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Resumo: O presente artigo busca traçar relações entre a ficção televisiva (telenovelas) e pensamento
social brasileiro ligado a questões de gênero e de mudanças de comportamento feminino. Essa
constatação se deve, principalmente, ao fato das telenovelas serem o carro-chefe da grade de programação
de grande parte das emissoras brasileiras. A televisão, bem como seu principal produto, a telenovela, pode
ser considerado um espaço de construção dos valores sociais, tais como cidadania, solidariedade, os
interesses coletivos e a expressão de minorias excluídas (entende-se por indivíduos sem reconhecida
vontade e desejo próprio, abafados pela sociedade opressora). Desse modo traremos alguns trechos da
telenovela Tieta, exibida em 1989 e reprisada em 1994, que reforçam especificamente o ideal de
independência feminina.
Introdução
Nenhuma exploração é tão antiga quanto a exploração sexual das mulheres pelos
homens. Nos primórdios esse domínio se dava pela força bruta, na atualidade via
mecanismos de domesticação feminina. Esse sistema de gêneros é baseado na ideologia
de diferenciação de papéis e personalidade dos dois sexos. Tal sistema é perpetuado na
criação das mulheres desde seu nascimento, a partir da socialização infantil. À elas é
ensinado um conjunto de comportamentos sociais a serem performados na sociedade no
decorrer de suas vidas. São doutrinadas, por exemplo, a buscar o amor romântico.
Tratam isso como uma meta de vida, um caminho a ser obrigatoriamente percorrido.
Não nos esqueçamos que tal ideologia foi suplantada a fim de diminuir o papel
social da mulher em relação homem, colocando-as em segundo plano, como
complemento a eles. A submissão se tornara um efeito de séculos de repressão e
1
Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 10º Encontro
Nacional de História da Mídia, 2015. Trabalho Concorrente ao "Prêmio José Marques de Melo de
Estímulo à Memória da Mídia", 2015.
2
Graduando em Comunicação Social - Cinema e Audiovisual da UFES e pesquisador do grupo Mídia e
História (Iniciação Científica). E-mail: bertoldirafa@yahoo.com.br
3
Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação e Cultura da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), Professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). E-mail: gabrielaalves@terra.com.br
enjaulamento feminino. Culminando numa busca pelo amor romantizado e longe de ser
ideal, as mulheres acabam enfrentando um rompante de estereótipos difíceis de serem
superados. Giddens aponta que alguém definiu o amor como “[...] uma conspiração
engendrada pelos homens contra as mulheres para lhes encher a cabeça com sonhos
tontos impossíveis” (GIDDENS, 2001, p.28).
Na busca por esse amor ilusório a mulher aprende ou obriga-se a ser meiga,
submissa, servil, carente e devota. Sua trajetória de vida só tem sentido caso gire em
torno de um homem e consequentemente de sua prole. A vida pública é separada à eles,
enquanto à elas é reservada a vida privada. Logo as atividades que envolvem poder não
dizem respeito à elas, que só devem se preocupar com as atividades domésticas. As
mulheres "entendem" que tais condições são inerentes a elas. Instintivamente são
"programadas" a aceitar tais circunstâncias. São servis porque gostam, porque é de sua
"natureza".
Mantidas de forma alienada por seus salvadores, seu destino seria servir de mão
de obra doméstica e como aparato de descarga sexual de seus donos. Por essa ótica o
matrimônio poderia ser classificado como um negócio com finalidade clara. Caso não
sigam tais preceitos, de que é preciso um homem para caminharem, estão fadadas a
terrível vida de "não-comprometidas" com macho nenhum. As mulheres são
encorajadas a ver o sexo em termos da sua romanticidade, estando os guiões culturais
impregnados com a ideia de que, no que respeito à sua sexualidade, o sexo feminino
deve ser passivo, ao invés de ativo (CRAWFORD e UNGER, 2000).
Socialmente as mulheres são levadas a acreditar que são incompletas, menos
capazes, frágeis, irracionais. Sua sexualidade é reprimida por meio de castidade forçada.
Essa característica é esperada das mulheres. Essa misoginia exercida por elas mesmas,
de que devem se manter guardadas, encerradas, intocadas, as levam a se envergonharem
de sua sexualidade, que só deve despertar, ainda timidamente, ao seu marido. Esses
dogmas socializantes que as mulheres são expostas é revalidado a todo instante. O amor
romântico, especialmente no caso das mulheres adolescentes, parece mesmo servir de
argumento para o retardamento da adesão a atividades sexuais (FRISBIE,
FITZPATRICK, FENG e CRAWFORD, 2000). A mulher não se sente dona de seu
próprio corpo. Socialmente devem ser castas e sem libido. Os desejos reprimidos se
tornam fragmentos perdidos em sua mente.
Segundo alguns autores isso deve-se ao fato de haver uma maior preocupação
por parte dos indivíduos quanto a emissão de comportamentos socialmente definidos
como esperados, desejados e adequados para cada um dos sexos (WINSTEAD,
DERLEGA e ROSE, 1997). Das mulheres espera-se passividade para recepção
masculina. Aos homens espera-se ataque e proatividade na iniciação das relações com a
mulheres. Dessa forma o sexo feminino tende a ficar numa deriva a espera de um
macho que a resgate e a faça "feliz".
Os estados galgam as suas políticas econômicas e sociais de forma a forçar a
vida a dois, a formação da família. As crenças religiosas reforçam ainda mais essa regra
heteronormativa. Mulheres, o lado pobre da sociedade, buscam incessantemente o
matrimônio com a classe dominante para poderem se estabilizarem financeiramente.
Profissionalmente são desmerecidas por um mercado que não permite a isonomia de
gêneros. Mesmo enfrentando jornadas duplas, elas não são reconhecidas por isso e são
forçadas, por muitas vezes, a abdicar de uma carreira profissional em nome da família.
Segundo Goode essa busca pelo matrimônio, e consequentemente do amor, é
parte da ação social, que ajuda a criar novas relações sociais. Essa caracterização de
amor construído tem uma função social reguladora. Frequentemente o amor é
classificado como sentimento feminino (EHRENREICH e ENGLISH; JAMIERSON;
LANGFORD; USHER; citadas por FRASER, 2002). A elas também é dada a
responsabilidade do prolongamento das relações íntimas, ideia essa que corrobora a
questão social de atribuir ao sexo feminino os atributos da emocionalidade e da
prestação de cuidados com vista à preservação dos laços familiares e, mais
concretamente, dos laços afetivos.
A Mulher e as Telenovelas
Desde que se verificou o potencial do consumo feminino, a televisão separou
uma boa parcela da programação para elas. Assim, através de programas e telenovelas,
a televisão vem alimentado uma obsessão com a juventude, riqueza, beleza e glamour.
Historicamente, as mulheres foram vistas como procriadoras e criadoras de filhos,
orientadas para o trabalho doméstico e sem um papel significativo na sociedade.
Os estudos de George Gerbner a respeito da violência da TV na década de 1960
observavam que as mulheres eram sub-representadas e, normalmente, eram
apresentadas em papéis que reforçavam os estereótipos sexistas sobre sua inclinação
natural para as atividades domésticas. Este padrão de sub-representação continuou
durante a década de 1980, sendo que a esta altura, as mulheres já representavam 51% da
população mundial (CASHMORE, 1998, p. 140-141)
Nos anos de 1960, o cenário mundial era de globalização econômica, política e
cultural advindas da liberação da rigidez pós-guerra. A televisão era um símbolo e
veículo perfeito para isto, pois se tornou o símbolo doméstico por conta de seu custo
relativamente baixo e por alcançar todas as classes e faixas etárias. Sendo assim a
televisão entrou em ritmo de popularização.
Esse período foi de redefinição nos hábitos das famílias brasileiras. A televisão -
aparelho e programação - aparece como uma parte indissociável do cenário e da rotina
familiar, ocupando um lugar que antes era do rádio. A televisão foi gradativamente
perdendo a característica de “lazer noturno familiar” para se estender cada vez mais ao
horário vespertino e matutino. Assim, a televisão se firmou como instrumento de lazer e
de informação para todos os membros da família, ajustando seus horários à rotina de
uma casa (RIBEIRO, SACRAMENTO e ROXO, 2010).
Segundo Bourdieu (1997) e Canclini (2002) a televisão tem importante papel
nas mudanças sociais e culturais, pois segundo Esteves (2000), os meios de
comunicação são entendidos como importantes dispositivos não só de socialização,
senão também de reprodução social (COGOY, 2012).
Especificamente a telenovela, programa televisivo inclinado para o público
feminino, ainda atinge grandes índices de audiência e por sua vez desperta grande
interesse entre os pesquisadores sociais, já que apresenta principalmente conteúdos
relacionados a situações e vivências cotidianas, permitindo fazer comparações entre o
que olham na televisão e os que vivem na realidade (ZACAROTTI e COSTA, 2006).
O reconhecimento da mulher começa a tomar formas mais consistentes nas
telenovelas em meados dos anos 1980. Já em 1978 em Dancing Days, é inaugurada esta
fase de reconhecimento social feminino, no qual a submissão da mulher, no cenário
teledramatúrgico começava a se encerrar.
Os primeiros passos nesse sentido se deram com a libertação da mulher, nas
telenovelas, como uma libertação estética derivada da liberdade em se vestir, se pentear
e se maquiar. Em seguida o comportamento feminino entra em ascensão e as relações
amorosas e sociais também começam a mudar. A mulher deixa o âmbito de sofredora
para o de autoafirmação. As mulheres passam a ser retratadas como figuras que dão a
volta por cima e superam obstáculos impostos pela vida, pelos homens e pela sociedade
(JUNQUEIRA, 2009, p. 125).
Ainda na década de 1980, as telenovelas foram palco das grandes protagonistas
que encabeçavam as tramas. Eram personagens ativas no jogo das relações amorosas,
pessoais e sociais. Mulheres se separavam de seus maridos e entravam no mercado de
trabalho (Água Viva, 1980; Sol de Verão, 1982); se tornavam chefes de família (Jogo da
Vida, 1981; Guerra dos Sexos, 1983; Transas e Caretas, 1984); surge a primeira
feminista em Que Rei Sou Eu? de 1989, interpretada por Marieta Severo; mulheres
agora assediavam os homens sem serem taxadas de vilãs (Champagne, 1983); viúvas e
senhoras fogosas são protagonistas em Elas por Elas de 1982, Guerra dos Sexos de
1983, Transas e Caretas de 1984, Roque Santeiro de 1985. Abre-se a possibilidade de
igualdade entre os sexos.
A mulher então passa a mudar o papel que desempenhava na sociedade, sendo
parte deste modelo de indústria, a da televisão, que declarava dar maior espaço à elas,
pois não há telenovela que não mostre conflitos de mulheres que querem se libertar da
opressão masculina (SARQUES, 1981).
Wolton nos explica que a televisão assume um papel social claro e evidente na
sociedade brasileira, sendo seu gênero mais influente a telenovela, que por sua vez
transmite valores e costumes a população, que como já vimos tem acesso fácil a esse
meio de comunicação de massa:
Conclusão
Países com economia estável têm a taxa de natalidade baixa porque as mulheres
não estão ouvindo esses instintos femininos e não estão desesperadas por ter um filho.
Ter filho se torna o último plano nessa trajetória. Mas ainda assim, se esse plano existe,
é porque a sociedade se incomoda com o fato das mulheres poderem optar por não
terem filhos.
Destacamos que a telenovela Tieta nos trouxe uma protagonista que fugia aos
padrões de "mulher do lar" no que tange ao papel clássico feminino de manutenção do
cotidiano doméstico resumidos em lavar, cozinhar, limpar, gerar e cuidar de crianças,
papéis esses que eram destacados pelas outras personagens da trama. Do ponto de vista
sexual adicionamos também ao papel clássico da mulher o de satisfazer o marido sendo
passiva e disponível, característica essa menosprezada pela protagonista Tieta.
Apesar dos avanços que as mulheres conquistaram e continuam conquistando
dia após dia, não podemos deixar de destacar que no campo profissional a diferença de
gênero, diga-se entre homem e mulher, ainda beneficia a ala masculina. Dados do IBGE
datados de 2012 mostram que os salários das mulheres subiram mais que os dos homens
naquele ano. A remuneração das mulheres cresceu em média 2,4%, enquanto a deles foi
de 2%. Entretanto os homens continuam ganhando mais que as mulheres: em média, R$
2,126,67, contra R$ 1.697,30 delas, uma diferença de 25,3%.
Dessa forma realçamos ainda mais a relevante importância da televisão, e por
sua vez das telenovelas, como ferramenta educacional e informativa, capaz de provocar
reflexões em vários campos sociais, contribuindo positivamente na formação de uma
sociedade mais igualitária e compreensiva. Esperamos que os interesses comerciais das
emissoras possam sempre andar lado a lado com os interesses do público, assumindo
verdadeiramente sua responsabilidade como meio de comunicação comprometido com a
formação social, cultural e educacional de seus espectadores.
Referências
CASHMORE, Ellis. ...E a televisão se fez!. São Paulo: Summus, 1998.
COGOY, Eliana Mourgues. As telenovelas brasileiras e as questões políticas – a
formação da opinião pública. III Encontro Internacional de Ciências Sociais. Pelotas,
RS, out. 2012.
RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO; Marco (Org.). História
da televisão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.
WINSTEAD, Barbara, DERLEGA, Valerian, and ROSE, Suzanna. Gender and close
relationships. Thousand Oaks: Sage, 1997.
WOLTON, Dominique. Elogio do público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo:
Ática, 1996.
Sites:
Mundo Novelas:
http://www.mundonovelas.com.br/2010/08/tieta-vamos-recordar.html, acessado em
01/04/2015.
Obras audiovisuais: