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Dossiê

Este a r t i g o a p r e s e n t a A INCLUSÃO DO
u m caso em t r a t a m e n t o
na L u g a r de Vida e
m o s t r a o p e r c u r s o desse
ESTRANHO
paciente, do interesse
pela escrita para a in-
clusão efetiva na escola
c o m u m . Ele p r e t e n d e
discutir sobre a possibi- S í l v i a de P a u l a Gorzoni
l i d a d e de u m a c r i a n ç a
c o m d i a g n ó s t i c o d e psi-
cose ter a c o n d i ç ã o de
freqüentar a escola. A
c l í n i c a e a escola po-
dem beneficiar uma
criança com Distúrbio
Global do Desenvolvi-
Esta é a história de u m t r a t a m e n t o que
mento, preservando
cada u m a a sua especi- começou na Lugar de Vida em m a r ç o de 1998 e
ficidade. c o n t i n u a seu curso. Ao longo de quase três anos,
Psicose; Nome-do-Pai; muitos aspectos desse caso poderiam ser discutidos.
escrita; escola
Todavia, neste artigo faz-se fundamental ressaltar o
THE INTEGRATION percurso escolar dessa criança, como u m a história
OF UNCANNY bem-sucedida de i n c l u s ã o . O c a m i n h o percorrido
This article discusses
some aspects regarding
para sua escolarização contou com a colaboração de
the educational process alguns profissionais das escolas mencionadas. Partin-
of a child in treatment do da s i n g u l a r i d a d e deste caso, é possível crer em
at Lugar de Vida and
shows the way of this
transformações na escola que, em paralelo ao trata-
patient from his sell-in- mento, p e r m i t a m a i n c l u s ã o de u m a criança com
terest of writing to the Distúrbio Global do Desenvolvimento. O tratamen-
effective inclusion in pu-
blic school. It reports to não prescinde da escola na função educativa, e a
to board about the pos- educação, por sua vez, não pode intervir nas ques-
sibility of a child with tões do sujeito do inconsciente. Estes lugares são
diagnostic of psychosis
to attend a class. The diferenciados, e não excludentes.
therapy and the school
can improve a child,
each one mantaining its
characteristics.
Psychosis; Nom-du- A ESCOLA
Père; writing; school

Richard' inicia o tratamento aos 9 anos de ida-


de, com um histórico de fracasso na adaptação esco-
lar e dificuldades na aprendizagem. Ele "não é acei¬

• Estagiária do curso de especialização da Pré-Escola Terapêutica


Lugar de Vida e psicóloga coordenadora do Serviço de
Psicologia do Programa de Saúde Escolar da Prefeitura Municipal
de São Caetano do Sul (SP).
to na sala de aula porque não pára", é o que sua família diz. Fre-
qüentava a Sala de A t e n d i m e n t o aos Portadores de Necessidades
Especiais (Sapne), três vezes na semana, durante u m a hora.
Em fevereiro de 1999, após aproximadamente um ano de tra-
tamento, Richard foi transferido para outra escola com o objetivo
de efetivar sua inclusão. A psicopedagoga da Sapne já havia tenta-
do sua i n c l u s ã o , sem sucesso, pois nessa escola ficara m a r c a d o
como aluno problemático, precisando iniciar vida nova em outro
lugar (segundo suas p a l a v r a s ) . M a n t e v e o a c o m p a n h a m e n t o
psicopedagógico nessa escola e i n i c i o u estudos em outra escola,
r e g u l a r m e n t e m a t r i c u l a d o na segunda série do C i c l o Básico. Na
nova instituição, a estratégia estabelecida entre a professora, a coor-
denadora pedagógica e psicopedagoga foi de promover aos poucos
sua permanência em sala de aula. Inicialmente, ficava em sala por
u m p e r í o d o de duas horas; ao fim deste m e s m o ano l e t i v o , já
permanecia todo o período da manhã (quatro horas diárias).
Atualmente, Richard está concluindo a terceira série, com domí-
nio de leitura e escrita e principalmente participando da vida escolar.
O que foi construído até o momento pode nos ajudar a com-
p r e e n d e r as m u d a n ç a s de a m p l i a ç ã o em sua l i n g u a g e m c o m o
determinantes para sua inclusão.
Foram feitos alguns recortes de sessões desse tempo de trata-
mento para a abordagem de aspectos fundamentais da teoria psica-
nalítica.

O TRATAMENTO

A família de Richard veio à Pré-Escola Terapêutica Lugar de


Vida encaminhada pelo Instituto da Criança/Hospital das Clínicas
com d i a g n ó s t i c o de psicose. Referiam i m p o r t a n t e passagem em
Hospital-Dia durante três anos. Preocupavam-se com suas atitudes
provocativas, como, por exemplo, ligar o gás da c o z i n h a , jogar
objetos dentro da m á q u i n a de lavar. A mãe o considerava m u i t o
teimoso, agitado e com alguns "tiques", comportamentos para os
quais não via explicação.
Richard foi adotado por Marta. Sua mãe biológica o deixou
na casa de Marta, aos 5 meses de vida, por aproximadamente u m
mês com a justificativa de providenciar seu registro. Durante este
período, deixava-o pela m a n h ã e o buscava à noite. O tempo de
p e r m a n ê n c i a foi se a m p l i a n d o aos poucos, e na ú l t i m a vez que
veio buscá-lo era meia-noite. A partir daí, ele passou para os cui-
dados de Marta definitivamente ( s i c ) .
Nos p r i m e i r o s meses de trata-
m e n t o , R i c h a r d fazia m e n ç ã o a al-
guns terapeutas que o haviam atendi-
do a n t e r i o r m e n t e : " C a d ê o R... e a
F...?" Ele a p r e s e n t a v a r e c u r s o s de
fala, porém evitava o contato comi-
go; não me d i r e c i o n a v a o olhar,
p r i o r i z a n d o a m a n i p u l a ç ã o de obje-
tos e u m a movimentação incessante:
rodopiar pela sala, ligar e desligar o
ventilador, dar descargas.
As sessões aconteciam a sua esco-
l h a fora da s a l a de a t e n d i m e n t o .
Q u a n d o ali permanecia, às vezes, ele
jogava objetos pela janela ou corria
para entrar em outras salas.
Sua postura d i a n t e do espelho
modificou-se durante esse tempo de
t r a t a m e n t o . A p r i n c í p i o , ele jogava
objetos para quebrá-los e cuspia em
sua i m a g e m . A t u a l m e n t e , ele p o d e
observar sua i m a g e m enquanto con-
versa comigo. Esta mudança de atitu-
de possibilitou também a sustentação
do olhar para o outro e a sustenta-
ção do diálogo.
Em seus d e s e n h o s a p a r e c i a m
"estrela m a l u c a " , " m e n i n o com de-
feito", o b a l ã o , o e l e v a d o r , o sol.
Em u m a das sessões, R i c h a r d dese-
n h o u duas figuras: u m a na cor cin-
za e a o u t r a n a cor p r e t a , me in-
f o r m a n d o q u e " a m ã e c i n z a está
passeando no campo, e a mãe preta
não conhece".
H o u v e crescente interesse pela
escrita, acompanhada pela eleição de
alguns significantes: bóia, balão,
Monalisa, elevador, baby e sol.
Durante meses fez-se hábito ele
me perguntar, logo ao i n i c i a r a ses-
são, sobre a bóia, que após algumas
sessões esclareceu ter ganho em San-
tos, mas "murchou".
Fez vários desenhos com motivo de balão com fogo ou fuma-
ça, muitas vezes "batizado" por Marta Bocuda, Iara; sempre nomes
de mulheres.
Pediu-me uma revista e recortou a foto da Monalisa e de u m
elevador, levando-os para sua casa. Não os trouxe mais ao atendi-
mento, e me perguntava: "Onde está a Monalisa? E u m a mulher
bonita, minha namorada". Após algum tempo, eu perguntei nova-
mente: "Quem é a M o n a l i s a ? " Ele me disse: "E a F..." (nome da
psicóloga do H C ) . Explicou-me que "era atendido no prédio cin-
za, alto, onde tem elevador".
Elegeu brincadeiras, como se esconder e me olhar para verifi-
car se eu continuava na sala; jogar e puxar o rolo de barbante.
Numa das sessões disse que não me conhecia: "Não conheço
quem desaparece; quem desaparece não existe".
Qualquer alteração na rotina dos atendimentos provocava em
Richard reações inesperadas, e as finalizações das sessões tornavam-
se difíceis. Ao ser informado sobre as primeiras férias do tratamen-
to, ele afirmou: "Não existo, e você não existe... vou virar estrela...
estou morto". Q u a n d o ele passou a vir ao atendimento u m a vez
na semana, e não mais duas vezes, ao t é r m i n o da sessão, ele se
despediu: "Se não acreditar na palavra da gente, vou ficar sozi-
nho". Ao final de outra sessão, ele me disse: "Se você não me se-
gurar, eu vou embora!"
Confeccionamos calendários para situar datas das sessões, férias,
suas atividades na semana. Ele propôs um encontro das canetinhas
no papel. Preocupou-se em p i n t a r todos os espaços em b r a n c o .
C o n s t r u i u um avião de papel que voava no céu e fazia o trajeto
entre a USP, seu bairro e o aeroporto. Richard passou a se orien-
tar a partir dos referenciais do tempo, e brincava com isso, ao
nomear: "Texta na Cuspe", "Encontramos na USP", "Domingão do
Faustão", " M a i o no sítio", "Até sexta!", "Vai terminar a sessão?"
Essa fase do tratamento lhe fez u m a série de questões: "As
pessoas descem pela porta do elevador, e a porta fica?", "Por que
os objetos caem no chão? Por que a bola cai?", "Por que existe
elevador?", "Você vai crescer mais?", "Qual a cor da sua mãe?",
"Para onde vai o sol... para onde vai o sol q u a n d o desaparece?",
"Por que o sol aparece depois do nublado?", "Por que não fico na
USP o dia inteiro?"
S u r g i r a m m u i t a s outras perguntas depois, e t a m b é m teorias
para explicá-las, oferecer algumas respostas: "Todo o m u n d o morre.
Papai do céu vai me salvar", "Alguém foi embora ... não voltou",
"Nasci da barriga de outra mãe, não conhece", "A lua aparece de
noite e desaparece de dia, é Deus que faz isso", "Fui para o HD
porque era malcriado", "O sol aparece depois da madrugada", "Fui
criado por Deus que é todo-podero¬
so e vê a t u d o e t o d o s " , " N u n c a
mais encontramos Monalisa... é bom
e n c o n t r a r ! " , "Você v i u o J a s p i o n ?
Tinha esse boneco. Quebrou. Tem o
Fofão, está lá em casa!", "O tempo
não espera ninguém!"
Depois de d u a s sessões de au-
sência, ao r e t o r n a r R i c h a r d entrou
na sala e desenhou o sol: "Olha! O
sol apareceu! N ã o a p a r e c i a o sol e
hoje ele está forte!" Pegou u m a
pecinha redonda e a rodou pela sala
n u m m o v i m e n t o de ida e volta, di-
zendo ser o baby: "O Baby é o sol
porque o baby nasce e o sol quando
sobe, ele nasceu".
Após as férias de j a n e i r o deste
ano, R i c h a r d c o n t o u - m e que h a v i a
assistido ao filme Rei Leão, mostran-
do várias vezes com as m ã o s , o ta-
m a n h o do sol: "O sol afasta os per-
sonagens! T u d o o que o sol toca é
o nosso rei!" É c o m u m me pergun-
tar qual é a posição do sol, afirman-
do que as horas estão p a s s a n d o , o
dia passou, "existe passado, presente
e futuro". Ele situa pessoas de seu
passado, como os colegas do HD, e
c o n t a s i t u a ç õ e s do seu c o t i d i a n o ,
construindo, assim a memória narra-
tiva de sua história.
T e r m i n o aqui o relato do caso
para acentuar que Richard parece es-
tar no c a m i n h o da c o n s t r u ç ã o de
uma metáfora delirante como suplên-
cia à estabilização da estrutura.
Diante da ausência do simbólico
e para dar conta da a n g ú s t i a e do
vazio de significação, ele faz a tentati-
va de ordenação do real, construindo
para si u m a o r g a n i z a ç ã o no tempo
que lhe fornece a p o s s i b i l i d a d e de
u m a história, identidade e destino.
O NOME-DO-PAI

Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da


p s i c o s e , Lacan (1957-8, p. 563) estabeleceu a fórmula da metáfora
paterna da seguinte maneira:
Nome-do-Pai . Desejo da Mãe - Nome-do-Pai [ A ]
Desejo da Mãe significado para Falo
o sujeito
A i n s t i t u i ç ã o da m e t á f o r a p a t e r n a o c o r r e q u a n d o u m
significante primordial opera a substituição do significante do de-
sejo da mãe pelo significante do Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai é
posto em s u b s t i t u i ç ã o ao lugar p r i m e i r a m e n t e s i m b o l i z a d o pela
operação de ausência da mãe. Por meio da palavra da mãe, a criança
saberá algo do Nome-do-Pai, ou seja, "do lugar que ela reserva ao
Nome-do-Pai na promoção da lei" (Lacan, 1957-8, p. 585).
Entretanto, na psicose o que se verifica é a i n s u f i c i ê n c i a de
efeito metafórico, que corresponde a u m buraco na significação
fálica. Bouquier (1983-8), ao citar Lacan (1959), afirma que a medi-
ação do Outro entre o filho e a mãe, que seria garantida pela fun-
ção paterna, está ausente, e isto faz com que a criança realize a
presença do objeto a do fantasma materno.
S e g u n d o B e r n a r d i n o (2000), o psicótico ficaria na p r i m e i r a
apreensão de Das Ding, sem que a Bejahung seja completada pela
Verneinung, condição esta que seria fundamental para incluí-lo n u m
primeiro deslizamento simbólico. A psicose pressupõe que algo de
p r i m o r d i a l ao ser do sujeito não entrou na s i m b o l i z a ç ã o , n e m
tampouco foi recalcado, mas foi rejeitado (Verwerfung primitiva).
O desencadeamento da psicose se daria pelo retorno, de fora, do
que ficou preso na Verwerfung, ou seja, o que foi posto fora da
simbolização geral que estrutura o sujeito. A partir daí, há reação
em cadeia no nível do i m a g i n á r i o .
Para Lacan (1955-6), citado por Bernardino (2000, p. 77), ha-
veria a "impossibilidade do apagamento do signo, pela ausência do
recalque; ou, em outras palavras, à holófrase constituída pela não
separação entre S1 e S2, que mantém alguns significantes no registro
do real, não remetendo a n e n h u m a p o s s i b i l i d a d e s i m b o l i z a d o r a ,
mas, pelo contrário, a um buraco, desencadeador da psicose". O
Outro deixa de ser o lugar de inversão da mensagem, e o sujeito
depara com u m a significação que lhe é d i r i g i d a , mas que não se
remete a nenhuma outra significação, revelando-se incompreensível,
estranha. Essa significação, por não se concluir, aparece na realidade
de maneira que se repete incessantemente. Então, teria havido, no
j o g o do Fort! Da!, u m a falha nesta s i m b o l i z a ç ã o p r i m o r d i a l e
forclusão do Nome-do-Pai no lugar vendo ligações n u m a rede de signifi-
do Outro pelo fracasso da metáfora cações (significação m ú l t i p l a dos sig-
paterna. Esta idéia é muito pertinente nos). R i c h a r d se p o s i c i o n o u ativa-
ao caso em questão, pois o discurso mente para poder simbolizar a falta.
de R i c h a r d evidencia a falha justa- É a condição que permite antecipar
mente no momento de separação su- as ações, a evolução da escritura pela
jeito/objeto e no acesso à linguagem. característica própria de substituição
e a revisão de sua posição especular,
colocando-se como objeto ao olhar
do outro.
DA LETRA A O O r e c o n h e c i m e n t o no espelho
está c o n d i c i o n a d o à i n s c r i ç ã o de
SIGNIFICANCE Richard no campo do Outro. Pode-
m o s p e n s a r q u e p a r a ele e x i s t e o
Essa falha p r i m o r d i a l no regis- O u t r o p a r a o q u a l d i r i g e suas de-
tro do simbólico leva ao fracasso na m a n d a s . Para Lacan ( 1 9 6 4 ) , c i t a d o
s i m b o l i z a ç ã o do objeto e na cober- por B e r n a r d i n o ( 2 0 0 0 ) , q u a n d o o
t u r a i m a g i n á r i a do real. Há a im- sujeito faz u m a d e m a n d a ao Outro,
pressão de que, até o i n í c i o do tra- ele se revela como faltante, confron-
tamento, Richard apresentava u m dis- tando-se com o enigma deste desejo:
curso predominantemente metoními¬ "Ele m e d i z i s s o , m a s o q u e ele
co, pela negação da dialética, e por q u e r ? ( c h è vuoi?)" Ao decifrar o
isso a i m p o s s i b i l i d a d e de enxergar enigma oferecendo-se como resposta,
os vários aspectos do objeto, ao mes- ele a n t e c i p a sua p r ó p r i a falta e se
mo tempo. pergunta: "Pode ele me perder?"
O jogo do Fort! Da! permitiu a Seu corpo passou a ter uma po-
R i c h a r d a u t i l i z a ç ã o de u m objeto sição significante, a qual faz questão
concreto c o m o suporte i m a g i n á r i o sobre o que pode significar para o
do objeto a, que oferecesse sustento outro; o desejo do sujeito como de-
ao significante. As brincadeiras e os sejo do Outro enquanto referência a
brinquedos em formato circular são p a r t i r da q u a l p o d e se o l h a r p a r a
utilizados com propriedade dialética m o l d a r seu eu i d e a l . As distorções
de d e s l i z a m e n t o : a p r o x i m a r / a f a s t a r , em sua imagem corporal (corpo em
i r / v o l t a r , aparecer/desaparecer. Esta pedaços) a c o m p a n h a m as distorções
r e p e t i ç ã o da a ç ã o é m o v i d a p e l o na sua maneira de representar a rea-
gozo que se realiza no significante. lidade. As mudanças na representação
O jogo propõe a descontinuidade, e do espaço da realidade alteraram sua
é o convite à erotização, à forma de representar o corpo. A se-
pulsionalização do campo (referente paração entre gozo e campo do Ou-
ao s e m i n á r i o proferido por Alfredo tro instaurou u m sujeito d i v i d i d o e
J e r u s a l i n s k y na Lugar de V i d a , na um corpo desejante.
USP, em 1999). O sujeito advém da operação de
O tratamento tem favorecido a corte na língua materna, que respon-
aproximação do significante, promo- de à suplência da falta de harmonia,
ou seja, à ausência de relação. Por- Podemos afirmar que, para Richard,
tanto, ele nasce da falta constituída a escritura ofereceu suporte ao pen-
pela ausência. A simbolização impli- samento e estabilização entre signifi-
ca, n e c e s s a r i a m e n t e , o s a c r i f í c i o , a cado e significante. Os registros do
morte da Coisa (Das Ding), para as- real e simbólico encontraram suporte
sim o sujeito poder desejar. na escrita e na palavra, como função
Lefort ( 1 9 8 3 - 8 ) p r o p õ e c o m o de amarração.
função do Nome-do-Pai a possibili- Segundo Bernardino (2000, pp.
d a d e de ter u m c o r p o pelo O u t r o 70-1), "Lacan descreve a trajetória de
no s i g n i f i c a n t e . A f o r c l u s ã o do uma escrição diante do Real a partir
Nome-do-Pai i m p l i c a r i a a separação de um gesto que se impõe como tra-
entre o real do corpo e o ços do Outro - para uma inscrição -
significante do O u t r o . Haveria pas- e n t ã o s i g n i f i c a n t e , s i m b ó l i c a - do
sagem do gozo enquanto única rela- que resultaria uma escrita. São descri-
ção com o corpo para sua interdi- tos aí 2 tempos: u m p r i m e i r o , real,
ção pela palavra. em que o sujeito, n u m processo de
Apesar dos evidentes recursos de antecipação imaginária, será levado ao
fala, o discurso de R i c h a r d não se s i m b ó l i c o . Na borda do s i m b ó l i c o ,
apresentava encadeado, mas desligado está a letra já c o m o 'efeito de u m
de sentido. A passagem da letra ao d i s c u r s o ' . O s e g u n d o t e m p o é, en-
significante, ou seja, o progresso da tão, propriamente simbólico, em que
s i m b o l i z a ç ã o i m p l i c o u a revisão da da junção da letra com o significante
posição especular, fundando um não- haveria um suporte material para
saber e um sujeito desejante em bus- este ú l t i m o , t o m a d o já da l i n g u a -
ca do saber. É u m novo c a m i n h o a gem. É neste m o m e n t o que o
sua constituição como sujeito, afas- significante se dobra às leis da lin-
tando-se do gozo do Outro. A letra guagem: castração, pois. Haveria, en-
perdeu a consistência imaginária, e a tão, uma escrita lógica, impossível de
língua ganhou em extensão simbóli- ser t r a d u z i d a , p o r q u e p r i m e i r a . A
ca. A g o r a , a letra serve de suporte i n s c r i ç ã o do sujeito na l i n g u a g e m
para o seu dizer (referente ao semi- dar-se-ia neste trajeto do impossível
n á r i o proferido por Alfredo Jerusa- do gozo i m p l i c a d o nesta e s c r i ç ã o ,
linsky, na USP, em 2000). Os efeitos sofreria a operação de castração, para
desta mudança aparecem no desloca- chegar a u m a significação possível.
m e n t o da h i p e r c i n e s e para o enri- Assim, entre o gozo e o saber a le-
q u e c i m e n t o do discurso, ou seja, o tra faria o litoral".
d e s l o c a m e n t o da p o s i ç ã o de g o z o O desejo de saber parte da de-
p a r a a p o s i ç ã o de l e t r a , o q u e o m a n d a de R i c h a r d em saber sobre
leva a "brincar" com ela, modifican- sua origem, e as brincadeiras presen¬
do sua significação e sentido, n u m tificam sua fantasmática, marcada por
j o g o da s u b s t i t u i ç ã o e de d e s l i z a - e l e m e n t o s de f i l i a ç ã o , s e x u a ç ã o e
m e n t o da cadeia como organizador
identificação. É no trajeto deste tra-
de significantes, abrindo espaço para
tamento, por meio da transferência,
o jogo das metáforas e m e t o n í m i a s .
q u e ele tem a t r i b u í d o s e n t i d o às
marcas da sua história. Kupfer deixa ber para que ele possa se a p r o p r i a r
isso muito claro quando afirma que, do saber do outro.
"se alguém deseja saber sobre o dese- A inclusão de Richard também
jo do O u t r o , é p o r q u e p e n s a , de promoveu efeitos de mudança, prova-
modo imaginário, lá encontrar a cha- v e l m e n t e p o r q u e as outras crianças
ve que abre as p o r t a s do desejo e ofereceram oportunidades, "às vezes
do saber i n c o n s c i e n t e s do p r ó p r i o pela via do mimetismo, às vezes pela
sujeito em questão". E acrescenta que via da identificação, de tomar alguns
" u m c o n t e ú d o a p r e n d i d o só fará traços circulantes no discurso grupai
sentido para a l g u é m caso esse con- para a r t i c u l a r formas de s i m b o l i z a -
teúdo se relacione, remeta, conjugue- ção, metáforas não paternas, que lhe
se, com sua verdade inconsciente (...) p e r m i t a m p a r t i c i p a r da v i d a social
Seria necessário que aquele conteúdo de u m modo um pouco mais plásti-
aprendido lembrasse o objeto perdi- co. Embora as significações possam
do, estivesse em uma relação metoní¬ c o n t i n u a r determinadas pela forclu-
mica com ele" (1990, pp. 112 e 187). são, esse c o n t a t o com u m m u n d o
significante que funciona na referên-
cia a u m pai (seja lá qual for) parece
f u n c i o n a r , nas c r i a n ç a s p s i c ó t i c a s ,
A ESCOLA E O SABER como uma janela de luz aberta nessas
trevas exteriores em que foi lançado
As intervenções clínicas criaram a q u e l e s i g n i f i c a n t e p r i m o r d i a l que
as condições para que R i c h a r d pu- fora rechaçado" (referente ao seminá-
desse se beneficiar da convivência es- rio proferido por Alfredo Jerusa-
colar, mas a inclusão efetiva permi- linsky, na USP, 1996).
tiu a ele a p o s s i b i l i d a d e de m a i o r É curioso perceber, nesse caso, o
circulação social, pautando sua ação que Lacan (1956) pôde confirmar em
e m b u s c a do r e c o n h e c i m e n t o n o seus e s t u d o s sobre o i n c o n s c i e n t e
Outro, assim c o m p a r t i l h a n d o o dis- como o discurso do Outro e o auto-
curso s o c i a l . A Escola surge c o m o matismo de repetição. O discurso re-
alternativa às suas questões, apresenta- pete o que o sintoma repete confor-
das em outro contexto. me o momento da cadeia significante
A c o n q u i s t a da escrita carrega que percorre os sujeitos. No caso em
consigo a propriedade de chamá-lo a questão, M a r t a o c u p o u o l u g a r da
responder ao ideal e à lei, n u m lu- mãe biológica ao deixá-lo em adapta-
gar de reconhecimento social, como ção durante o processo de i n c l u s ã o
é a Escola. As n o r m a s estabelecidas na n o v a / o u t r a escola, assim como a
por ela dizem respeito ao que é con- psicopedagoga t a m b é m ocupou este
vencional e reconhecido socialmente, lugar ao acompanhá-lo na transição
sobre as diferenças e regras de u m a para o novo l u g a r , e d e s l i g á - l o do
instituição. O educador pode ajudá- ambiente conhecido. O lugar de Ri-
lo a constituir novas metáforas, ofe- chard se revelou c o m o o l u g a r do
recendo sentido aos seus enunciados. estrangeiro; u m "estranho no n i n h o "
Ao mesmo tempo, supor-lhe u m sa- para a família e para a escola. •
2 Lacan, J . (1949). O estádio do espelho
CRUZANDO RAIOS como formador da f u n ç ã o do Eu. In
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São P a u l o , SP. Recebido em outubro/2000

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