Você está na página 1de 8

A crise da Modernidade e o Estado

Democrático de Direito

Wilson Roberto Theodoro Filho

Sumário
1. Introdução. 2. A Modernidade sob a ótica
de Boaventura. 3. Os paradigmas constitucio-
nais: o Estado Democrático de Direito. 4. Con-
clusões.

1. Introdução
O presente artigo tem o intuito de forne-
cer uma análise de algumas das relações
existentes entre o paradigma da Moderni-
dade e sua crise e o Estado Democrático de
Direito. Propõe-se que as características
apontadas pela teoria constitucional hodi-
erna sobre o Estado Democrático de Direito
respondem a várias das tensões que consti-
tuem a crise do paradigma da Modernidade.
Entre os vários relatos possíveis e váli-
dos para a Modernidade Ocidental, a pro-
posta teórica de Boaventura de Sousa Santos
é útil para se compreender as relações entre
a crise do paradigma moderno e o direito e a
teoria jurídica do século XX. Não se tratan-
do de uma visão única, ou superior a outras
possibilidades de compreensão do paradig-
ma da Modernidade, o pensamento do filó-
sofo português, ao tratar diretamente das
relações entre direito, ciência e sociedade,
serve de esteio para uma análise do papel
exercido pelo Estado Democrático de Direi-
to em fornecer respostas adequadas aos ele-
mentos que constituem a crise do paradig-
Wilson Roberto Theodoro Filho é Advoga- ma moderno.
do, Mestrando em Direito Constitucional pela Do mesmo modo, a teoria dos paradig-
Universidade de Brasília. mas constitucionais posta por Menelick de
Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 231
Carvalho Netto é de fundamental importân- de bens; o Estado detém a função de regular
cia para a compreensão da teoria constitu- a atividade e participação políticas no seio
cional desenvolvida ao longo do século XX, da sociedade; e a comunidade é a instância
além de fornecer um relato coerente das prin- na qual se realizam efetivamente as trocas
cipais características do Estado Democráti- sociais, a vida privada e pública em seus
co de Direito nos dias atuais. A contraposi- aspectos propriamente comunitários e par-
ção entre o relato acerca dos paradigmas ticipativos.
constitucionais e a crise da Modernidade O pilar da emancipação volta-se para a
possibilitará um melhor entendimento so- possibilidade de desenvolvimento intelec-
bre o papel do paradigma constitucional do tual, social e espiritual humanos, vinculan-
Estado Democrático de Direito e suas possi- do-se diretamente ao conceito de liberdade,
bilidades de estabelecer um novo equilíbrio caro à proposta da Modernidade. Nessa
entre o direito e a participação comunitária medida, Boaventura compreende que todas
tanto no processo jurídico decisional quan- as três formas de racionalidade que caracte-
to na atividade política – fornecendo, desse rizam a Modernidade guardam, ao menos
modo, algumas respostas para as tensões em suas origens, o potencial e a intenção
inerentes ao paradigma da Modernidade. emancipatórios, voltados para a libertação
progressiva do homem em todos os aspec-
2. A Modernidade sob a ótica tos de sua atividade social.
de Boaventura A racionalidade estético-expressiva liga-
se às artes, à literatura, à produção humana
Boaventura de Sousa Santos define a mo- propriamente estética, ou seja, à produção
dernidade ocidental como o paradigma só- de conhecimento cuja finalidade primeira é
cio-cultural dominante do pensamento filo- interior à própria criação. Procura estabele-
sófico e científico a partir do século XVI1. A cer padrões de beleza e de prazer, tendo em
Modernidade, assentada em uma ideologia vista a participação criativa e lúdica do ho-
de base iluminista (racional, individualista mem no ambiente e na comunidade à sua
e humanista, caracterizada pela prevalên- volta.
cia do conhecimento científico sobre as ou- A racionalidade moral-prática, que pres-
tras formas de cognição humana), atuou creve condutas, refere-se diretamente à éti-
sobre toda a atividade intelectual e social ca, à religião, ao direito. Tenciona estabele-
ocidental. Boaventura estabelece seu racio- cer formas, procedimentos e conteúdos para
cínio crítico sobre a modernidade a partir a atuação social e os relacionamentos co-
da distinção e tensão entre a regulação soci- munitários, influindo diretamente na orga-
al e a emancipação social. Três princípios nização dos três pilares: mercado, Estado e
caracterizam o pilar da regulação: merca- comunidade.
do, Estado e comunidade. Três racionalida- E a racionalidade cognitivo-instrumen-
des caracterizam o pilar da emancipação: a tal caracteriza as ciências e a filosofia: trata-
racionalidade estético-expressiva, a racio- se de uma racionalidade que busca delimi-
nalidade cognitivo-instrumental e a racio- tar critérios objetivos para a construção do
nalidade moral-prática. conhecimento e para a busca da “verdade”
O pilar da regulação volta-se para o con- – estabelece padrões de reconhecimento
trole, para o estabelecimento de regras de para o que é cientificamente válido, ou seja,
conduta que possibilitem o desenvolvimen- para qual conhecimento possui “valor”.
to das sociedades modernas tendo em vista O projeto da Modernidade, se levado a
o projeto do paradigma da Modernidade. cabo idealmente, promoveria a maximiza-
Nessa medida, o mercado funciona como o ção do mercado, do Estado e da comunida-
mecanismo de controle da produção e troca de, e a máxima emancipação das racionali-

232 Revista de Informação Legislativa


dades cognitivo-instrumental (científica), segundo momento, após o direito revestir-
moral-prática (jurídica) e estético-expressi- se de um caráter científico (principalmente
va (artística). Entretanto, Boaventura iden- no século XX), nota-se uma recolonização
tifica uma série de distorções dentro da “exe- de outros setores por uma nova racionali-
cução” do projeto da Modernidade, que aca- dade moral-prática de cunho científico,
baram por saturar o paradigma e principiar oriunda do campo jurídico.
sua crise. Nessa medida, o Estado, o mercado, as
No pilar da regulação, identifica-se o su- relações sociais, passam a ser regulados por
focamento da comunidade em face do Esta- regras de conduta que se revestem de uma
do e do mercado. As relações capitalistas de forma científica, mas possuem caráter mo-
troca e a atividade estatal superpõem-se às ral-prático. O direito torna-se um verdadei-
possibilidades comunitárias, que se atrofi- ro “leviatã”, que prescreve regras e padrões
am em face de interesses que, em vez de as de conduta para todos os aspectos da socie-
complementarem, terminam por diminuir dade, legitimado pela sua suposta “cientifi-
seu potencial. Nessa medida, a comunida- cidade”. A atrofia do pilar da emancipação
de fica excluída, tendo que sobreviver em se agrava, pois a racionalidade propriamen-
contraposição, e não em harmonia, com os te moral-prática e a racionalidade estético-
supervalorizados princípios do mercado e expressiva são esquecidas em detrimento da
do Estado. “superioridade” científica; também a comu-
No pilar da emancipação, nota-se uma nidade, espaço no qual poderiam exsurgir
colonização das racionalidades moral-prá- novas possibilidades emancipatórias, é pre-
tica e estético-expressiva pela racionalida- judicada: o direito a regula totalitariamen-
de cognitivo-instrumental. Os pressupostos te, em todos os seus aspectos, e a esvazia de
e métodos científicos passam a reger tam- seu papel original dentro do plano paradig-
bém a produção ético-jurídica e a produção mático da Modernidade.
artística. Os pressupostos originais das ra- Os desequilíbrios entre o pilar da regu-
cionalidades colonizadas enfraquecem-se, lação e o pilar da emancipação deram cau-
sendo substituídos pelos critérios e padrões sa à colonização das racionalidades artísti-
da racionalidade científica. ca e jurídica pela racionalidade científica,
O potencial emancipatório de cada uma ao sufocamento do princípio da comunida-
das racionalidades diminui paulatinamen- de pelo mercado e pelo Estado e à atrofia da
te, à medida que as características indivi- emancipação em face da regulação: o direi-
duais perdem-se e se amalgam em um úni- to torna-se um mecanismo não emancipató-
co critério válido de racionalidade – a racio- rio, unicamente regulatório, substituto da
nalidade científica deixa de ser um meca- racionalidade científica como mecanismo de
nismo emancipatório para se tornar um me- regulação.
canismo regulatório. O mercado, o Estado e Dessa forma, a crise da Modernidade
a comunidade, portanto, passam a ser regi- vincula-se diretamente aos desequilíbrios
dos também pela racionalidade cognitivo- entre os elementos que a compõem, sendo
instrumental, concebida, a partir desse mo- que o direito, colonizado pela racionalida-
mento, como a única racionalidade válida de científica, esvazia-se de seu conteúdo
para a regulação desses setores: a emanci- emancipatório original (em relação ao pa-
pação torna-se subordinada e inferior à re- radigma da Modernidade) para se tornar um
gulação. mecanismo de reprodução regulatória dos
No campo jurídico, foi possível observar pilares do mercado e do Estado.
primeiramente uma colonização da racio- Assim, entende-se que o direito das soci-
nalidade moral-prática pela racionalidade edades hodiernas está diretamente vincu-
cognitivo-instrumental. Entretanto, em um lado ao paradigma da Modernidade, cons-

Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 233


truído em torno da racionalidade moral-prá- O direito público tem a função de evitar
tica do pilar da regulação e suas inter-rela- o retorno ao Absolutismo, por meio da ado-
ções paradigmáticas decorrentes do desen- ção dos princípios da limitação do Estado e
volvimento e desvirtuamento do projeto da da separação dos Poderes, promovendo a
Modernidade – dessa forma, também a teo- representação censitária da “melhor socie-
ria constitucional é tributária do processo dade” na sociedade política. O direito pri-
de formação e crise da Modernidade, poden- vado deveria resguardar, por meio da me-
do ser analisada à sua luz. nor quantidade possível de leis, a liberda-
de, a igualdade e a propriedade dos cida-
3. Os paradigmas constitucionais: o dãos. Há um fosso entre a sociedade civil e
Estado Democrático de Direito a sociedade política: o Estado controlado
pela “melhor sociedade” restringe-se a es-
Menelick de Carvalho Netto estabelece tabelecer direitos negativos (direitos de pri-
uma série de análises gerais sobre o direito, meira geração), pretendendo assim resguar-
de acordo com os paradigmas constitucio- dar a liberdade de cada indivíduo.
nais vigentes ao longo da história ociden- Segundo Cristiano Paixão Araujo Pinto
tal. Cada um desses paradigmas propõe uma (2003, p. 19-20), há uma nítida assimetria
forma diferente de pensar e fazer o direito, entre o direito público e o direito privado,
exercendo profunda influência sobre todos sendo que o último é superdimensionado e
os campos vinculados ao sistema do direito. valorizado, e o primeiro é visto com descon-
A organização política e jurídica pré-mo- fiança, reforçando uma concepção jurídica
derna pode ser largamente condensada em ligada a liberdades “negativas”. A ativida-
um único paradigma, caracterizado por “um de hermenêutica do juiz é compreendida
amálgama normativo indiferenciado de re- como uma atividade mecânica, diretamente
ligião, direito, moral, tradição e costumes vinculada ao texto legal, evitando-se qual-
transcendentalmente justificados e que essen- quer espécie de interpretação.
cialmente não se discerniam” (CARVALHO A inefetividade da liberdade e da igual-
NETTO, 1998, p. 237). O direito é fixado de dade meramente abstratas conduzem ao sur-
acordo com critérios de hierarquia e estrati- gimento do paradigma do Estado Social, no
ficação sociais. qual pretende-se a materialização dos di-
A dissolução do paradigma pré-moder- reitos anteriormente formais (a conquista
no, erodido pelo surgimento da moralidade dos direitos coletivos e sociais de segunda
individualista e racionalista característica geração e a redefinição dos direitos de pri-
da Modernidade, conduz ao surgimento do meira geração). A liberdade e a igualdade
paradigma do Estado de Direito, primeiro pressupõem garantias materiais por meio do
paradigma constitucional moderno. O di- direito público. A propriedade passa a ser
reito passa a ser compreendido como “um admitida apenas tendo em vista a sua função
ordenamento de leis racionalmente elabo- social. Todo o direito torna-se público, na
radas e impostas à observação de todos por medida em que o Estado passa a ser o res-
um aparato de organização política laiciza- ponsável pela sociedade, tendo as suas fun-
do” (CARVALHO NETTO, 1998, p. 239). ções extraordinariamente ampliadas e com-
Idéias abstratas e racionais extraídas do jus- plexificadas2. O Estado, acima da sociedade,
naturalismo, definidas e impostas pelos deve promover a materialização do direito.
Estados Nacionais, tornam-se universal- A atividade do juiz torna-se mais sofisti-
mente válidas para todos os membros da cada, e reclama por métodos hermenêuticos
sociedade, homens livres, que são ao mes- “capazes de emancipar o sentido da lei da
mo tempo proprietários e sujeitos de direi- vontade subjetiva do legislador na direção
tos. da vontade objetiva da própria lei, profun-

234 Revista de Informação Legislativa


damente inserida nas diretrizes de materia- do cidadão exige uma participação ativa da
lização do direito que a mesma prefigura...” comunidade na atividade política e no pro-
(CARVALHO NETTO, 1998, p. 243). cesso jurídico decisional:
A crise do Estado Social inicia-se com o “A ênfase conferida ao paradigma
fim da Segunda Guerra Mundial e aprofun- emergente concentra-se na idéia de
da-se com a crise econômica, a falência da cidadania, compreendida em sentido
racionalidade tecnocrata e dos planejamen- procedimental, de participação ativa.
tos econômicos, a antítese entre técnica e po- Como seria de se esperar de uma mu-
lítica. A falência do modelo de racionalida- dança paradigmática, os direitos con-
de do Estado-interventor dá causa ao surgi- sagrados nos modelos anteriores de
mento de um novo paradigma constitucio- constitucionalismo são redimensio-
nal apto a satisfazer as novas demandas e nados. Verificam-se, no interior da
problemas que surgem no seio das socieda- sociedade, novas formas de associa-
des modernas: ção: organizações não-governamen-
“É com a crise do Estado Social que tais, sociedades civis de interesse pú-
se viabiliza a construção – ainda em blico, redes de serviço não-verticali-
pleno andamento – de um novo para- zadas” (PINTO, 2003, p. 27).
digma: o Estado Democrático de Direi- A dicotomia entre direito público e direi-
to. Ele decorre da constatação da crise to privado é novamente redimensionada. Em
do Estado Social e da emergência – a um ambiente no qual a comunidade exerce
partir da complexidade das relações papel efetivo na vida jurídica e política, o
sociais – de novas manifestações de direito público e o direito privado se refor-
direitos. Desde manifestações ligadas çam e se inter-relacionam constantemente,
à tutela do meio ambiente, até reivin- tendo em vista a promoção democrática da
dicações de setores antes ausentes do soberania popular e dos valores e princípi-
processo de debate interno (minorias os contidos na carta constitucional; as ques-
raciais, grupos ligados por vínculos tões públicas não se restringem unicamente
de gênero ou de orientação sexual), ao Estado, nem tampouco as questões pri-
passando ainda pela crescente preo- vadas se limitam somente aos indivíduos –
cupação com lesões a direitos cuja ti- a participação ativa em prol da cidadania
tularidade é de difícil determinação exige que ambos os campos tenham aten-
(os chamados interesses difusos), se- ção constante tanto por parte dos cidadãos,
tores das sociedades ocidentais, a par- quanto por parte do Estado:
tir do pós-guerra e especialmente da “Para esse último paradigma, a
década de 1960, passam a questionar questão do público e do privado é
o papel e a racionalidade do Estado- questão central, até porque esses di-
interventor” (PINTO, 2003, p. 26-27). reitos, denominados de última gera-
O paradigma do Estado Democrático de ção, são direitos que vão apontar exa-
Direito prefigura um direito participativo, tamente para essa problemática: o
pluralista e aberto, capaz de abarcar os di- público não mais pode ser visto como
reitos de terceira geração (direitos difusos) e estatal ou exclusivamente como esta-
dar novo significado aos direitos de primei- tal e o privado não mais pode ser vis-
ra e segunda gerações, inserindo-os no de- to como egoísmo. A complexidade so-
bate público que informa a soberania demo- cial chegou a tal ponto que vai ser pre-
crática prevista pelo paradigma em ques- ciso que organizações da sociedade
tão. Nessa medida, a comunidade assume civil defendam interesses públicos
um papel de relevância fundamental na pro- contra o Estado privatizado, o Estado
dução e consecução do direito; a atividade tornado empresário, o Estado inadim-

Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 235


plente e omisso” (CARVALHO tação e decisão jurídicas, na medida em que
NETTO, 2001). o seu escopo de aplicação condiciona a va-
Assim, enquanto a esfera pública é reva- lidade de aplicação de uma norma a cada
lorizada, na medida em que sua defesa e caso concreto específico. As normas não são
proteção é responsabilidade de toda a co- consideradas auto-aplicáveis, na medida
munidade política, também a esfera priva- em que é necessário o “crivo” e “autoriza-
da ganha nova importância: a autonomia ção” principiológicos, mediados pela ativi-
privada, diretamente vinculada às preten- dade interpretativa do juiz, para a aplicação
sões de autodeterminação e liberdade, tor- de uma norma a um caso concreto específico.
na-se independente da atividade estatal – o
direito administrativo, eminentemente, per- 4. Conclusões
de o seu caráter de regulador precípuo da
vida social para se tornar um mecanismo É clara a relação entre o paradigma do
emancipatório em prol da garantia demo- Estado Democrático de Direito e a crise pa-
crática dos direitos e liberdades dos cida- radigmática da Modernidade. O paradigma
dãos. Setores anteriormente regulados pelo do Estado Democrático surge como uma res-
direito estatal tornam-se desregulados; do posta aos efeitos da crise da Modernidade
mesmo modo, aspectos originalmente vin- sobre o direito e a prática constitucional: ao
culados à iniciativa privada passam a inte- prever a participação ativa da comunidade
grar o direito público3. no processo jurídico, o paradigma pugna
A atividade hermenêutica do juiz atinge por um equilíbrio entre os pilares do Estado
novas dimensões. O juiz não só deve estar e da comunidade – a supremacia estatal
apto a interpretar racionalmente os textos parte-se diante de uma nova possibilidade
jurídicos, mas deve também analisar e in- emancipatória voltada para a maximização
terpretar os elementos fáticos de cada caso tanto das potencialidades estatais quanto
concreto. Assim, cada decisão deve retraba- das potencialidades comunitárias.
lhar os elementos do direito vigente, bus- Do mesmo modo, o caráter regulatório
cando a harmonia dos princípios e regras do direito cientificamente colonizado é subs-
jurídicas com o sentimento de justiça relati- tituído por um retorno às potencialidades
vamente a cada caso concreto específico, emancipatórias do direito, conforme conce-
tendo em vista a atividade constitucional bido no projeto original do paradigma da
realizada por toda a comunidade: Modernidade. O direito torna-se um mecanis-
“Desse modo, no paradigma do mo de participação comunitária na vida polí-
Estado Democrático de Direito, é pre- tica, possibilitando uma interação coerente e
ciso requerer do Judiciário que tome equilibrada entre as diversas racionalidades,
decisões que, ao retrabalharem cons- por meio do debate aberto entre as esferas
trutivamente os princípios e as regras pública e privada no seio da sociedade.
do direito vigente, satisfaçam, a um O paradigma constitucional do Estado
só tempo, a exigência de dar curso e Democrático de Direito encontra-se ainda
reforçar a crença tanto na legalidade, em construção: mas é possível notar, pelo
entendida como segurança jurídica, menos em seus delineamentos iniciais, que
como certeza do direito, quanto no suas principais propostas são respostas aos
sentimento de justiça realizada, que elementos que deram causa à crise do para-
deflui da adequabilidade da decisão digma da Modernidade.
às particularidades do caso concreto” Nessa medida, o surgimento de organi-
(CARVALHO NETTO, 1998, p. 245). zações não governamentais, a maior parti-
Os princípios constitucionais passam a cipação da sociedade civil na vida política
exercer papel fundamental para a interpre- e na defesa de interesses difusos, a preocupa-

236 Revista de Informação Legislativa


ção com a tutela de direitos de última geração volucionário paradigma sócio-cultural assente
e de direitos cuja responsabilidade direta per- numa tensão dinâmica entre regulação social e
emancipação social” (SOUSA SANTOS, 2000, p.
tence ao Estado (direitos que não podem ser 15).
compensados, mas apenas protegidos: meio 2
“É o que Kelsen observa muito bem (...) Para
ambiente, proteção ao consumidor) constitu- ele, podemos manter a distinção didática entre Di-
em novas possibilidades de desenvolvimen- reito Público e Direito privado, mas, na verdade,
to da Modernidade, já que se voltam para a todo Direito é público, todo Direito é estatal (...).”
(CARVALHO NETTO, 2001).
harmonização da problemática decorrente da 3
“E, da mesma forma, algumas das discipli-
supremacia da regulação sobre a emancipa- nas antes classificadas como de direito público
ção, e da colonização das racionalidades passam a assumir uma feição cada vez mais aber-
moral-prática e estético-expressiva pela raci- ta à possibilidade de argumentação, à inserção de
onalidade cognitivo-intrumental. elementos ligados à iniciativa individual. Um exem-
plo ilustrativo são as normas que autorizam tran-
Pretendeu-se, portanto, expor algumas sação penal ou suspensão da punibilidade em face
das relações existentes entre a crise do pa- da admissão do ilícito.” (PINTO, 2003, p. 29).
radigma da Modernidade, conforme identi-
ficada por Boaventura de Sousa Santos, e as
respostas fornecidas pelo paradigma do Es-
tado Democrático de Direito às tensões e pro- Bibliografia
blemas inerentes ao direito e teoria consti-
tucional hodiernas. A construção do Esta- PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Arqueologia de
uma distinção: o público e o privado na experiência
do Democrático de Direito, ainda em anda-
histórica do direito. In: PEREIRA, Claudia Fernan-
mento, volta-se, no intuito de apresentar da de Oliveira (Org.). O novo direito administrativo
novas propostas e soluções para a própria brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
crise que deu causa ao seu surgimento, para
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão
a efetivação da participação da comunida- indolente: contra o desperdício da experiência. 2. ed.
de civil na vida política de forma responsá- São Paulo: Cortez, 2000.
vel e soberana, potencializando, desse CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêuti-
modo, as vias emancipatórias e democráti- ca constitucional sob o paradigma do estado de-
cas que constituem a essência do Estado mocrático de direito. Notícia do direito brasileiro, Bra-
Democrático de Direito. sília, v. 1998, n. 6, dez. 1998.
______. A contribuição do direito administrativo
enfocado da ótica do administrado para uma refle-
Notas xão acerca dos fundamentos do controle de consti-
tucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exer-
“A partir dos séculos XVI e XVII, a moderni-
1 cício de teoria da constituição. Fórum administrati-
dade ocidental emergiu como um ambicioso e re- vo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 11-20, mar. 2001.

Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 237


238 Revista de Informação Legislativa

Você também pode gostar