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A EXTERNALIZA00 DO PROBLEMA E A MUDANÇA DE ARTIGO

NARRATIVAS EM TERAPIA FAMILIAR COM CRIANPAS

The externalization of the problem and narrative changes in family


therapy with children

RESUMO: A externalizaçáo do problema como ABSTRACT: The externalization of the problem ADRIANA BELLODI
recurso lingüístico enn terapia é uma das grandes as a linguistic resource in therapy is one of the COSTA CÉSAR
contribuiçées deixadas por Michael White. Conn greatest contributions left by Michael White. Psicóloga clínica, terapeuta
o intuito de manter viva sua escuta extraordinária As an attempt to keep alive his extraordinary de casal e lamí/la, docente
para as imposiçües identitárias que as narrativas sensitivity to identity impositions which nar­ do Instituto Familiae
sobre as crianças adquirem, a autora relata o aten- ratives about children acquire, this article's Ribeirdo Preto, SP
dimento a urna familia em que foi possível alcangar author reports a family therapy whose nine-
a nnudança de narrativas sobre os medos de urna years old child could change her fears' stories.
criarna de nove anos de idade. O texto pretende This text aims to reflect on how the utilization
refletir como a utilizaçáo da externalizaçáo do of externalization of the problem, as a tool for
problema como ferramenta conversacional e da conversation and writing as a therapeutic re­
escrita como recurso terapéutico geraram novos source, generated new meanings embodied in
significados através de relatos preferiveis para a more desirable reports for the child and her
criança e sua familia. family.

PALAVRAS-CHAVE: Michael White; externaliza- KEYWORDS: Michael White; externalization of


çao; escrita-como-recurso; terapia familiar com the problem; writing resource; familiar therapy
criangas. with children.

INTRODKAO

Ainda na graduaçáo, nas tardes de estágio supervisionado em clínica, minha


supervisora de terapia comportamental infantil comentava sobre as vantagens
de se trabalhar com crianças como terapeuta. Por que? Perguntávamos nós,
aprendizes. Porque as crianças ajudam os terapeutas a se tornarem plásticos,
dizia ela.
Convivendo com problemas infantis ao longo de anos de trabalho, construí
um significado próprio para "plástico": saber falar várias línguas (a oral, a lú­
dica, a teatral, a musical, a literária); entender que os professores dessas línguas
estavam comigo na sala de terapia e que o tipo de relaçáo possível teria que ser
aprendida com eles. Essa "maleta da plasticidade" foi acrescida de duas outras
ferramentas imprescindíveis guando a mudança terapéutica envolve crianças:
espontaneidade e criatividade.
Corno aluna e, posteriormente, docente do Instituto Familiae, vivi o privi­
legio de conhecer e conviver com Michel White como parceiro teórico. Desde
entdo, tornou-se urna voz inseparável na tarefa de ajudar crianças e suas familias
a se desfazerem de seus sofrimentos e de contribuir para o aprendizado dos pro­
fissionais que procuram formaçáo em nosso Instituto.
White passou a ser um interlocu­ embora seus olhos se movimentem,
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tor especial para incrementar minhas ativamente, entre seus rostos e o da
narrativas de plasticidade como tera­ terapeuta.
peuta. Lia vai compondo, à sua maneira,
Este texto surgiu do desejo de pres­ o texto iniciado pelos pais, buscando
tar a ele uma homenagem pela valiosa justificar suas atitudes: a comida da­
contribuiçáo, pela competéncia em ar­ qui é ruim, a irmd dorme no mesmo
ticular, brilhantemente, conhecimen­ quarto e mexe em suas coisas, aqui
tos teóricos que geraram urna prática ela nao pode sair na rua para brincar
fortemente comprometida com a cria­ com outras crianças e "todo mundo
tividade, a ética e o questionamento tem mania de pôr máscaras para fazer
do poder como forma de normatizar e grasa nos aniversarios".
dominar as vidas das pessoas. Aos poucos vai se constituindo o
A escolha do relato clínico a seguir relato de urna familia que busca aju­
se deu por ser contemporáneo à vin­ da para o problema de Lia e que, ao
da do autor ao Brasil (Salvador-BA, mesmo tempo, vive urna história de
2005)*. Assisti-lo foi urna experiéncia mudanças que traz um enorme exer­
exemplar (e uma inspiracdo especial cicio de adaptaçáo a todos.
para essa terapia), pois, emprestando A familia é oriunda de outra regido
sua citaçáo de Lionel Trilling: "é o fato do Brasil e se mudou para a cidade
de copiar o que permite inventar" onde reside a terapeuta. Os pais, fun­
cionarios de urna instituiçáo governa­
mental de pesquisa, receberam urna
O RELATO DO CASO: UM ENTRE licença de dois anos para fazer pós­
MUITOS TEXTOS graduaçáo na Universidade do Esta­
do de Sáo Paulo (UNESP) local. Com
Lia tem nove anos e foi encaminha­ isso, chegam à sua nova vida, insta­
da pela escola a pedido dos pais que lando-se em um apartamento menor
*Todos os comentArios
presentes no texto sobre o
estdo preocupados com o reapareci­ do que a ampla casa que possuem em
Workshop realizado por Michael mento do medo que a impede de ir a sua cidade de origem; as crianças mu-
White em marga de 2005­ festas de aniversarios, passear em lu­ dam de escola, os pais tém urna nova
Salvador, BA, sdo referentes
As anotagdes feitas naquela gares públicos, corno shoppings, pra­ (e mais longa) jornada de trabalho.
ocasido. ças e clubes com a familia e ir à casa Trazem consigo a avó materna que
das coleguinhas para brincar. Além aluga um apartamento ao lado do de­
desses sintomas, também se recusa les e urna funcionaria da familia que
a comer qualquer coisa que nao seja os acompanha desde que as crianças
pdo, biscoitos recheados, macarrdo nasceram. Estas trazem também um
tipo miojo, batata frita e, muito espo­ sotaque regional que deixa os colegas
radicamente, churrasco de picanha. de escola muito curiosos, gerando,
Os pais relatam que a filha nao gos­ em Lia, um incômodo lugar que a si­
ta de brincar com a irma mais nova tua entre a vergonha e a irritaçáo.
(cinco anos), se tranca no quarto e Por razôes óbvias, nao puderam
vive batendo na "coitada", em vez de trazer o pônei, animal de estimaçáo
conversar e falar do que a incomoda. das crianças, e a maior parte de seus
Sentada entre os pais, Lia algumas brinquedos. Também sentem a falta da
vezes se manifesta com voz trémula, grande familia que os cercava de afeto.
Lia lembra, como que fazendo urna constroem juntos as ferramentas que A externalizaçio do problema
e a mudança de narrativas em 01
lista das separaçóes, que a funcionária irdo compor as futuras mudanças te­ terapia familiar com crianças
que os acompanhou nessa mudança rapéuticas. Adriana Bellodi Costa César

nao se adaptou, ficou muito triste O relato acima se refere ao primeiro


nessa "cidade chata" e pediu para ir atendimento de urna relaçdo terapéu­
embora. tica que se estendeu por aproxima­
A essa altura da conversa os pais se damente doze meses. Devido à carga
perguntam se Lia é a única que preci­ horária imposta aos pais pelos traba­
sa de ajuda. O que cada um perdeu? lhos de pesquisa da pós-graduaçdo,
Como cada um tem sofrido essas mu­ nem sempre estes estiveram presentes
danças? Quais sdo as habilidades que no desenrolar da terapia. O atendi­
cada um tem que desenvolver para en­ mento como um todo foi composto
frentar os novos desafios? Com quem de encontros com a participa(do dos
podem contar numa terra estranha? pais e filhas, encontros que incluiram
O medo de Lia e seu mau humor em apenas as crianças, encontros com as
casa (que determinaram a procura de crianças e a avó e, no final do pro­
ajuda profissional) sdo efeitos da mu­ cesso terapéutico, os encontros eram
dança? E que efeitos tal mudança tem mais comumente realizados entre Lia
gerado na vida de cada um? e a terapeuta.
A mde chora e expressa o seu pesar As relaçóes familiares no novo
por impor tantas restriçóes à vida das contexto de vida foram sendo reorga­
filhas, o pai se ressente por nao poder nizadas, de forma que os pais pudes­
contribuir mais para o bem estar da sem enfrentar tantas demandas com
familia. Está preocupado com a de­ mais iniciativa e comprometimento,
pressdo da esposa e tentando apren­ na medida em que o relacionamen­
der a cozinhar para melhorar o cardá­ to entre as crianças, e entre essas e o
pio alimentar das crianças desde que mundo ganhava novos contornos em
a empregada foi embora. termos de segurança e sociabilidade.
Lia, ouvindo atentamente os pais, A avó cumpriu o seu propósito de ser
amplia seu discurso, lembrando que cuidadora de adultos e crianças, de­
outro dia comeu a omelete que o pai sempenhando um papel fundamental
fez, tem feito suas pesquisas na inter­ no apoio doméstico e afetivo. Toda­
net sozinha e imprimido figuras dos via, e os medos de Lia?
sites infantis para distrair a irmd ca­ Apesar do conforto construido
quia enquanto os pais nao chegam do pelas novas pautas de relaçóes fami­
trabalho. E também lembra sorriden­ liares, os medos de Lia mostravam­
te que, às vezes, lava os copos e pratos se em firme expansdo. Tendo o medo
da pia depois do jantar. como queixa, definiu-se um novo
Começa-se a construir uma narrati­ pedido de ajuda terapéutica, que
va em que as dificuldades e a coragem passou a ser o atendimento indivi­
de enfrentar tamanho desafio sdo de dual da criança.
todos. Lia já nao se defende, fala com As ferramentas clínicas orais e es­
mais autoria e busca palavras de con­ critas para a abordagem dos relatos
forto para si própria e para os pais. dominantes do medo constituem o
Dá-se o inicio a urna instigante objeto de reflexdo deste artigo. Con­
parceria em que terapeuta e clientes seqiientemente, muitos outros aspec-
tos de relatos contidos no presente vestimenta pouco usual. Além disso,
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artigo deixardo de ser objeto de nosso tinha também pavor de cachorros,
estudo. qualquer que fosse o seu porte, e ayer­
sdo a gatos.
Sobre o medo de cachorros, os pais
E OS MEDOS DE LIA? contam que Lia fora atacada por um
cdo grande e preto na calcada de sua
Segundo Michel White2, nossas expe­ casa, num momento em que os pais
riéncias sdo relatadas e organizadas nao estavam perto o suficientemente
em seqüencias temporais, de forma para evitar o ataque.
que possamos dar sentido as nossas Michael White' confere à questdo
vidas e relac¿Ses. O contar e recontar do poder um papel central em sua
essas experiencias constr6i relatos que teoria. Baseia-se em Michel Foucault
ganham o status de verdades normati­ guando analisa o poder em seus efei­
zadoras ou, nas palavras do autor, ad­ tos constitutivos na construçdo das
quirem o valor de relatos dominantes. narrativas das vidas das pessoas e de
O relato dominante que conta com suas relacòes. Desse enfoque resul­
o consenso das pessoas implicadas no ta o entendimento de que estamos
problema dos medos de Lia tem dia e submetidos ao poder por meio de
hora de nascimento e, depois, como conhecimentos construidos social­
todos os relatos vivos, se desenvolve mente, aos quais se confere o status
e adquire a maioridade. Por maiori­ de "verdades". Ao mesmo tempo em
dade, aqui entendemos como orga­ que sao construidas, essas "verdades"
nismos que ganham vida e decisòes produzem e mantern o funcionamen­
préprias. to do poder. O autor entende que os
Por volta dos dois anos de idade, relatos dominantes sao configurados
Lia, numa festinha de aniversario, por essas verdades normatizadoras,
assustou-se muito com os anima­ limitando as descriclies que as pessoas
dores infantis, vestidos de palhacos, podem desenvolver sobre si mesmas.
Minnies, Plutos, Patetas. Nao levan­ Em terapia, o papel do terapeuta,
do em conta o choro da crianca, eles informado pelo trabalho de Michael
a pegaram no colo para diverti-la e a VVhite, é desconstruir a coesdo dos
levaram para perto das outras crian­ relatos dominantes em busca dos co­
cas. Os pais, com a intencâo de ajudar nhecimentos locais produzidos pe­
a filha a participar das brincadeiras, los clientes, que estdo à margem dos
permaneceram ao seu lado, perto dos discursos saturados pelo problema.
personagens. Seu choro sé cessou em Pretende-se, com isso, questionar
casa, guando decidiram que afastá-la histérias que foram dadas como "ver­
do local seria a única forma de acal­ dadeiras" e possibilitar a ampfiacdo
má-la. de narrativas mais confortáveis para
Os medos de Lia foram entdo cres­ suas vidas.
cendo e tomando outras proporci5es, Nas conversas familiares, o proble­
como medo de Coelhos da Páscoa, ma ou o "medo de máscaras" (nas pa­
Papais Noéis, Máscaras de Carnaval lavras da crianca) era narrado como
e também manequins de vitrines, algo que vinha paralisando, sistema­
guando tinham alguma feicdo ou ticamente, a vida social e de lazer de
Lia. Na abordagem desse medo, por caras e fantasias. O fragmento abaixo A externalizaçio do problema
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meio das conversas entre terapeuta procura ilustrar seu posicionamento e a mudança de narrativas em
terapia familiar com crianças
e criança, outras descriçöes foram mais crítico em relaçáo ao problema: Adriana Bellodi Costa César
produzidas, buscando favorecer urna - "Eu sei que dentro daquelas
ampliaçäo dos julgamentos de Lia so­ roupas feias de cabeça grande tém
bre a construçäo desse medo. pessoas que acham que as crianças
A invençdo da externalizaçào do estdo achando legal. Eu quena ver a
problema' como ferramenta terapéu­ cara delas. Acho que lá dentro elas
tica para a construçäo da mudança ficam com calor, carregando aquelas
na clínica infantil, é urna das contri­ cabeças enormes. Será que elas acham
buiçöes mais criativas e marcantes do graça?"
trabalho de Michael VVhite. Trata-se T - "Lia, isso que vocé está dizendo
de urna abordagem que estimula as me fez pensar que vocé consegue ver
pessoas a visualizarem sua relaçáo além da máscara... e quer saber mais
com os problemas que as oprimem. das pessoas que estdo lá dentro..."
Corno recurso terapéutico, a exter­ - "É, porque essas pessoas fazem
nalizaçáo permite que a pessoa pos­ isso?... E trabalho, né?... Mas nao tem
sa se ver separada de suas descriçöes grasa nenhuma... eu nem vejo a cara
problemáticas. Dessa forma, o proble­ delas, se estdo alegres... e aquelas rou­
ma, sendo colocado como externo ao pas com tudo grande... chegam perto
cliente, favorece a construcdo conjun­ da gente e eu tenho medo. Vocé acha
ta de soluçlies sem o ônus da respon­ que um Piu-Piu tem que ser deste ta­
sabilidade e da culpa. Trabalhar com manhäo?"
esse recurso lingüístico resulta que a T - (observando as expressöes cor­
criatividade tanto do cliente quanto porais da criança e questionando-se
do terapeuta seja utilizada tdo ampla­ sobre que outras emoçlíes estdo im­
mente quanto a relaçáo e o contexto plicadas neste relato) "Vocé acha, Lia
terapéutico permitirem; possibilita o que, junto com o seu medo, vem ou­
uso da linguagem lúdica corno forma tra coisa também?"
de aproximacdo do sofrimento, tor­ - "Ah! Eu tenho raiva. Dá vonta­
nando a dor tdo visível e externa ao de de bater naqueles caras que están
cliente e suas relaçöes a ponto de ser lá dentro."
tocada. T - "Alguma vez vocé já tentou di­
Tal ferramenta clínica promove zer isso para as pessoas que estdo den­
a visibilidade de outras descriçòes tro das fantasias?"
identitárias, que vdo além daquela (pensando por alguns instan­
imposta pelo problema, e busca com­ tes) "Aqui no shopping, tinha uns
preender: a) a influéricia que o pro­ bichos... era Pateta, Minnie e Mickey
blema tem sobre a vida da pessoa e b) andando e dando tchauzinho para as
a influéncia que a pessoa tem sobre a crianças, dando pirulitos e eles vie-
vida do problema. ram e eu tentei falar com eles lá den­
Dentro dessa última perspectiva, tro... perguntar se estava calor.., e ele
Lia expressou, com muita veeméncia, perguntou o meu nome (sua expres­
sua indignaçáo frente ao hábito, in­ sdo é de animacdo); eu tentava ver o
compreensível para ela, que os adul­ rosto dele pelo buraquinho da boca
tos tém de divertir crianças com más­ (explica que eram fantasias nas quais
o corpo é do tamanho da pessoa, mas finas da sua identidade, isto é, suas
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as cabeças sao grandes e despropor­ histórias de insucessos, fracassos, per­
cionais)." das e tragédias. Nesse sentido, o papel
T - "Puxa Lia, o medo nao estava te do terapeuta é o de dar visibilidade às
atrapalhando!" múltiplas histórias que esta() subor­
Nesse momento, explora-se a pos­ dinadas ao relato dominante. Portan­
sibilidade de a criança ter urna nao to, o relato saturado pelo problema
crítica sobre o problema, na medida contém urna descriçao fina sobre a
em que pode ver ou imaginar as pes­ pessoa, pouco espessa e profunda, no
soas dentro das fantasias, o que nao se sentido de impedir o aproveitamen­
sustenta na próxima fala. to de um estoque de outros relatos de
L - "E, nao muito, mas ai vejo ou­ sua vida.
tro falando coisas de criançinha e O fragmento acima ilustra a ten­
quis me dar urna bala... eu fiquei com tativa de conhecer mais da Lia-que­
medo dele e pedi pro meu pai me le­ possui-e-influi-no-problema e tornar
var embora." as descriçóes sobre si mesma mais es­
Nas sessóes de terapia familiar, os pessas. No entanto, suas narrativas de
pais relatavam que momentos como medo desses personagens ainda sao
esses eram acompanhados de muito suficientemente fortes para se conse­
choro e alternó-es neuro-vegetativas guir a construçao, nesse diálogo, de
(esfriamento das maos, palidez, suor um relato de poténcia com o qual Lia
gelado); Lia "batia em retirada" (saia possa beneficiar-se.
correndo em qualquer direçao). A terapeuta pergunta-lhe entdo:
T - "Lia, um dos truques desses
Lia continua: medos, é ser invisível para os outros.
Só vocé sabe que ele está la. Eu gosta­
L - "Depois me dá raiva, porque ria de conhecer como ele é. Vocé pode
fico com vergonha de todo mundo desenhá-lo?"
me ver assim. Até minha irma, que é Com entusiasmo, papel, pincéis
menor, nem liga para isso e fica rindo e guache colorido entram em nao.
de mim." Esse momento foi depois nomeado
Conversamos entdo sobre como o como "tirar urna fotografia da cara do
medo é esperto; está sempre inven­ medo" e teve por propósito ampliar
tando situaceles para pegá-la distraí­ entendimentos sobre como o medo
da. Falamos que os medos tém muitos influencia a vida da criança e cons­
truques para nao deixar as crianças truir possibilidades de um maior con­
em paz. Ressaltamos que ela era capaz trole sobre o medo por parte dela.
de olhar sem tanto medo para urna
máscara, mas, guando apareciam va­
rias, era demais: o medo ficava mais O MEDO E SUA FOTO
forte que ela.
Em 2005, Michael White esteve no O medo de Lia é um desenho que
Brasil, realizando um Workshop em abrange quase uma folha de sulfite
Salvador, BA. Nessa ocasiao, o autor, inteira. Tentando preservar as descri­
com novos vocabularios, descrevia çóes de sua autora, ele tem: urna cabe­
corno as pessoas nos trazem histórias ça grande e redonda, urna boca com
dentes feios repleta de pontos pretos T - "Vocé quer dizer que ele assusta A externaliza* do problema
e a muno de narrativas em 91
que sdo bichos. Os olhos sdo arrega­ outras crianças também?" terapia familiar com crianças
lados e sai fogo das duas orelhas. Ele - "Isso eu nao sei, mas que tem Adriana Bellodi Costa César

tem também pés e maos de galinha, medo por al, tem".


com trés dedos. Fica soltando fogo e T - "E já que estarnos conhecendo
anda com lanças de fogo nas mdos que o seu medo, fiquei pensando em dar
queimam as pessoas. Sobre essa figura, um nome para ele..."
desenha um quadriculado, que sdo as - "Ah, nao sei essas coisas nao,
grades para que ele nao fuja. nao quero nem saber..."
As curiosidades da terapeuta sao T - "Corno solta fogo, ele poderia
muitas e Lia, cooperativamente, vai ser um drago?"
respondendo urna a urna: O que Lia meneia a cabeça com expressán
acontece com os bichos guando ele de chivida...
abre a boca? Lia diz que sao cobri­ T - "Um daqueles diabinhos que
nhas pretas que saem guando ele moram lá no meio do fogo, com
vem assustar. Corno sdo esses dentes aquele garfo na mdo?"
feios? "Sdo todos podres". Quando Lia ouve atenta, mas continua em
ele solta fogo? Em que situacòes? dúvida, isto é, sem respostas. A tera­
"Quando vem assustar e fica quei­ peuta pergunta se gostaria de parar
mando a gente". Ele nunca descansa? com esta conversa, se o medo está se
Está sempre pronto para assustar e aproveitando disso para vir assustá-la
por fogo nas pessoas? Que nome po­ de novo.
dernos dar para ele? - "Nao, eu tô achando engraça­
No exercicio de exteriorizar con­ do (sorri com vivacidade). Vocé sabia
versas, encontrar um nome para o que guando ele vem com aquela cara
medo externalizado oferece urna pos­ feia, ele faz xixi guando solta fogo?"
sibilidade de ampliaçao de significa­ T - "Nddoo!" (terapeuta faz expres­
dos. Agora a construcdo conjunta do sao de muita surpresa). Corno pode
controle ou influéncia de Lia sobre o urna coisa tan feia dessas fazer xixi?
medo volta a se tornar possivel. Nas calças? Ele faz ali mesmo?"
- (rindo) "E, ele pensa que é o
bom, mas se atrapalha e faz xixi. E
UM PROBLEMA PARA O MEDO também sai xixi pelas orelhas e apaga
o fogo... e fica todo molhado..."
No fragmento abaixo, o medo ganha T - E agora que descobrimos isso,
um nome; com o nome, urna iden­ vocé tem um nome para dar pra ele?
tidade; com sua identidade recém­ Depois de alguns instantes:
construida, tem forças e fraquezas. L - "Bicho Xixao".
T - "Lia, esse medo parece ser um Terapeuta e criança conversam ani­
bicho muito assustador e um grande madamente sobre esse defeito do bicho
perigo para vocé guando ele apare­ que é tdo poderoso e faz urna coisa que
ce..." é "de nené" segundo Lia. Pensam que
L - "Nao sou sò eu que tem medo isso deve deixá-lo muito envergonha­
de máscaras. Já vi muita criança cho­ do e mais bravo ainda. Chegam a con­
rar com esses bobos que ficam se fan­ clusao que o bicho ERA mais poderoso
tasiando por al".. e perigoso antes dessa descoberta.
Lembrando-se da espontaneidade Corno poderiam?
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e ousadia criativa de Michael White Os pais relatam sua nova habilida­
no seu trabalho com crianças, a tera­ de de conversar sobre o bicho-que­
peuta sugere a Lia que criem a caixa assusta-Lia, no lugar do medo-de-Lia.
do medo. Decidem que guardarao o Entendem suas tentativas de enfren­
Bixo Xixdo lá, até que ele aprenda a tá-lo, mas nao conseguem ajudá-la a
"ser mais educado e nao sair por al ir adiante. Essa dificuldade gera neles
assustando crianças e fazendo xixi na uma frustraçdo especial, porquanto
calça". Lia vai para casa com a tarefa todos se sentem entristecidos numa
de contar a nova descoberta à fami­ época tradicionalmente festiva e de
lia e leva também urna nova narrativa confraternizaçòes; se, por um lado,
sobre si: já pode decidir alguma coisa o empenho de todos trará evoluçdo
sobre a vida do medo. profissional e financeira futuras, o
As sessees que se seguem começam momento atual é sentido corno dis­
com Lia certificando-se de que o Bi­ tanciamento dos entes queridos, ou
cho Xixdo continua na caixa. Conta seja, de perdas.
também que ela e a irmd descobriram A terapeuta concorda com Michael
novos defeitos seus. Sua disposiçao de White em sua constatacdo de que o
falar sobre a vontade de ir a festas de problema externalizado resulta mui­
aniversario, comemoraçöes e espaços to atrativo para toda a familia, urna
públicos aumenta. Ao mesmo tempo, vez que podem atribuir os transtor­
Lia começa a demonstrar o ressenti­ nos ao problema corno urna entidade
mento de estar numa cidade muito separada e externa a si pr6prios. Con­
distante e diferente da sua. Sente falta tudo, as narrativas de isolamento e
de seu animal de estimacdo o pô­ impoténcia frente aos novos desafios
nei e das antigas amigas de escola. relacionados a condiçao social de mi­
Conta que, apesar de ter medo de ca­ grantes parecem ser limitantes, nesse
chorro, está melhorando, pois ela, a caso. Essas narrativas conferem poder
irmd e a avel combinaram de adotar ao problema.
um cdozinho.
Como é final de ano e as festas de
comemoraçöes de Natal se aproxi­ UMA CONVERSA COM O MEDO
mam, Lia vem um dia com os pais.
Estdo satisfeitos com as mudanças VVhite destaca a escrita' como um re­
da filha, mas angustiados com o seu curso terapéutico tdo útil quanto os
sofrimento. Há poucos meses atrás, meios orais, tradicionalmente mais
nao cogitava sair de casa se sentisse a utilizados nos contextos terapéuticos.
possibilidade de encontrar máscaras Ainda que as terapias através da fala
nos lugares aonde fosse, mesmo que venham se mostrando predominan­
tal chance fosse muito remota. Agora tes, o autor acredita que, em diversas
quer ir e fica muito nervosa por nao situaçöes, o escrito adquire autoridade
conseguir. Por exemplo, vai aos ani­ sobre o falado, urna vez que o ver se
versarios das amiguinhas, fica "apa­ imp6e ao ouvir. Descreve que o recur-
vorada" e pede para a mae ir buscá-la so escrito em terapia, promove a for­
imediatamente. Pediu que a deixas­ malizaçao, legitimasdo e continuidade
sem em casa nos passeios pré-Natal. dos conhecimentos locais produzidos
pelos clientes, possibilitando-lhes a au­ car feliz aqui em sua nova vida. E veja o A externalizaçbo do problema
que ele respondeu: e a mudança de narrativas em
tonomia para criar novas descobertas. terapia familiar com crianças
Pensando no recurso da escrita Voce sabe cuidar dela? Adriana Bellodi Costa César
como disparador de reflexóes que Estou aprendendo, eu disse. Ela gosta
geram novos significados sobre o de desenhar, de brincar de Polly, de jo­
problema; pensando neste como um gar e fazer pinturas de guache, lindas.
recurso útil para ancorar ganhos te­ Também conversamos das saudades que
rapéuticos, isto 6, afirmar os novos ela tem da cidade onde eles moram, do
conhecimentos locais já construidos pônei, dos seus tios e tias. Voce sabia que
e também diante da dificuldade/so­ ela já tem novas amigas aqui? E que ela
frimento que ainda a paralisa, a tera­ conseguiu ir a casa de uma delas brin­
peuta escreve a Lia: car? E que o medo de cachorros já está
diminuindo? E que ela também expe­
"Querida Lia,
rimentou queijo e peito de peru e gos­
Ontem, guando estava passando pela
tou? E que ela vai ajudar a mae a fazer
sala de brin quedos, ouvi um barulho no
um prato de rolinhos de peito de peru e
armario.
queljo para a ceia de Natal?
Logo fui ver o que estava acontecendo.
E o bicho me falou:
A caixa do medo estava tremendo. Abri
O seu armario tem muitos jogos que
para ver e la estava o Bixo Xixao, sol­ ela gosta, mas nao tem todos.
tando fogo pelas orelhas e gritando:
Ah, isso é comigo e com a Lia, eu dis-
Eu quero sair, eu quero sair!
se. Mas, se voce quiser, posso comprar
E eu ¡he disse:
alguns, assim ela pode vir e jogar jogos
De jeito nenhum. Justo agora que é novos. Voce acha que ela vai ficar con­
Natal? Voce fica fazendo maldades para tente?
as crianças e uma fera como voce nao Acho, ele disse.

pode sair por al, solta. E voce? Eu perguntei.

E ele respondeu: Também! Entao voce pode cuidar


Mas eu nao quero assustar a Lia.
dela?
Como nao? Eu falei.
Lia, ele parou de gritar, ficou quieto e
Eu se, quero ficar perto dela.
continua guardado la na caixa.
Nem pensar! Voce a assusta e agora ela
Quando voce vier, talvez eu já tenha tido
tem que se divertir por que é Natal, e tempo de comprar os brin quedos que ele
voce faz ela ter medo do Papai Noel. me sugeriu. Se voce quiser, pode ler esta
Lia, veja s6 o que ele me falou: carta junto com a sua familia.
Olha, eu sei que ela está muito triste Espero voce na nossa terça-feira.
e se sentindo muito sozinha. Eles nao
vao viajar para a cidade deles e vao ficar Um beijo,
aqui. E eu quero ficar perto dela, para Adriana"
ela nao ficar sozinha.
E eu ¡he disse: A conversa entre terapeuta e o
Nao e nao! Pode deixar que a irma, o medo teve como propósito docu­
pai, a mae e a yoyó gostam dela também mentar o significado do problema ex­
e eles é que fazem companhia para ela. ternalizado, isto é, como sugere Whi­
Eu contei a ele que também sou sua te', o problema é que é o problema; é
amiga agora e estou ajudando voce a fi­ separado lingiiisticamente da pessoa.
Assim, um diálogo com o problema, autor e leitor, a leitura e releitura de
94 NPS 31 I Julho 2008
como foi apresentado na carta, po­ um texto produz o constante recon­
deria cumprir a funeáo de propiciar tar de uma narrativa, com significa­
reflex6es menos impregnadas de fi-a­ dos ampliados em relaeao à anterior.
cassos pelos membros da familia. Pen­ Sendo assim, a despeito das intene6es
sando nos relatos sobre os insucessos da terapeuta, a carta apenas poderia
de ajudar a filha, a terapeuta lista, em cumprir seu objetivo de mudanea de
seu diálogo com o medo, as muitas significados a partir da "leitura" que
mudaneas conseguidas por Lia. De Lia e seus familiares fariam.
acordo com a tradiçao escrita, o "fa­
zer ver" p6e em evidencia os sucessos
e confere prestigio ao fato relatado. UM MEDO DÓCIL?
As narrativas de tristeza, isola­
mento e separaçao compartilhadas No encontro seguinte, a avó trouxe Lia
pela familia também podem aquí ser e sua irma; pediu para conversar "uns
legitimadas como dificuldades tdo minutinhos" com a terapeuta. Deci­
importantes quanto os relatos sobre diu-se que conversariam todas no co­
problema de Lia, tornando-se me­ rnee° do encontro, pois Lia tinha um
recedoras de cuidado. pedido de brincar com a irmd e com
Assim, a terapeuta procurou dar a terapeuta na sala de brinquedos.
visibilidade a estas outras narrativas Estavam curiosas com os brinquedos
por meio de seu diálogo com o medo. novos.
Com isso, pretendia agir implica­ A alzó diz entao que todos haviam
tivamente, isto é, criando, segundo gostado muito da carta e conversado
conceito proposto por Pearce4, uma sobre ela em casa. Entretanto, ficaram
forea implicativa na mudança de sig­ com urna dúvida:
nificado do medo, como ameaeador e "Doutora, queríamos saber se a
frustrante, para o significado de busca senhora vai dar alta para a Lia..."
de solidariedade e cuidado através do A partir da premissa de que todo
medo. Assim, o medo, na carta, mos­ texto possui seu grau de ambigiiidade,
tra-se afetado pela tristeza de Lia, a terapeuta procurou entender corno
pede para que a terapeuta compre se construiu a interpretacdo da alta.
brinquedos novos e cuide dela, en­ Na busca do esclarecimento sobre
quanto ele fica quieto na caixa. Outros como tal pergunta havia sido gerada,
sentimentos estáo sendo iluminados isto é, o que da carta sugeria tal deci­
as conversas externalizadas entre a sao da terapeuta, a avé acrescenta:
terapeuta e o medo podem conferir a "E que ela ficou com pena do bi­
este último novas verslies. cho. Será que ela já melhorou?"
Whitel utiliza a analogia do texto A conversa que se seguiu explorou
para descrever a produçao de novas a questdo dos sentimentos de triste­
narrativas em terapia. Todos os tex­ za por estarem longe dos familiares
tos tém certo grau de ambigiiidade nesse final de ano. Acordou-se que
indeterminaedo, que subentende a o término da terapia seria decidido
presenea de significados implícitos, conjuntamente, levando em conta a
exigindo, assim, um ato interpreta­ opinido de toda a familia. Foi lembra­
tivo do leitor. Nessa interaçáo entre do também que essa decisáo já nao
tinha mais a participacao do Medo- acabam por ceder espaco às formas A externalizaçbo do problema
e a mudança de narrativas em 95
Bicho-Xixdo, urna vez que ele tinha preferiveis de agir. terapia familiar com crianças
concordado em passar os cuidados de Adriana Bellodi Costa César

Lia para as indos da terapeuta.


Em tom alegre, Lia e a irma pedi­ MACIS MENOS ASSUSTADAS PODEM
ram para visitar a sala de brinquedos. SER MAIS CUIDADORAS.
Lá encontraram quatro novos brin­
quedos, dois relacionados à boneca No encontro seguinte os pais vesm com
Polly e outros dois jogos de tabuleiro Lia. Estao tensos e frustrados com os
e dados, todos por serem tirados de acontecimentos. Lia está de acordo
suas caixas. As criancas e a terapeuta com essa avaliacdo dos pais.
inventaram um nome para esse en­ Contam que todos foram ao
contro: O Natal na sala de brin quedos. shopping passear e estavam felizes
Tais brinquedos nao foram levados porque Lia estava corajosa; combi­
pelas criancas, pois sao parte do acer­ naram também que nao teria que se
vo de recursos lúdicos do consultério. aproximar do Papai Noel, caso o bom
Contudo, o significado co-construido velhinho estivesse de plantao. Todos
que passa a constituir o "presente entendem que Lia sabe que sao pes­
de Natal" para Lia: foi o bicho Xixdo soas fantasiadas e que assim mesmo
quem aconselhou as novidades para se sente desconfortável.
que ela se sentisse mais feliz, ou me- No entanto, o som de urna banda
nos solitária, nessa época do ano. de animacdo infantil, mesmo fora
O relato alternativo para a narra­ do alcance dos olhos, a fez paralisar
tiva saturada pelo problema ganha em seu lugar, comecar a tremer, suar
mais urna versdo: do medo como par­ e chorar. A mde correu para o esta­
ceiro de horrores para o medo como cionamento para apanhar o carro. A
conselheiro e acompanhante dos mo­ irmdzinha entrou na livraria onde a
mentos de solidao e saudades da terra ave) se encontrava, pois tinham que ir
de origem. Lia e a irmd conversam embora. O pai sugeriu que entrassem
com a terapeuta sobre suas saudades numa loja, enquanto a banda com
de tios, primos e sobre as mudancas suas máscaras passassem. Lia aceitou;
que estdo ocorrendo em suas vidas. aceitou também água com acticar e
Se os sentimentos de ter medo co­ um lugar para sentar dentro da loja.
mecam a dar lugar aos sentimentos Quando estava mais calma saiu com
de se sentir sé, as conversas ganham o pai, encontrou o resto da familia e
um novo sentido: Com quem eu foram para casa. Escolheram, mais
quero e posso estar? Com quem pos­ tarde, um passeio ao ar livre.
so contar? Quem pode ser um novo A terapeuta perguntou à Lia se, ape­
amigo? Como elas, as irmds, podem sar de todo o desespero que passou,
ser companheiras, já que terdo que havia algo de diferente nessa situacao.
esperar que os pais terminem sua for­ Com semblante entristecido, a crian­
macdo? As novas narrativas, porém, ça move a cabeca afirmativamente. O
para ganharem consisténcia, preci­ fragmento que segue ilustra o relato de
sam ser levadas para outros contextos urna nova forma de enfrentamento:
das vidas dos clientes e, dessas novas T - "Vocé fez alguma coisa de dife­
experiéncias, os relatos dominantes rente dessa vez, Lia?"
L - "Acho que fiz..." acolhé-la; nunca havia pensado em
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T - "E o que foi?" corno eles também a assustam guan­
L - "Nao sal correndo... Eu e o meu do ficam nervosos.
pai ficamos ali parados... eu me es­ Transcorridas as festas de final de
condi atrás dele e n6s fomos andando ano a familia volta dizendo que todos
até a loja de skates." estavam se sentindo muito bem e que
Pai - "E, n6s fomos assim... de tren­ nem Lia, nem os pais se assustavam
zinho. Eu falei para ela sentar de cos­ tanto guando o medo aparecia. Lia e a
tas e isso ajudou. Também a moça da irma também estavam aprendendo a
loja ficou preocupada e foi buscar um comer maior variedade de alimentos,
copo d'agua." o que era uma preocupacdo constante
- "E, e ela pôs açúcar. Eu fiquei do casal.
com vergonha porque ela disse que Alguns encontros ap6s, Lia e os pais
isso nao era nada e eu já era grande." decidem que a terapia poderia chegar
T - "Ela nao sabia como vocé vem ao seu fim. O Bicho Xixao foi conde­
lutando para mandar o seu medo em- nado por ela a ficar na caixa do medo,
bora.Vocé acha que teve alguma coisa onde se encontra até os dias atuais no
que te ajudou a fazer diferente?" armario da sala de brinquedos.
- "O meu pai... sentar lá, tomar A caixa do medo passou a ser urna
agua." ferramenta útil para o trabalho com
Lia explica como todo mundo outras crianças que possuem trans­
fica nervoso e bravo guando ela tem tornos semelhantes. La tém sido de­
medo; a mae também sai correndo positados, na forma de desenhos,
com ela. Conta que o pai ficou ao seu dobraduras e esculturas, aranhas,
lado. bruxas-que-assustam-à-noite, sapos­
- "Ele falou: Calma, Lia, vai pas­ venenosos-que-fazem-vomitar-na­
sar e daqui a pouco a gente vai sair escola, monstros-escuros-que-dao­
daqui." dores-na-barriga; enfim, toda a sorte
T - "Foi isso que ajudou a passar o de externalizaçôes de fantasias e sen­
seu mal-estar?" saçòes assustadoras que rondam a in­
- "Fiquei la de mao dada com o fancia, comprometendo o direito ao
,,
meu desenvolvimento sereno e seguro dos
T - "Entao vocé descobriu outro pequenos.
jeito de enfrentar o seu medo?" comum que, ao aceitarem guardar
Pai - "Puxa, eu nao tinha percebido seus algozes nessa caixa, as crianças
que fizemos tudo isso!" fiquem curiosas sobre as outras obras
T - "Lia, eu fiquei pensando que que lá se encontram e perguntem por
vocé preferiu dar a mao para o seu pai sua histéria. O contar e recontar his­
e nao para o medo." térias de crianças desconhecidas en­
Lia lembra que o medo está fican­ tre si tem possibilitado a construçao
do cada vez mais preso na caixa e a de sentimentos de pertinéncia a um
terapeuta pontua que eta está apren­ grupo de pares que se torna presen­
dendo a utilizar cada vez mais as tificado pelas diversas obras infantis
mdos que sabem cuidar dela. A mde e pelos relatos da terapeuta. Desse
conta que fica muito ansiosa com os modo, recursos gerados por uns pas­
"ataques" da filha e que nao consegue sam a ser ferramentas para outros.
Assim como Lia, os outros pe­ Em Salvador (BA), questionado so­ A externalizaçao do problema
e a mudança de narrativas em
quenos clientes preferem deixar seus bre o alinhamento de sua teoria com terapia familiar com crianças
medos concretizados pelos recursos o Construcionismo Social, Michael Adriana Bellodi Costa César

lúdicos no consultório, guando vao White, lembrando sua formacao


embora. Partem mais livres e con­ como Assistente Social, afirmou o seu
fiantes, e eu lhes garanto que a caixa descompromisso com qualquer ou­
continuará guardando essas criaturas tra abordagem teórica ou psicológica.
desagradáveis que circulam por al, Apesar desse posicionamento, concor­
apavorando injustamente as criancas. do com Rasera e Japur ao visualizarem
as ferramentas clínicas propostas por
ele "como urna prática construcionis­
REFLEMES FINAIS ta no campo da psicoterapia"'
Os conceitos de histórias finas, sa­
O leitor nao familiarizado com a Te­ turadas de problemas que impeiem ds
rapia Narrativa poderá se perguntar, pessoas versEles identitárias de impo­
após a leitura do texto, pelas possíveis téncia e fracasso pessoal, de externa­
classificacóesque, segundo outros lizacdo do problema como recurso
aportes teóricos, se adequariam ao lingüístico que separa a pessoa do
problema que afetou Lia, suas relacEles problema e permite identificar episó­
familiares e suas relacées com o mun­ dios nos quais esta nao se submeteu
do. Poderá se perguntar ainda sobre as narrativa dominante convidam a urna
causas do problema e, a partir disso, reflexdo sobre o papel da linguagem
imaginar que outras abordagens de na construcâo de significados que
tratamento também caberiam para o promovam a producao de novas e
mesmo relato. melhores narrativas sobre si mesmo.
Segundo a proposta construcio­ Para as novas geraçòes de terapeu­
nista social, as realidades nas quais as tas familiares, que nao terdo oportu­
pessoas esta() inseridas se constroem nidade de vé-lo trabalhando, desejo,
na linguagem. Dessa proposta deriva
ao compartilhar essa experiéncia,
a crenca de que nao existe o fato em si
colaborar para manter viva a escuta
extraordinaria de Michael White pa­
(nesse caso, um problema objetivado
ra as imposicôes identitárias que as
por urna descricao diagnóstica), mas
narrativas sobre as criancas vdo ad­
um evento construido, linguistica­
quirindo, subjugando-as a modos de
mente, pelas pessoas que se encon­
vida infelizes.
tram envolvidas. Dito de outra forma,
Sua voz nao mais será ouvida, mas
o terapeuta que trabalha informado
o seu mérito literario ao descrever
pelo Construcionismo Social deslo­
a terapia está vivo e ao alcance de
ca-se do entendimento da linguagem
todos que se dispdem a colaborar
como representacional para urna com criancas e suas familias na cons­
compreensdo da linguagem como truca° de histórias mais desejáveis.
constitutiva. Assim, as classificacòes
de transtornos podem ser entendidas
como opOes discursivas, proporcio­
REFERENCIAS
nando ao terapeuta a reflexdo sobre a
utilidade de seu uso em cada contexto
terapéutico.
IRYNOVE, R].; Una O. Medios
narrativos para fines terapéuticos.
Trad. Ofélia Castillo, Mark Beye­ gem da Teoria à Prática, do Objeti­
98 NPS 31 1 Julho 2008
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Aires: Paidés, 1990 (p.30). e da Representacdo à Reflexividade.
2
NOTE, M.; E PSTOM, D. Medios In: SHINITMAN, D.F. (org.) Novos
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Trad. Ofélia Castillo, Mark Beye­ de. Porto Alegre: Artes Médicas,
bach e Cristina Sánchez.Buenos 1994.
5
Aires: Paidés, 1990. RASERA. E.F.; JAPUR, M. Grupo
3
129117E, M. Guias para urna terapia corno Cosntruçáo Social: Aproxi­
familiar sistémica. Barcelona: Gedi­ maçòes entre construcionismo so­
sa, 1994. cial e terapia de grupo. SáTo Paulo:
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PEARCE, W.B. Novos Modelos e Me­ Vetor, 2007 (p. 75).
táforas Comunicacionais: A Passa­

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