprios interesses e os seguem. A Tabela 11.2 sin-
tetiza as várias avaliações individuais.

Tabela 11.2 Situação do mercado com um número restrito de


compradores e vendedores.
Avalia a caixa Aceita vender
de maçãs a preços
Comprador pagando até: Vendedor acima de
1 18,6 1 13
2 18 2 14
3 17,6 3 15
4 17 4 16
5 16 5 17
6 15

Os primeiros três compradores aceitam o preço de qualquer


um dos vendedores. Todavia, não pagarão mais do que o neces-
sário. A transação começa com baixas ofertas de preços dos com-
pradores.
Na Tabela 11.3, os preços de 16,1, 16,6 e 16,8 representam a
faixa em que há tantos compradores quanto vendedores. Nela ocor-
re a troca e o preço é determinado, no caso de variações contínuas,
entre $ 16 e $ 17. Nessa faixa, a avaliação dos outros competidores
não afeta as trocas. Se p  17, o quarto comprador se retirará, e se
p  16, sairá o quarto vendedor, não se estabelecendo a igualdade
entre oferta e demanda. O preço do mercado (a teoria não permite
469
determinar seu valor exato) estará entre a avaliação subjetiva do
último comprador e a do último vendedor, que determinam respec-
tivamente o limite superior e o limite inferior do intervalo de
variação dos preços.

Tabela 11.3 Mudanças na quantidade de compradores e


vendedores em resposta a variações nos preços.
Número de Número de
Com p igual a $ compradores vendedores

13,6 6 1
14 6 1
14,6 6 2
15 6 2
15,6 5 3
16 5 3
16,1 4 4
16,6 4 4
16,8 4 4
17,2 3 5

O esquema que acabamos de apresentar é típico dos economis-


tas austríacos. O preço ou valor de troca objetivo é apenas a super-
estrutura dos valores subjetivos individuais. É a avaliação dos indi-
víduos, em ambos os lados do mercado, que decide qual a capaci-
dade de troca de cada parte, quais as partes que realmente chegam
a um termo (isto é, quem efetivamente tomará parte na transação),
quem será o último comprador e o último vendedor e, finalmente,
qual será o intervalo de variação dos preços. Preço é o resultado
das avaliações subjetivas feitas em relação às mercadorias e da
utilidade marginal da renda ou riqueza que possui previamente o
indivíduo, o que lhe permite representar o equivalente em preço
daquela avaliação. O valor subjetivo de qualquer coisa é dado pela
dependência da satisfação à posse dela, medida por dois fatores:
depende do desejo que a coisa é capaz de satisfazer e do estado da
provisão já existente que atende ao desejo do avaliador. A mesma
avaliação pode ser feita pelo homem rico com pouco desejo ou pelo
pobre com muito desejo (ambos estão dispostos a pagar, por exem-
plo, $ 16,6). O preço que finalmente se estabelece no mercado é a
470
resultante dessas avaliações, bem como de fatores acidentais que
só podem ser conhecidos pela história e pela estatística.
Podemos acompanhar a sequência de desenvolvimentos con-
ceituais e teóricos feitos nos primeiros capítulos dos “Princípios”,
que antecede a explicação do fenômeno dos preços. Menger deli-
neia uma teoria da ação humana em que os indivíduos agem
propositadamente para satisfazer a necessidades, encontram uma
relação de escassez entre bens e desejos e procuram alocar eficien-
temente os bens demandados, dada a estruturação hierárquica
prévia dessas necessidades. As pessoas agem com base em infor-
mação incompleta em um mundo cheio de incertezas. Toda ativi-
dade ocorre no tempo real e é um processo irreversível. A avalia-
ção, presente no ato de satisfação das necessidades, é inteiramente
subjetiva. A teoria exata explica a verdadeira natureza do valor dos
bens, reconhecendo leis econômicas imutáveis, eternas e univer-
sais. Sem a identificação dessas leis, o mundo econômico não
poderia ser analisado nem controlado. Tempo e incerteza definem
o valor corrente dos meios de produção (bens de ordem elevada)
que são usados para a produção de futuros bens de consumo (de
primeira ordem) como valores esperados. A peculiaridade do bem
de ordem elevada recai no fator tempo. Na ausência de conhe-
cimento completo e de controle completo sobre a natureza, o futuro
não é certo e, como a utilização do bem de ordem superior sempre
consome tempo, é o desejo antecipado do que será satisfeito pelo
bem de ordem elevada, no final do processo de produção, que
determinará sua qualidade de bem.
Da interação de duas economias individuais resulta a troca,
que leva em conta a avaliação de ambos os indivíduos e suas buscas
por uma situação melhor. É na esfera da troca que aparecem os
preços.
Preços, ou as proporções em que os bens são trocados, são
fatos acidentais. São apenas os sintomas que se manifestam no
domínio dos fenômenos, refletindo a essência da atividade econô-
mica que consiste na melhoria de provisões para satisfação das
necessidades por meio da troca. Há duas esferas de discussão na
obra de Menger: no campo da essência reside a grandeza valor; na
aparência vicejam preços e moedas.
A transformação de valores em preços envolve múltiplas
dimensões (epistemológicas, metodológicas e analíticas). Quando
Menger discute o processo de formação de preços, o discurso muda
do valor para os preços, da essência para a aparência, da verdade e
certeza da teoria exata para os resultados apenas prováveis da
471
teoria empírico-realista. Ele critica a crença de que os preços são a
essência da troca e só equivalentes são trocados. Em sua teoria
subjetiva do valor, não se faz troca de equivalentes: não tem sentido
econômico trocar valores iguais entre si. O indivíduo só se engaja
na troca se um valor mais alto puder ser obtido pelo bem recebido.
A teoria de preços deve explicar como o indivíduo é levado a trocar
quantidades específicas de bens com o objetivo de alcançar a mais
elevada satisfação possível de suas necessidades. Para tanto, a
exposição de Menger não trabalha com a derivação tradicional de
uma função de demanda, já que ele analisa bens que satisfazem a
diferentes classes de necessidades, dispostas na hierarquia de
níveis. Também não usa a matemática ou deriva teoremas de axio-
mas; apenas representa a base teórica de sua análise em suas
ilustrações da vida real. Hayek acredita que o mérito maior de
Menger recai mais na busca de detalhes em pontos conceituais
importantes do que na elegância formal. Embora clara, sua teoria
não teria muito apelo na forma em que ele a deixou. Coube a Von
Wieser, indica Hayek, tornar a análise da utilidade marginal aus-
tríaca apta a novos desenvolvimentos que culminaram na lógica da
escolha e no cálculo econômico. Menger está mais interessado em
explicar o princípio marginalista e torná-lo conhecido do que em
desenvolver uma completa teoria da utilidade marginal, incluindo
sua exata formulação matemática.
Menger não resolve a questão da transformação de valores em
preços. Sua solução na teoria dos preços é sempre indeterminada,
como no problema de monopólio bilateral. Os preços não podem
ser determinados, só podem ser localizados dentro de certa região
de indeterminação cujos limites são dados pelos valores subjetivos
dos participantes das trocas. É verdade que o preço pode ser deter-
minado empiricamente após a troca, porém a teoria não pode
prever esse preço, pois sua formação depende também de fatores
não-econômicos. A teoria só pode determinar ex ante os valores
subjetivos. A análise do valor leva à região possível dos preços
efetivos. É verdade que essa região pode ter seus limites estreita-
dos com um número maior de participantes. No caso limite da con-
corrência perfeita, ela poderia entrar em colapso num único ponto,
o que deixaria o preço univocamente determinado pelos valores
subjetivos. Todavia, isso só no caso competitivo. No caso geral, o
problema do preço só pode ser resolvido considerando-se fatores
exógenos à teoria.
Em Menger, a formação de preços não é um processo harmô-
nico e sem conflito; os preços não são totalmente determinados;

472
são estabelecidos por um processo de barganha entre limites
amplos. O poder de barganha depende da informação dos agentes.
A explicação austríaca do valor não parte dos custos de pro-
dução, pelo contrário, por meio dos preços dos produtos finais a
avaliação subjetiva é trazida de volta aos meios de produção. A
conexão causal vem em sentido oposto em relação aos economistas
clássicos; nos austríacos começa do bem final e propaga-se na
avaliação dos custos. Concordam que na competição perfeita os
preços são iguais aos custos marginais. Não que aqueles sejam
determinados por estes. O valor flui do produto final para os meios
de produção. A condução do valor nessa direção pode permanecer
oculta para cada um dos produtores intermediários, mas a organi-
zação da indústria, na prática, carrega a informação de estágio para
estágio. O custo para cada produtor tem de conformar-se ao valor
e não o contrário. Embora o nexo real de causa e efeito não seja
visto nas circunstâncias mais complicadas da indústria moderna, é
a produção que no longo prazo deve-se conformar com a natureza
e a medida dos desejos humanos.

JOSEPH SCHUMPETER
Joseph Aloisius Julius Schumpeter (1883-1850) nasceu em
Triesch, cidade que pertencia então ao Império Austro-Húngaro, no
mesmo ano em que nasceu Keynes e também o ano da morte de
Marx. Seu pai era Josef Alois K. Schumpeter, industrial de classe
média alta, e sua mãe chamava-se Johanna Marguerite Gruener. Era
de família católica, religião predominante na monarquia do Impé-
rio. O pai faleceu quando ele tinha apenas quatro anos de idade. No
ano seguinte, muda-se com a mãe para Graz, objetivando o seu
ingresso em escola mais prestigiada. Seis anos depois, a mãe viúva
se casaria com um ex-combatente do exército, e graças à ajuda dele
Schumpeter ingressaria na escola mais seleta de Viena, o Theresia-
num, em que estudavam os filhos da aristocracia.
Aluno de destaque, Schumpeter passa longas tardes na biblio-
teca estudando idiomas, e percorrendo farta literatura em sociolo-
gia, filosofia e arquitetura. Em 1901, ingressa na Faculdade de
Direito da Universidade de Viena, onde também pôde estudar
economia, estreitamente articulada ao curso de direito. A Univer-
sidade de Viena se firmara como um dos principais centros de
excelência no assunto, principalmente devido aos avanços teóricos
de Carl Menger, e de seus discípulos Böhm-Bawerk e Von Wieser.
Estes dois últimos foram professores de Schumpeter e influencia-

473
ram o seu pensamento. Em especial, os seminários que Böhm-
Bawerk conduziu entre 1905 e 1906 constituíram elemento impor-
tante na formação do jovem pensador.
Foi nessa época que Schumpeter definiu a sua perspectiva de
interesse no campo da economia. Forma visão dela que, uma vez
consolidada, irá permear, daí em diante, todo o trabalho subse-
quente. Ao concluir a graduação em 1906, ele publica o seu
primeiro artigo, intitulado Sobre o método matemático em econo-
mia teórica. Nele, faz uma revisão das maiores contribuições em
termos de métodos matemáticos para a economia. Nota-se,
entretanto, que embora enalteça o papel da matemática nessa
ciência, ele mesmo não fez e nem fará uso de formalização
matemática em suas teorias. No mesmo ano, também chama a
atenção o ensaio em que ele comenta o trabalho do economista
norte-americano J. B. Clark. Mesmo discordando do colega, Schum-
peter tece elogios, já demonstrando a sua simpatia com os econo-
mistas desse país.
Ainda em 1906, Schumpeter participa de seminários na
Universidade de Berlim, ocasião em que trava contato direto com
professores alemães que eram críticos vorazes à metodologia
econômica austríaca. Nesse ano, visita a França e depois vai à
Inglaterra, país ao qual retornaria amiúde. Permanece um tempo
na London School, como pesquisador visitante, frequentando
também outras universidades inglesas. Conhece Edgewoth e
Marshall pessoalmente.
Em 1907, Schumpeter se casa com Glayds R. Seaver, filha de
um clérigo anglicano, e parte então para o Egito, onde exerceria o
papel de advogado perante a Corte Mista Internacional, criada para
a defesa dos interesses ingleses na região. Torna-se consultor
econômico pessoal do rei turco que exercia poder no Egito. Mesmo
com todas essas atividades, no ano seguinte ele finaliza seu
primeiro livro A Natureza e a essência da economia política (“Das
Wesen”). Pretendendo conquistar os alemães, o livro trata da análi-
se estática de uma economia estacionária. Combina influências de
Léon Walras com as da Escola Austríaca. O modelo de equilíbrio
geral é apresentado sem formalização matemática, entretanto
Schumpeter esquematiza o fluxo circular de Walras com o mesmo
cuidado de comparar número de equações com número de
incógnitas e examinar o equilíbrio geral. Em setembro do mesmo
ano, ele torna-se professor associado da Universidade de Czerno-
witz, na Ucrânia. Nesta, ele termina seu segundo livro, Teoria do

474
desenvolvimento econômico, um livro tido como essencialmente
teórico.
O primeiro capítulo da “Teoria” retoma o fluxo circular como
ponto de partida para o fenômeno de inovação, conceito que ele
destacaria na obra. Inovação implica em um processo de mudança,
após o que a economia atinge novo estado de equilíbrio. Fenôme-
nos fundamentais da economia de mercado como intermediação
financeira, investimento, lucro e flutuações econômicas são expli-
cados pela ação do empresário inovador, ausente no estado de
equilíbrio. O fluxo circular aparece enquanto uma ficção conve-
niente, não como a essência do que ocorre numa economia capita-
lista.
Logo após publicar o livro, Schumpeter muda-se para Graz, na
Áustria, onde se torna o professor mais jovem da faculdade de
economia da Universidade de Graz, ocupando a cadeira que perten-
ceu a Richard Hildebrand. Entre 1913 e 1914, permanece como
professor visitante da Universidade de Columbia, no meio oeste
americano, e aproveita o período para visitar diversos centros e
conhecer pessoalmente Fisher, Mitchell e outros grandes econo-
mistas americanos. Estes se tornariam bastante próximos dele e
favoreceriam seu retorno a esse país ao longo dos anos 1920,
culminando na sua mudança definitiva para Harvard.
Ainda em 1914, publica Fundamentos do pensamento econô-
mico, com vista a ser incorporado em uma enciclopédia organizada
por Max Weber. O livro trata da história das ideias econômicas
entre 1750 e 1900. Na primeira parte, discute metodologia econô-
mica, nas segunda e terceira partes, faz um esboço de história do
pensamento econômica (HPE), começando com os fisiocratas,
passando por Adam Smith, até os clássicos ingleses e outros
economistas, de outras nacionalidades do século XIX. A última
parte do livro discorre sobre a escola história alemã e sobre o
marginalismo de Menger, Jevons e Walras. Os “Fundamentos”
serviram como protótipo do seu famoso História da análise
econômica, até hoje o mais conhecido livro de HPE, que só seria
publicado postumamente em 1954.
Durante a Grande Guerra, Schumpeter se manteve ao lado dos
Aliados. Discreto, passa esses anos publicando ensaios em econo-
mia monetária, finanças públicas e história econômica. Ao final da
guerra, em 1919 ele assume o posto de ministro das finanças da
Áustria, posição na qual permaneceria por poucos meses. Desliga-
do do cargo público, assume a presidência de um banco privado. Foi
uma passagem desastrosa como homem de negócio. O banco faliria
475
em 1924, e toda a fortuna pessoal de Schumpeter será perdida nes-
ta empreitada. Schumpeter decide então voltar a lecionar, estabele-
cendo-se em Bonn, na Alemanha, entre 1925 e 1932. Com a
ascensão do nazismo, ele teve de deixar a Europa, vindo a se
estabelecer na Universidade de Harvard. Permaneceu ali até sua
morte em 1950.
Na fase americana, destacam-se duas contribuições da máxima
importância: Ciclo de negócios, de 1939, e Socialismo, capitalismo
e democracia de 1942. Este livro teve grande impacto na forma de
os economistas pensarem. Em especial, ele lançou uma nova visão
do papel das estruturas concentradas de mercado, mostrando que
o monopólio apresenta efeitos benéficos para a sociedade quando
examinado em uma perspectiva dinâmica e de longo prazo. No
capítulo 8, intitulado “Práticas monopolistas”, ele confere um novo
sentido às “práticas restritivas” quando vistas fora do estado
estacionário. Na ótica de Schumpeter, as tais práticas restritivas
possibilitam à indústria lucros extraordinários que irão financiar
inversões no processo de inovação, caracterizado como sendo de
“destruição criadora”: abole-se a velha tecnologia em prol das
novas. Práticas que levam a restrições nos mercados, e que garan-
tem ganhos excepcionais a inovadores, como salvaguardas, paten-
tes, e outros meios, funcionam como forte estímulo ao esforço de
investimento com vista à inovação. Planos ambiciosos são viabili-
zados ao se conter a concorrência. Com a proteção, o inovador
ganha tempo e espaço para se firmar.
Schumpeter reconhece que a análise do benefício das práticas
monopolistas torna bem mais complexa a intervenção pública no
funcionamento do setor privado da economia. Não basta ao gestor
de políticas ter em conta o efeito de curto prazo do monopólio, que
é prejudicial por manter a produção abaixo do potencial, e por
praticar preços acima do custo marginal, inibindo o consumo. Há
de se ver também o papel positivo das práticas monopolistas:
“Restrições ao comércio do tipo cartel ou aquelas que
consistem meramente em reconhecer as limitações do proces-
so de competição via preços são remédios efetivos nas
condições de depressão econômica [...] Elas devem ao final
produzir uma expansão da produção total não apenas mais
estável, mas também maior e que não poderia se assegurar em
um concurso inteiramente não controlado.” (J. Schumpeter,
Socialism, capitalism and democracy)
Ou seja, o monopólio assegura uma estabilidade maior dos
preços na época de depressões econômicas. Schumpeter conceitua
476
os preços como sendo rígidos sempre que eles se tornam menos
sensíveis a mudanças nas condições de oferta e demanda do que
seriam se prevalecesse a competição perfeita. Os preços flexíveis
do livre mercado oscilam muito no curto prazo e não têm como
transmitir aos agentes o fato de que ao longo do tempo inovações
de processos e de mercadorias, que destroem as antigas estruturas,
irão satisfazer a dada necessidade a um preço inferior por unidade
de serviço. Em geral, novas melhorias levam de imediato a custos
adicionais que depois serão diluídos. Se os preços forem flexíveis,
tais custos se refletirão imediatamente nos preços e, com isso,
novos bens de consumo introduzidos de modo experimental
acabam não conquistando o mercado potencial. Inibe-se então o
processo de melhorias contínuas na qualidade do produto. Já com
preços rígidos, eles permanecem constantes no curto prazo, mes-
mo que novas melhorias levem a custos adicionais. No longo prazo,
os preços se adaptam ao progresso tecnológico. O papel positivo da
rigidez de preços consiste em responder a tendências de longo
prazo e não oscilar com causas espúrias de curto prazo.
Como a rigidez de preço de curto prazo afeta o desenvol-
vimento da produção total? Os preços rígidos protegem a indústria
em momentos de depressão, pois atenuam a queda dos preços.
Além do mais, na trajetória entre os ciclos a rigidez de preço acelera
o processo de inovação caracterizado pela destruição de equipa-
mentos que irá afetar a produção no longo prazo. Preços rígidos
também têm influência no consumo total. A queda dos preços na
recessão poderia estimular o consumo e ajudar a economia a sair
do buraco. Contudo, esse efeito positivo da flexibilidade dos preços
tem impacto menor. O consumo presente depende de expectativas.
Se elas são pessimistas, mesmo com queda de preço o consumo não
aumentará. Em suma, a rigidez de preço associada à prática mono-
polista tem um efeito estabilizador na economia:
“Sob as condições criadas pela evolução do capitalismo,
perfeita e universal flexibilidade de preços deve, na depressão,
tornar o sistema ainda mais instável, ao invés de estabilizá-lo
como, de fato, o seria nas condições indicadas pela teoria
geral”. (Ibidem)
Então, concluindo, Schumpeter teria demonstrado que as prá-
ticas monopolistas injetam vigor nas economias ao contrário da
visão tradicional avessa ao monopólio:
“A teoria simples e genérica do monopólio ensina-nos que
o preço de monopólio é mais elevado e a produção monopo-
lista é menor do que preços e produção competitivos. Isso é
477
verdade, contanto que o método e a organização da produção,
e tudo o mais, sejam exatamente os mesmos em ambos os
casos. De fato, vicejam métodos superiores disponíveis aos
monopolistas que não estão disponíveis a toda a gama de
competidores ou, se o estiverem, não o estarão tão prontamen-
te: há vantagens que embora não estritamente inatingíveis às
empresas competitivas, seriam asseguradas, na prática, ape-
nas ao monopolistas, por exemplo, porque o monopolista se
beneficia de um aporte financeiro desproporcionalmente
maior.” (Ibidem)

ESCOLA AUSTRÍACA
Menger inaugurou uma tradição dentro da economia científica
que se tornou conhecida como Escola Austríaca. Schumpeter,
embora austríaco, não é tradicionalmente considerado membro
dessa escola, porque ele se afastou das influências de Menger e se
aproximou do tratamento walrasiano da economia. Ao longo de
seis gerações de economistas, os adeptos da escola austríaca procu-
raram uma via própria de pensamento distinta da ortodoxia
econômica, embora interagindo com ela e compartilhando pontos
teóricos e conceituais. O que particulariza a tradição austríaca é a
ênfase que dá ao estudo dos processos de mercado e ao subjeti-
vismo do agente econômico. Atualmente, poderíamos arrolar uma
lista considerável de autores dessa escola: R. Ebeling, R. W.
Garrison, R. N. Langlois, D. C. Lavoie, S. C. Littlechild, G. P. O’Driscol,
M. Rizzo, L. Lachmann, I. Kirzner, M. Rothbard e Luis Spadaro são
os mais conhecidos.
Nas primeiras gerações de austríacos da escola, destacam-se
Böhm-Bawerk e Wieser, que deram renome à escola e tornaram-se
muito respeitados. Suas contribuições teóricas foram bastante
aproveitadas na edificação de uma teoria do valor, da produção, dos
ciclos econômicos e da lógica da escolha entre o início do século XX
e os anos 1930. Nas décadas de 1920 e 1930 projetam-se os nomes
de Ludwig von Mises (1881-1973) e de seu colega F. A. von Hayek.
Mises tornou-se conhecido por sua teoria monetária na expli-
cação do ciclo econômico e também se destacou como um paladino
da economia de mercado, apoiando suas teses liberais na constru-
ção de uma nova epistemologia econômica. Hayek tornou-se, de
início, um nome conhecido por suas contribuições versando sobre
aspectos monetários do ciclo de investimento. As controvérsias
teóricas em torno das questões de ciclo econômico, capital, investi-

478
mento e poupança, entre ele e opositores do porte de J. M. Keynes e
P. Sraffa, tornaram-se célebres na história do pensamento econô-
mico. Hayek propunha uma explicação dos ciclos econômicos em
que a crise era ocasionada por oferta desproporcional de capitais.
A expansão da oferta monetária, ao reduzir as taxas de juros, induz
os agentes a investirem em excesso na obtenção de bens de produz-
ção. A crise é provocada pela desproporção entre bens de consumo
e bens de produção. Isso levaria ao declínio dos investimentos e a
uma perda de parte do capital produtivo; capital este que havia sido
superdimensionado em função de taxas de investimento excessiva-
mente altas.
O interesse de Hayek por questões técnicas em economia foi-
se arrefecendo e ele voltou-se às temáticas de psicologia e episte-
mologia social que ultrapassam o âmbito mais restrito da discipli-
na. Os argumentos de Hayek e Mises contra a possibilidade do
cálculo racional no socialismo talvez representem a principal con-
tribuição desses autores.
Embora Mises e Hayek sejam seguidores de Menger, rompe-
ram com ele no que tange ao fundamento filosófico da economia. E
essa ruptura por certo levou a versões teóricas diferenciadas em
teoria do valor. Ambos repudiam o aristotelismo de Menger e a
crença em estruturas essenciais da realidade econômica como um
dado objetivo. Mises adere ao neokantismo na construção de um
subjetivismo mais radical apoiado na praxeologia : a ciência da ação
humana. A filosofia econômica de Hayek fundamenta-se em seus
estudos em psicologia sensorial e na influência do filósofo Karl
Popper. Hayek não adere ao subjetivismo radical de Mises e nem ao
naturalismo de Menger. Apoia-se num subjetivismo evolucionista
para explicar não apenas o processo de formação de ideias que
condicionam a ação individual, mas também o surgimento e funcio-
namento das instituições sociais.

479
Questões

1. Construa uma tabela com a escala de importância das neces-


sidades atendidas pelo mesmo bem homogêneo e mostre como
são determinadas a alocação de parcelas dele entre os dife-
rentes usos e o valor de uma unidade do bem em questão.
2. Em Menger, o que o leva a acreditar que o valor é a essência e o
preço a aparência do fenômeno?
3. A investigação econômica para Menger subdivide-se em pelo
menos três partes: história e estatística, teoria exata e ciência
aplicada. O que estuda cada uma delas e qual a relação entre
essas áreas?
4. Quais foram as principais influências intelectuais que contri-
buíram para a formação de Carl Menger no plano da teoria
econômica e de seus fundamentos filosóficos?
5. Qual o papel da introspecção (Verstehen), em Menger, no estu-
do dos fatos econômicos?
6. Discuta o conceito de valor em Menger, separando valor subje-
tivo, objetivo e pessoal.
7. O que são bens de primeira, segunda e demais ordens?
8. Mostre que no esquema de Menger o fator tempo desempenha
necessariamente um papel fundamental.
9. Em Menger, se o valor dos bens de ordem elevada não é apenas
a transferência integral do valor do respectivo bem de primeira
ordem, que elementos adicionais devem ser considerados para
se chegar ao valor do capital?
10. No que consiste o problema epistemológico fundamental em
Menger? Qual a solução de Menger tal como aparece nas
“Investigações”?
11. Comente duas influências aristotélicas em Menger: a causa-
lidade e o realismo filosófico.
12. O que foi a Batalha dos Métodos?
13. Mostre situações em que os preços ficam indeterminados den-
tro de uma faixa de variação, baseado em um exemplo com n
compradores e m vendedores de uma mercadoria homogênea.
É correto dizer que não há nada em Menger para explicar os
preços e que ele só trata teoricamente os valores? Preço é

480
apenas um fenômeno histórico ou a teoria exata prediz sua
faixa de variação?
14. Compare a análise da natureza das necessidades humanas em
Marshall e Menger.
15. Por que se considera a filosofia de Menger como sendo “natu-
ralista”?
16. No que consiste a chamada escola austríaca? Ela representa
uma continuação das ideias de Menger? Justifique.
17. Esboce sumariamente o conteúdo da obra Teoria do desenvol-
vimento econômico de Schumpeter.
18. Por que, para Schumpeter, as “práticas restritivas” de mercado
podem desempenhar um papel positivo na economia?

481
Leitura Adicional

Leitura Primária

MENGER, Carl. Toward a systematic classification of the economic


sciences. In: SOMMER, L. (Ed.). Essays in European economic
thought. Princeton: Van Nostrand, 1960.

_____. Investigations into the Method of the Social Sciences with


Special Reference to Economics. New York, New York University
Press, 1985.

_____. Princípios de economia política. São Paulo: Nova Cultural,


1988.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalism, socialism, and democracy. New


York: Harper, 1942.

Leitura Secundária

ALTER, M. Carl Menger and homo oeconomicus: some thoughts on


austrian theory and methodology. Journal of Economic Issues, v.
16, 1, 1982.

_____. What do we know about Menger? In: CALDWELL, B. J. (Ed.). Carl


Menger and his legacy in economics. Annual supplement to vol.
22. History of Political Economy. Durham and London: Duke
University Press, 1990.

BIRNER, J. A roundabout solution to a fundamental problem in


Menger’s methodology and Beyond. In: CALDWELL, B. J. (Ed.). Carl
Menger and his legacy in economics. History of Political Econo-
my. Durham and London: Duke University Press, 1990.

CRAVER, E. The emigration of the Austrian economists. History of


Political Economy, v. 18, 1, 1986.

CUBEDDU, R. The philosophy of the Austrian school. London and


New York: Routledge, 1993.

FEIJÓ, Ricardo L. C. Economia e filosofia na escola austríaca: Menger,


Mises e Hayek. São Paulo: Nobel, 2000.

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HAYEK, F. A. The Austrian school. In: SILLS, D. L. (Ed.). International
encyclopedia of the social sciences. New York: Macmillan and
Free Press, v. 4, 1968, p. 458-462.

_____. Carl Menger. In: SILLS, D. L. (Ed.). International encyclopedia


of the social sciences. New York: Macmillan and Free Press, v. 4,
1968, p. 124-127.

HICKS, J. R.; WEBER, W. (Ed.). Carl Menger and the austrian econo-
mics. Oxford: Clarendon, 1973.

HUTCHISON, T. W. The politics and philosophy of economics: Mar-


xists, Keynesians and Austrians. Oxford: Blackwell, 1981.

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school. Zeitschrift für Nationalökonomie, 17, p. 411-425, 1957.

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mics, 1987.

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v. 1.

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Menger, Wieser, and Böhm-Bawerk. New York: Kelley, 1966.

STIGLER, George, J. The economics of Carl Menger. The Journal of


Political Economy, v.45, 2, 1937.

483
484
12
Keynes e a Evolução
da Macroeconomia

VIDA E INFLUÊNCIAS
O economista da escola de Chicago, Milton Friedman, afirmara,
certa vez, que John Maynard Keynes (1883-1946) é o último repre-
sentante de uma preciosa linhagem de grandes economistas britâ-
nicos que vieram a exercer profunda influência na disciplina econô-
mica, ao lado de Adam Smith, David Ricardo, Stuart Mill, William
Jevons e Alfred Marshall. Se até os anos 1930 o mundo de língua
inglesa foi dominado, no campo do pensamento econômico, pelas
ideias deste último autor, dessa década até os anos 1960 a posição
ocupada por Keynes na academia era inigualável, e até hoje ele
permanece no centro das atenções, mesmo que crescentemente
também como alvo de críticas. Sua principal obra, A teoria geral do
emprego, dos juros e da moeda, de 1936, permanece como uma das
principais referências na formação do economista. Tal obra afigura-
se, talvez, o mais influente tratado em ciência social do século XX,
que mudou a maneira de olhar a economia e o papel do governo na
sociedade. Nenhum outro livro, antes ou depois dele, teve esse
impacto. Sobre ele, o mesmo Friedman escreve:
“Ao listar o clássico de cada um desses grandes economistas
ingleses, o historiador irá se referir à Teoria Geral como a
contribuição decisiva de Keynes.” (M. Friedman, John Maynard
Keynes)
Já se tornou chavão afirmar que Keynes foi produto de sua
época; nasceu ainda em tempos áureos da Inglaterra vitoriana e
assistiu, ao longo de sua vida, à inacreditável decadência de vasto
império econômico e cultural; impulsionada por duas terríveis
guerras mundiais e por crises econômicas profundas que se suce-
diam. Era o filho mais velho de uma família de classe média alta
residente em Cambridge. Descendia de um cavaleiro normando,
William de Cahagnes. Seu avô paterno enriquecera como horticul-
485
tor e seu pai, já conhecemos, é John Neville Keynes, autor de
célebres escritos em metodologia econômica, que também se
firmara como professor de carreira, ensinando lógica e economia
política, e ocupando cargos na Universidade. Sua mãe Florence Ada
Brown, depois Florence Keynes, foi uma notável mulher; autora de
sucesso e pioneira na proposição de reformas sociais. Foi prefeita
de Cambridge. Curiosamente ambos os pais viveram mais que o
filho.
O círculo de relacionamentos paternos proporcionou a Keynes,
desde cedo, contato estreito com os mais destacados economistas
e filósofos da época. Marshall, Herbert Foxwell, Henry Sidgwick,
William Ernest Johnson e James Ward eram companheiros de
Neville. De fato, em nada a atmosfera em torno do pequeno Keynes
era mundana e, como o pai, ele aprendeu precocemente a julgar a
vida, sua e dos outros, por critérios intelectuais e estéticos. A exce-
lência acadêmica era cultuada como valor supremo. Keynes
pertencia então a essa classe média pensante que se via na obriga-
ção de liderar as massas.
Aos sete anos, Keynes ingressou na pré-escola de Perse, no
entanto, sempre aprendia mais do que lhe era ensinado, graças às
lições que recebia em casa. Dois anos depois, entrou na escola
preparatória de St. Faith. Aos poucos, a criança foi revelando seus
dotes intelectuais e, em 1894, Keynes foi reconhecido como o
melhor aluno da classe, recebendo, na ocasião, prêmio pelo desem-
penho em matemática. Em 1897, obteve uma bolsa para Eton, a
melhor escola da Grã-Bretanha, junto com outros 20 garotos
criteriosamente selecionados. Tido como excelente aluno, passou a
ganhar seguidamente prêmios e foi aceito no clube social exclusivo
do colégio. Além da matemática, demonstrava uma variedade
extraordinária de interesses e aptidões, era bom em filosofia, litera-
tura e história, e também conseguiu o respeito dos atletas da escola.
Enquanto se desenvolvia para ser o administrador arrogante, era
também um outro Maynard para os amigos íntimos, em geral escri-
tores, poetas e artistas.
Em outubro de 1902, ele foi para o King’s College, na Univer-
sidade de Cambridge, com bolsa para matemática e os estudos
clássicos. Foi orientado por Ernest William Hobson, conhecido
matemático inglês, que identificou no pupilo um competente
matemático, mas não um gênio. Escreve Hobson sobre Keynes:
“Ele não tinha um gênio específico para a matemática. Ele
trilhava este caminho com certo esforço; não procurava aque-
las regiões obscuras que são a alegria no coração do matemá-
486
tico profissional.” (Apud O’Connor e Robertson, John Maynard
Keynes)
Embora tenha alcançado menção honrosa (Tripos) no diploma
de matemática conseguido em 1905, os estudos na disciplina não
lhe proporcionavam grande prazer, e ele passava a maior parte do
tempo em outras atividades, estudando filosofia e lógica, atuando
na associação dos estudantes, jogando bridge, entregando-se à sua
paixão por amizades ou cultivando o gosto, alimentado desde os
doze anos, de colecionar livros antigos. Já havia adquirido 329
livros raros antes de ingressar na Universidade.
Imediatamente após conseguir o Tripos, Keynes torna-se um
sério estudante de economia, lendo os principais textos na matéria.
Por um breve período, considerou a possibilidade de alcançar um
segundo diploma, agora em economia, no entanto, acabou desis-
tindo da ideia. Após umas férias na Suíça, retorna a Cambridge em
outubro de 1905, onde passa a frequentar as lectures de Alfred
Marshall em economia. Em agosto de 1906, tira o segundo lugar no
concurso para o serviço público, dentre dez que foram aceitos, atrás
de Otto Niemeyer.42 Enquanto o primeiro colocado conquistara
emprego no mais cobiçado Departamento do Tesouro, Keynes teve
de se conformar ao cargo no Escritório da Índia como funcionário
em treinamento. Ficou aborrecido com o resultado detalhado do
exame; foi o primeiro colocado em lógica, psicologia e em redação.
O pior desempenho tinha sido em matemática e economia. Ele não
aceitou o resultado e comentou, na ocasião, que sabia mais sobre
esses assuntos que os examinadores; provavelmente Keynes estava
certo.
O trabalho no escritório da Índia não agradava a Keynes; agora
ele mais se dedica a desenvolver uma dissertação sobre a teoria da
probabilidade. Mesmo assim, em dois anos de trabalho rotineiro,
Keynes adquire sólido conhecimento do sistema financeiro da
Índia, o que o leva a ser nomeado membro da Comissão de Finanças
e Moeda da Índia em 1913. Antes disso, em 1909, os escritos sobre
probabilidade valeram-lhe a admissão como Fellowship no King’s
College. Cambridge seria seu lar acadêmico até o fim da vida. O
processo de aprovação, no entanto, não foi fácil: examinada por
Johnson e Whitehead, a dissertação sobre probabilidade não foi
imediatamente aceita. Em junho de 1908, Keynes teve de se desli-
gar do Escritório da Índia e pedir ajuda financeira ao pai a fim de

42Sir Otto Ernst Niemeyer (1883-1971) foi diretor financeiro do tesouro


britânico e diretor do Banco da Inglaterra. Trabalhou nos anos 1930 como
consultor financeiro para o governo da Austrália.
487
retornar ao King’s College na esperança de ser mais bem-sucedido
em nova tentativa. Seguindo os comentários detalhados dos mes-
mos examinadores, Keynes trata de melhorar a dissertação, discu-
tindo-a também com Bertrand Russell. Após submeter nova versão,
finalmente ele é aprovado com uma avaliação bastante elogiosa.
Whitehead escreve a respeito:
“Seus axiomas são bons; eles são simples e poucos, e com a
ajuda de certo simbolismo ele deduz todo o assunto pelo uso
de raciocínio rigoroso. A grande segurança e facilidade nas
quais ele se habilita a resolver questões difíceis e detectar
erros e ambiguidades nos trabalhos dos seus predecessores
exemplifica e ao mesmo tempo quase esconde a vantagem que
ele proporciona.” (Apud O’Connor e Robertson, John Maynard
Keynes)
B. Russell comenta, escrevendo sobre o trabalho de Keynes em
probabilidade:
“O cálculo matemático é espantosamente poderoso, consi-
derando as premissas restritas que formam seu fundamento
[...] O ensaio como um todo é do tipo que torna impossível uma
avaliação completa e espera-se que ele estimule trabalhos
adicionais em tema da maior importância, que filósofos e lógi-
cos têm indevidamente ignorado.” (Ibidem)
As ideias de Keynes em probabilidade vão ao encontro da crise
do determinismo na física clássica em sua época. Surgem então
novas lógicas, em que filósofos e matemáticos passam a enfatizar
os conceitos de acaso e probabilidade. A possibilidade de raciona-
lização quanto ao curso dos eventos é questionada. Com ela, as
novas teorias em probabilidade passam a enfocar a questão da
incerteza quanto às consequências das ações.
Keynes tenta expandir o campo do argumento lógico a fim de
abranger os casos em que as conclusões são incertas. Ele desman-
tela a teoria clássica da probabilidade e lança o que se tornou
conhecido como a teoria subjetiva ou relacional da probabilidade.
O famoso lógico Frank P. Ramsey considerou o trabalho de Keynes
superior à sua própria versão anterior da teoria subjetiva da
probabilidade.
A compreensão da ação humana requer algo mais que a mera
observância de frequências em eventos passados. É preciso aden-
trar a lógica da tomada de decisão. Keynes, em seu trabalho em
probabilidade, busca compreender a conduta humana para derivar
os meios de influenciá-la. Não há um padrão preestabelecido que

488
controle as ações humanas. Tais ações dependem do conjunto
prévio de crenças e opiniões que comanda a racionalidade indivi-
dual de quem age. No estudo do comportamento humano, contra a
aplicação da visão causal, típica da física clássica, Keynes enfatiza a
visão não determinista. O ensaio em probabilidade busca um ponto
de partida na tentativa de fundamentação probabilística das cren-
ças individuais.
Keynes agora é o professor de economia em Cambridge. Rece-
be uma bolsa dada por Marshall, dedica-se aos estudos e viaja
amiúde durante as férias. Ocupa seu tempo escrevendo e publican-
do papers em estatística. Em artigos que aparecem na revista da
Royal Statistical Society, ataca o trabalho de Karl Pearson. Keynes
rejeita a utilização por Pearson de métodos indutivos para estabe-
lecer verdades sociais: por exemplo, a influência do alcoolismo dos
pais na vida dos filhos. A oposição ao indutivismo refletia seu
ceticismo quanto ao valor das deduções estatísticas, o que acompa-
nhava sua rejeição da teoria estatística frequencialista da probabi-
lidade. Talvez a base científica de Pearson fosse melhor que a dele,
contudo, sem dúvida, os escritos de Keynes eram mais persuasivos
pelo estilo e a maneira de escrever, o que injustamente obscurecia
a contribuição de Pearson. Até 1915, Keynes ministra cursos e
orienta alunos em temas ligados a moeda, crédito e preços. Ele vai
ganhando reputação profissional. Na mesma época, entre 1910 e
1911, também escrevera sobre questões econômicas relativas à
Índia, publicando o livro Moeda da Índia e finanças, em 1913. Este
é considerado um clássico e contém primorosa descrição do câm-
bio no padrão-ouro; ele mostra a profundidade de Keynes no
conhecimento do funcionamento das instituições financeiras. É
uma tentativa lúcida para aplicar a teoria monetária existente à
reforma do sistema monetário da Índia. Nele, Keynes defende o
padrão-ouro e a criação de um banco central para esse país. As
ideias do livro foram debatidas e apresentadas em maiores deta-
lhes na Comissão de Finanças e Moeda da Índia. Aos 28 anos,
Keynes é nomeado editor do The Economic Journal.
O ensaio de Keynes em probabilidade transborda nitidamente
para seu trabalho em economia. O próprio interesse dele por
questões monetárias estava conectado a suas preocupações com o
problema do conhecimento em economia. Até então, Keynes era um
adepto ortodoxo da teoria quantitativa da moeda marshalliana e
pouco fizera a fim de ampliar os limites da matéria. No entanto,
havia-se dado conta de que a economia não podia ser uma ciência
exata porque o número de variáveis era grande demais e a estabi-
lidade delas, com o passar do tempo, não podia ser garantida. No
489
caso da moeda, a importância da questão do conhecimento era
evidente, pois os valores monetários intertemporais estão sujeitos
a incertezas relativas a ocorrências futuras; o mesmo tipo de incer-
teza que contamina as previsões estatísticas, exaustivamente
discutido no tratado de probabilidade. Em trabalhos futuros, a
questão da incerteza tornar-se-ia cada vez mais importante nas
reflexões de Keynes.
As preocupações com o processo da formação de crenças na
questão da probabilidade e o trabalho de economista não consu-
miam toda atenção de Keynes. Ele também estava voltado a ques-
tões filosóficas e existenciais mais amplas. Para tanto, o melhor
ambiente de discussão estava fora da academia e das burocracias
públicas. Keynes encontrava amparo e bons interlocutores no
Grupo de Bloomsbury, do qual se tornou membro no final da
década de 1900 e no qual poderia encontrar-se com seus grandes
amigos, quase todos formados pelas faculdades de Cambridge.
Desse grupo faziam parte, além de Keynes, Leonard e Virginia
Woolf, e Clive Bell; e também os “Apóstolos”, membros de uma
antiga sociedade secreta de debates filosóficos fundada em 1820,
da qual Keynes fez parte quando estudante e que foi incorporada
àquele Grupo. Dentre os Apóstolos, estavam Lytton Strachey, gran-
de amigo de Keynes, e outros nomes como Lowes Dickinson, Henry
Sidgwick, John Ellis McTaggart, Alfred North Whitehead, e Roger
Fry. Eles atuavam em diferentes áreas, eram filósofos, críticos de
arte, escritores e artistas. Robert Skidelsky, importante biógrafo de
Keynes, comenta a natureza do Grupo:
“Era um círculo de jovens escritores e artistas que encon-
trou na vida mais libertária do bairro pouco elegante de
Bloomsbury, em Londres, um meio de escapar às convenções
tacanhas das casas dos pais. Foi nesse grupo de talentosos ami-
gos, em parte admiradores, em parte críticos e frequentemente
maliciosos, que Maynard Keynes encontrou seu lar emocional
antes de se casar.” (R. Skidelsky, Keynes)
Bertrand Russel, Aldous Huxley e T. S. Eliot tiveram associação
superficial com o grupo. Em comum, os membros do círculo de
Bloomsbury eram seguidores das crenças filosóficas de G. E. Moore,
também Apóstolo, e eles tinham o Principia ethica de Moore, de
1903, como principal referência em filosofia. A fim de situar a
importância dessa obra, deve-se precisar o perfil psicológico e
social do leitor típico que se encantou com sua mensagem. Os
membros do Grupo de Bloomsbury eram todos da elite dirigente
não aristocrática da Grã-Bretanha. Pertenciam a três grupos fami-

490
liares distintos: evangélicos, filantrópicos e quakers. Tais pessoas,
em geral, só admitiam casamentos internos e as fortunas indivi-
duais de suas famílias iam-se somando cada vez que ocorria uma
união entre eles. Amealharam grande fortuna na Inglaterra vitoria-
na. Deles, nasceram pensadores como Huxley, Strachey, Charles
Darwin e Keynes. Essa classe média culta ocupa os postos que eram
da nobreza na administração do império britânico.
Vejamos algo do conteúdo dos Principia ethica e de como ele
se coaduna com o espírito dos amigos de Bloomsbury. Com o
desmoronamento da moral vitoriana que acompanhou o declínio
do império, Keynes e seu grupo buscavam novos valores que pode-
riam substituir as antigas crenças associadas ao status quo, à
monarquia, Igreja, enfim, aos valores da Inglaterra vitoriana.
Keynes e seus amigos eram todos ateus militantes, porém o
abandono das crenças que acreditavam falsas não havia removido
a necessidade de crenças que pudessem considerar verdadeiras.
Buscavam apoiar-se na filosofia moral em troca da religião e encon-
traram em Moore o que desejavam.
Moore ofereceu-lhes uma filosofia contra a moral vitoriana. O
conceito ético central de bem foi definido por ele em oposição ao
idealismo e ao naturalismo ético. A crítica ao idealismo tem como
alvo os escritos de McTaggart, membro de Bloomsbury. O idealismo
foi identificado como linguagem obscura e que não resistiria a um
exercício de esclarecimento de conteúdo. A arte da conversação
identifica critérios para a busca de clareza na linguagem. Conceitos
como amor, amizade e arte podem ser dissecados por meio de
análise de significados. “What exactly do you mean?”, perguntavam
entre si. A refutação ao idealismo não implicava definir termos
como bem apenas em função de propriedades naturais, conforme
propunha o naturalismo ético. O bem não é um espírito, como o
concebia o idealismo, entretanto, ainda assim é uma ideia, distinta
da realidade material e algo indefinível. Embora o bem possa ser
identificado e reconhecido em experiências, os conceitos morais
em si mesmos são apreendidos pela intuição.
Onde está o bem? Moore convenceu-os do valor supremo das
experiências estéticas e da amizade pessoal. Nas palavras de Ski-
delsky:
“Moore eliminou a melancolia da geração anterior, que não
conseguia encontrar motivos convincentes para cumprir seu
dever. Injetou novo ânimo nos debates de cunho moral, defen-
dendo um novo argumento baseando-se na filosofia analítica

491
de Cambridge a favor do desinteresse pelo mundo.” (R. Skidel-
sky, Keynes)
Arte e relações humanas eram tudo o que importava no plano
moral. Os amigos de Bloomsbury eram todos amantes da arte.
Keynes interessava-se por arte, embora não fosse artista. Ao longo
de sua vida deu diversas contribuições financiando artistas, cole-
cionando obras de arte e patrocinando salas de espetáculo. Keynes
viveu uma época efervescente nas artes: o impressionismo já
estava assimilado e as vanguardas pós-impressionistas procura-
vam firmar-se. Quase no fim da vida, tornou-se chairman do recém-
inaugurado Comitê para o Estímulo à Música e às Artes, que depois
da Segunda Guerra Mundial tornou-se o Conselho Britânico de Arte.
No plano das relações humanas, a ênfase incidia em aprofun-
dar as ligações entre amigos, pessoas presumivelmente no mesmo
patamar social e cultura similar. Keynes e os que o cercavam eram
rebeldes diante de qualquer padronização das relações pessoais e
do tipo de prazer derivado delas. Não aceitavam o enquadramento
nos costumes e praticavam entre eles certa “imoralidade”, com
troca de parceiros e ligações não convencionais. O “melhor amigo”
de Keynes, de 1908 a 1911, foi o pintor Duncan Grant, primo de
Strachey. No entanto, as amizades de Keynes não excluíam a capaci-
dade de se apaixonar e ter um relacionamento feliz com a mulher
certa, e ela apareceu em outubro de 1918, quando o balé de
Diaghilev voltou a Londres com a peça A bela adormecida, de Tchai-
kovsky (e em “The Good Homored Ladies” ).43 Keynes conheceu
então a bailarina Lydia Lopokova, descrita por Skidelsky como...
“Pequenina e esperta, de nariz arrebitado e uma cabeça que
lembrava a Virginia Woolf um ovo de pássaro.” (Ibidem)
Começou a cortejá-la em fins de 1921 e se casaram em agosto
de 1925.
Além de cultivar o amor no relacionamento humano e o prazer
da experiência estética, Keynes adiciona a busca do conhecimento
como um dos principais objetivos da boa vida. Essa busca implica
em estudos de filosofia e de economia, mais daquela do que desta.

43 The Good Homored Ladies (As Senhoras Bem-humoradas) é um balé


com cenários e figurinos de Léon Bakst, coreografia de Léonide Massine e
música arranjada de sonatas de Domenico Scarlatti por Vincenzo Tomma-
sini. Escrita em 1917, a peça foi baseada em uma comédia de Carlo
Goldoni; seu enredo diz respeito às diversões de um conde disfarçado de
mulher, em um carnaval. Foi produzido originalmente em Roma, em abril
de 1917, pelo balé russo de Sergei Diaghilev.
492
Moore dizia que as coisas mais valiosas que podemos imaginar são
os estados de consciência descritos como os prazeres do relacio-
namento humano e da apreciação de belos objetos; Keynes acres-
centa a esses dois o amor ao conhecimento. Os estados de espíritos
bons e maus são anteriores às boas e más ações; no entanto, as boas
ações devem reforçar bons estados de espírito. Se essa proposição
serve para definir o que seria a boa ação no plano individual, como
então seria possível relacionar o bem individual ao bem coletivo, de
que forma a bondade do indivíduo e a bondade do universo podem
reconciliar-se, ou seja, qual é a base racional para o comportamento
altruísta? Moore não responde a essa questão e, portanto, não há
um critério de progresso ético em sua filosofia moral. Keynes pro-
cura suprimir tal lacuna.
Como não é possível uma inspeção direta do estado de espírito
dos outros, não se pode concluir quais atos aumentam a bondade
de todo o universo. Só se pode julgar a bondade de um estado de
coisas referindo-se ao tempo e a objetos da experiência. A total-
dade é então decomposta por Keynes em estados de espírito intrin-
secamente bons e objetos convenientes ou desejáveis. Tais objetos
não precisam ter valor ético próprio, porém a existência deles
valoriza a experiência individual. Assim, melhorando a qualidade
dos objetos da experiência, aumenta-se a bondade ética do univer-
so. Segue-se que a bondade aumenta por um aumento na quantida-
de de beleza.
A ideia de aumentar a beleza do mundo sempre perseguira
Keynes, quer como filantropo, quer como colecionador de pinturas
ou construtor do Teatro das Artes de Cambridge. Depois, quando
passou a defender um programa de investimento público como
saída da recessão, pensava que os gastos do governo poderiam ser
canalizados para dotar as cidades da Grã-Bretanha de belos jardins
e esculturas. Keynes também imaginou que se poderia elevar os
padrões da educação e do conforto visando à melhoria da inteli-
gência, da sensibilidade e da boa aparência da população, e com
isso da bondade coletiva.
A filosofia de Moore está intimamente relacionada às preo-
cupações de Keynes no estudo da probabilidade. Moore dizia que
devemos proceder de modo a produzir a maior quantidade possível
de bem no universo. No entanto, conhecemos apenas a probabi-
lidade dos efeitos de nossos atos. Moore achava que homens e
mulheres deveriam contentar-se em seguir preceitos morais am-
plamente aceitos e praticados. Keynes vislumbrou no campo da
probabilidade a base racional para julgamentos individuais. Para

493
ele, Moore confundia probabilidade com frequência relativa de
ocorrências. Não sabemos se o bem no futuro próximo não será
excedido pelo mal num futuro mais distante, contudo, basta que
não tenhamos motivos para crer que todo bem imediato que possa-
mos alcançar seja destruído pela consequência mais remota. O
conhecimento probabilístico tem a ver com a influência das infor-
mações sobre as conclusões. A tese sobre probabilidade foi o resul-
tado dessa percepção.
A teoria da probabilidade de Keynes é o resultado de uma
reflexão filosófica que pretende conciliar duas tradições ligadas,
cada qual, a um dos dois maiores filósofos da língua inglesa: John
Locke e David Hume. O primeiro apega-se a um tipo de empirismo
no qual apenas pela experiência se permite conhecer a verdade. A
ordem do mundo é pressuposta e o filósofo examina então os
atributos da mente humana que lhe permite a compreensão da
máquina invisível do mundo. David Hume parte de outra questão,
ele rejeita o empirismo, isto é, a crença em uma base racional para
a análise de probabilidades, e rejeita também a existência de uma
base racional para o estudo da ética. Com efeito, Hume aproxima a
ciência positiva da ética apenas por rebaixar ambas ao status de
conhecimento incerto; enquanto Locke afasta uma da outra ao
manter a certeza do conhecimento apenas no campo da ciência,
negando-a à filosofia moral, um conhecimento assumidamente in-
certo para ele.
Keynes toma elementos das filosofias de ambos os filósofos.
Ele rejeita o empirismo de Locke, mas aceita a sua teoria da mente
e das conexões causais do mundo. De Hume, ele aceita a aproxi-
mação entre ciência e ética, sem deixar de inverter a perspectiva do
filósofo: tanto um quanto outro ramo da investigação é passível de
conhecimento seguro e assentado em base racional. As raízes da
filosofia de Keynes estão em G. E. Moore. Para este, a intuição é
necessária para explicar os fatos do mundo (o que é) e os ideais (o
que deve ser). Porém, enquanto em Moore a intuição não se
relaciona com a ação humana, mas apenas com a explicação do
mundo, Keynes discorda dele e tenta aplicar o conceito no estudo
da ação. Nesse âmbito, Keynes procura resolver o problema da
indução. Dizia Hume que todo conhecimento apenas provável é
inválido, e só são válidas teorias matemáticas e lógicas. No Tratado
em Probabilidade Keynes revela influências do Principia Mathema-
tica de Russell e Whitehead que lhe fornecem a base axiomática da
matemática. Contudo, a principal influência advém mesmo do
Principia Ethica de Moore do qual extrai o fundamento lógico da
ética. Keynes procura conciliar dedução lógica com filosofia moral.
494
Assevera que a probabilidade se aplica a jogos e apostas, e também
na avaliação de resultados de ações no âmbito da economia, da
política e do direito. A indução científica pode ser validada, ao
contrário do que pensava Hume, e o processo de validação fornece
argumentos comuns que quando aplicados à conduta cotidiana das
pessoas leva a uma nova ideia de probabilidade. Assegura Keynes
que a probabilidade de um evento pode ser determinada apenas
como um ato de julgamento. Refere-se ao processo mental na
cabeça do agente em situações que envolvam escolhas.
Então se aplica no domínio das ações humanas algo distinto do
tradicional método axiomático da matemática. Este último apoia-se
no ensinamento da escola de Laplace, que por meio do cálculo
probabilístico tradicional pretende obter resultados complexos de
grande precisão e de importância prática. Keynes fornece outra
interpretação do significado dos axiomas da teoria da probabili-
dade. Começa por criticar o princípio da indiferença, abordagem
probabilística usual que assume que no estado de ignorância, a
chance de um evento ocorrer ou não é de 50%. Keynes diz que tal
princípio somente se aplica a jogos de lançamento muito simples.
Na maioria dos casos, leva a absurdos. Não basta postular a igual
probabilidade das possíveis ocorrências, sempre se requer uma
razão positiva que explique o fato de ocorrências do tipo sim ou não
terem a mesma probabilidade, a menos de um “ruído branco”. O
princípio da indiferença leva em alguns casos a aplicações ridículas,
conforme exemplificada pelo estudioso da epistemologia keynesia-
na Athol Fitzgibbons, quando reproduz o diálogo entre Mister
Absolute e Sir Antony:
“Absolute: ‘É claro, Sir, não é muito razoável criar afeição
por uma lady da qual nada conheço...’ Sir Anthony: ‘É claro Sir,
mas é ainda menos razoável se você se nega a uma lady da qual
não conhece nada.’ ” (Athol Fitzgibbons, The Keynes Vision )
No mundo probabilístico tradicional, a lady em questão, da
qual nada conhecemos, além de seus encantos, teria 50% de proba-
bilidade de ser merecedora do afeto de algum pretendente e os
mesmos 50% de chance de não ser digna de que alguém por ela se
afeiçoe. Seria então razoável não se arriscar; porém, na prática,
parece ainda mais razoável assumir riscos e optar por conhecê-la.
Parece então que na vida real o pretendente não avalia, em
situações como essa, as probabilidades como sendo equivalentes.
Conclusão: o mundo é muito complexo para ser explicado por uma
teoria que se aplica ao lançamento de moedas, dados etc. Keynes
explica que as probabilidades em geral não são quantificáveis; não

495
há um método para se quantificar as probabilidades. Ademais,
entre as causas do evento podem-se imputar probabilidades não
comensuráveis. Mesmo eventos que aparentemente desconhece-
mos não se refletem na mente humana apenas como incertezas.
Keynes acredita em certo poder da mente humana em lidar com
probabilidades não quantificáveis e fazer um julgamento razoável.
A mente possui a faculdade do “julgamento direto”, no qual se
aplicam certos princípios para se chegar a uma conclusão probabi-
lística. Intuição e julgamento direto identificam probabilidades
particulares. Nas palavras de Keynes:
“O fato de que dependemos em última instância da intuição
não nos leva a supor que nossas conclusões não estão, por-
tanto, embasadas na razão, ou que elas são tão subjetivas na
validação quanto o são na origem.” (John Maynard Keynes,
Apud Athol Fitzgibbons, The Keynes Vision)
Keynes propõe analogias entre processos de avaliação de
probabilidades e julgamentos de similaridade. Neste último acaso,
se as coisas diferem em vários aspectos, é necessário então amplo
julgamento que agrupe as que são similares. A mente julga graus de
similaridade (o julgamento não é conclusivo, mas pode ser feito) e
do mesmo modo pode julgar padrões de probabilidade para a vali-
dade de argumentos. De Keynes:
“Um argumento é mais provável que outro (i.e. próximo da
certeza) do mesmo modo que podemos descrever um objeto
como mais semelhante a um objeto padrão de comparação.”
(Ibidem)
Para o economista de Cambridge, a base para julgamentos de
similaridade e de probabilidade é intuitiva, contudo é também uma
base real. A mente trabalha com uma intuição que a experiência
sugere ser racional. Com efeito, enquanto na teoria frequencialista
da probabilidade esta é conhecida após o evento, na teoria lógica
da probabilidade tal conceito é tido como relação lógica. No âmbito
da lógica dedutiva tradicional, as categorias de deduções são corre-
tas ou falsas. Entretanto, Keynes aponta para uma lógica ampliada
que lida com as categorias de conhecimento, ignorância e crença
racional. Ele estuda as bases objetivas das crenças e nesse sentido
elas não são subjetivas. Intuição e julgamento são epifenômenos
fora do alcance da análise científica, e portanto a teoria lógica da
probabilidade desafia o método científico tradicional.
Hume limita-se a uma noção de probabilidade de sentido
comum na qual não há um fundamento lógico no julgamento de
probabilidade. Os julgamentos são baseados em convenções inter-
496
pretadas pela imaginação e o papel da razão é restrito. Em Keynes,
pelo contrário, viceja um papel central para a razão. Propõe então
uma teoria da probabilidade e da incerteza que conecta as esferas
da razão e da não razão. Para Hume, raciocínios probabilísticos são
como sentenças morais, ambos se baseiam na imaginação, e são
proposições normativas. Todo raciocínio apenas provável é fruto
de sensações. Também em Keynes julgamentos de probabilidade e
julgamentos de valor têm o mesmo status. Só que agora, diferente-
mente de Hume, ambos são válidos:
“A importância da probabilidade é que é racional guiar-se
por ela na ação [...] na ação devemos nos orientar por ela.”
(Keynes. Apud Athol Fitzgibbons, The Keynes Vision)
O agente na vida cotidiana é análogo ao cientista buscando a
verdade. Ambos são guiados por um método lógico e ambos formu-
lam conhecimento probabilístico. Causalidade em Hume é a relação
entre proposições e não entre elementos da realidade (relação
entre coisas). A lógica não se aplica à probabilidade; não sabemos
o que ocorre no complexo mundo real, apenas temos o que a teoria
diz do mundo. Já a causalidade em Keynes tem dois significados:
(1) Noção de causalidade na qual os objetos não possuem co-
nexão intrínseca estrita, apenas conexões parciais even-
tualmente descobertas.
(2) Uma noção de causa essendi – a verdadeira causa das
coisas – que se contrasta com uma noção de causa cognos-
cendi : causa na forma de conhecer o universo (leis cientí-
ficas teóricas).
O método causal exato (estrita conexão causal entre as coisas)
apenas é alcançado em algumas ciências físicas. O mundo das coisas
do dia a dia, da mente nas suas decisões, é o mundo probabilístico
e de incerteza. Na mente do agente, princípios e analogias são
produzidos para conhecer o mundo de uma maneira não física. Os
princípios na esfera da ação humana começam como padrões da
mente, enquanto os princípios que governam a natureza são
tendências gerais. No mundo da ação humana, as contingências são
numerosas, não sabemos se uma lei geral será refutada, o conheci-
mento é sempre probabilístico. Julgamentos de similaridade e
outros estão presentes em todo conhecimento relativo às escolhas
sociais.
Na esfera da ação humana, tudo o que conhecemos é baseado
em analogias e similaridades. Busca-se um padrão, na complexa
rede causal dos fatos, que possa chamar a atenção da ciência.
Probabilidade e incerteza estão associadas às limitações inerentes
497
da mente em face da complexidade do mundo. O conhecimento do
universo é orgânico e não físico. Enquanto conhecimento orgânico,
não há regras rígidas que apontam uma contradição lógica. As
categorias não têm significados definidos e constantes. Contudo,
mesmo em face das limitações humanas, a predição não é total-
mente impossível. Mesmo que para prever um evento seja necessá-
rio mais conhecimento do que possamos possuir, ainda assim esse
evento teria uma chance objetiva. Keynes aponta para as analogias
entre o papel da criatividade e da intuição nas ciências e nas artes.
A mente tem a capacidade de ver em padrões e de representar sua
visão em metáforas. A experiência só diz algo se o indivíduo elabora
um insight inicial que está relacionado com algo definido. O concei-
to tem uma realidade que independe do fato de ser pensado pela
mente, e as ideias antecedem os julgamentos práticos. Há uma
verdade além da experiência; contudo, existe apenas conhecimento
provável. O conhecimento pressupõe classificação, e como tal de-
pende de similaridades e de metáforas. A experiência comum é
válida, embora ela tenha que ser interpretada à luz de um modelo
elevado.
Keynes em sua epistemologia aproxima da ciência o senso
comum, agora são aliados e se complementam na busca do conhe-
cimento. Intuição e julgamento funcionam ao mesmo tempo como
guias tanto da ação quanto do conhecimento positivo. Em suma, no
campo das escolhas na vida econômica tanto quanto no campo da
criação de explicações científicas viceja um elemento de probabi-
lidade que é subjetivo, mas apoiado em bases racionais.
Keynes tinha 31 anos quando foi deflagrada a Grande Guerra;
antes de 1914, a maior parte de sua energia foi canalizada para
transformar sua tese em livro. O Tratado sobre a probabilidade só
foi publicado em 1921, quando de seu retorno à Cambridge. Em
1920, Keynes começou a preparar o “Tratado” para publicação.
Como havia trabalhado no ensaio seis anos antes, encontrou certa
dificuldade. A ideia de se atribuir subjetivamente valores de proba-
bilidade aos eventos não implica que a probabilidade seja subjetiva.
Enquanto pura relação lógica ela é, na verdade, objetiva. Assim,
uma sentença envolvendo relações de probabilidade possui um
conteúdo de verdade independente das opiniões das pessoas.
Ramsey, em 1926, no artigo Verdade e probabilidade, critica o
argumento de Keynes. Outra ideia importante apresentada no
“Tratado” é a de que a relação de probabilidade apenas constitui
um conjunto parcialmente ordenado no sentido de que duas proba-
bilidades não podem necessariamente ser comparadas entre si.

498
Probabilidade para Keynes é um conceito básico que não se reduz
a outros conceitos.
De 1914 a 1918, Maynard Keynes foi convocado pelo Tesouro
britânico a assessorá-lo na questão do financiamento da economia
de guerra. Bem-sucedido nesse trabalho, a influência que passou a
exercer valeu-lhe a posição de representante britânico na con-
ferência do tratado de paz em Paris, em 1918 e 1919. Nela, viveria
um grande pesadelo. O jovem Keynes desentendeu-se com
Woodrow Wilson, David Lloyd George e Georges Clemenceau que
defendiam a imposição à Alemanha de pesados pagamentos a título
de reparações de guerra. Com isso, no dia de seu aniversário (5 de
junho) Keynes comunica a renúncia ao cargo e, retornando à
Inglaterra, passa a envolver-se em intensa atividade jornalística.
Acredita ele ser possível mudar a direção dos acontecimentos por
meio da persuasão e, para tanto, volta-se aos estudos sobre forma-
ção de crenças, debate racional e outros temas do gênero. A crítica
ao Tratado de Versalhes, firmado pelos negociadores em Paris, re-
sultou no livro As consequências econômicas da paz. A introdução
do livro aparece no Boxe 12.1.

Boxe 12.1 Introdução à obra Consequências econômicas da paz.

Escreve Keynes: “Em Paris, onde os que estão vinculados ao Conselho


Econômico Supremo recebem quase de hora em hora os relatórios de miséria,
desordem e crescente desorganização de toda Europa central e oriental, os
Aliados e seus quase inimigos ouvem nos lábios dos representantes finan-
ceiros da Alemanha e Áustria evidências inquestionáveis da terrível exaustão
de seus países. Numa visita ocasional à sala quente e seca do presidente da
casa, encontramos os quatro traçando seus destinos numa intriga vazia e
árida, construída com o sentido de um pesadelo. Enquanto logo ali em Paris os
problemas da Europa mostram-se terríveis e clamam nossa atenção, é um
pouco desconcertante retornar ao amplo desinteresse de Londres. Para Lon-
dres, estas questões estão muito distantes, nos preocupamos apenas com
nossos problemas que são menores. Londres acredita que Paris esteja orques-
trando uma grande confusão nessas negociações, no entanto permanece
desinteressada. É nesse espírito que o povo britânico recebeu o tratado sem
sequer lê-lo. Com o intuito de influenciar Paris, e não Londres, este livro foi
escrito por alguém que, embora inglês, se sente também um europeu, e em
função de experiência recente tão vívida não pode, ele mesmo, se desvencilhar
das consequências do grande drama histórico destes dias que irão destruir
grandes instituições, mas também que poderão construir um novo mundo.” (J.
M. Keynes, The economic consequences of the peace)

499
No livro, discute os paradoxos das pesadas reparações de
guerra: círculo vicioso de destruir a base produtiva e forçar o
pagamento de indenizações. Os alemães (escreve Keynes com
veemência) não poderiam pagar o que os vitoriosos estavam
demandando. Wilson foi tido como cego, uma espécie de Don
Quixote, e Clemenceau rotulado de xenófobo. Com Lloyd George
não foi menos áspero:
“[...] visitante apenas metade humano de nossa era, saído
diretamente das ocultas florestas mágicas e encantadas na
antiguidade celta.” (Apud O’Connor e Robertson, John May-
nard Keynes)
Um Keynes indignado profetizava que as reparações mante-
riam a Alemanha empobrecida, o que representaria uma ameaça a
toda Europa.
Este livreto vendeu 84 mil exemplares e transformou instante-
neamente Keynes em celebridade. Ele adquiriu a fama de pró-
germânico. As previsões de Keynes, de fato, verificaram-se anos
depois com a ascensão do nazismo e a eclosão da Segunda Guerra
Mundial. Ao final desta guerra, britânicos e americanos relembra-
ram as admoestações de Keynes, décadas atrás, evitando assim
repetir o erro anterior. Keynes ajudou a construir a percepção de
que o caminho seguro para a paz consistia em ajudar a reerguer a
economia destruída dos países derrotados. Foram feitos então
investimentos públicos em larga escala, criando-se assim parceiros
comerciais que seriam compradores potenciais das exportações
dos países vencedores; isso também ajudaria a construir uma
sólida classe média com ideais democráticos na Alemanha, no Japão
e na Itália. Em 1946, o livro “As consequências” também seria criti-
cado, por exemplo, na obra de Etienne Mantoux, A paz cartaginesa,
na qual o autor acusa Keynes de ter estimulado o ódio dos alemães
contra o Tratado de Versalhes e, com isso, aberto as comportas para
uma nova guerra.
Antes de apresentarmos a principal obra de Keynes, a “Teoria
Geral”, percorre-se a trajetória das ideias econômicas do autor
britânico desde sua origem. O estudo da evolução das crenças de
Keynes ajuda a entender questões que, depois, iriam suscitar a
revolução keynesiana no pensamento econômico. Nesta exposição
de suas teses econômicas antecedentes à “Teoria Geral”, é oportuno
retroceder ao período anterior em questão. No século XIX, o efeito
agregado da moeda ainda não era bem compreendido, havia maior
interesse nas instituições que afetam a oferta de moeda. Duas
correntes teóricas, escola bancária versus escola monetária (cur-
500
rency school), concorriam na explicação da natureza e do efeito da
moeda na economia.
No começo daquele século, problemas de política monetária
lançaram David Ricardo em ativas controvérsias econômicas. A
política monetária da época era falha, e problemas de inflação e de
deflação ficavam mal equacionados pelas autoridades monetárias
da Inglaterra. Alguns fatos marcaram a época: guerra contra a
França, revolução industrial, crescimento populacional com urba-
nização, problemas nas safras agrícolas. Os principais problemas
teóricos em política monetária residiam na relação entre variações
monetárias, nível da atividade econômica e câmbio; na relação
entre moeda e fluxos de pagamentos; e ainda, na relação entre
oferta de crédito e expansão dos negócios. Mudanças institucionais
desafiavam a política monetária de então. A oferta de moeda corria
solta por essa época, nenhuma restrição “tecnológica” a essa oferta
impedia que os bancos continuassem a emitir notas de papel. O
banco da Inglaterra tinha suspendido, em 1797, a conversibilidade,
ou seja, a troca automática do papel moeda por ouro.
Henry Thornton foi um dos pioneiros na teorização das rela-
ções entre moeda e crédito. No padrão-ouro, o aumento do papel-
moeda em circulação eleva o nível doméstico de preços, aumentam
as importações e reduzem as exportações. Tendo-se moedas con-
vertidas em barras de ouro, com o desequilíbrio na balança comer-
cial ocorrem saídas de ouro em barra, cai a circulação de moedas e
dos papéis lastreado em ouro; caem os preços. A contração mone-
tária tem efeito recessivo na economia. A deflação reduz o produto,
enquanto a inflação estimula o comércio e a indústria. Thornton
acredita que o crescimento do produto e do comércio estimula o
volume de crédito concedido e de moeda corrente em circulação.
Duas outras constatações eram as de que incertezas econômicas
levam ao aumento na preferência pela moeda líquida; e que rigidez
de salários monetários e escassez de moeda elevam o desemprego.
O principal problema teórico, sem dúvida, consistia em explicar
flutuações no câmbio induzidas por variações na oferta monetária.
Por que, por exemplo, no biênio 1800-1801 caiu o valor em ouro e
prata das mercadorias inglesas no mercado externo? Surge então a
conhecida Controvérsia Bullionista. No campo dos bullionistas
(que depois passou a se chamar Escola Monetária) estavam os
grandes economistas clássicos Ricardo, Malthus e Mill, dentre
outros. Para essa corrente, a elevação do preço do ouro em barra
deve-se ao excesso de papel-crédito.

501
Havia também o campo dos antibullionistas (depois Escola
Bancária), dentre os quais Thomas Tooke. Atribuíam eles às maci-
ças despesas externas efetuadas pelo governo britânico e à queda
de exportações a explicação para a queda do preço do ouro em
barras. Os antibullionistas apegavam-se à tese de moeda endógena.
Nessa ótica, as notas não poderiam ser emitidas acima das neces-
sidades de liquidez do lado real da economia. Explicando: a deman-
da de crédito depende de negócios lucrativos, pois os empréstimos
são pagos em pouco tempo e são feitos com garantias das letras
reais. As expectativas de negócios rentáveis elevam a demanda por
crédito, injetam liquidez na economia. Então a moeda e o lado real
da economia estariam conectados, porém sem uma causalidade
partindo da oferta monetária. De certa forma, a Escola Bancária
concluía pelo mesmo diagnóstico dos economistas clássicos, não
viam o efeito da moeda e do crédito no lado real da economia. A
riqueza seria então determinada apenas por fatores reais e produ-
tividade. A moeda só afeta preços gerais, não afeta riqueza real e
preços relativos.
A Lei Bancária de 1840 estabelece um padrão de rigidez na re-
lação entre a oferta de moeda e o estoque de ouro no país. Optou-
se pela volta do padrão ouro autorregulatório como um antídoto à
inflação, muito associada a guerras e desastres naturais. Até então
o abandono do padrão-ouro era responsabilizado pela inflação do
período devido à tendência a imprimir papel-moeda.
Os clássicos pensavam os problemas monetários de maneira
dicotômica. Coexistiam uma teoria do valor ao lado de uma teoria
monetária, sem integração entre elas. A fusão das duas é feita por
Irving Fisher, Knut Wicksell e Cecil Pigou. Buscou-se então a expli-
cação do mecanismo de transmissão interligando moeda a preços.
Preocupa-se em investigar o que determina a velocidade de circu-
lação da moeda, o que determina a demanda por moeda e qual o
papel dos juros no processo de expansão e contração monetária.
Nas primeiras formulações da teoria quantitativa da moeda (TQM),
estabeleceu-se uma ligação direta entre moeda e preços, embora
autores como John Locke e Henry Thornton tenham percebido,
nesse mecanismo, um papel para as taxas de juros e a demanda.
Especialmente em Richard Cantillon, David Ricardo e Stuart Mill, a
moeda afeta preços pelo mecanismo direto, via demanda. Mas esses
autores ainda não têm condições de elucidar o processo de ajusta-
mento na transição para um novo equilíbrio. Não analisam as
condições de estabilidade do novo equilíbrio e ainda não com-
preendem bem o papel das taxas de juros.

502
Fisher foi o primeiro na formalização matemática da TQM na
sua famosa equação de trocas expressa por MV + M’V’ = P.T. Na
qual, M é moeda e M’ são os depósitos nos bancos; T é o índice para
o volume de transações físicas (P é o nível de preços, V é a velo-
cidade de circulação da moeda e V’ a velocidade em que circulam os
depósitos bancários); a mesma relação que Stuart Mill tinha formu-
lado apenas verbalmente. Com a definição moderna de moeda,
pode-se escrever M.V = P.T. Tal equação assevera Fisher tratar-se
de uma mera identidade contábil, um truísmo. V e T são indepen-
dentes da oferta de moeda; são determinados por fatores reais –
hábitos, tecnologias e instituições; P é uma variável passiva. O
efeito dos saldos monetários (efeito encaixe-real ou “real balance”)
garante a estabilidade do equilíbrio monetário. Para cada indiví-
duo, há uma relação ótima entre encaixes monetários e gastos.
Contudo, acréscimos de moeda perturbam essa relação.
O modelo monetário de Fisher é simples. Dados preços cons-
tantes de início, quando se eleva a oferta de moeda há excesso de
moeda nas mãos do indivíduo. Pelo efeito dos saldos monetários,
aumentam os gastos de cada qual. Mantida a produção constante,
aumenta-se a demanda por moeda para mais gastos, o que leva a
aumento nos preços até que eles se elevem na mesma proporção
do aumento de moeda. A relação ótima entre encaixes monetários
e gastos é novamente alcançada e, assim, o novo equilíbrio é
estável. Trata-se de uma ideia nova que não havia nas formulações
anteriores a Fisher.
O economista americano, no entanto, não explorou a possibili-
dade de que o excesso de moeda em mãos do público possa ser
usado na compra de títulos. Nesse caso, os preços dos papéis se
elevam e os juros caem; com consequente aumento na produção
estimulado pelos juros. Fisher prioriza a relação entre inflação,
juros nominais, expectativas e demanda por encaixes reais. Nos
escritos de Fisher, O Poder de compra da moeda e A teoria dos
juros, o autor estuda a relação entre juros e inflação. Pergunta de
que modo a inflação atual e esperada afetam juros nominais e
demanda por encaixes reais. Expõe então o conhecido “efeito
Fisher”, expressando-se a demanda por encaixes reais como md =
f(y, i), isto é, como função da renda real y e da taxa nominal de juros
i. Fisher demonstra facilmente a relação entre md e velocidade da
moeda v, md = 1/v. A teoria monetária no início do século XX iria
explorar tal relação.

503
Fisher expôs o processo pelo qual são determinadas as taxas
de juros nominais in, ou o custo de oportunidade de se manter
moeda. in depende de dois fatores:
(1) A taxa real de juros que traduz as forças que afetam os
empréstimos (saldos ociosos, produtividade) e
(2) A inflação esperada em algum ponto do tempo.
Fisher equaciona então a famosa equação i = r + *. Ao
contrário do que tem sido erroneamente interpretado, não se trata
de uma aproximação da relação matemática trivial (1 + i) = (1 +
r).(1+ ), extraída da matemática financeira. Trata-se obviamente
de uma teoria de como são formadas as taxas nominais de juros:
dependem do retorno real e das expectativas inflacionárias *.
Fisher já tinha notado um mecanismo em que a inflação  se
autoperpetua: se  > *, para uma dada taxa nominal, a taxa real
ex post será menor. No próximo período, o emprestador ajustará as
taxas nominais para cima. Assim, quando a oferta monetária se
expande, aumenta a oferta de fundos emprestáveis e cai a taxa de
juros i, no entanto, os preços também aumentam e ainda a inflação
esperada *. Com efeito, aumentam juros nominais e inflação.
O economista sueco, Knut Wicksell, tempos depois, parte da
herança das ideias de Fisher e avança na construção da moderna
teoria monetária. Ele introduz a teoria monetária em modelos de
equilíbrio geral. Toma ideias de Thomas Tooke (da Escola Bancá-
ria), em que preços são determinados pela renda. Emprega também
a teoria das “duas taxas”, de Thornton, para analisar o papel dos
juros na teoria monetária. Wicksell integra a teoria monetária à
teoria do valor, preenchendo uma laguna de até então. Para tanto,
começa investigando mudanças nos preços pelo efeito da oferta e
da demanda agregada na economia. A análise tradicional, em que
variações nos preços de uma mercadoria específica são relacio-
nadas com distúrbios no equilíbrio entre oferta e demanda da
mercadoria em questão, passa a valer também para explicar o nível
geral de preços em termos de oferta e demanda agregadas. Por que
então poderia ocorrer variação de demanda agregada acima da
variação na oferta agregada (real ou esperada)? Essa questão
fundamental é explicada por Wicksell como efeito de mudanças nos
encaixes monetários; antecipa, portanto, a visão agregativa dos
mercados depois aperfeiçoada por Keynes.
No modelo wickselliano em que o consumidor é proprietário
de mercadorias, dados preços constantes de início, quando o volu-
me de moeda se reduz ocorrem empréstimos ou redução na

504
demanda por bens, ou aumenta a oferta de mercadorias. Porém,
nem todos conseguem manter o mesmo encaixe monetário. Com
efeito, a demanda agregada se reduz e a oferta de mercadorias
aumenta; os preços caem até que o encaixe monetário alcance o
equilíbrio. As taxas de juros desempenham um papel na análise do
equilíbrio entre poupança e investimento, todavia o mecanismo
apontado por Wicksell é mais complexo do que se pensava até
então. O economista sueco emprega a teoria, já citada, das “duas
taxas”: divergências entre taxas naturais e taxas correntes de juros.
A partir dessa dicotomia, Wicksell explicará o chamado processo
cumulativo, isto é, a análise dinâmica da maneira em que um
aumento de moeda, gerando efeitos de saldos monetários, afeta os
mercados de bens que deslocam a economia para nova posição de
equilíbrio.
Na teoria do processo cumulativo, o desequilíbrio de oferta e
demanda agregada altera as taxas de juros naturais e correntes
(interrelação entre mercados de bens e de moeda). A queda nos
juros, ficando abaixo do nível natural, reduz a poupança e aumenta
a demanda por bens e serviços no consumo presente. Aumentam as
opções de investimentos lucrativos, e crescem a demanda por insu-
mos e a oferta de bens no futuro. Os preços (salários etc.) aumen-
tarão enquanto as taxas estiverem abaixo das taxas naturais. O
aumento de preços nos insumos é irreversível porque os preços dos
bens também aumentam. Wicksell defende a TQM no longo prazo,
mas percebe o efeito da moeda nos juros e a moeda fazendo a
ligação entre juros e demanda agregada. Tais ideias serão mais
desenvolvidas e exploradas por Keynes. Sem dúvida, Keynes cons-
trói sua teoria monetária da herança de Fisher e Wicksell.
Em 1923, Keynes lançou o Tratado sobre a reforma monetária,
contendo sua versão do enfoque de saldos monetários (real
balance) de Cambridge da teoria quantitativa da moeda (TQM),
desenvolvida por Marshall e aperfeiçoada por Pigou e Dennis H.
Robertson. A TQM foi empregada na discussão do desemprego
britânico nos anos 1920. Keynes acreditava que as flutuações do
nível de atividade podiam ser prevenidas pela adoção de uma
política monetária esclarecida. A TQM é vista como uma teoria de
estabilização econômica de curto prazo induzida pela moeda. No
longo prazo, ela relaciona a oferta de moeda ao nível de preços dos
bens de consumo, não afetando a moeda o volume de produto e
emprego. Entretanto, até os anos 1930 os economistas tentaram
empregar a TQM para explicar oscilações de curto prazo na produz-
ção, pois com frequência eram observadas correlações entre oferta
de moeda e flutuações na atividade dos negócios.
505
A TQM estava assentada no motivo transacional de demanda
por moeda. A moeda é apenas um meio de troca. Variações na
quantidade da moeda só afetam o equilíbrio prévio da economia se
produzirem variações não proporcionais nos saldos monetários
dos agentes. Tendo-se em conta esse efeito, a estabilização do nível
de preços pelo controle monetário parecia ilusoriamente fácil.
Acreditava-se que preços flexíveis assegurariam o rápido efeito da
política monetária na estabilização dos preços, embora se reconhe-
cesse que os níveis salariais seriam invariáveis no curto prazo. Até
o fim da década de 1920, Keynes seguiu essa cartilha econômica.
Como a moeda poderia afetar o lado real da economia na
explicação fornecida pela TQM? À época, a TQM era explicada de
duas maneiras: a versão transacional de I. Fisher e o enfoque de
Marshall dos saldos monetários. Até 1914, Keynes usava ambas as
versões em suas aulas. A equação de trocas de Fisher, MV = PT, diz
que o volume de moeda M multiplicado pelo número médio de
vezes em que a moeda é gasta por período (a velocidade de circu-
lação da moeda V) é igual ao preço médio por transação vezes o
número total de transações T. A teoria dizia que a moeda afeta os
preços, a causalidade indo no sentido da moeda para os preços;
acreditava também que a velocidade de circulação é determinada
exogenamente pelos hábitos de pagamento. Por fim, dizia-se que
somente variáveis reais afetariam o volume de transações na
economia. Na versão marshalliana, escreve-se: M = k. PT, no qual k
representa a fração média da renda total retida na forma de moeda
em cada período.
Matematicamente se escrevermos k = 1/ V, as duas equações
anteriores seriam a mesma coisa; no entanto, o enfoque é um pouco
diferente em cada caso. A equação de Cambridge não enfatiza o
gasto da moeda, mas o papel da moeda enquanto pouso temporário
de poder de compra e se preocupava em explicar por que os indiví-
duos retêm ativos líquidos. Keynes aceita os postulados da TQM,
entretanto de modo intuitivo reconhece que variações nos preços
teriam efeitos temporários em V e na situação dos negócios. Keynes
pensava que a versão marshalliana tornava mais explícito o meca-
nismo de transmissão da moeda para os preços. Tal mecanismo
seria descrito simplificadamente da seguinte forma: o aumento das
reservas de ouro reduz as taxas de juros, aumentam os emprés-
timos contraídos pelos empresários e o gasto deles conduz à eleva-
ção dos preços, reduzindo o volume real de transações financiado
por unidade de ouro.

506
O efeito da moeda no lado real da economia ocorre porque leva
tempo até que uma injeção de moeda tenha seu efeito final sobre os
preços. Enquanto os preços ajustam-se às mudanças da oferta
monetária, o volume de transações pode ser incentivado ou depri-
mido. No Tratado sobre a reforma monetária, Keynes argumenta
que flutuações no valor da moeda, provocadas por variações no
preço do ouro, acarretam flutuações de curto prazo nos negócios,
porque alteram a participação relativa das diferentes classes de
renda e afetam as expectativas dos agentes. Com salários nominais
fixos, preços declinantes reduzem as expectativas de lucros, pertur-
bando a produção de mercadorias. Era importante, portanto, a
estabilidade monetária e esta não poderia ser obtida com a volta ao
padrão-ouro.
Para Keynes, a volta ao padrão-ouro só favoreceria uma elite e
não representaria remédio eficaz para a perda da supremacia
industrial da Inglaterra e contra o desemprego em massa verificado
nos anos 1920. A falta de competitividade dos produtos ingleses
acarretaria saída líquida de ouro no financiamento às importações.
Com efeito, nas novas condições do pós-guerra o padrão-ouro só
seria sustentável com a queda dos preços internos de modo a
restabelecer a competitividade dos produtos britânicos no comér-
cio internacional. Os que defendiam a volta ao padrão-ouro na
Inglaterra, que acabou, de fato, acontecendo em 1925, argumen-
tavam que o mecanismo automático de estabilização de Hume
eliminaria os déficits comerciais pela queda dos preços internos
com o afluxo de ouro, e que o padrão-ouro seria uma maneira de
aumentar o controle britânico sobre o comércio mundial de dinhei-
ro. Keynes intuiu que os processos naturais e autorregulados de
obtenção do equilíbrio na economia inglesa não estavam se
verificando e que era ilusória a crença em um ajuste harmônico
entre o câmbio e preços internos. A queda de preços só poderia ser
alcançada com doses cavalares de recessão e de desemprego.
Com a paridade fixa entre o Pound e o ouro, no padrão anterior
à guerra, os Estados Unidos absorveriam, com o tempo, todo o ouro
mundial. Reconhecendo a supremacia americana, Keynes imaginou
um novo arranjo financeiro internacional em que a oferta de
liquidez pudesse ser mais bem administrada pelos bancos centrais.
A estabilidade dos preços na Inglaterra, advoga Keynes, deve ser
alcançada pelo estímulo ao investimento. O lado produtivo deve ser
o foco da política econômica.
Ao longo da mesma década, Keynes permaneceu ativo nos
debates sobre políticas públicas. Seus melhores escritos do período

507
foram reunidos nos Ensaios sobre persuasão, de 1931. Keynes era
então um homem da City de Londres. Foi assessor e dirigente de
companhias de seguro e de instituições famosas. Enriqueceu espe-
culando no mercado financeiro, mas também cuidou das finanças
de Cambridge, trazendo dinheiro para a escola. No entanto, criti-
cava a subordinação do Estado aos interesses da classe de especu-
ladores e rentistas, e manteve a ênfase na produção.
No período, ele escreve ensaios condenando o laissez-faire em
política econômica e no panfleto eleitoral, escrito em 1929 com
Hubert Douglas Henderson, defende o uso de obras públicas para
reduzir o desemprego e condena o temor do tesouro a déficits
orçamentários. No mesmo ano, participa de uma contenda com
Bertil Ohlin e Jacques Rueff sobre o problema da reparação paga
pela Alemanha.
Em 1930, John Maynard Keynes publica os dois volumes do
Tratado sobre a moeda. Nele, Keynes delineia sua versão da teoria
wickselliana do ciclo de crédito. Menos de um ano após a publi-
cação do Tratado sobre a reforma monetária, Keynes já vinha
procurando teorizar sobre a moeda no contexto de ciclo de crédi-
tos. As ideias do artigo de 1913 foram retomadas, agora, para atacar
o problema da composição dos saldos monetários e as causas de
suas flutuações. O ponto central da análise recaía na relação entre
poupança e investimento. Keynes aceitou a conclusão de D.
Robertson de que o ciclo de negócios é um ciclo de investimento
originário de flutuações na rentabilidade esperada dos bens de
capital. Ambos acreditavam que essas flutuações no lado real da
economia seriam amplificadas por fatores monetários, em parti-
cular pela incapacidade de manter a igualdade entre investimento
e poupança. Para Robertson, muito embora alguma flutuação fosse
inerente ao progresso, o excesso de oscilação na atividade econô-
mica deveria ser combatido pela política monetária, mesmo que a
custa de sacrificar a estabilidade de preços.
De início, Keynes seguiu Robertson na crença de que variações
no crédito poderiam fazer o investimento divergir da poupança
voluntária. Na insuficiência de poupança, a inflação temporária
poderia criar um fundo de investimento fazendo as pessoas
consumir menos e, portanto, poupar mais (poupança forçada). No
novo livro, Keynes afastou-se da TQM, acreditando que ela não
explicaria as flutuações de curto prazo na economia.
No Tratado sobre a moeda, poupança e investimento são efe-
tuados por classes distintas de pessoas com motivos diferentes, não
havendo em uma economia monetária de crédito algum mecanis-
508
mo automático que os equipare. Keynes usa os conceitos de taxa
natural de Wicksell, a produtividade do capital, e de taxa de juros
de mercado. Se mantida em seu valor natural, a taxa de juros não
teria impacto inflacionário. A taxa de mercado almejada pelos
emprestadores pode estar acima ou abaixo da taxa de lucro
esperada pelos investidores. Se as primeiras são demasiadamente
elevadas, o investimento fica aquém daquilo que a comunidade
deseja poupar. A insuficiência do investimento pode ser combatida
se o banco central puder intervir fazendo baixar as taxas de juros.
No entanto, sob o padrão-ouro há uma rigidez para fixar uma taxa
suficientemente baixa a fim de permitir a igualdade entre investi-
mento e poupança desejados. A consequência disso é o desemprego
em massa. Há diversos outros aspectos interessantes no Tratado
sobre a moeda ; lá aparecem os rudimentos da teoria da preferência
pela liquidez e importantes definições. Embora Keynes estivesse
interessado em mostrar o efeito de taxas de juros elevadas na
persistência da recessão, o foco foi colocado nas variações do nível
de preços, e não nas variações do produto.
Keynes chegou a considerar o Tratado sobre a moeda sua
magnum opus. No entanto, cedeu às críticas de F. A. Hayek e P.
Sraffa na revisão da obra. O “Tratado” leva à formação de um grupo
de leitores, conhecido como “O Circo”, composto por jovens econo-
mistas de Cambridge: Joan Robinson, Richard Kahn, Piero Sraffa,
Austin Robinson e James Meade. Kahn entregou a Keynes o con-
teúdo resultante da discussão nos encontros do Circo. Keynes
utilizou muitas dessas propostas na reelaboração de suas ideias.
Considerou particularmente relevante a crítica quanto à ausência
de uma teoria de determinação do emprego e da produção agrega-
da, um problema muito importante dado o elevado desemprego da
época.
Um pequeno artigo de Richard Kahn, de 1931, proporcionou a
Keynes uma ideia-chave: a teoria do multiplicador do gasto da
renda. Tal teoria seria, anos depois, um dos pilares da futura revo-
lução keynesiana. Já nessa época, em artigos e panfletos de 1933,
Keynes começa a anunciar a nova ideia, ao mesmo tempo em que
submetia esboços de seu novo livro a vários colegas economistas
para que eles revisassem e comentassem suas teses. Entretanto,
Keynes ainda não tinha trabalhado a noção de eficiência marginal
do investimento, outro dos pilares da revolução.
Em 1936, publica a “Teoria geral”, cuja consideração detalhada
veremos na próxima seção. A saúde de Keynes entra em colapso em
torno de 1938, o que o obriga a sair de cena e ausentar-se do debate

509
em torno de suas ideias. Quando a Segunda Guerra Mundial eclode,
Keynes emerge novamente com a publicação do panfleto Como pa-
gar pela guerra. No pequeno ensaio, identificou o hiato inflacioná-
rio criado pela restrição de recursos durante o esforço de guerra e
defendeu o mecanismo de poupança compulsória e racionamento
de modo a evitar-se a inflação dos preços, proposta adotada em
1941. O ensaio notabiliza-se também por ter fornecido uma teoria
da inflação em complemento à “economia da depressão” da “Teoria
Geral”.
Em pleno andamento da guerra, Keynes, como membro do
Tesouro britânico, idealizou a nova ordem econômica e monetária
que surgiria no pós-guerra. Em 1938, emprestou de B. Graham a
ideia de uma moeda internacional lastreada parte em reservas e
parte em commodities em substituição ao padrão-ouro.
Em 1943, Keynes abandona sua defesa do “Bancor”, a proposta
de uma câmara de compensações internacionais. Em estreita
cooperação com os americanos, ele cede em suas ideias aceitando
o plano White, proposto pelos Estados Unidos, de um fundo de
equalização internacional mantido em moedas das nações partici-
pantes. Nesse arranjo, muitas das teses originais de Keynes sobre
câmara de compensações foram incorporadas. Tais elementos
foram reunidos em 1944, quando Keynes liderou a delegação britâ-
nica na conferência internacional de Bretton Woods, na qual os
detalhes de seu sistema foram trabalhados.
O plano White dos Estados Unidos foi aceito. Nele, os países-
membros adotariam taxas de câmbio fixas contra o dólar, enquanto
a moeda americana seria mantida em paridade com o ouro. Foram
criadas duas instituições: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e
o Banco Mundial, para supervisionarem o novo sistema monetário
internacional.
Keynes faleceu em 1946, logo após fechar acordo que garantiu
um empréstimo dos Estados Unidos à Inglaterra no imediato pós-
guerra. O mundo perdia um economista, negociador político, patro-
no de artistas, um homem afeito a muitas atividades. Um dos princi-
pais interesses de Keynes era em trabalhos científicos dos séculos
XVII e XVIII; em particular, era fascinado pelos manuscritos de
Isaac Newton. Em 1936, os artigos escritos por Isaac Newton foram
arrematados pela Sotheby e estavam disponíveis para venda.
Keynes esforçou-se a fim de adquirir os manuscritos. No ano de
1942, comemorava-se o tricentenário do nascimento de Newton.
Keynes escreveu o artigo Newton, um homem para celebrarmos.

510
Boxe 12.2 Publicações de Keynes. (artigos entre aspas e livros em itálico)

1909 “Os eventos econômicos recentes na Índia.”


1911 “Influência do alcoolismo dos pais.”
1912 “O comércio exterior da Grã-Bretanha aos preços de 1900.”
1913 Moeda da Índia e finanças.
1914 “As perspectivas da moeda.” “Guerra e sistema financeiro.” “A cidade de Londres e o banco
da Inglaterra.”
1915 “A economia de guerra na Alemanha.”
1919 As consequências econômicas da paz.
1921 Tratado sobre probabilidade.
1922 Revisão do tratado. “A inflação da moeda como método de arrecadação de impostos.”
1923 Um tratado sobre reforma monetária. “Alguns aspectos dos mercados de commodities.”
“População e desemprego.” “A medida da deflação: uma investigação sobre números
índices.” “Política de moeda e desemprego.”
1924 “O desemprego requer um remédio drástico?” “Reforma monetária.” (com Cannan, Addis e
Milner) “Um comentário sobre o professor Cannan.”
1925 “A cédula de Balfour e os débitos interaliados.” As consequências econômicas do Sr.
Churchill. “A lei do padrão-ouro.” Um breve panorama da Rússia. “Eu sou um liberal?”
1926 O fim do laissez-faire. “Liberalismo e trabalho.” Laissez-faire e comunismo.
1927 “Uma nota sobre economia.” “Um modelo formal para o registro do balanço internacional.”
“A balança comercial britânica.”
1928 “A balança comercial dos Estados Unidos.” “Amalgamação das notas britânicas emitidas.”
“Depressão do pós-guerra e a indústria de algodão de Lancashire.” “A lei de estabilização
francesa.” Reflexões sobre o Franco. “Os débitos de guerra.”
1929 Lloyd George pode fazê-lo? (com H. D. Henderson) “Respostas ao problema da reparação de
Ohlin.”
1930 Um tratado sobre moeda. “A crise industrial.” “A grande baixa de 1930.” “As possibilidades
econômicas de nossos netos.”
1931 “Uma resposta a D. H. Robertson.” “O problema do desemprego.” Ensaios sobre persuasão.
“Gasto e poupança.” “O fim do padrão-ouro.” “Após a suspensão do ouro.” “Propostas para a
cobrança de impostos das rendas.” “Algumas consequências do relatório da economia.”
1932 “A visão econômica do mundo.” “A perspectiva do câmbio esterlino.” “O dilema do
socialismo moderno.” “Bancos membros do Banco Central dos Estados Unidos.” A crise
econômica do mundo e o caminho de escape. (com A. Salter, J. Stamp, B. Blackett, H. Clay e
W. Beveridge) “Poupança e usura.” “Uma nota sobre a taxa de juros de longo prazo em
relação ao esquema de conversão.”
1933 “Uma teoria monetária da produção.” “Sr. Robertson em poupança e entesouramento.”
“Uma carta aberta ao Presidente Roosevelt.” “O significado da prosperidade.”
“Autossuficiência nacional.” “O multiplicador.” Ensaios sobre biografias.
1935 “O futuro do câmbio exterior.”
1936 “Herbert Somerton Foxwell.” “A oferta de ouro.” “Flutuações no investimento líquido nos
Estados Unidos.” A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda.
1937 “A teoria geral do emprego.” “Professor Pigou em salários nominais e relação com o
desemprego.” (com N. Kaldor) “Teorias alternativas da taxa de juros.” “A teoria ex-ante da
taxa de juros.” “A teoria da taxa de juros.” “Algumas econômicas do declínio da população.”
1938 “Armazenagem e seguros.” “A política dos estoques do governo de alimentos e matéria crua.”
1939 “O processo de formação de capital.” “O método do Professor Tinbergen.” “Movimentos
relativos em salários reais e produção.” “A renda e o potencial fiscal da Grã-Bretanha.”
1940 “O conceito de renda nacional: nota suplementar.” “Como pagar pela guerra.” “Newton, um
homem para celebrarmos.”
1943 “O objetivo da estabilidade dos preços internacionais.”
1946 “O balanço de pagamentos dos Estados Unidos.”

511
Diferentemente da ideia que se tinha da vida e do trabalho des-
se físico, que se concentrava em seus feitos em matemática e física,
Keynes deu importância igual aos escritos de Newton em alquimia
e religião. A razão disso é que o economista baseou sua conside-
ração nos manuscritos de Newton que havia adquirido e que lhe
mostravam claramente que, para Newton, seus trabalhos nestes
outros temas eram tão importantes como a contribuição em física
e matemática.
Keynes foi um escritor prolífico. A relação de trabalhos, logo
acima (Boxe 12.2), somente inclui seus livros e principais artigos
nas melhores revistas. Omitimos numerosos artigos (alguns
anônimos e outros assinados) em revistas como Nation & Athe-
neum, Manchester Guardian Commercial, Reconstruction in Euro-
pe, The Listener, The New Republic, The New Statesman and Nation
e Times. Keynes escreveu numerosas resenhas de livros não rela-
cionadas no Boxe, dentre elas as dos trabalhos de Irving Fisher, W.
S. Jevons, J. A. Hobson, L. von Mises, W. Bagehot, R. G. Hawtrey, F. C.
Mill e J. E. Meade. Keynes foi um estudioso de Adam Smith e David
Hume, e escreveu várias biografias de economistas e políticos, reu-
nidas nos Ensaios sobre biografias. Dentre elas, as de B. Law, E.
Montagu, A. Marshall, F. Y. Edgeworth, L. Trotsky, W. Churchill, F. P.
Ramsey, T. R. Malthus e W. S. Jevons.

A TEORIA GERAL DE KEYNES


A Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda, de 1936, é de
longe o trabalho mais influente de Keynes. Curiosamente o livro
não é didático. Muito denso e complexo. Ele surge logo após a recu-
peração da Grande Depressão que abalou as economias capitalistas
desenvolvidas. A ideia básica de Keynes é simples: a fim de manter
o pleno emprego na economia, o governo deve gerar déficits orça-
mentários quando a economia entrar em recessão. A baixa ativi-
dade econômica de então se deve ao fato de o setor privado não
estar investindo o suficiente.
Os empresários tinham reduzido os investimentos ao perce-
berem que o mercado estava saturado, e a economia entrou num
círculo recessivo de menos investimento, menos trabalho, menos
consumo e novos motivos para investir menos. A economia poderia
alcançar algum equilíbrio, mas à custa de elevado desemprego e
miséria social. Assim, o governo deve antecipar-se aos fatos a fim
de evitar maior sofrimento, complementando os investimentos ao
sinal de insuficientes iniciativas do setor privado.

512
A “Teoria Geral” é um livro difícil. Ele mantém certa linha de
continuidade com o Tratado sobre a moeda, como a separação dos
planos de poupança dos planos de investimento, a ausência de
equilíbrio automático na economia e a função da moeda como re-
serva de valor. O novo livro, no entanto, vai além do “Tratado”, ao
propor um mecanismo unificador apoiado no princípio da deman-
da efetiva. Tal princípio insere-se em uma teoria abrangente sobre
demanda e oferta agregada que explica que se a demanda estiver
abaixo da oferta a produção deve diminuir para que ambas se
equilibrem, o que acarreta a possibilidade de equilíbrio estável
abaixo do pleno emprego. O esquema de demanda e oferta agrega-
das de Keynes parecia não apenas explicar a recessão, como
também mostrava as formas de se escapar dela.
O livro tornou-se a bíblia da profissão de economista e dos
políticos assessorados por eles. Keynes não era nada modesto em
relação à sua obra e sabia perfeitamente o potencial revolucionário
dela. Em carta a G. B. Shaw, um ano antes do lançamento do livro,
declara:
“Eu acredito estar escrevendo um livro em teoria econômi-
ca que irá revolucionar amplamente, não de uma vez só mas no
curso dos próximos dez anos, o modo do mundo pensar sobre
os problemas econômicos.”
No prefácio de “A teoria geral”, Keynes escreve:
“Aqueles que estão fortemente casados com o que eu chamo
de ‘a teoria clássica’ irão oscilar, assim espero, entre a crença
de que eu estou bastante equivocado e a crença de que nada
tenho a dizer. Deixo aos outros a incumbência de determinar
qual das opiniões está certa ou se uma terceira alternativa é a
correta.” (J. M. Keynes, A teoria geral do emprego, dos juros e
da moeda)
Keynes via sua teoria como uma total ruptura com a ortodoxia
corrente a que denominou de “teoria clássica”. Os autores clássicos
a que ele se refere eram simplesmente os neoclássicos da Univer-
sidade de Cambridge, seguidores de Alfred Marshall que repre-
sentava a consolidação da Revolução Marginalista no mundo de fala
inglesa (às vezes, ele parece incluir também Stuart Mill e a escola
clássica inglesa do século XIX). Marshall, como sabemos, procurou
integrar os trabalhos de David Ricardo, Stuart Mill e outros econo-
mistas britânicos “clássicos” (no sentido usual) ao marginalismo
radical de Jevons, mais próximo à tradição continental. Keynes, não
obstante, foi discípulo de Marshall, ao lado de Arthur Pigou e
Dennis Robertson, e até então comungou a mesma cartilha dele.
513
Keynes pretendeu produzir um novo paradigma, mas estava
mais embebido das influências do contestado modelo clássico do
que admitia. Phyllis Deane, historiadora das ideias, resumiu bem
este ponto:
“Marshall mudou o modelo clássico básico mais do que
estava disposto a admitir, e Keynes reteve mais da tradição
neoclássica do que poderia parecer.” (P. Deane, Evolução das
ideias econômicas)
Como os neoclássicos de Cambridge, Keynes confiava em argu-
mentos práticos e intuitivos, mais do que no formalismo mate-
mático. Ele levava em consideração certos aspectos como tempo
histórico, estrutura institucional e industrial e fenômenos do mun-
do real tais como incerteza, moeda e ciclo dos negócios. Essa estra-
tégia de análise era típica de Cambridge. Também o era o enfoque
dando ênfase às condições representativas no lugar da análise sob
condições ideais, típica dos economistas do continente europeu.
Diferentemente do liberalismo mais radical da escola de Man-
chester, os marshallianos alimentavam certa crítica ao laissez-faire,
que era aceito somente com numerosas qualificações. Muitos deles
eram utilitaristas e, como tais, tendiam a julgar o livre mercado com
base em seus resultados. Keynes não era utilitarista, mas seu filóso-
fo social Moore guarda alguma proximidade com o utilitarismo. A
doutrina marshalliana era a articulação teórica das estruturas
social, política e econômica da era vitoriana, um antídoto às corren-
tes marxistas e socialistas do período. A nova visão da economia
proposta por Keynes ajudou a afundar o navio da economia mar-
shalliana nos anos 1930. À sua crítica somam-se também os ata-
ques desferidos por P. Sraffa, em 1926, minando a teoria da firma
de Marshall e a ascensão de V. Pareto neste período, agora estabe-
lecido na London School of Economics.
A “Teoria Geral” teve boa aceitação, principalmente por gera-
ções mais novas de economistas. Os economistas da “velha guarda”,
no entanto, procuravam condenar a nova proposta atacando alguns
aspectos da teoria. Jacob Viner, Dennis Robertson e Bertil Ohlin
foram os críticos mais hábeis do trabalho de Keynes. Os membros
do Circo, aliados a Keynes (Joan Robinson era um deles), e jovens
economistas espalhados por toda a Grã-Bretanha, dentre eles Roy
Harrod e Abba Lerner, elaboraram trabalhos no sentido de esclare-
cer o que Keynes quis dizer. A opinião pública não especializada
tendia a receber com bons ouvidos a mensagem de Keynes. O
material dele era particularmente propício a fornecer um quadro
referencial para explicações e previsões que pudessem auxiliar os
514
responsáveis pela formulação de políticas econômicas racionais. Os
problemas enfocados por ele eram unanimemente considerados
importantes por toda a sociedade. Na década de 1930, a recessão e
o desemprego foram os principais itens na agenda de problemas
econômicos. Havia a clara percepção de que o laissez-faire parecia
agravar o problema, mas não se sabia exatamente por quê. O
diagnóstico tradicional imputando a responsabilidade da crise aos
salários elevados acima do equilíbrio não mais convencia. A teoria
ortodoxa supunha uma economia tendendo ao pleno emprego, no
entanto a economia real insistia em manter a recessão. Keynes
ousou qualificar o desemprego em massa como uma situação de
equilíbrio, rompendo com a crença na eficiência dos mercados.
Keynes havia alertado o mundo quanto à possibilidade de uma
severa crise antes de 1929. A eclosão do crack na bolsa de Nova
York, em função da forte especulação, tornou Keynes mundialmen-
te famoso. A crise de 1929 foi em parte um fenômeno monetário e
financeiro, mas ela refletia também problemas no lado real da
economia. Os anos 1920 foram de fusões entre empresas e expan-
são da produção em massa apoiada nas indústrias de aço, vidro,
máquinas, petróleo e outras. A base produtiva vinha crescendo à
medida que as expectativas eram favoráveis. Ampliava-se a capaci-
dade produtiva para a conquista de novos mercados. As empresas
buscavam recursos externos emitindo ações ou contraindo em-
préstimos. O crédito ampliava-se no financiamento aos investimen-
tos. Em certo ponto, a capacidade produtiva tornou-se suficiente
para atender à demanda e daí em diante tornar-se-ia cada vez mais
difícil encontrar novas oportunidades para reinvestir os lucros.
Assim, os excedentes eram atraídos para aplicações financeiras e
em ações. Com a queda no investimento produtivo, parte dos recur-
sos era desviada e passava a ser orientada para a especulação.
Como resultado, ocorre a elevação nos preços das ações e crescente
onda especulativa. Os lucros crescem a despeito da crescente fragi-
lidade da base produtiva.
Dada a capacidade ociosa, o desemprego no setor de bem de
capital reduzia o consumo. A queda no consumo afetava as indús-
trias de bens de consumo, gerando nova onda de desemprego e
assim por diante até a ruptura do sistema de produção. Enquanto
isso, o setor financeiro acenava para a ilusão de prosperidade. A
forte restrição monetária levava os agentes a saldarem dívidas com
novos papéis. A restrição monetária implicava aumento na veloci-
dade de circulação da moeda e queda nos preços. O estreitamento
dos recursos das empresas e a notícia de falências impulsionavam
a corrida ao resgate das aplicações. Muitos aplicadores foram à
515
falência total. Um conjunto de fatos preocupantes, como a queda no
consumo e no investimento, a falência bancária e a fuga de capital,
conduzia inexoravelmente à depressão.
Keynes interpretava tais acontecimentos históricos como um
indício de que as instituições financeiras e a moeda podem ser
danosas ao capitalismo. Ele enfatiza então o papel das expectativas
e da incerteza, mostrando que a ilusão de riqueza pode levar à ruína
da economia. Critica o pensamento ortodoxo que só supõe a auste-
ridade na solução da crise. Keynes apresenta então o paradoxo da
parcimônia, em que a contenção do consumo e o aumento da
poupança, em vez de serem benéficos, podem ser danosos ao
capitalismo, pois a renda poupada deixa de gerar emprego, esfria a
economia e aprofunda a crise. O jogo das forças econômicas deveria
então ser suplementado pela ação do Estado e o dispêndio ser
estimulado em momento de depressão econômica.
A expressão teórica dessa receita de política econômica é
apresentada em “A teoria geral”. A impotência da teoria neoclássica
de Cambridge em explicar a Grande Depressão na década de 1930
leva Keynes a construir uma teoria nova. Para ele, sua teoria seria
mais geral e com maior poder explicativo. A ênfase da teoria é
explicar a determinação da produção agregada e, portanto, do
emprego. A ideia central é a de que o equilíbrio é determinado pela
demanda e que em certos casos é possível o desemprego prolon-
gado. Os preços flexíveis não seriam capazes de curar o desempre-
go. Do lado monetário, Keynes também fornece nova interpretação.
As taxas de juros não seriam determinadas no mercado de fundos
emprestáveis, mas no mercado de moeda no qual a demanda de
moeda dependeria da preferência pela liquidez. Outras particula-
ridades de Keynes são a curva de investimento determinada pela
eficiência marginal deste, a ruptura com a Lei de Say, a reversão na
relação entre poupança e investimento, bem como o uso de políti-
cas fiscais e monetárias para ajudar a eliminar as recessões e
controlar os booms econômicos. Esses elementos compõem a
construção fundamental do novo ramo da economia que se tornou
conhecido como macroeconomia.
Keynes não duvidava que no longo prazo o equilíbrio entre
poupança e investimento pudesse ser reestabelecido, no entanto
ele pensava que tal processo de equilibração conduziria a um nível
particular de produção não necessariamente ótimo. Em suas pala-
vras, comentando “A teoria geral” :
“Devo admitir que há forças, que podemos perfeitamente
chamar de automáticas, a operar no contesto de qualquer
516
sistema monetário normal, que direcionam para um resta-
belecimento de equilíbrio de longo prazo entre poupança e
investimento. O ponto que ponho em dúvida (embora ele seja
geralmente aceito) é se essas forças automáticas tenderão a
trazer não apenas ao equilíbrio entre poupança e investi-
mento, mas a um nível ótimo de produção.” (Apud R. Skidelsky,
Keynes)
Vejamos então como tais ideias são articuladas em “A teoria
geral”. O livro poderia ter sido mais bem organizado por Keynes e
o estilo é pesado, por vezes irônico. Keynes em certas passagens
parece zombar da inteligência do leitor. A dica de Skidelsky para a
leitura do livro merece ser reproduzida (Boxe 12.3).

Boxe 12.3 Guia para a leitura de “A teoria geral” de Keynes.

“O leitor que começa pelo capítulo 3 e depois lê os capítulos 8 a 13 e o 18


pode ter ideia acurada da essência da teoria de Keynes. Os principais proble-
mas advêm quando Keynes tenta relacionar sua própria teoria àquela que
chamava de “teoria clássica”, seja na forma de comentários, de tentativa de
reconciliação, seja, o que era mais frequente, de crítica demolidora. As dificul-
dades são particularmente agudas no segundo capítulo – “Os Postulados da
Economia Clássica” –, nos capítulos 14 e 15 – em que trata a teoria clássica da
taxa de juros e expõe de forma mais acabada sua própria teoria de juros – e no
livro V sobre “Moeda, Salários e Preços”. O capítulo 12, “Algumas Observações
acerca da Natureza do Capital”, o 17, “As Propriedades Essenciais do Juro e da
Moeda”, e o livro VI (capítulos 22 a 24) são lidos de forma mais adequada
enquanto ideias gerais, especulativas e visionárias, derivadas do núcleo
teórico. O livro II, “Definições e Ideias” (capítulos 4 a 7) pode ser pulado como
usualmente o é.” (R. Skidelsky, Keynes)

A “Teoria Geral” está dividida em seis livros. O livro I, deno-


minado de “Introdução”, apresenta os postulados da economia
clássica e o princípio da demanda efetiva. No capítulo 2, Keynes
contesta a teoria clássica do emprego. Analisa o que define como os
dois postulados clássicos: concorda com o primeiro deles de que o
salário real seja determinado pela produtividade marginal do tra-
balho, mas resiste a certas implicações do outro postulado que diz
ser o salário real igual à “desutilidade marginal” do trabalho exis-
tente. Ele argumenta que não é verdadeiro o corolário derivado do
segundo postulado de que não existe desemprego involuntário, isto
é, de que todos os empregados poderiam conseguir emprego sim-
plesmente aceitando uma queda nos salários. Argumenta Keynes
que se o salário real se iguala à desutilidade marginal do trabalho,
517
isso implica que o indivíduo pode aumentar as horas trabalhadas
revendo sua noção dessa desutilidade e aceitando um salário mais
baixo. No âmbito macroeconômico, se os trabalhadores como um
todo concordassem com redução dos salários monetários mais
empregos estariam disponíveis.
Alguns economistas de Cambridge, como Pigou, aceitavam o
desemprego involuntário fora do equilíbrio, situação em que mes-
mo com a queda dos salários reais o desemprego iria aumentar. No
entanto, Keynes argumenta que os clássicos não levam em conta o
papel da moeda e que os salários monetários não evoluem da
mesma maneira que os salários reais. As negociações salariais se
dão em termos monetários, mas as taxas monetárias de salários
não determinam as taxas reais; só afetam a distribuição do salário
real agregado entre os trabalhadores. O nível geral de salários reais
dependeria então de outras forças do sistema econômico. A queda
nos salários conduz ao aumento do emprego somente sob suposi-
ções especiais a respeito da flexibilidade de salários, preços e juros.
No capítulo que trata do princípio da demanda efetiva, Keynes
critica a Lei de Say: a noção de que a oferta agregada cria sua
própria demanda para todos os níveis de preço e emprego. Keynes
relaciona essa lei com a tese do equilíbrio de pleno emprego:
“A lei de Say, segundo a qual o preço de demanda agregada
da produção em conjunto é igual ao preço da sua oferta
agregada para qualquer volume de produção, equivale à pro-
posição de que não há obstáculo para o pleno emprego. Contu-
do, não sendo esta a verdadeira lei que relaciona a demanda
agregada e as funções da oferta, falta ainda escrever um capítu-
lo da teoria econômica, cuja importância é decisiva e sem o
qual é inútil qualquer discussão a respeito do volume do em-
prego agregado.” (J. M. Keynes, A teoria geral do emprego dos
juros e da moeda)
Antes mesmo de Keynes, a Lei de Say já tinha caído em desuso,
pois se afasta das questões nas quais era relevante, não tratando o
problema da relação entre demanda e oferta agregada. É verdade
que suas suposições implícitas continuavam a afetar a análise eco-
nômica. Por exemplo, a ideia de que o investimento público desloca
o investimento produtivo privado desviando recursos para a espe-
culação financeira e agravando o desemprego. A Lei de Say, no novo
quadro referencial analítico, só seria aplicável no caso especial em
que as condições da economia fossem tais que a demanda agregada
se ajustasse à oferta agregada no pleno emprego. Em geral isso não
ocorre, assegura Keynes.
518
O livro 2 da “Teoria Geral” trata de “Definições e ideias”. Con-
venciona a escolha das unidades nas variáveis de análise, enfatiza
o papel das expectativas como elemento determinante do produto
e do emprego e define cuidadosamente os conceitos de poupança,
renda, investimento e custo de uso. Este último é o conceito mais
inovador nessa parte da obra:
“Definimos o custo de uso como sendo a redução de valor
sofrida pelo equipamento em virtude de sua utilização, compa-
rada com a que teria sofrido se não tivesse havido tal utiliza-
ção, levando em conta o custo de manutenção e das melhorias
que conviesse realizar, além das compras a outros empresá-
rios.” (Ibidem)
O livro 3 (“A propensão a consumir”) introduz os novos concei-
tos de propensão marginal a consumir (PMC) e multiplicador dos
gastos da renda. Keynes supõe uma função de consumo estável que
só depende da renda corrente e uma PMC que varia com o nível de
renda, sendo menor no patamar elevado de renda. Com tal
hipótese, ele retoma a noção de multiplicador da renda de Kahn,
estabelecendo formalmente a ideia de que variação nos gastos da
renda produz um efeito na renda de equilíbrio tanto maior quanto
mais elevada for a PMC.
O livro 4 (“O Incentivo para Investir”) apresenta dois outros
conceitos-chaves na construção analítica de Keynes: a “eficiência
marginal do capital” e a teoria dos juros com base na “preferência
pela liquidez”. O primeiro conceito relaciona o preço de oferta do
capital às expectativas dos investidores e permite determinar uma
curva de demanda de investimento, supostamente estável no curto
prazo, em que o volume de investimento decresce com o aumento
da taxa de juros. Na noção de preferência pela liquidez, a demanda
de moeda depende da escolha de estoques de ativos, além de
depender de fluxos de renda e de despesas. Os indivíduos deman-
dam moeda como ativo, dada a existência de incerteza quanto ao
futuro da taxa de juros. A certa taxa de juros, os especuladores
podem entrar no mercado vendendo papéis, quando esperam uma
alta nos juros, reduzindo os preços de títulos da dívida ou o valor
de outras aplicações. Em face do risco de perda de capital de se
reter aplicações financeiras, os agentes mantêm parte de sua rique-
za, ou até a totalidade dela, em ativo líquido. A preferência pela
liquidez determina a taxa de juros:
“A taxa de juros em qualquer instante do tempo, sendo ela
a recompensa de se abdicar da liquidez, é uma medida do
desejo daqueles que possuem moeda de abandonar o controle
519
sobre ela. A taxa de juros não é o preço que equilibra a deman-
da de recursos para investimento com a disposição de se
abster do consumo presente. Ela é o preço que equilibra o
desejo de manter a riqueza na forma de moeda com a quanti-
dade disponível dela.” (Ibidem)
Os conceitos anteriores são os elementos centrais do sistema
analítico criado por Keynes; não são inteiramente novos, mas
adquirem um novo uso. O nível de emprego depende do comporta-
mento dessas variáveis. A propensão a consumir e o investimento
em novos equipamentos fixam um teto para o nível de atividade
econômica. A moeda desempenha o papel de ser um elo entre o
presente e o futuro ao refletir as incertezas acerca do futuro por
parte de emprestadores e tomadores de empréstimo e transferi-las
para a taxa de juros e o nível de investimento. O livro 5 (“Salários
Nominais e Preços”) trata de salário e preços; o livro 6 de “A teoria
geral” (“Breves Notas Sugeridas pela Teoria Geral”), epílogo da
obra, retoma a discussão do ciclo econômico.

MACROECONOMIA APÓS KEYNES


Embora Keynes pretendesse que sua teoria fosse considerada
a mais geral, sendo o caso clássico uma situação particular, a
verdade é que a teoria de Keynes foi crescentemente sendo inter-
pretada como um caso especial de equilíbrio com desemprego. Para
os “neoclássicos”, essa teoria dá conta do caso com salários reais
rígidos e “armadilha da liquidez”: situação de baixa sensibilidade
(elasticidade) da demanda por moeda em relação à taxa de juros, a
um nível crítico de baixa taxa de juros. A armadilha da liquidez é
uma situação em que a taxa de juros se encontra em um nível tão
baixo que todo mundo acredita que não pode cair mais. E qual é a
consequência disso? Os agentes econômicos e os consumidores em
geral acabam retendo a moeda e diminuindo o consumo na inten-
ção de proteger suas rendas. Quando a preferência pela liquidez é
forte, o governo não consegue reduzir as taxas de juros. Se ele entra
comprando títulos para forçar um aumento dos seus preços, ou
seja, uma queda nos juros, isso gera movimento compensatório de
vendas de títulos pelo setor privado, o que anula qualquer possibi-
lidade de diminuir a taxa de juros abaixo de certo piso. A armadilha
da liquidez e a baixa elasticidade-juro do investimento (situação
em que a queda dos juros não consegue impulsionar os investimen-
tos) seriam válidas no caso bastante específico tratado por Keynes.
Tal situação teria relevância à sua época, contudo seria imperti-
nente em outras conjunturas.
520
A influência da obra de Keynes no pensamento econômico e na
política foi profunda e duradoura. A revolução keynesiana afetou a
visão dos economistas da publicação de seu principal livro, em
1936, até os anos 1960. Nessa época, a maioria dos economistas
profissionais, incluindo os mais proeminentes, denominavam-se
keynesianos. Apenas uma minoria considerava a si mesmo não
keynesiano, e uma porção ainda menor se dizia antikeynesiana. Os
governos de vários países vangloriavam-se por adotar políticas
keynesianas. A noção de que déficits públicos são desejáveis era
quase consensual nessa época.
Nas décadas de 1970 e 1980, a maior preocupação do governo
dos Estados Unidos era com a inflação trazida pelo excesso de
demanda. Na primeira década, a inflação atingiu a cifra de dois
dígitos, enquanto, depois, o déficit orçamentário seria a principal
preocupação dos anos 1980. O governo americano buscava agora
obter superávits fiscais para pagar a dívida acumulada no passado.
No entanto, à época de Keynes, 50 anos atrás, quando um em cada
quatro adultos não conseguiam emprego, o problema era falta de
demanda. Com a mudança de ênfase, muitos economistas passam a
rejeitar as teses de Keynes e a defender orçamentos equilibrados.
Keynes não pode ser inteiramente responsabilizado pelo uso
que fizeram de suas ideias quando ele não mais existia. Tanto
políticos quanto economistas abusaram do rótulo de “keynesiano”
para legitimar políticas ou persuadir quanto à adequação de
enfoques teóricos que não eram exatamente os de Keynes. As
diferentes linhas de interpretação e extensão de suas ideias ganha-
ram nomes como neokeynesianos, novos-keynesianos e pós-keyne-
sianos. Por vezes, tais escolas referiam-se à corrente rival chaman-
do-a de keynesianos ortodoxos, fundamentalistas ou até bastardos.
Keynes não teria objeção a que políticos e conselheiros economis-
tas do futuro fizessem uso de seu nome, certa vez disse:
“Os homens práticos que se acreditam isentos de qualquer
influência intelectual muitas vezes são escravos de algum
economista defunto.” (Apud M. Friedman, John Maynard Key-
nes)
Ele se sentiria orgulhoso com o famoso pronunciamento do
presidente Richard Nixon que declarou: “agora somos todos keyne-
sianos”.
Keynes foi acusado de ter, com suas ideias, induzido os
políticos a praticarem políticas excessivamente expansionistas que
resultaram no desastre nos anos 1970. Diziam que o grande econo-
mista não oferecera um instrumento analítico para lidar com o
521
problema da inflação e teria desprezado a questão. Contudo, vimos
que em seu último ensaio Como pagar pela guerra, Keynes faz di-
versas reservas quanto ao uso de seu instrumental analítico em
condições potencialmente inflacionárias e oferece, na ocasião, um
tratamento para o tema. Talvez crítica mais pertinente ao legado de
Keynes esteja no fato verídico de ter ele se preocupado muito pouco
com os efeitos ulteriores remotos de sua política. Keynes escreveu
uma vez que “no longo prazo estaremos todos mortos”.
A versão da mensagem de Keynes que se espalhou não foi a de
suas ideias no formato em que encontram em “A teoria geral”.
Muito mais popular tornou-se a tradução analítica conhecida como
síntese neoclássica de Keynes, inaugurada no artigo de John Hicks
de 1937, no qual é introduzido o famoso modelo IS-LM como repre-
sentação dessas ideias. Particularmente nos Estados Unidos, essa
foi a forma predominante do keynesianismo no período pós-
guerra. No entanto, os economistas de Cambridge rejeitaram tal
interpretação seguindo uma linha diferente do neokeynesianismo
de Hicks. Os chamados neoricardianos de Cambridge e os pós-
keynesianos da América buscaram uma leitura da mensagem
original de Keynes que eles acreditam ter sido distorcida.
Nos anos de 1937 e 1938, R. Harrod, J. Meade e O. Lange
vinham tentando expressar as principais relações da teoria de
Keynes em equações, de modo a elucidar as inter-relações entre a
teoria da demanda efetiva e a teoria da preferência pela liquidez.
Num esforço também nesse sentido foi que Hicks, no artigo Sr.
Keynes e os clássicos: uma proposta de interpretação, publicado na
revista Econometrica, propôs as duas curvas SI-LL a fim de ilustrar
essas relações. Tais curvas tornaram-se conhecidas como modelo
IS-LM e foram popularizadas pelo recém-convertido Alvin Hansen.
Tal modelo tem sido, desde então, o mais formidável exercício
pedagógico e uma representação gráfica das mais eficientes na
história do pensamento econômico. Contudo, os críticos do neokey-
nesianismo apontaram, no modelo, problemas de consistência
lógica que o torna má representação das formulações de Keynes.
Hicks, quando propôs tal interpretação, vinha trabalhando
com teorias de equilíbrio geral e pensou em enquadrar a descrição
de Keynes em um modelo de equilíbrio geral dos mercados. O
aspecto crucial do sistema keynesiano, que Hicks tinha em mente
quando formulou o modelo IS-LM simplificado, era a interação
entre mercados reais e monetários. O mercado real fornece o nível
de renda de equilíbrio e o mercado monetário a taxa de juros de
equilíbrio. Cada uma dessas variáveis afeta um aspecto do outro

522
mercado. A renda afeta a demanda de moeda e as taxas de juros
afetam o investimento. Essa interação claramente viola a dicotomia
clássica entre o lado real e o lado monetário da economia, e, com
isso, a neutralidade da moeda. A interação entre o lado real e o
monetário é o aspecto central do modelo IS-LM. Seguindo o estilo
walrasiano, Hicks concluiu que seria necessário resolver simulta-
neamente as equações para mercados monetários e reais.
Embora bastante aceito, muitos keynesianos da época e dos
tempos atuais têm argumentado que o sistema de Keynes não
comporta um tratamento em termos de equações simultâneas.
Keynes trabalha com a ideia de causalidade entre as variáveis
econômicas e abjura o raciocínio típico do equilíbrio geral de
Walras em favor do encadeamento lógico das causações. Raciocina
assim: dada a propensão a consumir, o volume de emprego é deter-
minado pelo montante de investimento; dada a rentabilidade
esperada, o montante de investimento é determinado pela taxa de
juros; dada uma oferta de moeda, a preferência pela liquidez origi-
na as taxas de juros. O fundamentalista pós-keynesiano argumenta
que o raciocínio de Keynes segue uma cadeia causal.
O economista italiano Luigi L. Pasinetti argumenta que o
sistema de Keynes deve ser pensado como sendo “bloco recursivo”
ou sequencial, e que, como tal, não pode ser resolvido simultanea-
mente. Deve-se interpretar, continua ele, o sistema analítico
keynesiano como uma sequência em que se alternam decisões em
mercados de ativos e em mercados de bens. A taxa de juros
primeiro é determinada em uma escolha de portfólios nos merca-
dos financeiros e somente então é determinado o nível de investi-
mento, produção e emprego no mercado real. O resultado neste
último mercado origina feedbacks em outras decisões de escolha
de carteiras de ativos.
Diversos importantes economistas tais como Richard Kahn,
Joan Robinson, Axel Leijonhufvud e Paul Davidson enfatizam que o
método de equações simultâneas do modelo IS-LM, ao eliminar a
sequência temporal, também elimina a dependência temporal que
é um ponto fundamental na teoria de Keynes e que origina os
conceitos de incerteza, expectativas, especulação e animal spirits
(“espírito animal” é o termo que ele usou em seu livro de 1936 a
fim de descrever emoções que influenciam o comportamento
humano). Anos depois, o próprio Hicks, desiludido, reconheceu que
as diferentes referências temporais tornam o modelo IS-LM incon-
gruente. Outro ponto falho no modelo, apontado pela crítica pós-
keynesiana, é que a decisão subjacente à curva LM é feita no

523
contexto de restrição de estoques, enquanto a decisão no mercado
real é feita tendo-se em conta uma restrição de fluxos.
Certa interpretação da economia de Keynes aparece recorren-
temente em livros-textos de macroeconomia na forma do diagrama
renda-despesa, popularizado por Samuelson, Lerner e Hansen.
Nesse diagrama, pode-se verificar facilmente que no equilíbrio, em
que as despesas totais planejadas são iguais à oferta agregava, a
poupança e o investimento planejados se equiparam em valor
(Boxe 12.4). O nível de equilíbrio da produção pode dar-se em
qualquer nível abaixo do pleno-emprego. Qual será exatamente tal
nível dependerá da demanda agregada. Então a demanda agregada
é o fator básico a determinar o equilíbrio. Esta é, sem dúvida, a
mensagem central de Keynes: toda a economia está sujeita a
equilíbrios múltiplos, não há apenas um único nível de equilíbrio
entre oferta e demanda agregada.
O diagrama também evidencia a ideia do multiplicador,
desenvolvida originalmente por Richard Kahn. Para uma função de
consumo linear, C = C0 + c.Y, em que c é a propensão marginal a
consumir, 0 < c < 1, e C0 é o consumo autônomo, supondo que a
demanda de investimento e os gastos do governo são exógenos e
fixos nos valores I = Io e G = Go, então a demanda agregada Yd é
expressa na equação Yd = Co + c.Y + Io + Go.
Na figura do Boxe 12.4, a inclinação da demanda agregada é
menor que 1 porque 0 < c < 1, assim esta curva é mais próxima da
horizontal que a reta de 45°. O intercepto vertical da curva é
simplesmente a soma dos gastos autônomos Ao = Co + Io + Go. Na
condição de equilíbrio, a oferta agregada Y é igual a Yd. Algebrica-
mente o valor de equilíbrio Y * iguala-se a (Co + Io + Go)/(1 – c). Vê-
se então que o nível de equilíbrio da produção é um múltiplo dos
gastos autônomos Ao, em que o fator 1/(1 – c) é o famoso multi-
plicador de Kahn e Keynes no caso simples.
A ideia básica subjacente ao multiplicador é a de que gastos
públicos e privados geram renda ganha por algum segmento e que
subsequentemente uma parte dessa renda será consumida geran-
do-se mais dispêndios que gerarão, por seu turno, mais renda e
assim por diante. Então, dado o gasto autônomo Ao, alguns recebe-
rão esta renda, que os levará a consumir dela c. Ao, e o processo
segue em rodadas sucessivas. A renda total gerada pelo nível inicial
de gastos autônomos Ao será Y * = Ao + c. Ao + c2. Ao + c3. Ao + ...
Contudo, tal progressão geométrica não é de soma infinita, a série
524
converge porque a propensão marginal a consumir é menor que 1.
Se 0 < c < 1 então Y * = Ao.(1 + c + c2 + c3 +...) = [1/(1 – c)]. Ao.
Há também uma explicação do processo de convergência ao equilí-
brio na qual se explicita a dinâmica do multiplicador. A produção
responde ao excesso de demanda mediante a equação dY/dt =
.(Yd – Y) onde  > 0, de tal modo que a produção cresce se há um
excesso positivo de demanda agregada Yd > Y ou I > S, e decresce
com excesso negativo de demanda ou excesso de oferta agregada
Yd < Y ou I < S.

Boxe 12.4 Diagrama renda-despesa de Samuelson, Lerner e Hansen.

No início da década de 1950, as ideias de Keynes foram didaticamente


expressas no diagrama renda-despesa, muito popular até hoje nos manuais de
macroeconomia introdutória. Tal como na figura a seguir:

O gráfico mostra que apenas em Y* ocorre a igualdade entre oferta e


demanda agregada. Y > Yd equivale também a um excesso de poupança S
sobre o investimento I e o contrário na situação em que Y < Yd. Na condição
de equilí-brio com a renda em Y* demonstra-se trivialmente que I = S. Seja o
gasto plane-jado ou demanda agregada Yd = C + I + G, em que C é o consumo
planejado, I o investimento planejado e G o gasto planejado do governo
(ignoramos o setor externo). Se o mercado de bens está em equilíbrio, Y = Yd,
em que Y é a renda ou produto agregado. A renda é consumida, poupada ou
alocada no pagamento de impostos, portanto, podemos decompor Y em Y = C
+ S + T (T são os impostos pagos). Por conseguinte, no equilíbrio C + I + G =
C + S +T ou simplesmente I = S, assumindo-se o equilíbrio orçamentário do
governo, G = T. Portanto, investimento planejado iguala-se à poupança
planejada.

525
A conclusão do diagrama de Samuelson, interpretativo de
Keynes, é muito diferente do modelo clássico que argumenta ser a
taxa de juros a variável que equilibra o lado real da economia, isto
é, a poupança com o investimento. O modelo do multiplicador
também reconhece que ex-post a poupança real se iguala ao invés-
timento real, já que I e S, em suas equações, referem-se aos níveis
planejados de poupança e investimento. Contudo, o ajuste das va-
riáveis é feito por mudanças no produto e não pela ação das taxas
de juros. Mudando-se a hipótese de investimento exógeno e fixo, o
modelo do multiplicador segue a ideia de Keynes de que os inves-
timentos são função das taxas de juros reais r. O modelo, entretan-
to, não explica o que determina os juros. Para Keynes, a relação
entre as duas variáveis se dá via eficiência marginal do investi-
mento (EMI). A curva da EMI é decrescente com os investimentos:
conforme estes se elevam, a EMI tende a zero. As firmas investem
até o ponto em que EMI = r, a dada taxa de juros. Assim, I = I (r) e
dI / dr < 0.

Figura 12.1 Curvas IS e LM no modelo de Hicks.

O modelo IS-LM de Hicks é mais complexo que o diagrama


simples de Samuelson. No plano que relaciona taxa de juros com o
produto agregado da economia (Figura 12.1), a curva IS é negativa-
mente inclinada enquanto a LM tem inclinação positiva. A primeira
representa infinitos pontos de equilíbrio no lado real da economia
(I = S, daí o nome IS ), e a curva LM indica pontos de equilíbrio
monetário (L = M, isto é, a demanda de moeda L é igual à oferta
monetária M ). A curva IS é um locus de pontos de equilíbrio e, como
tal, ela captura a relação entre taxa de juros e produto agregado.
Quando os juros r crescem (em termos reais), o investimento

526
decresce e, por conseguinte, também se reduz a demanda agregada.
Assim, o nível do produto de equilíbrio Y * também deve cair
acompanhando a queda na demanda para manter a igualdade de
equilíbrio. A IS é um locus de equilíbrio e não uma curva conven-
cional, pois todos os seus pontos representam equilíbrio no merca-
do de bens (oferta agregada = demanda agregada). Pontos fora
dessa curva representam situações de desequilíbrio.
Quando Hicks idealizou a curva LM, estava pensando na aloca-
ção de um portfólio de ativos, no qual a moeda é demandada para
fins especulativos. Por simplicidade, assume a existência de somen-
te dois ativos: moeda, que não rende juros, mas é um ativo
perfeitamente líquido, e título do governo (bonds ) que paga juros.
Se a taxa de juros é zero, ninguém irá querer manter títulos em seu
portfólio, já que a liquidez da moeda é superior. Os papéis do gover-
no oferecem uma taxa de juros para atrair o aplicador; maiores os
juros pagos mais as pessoas migrarão da moeda para os títulos.
Assim a demanda monetária é expressa pela equação Md = L (r, Y ),
onde Lr < 0 e LY > 0. Keynes, embora aceitasse a relação, não enfati-
zou o papel da renda na demanda de moeda, no entanto, Hicks e
Hansen ressuscitaram este elo no modelo IS-LM.
Do lado da oferta de moeda, a oferta real é dada por Ms = M/p,
em que M é a oferta nominal de moeda, tida como exógena no nível
de preço p. O modelo supõe preços constantes ou não se explica
como se dão as mudanças dessa variável. O equilíbrio monetário
implica Md = Ms, ou L (r, Y) = M/ p. Usando a Lei de Walras dos
mercados, como o modelo presume a existência de apenas dois
ativos, o equilíbrio no mercado monetário, Md = Ms acarreta a
mesma condição no mercado de bonds : Bd = Bs. Se as taxas de juros
forem elevadas a ponto de fazer Bd > Bs, essa desigualdade traduz-
se necessariamente em Md < Ms.
Na equação para a demanda de moeda Md = L(r, Y ), tal deman-
da é função crescente do produto agregado Y. Quando a renda
cresce, as taxas nominais de juros também devem crescer, de tal
modo a reduzir em grau suficiente a demanda monetária para fins
especulativos. Tal redução deve compensar o efeito de aumento da
demanda de moeda induzido pela elevação da renda, já que a oferta
de moeda é fixa. Consequentemente a curva LM foi derivada por
Hicks como um locus de equilíbrio que relaciona níveis de renda
com taxas de juros de equilíbrio ao longo de uma linha crescente.
Todos os pontos fora da LM denotam um desequilíbrio no mercado
monetário (e por certo em outros ativos).
527
A exposição anterior, mais detalhada, do modelo IS-LM
permite compreender melhor a crítica pós-keynesiana, já comen-
tada, de que a decisão subjacente à curva LM é feita no contexto de
restrição de estoques, enquanto a decisão no mercado real é feita
tendo-se em conta uma restrição de fluxos, e isso representa uma
incoerência lógica. De fato, não podemos superpor uma condição
de equilíbrio de estoque a uma condição de equilíbrio de fluxo,
porque as referências temporais em cada caso são diferentes. Qual-
quer ponto da curva LM representa um equilíbrio de estoque; a
demanda por riqueza é igual à oferta de riqueza. A IS trata do
equilíbrio entre poupança e investimento planejados, mas a pou-
pança planejada é a demanda por riqueza adicional, enquanto o
investimento planejado se traduz em oferta adicional de riqueza;
os dois casos tratam de fluxos e não estoques como no equilíbrio
monetário. Como é possível em termos lógicos igualar uma condi-
ção de equilíbrio de fluxos a uma condição de equilíbrio de esto-
ques? Impor que o equilíbrio entre oferta e demanda de estoque
seja obedecido a todo tempo torna impossível que haja um desequi-
líbrio de fluxos, porém o contrário poderia ocorrer: equilíbrio de
fluxos com desequilíbrio de estoques. Se o lado real está em
equilíbrio de fluxos (curva IS) não necessariamente haverá um
equilíbrio entre o estoque total de ativos produtivos e os fundos
totais que os pagam. Um modelo de equilíbrio geral da economia
deveria levar em conta equilíbrios simultâneos de fluxos e de
estoques, no lado real e monetário da economia.
Além das críticas que relacionamos ao modelo IS-LM, outra
comumente feita é que, de acordo com a teoria da preferência pela
liquidez de Keynes, um modelo representativo de suas ideias teria
de ter duas taxas de juros: a taxa corrente e a taxa de juros esperada
para o futuro. O modelo IS-LM básico não incorpora tal diferença
de taxas. A despeito dessas dificuldades, certamente sérias e com-
prometedoras, o modelo IS-LM permanece até hoje como um
importante dispositivo pedagógico, extremamente eficiente no
ensino de macroeconomia. O modelo não é o único e, certamente,
não é o mais coerente ou confiável para expressar as ideias contidas
em “A teoria geral”, de Keynes. Contudo, ele é o mais simples.
Permite ao estudante e ao economista em situações triviais respon-
der, de pronto, qual o efeito de uma expansão monetária, aumento
dos gastos do governo ou queda de impostos na renda e nas taxas
de juro da economia. Como tal, ele é imbatível. Diversos aperfei-
çoamentos foram feitos no modelo inicial de Hicks e o dispositivo
ainda é muito usado em cursos de economia.

528
Na década de 1960, ainda triunfa a revolução keynesiana.
Desde 1946, a Lei do Emprego dava ao governo dos Estados Unidos
a responsabilidade pela estabilidade e pelo crescimento da econo-
mia. Em 1960, o presidente Kennedy nomeia um conselho de asses-
sores econômicos, todos eles keynesianos, e presidido por Walter
Heller. O conselho recomendava déficits públicos para estimular a
economia no lugar de políticas de equilíbrio orçamentário. Corte
nos impostos também foi usado para esse propósito em 1962. A
política keynesiana continuou após 1964 com o presidente L. John-
son. No entanto, no fim dessa década a inflação começou a sair do
controle, deslocando a ênfase das políticas macroeconômicas. Na
solução teórica do problema da inflação, mesclava-se o arcabouço
neokeynesiano com o trabalho de William Phillips, que desvendou
empiricamente uma relação estável entre inflação e desemprego
expressa na famosa curva de Phillips. Essa curva é uma linha
decrescente no plano que relaciona a inflação ao desemprego. O
arrazoado é simples e intuitivo: baixo nível de desemprego gera
surtos inflacionários à medida que o excesso de demanda de mão
de obra no mercado de trabalho acarreta aumento de salários.
Salários em crescimento geram inflação, pois com a economia
aquecida os patrões podem repassar a elevação dos custos aos
preços. A inflação pode ser corrigida com alguma dose de recessão.
A curva era tida como estável ao longo do tempo e possibilitaria
especificar um menu de combinações de inflação e desemprego que
seriam alcançados por um conjunto apropriado de políticas mone-
tárias e fiscais.
A curva de Phillips possibilitava estender o modelo keynesiano
básico na explicação dos preços. Então o macroeconomista teria um
aparato analítico completo. Muita pesquisa havia sido feita até
então no sentido de dotar o modelo de um fundamento rigoroso.
Buscou-se uma sustentação teórica da macroeconomia pela micro-
economia neoclássica, tornando o comportamento agregado com-
patível com a otimização individual. Franco Modigliani partiu do
comportamento racional dos indivíduos para obter a função consu-
mo e Dale W. Jorgensen construiu uma função de investimento
agregado com base na ação das empresas individuais. A curva de
Phillips era usada para analisar o lado da oferta da economia. A
ênfase recaía no mercado de trabalho. A microeconomia do merca-
do de trabalho dava suporte à macroteoria analisando como se dão
as decisões de produção, a contratação de trabalho e a fixação dos
preços com base nos custos.
O problema posto para a teoria no início dos anos 1970 era o
de como a inflação poderia conviver com desemprego elevado.
529
Trata-se do fenômeno de estagflação (“stagflation”), que desafiava
a explicação tradicional. Robert Lucas escreveu anos depois, em
1981:
“Os proponentes de uma classe de modelos que prometiam
3,5 a 4,5% de desemprego para uma sociedade que pudesse
tolerar taxas de inflação anual de 4 a 5% tinham então de expli-
car o que se passou numa década tal como a que acabamos de
viver em que a inflação cresceu a 16% ao ano e o desemprego
a 8% nos Estados Unidos, a 30% e 6% no Reino Unido. A infla-
ção cresceu a níveis tão elevados como 25% no Japão e 7% na
Alemanha, embora com desemprego permanecendo relativa-
mente baixo nesses países. Um erro de previsão desta magni-
tude e relativo a pontos de importância central para a política
tinha de ter consequências, como de fato teve.” (Apud M. Fried-
man, John Maynard Keynes)
Uma curva de Phillips estável, como se supunha, parecia estar
sendo violada pelos fatos da realidade. Argumentos foram busca-
dos no sentido de preservar a teoria padrão, sustentando-se que o
desemprego se devia a imperfeições de mercado. Problemas de
informação, heterogeneidade do trabalho e desajuste na qualifica-
ção dos trabalhadores faziam com que as vagas não fossem preen-
chidas no curto prazo, mesmo com excesso de oferta de mão de
obra. Mais uma vez, como na época de Keynes, a rigidez nos salários
nominais era apontada como a vilã da história. A conclusão da
explicação ainda mantinha válidas a curva de Phillips e a política de
controle de demanda.
O agravamento da crise gerou descontentamento generalizado
com a macroeconomia da época. Em 1968, Milton Friedman e
Edmund Phelps argumentam que era espúrio o trade-off entre
inflação e desemprego, previsto pela curva de Phillips. Eles passam
a enfatizar a importância de se separar inflação antecipada da não
antecipada, introduzindo o papel das expectativas na curva de
Phillips e o conceito de taxa natural de desemprego ao qual a
economia tenderia conforme os agentes fossem ajustando suas
previsões. Ou seja, uma década de alta inflação não teria necessa-
riamente menos desemprego, em média, que outra década de
menor inflação. A experiência na década de 1970 levou a uma
desilusão com o keynesianismo, não apenas por parte dos econo-
mistas, mas também dos políticos. James Callaghan, então primei-
ro-ministro da Inglaterra, o berço do keynesianismo e o país
pioneiro em adotar políticas keynesianas, disse em 1976:

530
“Acostumamo-nos a pensar que poderíamos sair de uma
recessão e aumentar o emprego cortando impostos e amplian-
do os gastos governamentais. Com toda candura eu digo agora
a vocês que essa opinião não mais existe e que esta política
funciona apenas quando se injeta altas doses de inflação na
economia, seguida por altos níveis de desemprego na etapa
seguinte. Esta é a história dos últimos vinte anos.” (Apud M.
Friedman, John Maynard Keynes)
Friedman demonstrou que ao se introduzirem expectativas no
modelo de inflação a curva de Phillips torna-se instável. Quando o
desemprego diminui, não apenas aumenta a inflação, mas alteram-
se as expectativas inflacionárias dos agentes, especialmente dos
trabalhadores ao negociarem seus contratos de trabalho. Friedman
imagina que os empregados precisariam de tempo para ajustar
suas expectativas e desenvolve então um modelo de expectativas
adaptativas com a previsão inflacionária a depender da série
passada de inflação, no qual se ponderam as várias inflações que
prevaleceram em diferentes períodos passados. Quando se desloca
ao longo de uma curva de Phillips de curto-prazo, por exemplo,
reduzindo o desemprego e aumentando a inflação, a nova inflação
gera um novo trade-off com a curva se deslocando para cima. O
processo continua até que o desemprego retorne a um nível de
equilíbrio compatível com qualquer índice de inflação, cujo valor
depende da trajetória passada e de como as expectativas foram
sendo realimentadas. Diz-se, portanto, que a curva de Phillips é
vertical a longo-prazo. A taxa de desemprego de equilíbrio, denomi-
nada de taxa natural, não é afetada por políticas monetárias e
fiscais, embora possa ser influenciada por políticas microeco-
nômicas que melhorem a eficiência no mercado de trabalho.
Keynes não acreditava na eficiência da política monetária nas
condições econômicas de sua época. O neokeynesianismo, no
entanto, aceita a importância da moeda na política de estabilização.
No diagrama IS-LM, o ponto de pleno-emprego pode ser alcançado
tanto por políticas fiscais, que deslocam a IS para a direita, quanto
por políticas monetárias, que deslocam a LM no mesmo sentido. No
primeiro caso, o pleno-emprego é obtido com a mesma quantidade
nominal de moeda. Quando a estratégia de estabilização usa apenas
a política monetária que desloca a LM, o pleno-emprego é alcança-
do mantendo-se a mesma eficiência marginal do capital. Keynes
rejeita essa via monetária de política antirrecessão, tida como
irrealista, visto que constata serem os gastos autônomos insensí-
veis às taxas de juros e pela ideia de armadilha da liquidez que
impede a ocorrência, a partir de certo ponto, de baixa dos juros.
531
Investimentos perfeitamente inelásticos aos juros e preferência
pela liquidez tornam a curva IS uma reta horizontal e a LM uma reta
vertical. Nesse caso extremo, a política monetária é completamente
ineficaz em seus efeitos sobre a renda de equilíbrio. Na situação
menos extrema, em que a IS é uma curva altamente inelástica (uma
curva bastante inclinada) e a LM altamente elástica (próxima à
horizontal), é possível que apenas a uma taxa de juros negativa a
política monetária expansionista, que desloca a LM para baixo,
possa levar ao equilíbrio de pleno-emprego, como mostra a Figura
12.2 abaixo.

Taxa de
juros r LM

Pleno-emprego

Produto Agregado

IS

Figura 12.2 Modelo IS-LM em que a política monetária tem


solução de pleno-emprego para taxa de juros
negativa.

Contrário ao diagnóstico de Keynes, Friedman argumenta que


a política monetária é eficiente no curto prazo, embora a moeda
seja neutra no longo prazo. Na versão simples do diagrama IS-LM,
ignora-se o efeito das políticas sobre preços e salários. Na recessão,
os salários nominais tendem a cair, fato reconhecido por Keynes,
porém ele imaginava que os demais preços cairiam pari passu,
deixando os salários reais inalterados. Embora tal fato se verifique
na época, Friedman mostra que não se poderia generalizar tal
conclusão a outras situações: a queda nos salários reais pode, de
fato, ocorrer e isso ajuda a combater a recessão. Além do mais, a
queda dos preços na recessão leva ao aumento nos saldos reais de
moeda retidos pelos indivíduos (o chamado efeito Pigou). Esse
efeito de saldos reais é magnificado quando se praticam políticas
monetárias expansionistas que aumentam a moeda disponível ao

532
público. O aumento real de moeda pelo “efeito riqueza” impulsiona
os gastos privados, o que desloca a curva IS (além do efeito da
moeda nos saldos reais, Friedman fala também do efeito dos juros
sobre o valor dos ativos, que altera a riqueza e a propensão média
e marginal a consumir a qualquer nível de renda). Ou seja,
Friedman aponta que a IS e a LM não são curvas independentes e o
impacto da política monetária também sobre a IS aumenta seu
efeito estabilizador de curto prazo.
Apesar de poderosa no curto prazo, e justamente por isso,
políticas monetárias ativas devem ser evitadas por seu efeito
desestabilizador: por reconhecer a importância da moeda, os moneta-
ristas (como foi rotulado Friedman e seu grupo) preferem fixar uma
taxa de crescimento constante da moeda em vez de políticas discricio-
nárias com ela. Mesmo a Grande Depressão ocorrida nos anos 1930
não prova a ineficácia da política monetária. Friedman, em famoso
estudo História monetária dos Estados Unidos, escrito com Anna
Schwartz, demonstra ter ocorrido, o colapso, entre 1930 e 1933, do
sistema bancário dos Estados Unidos, que resultou na drástica redu-
ção de liquidez na economia e ampliou a crise preexistente.
Os monetaristas restabeleceram a crença no mecanismo
automático de ajuste nas economias capitalistas. Para eles, a políti-
ca monetária é poderosa, pelos argumentos anteriores, no entanto
deve ser evitada, e a política fiscal é ineficiente, dada a curva de
Phillips vertical no longo prazo. A elevação dos gastos públicos
apenas desloca os investimentos privados, diminuindo a eficiência
microeconômica do sistema. Voltamos às mesmas conclusões man-
tidas pelos neoclássicos antes de Keynes.
Ainda resta a questão de explicar o que ocorre na recessão. Os
monetaristas apontam para os problemas no mercado de trabalho,
especialmente na rigidez de salários. Economistas de outra linha,
no entanto, mostraram que os mercados podem não ser eficientes
mesmo com preços flexíveis. Axel Leijonhufvud e Robert Clower
estudam as falhas de coordenação dos mercados no que se tornou
conhecido como economia do desequilíbrio. Modelos de processos
de desequilíbrio foram construídos de modo a evidenciar quais
problemas de informação impedem que os mercados alcancem o
equilíbrio. Importantes economistas, como R. Solow, J. Stiglitz, R.
Barro e H. Grossman, elaboram modelos desse tipo, compatibili-
zando-os com o comportamento de otimização e com os resultados
neokeynesianos.
Em 1961, um economista não muito conhecido, John Muth,
publicou artigo com uma teoria em que as expectativas dos indiví-
533
duos utilizam as próprias previsões do modelo. Tais expectativas
foram denominadas de “racionais”. John Muth, em Expectativas
racionais e a teoria do movimento dos preços, postula que as
expectativas dos agentes são formadas pelas previsões dos mode-
los da teoria econômica relevante. A justificativa é a de que a
economia não perde informação e que a informação mais acurada
está no próprio modelo teórico, no interior do qual as expectativas
dependem da estrutura global do sistema. Muth trabalha com a
hipótese de um mercado isolado com defasagem fixa de produção.
Os agentes se envolvem na especulação com mercadorias.
Até então, os modelos com o uso tradicional das expectativas
adaptativas explicavam os ciclos econômicos por meio de erros nas
expectativas. Sabia-se, portanto, que para as flutuações de curto
prazo eram importantes os estudos das expectativas nos negócios
e dados de intenção dos agentes. Muth identificou problemas na
análise tradicional das expectativas. Ela não explica muito bem
como as expectativas são formadas e nem as flutuações no merca-
do; não descreve como as expectativas são influenciadas pelo curso
atual dos eventos. Enfim, a análise não explica como trabalha a
economia. No estudo da dinâmica do processo econômico urge que
se investigue que tipo de informação está sendo usada; e como é
possível o uso de informações atuais para se fazer estimativas das
condições futuras. Como as mudanças estruturais do sistema
mudam as expectativas? Deve-se, para tanto, usar a variável certa
como expectativa, de modo a se evitar viés em modelos economé-
tricos, e ainda a fim de tornar as implicações da teoria das expecta-
tivas consistentes com os dados.
Na hipótese de expectativas racionais, as expectativas médias
numa indústria são tão acuradas quanto as de elaborados sistemas
de equações. Já os modelos com expectativas adaptativas, tradicio-
nais até então, subestimam a amplitude das mudanças reais. Muth
propõe um modelo no qual as expectativas fossem iguais à previsão
da teoria econômica relevante; isto é, que sejam racionais. Por
“racionais” não se entende o que as firmas fazem, mas o que as
firmas devem fazer. Até então, faltava uma hipótese de racionali-
dade mais forte nos modelos dinâmicos. Como são as expectativas
das firmas? Elas formam uma distribuição subjetiva de probabili-
dades de retorno. Estas se distribuem ao longo da previsão teórica
ou distribuição objetiva de probabilidades de retornos.
O modelo parte da constatação de eficiência no uso da informa-
ção. Como a informação é escassa, o sistema econômico não a
desperdiça. Das proposições lançadas por Muth, cabe destacar as

534
seguintes: o modo como as expectativas são formadas depende da
estrutura do sistema relevante que descreve a economia; a expecta-
tiva de uma única firma está sujeita a errar mais que a teoria; a
eficácia das políticas depende de “inside information”. A raciona-
lidade na formulação das expectativas diz respeito à conduta média
dos empresários. Na prática, evidentemente o empresário não
segue a solução de um sistema de equações do modelo econômico;
as previsões não são perfeitas e não são as mesmas entre eles. As
previsões são iguais apenas no resultado médio; em cada caso
individual são processos diferentes. Muth lança também outras
hipóteses dependentes entre si: distúrbios aleatórios com distri-
buição normal, as variáveis a serem previstas têm um “equivalente
certo”, e equações lineares para oferta e demanda e também nas
fórmulas de expectativas.
Muth modela, a título de exemplificação, as flutuações de
preços para um mercado isolado. Começa com as hipóteses de
mercadorias que não podem ser estocadas, lag de produção fixo,
número fixo de firmas e mercado isolado. As equações do mercado
são expressas da seguinte maneira: lado da demanda Ct = -  pt , Ct
é o montante consumido e pt é o preço de mercado no t-ésimo
período.  é a constante de proporcionalidade. O número de unida-
des produzidas em um período (mas só disponibilizadas obedecido
o lag de produção) é Pt =  pte + ut . Na qual pte é o preço de mercado
que se espera prevalecer no t-ésimo período com base na informa-
ção disponível no (t-1 )-ésimo período.  é uma constante de pro-
porcionalidade e ut descreve um erro estocástico. No equilíbrio, Pt
= Ct , ou seja, pt = – ( /) pte – (1/) ut . Aplicando-se o “operador
esperança”, Eut = 0 (desvios não sistemáticos dos valores de equilí-
brio) e obtém-se E pt = – (/) pte. Necessariamente também deve-
mos ter E pt = pte , o que traduz a hipótese de que a previsão da
teoria é igual à previsão das firmas, pois se fosse diferente, o insider
iria lucrar com seu conhecimento, especulando com estoques ou
vendendo serviços de previsão às firmas. Portanto, na conclusão do
modelo, a equação pte = – (/) pte impõe que / = – 1. Se /  –
1 então obviamente pte = 0. Em suma, os preços esperados são
preços de equilíbrio.
O trabalho de Muth permaneceu esquecido por 10 anos, até
que Robert Lucas percebesse as implicações revolucionárias das
expectativas racionais para um novo enfoque clássico aplicado à
macroeconomia. Em 1969, ele e Leonard Rapping publicam um
paper na revista Journal of Political Economy (JPE), intitulado
Salário real, emprego e inflação. Esse trabalho projetou o nome de

535
Lucas por ter proposto um modelo de mercado de trabalho que
seria, mais tarde, a base dos modelos da nova escola conhecida
como nova economia clássica, ou simplesmente “novos clássicos”.
As conclusões do trabalho apoiam a existência de uma taxa natural
de desemprego, já identificada por Milton Friedman.
O primeiro trabalho importante no qual Lucas usou a hipótese de
expectativas racionais trata do comportamento do investimento.
Investimento sobre incerteza foi publicado na Econometrica, em
1971, escrito em parceria com Edward Prescott. No ano seguinte, na
revista Journal of Economic Theory aparece o artigo Expectativas e a
neutralidade da moeda, no qual as expectativas racionais são
introduzidas no novo modelo de mercado de trabalho. Os artigos de
Lucas chegam a resultados clássicos tais como neutralidade da moeda
e a ineficácia da política econômica do governo; deriva daí a origem do
nome “novos clássicos”. Outros trabalhos de Lucas, na primeira
metade dos anos 1970, submetem a hipótese de taxa natural de
desemprego e as políticas ativas a testes e avaliações econométricas
que levaram à conclusão de que haveria falhas irreparáveis nas
economias keynesiana e monetarista.
Em 1975, outro artigo de Lucas na JPE, Um modelo de equilíbrio
do ciclo de negócio, contestou a ideia convencional de que a noção de
equilíbrio seria incompatível com a existência de ciclos econômicos. A
proposta do artigo era a de modelar uma economia em que o
produto real flutuasse em torno da tendência. A flutuação não é
explicada por variações na quantidade disponível de fatores produ-
tivos. Os movimentos cíclicos são gerados por choques de políticas
cujos efeitos são distribuídos ao longo do tempo devido a lacunas
de informação. Associados às flutuações, há movimentos pro-
cíclicos nos preços, na participação do investimento no gasto da
renda, e nas taxas nominais de juros. A novidade do modelo
consiste na interpretação de que preços e quantidades em qualquer
ponto correspondem a um equilíbrio competitivo e na imposição
da hipótese de expectativas racionais dos agentes. Viceja informa-
ção imperfeita, pois o futuro é desconhecido e falta informação das
condições atuais. Lucas procura investigar situações hipotéticas
para estudar o efeito das políticas. Pergunta como os agentes irão
se comportar em situações hipotéticas? Estuda então o processo de
tomada de decisão. Como tem sido no passado as decisões dos
agentes? Como tais decisões seriam alteradas por mudanças hipo-
téticas na política?
Para Lucas, não se pode determinar regras para o comporta-
mento do governo; parte então para o estudo dos efeitos decorren-

536
tes de um conjunto de hipóteses de estudo. As flutuações do pro-
duto real são provocadas por choques não antecipados nas políti-
cas. Não há oportunidades de lucro não exploradas. A produção e o
comércio ocorrem entre um grande número de mercados imperfei-
tamente ligados (física e informacionalmente). Lucas contesta o
tradicional modelo de crescimento monetário neoclássico que vê o
comércio apenas em um único mercado centralizado, e supõe
grande número de informações à disposição dos agentes a fim de
tornar as flutuações cíclicas consistentes com a racionalidade. Em
oposição a esse modelo, lança a ideia de muitos mercados imperfei-
tamente ligados. Era uma influência de Phelps, que em 1969 tinha
explorado a hipótese em Fundamentos microeconômicos das teo-
rias de emprego e inflação. O influente estudo de Phelps também
viria a influenciar Prescott e Barro entre 1972 e 1975. Em todos
esses modelos, decorre um conjunto de consequências. O lado real
da economia responde a distúrbios puramente nominais, e o
impacto dessas flutuações é apenas de curto-prazo. Como os
neoclássicos, Lucas incorpora o chamado modelo do acelerador: o
estoque de capital físico acumulado afeta as decisões de investi-
mento.
O modelo neoclássico de crescimento monetário assevera que
introduzir ruídos na política monetária não é suficiente para indu-
zir respostas nas variáveis reais e nominais que explicam as flutua-
ções cíclicas. Nos modelos de único mercado, há excesso de infor-
mações à disposição dos agentes, de modo que o ruído não os faz
alterarem as decisões sobre as variáveis reais. Já no modelo de
Lucas, com múltiplos mercados isolados, o comércio ocorre em
ilhas de mercados. Os agentes são distribuídos no começo do perío-
do entre os mercados. Os negócios anteriores determinam o esto-
que de capital de cada mercado. Há um estoque de moeda nas mãos
dos agentes. Devido a compras do governo, nova moeda é estocas-
ticamente injetada nos mercados. Os retornos são expectativas
condicionadas e se supõe novo choque monetário em cada período
de transação. O capital acumulado num certo mercado permanece
nele; não há mercado para fundos de capitais, somente financia-
mento interno; todas as trocas ocorrem a preços competitivos de
equilíbrio. Lucas utiliza a mesma hipótese de comportamento
racional dos agentes no sentido de Muth (uso ótimo da informação
disponível). A distribuição das variáveis é conhecida e suposta
estacionária. A função de demanda de ativos é específica a cada um
dos mercados (depende de variações no estoque de capital e de
informação).

537
O modelo de Lucas tem conteúdo empírico: faz previsões sobre
valores agregados; descreve o efeito dos choques por meio de
parâmetros que podem ser testados. Prevê ainda desvios da média
na demanda por produtos específicos, independência das deman-
das individuais e, em cada qual, independência ao longo do tempo.
Lucas utiliza a ideia de análise retrospectiva. Imagina um padrão e
deduz qual estrutura de covariâncias dos choques de demanda
individual conduzirá ao comportamento agregado. O método do
modelo de Lucas consiste em imaginar que o choque em cada
mercado individual pode ser expresso como uma combinação
linear de um grande número de choques independentes em que se
aplica a lei dos grandes números. Identifica um único choque
comum a todos os mercados: uma única variável randômica que
descreve o comportamento da demanda agregada.
As implicações de política econômica do modelo são as de que
um choque nas políticas (fiscal e monetária) gera movimento agre-
gado na produção; todos os choques envolvem movimentos fiscais
e monetários; alguns componentes da variação da demanda agre-
gada são inevitáveis e que políticas reativas não parecem desejá-
veis. Uma política tributária que reduza a resposta do investimento
a mudanças na demanda agregada também reduz a variância do
produto e do emprego. Tal política ainda reduz a resposta do
investimento a mudanças na demanda relativa, retardando a realo-
cação dos recursos para as atividades mais lucrativas. Em conclu-
são, não é necessário falar em falhas de mercado para se estudar os
mais importantes aspectos observados nos ciclos
A partir desse artigo de Lucas, jovens economistas irão utilizar e
desenvolver suas ideias. Thomas Sargent, junto com Neil Wallace,
demonstraram a ineficácia de políticas monetárias e fiscais ativas em
um modelo keynesiano tradicional, incorporando nele expectativas
racionais. Sargent desenvolveu procedimentos econométricos permi-
tindo o teste dos postulados da nova economia clássica. Outros econo-
mistas que se destacaram com trabalhos na nova linha foram Bennett
McCallum, Robert Barro e R. Townsend. Todos eles propondo inova-
ções técnicas e abandonando o enfoque de desequilíbrio.
Friedman havia evidenciado a importância de se usar as
expectativas dos agentes em modelos macroeconômicos. No entan-
to, conteve-se em incorporar em seu modelo a hipótese de expecta-
tivas adaptativas em que os indivíduos ajustam suas expectativas
correntes para corrigir erros de previsão cometidos em períodos
precedentes. É difícil formular como as expectativas são construí-
das na mente dos indivíduos em termos matemáticos. A ideia de

538
que as expectativas quanto ao valor do preço são determinadas
apenas por observações passadas no nível de preço parecera razoá-
vel e suficiente a Friedman. Lucas e Rapping, no artigo de 1969,
ainda adotam as expectativas adaptativas, mas na época já perce-
biam a limitação dela. Por exemplo, se o governo desse uma virada
na política fiscal e os indivíduos estivessem sabendo desse fato,
seria interessante incorporar esse dado no modelo, mesmo que ele
não tenha afetado os preços observados. A noção de que os
indivíduos utilizam, quando formulam suas expectativas, todas as
informações disponíveis, bem como de seu entendimento de como
funciona a economia, é, de certa forma, óbvia. Contudo, é difícil
concretizá-la em um modelo teórico. Nas expectativas adaptativas,
o preço esperado Pt* é função do preço passado Pt–i. Conhecido os
valores passados, pode-se calcular Pt*. No modelo com expectativas
racionais, a variável que entra como argumento para o cálculo do
valor esperado do preço é, ela mesma, dependente de Pt* e vice-
versa. A dependência mútua de variáveis torna o modelo matemá-
tico bem mais difícil de tratar. Muita matemática teve de ser
aprendida pelos economistas a fim de assimilarem a nova ideia na
teoria econômica.
Outra inovação teórica dos novos clássicos é que eles pensam
os preços observados em mercados como já sendo preços de equilí-
brio. Os monetaristas não aceitaram essa proposição, argumentan-
do que as expectativas quanto ao comportamento de uma variável
levam algum tempo para se adaptarem ao valor efetivo dessa
variável e nesse espaço de tempo a economia estaria em desequi-
líbrio. Os neokeynesianos pensam que essa ideia tornaria impos-
sível interpretar ciclos econômicos. Contudo, a coletânea de
estudos de Lucas e R. M. Townsend sobre a teoria dos ciclos de
negócios dá um tratamento sofisticado ao problema, mostrando
que mesmo com preço em equilíbrio pode-se explicar fenômenos
que outros alegam serem de desequilíbrio.
Para os neokeynesianos, as políticas do governo afetam o nível de
preço e de produto (ou renda) de equilíbrio, porque a curva de oferta
agregada da economia (no plano que relaciona nível de preços e
produção agregada) não é perfeitamente vertical, pois admitem rigi-
dez de preços. Para os monetaristas, o efeito dessas políticas é
temporário e se deve às expectativas adaptativas, pois os agentes
levam tempo para aprenderem e se enganam no curto prazo. Na nova
economia clássica, o resultado clássico, no qual as políticas só alteram
valores nominais, é observado mesmo a curto prazo, e o produto real
agregado encontra-se sempre em seu nível natural, não sendo afetado

539
pelas medidas do governo: variações na demanda agregada encon-
tram respostas imediatas na oferta agregada e o produto permanece
o mesmo.
Então como eles explicam o ciclo econômico? Impondo restri-
ções às condições sob as quais os indivíduos tomam decisões.
Embora o indivíduo tenha expectativa racional, ele não tem conhe-
cimento perfeito. Então, eles são obrigados a adivinhar o valor
presente e futuro de certas variáveis. Mesmo com decisões
racionais há o engano. Isso faz com que, na prática, a curva de oferta
agregada não se ajuste automática e instantaneamente a mudanças
na demanda agregada, e isso enseja o ciclo do produto real. As
flutuações do produto real devem-se a erros de previsão, que
ocorrem em face da informação imperfeita dos agentes e de
variáveis estocásticas geradas pela incerteza na economia.
Os modelos novos-clássicos levam a conclusões radicais con-
trárias ao intervencionismo, mas nem todos os grandes economis-
tas contemporâneos pensam dessa forma. Na macroeconomia
atual, há o grupo dos novos clássicos, cujos principais expoentes
são Lucas, Sargent e Townsend, contudo os neokeynesianos da
velha geração não aceitam, ou compreendem bem, as teses mais
liberais da outra escola. Dentre os últimos, os mais famosos são
James Tobin, Franco Modigliani e Robert M. Solow. Alguns neokey-
nesianos mais jovens também resistem às conclusões novoclás-
sicas, como Alan S. Blinder e John B. Taylor. No campo do
monetarismo destaca-se, além de M. Friedman, Karl Brunner. Pode-
se identificar também outra escola de keynesianos fundamen-
talistas, a que chamamos de pós-keynesianos. Victoria Chick, Axel
Leijonhufvud, Hyman Minski e Paul Davidson são os mais conhe-
cidos.
Não há um consenso na macroeconomia atual, embora muitos
dos conceitos e técnicas sejam compartilhados por todos eles. Há
controvérsias de natureza empírica, teórica e filosófica. Contudo, é
nítido um processo de convergência de ideias, embora ainda não se
possa ver a macroeconomia como um campo de conhecimento
completamente unificado.

540
Questões

1. Keynes pode ser considerado um gênio em matemática. Como o


capítulo avalia os dotes intelectuais dele nesse campo do saber?
2. O Tratado sobre a probabilidade desenvolve uma crítica à teoria
da probabilidade tradicional. Que teoria é essa? Descreva o teor
da proposta de Keynes em probabilidade. Afinal, se a teoria
subjetiva da probabilidade de Keynes implica que a probabi-
lidade é uma atribuição pessoal de chances aos eventos, pode-
mos concluir que a avaliação de probabilidades é inteiramente
subjetiva ou teria algum elemento de objetividade? Explique.
3. A ética de Moore está baseada no bem do ponto de vista
individual. Quais os valores que caracterizam o bem? O que
Keynes acrescenta a esses valores? Como é possível avaliar o
bem coletivo e qual a relação disso com o apego de Keynes às
artes?
4. Qual a origem, em termos de influências pessoais, da ênfase
dada por Keynes na questão do acaso, das probabilidades e da
incerteza?
5. Por que as ideias de Keynes se tornaram mais conhecidas, já que
outros autores também defendiam a intervenção do governo
para conter a crise econômica?
6. Como o Grupo de Bloomsbury, do qual Keynes participou, posi-
cionava-se em relação aos valores da sociedade vitoriana?
7. Comente as críticas de Keynes ao Tratado de Versalhes.
8. Comente: “O caminho seguro para a paz consiste em ajudar a
reerguer a economia destruída.” Como essa ideia de Keynes
influenciou as negociações dos Aliados com os países derro-
tados depois da Segunda Guerra Mundial?
9. Descreva a teoria quantitativa da moeda (TQM) nas versões de
Cambridge e em I. Fisher. Tais versões são idênticas?
10. O que é o mecanismo de transmissão da TQM? Como a moeda
pode afetar o lado real mesmo aceitando-se a TQM?
11. Quais as críticas que Keynes fazia à volta ao padrão-ouro na
Inglaterra em 1925?
12. Descreva as teses principais encontradas no Tratado sobre a
moeda. Por que a taxa de juros não garante o equilíbrio
automático entre poupança e investimento? Qual foi a princi-

541
pal crítica que se fez ao Tratado e que levou Keynes a
reelaborar seu pensamento?
13. Quais as raízes econômicas da crise de 1929?
14. Qual a ideia econômica básica de Keynes na “Teoria Geral”?
15. Comente as semelhanças metodológicas entre Keynes e os
neoclássicos de Cambridge.
16. Interpreta esta frase nossa: “Keynes ousou qualificar o desem-
prego em massa como uma situação de equilíbrio, rompendo
com a crença na eficiência dos mercados.”
17. O que é o “paradoxo da parcimônia”?
18. Para Keynes, qual o papel da preferência pela liquidez na
determinação da taxa de juros?
19. Que postulado da economia clássica foi rejeitado por Keynes e
qual a relação entre esse postulado e a ideia de desemprego
involuntário?
20. Qual o teor da crítica de Keynes à Lei de Say?
21. Como Keynes define a noção de “custo de uso”?
22. Como é a função consumo proposta por Keynes?
23. Como a função de investimento relaciona-se com o conceito de
eficiência marginal do capital?
24. O que Hicks pensou em fazer quando propôs o modelo IS-LM e
quais as críticas que se faz a esse modelo?
25. O que vem a ser um sistema “bloco recursivo”?
26. Explique como a renda de equilíbrio é determinada no diagra-
ma renda-despesa, popularizado por Samuelson, Lerner e
Hansen.
27. Comente esta crítica ao modelo IS-LM citada no capítulo:
“Impor que o equilíbrio entre oferta e demanda de estoque seja
obedecido a todo tempo torna impossível que haja um desse-
quilíbrio de fluxos, porém o contrário poderia ocorrer: equilí-
brio de fluxos com desequilíbrio de estoques.”
28. Interpreta a crença de Keynes na ineficácia da política mone-
tária em termos do diagrama IS-LM.
29. Que fatores, para Friedman, tornam a curva IS dependente da
curva LM?

542
30. Comente o postulado monetarista: “Apesar de poderosa no
curto prazo, e justamente por isso, políticas monetárias ativas
devem ser evitadas por seu efeito desestabilizador.”
31. O que é a hipótese de expectativas adaptativas e como ela afeta
a curva de Phillips de curto prazo?
32. Explique o modelo teórico de Friedman para a inflação.
33. Comente a ideia de expectativas adaptativas e por que elas
tornam os modelos mais difíceis de serem formulados
matematicamente.
34. O que são os novos clássicos e por que suas conclusões se
aproximam das dos economistas neoclássicos?
35. Como é possível a explicação do ciclo econômico em um
modelo que não aceita o desequilíbrio de mercado?
36. “Novos clássicos, neokeynesianos, pós-keynesianos e moneta-
ristas, na macroeconomia as diferentes escolas não se
entendem.” Você concorda? Desenvolva sua opinião.
37. Explique o conteúdo do artigo Expectativas racionais e a teoria
do movimento dos preços de John Muth.
38. De que forma Robert Lucas explica a existência de ciclos econô-
micos no artigo Um modelos de equilíbrio do ciclo de negócio?

543
Leitura Adicional

Literatura primária

FRIEDMAN, Milton; SCHWARTZ, Anna J. Monetary history of United


States, 1867-1960. Princeton: Princeton University Press, 1963.

KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. São


Paulo: Nova Cultural, 1985.

____. The economic consequences of the peace. Disponível em: home


page da Faculty of Social Sciences McMaster University, CA,
<http://socserv.mcmaster.ca/~econ/ugcm
/3ll3/keynes/peace.htm>.

Muth, John A. "Rational Expectations and the Theory of Price


Movements." Econome-trica v. 29, p. 315-35, 1961.

Lucas, Robert; Prescott, Edward “Investment Under Uncertainty”,


Econometrica, v. 39, p. 659-681, 1971.

Lucas, Robert “An Equilibrium Model of the Business Cycle”,


Journal of Political Economy, v. 83, no. 6, p. 1113-1144, 1975.

Literatura secundária

AMADEO, Edward J. (ed.) John Maynard Keynes: cinquenta anos da


Teoria Geral. Rio de Janeiro: IPEA, 1992.

BARRÉRE, Alain. Teoria econômica e impulso keynesiano. Rio de


Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

DEANE, Phillys. Evolução das ideias econômicas. Rio de Janeiro:


Zahar, 1980.

DILLARD, Dudley. A teoria econômica de John Maynard Keynes:


teoria de uma economia monetária. São Paulo: Pioneira, 1993.

FRIEDMAN, Milton. “John Maynard Keynes”, Federal Reserve Bank of


Richmond. Economic Quartely, v. 83/2, 1997.

IGLESIA, Jesús de la. Ensayo sobre pensamento económico. McGraw


Hill, 1994. cap. 8 e 9.

544
KLAMER, Arjo. Conversas com economistas: os novos economistas
clássicos e seus opositores falam sobre a atual controvérsia em
macroeconomia. São Paulo: Edusp/Pioneira, 1988.

LEONTIEF, Wassily. “The fundamental assumption of Mr. Keynes’


monetary theory of unemployment”. Quartely Journal of Econo-
mics, 1937.

NAPOLEONI, Cláudio. O pensamento econômico do século XX. São


Paulo: Paz e Terra, 1979. cap. 5 e 6.

O’CONNOR, J. J.; ROBERTSON, E. F. John Maynard Keynes. Disponível


em: home page da School of Mathematics and Statistics, Univer-
sity of St. Andrews, Escócia, <http://www-groups.dcs.st-and.ac.
uk/~history/Biographies/Keynes.html>.

SILVA, Marcos E. Teoria geral: uma interpretação pós-keynesiana.


Tese (Doutorado) – IPE, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1991.

SKIDELSKY, Robert. Keynes. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

545
546
Índice de Autores e de
Personalidades

547
548
Addis 511. 416, 417, 419.
Agostinho 34, 41. Barro, Robert J. 533, 537, 538.
Allen, Roy G. D. 30,9, 310. Basílio 33.
Althusser, Louis 244. Bastiat, Claude Frédéric 331.
Ambrósio 33. Baudeau, Abbé Nicholas 110.
Anaximandro 211. Bauer, Bruno 210.
Anaxímenes 211. Bawerk, Eugen von Böhm 219, 303,
308, 336, 339, 342, 437, 440, 458,
Anzengruber, Ludwig 439.
467, 473, 474, 478.
Aquino, Tomás de 35, 40, 41, 42,
Bailey, Samuel 169.
43, 44, 47, 439.
Bebel, Augusto 218, 221.
Aristóteles 16, 17, 40, 41, 42, 45,
47, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, Bell, Clive 490.
88, 92, 93, 124, 210, 281, 439, 441,
Bentham, Jeremy 99, 188, 189, 282,
442.
288, 290, 292, 294, 302, 306, 311,
Arrow, Kenneth J. 425, 426, 427, 312, 324, 326, 329, 332, 337, 338,
428. 349.
Atenião 23. Bergson, Abram 418.
Augustinovics, Mária 419. Bernoulli, Daniel 283, 284.
Auspitz, Rudolf 307, 440. Beveridge, William H. 511.
Austin, John 188. Bilimovich, Aleksander. 418.

Ayer, Alfred Jules 422. Blackett, Basil 511.

Babeuf, Gracchus 208, 209. Blaug, Mark 428.

Bachelier, Louis 284. Blinder, Alan S. 540.


Block, H. D. 427.
Bacon, Francis 65, 85, 86, 87, 89,
90, 94, 95, 97, 98, 124, 125, 439. Bodin, Jean 60.
Bagehot, Walter 261, 262, 330, Boisguillebert, Pierre le Pesant 101,
512. 102, 103, 123.

Bain, Alexander 336. Bolzano, Bernard P. J. Nepomuk 439.

Bakunin, Mikhail 218, 221. Bornitz, Jakob 70.


Brouwer, Luitzen E. Jan 426, 427.
Banach, Stefan 422.
Bruno, Giordano 211.
Barbon, Nicholas 75.
Brunner, Karl 540.
Barone, Enrico 309, 382, 386,
402, 411, 413, 414, 415, Buquoy, Georg von 276.

549
Buridan, Jean 40, 45, 46, 47, 84. Comte, Auguste 189, 250, 262,
274, 439.
Burke, Edmund 440.
Condillac, Etienne Bonnot de 382.
Cabet, Etiènne 198.
Condorcet, Nicolas de Caritat 172.
Cahagnes, William de 485.
Confúcio 1, 6.
Cairnes, John Elliot 169, 194, 195,
268, 269, 271, 272, 328, 330, 331. Copérnico, Nicolau 69, 82, 84, 127.
Callaghan, James 530. Cournot, Antoine Augustin 262, 276,
277, 281, 286, 294, 303, 323, 349,
Cannan, Edwin 511.
354, 356, 382, 383, 384, 385, 388.
Cantillon, Richard 1, 52, 90, 101,
Crisóstomo, João 33.
104, 105, 106, 107, 111, 123, 144,
502. Culpeper, Thomas 62.
Carlyle, Thomas 189. Daries, Joachim Georg 74.
Carnap, Rudolf 421. Darwin, Charles 171, 172,173, 222,
262, 268, 274, 284, 349, 383, 491.
Cassel, Gustav 303, 309, 310, 382,
406, 418, 419, 420, 421, 422, D’Avenant, Charles 63.
423,424, 426.
Davenport, Hebert J. 309.
Catão, Marco Pórcio 27.
Davidson, Paul 523, 540.
Chadwick, Edwin 327.
Deane, Phyllis 514.
Chick, Victoria 540.
Debreu, Gerard 426, 427,428.
Child, Josiah 62.
Demócrito (de Abdera) 210, 211.
Chipman, John S. 425.
Descartes, René 87, 88, 89, 90, 94, 95,
Chuang Zi 7. 96, 97, 98, 101, 124, 125, 127.
Churchill, Winston 511, 512. Dewey, John 341.
Cícero, Marco Túlio 25, 26, 27. Dickens, Charles 189.
Cipriano, Táscio Cecílio 33. Dickinson, Henry Douglas 417.
Clark, John Bates 270, 272, 278, Dickinson, Lowes 480.
303, 308, 322, 474.
Diderot, Denis 211.
Clark, John Maurice 341.
Diocleciano 26.
Clay, Henry 511.
Dithmar, Justus Christoph 74.
Clemente de Alexandria 33.
Droysen, Johann 265.
Clower, Robert 533.
Dumont, Étienne 311.
Colbert, Jean Baptiste 55, 102, 162.
Dupuit, Jules E. 283, 288, 289, 294,
Coleridge, Samuel Taylor 189. 313, 323, 354, 365, 382.
Columella (Lúcio J. Moderato) 27. Durant, Will 15.

550
Ebeling, Richard 478. Genovesi, Antonio 382.
Edgeworth, Francis Ysidro 303, George, David Lloyd 499, 500, 511.
307, 308, 309, 353, 381, 427, 512.
George, Henry 274, 384.
Einstein, Albert 284.
Gervinus, Georg G. 453.
Eliot, Thomas Stearns 490.
Giffen, Robert 370.
Ellet, Charles 276.
Ely, Richard T. 250. Gödel, Kurt 421.

Engels, Friedrich 212, 221, 222, Godwin, William 171, 172, 209, 216.
214, 215, 216, 217, 223, 239. Goethe, Johann Wolfgang von 345.
Epicuro 24, 210, 211. Gomberdière, Marques de La 75.
Espártaco 23. Gossen, Hermann Heinrich 275, 283,
Fawcett, Henry 327, 347. 286, 289, 290, 291, 292, 293, 294, 312,
332, 338, 339, 341, 354, 406, 437.
Fawcett, Millicent Garrett 346.
Graham, Benjamin 510.
Fetter, Frank A. 309.
Grant, Duncan 492.
Feuerbach, Ludwig 210, 211, 212,
213, 214, 221, 222. Green, Thomas Hill 274.

Fisher, Irving 272, 298, 306, 307, Gresham, Thomas 60.


308, 309, 310, 475, 502, 503, 504, Grillparzer, Franz 439.
505, 506, 512.
Grimm, Jacob 440.
Fourier, Charles 198, 199, 200,
209, 216. Grossman, Henryk 533.

Foxwell, Hebert Somerton 326, Gruener, Johanna Marguerite 473.


346, 486, 511. Hahn, Frank H. 421, 426, 427.
Friedman, Milton 489, 521, 530, Hales, John 63.
531, 532, 533, 536, 538, 539, 540.
Hansen, Alvin 522, 524, 525, 527.
Friemar, Henry de 40, 44, 45, 46,
47. Harrod, Roy F. 514, 522.

Fry, Roger Eliot 490. Hartley, David 99.

Galilei, Galileu 82, 87, 88, 91, 96. Hawtrey, Ralph G. 512.
Hayek, Friedrich August von 89, 101,
Galton, Francis 268.
344, 419, 435, 436, 447, 472, 478, 479,
Garrison, Roger W. 478. 509.
Garnier, Joseph Clement 286. Hearn, William Edward 270, 283.

Gasser, Simon Peter 74. Hegel, Georg 210, 211, 212, 213,
221, 222, 252, 345, 349, 356.

551
Heller, Walter 529. Jennings, Richard 283, 294, 330.
Helmholtz, Hermann von 284. Jevons, William Stanley 104, 219,
220, 268, 269, 270, 271, 271, 275,
Hempel, Carl 421.
289, 292, 294, 295, 297, 300, 301,
Henderson, Hubert Douglas 508, 302, 303, 307, 308, 312, 313, 314,
511. 315, 321, 322, 323, 324, 325, 326,
327, 328, 329, 330, 331, 332, 333,
Heráclito (de Éfeso) 10, 211.
334, 335, 336, 338, 339, 340, 341,
Hermann, Friedrich Benedikt 346, 348, 353, 354, 372, 381, 384,
Wilhelm von 250, 270. 393, 394, 396, 406, 435, 438, 441,
444, 445, 465, 475, 485, 512, 513.
Hicks, John R. 136, 137, 309, 310,
409, 410, 426, 427, 522, 523, 526, João (o Evangelista) 34.
527, 528.
Johnson, William Ernest 486, 487.
Hildebrand, Bruno 250, 251, 255.
Johnson, Lyndon Baines 529.
Hildebrand, Richard 475.
Jones, Richard 261, 262, 272.
Hobbes, Thomas 53, 96, 97, 98, 99.
Jorgensen, Dale W. 529.
Hobson, Ernest William 486.
Josef II (do Sacro Império Romano-
Hobson, John A. 512. Germânico) 439.
Hodgskin, Thomas 169. Joule, James Prescott 284.
Holbach, Paul-Henri Thiry (barão Jowett, Benjamim 347.
d'Holbach) 211.
Justi, Johann Heinrich Gottlob von 70, 71,
Hörnigk, Philipp Wilhelm von 70. 72.
Hugo, Gustav 440. Kakutani, Shizuo 427.
Hume, David 61, 64, 83, 86, 101, Kaldor, Nicholas 409, 410, 511.
127, 129, 130, 131, 132, 133, 171,
Kant, Immanuel 210, 345, 349.
191, 494, 495, 496, 497, 507, 512.
Kantorovich, Leonid V. 418.
Hurwicz, Leonid 427.
Kepler, Johannes 87, 91, 92, 127.
Hutcheson, Francis 129, 131.
Keynes, Florence Ada Brown 486.
Huxley, Aldous 490, 491.
Keynes, John Maynard 52, 54, 57, 93,
Ingram, John Kells 261, 262, 302,
102, 157, 176, 242, 243, 263, 264, 322,
381, 382, 383.
346, 351, 373, 427, 473, 479, 485, 486,
Jaffé, William 302, 381, 382, 383, 487, 488, 489, 490, 491, 492, 493, 494,
386, 411. 495, 496, 497, 498, 499, 500, 504, 505,
506, 507, 508, 509, 510, 511, 512, 513,
James Ashley, William 261.
514, 515, 516, 517, 518, 519, 520, 521,
Jansen, Cornelius 439. 522, 523, 524, 525, 526, 527, 528,
529, 530, 531, 532, 533.
Jenkin, H. C. Fleeming 268, 294,
328. Keynes, John Neville 263, 264, 346,

552
486. Lieben, Richard 307.
Kahn, Richard F. 509, 519, 523, 524. Liebknecht, Karl 218, 221.
Kirzner, Israel 478. List, Georg Friedrich 74, 250, 252,
253.
Klock, Kaspar 70.
Littlechild, Stephen Charles 478.
Knies, Karl 250, 251, 256, 258, 260,
262, 265. Lloyd, William Foster 283, 289,
294, 324.
Koestler, Arthur 87.
Locke, John 61, 63, 90, 97, 98,99,
Koopmans, Tjalling C. 426.
106, 109, 125, 129, 134, 383, 494,
Krelle, Wilhelm 418. 502.
Kudler, Josef von 437. Longe, Francis D. 268, 269, 294.
Lachmann, Ludwig M. 478. Longfield, Samuel Mountiford 283,
294.
Laffemas, Barthélemy de 57.
Lopokova, Lydia 492.
Lagrange, Joseph-Louis 288, 403.
Lucas (o Evangelista) 33.
Lange, Oskar 417, 418, 426, 427,
522. Lucas, Robert 530, 535, 536, 537, 538,
539, 540.
Langlois, Richard N. 478.
Luther, Martin 69.
Lao Zi 1, 6, 7.
Mach, Ernst 421, 441.
Lardner, Dionysius 323.
McKenzie, Lionel Wilfred 426.
Lassalle, Ferdinand 218, 349.
Macleod, Henry Dunning 327.
Lauderdale, James Maitland Earl
132. Macrory, E. 327.
Lavoie, Donald C. 478. Magno, Alberto 40, 41,42, 46, 47, 143.
Law, B. 512. Magno, Carlos 39.
Law, John 64. Malestroit, M. de 75.
Leibniz, Gottfried Wilhelm von Malthus, Thomas Robert 157, 169, 170,
284, 439. 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178,
183, 190, 192, 232, 262, 268, 270, 271,
Leijonhufvud, Axel 523, 533, 540.
276, 281, 331, 501, 512.
Leontief, Wassily 285.
Malynes, Gerard de 57.
Lerner, Abba P. 417, 418, 514, 524,
Mandeville, Bernard de 63, 100.
525.
Mangoldt, Hans Karl Emil von 250,
Leslie, Thomas Edward Cliffe 261,
270.
262, 268.
Mantoux, Etienne 500.
Lexis, Wilhelm 409.
Maquiavel, Nicolau 53, 95, 96, 99.

553
Marshall, Alfred 170, 264, 270, 272, Mill, James 169,171, 178, 188, 191,
275, 277, 278, 289, 295, 301, 303, 221, 282.
306, 308, 310, 321, 322, 327, 330,
Mill, John Stuart 169, 170, 171,
335, 342, 344, 345, 346,347, 348,
188, 189, 190, 191, 192, 193, 194,
349, 350, 351, 352, 353, 354, 355,
195, 196, 197, 198, 199, 200, 201,
356, 357, 358, 359, 360, 361, 362,
202, 203, 219, 249, 250, 259, 261,
363, 364, 365, 366, 367, 368, 369,
262, 263, 264, 267, 268, 269, 270,
370, 371, 372, 373, 374, 382, 417,
271, 274, 299, 300, 325, 328, 330,
474, 485, 486, 487, 489, 505, 506,
345, 348, 349, 352, 354, 361, 384,
512, 513, 514.
439, 485, 501, 502, 503, 512, 513.
Marx, Karl 207, 209, 210, 211, 212,
Milner 511.
213, 214, 215, 216, 217, 218, 219,
220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, Minski, Hyman 540.
227, 228, 229, 230, 231, 232, 233,
Mirabeau (Victor de Riqueti,
234, 235, 236, 237, 238, 239, 240,
Marquês de Mirabeau) 51, 110.
241, 242, 243, 244, 252, 272, 274,
296, 297, 349, 473. Mises, Ludwig von 419, 478, 479,
512.
Massie, J. 75.
Misselden, Edward 53, 59, 60.
Mayer, Julius Robert von 284.
Modigliani, Franco 529, 540.
McCallum, Bennett 538.
Molinos, Miguel de 439.
McCulloch, John Ramsay 169, 191,
197. Montagu, E. 512.
McTaggart, John M. Ellis 490, 491. Montchrétien, Antoine de 75.
Meade, James E. 509, 512, 522. Moore, George Edward 490, 491, 493,
494, 514.
Menger, Carl 219, 220, 255, 261,
264, 271, 272, 275, 294, 295, 297, Morgenstern, Oskar 310.
300, 302, 303, 306, 307, 312, 313,
Morgenstern, Peter 425.
314, 315, 326, 341, 343, 381, 382,
421, 433, 434, 435, 436, 437, 438, Morus, Tomas 53.
439, 440, 441, 443, 444, 445, 446,
447, 448, 449, 450, 451, 452, 453, Mun, Thomas 75.
454, 455, 456, 457, 458, 460, 461, Muth, John 533, 534, 535, 537.
462, 463, 464, 465, 466, 467, 468,
469, 471, 472, 473, 475, 478, 479. Nash, John F. 427.

Menger, Karl 421, 422. Neumann, John von 310, 422, 426, 427.

Mercado, Tomás 75. Nemours, Du Pont de 110.

Merivale, Herman 327. Neurath, Otto 421.

Metternich, Klemens W. von 439. Newcomb, Simon 75.

Metrie, Julien Offray de La 211. Newton, Isaac 82, 85, 87, 88, 90,
91, 92, 93, 94, 95, 99, 101, 123,
Mill, F. C. 512.

554
124, 127, 128, 143, 145, 190, 284, 531.
510, 512.
Poincaré, Henri 313.
Niebuhr, Barthold G. 440.
Popper, Karl 86, 93, 479.
North, Dudley 63, 97.
Prescott, Edward C. 536, 537.
Obrecht, Georg 70.
Protágoras (Protágoras de
Odonis, Geraldo 40, 46, 47, 281. Abdera) 8, 9.
O’Driscol, Gerald P. 478. Proudhon, Pierre-Joseph 209, 216,
250.
Ohlin, Bentil G. 508, 511, 514.
Ptolomeu, Cláudio 82, 127.
Oresme, Nicolau 84.
Quesnay, François 106, 110, 111,
Ortiz, Luís 57.
112, 113, 114, 115, 116, 123,133,
Ossa, Melchior von 69. 134, 162, 384.
Owen, Robert 198, 208, 216. Quincey, Thomas de 169, 202.
Paley, Mary 346, 352, 348. Quine, Willard van Orman 422.
Pantaleoni, Maffeo 382. Raffaelli, Tiziano 348.
Pareto, Vilfredo 219, 298, 303, Ranke, Leopold 265.
306, 308, 309, 310, 382, 402,
Ramsey, Frank P. 488,498, 512.
412, 514.
Rapping, Leonard 535, 539.
Parmênides (Parménides de
Eleia) 10. Rau, Karl Heinrich 74, 250, 255, 270,
436.
Pasinetti, Luigi L. 523.
Rayleigh, John William Strutt 344.
Paulo (o apóstolo) 32.
Reichenbach, Hans 421.
Pearson, Karl 489.
Ricardo, David 52, 155, 169, 170,
Peirce, Charles Sanders 341.
171, 174, 175, 176, 177, 178, 179,
Petty, William 1, 52, 61, 62, 63, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186,
65, 66, 67, 86, 99, 105, 107, 187, 188, 190, 191, 194, 202, 218,
134, 144, 349. 219, 222, 230, 249, 250, 251, 261,
262, 267, 268, 270, 271, 279, 282,
Phelps, Edmund S. 530, 537.
285, 296, 300, 324, 352.
Phillips, Alban William
Rivière, Paul Pierre le Mercier de la 101,
Housego 529, 530, 531, 533.
110.
Pigou, Arthur Cecil 220, 307, 342,
Rizzo, Mario 478.
348, 351, 373, 502, 505, 511, 513,
518, 532. Robertson, Dennis H. 505, 508, 511, 513,
514.
Pitágoras (Pitágoras de Samos) 10.
Robinson, Edward Austin G. 509.
Platão 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15,
16, 17, 18, 19, 22, 36, 40, 141, 210, Robinson, Joan 509, 514, 523.

555
Rogers, J. E. Thorold 261. Schumpeter, Joseph Aloisius Julius
190, 243, 270, 326, 381, 433, 473,
Roscher, Wilhelm G. F. 250, 251,
474, 475, 476, 477, 478.
255, 256, 258, 259, 260, 262, 265,
345, 349, 449. Schwartz, Anna J. 533.
Rousseau, Jean-Jacques 98, 171. Scotus, John Duns 40, 45, 47.
Rossi, Pellegrino 286. Seckendorff, Veit Ludwig von 70.
Rothbard, Murray N. 478. Sêneca, Lúcio Aneu 25, 26.
Rueff, Jacques 508. Senior, Nassau W. 169, 190, 191,
192, 270, 283, 324, 382.
Ruge, Arnold 212, 221.
Serra, Antonio 57.
Ruskin, John 189.
Seyssel, Claude de 75.
Russell, Bertrand 488, 494.
Shadwell, J. L. 313.
Saint-Simon (Claude-Henry de
Rouvroy, Conde de Saint-Simon) Shaftesbury (Anthony Ashley-
198, 199, 209, 216. Cooper, Conde de Shaftesbury) 99.
Salter, Arthur 511. Sidgwick, Henry 272, 330, 346,
349, 486, 490.
Sálvio 23.
Sismondi, Jean-Charles-Leonard
Samuelson, Paul A. 310, 410,
Simonde de 169.
425, 426, 427, 524, 525, 526.
Skidelsky, Robert 490, 492, 517.
Sargent, Thomas 538, 540.
Slutsky, Eugene 307, 308, 309,
Savigny, Friedrich Carl von 255,
310, 370.
440.
Smith, Adam 1, 2, 11, 25, 52, 57,
Say, Jean-Baptiste 103, 157, 169,
61, 63, 67, 90, 101, 104, 106, 107,
197, 250, 269, 281, 283, 382, 516,
110, 116, 117, 123, 124, 125, 126,
518.
127, 128, 129, 130, 131, 132, 133,
Seaver, Glayds R. 474. 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140,
141, 142, 143, 144, 145, 147, 148,
Shaw, George Bernard 220, 513.
149, 150, 151, 153, 154, 155, 156,
Schlesinger, Karl 421, 422, 423, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163,
424, 425, 426. 169, 170, 174, 177, 178, 179, 185,
190, 197, 202, 217, 222, 223, 249,
Schenberg, Mário 93.
251, 253, 281, 322, 475, 485, 512.
Schlick, Moritz 421.
Sócrates 8, 9, 11, 12, 22.
Schmalz, Theodor 74.
Solow, Robert M. 533, 540.
Schmoller, Gustav von 251, 253,
Sonnenfels, Joseph von 70, 71, 72,73,
256, 257, 260, 264, 267, 360, 361,
74, 437.
437, 446, 447,449, 453.
Spadaro, Luis 478.
Schröder, Wilhelm von 70.
Spencer, Herbert 262, 345, 349, 356.

556
Spinoza, Baruch 90. Uzawa, Hirofumi 427.
Sraffa, Piero 183, 239, 479, 509, 514. Varrão, Marco Terêncio 27.
Stamp, J. 511. Veblen, Thorstein Bunde 261, 262,
272.
Stewart, James 75.
Viner, Jacob 514.
Stiglitz, Joseph E. 533.
Wagner, Adolph 221, 250, 255,
Stifter, Adalbert 439.
258.
Strachey, Lytton 490, 491, 492.
Waismann, Friedrich 421.
Strauss, David Friedrich 210.
Wald, Abraham 409, 421, 422,
Tarski, Alfred 421. 424, 425, 426, 427.
Taylor, Fred Merchant 344, 417. Waley, Jacob 325.
Taylor, Harriet 189. Wallace, Alfred Russel 172, 284.
Taylor, John B. 540. Wallace, Neil 538.
Thales de Mileto 10, 211. Walras, Antoine-Auguste 262, 276,
283, 382.
Thompson, Perronet 169, 276.
Walras, Léon 219, 220, 271, 272,
Thornton, Henry 170, 177, 501,
275, 276, 283, 289, 294, 295, 297,
502, 504.
298, 300, 301, 302, 303, 306, 307,
Thornton, William Thomas 268, 312, 313, 314, 315, 326, 335, 336,
269, 294, 327, 331, 354. 339, 341, 343, 354, 370, 381, 382,
383, 384, 385, 386, 387, 388, 389,
Thünen, Johann Heinrich von 250,
390, 391, 392, 393, 394, 395, 396,
277, 278, 279, 280, 281, 294, 306,
397, 398, 399, 400, 401, 402, 403,
349, 353, 354, 356.
404, 406, 407, 408, 409, 410, 411,
Tinbergen, Jan 511. 419, 421, 422, 423, 424, 427, 428,
435, 438, 440, 441, 444, 445, 451,
Tobin, James 540. 465, 466, 474, 475, 523, 527.
Torrens, Robert 270. Ward, James 486.
Torricelli, Evangelista 82, 84. Weber, Max 243, 261, 265, 266,
Townsend, Robert M. 538, 539, 475.
540. Whately, Richard 324, 330.
Townshend, Charles 132, 133. Whewell, William 261, 276.
Toynbee, Arnold 261, 262, 347, Whitaker, John K. 348.
348.
Whitehead, Alfred North 487, 488,
Trosne, François Le 110, 116. 490, 494.
Trotsky, Leon 512. Woodbridge, Frederick J. E. 16.
Tucker, Abraham 99. Woolf, Leonard 490.
Turgot, Jacques 110, 116, 133.

557
Woolf, Virginia 490, 492.
Wicksell, Knut 170, 270, 303, 308,
406, 427, 440, 502, 504, 505, 509.
Wicksteed, Philip H. 219, 303, 306, 309,
381.
Wieser, Friedrich Freiherr von 219,
306, 308, 437, 458, 465, 467, 472, 473,
478.
Winstanley, Gerrard 208.
Wordsworth, William 189.
Yong, Arthur 63.
Zassenhaus, Hans Julius 418.
Zasulich, Vera 218.
Zenão de Eleia 10.
Zielinski, Janusz G. 419.
Zincke, G. H. 74.

558

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