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Almeida Faria

O CONQUISTADOR
a Elisabeth Ambras
e Andreas Thalmayr
"O romance mais estimulante do ano foi O Conquistador, de
Almeida Faria, um dos melhores romancistas do Portugal actual.
A ambivalência semântica do título /"Conquistador/Sedutor/" é a
chave para a compreensão de uma complexa história de mitologias
e auto-ilusÕes nacionais. Marcado pelo destino, e através de
várias fases da experiência erótica, o herói alcança um
conhecimento que desafia a imaginação do leitor. Escrita com
verve e humor, a narrativa ascende a um cume inédito até hoje na
ficção portuguesa. O Conquistador é uma fábula excepcionalmente
impressionante sobre a descoberta do eu e da consciência da
condição humana, conseguida pela via do erotismo."

Luís de Sousa Rebelo,


Capítulo 1

Acreditei durante muito tempo ter vindo ao mundo de um modo


diferente de toda a gente. Foi minha avó Catarina - e as avós
nunca mentem - quem me meteu esta ideia na cabeça. Costumava
contar-me que, num dia de inverno, de manhã cedo, apesar do
nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga
apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a
cabeça, as pernas e os braços de fora.
Como testemunhas presenciais minha avó citava um cavaleiro
maneta, mestre equestre, que para ali ia montar acompanhado pelos
seus três peÕes de brega, recrutados entre os mais aparvalhados
das aldeias. Eles e o faroleiro assistiram estremunhados ao
estranhíssimo espectáculo. E os cinco disputaram entre si quem iria ficar comigo.
A meio da discussão foram atacados por uma cobra-marinha que estava a
guardar-me. Mas João de Castro, com a lança que lhe servia para
espetar os polvos entre as rochas, cortou à cobra monstruosa á
cabeçorra diabólica, assim conquistando o direito à minha posse.
Este faroleiro, de aqui em diante meu pai, vivia com a mulher,
Joana Correia de Castro, no cabo da Roca, e por não terem filhos
lhe interessava ficar com o enjeitado, quase normal uma vez saído
da casca. E lá me levou, ora ao colo ora às costas, por atalhos
e a corta-mato, até às pedregosas alturas da Roca, na esperança
de não encontrar ninguém mais, para não ser obrigado a explicar
quem era a criança a chorar esfomeada. Nunca na vida meu pai
desmentiria a sogra, que não lhe perdoava a pobreza nem o ter-lhe
roubado a única filha, três vezes mais nova que ele. E Joana,
minha mãe para todos os efeitos, deve ter gostado desse
filho-mistério que primeiro a assustou porque tinha seis dedos
no pé direito, e logo a comoveu por vir roxo de frio, mal
embrulhado numa capa impermeável.
Por muito que meus pais receassem irritar os ânimos difíceis
de Catarina se pusessem em causa o seu relato, não compreendo que
o não fizessem mais tarde, caso fosse outra a verdade. Sempre
subscreveram a versão da minha avó, e aos poucos me acostumei a
ser uma ave rara.
Na véspera do meu nascimento caíra sobre a serra de Sintra a
tempestade mais tremenda de que as pessoas se lembram. A aurora
chegara enrolada em nimbos baixos, tão carregados de cúmulos em
forma de couve-flor de chumbo, que nunca, em muitos anos de
embarcado, meu pai observara tal espessura de nuvens, tal secura
de trovÕes confirmando o rifão: se trovão seco no céu reboa,
tempo violento nos apregoa. João de Castro era um repositório
destas regras rimadas, de teorias proverbiais com que explicava
as estranhezas que rodearam o dia memorável: relâmpagos ao norte
e vento forte, se do sul vem, chuva também. Mas não foi chuva o
que veio, foi uma catarata caída do firmamento, um entornar de
aéreas águas sobre a terra e o mar já inchado do furor das vagas.
O horizonte desapareceu completamente, uma escuridão de estanho
esfumado avançara dos lados do Norte de áfrica à velocidade de
um tornado, atroando tudo com o barulho de todos os bombos e
tambores do universo. Minha mãe garantia que três vezes a terra
tremera. E o meu sisudo pai, com o seu fraco por filosofar,
opinava que naqueles momentos a Serra era um ventre de grávida
percorrido pelos abalos que antecedem o parto. Uns uivos surdos,
curtos, seguidos de outro mais demorado, desvairaram os animais
das vizinhanças, lançaram o pânico entre os humanos que viram
telhas e tectos abrindo, paredes estalando, soalhos rachando ou
incendiando-se quando as brasas das lareiras se espalharam, quando
a fraca chama das velas de repente pegou fogo a panos que estavam
perto, quando as chaminés de vidro dos candeeiros a petróleo
explodiram estilhaçadas. Houve quem corresse para fora de casa,
preferindo o dilúvio ao estoirar dos telhados. O último estertor
fora o pior, e não faltou quem se preparasse para o fim do mundo.
Propensa a descortinar correspondências entre o ramerrão da
sua vida e os portentos do Testamento Antigo, também Joana
Correia de Castro se convenceu de que aquilo não era um dilúvio
qualquer, era o Dilúvio a valer. Anos depois, sempre que eu
insistia em voltar a ouvir o sucedido, tintim por tintim ou com
variaçÕes mínimas, ainda os seus dons efabulativos conseguiam
transmitir-me o pavor que sentira. Da mãe herdara minha mãe um
gosto desmesurado pelas letras sagradas. O único livro que havia
lá por casa, muito manuseado, era o Breviário da Família e do
Lar, de dura capa escura que lhe dava um ar de solenidade. Não
me surpreendi por isso ao descobrir que Joana condimentava de
reminiscências bíblicas as suas ousadas comparaçÕes da trovoada
com comportas imaginárias e açudes escancarados que de súbito
inundassem quintas e pomares em redor do farol da Roca e por aí
fora, como se os longos abismos, como se os lagos submersos que
armazenam as ardentes águas dos infernos inexplicavelmente
tivessem crescido a ponto de rebentarem com as matrizes naturais,
com as fontes e veios e nascentes cujo caudal se foi juntar à
chuva que caía sem cessar.
Muitas vezes, hoje mesmo, os sonhos me trazem imagens da
catástrofe. Sinto arrepios ao evocar as circunstâncias que
precederam e que de certo modo predisseram o instante em que vi
a luz do dia.
Sobre a hora do almoço desse dezanove de janeiro, o mar
malhava contra os penhascos do Cabo, e a espuma chegava às
janelas das casas dos faroleiros, que à cautela tinham ligado já
um dos geradores e os compressores de ar das sereias, como alerta
máximo. O pior viria lá para a tarde, quando as trevas
antecipadas impediram de perceber a extensão das enxurradas. Na
cerração da noite as bátegas batidas por rabanadas de vento
arrancaram grandes árvores que as levadas arrastavam contra as
pontes de pedra, em pouco tempo destroçadas, arrasando então tudo
à volta, currais e gado, carros e carroças. Até dois ou três
velhos, levados na torrente, desapareceram sem deixar rasto. Os
colossais tonéis de madeira da Adega Regional, apesar de bem
cheios e bem arrumados, foram arremessados pelas águas contra os
portÕes altos, os gonzos despregaram-se, os portÕes cederam,
pipas e tonéis rolaram várzea fora, ficaram enterrados no areão
da Praia das Maçãs no meio do entulho de troncos partidos,
tábuas, terra da Serra e lixarada.
Toda a noite o cavo ronco do rebentar das ondas abafara
regularmente os avisos das sereias. As águas engrossadas
derrubaram os muros de pedras sobrepostas entre courelas e
hortas. Embora a maior parte dos cursos desmesurados fosse
lançada no mar, alguns formaram represas e charcos que a luz
esbranquiçada dos sinais do Farol vagamente iluminava. Meu pai
fez nessa noite o seu quarto de quatro horas, mas de madrugada
não se foi deitar, ficou à espera da torna da manhã. E, assim que
começou a clarear, não viu razão para alterar o seu programa
habitual. Em dias de folga costumava ir pescar; ou, se a pesca
não desse e se a maré a isso se prestasse, procurava polvos
escondidos nas rochas das praias próximas. Porém, naquele vinte
de janeiro, naquela derradeira madrugada do signo de Capricórnio,
era provável que, para além da mania da pesca, o movesse
principalmente a curiosidade em verificar os estragos causados
pelo temporal.
As veredas abertas pelos pescadores na falésia transbordavam
em cascatas de lodo e lamaçal. Meu pai caminhava com cuidado a
cada passo, parando de quando em quando para estudar a melhor
maneira de alcançar as ribanceiras mais secas e menos inclinadas
sobre a Praia. A ribeira inundara a estrada junto ao vale,
cavando um estuário na areia onde a maré já vazava. Arena não
faltava para as faenas fantásticas daquele cavaleiro que se
tornaria meu arauto. Tanto as descriçÕes de meu pai como as do
cavaleiro tauromáquico concordavam no aspecto apocalíptico da
Praia, nos caminhos cortados, nas covas e barrancos e buracos,
nos cadáveres de bezerros e de vacas semi-soterrados, num cavalo morto, de patas
para o ar e ventre inchado, de uma brancura baça, entre bocados desbotados de
argamassa contra o paredão parcialmente destruído, coberto de
água parda. Vindas do mar, lufadas de névoa avançavam em direcção
à Serra, como um exército desordenado recuando em debandada. Este espectáculo
criou nos presentes, e ignoro se em meu pai, a convicção de que não
seria casual a coincidência de el-rei D. Sebastião e eu termos
vindo ao mundo a vinte de janeiro, dia do santo do mesmo nome.
Apoiando-se em tais factos, o cavaleiro Alcides de Carvalho pôs
a circular a lenda do meu nascimento. Quando cresci e percebi que
algo se esperava de mim, preferi, por instinto, fingir que não
era nada comigo. Só muito mais tarde comecei a interrogar-me,
como agora, quando olho aqui de cima, da Peninha, este mar hoje
coberto de tiras de neblina.
Sento-me diante desta paisagem, contemplo esta teimosa
natureza idêntica a si mesma e indiferente aos homens tão
mutáveis. Uma espécie de paz me faz aceitar quem quer que eu
seja, como sou, sem mais. Se reflicto, logo as questÕes voltam
a galope, mais assustadas pela sua nenhuma utilidade. Vá lá, digo
de mim para mim, vê se te acalmas. Que te importam as diferenças
físicas, por vária gente notadas, em relação aos pais que te
geraram, ou que só te adoptaram? Que interessam parecenças
dessas? Que teus pais tossem morenos, altos, de feiçÕes e narizes compridos,
enquanto tu és louro, entroncado, de olhos claros, curto
o nariz, redonda a cara, a boca de carnudos lábios, o
debaixo descaído como o de Catarina - que valor terá isso? Com
tua avó és vagamente parecido, no feitio complicado, na
imaginação que perde o pé à realidade. Mas nem estas poucas
semelhanças garantem quaisquer laços de sangue. Ela é sólida,
inabalável, ombruda e de altivo porte, mulher-homem, salvo na
fragilidade por detrás do olhar. O desdém que mostrava pela gente
metia-me tal respeito que, na infância, não conseguia olhá-la de
frente. Parece ter tido um caracter oposto ao do marido. Como as
razÕes amorosas não seguem as leis da lógica, viveram um
casamento sem história, ou seja, feliz.
Não conheci meu avô, que se chamava João como meu pai. João
Correia, para ser mais exacto. Sei que era irreverente e ágil nas
piadas, de um humor imparável, sempre disposto a rir e a fazer
rir. Deixou uma auréola de pandego e versado em todos os géneros
de farras. Ficavam famosas as festas em que ele convidava ou era
convidado, a avaliar pelas mitológicas peripécias de que me
restam ecos. Num jantar em sua casa, um amigo elogiou-lhe uma vez
a gravata de seda às riscas. Logo João se levantou da mesa, foi
à cozinha e, cinco ou dez minutos depois, voltou com uma omeleta
impecável, tendo dentro a gravata cortada aos
bocados.
Suponho que o férreo temperamento da mulher lhe terá acentuado
a vocação boémia. Quando ele voltava de madrugada, bem bebido e
excessivamente bem-educado, porque o vinho o tornava refinado,
Catarina escondia a sua ira por detrás das mansas palavras, nessa
manhã que as mulheres de árabe ancestralidade usam com suma arte.
Ela própria me diria, anos mais tarde, quanto se orgulhava do
domínio que exerceu sobre o marido, e me recomendava cautela para
que não me acontecesse o mesmo, se caísse na asneira de casar.
Expliquei-lhe então que as minhas pulsÕes não me permitiriam
dedicar-me a uma mulher apenas, e nunca em regime exclusivo. Aí
recebi o seu beneplácito, com alguns conselhos práticos.
Esta avó Catarina viria a ser decisiva na minha vida. Desde
que me disse como nasci, devo tê-la considerado uma deusa
tutelar. Aos quinze anos e nove meses passei a morar em sua casa,
o que nos aproximou cada vez mais. Controladora dos meus
prematuros namoros, assim se indemnizava pelas libertinagens do
seu Falecido. Não que o meu aspecto físico ou a minha índole
introvertida me tornassem um símile desse avô semimítico, que só
vi em fotografias de família: olhos azul-escuros e vivaços,
estatura meã, o ventre testemunhando os abusos da mesa e do
álcool, têmporas cedo esbranquiçadas, orelhas agigantadas,
atentas à música do mundo que ele tanto amava. No fundo dos seus
olhos transparecia uma sombra qualquer, quem sabe se
pressentimento da morte precoce, a onze de junho de mil
novecentos e cinquenta e cinco, dia de São Barnabé; ou pena de
deixar a vida que lhe foi generosa e leve. A brincar, ganhava
dinheiro e amizades. Uma vez, subindo de carro a Rua do Carmo,
vendeu o seu descapotável a um amigo que, também de automóvel,
descia no outro sentido. O assunto ficou arrumado em três
penadas, sem que nenhum deles se apeasse, com a segurança que
transforma em vencedores aqueles que em si confiam.
Ao contrário de meu avô, a incerteza é mais forte em mim. E
de boémio pouco tenho. Em comum, só uma ambígua atracção pelo
desconhecido, e o gosto pelo risco. Gosto a que minha mãe também
cedeu, ao fugir de casa com um marinheiro capaz de ser seu pai.
Essa traição ao amor paterno terá levado o coração do meu avô a
desfazer-se lentamente, até parar por desistência. Tinha eu ano
e meio quando ele morreu. Recordo apenas, vagamente, a teimosa
tristeza de minha mãe, que passava dias sem falar, fechada sobre
si, mais entregue ao luto que a própria Catarina, a qual, quando
nos visitava, nunca vinha de preto. Assim que a avó chegava, o
mundo mudava de cor. Dormíamos no mesmo quarto, ela contava-me
histórias, passeava comigo, punha o meu mimo em dia. Sobretudo
procurava convencer-me a começar a falar. Porque os mutismos de
Joana encontraram em mim um zeloso discípulo: embora desse
mostras de entender o que me diziam, eu não pronunciava nem um
som, quanto mais uma palavra. Nas vãs tentativas de conversar
comigo, Catarina recorria à narrativa do meu aparecimento, por
ter esgotado todos os temas. Mas a verdade pode surgir da mentira
repetida. O meu bilhete de identidade marca a data de vinte de
janeiro de mil novecentos e cinquenta e quatro para o meu
nascimento, filho de João de Castro e de Joana Correia de Castro,
natural da freguesia de Colares, concelho de Sintra. Nome
completo: Sebastião Correia de Castro. Que nem me desagrada,
porque não soa mal.
A minha história preferida, e que não me cansava de ouvir, era
a daquele Rei com quem me orgulhava de partilhar o nome e que
nasceu quatro séculos certos, dia por dia, antes de mim. Hoje
concordo que nomeiem est omen. E Catarina achava que, por São
Sebastião ter sido mártir da Cristandade,
o rei meu homónimo se sentiu provavelmente obrigado a lançar-se
numa absurda batalha contra os árabes, em pleno deserto, no mês
de agosto, sob um sol de quarenta graus. Com arrepiantes
requintes, Catarina descrevia o massacre sofrido pelo luso
exército, que incluía milhares de mercenários vindos de
variados-países. Vendo-me mortificado por tão terrível sina, a
avó dava-me alento dizendo que um dia o Rei voltaria, numa certa
madrugada, no meio da neblina.
Desde aí gosto de acordar em manhãs de nevoeiro. Sinto-me
protegido da nitidez excessiva das formas e dos ruídos, que me
chegam abafados como debaixo de um lençol. Assaltado pelo
supersticioso receio de não viver mais que D. Sebastião, e
mergulhado em súbita melancolia perante a precariedade da vida,
refugiei-me há um mês, durante o Natal do ano passado, na ermida
da Peninha. Os primeiros solitários escolheram este sítio oito
séculos atrás. Percebo que o fizessem. Diz-se que o fundador do
eremitério aguentou, metido numa gruta, isolado no alto da Serra,
entre a aspereza dos penedos, trinta e cinco anos seguidos. Não
pretendo atingir tal meta. Só quero repensar, até ao ameaçador
mês de agosto, o que fiz e não fiz de mim.
Destes cumes contemplo os lugares da minha meninice, a Foz do
Falcão perdida na névoa, manchas brancas de casas, um telhado
caiado lá para os lados das Azenhas do Mar. Em dias claros vê-se
a Pedra de Alvidrar saindo do mar em que me perco a olhar.
Comecei a reconstruir uma antiga pousada de peregrinos, para nela
atravessar a invernia. O trabalho manual fatiga-me e faz esquecer
outros mais agradáveis, em que porém suei também, aperfeiçoando
as minhas artes. De nada mais preciso neste vinte de janeiro de
mil novecentos e setenta e oito, dia do meu vigésimo quarto
aniversário.
Capítulo 2

Na nossa modesta casa do Farol, mesmo o meu berço era


artesanal. Sobre a base e as rodas de um triciclo estragado, nas
quais assentava uma alcofa de esparto e uma capota improvisada,
fabricou meu pai um ready-made surreal, a que nem faltava um
peixe de madeira pendurado no tejadilho, perpetuum mobile nadando
no ar à mais ligeira brisa, ou ao meu espernear. à paterna
invenção devo muitas viagens por mares imaginários, sobrevoados
por peixes-voadores e percorridos por extravagantes bichos,
perdidos em profundos precipícios, entre turbulências e
redemoinhos.
No meu primeiro dia de anos, meu pai ofereceu-me um brinquedo
ainda mais bizarro, um pássaro munido de um minimotor que lhe
movia os vários pares de asas. Suspenso do tecto do quarto por
um quase imperceptível fio de pesca, o volátil adejava agitado,
desajeitado, como se a cada instante fosse precipitar-se. Não
caiu, mas depressa se enredou no fio, e assim se estragou e
estropiou esse portento do paterno talento.
Melhor prenda tive por volta do meu segundo aniversário,
quando, de visita ao Farol, entrou em nossa casa um casal de
liliputianos, reformados do circo e fixados na Azóia, a aldeia
mais próxima. Como nomes artísticos escolheram Dora
Bela e D. Rodrigo. Formavam um par pícaro, e
quebravam a monotonia destes sítios. Armavam
arraiais de Santo António por tudo e por nada,
com balÕes e lanternas de papel encarnado, a vida transformada
em paródia diária. Numa das minhas recordaçÕes mais antigas surge
um presente deles, um balão azul com uma estrela vermelha,
rodeada de pintalgada poeira. Deve datar dessa época o meu namoro
com Dora Bela, meio-soprano de um metro. "Namoro" será exagero.
Sei que me sentia bem sempre que ela saltitava à
volta do berço e me embalava em movimentos
semelhantes às ondas da Adraga, movimentos
que não me enjoavam nada - pelo contrário! As
volúpias aumentavam assim que ela se debruçava
por cima de mim, trilando árias afrodisíacas. No
meu corpo operavam-se mudanças nada desagradáveis, as quais
abruptamente terminaram no dia em que D. Rodrigo, esse
desmancha-prazeres, se aproximou do meu berço e esbugalhou os
olhos ao ver os erectivos resultados provocados pelos feitiços
da sua Bela. Fez um escândalo que mais ninguém entendeu, e assim
desapareceu da minha vida a mulher-miniatura e o seu mínimo
marido. Mas nunca esqueci as cançÕes com carícias desta ardorosa
Dora que tão cedo trouxe os meus dotes à luz do dia.
A sua saída teve em mim um efeito de eclipse. O manto da
apatia voltou a cobrir a minha meninice, nada de excepcional me
sucedeu, ou de nada me lembro. Chegam até mim cheiros longínquos,
um fedor forte a óleo dos motores do Farol, a creosote ou
creolina, a coisas de alcatrão, a líquidos para limpar a
maquinaria. Tomei gosto às viagens nesse barco parado que era a
nossa casa, presa à poente extremidade deste continente, à costa
alcantilada, calva do lado sul e nos recortes de pedra a pique
ou em declive para as pequenas baías e as agitadas fraldas do
mar.
Se a comparo com o meu abrigo na Peninha, a casa do Farol era
quase luxuosa. Entrávamos pela divisão principal, virada a sul,
que servia de sala de estar e de visitas, onde nos dias de festa
se comia e se cumpria o dever de ser feliz. A cozinha, defronte
da entrada, apesar de fustigada pela ventania, tinha o conforto
relativo do lume da lareira, do forno arcaico em que minha mãe
cozia pão ou cozinhava um assado. O fogo, para amornar a água,
ferver o leite, fazer as sopas, acendia-se num alto poial diante
da porta do forno, com o inconveniente de não servir para aquecer
os pés nos inóspitos invernos. Por isso recorríamos à mesa da
braseira, junto à qual abancávamos, ou vindo o vento, nesses
longuíssimos serÕes pré-televisivos. Graças aos geradores do
Farol, e à água trazida de uma mina na Serra até ali,
possuíamos o privilégio, único na região naquela época, da
canalização e da luz eléctrica. O nosso espartano estilo de vida,
porém, não permitia pensar noutros aquecimentos além das brasas
de pinho, de sobro ou de azinho, em quantidades cuidadosamente
controladas, para durarem o máximo.
O meu melhor resguardo contra o frio era a cama, de colchão
de algodão e grossas mantas. O quarto tinha pouco sol, mas pela
fresta virada a oeste entravam as cores do poente e, à noite, os
feixes de luz do Farol deslizavam em silêncio pelas paredes. Isso
me consolava, e o consolo era maior quando Catarina dormia numa
cama improvisada a meu lado e me trazia, antes de se deitar, um
caldo fumegante ou um leite atabafado e cheio de mel, para me
defender das nocturnas friezas. Assim eu adormecia como quem
entra no paraíso, e só sofria de madrugada, ao ir à casa de
banho, pomposo nome para um cubículo construído há um século, na
proto-história da higiene moderna. Lavava-me no lavatório
esmaltado, assente em armação de ferro, dessas com um balde em
baixo e a saboneteira na prateleira circular, a meio. Enfim havia
o trono da retrete de autoclismo junto ao tecto, na qual me
demorava nos invernos, aquecendo-me ao calor das próprias fezes.
Levava uma vida soturna e embotada. Até aos três anos não
articulava uma única palavra. Este atraso linguístico encontrou
em meu pai, nas vizinhas, nos respectivos maridos, tantas
leituras quantas as dos oráculos sibilinos. Houve quem garantisse
que eu beijara um espelho de algibeira que me emprestavam para
brincar, e criança que beije espelho fica muda para sempre.
Revelou-se falsa tal sabença, ainda que o meu incipiente
narcisismo lhe desse certas probabilidades de acertar. Não
querendo atribuir culpas a quem inadvertidamente me tivesse
deixado a sós com o espelho, meu pai opinava que eu tomara o bafo
de um gato vadio que andava por ali. Ora, é do conhecimento geral
que, se um bebé se aproxima do focinho de um bicho, se arrisca
a tatibitate.
Um dos faroleiros era do parecer que a minha mudez provinha
de me terem cortado as primeiras unhas à tesoura, e não com os
dentes como manda o preceito. Ao que minha mãe, mais instruída
que a vizinhança, ripostava protestando contra tal superstição
e contra o mau agoiro de já me chamarem o Miúdo Tartamudo. Nem
estava pelos ajustes quando as comadres quiseram usar das
mezinhas habituais em tais casos, mas acabou por concordar ante
a insistência de meu pai. E lá me deram banho em água passada por
cu lavado, uma vez que não nasci com o cu virado para a lua; e
me meteram num saco e me levaram às casas de três vizinhas
durante três dias consecutivos; e me fizeram atravessar sete
vezes a sala de entrada que, tendo duas portas, permitiria que
a corrente de ar desentupisse as cordas da glote; e mataram um
piolho da minha cabeça na asa de um cântaro de barro, remédio com
fama de nunca falhar; e me obrigaram a comer ovos-moles; e
rezaram muitos terços a Santa Clara preceptora e protectora da
linguagem, a quem minha mãe se dirigia já zangada:

Santa Clara vê se me consolas


olha o menino que tenho ao colo
que quer falar e não pode.

Perto do Pentecostes desentaramelou-se enfim a minha língua.


Estávamos, meus pais e eu, sentados à chaminé quando cabeceei de
repente e caí para diante, como se fosse aterrar de bruços nas
brasas. Minha mãe agarrou-me a tempo, impedindo que eu tombasse
desamparado e, na melhor das hipóteses, ficasse desfigurado. O
meu futuro teria sido outro, ou nulo, se numa fracção de segundo
os reflexos maternos não me salvassem do lume. Nesse mesmo
momento saiu da minha garganta um ruído esquisito, e vomitei uma
papa repulsiva, que caiu na lareira e ardeu logo ali num
pestilento estrugir verde de bílis, semelhante às alforrecas que
o mar atira à praia. Esta cena seria evocada vezes sem conta por
minha mãe, que atribuía aquilo ao Santo Espírito em luta contra
o Maligno.
A sua fé no Paracleto levava-a a rezar "magníficas", como por
cá chamavam ao Magnificat, e fora-se inflamando desde que
participava dos Impérios. Aqui perto, no Penedo, todos os anos
vinha sendo escolhido um rapazinho para Imperador do Santo
Espírito, e na festa das ígneas Línguas ele desfilaria, investido
de ceptro e manto e coroa, à frente da charanga e de um cortejo,
até ao adro da igreja, onde um bezerro era solto e morto à vista
de todos, para ser oferecido em bodo aos pobres e velhos e
tolhidos da freguesia. O meu dom do Verbo, aliás bem modesto, foi
para minha mãe sinal inequívoco daquela descida do Espírito que
paira sobre as águas e que é Senhor da Palavra. A sua convicção
seria confirmada por meu pai, que a seguir ao meu acidente
entrara de serviço e, ao subir ao Farol, reparara que uma grande
ave branca voava em volta dos holofotes cuja forte luz furava as
nuvens. E a ave girava devagar, vogava sem bater as asas, em
círculos concêntricos à volta do Cabo, sobre a nossa casa
transfigurada por uma brancura fora do normal. Bom conhecedor das
aves marinhas, o meu Velho garantia que aquela era diversa de
tudo no céu ou na terra, e que ao desaparecer a ocidente tornou
luminoso o nevoeiro, e que um sopro quente veio do sítio onde o
Sol se punha. Apesar de sempre céptico, meu pai correu a avisar
a mulher, e ambos ficaram longamente olhando o oceano passar do
violeta-imperial ao magenta.
Nunca minha avó aceitou a teoria do milagre em relação à
preguiçosa aparição da minha voz. Mais se inclinava para explicar
que, tendo eu vindo do mar, a água me entrara nos ouvidos e eu
não ouvia os outros falarem; ou que
engolira um bicho marinho que me enguiçara as cordas vocais.
A cronologia da minha infância nem sempre me surge nítida.
Julgo que a libertação da língua coincidiu com um período em que
tive tréguas dos pesadelos que me assombraram muitos sonos.
Segundo meus pais, muitas vezes eu acordava a berrar, como se
assaltado pelos diabos. Mas não eram diabos, eram homens que me
queriam estrangular, trespassar à espada, à lança ou à facada.
Quando agora fecho os olhos, no deserto deste ascético fevereiro,
regressam com violenta nitidez as lutas de dois gangs rivais que
mutuamente tentam liquidar-se. Num dos bandos abunda gente de
turbante, que pelos vistos me considera seu inimigo, não sei
porquê, nem conheço os meus inesperados aliados. Por palpites
distingo quem é quem, sob o sol e a poeirada que não me deixam
ver nada e me fazem vacilar de tonturas e vómitos.
Durante noites e noites seguidas, como num livro de muitos
capítulos, vinham até mim amostras do que será o inferno, se
existir. Mesmo que não exista, haverá um qualquer limbo, zona
turva de onde saem estes terrores não vividos, ou esquecidos.
Convencido de que uma ordem obscura se oculta sob o caos
nocturno, escapam-me as razÕes destes pavores: a carne queimada,
o cheiro a pó e a pólvora, o fumo escuro ardendo nos meus olhos,
o pânico da dor, um tipo de cara repugnante, coberta por pústulas
e úlceras que lhe dão o aspecto de um lobo com febre. A
recorrência deste sonho tornou-se para mim mais inquietante ao
encontrar, anos mais tarde, um marroquino que eu juraria ter
conhecido e que sofria de lupus eritematosus, moléstia que tanto
aparece na pele como pode concentrar-se num órgão, e este, como
uma bomba, explode.
Os súcubos e íncubos que saltam de subterrâneos sinistros e
de criptas, de túmulos e prisÕes de negras aranhas espreitando
nos cantos, esperando que eu adormeça para me morderem; as flores
pútridas, infestadas por fungos, que me crescem na boca e me
sufocam; tudo isso se desvaneceu durante uns tempos, para ir
atormentar outras vítimas, talvez. Livre destas indesejáveis
companhias, passei a despertar mais tranquilo, encorajado pelo
lusco-fusco matinal, aguardando imóvel, deitado de costas; a
chegada da luz ainda aguada, enquanto preguiçosamente me
esforçava por distinguir os objectos do quarto, à claridade
indecisa entre sombra ou cinza. Na cama eu estava protegido das
rajadas do nortalto, de todos esses perigos que meus pais
empolavam e que lá fora me esperavam.
O outono em que comecei a frequentar a escola trouxe-me, além
da novidade, o alívio de deixar o mundo fechado do Farol. Por
sorte, Amélia, filha de outro faroleiro, era minha colega na
primeira classe. Juntos percorríamos todos os dias o comprido
caminho a pé até à Azóia, sob os ventos perpétuos e as
persistentes névoas. Também havia manhãs de sol intenso, com toda
a costa límpida, a norte até às Berlengas, a sul até ao cabo
Espichel. Mas o mau tempo é que me dava jeito, por me tornar
protector de Amélia.
Depois dos amores por Dora Bela, Amélia era a minha segunda
namorada, desta vez mais conforme com os sentimentos nobres.
Desde que fui declarado responsável pela sua segurança, ela
investiu-se para mim de uma dignidade que devia tornar intocável
a pequena pessoa posta à minha guarda. Mas tal função actuou ao
invés como estímulo para investigar tudo que em Amélia era
diferente e frágil.
A sua simples proximidade me dava vontade de cheirar, de
desvendar os seus segredos. Mesmo o visível tinha nela um
mistério que me deixava perplexo. Os olhos escureciam se não
havia sol, mudavam de tonalidade tão depressa como as suas birras
e alegrias. Pressenti que a constante transformação definia as
mulheres. O importante seria distinguir o que era modificação e
o que era permanência nelas. Amélia foi nisso a minha
indiciadora. Os beijos que eu lhe dava, e as cócegas que lhe
fazia se a apanhava distraída, sabiam-me a beijos e cócegas em
quem se fingia distraída, e esse inocente fingimento ainda me
comove.
Por não haver rapazes da minha idade no Farol, eu inventava
a maioria dos meus jogos. Nem sei se chame "jogos" às
fantasmagorias com que preenchia o nada da minha vida. Entre os
meus passatempos, aquele que mais me entretinha era o da Corte,
e consistia em criar, na minha cabeça, seres com um preciso
aspecto físico, com personalidades e nomes bem distintos, vindos
de longínquos países, expressando-se em línguas que eu imitava
em sons sem sentido. Não raras vezes falava alto com essa gente
imaginária, o que assustava minha mãe ao dar comigo em grandes
conversaçÕes com o invisível. Ela ficava em silêncio, inquieta
e incrédula, sem acertar no que dizer, benzendo-se, sussurrando
jesusmariajosés e outras bizarrices beatas, cujos arrazoados me
intrigavam.
A avó, pelo contrário, interpretava os meus espectáculos como
mais um certíssimo sinal de reencarnação predestinada. Sempre que
me apanhava em flagrante diálogo com duques e duquesas, condes
e condessas, marqueses e marquesas, Catarina corria a buscar
alguém da vizinhança para assistir à maravilha. Assim me
alcunharam de Rei da Roca, nome que, quando cresci e comecei a
gostar de dançar, deformei em Rei do Rock.
"Pequenino: malandro ou dançarino", dizia meu pai ao ver-me
possesso da dança de São Vito mal a rádio transmitia Rock Around
the Clock Tonight. Essa máxima foi-se tornando profética à medida
que eu cada vez me interessava mais pelos raros bailes dos
arredores. Na primeira festa carnavalesca em que participei,
tinha seis ou sete anos, dancei todo o tempo com Amélia. Valsas,
tangos e paso-dobles, então ainda na moda, serviram para
viajar em todos os sentidos entre as pernas dos adultos, ao longo
das improvisadas salas de baile dos bombeiros e dos terreiros das
feiras. Daí que ela fosse decretada minha namorada, coisa em que
acreditou e que levei, durante dois anos, muito a sério.
Principiei por descobrir com ela as delícias de fazer festas no
seu nariz fininho com o meu grosso nariz. Tais experiências nos
demoravam ao regressar das aulas, sempre que estava bom tempo e
eu a levava para fora da estrada, para vermos o mar, para
procurarmos ninhos de pássaros ou para qualquer estratagema
destinado a estarmos longe dos olhares. Os nossos jogos de
cócegas terminaram no dia em que, sem querer e sem saber, Amélia
me tocou naquela parte que desata a crescer sob certos efeitos.
De tal modo se assustou, que deu um grito e corou. E eu corei
também.
Nunca mais brincámos, e as nossas caminhadas tornaram-se um
suplício sem graça. Nos recreios já nem conversávamos. A minha
falta de à-vontade encheu-me de complexos e iria agravar-se se
não fosse a amizade dos dois maiores cábulas da classe, que
tiveram pena de tanta mazombice e vieram ter comigo. Talvez por
não estudarem, ou por não sentirem o apelo do saber, havia neles
mais disponibilidade que nos bem-comportados. Andavam a
especializar-se nos lados divertidos da vida, nas piadas e
partidas, nas inofensivas patifarias. Fora da inutilidade das
aulas é que eu aprendi nomes proibidos disto e daquilo,
geralmente "daquilo", e a partir daí imaginei com erros e
requintes as formas e feitios do que eu adivinhava sob a saia,
sob a camisa da nossa mestra, dona Justina. Desisti
definitivamente do namoro com Amélia, que ainda não tinha idade
para aquelas inchaçÕes peitorais que tanto me fascinavam.
Para não fazer triste figura impingi aos meus novos amigos
que, na primavera anterior, eu seduzira uma espanhola. A qual,
julgando-se sozinha na praia, se pusera em pêlo e não se
atrapalhara quando lhe apareci, e perguntou-me se eu queria
mostrar que era homem. Por supuesto, respondi, e ela dobrou-se
até as minhas bochechas ficarem presas entre os seus bamboleantes
seios, e o sangue pulsava-me nas orelhas e debaixo das calças,
ela ria e ria e naquela espanholada percebi que perguntava porque
é que eu não tirava a roupa também eu à rasca por nunca me ter
despido
diante de mulher além de minha mãe; pus me em tronco nu; ela
exigiu mais; quando enfim lhe fiz a vontade, admirou-se ao ver
uma coisa tamanha num puto tão novo. Não querendo desiludir a
expectativa do meu auditório entusiasmado, eu ia acrescentando
pormenores cada vez mais escabrosos. Graças a estas trapalhadas
tornei-me o mais popular da classe e logo de toda a fauna
masculina da escola, à qual antes quase nem falava. Com bocados
de anedotas que eu ouvia aos faroleiros, fui enriquecendo o meu
reportório. Como a malta sequiosa enfiava os longos barretes das
minhas aldrabices, ainda hoje é mistério para mim. O único
inconveniente foi ter-se firmado e confirmado a convicção de que
eu era a Reencarnação de Sebastião, o Rei da Roca. Sendo assim,
não admirava que eu soubesse mais que a maioria da rapaziada e
entendesse várias línguas, o que me ajudou a alargar a lista das
conquistas a outras visitantes estrangeiras, para que não
julgassem o Cabo só visitado por espanholas. Calhou bem, e daí
por diante todas as turistas fizeram parte dos meus feitos
fictícios, sempre na patriótica tarefa de defender a boa fama da
honra lusitana. Previ um futuro grandioso para mim. Se já tinha
sucesso com aventuras inventadas, como seria quando eu passasse
à prática?
Logo que a filial reputação chegou aos ouvidos do meu Velho,
ele ficou lisonjeado com tanta precocidade. Mas irritaram-no as
explicaçÕes disparatadas para justificar as minhas licenças e
malandrices: que a lua fora minha madrinha, que eu andaria sempre
aluado, não pensando senão em coisas carnais, só porque na noite
anterior ao meu baptismo eu olhara longamente a lua cheia; agora
seria tarde para me talharem o mau-olhado, e um lugar no inferno
já me estaria reservado.
Minha mãe fez tudo para me curar do mal da lua. Embora nem
sonhasse que desregramentos se divulgaram a meu respeito, pediu
aos seus santinhos que me livrassem da má madrinha que leva aos
labirintos da lascívia. Segura de ser atendida, ladainhava que
Deus me acrescentasse e o Demo arrebentasse e a Virgem Pura me
tirasse o quebranto lunar. Meu pai, em contrapartida, achava
preferível apelar a São Gonçalo, que me ajudaria a tratar das
moças e a dar-lhes bom galo.
Capítulo 3

Para meu desprazer, o meu corpo não mostrava pressa em


crescer. Sendo o mais baixo da classe, jamais consegui deixar a
primeira fila, o que me desesperava por assim não escapar ao olho
vivo de dona Justina. Na terceira classe esta fatalidade passou
a agradar-me, e tornei-me fiel frequentador das aulas a que
dantes procurava faltar. Chegava agora antes da hora e ficava
muito manso, meio basbaque, escutando cada frase, embevecido nos
suaves sorrisos da professora. O meu enlevo foi ao ponto de pedir
à minha mãe uma imagem de Santa Justina, que ela não conseguiu
arranjar, mas em compensação ofereceu-me uma piedosa Vida da
dita. Aí aprendi que sempre a Santa resistira às desonestas
propostas e às ameaças astuciosas de um certo Mago Cipriano que
a queria desonrar. Mas a virtude dela era tão forte, que o Mago
se converteu à fé católica. Perseguidos ambos, não
abjuraram. Meteram-nos então na cadeia, e depois numa caldeira,
cheia de cera, de óleo inflamado e de pez a ferver. Nem o calor
nem a fúria do fogo tinham sobre eles poder; achavam mesmo
refrescante a massa ardente. Foram enfim decapitados, sendo os
cadáveres expostos aos cães e à bicharada, e os ossos levados a
Roma para que Diocleciano os visse e saciasse assim a sua raiva.
Um dia exibi estes conhecimentos diante de dona Justina. E
aproveitei para lhe dar um piropo a propósito da justa medida do
seu nome, da proporção entre as três vogais e as quatro
consoantes, cuja soma dá o número sete, sinal da felicidade e dos
destinos raros. Não em vão se invocam os sete dias da criação,
os sete anos que Jacob serviu Raquel, as sete últimas palavras
de Cristo na Cruz, os sete pecados mortais, as sete portas de
Tebas, os sete muros que cercam a Cidade Celeste, as sete obras
de misericórdia, os sete andares do céu, os sete dons do Espírito
que são as sete lâmpadas ardentes e os sete cornos e os sete
olhos do Cordeiro, e os sete trovÕes alterosos sete vezes
soltando seus estrondos enormes, e as sete igrejas da ásia e os
sete combatentes contra a Besta de sete cabeças adornadas de
estupendos diademas, e as sete espadas desembainhadas dos sete
tenebrosos mensageiros da Morte, e os sete reis sentados sobre
as sete colinas de Roma, todos eles empenhados em espalhar pelo
planeta as sete pragas, e as sete vezes que minha mãe me fez
atravessar ao colo dela a divisão maior da nossa casa a fim de
me ajudar a libertar a voz pouco apressada, a minha voz desejosa
de louvar as sete maravilhas de Justina, maravilhas fatais e não
menores, em nada, que as sete maravilhas desta terra e que os
sete planetas e que as sete estrelas do grupo das Plêiades, e que
os sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjos
que rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas e um
a um desselarão os sete selos e verterão os sete cálices da ira
no Dia do juízo.
Tamanha erudição saída de uma cabeça leviana fê-la arregalar
os olhos de pasmo. O que me deu a ousadia de passar à questão que
me interessava: perguntei-lhe se todas as Justinas seguiam o
exemplo da Santa que preferiu o martírio aos contactos carnais.
"Mas eu não sou santa nenhuma, que é que tu julgas?", gracejou
a minha mestra. Longe de mim contradizê-la. Era chegado o momento
ideal para um olhar descarado, semelhante aos olhares que eu me
atribuía em mentirolas e fanfarronices que contava aos outros
rapazes. Com susto e surpresa meus, ela correspondeu com igual
descaramento, ou assim me pareceu. E a partir daí entrei em
delírio.
As pantominices que impingi aos colegas devem ter chegado aos
ouvidos da mestra. Talvez fosse fantasia, mas podia jurar que
dona Justina me olhava agora de maneira diferente. Afinal não me
enganei, como se provou naquele sábado do Verão de São Martinho
em que a encontrei numa das enseadas ao pé da Praia da Ursa, ao
fim da tarde, admirando o poente junto à linha do mar. Como esses
sítios eram cenário, as minhas conquistas mentidas, confiei na
familiaridade da paisagem para me ajudar na prova decisiva.
Não pretendo ter sido o sedutor. Seria porém simplista
armar-me em seduzido. A situação é que era sedutora em si, não
do género delicodoce ou xaroposo, antes do tipo rude e rijo. Há
lugares capazes de produzir profundas empatias, e esse era
seguramente um deles. Na falésia deserta uma árvore de tronco
encorpado resistia às rajadas, agarrada aos rochedos que a
cercavam. Justina não era, benza-a Deus, tão agreste quanto as
rochas de arestas afiadas, onde as colónias de mexilhão formavam
viveiros de facas. E o sítio dava ao grande momento um sabor
bravio e bárbaro.
Para não repetir aqueles preliminares que toda a gente está farta
de saber, começarei inmediatamente. Com espanto verifiquei que
esta Justina não era nada inexperiente. Não tirou as meias pretas
nem o soutien florido, sob o qual meti os dedos frios,
rapidamente repelidos. Protestando contra a má qualidade dos
serviços, ela indicou à minha boca o caminho até ao seio maior.
Para quem só mamara biberão, esta sensação era nova e
portentosa. Não me descalcei nem me despi, a fim de não espantar
Justina com o meu dedo extra nem me ensarilhar nos prosaísmos de
desabotoar o complicado fato-macaco e o resto da farpela que
minha mãe costurara. Retardando e travando se eu me precipitava,
obrigando-me a voltar ao princípio sempre que a minha beijoquice
deixava a desejar, Justina instigava-me a melhorar o teor do meu
trabalho. Até que as fintas a fatigaram e, quando eu já julgava
perdida a partida, ela mostrou-se disposta a consentir. Nesse
instante ouvi um silvo, e da árvore saiu uma horrenda cabeça de
homem com bigode e corpo de serpente. Pronto, pensei, estou
tramado. Afinal o meu confessor tinha razão. Deus vê tudo, até
a minha mão entre as coxas da mestra.
Justina não se intimidou, como se estivesse habituada às
apariçÕes e máscaras maléficas. Com a maior naturalidade, mandou
que não me assustasse, que aquele monstrozinho era a alma penada
do seu antigo marido. Não me convenci. Suspeitei que fosse, sem
tirar nem pôr, o hediondo fantasma do pecado que Catarina
frequentemente me descrevera, como se o conhecesse de ginjeira.
Fechei os olhos, rezei um padre-nosso e, despachado o "não nos
deixeis cair em tentação mas livrai-nos do Mal, ámen", a medo
espreitei a árvore. O bicho-careta enrolou-se sobre si mesmo à
maneira untuosa dos répteis, e desandou de vez. Assim que o
mostrengo se esfumou, procurei recuperar o terreno perdido. De
novo a minha mão direita subiu até às virilhas mestras, enquanto
a esquerda, mais desastrada, lhe segurava a não delgada cinta.
Lembrei-me, do lema paterno em relação à pesca: há que atirar
sempre a isca, e se o peixe não pega é preferível investir noutro
sítio, sem jamais desistir. Foi o que fiz, em sucessivas
tentativas, seguindo uma sabedoria piscatória que não se mostrou
das piores. Começou a resultar quando a nortada aumentou de
intensidade, desatando a farfalhar na areia, na árvore, abafando
os suspiros de Justina e os ruídos do meu acelerado respirar. Só
um Criador muito coca-bichinhos podia inventar a engenhosa
manigância de nos fazer mergulhar noutro corpo e tirar disso
deleites divinos.
Já o Farol varria de luz fria os amarelos-quentes e os
ocres-vermelhos do céu e do mar quando subimos embaraçados as
penedias. Ao entrar em casa, dei-me conta do sarilho em que
estava metido. Arranjei a desculpa de uma caçada aos pássaros.
Meus pais estranharam, uma vez que eu nem fisga tinha. Gaguejei
que fui com um rapaz, que ele tinha uma espingarda de pressão de ar.
Nessa noite quase não preguei olho. E durante todo o domingo
me debati entre a vontade de visitar Justina e o dever de cumprir
o combinado: nunca a ninguém contar nada, nunca ir procurá-la.
Segunda-feira cheguei mais cedo à escola, ofegante e abandonando
Amélia pelo caminho. Esperei Justina no pátio, ela esquivou-se
afirmando que nada se passara. Não querendo dar-me por vencido,
demorei-me por ali depois das aulas, pedi a Amélia que fosse
sozinha, que eu ficava na Azóia a estudar. Depois de todos
partirem dirigi-me a casa de Justina. Zangada, e olhando para os
lados, disse-me que entrasse, e que não me atrevesse a voltar à
luz do dia. Felizmente anoitecia já tão cedo, que as secretas
surtidas ficavam facilitadas. Justina partia antes de mim, eu
fingia-me atarefado em exercícios escolares, ou ficava fechado
nos lavabos, e esgueirava-me atrás dela pelas ruas da aldeia sem
vivalma. Por sorte, nunca mais vi o feioso focinho do seu defunto
marido.
Sempre que minha mãe me arrastava, em quinzenais domingos, à
missa na igreja da Ulgueira, eu lembrava Justina quando o padre
entoava "tomai e comei, este é o meu corpo, tomai e bebei, este
é o meu sangue". A minha religião era feita dos fluidos e
eflúvios, calores e tremores do corpo da professora, cujas
qualidades não me cansava de admirar. Devo-lhe muito. Devo-lhe
a noção de que, mesmo que algo se aprenda pela prática, para
esta, como para qualquer arte, já se nasce fadado. Mas nem os
fados nem as fadas bastam. É preciso que alguém nos desperte do
sono dos sentidos. Justina me ensinou a amar as mulheres,
afastando me para sempre dos monótonos convívios meramente
masculinos. Repugnava-me o modo abrutalhado com que a rapaziada
se referia às "vergonhas" das raparigas, reservando todos os
termos lisonjeiros para os órgãos viris. As metáforas
depreciativas, a racha, a fenda, a pássara, destinam-se talvez
a minimizar o medo ao desconhecido. O meu léxico sexual
adequava-se mais a coisas sagradas. E, à medida que aumentava a
minha adoração por Justina, aumentava a minha vergonha pelas
gabarolices, que incluíram a participação no despique do
mija-longe.
Em vésperas das férias da Páscoa os mais velhos da escola
organizaram um concurso de campeão na mijação. Segundo a nossa
ciência hidráulica, os melhores mijadores teriam a canalização
mais comprida: logo, quem aspergisse a maior distância,
ultrapassando metas de um, dois e três metros, seria o
proprietário da suprema aparelhagem. A ideia veio do Reguila, um
tipo expulso do seminário, que para esta solenidade se
paramentara com uma velha gabardina a que chamou Capa de
Asperges, desafinando, enquanto urinávamos, a antífona dos padres
ao lançarem água benta sobre os fiéis: asperges me, Domine...
Ganhei eu, que desde a madrugada não mudava de águas. Para
minha perplexidade, a malandragem soltou protestos por causa do
meu calibre: que assim não valia, que eu sairia vencedor mesmo
a dormir, que as minhas dimensÕes iam além das normas
regulamentares e por isso me desclassificavam. Deixei a prova
zangado por me terem excluído, intrigado por tanta injustiça,
contente contudo porque ao menos um facto preciso, medível,
indesmentível, fundamentava as fantasias e boatos que sobre mim
circulavam.
O resultado não se fez esperar. Os meus colegas queixaram-se
aos pais deles, que falaram ao meu, que deve ter ralhado com
minha mãe por não o ter avisado do tamanho do membro filial,
apesar de tantos banhos me ter dado. Duplo dano deste percalço:
na escola, inesperadas inimizades; em casa, a sonolenta
tranquilidade, de um dia para o outro, ameaçada. No fim do ano
lectivo, por eu andar nas nuvens, meio alheado e meio obtuso, ou
porque Justina me queria prender o mais possível, ou só para
mostrar que não me preferia, reprovei redondamente. Fazer figura
de parvo deixou-me acabrunhado. E mais ainda quando as férias
levaram Justina, vaporosa, vestida de organdi, para Lisboa,
durante três meses. Sofri, meti-me em casa, pela primeira vez
vivi como eremita. A cama era, ainda é, o meu refúgio, a minha
gruta de Ali-Babá. E nesse mês de julho raramente me levantei,
deprimido pelo chumbo e pela partida de Justina. O tempo não
ajudou, embrulhando o Cabo em algodão molhado. O sol mal
aparecia, por volta do meio-dia, para logo se ocultar. O nevoeiro
vinha do mar, espalhava-se lentamente, recuava um pouco, e de
novo parecia devorar o que encontrava no caminho, crescia para
todos os lados até tapar tudo debaixo da sua campânula opaca. Como compensação
eu ficava na cama, agarrado aos volumes cartonados, de capa vermelha e em
tela agradável ao tacto, da Grande Edição Popular das Viagens
Maravilhosas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos. Na portada,
além do nome imortal do autor, um balão com gente a bordo, em
baixo um leão e uma jibóia gigantesca enrolada a uma palmeira,
e uma nau encalhada, de mastros estilhaçados. Quinzenalmente eu
aguardava que a Biblioteca Itinerante me trouxesse as travessias
do Transval, os cheiros, os ruídos de savanas e selvas e rios,
de cidades exóticas como a temível Lisboa, cujos perigos
ameaçavam Justina. A pouca importância das mulheres nas ficçÕes
de Júlio Verne defendia-me de pensar tanto nela. E o optimismo
desses livros servia de contrapeso à minha melancolia. Não
precisava de muito imaginar para me ver embarcado na Jangada,
carregada de garrafas de vinho do Porto e moscatel, descendo o
Amazonas onde, se não morrer tão cedo, um dia irei.
Identifiquei-me com Gédéon Spillet, náufrago do ar, que dava tudo
em troca do jornal matinal.
Ao contrário de Spillet, não dou, quinze anos mais tarde, um
passo para procurar jornais, e na hora dos noticiários desligo
o mini-rádio de pilhas. Só oiço música, que me ajuda pela paz que
me traz. Sonâmbulo sigo os temas, os timbres, como se deles
dependesse o meu destino. Quase não vejo ninguém. Uma ou duas
vezes por semana desço a pé até à Azóia, para comprar comida. No
princípio do ano fui à Várzea, na carreira, buscar materiais para
avançar nos arranjos da casa abandonada que me emprestaram. O
telhado já remedeia, e era o mais urgente, agora que vêm aí as
chuvadas. Não há electricidade. à noite leio à luz de uma
lamparina em forma de peixe de cobre, de cuja mandíbula saem dois
pavios embebidos em azeite. Escurece cedo, e esta candeia
acompanha-me durante longas horas. Apago as chamas azuladas
quando os olhos me ardem. E às vezes fico no escuro, falando
mentalmente de mim para mim.
No verão em que fui abandonado por Justina passei também
muitas noites conversando comigo. Supliquei, sussurrando e
invocando todos os encantos do seu corpo, que ela voltasse mais
cedo. Em vão. Até que me cansei de tanto sofrer e decidi tentar
a sorte por outro lado. Peguei no fato de banho e, de toalha ao
pescoço, marchei até à Adraga. Aí passei o resto das férias,
engatando, brincando, propondo os meus serviços, arranjando
pretextos para mexer nos esquivos pudores das meninas, colegas
de escola e respectivas amigas, um harém em potência se não
fossem as instituiçÕes colectivistas do "grupo" e da família, as
omnívoras víboras dos parentes, directos, colaterais e por
afinidade em vários graus. Dificílimo iludir esses atentos irmãos
e pais e primos, tios, avós e outros mais, sem esquecer eventuais
madrinhas e padrinhos, sequiosos de indícios de imoralidade. Em
mares de acaso também apareciam raparigas à caça de marido, mas
nem me olhavam: do casamento eu estava defendido pela idade.
Se as actividades balneares preenchiam parte dos meus dias,
os serÕes eram reservados à cinefilia no Cine-Theatro de Almoçagéme, caso não
houvesse bailes ao ar livre, "abrilhantados" por "sensacionais" conjuntos
tocando entre a fumarada da sardinha assada e os cães uivando em transe
contra o foguetório incessante. Meu pai andava contente por ver
o fim à minha misantropia. E até ironizava que, dado o meu
desinteresse por estudar, talvez fosse para professor de natação,
já que me vangloriava de furar as altas vagas.
A chegada do outono amareleceu os meus amores por Justina, sem
arrefecer os arrebatamentos pelo sexo feminino. Com o recomeçar
das aulas retomei o divertimento de levantar saias e fazer
cócegas às colegas. Se a brincadeira pegava, procedia à selecção
natural das mais dadas e dotadas para os apelos da carne. A
desenvoltura de algumas escandalizava as outras ao ponto de as
afastar e nos deixar à vontade. Este método infalível permitiu-me
desvendar devastadoras vocaçÕes em embrião: tal como há almas que
nem sonham quanto necessitam de ser salvas, assim não faltam
corpos que anseiam por ser seduzidos, embora nem se dêem conta
disso.
Uma tarde Justina apanhou-me em pleno
pátio experimentando o meu expediente numa das suas melhores
alunas, que fugiu espavorida. Sem perder a calma, Justina
mandou-me secamente entrar na aula. Lá dentro armou um escarcéu
de mil milhÕes de demos, pegou no ponteiro e bateu-me às cegas
na cabeça, nas costas, na cara, nos braços que estendi por
instinto, até perceber que ela não pararia senão quando caísse
exausta. Segurei-lhe então o pulso da vingança, fi-la largar o
ponteiro, prendi-lhe a mão esquerda que ainda me agredia,
torci-lhe o braço de modo a obrigá-la à imobilidade, tentei
beijá-la apesar de ela ser mais alta.
Foi o fim. Nunca mais me recebeu em casa nem me falou nas
aulas. Fiquei bem nos exames finais, deixei a escola da Azóia
para frequentar o secundário em Sintra. Quanto a Justina, nunca
mais a vi.
Capítulo 4

Sem Clara fiquei órfão de mim. Enredado numa teia de


lembranças, achei que era altura de sair de Sintra. Já há muito
a avó Catarina conspirava comigo, querendo à força que eu fosse
viver para casa dela em Lisboa, a fim de lhe fazer companhia.
Renitentes, meus pais recearam contrariar-me, e acabaram por
capitular.
Quem mais se regozijou foi o cavaleiro Alcides de Carvalho,
que sempre tocava a tecla da necessidade da "descida" à capital
em nome dos "ligítimos interesses da Pátria". Aconselhava ele como
mais indicado para a minha preparação o Liceu Central de
Pedro-Nunes, pois o sábio judeu Pedro Nunes fora, no século
dezasseis, um dos mestres e tutores de D. Sebastião. Exagerando
na exuberância, Alcides profetizava que o dito liceu ficaria nos
Anais como centro das nossas manobras monárquicas. Por feliz
conjuntura, um primo dele era lá professor e sentir-se-ia muito
honrado em tratar-me da transferência escolar.
O primo do insigne Alcides chamava-se Gabriel Gago de Carvalho
e, antes de conhecê-lo, nunca eu imaginara que existisse alguém
assim. Professor de História, os seus heróis eram D. Sebastião
e Pomponazzi. Por causa do tom fanático, paquidérmico e
autoritário com que falava fosse do que fosse, lembrei-me de
tratá-lo, nos intervalos, por Nazi Pompom. às vezes os floreados
das suas frases transformavam-no em Floreano Pomponazzi. Termos
pomposos, dos quais o preferido e mais proferido era polis,
deram-lhe direito ao semi-heterónimo Florianópolis. Gabriel Gago
de Carvalho procurava efeitos oratórios nunca tratando os bois
pelos seus nomes. Em vez de "mar", dizia "espelho aquático" ou
"espumoso vidro". Estonteado pela própria tara verbal, entrava
em transe lírico e, de olhos em alvo, chegava ao paroxismo de
falar em "undosa planície" e "instável cristal"? tudo para fugir
à vulgar palavra "mar".
Se pouco aprendemos de História, ao menos fomos vacinados
contra a enxúndia literata. Nem me lembraria do indigesto mestre
se não aparecesse pelo liceu, nas festas de Natal, a senhora de
Carvalho, que tinha muita "pinta". Ao vê-la, a malta perdoou de
imediato os tratos de polé que o piroso esposo infligia ao
vocabulário. As monstruosas metamorfoses do seu palavreado eram
defeitos sem importância em quem guardava lá em casa tão preciosa
"propriedade". Ainda que a não merecesse e que a tivesse
adquirido certamente graças às palavras caras, a verdade é que
ele a tinha, e nós a seu lado ficávamos a ver navios. Mais nova
vinte anos que ele, e com ele casada "por interesse", aquele
espanto ambulante chamava-se Julieta. Grande, larga, languida,
de nariz arrebitado e ar gingão, a espampanante Madame
deixava-nos sem respiração. Mesmo a feia pintura dos cabelos não
anulava o charmoso impacto desse corpo, na nossa visão de
aspirantes a sedutores. Se a natureza teve a liberalidade de
criar um ser assim, decerto tolerava a oxigenada alteração da sua
cor capilar.
Aos festejos natalícios assistia, na primeira fila, à direita
de Julieta que dava a esquerda ao marido, o primo Alcides cada
vez mais compenetrado do seu papel de São João Baptista da Causa
Sebástica. No final do Auto de Natal fui apresentado à estupenda,
estonteante Julieta, cheia de sorrisos para mim e para o primo.
E qual não foi o meu pasmo quando Alcides me convocou para uma
"reunião de trabalho" em casa da "prima Julieta", no aniversário
do Rei e meu. Fiz-lhe notar que o jantar desse dia estava já
prometido à avó Catarina. "Então a seguir ao almoço", sugeriu a
senhora de Carvalho. "à hora da sesta", disse cumplicemente o
cavalar Carvalho, e soltou uma série de relinchos. Não alcancei
o sentido de tão alvar alegria, que atribuí à quadra festiva.
Julieta balbuciou que a campainha de casa estava avariada e,
como nada garantia que até ao dia vinte de janeiro viesse o
electricista, a porta ficava encostada. "Ainda não há ladrÕes
naquela zona", e eu entraria sem cerimónias quando chegasse.
Novamente o cavaleiro Alcides olhou em diagonal para Julieta, que
sorriu inequívoca.
No dia dos meus anos estava um sol de primavera antecipada,
e resolvi ir a pé desde a casa da avó em São Sebastião da
Pedreira até São Pedro de Alcântara, onde o professor morava. No
inverno, quando não chove, Lisboa tem destes dias gloriosos, em
que fica coberta de uma luz irreal, vinda da foz do rio e subindo
pelas colinas. O Parque Eduardo VII, o Jardim do Príncipe Real,
o belveder de São Pedro de Alcântara de onde se avista o Castelo,
a Graça, a Sé, a Baixa, o Tejo, a outra margem, tudo brilhava tão
próximo, que bastava estender os braços para alcançar os
contrafortes da serra da Arrábida. Uma euforia sem fim tomou
conta de mim, que nem a idade nem a curiosidade de rever Julieta
e com ela conversar justificavam.
Foi fácil encontrar o prédio setecentista, bem conservado e
restaurado, que Alcides me indicara. Subi dois lanços de escada
e dei com a porta entreaberta, conforme combinado. Entrei, não
sem antes verificar que efectivamente a campainha não funcionava.
Bati com os nós dos dedos na porta, fechei-a com ruído, de
propósito, murmurei "sou eu", já intimidado. Nada. A sala de
entrada, bastante luxuosa embora sobredecorada, tinha um tapete
por cima da alcatifa, de modo a abafar os passos. Também
alcatifado era o corredor, comprido e pontuado de portas como as
antigas carruagens de comboio. Fui avançando, avisando mais alto
que chegara, até que uma luz ao fundo me deu ânimo para perguntar
estupidamente se estava gente. Ia jurar que ouvi uns urros, uns
uivos, uns rugidos ou grunhidos impróprios, que de repente se
acalmaram e calaram.
"Estamos aqui", gritou enfim uma voz feminina que não reconheci
de seguida. A luz provinha de um salão cheio até ao tecto do mais
repugnante bricabraque. Num sofá enorme, de compactas rodas, que
me fez pensar num velho Cheurolet, estava sentado o primo
Alcides, cujos poucos cabelos, despenteados dos lados, pareciam,
contra a luz do candeeiro, um par de cornos ou umas orelhas de
bode. A seu lado Julieta, de faces afogueadas, endireitava
apressada o vestido amarrotado, enquanto o marido, limpando a
baba da boca, procurava uma posição mais respeitável. Entre os
três reinava a cumplicidade de quem é interrompido em plena
bacanal de bordel. Toda a divisão, aliás, tinha um ar de casa de
putas em dia de Entrudo, numa amálgama de tralha colonial onde
nem faltava um jacaré-bebé embalsamado no topo de uma coluna,
entre plantas de plástico e penas de avestruz.
Enquanto ambos os homens se levantavam e saíam da sala,
Julieta, lambendo os lábios, fazia-me sinais para me aproximar.
Beijei-lhe a mão, como aprendi nos meus contactos com a
aristocracia. A dama ia tendo um delíquio, deslizou as costas da
mão esquerda pela testa e agradeceu a minha vinda numa tortuosa
frase que terminou num lapso verbal. Em vez de "à prova de bala",
ela disse "à bala de prova", o que me atrapalhou por não perceber
onde queria chegar. Sobressaltos disléxicos deste género haviam
de surgir, noutros encontros, sempre que não estava à vontade.
A sua curta testa e o forte maxilar condiziam com o pescoço
invulgarmente grosso, que um colar de grandes pérolas falsas não
conseguia disfarçar. Nada havia também a fazer para encobrir o
bumbum, roliço, reboludo e rechonchudo, demasiado volumoso de um
ponto de vista artístico; mas ela lá soubera dar a volta a
defeito tão óbvio. Rolando sobre as ancas do modo mais visível
possível, foi buscar uma bonbounière à mesa ao pé da janela. O
decotado vestido verde-cheguei colava-se-lhe ao corpo dengoso e
eu seguia-lhe hipnoticamente os movimentos.
Em tremelicantes pezinhos de lã, corado como quem sai de um
banho, Gabriel Gago de Carvalho foi o primeiro a regressar à
sala. Fez-me várias vénias muito pestanejadas, com poses de
prima-dona em noite de gala, e refinou nas boquinhas habituais,
na duvidosa virilidade de uma retórica engasgada. Custava-me
ficar sério diante daquela cara de cágado fora de água, com
óculos de aros de tartaruga que lhe aumentavam a exoftalmia dos
espantados olhos de pékinois, ou melhor: de pescada no prato. Em
pirotécnicas piruetas verbais propôs abrir uma garrafa de Porto
velho, para bebermos à "nossa Causa" e à minha "quase-maioridade". Por
patriotismo fiz mais esse sacrifício e aceitei. O
cavaleiro Alcides era um mestre-de-cerimónias caricato, com gestos de quem ali
estivesse para dirigir uma orquestra de metais. As trompas e trompetes e
timbales das suas cordas vocais entoavam os mais entornados
louvores à Monarquia do Espírito.
Enquanto bebíamos, ele cortejava descaradamente a prima. E o
marido, sofrendo de rinocerôntica miopia, nada topava. Já me
cheirava a esturro festejar o meu aniversário em tão suspeito
boudoir, e os brindes que o professor proferia em série, num
gongorismo patético, levaram-me à beira do desespero. Farta dos
discursos conjugais, Julieta mandou-lhe uma boca, comparando a
incontinência verbal à indesejável precocidade da outra
incontinência. Apesar de indirecta, a alusão atingiu em cheio o
alvo. O professor levantou-se com a desculpa de ter que estar
presente numa reunião de docentes. Antes que me
desafiassem para ficar, atrelei-me a ele. Ao despedir-me reparei
numa fotografia emoldurada, em cima da desordem de um móvel: ao
lado da dona da casa descobri a cara triste da minha mestra
Justina. Perturbado perguntei de onde é que a conheciam. Houve
surpresa e rebuliço. Entre lágrimas, Julieta informou-me que "a
coitada da Justininha" era a irmã dela que, após vários anos na
escola de Azóia, ensinava agora no Norte. Há três anos que não
tinham notícias.
Cabisbaixo, desci as escadas com o Dr. Gago. Na rua renovou
votos pelo meu futuro e pela "Pátria", e deu-me um abraço
amaneirado. Devagar voltei a casa, pensando durante todo o
caminho em Justina. O meu único conforto consistia em jantar com
a avó naquela noite. Sentia-me bem ao lado dessa mulher mais
velha meio século, e com quem me divertia mais que com a maioria
das minhas amigas. Para não a preocupar, eu procurava dormir em
casa. Sozinho. E tão atarefadas eram as minhas tardes, que
adormecia assim que me deitava. Mas as noites prolongavam os
desejos do dia, fazendo-me acordar no instante em que os sonhos
se liquefaziam. Detestava que Catarina, ao arranjar-me o quarto
de manhã, descobrisse indícios dos meus desaforos oníricos.
Desenvolvi uma técnica para quando não despertava senão em cima
do fait accompli: apertava o prepúcio entre o polegar e o indicador para
não deixar derramar o produto dos actos sonhados, e assim comicamente
caminhava no escuro até à casa de banho.
No escuro também caminhei para a casa de banho de Julieta, que
dias depois da minha primeira visita me esperou à saída do liceu
e quase me raptou de carro para lancharmos em sua casa. Por
delicadeza não perguntei se lá estariam o marido e o primo.
Presumi que não e, assim que ela abriu a porta, na tarde já
anoitecida e invernosa, pressenti cilada à vista. A fragrância
muito forte de um perfume caça-homens estonteou-me logo no
corredor, cujas lâmpadas por acaso se fundiram todas. Julieta
sofria de vertigens, disse, e propôs que, depois do chá, eu
trepasse pelo escadote até ao candeeiro do tecto. O modo de
pronunciar a palavra "trepar" pareceu-me que trazia água no bico.
Sentados no estrambótico sofá onde ela se exibira com o primo
e o marido, requebradamente me serviu chá e bolos de chocolate,
pedindo-me que falasse de Justina. Ao perceber a profundidade de
uma relação que durara três anos, começou a fazer beicinho e a
inquirir se a achava mais feia que a irmã. Claro que não,
tranquilizei-a. Com adjectivos seleccionados marquei as
distâncias de uma à outra. Em apurada semântica cognominei
Justina de boazinha, Julieta de boazona. Não foram bem estes
termos, mas andei por essas zonas.
Julieta não se contentava com palavras, preferia artigos
palpáveis. E nem os dedos engordurados de chocolate a impediram
de me saltar em cima e de me assaltar às apalpadelas na escuridão
do salão, de me atirar ao chão entre montes de almofadas, de me
abalroar contra a salsada dos móveis, de só se dar por satisfeita
quando aportámos ao quarto e fundeámos enfim na maciez da cama.
Generosa em gritos e gemidos, apostada em demonstrar que na cama
não há programa, apenas me impôs a condição da média luz, para
não mostrar algum refego ou flacidez das abundantes carnes.
Receando que o professor nos apanhasse, escapei do leito perto
da hora do jantar. Esqueci-me de substituir as lâmpadas fundidas,
e de voltar na semana seguinte. Se é fácil iniciar ligaçÕes
apenas sensuais, difícil é pôr-lhes fim. Tendo obtido do marido
o meu endereço, o intemperante temperamento dela passou à fase
das assíduas cartas, que exasperavam Catarina e me obrigaram a
refugiar-me na Roca durante as férias da Páscoa.
De Catarina eu ocultava as incursÕes e excursÕes amorosas pela
cidade, e os encontros programados nos diversos bairros. Os
serÕes, quando não estudava nem escrevia cartas, eram reservados
às conversas domésticas. Evitava telefonar de casa às namoradas,
e só em caso de necessidade absoluta dava o nosso número. Mesmo
as raras mensagens telefónicas irritavam a avó, que desprezava
todas as meninas que correm atrás dos homens, "os quais não se
interessam senão pelas que lhes fogem". Não menos vociferava
contra as inúmeras cartas, variamente perfumadas, que ia buscar
à caixa do correio quando eu estava nas aulas. Confessou-me que
deitou fora as mais cheirosas, sempre que os perfumes ordinários
indiciavam remetentes idiotas ou pouco recomendáveis. Outros
billets doux guardou-os numa caixa de sapatos, onde os fui
encontrar um dia entre daguerreótipos e fotografias de família,
dela e do marido.
Aos dezoito anos o seu Príncipe Voador tirara o brevet e
comprara uma avioneta, na qual se tornou famoso pelos seus duplos
looping the loop e por passar por baixo das pontes, de pernas
para o ar. Pioneiro dessas proezas, sobrevoou dezenas
de vezes todo o país, parando onde lhe apetecia, em qualquer
estrada, em qualquer eira ou praia, mesmo em sítios proibidos.
Quando, no pino do verão, a caminho de Lisboa, aterrava na
Caparica, na maré baixa, para dar um mergulho, e os cabos de mar
o chateavam papagueando preceitos legais, ele desculpava-se com
o motor quente de mais, a precisar de uma pequena pausa. Se os
fulanos duvidavam, desafiava-os com ar sonso a pôr a mão no
irradiador, onde os representantes da autoridade invariavelmente
se queimavam. O que lhe permitia o ambicionado banho, porque até
trazia o maillot.
Uma vez aterrou na vila do Crato, não sei porquê nem para
quê. Sei que o inédito facto o fez ser convidado pela elite
cratense para uma festa qualquer. Aí conheceu Catarina, que
dentro de dois meses era sua mulher. Educada entre a igreja e a
cozinha, desde cedo encontrara prazer em padecer sob os
sacrifícios da penitência, procurando imitar a Santa de Siena
cujo nome lhe deram e que lhe foi madrinha. Não estudou mais que
a instrução primária, e o resto dos seus saberes era uma mistura
de bordados e crendices. Donzela devota, de uma religiosidade
sóbria, não desgostava de fantasiar sobre as vidas dos mais
extravagantes santos. Sendo santos do sexo masculino, neles
buscava os solitários exaltadores das almas, os homens fortes e
longínquos. Sendo santas femininas, nelas via a submissão subtil,
afinal outro modo de domínio. O casamento deve ter-lhe revelado
perturbantes poderes que em si ignorava. Da sua parte houve decerto uma
identificação entre o heróico voador e os anjos e arcanjos com
que tanto sonhava. E o meu avô terá sido cativado pelo
reconhecimento de quem encontra alguém rendido sem reservas à
bíblica capacidade de voar.
Da boda, em fevereiro de mil novecentos e vinte e cinco,
existiam envelopes cheios de cartonadas fotos às quais estavam
atados ramos de alfazema e rosmaninho, que se esfarelavam mal
neles se tocava. A vertigem do esquecimento passou velozmente por
essa gente. O que restava eram fantasmas acastanhados nas suas
fatiotas de cerimónia, estolas que imagino cheirando a naftalina,
chapéus altos, fraques e casacas com abas de grilo.
O casamento, algo apressado, levantou logo a suspeita de ser
"adiantado". Mas a data em que minha mãe "fora parida" veio
desmentir a mesquinhez do boato. Catarina usava com dignidade
esta rude linguagem, sobretudo em relação às coisas do corpo.
Dizia, por exemplo: "no dia do nascimento da tua mãe, a minha
emprenhidão era tamanha, que o médico previa um par de gémeos,
ou um rapaz como um bezerro - e afinal saiu-me isto na rifa! Na
hora do parto houve uma bátega de granizo, o que tanto podia
prognosticar clareza de pensamento como pureza no procedimento
da minha filha". Várias vezes Catarina "emprenharia", e várias
vezes a gravidez seria involuntariamente interrompida. Talvez a
tendência para o êxtase lhe tornasse repugnante o seu lado
animal; ou era o medo de morrer de parto o que a levava a
abortar. Pouco lhe importavam as causas, sabendo que razão e vida
raramente rimam.
à medida que a idade a libertava da dureza dos traços, minha
avó ia perdendo as feiçÕes pesadonas, o olhar autoritário, a
carapaça. Cada dia se tornava mais humana, sem receio de me
mostrar as suas fragilidades. Ao contrário dos velhos que
engordam por dentro e por fora, Catarina emagrecia, como se
lentamente o corpanzil lhe desistisse da voracidade pela vida e
procurasse coincidir com a sua flutuante costela contemplativa.
A cumplicidade evoluía entre nós para uma intimidade
respeitosa. Não do género que liga
avós e netos, mas do género que pode existir entre certos homens
e certas mulheres. Sob as convençÕes do trato escondíamos o
receio de revelarmos um ao outro o nosso secreto afecto. Por isso
não lhe levava a mal as críticas às "lambisgóias" que me
escreviam em arrebicados envelopes, algumas com duplos nomes
possidónios que lhe causavam arrepios: Atenuado embora pela
idade, o respeito por si não lhe consentia aceitar nem uma só das
rivais, quanto mais várias. Sem se dar conta disso, revivia as
suas ânsias de mulher enganada, e em cima de mim descarregava o
ciúme acumulado durante a vida de casada.
Nos quatro anos em que fui seu hóspede desempenhei com todo o afinco os papéis
de homem da casa, de neto e de atento discípulo. Em contrapartida
ela abriu-me alguns meandros da psique feminina. Conselheira e
confidente, fez as vezes da mãe e do pai, com quem eu convivia
só nas férias de verão, ou na Páscoa e no Natal. A casa de
Catarina passou a ser a minha, e sempre que dela me afastava
sentia-lhe a falta. Hoje ainda, isolado nestas serranias, tenho
saudades das suas onirocríticas ao pequeno-almoço, quando lhe
contava sonhos da noite anterior e ela os interpretava sem
hesitaçÕes e sem nenhum tabu, libertando-me dos nocturnos
morticínios e assim me permitindo partir para o liceu, decidido
a sobreviver aos rebarbativos doutores Gagás e a outros bichos
que tais, menos empolados mas não menos letais.
Agora que o fim de maio se aproxima, e que os jacarandás se
cobrem de flores azul-leitosas, caminho por veredas e atalhos
horas a fio. Deste modo me fatigo e caio cedo num sono espesso
e sem acidentes. Felizmente as noites são já menores que os dias,
e não preciso de dormir tanto quanto nos meses de invernia em que
me julguei de novo atingido pela enigmática doença dos meus
catorze anos, quando uma mulher de virtude que vivia na Ulgueira
foi de propósito ao Farol para me fazer inalar fumigaçÕes dos
meus cabelos atirados às brasas, tidas por remédio santo contra
sezÕes e febres terçãs.
Um sábado destes, como se tivesse que pagar qualquer promessa,
fui à tarde até à Ulgueira, por saber que costumam limpar a
igreja na véspera da habitual missa quinzenal, no segundo e
quarto domingo de cada mês. E dei de facto com a igreja aberta,
depois de muitos anos sem a ver. Uma velha vestida de preto
varria a entrada, enquadrada pela elegante moldura de pedra do
portal Renascença. Não sou sequer cristão, mas sou
religioso, e comoveu-me olhar o mar desde o altar-mor, e levantar
depois os olhos para o tecto abaulado de madeira com a Virgem
pintada no meio e, nos quatro pontos cardeais, estes dísticos em
defeituoso latim:
stela maris
turis eburnia
electa ut sol
pulcra ut luna.
Capítulo 5

A roda ocre da gémea de Apolo, Artemis, deusa lunar e dos


infernos, acaba de surgir a oriente, quente e gigantesca,
enquanto o sol tinge de lume o mar e nele se dissolve lentamente.
Lua, alma do mundo, que sobre esta Serra foste crescendo e
devagar hás-de minguar, leva contigo todos os males que agosto
me pode dar.

Se o mal estiver na cabeça, que mo tire Santa


Teresa
se estiver na cara, que mo tire Santa Clara
se estiver na vista, que mo tire Santa Luzia
se estiver no peito, que mo tire São Pedro
se estiver nos braços, que mo tire Santo Atanásio
se estiver nas mãos, que mo tire São João
se estiver na barriga, que mo tire Santa
Margarida
se estiver no ventre, que mo tire São Clemente
se estiver nas pernas, que mo tire Santa Eufémia
se estiver nos pés, que mo tire São José
se estiver nos dedos, que mo tire o Senhor
Santíssimo Sacramento.

Ouvi a Catarina este exorcismo na manhã do seu septuagésimo


aniversário, idade a que nunca julgou chegar. Para festejarmos
condignamente a data, convidei-a a jantar no Tavares. As molduras
douradas dos espelhos comidos pelo tempo, os veludos vermelhos
dos estofos condizendo com o rótulo, entre castanho-mineral e
encarnado-Médoc, da garrafa de tinto de Reguengos; as
confortáveis cadeiras de braços almofadados e de costas ovais recordavam-lhe
dias de fausto e felicidade. Tratou-me como a um Grande Senhor,
encarregado de escolher o menu, o vinho e tudo. Era sexta-feira:
ela só comia peixe, explicando-me com malícia que, recém-nascida
já se recusava a mamar no dia da morte do Redentor.
Desde que nos sentámos à mesa, troquei olhares com uma beleza de
sotaque brasileiro, na mesa ao lado, acompanhada por um tipo
solene, de costas para mim, o que bastante me convinha. Apesar
de eu dissimular, a avó reparara nos meus desavergonhados
sorrisos. Quando o casal se levantou para sair, Catarina tinha
terminado o vacherin glacé e perguntei-lhe se não levava a mal
que eu fosse lavar a boca. Este meu hábito pós-prandial era tão
certo em casa que ela o achou normal, embora exagerado.
Precipitei-me para os lavabos, por feliz coincidência ao pé do
bengaleiro. E mais feliz coincidência foi ainda o dar de caras
com a beldade, sozinha e de gabardina, aguardando o
marido. No tom mais casual possível, como se já nos
conhecêssemos, detectivei que ela estava de passagem por Lisboa.
Apressado, fui direito ao essencial. E ela apenas teve tempo de
dizer "no Ritz, meu nome é Helena". O apelido não interessa para
aqui. Enquanto eu puxava da carteira para dar uma gorjeta à
empregada, indaguei da Bela Helena a que horas poderia
encontrá-la. "Amanhã ao meio-dia", murmurou fixando a porta dos
banheiros e fingindo que nada se passava. Com um "até amanhã"
entrei no toilette onde o cônjuge se ocupava em esticar sobre a
careca destapada umas madeixas ralas. Quando regressei à mesa,
Catarina punha rouge com todas
as demoras, procurando controlar-se. Para mostrar que não gostou
da brincadeira mandara vir a conta. Paguei, afastei-lhe a
cadeira, segui-a até ao vestíbulo onde a empregada sobraçava o
casacão de astracã que a ajudei a vestir. Só ao chegarmos a casa
desatou aos gritos como nunca até então eu a ouvira,
insultando-me com a fúria de Justina ao apanhar-me em flagrante
delito. Sufocada de raiva, acusava-me de ter dado cabo do seu
aniversário, de não ter vergonha na cara, de andar a meter-me com
mulheres casadas estando o mundo abarrotado de meninas idiotas,
capazes de todos os disparates para caçarem um homem. Procurei
acalmá-la, garantir-lhe que se enganava, propor-lhe que
bebêssemos um Cointreau, mistela que eu detestava mas de que ela
gostava, e acabámos em tréguas provisórias com um beijo de
compromisso.
Tão sólida era a minha boa consciência, que
apesar da discussão passei parte da noite planeando o próximo
meio-dia. Acordei bem-disposto e, por estar bom tempo, resolvi
ir andando pelo Parque até serem onze e meia e devagar descer em
direcção ao Ritz, na esperança de que a dama desconhecida já
esperasse por mim.
E esperava, ao fundo do foyer da entrada, folheando uma
revista num dos sofás de onde podia fazer-me um aceno quando eu
chegasse. Beijei-lhe a mão, sem que isso provocasse o mesmo
efeito que em Julieta. Não a impressionei, ou ela preferia
mostrar que nada seria fácil. Convidou-me a tomar um copo no bar,
para onde nos dirigimos pelo salão, através de cujos vidros altos
a luz levemente coada se espelhava nas mesas e nos mármores.
Apetecia ali ficar, se não fosse tão devassado. Escolhemos no bar
o canto mais escuro e distante do balcão para as primeiras
avaliaçÕes, tacteando ambos o campo adversário num jogo de
subentendidos e de olhares. Travei a minha vontade de lhe tocar
e tive de contentar-me com o que, cheia de vivacidade, ela
contava. O marido, diplomata francês num país africano, não
considerava conveniente que a mulher o acompanhasse, e por isso
ela vivia sozinha em Paris. Moravam "no mesmo prédio mas não no
mesmo piso", cada um cultivando à sua maneira uma privacidade
"inexpugnável". Os termos foram estes, dando-me a perceber que
o casamento não se desfazia apenas por nenhum deles ver
vantagens nisso. A Lisboa vieram por causa de um congresso
internacional qualquer. No hotel ocupavam quartos contíguos e
tudo o que faziam juntos era almoçar e jantar. Não precisei de
ouvir mais. Um pouco antes da uma, ao reparar no relógio, Helena
pulou e disse ter que dar o fora. De nada adiantaram as minhas
súplicas sinceramente teatrais. Consegui contudo a promessa de
um tête-á-tête à tarde no Museu de Arte Antiga, para lhe mostrar
o retrato de D. Sebastião por Cristóvão de Moraes.
às três em ponto já eu me impacientava nas Janelas Verdes,
temendo que se tivesse arrependido. Distraí-me um bocado a ler
o caderno de capa rija onde, quando me faltam pensamentos
próprios, aponto alheias lucubraçÕes que um dia me possam servir
de tábua de salvação, e dei com um aforismo de Santo Agostinho
de bom augúrio para aquela hora: "O número três é como se
trouxesse consigo a perfeição, porque é tudo. Tem, na verdade,
princípio, meio e fim." Esta frase deve ter tido algum poder,
pois logo ouvi parar um carro e era ela chegando de táxi.
Precipitei-me ao seu encontro, numa nada velada concupiscência,
contrária à minha táctica usual. No museu encaminhámo-nos sem
desvios para o dito retrato. Deliciado, observei como Helena
notou incrédula a semelhança entre mim e o Rei, fitando
alternadamente o quadro e a minha cara, a ponto de me deixar
embaraçado. As alegadas afinidades físicas até me pareceram
dessa vez menos patentes. E quase me era antipática a pose
majestática, o frio olhar arrogante e crispado de quem sempre
representando se apresenta. A armadura verde-escura com
decorativos frisos de ouro-velho; a gola alta de onde saem as
rendas da golilha subindo pelo pescoço até ao queixo; a mão
esquerda pegando no cabo, decorado de pedras preciosas, da espada
que se esconde atrás das pernas; o punhal à cintura; a mão
direita exibindo os anéis no indicador e no dedo mínimo, delgado
como o de um menino; o focinho do canzarrão farejando
submissamente o dono e simbolizando a mansidão dos súbditos; tudo
no quadro está pensado para investir de sinais de poder o
adolescente pouco seguro de si, órfão de pai antes de ter
nascido, abandonado pela mãe, obviamente mal-amado, desejoso de
provar o seu valor e de se vingar do mundo a todo o custo. A face
imberbe; a testa alta, o cabelo alourado e curto como o meu; os
olhos verde-tília; as arredondadas sobrancelhas; a boca tão
impecavelmente desenhada e de tal perfeição o lábio inferior, que
se suspeita o favor do pintor; o queixo pouco afirmativo e as
rosadas orelhas: tanta fragilidade não se disfarça sob o olhar
duro, de quem cedo foi ferido e à força quis ser adulto.
Conhecendo algo da lenda desse Rei cuja aura
chegara aos sertÕes brasileiros, Helena insistiu no tema das
surpreendentes parecenças. Envergonhei-me como se nisso houvesse
algo de indecente, quase um truque circense, e inventei uma
teoria completamente burlesca. Expliquei que minha mãe, durante
a gravidez, pendurara uma reprodução daquele quadro no seu quarto
e, de tanto o ter olhado, nasci já parecido com o Rei que ela
idolatrava. Doutorei que certas mulheres preferem um tipo de
homem inatingível, que lhes dê maior margem à fantasia. Por
ironia da história, o Rei Virgem passou a ser alvo dos fascínios
femininos e, após a sua morte numa derrota ominosa, muito boa
gente caíra num masoquismo colectivo que define bem o fraquinho
deste país por tudo que seja fracasso, amadorismo e misticismo
de pacotilha.
As minhas diatribes fizeram-na rir e, como já bastava de real
retrato, arrastei-a para o anónimo Inferno, de um realismo de
cozinha, com tachÕes ao lume onde os demónios fritam mulheres e
homens nus. Quem não é frito é assado de cabeça para baixo num
fogareiro atiçado pelo fole de um dos diabos cobertos de
coloridas penas, como as dos índios brasileiros. Para demonstrar
vasta cultura e maturidade fiz-lhe notar que não menos exóticos
terão sido para a época os óculos, acabados de inventar e logo
encavalitados sobre o nariz do homem dentro do pato sem cabeça,
e sobre o focinho do diabólico padre rezando a missa negra, nas
trípticas TentaçÕes de Bosch.
Receando que estes quadros não fossem os mais apropriados para
uma candidata a adúltera, propus-lhe fugir de tanta pestilência
e devagar saímos do museu. Fomos até ao raquítico jardim sobre
o Tejo vigiar transatlânticos atracados, armazéns e guindastes.
Entre reformados lendo A Bola e velhas distribuindo migalhas aos
pombos, sentámo-nos num banco enquanto eu ia alternando arrojados
avanços com elogios lisonjeantes. Nada do que eu dizia era fita,
porque mais uma vez me deixara inflamar. Cada paixão tem um ritmo
diverso, e nessa idade julgava-me capaz de ser fiel ao mesmo
tempo a várias mulheres.
A aragem do rio provocou-nos arrepios que aproveitei para pôr
o braço sobre os ombros de Helena, roçando-lhe distraidamente os
seios. Repetidas vezes repelido, recusava-me a renunciar, só
interrompendo as minhas tentativas quando anoiteceu e Helena teve
que voltar aos reduzidos mas pontuais compromissos conjugais.
Pedi-lhe que ficasse livre todo o dia seguinte. Não prometeu. Ia
ver. Marcou novo rendez-vous para as dez da manhã. E à entrada
do hotel nos separámos formalmente, com um longo aperto de mão
em que pretendi transmitir intençÕes mais que evidentes.
A minha persistência já tresandava a patetice e estive para
desistir. Mal-humorado e mal dormido apareci no dia seguinte cedo
de mais no bar, onde era o único freguês, o que não me ajudou
a levantar o moral. Helena fez-se esperar. Pensei telefonar ou
ir bater-lhe à porta do quarto. Preferi porém ir conversando com
o empregado do bar até às onze, jurando não ficar nem um minuto
mais. às onze em ponto apareceu ela, nessa sua lentidão tropical
que nem Paris afectara. Umas desculpas vagas, umas frases feitas,
uns meteorológicos comentários, neste pingue-pongue nos alongámos
nos minutos iniciais, até eu perder a paciência, o que pode ser
fatal. Como todavia o efeito surpresa resulta em certos casos,
sugeri sem pré-aviso que subíssemos. Perturbou-se, pretextou que
o quarto não estava arranjado. Louvei sem resultado o encanto das
camas por fazer e, perante o punitivo silêncio de Helena, não
encontrei melhor saída do que perguntar-lhe, fora de propósito,
em que dia fazia anos. "No dia do Beato Pedro Chanel, primeiro
mártir da Oceania. " Seguiu-se um jogo de adivinhas em que, por
mero acaso e não pela intuição de que fiz alarde, acabei por
acertar. Sem quaisquer conhecimentos astrológicos tracei-lhe o
retrato que me convinha, falei em solidão, em sensualidade mal
aproveitada, em abnegaçÕes inatas, e mais me espalharia se ela
não tivesse tido a caridade de me informar que, sem hora, ano e
lugar, tudo isso eram disparates. Defendi-me: onde falta bagagem,
o sexto sentido tapa buracos. Percebendo, pela sua resposta, que
estava perante uma iniciada, desafiei-a a fazer o meu horóscopo,
até para mo deixar como recordação. O fadinho do adeus deu
resultado. Comoveu-se, e logo me presumi a caminho do ambicionado
quarto. Em vez disso fez questão de me arrastar, por causa de uns
presentes, até ao Chiado. Resignado aceitei acompanhá-la no
tormento do shopping feminino, dei-lhe conselhos quanto a sapatos
que lhe condissessem com o peito do pé, com os tornozelos e o
perfil das pernas. Aventurei-me a meia dúzia de juízos estéticos
para ouvir as reacçÕes dela. Pensava eu que os pontos de mira das
mulheres num homem eram os sapatos, as mãos, os olhos e a curva
da nuca. Por isso gostam de nos passar a mão pela nuca, como se
fôssemos ursos de peluche. Mas Helena discordava: o que ela
olhava primeiro eram as meias e as orelhas. E nem os meus
protestos a impediram de passar da teoria à prática,
oferecendo-me um par de peúgas verde-amarelas, como a bandeira
brasileira.
Solucionados os problemas dos sapatos e das meias, descemos
a Rua do Carmo para irmos à Perfumaria da Moda, minusculamente
rococó, diante de cuja porta estacionavam automóveis com choferes
aguardando as obesas patroas que se consolavam comprando as
últimas inutilidades, ou procurando alívio no calista Hilário.
Assim que Helena se despachou, lancei de novo a ideia de voltar
ao hotel. Em vão. Ainda não. Ela tinha fome, e diante da tabuleta
em vidro pintado da Ferrari não resistiu mais. Ficámos numa mesa
junto à parede forrada de madeira e de espelhos biselados que,
com as vidraçarias dos armários e os circunspectos empregados,
davam ao restaurante um ar de antiquada dignidade. Helena comia
com uma volúpia que já no Tavares me impressionara. Pensei para
comigo: se assim é à mesa, deitada deve ser tesa. Quando me
arrisquei a repetir em voz alta esta frase, ela achou graça, o
que me animou a desfiar as contas menos indecentes do meu rosário
de máximas devassas: A meloa e a mulher, pelo perfume se
conhecem. à boa e à má, fofa almofada. Mulher de raça não se
exibe em praça. Mulher que entristece, de homem padece. A mulher
muito doce, não a comer logo toda.
Não tardou a surgir a acusação de machismo para mim injúria
supina. Defendi a prudência do último provérbio, inteiramente a
favor das mulheres, que em coisas dessas detestam pressas.
Observação que não caiu em saco roto: ao regressarmos ao hotel,
Helena consentiu que eu carregasse os embrulhos até ao quarto,
onde nos escondemos o resto do dia, a noite e a manhã seguinte.
Ambos tomamos as devidas providências: ela procurou o marido e
desculpou-se não sei como; eu telefonei à avó explicando que
dormia em casa de um condiscípulo, previamente avisado e
encarregado de informar no liceu que eu me encontrava de cama,
o que aliás era verdade.
Da cama não saímos senão para ir à varanda,
tiritando, ver o pálido nascer do Sol. Um cheiro a mar chegava
do Tejo e de muito mais longe, das bandas enevoadas da minha
infância. Helena partia nessa mesma tarde e, à despedida, deu-me
endereço e número de telefone, prometendo escrever, coisa em que
não acreditei.
Durante a madrugada, a meio de um breve sono de não mais que
uma hora, acordei e vi-a escrevinhando diante do toucador de três
espelhos. Ocultara o candeeiro sob um lenço e tão atenta estava,
que nem deu pelo meu olhar. Voltei a adormecer. Horas mais tarde,
à porta de casa da avó, ao meter a mão ao bolso para procurar a
chave, dei com um envelope do hotel tendo dentro umas folhas
pequenas com a larga letra de Helena. Era o meu horóscopo. Ao
contrário das cartas amorosas, as especulaçÕes astrológicas têm
qualquer coisa de anónimo, como um sapato adaptável aos pés mais
diversos. Sempre senti certa piedade pelos adeptos de crenças
destas. O cavaleiro Alcides, todavia, alertara-me para as
mensagens cifradas nos sinais mais banais, que às vezes
interpretam acenos dos Céus. Sem totalmente acreditar em
messianismos, não excluí, nem excluo ainda, que algo de
extraordinário me esteja destinado. Por isso li as ilaçÕes de
Helena, que guardei para as conferir mais tarde, meio incrédulo
meio assustado:

Chegado a esta vida sob o signo solar


do Aquário com Capricórnio em fase final,
São tem também Aquário no ascendente. Do aquático elemento e da
combinação complexa de água e terra deverá derivar sua
preferência pela mais despojada natureza, pela severa grandeza,
pela concentraçÕes e a diferença. O estado de concepção, de
enraizamento, de semente aguardando seu momento, poderá lhe dar
certa tendência para o impessoal e saturnino disfarce, complicado
pela exaltação de Marte. Daí um gosto acentuado por ser todo
mundo e ninguém, como se encarnasse o eterno masculino e não o
simples indivíduo.
A força e a fraqueza em reacçÕes inesperadas, e opostas em
parte, tanto revelarão vontade de posse como total
desprendimento. Retraído, metido consigo mesmo, em qualquer dos
casos será atraído por utópicas causas. Nele se confundirá a
ética austera com a obsessiva atenção à exterioridade. Suas
constantes contradiçÕes talvez se manifestem de modos diversos:
ora abdicando de si e aceitando servir o que o supera; ora
seguindo Urano no sonho sobre-humano, ambicionando ultrapassar
tudo que antes foi feito pelos mortais.
Qualquer destas manifestaçÕes é por princípio exclusivista;
devidamente controladas, se alternarão em ciclos. Virado para o
que de visceral houver na vida, quem nasceu nessa hora, nesse
dia e nesse sítio terá a tentação do desmedido, que perseguirá,
se necessário, até ao heroísmo, não pela fama em
si mas pela própria empresa, ainda que perdida à partida. Mesmo
que Aquário sobre ele adquira um duplo domínio, Capricórnio
governará a área do sentir e, em geral, do existir. Dedicado à
pesquisa seria cientista; devotado às actividades em que a
subjectividade predomine, tem os requisitos para se tornar uma
espécie de artista. Qual destas vocaçÕes irá prevalecer, eis o
que falta ver.
No convívio feminino encontrará uma astúcia sem malícia, se
tiver a coragem de assumir o que os astros lhe deram. Para tal
precisará de certa indiferença em relação à opinião que dele
tenham. A atracção pelo Leão, fogoso e afirmativo, o levará a
preferir mulheres deste signo. Se casar, deve escolher mulher
leonina. A não ser que alguma coisa excepcional lhe suceda ou
alguém excepcional lhe apareça, a sua índole não vai neste
sentido. Após fases mais extrovertidas, voltará à superfície o
seu lado discreto e dubitativo, e viverá períodos de prolongado
retiro.
Outras posiçÕes planetárias presentes no instante do seu
nascimento: Vénus em Capricórnio, Marte em Escorpião. Da venérea
influência provém uma sensibilidade excessiva e inclinada à
melancolia, contra a qual os homens deste signo se defendem
procurando ligaçÕes sem consequências, passageiros passatempos.
Nesta conjugação, porém, tudo terá um especial talento para
durar, mesmo a agressividade provocada pelo poder de Marte. Mas
a pulsão mais constante será a venusiana...

Não li até ao fim nem me reconheci nesta caracterização, mas


no mesmo dia escrevi a Helena, ainda sob as impressÕes da véspera, como que
drogado pela veemência dos fulminantes afectos. Respondeu na volta do correio,
convidando-me para uma temporada em Paris, o que nos não faria
senão bem, a ela e a mim. Seguiu-se o frenesim de uma
correspondência que coincidiu com a época em que as minhas
derradeiras cartas a Clara vieram devolvidas com o carimbo de
domicílio desconhecido. Que Clara fosse telepaticamente avisada
da minha deslealdade, isso não me espantaria. Quanto a mim,
achava-me no direito de distribuir carinhos a quem precisasse de
mim. Queria aliás salvar a péssima reputação do sexo masculino,
que não pode gabar-se de um único santo que se desse a todas as
mulheres, como a todos os homens se deram Santa Maria Madalena
ou Santa Maria Egipcíaca.
Calhavam optimamente as férias parisienses, visto que em breve completaria vinte
anos, o que significava ir às sortes, ser apurado para todo o serviço e
enlatado num avião ou num paquete para "defender as Províncias
Ultramarinas" contra a insurreição dos povos colonizados,
"instigados por uma campanha de intoxicação internacional".
Alcides e o primo porfiavam em mentalizar-me a "aceitar a minha
obrigação", ainda que o Império que pretendiam fosse o do Santo
Espírito. Eu porém, por natural pacifismo, não estava disposto
a matar inocentes, a perder mil e muitos dias e quem sabe se
a vida numa luta contra gente que queria ser livre. A minha
missão específica, se a tinha, não se compadecia com guerras sem
sentido.
Assim que terminei enfim o liceu, lutei durante meses por uma
licença para sair do país. Bati a várias portas, procurei o
médico sintrense que me tratara na minha longínqua doença,
esperei que ele me ajudasse a ser considerado inapto. O meu dedo
a mais não estaria previsto nos regulamentos, embora as forças
armadas gostem de mancebos sem defeito. Mas o médico morrera, e
vi-me forçado a recorrer à passagem "a salto", utilizada por
desertores, refractários e emigrantes sem documentos. Depois de
alusÕes várias, à avó e aos pais, sobre a minha determinação de
não me sujeitar ao serviço militar, entreguei-me, e às minhas
poupanças, nas mãos de um cigano contrabandista contactado por
um colega meu que também queria escapar à criminosa estupidez de
forçar povos africanos a serem europeus.
Não isento de perigos, o percurso foi fértil em peripécias.
Passámos de noite a primeira fronteira, a pé por matagais e
pedregosos cabeços da Beira, juntos com uma pequena manada de
gado que provocou picarescos percalços. Em Espanha andámos uma
semana às voltas para escapar à Guardia Civil e aos controlos que
se agravaram perto da fronteira francesa. Dormimos em pleno
campo, enrolados em mantas, acordámos enregelados, comemos pão
e laranjas, fiquei com os pés ensanguentados de tanto caminhar.
Receei não chegar inteiro a Bordéus, onde Helena me aguardava
como combinado. Mas cheguei, e inteiro. Os sobressaltos valeram
bem a pena.
Com paragens e desvios e noites em branco, levámos três dias
de Bordeaux à Cidade-Luz, que eu só cheirara nos filmes e
perfumes. Estava ansioso por ver logo tudo, e Helena
ciceroneou-me pacientemente pelos locais inevitáveis. Não
manifestou interesse em voltar a casa, talvez para não enfrentar
o marido que ela alcunhara de Frère Jacques e que fora chamado ao
Quai d'Orsay por questÕes profissionais. A minha futura anfitriã
tranquilizou-me, garantindo que ele pouco tempo se demoraria em
Paris, e que nas horas livres se votaria à sua única paixão, o
orientalismo. Pertencente a uma seita voltada para o sincretismo
entre cristianismo e hinduísmo, reunia-se com outros fiéis numa
igreja abandonada, perto da Rue des Mathurins, onde outrora
existira a Ordem da Trindade para a Redenção dos Cativos. Helena
só lá fora uma vez, ouvir um douto orador falando das afinidades
existentes, no vasto universo e através dos tempos, entre as
trindades caldaicas e os trios formados por Osíris, Hórus e ísis,
ou por Orfeu, Artemisa e Hermes Trimegisto, pelas três Parcas,
pelo tripé das pitonisas, pelo triângulo maçónico, por tantos
vestigia trinitatis com os seus omnipresentes símbolos.
Intrigou-me a coincidência entre o culto de minha mãe pela
Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e agora aquela espécie de
sociedade secreta dedicada ao Spiritus Inteligentine Sanctus.
Nestes termos se lhe referiu o marido de Helena, amável e cortês,
ao cumprimentar-me assim que subimos ao último andar do prédio
onde eu exerceria os meus melhores ofícios.
Após as perguntas da praxe acerca da viagem, dos meus seguros
dissabores com as pátrias autoridades se um dia decidisse voltar,
e dos meus planos de trabalho em Paris, desconfiei que a ajuda
de Helena, para lá da paixão, teria outros motivos. O diplomático
Frère Jacques convidou-me a participar numa sessão "de grande
elevação" dessa associação sobre cuja existência me falara
Helena. Recusei ironizando que os meus princípios não me
permitiam aderir a nenhum grupo não fundado por mim. E que, mais
que os cultos do oculto, preferia contactos concretos e reais.
A boa educação de Jacques aconselhou-o a despedir-se quando
Helena começou a abanar a cabeça, impaciente. Assim que ele
desceu ao seu piso, a minha anfitriã propôs-se mostrar-me todo
o andar e a minha menos confortável chambre de bonne sob o sótão,
em que porém não pernoitei..
A companhia de Helena e a anterior conversa de Jacques não me
deixaram dormir descansado. Sonhei com um ritual triádico em que
Jacques, paramentado em trajes prelatícios que lhe não ocultavam
as pernas demoníacas, segurava entre dentes um dos braços do
crucifixo igualmente metido na boca de uma feia figura feminina
com um godemichet ridículo, a qual com a mão esquerda ajudava a
levitar um hominídeo que por sua vez abocanhava com apetite o
cimo do crucifixo. De pé num trapézio, empunhando uma corneta e
mascarado numa fatiota iniciática, testemunhei contra vontade a
repugnante dança em volta do Crucificado.
De manhã contei estas cenas a Helena, que me disse que não
desse ouvidos ao marido. Mais me valia alinhar na SUCH, sociedade
de que ela era a principal animadora em França.
Cavalheirescamente aceitei, bastando-me para isso o seu pedido,
sem saber ainda em que me metia. Só depois lhe perguntei de que
sociedade se tratava, e qual a minha tarefa. Que não me
preocupasse, que eu era a pessoa mais preparada para o que de
mim se requeria. Fiquei boquiaberto perante a decifração das
iniciais: Société pour l.usage Convenable des Hommes! Pensei em
tudo menos na explicação que, muito instada, acabou por me dar.
Julguei aquilo um negócio de hôtesses no masculino, para
acompanhar mulheres que detestassem sair ou comer sozinhas. Todas
as semanas desembarcavam em Paris senhoras e senhoritas
pertencentes à Société, com quem eu era encarregado de visitar
museus e galerias, almoçar, tomar chá ou jantar fora, apanhar ar
e caminhar pelos jardins, até mesmo ir ao dentista. Só pouco a
pouco me apercebi da amplidão das minhas atribuiçÕes.
Surpreendeu-me a princípio que todas as sócias instaladas em
hotéis me convidassem a tomar um digestivo no quarto. Compreendi
enfim que tais feitos vinham ao encontro da minha vocação
original, e que não estavam acima das minhas possibilidades.
De tal forma me capacitei da sublimidade deste talento que,
quando por qualquer razão uma reserva falhava e eu ficava
subitamente desocupado, ia matar saudades dos tempos de juventude
irresponsável, andava pelas ruas, pelo metro, pelos cais, fazia
olhinhos a mulheres e meninas que cruzassem comigo, que se
sentassem à minha frente ou que, nas esplanadas, apanhassem sol
e vissem quem passava. Flanando ao acaso, parando nas montras,
entrando em cafés ou livrarias, indo ao cinema ou ao teatro,
sempre farejava alguém disponível, ou alguém esbarrava em mim.
Como aquele escrivão de Melville que, cada vez mais concentrado
na escrita, passa a dormir no escritório, incapaz de respirar
longe do pó dos livros e manuscritos, assim me fui tornando
dependente do meu diurno e nocturno contributo para a felicidade
feminina. Como um vedor de águas subterrâneas me treinei, num
relance rápido, a detectar as mais abordáveis. Não as que se
faziam logo ao piso, demasiado descaradas. As tímidas davam maior
satisfação espiritual, por corarem e desatarem a entortar os pés
e a mexer nos cabelos, mal metia conversa com elas. Qualquer
pretexto servia, até o corriqueiro perguntar pelas horas, algumas
vezes suficiente para gaguejarem a resposta ou entornarem o café
no colo.
No primeiro verão parisiense desforrei-me em todos os tipos
de conquistas. Mas no outono matriculei-me em História na
Sorbonne, cada vez mais interessado num passado que desejava
desvendar. Senti a certa altura que o estudo da História era a
melhor maneira de estar mentalmente com Clara. Só que a nova
condição de estudante-trabalhador não facilitava as coisas. Sair
a correr das aulas para ir ter com alguma das senhoras da SUCH,
passar o dia ocupadíssimo, rever Helena à noite e a custo me
separar das exigências dos seus braços, subir enfim à solidão do
meu quarto onde os livros me esperavam, eis o que tornava
extenuantes as minhas semanas. Temi pelo meu equilíbrio, após
tantas horas de contactos seguidos. Para quem cresceu longe das
multidÕes, a variada e continua convivência chegava a ser
violenta. Mesmo que os gozos me defendessem dos humores
melancólicos, necessitava de umas horas comigo para não me perder
de vista. Se caía de cansaço na cama, muitas vezes sem me despir,
punha o despertador para quatro horas mais tarde e estudava de
madrugada até Helena me levar o pequeno-almoço e me chamar aos
fervores matinais.
Com uma resistência que hoje me surpreende, obtive resultados
razoáveis no primeiro ano, o que me animou a prosseguir um curso
afinal apaixonante. Entretanto, là-bas, a Revolução dos Cravos
resolvera as insolúveis guerras coloniais, e o meu exílio perdera
a sua razão imediata. Mas nada me garantia que, ao regressar, as
teias da tropa me não caçassem, agora que eu tomava gosto ao
saber e cumpria cabalmente o meu dever. Além da História, com
aulas opcionais de Grego e Latim, interessava-me progredir na
prática das línguas várias que dentro e fora dos lençóis ia
aprendendo, como fui melhorando as minhas maneiras à mesa. A soma
de conhecimentos adquiridos nos anos de Paris fez-me avançar a
um ritmo jamais imaginado, com visíveis vantagens para visitantes
e visitadas. Percebi então toda a profundidade de um paterno
apotegma que antes me parecia mera rima: Paris não é um grão de
anis.
O elevado valor de uso e de troca que a Sociéte me atribuía
dava-me um sentimento de responsabilidade social, obrigando-me
a manter a melhor forma física, a ginasticar os músculos dorsais
com cinquenta flexÕes todas as noites sobre o chão do quarto, a
não me permitir nem um grama de gordura na barriga, a andar a pé
o mais possível, cruzando Paris em todos os sentidos. Sem
disciplina ninguém constrói nada de durável, e o meu desejo não
era para menos.
As coisas só se complicaram quando, pouco a pouco, a minha modesta pessoa foi
sendo cada vez mais requisitada, ou porque aumentou assustadoramente o
número de associadas ou porque os Movimentos das Mulheres, não
se contentando com a Queima dos Soutiens, exigiam com sucesso a
libertação total do belo sexo. Embora eu estivesse sempre,
sempre, ao lado delas, e por muito que desse o corpo ao
manifesto, o homem tem limites. E eu aproximava-me do colapso.
Várias das sócias mais contestatárias pretendiam à viva força
o direito ao meu exclusivo e, na exaltada Assembleia Geral
Extraordinária do meu terceiro ano parisiense, Helena saiu
vencida pela Frente Unitária das suas inimigas, perdendo os
privilégios adquiridos. A maioria decidiu que eu deveria
abandonar o apartamento dela, sobre a Rue des Saints-Pères e o
Quai Voltaire, e ser transferido para a sede da multinacional,
em Nova Iorque, de que a SUCH era sucursal. Escusado será dizer
que não aceitei. Por carta registada com aviso de recepção
comuniquei a Helena, não enquanto minha amiga mas enquanto
Presidente Directora-Geral, que agradecia toda a hospitalidade
dispensada, mas que me desligaria das minhas venéreas veneraçÕes
a partir do verão seguinte, logo que terminasse os exames na
Sorbonne, regressando então ao meu país.
Claro que Helena reagiu abespinhada. Acalmei-a com certas
carícias e com a promessa de visitá-la um dia mais tarde, a
título privado. Como eu entraria clandestinamente em Portugal
para não ser apanhado pela trampa da tropa, ela comprometia-se
em contrapartida a expedir, em ritmo regular, as cartas e
postais, sobretudo os de aniversário e de Natal, que eu deixava
escritos e pós-datados para a avó e os pais. Quanto às respostas
deles, Helena faria o favor de mas remeter à Posta Restante em
Colares, onde vou agora todas as semanas.
Assim que voltei a respirar os ares nativos, tratei de
preparar a vinda para a Peninha, cujos caseiros conheço desde
pequeno e me facilitaram por isso, sem contar a ninguém, esta
estada aqui. Trouxe economias suficientes para sete meses.
Inquieta-me o que me espera. Mas dúvida e desassossego são fiéis
companheiros.
Capítulo 6

A nevoaça veio de manhã esvoaçando rente ao mar e agarra-se


agora às rochas da costa, à orla das praias e ao cimo da Serra
donde não se dispÕe a largar. O céu limpo e as temperaturas
altas, anunciadas pela rádio, devem referir-se a outro país.
Aqui, neste isolamento, envolto nesta espécie de manto de bruma
encharcado em água, é inverno cerrado, embora haja sol a meia
dúzia de quilómetros. Sintra é assim: um microcosmo e um
microclima. Mas a bruma não me incomoda nada, condiz com a minha
clausura e o meu cansaço. Cansaço não bem físico, embora no corpo
se reflicta, e que me acomete com o ímpeto de um espírito
maligno. Fecho-me sobre mim, volto costas ao mundo demasiado
vasto para a minha fadiga. Não me sinto triste nem
complacentemente deprimido. Apenas me apetece ficar fora de tudo,
entorpecido e mudo, com vontade de dormir, de me ausentar do
esforço de existir. Perco qualquer curiosidade, desinteresso-me
de todo o género de projectos e, enrolado no casulo de mim,
nenhum terror me atinge. Caio numa opacidade sem desejos, numa
apatia conformada consigo. Não se trata daquela estafadela fluida
e feliz que sucede aos actos do amor, aos trabalhos terminados
e bem conseguidos. É antes um estado plúmbeo, impávido, numa
esfera impenetrável ao sofrimento e ao prazer, indiferente à
espera e ao desespero.
Até que, sem razão aparente, saio dessa tépida inércia e volto
eufórico à vida que de novo me fascina. Este sol de julho, apesar
de caprichar em se ocultar, madruga muito, e vagueio horas
seguidas pelos matagais, verificando com espanto as alteraçÕes
da vegetação, as cores, os sons, os cheiros diferentes
dia após dia. Armado em entomologista, contemplo comovido a
frenética azáfama das formigas, liliputiana lição que me vacina
contra quaisquer veleidades. Nos períodos de eclipse não reparo
em nada, nem os bichos reparam em mim. Mal regresso à superfície,
logo os cães se aproximam joviais de rabo a abanar, e um ou outro
me acompanha nas minhas andanças.
O reencontro com estes lugares faz-me pensar constantemente
em Clara, e hoje desatei a sorrir ao passar por uma cerejeira
carregada de frutos já maduros. Ia a pé pelos íngremes atalhos
até à Adraga, entre minúsculas hortas separadas por muros de
caniço e pedregulhos, quando aquela árvore solitária no meio de limoeiros me
recordou um dos muitos episódios que Clara me contou durante as nossas
expediçÕes pelo passado um do outro.
Numa tarde de verão que ela classificou como o verão de todas
as vergonhas, e em que os pais a deixaram com a governanta na
casa de férias junto do mar, Clara voltava sonolenta da praia
quando deu de caras com a cerejeira do jardim toda enfeitada de
pensos usados. Corada até à raiz dos cabelos e a custo contendo
o riso, pensou que a Providência, mesmo com atraso, sempre nos
apanha para nos apontar a dedo. A governanta, em pânico e impante
de indignação, acusou de ultraje ao pudor os operários que
andavam a reparar o telhado. Tinha-se-lhes deparado, no forro do
tecto, atrás das traves, uma dúzia de pensos endurecidos pelo
sangue seco, e não se lembraram de mais nada senão de pendurá-los
na mais bela árvore do quintal. Perturbada mas sem perder a
calma, Clara atirou as culpas para cima de uma empregada muito
nova e que recentemente se fora embora. Jamais admitiu ter sido
ela própria a esconder esses corpos do delito entre as tábuas do
sótão, onde ficava tardes inteiras a ler, num desleixo causado
pelo nojo e pela preguiça de descer e deitar aquilo no caixote
do lixo. Pensava fazê-lo mais tarde, depois de secarem, mas
freudianamente acabara por esquecer-se. Admitia que as súbitas
alteraçÕes no seu corpo adolescente a tinham assustado, e
observara com desagrado o crescimento dos seios, que a
embaraçavam ao jogar ténis. O primeiro soutien foi para ela uma
armadura, piores porém eram os sofrimentos mensais, sobretudo por
causa dos inestéticos acessórios que camuflava ao máximo. Só aos
poucos se conciliou com esse tributo à natureza feminina, o que
me maravilhou por ser tão diferente do orgulho com que assisti
às espantosas metamorfoses da minha entrada na idade viril.
Não me considero um debochado condenado aos fogos infernais,
embora durante os anos de aprendizagem me tenha divertido e
instruído o sacro ^fallÕs, o ªprñapos pessoal, o meu instrumento
musical, a tuba, a gaita, a flauta, a trombeta, o trombone, o
bacamarte, o taco, a verga, o cacete, o aparelho, o viço, a piça,
a peça, a alfaia, o bastão, o pau barbado, o príncipe valente,
o bem-humorado, o malandreco, o amigo certo, para o qual não há
hipérbole à altura dos seus méritos. Gostaria sobretudo de ser
o derradeiro cavaleiro do amor, aquele cujo principal órgão
erótico eram os olhos, segundo Clara. Graças aos olhos? creio,
ela passou a dizer: "Sebastião, não tires a mão!"
A ferida da nossa separação não está sarada, sangra até sem
ser tocada. Clara sobrepÕe-se a todas as outras mulheres, e a
emoção que esta descoberta me provoca traz-me à memória o remédio
que inventámos para combater obscuros medos: adormecíamos
enlaçados, o meu membro erecto entre as suas pernas. Baptizámos
essa secreta medida preventiva de o nosso seguro de vida, pronto
para o que der e vier.
Por muito que me agrade a travessia dos anos idos, sou
obrigado a reconhecer que não me trouxeram senão ao ponto de onde
parti. E não me refiro só à geografia; o percurso por dentro
ainda avançou menos. Continuo ignorando quem sou eu. Se fui quem
hoje julgo ser, se sou quem dizem que fui, se nunca serei mais
que não saber quem sou ou quem serei, mesmo assim valeu a pena.
Alguma coisa aprendi: quem não quero ser. Não quero ser, por
exemplo, o simples gozador, o engatatão preocupado com a
satisfação da sua vaidade, o sedutor de lábia fácil, disposto em
qualquer momento a entoar a "canção do bandido". Por mim, tenho
dificuldade em perceber o meu razoavelmente bem sucedido acesso
às mulheres. Nem lhe chamo sucesso; quando muito trata-se de um
apostolado laico, de uma campanha contra a frustração, a tristeza
e o desespero nas femininas fileiras. Não me incluo na classe dos
devassos nem dos que gostam de armar para impressionar, dos que
conhecem todas as jogadas e lhes basta orientar convenientemente
os passes e assaltos, ora pedindo ora impondo, ora exibindo
ardores devoradores ora simulando displicência, ora ao ataque ora
à defesa.
Sempre me dei bem com mulheres, mas a minha preferência vai para as tímidas e
discretas, em geral mais sensíveis. Sou alérgico às que, como Julieta, falam
de mais sobre isto e aquilo, desde o almoço da véspera até aos
achaques da vizinha. Não foram os esforços eróticos que iam dando
cabo de mim em Paris, foi a odisseia de escutar horas a fio
mulheres confiando-me as suas vidas. E quando as vidas eram
vidinhas, não havia consolação que resistisse. Fui confessor à
força e nesse ingrato papel aprendi que o excesso de conversa é
a pior perversão de certas donas e donzelas. Se não aguentava
mais a logorreia das convencidas de si e das Julietas
soporíficas, levava-as a um concerto que as obrigasse a estarem
caladas ou ao Louvre onde se esfalfavam a palmilhar sala após
sala. Mesmo assim achava preferível a companhia delas a ter que aturar as
bazófias, balelas e verdades eternas dos representantes do meu sexo.
Uma das minhas raras amizades masculinas
começou pouco antes de eu deixar Lisboa, e mantive-a durante o
exílio. Quando ia a um museu ou via nas livrarias postais de
quadros de que esse amigo devia gostar, comprava alguns para lhe
escrever telegráficas notícias em estilo de folhetim. Pouco mais
velho que eu, conheci-o na estroinice lisboeta e, enquanto eu
viajei e vadiei, ele terminou Medicina, embora a sua paixão fosse
o desenho. Desenhava imenso, desde pequeno, o que o ocupava mesmo
nas aulas. Filho único como eu, o curso era o seu modo de satisfazer
as esperanças desmesuradas que os pais nele depositavam.
Antes do meu regresso telefonei-lhe sem mencionar o meu nome,
exagerando os cuidados em relação a possíveis escutas policiais,
e perguntei-lhe se me albergaria por uns dias. Disse logo que
sim. Entre gargalhadas combinámos que ele reservaria uma mesa
para dia tal almoçarmos em Évora, no Fialho. Enquanto refractário
ao serviço militar, só clandestinamente eu podia voltar. Foi o
que fiz, escondido num camião TIR até Évora, onde reencontrei o
meu amigo tão magro e abatido que mal o reconheci. Entre Évora
e Lisboa falei-lhe do meu planeado retiro espiritual na Peninha.
Ao entrarmos no apartamento que ele partilhava com um galgo
afegão etéreo como um fogo-fátuo, as suas aguarelas às centenas,
encostadas a todas as paredes e cantos da casa, deixaram-me sem
respiração por uns momentos. Por ali deambulava uma fauna irónica
e feroz, parente ou aderente da que sai dos meus sonhos. Fiquei
siderado diante daquele bestiário de seres mais ou menos humanos,
daquela irrisão e zombaria de todas as formas de vida, terrestre
ou celeste, animal ou anímica.
Numa das manhãs seguintes partimos de carro, sob um sol forte
apesar do frio, e com as parcas coisas indispensáveis, em
direcção a este recolhimento desabrigado e contudo protegido da
barafunda, da multidão e do barulho. Da mesma maneira que certa
porção de água tanto cabe num copo estreito e alto como num
bojudo e baixo vaso, assim também a tudo me adapto, desde os
luxos e luxúrias à presente austeridade. Como se o eu não fosse
meu, como se não me reconhecesse em todas as acçÕes e amores e
diálogos de que se diria que fui protagonista ou em que
simplesmente tomei parte sabendo-me exterior ou excluído.
Não corre mais quem caminha, mas quem mais imagina. Esta
sensata sentença de meu pai várias vezes me ocorreu nos tempos
em que corri atrás de mundos e mulheres. Fiz o que o Outro não
fez. E contudo, que teria eu feito de mim se nunca tivesse
deixado este Promontório Lunar, esta serra de Sintra, que dizem
ter sido dedicada a Cynthia, onde o vento não descansa jamais e,
quando se enche de furor, brama e berra e tão potente é, que
segundo os antigos peja as éguas bravas só com o seu hálito?
Não admira que, em tão ásperos sítios, as pessoas procurem
amenizar o invisível, preenchendo-o de histórias para afugentar assombraçÕes e
domesticar as noites temíveis. Hoje mesmo os caseiros me
segredaram que na próxima noite de sexta-feira, desde que a lua
não se veja, surgirá por aí um touro enorme, com uma estrela
branca entre os cornos. Se alguém o ferir nessa estrela, o rei
Sebastião há-de aparecer, vindo do fundo do mar ou da Ilha
Encoberta onde se esconde há quatro séculos.
Esta história faria as delícias da avó Catarina. Tenho sabido
dela e dos meus pais pelas cartas que vou recebendo via Paris.
No Natal, na Páscoa e nos aniversários respectivos telefono-lhes
da Azóia, como se fosse de Paris. Desde que meu pai passou à
reforma, os três moram na casa de Lisboa. Meu pai tornou-se
marinheiro em terra, reúne-se com amigos em duvidosas tascas
perto do porto, empolando aventuras por mares nunca mais
navegados.
Ao sair de sonhos agitados, apetecia-me a companhia de
Catarina, sempre pronta a desensarilhar as malhas pela noite
tecidas. Ninguém sabe como os sonhos tomam conta de nós, se nos
abandonam ou se os abandonamos ao acordar, se fazemos nocturnas
visitas ou se somos nós os visitados, se são nossas as imagens
ou se nos são emprestadas.
Seja sonho meu ou desenho do meu amigo que todos os meses me
traz novos esboços, ultimamente aparece-me de noite uma figura
nua que podia ser meu duplo e que vem em silêncio, calçando luvas
compridas, usando na cabeça a mitra dos dignitários e príncipes.
Pára diante de mim e apoia numa rocha a grossa espada, de punho
escamoso terminado em boca de drago. Está rodeado por quatro
monstruosos animais, como os símbolos dos Evangelistas cercam
o Filho do Homem nalguns ícones, e representam o sal do desejo,
o pez da nostalgia, o mercúrio do movimento, o enxofre da
melancolia. Como-se eu fosse um sol, sete estrelas giram à minha
volta. São as Plêiades, da constelação do Touro, simbolizando as
sete solidÕes, e as sete servidÕes, e as sete libertaçÕes que se
lhe seguem, e de cada uma delas chega o som da palavra "eterno"
que sete vezes se repete no final da Canção da Terra.
Tranquiliza-me de repente a evidência de que aquele Sete-Estrelo
me há-de guiar pela vida fora e me há-de defender de morrer cedo.
O Autor e a Obra

Almeida Faria nasceu em Montemor-o-Novo (Alentejo), a 6 de


Maio de 1943. Em Lisboa frequentou as Faculdades de Direito e de
Letras, sendo licenciado em Filosofia, e é actualmente professor
de Estética na Universidade Nova de Lisboa. Viveu como escritor
residente (1968-69) nos Estados Unidos (International Writing
Program, Iowa City) e em Berlim, onde fez parte do Berliner
Künstlerprogram no qual participaram, entre outros, Gombrowicz,
Michel Butor, Peter Handke e Mario Vargas Llosa. Tem colaborado
em diversas publicaçÕes colectivas, nomeadamente em revistas
alemãs, brasileiras, francesas, holandesas, italianas, suecas e
norte-americanas. Os seus romances foram objecto de várias teses
universitárias em Itália, Holanda, Brasil e França. Em 1979
seleccionou e traduziu Poemas Políticos de Hans Magnus
Enzensberger.
Ficcionista e ensaísta, Almeida Faria obteve o Prémio
Revelação de Romance da Sociedade
Portuguesa de Escritores com o livro Rumor Branco (1962),
confirmando depois a sua maturidade literária com A Paixão
(1965), primeiro romance de uma "Tetralogia Lusitana" de que
fazem parte Cortes (1978) Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das
Ciências de Lisboa, Lusitânia (1980) - Prémio Dom Dinis da
Fundação da Casa de Mateus, e Cavaleiro Andante (1983) - Prémio
Originais de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores. Os
seus livros estão traduzidos em várias línguas.
Almeida Faria publicou ainda o conto Os Passeios do Sonhador
Solitário (1982) e o ensaio Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta
(1988). O seu último romance, O Conquistador, foi dado à estampa
em 1990.

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